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1 SURVIVORS (Caca e Cacador) - i Roxie

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SURVIVORS

Direitos Autorais © 2024 Roxie


1º Edição
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser
reproduzida ou armazenada em um sistema de recuperação, ou transmitida
de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia,
gravação ou outro, sem a permissão expressa por escrito da autora.
O PLÁGIO É CRIME.
Se você está lendo esse livro em PDF ou está lendo em outra
plataforma que não seja a Amazon, saiba que não está me ajudando de
forma alguma, pelo contrário, está prejudicando o meu trabalho e a mim
como escritora.
Eu vivo inteiramente da renda dos meus livros, o que já é um
trabalho mau-remunerado e desvalorizado, então se você quer me prestigiar,
compre o meu livro por meios legais.
Se quer apoiar ainda mais o meu trabalho, me siga no Instagram
(@rxautora)
Se você disponibiliza gratuitamente a minha obra, ou a comercializa
sem minha autorização, primeiramente, VÁ SE FODER, pois isso é um
crime. Você está cometendo pirataria e eu não vou medir esforços para
processá-lo e fazê-lo responder por cada pessoa que teve meu livro em
mãos através de você.
Os personagens e eventos retratados neste livro são frutos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com pessoas reais é
coincidência e não é intencional por parte do autor.
Capa: Mari Mello
Revisão: Brum Moon
Diagramação: Talibah Casillas
Ilustração: Marih Ilustra
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA
NOTA DA AUTORA
GATILHOS
PRÓLOGO
EPÍGRAFE
CAPÍTULO 01
CAPÍTULO 02
CAPÍTULO 03
CAPÍTULO 04
CAPÍTULO 05
CAPÍTULO 06
CAPÍTULO 07
CAPÍTULO 08
CAPÍTULO 09
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
CAPÍTULO 43
CAPÍTULO 44
CAPÍTULO 45
CAPÍTULO 46
CAPÍTULO 47
AGRADECIMENTOS
Foram muitos os dias que chorei durante a noite escrevendo este
livro em uma profunda e intensa solidão, desejando sentir o imenso e
descomunal bater de coração latejante diante de um amor capaz de mover
montanhas. Então eu o dedico a você que é faminto pela intensidade. Tenho
certeza que em algum momento deste livro alcançarei o seu coração.
Olá, eu sou a Roxie. Pensei milhares de vezes sobre o que eu
colocaria na nota inicial de um livro que eu amo de todo o meu coração,
mas no fim, independentemente de quais sejam os meus planos, sei que eu
sempre opto por dar a cara a tapa e dizer tudo o que meu coração me
mandar.
Se você é novo por aqui, saiba que estou imensamente feliz por te
ter participando de um momento na qual sonhei muitas vezes durante o
desenvolvimento de Survivors. O meu desejo unicamente é que desfrutem e
amem Aspen e Jason assim como eles amam um ao outro, da forma mais
pura, sincera e límpida. Amem de todo o coração, pois são merecedores de
tanto amor. Sintam, permitam-se tomar as suas dores e deixem que eles
aluguem um espaço especial em seu coração, pois tenho certeza de que irão
tentar.
São personagens cheios de personalidade, com um coração grande e
uma alma genial. Muitas vezes eu, autora, me questionei se estava indo pelo
caminho correto, mas eles me guiaram e vão passar para o mundo aquilo
que desejam. Minha função é apenas colocar em palavras.
Aos meus antigos leitores, que me ajudaram a carregar minha
bagagem desde o Wattpad, que seguraram a minha mão e não me deixaram
desamparar ou desistir, espero que vocês amem esses dois ainda mais do
que a primeira vez. Meu carinho por cada uma de vocês é gigantesco e não
há palavras para expressar o quanto.
Peguem os lenços, os xingamentos de baixo calão, o banquinho e a
pipoca, pois aqui eu prometo muito amor, caos, injustiça e principalmente,
superação.
Desejo que mergulhem profundamente em cada uma das sensações
que Survivors proporcionar a vocês, que desfrutem da leitura e que não
desejem me matar a cada situação horrível que aparecer, prometo que tudo
valerá a pena no fim de tudo.
Este é apenas o início da história de Jason e Aspen.
Boa leitura.
Com amor, Roxie.
É de extrema importância que saibam que este livro é um dark romance e aborda assuntos
totalmente delicados tal como:
· Sequestro
· Cárcere privado
· Violência explícita
· Consumo de drogas
· Menção a estupro (não detalhado)
· Luto
· Automutilação
· Tortura física e psicológica
· Maus-tratos infantil
· Palavras de baixo calão
· Conteúdo sexual explícito
· Perseguição
· Relacionamento familiar tóxico
· Violência doméstica
· Assassinato
· Assédio sexual
· Tráfico sexual
· Racismo
· Abuso de poder
· Manipulação psicológica
Nenhum destes gatilhos acontecem entre os protagonistas de modo amoroso, toda
relação entre eles é consensual. Atente-se a todos os gatilhos e se em algum momento chegar ao
seu limite e perceber que é demais para você, saia imediatamente e priorize sua saúde mental.
Ambos éramos sobreviventes. Eu e ele.
Na verdade, temo que eu não saiba mais respirar desde o dia em que
seu par de olhos negros colidiram com os meus. Eu tinha tantas perguntas,
mas a principal continuava sendo sempre a mesma: por que raios eu estava
tão sufocada apenas por estar em sua presença?
Sempre foi tão óbvio, ele nunca mediu esforços para acreditar em
possibilidades que existiam apenas na minha cabeça. Acreditar nas minhas
capacidades nunca foi um problema, e talvez seja por isso que ele não é o
herói de armadura brilhante que eu sempre esperei que me resgatasse.
Talvez eu fosse resgatada de um pesadelo por um príncipe gentil e bondoso
que faria qualquer coisa para me manter em segurança.
Ou, talvez, príncipes encantados não existam. Ele nunca foi o meu
herói, nunca esteve aqui para me proteger e me manter escondida nas
sombras de sua figura.
Ele acreditava que eu era capaz de proteger a mim mesma sem
esperar algum tipo de socorro divino. Ele arrancou do meu peito o medo
que dominava o meu ser, a repulsa, a hesitação, a preocupação do que
aconteceria em seguida.
Ele fez com que eu me sentisse capaz, e não como uma mera peça
insignificante em um jogo de xadrez. Eu era a peça indispensável numa
partida incerta, aquela capaz de derrubar todas as outras como prova de que
elas não são nada.
Eu sempre soube que ele era diferente, havia algo no abismo de seus
olhos que nem mesmo o azul resplandecente dos mais belos olhos seria
capaz de fazer com que eu me sentisse em casa.
Nós éramos iguais. Crescemos sem amor suficiente para enfrentar
todos os empecilhos que a vida nos entregava em bandejas. Estávamos
sempre alertas. Sempre com medo do que viria a seguir. A diferença é que
eu nunca soube reprimir os meus sentimentos tão bem quanto ele.
Sua frieza me assustava.
Acho que nunca me senti verdadeiramente em casa. Não após a
morte dela. Não antes de vê-lo e me afundar em seu abraço quente e
reconfortante.
Nós somos almas quebradas, almas que lutam para encontrar uma
saída em tanta escuridão, sem um caminho, sem luz. Não tivemos uma boa
vida. Não tivemos a quem recorrer quando o mundo desmoronava, quando
tudo parecia querer cair em nossos ombros, e sempre, sempre, tínhamos a
obrigação de suportar todo o peso. Por algo. Por alguém.
Corremos por tanto tempo e nos apressamos para encontrar a
liberdade. Para sobreviver.
Acho que eu nunca estive viva de verdade. Acho que eu apenas andava por
aí, como se fosse invisível para tudo e todos, querendo ser algo ou alguém.
Querendo me livrar do gosto amargo em minha boca. Querendo mais.
Eu queria poder acabar com a tortura que ecoa pela minha mente,
queria acabar com as vozes, aquelas que dizem que não sou capaz. Que eu
jamais serei alguém. Que eu estou arruinada e que não há uma saída deste
inferno pessoal.
Mas há uma.
Ele é a minha saída.
O nosso próprio inferno pessoal não é capaz de fazer com que
temamos os nossos demônios, porque, de alguma forma, somos ambos
piores do que eles jamais serão. Eu e ele.
Porque no fim, todo aquele afinco em nos manter separados para
evitar uma explosão fatal, havia falhado e o pior aconteceu. Nós iríamos
destruir todos eles, um a um, e finalmente faremos jus às suas suspeitas
desde o início, afinal, nossa união traria caos a esta Terra.
“Como a maioria dos sofrimentos, esse começou com
uma aparente felicidade.”
— A Menina que Roubava Livros.
NOVA YORK - 2017
ANTES

A brisa fria do inverno sopra um vento gélido contra o meu rosto


quando saio pela porta dos fundos da casa. O relógio indica sete horas.
Um suspiro nervoso deixa os meus lábios. Olho para a casa da frente
e noto a ausência do carro do vizinho. Estou atrasado.
Meu pai vai ficar louco quando souber que ando saindo pela noite
enquanto deveria estar concentrado em virar mais um de seus fantoches.
Talvez este seja o preço a se pagar por carregar o sobrenome de um homem
que me enxerga apenas como seu herdeiro.
Se ele olhasse em meus olhos por mais de cinco segundos,
conseguiria enxergar a minha insatisfação em ser moldado durante toda a
minha vida, quase como se eu fosse feito de infinitos defeitos inaceitáveis.
Mas é Marcus Floyd, e sua natureza lhe permite se importar apenas consigo
mesmo e as consequências que alguns atos trarão somente a ele.
Acontece que eu já sou um fardo e viverei com isto até que aceite
ser o seu companheiro e consequentemente frequentar reuniões, vestir
smokings que custam caro e agir como se apenas a minha vida importasse,
mas isso só aconteceria se eu estivesse morto. Então me contento em ser um
fardo que aborrece o papai do ano todos os segundos de sua miserável vida.
É uma escolha inteligente.
Afundo os meus tênis surrados na neve amontoada pelas ruas da
cidade e me esgueiro pelas árvores das calçadas onde a sombra impede que
a claridade chegue tão longe, camuflando-me pela escuridão enquanto corro
pelas ruas em direção ao colégio feminino da Colombie.
O plano desta noite já está totalmente armado e eu não posso perder
a oportunidade de vê-lo em ação pessoalmente. Talvez eu seja louco por
confrontar tão publicamente as ordens do meu pai, mas nós dois sabemos
que eu nunca fui bom em segui-las mesmo.
O som dos corais de Natal explode pelas ruas, vindas de um grupo
de garotinhas fantasiadas de duendes e algo parecido com o Papai Noel.
Seja qual for aquela coisa, se parece com tudo, menos com o velho do
trenó. As luzes coloridas enfeitam todas as casas e estabelecimentos numa
noite comum de um sábado, fazendo desta noite uma completa festança
além do normal por conta da ceia daqui três dias.
A data em si não tem nada de especial, exceto pela ausência do meu
pai que tão concentrado nos negócios, se esqueceu que tem um filho para
visitar. É exatamente o que não me impede de conhecer as lutas
clandestinas, tampouco frequentá-las em datas que deveriam ser especiais,
mas que são apenas um pretexto para descarregar a minha frustração.
Eu gostaria que ele pudesse ver o que eu faço naqueles ringues
sempre que me lembro de seu desprezo e das ordens repetitivas que nunca
vou seguir.
Sou desequilibrado e defeituoso, e talvez seja este um dos motivos
para que eu esteja diante do colégio feminino, prestes a burlar uma
premiação por um preço justo.
Protegendo-me das gotículas de água amontoadas em meu cabelo,
entro no meio da multidão formada na entrada do colégio antes de subir o
capuz do moletom, afundando as mãos nos bolsos frontais enquanto passo
por toda essa gente afoita aguardando a liberação da entrada.
As luzes douradas enfeitam o arco de entrada onde o nome
estampado do colégio brilha incessantemente, explodindo contra os meus
olhos e fazendo-me abaixar a cabeça para protegê-los de tanto acúmulo de
luzes. Ignoro os resmungos quando esbarro em algumas patricinhas e me
afasto sem me desculpar, indo para longe da muvuca insuportável.
Quando alcanço a porta dos fundos que leva até o jardim do colégio
e encontro o cadeado entreaberto, provavelmente pela entrada e saída
constante dos funcionários, quase solto um suspiro de satisfação. O colégio
é particular e reservado, a entrada para o maior concurso de talentos da
cidade acontece todos os anos e as pessoas deixam metade de seus salários
em um ingresso para assistirem o grande show de diversos tipos de talentos.
Não fazem ideia que hoje vão deixar uma grana boa apenas para que
o diretor use como achar prudente, pois aquela coroa já tem uma dona.
Verifico todos os lados para garantir que estou sozinho quando retiro
o cadeado e entro na área restrita. Deixo o cadeado exatamente como estava
para não levantar tantas suspeitas e tiro o capuz a fim de parecer apenas
com um convidado comum enquanto não chego no auditório.
Passo pela área de funcionários completamente vazia, analisando o pequeno
quarto onde ficam as tralhas da piscina e analiso o rádio sobre uma das
prateleiras onde uma música clássica toca. Alguém está por perto e eu não
posso vacilar quando estou tão perto de entrar.
Deixo o quartinho e apresso o passo em direção ao pátio principal
que leva direto para o corredor de onde todos os visitantes entram, então eu
poderei me misturar. Olho para cima apenas para desviar das câmeras de
segurança que apontam para alguns pontos abertos demais, então me
escondo entre os galhos encharcados pela neve e continuo o meu caminho
sem me preocupar em ser descoberto.
Não sairei daqui sem antes vê-la naquele palco, mesmo que eu seja
obrigado a socar a cara de qualquer um que tentar me impedir.
Quando olho para cima e enxergo a agitação que já se expande pelos
pátios principais, salto para fora dos galhos e quando um dos seguranças
brota no meio das famílias que passam pelas catracas, apresso os meus
passos e me coloco junto à família que por ali transita, camuflando-me no
meio dela e fazendo parecer que estamos em um passeio feliz.
O segurança sequer olha em minha direção.
Mas as duas garotinhas que são guiadas pela mãe, sim. E me olham
como se eu fosse uma aberração.
A mãe, aparentemente assustada com a minha presença, agarra os
ombros das filhas e as arrasta para longe de mim. Não julgo, afinal, eu já
estou dentro e longe do risco de ser pego.
Os quase-inimigos que eu faço pelo caminho são apenas
consequências que eu não dou a mínima.
Vou direto para um dos corredores menos movimentados, pois
significa que não se trata de uma área aberta aos visitantes. Deixo que as
placas sinalizadoras me guiem até os vestiários, então quando alcanço o fim
do corredor e um grupo de vozes femininas em uníssono ecoa pelos
corredores, percebo que estou no local correto.
Me aproximo silenciosamente e vou para os fundos do palco, onde
provavelmente os jurados do concurso estão se preparando. É o momento
perfeito para uma conversa, já que quando fossem para seus postos, seria
impossível interferir. Com todo aquele furdunço que vinha do vestiário,
duvido que alguém note minha presença.
Sendo assim, apresso-me para alcançá-los antes que seja tarde
demais.
O som das vozes ao lado de fora já são ouvidas enquanto todos os
visitantes parecem afoitos e entusiasmados pelo início das apresentações.
Eu não tenho muito tempo, mas espero que seja o suficiente para vê-la
finalmente ganhar algum crédito.
Quando alcanço os fundos do palco, as cortinas vermelhas fechadas
impedem que eu seja visto metendo o nariz nessa área. No palco de madeira
há um piano centralizado, brilhando como se alguém o tivesse polido
durante horas. Os lustres cintilam sobre a minha cabeça, assim como o
brilho da coroa posta em uma espécie de cúpula de vidro, no canto do palco
onde todos a podem ver. Tudo é indescritivelmente impecável, as pedrarias
em um tom rosé, as curvaturas laterais e o cristal centralizado no topo.
Eu poderia roubá-la agora mesmo, mas que graça haveria nisso?
A verdade é que esta noite eu destruirei diversos sonhos para a
realização de apenas um. Eu me julgaria um monstro por isso, mas acontece
que não me importo em parecer com um.
Nunca tive muita moral.
Não dou a mínima para as regras e o quanto quebrá-las faz de mim
um marginal.
Eu apenas faço o que julgo ser o melhor, e testemunhar a minha
obsessão em realizar um sonho para calar a boca do pai de bosta que a
oprime dia e noite, será triunfante. Ela não é qualquer garota, afinal. Porque
não é qualquer uma que consegue a minha atenção.
E ela conseguiu mais do que isso.
Conseguiu a minha devoção.
— Oi? — O som de uma voz doce e gentil me desperta dos meus
pensamentos. — Você deveria estar aqui?
Viro a cabeça lentamente, sem conseguir conter o sorriso ladino que
cresce em meus lábios ao enxergar o borrão loiro pela visão periférica, além
de sentir o cheiro doce das flores que sua mãe planta no jardim. Eu o
reconheceria em qualquer lugar.
— Ei, eu falei com você!
— Eu ouvi. — Afirmo, girando sobre os pés para encará-la.
Tento me concentrar em qualquer outra coisa no maldito palco, mas
acontece que eu não sou capaz de controlar os meus olhos que percorrem
toda a sua figura em uma conferida completa.
Olhos azuis cristalinos, bochecha ruborizada, um longo cabelo loiro
que alcança a sua cintura e um vestido de cetim rosa que, alcançando a
altura dos joelhos, delinea o seu corpo e a faz parecer irreal. Ela usava uma
tiara repleta de cristais no mesmo tom do vestido, se parecia com uma
completa patricinha comum de Nova York, apesar de estar usando um par
de tênis encardidos, que deveriam ser brancos.
Quase rio.
— Você foi convidado?
Ela me analisa de cima a baixo, procurando por qualquer sinal de
que eu realmente seja um intruso. Seus olhos escorregam para as minhas
roupas úmidas pelas gotículas de neve e congelam nas minhas mãos,
especificamente nos ossos marcados pelas lutas.
— Você é um intruso. — Ela deduz. — E pelo visto também soca a
cara das pessoas por aí.
Não contenho o riso nasalado.
— Isso assusta você?
Ela olha para ambos os lados como se estivesse conferindo que
estamos realmente a sós, então morde o canto dos lábios em um claro sinal
de nervosismo, antes de firmar as esferas gélidas em mim outra vez.
— Você está muito suspeito parado aí, desse jeito me encarando…
Então, sim.
— Você estava me encarando primeiro.
— Porque você está em uma área restrita quando deveria estar no
auditório.
Rio.
— Não tem mais ninguém aqui, tem? — Olho ao redor. — Significa
que você também não deveria estar aqui, xereta.
Afundo as mãos nos bolsos, notando a forma como ela afunda as
unhas na palma da mão para controlar os seus impulsos. Mais uma vez, ela
prende os lábios rosados entre os dentes e liberta um longo suspiro.
— Tá, tudo bem! — Frustrada, ela aponta desajeitada para a cúpula.
— Eu só queria… Sei lá, imaginar como seria ter a coroa sobre minha
cabeça.
Ergo a sobrancelha.
— Então você ia roubá-la?
A garota arregala os olhos, temendo que eu vá sair correndo para
dedura-la.
— Não, não! Claro que não! — Estala a língua no céu da boca.
Ela pode ser uma excelente artista, mas é péssima como atriz.
Eu não posso negar, estou surpreso por vê-la confessar que estava prestes a
ir contra as regras apenas para satisfazer os seus desejos. Me incomoda pra
cacete saber o quanto ser desprezada pelo pai, a obriga a se tornar alguém
que ela não sente prazer algum em ser.
Eu conheço bem este sentimento, a diferença é que já estou
corrompido demais. Ela? Ainda é a doce garota que eu adoraria arruinar.
— Sim, você estava. — Afirmo, avançando alguns passos
cautelosos em sua direção.
Ela não se move um único centímetro, apesar dos olhos doces
acompanharem os movimentos dos meus pés e a sua garganta se mover em
uma engolida seca. Ela parece nervosa, eu sou um completo estranho,
suspeito e intrigante, mas ela ainda está aqui, paradinha esperando descobrir
o que vou fazer.
Continue ultrapassando as minhas expectativas.
— Você ia roubar a coroa porque é egoísta demais pra querer
entregá-la para as outras garotas. — Congelo os passos assim que meu
corpo está diante do seu, tão pequeno e frágil. — Você não acha que alguém
aqui mereça mais do que você, não é?
Ela ergue o queixo para me encarar devido a nossa diferença de
altura, analisa os meus olhos que a todo tempo seguem fixos em sua
direção.
— Não… eu… Eu só queria experimentar! — Afasta alguns passos,
hesitante. — Eu juro, não queria tirar a oportunidade de ninguém!
Torço os lábios.
— É uma pena, eu estava disposto a fazer com que ela fosse sua.
Porque não acho que qualquer garota lá fora mereça mais do que você, e
você deveria pensar o mesmo a respeito de si mesma. — Continuo
avançando, encurralando-a. Inclino o meu corpo e abaixo o tom de voz,
sussurrando contra seu ouvido: — Não seja tão gentil, xereta, ninguém aqui
faria o mesmo por você.
Ouço o som de sua respiração elevada, sei que ela está cogitando a
possibilidade e espero mesmo que aceite a minha proposta. Mesmo que ela
a rejeite, eu o farei igualmente. Ainda assim, melhor do que vê-la ser
coroada na frente dessas pessoas, será vê-la ser coroada sabendo que foi de
uma maneira injusta e sob o seu conhecimento.
Significaria que ela não é tão pura como eu pensei que fosse, e que
no fundo, poderíamos ser mais parecidos do que eu imaginava.
Espero alguns segundos e aproveito cada um deles para inalar o
cheiro suave de seu xampu. Seu corpo continua imóvel, mas posso sentir
todo o nervosismo que a dilacera.
— Não estou falando que você não poderia ganhar limpo, mas para
que arriscar, não é?
— Por que está falando essas coisas? — Ela se afasta, caminha pelo
palco enquanto seus olhos me acompanham cheios de descrença. — Quem
é você? Por quê quer me ajudar?
Coço o queixo lentamente, querendo rir do tremor em sua voz e de
como parece tentada a apenas aceitar.
— Última chance, xereta. É pegar ou largar.
— Como você faria isso? Os jurados são justos demais e…
— Não importa como eu o faria, você só precisa saber que aquela
coroa pertencerá a você ao fim desta noite. Basta me pedir.
Seus olhos desviam-se dos meus e encontram o vidro que reserva o
objeto, então seu semblante cai e ela pisca demoradamente, alternando o
seu olhar entre mim e a coroa em seguida.
É questão de tempo.
Sei que não se trata do egoísmo de sua parte porque conheço o tipo
de lixo que ela tem como pai, afinal, ele trabalha para o meu. Há um ditado
bastante conhecido que diz: me diga com quem andas, e eu direi quem és.
O meu pai não tem amigos, ele tem subordinados que o apoiam e
babam o seu ovo para continuar sendo vistos como alguém honesto pela
sociedade. Sempre soube que ele mexe com coisas erradas, apesar de nunca
ter tido permissão para descobrir a fundo, já que nunca tive interesse em
herdar o seu império.
Lavagem de dinheiro, talvez?
Isso explicaria a grana que cai do céu todas as vezes que ele anuncia
leilões destinados a uma rede de caridade da localidade. Não duvido que ele
tire a grana das pessoas carecidas para satisfazer seu próprio umbigo, e se
há alguém que sempre o apoia em todos os momentos de sua carreira, é um
dos seus subordinados.
Seu nome é Sebastian Hazel Clarke, pai de Sofia Clarke, e meu
vizinho.
Se ele fosse mais silencioso, seria impossível saber o que se passa
dentro daquela casa. Felizmente, ainda sou capaz de ouvir as discussões a
respeito do futuro de sua filha e de como vê-la realizar um sonho de se
tornar artista pode prejudicar o futuro já planejado por ele.
Observá-la da minha janela que tem visão privilegiada de seu
quarto, virou a minha obsessão. Vê-la conquistar os seus sonhos para calar
a boca daquele merda, é o meu objetivo.
Que se fodam os pais egocêntricos que adoram ditar o que devemos
ou não fazer.
— Já que você não quer… — ameaço afastar-me e giro sobre os
calcanhares, caminhando lentamente rumo a saída.
O som dos meus tênis batendo contra a madeira do palco é
torturante e preciso. Não tenho certeza se ela realmente aceitará de bom
grado ser uma má garota esta noite, mas estou esperando que sim.
Não há pressa alguma, ela só tem que me mandar parar de andar,
cacete, não é tão difícil.
No fundo, quero apenas arruiná-la porque é isso que faço, destruo
tudo o que toco sem pudor algum. Foi o que o ódio alimentado pelo
desprezo de meu pai me rendeu, afinal, ele sempre me fez acreditar que
jamais algo de bom cairia sobre o meu colo e faria de mim um cara feliz,
porque eu só teria a felicidade quando aceitasse o meu destino.
Desde então, tenho o hábito de criar obsessões que possam trazer
algum fio de alegria para o meu peito apenas para prová-lo que não preciso
da porcaria do seu sobrenome para porra nenhuma. Foi assim com as lutas
clandestinas e foi assim quando coloquei meus olhos na garota desprezada,
assim como eu sou.
Seja sorte ou azar, ela está na minha mira e eu ainda não descobri se
isso a salvaria ou a arruinaria.
Quando piso os pés na saída, temo não ter a resposta tão cedo. Mas
acontece que o destino adora me pregar uma peça e eu curto desvendar
quebra-cabeças.
— Espera aí. — Sua voz doce congela os meus pés na madeira oca.
— Se eu aceitar, você jura que ninguém nunca vai saber sobre isso?
Sorrio.
Oh, ela não sabe o que acabou de fazer…
— É o que você deseja?
— O que eu desejo é ganhar esse concurso de qualquer jeito, mas só
porque preciso muito provar a alguém que eu sou capaz.
A encaro por cima do ombro.
— Está disposta a assumir os riscos?
— Eu preciso dessa coroa. — reafirma o que eu já sei.
— Coisinha travessa, você é cruel. — Zombo, com um sorriso nos
lábios.
— Faça o que for preciso para que eu vença e juro não dizer a
ninguém que você é um intruso.
Gargalho baixo.
Ela está firmando um acordo comigo?
— Isso é uma ameaça?
Vejo a sombra de um sorriso nos seus lábios quando ela torna a
observar o objeto em seu casulo, e não posso deixar de admirar o fogo em
seu olhar que ela parece tanto desejar manter escondido.
— Não… É um acordo.
— Você sabe com quem anda fazendo acordos?
Ela nega.
— É bom descobrir, porque não pretendo fazer você se esquecer de
mim depois de hoje.
— Eu jamais esqueceria.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Está escuro. As ruas são iluminadas por alguns postes, e ainda assim
pareço ter dificuldade para enxergar com clareza.
Meus pés estão doloridos. Estou a algumas horas correndo pelas
ruas de Nova York completamente descalça, sem me importar com o fato de
ter sangue no asfalto a cada passo dado. Preciso despistá-los.
Não sei onde está Josh, se está vivo, se o levaram também, quem
são essas pessoas e quanto tempo exatamente estive naquele lugar. Não sei
absolutamente nada. Exceto, que neste momento, há uma SUV prata,
rondando todas as ruas de Nova York à minha procura.
Eu consegui fugir.
Eu consegui. Consegui me livrar daqueles homens... De suas mãos...
De tudo. De tudo que tenho certeza que sempre haverá traumas a serem
superados. Apesar de saber que será impossível.
Os meus pés doem. Minhas roupas estão rasgadas, alguns pedaços
de pano caídos pelo meu corpo nu. Ainda assim, não posso olhar para trás e
não posso pensar que eles estão me caçando como um animal por estas ruas
e ninguém parece se dar conta.
Lágrimas escorrem de meus olhos sem permissão, sangue mancha
meus pés e a dor já não existe. Adormeceu. Pedaços de vidro e pedras
minúsculas afundam na sola do meu pé, ainda assim, eu as ignoro. Nada
mais importa, exceto fugir e procurar por Josh.
Por favor, não esteja morto… Por favor, Josh, esteja bem!
De repente, o soar dos motores da SUV às minhas costas faz o meu
corpo estremecer e um arrepio sobe pela minha espinha. Sob as luzes
escassas da cidade, imersa no pavor imensurável que sufoca a minha alma e
me impede de respirar corretamente, o baque da compreensão estremece
todas as fibras do meu corpo.
Eles me encontraram.
Eu abraço meu corpo, respirando fundo, tentando levar algum
oxigênio para meus pulmões, mas tudo que consigo é ouvir os motores
indicando que o carro está próximo demais, e minhas pernas tão exaustas,
cogitam me deixar na mão dessa vez.
Tudo está perdido. Eles vão me levar para lá novamente, vão me
machucar novamente e nada disso terá valido a pena. Eu serei nada mais
que um brinquedo novamente, e jamais, verei Josh outra vez.
Me encolho, pronta para sentir o baque de ser atirada para longe e
arrastada para dentro do carro outra vez. Jogo meu corpo no chão sujo e
frio, totalmente rendida, sem forças, chorando e desesperada, quando sinto
duas mãos balançarem meu ombro. Com muita força.
— As! — Josh. — As... Acorde.
Sua voz doce e calma parece tão longe e tão perto... Parece
alcançável, por mais que eu saiba que não é verdade. Eu o perdi. Perdi meu
irmão para sempre.
— Irmã! Por favor, abra os olhos.
Outro chacoalhão.
Meus olhos se abrem bruscamente enquanto os raios solares
invadindo as janelas trazem um desconforto devido à sua sensibilidade.
Inspiro em busca de ar, em busca de um ritmo saudável para as
subidas exageradas do meu peito. Ergo meu corpo e minhas mãos
instantaneamente sobem para minha cabeça, sentindo a pontada aguda que
indica uma dor forte na lateral. Enxaqueca.
Vago os meus olhos lentamente pelo local, apenas para me dar conta
que estou no meu quarto. As paredes cor de avelã e a luz que adentra pela
janela parecem mais incômodas hoje. Encaro o raio de luz que atravessa as
cortinas e fecho os olhos, sentindo meu peito acalmar e a minha respiração
tornar-se lenta e regular.
Sinto uma mão no meu ombro.
— Foi apenas um pesadelo — É a voz de Josh. — As... Pensei que
os pesadelos tivessem diminuído.
Há algum resquício de mágoa em seu tom de voz, e eu o entendo. O
nosso passado não é bom e a nossa vida tampouco foi. Então, eu disse a ele
que meus pesadelos tinham chegado ao fim porque não queria preocupa-lo,
não queria deixar o meu irmão de dez anos triste por saber que sua irmã
mais velha ainda não aprendeu a lidar com o passado. Dizer que está tudo
bem e me esforçar para lhe convencer de que não estamos correndo perigo
me pareceu uma boa opção. Mas acho que subestimei meu irmãozinho.
— Deveria parar de mentir para mim, não sou mais uma criança.
Abro meus olhos e movo a minha cabeça para o lado, encontrando
seu par de olhos azuis me encarando de volta, suas sobrancelhas franzidas e
um bico fofo em seus lábios. Abafo uma risada e lhe estendo minha mão na
intenção de puxá-lo para um abraço. Josh demora alguns segundos
encarando a minha mão, mas acaba cedendo.
— Estou bem, Josh. Os pesadelos continuam, todas as noites, sem
exceção — explico, o prendendo em meus abraços e depositando um beijo
na pele macia de sua testa. — Estou aprendendo a lidar com eles ainda,
nunca é fácil enfrentar aquela noite outra vez, sentir o desespero outra vez,
e o medo de ter perdido você — engulo algo preso na garganta. Acho que o
medo de dizer as palavras erradas para Josh. — Mas garanto a você, se algo
estivesse errado eu diria na mesma hora. Acho que preciso enfrentar isso,
mas te juro, está tudo bem.
Não sei quando me tornei boa nas mentiras, principalmente quando
lhe digo que está tudo bem, quando na verdade, não sei quando o pesadelo
acabará de uma vez.
— Está bem — Ele cede. — Posso dormir com você todos os dias...
Não sei. Talvez a minha presença faça você se sentir melhor e não tenha
pesadelos.
Suas palavras me fazem sorrir.
Não sei quando Josh tornou-se mais do que uma criança. Ele parece
saber mais do que eu, parece saber exatamente qual é a nossa realidade e
talvez isso me entristeça. Não quero essa vida para ele, quero que Josh seja
uma criança feliz, livre, e normal. Ao invés disso, está em meus abraços
oferecendo-se para dormir com sua irmã de vinte anos para que não tenha
mais pesadelos assombrosos a noite.
Tudo que sempre quis foi protegê-lo, deixá-lo confortável e que se
sentisse seguro, contudo, acho que está sendo totalmente o contrário. Josh é
a minha força, e por ele estamos aqui. Em uma cidade pequena na
Califórnia, tentando ser pessoas normais e com vontade de ter tudo aquilo
que nunca fomos livres para ter.
Vida.
É até irônico imaginar que eu teria o luxo de vivê-la como gostaria.
— Que horas são? — pergunto, varrendo a cama com as mãos na
busca pelo meu telefone.
Josh resmunga, afundando a sua cabeça entre os travesseiros.
— Não…
No momento em que alcanço o meu telefone e noto as horas, solto
um xingamento, interrompendo a frase de Josh.
— Você está atrasado! — Me esforço em levantar da cama, mas
acabo presa entre os lençóis. — Cacete! — resmungo, sem paciência.
São quase oito. Josh deveria estar no colégio às sete, e bem, eu meio
que deveria estar no meu primeiro dia como atendente em uma cafeteria.
Nós estamos tentando ter uma vida normal, e isso também inclui fazer
coisas que pessoas normais fazem. Talvez ser a novata atrasada no primeiro
dia seja até normal demais, temo que eu esteja aprendendo rápido a viver
em uma cidade pequena.
— Talvez eu tenha desligado o seu despertador — confessa, com
sua voz tão baixa quanto um sussurro. — Não quero ir para a droga…
— Não xingue!
Josh suspira, abanando os braços ao lado do corpo e o batendo
contra o colchão.
— Tudo bem! Só estou dizendo que eu não preciso ficar sentado por
horas em uma sala cheia de crianças, colorindo pássaros e animais
extraterrestres — ele está sério, encarando o teto e parecendo indignado. —
É chato!
— Na verdade, não é não. É o que vai garantir um futuro para você.
Finalmente consigo me livrar dos lençóis e levanto, alcançando a
mala de roupas de Josh e o entregando uma muda de roupas para que se
arrume.
Josh me encara receoso, porém, estende as suas mãos e alcança as
roupas em minha mão. Ele sabe o quanto lutamos para isto, então, tudo que
pode fazer é apenas não retrucar.
— Eu te amo. — Sussurro para ele, observando-o se afastar a
contragosto com as roupas sobre um dos ombros.
— Eu também! — Sopra de volta, ainda irritado ao arrastar os pés
até o banheiro.
Observo-o com um mínimo sorriso nos lábios. Sinto um aperto no
meu coração por vê-lo crescendo e simplesmente se conformando que a
nossa vida nunca será feita de escolhas que nós julgamos melhores. Isso é
triste. Amargo. Ainda assim, eu nunca poderei ser mais grata pelo meu
irmão confiar que sempre farei as melhores escolhas para ele, mesmo que
doa em mim. Porque é tudo o que faço desde que restou apenas nós dois.
Estamos na cidade há apenas um mês e tudo que temos é um kitnet
minúsculo de um cômodo com apenas uma cama e uma geladeira. Não
temos armários, fogão, tampouco comida o suficiente para todos os dias.
Nossas roupas ainda estão em nossas malas improvisadas, ainda assim, sou
grata por ter ao menos eletricidade.
Não é uma casa enorme, tampouco luxuosa, mas é o que poderei
pagar com a pouca grana da cafeteria. Eu só espero que sobre alguma coisa
dela para que possa matar a fome de Josh.

Deixei ele no colégio há algumas horas e felizmente não fui


demitida por ser um péssimo exemplo quando o assunto é pontualidade
logo no meu primeiro dia de trabalho, apesar de ter recebido um olhar
sinistro de uma das balconistas.
Felizmente, uma delas pareceu menos mesquinha e pôde me auxiliar
durante o dia movimentado na cafeteria.
Pessoas entram e saem a todo minuto, preciso respirar fundo para
aguentar a barra de estar no meio de tanta gente e tanto barulho. Risadas
exageradas. Discussões ao telefone. Conversas expostas que claramente
deveriam ser privadas… Eu não estou acostumada com toda essa muvuca,
me sinto claustrofóbica e exposta demais, como se qualquer um deles
pudesse estar aqui se infiltrando na multidão para me atacar.
Segurando a cafeteira em uma das mãos enquanto na outra
mantenho um bloco de notas, ignoro os tremores em meu corpo e afasto o
desconforto da maneira que posso quando avisto dois homens altos
ativarem o sino acima da porta ao adentrar na cafeteria.
— Vai você ou eu? — pergunta Kate, uma das balconistas.
Preciso ganhar algum crédito como novata se quiser continuar
empregada, mesmo que ser demitida não seja uma opção. Eu não quero que
alguém pense que sou algum tipo de maluca com pavor de multidão e
pessoas, embora eu realmente seja. Esse é um problema meu, e não jogarei
a minha bomba no colo de ninguém.
— Eu vou — aviso, e sem muita emoção, parto em direção à mesa
da dupla.
Deixo a cafeteira sobre o balcão principal e desvio da fila de pessoas
amontoadas para pagarem a conta. Seco o suor de minha mão no avental do
uniforme e solto um longo suspiro, prestes a vencer um dos meus maiores
medos ao estar tão próxima de homens desconhecidos que não faço ideia
dos interesses e princípios.
Não sei se algum dia seria capaz de superar os traumas que
plantaram dentro de mim como um vírus capaz de corroer cada uma das
minhas células todos os segundos em que eu respiro, mas tudo que sei neste
exato momento, é que preciso agir como uma civil comum que serve café
pelo bem de um futuro saudável. Não por mim, mas por Josh.
É só ir até lá e esboçar um sorriso amigável, Aspen, não pode ser
tão difícil.
— O-Olá. — Balbucio, baixando o olhar até o bloco de notas
tremendo em minhas mãos suadas. — No que posso ajudá-los?
— Oh, olá. Por favor, um frapuccino com creme para mim.
Assinto, afundando uma das mãos no avental em busca de uma
caneta que eu tenho a certeza de ter colocado bem aqui…
— Sim, claro… Me dê só um minuto. — nervosa, eu vasculho todos
os bolsos possíveis de minhas roupas em busca da droga da caneta que não
deveria desaparecer em um momento como esse. — O senhor tem… uma
caneta?
Ao erguer o olhar para finalmente encarar a dupla diante de mim,
eles trocam um olhar sugestivo, claramente insatisfeitos com o
comportamento desequilibrado da novata que provavelmente não tem ideia
do que está fazendo. Sinto o meu rosto queimar pelo constrangimento
quando o homem adulto de pelo menos trinta anos esbanja um sorriso
cáustico antes de acenar em negação.
— Você é nova aqui?
Engulo em seco, me sentindo tão constrangida que mal posso olhar
em seus olhos sem sentir náuseas.
— É-É… Digo, sim. É o meu primeiro dia.
— Entendo. Está tudo bem, garota, não tenho uma caneta para
ajudá-la mas você pode ir procurar por uma, não estamos com pressa. —
Então ele se vira para o seu acompanhante e entra numa conversa como se
eu nunca tivesse estado ali.
O seu acompanhante desvia o olhar do homem rapidamente para me
observar ainda estática no mesmo lugar, horrorizada e constrangida demais
para dar meia volta. Então ele joga a cabeça em direção ao balcão, quase
como se dissesse “dê o fora, desajeitada!”.
Quis xingá-lo ou simplesmente responder à altura, que estou aqui
para trabalhar e que perder a porcaria de uma caneta não poderia ser tão
ruim assim.
ERA SÓ A PORCARIA DE UMA CANETA, ISSO FAZ DE MIM
TÃO PÉSSIMA ASSIM NO TRABALHO?
Riquinhos de merda!
Venço todos os meus desejos e simplesmente ofereço-lhe um sorriso
extremamente forçado, pronta para dar o fora e buscar por uma nova caneta
antes que eu me torne uma completa maluca e seja demitida sem ao menos
completar três horas de trabalho. Seria caótico, mas não por culpa minha.
Dou as costas para ambos, prestes a partir em direção ao balcão. No
entanto, como o destino simplesmente adora foder com a minha vida todos
os miseráveis minutos em que estou respirando, mal tenho tempo para
desviar quando esbarro em alguém que passava pelo corredor no momento.
Só tenho tempo de fechar os olhos quando um líquido morno escorre em
direção ao meu busto e respinga por meu rosto. Ergo as mãos, despejando o
bloco de notas no chão lambuzado enquanto reflito se é uma má ideia
simplesmente sair por aquela porta e fazer de conta de que nunca pisei os
meus pés nesta porcaria.
Sem conter o instinto, lambo os lábios apenas para confirmar o
óbvio. O gosto da cafeína preenche o meu paladar e ao abrir os meus olhos,
encontro a figura de Lexie com seus olhos arregalados em minha direção
enquanto ela desvia a sua atenção até os clientes às minhas costas que não
param de resmungar xingamentos.
Curiosa, eu me viro.
Foi impossível não desejar desaparecer da face da terra quando
encontro as suas roupas sociais que provavelmente custavam mais do que
eu poderia pagar mesmo que fizesse extras todos os dias, completamente
lambuzadas de café, assim como a mesa onde estavam alocados. Seus olhos
faltam explodir em minha direção de tão esbugalhados, cheios de um ódio
indecifrável.
— Merda, eu…
— Tudo bem. — Ouço a voz de Lexie às minhas costas, e apesar de
saber que ela tenta me tranquilizar, também sei que isso me renderia
algumas advertências. — Vá esfriar a sua cabeça um pouco, eu assumo
daqui.
Balbucio, sentindo o café queimar a minha pele exposta na qual fora
atingida, mas estou tão afoita que sequer dou importância. Estar sob os
olhares julgadores dos clientes e dos funcionários que certamente já sabem
que não darei conta do recado é humilhante, e ficar aqui está sendo mais do
que posso suportar.
Então, apenas assinto e chacoalho os pés para me livrar dos
respingos de café que amontoam-se na sola. O silêncio perdura no local,
restando apenas o efeito sonoro melancólico da playlist horrível que está se
repetindo há horas desde que cheguei. Todos me acompanham com o olhar,
eu posso sentir.
“Olha lá, parece que estão mesmos desesperados para aumentar a
clientela”
Sussurros.
“Tão desastrada…”
Em dias piores eu certamente mandaria todos irem se foder, mas
todas as vezes em que cogito a possibilidade, o rostinho de Josh pedindo
para que eu arranje alguns donuts de morango que ele adorava comer em
sua infância assume o controle e me lembra que não preciso respondê-los
por enquanto. Manter os insultos dentro da minha cabeça onde somente eu
posso ouvir, está de bom tamanho.
Quando empurro a porta dos fundos e a brisa fria do outono abraça a
minha pele e afasta a sensação de queimação em minha pele, eu suspiro tão
pesado que temo perder o controle a qualquer momento.
Há tanto lixo empilhado sobre as lixeiras esverdeadas que fede a
podre, mas não dou a mínima importância porque estar no meio de tanta
nojeira não é pior do que estar lá dentro enquanto finjo não estar
enfrentando o pior momento da minha vida.
Normalidade, trabalho, uniformes, sorrisos e gentileza… Vá a
merda! Isso não vai me ajudar a superar a vida que eu tinha antes de chegar
a este nível, pulando de cidade em cidade e contentando-me com o pouco
porque ao menos é suficiente para nos manter vivos.
Se não fosse por Josh, tenho medo do que eu teria feito com a minha
vida quando estive cara a cara com a dor da traição. Eu teria tirado a minha
vida? Desistido de lutar para sobreviver? Provavelmente estaria tão
miserável que mesmo quando fosse encontrada, sequer seria cogitada a ser
usada por um mal no qual sempre fiz parte sem ter o conhecimento disso,
porque já não teria utilidade alguma.
Eu seria digna de pena. Apenas isso.
E mesmo agora em liberdade, ainda consigo ouvir os sussurros
daqueles homens e seus elogios toscos ao tocar o meu corpo. Suas mãos
frias e nojentas deslizando pela minha pele como se eu pertencesse a eles,
como se eu fosse feita para satisfazê-los… Merda! Não posso simplesmente
sorrir para homens desconhecidos e agir como se estar tão próxima a eles
não revivesse as lembranças das torturas que eu pensava nunca ter de
enfrentar.
Estou farta de viver nas sombras de um passado mal resolvido e
repleto de demônios que sempre me perseguem e me abraçam como se
fossemos um só, como se eu pertencesse a eles assim como pertencem a
mim, porque um já não é capaz de respirar sem o auxílio do outro. Eu os
alimento e eles me corroem. Isto é imutável.
Quanto tempo eu suportarei ignorar toda esta angústia enquanto
acredito fielmente na mentira de que sou merecedora de uma vida comum?
Ela é mordaz. Incontrolável.
Penso o que mamãe diria se visse a sua doce garotinha tão derrotada
e na lama, sem forças para olhar adiante e enxergar alguma droga de
esperança no buraco que a enfiaram por puro egoísmo.
“Viu só, mamãe? Eu prometi que seguiria os meus sonhos e
ocuparia todos os telões de Nova York com todas as minhas apresentações,
jurei que iria ser uma artista de sucesso, mas olhe para mim… Estou
servindo café para ganhar alguns trocados para que o meu irmão não
morra de fome e eu não seja um completo fracasso.”
Seria cômico se não fosse trágico.
Eu sou apenas uma grande piada. Alguém que existe apenas para
suprir os desejos de almas podres.
Se eu tivesse a oportunidade, voltaria no tempo, no auge da minha
adolescência quando tudo o que eu desejava era ter a atenção do meu pai e
ser vista por ele, mas por alguma razão perdi o foco dos meus objetivos e
deixei-me enganar por um rostinho bonito que me prometeu alegria, mas só
foi capaz de me entregar a catástrofe.
Assim como dizem por aí, o diabo nunca caminhou pela terra
carregando um enorme tridente esbanjando o enorme chifre sob sua cabeça.
Ele é como nós, humano, atraente, sagaz e manipulador.
E se eu soubesse que ele iria nutrir sentimentos por uma mera alma
doce como a minha, eu teria rezado mais.
Porque ele me destruiu. Me jogou na lama. Me trouxe até o fundo
do poço onde solitária e derrotada, eu não tive forças nem para respirar sem
que desejasse simplesmente parar de fazê-lo.
— Tá tudo bem aí? — ouço a porta se abrir, então, impulsivamente
levo a ponta dos dedos até o canto dos olhos onde uma lágrima solitária
escorreu sem que eu pudesse controlar.
Afasto-me de imediato da parede, engolindo o bolo que havia se
formado na minha garganta com tanta força que junto as sobrancelhas para
impedir que mais lágrimas escorram de meus olhos. Eu não quero ser vista
em meu estado de vulnerabilidade, o que sinto é apenas meu. Ninguém tem
que saber o inferno colossal que se formou dentro do meu peito, afinal, eu
sou boa em fingir.
— H-Hm… Oi, Lexie. — Puxo os meus longos cabelos para frente,
tapando boa parte do meu rosto. — Sim, tá tudo bem. Acho que só estou
nervosa. Você sabe, drama do primeiro dia.
Rio sem humor.
Quanta mentira.
Lexie sorri minimamente por baixo da máscara higiênica que a vejo
usando desde que passei a frequentar a cafeteria, mas seu sorriso parece tão
sincero que alcança os seus olhos. Quase posso sentir a compreensão nas
orbes castanhas. Acho que ela notou meus olhos submersos em lágrimas,
mas se de fato o viu, não diz absolutamente nada. Agradeço por isso, mas
também não digo nada.
Ela poderia ser considerada a única alma suportável deste lugar, a
única na qual se moveu para ajudar a novata atrapalhada e louca pra cacete.
Racionalmente, ela deveria me ignorar assim como todos os outros fazem,
mas está aqui. De novo.
— Está tudo bem, não é o fim do mundo derramar um pouco de café
pelo chão. Limpei tudo e está novinho em folha.
Assinto.
— Obrigada, Lexie.
— Não precisa agradecer. Agora acho melhor voltarmos ao trabalho,
se Rubens notar a sua ausência vai pensar que está fazendo hora.
Sinto meu coração aquecer com sua gentileza.
— Claro.
— E ah, deixei um novo bloco de notas junto a uma caneta no
balcão para você.
Sorrio ao caminhar em sua direção, agradecendo-a pelo apoio. O dia
seria longo, e eu preciso me recompor o mais rápido possível.

O dia no trabalho foi um pouco cansativo. As pessoas da cidade às


vezes soam bastante arrogantes, mas acredito que depois do pequeno
desastre, eu tenha levado as coisas de uma maneira mais leve.
A cafeteria do Rubens é bastante conhecida por todos, além das
contas. Os rostos já estão sendo gravados em minha mente, incluindo os
seus pedidos extremamente iguais. Eu acredito que apesar de ser uma
cidade pequena, o fato de ser muito bonita e ter alguns pontos turísticos, há
sempre rostos novos por aqui. A cafeteria fica no centro da cidade onde
todos têm livre acesso em todos os momentos e em qualquer horário.
Os donuts de Rubens realmente podem ser postos em minha lista de
coisas extremamente gostosas que já experimentei em toda a minha vida. O
gosto é surreal, eu poderia comer isso em todas as refeições do meu dia. Há
o lado bom de ter descontos razoáveis para funcionários e coincidentemente
ter um irmão apaixonado por eles.
— Sabe, você poderia ter comprado um para você ao invés de
acabar com o meu! — Josh cruza os seus braços à altura do peito.
Eu lhe entrego o donuts e passo a língua no canto dos meus lábios,
limpando os resquícios de morango. Ele sorri largo, abocanhando-o com
tanta vontade que sou incapaz de disfarçar o curvar de meus lábios ao
observá-lo.
— Como foi a aula? — pergunto, agarrando sua mão livre enquanto
caminhamos até a nossa casa.
Josh ainda está comendo o seu donuts, contudo, noto quando ele
torce o bico e dá de ombros para a minha pergunta.
— Um saco — responde, me encarando com seus olhos azuis. —
Sabe quantos girassóis eu tive que desenhar hoje? — questiona, arqueando
sua sobrancelha.
Sorrio, tentando não gargalhar com suas histórias do quanto odeia
ser uma criança.
— Não faço ideia.
— Dez vezes! — exclama, abanando seu braço e quase deixa o seu
donuts cair no chão. — Está vendo? A senhora Jones me deixa zangado até
fora daquele lugar.
— Quem é a senhora Jones? A sua professora?
— Sim, mas não ensina coisa alguma. Ela só nos entrega uma caixa
de giz para colorir e uma folha branca para desenhar o resto do dia, deveria
ser demitida. — diz Josh.
Agarro a sua mão com força, balançando como repreensão.
— Não fale assim da sua professora. Você é quem está no lugar
errado. — o relembro.
Josh está atrasado em algumas matérias, então não foi possível
encaminhá-lo para sua série correta, logo, deverá contentar-se em colorir
por mais alguns meses.
— Você não me disse como foi seu dia. — seus olhos estão me
analisando, e suas mãos já estão desocupadas.
Eu sigo olhando para frente, sem querer encará-lo porque de alguma
forma odeio mentir para ele com muita frequência. Não sei, deveria ser
mais fácil. Sou mais velha e Josh ainda é uma criança, no entanto, assim
como eu, ele foi obrigado a crescer mais rápido do que deveria. Ele tem dez
anos, mas me sinto como se estivesse conversando com alguém de trinta.
Nós somos íntimos e céus, me sinto estúpida perto de sua coragem e
maturidade.
— Foi normal, Josh. — respondo com rapidez, ainda encarando as
ruas pouco movimentadas.
Josh assente, como se sentisse que não quero mesmo falar sobre o
decorrer do meu dia.
As ruas da cidade são extremamente diferentes das que víamos
todos os dias em Nova York. Lá, tudo era mais movimentado e sem cor. As
pessoas pareciam estar sempre apressadas para o trabalho, o "bom dia" em
todas as manhãs sempre foi extremamente raro, e dificilmente veríamos
árvores lindas como as de WonderFall nos calçadões.
Tenho certeza de que minha mãe ficaria encantada por esta cidade.
O céu é claro, apesar de já passar das cinco. As nuvens começam a
afastar-se e o sol já desapareceu, ainda assim a claridade segue aparente. As
árvores balançam com a brisa suave do vento e afasta as pequenas folhas
cor de rosa que caem até o chão. Mamãe adorava o outono. Ela adorava
plantas, jardins, e tudo que exalava vida. Combinava com o seu jeito doce
de ser, apesar de ter feito algumas más escolhas.
Seu principal erro talvez tenha sido se casar com o meu pai. O amar,
o colocar como prioridade e principalmente, lhe dar exatamente o que
queria: uma filha.
Ele fingiu me amar. Fingiu importar-se comigo e fingiu se importar
com a minha mãe.
Ele tem uma parcela de culpa em sua morte, apesar de não ser o
completo culpado.
Mas é o suficiente para que eu sinta ódio o suficiente para matá-lo
por isso.
— Irmã…
Afasto-me dos pensamentos quando ouço a voz de Josh, desta vez,
quando o encaro, seus olhos azuis me observam com cautela e... medo.
— Josh? — agarro sua mão, quase como uma pergunta do por que
está desta forma.
Ele parece agarrar a minha mão com mais força, e só então me dou
conta do som do motor de um carro bem próximo de nós. Rapidamente
agarro o braço de Josh e o puxo para a frente do meu corpo, o prendendo
em meus braços.
Os meus olhos vagam ao nosso redor, e só então, me dou conta de
que há um carro preto nos seguindo. Está lento, e parece curioso para saber
onde pretendemos chegar.
Os meus batimentos cardíacos tornam-se intensos.
Os meus pés aceleram o passo, agarrando Josh com força e o
mantendo agarrado em meus braços.
Estou com medo.
Não estamos tão longe de casa e isso significa que a pessoa talvez
tenha ideia de onde vivemos.
Eles nos encontraram?
Não pode ser. Nós estamos a um raio de 3000 km de Nova York.
Como podem ter nos encontrado? Eu não deixei rastros, não indiquei onde
podíamos estar, não hesitei em colocar meu irmão dentro de um trem e
pular de cidade em cidade apenas para que pudéssemos chegar o mais longe
possível de onde estávamos. Não havia pista alguma de que saltamos
exatamente aqui.
— Estou com medo, As. — Josh sussurra, agarrando-se em meu
corpo com tanta força que sinto vontade de chorar.
Eu olho para trás.
Não entendo muito de carros, mas diria que este se trata de um
Mustang. Totalmente preto e os vidros são tão escuros que sou incapaz de
enxergar quem está detrás do volante. Os farois estão acesos, dificultando
minha visão, e basta apenas um ranger dos motores para que eu me agarre
em Josh e comece a correr pela rua entre os carros estacionados.
Não.
Não irão nos alcançar.
Eu não fiz tudo aquilo apenas para ser levada para um buraco e ser
tirada do meu irmão novamente, não, não fiz. Josh precisa de mim, e
precisa que eu faça absolutamente qualquer coisa para que não sejamos
separados. Não outra vez.
Deus, se está me ouvindo, por favor. Não me deixe morrer assim!
Meu peito sobe e desce freneticamente enquanto continuo correndo
entre os carros, entre as árvores, entre todos os malditos obstáculos desta
maldita rua.
Desde quando há tantos hidrantes aqui? Droga!
Josh está correndo com dificuldade, então, me esforço em carregá-lo
entre meus braços. Provavelmente, se eu sair viva dessa droga, vou
amanhecer com algumas dores extremamente fortes em meus braços. No
entanto, estou certa de que a última coisa que quero é que Josh saia ferido e
danem-se esses malditos braços!
Alcançando a próxima esquina antes de nossa casa, noto quando o
carro se aproxima novamente, desta vez, ao nosso lado. Lentamente. E eu
me esforço em não olhar na direção dele, apenas sigo ofegante, usando
todas as minhas forças para conseguir correr mais alguns metros com Josh
em meus braços.
Sinto vontade de espernear para que me deixem em paz, que já não
tenho mais o que oferecer porque tiraram tudo de mim. Sou feita de restos
do que um dia fui, não há nada aqui para eles. Mas tudo o que eu faço é
correr mais rápido, sabendo que não estou disposta a permitir que o meu
irmão fique ferido.
Josh gira a cabeça em direção ao carro.
— Josh, não olhe! — repreendo-o.
— Estão abaixando o vidro... — avisa, desviando os olhos no
momento que o repreendo.
Tento ouvir todos os meus instintos que gritam para que eu
mantenha meus olhos para frente. Estamos quase lá. Vai ficar tudo bem.
De repente, o clique de um botão sendo ativado chama a minha
atenção e automaticamente levo os meus olhos até o carro.
O vidro está baixo.
Como é sentir que a morte está próxima? Acho que primeiro
sentimos tanto medo que somos capazes de desmaiar com a tensão, então, a
nossa respiração acelera e o ar parece não chegar até os pulmões. O
desespero está à flor da pele. O medo de que nada que possamos ter feito
por toda a nossa vida tenha sido útil e suficiente. O tremor, o choro, o
pedido por mais uma chance para tentar sobreviver. A vontade de ter tido
oportunidades para tentar fazer diferente. A ânsia pela vida.
É assim que me sinto ao encarar o par de olhos escuros, observando-
me pela pequena fresta de uma balaclava preta. Seus olhos se fixam nos
meus em uma intensidade penetrante, sinto como se pudessem enxergar a
minha alma e todos os meus imensuráveis segredos. É intenso. Bruto.
Seus olhos desviam-se dos meus por breves segundos, e noto
quando uma de suas mãos afasta-se do volante. Parece procurar por algo.
Uma arma? Uma faca? Eu não quero pagar para ver.
Quando seus olhos retornam até os meus como flechas incendiadas,
tudo que ele faz é atirar um pedaço de papel em minha direção.
O quê?
E então se vai. Acelerando com rapidez, sem importar-se com o fato
de que acabou de fazer com que eu perca alguns anos de vida.
Meus pés desaceleram e sigo observando o carro distanciar-se de
nós. Quando está longe o suficiente para que eu não o veja, meus olhos
alcançam o pedaço de papel não muito longe dos meus pés.
Coloco Josh no chão, sentindo a ardência em meus braços.
— O que é? — pergunta Josh.
Não o respondo, apenas sigo encarando o papel dobrado em duas
camadas entreabertas no chão. O que eu deveria fazer? E se for uma
armadilha? Quem era aquele cara? E por que pensa que atirar cartinhas
fantasiado como um maníaco em uma rua pouco movimentada seria uma
boa ideia?
Meus lábios estão entreabertos e consigo sentir a minha respiração
normalizar-se.
Josh está de pé ao meu lado, com os olhos fixos no pedaço de papel
e parece tão assustado quanto eu.
Se querem me matar, por que não fazer quanto tiveram a chance?
Por que jogar cartinhas? Por que todo esse teatro horrível?
Que se dane!
Dou apenas dois passos curtos para alcançar o papel. Endireito a
coluna e prendo meus dedos entre as camadas entreabertas, levando à altura
dos meus olhos.
O tipo de papel é básico, e parece ter mais de duas camadas. Muito
bem embalado, tornando difícil a leitura sem que eu abra todas elas.
Eu posso fazer isso.
Respiro fundo e separo as camadas do papel, notando os resquícios
pretos de algo parecido com riscos de uma caneta grossa.
“Não está correndo o suficiente, ainda estou vendo você. Eu sempre
vejo você.”
Engulo em seco, encarando o pedaço de papel preso entre os meus
dedos. Um arrepio sobe pelo meu corpo como uma onda de choque,
queimando e enviando eletricidade por todas as minhas veias.
Meus pés congelam no chão e sinto o suor frio na palma da minha
mão.
Sinto o tremor invadir meu sistema nervoso e balançar todas as
fibras que há em meu corpo enquanto o peso daquelas palavras circulam em
minha cabeça e me fazem ter a noção de quem possa tê-la enviado.
Só há um homem neste mundo que conhece cada parcela do meu
corpo e alma tão perfeitamente que seria capaz de me encontrar em uma
multidão e é ousado o suficiente para me enfrentar apenas para provar que
sua promessa ainda está de pé, mesmo que eu o odeie o suficiente para
enviá-lo de volta para o inferno se o visse em minha frente.
Certa vez, o garoto que eu amei me prometeu uma vida leve e
intensa, disse que seríamos como um furacão que destruiria tudo o que
ousasse enfrentá-lo. Éramos como nuvens sombrias e chuvas furiosas
capazes de causar um vendaval, pois um sempre seria o complemento do
outro, uma dupla implacável e poderosa. Então ele me quebrou. Entretanto,
fui eu quem o prometeu uma vida infernal e medonha, cheia de sofrimento
e desprezo, até o dia que ele desapareceu da minha vida.
Foi um covarde de bosta.
Mas agora está de volta.
E se ele gostaria de cumprir a sua promessa, eu jamais quebrarei a
minha.
Não faço ideia se ele pensa que encontrará a garota na qual o amou
incondicionalmente, mas eu mostrarei que ela está morta.
E que foi ele quem a matou.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Três dias.
Setenta e duas horas e quatro mil trezentos e vinte minutos sem
piscar os olhos.
Esse tempo tem sido um completo desastre. Josh me fez perguntas
sobre o que faremos para lidar com a situação, recebi ligações a respeito das
minhas faltas consecutivas no trabalho e meu subconsciente não permite
que eu feche os olhos nem por um minuto. Tenho medo de fazê-lo e
simplesmente tudo virar uma bagunça completa, sem emendas ou chances
de ser consertada. É como se eu quisesse estar atenta a qualquer movimento
suspeito a todo momento, tomada pela preocupação e medo.
Sinto que estamos sendo observados a todo tempo, a queimação em
minha nuca, o arrepio que sobe pela base de minha coluna e causa temores
em minhas pernas faz isso parecer ainda mais real. É como se fosse um
aviso, um alerta vermelho. O perigo está de volta, estou começando a
entender que não há escapatória para gente como eu, mesmo que a ideia
seja quase um sonho.
Mas não existe um final feliz para mim, afinal eles não existem.
Ninguém é inteiramente feliz, sempre há parcelas sombrias de uma tristeza
imaculada. Por mais que tente esconder, ocultar e dizer que não está ali.
Acontece que uma hora a conta sempre vem, porque ela vai aparecer, então
você entende que se enganar é um ato de covardia ainda pior do que
simplesmente aceitar que tem uma vida perfeita.
Não sou hipócrita.
Sei que a felicidade existe, mesmo que em pequenas parcelas.
E sei que ela deve ser a razão para eu me manter na mesma posição
dos últimos três dias segurando um revólver enquanto observo Josh dormir.
Saber que o tenho comigo, que ninguém pode tirá-lo de mim e que sua
existência é o que acalma a minha imensidão de caos, é onde está a minha
felicidade. Pura e límpida, porque quando há a presença do meu irmão, me
recuso permitir que os meus demônios poluam sua alma como fizeram com
a minha.
Não deve passar das 06h da manhã. Os raios solares que invadem as
frestas do quarto de hotel onde estamos passando as últimas noites com os
trocados que recebo de gorjeta iluminam as paredes cobertas por um papel
de parede antigo. Os pássaros cantam do lado de fora, assim como o som
estrondoso das músicas estouradas que ressoam dos quartos ao lado. Todas
as janelas e a porta estão trancadas desde que chegamos aqui há três noites,
além da barreira feita com uma cadeira debaixo da maçaneta.
O desconforto que sinto em meu corpo por estar na mesma posição
a tempo demais me traz alguns resmungos dolorosos quando alongo o meu
pescoço. Meus olhos ardem como se eu estivesse segurando o choro e meu
sistema nervoso não parece estar predisposto a funcionar corretamente, mas
meu consciente ainda funciona perfeitamente.
Minha audição é aguçada todas as vezes que ouço passos e ruídos
suspeitos vindos do lado de fora, apesar da maioria deles se tratar apenas do
casal de hipsters que se movem até o parapeito do andar para fumar um
baseado juntos. Sinto que estou enlouquecendo e que estou permitindo que
ele mexa com a minha cabeça, que me faça duvidar da minha capacidade…
Cacete, Aspen!
Durante todo esse tempo procurei não me importar com o fato dele
estar na cidade, apesar de estar assustada com o seu silêncio. E Cristo...
como eu odeio a sensação de um silêncio ensurdecedor. Sei que está
brincando com a minha cabeça e que voltou apenas para me mostrar que
sempre esteve no controle e que não serei capaz de ter uma vida que não o
inclua, mesmo que seja dolorosa, amarga e caótica. Ele jamais se importaria
com isso porque é exatamente o que lhe atrai. Caos.
No passado nós sempre fomos opostos.
Eu sempre fui a doce Sofia, aquela que acreditava em sua bondade.
Aquela que enxergava a sua face quando todos viam apenas a sua máscara.
Sempre fui a personificação da luz em sua vida, eu trouxe brilho para o
abismo que ele era. Em troca disso, sua escuridão me corrompeu. Ele
envenenou a minha alma e me tornou sombria, traiu a minha confiança e
partiu meu coração em milhares de pedacinhos.
Quando estava no cativeiro, sempre criei milhares de cenários como
esse. Jurei que quando o encontrasse uma outra vez, faria de tudo para
matá-lo simplesmente por ter me ferido. Chega de aceitar, chega de chorar e
de buscar razões para justificar ações tão desleais. Eu já havia aprendido a
minha lição com Sebastian, o meu pai. Mas com ele eu não iria cometer o
mesmo erro.
Porém, como nunca pude controlar minhas ações referentes a ele,
ainda estou presa num quarto de hotel, com medo de encarar a realidade dos
fatos, com medo de encará-lo e perceber que me perdi de vez. Com um
medo imenso das consequências que sua presença traz, porque onde quer
que esteja, a tempestade o acompanha. E ela sempre costuma devastar tudo
pelo caminho.
— As? — Ergo os olhos num rompante quando ouço a voz
sonolenta de Josh.
Rapidamente agarro o revólver e o posiciono de maneira segura por
baixo do moletom, mantendo-o longe dos olhos de Josh. Não que meu
irmão não saiba qual é a vida que a irmã mais velha leva, é apenas a minha
decisão de mantê-lo longe dessa realidade.
— Bom dia — sussurro, piscando algumas vezes para afastar o
sono. Sinto minha cabeça latejar no processo. — Dormiu bem?
Josh tem o conhecimento de que nossas vidas jamais voltarão a ser
como antes, nunca o poupei da verdade, apesar de omitir informações que
não cabe a ele. Ainda me lembro do alívio que senti quando o peguei em
meus braços após sentir-me liberta novamente, foi como sentir o ar retornar
aos meus pulmões, como se a vida finalmente me abraçasse novamente.
Ainda me lembro da faísca que se acendeu em meu peito como se
meu corpo fosse feito de gasolina e o meu amor por meu irmão, o isqueiro
que o incendiaria. Eu não posso permitir que ninguém nos separe outra vez,
que o tirem de mim e o machuquem da mesma forma que fizeram comigo.
Josh não merece nada que destrua a essência que ainda vive dentro de si, e
sei que ele entende que sua irmã mais velha, uma completa lunática - porém
amorosa -, daria a vida por ele sem pensar duas vezes.
É por esta razão que seus olhos amendoados (que resplandecem o
azul mais vivido e cintilante de todo o mundo) demonstram todos os tipos
de sentimentos, exceto o medo. Ele sabe que está seguro ao meu lado.
— Tudo bem? — funga, coçando os olhos com a manga da camiseta
de manga comprida.
Suas bochechas ruborizadas acentuam-se devido a sua pele
amassada, os olhos sonolentos buscam pelos meus no minuto que usa um
dos cotovelos para apoiar-se na cama, expressando a sua nítida
preocupação. Não contenho o curvar dos meus lábios em um sorriso.
— Estou ótima. E você? — apoiando meus pés cobertos pelos tênis
surrados no chão, levo os cotovelos aos joelhos ao devolver-lhe a pergunta.
Josh acena, mostrando-me aqueles dentes miúdos e alinhados. Ele
pensa em me responder, no entanto, o roncar de seu estômago que reverbera
por todo o nosso quarto de hotel é o suficiente para substituir o sorriso de
seus lábios por uma linha fina junto de uma expressão cheia de decepção,
quase como se ele se sentisse culpado por sentir fome.
Me amaldiçoo por dentro.
— Com fome. Você está com fome. — concluo em meio a uma
lufada de ar. — Precisa se alimentar…
Seu rosto delicado e precioso é abraçado por uma expressão
entristecida, seus ombros caem e capto o exato momento em que seu corpo
encolhe na cama. Se meu coração estivesse inteiro, este seria o exato
momento que ele seria despedaçado em milhares de fragmentos. Isso…
Porra, quando foi que me tornei tão incapaz? Tão estúpida?
— A nossa dispensa acabou ontem pela manhã… Eu ia te contar,
mas fiquei com medo de ser mais uma preocupação para você — a cada
palavra de Josh, ele fere ainda mais o âmago de minha alma.
Aperto os olhos, juntando minhas mãos enquanto busco controlar
meus sentimentos. Um dos meus pés começa a tamborilar contra o chão
enquanto busco me apegar aos poucos dólares que restam na gaveta do
criado. É o suficiente para comida, mas não por muito tempo. Não por mais
de dois dias.
Tenho estado tanto tempo grudada nesta cadeira, espiando pelas
persianas a todo tempo e definhando em minha própria infelicidade e
desgosto que sequer me atentei ao fato de que há uma criança aqui dentro.
Protegê-la dos males da porta para fora ainda é uma boa iniciativa, mas não
posso me esquecer que da porta para dentro ela ainda deve sobreviver.
Três dias presa aqui dentro.
Três dias sem conseguir reunir coragem o suficiente para trabalhar.
Três dias sem conseguir encarar meu reflexo no espelho sem
repudiar o que vejo, sem sentir enjoo por ser tão fraca. Como é que
sobrevivi até aqui, droga?
Os ossos de sua clavícula nunca estiveram tão aparentes, os braços
magros e as pernas finas… Meu irmão está vivendo em uma completa
desgraça simplesmente pelo sangue que corre em minhas veias estar
circulando pelas suas também. E só agora, erguendo meus olhos para
examinar sua estatura débil, percebo o quão decepcionada estou comigo
mesma por permitir que tenhamos chegado tão longe. Tão além dos limites.
Prometi que cuidaria de nós, prometi que daria a ele uma segurança
inabalável incapaz de nos submeter a uma realidade tão miserável. Mas… o
que fazer quando a miséria é parte de mim? Quando ela é incapaz de largar
a minha mão porque se adaptou a deplorável situação que me arrasta todos
os dias para uma infinita angústia?
É como nadar contra a maré. É como desejar o impossível.
E mesmo sendo difícil, não há maneiras de buscar por respostas que
se encaixam como uma justificativa da razão para que tenhamos chegado a
este nível. O peso da culpa esmaga meu peito e quase posso sentir as
batidas do meu coração falharem devido à insistência de meu corpo
fragilizado em manter-se funcionando, mas embora o aperto esteja imenso
em meu peito e o amargor da tristeza envolva meu paladar, o que faço, na
verdade, é erguer minha cabeça e vestir a armadura na qual me tornei uma
especialista em adotar ao sorrir para meu irmão como se tudo estivesse
bem.
— Você vai pra escola hoje, está bem? — sorrio, levantando-me a
fim de tocar sua pele. — Não há perigo algum lá fora, vai ficar bem.
Seus olhos cabisbaixos encontram os meus em um ato desconfiado e
hesitante antes de alternar seus olhos até o local onde mantenho a pistola
escondida. É claro que ele já a viu antes mesmo que eu pudesse escondê-la.
Faz parte do nosso sangue.
— Então por que está com isso? — pergunta baixinho, arrancando-
me um riso carregado de dor.
É ultra perigoso lá fora, Josh, mas é a escola que pode te dar
comida o suficiente para que não morra de fome, não a sua irmã covarde e
assustada. Sinto muito.
— É só precaução. Não posso arriscar, você sabe.
É claro que não posso dizer a ele que provavelmente nós
passaríamos fome pelos próximos dias se por um acaso as minhas preces
injustificáveis não forem o suficiente para convencer Rubens a me devolver
meu emprego. Ir a escola é o que pode salvá-lo, quanto a mim, não importa.
Josh importa. Apenas ele.
— Você jura? — faz bico.
Com este ato, é impossível não me aproximar para abraçá-lo o mais
forte que posso. O medo de perdê-lo me aterroriza, e saber que estou prestes
a enlouquecer e arriscar a sua vida apenas porque estou permitindo que as
sombras de um passado injusto assombre nossas vidas faz com que eu
pareça estúpida, porque meu amor por ele sempre é maior do que qualquer
coisa no mundo, até as mais ameaçadoras e apavorantes. É quando meus
instintos são ativados, o modo sobrevivência na qual sempre busquei me
apegar.
É por isso que não me importo em quebrar um juramento, não
quando a finalidade maior ainda significa protegê-lo a todo, e qualquer,
custo.
— Eu juro.
Ouço o som da sua risada, e quando Josh corresponde o meu abraço,
aperto-o mais forte. O cheiro de casa entre seus cabelos e o som da vida
sendo refletida nas batidas de seu coração, apaga minimamente a sensação
assustadora que preenche meu peito, porque não importa o que espera por
nós lá fora ou quem eu tenha que ferir para manter-nos à salvo, ainda vou
dar a minha vida por isto.

Aprendi a aceitar o não desde nova.


Era sempre as mesmas respostas negativas, mesmo que fosse algo
tão banal que alguém sequer daria alguma importância. Se não fosse algo na
qual envolvesse as ordens do homem que eu costumava chamar de pai
quando pequena, as respostas sempre eram “não”, “vá para o seu quarto”.
Quando eu arrastava os pés pelo piso frio de nossa casa correndo até minha
mãe para buscar por uma resposta diferente da dele, eu via em seus olhos
que ela sentia muito por não conseguir fazer nada a respeito.
Naquela época eu não entendia, mas hoje sei que nós duas éramos
alvos de uma vida repleta de ordens e mais ordens a serem seguidas. Duas
marionetes presas aos fios que nos cercavam e controlavam nossos passos.
Aprender a aceitar o não, no entanto, não me tornou mais forte. Só
me fez adotar uma nova atitude ao recebê-la.
Primeiro, eu me questionava se o problema estava em mim. Eu tinha
algum tipo de defeito prejudicial às pessoas? Era por isso que todos se
dirigiam a mim como uma completa imbecil? Era um pensamento
melancólico até mesmo para uma criança, mas ao procurar pela resposta em
todas as frustrações, entendi que ela não existia.
As pessoas sempre vão te negar uma ou outra coisa durante sua
vida, mas não é este o problema. O problema está no quanto você a deseja
mesmo que esteja longe de sua realidade poder tê-la, é sonhar grande
demais.
Sei disso porque mesmo agora, depois de implorar vezes e vezes ao
meu ex-chefe por uma vaga no café, mesmo que seja lavar os pratos e
limpar a sujeira alheia apenas para receber o suficiente para alimentar uma
criança, ainda recebi a resposta que menos gostaria de receber. Me
humilhei, chorei, implorei e desabafei, mas nada adiantou. Mas não é aí que
está o problema. O problema está no quanto eu desejei uma vida na qual
sempre foi impossível de possuir.
Obrigada, querido pai, você fodeu com tudo.
Talvez ele esteja feliz por, no fim das contas, seus aprendizados
terem servido de alguma coisa mesmo que para me arruinar para sempre.
Aposto que sim, visto que seus sorrisos dependiam do quão infeliz eu
estava e do quão manipulada estava a minha mente.
E mesmo após anos, continuo permitindo que as cinzas de uma
Sofia quebrada e moldada por ele para ser perfeita e facilmente manipulável
continue afetando o meu julgamento. Eu deveria ser considerada a maior
imbecil de todos os tempos por isso, eu sei, mas que outra opção tenho
quando tudo o que Sebastian sempre me afirmava que aconteceria caso eu
não o seguisse, realmente acontece dando a ele a razão na qual nunca
possuiu?
Sou uma idiota.
Burra. Estúpida. Fraca. Insuficiente.
Nem mesmo para fazer o papel de uma irmã mais velha eu sirvo.
Imprestável. É o que sou.
Enquanto caminho pela calçada da rua ao voltar do café, eu abraço
meu próprio corpo, protegendo-me da brisa fria que o vento arrasta até
minha pele desprotegida. As gotas finas de chuva umedecem meu couro
cabeludo, e é neste momento que subo o capuz do único moletom que tenho
para me aquecer. O tecido é fino e bastante inútil comparado àqueles
fabricados para realmente aquecer alguém, mas o que eu posso fazer? É o
que tenho, e reclamar deveria estar no topo da lista de coisas que não posso
evitar, mas ainda doem para cacete.
Esse é o mundo real. Injusto. Pois enquanto pessoas boas como eu
passam por merdas como essa, os monstros seguem no topo da cadeia
alimentar regozijando-se da miséria alheia com um total de zero receio.
A consciência é a maior manipuladora que existe, pois quanto mais
acreditamos estar certos, mais alta será a queda. E ela nunca pode aliviar a
dor, pois você colhe o que planta. E seria triunfante assisti-los cair, um a
um, todos os que nos arrastaram para a realidade que nunca fomos
merecedores.
Merda.
Ao entrar na primeira loja de conveniência que encontro, não penso
muito quando avanço até os corredores e agarro salgadinhos, biscoitos,
achocolatados e alguns sacos de macarrão instantâneo que deverão durar até
o fim da semana. Não penso no fato de que nos resta apenas cem dólares,
não penso no valor necessário para pagar por nossa moradia no hotel ou no
quanto estaremos fodidos se o dinheiro acabar e eu não encontrar um novo
emprego a tempo. Tudo o que penso é nos ossos de Josh saltando sob sua
pele e o som agonizante do ronco de seu estômago enquanto ele luta para
omitir a sua fome pois tem conhecimento de nossa condição.
Não deveria ser assim, não deveria ser assim, não…
Pego tudo o que posso, mesmo que não seja o alimento indicado
para saciar sua fome. Espero que um dia eu possa dar tudo o que ele
realmente merece.
— Cinquenta e sete dólares e trinta centavos. — A atendente avisa.
Aceno, enfiando as mãos nos bolsos para buscar pelo restante do
dinheiro que prefiro chamar de última esperança. A entrego, enfiando tudo
nas sacolas plásticas para dar o fora daqui o mais rápido possível.
Quando ela me devolve o troco, enfio novamente nos bolsos e saio
sem olhar para trás. Me sinto constrangida, mesmo que ninguém saiba da
minha história ou os motivos para que eu esteja tão aflita, porque mesmo
que eu fosse uma mera incógnita para todo o resto do mundo, não sou uma
incógnita para mim. Eu me conheço. É motivo o suficiente para me odiar.
Caminhando pela rua, afundo meus pés cobertos por um par de
botas surradas algumas vezes nas poças d'água acumuladas por conta da
recém chuva. O tempo está frio, o céu está repleto de nuvens escuras e o sol
já desapareceu, dando abertura ao clima nublado e sem vida, semelhante ao
que sinto dentro de mim.
Aperto as sacolas entre meus dedos e enfio a mão livre no bolso a
fim de aquecê-la. As gotas de água seguem molhando meu moletom e eu
caminho mais rápido para que possa guardar nossas compras no hotel até
que chegue o momento de buscar Josh no colégio.
Ainda sinto a temperatura fria do revólver debaixo do moletom
enviando arrepios por minha pele. Não arriscaria sair sem uma proteção,
porque mesmo que eu esteja apavorada, ainda sou a única pessoa capaz de
me proteger. Ninguém vai fazer isso por mim.
Tampouco confio em alguém para fazê-lo, pois as únicas pessoas
que podem nos trair são aquelas na qual depositamos nossa confiança.
Talvez seja por isso que a queda é sempre dolorosa.
Mas quem é que nos força a confiar tanto em alguém assim, não é?
A vida adora pregar peças.
Fui treinada para isso, treinada para desconfiar até mesmo da minha
sombra pois nem mesmo ela soa tão convincente. Fui treinada para
aprender a me proteger mesmo que o perigo pareça grande demais,
assustador demais. Saber que as pessoas são meros instrumentos usados e
manipulados para seguir um padrão traiçoeiro e sagaz sempre foi o que me
motiva a manter minhas anteninhas atentas, embora o subconsciente
implore para que eu corra.
Não confiar em ninguém. Não confiar em ninguém.
Não se precipitar. Observar o mundo ao seu redor. Estar atenta. E,
principalmente, nunca, ABSOLUTAMENTE nunca pense que um sinal de
perigo piscando em vermelho é uma coisa da sua cabeça.
As tarefas aprendidas enquanto fui obrigada a me tornar tão
monstruosa quanto aqueles que se alimentavam do meu medo ainda são
valiosas, são tudo o que tenho. E é por isso que ao olhar para trás ao sentir
um incômodo latejante em minha nuca, eu percebo o exato momento na
qual alguém se enfia atrás de algum carro parado no acostamento,
escondendo-se.
Não é coisa da minha cabeça. Nunca é.
Sinto meus lábios secarem e um gosto amargo preencher minha
saliva. Ouço o som da água das poças aumentarem o ritmo enquanto acelero
meus passos, apertando as sacolas com força em minhas mãos.
Merda.
Mesmo que o tempo esteja frio, ainda posso sentir o suor escorrer
pelas minhas costas em um fio gélido. Minha nuca arde… Ela queima pela
sensação de estar sendo observada, e no fundo sei que não é apenas isso.
Não estou sendo só observada, estou sendo seguida.
Eu posso sentir.
Posso sentir que alguém está atrás de mim.
É… ele?
Merda, não pode ser ele. Não há como ser ele. Ele é capaz de me
causar muitas coisas, dentre elas estão os sentimentos mais repulsivos já
criados em todo o mundo. Eu o desprezo, o amaldiçoo por toda a eternidade
e sinto que poderia avançar para matá-lo a qualquer instante se estiver em
minha frente. Mas nunca, em hipótese alguma, ele já foi capaz de me causar
tanto medo que fizesse minhas pernas tremerem com tanta intensidade.
Olho para trás. Não vejo nada além de carros estacionados, poças de
água e o céu começando a se adaptar a noite que já começa a cair, mas nem
sinal de quem me segue.
Meu coração bate desenfreado contra meu peito, espancando minha
pele.
Minha respiração elevada aumenta o meu pulso.
Volto a encarar a estrada, mantendo os olhos fixos na minha
esquerda, para que pareça que estou encarando os carros quando na verdade
estou usando minha visão periférica para prestar atenção no movimento às
minhas costas.
Ao desviar de duas pessoas caminhando às pressas pela calçada,
percebo o borrão negro de alguém usando um moletom e capuz trilhando o
mesmo caminho que fiz a alguns segundos. Sua cabeça está baixa, e a visão
periférica não é feita para que possamos ver algo com nitidez, o que
dificulta minha tentativa de ver seu rosto.
O terror absoluto me toma por completo e tudo que desejo é correr,
mesmo que eu seja confiante o suficiente para lutar pela minha vida. Ainda
temo que os homens de Floyd estejam atrás de mim para me trancar
novamente em uma prisão amaldiçoada. Eu não posso, alguém precisa de
mim… Josh, ele…
Aperto as alças das sacolas em ambas as minhas mãos, o vento
soprando alguns fios do meu cabelo para fora do capuz do moletom, e os
lábios entreabertos com dificuldade para respirar. Meu coração acelerado
faz com que eu me sinta apavorada e com uma vontade incessante de
apenas correr entre todas as pessoas e me esconder em algum lugar distante.
Olho para trás. As feridas em meus pulsos latejam devido a força
que estou prensando as alças em minhas mãos.
E lá está.
A figura completamente vestida de preto, o rosto levemente virado
para o lado, como se estivesse escondendo a sua identidade. Suas mãos
estão nos bolsos de seu moletom e ele anda lentamente, como se estivesse
apenas caminhando pelas ruas desta bela cidade como um pedestre comum.
É claro. Pessoas e suas manias de acharem que sou a porra de uma
idiota.
Desvio de algumas poças de água e viro novamente a direita,
encostando as minhas costas contra a parede em um caminho estreito de um
beco, usando alguns poucos segundos para respirar. Rapidamente coloco as
sacolas no chão e pouso uma das mãos no revólver preso no cós de minha
jeans, pronta para engatilhar.
Os fios do meu cabelo voam para fora do meu capuz e giro minha
cabeça levemente para a esquerda, esperando que a pessoa vire à direita
novamente para que eu possa enfrentá-la.
Passei muitos anos correndo e agindo como uma chorona. Eu não
quero ser assim, aprendi a lição, não é? Não quero ter que dormir com a
droga de uma arma debaixo do travesseiro apenas por medo de pessoas que
ao menos sei quem são.
Tenho duas opções. Correr e me preocupar por mais um dia do que
farei em seguida, suportando ouvir os roncos dilacerantes do estômago de
meu irmão ou apenas enfrentar quem for, ganhando tempo e boas
informações.
Bom, meio que prefiro a segunda opção.
Mantenho o revólver preso entre meus dedos escondidos pela manga
do moletom. Minha cabeça elevada acima do ombro à espera do vislumbre
do cara vindo em minha direção.
Nos dois segundos seguintes, ele passa por mim. As mãos ainda nos
bolsos e a cabeça baixa. Te peguei.
Em um movimento ágil, agarro seu antebraço e dou um passo para
frente, apenas o suficiente para que possa empurrá-lo para o mesmo lugar
na qual estava encostada. Com uma mão segurando seu braço e outra com a
arma alta o suficiente para estar abaixo de seu queixo, forçando-o a me
olhar nos olhos ao ranger os dentes com força. Um grunhido lhe escapa e eu
pisco, desorientada, o ódio cegando os meus olhos.
Estou pronta a lhe dar um chute no meio das pernas, mas encaro o
seu rosto. As sobrancelhas muito bem contornadas, os lábios entreabertos e
os olhos arregalados. Os fios de cabelo totalmente ondulados e o gloss
cobrindo seus lábios carnudos… Ela é familiar.
Pisco, analisando seus olhos castanhos e sua expressão neutra. Ela
ofega, levantando o queixo para fugir de meu agarre enquanto sigo
descendo meu olhar até a gola de seu moletom onde consigo identificar o
tecido azul turquesa do uniforme que eu deveria estar usando neste exato
momento.
Mas que porra?
— Lexie?
Estreito o olhar, surpresa por se tratar da garota que não troquei mais
do que vinte palavras. Que raios ela faz aqui?
— E-E aí, As... — sussurra com dificuldade.
Eu afrouxo o aperto da arma em seu queixo e a abaixo, mantendo-a
presa com a outra mão. Meu Deus. Eu quase matei a porra da minha ex-
colega de trabalho.
— O que está fazendo, Lexie?! — questiono, finalmente libertando
um suspiro longo. — Eu poderia ter te matado, droga.
Lexie estreita o olhar e varre a rua com atenção, fazendo com que eu
siga o seu olhar e finalmente reparo nas pessoas nos encarando dentro dos
carros e enquanto caminham, do outro lado da rua. Me esqueci que estou
em público. Jesus Cristo, eles estão me encarando como se eu fosse algum
tipo de ser incomum. Eu os assustei, e a julgar pelo olhar aterrorizado de
Lexie, creio que acabo de fazer exatamente o mesmo com ela.
A solto de meu agarre e enfio a arma de volta no cós da jeans,
sentindo os fios do meu cabelo roçarem contra meus lábios e minha pele
queimar pelo constrangimento.
— Como eu poderia saber que você agiria como uma maluca?! —
Suspira, passando uma de suas mãos pela testa, secando a fina camada de
suor. — Pelo amor de Deus.
— Você estava me seguindo!
Lexie balança a cabeça em negativo e puxa o capuz que cobre seus
fios ondulados já caídos para fora do moletom. Ela tenta passar por mim,
como se estivesse de fato horrorizada por ter ficado cara a cara com a
morte, mas eu seguro fortemente seu braço, a impedindo de dar outro passo.
— Por que você me seguiu? — pergunto. — Há quanto tempo você
tem feito isso? Quem é você?
A pergunta é séria. Ela é suspeita.
Lexie está diferente de como eu habitualmente a via. A máscara que
costumava usar foi retirada de seu rosto, revelando o desenho contornado
de seu rosto. Os lábios carnudos e acentuados estão cobertos por gloss e há
piercings demais em seu nariz, uma argola de um lado, um ponto de luz do
outro… Além do arco em seu septo. Ela parece um tipo exótico de rockstar
perdida em uma cidade deserta no submundo da Califórnia, embora pareça
ainda mais familiar agora que vejo todos os seus traços.
Ela ainda está de costas para mim, com a cabeça baixa e a ventania
fazendo com que seus fios pairem pelo ar por alguns segundos.
Sem respostas.
Penso no pior.
Talvez eu tenha me enfiado em um buraco perigoso, um no qual está
escuro demais para que eu veja com perfeição. Talvez ela seja uma das
minhas perseguidoras? Não. Me recuso a acreditar nisso. Não a conheço
nem há uma semana, e já sei que a garota parece doce demais para render-
se a uma vida tão submersa em podridão. No trabalho, sempre sorrindo,
ajudando aos demais, sendo gentil, tão angelical que nem mesmo eu ousei
desconfiar da farsa que ela poderia ser.
Tudo isso fez com que eu acreditasse que poderia confiar nela. Que
poderia, pela primeira vez, ter a oportunidade de ter uma amizade sem a
influência de um sobrenome de muito valor. Mas aqui estamos, suas roupas
pretas, as luvas de couro e o capuz, é totalmente diferente do estilo de
Lexie. Ela sempre está usando roupas coloridas do uniforme, penteados
bregas em seu cabelo e muita maquiagem nos olhos.
Agora está vestida como uma stalker. Como se não tivesse a mínima
intenção de ser vista por mim, e agora que aconteceu, ela quer
simplesmente fugir sem me dar uma merda de explicação. Mas que porra?
— Responda a droga da pergunta! — Exclamo, firmando o aperto
no seu braço. — Quem é você, porra? Para quem você trabalha?
Lexie finalmente vira para mim, um sorriso no canto dos seus lábios
pairando em sua boca. Ela. Está. Sorrindo. Porra?
— Ele disse que você agiria assim. — murmura, balançando seu
braço e livrando-se do meu agarre. — Eu disse a ele que não acreditava que
você tinha mudado tanto de personalidade, então quis tirar minhas próprias
conclusões.
Franzo o cenho, sentindo minha pulsação acelerar. De que merda ela
está falando?
Cerro a mandíbula enquanto ela prossegue:
— E devo dizer, estou impressionada. Você me surpreendeu, Sofia.
— ironiza meu nome.
Arrasto os pés pelo chão, recuando um passo pela menção daquele
nome.
Encaro seus olhos e desço o olhar, varrendo todas as suas expressões
com cautela. Os olhos perfeitamente desenhados, a mandíbula bastante
contornada e perfeita, os lábios carnudos, a postura totalmente ereta e os
olhos escuros. Ela é familiar, porra.
Como ela poderia reparar em alguma mudança de personalidade se
eu sequer a conheço antes de chegar à Califórnia? Eu saberia se Lexie já
tivesse participado de algum momento da minha vida, seu rosto não é muito
difícil de memorizar. E tenho uma facilidade enorme de memorizar rostos.
Eu saberia quem ela é.
Quem teria dito a ela como eu agiria? Quem apostaria tanto em
minhas atitudes, sem me colocar para baixo e duvidar da minha
capacidade?
Sebastian está desaparecido. Ele nunca me apresentou nenhuma das
milhares de mulheres que viviam ao seu redor. E mesmo que eu as tenha
visto em algum momento, elas não pareciam jovens o suficiente para
frequentar o ensino médio anos após o nosso encontro.
Sem contar que Sebastian com certeza duvidaria da minha
capacidade. Para ele, eu sou fraca para lidar com muitas situações e não sou
forte o suficiente para derrubá-lo. Então não acho que ele esteja envolvido
nesta questão.
Na Colombie, mesmo que tivessem muitas garotas que
participassem do meu dia-a-dia, elas me odiavam. Está fora de cogitação
que alguma daquelas garotas soubessem exatamente como eu agiria anos
após o nosso último encontro, elas estavam sempre me olhando torto e
desejando que eu fizesse algo de errado para que pudessem rir e fazer com
que eu parecesse uma completa idiota. Assim como a maldita premiação.
Elas me odiavam, todas elas.
Exceto... uma.
Encaro seus olhos novamente, encontrando-os fixos aos meus. Seus
fios encaracolados... a cor de pele em um tom pardo, sua voz acentuada e
grave, tão diferente daquela que ela oferecia no café…
— É bom rever você, embora esteja chato pra cacete esperar que a
droga da sua ficha finalmente caia.
Estreito o olhar e ergo a mão para que possa alcançar seu braço
novamente.
Isto não é possível. Não há possibilidades de ser ela. Quer dizer, as
linhas de expressão são parecidas, mas... não! Não é possível. Ela está
morta.
Kelly Peter está morta. Ela morreu quando fui enviada como a
merda de um lixo descartável para aqueles caras, eu a vi morta. Com
certeza ela estava morta, sequer se movia.
Eu me lembro perfeitamente dos disparos que causaram sua morte.
Ela havia sido atingida por dois tiros, não me lembro onde exatamente a
bala a acertou, mas lembro-me de ver seu braço direito e a costela
totalmente encharcada de sangue. Havia muito sangue, e eu sequer podia
me aproximar. Sequer pude verificar se ela estava respirando, porque estava
sendo levada à força por dois homens.
Eu a vi morrer.
Puxo seu braço direito e ergo seu moletom com força para que ela
não se atreva a puxar novamente o braço do meu agarre. No entanto, ela
não parece estar com a mínima vontade de lutar contra minha insistência,
então quando seu moletom está alto o suficiente para que eu possa analisar
o seu braço, vejo a cicatriz.
Há uma linha desde seu antebraço até o início de seu bíceps. A
largura é fina, e a pele enrugada apenas deixa claro que levou alguns pontos
no local.
Meus olhos marejam e cubro a boca com a palma da mão, sem
acreditar no que está logo à minha frente. Levo a ponta dos dedos até a
cicatriz, deslizando-os por toda a extensão.
— Você... — eu sussurro, um nó se formando em minha garganta.
Como resposta, Lexie ergue seu moletom até a barriga, revelando a
pele de sua costela. Seu peito sobe e desce com o acelerar de respiração, e
levando os olhos até o lugar, noto outra cicatriz próximo a sua barriga. É
menor do que a do seu braço, talvez por ser em formato circular. A pele
também está enrugada e a extensão parece funda.
— Foi um choque e tanto, mas eu sobrevivi — diz ela. — E talvez
eu tenha me chateado um pouco por ter recebido um revólver na porra da
minha boca como presente de boas-vindas. — ironiza, bufando um riso.
Eu sorrio, sentindo a lágrima deslizar na pele do meu rosto e a puxo
para um abraço, prendendo-a contra meu corpo. Naturalmente, sinto o
pavor se dissipar como se nunca tivesse existido.
A primeira pessoa que não foi má comigo. A primeira pessoa a me
enxergar, a não duvidar das minhas habilidades e ser uma amiga. A que eu
nunca tive.
Reforço o aperto em seu corpo e a ouço resmungar. Acho que é a
primeira vez em anos que sinto alguma fagulha de gratidão e felicidade me
espetar.
— Pensei que você estivesse morta — sussurro. Meus olhos
fechados e as mãos trêmulas.
— É, eu sei — diz ela. — Eu gostaria de ter te falado desde quando
nos vimos no café, mas ele não permitiu.
Ele…
É claro. Então é verdade.
Ele está aqui.
Eu havia me esquecido que Kelly é irmã do Jason.
Engulo o nó na garganta, sentindo calafrios pelo meu corpo apenas
em mencionar seu nome. É como se eu pudesse reviver todos os únicos
momentos em que me senti realmente viva e valorizada ao seu lado. Até o
dia que ele me traiu.
— Não faça essa cara — repreende. — Sabe que ele não faria algo
assim sem um motivo coerente.
Ah, sim, com certeza ele faria.
Dou as costas para ela, voltando até as sacolas cheias de comida
para apanhá-las. Prendo-as entre meus dedos e encaro seu par de olhos
negros.
Tão parecidos com os dele.
— Não importa. Eu o odeio, Kelly. — a encaro, notando o erguer
suave das suas sobrancelhas. — Ou Lexie, sei lá.
— Lexie. — ela corrige.
Assinto.
Como preferir, melhor amiga ex-morta.
Volto a caminhar pela calçada sentido o hotel onde estamos
hospedados, sendo acompanhada por Lexie ao meu lado. Josh em breve
será liberado do colégio, mal posso esperar para mostrá-lo o que trouxe.
— Você está diferente. Não parece nada com a garota na qual me
lembro. — Comenta, enfiando as mãos no bolso do moletom.
— É, você perdeu bastantes episódios.
Não digo que ela também está diferente do que me lembro, apesar
de ser uma observação facilmente perceptível. Ela nunca teve essa
quantidade excessiva de piercings, além dos cabelos que antes estavam em
um tom de mel, quase um loiro, agora estão tingidos num tom escuro como
a noite. É como se ela estivesse em uma nova fase de sua vida onde o pior
lado é aquele que passou a obter controle sobre suas ações.
A verdade é que todos fomos arruinados de alguma maneira, mas
apenas eu pareço não ter saído do lugar.
Lexie sorri, me encarando por alguns segundos.
— Gosto desta versão, você está assustadora. Garotas assustadoras
são melhores do que garotas frágeis.
— Você me viu ter uma crise após trocar cerca de três palavras com
homens desconhecidos, não tente me agradar.
Sua risada contagiante é soprada ao vento, atraindo meus olhos
diretamente até a sua face ruborizada, livre do tecido daquela coisa que a
mantinha escondida. Agora entendo porque ela costumava usá-la todos os
dias, eu a teria reconhecido imediatamente apenas por vê-la por alguns
segundos. Kelly tem traços marcantes, um sorriso sutil e pintinhas em seu
nariz que são sua marca registrada.
Certamente ela o fez de propósito. Não era de sua vontade que eu a
reconhecesse, ou pelo menos, não a do merda que ela costuma chamar de
irmão.
— Tudo deve haver um equilíbrio. Até mesmo para personalidades
fortes como a sua.
Sorrio.
Eu nem me lembro qual foi a última vez que o fiz com tanta
transparência de modo que alcançasse meus olhos. É bom ver algum rosto
familiar depois de tanto tempo, depois de estar de luto por ter perdido a
única pessoa que nunca hesitou em depositar sua confiança em mim, assim
como o contrário. Sua transparência foi o que me levou a amá-la como
parte de mim, embora seus laços sejam o que esteja me incomodando agora.
Porque se ela está aqui, disfarçando-se de uma simples garçonete
para vigiar todos os meus passos após tantos anos, só pode significar uma
coisa: a academia também está aqui, em algum lugar nas sombras, onde
costumam se esconder do restante do mundo.
Assim como ele.
Perseguindo-me pelas ruas escuras e fazendo questão de me lembrar
o que nunca foi um segredo para o caráter problemático que o envolve. Ele
quer que eu saiba que está aqui, que está de volta, e que eu nunca vou ter a
paz que lutei para conquistar. Ele quer que eu o odeie, quer que eu o
despreze, mas não faz ideia que esses sentimentos superficiais não chegam
nem perto do que sinto por ele.
É sabendo disso, que um clima pesado e constrangido abraça a
atmosfera enquanto caminhamos em silêncio. Lexie, como prefere que eu a
chame, afunda as mãos nos bolsos de seu moletom e levanta os olhos
hesitantes até os meus quando parece notar meu desconforto.
É assim que vai ser agora, não é?
— A Revolução também está aqui, não está? — sou a primeira a
quebrar o silêncio. — É por isso que você decidiu dar as caras três anos
depois de sua ex-morte.
Há desapontamento em meu tom. E não posso fingir que estou triste
por vê-la viva, respirando, aqui na minha frente. É uma grande felicidade,
um alívio para a culpa que me perturbou durante todos estes anos por
imaginar que ela estivesse morta por minha causa, por sentir a necessidade
de me manter segura.
E eu me culpei. Me desprezei por não ter tido forças para ajudá-la
tanto quanto fez por mim.
No entanto, minha afinidade com ela não se diz respeito a nada que
envolva a Revolução ou os maníacos que costumam trabalhar para ela. Eles
me querem por perto, fingem que gostariam de me manter segura quando
tudo o que desejam é que eu seja uma aliada em meio a guerra de poderes
entre a máfia e aqueles que desejam destruí-la. É isso que sou para eles,
apenas uma mercadoria que precisam carregar para que o grande filho da
puta de Marcus Floyd não coloque as garras em mim.
É apenas uma garantia que sua guerra não foi perdida.
Eles não se importam comigo, apenas com o que posso oferecer a
eles.
— Sim, eles estão. — confessa ela, sem rodeio algum. — Mas o
meu disfarce e a minha presença de volta na sua vida não foi uma ordem
vinda de cima.
Eu a encaro.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que meu irmão pode ser um grande quebrador de
regras quando o assunto é você.
Rio, amarga e cruel. Quase não reconheço o som áspero que sobe
pela minha garganta.
— Nesse caso, ele pode ir pro inferno. Não tenho o menor interesse
em estar perto dele ou ter qualquer relação com a Revolução de novo. E eu
juro, Lexie, se ele se aproximar de mim uma única vez… Eu vou matá-lo.
Lexie balança a cabeça em positivo e fixa seus olhos nos meus. Uma
expressão duvidosa estampada em seu rosto, como se estivesse lutando
contra sua própria língua para não dizer algo que não deveria.
Estreito o olhar, quase a obrigando a dar com a língua nos dentes.
— Sua raiva é compreensível. — Paramos de caminhar, e ela se vira
em minha direção para prosseguir. — Mas não acha que pode levantar a
bandeira branca uma única vez? A guerra está se aproximando, a máfia
inteira está caçando você. Tem noção do quanto está em perigo?
Engulo em seco.
Ela só pode estar maluca. Delirando. Ou talvez tenha batido com a
cabeça e esteja supondo ideias completamente inalcançáveis.
Fora de cogitação.
— Tenho. Vivi dois anos enjaulada como um animal felino, se há
alguém que saiba a proporção do que está vindo atrás de mim, sou eu.
Eu posso me virar sozinha. Foi o que fiz até aqui.
Dou as costas para ela, tornando a caminhar sem ao menos olhar
para trás. Eu a amo, mas nem mesmo o amor que sinto por qualquer outro
alguém é capaz de sobressair o ódio cru que somente a menção de um único
nome pode causar. Se o idiota pensa que pode me convencer de alguma
maneira enviando sua irmã para amolecer meu coração, espero que agora
ele entenda que já não possuo um.
Se a coisa não existe, como é que ela pode funcionar?
— Não faça por você, então! — grita, chamando minha atenção.
Paro de andar, sem me virar, ouvindo-a com atenção. — Faça por Josh. É
sério, As, pense na segurança do seu irmão. Vocês estarão seguros ao nosso
lado.
Me viro.
Ignoro a porra da racionalidade.
Ignoro o quanto a amo. Não penso em absolutamente nada ao
alcançá-la e pressionar seu corpo na parede outra vez, empurrando seu
crânio no concreto. Seus olhos esbugalham-se, mas não sinto nada a
respeito. Ela acha que pode me manipular? Que porra ela se tornou? Vestir
a camisa de uma organização de bosta parece ter consumido seu cérebro.
Mantenho meus olhos fixos aos seus e tento a todo custo não
esboçar nenhum tipo de reação. Eu quero que ela veja que se adotou um
novo tipo de personalidade, então somos duas.
— Estou feliz por você estar viva, de verdade. Você foi uma grande
amiga, e eu sofri muito tempo enquanto pensava que estava morta por
minha culpa — limpo a garganta. —, e até posso esquecer que você tem um
irmão de merda, que tem a porra de um cérebro mínusculo por ser deixada
manipular pela Revolução, mas posso jogar a possibilidade no lixo se você
ousar pensar em usar o meu irmão para me manipular. Não sou idiota,
Lexie, não fode.
Sou cegada pela faísca flamejante.
Ela provocou isto. Ela sabe qual é a porra do meu ponto fraco e
tentou usá-lo contra mim.
Seus olhos arregalam-se e noto o engolir de saliva em sua garganta.
— Não me leve a mal, Lexie. Mas tive que enfrentar muitas
situações de merda por conta de atitudes de alguém que eu confiava. Eu era
ingênua e me deixei levar por juras e promessas medíocres. — cuspo as
palavras, estreitando o olhar. — Não sou mais aquela garota, okay? Não me
peça para cometer o mesmo erro novamente e não mencione Josh apenas
para me atacar. Ele está seguro ao meu lado, assim como esteve em todos os
malditos anos. Não precisamos de nenhum de vocês. Me ouviu?
Lexie baixa o olhar, encarando o chão de concreto. Ela mordisca o
lábio inferior e noto quando sua cabeça balança duas vezes seguidas, ainda
sem encarar meu rosto. Então liberto seu corpo, deixando-a respirar
repetidas vezes. Eu a estava sufocando.
Eu pediria perdão, me desculparia por ter perdido o controle por
alguns minutos. Me culparia por recebê-la tão mal anos após a nossa última
interação, mas não o faço. Meu coração bate desenfreado em meu peito e
sinto vontade de chorar, de gritar, de explodir até que não haja nada a ser
libertado dentro de mim. Mas, simplesmente… não sai. Meus demônios
estão em casa, e se recusam a enfrentar outro lugar que não seja a porra da
minha cabeça.
Pisco, atordoada enquanto buzinas, vozes, sons da cidade penetram
minha mente quando tudo o que quero é a porra do silêncio.
É pior do que eu imaginava. É tudo grande demais para que eu
possa suportar.
Não é apenas sobre lutar pela minha vida e a de meu irmão, é sobre
não ter ideia de como fazê-lo.
Pois somos alvos fáceis demais, penetráveis e vulneráveis. Almas
solitárias que só querem a felicidade, mas ser incapaz de alcançá-la onde
quer que ela esteja. Talvez o meu maior erro tenha sido me sentir tão
confortável em uma vida caótica, pois quando eu finalmente quero me
livrar dela, nunca posso, nunca consigo, ela já está habituada a mim. É parte
de mim. É quem sou.
E agora, mais do que nunca, consigo ver o fogo alarmante do caos
brilhando mais do que nunca. Nunca esteve tão claro, não viverei se não
lutar para isso. E eu vou. Vou lutar até meu último suspiro, até que não haja
para o que lutar. Até que eu finalmente tenha alcançado minha vingança e
provado em atitudes o quanto desprezo cada parte do mundo. Até que eu
mate todos aqueles que arrancaram de mim a chance de ser feliz,
começando pelo topo da lista.
NEW YORK - 2017
ANTES

— Sofia? — chama a Sra. Peterson. — Você é a próxima. — alerta.


Assinto.
Minhas mãos estão extremamente frias e sinto o suor escorrendo por
minhas costas, por baixo do vestido.
Hoje é a minha apresentação musical. Estou acostumada a tocar
piano e cantar melodias, faço isso com frequência em casa. Mas acho que
fazer isto na frente de trezentas pessoas é um pouco mais aterrorizante.
Não faço ideia se mamãe e papai já chegaram. Ela disse que
estariam na primeira fila, torcendo para que os jurados e visitantes
adorassem minha apresentação. Mamãe disse que com certeza todos iriam
sair encantados com tamanho talento enquanto o meu pai, bom… Ele não
está muito interessado em qualquer coisa que traga felicidade a sua filha,
embora eu me esforce para lhe dar algum motivo para me amar e se
orgulhar.
Ele é um homem frio, quase tão frio quanto alguém que não
consegue sentir absolutamente nada por alguém que ele mesmo colocou no
mundo. Tudo que eu sei, no entanto, é que estou prestes a fazer de tudo para
ser reconhecida como uma filha digna o bastante para ser vista. Isso inclui
fazer um acordo com um desconhecido apenas para provar meu valor a
alguém que não parece muito apto a isto.
Papai paga caro para que eu possa estudar na Colombie, o colégio
sempre foi um dos meus maiores sonhos. Além de possuir um dos melhores
ensinamentos dos maiores idiomas do mundo, a atenção redobrada aos
teatros e musicais é realmente incrível. Sempre quis me tornar uma artista
de sucesso.
Além de que, o colégio fica ao lado de uma loja de conveniência
japonesa onde vende os melhores macarrões instantâneos do mundo. Essa é
a minha segunda parte favorita de estudar no maior colégio infantil de New
York, a primeira sempre vai ser as aulas de música. Por mais que às vezes a
Sra. Peterson seja insuportável.
Ela me disse a alguns dias que sou sua pianista favorita. Algumas
garotas da classe odiaram sua fala e afastaram-se de mim. Eu não quero ser
a favorita da Sra. Peterson porque todas nós estávamos ali para alcançar o
mesmo objetivo, mas parece que ela não se importa muito com isso.
Diana Marlon, minha colega de classe, disse em alto som que a Sra.
Peterson estava interessada apenas no fato de que minhas condições de vida
são boas e poderiam lhe proporcionar alguma vantagem. Algo sobre
interesse. E que na verdade, haviam pianistas melhores do que eu para
concorrer ao prêmio de Celebridade Colombie 2017. Acho que ela também
tem um pouco de raiva de mim.
Apesar de sentir muito por estar prestes a ser ainda mais odiada por
toda minha vida neste colégio, não posso evitar que o enorme desejo que
sinto para receber algum carinho do homem na qual deveria ser meu grande
super-heroi, me leve a adotar uma personalidade egoísta que não me
pertence. Não faz parte de quem sou. Mas é o que a falta de atenção
desperta em mim.
— Está na hora, querida. — ouço a voz tranquila da Sra. Peterson às
minhas costas.
Apenas balanço a cabeça, encarando a cortina do palco fechar-se e
Emmy, uma das primeiras vencedoras do prêmio de Celebridade Colombie,
afastar-se do piano e sorrir alegremente para suas colegas que a aguardam
ao lado do palco.
Minhas pernas estremecem, e respiro fundo. Por que estou tão
nervosa? Implorei para que papai pagasse por isso, implorei para ter aulas
extras de piano para ser um sucesso com meu sonho. Eu só tenho que entrar
no palco e fazer o que sempre estive pronta para fazer, então, por que estou
tão nervosa?
Mamãe disse várias vezes que tenho uma voz maravilhosa e que
quando o público a ouvisse, estariam tão extasiados pela surpresa e
encantamento, que tudo que fariam seria se perguntar "por que raios essa
garota não é um sucesso em todas as plataformas?". Mamãe sempre foi
assim, me incentivando e exagerando em seus elogios apenas para que eu
sentisse que sou capaz. Mas eu sou? Estou com tanto medo que a resposta
para essa pergunta simplesmente não existe.
Além de quê, se aquele garoto for realmente de confiança, ganharei
o concurso de qualquer maneira e papai talvez enxergue em mim uma filha
na qual ele poderia amar. Então eu posso respirar, posso ficar calma, posso
acreditar que ele irá me enxergar… Só tenho que subir até lá e dar o meu
melhor. Não é tão difícil.
— Escuta, querida... Lembra do que nós conversamos? —
pergunta a Sra. Peterson, me encarando fixamente com os olhos verdes
penetrantes, enquanto mantém suas mãos em meus braços. — Respire
fundo, feche os olhos e sinta sua música. Cante com o coração e toque com
a alma, tudo bem? Tenho certeza que você se sairá bem. — ela sorri,
ajeitando seu par de óculos firmemente acima de seu nariz.
— Estou nervosa. — admito, notando os olhares das outras
garotas fixos em mim.
Será que elas me acham ridícula?
Talvez eu seja. Lutei tanto para isso apenas para chegar até aqui e
sentir vontade de correr para longe.
— Não há necessidade, foram meses de treinamento. Você está
pronta e é capaz, anime-se, Sofia! — Sra. Peterson move suas mãos para
minhas costas, onde dá um leve empurrãozinho para que eu entre no palco.
Ai, meu Deus!
Tudo bem, tudo bem... É apenas fazer o que você ama, Sofia. Não
é tão difícil assim, okay?
Dou uma última olhada para trás, observando a Sra. Peterson com
os braços cruzados e um sorriso amigável nos lábios. Ao seu lado estão as
demais garotas, me observando como se estivessem torcendo para que eu
passe um vexame horrendo. Tudo bem. Não ficarei triste por conta disso,
elas estão apenas chateadas com o comentário de nossa professora e após o
fim deste concurso, ficarão ainda mais.
Volto a encarar o piano posicionado no centro do palco e caminho
até o banco aveludado e me sento, passando as mãos pelo tecido de seda do
meu vestido, e posicionando o microfone corretamente na altura dos meus
lábios.
Todas as pessoas que estão trabalhando nos bastidores da
premiação estão atrás do palco, me observando fixamente. Me pergunto o
que passa em suas cabeças, mas antes que possa concluir o meu
pensamento, as palmas explodem ao lado de fora.
As cortinas abrem lentamente e os holofotes se viram na minha
direção, impedindo que eu enxergue com clareza a plateia. Isso é bom, ao
menos não irei observar todas essas pessoas enquanto me esforço para não
cometer falhas. Porém, também sou incapaz de descobrir se mamãe e papai
estão aqui na primeira fileira torcendo por mim, como mamãe afirmou que
estaria.
— Sofia Clarke, com Love in The Dark de Adele!
A plateia está silenciosa e isso faz com que os meus batimentos
cardíacos fiquem mais intensos.
Estou com os lábios entreabertos, posicionando minhas mãos nas
teclas do piano. Meus olhos ardem com tantos holofotes na minha direção,
então os desvio até encontrarem novamente a Sra. Peterson.
Ela está com uma prancheta em mãos, seus óculos estão
levemente caídos pelo seu nariz e seus olhos não desviam-se dos meus por
nenhum momento. Ela está apostando em mim e eu sei quanto custaria
decepcioná-la.
Seria tachada como uma verdadeira decepção, e sei o quanto a
Sra. Peterson lutou para me colocar no topo. Não irei decepcioná-la. Se
tudo der errado, me custará muitos desapontamentos.
Começando por mim.
Seguro novamente o microfone. Sinto um frio na barriga e meus
pés estão aflitos, querendo bater contra o chão de madeira do palco
repetidas vezes. Me contenho e leio a letra da música posicionada em um
suporte a altura dos meus olhos. Sei a música completa, porém, estava tão
nervosa que não queria arriscar esquecê-la e não saber o que fazer, então
pedi ao Carlos - um senhor da secretária do colégio - tirar impressões da
letra para que realmente não haja erros.
Mais tarde, preciso agradecê-lo por isso.
Limpo a garganta e inicio o solo da música.
Os primeiros toques me deixam nervosa e aflita por errar a letra
ou que minha voz simplesmente falhe. Então fecho os olhos, lembrando-me
das falas da Sra Peterson. Viva a sua música…
— Tire os seus olhos de mim para que eu possa partir — tudo
bem, está tudo bem. Sofia, concentre-se.
A arena ainda está em completo silêncio, portanto, me esforço
para continuar com a música.
— Tenho vergonha de fazer isso com você me olhando — resvalo
os dedos entre as teclas, alternando o ritmo. — Isso nunca tem fim, nós já
passamos por isso antes…
O silêncio instalado no auditório segue ensurdecedor e
agonizante, trazendo tremores às minhas pernas que me levam a fechar os
olhos a fim de controlar os que se expandem na ponta dos meus dedos. Sigo
expressando sentimentos em cada palavra dita na canção, mas apenas
quando me preparo para subir a nota ao refrão, é quando o terror absoluto
me envolve com o puro medo de falhar.
Abro os olhos, mantendo-os fixos no rascunho da letra e
movimento meus dedos de forma ágil para a mudança de notas.
Preciso ser premiada. Preciso que papai veja que não foi uma
perda de tempo gastar dinheiro comigo, preciso mostrar para mamãe que
ela estava certa, que eu sou capaz, e também preciso mostrar para a Sra.
Peterson que ela tinha razão, tudo que devo fazer é me concentrar e manter
meus objetivos como prioridade. Nada mais importa.
Alguns murmúrios se ouvem na plateia e me esforço para continuar
concentrada na música.
De repente, estou dentro do meu quarto, solitária e acuada
enquanto espero que alguém se lembre que ainda existo. Ainda me lembro
de quando me dei conta de que a minha existência não tinha tanta
importância, ninguém parecia me enxergar além da minha mãe. Mas o que
ela poderia fazer quando nem mesmo ela parece feliz com a vida que
levamos?
— Não posso te amar no escuro — movimento meus dedos pelas
teclas, fechando meus olhos enquanto vivo a minha música. — Parece que
estamos a oceanos de distância.
Ouço murmúrios vindos da plateia, no entanto, me concentro apenas
em concluir o refrão.
— Há tanto espaço entre nós. Talvez já tenhamos sido derrotados
— mais murmúrios.
Mais alguns sons vem da direção da plateia, porém desta vez, algo
parecido com... Assobios? Estão assobiando para mim?
Meus olhos rapidamente se movem até a lateral do palco,
encontrando o par de olhos da Sra. Peterson levemente fechados e um
sorriso largo nos lábios enquanto suas mãos dão algumas batidinhas breves.
Estou conseguindo?
Volto meu olhar para a letra da música, desta vez, com um sorriso
nos lábios. Vamos lá, Sofia. Está conseguindo.
Um sorriso brota em meus lábios enquanto percebo as silhuetas
escuras levantando-se de seus assentos para aplaudir a mim.
Inevitavelmente meus olhos transbordam em lágrimas expressivas e
dolorosas.
— Sim, sim, sim, sim, sim… Tudo me mudou… — meus dedos
movimentam-se agilmente pelas teclas, e meus olhos se fecham. Estou
cantando com a alma. — Você me deu algo sem o que eu não consigo viver.
— minha voz sai disparada até o microfone, ecoando por toda a arena.
Palmas. Palmas ecoam por todo lugar, e me sinto triste por não
conseguir enxergar as pessoas na plateia. Mamãe deve estar orgulhosa, eu
sei que sim. E papai? Será que ele pode me ver?
— Você não deve subestimar quando estiver em dúvida, mas não
quero continuar como se estivessemos bem. — inicio uma breve introdução,
servindo como alavanca para que eu possa voltar uma última vez para o
refrão.
Meus olhos se abrem. Procuro por qualquer movimento no meio da
plateia que soe familiar. Mas não é mamãe ou papai, mas sim o garoto que
encontrei mais cedo no palco. Não consigo ver seu rosto devido a escuridão
da arena, no entanto, posso sentir a chama ardente de seu olhar preso em
minha figura como um predador. Seus braços estão cruzados e ele está
confortavelmente recostado a uma pilastra afastada dos assentos. Eu o
observo, esperando qualquer reação.
Minha voz alcança uma nota alta ao dar início ao refrão e é neste
mesmo segundo que gritos e assobios explodem diante de mim. Eu sigo
encarando-o, esperando qualquer sinal, qualquer um. Mas tudo que ele faz é
enfiar as mãos nos bolsos antes de virar-se e dar as costas, sem esboçar
absolutamente nada. Ele apenas se vai.
Será que desistiu do nosso acordo?
Preciso ir atrás dele o mais rápido possível, eu estou tão perto… Tão
malditamente perto… Ele só precisa cumprir sua parte.
Chegando ao fim da canção, os gritos e palmas seguem explodindo
por toda a arena, os holofotes ainda estão focados em minha direção e
consigo notar algumas pessoas aplaudindo de pé. Abro um sorriso nos
lábios, me afastando do piano e andando calmamente até estar a frente do
piano, fazendo uma reverência como agradecimento.
Sinto meu rosto queimar com tamanha surpresa e eu diria que minha
vontade é dar alguns pulinhos de alegria em cima do palco. Não que eu
tenha ganhado a premiação, mas conseguir enfrentar todos os meus medos e
tocar com a alma, tendo total aprovação e aplausos realmente foi suficiente
para me levar ao êxtase da felicidade.
Passo minhas mãos novamente pela seda do meu vestido e caminho
até a lateral do palco, encontrando a Sra. Peterson sorridente, sem a
prancheta em mãos e com os braços me oferecendo um abraço.
— Conseguiu, querida. Você foi excelente!
Eu a abraço, sem conseguir conter meu sorriso.
— Acha que tenho chances? — pergunto baixinho em seu ouvido.
As cortinas estão fechando-se novamente, apesar dos ruídos da
plateia continuarem altos o suficiente para que possamos notar o alvoroço
do lado de fora.
— Está brincando? — murmura, me encarando espantada. — Você
foi demais! Tenho certeza que está sendo considerada pelos júris. —
assegura, e sorri.
Tenho certeza que sim.
Eu sorrio para ela, mas uma dúvida me faz desmanchar o sorriso
rapidamente, então a toco com a ponta dos dedos para chamar sua atenção.
— Sim?
— Hm... A senhora viu os meus pais na plateia? — pergunto,
esperando que ela possa me dar uma resposta.
A agonia para saber o que eles acharam da minha apresentação está
me matando.
Eles não podem perder uma apresentação tão importante para mim,
que pode ser útil para que eu consiga me matricular em escolas de música
extremamente famosas pelo mundo. Algo para ampliar o currículo é sempre
bom, a Sra. Peterson sempre diz. Porém, a tensão por não vê-los está me
deixando nervosa.
— Não os vi, querida. Mas tenho certeza que estão contentes pelo
resultado. — Ela sorri, alisando meu braço com uma de suas mãos.
Eu me esforço para retribuir o sorriso, mas estou me sentindo
esquisita. Acho que estive por tanto tempo dando o meu melhor para
garantir que papai ficasse orgulhoso de mim, que não consigo conter
minhas emoções para ver sua reação.
Ele nunca foi muito fã da ideia de sua filha ser um sucesso na
música. Ele sempre dizia ser bobagem, que ser uma pessoa famosa não
seria apenas "flores", e que tudo tinha um lado ruim. Mas então, mamãe
disse a ele que não poderia barrar meus sonhos de forma tão grosseira, e
então, após muitas conversas e pedidos sinceros, papai concordou com a
ideia de me matricular na Colombie.
Ele passou a acreditar no quanto a Colombie pode melhorar meus
ensinamentos, quando aprendi o francês. Papai ficou surpreso e mamãe
achou o máximo. São poucas as crianças que aprendem outro idioma em tão
pouco tempo, e em apenas dois meses, eu estava fluente.
Tenho uma estranha habilidade de decorar textos e palavras com
facilidade. Talvez seja por isso que eu seja cogitada para a maioria das
peças teatrais do colégio e particularmente odeio esse dom idiota quando
sou obrigada a fazer uma imitação de Cinderela, apenas por ter um cabelo
loiro e não ter dificuldades para decorar as falas.
Acho um pouco chato passar todos os dias me esforçando para
chamar a atenção do papai, e sempre receber frases negativas sobre isso.
Ainda assim, estou caminhando rapidamente até o lado de fora do palco e
por mais que eu saiba que em alguns minutos haverá a premiação principal,
estou mais preocupada em ter minha resposta se o garoto realmente irá me
ajudar a conquistar meu prêmio.
Ouço a voz de Kelly Peter vindo do palco. Ela realmente tem uma
voz linda e tranquila. Foi uma das únicas a não me tratar tão mal após o
comentário de nossa professora, e espero que ela também esteja sendo
considerada pelos júris porque ela merece isso. Ao chegar do lado de fora
do palco, observo a plateia e noto as duas pessoas segurando placas com o
nome de Kelly e parecem animados com a sua apresentação.
Antes que eu perceba, estou sorrindo, admirada pela atitude dos seus
familiares. Eu gostaria que papai fizesse coisas assim para mim também,
seria incrível. Mas acho que ele realmente odeia a ideia de que eu seja um
sucesso, apenas não entendo por quê.
Saber que mesmo odiando essa ideia, ele continua frequentando
minhas apresentações, pode ser um sinal positivo, não é? Não sei... Talvez
ele fique contente com meus resultados e mude de opinião sobre o meu
futuro, isso não é impossível.
Acho realmente impossível conviver com a ideia de que não sou
apoiada pelo meu próprio pai.
Ultimamente tem sido assim, como se fôssemos um peso morto em
sua vida. Ele sempre está muito zangado, impaciente e chateado com o
trabalho, que simplesmente se esquece que nós deveríamos ser a sua
prioridade. Tudo tem estado diferente. Meu irmãozinho Jonah tem
pouquíssima atenção, mamãe e eu somos as únicas a lhe dá cuidado e
carinho. Papai sempre sai de casa pela noite e quando retorna, quase não o
reconhecemos. Sempre exaltado, sempre bastante zangado.
Jonah e eu somos sempre arrastados para nossos quartos e eu o faço
dormir enquanto ao lado de fora se ouve gritos e barulhos esquisitos vindos
do quarto de nossos pais.
Nem mesmo mamãe consegue controlá-lo.
Sou interrompida de meus pensamentos quando ouço alguém dizer
ao microfone que as apresentações chegaram ao fim e logo será realizada a
premiação. Olho ao redor, buscando pela silhueta alta e tapada por roupas
escuras. Continuo buscando por ele ou por qualquer sinal dos meus pais na
primeira fileira dos assentos, no entanto, não há sinal de ninguém além de
outros diversos familiares que parecem verdadeiros robôs. Sorrisos
forçados, olhares cheios de desconfiança…
Sinto meu coração acelerar e suspiro, sentindo-me vagamente
decepcionada. Eles não me deixaram aqui sozinha, deixaram?
Varro meus olhos pelo auditório, encontrando milhares de pessoas
conversando entre si, parecendo ansiosos pelo resultado. Pelas caixas de
som ecoa alguma música instrumental para que o lugar não fique tão
silencioso enquanto os jurados decidem a grande vencedora do prêmio.
Engulo o nó na garganta, ainda varrendo os olhos pelos assentos na
busca pelos meus pais. A arena está mal iluminada para que os holofotes
estejam focados no palco para todas as apresentações que ocorreram,
tornando difícil a tentativa de conseguir enxergar a primeira fileira de frente
para o palco.
— O que está fazendo, Clarke? Precisa estar no palco para o
anúncio! — ouço a Sra. Peterson às minhas costas.
Me viro em sua direção, a encontrando com a prancheta em mãos e
seus óculos na ponta de seu nariz, fazendo com que seus olhos estejam
fixados aos meus com mais facilidade.
A Sra. Peterson não é tão ruim assim, mas confesso que sua
expressão séria e falta de humor, faz meu cérebro perder os sentidos por
alguns segundos. Ela está sempre com um coque no topo de sua cabeça, os
fios sempre muito bem penteados e puxados para trás, seu corpo sempre
vestido casualmente com um blazer e uma saia larga até os joelhos.
Incluindo os seus saltos baixos, que cada passo dado em nossas aulas é
capaz de nos causar arrepios.
Talvez seja por isso que as demais garotas lutam tanto pelo seu
reconhecimento e aprovação. Ela dá medo.
— Sim, Sra. Peterson. — Baixo a cabeça, a encarando por alguns
segundos antes de passar por ela e voltar pelo mesmo caminho. Meu tom de
voz melancólico parece desanimá-la, mas ela não diz nada.
Eu não tenho como ir até o garoto agora, então tudo o que posso
fazer é torcer para que ele faça o que prometeu.
Ao chegar no palco, observo todas as garotas animadas enquanto
conversam entre si e gargalham. As cortinas estão fechadas e o piano já foi
removido do centro do palco que agora é ocupado por uma mesa retangular,
com um vidro fechado acima dela. O vidro está longe, mas o conteúdo
dentro continua visível para nós, mantendo o brilho da coroa evidente.
Ela está ainda mais linda!
Parece ser feita de prata, mas acho que com toda certeza deve ser
algum material falso, ainda assim, é tão linda que estou vidrada no brilho de
cada detalhe. Todas as curvas da coroa estão voltadas para a mesma direção,
onde se juntam ao topo da frontal e carregam uma pedra cor-de-rosa
brilhante. É como a estrela de uma árvore de natal, um pequeno ajuste para
chamar toda a atenção para um certo ponto. É este o papel da pedraria.
Acho que estou mais apaixonada do que estava na primeira vez que a vi.
Sim, com certeza estou mais apaixonada agora.
— É linda, né?
Giro a cabeça em direção a voz, encontrando Kelly de braços
cruzados olhando na mesma direção da coroa e parece tão encantada quanto
eu.
— Muito linda. — é tudo que consigo dizer ao voltar a encarar o
vidro.
— Você sabe que é a ganhadora... A coroa será sua.
Eu a encaro e noto que está sorrindo, então volta o olhar para mim.
— Espero que seja, as meninas não deveriam tratar você tão mal. A
Sra. Peterson sempre diz algo sobre empatia e consideração pelas
companheiras, mas elas nem mesmo conseguem seguir uma ordem simples,
então por que deveriam ganhar um prêmio tão importante? — questiona.
Torço os lábios, varrendo os olhos ao meu redor para me certificar
de que não há ninguém próximo de nós o suficiente para ouvir seu
comentário. As demais meninas estão com seus grupinhos de amigas ainda
distraídas com suas conversas antes que inicie a premiação.
Kelly Peter acabou mesmo de me defender? Quer dizer, eu sempre
soube que ela não é tão igual às outras meninas já que nunca me ofendeu ou
me excluiu das atividades e grupos. Mas isso? Será que… ela ouviu a
minha conversa com o garoto? Ela está aqui para me subornar?
— Não entendi — engulo em seco, torcendo os lábios ao notar seus
olhos ainda atentos aos meus. — Você foi muito bem, sua voz é muito
linda, Kelly. Você também tem chances aqui. — a elogio. O meu tom de
voz exala sinceridade.
Noto quando a diretora do colégio caminha até a mesa onde está a
coroa, posicionando o microfone à altura dos lábios e se preparando para
iniciar os agradecimentos e dar início à premiação.
Kelly torce os lábios e cruza os braços à altura do peito antes de
balançar a cabeça e soltar um riso sem graça.
— Eu não quero ganhar o prêmio — revela, com a voz baixa e
frágil. — Nem queria estar aqui, para falar a verdade. — liberta seus braços,
os batendo contra a lateral de seu corpo.
Uma ruga se forma no meio de minhas sobrancelhas.
Kelly Peter sempre foi muito talentosa e carismática, dentre todas as
demais alunas do colégio, é sempre ela a agir como se estivesse entediada
na maioria das vezes como se não desse a mínima para o quão importante
ganhar este concurso pode ser para o nosso currículo. Mas isso nunca
significou que ela não era gentil e bondosa, afinal ela está aqui, falando com
a garota na qual todas as demais odeiam enquanto confessa a maior das
injustiças consigo mesma.
— Não? — Expresso minha confusão ao examiná-la.
Ela dá de ombros, desinteressada no assunto.
— Não — olha em volta, se aproxima de mim e leva uma de suas
mãos até a lateral de seus lábios, como se quisesse esconder o que está
prestes a dizer. — Olha para tudo isso… Tão banal.
Perco a fala, apenas a observo com atenção. É literalmente a
primeira vez que encontro alguém como eu definindo algo como o concurso
internacional mais visto da história da grande cidade como algo sem
importância alguma.
— Eu sei que você está pensando, como alguém pode estudar no
maior colégio de Nova York, participar de uma premiação importantíssima
e ainda assim, dizer que é banal? — leva seu indicador até seu queixo,
como se estivesse pensando em uma resposta concreta. — Eu te digo, isso
aqui é um saco e acho que vou precisar ser internada em um centro
psiquiátrico se tiver que ouvir a Sra. Peterson dizer mais uma vez o que
devo fazer ou como devo me comportar.
Wow! Ok, isto foi revelador.
Eu a encaro horrorizada, e percebo que meus lábios estavam todo
esse tempo entreabertos. Fecho e desvio o olhar, notando as cortinas já
abertas e os holofotes fixados em nossa diretora.
— Assustei você? Desculpa! Eu falo muito, não é? — a vejo levar
as palmas de suas mãos ao rosto, perifericamente.
Cruzo os braços e torço os lábios, levando meus olhos até a garota
novamente. Alguns dos seus fios encaracolados estão caídos por sua pele
parda e todo o comprimento de seu cabelo está ao topo de sua cabeça em
um coque perfeitamente centralizado.
Acho que não sou capaz de entender como alguém não seria grato
por estar em um lugar como este, é meio estranho para mim. Kelly nunca
pareceu estar insatisfeita com as aulas, com a Sra. Peterson ou com o
concurso. Apesar de nunca falar algo a respeito, ela sempre teve uma
expressão bem neutra, então nunca foi fácil decifrar quais eram as suas
opiniões sobre algumas coisas, mas acho que agora tenho certeza de sua
opinião. Ela realmente está farta de tudo isso.
— Você não me assustou, apenas... Não sei, por que está aqui se está
tão aborrecida? — pergunto. — Algumas garotas fariam tudo para estar no
seu lugar.
Kelly retira suas mãos de seu rosto e me encara com seus olhos
negros perfeitamente contornados.
— Essas garotas gostariam de estar aqui, não é como se estivessem
sendo forçadas.
— E você está? — questiono.
Ela hesita por alguns segundos e noto quando ela suspira e cruza
novamente os braços. Seus olhos desviam-se dos meus, dando-me livre
acesso para observar seu rosto de perfil tão inexpressivo e vazio, quase
como se ela não tivesse o que expressar. Como se estivesse cansada de não
sentir nada…
Sigo seu olhar, notando que agora seus olhos estão fixos no palco,
onde nossa diretora já deu início aos agradecimentos e pede a atenção de
todos para a grande premiação. Seu silêncio me assusta, porque nele pode
haver muitas respostas. Eu apenas os desconheço.
— Vai começar — avisa Kelly, tocando meu ombro e mantendo os
olhos fixos nos meus. — Vença.
Eu forço um sorriso, ainda assustada com a nossa breve conversa e
ela se afasta, caminhando em direção a saída do palco. É como se ela já
soubesse que não vai vencer ou simplesmente não queira fazer parte.
Ainda estou pensativa sobre seu comentário. Kelly não gosta
realmente de estar aqui? Então por que ela se esforça tanto para ter bons
resultados, ou por que seus familiares estavam do lado de fora segurando
placas com seu nome, torcendo para sua vitória quando na verdade ela
sequer se importa com a premiação ou com tudo isso?
Acho que todas as garotas do colégio estão esquisitas ultimamente e
parece que ninguém é realmente o que diz ser. Começando por mim, que
sou tratada de forma superior apenas pela fama de meu pai, quando na
verdade ele sequer gostaria que eu estivesse aqui. As pessoas tratam as
coisas como elas vêem e acreditam nisso com toda a força.
Kelly é uma aluna excelente, com ótimas notas, uma boa garota,
bondosa e esforçada, mas sequer parece querer realmente estar aqui.
Aparências realmente enganam.
— Vai começar! — ouço murmúrios das garotas.
— Estou tão animada!
Eu giro a minha cabeça na direção das vozes, observando os
pulinhos e palmas das garotas aparentemente animadas para o início das
premiações.
É meu primeiro concurso desde que entrei na Colombie. Estou aqui
há quase um ano e não pude participar da última apresentação no ano
passado, por ser uma aluna nova e não ter sido treinada pela Sra. Peterson.
Eu achava que poderia participar e que estava pronta, mas acho que um ano
de aulas extras são realmente necessárias para a evolução.
Também agradeço a diretora Harrington, porque se ela permitisse
que eu participasse do concurso no ano passado, provavelmente eu teria
alguns traumas a serem superados e um vexame horrível para manter no
mar do esquecimento.
— Vamos lá! Estou segurando um envelope que contém o resultado
final, segundo nossos jurados. — Harrington anuncia. — Quero lembrá-los
de que todas as nossas garotas estudaram e treinaram o suficiente para
concorrer à maior premiação do colégio, logo, independente do resultado,
quero deixar aqui os meus parabéns para todas! Vocês são o motivo da
Colombie ser tão bem vista.
Palmas ecoam por todo o auditório.
A Diretora Harrington sorri e acena para uma das suas secretárias
que caminha rapidamente em sua direção ao notar o aceno, alcançando o
pequeno vidro e retirando a coroa de dentro.
Mesmo de longe, o brilho dos cristais são tão aparentes e
incandescentes que por um momento, me sinto uma egoísta por desejar tê-la
mais do que qualquer coisa, o suficiente para arrancar a oportunidade de
outras pessoas porque estou desesperada. A falta de atenção… A
necessidade por um carinho, até onde eles podem nos levar?
— Isto não é apenas uma coroa, é um símbolo de que nós estamos
lutando para dar a educação correta e de extrema importância para nossas
meninas. Esta coroa é o verdadeiro significado de esforço e dedicação, é o
fruto de um talento fenomenal. Sendo assim, temo que uma ganhadora não
seja o suficiente para presenteá-las após uma apresentação impecável,
comandada pela nossa coordenadora Madison Peterson. Todas as nossas
participantes do Celebridade Colombie 2017, serão presenteadas com
medalhas. — Ela sorri em direção a nós, acenando com a mão para que
fossemos até ela.
Olho as demais garotas, que parecem tão surpresas quanto eu. É
literalmente a primeira vez que há uma premiação voltada para todas as
garotas, e não apenas uma. É justo, já que todas nós treinamos na mesma
intensidade para esse dia.
Outra secretária adentra o palco carregando medalhas em seu
antebraço. Ela sorri amigável, enquanto as palmas continuam explodindo
por todo o auditório. É realmente uma boa ação, e apenas encarando a
situação, me dou conta de como seria esquisito todas participarem de um
concurso e apenas uma ser premiada.
— O que estão esperando? façam fila. — Sra. Peterson ordena,
organizando todas as garotas em fileiras. — Vocês vão caminhar até a
diretora, cumprimentá-la e depois ir receber as medalhas, entendido? Sem
erros e não sejam estabanadas! Lembrem-se, ordem e decência é o caminho
para o sucesso.
A Sra. Peterson segura meu braço e me leva até o início da fileira,
fazendo com que algumas garotas olhem esquisito em minha direção.
— Sim, Sra. Peterson. — Dizemos em uníssono.
Quando todas as fileiras estão organizadas, curiosamente olho para
trás, procurando por Kelly. Não a vejo em tamanho tumulto e ajeito a
postura, mantendo os olhos centralizados.
De qualquer forma, ela deixou claro que não precisa ganhar a
premiação e tampouco gostaria de estar aqui, então talvez ela tenha ido para
casa? Ou apenas verá a premiação da plateia, não sei. Kelly fez com que eu
me sinta diferente e estranhamente preocupada com as suas revelações. Eu
não deveria me importar, mas ainda assim, estou sentindo que algo está
errado.
— Certo! Desejo sorte para todas vocês, estou orgulhosa. — Sra.
Peterson sorri para nós.
Mais uma vez se ouve a chamada de nossa diretora no palco, e
rapidamente nos apressamos em caminhar até ela em perfeita sincronia. Eu
passo a mão pela seda do meu vestido e com a outra, me certifico de que o
meu cabelo está perfeitamente penteado. Meus dedos roçam no laço preso
em duas mechas atrás de minha cabeça e suspiro, na tentativa de manter a
calma.
É como se eu estivesse desesperada para estar perfeita.
Acho que a vida difícil que levo tentando agradar ao papai a todo
tempo, está começando a afetar o meu cérebro. Não deveria ser assim, não
é?
Eu caminho posturalmente até a nossa diretora, que está elegante em
seu conjunto de calça social e blazer. Ela usa um salto não muito alto nos
pés e seus fios pretos com alguns fios grisalhos estão presos em um coque
acima da cabeça.
— Sofia! — Ela sorri quando a alcanço, me puxando para um
abraço. — Bela apresentação, huh? Boa sorte, querida.
— Obrigada, Diretora Harrington. — Agradeço com um sorriso nos
lábios.
Os holofotes estão todos voltados para o palco, fazendo de nós o
total destaque.
Após a secretária colocar a medalha sob meu pescoço, me posiciono
posturalmente de frente para o público, com as minhas mãos entrelaçadas à
frente do corpo. As demais meninas fazem o mesmo, uma por uma até que
não reste uma sequer.
Ainda não sou capaz de enxergar as primeiras fileiras da plateia,
com tamanho flash's voltados para a nossa direção, fazendo com que eu
enxergue nada mais que pequenos borrões negros. Apesar disto, me esforço
para enxergar o canto superior direito, onde estava os familiares de Kelly a
algum tempo. As placas são meu principal objetivo, pois se eu as encontrar,
consequentemente saberei que ela ainda está na arena.
Não sei em que momento deixei de me preocupar com a necessidade
de encontrar meus pais ou a silhueta sombria do garoto mistério mais uma
vez, porém, acho que estou um pouco preocupada com minha colega de
classe.
Estreito os olhos na esperança de que minha visão se torne nítida,
mas sou interrompida quando ouço seu nome ser murmurado por alguém
próximo.
Giro minha cabeça, a observando entrar no palco desajeitadamente,
com seus fios de cabelo um pouco rebeldes e um sorriso extremamente
forçado nos lábios. Seus olhos estão minimamente vermelhos e parece que
esteve chorando.
Ela cumprimenta a Sra. Harrington, e estende a medalha sob seu
pescoço, mas antes que possa se colocar na mesma fileira onde estamos -
um pouco distante -, nossos olhares se cruzam.
Kelly não diz nada, mas segura a medalha com uma de suas mãos e
a acaricia levemente, antes de se colocar na fileira e manter a postura,
consequentemente desviando os nossos olhares.
Franzo o cenho.
Algo está errado, não está?
O que está acontecendo?
Eu desvio os olhos de Kelly e volto a encarar o público.
Eu passo levemente a língua pelos meus lábios, umedecendo-os
antes de respirar fundo. Estou nervosa, estou com sentimentos ruins, e me
sentindo muito, muito estranha. É como se eu estivesse sentindo que algo
ruim está prestes a acontecer, como essa premiação, ou com meus pais, ou
talvez com... Kelly?
A diretora começa a abrir o envelope e sinto meu pulso acelerar. É
meu futuro, preciso disso. Preciso mostrar para meu pai que ele estava
errado.
— Muito bem. — disse Harrington. — A nossa vencedora do
prêmio Celebridade Colombie 2017 é... — uma pausa.
Suspiro.
Por favor, por favor, por favor…
Por favor, garoto estranho, tenha cumprido com a sua promessa!
— ...Kelly Peter! — cantarola ela.
Meu coração para de bater no mesmo segundo em que o público se
ergue para aplaudir a grande vencedora.
Meus lábios secam e eu suspiro. Meus olhos estreitam e sinto como
se todas as pessoas presentes na arena tivessem desaparecido, sobrando
apenas eu e o meu desespero pela aceitação. Meus olhos desviam-se da
diretora, encarando o nada, na busca de oxigênio e tentando de todas as
formas manter a calma e agir normalmente.
Eu perdi.
Aperto minhas mãos entrelaçadas com mais força, erguendo meu
corpo levemente para frente para conseguir olhar na direção onde Kelly
está. Sinto as lágrimas formando-se na minha linha d'água, mas me recuso a
deixá-las cair. Não aqui. Não posso dar mais um motivo para papai dizer
que isto é tudo uma perda de tempo. Sinto como se todas as minhas
expectativas tivessem sido quebradas, e realmente foram. Será que ele
sempre teve razão, no fim das contas?
Será que fui apenas uma grande imbecil por ter confiado nas
palavras de um estranho que nunca havia visto? Que garantia eu tinha?
Eu me enganei. Eu mesma causei isto.
Eu. Apenas eu.
Kelly ainda não sai do lugar e está olhando fixamente nos meus
olhos. Amargura estampado em seus olhos. Ela não parece feliz, não parece
mesmo. Muito pelo contrário. É como se ela sentisse vontade de fugir do
palco e ignorar totalmente o prêmio.
— Senhorita Peter? — A diretora chama sua atenção, fazendo com
que ela quebre nosso contato visual.
Kelly força um sorriso e caminha até a diretora, que pede à
secretária que coloque a coroa sob sua cabeça. Palmas são ouvidas em todo
o auditório, gritos, assobios, de todas as pessoas, inclusive as demais
garotas do concurso. Quando dou por mim, noto que sou a única a manter
as mãos baixas, vidrada na cena de Kelly.
Algumas garotas de nossa classe me encaram de soslaio e quase
noto o sarcasmo em seus olhares. Como se estivesse caçoando da minha
tamanha derrota.
Respiro fundo e engulo o choro entalado na garganta, erguendo
minhas mãos e batendo palmas para a grande vencedora.
Estou feliz por Kelly, ela tem uma voz impecável e um talento
incrível com o piano. Acho que eu não seria capaz de me entristecer apenas
por ela ter ganho um prêmio no qual mais de cinquenta garotas estavam
concorrendo. Este final era meio óbvio, eu apenas não deveria ter sido tão
confiante, e principalmente, ter colocado todas as minhas expectativas em
cima de um prêmio idiota, uma promessa idiota, apenas para provar a
alguém que não sou tão estúpida quanto pensa.
Soa um pouco idiota.
Isso não deveria estar acontecendo, papai deveria ser a pessoa que
incentiva a continuar, a não desistir, a persistir e não abaixar a cabeça. Mas
onde ele está? Sequer o vi na plateia, e aposto que deve estar rindo da
minha cara de bobalhona em cima deste palco.
Ele deve estar adorando.
Quando finalmente somos liberadas para nos retirar do palco, eu o
faço sem olhar para trás. Deixando Kelly no palco para sua grande
coroação, caminhando pesadamente para fora do auditório.
Me sinto sufocada e cansada de tentar alcançar um sonho distante,
colocando todas as minhas expectativas em algo que não é verdadeiro.
Estou sendo motivo de chacota e cochichos, como a "preferida que se deu
mal". Eu não duvido. Nem mesmo ser a preferida de nossa professora foi o
suficiente, tampouco passar mais de cinco horas treinando diversas
sequências de teclas para não cometer um único erro.
E para quê? Para no final, recorrer a estaca zero. Novamente.
Entristecida e com vontade de chorar, porque nem mesmo os meus esforços
serão elogiados por ele. No final, sou sempre uma criança mimada e
teimosa.
Eu te disse que não daria certo, não disse?
Acho que essa frase está entalada em sua garganta desde quando me
matriculei no concurso. Será que agora ele está contente?
Entro no vestiário feminino, levando uma de minhas mãos até o
cordão no meu pescoço e o retirando com grosseria, sem me importar se
talvez tenha se partido em dois pedaços. Seguro a medalha com uma mão,
apertando entre minha palma.
Abafo um riso.
Atiro a medalha para longe, fazendo-a colidir contra o alumínio do
armário.
— Idiota!
Lembro-me de sua voz.
Tudo isso é uma besteira, Sofia! Não seja uma criança mimada,
ouça o seu pai!
É como se ele passasse cada segundo de sua vida torcendo para que
meus sonhos fossem arruinados. Mas que merda, que tipo de pai faria algo
assim?
Embora mamãe sempre me proteja, todas as vezes que as malditas
circunstâncias provam a ele que estava certo desde o início, ela sempre
retorna para ele, no fim das contas. Então, eu não poderia contar com ela
para poupar um sermão com sabor de "eu avisei". É algo que não estou
pronta para ouvir. Não ainda.
Embora saiba que não há para onde correr.
Mordo meu lábio inferior com força, a fim de impedir a todo custo
que as lágrimas insistentes caiam dos meus olhos. Eu não quero chorar. Não
é um hábito, e sim mais um dos ensinamentos do meu pai.
Ele diz que chorar é como demonstrar sua fraqueza, principalmente
se for feito em locais onde eu possa ser vista. O choro leva meu
subconsciente a um lugar desprotegido, fazendo de mim uma mera criança
indefesa com os sentimentos à flor da pele.
Apesar de ser uma garota sentimental, tenho me esforçado para não
cometer mais algum erro do tipo. Papai odeia quando demonstro
sentimentos com facilidade e diz que tudo isso é apenas para que eu me
torne uma mulher forte futuramente.
Mas ele não está aqui agora, está?
Estou tão magoada que posso sentir as lágrimas acumulando-se em
muita quantidade na minha linha d'água. É quase como se eu não pudesse
controlá-las. Mas se eu pudesse, também não o faria. Eu tenho o direito de
me sentir triste e isto não me faz uma garotinha fraca. Faz de mim uma
humana.
Acho que se eu estivesse em meus dias normais, não estaria
pensando em baboseiras como essa. Como ir contra todos os ensinamentos
do meu pai. Mas este não é um dia normal, é um dia doloroso. Estou
zangada porque eu não estaria nestas condições se ele não tivesse me
pressionado tanto e feito absolutamente de tudo para me impedir de ir atrás
do que eu realmente queria.
Tudo que eu fiz foi para ter o seu reconhecimento, para ser amada
corretamente por quem eu sou e por quem quero ser. Mas ele não foi capaz
de fazer algo tão simples, então não estou me importando com seus
ensinamentos hoje. Não hoje.
Uso o dorso da minha mão para limpar as lágrimas que despencam
para a maçã do meu rosto e encaro a medalha caída no chão próximo ao
armário.
Caminho até ela e ajoelho para alcançá-la, segurando a fita amarela
fortemente entre os dedos. A fita está desfiada pela força que a puxei, mas
segue intacta. Com a outra mão, alcanço o medalhão e analiso o desenho
ofuscado de um piano centralizado, sendo carregado por um fio de um
microfone. Nas laterais há uma frase, giro o medalhão até que possa
entender o que está escrito.
A persistência realiza o impossível.
Passo meus dedos sobre as letras cristalizadas e respiro fundo, a
colocando sob meu pescoço novamente.
Quem sabe a persistência seja caridosa o suficiente para me ajudar a
enfrentar a fúria e o desgosto do meu pai, assim como sair deste lugar sem
me sentir idiota por ter confiado tanto em palavras de um desconhecido. Ser
tratada como uma completa estúpida dói, constrange, machuca. Mas pior do
que isso é dar ainda mais motivos para se parecer como uma.
NEW YORK - 2019
ANTES

— Como vai o seu plano brilhante? — questiona Hyuk,


aproximando-se de mim.
Forço o aperto no corrimão da ponte Wickery Luther, mantendo
meu olhar fixo no rio, iates e lanchas. Minha cabeça está prestes a explodir,
e eu não consigo raciocinar bem. Tudo está correndo como eu não planejei,
o que é a porra de um inferno.
— Eu não tenho um plano. — murmuro, apertando a mandíbula.
Hyuk apoia os cotovelos no corrimão e uma de suas mãos alcança
os olhos, esfregando-o como se estivesse exausto.
Nosso plano foi um desastre. Floyd está prestes a caçá-la, e tudo que
não queremos é que ele coloque um dedo sequer na garota. Mantenho a
minha atenção nela há anos, seguindo os seus passos e garantindo a sua
segurança, porque, isso não é mais uma disputa de ego com Floyd. Não é
apenas uma vingança imbecil para todas as coisas que enfrentei por causa
de sua imprudência como humano e pai. Ele é um merda do caralho, não há
dúvidas, e em todos esses anos, acompanhando de longe a vida da garota
Clarke, é notável que ela não faz a mínima ideia do que está prestes a
enfrentar.
Ainda que as circunstâncias não sejam agradáveis, ela está sempre
sorridente e buscando pela atenção de Sebastian. E Meu Deus, como eu
gostaria de matar aquele filho da puta. Negociar a vida de uma criança para
uma máfia de tráfico sexual, disfarçada de um clube de empresários
comandada por Marcus Floyd antes mesmo de seu nascimento, é
problemático.
— Bom, então terá de criar um.
Sigo encarando os iates, minhas mãos apertando a barra de ferro
entre meus dedos com uma força abrupta. Quase posso sentir a temperatura
do sangue se reunindo na ponta dos meus dedos.
— Entrei em contato com Williams há alguns minutos. Sebastian
fugiu. — diz ele. — Ele não iria arriscar encontrar com o Floyd depois do
que fez.
Finalmente o encaro, analisando seus olhos enquanto o meu cérebro
reúne todas as informações. Sebastian enviou a garota para um Colégio
Interno após a morte de sua esposa há alguns meses. Seu irmão caçula foi
enviado para um Instituto de Cuidados Infantis e segue lá há três meses. A
garota sequer pôde ir ao enterro da mãe. O filho da puta fez absolutamente
todas as coisas possíveis para roubar uma parte da herança que pertenceria à
sua filha após o acordo que existia entre eles. E agora que Floyd está perto
demais de descobrir o que Clarke tem feito, ele simplesmente desapareceu
de New York como o grande covarde que é.
Não é surpresa alguma. Apesar de seus cuidados exagerados na
educação da garota, sempre esteve muito claro que ele a protegia apenas
porque havia algum interesse próprio na coisa. Foram anos estudando-os e
entendendo cada mínimo passo, e posso afirmar, Clarke não se importa com
a garota. Ele não se importou em deixá-la presa em um colégio interno para
que ela fosse problema dos administradores, e também não se importou em
desaparecer da cidade quando a barra ficou suja.
Ela deveria ser problema dele, mas não é. Eu a protegi por anos
porque ela é valiosa para o meu pai. Ele a quer. Ela é útil para os seus
negócios, e se ele a quer, eu a quero muito mais. E irei garantir que ele não
tenha absolutamente nada a seu favor.
— Você precisa dizer alguma coisa. Nós nos enfiamos em um caso
complicado. — Naten Hyuk leva as mãos até o cabelo bagunçado e o
prende entre os dedos, afastando-se do corrimão. — Eu preciso proteger a
minha mãe, cara. Não é como se eu pudesse sair por aí te dando cobertura
em seus esquemas de vingança contra o seu pai.
Respiro fundo e fecho os olhos, prendendo-os com força e tentando
manter as ideias claras na porra da minha cabeça. Talvez eu tenha cometido
um erro. Talvez todos os assuntos que a envolvam tenham sido um erro,
porque ela sempre terá muito poder sobre mim, sejam bons ou ruins,
especialmente em momentos onde preciso reunir alguma concentração.
Eu falho, no entanto.
— O que deu em você? — questiona ele. — Você perdeu a cabeça,
Jason. E você não perde a porra da cabeça, mas toma as rédeas e segue com
o plano, porque destruir o esquema do Floyd sempre será mais importante!
Abro os meus olhos e o encaro, cerrando a mandíbula e obrigando-o
a se calar. Sei o que está por vir, e se ele disser alguma merda sobre ela, eu
o matarei aqui mesmo.
De repente, seus olhos estão minimamente cerrados e o cenho
franzido, se dando conta de alguma informação em sua mente. Sua cabeça
balança de um lado para o outro lentamente, como se finalmente estivesse
ligando os fatos.
— Você... — inicia, o indicador erguendo-se em minha direção
enquanto um sorriso desacreditado surge em seus lábios. Quase posso sentir
o peso da compreensão.
— Cale a boca.
— Caralho — murmura, levando as mãos até a nuca em descrença.
— É claro... — finalmente se dá conta.
Pisco algumas vezes, engolindo a saliva presa na garganta enquanto
as lembranças ressurgem em minha cabeça.

Avisto meu pai conversando com um de seus visitantes próximo a


lareira, em suas mãos está um copo com alguma bebida alcoólica, e seu
mindinho está levemente erguido em torno do vidro, realçando o brilho de
seu anel dourado.
Eu não deveria estar espionando-o. Já passa das dez e ele odeia que
eu caminhe pela casa após as oito. É como um ritual esquisito, seus colegas
estão sempre em nossa casa durante a noite e eu nunca tenho permissão
para cumprimentá-los, ou apenas... conhecer outras pessoas que não seja
ele e a nossa governanta.
Não gosto de desobedecer suas ordens, isso significa que em breve
terei outra punição. Talvez desta vez seja uma madeira? Taco de beisebol?
Não importa. Sempre há punições para qualquer de meus atos, não importa
quantos acertos eu tenha. É como se ele me odiasse.
— Espero que nosso trato esteja indo bem, Clarke. Eu odiaria
perder um companheiro tão leal. — Ouço a voz rouca do meu pai, e
consigo notar um leve sorriso em seus lábios finos.
O homem sorri, erguendo seu copo de bebida para o alto em um
falso brinde.
Não posso vê-lo muito bem, mas seus cabelos grisalhos e bem
penteados, sua roupa casual e os anéis que adornam seus dedos, faz com
que eu tenha a absoluta certeza de que ele é um dos homens que trabalham
para o meu pai.
— É claro. A minha mulher está esperando uma criança, ainda não
sabemos o sexo. — diz o homem.
O meu pai bufa uma risada, levando a bebida até os lábios.
— Bom, estou na torcida para que seja uma garota.
Ambos gargalham.
— A Luxury possui algum tipo de abrigo até que tenham idade
suficiente? — pergunta.
Meu pai balança a cabeça negativamente, cessando o riso.
— Não é como se tivéssemos milhares de garotinhas esperando
para que possam ser usadas. A Luxury têm preferência nas adolescentes.
Chamam a atenção do público.
— Então não há garotinhas sendo armazenadas? — questiona o
homem.
Outro riso soa na sala de estar.
— Não são alimentos para serem armazenadas, meu nobre. Como
eu disse, a Luxury lucra milhões em apenas um vídeo de adolescentes que
vêm até nós por si próprias, não precisamos obrigá-las. As vadias sentem o
cheiro da grana. — diz o meu pai. — Mas é claro, existem as exceções. Um
dia, será a sua garota nas telinhas. Espero que ela tenha a aparência da
sua esposa.
O homem sorri, bebericando o líquido e apoiando-o no mármore
acima da lareira.
— Oh, por favor, ela não é a minha esposa. Por Deus.
Meu pai caminha até uma de suas poltronas e se aconchega,
cruzando suas pernas. Parece relaxado.
— Ela dará à luz ao nosso futuro, deveria ser um pouco mais grato.
— Meu pai balança o conteúdo dentro do copo, apontando-o na direção do
amigo. — Estarei nas nuvens se Deus me honrar com a oportunidade de ver
uma mini cópia de Eleanor em ação.
Do que é que eles estão falando?
Faço uma careta, mantendo meu corpo encolhido contra a parede.
— Eleanor vai enlouquecer quando souber o que estamos
tramando. Ela pode ser uma pedra no nosso sapato. Você sabe quem ela é.
— murmura, baixinho. Quase como se estivesse arrependido.
— Não se deixe levar pela manipulação feminina, Sebastian. A
garota vai tirá-los da miséria. — rebate o meu pai. — Além disso, você
deve mantê-la respirando apenas até o momento em que der à luz a uma
garota, sim? Ela é inútil para nós. Depois disso você se livra dela.
Franzo o cenho, encarando minhas mãos trêmulas. O que é isso?
Meu pai nunca diz do que se trata o seu trabalho, e sei que a partir
do momento que eu demonstrar interesse no assunto, estarei proibido de
vagar pela casa todos os dias. É como se eu não vivesse aqui, como se a
minha presença fosse irrelevante e uma perda de tempo. Provavelmente ele
diria que se fosse um assunto da minha conta, eu estaria sabendo. Então,
mais pancadas, até que eu implorasse por perdão e não me envolvesse
outra vez em seus assuntos.
Gostaria de conhecer seus amigos, por mais que eles sejam
esquisitos o suficiente para me deixar assustado. Eu tenho onze anos, não é
como se eu pudesse enfrentá-los e demonstrar coragem. Ele odeia que eu
faça isso, diz que não sou merecedor de ser o seu filho. Por que ele é assim
comigo?
Encaro meus braços tomados por manchas vermelhas de seus
golpes há duas noites, quando eu lhe perguntei onde está a minha mãe. Não
que eu não esteja acostumado com essa vida, sem uma mãe... Mas,gostaria
de saber sobre... bom, deixa pra lá.
Não é como se eu também tivesse permissão para questionar meus
pensamentos sobre a vida que levo em nossa casa. Minhas lições foram
aprendidas. Nada de me meter em seus assuntos, nada de fazer perguntas,
nada de sentir curiosidade, nada de sair do quarto após as oito...
Não há muito o que fazer, além de seguir as suas ordens.
Caminhando lentamente e com cuidado para não fazer nenhum tipo
de som, me direciono ao meu quarto, de onde nunca deveria ter saído.
Estou cansado e muito dolorido, não estou em condições de receber mais
punições.

Naquela época, eu não entendia sobre o que estavam falando. Para


mim, era mais um dos assuntos íntimos que ele tinha com os colegas ou
empresários que frequentavam a nossa casa diariamente, entretanto,
conforme os anos foram passando, passei a entender metade das coisas que
ocorriam na maldita casa. Claro, eu não fazia ideia da profundidade de suas
ações até o dia que descobri seus grandiosos planos para mim.
Antes que eu possa me dar conta, minha respiração acelerada é
totalmente perceptível, a ponta de meus dedos transpiram e o latejar em
meus olhos torna evidente o fino vislumbre de que uma fodida dor de
cabeça se aproxima.
Lembranças do passado são responsáveis pela maioria dos meus
surtos repentinos em missões como essa. Eu nunca tive a cabeça muito
saudável, e a infeliz vida que levei com Marcus Floyd impulsionou a minha
debilidade mental. É como se ele ainda pudesse controlar as minhas
façanhas e desencadear todos os desastres que sua existência causou na
minha vida.
Está fora do meu controle. Não é algo que eu posso controlar.
Ergo meu olhar o suficiente para encontrar o de Hyuk, fixos em
minha direção e acompanhados de um semblante confuso.
— Então é isso, não é? — ele murmura para si mesmo. — Você se
sente como ela. Isso não tem a ver com uma disputa com o seu pai, é
pessoal.
Desvio o olhar, sem a intenção de responder seu questionamento...
ou, afirmação. Que se foda. Viro de costas para ele, voltando a agarrar o
corrimão entre meus dedos e baixando a cabeça, mantenho meu olhar preso
entre as ondas suaves do rio. Um arrepio doloroso sobe pela minha costela,
causando-me desconforto.
Eu odeio admitir que a garota é tão vítima quanto eu, apesar dos
fatos já afirmarem. Nós nascemos e juntamente com a nossa vida, nasceu
um grande empecilho para ser ultrapassado, como se esse fosse o nosso real
objetivo na Terra. Então, desde que descobri a sua existência aos doze,
procuro entender a sua realidade e descobrir qual a ligação que nossas
famílias possuem para que ela seja tão valiosa para meu pai. Mas talvez as
coisas tenham saído do controle, porque apesar de querer usá-la como uma
arma para atingi-lo, eu sinto como se nós fossemos iguais. Como se
tivéssemos alguma linha para ser ultrapassada.
Como se não importasse quanto tempo passamos fugindo e
procurando por uma zona de conforto, não irá acontecer. Estamos presos em
um inferno particular, e não há escapatória.
Umedeço os lábios quando meu amigo segue a sua linha de
raciocínio.
— Nós nunca entendemos qual era a sua obsessão por essa garota
em específico — diz ele. Presumo que esteja se referindo a si mesmo e
Williams. — Há milhares de garotas envolvidas no esquema da Luxury,
mas, por alguma razão, você não consegue se manter na linha quando o
assunto é Sofia Clarke. Por quê? — questiona.
Porque nós somos iguais e eu preciso protegê-la.
Engulo o nó na garganta, esvaindo com as palavras entaladas da
pura e mais sincera realidade. Então, vasculho a minha mente a fim de
encontrar as palavras corretas para contra-argumentar.
— As demais garotas estão lá pela grana. Talvez estejam passando
por dificuldades e partem para o caminho mais fácil da situação. Elas
estarão livres da Luxury quando acabarmos com todos eles, e então poderão
encontrar o caminho de volta para as suas vidas. — O meu timbre exala
rispidez. — Não estão sendo forçadas a participarem do mercado de
pornografia infantil desde o seu nascimento. Ela está. — Não o encaro, mas
posso sentir seu olhar fulminante às minhas costas.
O que ele esperava? Que eu simplesmente mantivesse as mãos
atadas e não fizesse absolutamente nada enquanto Floyd a caça em cada
canto da cidade para atrair a sua rede de pedofilia e lucrar bilhões em cima
de uma garotinha? Não, porra. Ela é apenas uma garota. Uma garota que
precisa de proteção.
— Tudo bem — Hyuk resmunga. — Continue agindo como se esse
fosse o único motivo da sua obsessão.
O encaro por cima do ombro. Minha testa se franze e tento decifrar
o seu semblante, provavelmente, está perdido em suas cogitações sobre o
meu passado com o de Clarke. E por mais que eu odeie admitir, tenho uma
ideia do que se passa em sua cabeça.
Ele sabe do meu passado, sabe de todas as merdas que enfrentei para
chegar até aqui e até das sequelas que carrego comigo ansiando pelo
momento que as superarei. O que é uma merda, porque Hyuk, diferente de
todas as pessoas, consegue enxergar além do meu ódio pelo meu pai. Ele
me enxerga.
Mas isso não é algo que eu pretendo permitir que esteja à vista para
ele, ou qualquer outra pessoa. Não há motivos para isso.
Dito isso, enrijeço a mandíbula e aprumo a postura, a fim de parecer
o mais rígido possível em minhas próximas palavras.
— Somos família. Você é o meu irmão. — digo a ele, finalmente
girando o meu corpo para encará-lo. — Mas não se atreva a fazer
suposições sobre mim, ou colocar um assunto sensível na balança para
encontrar motivos coerentes para uma atitude no mínimo humana. Não seja
um merda, porque eu adoraria acabar com a tua cara. — enfatizo a última
frase, firmando os nossos olhares.
Ele realmente é como uma família para mim, somos amigos há
tempo suficiente para que eu confie a minha vida à ele, porque sei que ele
faria o mesmo por mim. Mas, sermos amigos não é como se ele possuísse
um passe livre para mergulhar em um mar de lembranças ruins apenas para
que eu tenha uma justificativa plausível para ser um tremendo imbecil. Eu
faço isso. É assim que eu sou, destruo coisas e ajo com base em minhas
emoções, porque apesar de ter sobrevivido ao inferno por tantos anos, ainda
não sou capaz de abrir mão do meu lado sentimental e essas merdas, apesar
de não ser aberto a qualquer um imbecil.
Ele sabe disso. O Hyuk do caralho sabe o quão fodido eu sou para
controlar as minhas emoções, e fazer esses joguinhos mentais comigo não
vai funcionar. Ele deveria saber.
O som dos iates e lanchas vagando pelo rio chama a minha atenção,
assim como as gargalhadas e músicas pop que ecoam por uma caixa de som
dos viajantes que atravessam o rio em direção ao acostamento.
Hyuk limpa a garganta, atraindo a minha atenção novamente. Suas
mãos afundam no bolso frontal de sua jeans, e seus olhos desviam-se até o
nosso carro estacionado há alguns metros. Ele umedece os lábios e gesticula
em negativo com a cabeça, antes de voltar a olhar para mim. Ele parece
finalmente se dar conta de que este não é um assunto livre para ser
dialogado e ao baixar o tom de voz, seus olhos transmitem compreensão:
— Arranje um plano — diz ele, ao retirar dois cigarros de seu bolso,
acompanhados de um isqueiro. — De preferência, um que você tenha a
intenção de seguir — Entrega um dos cigarros para mim, acendendo-o
rapidamente. Então, faz o mesmo com o seu. — porque Williams não ficará
contente com a surpresa que estamos carregando na mala do carro. Mas eu
te darei cobertura. — Ele dá as costas para mim, caminhando em direção ao
nosso carro enquanto sopra a fumaça pelo ar e mantém o cigarro preso entre
os seus dedos.
Essa é a sua maneira de dizer que me apoiará em quaisquer que
sejam as minhas escolhas, mesmo que seja a pior delas. Surpresa! Esta é
uma delas, pois não tenho a mínima ideia se existe alguma chance deste
plano correr bem.
Cerro meus punhos, observando-o se afastar enquanto noto a ponta
flamejante do cigarro brilhando em meus lábios. Sim. Talvez eu tenha me
esquecido completamente do Williams. Ele vai ficar puto pra cacete.

Ao chegarmos até o prédio onde organizamos as nossas operações e,


consequentemente, tem sido a minha casa, encaro os portões velhos do
estacionamento se abrirem assim que confirmamos a nossa identidade.
Harry Miller, um dos seguranças do turno, mantém uma de suas mãos na
coronha de sua arma que está presa entre o suporte de sua calça, com os
olhos fixos aos meus através do vidro.
Sempre disse a Williams que não confio em nenhum de seus
seguranças, entretanto, a minha desconfiança tem sido elevada quando o
assunto é Miller. Nós não nos respeitamos. Por algum motivo, ele está
sempre observando todos os movimentos, trocando seus turnos e posições
como algum tipo de privilégio aos demais. Williams diz que ele é um dos
seus melhores homens, com escoltas excelentes, atenção redobrada e
precavidas. Sua necessidade de estar à frente de todas as atividades
importantes para manter a nossa organização secreta me intriga, sendo
assim, meus olhos estarão sempre atentos a esse aí.
Quando passamos pelo portão e o carro estaciona em uma das
vagas, levo a minha mão até a maçaneta a fim de respirar ar fresco,
contudo, antes que eu possa concluir as minhas intenções sinto a mão de
Hyuk em meu antebraço, impedindo a minha saída.
— Leve a garota para o décimo andar. Certifique-se de que ela
esteja confortável e a acalme. Depois, explique para ela como ela veio parar
em um prédio abandonado — Naten diz de forma suave, sem a intenção de
parecer autoritário. — Irei ao escritório do Williams. Vou tentar amenizar a
sua bagunça, e o convencerei de que você tem um plano. Apenas apareça
quando eu chamar por você e toda a questão estiver resolvida. — Ele retira
a chave do contato e a afunda em um dos bolsos frontais de sua jeans,
abrindo a porta em seguida.
Não há motivos para contrariá-lo. Williams se esforçou para
planejar um plano para toda a nossa missão, talvez a minha precipitação em
sequestrá-la de seu colégio apenas para mantê-la inalcançável para qualquer
outra pessoa, tenha destruído 80% de suas estratégias. Por mais que eu
entenda meus motivos e saiba que foram as melhores das intenções, não há
como ter certeza de que Williams entenderá tão bem quanto eu, ou
aparentemente, como Hyuk.
O encarando por cima do ombro, apenas aceno positivamente com a
cabeça e salto para fora do carro, varrendo a garagem com os olhos
enquanto Hyuk se distancia em direção ao elevador.
Apesar da equipe duvidosa de segurança, o prédio é totalmente
afastado da cidade, onde caras mesquinhos como Floyd nunca pisaram. Até
onde eu sei, o lugar foi construído em meados de 1980, e nele, habitava
uma grande e luxuosa rede de fábrica de brinquedos infantis. O lugar é
imenso. Há túneis, esconderijos, saídas secretas e lugares onde nem mesmo
nós visitamos.
Williams conhecia algum dos donos do lugar, e assim, obteve um
grande desconto para a compra do imóvel. É claro que nada disso está em
seu nome, já que seria fácil demais para Floyd buscar em seus arquivos. O
prédio está no nome de Kylian Hyuk, irmão gêmeo de Naten, que está longe
o suficiente de nós para não ter ideia de onde estamos localizados. Nós
fizemos um breve acordo para que ele assinasse a papelada, já que o garoto
está completamente desinteressado em fazer parte de um grupo psicótico.
Está ocupado com drogas, sexo, e outras atividades adicionais e
irrelevantes.
Em partes, eu o agradeço por ser tão desinteressado em nós, como
nós nele. É um sentimento puro e recíproco. Não o atrapalhamos com sua
vida medíocre e passageira, e ele, por sua vez, não se envolve em nossos
assuntos e simplesmente desaparece de nossas vidas. Um acordo
completamente nivelado.
Sendo assim, o prédio está livre de qualquer vestígio de que nós
estivemos aqui. Não há arquivos, pistas, ou movimentos suspeitos. Agimos
na calada, e todas as nossas ações são devidamente calculadas e bem-
pensadas. Agimos como se o prédio estivesse vazio e fôssemos apenas sem
teto procurando por abrigo. Ninguém desconfiaria de nós. Então, a garota
estará segura enquanto eu mantiver os meus olhos nela.
Caminhando até a traseira do carro abro o porta-malas, encontrando-
a encolhida em um sono profundo e exausto. Sua pele branca está
ruborizada, como se estivesse chorando há horas, seu cabelo loiro está
emaranhado por seu rosto e em seus pulsos estão cordas grossas o suficiente
para mantê-la imóvel no caminho até o prédio. Em seu corpo, ela ainda
porta o uniforme estilo colegial azul e branco, acompanhado de um suéter e
allstar desamarrado nos pés.
Com a ponta dos dedos retiro os fios loiros de seu rosto, expondo os
seus lábios entreabertos e o som suave de sua respiração. Impulsivamente,
sinto vontade de acariciá-la e tranquilizá-la, no entanto, algo me diz que ela
estará calma enquanto mantiver os seus olhos fechados e a mente
inconsciente.
Sei que a minha presença pode ser um pouco melindrosa e
intimidadora.
Contenho as minhas mãos, movendo-as até a lateral de seu corpo
para retirá-la do porta-malas. Seu corpo mole e frágil se move com
facilidade devido ao meu toque, e ouço-a resmungar algo que sou incapaz
de compreender. Colocando certa força nos braços, a retiro por completo da
mala e puxo-a para os meus braços, envolvendo os meus braços ao redor de
sua cintura e ao lado inferior dos joelhos.
Seus olhos se apertam por alguns segundos, enquanto a lateral de
sua cabeça se aconchega em meu peito.
O cheiro doce de seu hidratante é empurrado direto para o meu rosto
e o inalo profundamente, observando a sua face quase que angelical. Às
vezes, sinto como se ela não fosse real, uma miragem de minha cabeça, ou
uma obra esculpida por artistas desconhecidos. É a única razão para que ela
possua uma aura apenas dela, única, capaz de trazer impulsos
descontrolados a um homem sagaz como costumo ser.
O diabo deveria ter medo de aparências angelicais como a dela, são
as mais traiçoeiras, apesar de saber que ela não faria mal algum nem mesmo
a um inseto.
Eu poderia ser considerado uma espécie rara também, já que,
hipoteticamente, serei o primeiro a receber alguma violência deste anjo
quando ela abrir os seus olhos e se der conta de que sou eu aqui, o garoto na
qual ela depositou alguma confiança.
Respiro fundo e caminho com ela em meus braços em direção ao
elevador, sem me importar com o ato de largar o porta-malas escancarado.
Seu corpo tão frágil e confortável em meus braços, me faz sentir como se
ela estivesse finalmente sentindo-se segura. Não que seja realidade, afinal,
nem sei qual será a sua reação ao me ver. Porém, prefiro acreditar em uma
versão em que ela se sente segura e protegida, longe de todo o caos que
enfrentou por longos meses. Desde o nosso último encontro, aquele dia, em
sua apresentação.
É a garota mais brutal que já conheci. Nem todas suportariam viver
infernos tão medonhos.
Ao ouvir o som do elevador indicar que chegamos ao décimo andar,
saio com cuidado. Essa ala é para nós, moradores, onde há diversos quartos
ocupados e desocupados para qualquer um se apossar. Apesar de todos os
caras que trabalham para Williams viverem definitivamente no prédio, ele
garantiu que houvesse quartos o suficiente para o caso de, algum dia, a
equipe finalmente alcançar um nível avançado de recrutados.
Sendo assim, há quartos suficientes para hospedar a pequena Clarke.
Caminhando pelo corredor, adentro o primeiro quarto disponível que
encontro. Não é luxuoso. As paredes e o chão são simples e cimentados, há
dois criados, um portando abajur e outro, alguns livros de época e revistas
fashion. Na mosca. Parece ser mesmo um quarto feminino. A cama está no
canto esquerdo do quarto rente a parede e ao lado da única janela, que é
encoberta por uma cortina simples branca e há prateleiras espalhadas pela
parede, tapete felpudo e um banheiro solitário para que ela não tenha
necessidade de frequentar o banheiro livre para todos os outros.
Espero que ela se sinta confortável.
Em passos silenciosos até a cama, eu a deito com cuidado sobre a
cama, sentindo alguns dos seus fios roçarem a pele do meu pescoço.
Encaro-a por alguns segundos, antes de levar as mãos até o lençol e erguê-
lo sob o seu corpo.
Ela não se move, no entanto, os lábios entreabertos e a respiração
calma talvez seja um sinal de que esteja descansando. Talvez como não tem
feito há meses.
Engulo a saliva presa na garganta e me viro para caminhar até a
porta, sentindo a necessidade de manter a distância antes que o pior
aconteça, mas então, alguns resmungos fazem meus passos cessarem.
— N-Não... p-por favor!
Me viro em sua direção, observando seus pés movendo-se por baixo
do lençol. Suas mãos estão presas contra o próprio suéter, apertando-o com
brutalidade.
— Por favor! E-eu não sou ruim! — sua voz chorosa é perceptível
entre os resmungos. — O-onde está minha mãe?
Quando me dou conta que ela está em um pesadelo, me aproximo
rapidamente. Caralho. Como é mesmo que se faz isso?
Quando eu tinha pesadelos na infância, Marta, nossa governanta,
dizia que nunca me despertava. Ela dizia ser perigoso, porque não sabemos
o contexto de um pesadelo, e despertar de repente, talvez seja um passo
principal para um problema maior como infarto ou merdas assim.
Uma vez ela me contou uma de suas técnicas para me acalmar, e
despertar tranquilamente, mas por ser um garoto aéreo naquela casa não
prestei muita atenção em suas palavras. Maldito Jason! Burro do caralho.
Balanço a cabeça, varrendo o quarto com os olhos procurando por
algo útil para ajudar em minha missão enquanto seus resmungos continuam.
Pense, pense.
Balançar o seu corpo e obrigar o seu subconsciente a retornar para o
mundo real não é bem uma alternativa muito adequada. Eu odiaria ser
testemunha de um infarto. Ok, isso está fora de cogitação.
Ser tranquilizado após pesadelos traumáticos é uma boa alternativa.
Quando estamos presos em um inferno mental durante o sono, procuramos
por uma saída e nada importa além de sentir o ar preso esvair-se com
facilidade e finalmente, após tranquilizar o nosso coração, sentiremos alívio
ao notar que tudo não passou de uma retorcida de fatos criada pelo nosso
cérebro. Sim, é isso, ela precisa ser acalmada, e não o contrário.
Abro um dos criados, procurando por algum pedaço de pano que
possa ser útil. Quando não encontro, caminho até o armário na parede
contrária a de sua cama e o encontro também vazio.
Certo, terei que improvisar.
Abro a porta do banheiro solitário, retirando o rolo de papel do
suporte com pressa e indelicadeza. Os papéis se amontoam entre meus
dedos e ao notá-los cobrir boa parte da palma da minha mão, eu mergulho
na água fria. Isso terá de servir.
De volta para o quarto, a encarando em curta distância encontro a
sua testa franzida e as mãos ainda presas contra o suéter. Me ajoelho contra
a cama e posiciono a quantidade exagerada de papel molhado contra a pele
de seu rosto, mantendo-o imóvel. Sinto o tremular de seu rosto contra o
contato gélido, e lentamente, o movimento em círculos pela bochecha, testa,
busto e queixo com uma quantidade absurda de paciência.
— Clarke — chamo pelo seu nome em um sussurro, a fim de não
assustá-la. Tocando a sua face com a ponta dos dedos, gentilmente
aproximo meus lábios de seu ouvido. — Nada disso é real.
Seus olhos se prendem, e os resmungos cessam. Está funcionando?
Espero que sim, porque não faço a mínima ideia da porcaria que estou
fazendo.
— Eu sou, no entanto, então acorde e olhe para mim.
Com a mão livre, cubro uma de suas mãos presas contra o suéter, na
intenção de acalmá-la. Clarke firma o aperto em seu suéter e me concentro
em deslizar o papel suavemente contra a pele macia de seu rosto. Seus
resmungos tornam-se gemidos baixos e quase imperceptíveis, e só me dou
conta de que eles cessaram, quando encontro um par de esferas azuis e
gélidas me encarando fixamente como um mar turbulento em meio a
tempestade.
Estremeço, libertando sua mão do meu aperto. O que ela está
pensando?
— Você está bem? — pergunto, aproximando novamente a mão de
seu braço.
Entretanto, a garota se afasta do meu toque.
Como resposta, retiro a outra mão de seu rosto carregando o papel
preso entre os dedos. Entendo o recado. Sem toque físico.
— Você.
É tudo que ela diz. E surpreendentemente, segue na mesma posição,
sem mover um músculo. Garotas que acabaram de serem sequestradas não
deveriam estar mais assustadas e coisas assim?
— Você está bem? — reforço a pergunta, encarando-a fixamente.
Clarke desvia os olhos para um canto qualquer do quarto e abraça os
próprios braços, como se estivesse contendo algum sentimento ruim que
está a perturbando. Seria a morte da mãe? Saudade do irmão? Negação pelo
desprezo do pai?
— Você… — Ela repete, ignorando mais uma vez a minha pergunta.
— Você mentiu para mim… — seus olhos intensos se voltam para mim.
Quase sorrio, relembrando de sua imagem ao perder aquele prêmio
idiota que claramente era para ser seu, se realmente fosse uma competição
sobre talento. Sua voz é como a dos anjos, e quando a ouvi cantar foi como
se todos os problemas tivessem desaparecido e existisse apenas ela, o piano,
e sua doce voz. Ainda assim, não movi um único dedo para fazê-la ganhar o
maldito concurso. Foi melhor assim, no entanto.
Se ela soubesse que o prêmio não era apenas um objeto capaz de
manipular garotinhas…
— Não menti. — decreto, levantando-me do chão.
Noto os seus olhos marejando por alguns segundos, então ela
balança a cabeça lentamente em afirmativo.
— Sim, você mentiu — dou de ombros, afundando as mãos no
bolso do moletom. — Fizemos um trato, e você o rompeu.
A garota estreita os olhos, em um franzir de cenho quase
imperceptível. Encaro cada mínimo movimento seu, desde as rugas no meio
de suas sobrancelhas até o balançar de pé em leve agonia. Ela está nervosa,
isso está claro. No entanto, ainda sou incapaz de entender a sua atitude
quanto ao nosso encontro inusitado, já que, ela não aparenta estar com
medo ou com a mínima vontade de dar o fora daqui.
Talvez esteja tão acostumada com ambientes medonhos que já não
se abala quando encontra algum diferente. Mas o que de fato me intriga, é
por que ela está tão confortável em minha presença quando há dois anos
atrás, estava assustada e sem a mínima intenção de manter uma conversa
comigo. Há algo de diferente.
— Nosso acordo incluía apenas a coroa, não um título que não
agregará nada em sua vida.
Seu semblante cai, apesar de haver esforços em esconder a sua
mágoa. Ela ainda não sabe, mas nada passa despercebido por mim.
— O que eu também não tive, o que faz de você um grande
mentiroso.
Sorrio.
— É um bom ponto.
Ela rola os olhos, ignorando minha provocação. Posso jurar que
dentro de sua cabeça, ela me insulta de infinitas maneiras diferentes. Uma
grande personalidade, não?
— Onde está meu irmão? — Ela questiona, afastando os lençóis de
seu corpo e colocando os pés para fora da cama.
Ergo uma de minhas sobrancelhas, encarando-a.
— Você sabe tudo sobre mim, não é? — pergunta, a voz carregada
de indiferença. — Então deve saber que a minha mãe está morta e que meu
irmão está desaparecido. — seu tom de voz é totalmente contrário ao de
minutos atrás, desta vez exala autoridade.
Bufo um riso, com a intenção de não constrangê-la.
— Sim, eu sei.
Clarke esfrega a palma das mãos pela saia de seu uniforme
suavemente, como se a sua postura autoritária de dois segundos atrás
tivesse desmoronado em um piscar de olhos. Ela desperta a minha
curiosidade, e um dos principais motivos é estar tão tranquila perante a
minha presença e ao sequestro. Eu deveria assustá-la, e ao pôr em pauta a
situação ela deveria estar aos gritos e lágrimas, implorando para que eu a
leve de volta de onde não deveria ter saído. Ao contrário disso, a garota
inclina o pescoço para cima conforme suga o nariz, e imediatamente reparo
nas lágrimas escorrendo por sua pele clara.
— O-Obrigada por me salvar — seus olhos brilhantes devido às
lágrimas encontram os meus cautelosamente. — Eu estava planejando fugir
em breve, de qualquer maneira.
Não digo uma palavra ao observar o dorso de sua mão direita colidir
contra seu rosto, secando a maior parte das lágrimas com a ajuda da manga
de seu suéter.
Por que ela fugiria do colégio interno? Não passou pela minha
cabeça que ela estaria insatisfeita com o lugar, já que, com base em minhas
pesquisas, é totalmente feminino e quase aconchegante. Qual seria a fonte
de sua insatisfação?
— Por quê?
A garota dá de ombros, mas por falha sua, a decepção em seu olhar
não passa despercebido por mim.
— Eu só quero saber onde está meu irmão — ela expira
profundamente. — Acho que ele é o único familiar que me resta. —
sussurra, com a decepção perceptível em sua voz.
Sinto um aperto familiar no peito, engolindo as lembranças que
insistem em me assombrar. Quando estava tão desesperado para lidar com
Kelly e tirá-la do domínio de Floyd, nada mais importava para mim, além
de garantir a sua segurança. Sendo assim, o seu sentimento me faz ser mais
compreensível do que eu gostaria, porque a sensação de sentir-se sozinho e
inseguro, mas estar sempre suportando todas as merdas por alguém, é tão
familiar.
Avanço dois passos lentos em sua direção, ajoelhando-me aos seus
pés para estar à sua altura e busco o contato visual. Não consigo entender
porquê estou fazendo isso, apenas sei que não ser compreendido neste
momento não vai facilitar a sua vida. Quero que ela saiba que está segura e
que é compreendida.
— O seu irmão está em um abrigo infantil desde a morte de sua
mãe. Não sei ao certo se é algum tipo de colégio educacional ou apenas um
orfanato, mas garanto a você, ele está seguro. — Ela finalmente ergue o
pescoço, conectando os nossos olhares. — Quanto ao seu pai, ele não
voltará. — Me esforço em lhe passar confiança no tom de voz, firmando
nossos olhares.
Mantenho as mãos firmes em meus joelhos, porque apesar de não
fazer ideia de onde vem a sua aversão ao toque, não pretendo deixá-la
desconfortável. Analiso suas esferas azuis como o oceano, brilhantes e tão
profundas, usando de todas as minhas forças para não acariciar seu rosto e
enxugar suas lágrimas.
Ela está diferente. Sou incapaz de encontrar vestígios de sua
inocência daquela noite, onde nada importava exceto realizar o maior
sonho. Ainda me lembro de como ela parecia devastada no palco, perdida
nos próprios pensamentos e provavelmente, culpando a si mesma por ter
falhado. Agora, apesar de machucada, seu semblante está tão... vazio.
Seja lá o que tenha a destruído, irei descobrir.
— Por que me ajudou? — Pergunta, abraçando os próprios braços
enquanto as lágrimas se misturam na ponta de seu queixo. — Quer dizer...
Como você sabe de tudo isso? Onde eu estou? Por que está aqui? Quem é
você, afinal? — Ela seca as lágrimas com a manga já úmida de seu suéter,
desviando o olhar para um ponto qualquer do quarto.
Solidão, é o que vejo em seus olhos. Um brilho além do que
costumamos chamar de vazio. Um breu inalcançável.
Por um segundo, me pergunto o que se passou em sua vida no
período em que não podia vê-la, afinal, ela se tornou um tanto inacessível
nos últimos anos. Não tenho dúvidas de que sua necessidade de ser notada
pelo pai não desaparecia como em um passe de mágica, e sabe-se lá o que o
desgraçado fez enquanto eu estive distante.
Naquela noite, ela me provou ser durona o suficiente para superar
minhas expectativas do que encontraria em uma filha de um cara como o
Sebastian. Ela é inteligente. Apesar de parecer assustada em minha
presença, não encontrei vestígios de seu medo aparente em seu semblante,
ela não deixou-se intimidar por mim. Há uma parcela de curiosidade que
me impulsiona a investigar cada parcela de quem ela é, e sei que não
poderei descansar até saná-la.
No entanto, sou incapaz de disfarçar a minha surpresa à sua frente
ao vê-la tão crescida e confiante a cada palavra que sai de seus lábios.
Você me surpreendeu, Clarke.
— Vai ficar me encarando como um esquisitão?
Limpo a garganta, contendo o sorriso orgulhoso que quase se forma
em meus lábios.
Deixo-a sentada na beira da cama e caminho até o banheiro
solitário, afundando as minhas mãos na água fria após despejar o papel
usado para acalmá-la no lixo. Em seguida, esfrego as mãos gélidas contra
meu rosto e olhos, a fim de amenizar a fervura em meu sangue.
Clarke não parece ser o tipo de garota que irá cooperar com as
nossas ordens, apesar de ter feito coisas assim por toda a sua vida. Isso me
preocupa. Sequer sei qual será a reação de Williams ao encontrar com a
mais nova moradora do prédio, entretanto, sei que não lidará perante a
situação com um sorriso de orelha a orelha e um "Meus parabéns, Jason,
ótimo trabalho".
Ele ficará puto e apesar de considerá-lo como um pai, acatar suas
ordens e colocar o rabinho entre as pernas como todos os seus demais
homens, não é muito a minha praia. Ele tem ciência disso.
Mas apesar de tudo eu o respeito o suficiente para entender a
quantidade de tempo que ele tem investido na academia. Todos os caras que
trabalham para ele, são treinados e especializados para lidar com gente
como Floyd, e caras - no geral -, que acham divertido olhar para uma vida
inocente com outros olhos enquanto batem uma punheta. Williams é o
justiceiro das garotinhas.
E talvez eu saiba o que de fato despertou a sua necessidade de lutar
por vidas inocentes.
Inicialmente, a academia era apenas um clube social onde os
homens se reuniam para praticar boxe e outros tipos de luta. Frequentei o
lugar quando adolescente e com a prática, me tornei um dos melhores
lutadores do lugar, claro, até descobrir que era mais do que apenas um
clube.
É claro que o ódio à flor da pele que sentia por Marcus Floyd
colaborou para a minha evolução nas lutas. Aquilo deixou de ser um
passatempo, e passei a usá-lo como terapia para quando estava irritado
demais para lidar com meu sentimentalismo.
Williams me apoiou em todas as etapas que passei até finalmente
abrir mão das minhas crises de raiva. Ou pelo menos, aprender a controlá-
la.
Lutar me acalma o suficiente para me manter na linha e não cometer
nenhuma loucura. Espero que isso funcione por muito tempo, porque não é
como se eu tivesse me esquecido de tudo que vivi em todos esses anos.
Sendo assim, não faço ideia de quanto tempo a minha raiva seguirá
apreendida.
— Você não me disse seu nome — uma voz doce e baixa o
suficiente para que apenas eu possa ouvi-la, desperta-me dos devaneios.
Giro o pescoço em direção a voz, deparando-me com olhos azuis
brilhantes e marejados encarando-me. Suas mãos parecem inquietas, ambas
brincando com alguns fios desfiados da manga de seu suéter escolar. Seus
cabelos loiros estão caídos até o início de sua cintura, contendo alguns fios
ainda colados ao seu rosto devido as suas lágrimas.
Reúno as sobrancelhas, examinando o seu olhar e tentando captar
algum tipo de expressão que me ajude a entendê-la. Contudo, olhos
transmitindo a mais dolorosa tristeza é tudo que consigo identificar, porque
há algum tempo eu era portador deste olhar.
Seus lábios rosados estão reprimidos e posso notar o subir e descer
de seu peito em uma respiração extremamente pesada. Há algo a
incomodando.
Giro sobre os calcanhares em sua direção e avanço dois passos
lentos, sem quebrar o contato visual.
— O que está te incomodando? — questiono-a. — Está com medo
de mim?
Clarke finalmente larga as mangas de seu suéter e mantendo os
olhos fixados aos meus, ela gesticula um não com a cabeça.
— Você não me assusta — revela, por fim.
Torço os lábios enquanto um vinco se forma ao meio das minhas
sobrancelhas, tornando o meu semblante um tanto confuso. Avanço outro
passo, fazendo com que a garota incline o pescoço para me encarar devido a
nossa diferença de altura.
Ela prossegue:
— Você não quer me machucar — murmura. — Não quis fazer isso
na Colombie — ela firma os nossos olhares e prossegue: —, e por algum
motivo, não acho que você queira me machucar agora. Você quer? —
questiona, enquanto noto o movimentar de sua garganta engolindo a saliva.
Reúno as sobrancelhas, movendo lentamente uma de minhas mãos
até o seu queixo, mantendo as suas esferas azuis com a atenção fixa em meu
semblante.
Inicialmente, mantenho a ponta dos meus dedos imóvel com a
intenção de não assustá-la. Ela não parecia muito confortável com o toque
físico há alguns minutos.
Mas para a minha surpresa, a garota entreabre os lábios e parece se
confortar com o toque repentino. Então com a sua autorização, realizo
movimentos circulares com o polegar lentamente na ponta de seu queixo.
— Você está segura — digo a ela, mantendo a minha compostura a
fim de demonstrar sinceridade em cada uma das minhas palavras. — Nunca
tive a intenção de machucá-la. — Engulo o nó fervoroso preso na garganta,
enquanto sou estudado por seu par de olhos azuis tão claros como o maldito
oceano.
Ela suga o nariz, permitindo que mais algumas lágrimas caiam de
seus olhos e tracem um caminho cauteloso até a ponta dos meus dedos
ainda pousados em seu queixo.
Clarke assente lentamente, e torna a brincar com a manga de seu
suéter, após desviar nossos olhares.
— O meu p-pai... — ela sussurra. — Ele... está morto?
Suavemente, afasto meus dedos do seu rosto, afundando minha mão
no bolso do moletom. Seus olhos encontram os meus mais uma vez,
desesperada por uma resposta.
Sinto um arrepio percorrer a minha espinha ao imaginar a razão para
que ela queira desesperadamente que Sebastian esteja morto. Enrijeço a
mandíbula e balanço a cabeça negativamente, tentando a todo custo, afastar
qualquer pensamento negativo sobre a sua vida que me faça perder a cabeça
outra vez.
— Ainda não.
— E você pretende matá-lo?
Sou pego desprevenido por sua pergunta inusitada, e acabo falhando
miseravelmente em esconder a surpresa possivelmente estampada em
minha cara.
— Você já me provou ser alguém recorrente à violência — diz ela,
umedecendo seus lábios rosados com a ponta da língua. — Talvez a sua
resposta me sirva como um acerto de contas por ter mentido para mim. O
que acha?
Reúno as sobrancelhas e engulo o nó que se forma em minha
garganta, encarando-a como se não tivesse a mínima ideia do que fazer com
alguém como ela. Ser recorrente à violência nunca foi um empecilho para
me manter distante, sempre soube que jamais faria absolutamente nada para
ferir um milímetro de sua pele, apesar de saber que ainda soa melindroso
demais para pessoas como ela.
Sempre achei que seria desprezado, que sentiria nojo de mim por
saber o que realmente faço para me manter vivo. O que me satisfaz.
E eu sequer cheguei a dizer isso a ela, mas parece que chegou às
suas conclusões sozinha. E de uma maneira ainda pior do que apenas
quebrar a cara de alguns idiotas por aí.
— Acerto de contas, é? — forço-me a dizer.
Encaro uma última vez o seu par de olhos claros e dilatados, antes
de afundar as mãos no bolso do moletom e retornar ao seu quarto.
Entretanto, seus passos cautelosos e firmes às minhas costas indicam que a
garota está me seguindo.
Talvez eu a esteja evitando.
Talvez nada tenha me preparado para encontrar um nível alto de
psicopatia a alguém que nasceu em um berço de ouro, e tem todas as razões
para ser uma princesinha. No entanto, está ocupada demais propondo um
acordo de assassinato com o homem que a persegue durante anos, intrigado
demais com sua existência e descontrolado o suficiente para não pensar
duas vezes em aceitar o seu pedido.
Soa prazeroso.
Soa irresistível. Perigoso.
Manter alguém desta maneira tão próximo a mim é perigoso, uma
arma, algo que vai além dos métodos que me levaram a roubá-la.
— Não foge de mim — sussurra ela às minhas costas. — Você
ainda não respondeu minha pergunta.
Giro sobre os calcanhares para observá-la, encontrando-a cara a cara
comigo, com o pescoço levemente inclinado e os olhos fulminando os
meus. Jesus.
— Você faz muitas delas.
— Mas eu me importo em saber a resposta apenas de uma delas.
Ergo o pescoço, firmando nossos olhares. A curiosidade que suas
palavras me causaram, exalando por meus lábios:
— E qual seria?
Noto quando Clarke umedece os lábios com a ponta da língua.
— Você pretende matá-lo? — pergunta, encarando os meu olhos
como se pudesse enxergar a porra da minha alma.
Mas que porra?
— Esta é a sua grande dúvida? — questiono-a, cruzando os braços à
altura do peito. — Não faça perguntas que não queira ouvir a resposta,
Clarke, porque independente do que ela causar em você, não pretendo
mudá-la.
A garota suspira, afastando alguns fios do seu cabelo caídos por seu
rosto e assim como eu, cruza os braços a altura do peito. Desta vez, seu
olhar percorre um caminho desde os meus pés até os meus olhos.
— Isso é um sim?
— Isso é um com certeza. — rispidez exala de meu tom de voz.
Seus braços descem, pairando ao lado de seu corpo enquanto um
sorriso quase imperceptível surge no canto de seus lábios. Entretanto, antes
que ela se dê conta do ato e retorna a sua postura habitual, eu capto a porra
do seu sorrisinho.
Malditamente divina. Um anjo corrompido.
Franzo o cenho, sem desviar meus olhos de suas feições. Ela acaba
de sorrir apenas ao mencionar a morte de seu pai. E ao observar seus olhos
desta vez, esperançosos, me dou conta de que talvez todos os meus esforços
para mantê-la segura, tenham sido falhos em algum momento. Não é como
se ela estivesse furiosa por seu pai ignorá-la por toda a vida, tem algo a
mais.
Sinto cada gota de sangue do meu maldito corpo ferver ao imaginar
o que caralhos Sebastian fez para que ela o odeie com tamanha proporção.
O que a levou a se tornar alguém tão oposto ao seu senso angelical.
— Por que isso importa? — Decido perguntar, sem fazer o mínimo
esforço para esconder a minha impaciência.
Clarke eleva o queixo, retomando a sua postura tão confiante que a
faz parecer anos à frente da idade que realmente possui. Sinto vontade de
perguntá-la o que o filho da puta causou para que desencadeasse a
indiferença que há alguns anos, não existia.
No entanto, engulo as palavras quando Clarke suspira e bate os
cílios algumas vezes, antes de firmar os nossos olhares em uma intensidade
maior do que há alguns minutos. Quase posso enxergar as faíscas do fogo
flamejante através de suas orbes felinas.
— Digamos que eu não acho que ele mereça viver — diz ela, quase em um
sussurro. —, e apenas por isso vou confiar em você. Você não vai me
decepcionar outra vez, vai?
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Corri tanto para longe de Lexie após o meu surto psicótico que não
quis saber para onde eu fugiria desta vez, apenas corri para longe. Não olhei
para o lado, não segui uma rota, não olhei as placas para me localizar na
cidade que só me habituei ao caminho de casa e para o café. Eu só queria ir
para longe, extravasar, gritar o mais alto que podia até o meu cérebro inchar
e explodir em milhares de pedaços.
Não conseguia respirar.
Não conseguia controlar o meu corpo, a minha mente, minhas
ações…
É como se eu estivesse no automático, habituada a lidar com as
explosões engatilhadas sempre pelo mesmo causador: o passado. É como se
um buraco estivesse impedindo que o ar chegue aos pulmões, não consigo
pensar, e não importa o quanto eu lute, sempre vou voltar para o mesmo
lugar, embora eu adore fingir que nada pode me machucar com tanta força.
Estar acostumada com a dor não significa que com o tempo ela deixa de
doer. Muito pelo contrário, cada vez que ela se manifesta, todas as malditas
vezes conseguem ser mais dolorosas do que a anterior.
De novo. De novo. De novo. Um ciclo vicioso.
Não me lembro de uma época em que eu tenha me sentido
confortável por estar em meu próprio corpo. Hoje em dia ele apenas
incomoda. Enoja. É como se eu não me sentisse limpa, como se a cada vez
que eu piscasse os meus olhos, pudesse sentir as mãos ásperas e
repugnantes em contato com a minha pele, deslizando, acariciando como se
eu pudesse sentir prazer. Como se eu gostasse.
Uma coisa que eu aprendi sendo o principal troféu da máfia mais
poderosa do país, é que não importa o quanto desesperada você esteja, eles
gostam. Eles adoram ver você correr. Ou tentar. São os maiores sugadores
de almas, pois nunca será o suficiente. Sempre querem mais, mais, e mais.
Até que não reste uma única alma intacta, sem um único arranhão.
Passei a acreditar que não é que eu seja especial. Eu sou resistente.
Eu luto. É o que eles mais adoram é um desafio, porque sabem que uma
hora ou outra haverá desistência. Ninguém consegue fugir por tanto tempo,
uma hora simplesmente passa a aceitar o seu destino.
No meu caso, eu tive que aprender sozinha a me defender, a levantar
barreiras, descobrir os limites… Foi assim que eu soube exatamente o que
fazer para fugir da prisão há alguns meses. Foi assim que me mantive viva
até aqui. E é assim que pretendo sobreviver até que todos sejam mortos.
Mas ele… ele é um outro assunto. É pessoal.
Não quero jamais ser deixada levar pelas emoções, quero que sua
queda seja tão dolorosa quanto foi a minha. Quero que ele sinta a dor da
traição, a dor da frustração e do arrependimento. E não, não há
possibilidades que eu o perdoe. Não quando tudo de bom em mim foi
destruído graças ao rompimento de suas promessas.
Desta vez, no entanto, me sinto impotente. Era fácil odiá-lo nas
sombras de sua ausência, sem que tenha decidido retornar para a minha vida
como se eu ainda o pertencesse. Não é como se eu estivesse disposta a
deixá-lo ter algum tipo de poder sobre mim após anos consecutivos de
sofrimento. Ele não merece essa merda. Porém, isso não impede com que o
meu subconsciente reaja às memórias ruins que a sua existência
desencadeia.
São tantas coisas. Tantas merdas. E eu só quero ser a porra de um
ser-humano normal.
É um novo dia, no entanto, sei que novas lutas brotarão como a
grande azarada que sou.
Sinto as lágrimas brotarem em meus olhos e reajo, balançando a
cabeça e negando a porra da permissão aos meus olhos para que as deixem
cair. Deixo de encarar o pequeno riacho ao lado do parque e torno a
caminhar, desta vez, finalmente decidida a voltar para casa. No entanto,
levo uma das mãos ao cós de minha jeans quando sinto o meu corpo colidir
contra algo, ou alguém.
Meus dedos alcançam o revólver e estou pronta para engatilhar
quando finalmente ouço sua voz.
— Ah, merda! — resmunga. — Desculpe, você está bem?
Sopro algumas mechas do meu cabelo que despejaram-se para fora
do meu capuz na colisão. O encaro, deparando-me com um par de olhos cor
de avelã e fios escuros totalmente bagunçados no topo de sua cabeça. Ele
não parece sequer surpreso, e por mais que eu não seja obcecada em passar
metade do meu tempo encarando as pessoas e registrando seus respectivos
rostos em meu cérebro, tenho certeza de que nunca o vi por aqui. O cara de
mais ou menos vinte e poucos anos franze o cenho, analisando-me por
breves instantes e tudo o que faço é aprumar a minha postura, afundando as
mãos no moletom outra vez antes de encarar seus olhos. Seus olhos
escorregam até o volume aparente sobre o moletom causado pela arma, e eu
pisco, esperando que seja apenas uma análise inocente.
— Estou bem, obrigada. — murmuro, prestes a dar meia volta e
sumir daqui.
— Ei, espera! — me viro, olhando-o.
O garoto sorri sutilmente, estendendo a mão direita em minha
direção. Sem esconder minha surpresa, encaro a sua mão sem apertá-la.
Não é como se eu estivesse acostumada com essas coisas de cumprimentar,
e tal.
— Você deve apertá-la e dizer o seu nome — esclarece,
gesticulando com a cabeça em direção a sua mão. — Como uma forma de
se apresentar de volta, sabe? — Ele inclina levemente a cabeça para o lado.
Um sorriso sutil enfeitando seus lábios.
Encaro seus olhos ao comprimir os lábios em uma linha reta.
— Por que eu faria isso?
O garoto engole em seco e puxa a sua mão de volta, a afundando no
bolso frontal do seu jeans. Imediatamente me arrependo de ter sido
grosseira e lhe ofereço um sorriso exagerado, como se estivesse prestes a
dizer a coisa mais engraçada do mundo.
— Você pode ser um maníaco, ou talvez esteja me perseguindo para
obter informações sobre o meu paradeiro e ir correndo repassar a
informação para o seu chefe que está me procurando em cada canto do
mundo, muito a fim de me matar.
As palavras saem rapidamente dos meus lábios, quase que de forma
automática.
Nós nos encaramos cerca de dois segundos antes que o
desconhecido caia em uma gargalhada, revelando os seus dentes brancos e
nivelados. Eu, por minha vez, forço um riso totalmente mal articulado para
que não me pareça como uma maluca desvairada.
— Isso foi muito específico — seus olhos diminuem conforme ele
gargalha, no entanto, ainda consigo identificar a coloração avelã marcante.
— Eu sou o Michael, mas não precisa me dizer o seu nome. Não se
preocupe. — O garoto ergue as mãos em sinal de rendimento, ainda
sorrindo.
Mordo os lábios para disfarçar tamanho constrangimento. Talvez eu
tenha começado a acreditar que o meu passado está me deixando maluca.
Cristo... eu realmente não nasci para socializar com o resto do mundo.
— Foi um prazer conhecer você, loirinha — diz ele, desviando os
olhos para os fios do meu cabelo que estão para fora do capuz e passando
por mim lentamente, até que esteja literalmente ao meu lado. — Muito
cuidado por aí, ouvi dizer que essas estradas são perigosas.
Assinto, observando seus passos lentos e cautelosos, como se
estivesse perdido ou algo assim. Desconfiada, mantenho meu olhar em sua
figura distanciando-se. Assim como eu não deveria estar nesta estrada
sozinha, acredito que ela também seja perigosa para as demais pessoas.
Neste caso, o que ele está tentando insinuar?
— Você não estava indo para o outro lado? — o questiono ao notar
seus passos lentos para a direção oposta que estava indo antes de nossa
colisão. Se nos esbarramos, ele deveria estar indo para o outro lado.
Seus passos cessam, então, novamente o garoto gira sobre os
calcanhares e seus lábios se comprimem ao gesticular um aceno com o
polegar na direção oposta.
— Claro. O outro lado.
Ergo uma das sobrancelhas, analisando-o por completo. Observo
suas botas enlameadas, os passos rígidos, as roupas clássicas para um
californiano, os olhos profundos e curiosos… Ele não faz esforço algum
para não parecer um suspeito. Seus olhos continuam fixos nos meus
enquanto se distancia lentamente, quase como se não pudesse desviá-lo.
Ele me olha como se estivesse intrigado com a minha aparência.
E são poucas as pessoas que o fazem, geralmente são aquelas que
desejam me arruinar.
— Boa noite, loira.
Não respondo.
Dou as costas a ele.
Caminho em silêncio enquanto o vento espanta os meus fios de
cabelo para longe. Olhando para trás, eu o vejo exatamente como pensei
que estaria: me olhando de volta.
Meus sentidos se apuram no momento em que minhas mãos passam
a suar dentro dos bolsos do moletom. Respiro fundo e desvio o olhar. Ele
não é um pedestre comum. Vejo isto em seus olhos, vejo na forma como ele
parece me observar como se eu fosse divina, como se quisesse passar mais
tempo do que o necessário olhando para mim.
Meu coração espanca o meu peito e sopro um ar agonizante,
apressando o passo de volta ao meu caminho como se minha vida
dependesse disso. Então é isso. Eles me encontraram.
Minhas pernas tremem. As memórias latejam a minha cabeça e me
fazem duvidar da força que eu pensava possuir, a que eu costumo
demonstrar para todas as pessoas. Mas há alguém para quem eu não posso
mentir, ocultar, enganar, manipular. Esse alguém sou eu. Eu sei o que estou
sentindo neste momento, sei que me sinto dilacerada por ter o meu anseio
tirado de mim mais uma vez, por ter que lutar quando tudo o que quero é
viver. Por ter que vestir a máscara da frieza quando tudo o que eu preciso é
sentir. Extravasar.
Os humanos costumam fazer isso para que se sintam melhor. Para
que se sintam descarregados.
Mas eu me recuso a ser como eles, pois é ao fazê-lo que minha
mente entenderá que pode simplesmente tornar-se humana. Sentir. E eu não
posso, pois mesmo que eu despreze os ensinamentos de meu pai, uma coisa
que ele costumava dizer é algo que eu nunca me esqueci.
— Sentimento é uma arma quando na mão de pessoas erradas,
sempre recorrem a ela quando precisam atingi-la.
Pois bem, querido pai. Você é um grandíssimo bosta, quem diria que
me ajudaria a enfrentar grandes adversidades.
O único capaz de acender alguma chama dentro de mim é Josh, e
por ele eu incendiarei o mundo e lutarei para estar viva, mesmo que tenha
que abdicar de tudo aquilo que me satisfaz. Começando por esta cidade.
É hora de viajarmos para longe mais uma vez. O suficiente para
fazê-los me caçar como completos imbecis.
Eu não vou voltar para lá. Não posso voltar.
Eu não posso. Não posso. Não posso. Não posso.
Olho para trás novamente ao chegar no centro da cidade, buscando
por qualquer sinal do homem da estrada. Não vejo nada além da rua escura,
iluminada pelos postes sobre minha cabeça. Ele desapareceu em meio à
escuridão. Meu peito sobe e desce em busca de um fôlego que estava
prendendo desde que praticamente desapareci daquela estrada. Atordoada,
encosto contra uma das paredes da calçada para respirar, no entanto, é
quando o faço que ouço murmúrios e pancadas próximo de mim.
Merda.
O som de algumas buzinas desperta-me dos devaneios e varro as
ruas com o olhar a fim de me certificar de que não há um carro prestes a me
atropelar.
Entretanto, o som de alguma discussão não muito distante chama
minha atenção. Olho ao redor até encontrar um carro próximo a um
estabelecimento de tatuagem, os faróis minimamente acesos e ambas as
portas arreganhadas, atrapalhando o percurso dos demais carros que
transitam pela rua. O que claramente foi o motivo das buzinas.
Finas gotas de chuva caem sob o meu capuz e trinco os dentes,
sentindo um arrepio percorrer todo o meu corpo até a ponta dos meus pés.
Está frio.
Quando raios começou a chover?
— Vá se foder, cara! Estou dizendo, eu não fiz absolutamente nada!
— resmunga um dos homens ao ser arrastado pelo capuz para fora do
estabelecimento. O cara que o segura está totalmente vestido de preto com
um gorro tapando a sua cabeça, e não parece estar muito a fim de prolongar
a conversa.
Remexo as minhas mãos dentro do tecido de lã e varro a rua com o
olhar, não encontrando nada além de carros transitando e poucos pedestres
que parecem não se importar com a discussão do outro lado da rua.
Eu não deveria agir como uma fofoqueira de merda, deveria apenas
seguir com o meu caminho e deixar de prestar atenção no que não me
convém. Entretanto, sigo encarando o cara de preto atirar o corpo do
homem contra o capô do carro.
— Por que caralhos eu deveria acreditar em você, Stuart? — rebate,
agora com as mãos no colarinho do moletom do cara, aproximando os seus
rostos.
— Turner, cara... Estou te dizendo, eu não tenho nada a ver com
esquemas de prostituição e essas merdas — o homem tenta desvencilhar-se
do agarre, portanto, o outro reforça o aperto. — Eu estou aqui trabalhando e
tentando dar uma boa vida para a minha filha! Acha que eu tenho tempo
para me envolver com caras barra pesada? — Choraminga, arrastando a
sola de seus pés contra o asfalto.
— Você não tem filhos, Stuart — vocifera, erguendo o corpo do
homem pelo moletom com facilidade. — Você é um fodido que mora com a
mãe aos trinta e dois e solteiro. Acha que eu sou algum tipo de imbecil?!
O som de um sino indicando que a porta do estabelecimento foi
aberta preenche a rua, revelando outro cara alto e bem agasalhado,
carregando alguns papéis e um computador nas mãos. No entanto, o cara
com o gorro na cabeça não parece se importar com a presença do homem,
pois no mesmo segundo, ergue o seu punho direito e o acerta contra o rosto
de Stuart, fazendo o seu corpo cambalear para trás e colidir contra o capô
do carro, deslizando rapidamente para o asfalto devido a umidade do capô.
Mais buzinas ecoam quando o corpo de Stuart quase é atropelado
por um carro.
— Entra no carro.
— Eu não vou entrar na porra do seu carro, Turner! Estou no meio
de uma sessã... — Stuart é interrompido quando o cara posiciona a sola de
sua bota em seu pescoço, forçando-o a encará-lo.
— Entra na porra do carro!
Sinto a minha respiração acelerar quando o olhar do cara com o
computador cai sobre mim. Merda. Rapidamente torno a caminhar, tentando
a todo custo esconder o meu rosto entre o meu capuz.
Não sei o que estava acontecendo ali, mas, eu não estou nem um
pouco a fim de descobrir. No momento, estou xingando mentalmente todas
as minhas prováveis gerações passadas por me tornarem tão fofoqueira!
Não ouso olhar para trás, apenas acelero o meu passo e viro na
primeira curva a fim de estar longe o mais rápido possível. Estou me
escondendo de criminosos perigosos e não tenho a intenção de me envolver
com mais deles.
Será que é tão difícil assim me manter longe de problemas?
— Ei, você aí!
Estremeço. Um arrepio fervoroso percorre cada canto do meu corpo
e tudo que quero é simplesmente correr por todas as ruas até simplesmente
desaparecer da vista de qualquer um. No entanto, apenas sigo caminhando
como se não tivesse escutado absolutamente nada.
— Garoto! Tô mandando você parar!
Remexo as minhas mãos por baixo do meu moletom a fim de
encontrar minha arma, e quando sinto a ponta dos meus dedos colidirem
com o metal, prendendo-o entre os meus dedos, giro sobre os calcanhares,
pronta para apertar o gatilho e estourar os seus miolos se ele tentar alguma
gracinha. Ele vai me seguir até o inferno, então, não há outra alternativa a
não ser enfrentá-lo. Girando o meu corpo em sua direção, vejo a sua
silhueta próxima o bastante para tocar em mim, mas antes que o faça, eu
sou mais rápida em apontar a minha arma diretamente em sua carótida.
Próxima o bastante para machucá-lo e longe o suficiente para não causar
uma ferida profunda.
Estou engatilhando esta arma vezes demais no dia de hoje.
Os seus olhos bem contornados e arregalados são a primeira coisa
que encontro, seguido de seus lábios entreabertos e as mãos erguendo-se em
sinal de rendimento lentamente, como se estivesse indicando que não quer
me machucar. Entretanto, quando franzo o cenho e comprimo os lábios ao
notar suas mãos retirando o capuz de seu moletom, sou surpreendida ao
reconhecê-lo.
— Mas que merda?
— Ora, mas que surpresa!
Balanço a cabeça negativamente e abaixo a arma lentamente,
observando o curvar de seus lábios em um sorriso de canto.
— Naten Hyuk — murmuro o seu nome em um sussurro, incrédula
por vê-lo.
— Eu também senti sua falta, se quer saber… — Naten sorri,
erguendo os seus braços em minha direção.
Argh! Seu senso de humor péssimo continua o mesmo.
Faço uma careta.
— Que porra é essa? Reuniãozinha do Scooby-Doo para desvendar
o grande mistério por trás da cidade?
Naten umedece os seus lábios e olha para trás, parecendo certificar-
se de que estamos a sós.
— Agora você xinga, estou impressionado. — Torna a me encarar,
gesticulando com a cabeça em direção ao revólver ainda em minha mão. —
E anda armada por aí. Que merda é essa, garota? Virou algum tipo de
Batgirl?
— E você virou um delinquente — murmuro. — Pensa que eu não
vi a sua invasão no estabelecimento? Está baixando de nível, Hyuk. Pensei
que seria algum tipo de hacker indestrutível que acabaria com esse governo
de merda, mas você apenas invade estabelecimentos e agride senhores de
idade. — Estalo a língua. — Que grande decepção.
Naten sorri, fazendo com que seus olhos diminuam bruscamente.
Naten nasceu em Nova York, mas seus pais são coreanos. Logo, os
seus fios de cabelo são extremamente negros e caídos pelo seu rosto claro, e
os olhos são miúdos, coisa que eu acharia extremamente fofa se não
estivesse com vontade de matá-lo aqui e agora.
— Quanto a isso não estou impressionado. Você sempre foi uma
fofoqueira. — Ele avança um passo e aproxima os lábios do meu ouvido,
sussurrando: — E para o seu governo, eu não sou um delinquente. E sim, eu
estou tentando destruir um esquema perigoso do governo e aquele cara que
você viu o meu amigo espancar, faz parte de um grupo de caras
extremamente cuzões que merecem arder no inferno. Então não, não baixei
o meu nível. Muito cuidado, boneca, as aparências enganam. — Ele se
afasta, fixando os nossos olhares. O seu, exalando divertimento.
Afundo o revólver no bolso do meu moletom e me esforço para não
desviar os nossos olhares.
— Isso não muda o fato de que você é a porra de um traíra.
Ouço o som de sua gargalhada, e firmo os nossos olhares. Sinto
vontade de perguntá-lo o que está fazendo aqui e qual é a do plano de todos
eles ao reaparecer de repente na minha vida e acreditar que serão bem
aceitos. No entanto, demonstrar o meu interesse em qualquer um dos
assuntos que envolvem a academia de Williams, é tudo que eu não desejo.
Não pretendo viver outro inferno como aquele. Aprendi a minha lição.
Vivenciar memórias do passado está fora de cogitação.
— Existem pessoas que precisam seguir ordens — murmura,
recuando alguns passos e envolvendo o seu lábio inferior entre dois dedos.
— Pessoas que entendem que o mundo não gira ao redor de suas
necessidades. Você entende isso, Clarke?
Bufo um riso carregado de ironia.
Odeio quando me chamam assim.
— O que eu não entendo, Naten, é como você consegue olhar nos
meus olhos e falar sobre seguir ordens — digo a ele. — Eu segui a porra
das ordens, fui obediente, esperei pelo momento certo para conseguir ter a
vida que tanto sonhei. Ao invés disso, fui apunhalada pelas costas. Então
me diga, de que serve a porra das ordens? O que elas podem garantir? —
questiono, sem me dar conta de que o meu tom de voz já não é suave. Posso
sentir a pele do meu rosto queimar como brasa.
Naten entreabre os lábios para responder ao meu questionamento,
entretanto, não lhe dou oportunidade de seguir.
— Não seja um burro do caralho, e tampouco acredite que eu sou.
Espero que todos vocês queimem na porra do inferno, porque no fim são
todos farinha do mesmo saco!
Encaro o seu par de olhos atentos uma última vez antes de girar
sobre os calcanhares e tornar a caminhar em direção a minha casa.
Entretanto, sou interrompida com o soar de sua voz rígida e zombeteira.
Cesso o passo.
— Você está chateada, Clarke, e eu entendo os seus motivos. Não
estou aqui para te julgar — a luxúria desapareceu de seu tom de voz, que
agora, exala rigidez. —, mas não seja a porcaria de uma egoísta. Todos nós
temos motivos para atitudes duvidosas e que nem sempre serão do nosso
agrado, mas essa é a porra da vida! As coisas não se resolvem com
mudanças de comportamento e ameaças constantes, garota. Geralmente,
quando existe algum problema, as pessoas normais sentam e tentam
entender os dois lados da moeda.
Eu me viro para encará-lo.
Travo a mandíbula.
Ele prossegue:
— Mas você apenas foge, desaparece do nosso rastro e segue com a
sua vida odiando todas as pessoas por algum motivo que criou na sua
própria mente! — Ele pausa ao puxar o ar com certo desespero. Quero
contrariá-lo, porque nada disso é o que parece. Tudo está errado e ele é um
idiota por pensar desta forma. Mas não o faço. — Você nem ao menos nos
perguntou diretamente o que de fato aconteceu. Lexie me contou que
decidiu revelar a verdade sobre a verdadeira identidade para você,
simplesmente, porque estava lhe partindo o coração ver você tão assustada
com tudo e com todas as pessoas.
Engulo em seco ao avançar um passo em sua direção.
Minha pulsação explode a cada lufada de ar pesado que é liberada.
— E o que isso importa?!
Suas mãos passeiam entre os seus fios negros, enquanto um sorriso
carregado de nervosismo ocupa os seus lábios.
— Aquela garota enfrentou coisas tão horríveis quanto você. Lexie é
a garota mais forte que eu conheço e a mais corajosa, você sabe por quê? —
Questiona, cruzando os braços e trancando a mandíbula.
As palavras parecem desaparecer do meu vocabulário e já não sou
capaz de raciocinar, e, antes que me dou conta, estou negando. A boca
abrindo várias vezes ao tentar formular um contra-argumento decente.
Mas eu falho.
— Porque a melhor amiga dela se tornou uma garota egoísta que
não pensa em nada além de si mesma e não consegue enxergar os
problemas das pessoas porque para ela, nenhum sofrimento é válido e tão
doloroso quanto o dela — diz ele. — E ainda assim Lexie não consegue
desistir dela. Isso se chama empatia e solidariedade, Aspen, coisa que você
não tem. E me atrevo a dizer que, certamente, Sofia Clarke teria.
Sem perceber, arregalo os olhos. Caramba. Ok. Merda!
Fui pega desprevenida com as suas palavras tão cruéis para o nível
Naten. Entretanto, talvez o choque não tenha sido por suas palavras e sim,
talvez, por saber que não estão erradas.
Sentimentos são armas quando na mão de pessoas erradas.
Eu sei que fui agressiva demais com Lexie no outro dia. Não que o
real motivo da minha raiva esteja errado, mas, sei que exagerei. Não estava
enxergando o quão cruel eu havia sido, até Naten me dar um choque de
realidade há alguns poucos segundos. Tudo bem. Fui uma grande babaca
sem noção. Mas ela também errou comigo.
Assim é a vida. Você recebe aquilo que oferece.
— Espero que você reflita sobre as suas atitudes recentes,
bonequinha. Ninguém aqui quer machucar você. — Naten zomba ao
cantarolar o apelido extremamente ridículo que me deu há anos atrás,
fazendo com que eu desperte dos devaneios.
Ergo o pescoço para encará-lo, sem notar em que momento eu o
abaixei.
É notável o quanto Naten mudou desde a última vez em que nos
vimos. Seu rosto está maduro, e seus músculos definidos. Apesar de
inicialmente o seu semblante estar divertido e aéreo como nos velhos
tempos, a sua atual expressão deixa bem claro que Naten já não é um garoto
tão brincalhão. Ele se parece com um homem. Aqueles com
responsabilidades e que sabem o momento certo de encerrar com a
brincadeira.
Talvez essa seja a razão por estar tão surpresa por suas palavras. Me
pergunto o que ele teve que passar para se tornar mais frio do que o
habitual, mas afasto os pensamentos no mesmo instante. Não me importo.
— O que você está fazendo aqui, afinal? — eu o questiono, em uma
tentativa de mudar o rumo da conversa e me sentir menos constrangida.
— Eu moro aqui.
Franzo o cenho, sem compreender o que de fato ele quer dizer
com... morar aqui.
— O que você quer dizer com isso? — questiono, antes de torcer os
lábios ao sentir o vento frio contra o meu rosto.
Naten inclina o corpo em minha direção no mesmo segundo, após
varrer a rua com o olhar e fixar os nossos olhares.
— A sua raivinha vai acabar sendo um desperdício quando você se
der conta de que essa cidade não é o seu território. Tudo acontece como nós
queremos que aconteça, Aspen. — ele diz, afastando-se de mim pouco a
pouco. — E se você está aqui, é porque nós queremos que esteja.
Engulo o nó na garganta, sentindo-me um pouco confusa com o que
acaba de sair de seus lábios.
Desde o início, sempre esteve claro que a academia era como uma
gangue de caras dispostos a darem as suas vidas pela missão. Eu nunca
consegui me tornar uma deles, por ser nova demais para lidar com questões
criminosas. No entanto, não participar do grupo e ser burra são coisas
extremamente opostas. Eu não era uma completa idiota.
Eu costumava estar sempre atenta, observando e captando todos os
movimentos de todos os integrantes da academia. Eles são ossos duros de
roer. O treinamento intensivo de alguns duravam quase doze horas, e quase
todos eles ocorriam pela madrugada. E apesar de ter em mente que todos
eles estão ali para cumprir o mesmo objetivo, nada nunca irá ocultar o fato
de que ele é como um líder.
Naquela época, os treinamentos para Jason eram reduzidos. Sempre
reduzidos. Nunca presenciei um de seus treinamentos que tenha durado
mais de uma hora. Ele sempre pareceu estar à frente de qualquer um. Jason
é calculista e previsível, e digo isto porque pude presenciar milhares de
vezes em que ele demonstrou ser bom em armar planos.
Ele sabe de tudo. Ele é a porra de uma pedra no meu sapato. E após
as palavras de Naten, tenho ainda mais certeza de que minha presença em
WonderFall não é por acaso.
Quando eu finalmente me libertei da prisão de Floyd, eu estava tão
quebrada e amaldiçoada que não conseguia entender como tudo aquilo
estava acontecendo comigo. Eu não entendia como podia ser merecedora. A
negação foi a minha melhor amiga, foi com sua ajuda que consegui ignorar
as sensações desconfortáveis de ter sempre algum toque indesejado sob
minha pele, foi com ela que eu aprendi a me proteger, a levantar o meu
escudo e aprender a ser tão cruel quanto o resto do mundo pode ser.
No entanto, ainda que naquela época eu tenha sido árdua na maioria
das vezes porque antes de permitir sentir a minha própria dor, eu só queria
mesmo cuidar de Josh. Dar a ele uma vida aparentemente feliz, e só então
eu poderia me preocupar com os meus demônios. Mas nada me preparou
para a manipulação da Revolução. Eu os subestimei.
Eles sempre saberão onde eu estou.
Sempre farejam o meu cheiro.
Sempre encontram uma forma de me manipular para que as coisas
saiam exatamente como querem que saia. E agora eu sei.
— Essa não é uma cidade pequena e segura, não é? — sorrio
amargamente. — Eu fui atraída para o ninho de vocês.
Burra.
Do.
Caralho.
— Não — ele gira sobre os calcanhares, encarando-me. — Digamos
que é apenas uma garantia.
— Garantia?!
Posso notar o aumento do meu tom de voz, mas definitivamente não
me importo.
Mais uma vez.
Enganada. Mais uma porra de vez.
— Jason do caralho. — Naten resmunga, levando as mãos até os
olhos, onde os esfrega impacientemente.
Eu me aproximo, sentindo o meu rosto ferver ao sentir tamanha
raiva. O vento frio e as gotas finas de chuva já são insignificantes para mim.
Cesso o passo quando estou a sua frente, e ao notar a minha
presença, Naten me encara com o seu par de olhos curiosos.
— Eu poderia matar você agora. Poderia encontrar diversas
maneiras de fazer com que você me enxergue com outros olhos — sinto os
meus olhos queimarem, ainda assim, firmo os nossos olhares enquanto as
palavras saem de forma automática de meus lábios em pura rigidez. — Não
sou mais uma criança que vocês podem domar como quiserem. Não sou a
porra de uma marionete, Hyuk. Eu tenho vontade própria e sei me defender.
Não pense que apenas porque temos um passado amigável, vou poupar
você de um sofrimento equivalente ao meu. Não somos amigos e não
preciso de nenhuma ajuda ou proteção sua ou de quem quer que esteja
dando a maldita ordem!
Respiro fundo, sentindo o meu peito doer por passar alguns minutos
sem respirar. Eu sequer percebi que estava prendendo a respiração.
Eu espero que Naten sorria ou apenas arrume uma forma de zoar
com a minha cara como sempre faz, ou apenas... acabar com a minha raça
como fez há algum tempo quando o assunto era Lexie. Mas, ele não o faz.
Surpreendentemente, ele assente.
— Lindas palavras — ele ergue o capuz, e noto o seu pomo-de-adão
mover-se quando engole a saliva. — Mas não sou eu o merecedor delas.
Você quer culpar alguém? Entre no estabelecimento. Faça um acerto de
contas de uma vez e deixe-me fora de ameaças e toda essa merda de vocês.
— Naten gesticula com a cabeça em direção ao estabelecimento onde eu o
vi há alguns minutos. — Jason do caralho, sempre me fodendo com a porra
do trabalho sujo. — ele murmura, e desta vez, percebo ser mais para ele
mesmo, do que para mim.
Franzo o cenho, desviando o meu olhar para um canto qualquer.
Isso quer dizer que...? Era...?
Era ele?
Jason estava bem na minha frente por todo o tempo em que estive
bisbilhotando a briga na frente do estabelecimento. Ele estava bem na
minha frente. Meu Deus. Eu poderia estar encontrando formas de matá-lo
agora mesmo, ou por todo o tempo em que estive discutindo e ofendendo
Naten de todas as formas possíveis, mas o idiota do Hyuk pensou em me
dizer isto apenas quando eu o ameaço de morte.
Se eu soubesse que era apenas fazer isto, teria feito antes.
— Tem uma porta nos fundos. Você precisa entrar no beco do lado
direito e virar a primeira esquerda, abra a segunda porta e pegue a chave
que estará debaixo do tapete brega de boas-vindas. — Ele me guia e eu ergo
o olhar, encarando-o como uma abobada. Hyuk parece notar a minha
confusão, pois faz uma careta e dá de ombros. — Leve isto como um acerto
de contas. Estou cansado de ouvir os seus resmungos que pertencem a outra
pessoa.
— Obrigado — agradeço. Afundo as mãos no bolso do meu
moletom e arrumo o meu cabelo que já estava praticamente para fora do
capuz. — Mas ainda estou decidindo o que farei com você.
Ele sorri sem mostrar os dentes.
— Estarei esperando.
Dou de ombros e passo por ele, caminhando em direção ao
estabelecimento.
Não espero por alguma resposta de Hyuk, apenas movo as minhas
mãos por dentro do moletom ao empunhar a arma que parece faiscar por
finalmente ser útil para algo interessante. Um acerto de contas.
NEW YORK - 2019
ANTES

— Escutem, a Luxury não está agindo. — anuncia Williams,


encarando a todos nós com o pescoço erguido e a postura firme. — Até
agora, temos a informação de que Floyd está disposto a firmar uma trégua.
Enrijeço a mandíbula e não desvio os meus olhos de Williams por
um segundo sequer. A minha mão descansa acima da arma presa no jeans, e
a minha mente viaja para longe do salão de treinamento, temendo o que virá
a seguir.
Essa é uma reunião geral. Nada de separação entre os batalhões e
seus respectivos níveis. O que significa, que seja lá o que Williams esteja
prestes a nos dizer, não é assunto para apenas um batalhão resolver. E isso,
particularmente, não me traz boas sensações.
Todos os caras estão no centro do salão, totalmente concentrados em
Williams. O lugar está iluminado apenas pelo raio de luz que adentra pelas
poucas janelas. Não passa das quatro da manhã, e reuniões a esta hora são
consideradas alerta amarelo, onde, precisamos estar atentos e esperando
pelo pior.
— Ele sabe que estamos na cola dele, e talvez seja por isso que uma
trégua seria uma boa distração. Ele quer nos tirar da reta. — continua,
vagando o olhar por cada um dos seus homens, até congelarem nos meus.
Williams não é um imbecil, tampouco burro. Ele sabe que trégua
significa "ganhar tempo", no mundo colorido de Floyd. Além de que, seu
olhar cauteloso e distante, me dá a entender que não é apenas isso, ele está
escondendo algo de nós.
Vivi mais de quinze anos sob o mesmo teto que Marcus Floyd e
posso dizer que as suas tréguas nunca saem baratas. Ele faz com que você
acredite que a poeira baixou e tudo ficará bem, e então, tudo desmorona em
um piscar de olhos e você se sente o ser humano mais patético do mundo. É
assim que funciona. Depois disso, você percebe que a poeira nunca baixou
e que na verdade, o carnaval de areia estava se preparando para iniciar uma
tempestade ainda maior do que se esperava.
— Tréguas normalmente tem um preço — interfiro, atraindo olhares
de todos os caras presentes no salão, inclusive o de Williams.
Williams me observa por cerca de cinco segundos fixamente, com
sua expressão transmitindo tudo de ruim que poderia foder com a gente.
Firmando os nossos olhares, eu compreendo que o que está por vir não será
bom. Ele junta as palmas das mãos e desvia o olhar, retornando à sua
postura.
— Sim — concorda. — Eles querem a garota.
— Não vai acontecer — respondo instantaneamente, sem esperar até
que seus olhos encontrem os meus novamente. — Essa merda está fora de
cogitação, Williams.
O silêncio ensurdecedor continua no salão enquanto os meus olhos o
observam coçar a sua barba com dois de seus dedos. Hyuk, ao meu lado,
balança a cabeça negativamente e quase penso que ele pede em um sussurro
para que eu me mantenha calmo, no entanto, estou tão ocupado fuzilando
Williams, que todas as outras coisas ao meu redor tornam-se inúteis.
Vamos lá, apenas tente - o desafio visualmente, esperando por uma
resposta ansiosamente.
De repente, o batalhão desaparece do salão, os seguranças somem e
Naten evapora. Só consigo enxergar Williams e a sua quase cogitação de
que aceitará a oferta de Floyd. Então, ele coça a nuca e corta o nosso
contato visual, aparentemente se dando conta de que essa é literalmente um
caso de vida ou morte. Ele sai vivo dessa conversa e nós resolvemos o
problema de uma maneira prudente, ou um de nós morrerá no processo.
— Não sabemos se é um blefe. Ele foi específico quando disse que
não voltaria a agir se nós entregássemos Clarke.
— E que porra isto significa? — Procuro saber.
— Os sites da Luxury caíram. As publicidades, vídeos, fotos... Tudo
desapareceu. — Esclarece, balançando a cabeça como se estivesse preso em
uma batalha mental para desvendar o mistério. — Não temos uma única
pista do lugar que ocorrem os sequestros e se realmente nós não estamos
perdendo a porra do tempo. Não sabemos quem trabalha para a Luxury e
como exatamente conseguiram a informação que a garota está conosco. —
Leva as mãos à nuca, parecendo perturbado. — Eles têm a mesma
facilidade em subir e descer matérias na web que nós temos. Sendo uma
cilada, ou não, eles não estão para brincadeira.
Hyuk avança um passo, as mãos para trás e os olhos fixos em
Williams. Sigo o seu movimento, finalmente desviando o olhar até ele.
— Acha que eles também possuem hackers?
Todos os caras do batalhão voltam o olhar para Williams, esperando
por uma resposta. Williams respira fundo, mas mantém a tranquilidade de
sempre quando responde:
— Acho que há mais gente por trás da Luxury do que imaginamos.
Hyuk e eu nos entreolhamos, ambos com a expressão desconfiada
no rosto.
Nunca foi um segredo que Floyd é inteligente o suficiente para usar
todos os nossos recursos contra nós mesmos. Temos acesso a todo o banco
de dados deles graças ao Hyuk, suas habilidades são primordiais, contudo, o
perdemos há algumas semanas quando aparentemente o login foi bloqueado
por algum tipo de vírus. Perdemos a maioria das nossas informações mas
ainda tínhamos o suficiente para seguir, mas desta vez, não esperávamos
que talvez possamos ter encontrado um oponente à altura.
— Qual é o plano, então? — pergunta Garrett, um dos melhores
homens do batalhão secundário.
— Williams! — Naten intervém, em um rompante, como se algo
tivesse brilhado em sua mente. Talvez uma informação. — Precisamos
formatar todos os computadores, drives, HDS, e qualquer outra fonte de
armazenamento. E rápido.
De repente o lugar vira uma muvuca infernal, todos se
movimentando de um lado para o outro, seguindo as instruções de Hyuk
para fazer o que for necessário. Williams não intervém na atitude do meu
amigo, talvez por confiar em nós o suficiente para não julgar as nossas
decisões, planos, e absolutamente todas as coisas que envolvem o bem da
nossa missão. Ele nos conhece o suficiente para isso. Somos um time. Uma
família.
Observo Naten reunir a sua equipe, instruindo-os até o andar dos
arquivos e fazer exatamente o que ele sugere. Todo o restante de nós
continuamos no mesmo lugar, observando o tumulto e aguardando até que
ele esclareça a merda que está acontecendo.
Cruzo os braços e retiro um cigarro do bolso do jeans junto ao
isqueiro. Situações como essa me deixam nervoso e não consigo pensar
racionalmente, o cigarro ajuda a me manter na linha. Clareia as minhas
ideias e me deixa calmo o suficiente para não agir emocionalmente em
situações que precisam apenas de um lado meu que seja totalmente
calculista. Nicotina é o que me acalma.
Levando o cigarro até os lábios após acendê-lo, dou um longa e
desesperada tragada, soprando a fumaça lentamente, como se estivesse
aproveitando cada segundo daquilo. Sinto a tensão nos meus músculos
diminuírem e finalmente posso respirar outra vez, desprezando a mim
mesmo por ser tão dependente de algo que, no mínimo, deixaria o meu
pulmão podre e fedendo a lixo, ou então me presentearia com uma
tuberculose.
De qualquer forma, gosto de como eles me acalmam. Fodam-se os
danos colaterais.
Ergo o olhar após iniciar um novo trago, encontrando Williams
observando-me do mesmo lugar.
Ainda não consigo entender qual é a ligação de tudo isto com o
início da reunião. Williams mencionou todos os nossos problemas, mas
aposto que ainda há algo por vir. Eu o conheço há anos e a forma que seus
olhos me encaram enquanto sua mente parece estar longe da Terra, sei que
algo está errado. É eventualmente certo que nós teremos problemas a serem
enfrentados a partir de agora, Luxury não irá ceder a nada do que
poderíamos sugerir e eu prefiro simplesmente caçar o meu genitor por toda
a parte do mundo, a ter que entregá-la a ele para ser o seu ratinho de
laboratório.
Floyd deveria saber que apesar de odiá-lo mais do que sou capaz de
descrever, fui criado debaixo de seu teto e sob a sua maneira nada coerente
de educar um filho. Logo, se ele não ceder, não serei eu a fazê-lo.
É assim que se inicia a nossa guerra, eu sei disso.
Quanto a Williams, não tenho dúvidas de que ele cogitou a
possibilidade de entregar Clarke à Luxury e pensar em um plano para
resgatá-la depois disso, afinal, outras vidas também estão em jogo. No
entanto, a julgar pela forma que os seus olhos receosos encaram os meus, eu
sei que ele sabe que para isso, terá primeiro que passar por cima de mim.
— Há dois dias, eu percebi que alguns arquivos referentes a Luxury
haviam desaparecido do meu computador — despertando dos devaneios,
desvio o olhar até Hyuk, quando aproximando-se de nós ele coça o próprio
queixo e reprime os lábios. — Mas eu pensei que havia sido um erro meu.
Uma fodida falta de atenção...
Williams inclina o pescoço, concentrado no que Naten diz. Os caras
que restaram do batalhão continuam em absoluto silêncio focados em sua
figura. Eu, impaciente, balanço a cabeça e murmuro:
— Diga de uma vez, Hyuk.
Naten resmunga alto o suficiente para todos no salão ouvirem,
enquanto os seus dedos entram no meio de seu cabelo e o puxam com força,
antes de me olhar, com a indiferença e a fúria claramente nítidas no brilho
dos olhos.
— Entraram no nosso sistema, porra. Roubaram os nossos arquivos
e substituíram por baboseiras com o mesmo nome. Provavelmente
esperavam que não fôssemos notar.
Ouço o xingamento de Williams, nitidamente puto pra caralho com
a situação. Hyuk baixa o olhar, envergonhado, e engulo em seco quando o
seu punho bate contra o saco de pancadas pendurado ao telhado.
Então foi desta forma que conseguiram estar um passo à frente de
nós. Talvez tenha sido desta forma que conseguiram a localização da Clarke
quando a sequestrei do colégio. Provavelmente acreditavam que eu não era
inteligente o suficiente para alcançá-la antes deles.
Nos fizeram acreditar que estavam atrasados. Que não tinham
nenhuma informação útil. Mas eles sabiam de todos os nossos planos e
informações valiosas que nos colocavam no comando da situação.
Floyd do caralho.
Ele queria nos fazer perder tempo, quando seu único intuito era
sequestrar a garota. Como pudemos atingir um nível tão extremo de
estupidez? Como fomos capazes de subestimar a capacidade dele?
— Não adianta chorar pelo leite derramado — Williams espalma as
mãos uma na outra, atraindo a nossa atenção até ele. Seus olhos
extremamente escuros nos analisam, um por um, tomando as rédeas e sendo
um líder. — Precisamos manter a calma e recuperar as nossas informações.
Nós estamos no escuro, não sabemos qual será o próximo passo da Luxury
e o que sabem exatamente. — Inclinando o pescoço, Williams gesticula a
cabeça em direção ao batalhão secundário — Preciso que vocês se infiltrem
em um lugar. Se organizem e usem roupas que civis comuns usariam.
Coletem todas as informações que puderem e não sejam descobertos.
Os caras acenam em positivo brevemente, antes de se retirarem do
salão às pressas.
Williams desvia os olhos para os novatos, e alguns dos seus
seguranças. Em especial, um dos seguranças na qual nunca confiei
fielmente, encara Williams com fervor, como se estivesse planejando ou
apenas assassinando-o de todas as formas possíveis em seu subconsciente.
Seus olhos fixos em Williams desta forma, apenas me proporcionam
mais um motivo para desconfiar do caráter duvidoso desse imbecil. Eu
realmente espero que Williams esteja certo quanto a lealdade desse cara,
caso contrário, ele vai desejar nunca ter pisado os pés no nosso território.
— Vocês, façam escolta nos quarteirões próximos, ajam
normalmente e procurem por qualquer movimento suspeito ou fora do
comum. — Instrui, caminhando lentamente de um lado para o outro, com
suas mãos a cada lado da cintura.
Williams instrui cada parte do batalhão aos seus respectivos
trabalhos, enquanto eu e Hyuk seguimos na mesma posição. Em todo
tempo, mantenho os meus olhos fixos em cada um dos caras de todos o
batalhão, analisando-os, enquanto trago o meu cigarro.
Nós sempre selecionamos os nossos homens a dedo, eles são
treinados e especializados em todas as tarefas que possam ser úteis para a
Academia. Ainda assim, nem mesmo Naten conseguiu detectar um vírus
criado por capachos do Floyd. A equipe da tecnologia não percebeu, e
ficamos completamente na porra de um breu. Sem informações, sem rotas,
arquivos, e porra... Estamos até sem os cadastros das prováveis vítimas da
Luxury.
Perdemos absolutamente tudo.
Talvez, com isso, agora saibam exatamente onde está localizada a
nossa base. O prédio não é mais seguro para nós ou para Clarke.
— Jason — Williams chama pelo meu nome, caminhando em minha
direção. Erguendo o olhar, noto que todos já se foram, sobrando apenas nós
três. — Você vai ficar responsável pela garota. Não tire os olhos dela por
um segundo sequer, me ouviu?
Dando uma última tragada no meu cigarro, eu o tiro da boca e jogo
no chão, pisoteando conforme sopro a fumaça.
— Entregá-la para a Luxury já não é uma opção? — Ironizo,
deixando absolutamente claro que sua suposição não passou despercebido
por mim.
Ouço o riso de Hyuk ao meu lado, e quase não percebo o sarcasmo
estampado na sua cara quando ergo o olhar para encará-lo.
— Eu disse que era uma má ideia.
— Você sabia dessa merda, seu fodido? — questiono, arrancando
outro riso do meu amigo.
Williams intervém, colocando-se no meio de nós dois. Quase o
agradeço por isso porque se dependesse de mim, eu arrancaria esse riso
idiota da cara do cretino.
— Não seja ingrato, Jason. Eu apenas o alertei sobre o seu
comportamento explosivo quando o assunto é a garota. — Murmura,
alinhando corretamente a gola de sua jaqueta. O sorrisinho sarcástico ainda
está estampado na sua cara.
O fuzilo visualmente, sabendo exatamente o que ele quer dizer com
"comportamento explosivo". Talvez isso tenha alguma relação com a dúzia
de perguntas que tenho feito sobre a adaptação de Clarke, já que, as missões
têm tornado escassa a minha presença no prédio. Ou então, esteja apenas se
referindo à nossa desavença há uma semana, quando a trouxemos para cá.
Quero que ela se adapte com o lugar e conosco, porque este será o
seu lar por muito tempo. Não tenho a intenção de tirar os olhos dela, por
nenhum motivo existente neste mundo infeliz. E, apesar de saber que algum
dia Clarke encontrará conosco o conforto que jamais teve em todos os anos
em que esteve ao lado do Sebastian, tenho interesse em acompanhar cada
detalhe da sua evolução até lá.
Qual é a porra do problema nisso?
Desvio os meus olhos obrigatoriamente de Naten, quando a minha
visão é ocupada pelos 1,80 cm de Williams. Seus olhos fixam-se nos meus
e encaro a palma de sua mão, quando a sinto espalmar contra o meu ombro.
— Isso nunca esteve nos meus planos — diz ele ao dar duas
batidinhas no meu ombro e afastar-se novamente. Eu o sigo com o olhar. —
Não podemos confiar em ninguém até recuperarmos tudo. A partir de hoje,
você é responsável pela garota e Hyuk... — Williams gira sobre os
calcanhares. — A informática é responsabilidade sua. Absolutamente nada
pode acontecer sem o consentimento de vocês, entenderam? — Ele espera
por nossa resposta pacientemente, alternando o olhar entre nós.
Ambos assentimos. Williams afirma com a cabeça, antes de dar as
costas para nós pela segunda vez e retirar-se do salão.
Frente a porta de Clarke, firmo os pés contra o chão e respirando
fundo, bato meu punho duas vezes contra a madeira. Enfio as minhas mãos
no bolso do jeans e espero por uma resposta, encarando fixamente a
madeira da porta.
Todos os caras do batalhão estão ocupados no momento, cada um
em suas respectivas funções desde a reunião durante a madrugada. Agora,
não deve passar das sete da noite, e, após resolver alguns assuntos
pendentes com Hyuk, é o primeiro momento que tenho a oportunidade de
visitá-la.
Não a vi durante todo o dia e não sei o que tem feito para ocupar a
sua mente no prédio, já que essa espelunca está longe de ser um ambiente
na qual ela está habituada. Seja lá o que tenha sido o seu passatempo, terei
tempo o suficiente para descobrir. Afinal, ainda mais do que antes, agora ela
é problema meu.
Passando dois minutos, não obtendo respostas, varro o corredor com
os olhos antes de me aproximar da porta e levar uma das mãos a maçaneta,
sem girá-la até que Clarke permita que eu entre.
— Clarke — a chamo contra a porta, batendo com o punho na
madeira mais duas vezes. Quando não obtenho resposta, enrijeço a
mandíbula. — Estou entrando! — Aviso, apenas como garantia caso não
esteja devidamente vestida.
Apenas por garantia, eu levo uma das mãos aos meus olhos,
preparado para tapá-los caso Clarke esteja nua ou algo assim. Preciso que
ela confie em mim, e não deixá-la desconfortável é o meu objetivo. Ao abrir
a porta e avançar passos adiante, adentrando no quarto, enxergo apenas
vislumbres do lugar no espaço minúsculo da distância dos meus dedos que
cobrem oitenta por cento da minha visão.
— Entrei... — cantarolo, procurando por ela por todo o quarto.
Em um giro de 360º, noto que sua cama está completamente
arrumada. Nada de lençóis bagunçados ou algo que dê a entender que ela
está aqui dentro. O edredom cor-de-rosa está perfeitamente alinhado sob a
cama e todos os pertences que providenciei a ela, muito bem organizados
por todo o lugar. Na mesma hora tiro a mão dos olhos, me sentindo um
imbecil.
No centro do quarto, eu observo absolutamente todos os detalhes
que poderiam indicar onde mais ela estaria.
Os seus pertences estão completamente organizados em cima de
uma escrivaninha branca, como se ela não tivesse absolutamente nada para
fazer a não ser arrumá-los durante todo o dia. Os móveis, como a
escrivaninha, abajur e as várias sacolas amontoadas dentro uma das outras e
a presença de alguns posters de algum filme de ação acima da sua cabeceira
de cama, indicam que os caras fizeram exatamente o que mandei. O quarto
se parece com a personalidade dela agora, afinal de contas.
Ela está se adaptando.
Sigo analisando o quarto, agora podendo sentir o cheiro familiar de
cereja. Inalando o odor pelo quarto, as lembranças da última vez que senti
esse cheiro recaem na minha mente. Era uma noite bonita pra cacete e nada
importava para mim além de ouvi-la encantar os anjos com aquela voz,
naquele palco, naquele maldito colégio. Nem que se passe mil anos desde
aquele encontro, eu nunca poderei me esquecer do cheiro viciante da cereja
vindo direto do seu cabelo loiro. Quanto a isso, ela ainda é a mesma.
Girando o pescoço até a porta do banheiro levemente aberta,
caminho até lá e a abro com brutalidade, causando um estrondo feito pela
colisão da maçaneta contra a parede. Vazio. Ela não está aqui.
Para qual outra merda de lugar ela iria?
Saio do quarto disparado, dando passos largos pelo corredor dos
dormitórios e varrendo todos os cantos com o olhar durante o caminho,
tentando encontrá-la em algum lugar.
Estamos em alerta amarelo e aparentemente, Williams não pretende
confiar em ninguém além de mim e Hyuk, o que me dá a entender que seu
julgamento não esteja tão perdido, afinal. Tenho certeza de que ele
desconfia de alguém dentro do prédio.
Destruir nossos arquivos seria mais fácil se houvesse alguém do
lado de dentro para facilitar o processo. É verdade. E isso inclui a nossa
proteção à Clarke. Nós somos os únicos a ter acesso livre a ela...
Respiro fundo, sentindo o meu peito subir e descer conforme o som
das minhas botas batem contra o chão em passos rápidos.
Se houver algum traidor responsável por isto...
Afasto os meus pensamentos, praticamente correndo entre os
corredores para alcançar o 8º andar, onde há alguns caras que tenho
conhecimento estarem sob o comando de Williams a mantê-la em segurança
na minha ausência, enquanto estive nas missões. Posso sentir a ponta dos
meus dedos firmarem com força na palma da minha mão, por consequência
do meu punho cerrado.
Os responsáveis por mantê-la em segurança antes do alerta amarelo
devem ter uma explicação pronta na ponta da língua para não estarem
plantados na porra da porta, caso contrário eu vou ficar feliz pra caralho em
arrancá-las.
Subindo o lance de escadas, cesso o meu passo no momento em que
ouço resmungos seguidos do som das correntes que mantém os sacos de
pancadas firmes ao telhado, no 5º andar. Este é o salão de treinamento, e
não deveria haver ninguém aqui a esta hora. Essa é a porra de um alerta
amarelo, e o imbecil arranjou um tempinho para clarear as ideias?
Encaro uma última vez o lance de escadas, antes de pular entre três
degraus para alcançar a entrada principal do andar, deslizando a palma da
minha mão pelo corrimão.
Caminhando rapidamente pelo chão de concreto e ainda ouvindo,
desta vez mais próximo, o som dos sacos movendo-se no ar, entro no andar
prestes a soltar um xingamento quando os meus olhos alcançam dois dos
seguranças de braços cruzados, observando Clarke socar repetidas vezes o
saco de pancadas, totalmente desengonçada.
Liberto a respiração que nem sabia estar segurando, sentindo dez
toneladas desaparecerem das minhas costas.
Observando-a de longe, suas mãos estão fechadas em punhos e sua
posição está parecida com a de lutadores de Karatê. Seu cabelo loiro está
preso em um coque sob a cabeça, e nos pés possui um par de tênis
extremamente pesado e inadequado para lutas. Sem perceber, meus lábios
se curvam em um sorriso ao encará-la nessa posição, no entanto, quando me
dou conta do que estou fazendo, minha atenção desvia-se dela, encontrando
dois pares de olhos dos imbecis julgando a minha atitude.
Contenho o sorriso e fecho a cara ao fazer uma careta, gesticulando
em direção a porta.
— Caiam fora.
Não espero até que respondam e apenas caminho em direção a ela,
agradecendo aos céus por não ter que lidar com mais um problema no dia
de hoje. O baque da porta fechando-se atrás de nós, indica que se foram.
Aproximando-me da garota, noto seus olhos fixos no saco e o rubor
de suas bochechas ligeiramente avermelhadas devido ao suor. Cruzando os
braços, eu me coloco ao seu lado, prevendo que aquilo provavelmente iria
assustá-la.
— Parece que você acabou de assistir o clássico Karatê Kid e veio
direto treinar os mesmos passos do Dre. — Não contenho o meu tom
sarcástico, muito menos o riso no canto dos lábios.
Ela estremece, encarando-me de imediato. Seus olhos ainda mais
azuis do que eu me lembrava, me devolve o olhar sarcástico na mesma
proporção.
— Parece que você saiu do filme Matrix, e eu não tô falando nada.
— Seus olhos me analisam de cima a baixo.
Baixando o olhar e juntando as sobrancelhas, encaro o meu jeans
justo, a camiseta de manga longa na mesma cor e alguns suportes presos
pela calça contendo neles, facas presas entre os bolsos e uma Glock na
cintura. Ergo novamente o olhar, achando graça em seu comentário.
— Você já assistiu aos clássicos, tô impressionado — desvencilho
os braços e aproximando-me a passos lentos, levo as mãos até as correntes
que seguram o saco de pancadas, me colocando à sua frente. — Tênis
dificultam a sua agilidade nos golpes, tire isso. — Aceno em direção aos
seus pés, antes de encará-la novamente.
Seu peito sobe e desce com a velocidade da sua respiração, ainda
assim, Clarke me encara como se eu não pertencesse a este mundo e
balança a cabeça negativamente, acariciando as suas mãos agora
avermelhadas por não ter utilizado ao menos luvas. Que merda ela estava
pensando?
— Eu não tinha muito para onde sair durante a infância, então, ver
filmes antigos e irritantes era a única opção. — Resmunga, e ao firmar os
nossos olhares noto quando a sua pupila se dilata. Quero dizer a ela que sei
exatamente porque sua infância foi tediosa desta forma, mas apenas a
encaro sem dizer uma palavra. — E eu não tenho interesse nas aulas sobre
boxe, apenas estava... — ela parece procurar pelas palavras corretas por um
segundo.
— Extravasando. — respondo por ela.
Afastando-se lentamente e de costas para mim, noto quando sua
cabeça balança lentamente de um lado para o outro.
— Algo parecido — responde, inclinando o seu corpo para frente
até alcançar uma garrafa d'água. Ao dar alguns goles consecutivos, Clarke
gira sobre os calcanhares, secando a boca com o dorso da mão. — Você
sumiu…
Largo as correntes, e cruzando meus braços novamente, encosto o
corpo em uma parede próxima, sem desviar meus olhos de Clarke por um
segundo sequer.
— Estou trabalhando para ser digno da sua confiança — respondo
indiferente, com a certeza de que ela se lembrará da nossa conversa onde
ela dizia estar disposta a confiar em mim por prometer a morte de
Sebastian.
— Sim, mas... — Arfa, me olhando cabisbaixa e completamente
cheia de dúvidas. — O que é este lugar? Eu estou sempre sendo vigiada por
caras armados, não posso andar por aí sozinha e... Por que meu irmão não
pode dormir no mesmo quarto que eu? — gesticula em direção a si mesma.
Franzo o cenho e inclino a cabeça levemente, curioso com suas
palavras.
— Quem disse isso a você?
— E-Eu não sei! — Exclama, o cansaço emocional nítido em sua
voz baixa. — Você disse que eu estaria segura, mas parece que estou
correndo ainda mais perigo.
Mesmo que eu estivesse ocupado com as missões, coloquei alguns
homens para proporcionar a Clarke tudo que fosse necessário para que ela
se sentisse confortável no meio de nós. Desde roupas, acessórios, comidas,
até mesmo a presença do irmão. Eu queria que ela pudesse confiar em nós,
ou apenas confiar que eu não deixaria que nada acontecesse a ela ou a quem
ela desejar proporcionar segurança.
No entanto, parece que os imbecis fizeram absolutamente tudo que
eu mandei, exceto a parte que envolve dar a ela tudo que ela quiser.
— Até o fim da noite, terá duas camas no quarto e o seu irmão pode
dormir com você. — digo a ela, afastando-me da parede. — E pode confiar
em mim, Clarke, eu já disse que você está segura.
Ela nega, ao cruzar os braços à altura do peito.
— Então por que parece que eu estou correndo perigo? —
Questiona, sua voz falha a cada frase. Eu sei que ela ainda está abalada com
tudo que vem acontecendo, mas não a interrompo. Permito que ela liberte o
turbilhão de sentimentos. — Você pode escolher ser sincero comigo agora
ou eu nunca vou confiar em você. — Aproximando-se de mim, Clarke
firma os nossos olhares e não recua em nenhum momento. Quase sorrio
com a cena. Corajosa.
Ela prossegue:
— Eu ouvi mentiras por toda a minha vida... — Sua voz é como um
sussurro, alto o suficiente apenas para que eu ouça. — Tudo sempre foi uma
mentira e quando a verdade apareceu, eu fiquei arrasada. Ainda estou
arrasada. Estou cansada de me sentir assim, então, por favor, seja sincero
comigo. — Seus olhos imploram pela verdade, e pela diferença da nossa
altura, eu posso ver os seus cílios batendo repetidas vezes contra os olhos.
Os sentimentos que Clarke transmite apenas visualmente, me
lembram muito de uma parte da minha vida que eu escolhi desfazer e faria
absolutamente tudo para apagá-las da minha mente também. Ela possui os
olhos mais tristes que vi em toda a minha vida, e nem mesmo quando
encaro o meu reflexo no espelho sou incapaz de enxergar tamanha
escuridão, não como os azuis mais vivos que me encaram de volta,
esperando por uma resposta.
Queria mesmo dizer a ela que jamais faria qualquer coisa que a
machucaria, que, porra, estive pensando em maneiras de arrastá-la para fora
daquela vida infeliz há mais tempo do que ela imagina e que eu derrubaria o
mundo para trazer a felicidade à ela e nunca faria ela se sentir tão destruída
como agora.
Queria que ela soubesse que nunca esteve sozinha, que apesar de
buscar pela admiração de Sebastian a todo momento, eu a admirava ainda
mais do que aquele imbecil seria capaz mesmo que vivesse por mil anos.
Mas Clarke perdeu toda a sua infância. A última coisa que eu quero,
é fazê-la amadurecer mais do que o necessário, e mesmo que eu precise
guardar a verdade durante anos e anos, sei que algum dia terei a
oportunidade de esclarecer tudo que ela precisa saber. No momento, o que
ela precisa é se deitar e dormir com a tranquilidade de que está a salvo e
que estarei aqui para protegê-la.
Há um tempo certo para todos os meus planos que a envolvem. Eu
consigo ser paciente.
Engolindo o nó na garganta, os seus olhos seguem o movimento do
meu pomo-de-adão.
— Você está correndo perigo — baixo o olhar para encará-la,
procurando ser rígido em meu tom de voz. — Os caras que estavam atrás do
seu pai, agora estão atrás de você. Mas eu juro a você, Clarke, o primeiro
cara que se aproximar de você com segundas intenções, perde a porra da
cabeça. Isso é sincero o suficiente pra você?
Respiro fundo, normalizando a minha respiração. Nossos olhares
não desviam-se por um segundo sequer durante o meu comentário, ainda
assim, seus lábios entreabertos indicam que sua respiração é tão intensa
quanto a minha.
Ela queria a sinceridade, então dei isso a ela. Não vou medir
esforços para garantir a sua segurança e sei que ela pode enxergar isso em
meus olhos. Eu não mentiria. Mas, apesar de ocultar metade dos fatos
referentes a sua situação, sei que isto será o suficiente para fazê-la confiar
em mim.
— Eu posso confiar em você? — ela finalmente sussurra, ainda sem
desviar os nossos olhares.
— Nenhum outro alguém estaria tão disposto a matar por você,
como eu.
Clarke suspira lentamente, balançando a cabeça em positivo como
um claro sinal de que estamos progredindo.
— Que bom, então.
Está nítido que Sebastian subestimou a própria filha. Quando mais
novo, eu sabia exatamente quais eram os seus hobbies, passatempos, e até
músicas favoritas. Eu sabia que ela sempre tirava boas notas no colégio e
apesar de não ter muita companhia, nunca se deixou abalar por isso. Ela
demonstrava a autoconfiança que Sebastian nunca seria capaz de perceber.
Ele sequer a conhecia e ainda viviam sob o mesmo teto. Eu poderia
descrever toda a sua personalidade sem sequer ter trocado mínimas palavras
com ela. Poderia ditar todas as coisas que o verme jamais notou na própria
filha e que estavam tão aparentes. Ele nunca a enxergou como realmente é.
Sempre esteve claro para mim que Clarke se tornaria alguém
indestrutível, e eu queria torná-la exatamente o oposto do que Sebastian
esperava. Ela era inteligente pra caralho. Altruísta. Confiante. Forte. Linda.
Eu quis transformá-la em uma deusa e sabia que sua ingenuidade algum dia
desaparecia e ela, enfim, perceberia o quanto pode ser aproveitado dela
mesma.
A sua ingenuidade nunca me enganou. Todos podem vê-la como
alguém frágil e incapaz de se defender. Mas eu já vivi isso antes, ela é o
meu reflexo. E eu sempre soube que uma hora ou outra, ela iria abrir os
portões internos e libertar tudo aquilo que há tanto tempo está preso,
esperando por uma ordem sua para tomar o controle.
E estou ansioso pra caralho por este dia.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Esperei tanto por este momento. Na verdade, eu acho que nunca


quis tanto machucar alguém, e embora ele mereça, ainda sinto o
ressentimento dentro de mim, questionando-me sobre o depois; como me
sentirei ao vê-lo morto, sabendo que há o seu sangue em minhas mãos.
E como esperado, não tenho uma resposta para isso.
Há muito tempo estou reprimindo o sentimento que sua deslealdade
causou em mim, me atormentando e questionando-me do porquê. Mas
talvez não exista um motivo para atitudes desleais, às vezes, ele apenas é o
que é, e pronto. E eu deveria estar acostumada a isto, com base nas
circunstâncias de que fui traída pelo mesmo sangue que corre em minhas
veias.
No entanto, a dor da traição dele, de alguma forma, foi mais
dolorosa.
Ele parecia tão... verdadeiro. Suas atitudes sempre cautelosas, e o
cuidado no qual ele teve por meses em uma busca pela minha confiança.
Ele era gentil e cauteloso, não forçou a barra em nenhum momento e soube
perfeitamente entender as minhas feridas. Quando finalmente tivemos a
oportunidade de construir uma relação à base da confiança, eu podia
fielmente enfiar a minha mão na brasa, se isso significasse que estaria
salvando a sua vida. E eu sabia que ele faria o mesmo por mim.
Esta era a nossa relação. Pura e verdadeira.
Éramos intensos sem dizer uma única palavra e éramos verdadeiros
um com o outro visualmente, sem necessariamente, a necessidade de abrir a
boca. E naquela época, se alguém me dissesse que Jason quebraria o nosso
laço de confiança, eu provavelmente o chamaria de louco e negaria a todo
custo as suposições sem nexo referentes a ele.
Então, naquela noite, quando encarei o seu par de olhos escuros, eu
busquei compreendê-lo. Firmei os nossos olhares com tanta força que
poderia ser capaz de enxergar a sua alma. E eu fui. Enxerguei
absolutamente tudo. Menos a razão para tamanha traição. Eu queria muito
acreditar que ele tinha um plano ou apenas uma razão coerente para abrir
mão de tudo que havíamos construído. Mas eu não encontrei absolutamente
nada.
De repente, ele se tornou um estranho.
Sequer foi capaz de olhar em meus olhos enquanto eu era arrastada
para as mãos daqueles homens repulsivos e nojentos, na qual, ele jurou
muitas vezes me proteger.
Sendo assim, a resposta para o questionamento deveria ser simples.
Deveria ser fácil machucá-lo e lhe proporcionar uma dor equivalente à
minha.
Então, por que estou sentindo a ponta dos meus dedos tremerem
contra a base da minha arma? Por que estou paralisada? Por que caralhos eu
estou imóvel enquanto o encaro de costas para mim, completamente
entretido ao revirar as papeladas dentro de uma gaveta?
Merda.
Esperei este momento por tanto tempo, apenas para chegar até aqui
e parecer como uma covarde.
Entreabro os lábios na esperança de normalizar a minha respiração,
encarando-o ainda de costas. Seus músculos parecem tensos conforme os
braços se movem, revirando a dúzia de papéis. O gorro já não está sobre sua
cabeça, que agora, revela seu cabelo totalmente raspado. Mais abaixo, em
sua nuca, noto alguns traços de uma tatuagem de uma ponta a outra,
contudo, a presença do seu moletom atrapalha a minha descoberta sobre do
que se trata o desenho.
O seu cabelo está diferente sem a presença dos cachinhos crespos
tão charmosos, e a presença das tatuagens é uma novidade para mim. Não
se parece absolutamente nada com o que me lembro.
Engulo em seco, finalmente tomando coragem para avançar alguns
passos cautelosos e silenciosos, livrando-me dos pensamentos a fim de
evitar que ele perceba que não está sozinho. Não quero que ele note a minha
presença antes que minha arma esteja contra a sua cabeça.
Jason parece encontrar o que procura, pois uma de suas mãos
agarram com brutalidade um papel específico e o prende entre os dedos,
aproximando-o à altura de seus olhos para facilitar a leitura. Aproveito a
oportunidade e avanço um passo longo, me colocando a poucos centímetros
de distância.
Antes que o ressentimento retorne, empunho o revólver rapidamente
para fora do bolso do casaco, posicionando-o em sua lombar, e mesmo
acima do moletom, sou capaz de sentir a rigidez de seus músculos ao notar
o movimento.
Ele cessa os movimentos nos papéis e inclina o pescoço, dando-me
a entender que sua atenção já não está ali. Espero que ele se mova, ou
apenas arrisque desafiar a minha insensibilidade, já que ele obteve milhares
de treinamentos para isso. No entanto, ele não se mexe. Sequer um
centímetro.
Com o ódio aflorado, pressiono a boca da pistola em sua pele e sinto
o seu corpo se retrair.
— Sentiu saudades? — pergunto, aproximando os meus lábios de
seu ouvido.
Noto quando o seu pescoço inclina levemente para a direita, e penso
que, talvez ele tenha reconhecido a minha voz.
— Você mentiu pra mim. Me enganou, me abandonou e me traiu —
em minha mente, flashes de nossos falsos momentos a ofuscam. — Ainda
assim, você pensa que pode ter algum domínio sobre mim. Deixe-me dizer
uma coisa para você, eu não sou uma garotinha ingênua, e não preciso do
seu clube de heróis para me proteger. Eu. Sei. Me. Defender. — Digo
pausadamente, sentindo meus dedos fraquejarem ao redor do metal. Espero
que as minhas palavras surtam efeito e o faça deixar-me em paz de uma vez
por todas.
Penso em apenas apertar o gatilho e acabar com esta agonia
miserável, no entanto, em uma hesitação inaceitável, Jason gira sobre os
calcanhares rapidamente e agarra o meu pulso com brutalidade, sem
demonstrar qualquer tipo expressão que evidencie a dor à pressão que fazia
em sua lombar. A pistola escapa de meus dedos e em um piscar de olhos,
está perdida em algum lugar do chão.
Arfo.
Não consigo permitir que a surpresa esteja visível em meu
semblante. Era tão óbvio. Isso não o assustaria facilmente, afinal, Jason é
treinado para revidar a ataques como esse.
Penso que ele vai me enfrentar, ou apenas lutar contra mim, no
entanto, com uma de suas mãos agarrada ao meu pulso e a outra, prestes a
prender o meu braço livre e interceptar qualquer movimento meu, os seus
olhos se fixam aos meus. Jason inverte as nossas posições, fazendo a minha
lombar colidir contra o armário, encurralando-me.
Suspiro, remexendo o meu corpo a fim de me desvencilhar de seu
agarre. O que esse idiota pensa que está fazendo?!
Mexo, balanço, resmungo e insulto-o. Nada acontece. Ele segue
deixando-me presa ao seu corpo que, perante ao meu, se parece com uma
muralha.
Tomo coragem para encará-lo, deparando-me com os seus olhos
intensos e profundos. Busco decifrar a sua expressão, e falho
miseravelmente. Não há absolutamente nada. É como se ele estivesse vazio.
A sua mandíbula cerrada e perfeitamente contornada faz com que eu repare
em como ele está diferente, visualmente parecido com um homem maduro.
O olhar intenso e os lábios carnudos e reprimidos seguem os mesmos,
apesar de agora estarem ocupados por um piercing no canto do lábio
inferior. Facilmente perceptível.
Jason parece notar a minha análise, pois entreabre os lábios e parece
ter a necessidade de dizer algo, entretanto, no mesmo segundo parece abrir
mão da tentativa ao baixar o olhar e desviá-lo do meu. Engraçado, por um
segundo pensei que ele fosse capaz de expressar alguma merda de
sentimento. Indignada, eu balanço meus braços e tento empurrá-lo para
longe ou simplesmente machucá-lo. Porém, como se eu tivesse uma força
insignificante comparada a sua, Jason apenas firma seu aperto em meus
braços e pressiona o meu corpo contra o armário, impossibilitando-me de
mover sequer um músculo.
— O que pensa que está fazendo? — questiona, ríspido.
O ignoro, erguendo uma de minhas pernas o suficiente para lhe dar
uma joelhada no meio de suas pernas. No entanto, o desgraçado se move
levemente para a esquerda, desviando do meu ataque como se previsse
exatamente o que eu faria. Ergo o olhar, encarando o seu par de olhos frios
e indiferentes.
— Me solta!
— Pensei que você soubesse se defender. — Ironiza, firmando o
aperto em meus braços ao notar a minha tentativa de afastá-lo mais uma
vez.
— Pensei que você fosse confiável! — Rebato, entredentes.
Eu me dou por vencida, abrindo mão de tentar desvencilhar-me de
suas mãos, e ergo o pescoço o suficiente para firmar nossos olhares
profundos por longos segundos. Vamos lá, Jason, diga alguma coisa, ou
apenas aja como um covarde mais uma vez. Qualquer coisa.
— Cuidado com a língua ou eu vou cortá-la. — desvia o olhar para
um ponto qualquer às minhas costas.
Eu sorrio, atraindo a sua atenção novamente para o meu rosto.
Gostaria de estar sorrindo por estar realmente contente, no entanto, ao
contrário do que eu gostaria, é apenas um sorriso cheio de sarcasmo e
rancor. É claro que ele apenas fugiria da realidade e agiria como se nada
tivesse acontecido, não é? Que merda eu esperava?
Uma explicação plausível e um pedido de desculpas? Sem chance.
Ele ainda é o mesmo insensível na qual eu nunca deveria ter confiado.
— Tente. — o desafio, imitando o seu tom de voz rígido.
O lugar fica em silêncio absoluto, não restando nada além do som da
minha respiração extremamente ofegante.
Estudo minuciosamente o seu olhar, que por alguma razão, sequer se
desvia por um segundo que seja. Quero empurrá-lo, insultá-lo e machucá-
lo, quero que ele sinta o mesmo que senti naquela noite. Quero partir seu
coração. E no fim, quero vê-lo queimar na brasa que me consumiu por anos.
Eu sei que tudo isto não passa de um erro. Eu não deveria estar
buscando entender o porquê de suas escolhas. Afinal, por todos esses anos,
busquei lidar com isso, e a dor se transformou em ódio, porque era mais
fácil odiá-lo do que sentir falta de sua presença e de como me sentia segura
ao seu lado. E ele sabe disso. Eu sei que sim. Consigo ver em seu olhar o
quanto ainda sou facilmente compreendida aos seus olhos, porque em
algum momento miserável da minha vida, pensei que seria uma boa ideia
confiar tanto em um cara para abrir o meu coração.
Está divertido encarar a escuridão do abismo em que você mesmo
me jogou, seu panaca? Quero perguntá-lo.
Noto quando o seu pomo-de-adão se move, e sua mandíbula retrai.
Talvez eu saiba a resposta para a pergunta que não fiz. Ele consegue
enxergar a escuridão, eu sei que sim. Apenas não é homem o suficiente para
encarar o mal que causou.
— O que você está fazendo aqui, Clarke? — questiona, encarando-
me tão profundamente que sinto uma onda de choque por todo o meu corpo.
— Não me chame assim! — Rosno ao agitar o meu corpo contra o
seu. — Você não faz as perguntas aqui. Você não tem o direito! — Sinto a
minha voz falhar e engulo o nó na garganta, me negando a demonstrar o
quanto tudo isto ainda me afeta.
Jason enrijece a mandíbula e suspira, permitindo-me sentir o seu
hálito de nicotina e hortelã. Eu havia me esquecido do tão familiar odor da
nicotina. É quase como a sua marca registrada.
Penso em afastá-lo ou abaixar-me para alcançar o meu revólver, no
entanto, parecendo ouvir os meus pensamentos, o imbecil pressiona o meu
corpo contra o armário, não me dando qualquer saída.
— Como você entrou aqui? — questiona outra vez, ignorando a
minha expressão furiosa.
— Pela porta.
Jason firma o seu agarre, e em um movimento brusco ele me puxa
para perto, aproximando os nossos corpos. Engulo em seco.
— Isso não é uma brincadeira — seus olhos circulam o lugar à
nossa volta por alguns segundos, até cessar o movimento nos meus outra
vez. — Este lugar é um ponto de encontro de criminosos, Clarke, você estar
aqui é a porra de um erro. Vou perguntar novamente. Como. Você. Entrou.
Aqui?
Ponto de encontro de criminosos? Ele só pode estar brincando. Este
lugar está longe de parecer com algo assim.
— Não finja que se importa. — Digo em um tom áspero,
enfatizando a minha irritação. — E me larga, você está me machucando!
Agito meus braços mais uma vez, desejando tudo, menos estar em
sua presença. Fui tola ao acreditar que poderia fazer isso, encará-lo e
simplesmente enfiar uma bala no seu crânio. Ele está sempre preparado
para todas as ocasiões, sejam elas boas ou ruins, afinal, é o Jason. É isso
que ele faz. Nada além de estar no controle e agir tão rapidamente a ponto
de fazer com que qualquer outra pessoa pareça minúscula e insignificante.
Eu definitivamente estava melhor enquanto apenas ignorava a sua
existência. Encará-lo agora apenas me faz parecer como uma patética,
porque apesar de negar a todo custo por todos esses anos, em algum lugar
dentro de mim, eu sei o quanto ainda machuca recordar-me das lembranças
que eu acreditava serem tão boas e genuínas. E talvez doa ainda mais
porque mesmo depois de todos esses anos, eu ainda esperava algo além do
seu silêncio.
Diga alguma coisa, porra!
Espero que ele diga algo por alguns segundos, e quando não o faz,
inclino o meu corpo para a esquerda e desvio os nossos olhares. No entanto,
sinto quando seus dedos folgam o aperto ao redor do meu pulso. Firmo os
nossos olhares, encontrando as profundezas do seu olhar vazio e sem vida
encarando-me de volta, como um anjo caído. A porra do caos em carne e
osso.
Estou sendo presenteada mais uma vez com o seu silêncio, e assim
como naquela noite, ele não faz absolutamente nada além de me encarar
como se quisesse dizer algo, ou apenas... tomar alguma atitude que me faça
acreditar que ainda há esperança para ele... Que ainda há esperança para
recorrer a uma razão para tanta decepção. Mas como em um maldito
flashback terrivelmente doloroso, Jason não diz absolutamente nada.
Imbecil.
E tudo isto apenas serve para que eu aprenda de uma vez por todas
que pessoas ruins nunca são ruins por escolha própria. Não há como
escolher seguir um caminho no qual você não se identifica. Você
simplesmente nasce com a merda do sexto sentido, lhe dizendo a cada
minuto do seu crescimento o quanto deseja destruir a vida de alguém ou
simplesmente o incentiva a fazer dela um inferno.
Por um segundo, eu quero acreditar que há escapatória para uma
vida tão miserável. Gostaria de acreditar que Lexie estava certa quando
disse que ele teria alguma razão para sua atitude tão sem fundamento.
Mas então, vem o flashback dos meus últimos anos. A fome, a
solidão, o dia em que eu recorri a uma vaga temporária de ajudante de bar
em Manhattan, em troca de um mini-quarto e alguns trocados para
alimentar Josh. Em troca disso, fui perseguida e assediada por motoqueiros.
O choro, o desespero, o desejo de simplesmente morrer por não ser capaz
de suportar a dor de não ter um propósito real na Terra e ainda assim,
manter-me em pé por não ser capaz de abandonar alguém que necessitava
de mim.
Isto foi por Jason. Ele causou isso. Ele é o culpado.
Ainda assim, anos depois de nosso último encontro, ele me encara
com os seus olhos tão frios e não consegue dizer uma palavra.
Uma. Única. Palavra.
Bufo um riso, sem notar os meus olhos marejados tão necessitados
em esvair com o peso doloroso das lágrimas. Tamanha é a decepção por
mesmo que eu tenha planejado este momento milhares de vezes na minha
cabeça, não consigo fazer absolutamente nada além de demonstrar o quão
destruída e magoada estou. E isto estava completamente fora de cogitação.
— Silêncio então, né?— sugo o nariz ao sentir uma lágrima
insistente cair. A única. — Seu bosta do caralh…
Sou interrompida quando sua mão larga o meu braço e cobre os
meus lábios com brutalidade, forçando-me a fechar a boca. Arregalo os
olhos e ao notar a liberdade dos meus braços, estapeio o seu peitoral várias
e várias vezes, mas ele não move um músculo sequer para afastar-se de
mim.
— Quieta. — Jason cola os nossos corpos, sussurrando contra o meu
ouvido. — Não estamos sozinhos.
Os tapas contra o seu peitoral diminuem o ritmo, e, ao restar nada
além do som da minha respiração, sou capaz de ouvir alguns resmungos não
muito longe de nós. Merda. Então ele está certo? Estou na merda da cova
dos leões?
As minhas lágrimas caem contra o dorso de sua mão e utilizo de
todo o meu autocontrole para não desabar em um momento tão
inapropriado onde, aparentemente, a minha vida corre perigo.
Varro os olhos pelo local, desta vez, agradecendo imensamente aos
céus por estarmos atrás de uma pilastra enorme que divide o Studio em dois
pequenos cômodos. Estamos em uma espécie de escritório, onde não há
nada além de uma mesa grande o suficiente para reuniões ou jantares em
grupo, incluindo as diversas prateleiras e armários contendo papeladas.
A luz do lugar está clara o suficiente para que Jason pudesse
enxergar com clareza os papéis que tinha em mãos quando cheguei até aqui,
mas a julgar pelo local bastante particular em que estamos, as luzes não
parecem ser feitas para iluminar por completo. Ou seja, podemos enxergar,
mas o faremos com certa escassez.
Noto a porta do escritório aberta graças a minha invasão inesperada,
facilitando para que a pessoa que esteja no cômodo à frente, possa espiar o
que há neste cômodo em uma curta distância.
Parecendo ler os meus pensamentos, Jason leva as mãos até a minha
cintura e em passos de agilidade, guia-me até os armários altos o suficiente
para nos escondermos. Apesar de incomodada, eu não me oponho. Se ele
estiver falando a verdade sobre este lugar, não estou interessada em
conhecer quem quer que esteja aqui.
— Eles não podem nos ver, mas se você não controlar essa sua
língua, vai se colocar em perigo. — Sussurra, espremendo os nossos corpos
contra o armário às nossas costas.
Inclino o pescoço, na tentativa de afastá-lo.
— Aposto que o dono do lugar adoraria voltar pra casa com a
notícia de que você está morto. Eu também, então acho que todos saímos
ganhando. — Zombo, estapeando o seu peitoral.
Suas mãos vagam pelo meio dos nossos corpos e alcançam os meus
pulsos pela segunda vez esta noite. Grunho ao sentir a leve dor de seu
aperto contra os meus ferimentos cobertos por gaze, no entanto, me esforço
em não transparecer nenhuma expressão que evidencie a minha dor.
— Acredite em mim quando digo que não é em mim que estão
interessados. — Retruca, finalmente largando os meus pulsos e varrendo o
lugar com o olhar, mantendo a todo tempo o meu corpo protegido ao seu.
— Abra a boca e eu terei que matar um por um aqui e agora. Não me
provoque.
Não me mexo. Abaixo os meus braços e espremo o meu corpo no
alumínio, querendo estar ligeiramente afastada dele, mesmo tendo ciência
de que não importa o quanto eu me esforce para mantê-lo longe de mim,
estamos encurralados.
Os resmungos aumentam a frequência a cada segundo, causando-me
arrepios e trazendo à tona a tão familiar sensação de estar em perigo. É
como se eu estivesse à mercê dos homens do Floyd outra vez, me
escondendo e torcendo para que eu não seja a garota escolhida para posar
para milhares de homens. E como se o sentimento estivesse adequado ao
meu corpo, sinto-me apavorada novamente. O medo e a ansiedade do que
pode acontecer comigo é tão assustador que posso sentir a maneira como
ele se encaixa perfeitamente nos meus parâmetros, tornando-o ainda mais
familiarizado com o meu corpo.
Os anos em que estive nas mãos de Floyd deveriam servir para que
eu estivesse habituada a sentir-me tão vulnerável e assustada. E assim,
talvez eu estivesse preparada para lidar tão bem com a sensação
avassaladora que me persegue em todos os momentos em que me vejo em
situações de perigo. No entanto, acho que passei tanto tempo reprimindo e
vivenciando todos aqueles momentos várias e várias vezes mentalmente,
que não me sobrou tempo para me tornar forte o bastante para superar toda
essa angústia.
E, embora eu esteja me esforçando para não expressar o quão
apavorada estou, sei que em breve todas as minhas muralhas cairão e
novamente, eu não serei nada além de uma garota sentimental e frágil,
lutando mais uma vez para reprimir e encobrir os sentimentos que deveriam
fortalecê-la.
Posso enganar a todos. Menos a mim mesma.
Sei que enfrentarei um grande desafio em encobrir os meus
verdadeiros sentimentos neste momento. Jason é cauteloso e muito
observador. Eu o odeio por isso, e odeio-o ainda mais por saber que ainda
que nós tenhamos uma história com um final deplorável, ele ainda é o
mesmo. O mesmo na qual eu abri o meu coração e revelei segredos
particulares.
Jason me conhece. Ele conhece cada mínimo detalhe sobre mim. E
céus, como eu gostaria de mudar isto.
— Como isso aconteceu? — Ouço alguém dizer, não muito longe de
nós.
Estremeço, despertando-me dos devaneios.
Jason encolhe o seu corpo junto ao meu, e eu o encaro, observando-
o levar o seu indicador ao centro dos lábios, avisando visualmente para que
eu fique calada. Apenas balanço a cabeça em positivo e aperto os olhos,
concentrando-me na gota de suor que está escorrendo no centro da minha
coluna.
— Perdemos o nosso informante, Kaleb, como você espera que eu
saiba como de fato isso aconteceu?! — questiona outro alguém.
Ótimo. São dois deles.
— Stuart não era confiável, e eu sempre os alertei sobre isso — Ele
prossegue, desta vez, com a voz menos rígida e quase poderia deduzir que
se parece com a de um adolescente. —, e não pense que serei eu a dar a
notícia para o chefe, faça isso você mesmo.
— Está brincando? — Ouço passos lentos, como se alguém
estivesse aproximando-se do cara.
Abro os olhos, encontrando os de Jason fixos em algum ponto
qualquer do armário, parecendo extremamente concentrado na conversa dos
dois caras. A sua mandíbula travada e os punhos cerrados transparecem o
seu desconforto por estar na presença de quem seja este pessoal. Ele parece
estar sendo consumido por uma besta insaciável.
— Você deu início a esse plano ridículo de colocar o próprio
tatuador do Turner para nos levar informações. O cara é quase um maníaco
e não faltam recursos para tirar qualquer informação útil sobre alguém. —
Torna a dizer, suspirando pesadamente em uma breve pausa. — Floyd não
ficará contente em saber que subestimamos a inteligência do Turner.
Uma gargalhada amarga ecoa no cômodo.
— O nosso trabalho era descobrir a localização da garota, Dickson.
Quem a teria com tanta facilidade? — questiona. Estremeço abruptamente
quando um estrondo ecoa no lugar, como se alguém tivesse estapeado
algum armário muito próximo de nós. Encolho o meu corpo e fecho os
olhos, tentando a todo custo controlar a ansiedade extrema à flor da pele. —
Turner era a isca perfeita! Ele sempre foi obcecado pela garota. — Kaleb
rebate.
— Quem garante que ele sabe onde ela está? Talvez ele esteja no
escuro assim como nós.
— Turner nunca está no escuro. Você deveria saber.
Dickson limpa a garganta e em seguida, ouço passos aproximando-
se de nós. Temo que ele esteja caminhando em direção ao cômodo em que
estamos, e sinto o meu coração quase pular para fora do peito. No entanto,
as vozes distanciam-se novamente na mesma velocidade em que se
aproximaram. Graças a Deus.
— Que se foda o Turner! — Exclama Dickson. — Garota loira,
olhos azuis, aproximadamente 1,60 cm de altura e aparência discreta. Este é
o nosso foco.
Abro os olhos, assustada, sentindo imediatamente a palma de Jason
cobrir os meus lábios com uma força elevada. Eu o encaro, sentindo meus
olhos marejados conforme a minha ficha finalmente cai. Seus olhos ainda
estão fixos no armário, completamente concentrados à medida que tenta
controlar meus impulsos involuntários.
— Sabe quantas garotas loiras com estas mesmas características
existem por aí? — questiona Kaleb. — É o maior padrão da Califórnia,
cara.
— Nem todas estão assustadas e fugindo do próprio destino. E bom,
digamos que eu tenha algumas suspeitas na região. — Dickson responde.
Jason finalmente conecta nossos olhares. Os seus olhos escuros e
não tão frios desta vez, exalam preocupação e raiva na mesma proporção.
Comprimo os lábios e mantenho o meu olhar em suas expressões,
estudando atentamente as suas feições, sem saber o que exatamente estou
procurando.
Isto realmente é o que parece?
Pisco algumas vezes, sentindo-me em desespero constante. A minha
respiração se eleva a cada instante, e posso jurar que meus olhos estão tão
arregalados que poderiam saltar para fora a qualquer instante. Contudo, sigo
atenta no diálogo apenas para tentar me convencer de que isso não está
acontecendo. Que é apenas mais uma alucinação da minha cabeça.
— Temos que avisar Thomas e Janel. Stuart não tem como estar tão
longe agora, e o filho da puta merece uma surra daquelas! — Suspira
pesadamente, como se estivesse exausto. — Cara... Lidar com gente burra o
suficiente para fugir de nós é exaustivo.
Risos são ouvidos.
— Stuart é o menor dos nossos problemas — o cara, Dickson, limpa
a garganta brevemente. — Vou ligar para os dois patetas e colocá-los atrás
dele. Nós dois temos assuntos mais importantes para resolver.
Passos ecoam pelo lugar, distanciando-se de nós.
— Suspeitas de quem seja, huh? Vai me dizer onde está a nossa
preciosa suspeita? — questiona Kaleb, em meio aos risos.
— Está mais perto do que esperávamos. Temos que encontrá-la e
tirar as nossas próprias conclusões. Sem precipitações. — avisa, afastando-
se de nós, visto que a sua voz aos poucos torna-se abafada.
Balanço a cabeça, negando-me a acreditar em tudo que acabo de
ouvir. No mesmo instante, um som agudo e engasgado escapa dos meus
lábios e a palma de Jason retorna para os meus lábios em uma velocidade
imensa, calando-me imediatamente.
— Quieta, Baker. — Sussurra, tão baixo que penso estar delirando,
no entanto, quando eu o encaro, sua mão se distancia dos meus lábios pouco
a pouco, ao perceber que não farei nenhuma besteira. Jason inclina o seu
corpo para fora do armário e encara fixamente a porta do lugar. — Eles se
foram.
Estranho o fato de que ele não citou o meu sobrenome de nascença,
no entanto, não é um momento para questionar algo tão banal.
Desvio o meu olhar para o chão de cimento queimado, procurando
normalizar a minha respiração e desejando nunca ter permitido que o meu
rancor por Jason me trouxesse para o mesmo lugar que tenho evitado há
anos. Eu sempre soube qual era o estilo de vida que estava fadada a viver.
Eu pretendia fugir disso como o diabo foge da cruz, e fiz exatamente o que
deveria fazer. Por longos anos. Mas por que quando o assunto é ele, as
minhas ações tornam-se emotivas, quando deveriam ser racionais?
No entanto, apesar de estar odiando a mim mesma por minhas ações
extremamente irracionais, acredito que nós apenas estamos em lugares que
deveríamos estar. É como se precisássemos enfrentar tais situações para nos
fortalecer. Sejam elas boas ou ruins.
E como o esperado, isso é muito, muito ruim.
Floyd foi citado no diálogo. E eles... os caras, estão atrás de alguma
garota com as mesmas características que infelizmente batem com a minha
descrição. O que me leva a conclusão de que Floyd e os seus homens estão
aqui, em WonderFall, e aparentemente impacientes. O que não é uma
surpresa, eu já desconfiava. Mas ter a certeza de que serei forçada a lutar
pela vida com ainda mais insistência… ela me enlouquece.
O cara que eu vi Jason golpear há alguns minutos do lado de fora,
provavelmente estava levando uma surra por trair a sua confiança. O que é
irônico, levando em consideração que até então, ele praticava a mesma
covardia. No entanto, isso significa que se Jason estava socando a cara
daquele homem, talvez seja um sinal de que ele não esteja trabalhando para
o Floyd como imaginei? Acredito que se fosse este o caso, ele não estaria
me protegendo de seus homens quando estou a poucos metros de distância.
Estou confusa. Muito confusa.
Não sei o que fazer, e não sei em quem confiar, ou o que farei a
partir do momento que pisar fora deste lugar. São poucas as garotas com a
minha descrição na cidade, provavelmente irão sequestrar a primeira garota
loira de olhos azuis e arrastar para o esconderijo de Floyd até que o
reconhecimento seja concluído. Quando enfim a dúvida de que estão
perante a renomada filha de Sebastian Hazel Clarke, e que, finalmente estou
em suas mãos para iniciar os trabalhos deixados por ele, será o fim.
Realmente será o fim. De todos os meus sonhos, desejos, e de todo o futuro
que esperava conquistar ao lado de Josh.
E nossa, estou assustada pra cacete com o que pode acontecer. Estou
em pânico, e literalmente não tenho ninguém para recorrer.
Estou prestes a ser levada de volta para Nova York e Josh será
deixado em algum abrigo novamente, onde viverá uma vida infeliz sem a
família e, crescerá sem o amor que apenas eu posso oferecê-lo. O amor que
eu sei que nossa mãe lhe daria.
— Baker — Ouço a voz rouca de Jason chamar pelo meu nome, no
entanto, não dou a mínima.
Eu o afasto para longe, sem conter as minhas lágrimas que agora
caem em disparadas de meus olhos. Em passos silenciosos, caminho em
direção ao mesmo caminho que fiz para chegar até aqui, certificando-me a
todo tempo que os caras se foram e que a barra está limpa.
Eu vim até aqui para me vingar, mas nem mesmo a vingança pode
ofuscar o meu amor por Josh ou anular o quanto eu necessito protegê-lo.
Tudo está realmente acabado. Não faço ideia de como eles chegaram
até WonderFall com a certeza de que eu estaria aqui, já que é uma cidade
tão afastada do centro da Califórnia. Só o que eu sei é que acabou o meu
tempo e não posso simplesmente me dar o luxo de lutar por uma vida
normal e tranquila.
Tranquilidade nunca fez parte do meu vocabulário. É assim que as
coisas são.
Sebastian me vendeu em troca de grana, mamãe foi brutalmente
assassinada e Josh simplesmente não pode seguir em frente com a sua vida
por estar preso a mim. Eu sei que diferentemente do que está destinado a
mim, Josh tem a chance de viver, construir histórias e dormir
tranquilamente, sem a preocupação de que no dia seguinte não haverá
comida o suficiente para nós dois ou roupas quentes o suficiente para
enfrentar a época tão fria que vem por aí. Mas, sou egoísta demais para
abrir mão do meu irmão. Não consigo acreditar que alguém faria
literalmente tudo em prol do seu bem como eu.
Mas talvez este seja um bom momento para entregá-lo a alguém que
tenha condições de lhe proporcionar absolutamente tudo que ele merece.
Água, comida, donuts, macarrão com queijo - seus favoritos - e todos os
casacos mais quentes do mundo. Josh estará feliz e vivendo uma boa vida.
Longe de todo o caos que me persegue.
Enquanto eu, enfrentarei a vida na qual me foi destinada graças a
Sebastian. Floyd não me deixará em paz até que eu complete o meu
trabalho na Luxury, já que eu era uma das garotas mais cobiçadas por toda a
rede, e era capaz de lhe proporcionar o dobro da grana que recebia com
garotas comuns. São todos pedófilos desgraçados e desumanos, e eu espero
que todos queimem no inferno por estarem destruindo completamente a
vida de uma garota que apenas gostaria de ser feliz.
— Aspen! — Sinto o meu corpo colidir com algo, ou alguém,
quando alcanço os fundos do lugar.
A minha visão totalmente embaçada devido às lágrimas não me
permite enxergar com clareza quem está barrando o meu corpo ao redor dos
seus braços. No entanto, reconheço a voz baixa de Lexie.
Um soluço escapa dos meus lábios e eu puxo o ar com força,
sentindo todos os meus ossos enfraquecidos devido ao desesperado
causador dos tremores em meu corpo. Sinto as mãos de Lexie contra meus
ombros, mas ao invés de esquivar-me do toque, como tenho feito há anos,
apenas relaxo meus músculos e inclino o corpo para frente, apoiando a testa
em seu ombro. Não esboço nenhuma reação, não soluço, não expresso
minha dor e não digo nada. Apenas deixo as lágrimas silenciosas rolarem
por minha face como a maior expressão de vulnerabilidade que eu me
permito mostrar.
— Aspen... — Ela sussurra, acariciando meu couro cabeludo, agora
libertos do capuz e tranquilizando-me. — Está tudo bem, eu juro a você. —
Garante, abraçando o meu corpo.
Eu sei que estou sendo uma pessoa horrível por abraçá-la, mesmo
após a nossa última interação. Eu fui péssima em ignorá-la e ser tão rude
por ela preferir proteger o irmão ao invés de mim. Fui egoísta. Fui tola e
hipócrita, pois sei que faria exatamente o mesmo por Josh.
Eu a culpei e a desprezei sem ao menos ouvir o seu lado da história.
Ainda assim, ela está aqui, me confortando e oferecendo-me o que há tanto
tempo estive necessitada.
Um abraço.
— Naten ligou para nós e nos avisou sobre o que estava
acontecendo por aqui.
Me afasto.
Ela me encara horrorizada, como se o ato evidenciasse o meu nojo.
Acaricio a pele do meu rosto com a manga do moletom ao sentir o
vento frio novamente atingir a brasa viva que abraça minha pele.
—Nós? — questiono, ao olhar a nossa volta e não ver
absolutamente ninguém além de nós duas.
Noto quando um sorriso quase imperceptível nasce no canto de seus
lábios, desta vez, sem a presença de seu gloss.
— A academia, As.
Franzo o cenho, encarando-a curiosamente. Então, descendo o meu
olhar até às suas vestes, é quando noto a jaqueta preta com alguns detalhes
em vermelho, tendo em completo destaque os rabiscos de uma caveira
pendurada em um revólver, um pouco acima dos seios. Ao reconhecer a
imagem tão bem quanto eu gostaria, sou incapaz de esconder a minha
surpresa.
O símbolo da Revolução.
— Sim, eu sou parte deles agora. — Lexie parece notar a minha
expressão surpresa, pois responde a minha dúvida sem que eu diga uma
única palavra.
Abro a boca diversas vezes na tentativa de dizer alguma coisa, mas
simplesmente não sou capaz de emitir algum som. Lexie tenta fazer com
que eu volte a encará-la, mas é apenas a jaqueta que tem a minha atenção.
— Eu queria te falar, mas você não me deu uma única oportunidade
— avança alguns passos adiante, cessando-o a poucos metros.
Eu torno a encará-la, sentindo-me culpada por ter sido tão
desprezível, instantaneamente. Hyuk não estava mentindo quando afirmou
que Lexie havia enfrentado coisas horríveis até aqui, afinal.
Lexie e eu nunca conversamos diretamente sobre o seu passado, e
eu odiaria invadir a sua zona de conforto fazendo perguntas que ela não
estava confortável para responder, mas, a academia não é um lugar para
pessoas saudáveis psicologicamente.
Williams sempre foi rigoroso quanto às regras do que ele costuma
chamar de batalhão. Eles eram separados em bronze, prata e ouro, todos
definidos a partir de suas habilidades e comprometimento para com o
batalhão. No entanto, mulheres foram proibidas em todos eles.
Lembro-me de passar horas assistindo os caras em seus
treinamentos, como atirar facas em alvos, golpes em bonecos infláveis, tiro
ao alvo, ou apenas passava o meu tempo observando Jason ganhar todas as
lutas na qual disputava. Eu gostaria de ser como eles, apesar de saber que
nunca seria permitido por Williams.
Além disso, eu sabia qual eram os seus trabalhos. Caçar uma grande
rede de pedófilos por todos os lugares e mandá-los para o inferno, nunca me
assustou. Há quem diga que denunciar para a polícia e esperar que a justiça
seja feita, seria uma alternativa melhor. No entanto, o bordão de todos os
batalhões é ter a ciência de que a justiça é falha. A lei é falha. Tudo pode ser
comprado com o dinheiro, menos a ressurreição deles para a Terra. Com a
grana, eles poderiam ter absolutamente tudo para seguir com seus trabalhos
sujos, mas sem a vida, não são absolutamente nada.
Ser um objetivo de Floyd apenas serviu para que eu entendesse o
que de fato todos aqueles caras estavam dispostos a sacrificar pelas garotas
e garotos que enfrentam o mesmo inferno. Todos eles sentem a nossa dor, e
arriscam a própria vida para nos dar a liberdade.
E apesar de ainda não ser capaz de compreender o que impulsionou
a mudança de Williams quanto ao recrutamento de mulheres, posso
compreender o que levou Lexie a ser uma delas.
— Eu sinto muito — digo a ela, enfatizando a minha sinceridade. —
Por tudo, quero dizer.
Lexie afunda as mãos nos bolsos de sua jaqueta e balança a cabeça,
prestes a me interromper. No entanto, ergo a palma de minha mão,
gesticulando para que ela não o faça.
— Eu não deveria ter sido tão rude. Não é uma justificativa, mas, eu
espero que você compreenda o motivo de eu ter sido tão indelicada. —
Puxo o ar, reunindo coragem para dizer o que realmente sinto. — Eu ainda
estou muito machucada. Não sou capaz de ignorar tudo que aconteceu e
jamais vou perdoar o Jason por tudo aquilo que causou — sou sincera em
cada palavra e procuro manter o nosso olhar fixo até que eu conclua o que
tenho a dizer. — E sinceramente, eu seria uma mentirosa se dissesse que
não desejo que ele estivesse morto.
Respiro fundo, ignorando o bolo em minha garganta. Falar sobre
isto é um grande desafio.
Sinto como se tivesse retirado toneladas de peso das minhas costas
ao dizer as palavras que esteve por tanto tempo entaladas na garganta. Eu
sei que fui rude com Lexie e reconheço o meu erro em despejar a minha
fúria em alguém que não a merece. Hyuk estava certo quanto a isso. No
entanto, ainda que eu queira me desculpar com Lexie e tentar recomeçar a
nossa relação desde o nosso último encontro, eu preciso que ela saiba que
nossa futura reconciliação não inclui o seu irmão.
Somos inimigos. E eu sempre irei desejar que ele esteja a sete
palmos do chão.
Lexie reprime os lábios, remexendo as mãos nos bolsos, e noto
quando seu olhar desvia para algum ponto às minhas costas. Espero que ela
diga alguma coisa, mas o silêncio ensurdecedor segue torturando-me por
longos segundos.
É apenas quando o som do estalar de uma língua soa às minhas
costas, que giro o meu corpo abruptamente, assustada. O meu corpo
congela e meus olhos se arregalam quando o meu olhar colide com as
esferas frias de Jason.
Ele.
Estava.
Bem.
Atrás.
De.
Mim.
O seu olhar recai dos meus olhos até os meus pés, percorrendo o
mesmo caminho por duas vezes, antes de retornar aos meus olhos
novamente. Ele parece pensativo e quase perturbado, imagino que as
minhas palavras podem tê-lo magoado, e realmente espero que sim.
Às suas costas, está Naten encarando-me tão sério quanto Jason,
apesar de uma das mãos estar pairando no ar, tendo em mãos o que
reconheço ser a minha arma. Ele brinca com o objeto, girando-o no ar ao
redor de seu indicador.
— Você levou realmente a sério o lance de ser uma garota fria e sem
sentimentos. — Naten avança alguns passos, ultrapassando Jason. A palma
de sua mão agarra o objeto e cessa o movimento em círculos, então ele o
estende para mim. — Gosto disso.
Reúno as sobrancelhas, sentindo-me exposta e infinitamente
constrangida. Abro a boca para lhe dar uma resposta à altura, no entanto,
simplesmente opto pelo silêncio. Não vale o esforço.
— Okay — Lexie cantarola, e consigo ouvir o som de suas botas
indicando que está caminhando. — Você! — ela entra em meu campo de
visão, agressivamente agarrando um dos braços de Naten e o arrastando
para longe de mim. — Vem comigo.
Sinto que estou sendo observada e vago o lugar com o olhar, apenas
para encontrar com os olhos de Jason fixos nos meus na exata posição
desde que notei a sua presença. Ele não mexeu um músculo sequer. Sua
mandíbula perfeitamente contornada enrijece algumas vezes e quase posso
sentir a irritação exalando de seus poros.
Ouço alguns murmúrios de Lexie e Naten afastando-se de nós, mas
eu não os encaro. Apenas agarro o objeto entre os dedos e ergo o queixo,
demonstrando a falta da intimação que o seu olhar me causa.
Seu olhar desce cautelosamente para meus lábios, clavícula, barriga,
braços e mãos, onde cessam o movimento em meus dedos posicionados no
gatilho, embora esteja apontada para o chão. Quase penso ter visto a sombra
de um sorriso irônico em seus lábios, mas afasto a hipótese no mesmo
segundo que seu olhar retorna ao meu.
Que merda ele está fazendo?
Ou pensa que vai fazer?
— Nem pense em usar isso.
Antes que eu me dê conta, meus olhos estão seguindo os passos de
sua língua que agora, circula o seu piercing algumas vezes seguidas ao
redor do lábio inferior. Regulo a minha respiração ao tornar a encarar seus
olhos.
Os seus olhos captam a minha ação no flagra e penso em ofender as
várias gerações passadas e que ainda estão por vir, por permitir que ele
brinque com o meu autocontrole tão facilmente. No entanto, apenas enfio o
objeto dentro do bolso do moletom, ignorando a sua tentativa falha de me
intimidar.
— Fique longe de mim. — Aviso. Firmo os nossos olhares e avanço
um passo em sua direção. — Não estou interessada em absolutamente nada
que lhe diga respeito, hoje foi a primeira e a última vez que nos
reencontramos. Espero que continue assim, porque eu estava ótima em
apenas fingir que você nunca existiu. — rosno, as batidas do meu coração
descompassadas.
É claro que nunca o apaguei completamente da minha vida. Ele
sempre esteve aqui, porém, restou apenas o lado ruim e os resquícios do que
eu odeio relembrar a cada minuto da minha vida. No entanto, não é algo
que eu quero que ele saiba, porque isto provavelmente lhe daria uma razão
para me manter por perto. O que, certamente, eu não quero.
Sua cabeça balança em positivo algumas vezes, distraído com os
próprios pensamentos.
— É? — avança um passo, diminuindo a nossa distância. — Se
acostume, linda. É apenas o começo e eu não pretendo deixá-la escapar
outra vez. — Seu tom divertido não passa despercebido por mim, embora
pareça seguro no que diz.
Ergo o pescoço, sentindo-o tão perto a ponto de sentir o ar fresco de
sua respiração bater contra a pele do meu rosto. Nossos narizes se tocam, e
nossos olhares se chocam em uma explosão descomunal.
— É mesmo? — Questiono, bufando um riso sem acreditar no que
estou ouvindo. — Chegue perto de mim outra vez e eu atiro nas suas bolas.
Não me subestime, posso quebrá-lo em um piscar de olhos.
Seus olhos desviam-se de meus olhos até os lábios, onde
permanecem por longos segundos. Então, ele fixa os nossos olhares e leva
uma das mãos para o meu queixo, onde o acaricia levemente. Estremeço de
imediato, sentindo a familiaridade de seu toque que antes costumava ser
algo bom e tranquilizante. Por um segundo, hesito, no entanto, quando dou
por conta, estapeio sua mão e o afasto com tanta brutalidade que ele ri.
— Cuidado, meu girassol, para não acabar se tornando uma rosa
com espinhos, ou eles podem acabar te arrancando sangue.
Estremeço.
Girassol.
Ele ainda se lembra.
Jason parece notar a minha surpresa com o apelido, pois eu engulo
em seco e reprimo os lábios, transparecendo totalmente o que estou
sentindo no momento. Nostalgia.
Um sorrisinho adorna os seus lábios, e ele parece estar se divertindo
com a minha reação.
Os seus dedos largam o meu queixo e afundam no bolso de seu
moletom. Jason varre os fundos do estabelecimento com o olhar e suspira
longamente, causando uma pequena onda de fumaça que sai de seus lábios
devido ao tempo frio. Então, ele me encara novamente e gira sobre os
calcanhares, afastando-se lentamente e sem olhar para trás quando diz:
— Tenha uma boa noite de sono, Baker.
NEW YORK - 2019
ANTES

Eu nunca soube como se parecia um verdadeiro beco sem saída, até


estar em um. Eu queria um conselho, queria ser instruída ao que fazer,
como sempre foi, e até acho que ter sempre alguém tomando decisões por
mim, pode estar dificultando a minha cabeça a se colocar no lugar agora. A
separar os fatos. Pensar direito.
Conselhos que eu preciso agora só poderiam ser supridos por ela,
mamãe com certeza saberia o que fazer. Mas ela está morta. E eu, sua filha,
que a amava mais do que qualquer outra coisa no mundo, não sei como
continuar a vida sem ela.
Não consigo raciocinar direito e não consigo me esquecer da nossa
última conversa, antes de nunca mais vê-la. Eu gostaria de ter aproveitado
mais... Queria ter a oportunidade de falar com ela uma última vez e
perguntá-la diretamente: como você pôde?
Como ela pôde me abandonar em um mundo tão cruel, com pessoas
cruéis, com um pai cruel o suficiente para abandonar a própria filha em um
colégio interno onde todos a desprezam?
Se ela soubesse de tudo que eu havia enfrentado dentro daquele
lugar...
Então, depois de chorar horrores em seu colo confortável e acalmar
a tempestade dentro de mim, eu perguntaria como ela nunca fez questão de
me dizer que papai era um político corrupto. Por que ela nunca havia
cogitado a ideia de mencionar que o homem na qual eu me esforçava dia e
noite para me notar, para me enxergar como parte de si, roubou 90% da
população da cidade e não era metade do que eu sempre pensei que fosse?
Eu nunca pensei que ele fosse capaz de todas essas coisas. Nunca
pensei que ele fosse capaz de me largar como um animal em um colégio
infestado de garotas que sabiam exatamente de onde eu vinha, e de quem eu
era filha legítima.
Eu achava as garotas de Colombie tão cruéis, mas isso durou até o
momento que conheci o lugar que me proporcionou o mais sombrio dos
pesadelos nos últimos meses.
Sequer posso ouvir as batidas do meu coração sem me lembrar de
todas as vezes que desejei que elas simplesmente parassem.
É doloroso. Tudo é doloroso demais para suportar. O meu pai
quebrou o meu coração, a minha mãe partiu e deixou-me abandonada no
mundo, as pessoas me odeiam por ter um laço sanguíneo com um alguém
que nunca conheci de verdade, Jonah foi largado em um abrigo e estou
rodeada de caras armados que dizem estar me protegendo. ME
PROTEGENDO DO QUÊ?
Por que ninguém me diz uma palavra?!
Por que ninguém me explica de uma vez por todas o que está
acontecendo?
Uma batida na porta do meu mais novo quarto chama a minha
atenção, e eu, sentada no centro da cama com os joelhos erguidos e
abraçando-os, apenas encaro a fechadura da porta com a visão
minimamente embaçada. O medo ainda me perturba e eu não faço ideia de
em quem posso confiar e se deveria.
Seco o meu rosto com a manga da camiseta longa, desejando que
quem esteja do lado de fora simplesmente desapareça e me deixe sozinha.
Eu não quero mais ouvir meias-verdades, estou cansada de ser poupada de
informações, se ninguém me diz algo concreto então eu não me importo em
escutar.
Desviando os meus olhos para a cama adicionada no meu quarto
ontem à noite, Jonah dorme tranquilamente entre os lençóis, coberto até o
pescoço pelo edredom. De onde estou, consigo acompanhar o subir e descer
de seu peito em uma respiração tranquila e quase sinto vontade de chorar
outra vez, imaginando como será a nossa vida a partir de agora. Como o
meu irmãozinho irá lidar com a ideia de sermos órfãos?
Sequer posso pensar em uma resposta que pareça certa para quando
ele me perguntar onde está a mulher de cabelos longos, loiros, e olhos
vibrantes e azuis na qual ele se lembra por parte da infância.
— Sofia? — ouço batidas leves na porta, seguidas de uma voz
feminina extremamente familiar.
Quem poderia ser?
Eu não vi nenhuma sombra feminina neste lugar desde que pisei os
pés aqui, há uma semana. A curiosidade me atinge e falo um "entre" alto o
suficiente para que ela ouça. Mantenho os meus olhos fixos na porta e não
deixo de abraçar o meu próprio corpo na esperança de amenizar o desespero
que parece estar corroendo cada parte de mim.
O ranger da porta se abrindo não me assusta, o que assusta é
enxergar a figura de Kelly passar por ela logo em seguida. Paro de respirar
por um segundo e ergo a cabeça, encarando-a sem acreditar no que vejo.
— Oi — cumprimenta, sem jeito, nitidamente constrangida.
Engulo a saliva amontoada na garganta sem desviar os nossos olhos.
Como ela pode estar aqui? Faz tipo, alguns anos desde que a vi pela última
vez na Colombie, logo após o concurso e antes do meu pai dizer que no fim
das contas, realmente tudo aquilo era uma perda de tempo.
A cada dia que passa dentro deste lugar que não faço ideia de onde
seja, tudo fica um pouco mais esquisito. E odeio a forma como todos
parecem saber de muitas coisas e eu, continuo na estaca zero.
— Eu vim conversar... — Kelly se aproxima, mantendo a sua
expressão ilegível. Quando ela está próxima o bastante da cama, largo os
meus joelhos e me afasto, dando lugar para ela se sentar. Ela o faz. —
Como você está?
A encaro por cima do ombro, sem deixar de reparar no seu cabelo
cor-de-mel preso em um rabo de cavalo no topo da cabeça, penteado
perfeitamente. Seus olhos negros agora estão preenchidos com algum tipo
de maquiagem nas pálpebras e me surpreendo, afinal, Kelly nunca pareceu
ter interesse em coisas desse tipo. Mas não importa, no fim das contas.
Deixando de reparar demais na garota, desvio os meus olhos para
Jonah do outro lado do quarto.
— Eu não sei. — é a única coisa que eu consigo responder.
Ouço o seu suspiro longo, mas não movo um músculo sequer para
encará-la. A ponta das minhas unhas cravam na pele do meu pulso em
beliscões leves.
— Jay me mandou aqui pra conversar com você... — revela, sendo
cautelosa no tom de voz. Eu a encaro, demonstrando que não faço ideia de
quem seja esse tal Jay. — O meu irmão. É de consideração, mas ainda vale
de alguma coisa, não? — explica, gesticulando com as mãos como se a
informação fosse óbvia.
Eu continuo sem entender tudo isso e onde ela pretende chegar, mas
não lhe pergunto nada muito além. Eu não tenho forças para isso.
— O cara alto, negro, cachinhos na cabeça... Olhos assustadores e
músculos por toda parte… — ela torna a explicar, e de repente, eu soube de
quem ela estava se referindo. Assinto e ela entende que eu lhe compreendi.
Jay. Então esse é o nome dele.
Sem dúvidas isso explica muita coisa sobre sua presença no
concurso. Mas não há o que discutir. Isso não é da minha conta.
— Eu sei que nunca fomos muito próximas na Colombie — seus
olhos me analisam cautelosamente, parecendo tentar identificar o que se
passa dentro da minha cabeça. Eu não digo uma palavra, deixo que ela diga
tudo que pretende e a observo no processo. —, mas você sabe que eu não
sou uma má pessoa. Na verdade eu meio que tô contando com isso, porque
se você acreditar que eu não sou ruim, vai confiar que esse lugar, tudo
isso... É pra proteger você. Para proteger a gente.
Quando ela termina, os seus olhos não desgrudam dos meus, e uma
parte de mim quer acreditar em todas aquelas palavras porque eu sinto que
devo algo a ela, por naquela época, não ser uma garota ruim comigo. Nós
duas fomos vítimas naquele concurso, e eu odiaria que ela se sentisse mal
por ter ganho o prêmio na qual eu dava a minha vida para ter.
Foi doloroso ter perdido. Foi doloroso me sentir inútil. Tudo isso
doeu, porém, nada doeu mais do que descobrir que meu pai estava satisfeito
por provar que eu não conseguiria absolutamente nada. Que eu era incapaz.
Ele conseguiu, afinal, passaram-se dois anos desde aquele dia e eu continuo
vazia e sem um motivo para me colocar de pé. Ele venceu.
Mas Kelly, depois do concurso, mal conseguia olhar na minha cara
pelos corredores de Colombie. Quando eu pensava em ir até ela para pedir
perdão pelo meu comportamento nitidamente negativo no dia da sua
coroação, ela desviava o caminho e já não fazia questão de trocar uma
palavra comigo. Pensei que ela pudesse estar chateada pela minha atitude, e
com isso, eu precisava mesmo me desculpar e lhe desejar os parabéns que
ela merecia. Afinal, ela era a estrela de Colombie naquele momento.
Mas ela me evitava, e seu semblante estava longe de ser um dos
melhores, parecia até que ela não estava contente com o prêmio.
Nunca me esqueci da nossa conversa no dia do concurso, eu sabia
que ela realmente nem se importava com o prêmio, com a coroa, e toda a
atenção que viria junto dele, mas ainda assim, eu sentia que lhe devia
perdão.
Mas após alguns dias, ela desapareceu, e eu me vi livre da Colombie
e de um sonho impossível. Nós nunca mais nos vemos.
Seguimos caminhos opostos, até agora.
— Eu acredito nisso — solto um longo suspiro, então continuo: —
Acredito que estão me protegendo porque não acho que eu seria recebida
com um guarda-roupas novo em folha, roupas novas, comida fresca, uma
cama confortável e tudo isso... — Olho à nossa volta, em cada canto do
quarto. —, se quisessem me ferir.
Kelly sorri sem mostrar os dentes, e os seus olhos ganham um brilho
irreparável.
— Mas do que exatamente estão me protegendo? — eu a pergunto,
antes que ela possa iniciar um novo rumo a nossa conversa. — Não me dê
meias-verdades, por favor. — Tento não demonstrar o quão desesperada eu
estou por uma resposta.
Eu sabia que haviam caras atrás do meu pai, isso estava claro alguns
meses antes da morte da mamãe. Ele estava sempre muito aflito, e não
parava um minuto sequer sem olhar para o seu relógio de pulso como se
estivesse ansioso por um momento. Mamãe nunca pareceu reparar nesses
detalhes, ou então ela apenas fingia não se importar. Mas eu via tudo. Posso
ser calada, reprimida, mas não uma idiota.
— Você não sabe? — pergunta, curiosa. Suas sobrancelhas
subitamente se erguem.
Nego.
— O que exatamente você sabe sobre o seu pai, Sofi? — Cruzando
os braços, Kelly me analisa por completo.
Dou de ombros, sem saber por onde eu devo começar a explicar os
horrores que sobrevivi durante os últimos anos.
— Sei que nós estávamos tendo crise financeira, que ele era um
político corrupto que roubava informações privilegiadas do governo, fazia
lavagem de dinheiro... — respiro fundo, sem saber como dizer as próximas
palavras sem deixar completamente nítido a minha vontade de desabar. —
E eu também sei que ele planejava me vender para quitar dívidas. — A
minha voz embarga, e eu sei que não poderia conter algumas lágrimas.
Dizer isso em voz alta faz parecer ainda mais doloroso.
Quando baixo o olhar, posso sentir a lágrima calorosa e
terrivelmente pesada que cai do meu rosto e bate contra a minha mão. Eu
não quero olhar para cima, não quero encarar os olhos de Kelly. Não quero
que ela sinta pena de mim ou me diga que tudo vai ficar bem, porque não
vai. Eu nunca vou ser capaz de me curar de tudo isso. Nada vai ficar bem.
— Ele tocou em você? — é tudo que a ouço perguntar.
Nego, permitindo que as lágrimas que escorrem pelo meu rosto
destruam por completo o que eu ainda tento manter intacto. Meu coração
dói tanto que me sinto estúpida por esperar algo bom de alguém que por
anos, apenas me desprezava. Eu deveria estar preparada para isso, mas
como poderia?
— Não, ele nunca tocou em mim. — Digo a ela, tentando de toda
forma me esquecer da última vez que o vi.
— Você entende que os caras para quem ele pretendia te vender,
agora estão atrás de você, não é? — pergunta, buscando o meu olhar.
Suas palavras me causam confusão, então a encaro, buscando
compreender o seu olhar.
Ontem depois da conversa com o seu irmão, eu pensei que talvez os
caras quisessem culpar a mim pelos erros do meu pai, mas ao que parece, é
totalmente o contrário. Eu sempre fui o alvo. Pensei que ele tivesse
desistido dessa ideia maluca no momento em que me largou naquele
colégio, mas eu ainda o odiava, o odiava por ter cogitado a ideia de usar a
própria filha para algo tão sujo... Ainda assim, eu caí feito boba no seu
teatrinho.
Como eu pude ser tão tola?
Eu quero gritar, quero simplesmente desaparecer.
— Eles estão atrás de mim agora? — minha pergunta sai tão baixa
quanto um sopro, mas eu sei que Kelly me escutou.
— Sim.
Assinto lentamente, libertando o ar dos meus pulmões em um
suspiro tão doloroso quanto o peso das suas palavras.
No final, desejar a sua morte por ser um pai ruim, por ser um marido
ruim, por ser um ser humano ruim ao todo, é pouco para ele. Ele está em
algum lugar lá fora, provavelmente, seguindo com a sua vida enquanto eu
corro todos os perigos na qual ele deveria me proteger.
Não adianta nada continuar me lamentando sobre quem ele foi, sei
disso. Me esforcei tanto para ser perfeita aos seus olhos, enquanto isso nem
mesmo importava. Nunca importou, na verdade, eu era apenas uma válvula
de escape, uma saída para uma vida mais fácil. E mesmo que eu não
consiga entender quais foram os seus motivos, passe o tempo que for, eu sei
que jamais irei me esforçar para compreender ou aceitar.
Tudo isso é inaceitável. Imperdoável. Muito doloroso.
É como se eu estivesse segurando a respiração desde quando soube
da morte da mamãe. O meu peito parece inchado, meus pulmões parecem
pesados e grandes demais para o meu corpo tão pequeno. Até quando isso
duraria?
O que acontecerá de agora em diante?
Quem eu serei agora, sem a sombra do meu pai me moldando ao seu
padrão a todo tempo?
A verdade é que eu tenho medo de descobrir a resposta, tenho medo
de ter perdido tanto tempo fingindo ser o que nunca fui, que,
consequentemente, seja tarde demais para ter uma personalidade própria.
— Mas você não está sozinha, Sofi — suas palavras me confortaram
tanto, que não posso conter as lágrimas que caem dos meus olhos no
mesmo segundo. — Não precisa mais ter medo, ninguém vai deixar nada te
acontecer. — Tudo que eu quero é ser abraçada.
Os beliscos em meu pulso aumentam na mesma frequência que as
lágrimas rolam pelo meu rosto.
Balanço a cabeça repetidas vezes em afirmativo, apenas para me
convencer de que ela está certa. Eu não quero mais ser tão solitária, não
quero imaginar como será a minha vida daqui para frente se não houver um
ombro amigo. A solidão me assusta e não por ser algo triste e sombrio, e
sim, porque eu não tenho ideia de como agir por conta própria. De como
sobreviver a tudo isso.
O medo de encarar o futuro e tudo que pode haver nele é
desesperador.
Não contenho o soluço engasgado que escapa dos meus lábios
quando encarando Kelly, eu permito que as minhas emoções sejam libertas
do meu peito quando fixando os nossos olhares, imploro por um pedido
desesperado.
— Eu posso te abraçar?
A sua resposta nada mais é que os seus braços arrastando-me em
direção ao seu peito. Um suspiro de alívio me escapa quando nossos peitos
se juntam e os meus braços rodeiam a sua cintura.
Inicialmente, fico sem saber o que fazer. Eu posso sentir a minha
barriga contrair quando os soluços me escapam sem aviso prévio, mas nada
importa. Kelly aperta o meu corpo contra o seu como se pudesse aliviar
toda a minha dor, e eu acredito mesmo que isso é possível, porque quando
deito a minha cabeça em seu ombro, sinto-me toneladas mais leve.
E pela primeira vez há muito tempo, eu posso desabar sem a
preocupação de que a qualquer momento o mundo possa desmoronar em
minha cabeça. Eu não quero me importar, quero apenas permitir que todos
os meus neurônios se desliguem.
Apenas por um momento…

É por volta das onze da noite e Jonah está deitado no meu colo com
o seu cabelo loiro sob os meus dedos enquanto seus olhos azuis me encaram
de volta ao passo que eu imploro para que Deus não plante dúvidas sobre
nossa mãe em sua cabeça. Eu não quero dizer para o meu irmão que somos
órfãos agora e que mamãe não vai voltar. Não quando ele ainda é uma
criança e tem uma chance de crescer sem a bagunça que é a nossa vida.
Ele precisa ser amado, precisa de carinho e de muita atenção. E se
existe uma força superior olhando para mim lá de cima, eu sei que Ele me
dará forças para dar tudo isso para o meu irmão, da mesma forma que sei
que mamãe faria.
— Sosô? — Um sorriso brota no canto dos meus lábios quando o
meu irmão chama por mim pelo apelido que tanto aquece o meu coração.
Mamãe gostava de me chamar assim.
— Sim, meu amor?
Seus olhos azuis são tão intensos quanto os de mamãe, e o brilho
que há nele quase faz com que eu sinta inveja por transmitirem tanta
inocência. A inocência que agora eu sinto saudades mais do que nunca. Seu
cabelo loiro é como o meu, completamente macio ao redor dos meus dedos
enquanto o massageio, assim como as sardinhas quase inexistentes em seu
nariz.
Ele lembra a mamãe em muitos aspectos.
— Tudo bem? — sua pergunta me surpreende, mas como em uma
mentira antiquada, sou rápida em afirmar.
— Estou bem, Jonah, por quê?
— Parece que você tava chorando...
Eu abro um sorriso triste, usando de todas as minhas forças para não
permitir que a sua voz suave faça com que o choro torne a dar as caras. Eu
ainda estou sensível, é um fato. A cada segundo quero libertar muitas outras
lágrimas, mas Jonah não precisa saber disso. Tampouco presenciar.
— É impressão sua, pirralho. — Ameaço fazer cócegas no meu
irmão, levando a ponta dos meus dedos à altura da barriga, cravando-os em
seu umbigo.
É uma clara tentativa de mudar o rumo da conversa.
Meu irmão encolhe o seu corpo, erguendo os joelhos o suficiente
para impedir o meu fácil acesso a sua barriga. Uma gargalhada genuína
escapa de seus lábios e eu o acompanho.
— P-Para! — Jonah se esforça em afastar as minhas mãos, e seus
olhos se fecham conforme o sorriso se alarga.
Afasto as minhas mãos da barriga de Jonah, mas ainda estamos
gargalhando. É bom ter um momento como esse com o meu irmão, faz
parecer que nada pode nos atingir se estivermos juntos. Como se tudo
ficasse bem. Eu sei que é verdade, e que agora somos eu e ele contra todo o
resto do mundo.
Conforme nossos risos cessam, o meu irmão volta a aconchegar-se
no meu colo. Seu corpo encolhe contra o edredom e as mãos apanham
alguns fios do meu cabelo caídos em meu rosto.
Apesar de, infelizmente, não ter tido muito tempo com mamãe,
Jonah herdou alguns hábitos que apenas ela tinha. De alguma forma, eu
sinto que ela ainda está entre nós. Em nossos corações. Estará para sempre.
— Não acha que é hora de dormir? — o questiono, tornando a
acariciar o seu cabelo macio.
O meu irmão larga os fios do meu cabelo e junta as palmas,
posicionando-as abaixo da cabeça, procurando por uma posição
confortável.
— Você pode cantar pra mim?
O seu pedido me surpreende.
Jonah já escutou algumas cantorias minhas quando eu era
apaixonada pela coisa e tudo que importava para mim era alcançar o sonho
de viver da música. No entanto, as circunstâncias mudaram. Eu já não
encaro a música como um conforto, não quero mais usá-la como algo
positivo na minha vida.
Papai destruiu isso também.
Tudo que eu consigo agora é enxergar a música, a cantoria e o
sentimento transmitido nela, como um gatilho. Ele transformou o meu
sonho em um completo pesadelo.
Ainda assim, quando encaro o par de olhos azuis do meu irmão
encarando-me como o Gato de Botas, soube que não conseguirei recusar o
seu pedido.
— Claro — acaricio o seu couro cabeludo, sem conter o sorriso no
canto dos meus lábios. — Feche os olhos.
A ponta dos meus dedos vagam pela extensão do couro cabeludo do
meu irmão, testa e têmpora, na tentativa de relaxá-lo. Quando um suspiro
longo escapa dos pulmões de Jonah e suas pálpebras se fecham, sei que é
hora de começar.
Fecho os olhos e vasculho a minha mente para encontrar uma
música apta para o momento, sentindo-me nervosa por, após tanto tempo,
ousar cantar novamente. Faz anos que as letras não se encaixam nos meus
lábios e as canções perderam completamente a graça e o significado.
Mas eu preciso fazer isso.
Respirando fundo, levo uma das mãos ao rosto suave de Jonah e o
acaricio conforme uso a mão livre para acariciar o cabelo. Então, limpando
a garganta eu inicio.
Eu sou uma fênix na água
Um peixe que aprendeu a voar
E eu sempre fui uma filha
Mas penas foram feitas para o céu
Então eu estou desejando, desejando além
Pela empolgação de chegar
É só que eu prefiro estar causando o caos
Do que deitar na ponta afiada desta faca
Com cada pequeno desastre...
Eu vou deixar as águas continuarem a me levar para algum lugar real
Porque eles dizem que lar é onde seu coração está inalterável
É onde você vai quando está sozinho
É onde você vai para descansar os seus ossos
Não é apenas onde você deita sua cabeça
Não é apenas onde você arruma sua cama
Contanto que estejamos juntos, importa para onde vamos?
As letras saem dos meus lábios como se a minha vida dependesse
disso, mas eu não sinto absolutamente nada, tampouco quero sentir. O meu
coração dói e um aperto quase insuportável se instala no meu peito, e eu sei
bem o porquê.
Baixo o olhar, observando o corpo mole do meu irmão. Seus lábios
entreabertos e o subir e descer do seu peito em uma respiração lenta, indica
que ele dormiu durante a melodia.
Com cuidado, levo ambas as mãos a cada lado de seu rosto e
suavemente o coloco sob o travesseiro. Em um resmungo, Jonah gira o seu
corpo e parece confortável em uma posição de lado, com ambas as mãos
ainda abaixo da cabeça como um apoio.
Arrasto a ponta do edredom pelo colchão e quando está ao meu
alcance, me levanto da cama para entendê-lo pelo seu corpo. Acaricio a sua
bochecha levemente avermelhada com o meu indicador e me afasto em
passos lentos em direção a porta.
Sinto que vou enlouquecer se ficar mais um segundo dentro deste
quarto. Preciso respirar. Preciso de ar fresco.
Antes de sair do quarto, apago a luz e me certifico de que o meu
irmão está mesmo em um sono profundo. Cinco segundos se passam, e
quando Jonah não se move, abro a porta e a fecho ao sair.
Olhando de um lado para o outro, observo o corredor totalmente
vazio, o que é um alívio. Odeio ser perseguida por aqueles dois seguranças
a cada passo que dou.
Agora, finalmente eu posso ter um pouco de liberdade.
Meu coração ainda bate descompassado dentro do meu peito, mas
eu o ignoro com todas as forças que há dentro de mim. Eu não quero sentir
absolutamente nada. Preciso suportar toda a bagagem de uma vida infeliz e
seguir em frente, e eu devo aprender a aceitar que enquanto todas as
memórias seguirem me atormentando e continuarem me abalando, nunca
poderei suportá-las.
Desesperada por um pouco de ar, vago pelos corredores vazios e
sem cor, não encontrando nada além da escuridão. Todos devem estar
dormindo a esta hora, e o lugar vazio como está, parece abandonado e digno
de participação em um filme de terror. Eu jamais ousaria ir além nesta
escuridão.
Encontro o mesmo corredor com algumas luminárias minimalistas
que percorri até encontrar o salão de treinamento. A claridade que há ali é
alta o suficiente para enxergar os degraus, mas nada além disso. Penso que
em algum lugar no fim da escadaria, talvez haja alguma sacada. Lá, talvez
eu possa ter algum tempo sozinha.
Sem perder tempo, subo o lance de escadas, segurando no corrimão
com uma das mãos.
O receio me atinge, por talvez, não ser um lugar adequado para
mim. Ainda assim, a minha necessidade de soltar o ar preso em meus
pulmões fora destas paredes é maior do que qualquer outra coisa.
Chegando ao topo, tudo que vejo nada mais é do que uma porta
branca. Há rachaduras da madeira por toda sua extensão, e a maçaneta
parece velha demais para estar ali, devido a ferrugem totalmente acabada.
Ok, tenho certeza que eu não deveria estar aqui.
Olhando de um lado para o outro e para a escadaria que acabo de
subir, levo uma das mãos à maçaneta e afasto qualquer outro pensamento
que me impeça de abrir a porta. Eu quero me arriscar. Então, olhando à
minha volta uma última vez, abraço o meu próprio corpo antes de entrar.
Avançando um passo adentro, a primeira coisa que me abraça é o
som acústico vindo direto de algum aparelho pousado em uma mesa
improvisada de madeira. Ela parece querer desabar em qualquer momento,
então, com cuidado adentro o lugar por completo e fecho a porta. Varro toda
a extensão do salão com o olhar, as paredes são iguais às demais, todas
cimentadas e sem muita cor. Uma cama está posicionada no centro do salão,
ao lado dela, dois criados com abajures pouco iluminados destacam o
ambiente.
Há roupas espalhadas pelo colchão, todas escuras, ornando
perfeitamente com o lençol branco.
Uma coluna cimentada divide o salão em dois cômodos, e do outro
lado, tudo está escuro.
Minhas mãos deslizam pelo moletom da minha calça, sentindo-me
como uma completa intrometida. Mas quando noto a presença de uma
janela feita de vidro no centro de uma das paredes, com a cortina voando
para fora como consequência da ventania, sequer raciocino sobre o quão
antiquada eu devo estar sendo quando sem hesitar, corro até ela. Minhas
mãos agarram a cortina e retirando-a do meu caminho, eu jogo a cabeça
para fora, sentindo o vento extremamente gelado contra a pele do meu
rosto.
Como uma viciada, respiro fundo tantas vezes que mal posso contar.
Meu cabelo paira sob o ar e os meus olhos se fecham com o alívio.
Jesus, como isso é bom.
Posso sentir minha bochecha gelar com a mudança repentina de
temperatura, mas nada é melhor do que a sensação de respirar o ar fresco
após dias. Meus pés se juntam no chão e quando abro os olhos, baixando o
olhar, finalmente noto a altura que me encontro.
Puta merda, isso é alto.
Meus olhos saltam em terror quando torno a erguer a cabeça e
percebo a total falta de iluminação na rua onde estamos. É um completo
breu. A lua no céu é quase a única coisa que me ajuda a enxergar a altura do
prédio em que estamos.
— Gostou da vista?
Giro sobre os calcanhares tão rápido que minha visão embaça com a
tontura.
— Ai, merda! — Levo uma das mãos ao peito, apertando-o
exatamente acima do coração.
Um riso ecoa, e quando finalmente consigo normalizar a minha
visão, posso reconhecer Jay.
— Você é maluco ou algo assim? — respiro fundo, sentindo a gota
de suor escorrer pela minha testa.
Jay logo a minha frente, com ambas as mãos dentro do bolso do seu
jeans escuro e o corpo inclinado contra a parede, bufa um riso.
— Você está invadindo o meu quarto e eu que sou o maluco? — O
seu tom sarcástico não passa despercebido.
Arqueio a sobrancelha, desviando os meus olhos dele por alguns
segundos para observar o salão mais uma vez. A cama desarrumada, as
roupas espalhadas e escuras como ele sempre é habituado a usar, me fazem
aceitar que esta não é uma mentira. Eu realmente sou uma intrusa, uma
daquelas malcriadas.
— Me desculpa, eu só precisava respirar um pouco. Não era a
minha intenção atrapalhar. — Gesticulo algo com as mãos, totalmente
confusa e desajeitada. Estou decepcionada e muito constrangida, sem saber
o que fazer para me livrar dessa situação. Então tudo que eu faço é
caminhar em direção a porta, pronta para voltar para o meu quarto.
Quando estou prestes a passar por ele e fingir que nada disso
aconteceu, uma das suas mãos agarra o meu antebraço, interceptando o meu
movimento.
— Não consegue dormir?
Encarando-o outra vez, o seu sorriso já não está presente nos lábios
e ele parece realmente interessado na pergunta.
Nego.
— Não acho que eu consiga — solto o ar dos pulmões, sentindo-me
um pouco tola sob o seu olhar que parece enxergar a minha alma. — De
qualquer forma, me desculpe por invadir o seu quarto. Confesso que estou
um pouco chateada por você ter uma janela maior que a minha. — Quis
brincar, apontando com a cabeça em direção a janela.
De fato ela é melhor do que a que há no meu quarto, principalmente
por não estar tão alta a ponto de ser impossível observar a luz do dia.
Ele ri, desviando os olhos para onde eu acabo de apontar.
— Posso transferir você para um quarto com janela, se for da sua
vontade. — Seu olhar volta ao meu, e preciso engolir em seco ao quase ser
arrastada para o abismo tão profundo que são os seus olhos.
Tão bonitos.
Balanço a cabeça, afastando os meus pensamentos quando o garoto
larga o meu braço.
— Não é necessário, sério, não quero incomodar.
Jay se afasta e retira o que se parece com um cigarro do bolso
traseiro, junto a um isqueiro. Acompanho os seus movimentos até o
momento em que ele sopra a fumaça pelo salão e prende o cigarro entre os
dedos.
Ele não é novo demais para usar essa coisa? - penso.
Cuida da sua vida! - meu subconsciente rebate.
Balanço a cabeça, sem conseguir acreditar que eu estou em uma
discussão interna comigo mesma. Eu realmente estou enlouquecendo.
— Você não me incomoda, Clarke. Na verdade, é o contrário disso.
O encaro, sentindo o meu rosto queimar com o seu olhar fulminante
fixo em mim. Ele me deixa envergonhada? O que é isso?
Abraço o meu próprio corpo e abro a boca repetidas vezes tentando
formular uma resposta, mas nada parece ser suficiente. Ele está sendo gentil
desde o dia em que pisei neste prédio. No entanto, não sei como agir ou me
comportar em situações como essa. Tudo parece ser exagerado demais ou
forçado demais, como se eu ainda fosse o que papai me moldou para ser.
Não tenho a mínima ideia de como agir para me livrar dos padrões
estabelecidos por ele. Preciso criar o meu próprio. Sem a ajuda de ninguém.
Então, sabendo que vou me arrepender amargamente pelos
próximos minutos, me preparo para me sujeitar a uma tentativa de puxar um
assunto.
Qualquer coisa que me livre do pimentão que eu sei que meu rosto
se tornou.
— Então, Kelly é a sua irmã? — É óbvio que ela é sua irmã, Sofia,
que droga de pergunta é essa?
Balanço a cabeça e me atrapalho nas palavras em uma nova
oportunidade de consertar o vexame que estou passando.
— Quer dizer... Eu sei que ela é a sua irmã, mas... só estou querendo
dizer que foi uma surpresa pra mim. Ela disse que é de consideração. —
Atropelo as palavras e sem a mínima noção do que faço, finjo uma tosse
para justificar a minha frase mal formulada.
Estou com tanta vergonha que fixo os meus olhos no chão
cimentado como se a minha vida dependesse disso, não quero erguer o
olhar e encarar a realidade do que está acontecendo. Tampouco quero ver
aquele olhar julgador que todos me oferecem. O que ele deve estar
pensando de mim agora?
O quão difícil seria cavar este chão de concreto, me enfiar dentro
dele e nunca mais sair?
As maçãs do meu rosto queimam pela vergonha, e meus dedos
acariciam um ao outro para amenizar a agonia do meu corpo.
— Clarke — quando a sua voz rouca chega aos meus ouvidos,
erguendo os olhos receosos para encará-lo, diferentemente do que eu
imaginava, Jay não tem a mínima sombra de um sorriso no rosto. Ele
mantém uma das mãos em seu cigarro e seus olhos analisam cada canto do
meu rosto. — Por que está nervosa?
Engulo em seco quando cessando o movimento dos meus dedos,
abraço o meu próprio corpo outra vez, como se isto pudesse aliviar o que
sinto.
Não quero ser sincera com ele, não quero dizer que todas as pessoas
que eu tentava algum diálogo nos últimos meses, achavam-se no direito de
me humilhar, atormentar todos os meus dias e me desprezar apenas porque
eu sou filha de Sebastian Hazel Clarke. Não quero dizer que eu espero a
mesma coisa de todas as pessoas.
Ser largada em um colégio infestado de filhos daqueles que meu pai
roubava milhões de dólares, realmente foi um verdadeiro pesadelo.
— Não estou nervosa — Minto. As palavras saem tão baixas que
nem mesmo eu me ouço.
— Não minta. — O garoto atira a ponta flamejante do cigarro para o
chão e o pisoteia com suas botas. Deixo de acompanhar o movimento dos
seus pés apenas quando começam a caminhar em minha direção.
Erguendo o pescoço, meu coração acelera descompassado conforme
o garoto se aproxima, e sequer sei o motivo.
— Não estou mentindo — sussurro, e quando os seus olhos descem
à altura do meu pescoço e me acompanham engolir em seco, sei que ele
pega a minha mentira.
Ele é observador.
Um sorriso no canto dos seus lábios carnudos leva os meus olhos até
o local. Meu corpo queima a cada passo que Jay avança em minha direção e
apesar de sentir medo de sua proximidade, meus pés cravados no chão de
concreto não permitem que eu me mova.
Acompanho cada movimento seu e não ouso transmitir o quão tensa
estou, afinal, sei que um passo em falso, ele poderia enxergar tudo aquilo
que está escondido perfeitamente dentro de mim.
Torno a encarar os seus olhos quando o garoto cessa o passo à
minha frente, uma onda de choque percorre cada milímetro do meu corpo a
partir do momento que sinto a colisão de dois de seus dedos na ponta do
meu queixo, iniciando uma carícia leve com o polegar no local. Meu corpo
estremece conforme sinto a temperatura de seus dedos quentes como a
brasa em contato com a minha pele fria, e por mais que a proximidade em
que estamos seja uma novidade para mim, eu não me afasto.
Seu toque é bom. Coincidentemente, me lembra a forma como
mamãe beijava a ponta do meu nariz ou acariciava o meu rosto com a
pontinha dos dedos.
Não sinto vontade de fugir quando ele o faz, o que é estranho.
— Tudo bem. Use a janela quando quiser. Você já conhece o
caminho. — seu polegar acaricia a ponta do meu queixo em círculos uma
última vez, antes de Jay puxar a mão para si novamente e com um sorriso
genuíno sem mostrar os dentes, recuar alguns passos, sem quebrar o nosso
contato visual.
De repente, o meu corpo parece ser feito de Lego e temo desmontar
a qualquer momento.
— Por que você está sendo tão gentil comigo? — ouso perguntar ao
abaixar os braços e deixá-los ao lado do corpo.
Ele sorri.
— Gentileza não é o meu forte. Mas você vai descobrir isso. —
Noto quando a sua mão estende para trás e agarra a maçaneta da porta. —
Boa noite, Clarke. Aproveite a vista.
Então ele se vai deixando-me plantada no centro do quarto com
milhares de dúvidas voando sob minha cabeça e com o corpo mole como
uma gelatina.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Não sei quando foi que as lágrimas deixaram de rolar pelo meu
rosto durante a noite, mas quando eu abro os meus olhos e enfrento a
claridade que entra pela janela aguçando a sensibilidade dos meus olhos,
percebo que este vai ser outro dia daqueles cheios e irritantes pra cacete.
— Merda! — Murmuro, agarrando parte do edredom e o puxando
para cobrir os meus olhos.
Conforme eu tento arrastar o tecido aos meus olhos, a ponta dos
meus dedos se arrasta pelo lençol ao meu lado, mas quando derrapo a palma
da minha mão pelo espaço vago do colchão e o encontro completamente
vazio, abro os olhos e levanto-me em um sobressalto.
— Josh! — Meus olhos estão sensíveis, mas me esforço para
mantê-los abertos.
Posso sentir o meu cabelo roçando boa parte do meu rosto e o
meu corpo parece pesar uma tonelada devido as roupas que eu não me dei o
trabalho de trocar ontem a noite quando fugi para casa como uma covarde.
Meus olhos semi-abertos dificultam a minha tentativa de olhar ao
redor, ainda assim, observando o quarto em um raio de noventa graus em
ambos os lados, meu coração falha quando encontro o quarto vazio.
Acordar sem o meu irmão ao meu lado quando ele é sempre o
último a levantar, é desesperador e preocupante.
— Josh? — Chamo pelo seu nome uma segunda vez, levantando-me
da cama desajeitadamente e equilibrando o meu corpo em uma só perna.
Minha cabeça gira pela tontura e eu sinto que posso cair a qualquer
momento, mas usando de todas as minhas forças, me levanto, equilibrando
o meu corpo desta vez em ambas as pernas.
— As… — Ouço a voz do meu irmão ecoar, na direção da divisória
da mini cozinha com tranquilidade e quase penso ter notado empolgação no
tom de voz.
Solto o ar e finalmente esfrego os meus olhos para enxergar com
clareza. Jesus. Eu realmente estou ficando maluca com toda essa merda.
Caminho lentamente em direção ao outro cômodo para garantir que
o meu irmão está são e salvo. Os meus pés parecem uma batata que acaba
de ser cozida dentro dos tênis extremamente apertados, mas apenas os
ignoro e sigo o meu caminho até Josh.
Apoio-me na parede que separa os dois cômodos para passar pela
porta, e só quando ergo o meu olhar, noto o tanto de sacolas que há no chão.
Josh, ao lado dela, enfia dois pedaços enormes do que parece ser torta de
limão na boca. Que merda é essa?
— Isso aqui é uma delícia! — Eu nem sei como consigo
compreender o que ele diz com tanta torta enfiada na sua boca.
De onde veio tudo isso?
A cena parece ter feito desaparecer a tontura ou qualquer outra coisa
que me impeça de caminhar rapidamente até Josh e retirar os pedaços de
torta que estão fora da boca. Imediatamente atiro os restos para um canto
qualquer e vasculho as sacolas, estranhando o fato de ter toda aquela
comida dentro da nossa casa.
— De onde veio isso, Josh? — questiono, alcançando uma das
sacolas e separando as alças para verificar o que há dentro.
Biscoitos, muita comida congelada, macarrão instantâneo,
salgadinhos, caixas de donuts, caixas de torta de limão e morango, pote de
sorvete e muitas outras guloseimas que eu nem posso sonhar em comprar.
Que merda é essa?
Largo as sacolas e encaro meu irmão que ainda limpa o canto dos
lábios com o dedo e leva à boca os resquícios de torta, feliz como nunca.
— Josh! — Me esforço para ser rígida o suficiente para o meu irmão
perceber que não há nada de engraçado em tudo isso e que é hora de falar
sério.
Ele me encara, finalmente deixando de lado toda esta comida.
— De onde veio isso? — pergunto mais uma vez.
Meu irmão se encolhe, abraça os próprios joelhos e me oferece um
daqueles olhares de quem aprontou e está escondendo a travessura que
provavelmente me faria ter duas paradas cardíacas e um derrame.
Firmo os nossos olhares e Josh finalmente parece se dar conta de
que estou zangada com ele.
Eu não o ensinei a abrir aquela porta enquanto eu não estivesse
presente, também não o ensinei a comer qualquer coisa que não fosse eu a
oferecer. Ele quebrou uma das lições mais importantes ao longo destes
anos, então sim, eu estou zangada.
— Foi um presente… — Sua voz chorosa não me convence. — Ele
disse que eu poderia comer à vontade.
Franzo o cenho, sentindo o meu coração acelerar.
— Ele? Ele quem?
— Jason… — Josh desvia os olhos para o próprio corpo e retira
algo parecido com uma pulseira do bolso. — Ele me disse pra te entregar
isso, e que você tinha esquecido com ele noite passada.
Levo uma das mãos até o cordão preto da pulseira e enrolando-a
entre dois dedos trago a altura dos olhos, e o ato é o suficiente para
reconhecer de onde ela veio. O pingente de revólver balança no ar, o
símbolo de caveira preso entre ele, ornando como se a arma fosse uma
espada e estivesse partindo o crânio em dois.
Eu conheço isto.
É o mesmo símbolo bordado na jaqueta de Lexie ontem a noite, mas
não é esta a questão aqui, não é isso que chama a minha atenção, afinal, eu
sempre soube qual é o símbolo da Academia. No entanto, este aqui não é
um cordão comum. Eu já o vi uma vez, há muito tempo atrás.
É o cordão do Jason.
Ainda me lembro de vê-lo usando em seu pescoço por cima das
camisetas casuais que costumava vestir.
Ele transformou o próprio cordão em uma pulseira e ainda teve a
coragem de me enviar.
Quem caralhos ele pensa que é?
— Quem autorizou você a abrir a porta da nossa casa para
estranhos, Josh? O que eu te disse sobre isso? — estou furiosa, e mais uma
vez Jason está conseguindo tudo que quer. Abalar as minhas estruturas.
Meu irmão baixa o olhar e cruza os braços conforme sua cabeça
balança de um lado para o outro, aparentemente pensando em uma resposta
para a minha dúvida. E tinha que ser uma das boas.
No entanto, a ação do meu irmão é totalmente contrária ao que eu
realmente esperava. Seus ombros sacodem à medida que ele ergue os olhos
e ri baixinho.
Qual é a droga da graça?
— Ele disse que diria isso, e que eu deveria chamar você de
ranzinza quando o fizesse. — Meu irmão espreme os lábios, contendo o seu
riso quando nota que em meus olhos não há diversão alguma.
O interior de minhas narinas queima e minhas mãos começam a
tremer pela força imensa que é depositada em meu autocontrole.
Então esse é o seu jogo. Usar Josh contra mim.
O filho da puta mal pode esperar o tombo que seria descobrir que eu
não cairei na cilada mais uma vez.
— Foi ele quem trouxe toda essa comida?
Ele apenas assente. Seu corpo está completamente encolhido contra
a parede e seus olhos brilham, assim como a lambança em seus dedos. Meu
irmão pode odiar quando eu sou dura com ele, mas essa situação específica
precisa disso, Josh precisa entender que o passado está no passado e que
nada do que estávamos acostumados continua igual. Ciclos se encerram e as
pessoas mudam. Jason não é nada do que meu irmão pôde conhecer e ele
precisa entender isso de uma vez.
Tomo a frente da situação e inclino o meu corpo o suficiente para
prender as alças das sacolas em minhas mãos e trazê-las contra o meu peito
à medida que o ódio me cega e dispensa o apoio da racionalidade no meio
da confusão. Caminho no meio de nosso quarto de hotel com toda a comida
em meus braços, ouvindo os passos de Josh ao meu encalço quando chego
até a pia da mini-cozinha caindo aos pedaços.
Jogo os sacos na cuba e reviro o plástico, derrubando os alimentos
todos perfeitamente empacotados. Ele pensa que eu preciso de alguma porra
de caridade? Nesse caso, ele pode ir se foder.
Já me sinto impotente.
Já me sinto uma irmã de bosta. Incapaz. Neurótica.
Entregar uma dúzia de comidas em minha casa para provar que eu
preciso de ajuda e que seria obrigada a abrir mão de meu orgulho, tudo
porque é Josh o mais necessitado, é um golpe baixo. O cúmulo do que eu
sei que posso aguentar, isso já é demais até mesmo para mim.
Parece que é o que querem. Testar os meus limites.
Agarro uma das comidas e abro a embalagem, prestes a jogá-la na
lixeira. Não quero que alguém veja tal vulnerabilidade como passe livre
para mexer com a minha cabeça e manipular as minhas ações. Estou na
merda? Sim. Sem dinheiro para alimentar o meu irmão? Sim. Mas nem
mesmo isso é uma razão para baixar o nível de uma forma tão humilhante.
— Todas vão para o lixo? — sua voz chorosa às minhas costas me
liberta do transe caótico na qual estava imersa.
Com a embalagem em mãos, me viro, encontrando o rosto angelical
de Josh cabisbaixo e os lábios ainda sujos de chantilly. Baixo a guarda. Meu
coração se aperta na mesma hora, como se estivesse sendo esmagado por
todos os lados.
Há muito tempo eu não via um sorriso tão genuíno no rosto do meu
irmão, e tudo isso por ter diversas variedades do que comer diariamente.
Não vou negar, isso é a porra de um inferno. Tudo isso. Josh agiu por
impulso apenas porque poderia ter o que comer e quase nos colocou em
risco.
Se dependesse de mim, eu jogaria toda essa comida dentro da
privada e alimentaria os diversos insetos e vermes que devem viver no
esgoto, porque é para isso que serve tudo que vem dele. No entanto, não sou
apenas eu a prejudicada com toda essa história, eu ainda tenho uma criança
para cuidar e alimentar, e tudo isso, toda essa comida… provavelmente
facilitaria a nossa vida financeira por pelo menos algumas semanas.
Eu me coloco de pé, respirando fundo e mais uma vez, abrindo mão
de todo o meu orgulho para o bem do ser mais importante para mim. Posso
engolir o meu orgulho desta vez, se isto significar que não serei assombrada
pelo ronco de sua barriga durante a noite.
Afundo a mão no bolso a fim de guardar a pulseira para depois
pensar sobre o que eu farei a respeito dela, então ofereço a palma da mão
para Josh.
Ele ergue o pescoço e uma lágrima solitária escorre pelo seu rosto.
Só então eu percebo que estou sendo uma otária com o meu irmão graças a
ele. Tudo que envolve Jason não termina bem, eu sei disso, e mesmo assim
não me dei conta que estava perdendo o controle.
E mais uma vez, ele consegue o que quer.
— Vem, está tudo bem — balanço a mão, esperando que ele a
agarre.
Receoso, Josh pega a minha mão e circula a minha cintura com os
braços.
— Me desculpa, As, me desculpa, tá?
Acaricio o cabelo que despencou em seu rosto, afastando-os para
longe e fecho os olhos, me sentindo péssima por ter sido tão exagerada.
Josh não tinha como saber das coisas que eu o poupei, não tinha como ele
saber que o cara que nos ajudou mais do que qualquer um há alguns anos,
teria se transformado em um completo estranho e alguém que devemos
abominar até o seu último suspiro.
Meu Deus, eu realmente sou uma péssima irmã.
— Está tudo bem, Josh — ajoelho-me à sua frente, afastando-o o
suficiente para fitar os meus olhos. — Por que não me mostra tudo que
temos para comer?
A sombra de um sorriso se forma nos lábios dele e eu finalmente
entendo que deveria ter sido assim desde o início.
— Sério? — uma luz brilha em seus olhos ilustres.
Meu corpo incendeia, sei que em algum momento eu me
arrependerei por ter engolido o meu orgulho com tanta facilidade. Uma
hora, com toda certeza eu vou me amaldiçoar por ter dependido do pão que
o diabo amassou porque é o que pode saciar a minha fome. No entanto, não
será agora.
Assinto sem hesitar, contemplando a animação que controla os pés
de Josh ao guiá-lo até a cuba da pia com um sorriso insubstituível
estampado em seus lábios.
— Tem macarrão instantâneo — Ele toma algumas embalagens de
lámen em ambas as mãos, balançando-as no ar. — Não são os seus
favoritos?
Sim, sou literalmente apaixonada por macarrão instantâneo, e agora
eu sei que não é apenas o Josh que se lembra dessa informação.
— São sim — alcanço o pacote e trago à altura dos olhos, contendo
um sorriso conforme leio os sabores. — Talharim, carne com tomate,
legumes… Parece bom. — Baixando a embalagem para liberar o meu
campo de visão, encaro o meu irmão e balanço o pacote no ar. — Posso
cozinhar naquela coisa elétrica na cozinha, que tal um jantar?
Meu irmão ri, divertindo-se com a ideia.
— Eu topo!
Me sinto desprotegida e muito exposta.
Decidi que eu deveria me vestir sem que estivesse estampado na
minha testa “sou uma fugitiva”. Foi extremamente difícil sair de casa sem o
capuz cobrindo toda a minha cabeça e sem as minhas costumeiras roupas
largas. Mais difícil do que isso, foi tentar me convencer a não voltar para
casa e deixar que os homens de Floyd se fodam.
É claro que estou fazendo isso por ter a plena consciência de que
estão procurando por uma garota nas mesmas características que eu, mas
talvez agindo como uma civil comum e indefesa, eu fosse riscada da lista de
suspeitas. No entanto, ainda não descobri se é uma ideia genial ou mais uma
perda de tempo.
Erguendo o olhar pelas calçadas da cidade após rodar por todas as
lojas da proximidade atrás de um emprego suportável e humilhante por 15
dólares e ter sido rejeitada em todas elas, cesso o meu passo quando vejo a
silhueta de Lexie boquiaberta bem diante de mim a alguns metros,
observando-me com os olhos esbugalhados ao analisar o meu visual.
— E aí? — Lexie cantarola conforme desce os olhos por toda a
extensão do meu corpo ao caminhar na minha direção. — Quem é você,
garota?
Vasculhei todas as minhas roupas até encontrar um jeans justo e uma
jaqueta qualquer branca, sem capuz, por cima de uma blusa fina canelada
gola alta. Não fazia ideia de como aquilo tinha ido parar nas minhas coisas,
mas eu não posso reclamar. Ao menos estou apresentável para ser chutada
de todos os estabelecimentos, como de costume. Nos pés, meu único par de
coturnos desgastados, porém utilizáveis, completam o meu visual. Estou
parecendo com uma típica garota da Califórnia desesperada por um
trabalho.
— Alguém que não vê a hora de ir pra casa e tirar essa coisa —
aponto para a jaqueta tão velha que parece pesar toneladas.
Lexie ri.
— Não é tão ruim, você se acostuma — Aconchegando-se ao meu
lado e relaxando suas costas na mesma parede em que eu estava, Lexie me
encara. — Você está bem?
Ela está adorável. Seus lábios estão preenchidos por um gloss, como
sempre, seu cabelo preso em um rabo de cavalo no topo da cabeça e em seu
corpo, as típicas roupas pretas. Lexie consegue se parecer com a garotinha
inocente na qual eu me lembro, e com uma mulher cheia de cicatrizes, na
mesma proporção.
Sei que a pergunta foi direcionada ao episódio de ontem, mas eu não
quero falar sobre isso. Principalmente depois do que houve mais cedo.
— Considerando que fui enxotada para fora dos padrões de jovens
merecedores de um emprego de bosta, não, não tá nada bem.
Lexie torce os lábios, examinando o meu semblante decepcionado.
— Está procurando por emprego?
— Tenho uma criança para sustentar.
— Posso conversar com Rubens. Ele vai entender se eu disser que
você está passando por uma barra.
A encaro esperançosa, mordendo os lábios ao segurar a palavra “por
favor” que insiste em subir pela minha garganta. Já não me importa quantas
humilhações eu tenha que suportar até que possa ser uma mulher corajosa o
suficiente para encarar os meus próprios demônios para o bem da única
parte pura que há em minha vida. Mas o preço que seria pago… Ele fere os
meus princípios.
Quanto à Lexie, eu não sei como será a nossa relação de agora em
diante, mas definitivamente não quero fazer do nosso elo um diário de
mágoas e desgraças. Não quero cometer o mesmo erro. Nós já estivemos
aqui antes e quase pensei que a perderia para sempre pelas raízes do
passado, agora quero apenas cortá-las e cuidar da semente todos os dias
para que não adoeça.
Sujar a semente com o mesmo veneno que a matou da primeira vez
nos levaria de volta para o mesmo erro e a impediria de crescer. Assim é o
ciclo da vida.
— Eu agradeceria muito. — Quebro o silêncio ao desviar o olhar
para o movimento da rua, contemplando o voo dos pássaros até uma árvore
não muito distante de nós.
Lexie cruza os braços, assentindo levemente com a cabeça.
— Que isso… — a encaro, observando o sorriso sincero que brota
nos seus lábios. — Sabe que ainda pode sempre contar comigo.
Sorrio fraco, abaixando a cabeça. A verdade é apenas uma, estou
constrangida pela maneira que a tratei antes. Lexie ainda é a amável garota
que sempre me entendeu e me tratou como parte de si. Sempre tivemos esta
afeição uma pela outra, mas do lado de cá as coisas tinham balançado
demais nos últimos tempos e tudo estava completamente fora do lugar. Uma
grande turbulência emocional.
Ainda assim eu me arrependo por ter sido tão bruta e por ter
escolhido palavras tão baixas para atingi-la.
— Eu realmente tô feliz por você estar viva. Me desculpa por ter
sido tão explosiva. — Sussurro, relaxando as minhas costas no tronco de
uma árvore.
Lexie suspira, soprando um riso desacreditado.
— Eu já sabia que era da boca pra fora, de qualquer maneira — vira
a cabeça para a minha direção e estala a língua no céu da boca. — E a
propósito, tô feliz pra caralho por você estar aqui.
— Ah, acho que tudo seria melhor em outras circunstâncias… —
Sem dúvidas qualquer outro lugar que não estivesse infestado de capachos
do Floyd, seria melhor. Estou rindo da piada, mas na verdade isso
claramente seria um motivo para me debulhar em lágrimas.
— Eu sobrevivi a dois tiros, meu amor. Nem a morte quis conviver
comigo no inferno, então vamos ver o que aqueles cuzões vão fazer a
respeito. — Arregalo os olhos, incrédula por Lexie estar dizendo algo assim
em público, mas ela realmente não parece se importar.
Faço uma careta e olho ao nosso redor, apenas para me certificar de
que estamos sozinhas.
Assim que Lexie dá de ombros e age com total naturalidade, noto
que duas senhorinhas passam caminhando ao nosso lado, nos encarando
como se fossemos duas monstruosidades. Uma delas murmura um “Jesus
Cristo” enquanto a outra apenas gesticula o sinal da cruz em seu peito. Quis
rir da cena, mas tudo o que faço é esconder os lábios e arranhar a garganta,
engolindo a gargalhada que ameaça me escapar.
Lexie arqueia uma das sobrancelhas, me encarando como se eu
fosse algum tipo raro de extraterrestre, eu apenas gesticulo disfarçadamente
em direção às senhoras que resmungam algo baixinho enquanto nos fitam
por cima do ombro, esperando que a minha amiga entenda de uma vez por
todas que eu não tenho o mínimo interesse de responder perguntas sobre ser
uma comparsa de crime na delegacia.
— Ah — Lexie inclina a cabeça, finalmente se dando conta que
alguém a ouviu. — As senhoras não têm educação? É feio ouvir a conversa
dos outros. Só por causa disso, pedirei ao meu grão-senhor das trevas para
que as visite esta noite! — O seu tom maquiavélico faz com que as
senhoras corram entre os carros, especificamente, para longe de nós.
Quase engasgo com a risada que me escapa, imediatamente tapo a
boca com uma das mãos para abafar o som constrangedor.
— Você enlouqueceu?
Lexie ri, jogando a cabeça em direção a calçada, convidando-me
para uma caminhada casual. Eu a acompanho, ainda rindo em medidas
controladas.
— Aspen, tipo, todo mundo da cidade sabe quem eu sou — revela,
sem conter uma gargalhada genuína. — Não é novidade pra ninguém que
eu sou desequilibrada. Mas confesso, não há nada que pague a cara delas.
— Lexie tosse, contendo uma gargalhada que poderia chamar a atenção de
toda a cidade.
Lhe dou um empurrão de leve, que só a incentiva a aumentar o riso.
— Elas podem nos denunciar! — Faço uma careta antes de encará-
la por cima do ombro. — E como assim as pessoas sabem quem você é?
Cessando o riso, Lexie dá de ombros no mesmo segundo em que
paramos diante de uma faixa de pedestre, esperando o sinal abrir para que
possamos atravessar.
— Eu nasci aqui — revela. — Como você sabe, eu sou irmã de
consideração de você sabe quem. — Ela faz uma careta ao citar o novo
apelido para citar o assunto proibido em nossa relação, e por incrível que
pareça eu quis rir.
— Sim, mas eu pensei que você tinha nascido em Nova York —
desvio de pedestres conforme atravessamos a rua.
— Eu cresci em um lar adotivo, na verdade. Nunca soube de
verdade em que lugar exatamente minha “mãe” deu à luz a mim — Lexie
faz aspas com os dedos ainda agarrados na alça da mochila. — Mas a partir
do momento que eu tive mentalidade para saber onde estava, eu me
apaixonei pela cidade. O lado ruim de cidade pequena são os fofoqueiros de
plantão, então sim, a maioria aqui sabe que eu sou descontrolada e emotiva
demais. Eles me acham exagerada.
Nós já tínhamos tido essa conversa, então, tudo que eu faço é
confirmar com a cabeça e seguir caminhando. Lexie e eu somos mais
parecidas do que gostaríamos e um dos motivos é ambas termos sido usadas
para um esquema sujo. Eu entendo que não é fácil ter esse lado da sua vida
exposto para milhares de pessoas, simplesmente não consigo compreender
como está a sua cabeça quando a cada passo dado nas ruas, as pessoas te
observam e te julgam sem saber um terço do que viveu. Ela não parece se
importar, mas quando vivemos momentos tão apavorantes como esses,
aprendemos a fingir bem. A oferecer um sorriso e acenar. Mesmo quando
desejamos apenas desmoronar.
Embora Lexie pareça não se importar, eu a conheço o suficiente
para saber que tudo isto não é nem um pouco confortável para ela. E por
este motivo, não sinto a mínima vontade de prolongar o assunto.
— Então foi assim que você se tornou tão íntima de Rubens? —
pergunto, mudando o assunto.
Lexie sorri, parecendo viajar nas próprias lembranças de sua mente.
— Rubens é um ser humano incrível. Ele me ajudou muitas vezes
quando criança, tipo, com comida fresca, teto, um banho quente… Com
uma vaguinha de emprego mixuruca para espiar minha amiga fujona… —
quando Lexie ergue o olhar para me encarar, um ponto aleatório em algum
lugar da rua onde estamos, seu sorriso desaparece e o par de sobrancelhas
se juntam. — Aqueles caras, ali — gesticulando com a cabeça suavemente,
a morena me encara. — Você reconhece algum?
Sigo o seu olhar, espremendo os olhos para facilitar a minha visão.
É quando encontro dois homens encostados casualmente em uma SUV
prata, ambos de braços cruzados enquanto observam o caminho que
fizemos há alguns segundos. Aguço a minha visão e quando procuro
vasculhar o rosto do garoto de cabelos castanhos tão alto quanto o homem
barbudo ao seu lado, eu o reconheço de imediato.
Cessamos o passo e posiciono-a à minha frente, na intenção de tapar
completamente a visão da dupla.
— Aquele garoto, o de camisa escura e suéter, eu já o vi antes. —
pisco algumas vezes, tentando me recordar do maldito nome dele. Aguço
todos os meus sentidos e me esforço para me lembrar de todos os detalhes
da nossa conversa.
Lexie encara disfarçadamente o outro lado da rua onde estão os
caras e seus olhos voltam aos meus outra vez, procurando por uma resposta.
— Eu precisava de um ar… Depois da nossa conversa. Então fugi
para uma estrada deserta e fiquei apenas ali, encarando o riacho e
repassando os últimos anos quando um cara apareceu. Do nada. Ele quis
saber o meu nome, pagou de simpático… Esbarrou em mim
acidentalmente… — balanço a cabeça e começo a ligar os pontos
lentamente.
Interrompendo-me, Lexie balança a cabeça e mordiscou os lábios.
— Você disse a ele? — questiona. — O seu nome.
Nego.
Assentindo, Lexie circunda meus ombros com um de seus braços,
puxando-me para ela e colando os nossos quadris. Faço uma careta e estou
prestes a resmungar, quando o aperto de sua mão me cala como uma
repreensão.
— Temos que improvisar, a partir de agora somos um casal —
arregalo os olhos, mas ela simplesmente não permite que eu abra a boca
para resmungar. — Na próxima esquina vamos nos separar, você vai para a
direita e eu para a esquerda, vou me esconder e te seguir assim que der. Se
nenhum deles seguir você, então funcionou.
Não é uma má ideia, apesar de ser extremamente arriscado. Porém,
de qualquer forma, assim que avançarmos alguns passos à frente, eles nos
notariam de qualquer jeito. Ou seja, não há outra alternativa. Eu preciso me
arriscar e agir como uma civil normal que tem uma namorada e estão
caminhando juntas por essa linda cidade, é uma coisa extremamente
normal, não?
— Tá legal — concordo, circundando a sua cintura com um dos
braços. — Próxima à direita, né?
— Próxima à direita. — Confirma.
Aquiesço.
Lexie captura o seu telefone no bolso traseiro da jeans com a mão
livre e o ergue à altura dos olhos. Acompanho o seu movimento apenas para
me dar conta de que ela pretende fazer com que pareça que estamos
entretidas com algo que há no celular. Ela é realmente inteligente.
Nós sussurramos coisas totalmente sem sentido conforme
caminhamos pela calçada. Não ouso erguer o olhar para observar os caras
do outro lado da rua, só não sei se o motivo é por estar com um medo
infernal ou apenas porque não faço ideia de como agir fora das sombras.
Lexie me guia, o seu braço relaxa casualmente em meu ombro e
seus lábios se curvam em um sorriso atrativo conforme gesticula em direção
ao telefone, como um aviso para que eu siga os seus passos e faça de conta
que há algo de engraçado no aparelho. Seguindo os seus passos, eu abro um
sorriso suave e forço o meu aperto em sua cintura, relaxando a minha
cabeça em seu ombro.
Eu não estou olhando para a cena, mas sei que estamos fazendo um
bom trabalho. Realmente parecemos com um casal bem apaixonado.
Deixo de encarar o telefone apenas quando ouço a voz rouca de um
cara parado bem à nossa frente. Meu coração parece errar uma batida, mas
uso todo o meu autocontrole para manter as minhas expressões o mais
natural possível. Quando ergo o olhar, percebo que estamos literalmente na
merda.
O cara da estrada está a poucos metros de distância, ambas as mãos
nos bolsos do seu jeans e o cabelo totalmente bagunçado, além do sorriso
gentil que adorna os lábios. Ele é um bom ator, não?
— Com licença, meninas — Ele encara Lexie por alguns segundos,
e quando as suas esferas castanhas vem ao meu encontro, sua expressão
surpresa indica que ele me reconheceu. — Oi… é… A garota da história
bizarra do chefe assassino, não é? — Ele parece conter um riso, eu, no
entanto, apenas abraço o corpo de Lexie e me esforço ao máximo para ser
gentil.
— Sou eu.
Lexie me encara de soslaio, sem deixar de acompanhar a conversa e
relaxar o braço em meu ombro. Eu encaro o sujeito e procuro encontrar
algum vestígio de que ele pode mesmo ser algum suspeito. No entanto, ele
continua com o seu par de olhos brilhantes, como se de fato não fosse
alguém que devêssemos nos preocupar.
Tão convincente.
— Bom, eu não quero atrapalhar o casal — desviando os olhos dos
meus, o homem encara Lexie por tempo demais e quase pergunto se há algo
de errado. No entanto, ele balança a cabeça e volta a me encarar. — É que
na verdade, eu e o meu amigo estamos fazendo uma pesquisa para a
universidade e estamos procurando por uma garota específica que poderia
nos ajudar com esse pequeno problema — Ele aponta na direção de seu
amigo.
Nós seguimos o seu sinal, e o olhar completamente mal
intencionado de seu amigo encostado no capô do carro, mantendo a todo
tempo um telefone em mãos à altura do quadril, extermina todas as minhas
dúvidas, se é que havia alguma. Isso está longe de ser uma cena agradável
de se ver.
Volto a encará-lo no momento em que ele prossegue:
— Nós sabemos que ela vive por estas redondezas, mas não a
encontramos em lugar algum — coçando a nuca com a ponta dos dedos, seu
olhar alterna entre mim e Lexie. — Por acaso vocês não conhecem Sofia
Clarke?
Eu congelo.
A saliva que eu engulo completamente no seco parece ser feita de
navalhas e rasga toda a minha garganta por dentro. Meu aperto em Lexie se
intensifica e eu simplesmente não sei como agir ou como responder a sua
pergunta sem demonstrar o pavor que estou sentindo dentro de mim.
Imploro mentalmente para Lexie tomar a frente do assunto, pois se
depender de mim, nós estaremos mortas.
— Eu procurei por ela há alguns dias, perguntei diretamente a
alguns moradores e não obtive uma resposta positiva — isso explica porquê
ele decidiu “esbarrar” em mim durante a noite.
Abro a boca para respondê-lo, no entanto, Lexie guarda o seu
telefone novamente no bolso do jeans e inclina a cabeça, aproximando os
nossos rostos. Respiro fundo e a encaro, perguntando visualmente que
merda ela está fazendo, porém, mal tenho tempo para raciocinar o que
acontece, porque os seus lábios grudam nos meus.
É um beijo técnico, nada de língua, nada de saliva, no entanto, o
cheiro e textura de seu gloss substitui completamente o que poderia ter sido
incluído no beijo. Tem cheiro de chiclete. Além do cheiro suave de seu
perfume que parece vir direto até as minhas narinas.
Quis me separar dela imediatamente, porém Lexie retira a mão de
meu ombro para levá-la a minha nuca, onde reúne boa parte do meu cabelo
e o joga todo para só um lado, afastando-o enquanto os seus lábios
preenchidos de gloss espalham beijos por meu queixo, mandíbula e nariz.
— Não conhecemos essa tal Clarke aí — responde, finalmente
afastando os nossos rostos para encará-lo. — Nós passamos metade do
tempo por aí, invadindo propriedades privadas para que possamos nos pegar
sem sofrer homofobia, sabe? Os filhos da puta tratam a gente como se
pudéssemos passar HIV pelo ar. — suspirando, ela estala a língua e finge
uma tosse exagerada. — Sabe como é, eles ainda estão no maldito século
dezoito, quando as mulheres engravidavam sem parar e eram obrigadas a
servir o marido como se tivesse um pau banhado a ouro. Enfim, o que eu
quero dizer é que nós somos excluídas por sermos lésbicas, sabe? Fazemos
até a posição da tesoura e… — Lexie gesticula a posição com as mãos,
arrancando de mim uma gargalhada tão genuína que mal tenho tempo para
perceber o que faço, quando o garoto levanta a mão, impedindo-a de
continuar a sua fala.
— Sim, claro, já entendi — ele sorri um tanto quanto constrangido,
retirando a mão de seu bolso e recuando um passo. — Obrigado pela ajuda,
meninas, desculpem o incômodo.
O homem dá as costas para nós e caminha exatamente para onde
estava no primeiro momento. Posso ver a figura de seu amigo finalmente
desviar os olhos de nós parecendo insatisfeito quando viu o amigo voltar
para o carro. No entanto, desvio os meus olhos e praticamente arrasto Lexie
para longe dali.
Meu rosto queima como um pimentão e eu não sei se é pelo
constrangimento gigante da situação ou por Lexie ter me beijado. De
qualquer forma, foi o que salvou a nossa pele e eu não poderia ser mais
grata.
Olho a nossa volta, ainda enxergando os caras encostados no carro
observando nós nos afastarmos. Por mais que inicialmente eu tenha odiado
a ideia de nos separarmos e ter que lidar com uma possível fuga
completamente sozinha, agora me parece ser uma ajuda vinda direto do
meu protetor lá de cima.
— Nos vemos daqui a pouco, então? — pergunto, encarando-a
quando alcançamos a primeira esquina.
Tenho medo que ela note o quão apavorada eu me sinto.
Lexie mordisca os lábios e me encara, afirmando com a cabeça. Ela
parece ainda mais leve do que no início, e embora eu me questione do
porquê, meio que agradeço por não ser um assunto que deve ser
prolongado. É melhor assim.
— Cuidado, ok?
Afundo ambas as mãos nos bolsos da jaqueta e assinto recuando
alguns passos em direção a curva que me leva para o lado oposto.
— Você também.
Não espero por uma resposta, giro sobre os calcanhares e acelero o
passo para o caso de ser perseguida e ter que manter uma distância
considerada daqueles caras. Isso certamente facilitaria a minha fuga.
De segundo em segundo olho para trás, sentindo a agonia me
corroer por dentro como um vírus mortal. Não é uma novidade para mim,
tudo isso já aconteceu outras vezes e por experiência própria, eu odeio cada
segundo disso. Fugir era a última coisa que eu imaginava vivenciar quando
viemos para cá. A vida perfeita que eu imaginei já não existe, mas eu tenho
que aprender a lidar.
Assim é a minha vida. Não existem bons momentos, somente
aqueles que podem me matar. E este assunto em específico, mata cada
pedaço meu a cada dia que passa.
Sinto uma queimação em minha nuca, como a sensação de estar
sendo observada. É estranho, já senti isso outras vezes, mas nunca gostei
dos calafrios que vinham junto dela.
Olho ao meu redor, sentindo-me um pouco nervosa. A rua está um
completo breu, ao contrário da rodovia completamente movimentada em
que caminhávamos há alguns minutos. O tempo está nublado, as ruas
úmidas por consequência do tempo chuvoso, o céu repleto de nuvens
escuras e o sol se nega a dar as caras, o que apenas facilita para que isso se
pareça com uma cena desagradável.
Não há ninguém na rua além de mim, mas o formigamento em
minha nuca não deixa de queimar.
Sigo a minha caminhada, desta vez, prestando atenção em todos os
carros que estão no acostamento. A minha figura reflete nos vidros
transparentes, e me sinto aliviada por perceber que todos os carros estão
vazios.
No entanto, a minha tranquilidade dura até o momento em que
caminhando ao lado dos carros, noto a minha figura refletida
completamente em um dos vidros. Cesso o meu passo e encaro o meu
reflexo, fazendo uma concha com uma das mãos na intenção de facilitar a
minha tentativa de olhar o que há do lado de dentro.
Porém, varrendo o meu olhar até a extensão do carro, noto os vidros
totalmente escuros e a pintura fosca. Aquele carro não é desconhecido por
mim.
Eu já o vi antes.
Há alguns dias.
Este é o Mustang de Jason.
Imediatamente me recordo da merda que ele fez hoje cedo, enquanto
eu dormia tranquilamente. Enquanto eu implorava para que as lembranças
de sua existência simplesmente evaporassem da minha cabeça. Ele quis me
provocar, quis fazer com que me sentisse mais incapaz do que já sinto, e
além de tudo, usou aquilo que eu mais amo para me atingir.
Por que eu não poderia lhe pagar na mesma moeda?
Eu realmente espero que esse carro tenha algum valor para ele.
E, talvez eu queira retirar o que disse. Talvez haja sim alguns
momentos bons na minha vida a serem aproveitados.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Manter a cabeça no lugar tem sido uma das missões mais difíceis
que eu poderia enfrentar. Toda vez que fecho os olhos me vejo dentro
daquele muquifo, sem a mínima vontade de continuar respirando. É como
se nada pudesse apagar os últimos anos da minha cabeça.
Tudo ainda me atormenta. Como a porra de um espinho que crava
na pele e não deixa de te ferir até que o arranque, mesmo que sinta a mais
cruel das dores. A mais insuportável.
Não há outra explicação para tudo isso. Realmente estou
enlouquecendo, estou destruído e estou fora dos trilhos. Isso não deveria me
surpreender?
Pela primeira vez em anos, estou sem saída. Estou puto pra caralho
e nada importa além de caçar um por um todos eles, cada maldito filho da
puta que subestimou o demônio que sempre disseram que eu seria. Há
algum tempo atrás, eu odiaria a ideia de ser comparado a um demônio pelos
motivos errados, mas agora, eu realmente espero que eles tenham ciência de
seus pecados, porque serei eu, a condená-los eternamente.
— Cara — Ao meu lado, ouço a voz de Hyuk. Eu o encaro de
soslaio, despertando-me dos devaneios. — Tem certeza que quer fazer isso?
Hyuk quer garantir que eu sei bem o que estou prestes a fazer.
Entendo a sua preocupação, ele tem medo do que pode acontecer com todos
ao meu redor caso, de repente, quando ninguém estiver esperando, a bomba
relógio dentro de mim exploda. Não o julgo por isso. Nem mesmo eu, que
sei absolutamente tudo sobre o que estou sentindo no momento, sou capaz
de controlar e prever o que farei em seguida.
É como se eu estivesse no modo automático.
— Está pulando fora? — Digo o encarando por cima do ombro,
Hyuk sorri sarcasticamente ainda encarando os meus olhos.
— Vamos nessa. — Ele varre a rua com o olhar por breves segundos
antes de abrir a porta do Mustang e erguer o capuz pela cabeça.
Eu o acompanho sem ter o trabalho de esconder a minha identidade.
Pulo do carro e dou a volta pela frente, enfiando as mãos nos bolsos da
jaqueta.
— Acha que ele vai estar aí? — Questiona conforme caminhamos
até a entrada do prédio.
— Ele não tem um lugar melhor pra se esconder.
Hyuk apenas assente quando leva uma das mãos até a maçaneta do
prédio e me olha uma última vez antes de abri-la abruptamente e levar a
mão livre para alcançar a arma presa no jeans. Quando o ruído da porta
colidindo contra o batente de madeira ecoa pelo hall de entrada, ergo o
pescoço para encarar o lance de escadas retrô caindo aos pedaços, o papel
de parede apodrecido e as madeiras abaixo dos nossos pés causando um eco
por todo o ambiente a cada passo que avançamos.
— Que porra de lugar é esse? — Hyuk grunhe conforme tapa o seu
nariz com o antebraço. O cheiro do lugar é horrível. — Floyd não deveria
ao menos pagar por uma estadia decente para os capachos dele?
Sigo observando o lugar, sem deixar de reparar nos quadros bizarros
pendurados na entrada, algo a ver com símbolos satanistas.
As flores mortas dentro dos vasos transparentes esclarecem a nossa
dúvida de que não há gente normal vivendo nessa espelunca.
Duvido muito que Stuart Mccall viva dentro deste lixão com a
própria mãe, embora espere que seja realmente uma mentira. A cena que
aconteceria com ele, nenhuma mãe deveria presenciar.
— Marcus não se importa com ninguém além dele mesmo, não é
uma novidade. — É uma afirmação óbvia, mas é preciso dizer em voz alta.
Hyuk não diz mais nada, entendo que ele ainda esteja tentando
compreender quem sou agora, já que não consigo dizer absolutamente nada
sobre os últimos três anos. No entanto, isso não é algo que eu precise dizer.
Tenho outros planos. Explorar o meu ódio acumulado de uma outra
maneira.
Sem esperar por uma resposta, subo os degraus de dois em dois,
acelerando a minha chegada ao segundo andar.
O meu sangue ferve, a ponta dos meus dedos arde pela tamanha
força que eu uso ao cerrar os punhos dentro do bolso. Meu coração acelera
de maneira descompassada e sinto que essa agonia não vai acabar até que
eu liberte tudo aquilo que ainda me mantém preso ao passado.
Quando enxergo o letreiro prateado do apartamento 13B brilhando
sob a madeira da porta, me aproximo a passos largos. Olho ao meu redor
para garantir que não há outros caras além de Stuart hospedados no lugar.
Tudo está um completo breu, nem um ruído sequer vem das outras duas
portas posicionadas à nossa esquerda.
Encaro Hyuk por um segundo, avisando-o visualmente que irei
arrombar.
Quando ele assente, não tardo a erguer uma das pernas e usar de
toda a minha força para chutar a porta, apenas para o caso de Stuart ter
travas reforçadas. A porta bate com força contra o batente com tamanha
brutalidade que o metal da maçaneta cai do suporte e rola pelo chão.
Ignoro todo o barulho e puxo a arma presa no quadril, levantando-a
à altura dos olhos ao mesmo tempo que invado o apartamento de Stuart. O
mal dos homens do meu pai é que eles não entendem que eu sou parte de
uma raça ainda pior do que aquele que lhe dá as ordens, o que certamente
faz com que eles duvidem de minha capacidade.
Mas não por muito tempo.
Vasculho cada canto do apartamento com os olhos, sem deixar de
apontar a minha arma para cada lugar.
Há tantas pichações nas paredes que o branco quase não é visível
por baixo do preto grafite. O sofá laranja surrado no meio da sala é o único
móvel que torna o ambiente menos vazio. Há latas de cervejas atiradas por
todo o chão, um colchão velho e desgastado no centro da sala e o odor
horrível que vem direto do que parece ser um banheiro não permite que eu
mantenha os meus braços livres. Cubro metade do rosto com o antebraço e
observo Naten fazer exatamente o mesmo.
— Porra. — Resmunga, conforme caminha na direção do banheiro.
Alcançando a madeira com a ponta dos dedos, Hyuk empurra levemente a
porta e grunhe, jogando a cabeça para trás. — Parece que Stuart andou
irritando mais gente do que imaginávamos.
Sem entender o que ele quer dizer, tomo a sua frente, observando o
que há dentro do cômodo.
Reprimo os lábios e solto um longo suspiro ao encontrar o corpo de
Stuart sem vida por cima de muito vômito e álcool. Eu conheço isso, os
homens do Marcus não possuem uma maneira muito comum de deixar uma
trilha de corpos por Nova York. Eles nunca costumam dar um fim no corpo,
porque querem ser vistos e querem ser temidos.
Este é o fim de todos os informantes que são descobertos. Stuart era
um deles, e bastou apenas algumas horas após a minha descoberta para que
ele fosse morto. Há quanto tempo eles estão em WonderFall?
— Nosso cara está morto. — Hyuk fecha a porta do banheiro e varre
o apartamento com o olhar até se encontrar com o meu. — Acha que foram
os mesmos que você encontrou no Studio?
Travo a mandíbula ao confirmar com a cabeça levemente. Não é
uma coincidência, eles estavam atrás do Stuart e sabiam que nós o faríamos
falar. Por bem, por mal, não importa. Ele nos daria as informações que
quiséssemos ter, porque o merdinha imprestável aceitaria tudo, menos uma
morte lenta e dolorosa. Ele não conhecia a palavra lealdade quando a sua
vida corria algum risco.
Stuart era um merda. E agora é um saco de merda inútil.
— Qual é o plano?
Penso em respondê-lo, no entanto, de repente, a minha cabeça
parece pesada demais para ser sustentada apenas pelo pescoço. Minha visão
é duplicada e tudo parece ser menor do que realmente é.
Os efeitos colaterais do LSD.
A minha pele arde e queima e o suor que escorre na pele do meu
rosto não é algo que eu não saiba lidar. Se trata de uma das merdas causadas
pela crise de abstinência, e tudo que eu consigo desejar neste momento
estressante por ter perdido a nossa única fonte de informação, é acabar com
o plástico recheado de cocaína que tenho certeza estar enfiado no bolso
traseiro do jeans.
No entanto, isso não é o tipo de coisa que Hyuk precisa saber.
Ninguém precisa.
Sei que é questão de tempo alguém perceber o meu comportamento
agressivo e aéreo. Não é algo que eu consigo esconder muito bem,
tampouco faço questão. Mas essa merda há de ser resolvida e eu preciso
fazer sozinho. Não é como se alguém pudesse me ajudar com o meu vício
descontrolado em drogas.
É a única coisa capaz de acalmar os meus demônios.
A minha válvula de escape.
— Jason, você tá me ouvindo? —O tom impaciente de Hyuk faz
com que eu erga o pescoço para encará-lo. Quando nota a minha atenção,
torna a falar alguma coisa que eu não consigo decifrar. Leitura labial não é
o meu forte, e por que caralho o mundo parece estar no mudo? — Então,
você entendeu?
— Sim — Não tardo a dizer.
Preciso sair daqui.
— No computador dele deve haver alguma coisa, vou procurar por
ele. — Hyuk caminha em câmera lenta, além de sua figura estar
completamente desfocada. Me dou conta de que ele procura pela merda do
computador quando o borrão preto de seus braços bagunça o sofá e as
porcarias que há nele.
Eu preciso sair daqui.
— Que seja, vou esperar no carro.
Não esperando por uma resposta de Hyuk, saio em disparada para
fora do apartamento. Tudo gira como a porra de um beyblade, e nada faz
muito sentido na minha cabeça. O suor frio escorre por ambas as têmporas
e, de repente, esta já não é uma tarde fria e chuvosa de WonderFall. Parece
estar fazendo cerca de trinta graus.
Levo uma das mãos até o corrimão da escada e me esforço para
enxergar os degraus. O som do ambiente desapareceu por completo, não há
ruídos das madeiras e nem mesmo posso ouvir o som das minhas botas
tropeçando na descida de um degrau para o outro. A respiração ofegante e
as batidas do meu coração são tudo que eu posso ouvir quando reforço o
meu aperto no corrimão e uso todas as minhas forças para impedir que meu
corpo saia rolando pelas escadas abaixo.
— Porra! — Resmungo, piscando diversas vezes na tentativa de
normalizar a minha visão.
Baixando a cabeça e expirando profundamente, fecho os olhos e
puxo todo o ar que consigo. Os meus pulmões estão fodidos, mas estou
contando com que eles não me deixem na mão agora. Tudo está cooperando
para que eu pare de resistir e me afunde naquilo que por muitos anos foi o
meu refúgio. Mas não estou disposto a me perder nessa merda outra vez.
Respiro fundo uma última vez, antes de colocar toda a minha força
em ambos os braços e usar o corrimão como apoio para erguer o meu corpo.
Quando abro os olhos, a tontura não desaparece, mas eu sei que isto só pode
ser um teste comigo mesmo.
Por quanto tempo você ainda vai resistir?
Eu não quero responder as vozes da minha cabeça, e talvez o motivo
seja porque não faço a mínima ideia de qual seja a resposta.
Que se foda essa merda.
Contraio os meus ombros e relaxo o pescoço, soltando o ar preso há
minutos. Solto o corrimão e me arrasto escadaria abaixo conforme seco boa
parte do suor com o antebraço coberto pelo moletom. Caminho em passos
largos e me esforço para não tropeçar nos meus próprios pés no caminho até
o meu carro.
No primeiro contato com a claridade, ergo o pescoço e permito que
todo aquele ar fresco abrace a minha pele, então respiro fundo e o inalo
como a porra de um viciado. Fecho os olhos e espero que todo o calor
infernal seja substituído pelos calafrios causados pelo vento frio.
Estou perdendo o controle e sei bem disso. A prisão e tudo que vivi
dentro dela ainda perturba a minha cabeça, me deixa frágil e incapaz de agir
conscientemente. Os últimos três anos são pequenos borrões que eu gostaria
de apagar da cabeça, queria que nunca tivessem existido. Mais do que isso,
queria voltar há três anos atrás e fazer as coisas de outro jeito, como não ser
um filho da puta emotivo e ter matado Marcus no primeiro segundo que
pisou dentro do meu território.
Eu falhei. Sou um filho da puta do caralho por ter feito as coisas do
jeito errado e as consequências que vieram depois disso são merecidas. Sei
disso.
Entro no carro, esfrego os olhos com uma das mãos e agarro o
volante. Respiro fundo tantas vezes que posso sentir a ardência do sangue
que circula pelo meu corpo. A ponta esbranquiçada dos meus dedos é um
claro sinal de que possuo muita coisa reprimida para colocar para fora, mas
eles tinham um alvo específico. Muitos deles.

Se o inferno realmente existisse, tenho certeza de que ele se


pareceria com essa porra de lugar. Os gritos, os tiros, tudo aquilo não
deveria ser uma novidade para mim. Eu não deveria estar assustado com
essa merda, mas estou. Afinal, tudo está preparado para mim há muito
tempo.
Ele está um passo à frente como sempre disse que estaria. Ele é
superior a mim, ele enviou o demônio que eu sou para o meu inferno
particular.
A diferença é que não entro no meu próprio inferno. Aqui, eu sou
apenas um fantoche inútil que foi jogado para servir os outros milhares de
demônios que não sentem um pingo de remorso. E convenhamos, quando o
filho do maior mafioso de Nova York cai numa cova de bandidos, o que
esperamos não é uma recepção calorosa com um abraço de boas-vindas e
um chá para acalmar. Eu receberia todas as consequências que não cabiam
a mim.
Ele sabia disso quando me jogou aqui.
— Floyd, levanta, garoto — Ouço um dos seguranças bater com
a boca da pistola na ferrugem da grade.
Estou no canto da cela, abraçando as minhas próprias pernas
porque sei que ao redor da cela há outros caras esperando por uma
oportunidade para acabar com a minha raça. Eu não queria encará-los,
não havia uma forma de dizer que eu odiava Marcus Floyd tanto quanto
eles, porque ter o sobrenome Floyd já era um motivo para ser tratado como
a porra de um animal.
Levanto a cabeça e procuro não olhar ao meu redor conforme
caminho até a porta, onde o segurança tilinta uma das chaves na
fechadura. A sua mão livre segura firme a glock na altura do quadril e, em
uma encarada rápida em seus olhos, imagino o quão fodido eu estaria se
lhe desse uma surra e fugisse desse lugar. No entanto, antes que possa
concretizar o meu pensamento, uma risada amarga escapa do homem.
— Essa é uma prisão de segurança máxima, pequeno e inocente
Floyd. — Com uma das mãos, ele empurra o meu ombro e me força a
caminhar na direção da saída. O som dos outros caras insultando-nos e
cuspindo no chão na tentativa de nos atingir faz aquilo se parecer com um
filme de terror. — Tente alguma gracinha e vai se arrepender. — É um
aviso, e eu quero fazê-lo engolir a pistola que porta com tanta convicção.
No entanto, engulo os xingamentos presos na minha garganta e
travo a mandíbula conforme me arrasto para fora da área de celas.
— Assassinato, huh? — Debocha. — O papai Floyd não lhe
ensinou a ter modos? — Eu não posso vê-lo, mas é perceptível que há um
sorriso na sua cara.
Cerro os punhos e mantenho o olhar reto quando murmuro:
— Quem garante a você que ele não é bem pior do que eu? —
Debocho. — Por favor, não me diga que forças armadas tão bem treinadas
como vocês, caíram no papinho do maior filho da puta de Nova York. Você
não lê as notícias, oficial?
A ardência em minha pele foi a última coisa que senti quando ele
alcançou ambos os meus braços e cobriu os meus pulsos com o par de
algemas. Quis rir por ter tocado na ferida ao insinuar que ele e a porra do
sistema são tão filhos da puta quanto Marcus Floyd, mas a situação não é
engraçada.
— Se não ficar quieto, mandarei costurar a porra da sua boca. —
Vocifera, puxando os meus pulsos com tanta força que reprimo os lábios ao
sentir a queimação do metal arrastando pela minha pele.
Me mantenho calado e permito que me guie para onde quer que
esteja me levando. O som de tiros ainda se ouve não muito distante de nós,
mas tudo cessa quando entramos no elevador e o oficial clica no último
andar. Isto é estranho porque normalmente nenhuma ação comum em
prisão é efetuada no último andar do prédio, a menos que quisessem me
jogar lá de cima. Mas não importa, de qualquer maneira eu não poderia
estar mais fodido.
Quando o tilintar do sino nos avisa que chegamos ao destino,
recebo uma joelhada na parte inferior da perna, que por muito pouco não
causa a minha queda.
— Anda! — Ordena, arrastando-me para fora da caixa de metal.
Filho da puta do caralho.
Me forço a ficar de pé e caminho para fora do elevador. O que há
aqui é o oposto do que imaginava, pois não se trata de um terraço. É a
porra de um escritório.
Analiso o lugar e observo a movimentação de oficiais e caras
vestidos em smokings portando um copo de uísque nas mãos como se
aquilo fosse a porra de uma festa casual entre amigos. O som das risadas
comprova que estas não são ações comuns entre policiais, há algo a mais.
O telefone que há acima de alguma mesa de escritório toca sem parar, mas
ninguém ali parece se incomodar.
Alguns deles desviam suas atenções até mim, que caminho no meio
do escritório encarando cada um, guardando a imagem de seus rostos na
memória. Só deixo de encará-los quando o oficial abre uma das portas no
fim do corredor e me força a entrar.
É uma sala branca, com nada além de uma poltrona à frente de um
vidro que divide a sala em dois quadrados. O vidro desce do teto da sala
até o suporte que há no chão. Inicialmente, penso que a minha figura está
sendo refletida no vidro, mas isso dura só até o momento que encaro o
sorrisinho de merda na cara de Marcus Floyd do outro lado do vidro,
sentado casualmente em sua poltrona com uma das pernas cruzadas e um
copo de uísque sendo apoiado por uma das mãos acima do joelho.
O ruído da porta sendo fechada é um sinal claro de que essa não é
uma visita casual. Essa porra é uma sala de visitas nada comum.
— Seu filho da puta! — Rosno, caminhando a passos largos até
estar cara a cara com o vidro, encarando-o fixamente.
Meu peito sobe e desce, minha respiração descompassada está
totalmente fora do meu controle.
— Lewis, sente-se. — Ele não sorri, no entanto, beberica o líquido
que há no copo e em seguida, aponta em direção à poltrona ao meu lado.
Nego, rangendo os dentes com tanta força que temo que se quebrem
a qualquer instante.
— Eu vou matar você. — Balanço a cabeça em afirmativo, exalando
convicção nas minhas palavras. — E vai ser uma morte lenta, Marcus, você
vai desejar nunca ter me colocado na porra do mundo, porque serei eu a
tirar você dele.
Os meus pulsos doem por tamanha força que faço para tentar
arrancar as minhas mãos das algemas e socar esse vidro até alcançar o
pescoço do desgraçado.
Como eu quero matá-lo, porra!
Não importa quanto tempo leve até que cumpra a minha promessa,
ou quanto tempo eu passe dentro dessa merda de lugar por um crime que
não cometi. Ele vai pagar. Marcus Floyd cavou a própria cova quando a
tirou de mim. Quando colocou a porra da mão no que me pertence!
— Lewis…
— O meu nome é Jason!
Marcus bufa um riso antes de bebericar o seu uísque e se levantar
da poltrona, colocando-se à minha frente. Nós estamos separados apenas
por essa porra de vidro. Um merdinha tão miserável que precisa de uma
devida segurança para estar diante de mim. Patético.
Ele me encara fixamente e não enxergo nada além de desprezo em
seu olhar, mas a cena não me intimida, porque eu o encaro da mesma
forma. O ódio que ele tem por mim é totalmente recíproco, mas sem sombra
de dúvidas, eu o odeio mais do que qualquer outra pessoa seria capaz.
— A garota está sob o meu domínio. — Avisa, e posso jurar que há
uma pitada de satisfação no seu tom de voz.
As batidas do meu coração aceleram e noto o sorriso no rosto do
meu genitor no mesmo segundo. Ele sabe qual é o meu ponto fraco e
pretende usar isso contra mim quantas vezes forem necessárias para que se
sinta maior do que realmente é.
— Você vai se arrepender se tocar nela. — Sinto a lágrima escorrer
em minha face e não me importo se isso significa um sinal de fraqueza,
porque estou fraco pra caralho.
Uma risada amarga lhe escapa.
— Então realmente é verdade, não é? — Debocha. — Você se
apaixonou pela garota. — Não é uma pergunta.
Não o respondo. Os meus olhos já transmitem todo o amor que eu
sinto por Sofia Clarke e mesmo que a mais venenosa das mentiras escape
dos meus lábios afirmando o oposto, os meus olhos revelariam a verdade.
Não é um segredo. Eu a amo e qualquer um saberá disso assim que puser
os seus olhos em mim.
— Garoto imprudente. — Nega, sem desviar os nossos olhares. —
Você fez de tudo para tirá-la do meu caminho, e no fim, valeu a pena? —
Marcus dá uma última bebericada no seu uísque antes de atirar o copo
contra o vidro, fazendo-me piscar pelo susto. O copo se espalha em vários
pequenos pedaços, mas nada acontece com aquele que divide o lugar. —
Valeu a pena, huh? — Seus olhos brilham por tamanha raiva. — Eu te
ensinei a ser homem de verdade, eu te criei, você poderia ter tido tudo
comigo!
As lágrimas ainda escorrem pelo meu rosto quando é a minha vez
de soltar uma risada amarga.
— Você me criou? — Questiono. — Você me espancava todas as
noites, Marcus. Você foi um pai de merda quando eu era uma criança e
queria ser amado, quando queria ter atenção e carinho. Você sempre foi um
narcisista de merda incompetente, só me queria para os seus meios doentis.
Você não me criou. EU me criei. EU fiz de mim um homem de verdade,
então retire essas palavras inúteis da boca, seu monte de merda fodido!
O meu peito dói. No entanto, nada é por ele. Eu sinto muito, sinto
muitas coisas por ela. Quero apenas sair deste lugar e protegê-la como
sempre fiz, como jurei que faria. Mas eu falhei. Eu falhei, porra.
— Você é um moleque! — Rebate. — Onde está o homem que você
se tornou, huh? Onde ele está agora, porra?! — Marcus está irritado, e eu
sei que feri todo o seu ego.
Sou o único a não lhe dar aval algum para me controlar. Isto o
irrita. O incomoda.
Não o respondo. Eu realmente tenho medo de que ele esteja certo. E
se, no fim das contas, eu nunca fui alguém? E se eu realmente perdi tempo
demais acreditando nas merdas que eu poderia fazer se fosse um cara
melhor, que no fim, tenha distorcido a realidade dos fatos? E se ele tiver
razão?
Clarke confiou em mim.
Eu escondi a verdade dela porque pensei que aquilo pudesse
machucá-la e fazê-la me odiar por isso. Eu não estava pronto para receber
o seu ódio, porque tudo que eu precisava para ser curado de toda a
amargura que recebi durante a minha vida, era o seu amor. Quem eu seria
se ela me odiasse?
Eu não suportaria encarar o azul resplandecente de seus olhos se
estivessem carregados de ódio, preferiria contar a dedo cada grão de areia
espalhado pela Terra a ser odiado por ela.
— Agora você está fora do meu caminho — Quando ergo o olhar,
posso observar Marcus ajeitar a gola de seu sobretudo como um mesquinho
do caralho. — E darei um jeito nos seus amigos. A garota não se importa
com nenhum de vocês, não se esforcem para resgatá-la. — Marcus caminha
até um suporte repleto de botões vermelhos, amarelos e azuis. Um clique no
botão amarelo e a porta se abre às minhas costas. — Ela sempre me
pertenceu, Lewis, e para que você aprenda de uma vez a não me contrariar,
farei com que ela jamais consiga olhar na sua cara sem sentir nojo. Talvez
eu seja gentil e peça para os meus homens darem a você uma cela solitária.
As duas últimas lágrimas escapam dos meus olhos quando sou
puxado abruptamente pelas algemas e arrastado para fora da sala. Marcus
ainda está lá, encarando-me com um sorriso na cara. Eu farei com que se
arrependa disso, eu o matarei por isso, porra.

Não percebi que agarrava o volante com tanta força, até ser
despertado pelo baque de algo sendo arremessado pelo capô. Sou
transportado de minhas lembranças e consequentemente afrouxo o aperto,
observando a tonalidade avermelhada retornar para a ponta dos dedos.
Solto o longo suspiro de um ar que estava preso nos pulmões e
afasto todas aquelas lembranças da minha cabeça. Não é algo que goste de
me lembrar. Eu odeio tudo referente ao passado, odeio ainda mais o monte
de lixo que me tornei depois dele. Eu sequer sei quem sou.
Estou perturbado, de fato. O tempo preso em um mini quadrado
minúsculo deixou-me fodido. Eu ainda estou tentando me acostumar com a
ideia da realidade realmente existir. Os últimos anos não foram nada além
de sonhos e realidades alternativas que nunca existiriam.
Eu ainda duvido que realmente esteja respirando e não seja apenas
uma falsa realidade que o meu cérebro criou para distorcer os fatos do que
eu mais desejei nos últimos anos.
— Cretino imbecil — Ouço um resmungo do lado de fora do0
Mustang.
Largo o volante e movo o meu corpo no banco o suficiente para
tentar enxergar o vidro traseiro, na intenção de encontrar de onde vem
aquela voz tão familiar. Quando varro a traseira do carro com o olhar, não
vejo nada além de outros carros estacionados.
Endireito o meu corpo mais uma vez e levo ambos os braços até o
volante, usando-os como apoio para a minha cabeça, onde a apoio e solto
alguns xingamentos, por mais uma vez, estar preso em uma porra de sonho
infinito. Eu ouço vozes, mas nada é real.
Mais uma vez, os tremores se manifestam no meu corpo. É como se
eles estivessem implorando pela cocaína, como se soubessem que ela
aliviaria toda a tensão presente nos meus músculos. A agonia sumiria, sei
disso. Mas o que viria depois, a depressão constante que me levaria ao
fundo do poço outra vez, me destruiria. E não teria ninguém para me jogar
uma corda.
A sensação de tranquilidade oferecida pela cocaína não significaria
nada depois que a brisa passasse e a ficha começasse a cair. Nada teria
valido a pena. Aquela merda somente desacelera os sentimentos que uma
hora ou outra virão à tona.
— Toma essa, cretino! — A mesma voz abafada ecoa do lado de
fora, interrompendo os meus pensamentos.
Mal tenho tempo para processar o que acontece quando o mesmo
baque de algo sendo arremessado na lataria do carro chama a minha
atenção, e erguendo a cabeça abruptamente, procuro de onde vem toda
aquela merda.
O meu primeiro instinto é encarar a portaria do prédio de Stuart,
procurando por Hyuk. Mas não há nenhum sinal de que ele tenha terminado
o seu trabalho lá em cima.
Confuso, varro a rua com o olhar uma segunda vez, e quando os
meus olhos encontram a figura de Baker segurando um tijolo com ambas as
mãos e o arremessando com toda a sua força para o capô do meu carro, não
tenho qualquer outra reação além de piscar diversas vezes para garantir que
essa merda é verdadeira.
— Você vai se arrepender por ter entrado no meu caminho… — Ela
resmunga, quebrando o tijolo em milhares de pedacinhos diversas vezes na
lataria do capô.
O estrago custaria uma grana para ser consertado. É um prejuízo que
eu teria que arcar, mas, eu estou tão perplexo encarando-a, que mal consigo
processar o fato de que ela está destruindo a porra do meu Mustang.
Desencostando do volante, relaxo o meu corpo no banco do carro e
cruzo os braços, engolindo em seco conforme a analiso. Baker está
diferente de quando a encontrei na noite passada. Suas roupas não fazem o
seu estilo, aquelas botas ridículas não são mesmo algo que combine com a
sua personalidade. No entanto, ela está tão fodidamente atraente com o
cabelo loiro espalhado por seus ombros em um balanço suave, com os seus
olhos mais azuis do que eu podia me lembrar, brilhando mais do que a porra
de uma estrela, que poderia ser considerada a personificação da perfeição.
Ela não sabe disso, mas é a mulher mais linda que eu vi em todos os
malditos anos da minha trágica existência.
Não parece minimamente preocupada em ser pega e denunciada por
vandalismo. Baker não teme absolutamente nada, nem ninguém, quando
age por consequência de sua raiva. Eu sabia que seu sentimento por mim
não seria o mesmo, sabia que ela me culparia por todos esses anos, e sabia
que agora ela seria uma mulher que sabia se defender.
A noite de ontem foi um claro sinal de que não devo subestimá-la.
Em hipótese alguma.
No entanto, eu ainda estou obcecado em testar os seus limites. Ela
será a porra da minha tentação ou a minha perdição, e independente do
resultado, eu estarei feliz por simplesmente tê-la ao meu lado. Ela me
pertence. Isso não mudou.
Então me dou conta de que certamente será minha perdição. Baker
reina em cada célula do meu corpo, em cada átomo e em cada partícula. Ela
é a porra do meu oxigênio e sobreviver a isso sob o seu desprezo, será o
meu maior desafio.
— Que porra é essa?! — Hyuk. Não tinha um momento pior para
ele aparecer.
Baker estremece e desvia a sua atenção para Hyuk antes de destruir
a lateral do Mustang com o que parece ser um parafuso.
— Você sempre encontra um jeito de entrar no meu caminho, não é?
— Há deboche no seu tom de voz. — Me deixa, Naten.
Eu ouço os passos de Hyuk aproximando-se do carro, mas nada é
capaz de fazer com que desvie os meus olhos de Baker. Os lábios rosados e
as sardinhas espalhadas pela maçã de seu rosto ainda são capazes de
acelerar as batidas do meu coração.
— Te deixar? — Caçoa. — Você está destruindo a porra do carro
que eu vou embora, caralho. Como é que eu vou te deixar? — A afinação
de voz na última frase de Hyuk é capaz de tirar um riso meu.
Baker finalmente larga o tijolo de suas mãos e abana ambas as
palmas para se livrar dos resquícios de poeira. A garota franze o cenho e
cruza os braços à altura do peito, firmando o olhar em Hyuk.
— Eu… — Ela parece envergonhada. — Este não é o carro do
Jason?
Eu daria tudo para eternizar essa vista de Baker envergonhada. Isso
me lembra a minha garota.
— Ah, sim, claro que é. — Hyuk está brincando com ela, e devo
admitir que eu estou adorando capturar o exato momento em que ela engole
em seco. — E esse carro é tipo um membro da família dele, sacou? — O
som da palma de Hyuk batendo contra o teto do carro ecoa do lado de
dentro, enquanto ele produz uma negação com a língua. — Pegou no ponto
fraco, bonequinha.
Baker descruza os braços, bufando um riso, incrédula, enquanto
observa Naten do outro lado do carro. Ele mal sabe que eu sequer estou me
importando com a porra do carro agora.
— Acho que você não deve ter se dado conta que eu estou pouco me
fodendo para o que se refere ao seu amigo, Naten. Mas acho que é culpa
minha não ter deixado tão claro. — A curvatura de seus lábios em um
sorriso dura apenas um segundo, porque todo seu semblante é substituído
pelo desprezo. — E pare de me chamar assim, não sou mais uma criança.
O meu sorriso também desaparece e a tensão torna a me incomodar.
Eu odeio ouvi-la dizer com tanta convicção o quanto a minha existência é
indiferente para ela. É como se eu nunca tivesse significado absolutamente
nada, enquanto ela sempre foi o meu mundo.
— Não? — Questiona Hyuk, e pela visão periférica, noto quando
ele cruza os braços e bufa um riso. — Eu podia jurar que estava encarando
uma birrenta imatura. Geralmente são as crianças que agem assim, não?
Hyuk não suporta a maneira como eu sou desprezado pela mulher
que movo céus e Terra para proteger. Ultimamente, a honestidade não tem
sido nosso ponto forte um com o outro, sei que ambos estamos escondendo
coisas e, por isso, a nossa relação parece ser totalmente profissional. Algo
mudou, não somos os mesmos.
No entanto, mais do que ninguém, Hyuk conhece absolutamente
tudo sobre mim. Ele sabe o quão fodido eu pareço ficar quando ouço as
palavras cruéis semelhantes à estacas sendo cravadas no meu peito. Mas eu
mereço ser desprezado por ela. Mereço tudo aquilo.
— Você deveria ser o meu amigo, sabe? — Desta vez, a voz de
Baker falha constantemente. Ela parece querer desabar. — Não entendo
porque você não fica do meu lado, Naten. Eu fui ferida! Você não entende?
— Ela gesticula em direção ao próprio coração. Seu tom de voz choroso é
capaz de despedaçar o meu coração.
Fecho os olhos com toda a força que posso, esforçando-me para
ignorar aquela maldita voz gritando na minha cabeça que sou o culpado de
toda sua dor. Eu causei a destruição do meu bem mais precioso. Eu a
arruinei. Eu sabia que a realidade poderia ser diferente, mas passei tanto
tempo me convencendo de que tudo aquilo foi minha culpa, que passei a
acreditar nessa versão.
Nem que eu viva um milhão de anos, poderei encontrar algo mais
doloroso do que a rejeição de um amor verdadeiro.
— Você não foi a única. — Hyuk baixa o tom de voz, parece ser um
comentário qualquer. — Mas eu não vou te explicar sobre isso Aspen,
duvido que você entenderia.
Isso precisava acabar.
Essa dor precisa parar.
Eu não ficarei aqui, sentado, ouvindo-a dizer o quanto sofreu pelas
mãos do Floyd. Essa merda é demais para mim. Afinal, até mesmo os
piores demônios possuem feridas que não foram cicatrizadas. Geralmente,
esse é o motivo de sua rebelião. Mas eu não estou aqui para me rebelar, esse
é o poder de Baker sobre mim. Eu estou aqui para amá-la, mesmo que nas
sombras de sua abominação.
Quando abro mão de todo o medo de encarar as suas esferas frias
mais uma vez, saio de dentro do carro, observando Hyuk afastar-se para que
a porta não bata contra o seu corpo no processo. Quando me coloco de pé
ao seu lado e enfrento Baker, ela parece completamente surpresa e - quase -
assustada, por me ver ali. Ou talvez ela só esteja em choque por perceber
que em todo este tempo, eu estava observando-a e ouvindo tudo o que ela
tinha a dizer.
Seus lábios entreabertos revelam a aceleração de sua respiração, já
que o vapor causado pelo frio que sai de sua boca em um suspiro longo, a
denuncia. Seus olhos me analisam tanto quanto os meus e tudo parece ter
desaparecido ao nosso redor. Só existe nós. Ela é tudo que vejo.
Minha mandíbula travada é um claro sinal de que ainda estou
nervoso por estar à sua frente, e tudo piora quando a surpresa exposta em
seu olhar é substituída pela mágoa.
Por mais que não seja o que eu sinto, esbanjo uma expressão ainda
mais indiferente como se não me importasse. Ela parece acreditar, já que
seu semblante cai por um milissegundo, expressando a sua surpresa. Ótimo.
É melhor que seja assim.
Desvio o meu olhar no momento em que ela olha para ambos os
lados, parecendo preocupada. Quando o meu olhar colide com o capô do
meu carro, o encontro totalmente arranhado. A tintura foi destruída. O
parachoque está amassado, e eu ainda não consigo entender como ela fez
tudo aquilo com um tijolo.
— Você estava mesmo assistindo ao showzinho de camarote? —
Hyuk ri, aproximando-se de mim em um passo curto.
Estou prestes a concordar, quando observo um Camaro vermelho
aproximar-se de nós. Baker congela, parece extremamente assustada e sem
opções, mas não é aquilo que ganha a minha atenção, e sim o par de
imbecis sentados no lado de dentro. Eles não parecem notar a minha
presença, mas notam a dela. A forma que a encaram não me agrada nem um
pouco.
— Baker — Eu a chamo, aproximando-me dela do outro lado com
rapidez.
A garota estremece, assustada com a chamada repentina. Seus olhos
se encontram com os meus e o olhar que Baker me oferece parece tão
semelhante ao de Sofia Clarke há muito tempo atrás, que por um momento,
penso que ela ainda é a mesma garota por quem me apaixonei. Mas é uma
mentira. Isso é apenas o que eu desejo que seja verdade.
Desvio os nossos olhares, sem a mínima intenção de demonstrar o
quão fodido eu estou. Ela perceberia no meu olhar, sei disso. Então travo a
mandíbula, abro a porta do passageiro e me esforço para não assustá-la
quando gesticulo em direção ao banco do carona.
— Entra no carro.
Baker ri incrédula, cruzando os braços na altura do peito como um
claro sinal de que não me obedeceria.
— Não vou entrar na porcaria do seu carro.
Eu a encaro, segundos depois de observar o borrão vermelho
daquele carro aproximar-se de nós. Imploro visualmente para que ela me
obedeça apenas por uma vez.
— Não é momento para testar a minha paciência. Entra na droga do
carro. — Reforço, encarando-a tão profundamente que posso notar o
movimento de sua garganta ao engolir em seco.
Quando ela olha ao nosso redor uma última vez e percebe que o
carro está próximo demais, parece não pensar duas vezes quando inclina o
corpo e senta no banco, cruzando os braços enquanto mantém o olhar ereto.
Quis agradecê-la por isso, mas não serviria de nada, ela não se importa.
Fecho a porta às minhas costas e Hyuk se coloca ao meu lado,
seguindo o meu olhar totalmente direcionado ao carro que agora diminui a
velocidade ao passar na nossa frente.
Aperto os dentes com tanta força que sou incapaz de sentir a minha
mandíbula quando enxergo o motorista colocar um dos braços contra o
suporte do vidro casualmente, acenando para nós como se fossem típicos
moradores comuns da cidade. Sei que não são, porque os conheço.
Eles estão aqui por um motivo e não é para apreciar a beleza da
cidade.
— Jason. — Sinto o aperto nada suave de Hyuk no meu pulso. Uma
repreensão. — Não perca o controle, estamos em público.
Eu não compreendo o que ele queria dizer, até me dar conta de que
Hyuk estava impedindo que eu sacasse a arma presa na minha cintura. O
meu punho está cerrado ao redor do metal, mas os meus olhos em hipótese
alguma se desviaram do carro que se afasta de nós em uma velocidade
reduzida.
Sinto a minha pele queimar. Os meus olhos estão cegos pelo ódio, e
saber o motivo de suas respectivas visitas na cidade apenas incentiva o meu
ódio a aflorar. Isso explica o motivo para Baker estar tão assustada.
Não posso controlar a minha raiva quando percebo que, de fato, ela
definitivamente não está segura. Portanto, não estou disposto a deixar que
algo aconteça a ela, não outra vez.
NEW YORK - 2019
ANTES

Há diversos homens formando círculos ao redor do que se parece


com um ringue. Eles gritam em uníssono e batem palmas, atirando coisas
para o alto como uma espécie de torcida mal articulada. Eu nunca tinha
visto algo assim em toda a minha vida e, apesar de não ter visto muitas
coisas ao longo da vida e não ser capaz de compreender o que poderia ser
certo ou errado, eu realmente acho tudo aquilo muito divertido. Esta é a
primeira coisa a ganhar minha atenção quando avanço alguns passos à
frente, adentrando o salão de treinamento.
Estou começando a me familiarizar com o lugar e, considerando o
ambiente em que vivi por anos desde o meu nascimento, isso tudo é
bastante diferente. Rústico. Apagado. Sinistro. No entanto, com
personalidade. E eu estou me esforçando para conseguir amigos, não ser
apenas um fardo para quem esteja disposto a me proteger. Eu quero ser útil.
Quero ganhar a confiança de todos eles, assim como Kelly e o seu irmão
ganharam a minha.
— Ei. — Quase não posso fazer as minhas cordas vocais
funcionarem. Engulo em seco e reforço o meu aperto ao redor da bandeja
prateada com dificuldade, devido a sua largura, tento novamente: — Ei!
Os caras estão tão concentrados no centro do círculo que formaram,
que sequer notam a minha presença. Kelly chegaria em breve com as jarras
de suco que Marta, a cozinheira, preparou especialmente para eles. Os
lanches recheados de frango acompanhados de diversos molhos temperados
são os seus favoritos, e eu sei sobre isso porque a cozinheira e eu tivemos
tempo o suficiente para conversar sobre a minha grande ideia.
Inicialmente, notei quando ela pareceu surpresa e quase assustada
pela minha atitude repentina. Eu a entendi, afinal, foram dias trancafiada
naquele quarto, chorando, refletindo, sofrendo e procurando por respostas
que certamente não teria. Já estou aqui, então preciso ser digna de toda
proteção que me é oferecida, e acho que depois de decidir abrir mão de
procurar por uma razão para todos os meus problemas, eu poderia apenas,
não sei, tentar ser alguém? Me divertir?
Será um desafio, mas preciso me esforçar. Me render ao momento.
Quem sabe o dia de amanhã?
Levantar daquela cama e me ver livre das mesmas quatro paredes
por algumas horas, já é um começo. O que vem depois é apenas mais um
momento a ser eternizado.
— Pessoal! — Sinto um arrepio percorrer cada canto do meu corpo,
apavorada pela atenção que seria dada a mim em seguida.
Ninguém me ouve.
O barulho dos gritos sobressaem a minha voz. Sei bem o que está
rolando. Kelly havia comentado sobre algo chamado dia da luta, onde
basicamente todos participam de uma competição a fim de aperfeiçoar os
seus treinamentos, afinal, para o que eles fazem, erros não são válidos. Se
todos aqueles caras estão aqui para lidar com homens como meu pai,
precisam estar preparados. Estou ciente de que a luta não acabará tão cedo,
apesar de ser tarde da noite.
Eles precisavam de energia para continuar. Um incentivo.
Talvez finalmente eu tenha acertado em alguma coisa.
Olho ao meu redor, ignorando os gritos dos caras em meio à torcida
enviada para uma das atenções ao centro do ringue e meus olhos encontram
uma cadeira não muito longe. Não é muito espaçosa, mas terá de servir.
Caminho com cuidado até ela, segurando a bandeja com força para
que todos aqueles pães não caiam ao chão em um descuido. Quando os
posiciono acima do metal, me certifico de que a bandeja está à salvo, antes
de levar o dedo médio acompanhado do polegar aos lábios e simular um
assobio. Quando me dou conta de que minha estranha habilidade aprendida
misteriosamente ainda funciona, levanto o meu pescoço e endireito o meu
olhar, encarando a multidão conforme puxo todas as minhas forças para que
o meu assobio soe mais alto do que toda aquela gritaria.
O silêncio ensurdecedor que vem ao obter sucesso incendeia o meu
rosto em um constrangimento.
A maioria finalmente parece notar a minha presença, então o ruído
das cordas do ringue ao centro do salão movimenta-se em um balanço
suave conforme os caras pausam as lutas para direcionar suas atenções a
mim. Os olhares julgadores parecem esperar por uma resposta e apesar de
estar com muito medo de estar parecendo uma esquisita, não penso muito
quando limpo a garganta e anuncio o motivo da intromissão.
— Eu trouxe lanche. — Aponto disfarçadamente para a bandeja
cheia de pães, enquanto lhes ofereço um sorriso gentil. — É de frango.
Todos estão com o molho caseiro feito especialmente pela Marta. — Mal
fecho a boca e todos os caras enormes no lugar comemoram conforme
abanam uma palma da mão contra a outra, atropelando uns aos outros para
chegar até a bandeja.
Rio, achando graça no desespero de todos eles quando menciono o
cardápio. Me afastando para dar passagem, cruzo os braços à altura do peito
observando Kelly adentrar ao salão com duas jarras enormes transparentes,
cada uma portando um líquido de uma tonalidade diferente. Eu diria que um
se trata de suco de uva e o outro de laranja. A garota ofegante, carrega o
pacote de copos descartáveis preso por baixo do braço. Quis rir da cena.
Ela se aproxima, seguindo o caminho até a multidão. Ao passar por
mim, seus olhos se encontram com os meus.
— Eu realmente achei a sua ideia uma graça, mas o processo dela é
literalmente o oposto. — Kelly balança a cabeça, reprimindo os lábios para
conter uma risada. Bufo um riso quando seu corpo se perde na multidão,
mas a sua voz ainda pode ser ouvida por todo o salão. — Ei, seus
desesperados, deixem um pra mim!
Sorrio, me sentindo realmente bem pela primeira vez após meses. A
cena de todos os caras engolindo os lanches como se realmente estivessem
famintos e cansados é o bastante para que eu sinta o prazer do dever
cumprido. Não me sinto um fardo, não sinto que estou ocupando um espaço
que não é meu. Sinto apenas o fervor em meu coração, uma sensação
emocional muito parecida com a felicidade. Eu gostaria muito de observar
cenas daquele tipo todos os dias. Cenas que podem arrancar um sorriso meu
mesmo que eu esteja enfrentando um dos piores dias da minha vida.
Por algum motivo, os meus olhos desviam-se da multidão ao redor
da bandeja, e uma eletricidade sobe pelo meu corpo no momento em que
meu olhar colide com as esferas escuras de Jay. Ao contrário de mim, ele
não sorri. Sua expressão é totalmente ilegível. Seu corpo está debruçado
contra as cordas do ringue, com ambas as mãos entrelaçadas à frente do
corpo. Ele não usa uma camiseta, e as cordas finas de luvas de boxe estão
largadas sobre um dos ombros, mantendo ambas as luvas recaídas contra o
peitoral.
Sinto que há alguma coisa estranhamente familiar nesse garoto. Seu
olhar sombrio, mas com aquela pitada de gentileza que não o vejo
demonstrar facilmente por aí. Ele age como um monstro, é temido pelos
outros homens ao nosso redor mesmo que sejam tão perigosos quanto.
Ainda assim, ele é diferente. Tem uma aura diferente, uma forma diferente
de me olhar. Ele me lembra combustão. Perigo. Claramente um erro. Mas
não há nada ruim que não haja uma explicação para isso. As vezes só
depende do ponto de vista.
Com o coração acelerado, não consigo me mover. Estou presa em
seu olhar predador, e mesmo que estejamos em uma distância considerada,
não deixa de ser intenso. Não sou ingênua, já percebi que tudo aquilo que o
envolve, consequentemente será intenso. Seu olhar predador é curioso como
se desejasse desvendar cada partícula misteriosa de minha alma, claramente
não será uma exceção.
O suor escorre por sua testa, percorrendo um caminho pela têmpora
até o maxilar perfeitamente contornado. Seu peito suado sobe e desce em
uma respiração tranquila, e eu ainda busco decifrar como ele consegue estar
tão calmo enquanto eu estou tão… Nervosa, sob o seu olhar.
Ele é um mistério, não há dúvidas. O que será que está se passando
por sua cabeça quando me olha desse jeito?
Como se quisesse me engolir.
De repente, toda a hipnose que prende a minha atenção a ele parece
se dissipar no momento em que uma garota com cabelos vermelhos como
escarlate se aproxima, chamando-lhe a atenção e o nosso contato visual é
cortado. Respiro fundo, sentindo toda aquela eletricidade evaporar do meu
corpo da mesma forma que entrou- e as vozes ao meu redor parecem ganhar
som outra vez.
Olhando uma última vez para a multidão, eu sorrio, orgulhosa por
ter tomado uma atitude positiva. Aquilo deve ajudá-los a terminar a noite
tranquilamente. E, aproveitando-me da distração, caminho para fora do
salão.
Finalmente estou começando a me sentir bem. Sinto que pode haver
algum lugar no mundo que possa chamar de casa.
As coisas não estão fáceis. Já estamos aqui há quase um mês e
sempre soube que a hora de seguir em frente iria chegar, o momento de
deixar o passado para trás e tudo aquilo que me corrói por dentro. Ou pelo
menos, eu convenci a mim mesma de que seria uma tarefa fácil. Claro que
não. Não será.
Dói respirar ao pensar em meu pai, em nossa antiga vida, naquele
conto de fadas que eu criava na minha cabeça, acreditando que algum dia
eu seria o motivo de seu mais aflorado orgulho. Lutei para isso, lutei para
suportar toda a rejeição e doía tanto que eu mal percebia. Não até olhar para
trás e perceber o quão humilhante foi ter que implorar por atenção, por
carinho, ao próprio pai.
Mas agora quero deixar tudo isso para trás. É hora de deixá-lo ir, de
apagá-lo por completo da minha vida. Assim como ele não hesitou em me
apagar, como se eu nunca tivesse existido. Como se eu não fosse a sua filha.
Neste caso, ele também não será considerado o meu pai.
Sigo tentando, tentando de verdade, não pensar em todos os
momentos que algum dia considerei tão importante. Tão feliz. Quero
mesmo aproveitar tudo isso da vida que eu terei de agora em diante. Me
acostumar com essa rotina está sendo mais fácil do que imaginei e tudo que
posso imaginar é no que mamãe diria se estivesse observando o quão forte
estou sendo. Por mim, por nós, por Jonah.
Hoje é uma noite daquelas que eu provavelmente correria para o seu
abraço e lhe pediria um carinho duradouro no meu couro cabeludo até que o
meu corpo relaxasse em um nível que o meu subconsciente não pudesse se
manter funcionando. Então eu dormiria profundamente nos braços daquela
que verdadeiramente me amou.
Mas ela não está aqui.
Não fisicamente.
Entretanto, sei que mamãe não ousaria me abandonar por completo.
Ela me amava, sei que ela estará me protegendo sob as suas asas, mesmo
que lá de cima.
Sem hesitar, pela primeira vez após uma semana, subo os degraus
em direção ao último andar. Em direção ao quarto de Jay.
Não sei dizer ao certo o que eu pretendo fazer, talvez o céu estrelado
traga um pouco de paz ao meu coração por imaginar que, em meio a tanto
caos, amargura e desgraça, mamãe esteja em um lugar melhor. Que não
esteja sofrendo. Não imagino o que ela tenha suportado todos aqueles anos
sendo esposa de um homem como Sebastian em meio ao silêncio,
suportando toda a carga sem a ajuda de ninguém.
Ela foi forte. Sei que talvez ela esteja melhor onde está, do que mais
um único dia ao lado do ser mais repugnante que já pisou nessa terra.
Quando chego ao último andar, liberto um longo suspiro para
normalizar a minha respiração devido a quantidade de degraus. Olhando
uma última vez para a escadaria abaixo e lembrando o quão ocupado Jay
está para notar a minha visita ao seu quarto, agarro a maçaneta e arrasto
meu corpo para dentro.
Apesar dele ter liberado a minha entrada, ainda não me sinto no
direito de invadir a sua privacidade por um capricho meu. Mas neste
momento, realmente preciso de um minuto a sós com o céu estrelado, e
aproveitando-me de sua ausência, não hesito quando avanço alguns passos
na direção da janela.
A cortina balança com a brisa do vento como de costume, a
escuridão do lado de fora está idêntica aos últimos dias quando me
aproximo e seguro-me na borda da janela para olhar para baixo. O céu
estrelado é tudo que ilumina aquele breu, e a meia-lua tão brilhante ao redor
de pouquíssimas nuvens escuras faz desta noite ainda mais bonita. Ao
longe, no fundo da cidade, em uma zona afastada, eu noto as cores
estouradas de uma roda gigante. As luzes piscam tão forte que, mesmo
nesta distância, se eu me concentrar, ainda posso imaginar as risadas das
crianças e as músicas infantis tocando em cada um dos brinquedos.
A infância me causa boas sensações, apesar de não ter feito metade
do que uma criança normalmente faria. Ir a parques pode ser considerado
um sonho inalcançável, por mais que eu já tenha dezessete. Mas eu teria
gostado de ir a um.
Desviando meus olhos para o céu, não contenho o sorriso que se
forma nos meus lábios quando noto o brilho exagerado de uma das estrelas
em específico. Apoio os meus braços contra o metal do suporte da janela e
mantenho o meu olhar erguido quando debruço o meu corpo contra a
parede.
— Você me vê daí, mamãe? — Não espero por uma resposta, apesar
de saber que não acontecerá. — Agora eu consigo entender porque você
dizia que eu deveria persistir em encontrar o meu lugar. Você sempre sabia
de tudo, não é? — Não é um costume falar tudo isso em voz alta, no
entanto, eu preciso desabafar, imaginar que ela me ouve. — Você sabia que
eu nunca tive personalidade própria, que eu era moldada para ser alguém
que nunca seria. Você sabia que eu não era feliz, mamãe.
A noite estrelada é testemunha do abrir de meu coração, enquanto
sigo encarando aquela estrela como se fossem as suas esferas azuis tão
encantadoras.
— Você sabia que eu poderia ser muito mais. Agora entendo o
motivo de tantas pessoas dizerem que as mães sabem de tudo. — Bufo um
riso, conforme acaricio o meu próprio braço. — Acho que finalmente estou
conseguindo ser alguém. Estou aqui pelas razões erradas, sei disso, mas por
que parece tão certo? Por que eu estou melhor em um ambiente caótico do
que poderia estar ao lado daquele que dizia me amar?
Citar meu pai é um erro. É questão de tempo até que todas as
memórias ruins venham à tona e destruam por completo toda aquela
sensação boa que eu sentia há minutos atrás. Mas não estou disposta a
permitir que isso aconteça, quero que todas as lembranças referentes a ele
simplesmente desapareçam. Ele partiu o meu coração. E nem que recolha os
pedaços um por um e desse um jeito de consertar toda a bagunça que fez, eu
jamais o perdoarei.
— Jonah ainda não perguntou de você. — Isso provavelmente a
magoaria se de fato ela estivesse me ouvindo. — Uma parte minha sente
muito por ele, sabe? Por não ter tido tanto tempo ao seu lado. Você
aguentou tudo por nós, e eu realmente quero que ele se lembre dessa sua
versão, mamãe. — O sorriso que escapa dos meus lábios dura apenas dois
segundos. — Mas eu também me pergunto como seriam as coisas se Jonah
tivesse que conviver com a dor da perda tão novo. Como ele suportaria a
ideia de nunca mais poder ver você? — Encaro as estrelas, sentindo o nó
formar-se na garganta.
Não quero me derramar em lágrimas. Quero aprender a lidar com o
turbilhão de sentimentos dentro de mim sem extravasar, sem perder
completamente o controle. Eu estou indo bem, já que no momento em que
engulo a saliva, o nó dentro de mim se desmancha e as lágrimas não caem
como de costume.
Bom.
— Eu o vejo sorrindo, parece tranquilo e feliz, sabe? — Um sorriso
me escapa, lembrando-me das cenas de meu irmão super empolgado
entrando na onda de Kelly. Jonah adora ela. — Eu estou melhor também,
mamãe. Finalmente não me sinto tão limitada, com medo de que se respirar
de maneira errada estarei incomodando alguém ao meu redor. — Encarando
o brilho da estrela à direita da lua exalando um realce superior comparado
às demais, largo os meus braços e os deixo ao lado do corpo. — Queria que
você estivesse aqui, sei que tudo seria mais fácil. Eu te amo para sempre,
meu girassol. E eu espero que você se orgulhe de mim, porque pretendo te
surpreender ainda mais, vou sobreviver a isso.
Estou pronta para girar sobre os calcanhares e voltar para o meu
quarto onde eu usarei todo o meu autocontrole para conter o choro entalado
na garganta até que ele simplesmente dissipe. Não é fácil contê-lo quando
abro o meu coração e controlo o meu sentimentalismo, um deslize e tudo irá
por água abaixo. É assim que funciona.
Apesar de estar tentando de todos os modos alcançar uma
personalidade minha e ser alguém completamente diferente do que eu
esperava que fosse, é inegável o quanto a presença das palavras de papai
ainda sobrevoam meu cérebro e lutam de toda forma para me fazer acreditar
que isso tudo é uma perda de tempo.
Penso em afastá-las e até mesmo pareço uma maluca, gritando
internamente com o meu subconsciente para parar de me fazer lembrar
daquelas coisas. Para me permitir sentir a paz que tanto busco.
No entanto, com uma das mãos acariciando o topo da cabeça,
completamente perturbada, ouço o ruído da madeira desgastada da porta.
Giro sobre os calcanhares em uma velocidade tão absurda que posso sentir
todas as minhas entranhas se remexerem dentro de mim.
Pisco algumas vezes e tento reorganizar os meus sentidos, enquanto
endireito o olhar para a figura de quem entra no lugar.
Não é uma tarefa difícil. É até óbvio demais.
O cheiro de fumaça, nicotina e perfume amadeirado invade o lugar e
sequer preciso erguer o olhar para saber de quem se trata. Os cigarros que
ele fuma com frequência fazem daquele cheiro especialmente dele.
Engulo em seco quando Jay fecha a porta às suas costas e afunda
ambas as mãos nos bolsos do jeans. Seus olhos fixam nos meus como se
fossem imãs e os meus, metais.
Ele já retirou todo o excesso de suor que havia em seu corpo quando
estávamos no salão de treinamento e desta vez, usa uma camiseta.
Um ponto que meu cérebro adora ter que ressaltar.
— Você está bem?
Um aceno de cabeça é tudo que consigo responder.
Não estava nos meus planos ser pega no flagra em um momento tão
particular como este. Será que Jay escutou tudo que eu disse? Será que ele
me acha uma maluca e desistirá de me manter por perto? Ele me chutaria
como se não fosse absolutamente nada, assim como meu pai?
Está claro que eu não sou uma garota comum. Eu tenho dificuldades
para muitas coisas, e não sei por onde começar até que as coisas sejam
colocadas em ordem. Sei que lidar com a confusão que existe na minha
cabeça não será uma tarefa fácil, que a divisão entre a minha vontade e
aquilo que sempre foi destinado a mim, é como uma barreira que não faço
ideia de como romper.
— Há quanto tempo você chegou? — A minha pergunta não o pega
desprevenido, Jay parece esperar por ela.
— Eu ouvi tudo. — A resposta dele me constrange. Hm. Ele é
direto. — Não é essa a sua curiosidade?
Ele parece tranquilo, disposto a não quebrar o nosso contato visual.
Balançando a cabeça, brinco com os meus próprios dedos. Ora
arranho a palma da mão com a ponta das unhas, ora arranco a pele de
cutícula no canto das unhas.
— Não era pra você estar ocupado? — A pergunta parece um pouco
arrogante, já que sou eu que estou invadindo o seu espaço pessoal. —
Pensei que você não notaria se eu viesse aqui por pouco tempo, já que o
treino não terminaria tão cedo. — Tento consertar a minha frase. O tom
baixo denuncia o meu constrangimento.
Jay dá de ombros.
— O meu trabalho é notar você, Clarke. Estou sempre te
observando.
Franzindo o cenho, abro a boca para perguntar o que exatamente
isso significa, no entanto, Jay me interrompe quando avança alguns passos
na minha direção.
Meu corpo entra em chamas.
Até seguro a respiração.
— Além do mais, eu lhe dei permissão para vir até aqui. Não é
incômodo algum. — Apesar do tom rígido, vejo sinceridade em cada
palavra.
Faz uma semana desde a nossa última interação, quando estive em
seu quarto em busca por uma janela. No entanto, esta é a primeira vez que
eu venho até aqui. Não era a minha intenção ser pega no processo.
Sinto que eu estou invadindo o seu espaço e a sensação não é lá uma
das melhores.
Jay está a três passos de distância, quase desaparecendo sob a
escuridão do quarto que orna com o seu visual sombrio. Seus olhos ainda
são tudo que eu posso ver com clareza. Ele é alto. Corpo musculoso, aura
intimidadora… Seus olhos gritam “corra enquanto pode”, enquanto sua
expressão corporal parece indiferente ao que eles dizem. Eu deveria ter
medo dele.
Então por que não tenho? Por que me sinto segura?
Ainda me sinto exposta por Jay ter ouvido toda aquela conversa que
jamais revelaria a outro alguém. É particular. É algo que tirei direto do meu
coração a fim de me sentir mais leve, menos sobrecarregada, menos
exausta. E agora, ele sabe disso. Eu compartilhei os meus pensamentos com
o garoto na qual salvou a minha vida e é estranho, porque não me
arrependo.
Seus olhos me analisam atentamente, parecendo procurar
compreender o que se passa dentro da minha cabeça. Parece querer
desvendar todo o quebra-cabeça que há aqui dentro, mas ele não pode.
Não é tão fácil assim.
Queria poder ler os seus pensamentos neste momento, queria tanto
descobrir o que ele pensa a meu respeito. Mas assim como eu, tudo nele é
indecifrável.
— Sinto muito por ter invadido o seu espaço, Clarke. — Sua voz
rouca invade o curto espaço entre nós, causando um arrepio na minha nuca.
Alterno o olhar entre as suas duas esferas antes de respirar fundo ao
me lembrar de uma das suas frases quando chegou ao lugar.
— Você teria descoberto de qualquer maneira. Afinal, você está
sempre me observando, não é?
Juro ter visto a sombra de um sorriso no canto de seus lábios.
— Ainda não consigo saber o que se passa nessa sua adorável
cabecinha… — Aproximando-se de mim, engulo em seco quando Jay fica a
um passo de distância, nossas respirações unindo-se em uma só. — Mas
vou descobrir.
Encaro os seus olhos uma última vez, soltando toda aquela
respiração presa como um bolo no topo da garganta quando Jay desvia o
corpo do meu e caminha ao que parecia ser o seu guarda-roupas.
O sigo com o olhar, sentindo as batidas do meu coração
descompassadas contra o meu peito enquanto todas as células do meu corpo
imploram desesperadamente para que o responda que eu também queria me
ler. Que queria me descobrir.
O observo vasculhar gavetas e retirar de lá algo plastificado e
arredondado, semelhante a acessórios de ciclistas. Jay sacode o objeto no ar,
retirando o excesso de poeira e não contenho a linha que se forma no meio
das minhas sobrancelhas quando, erguendo o braço em minha direção,
empurra o objeto contra o meu peito delicadamente.
Alterno o olhar entre Jay e o objeto, segurando-o com uma das
mãos.
— O que é isso?
Sem responder, Jay caminha até um dos cabides ao lado da cama e
tira de lá uma das jaquetas, jogando-a sob o ombro. Quando vai em direção
a porta sem me dar uma única resposta, não tenho alternativa a não ser
segui-lo.
Ao aproximar de seu corpo, noto a sombra de um sorriso nos seus
lábios quando ergo o pescoço para encará-lo. No entanto, Jay não se vira
em minha direção quando abre a porta e arrasta o corpo para fora. Abraço o
meu próprio corpo enquanto mantenho os objetos presos entre os dedos.
— Você não vai me responder? — Cesso o passo quando um de seus
dedos clica sob o botão do elevador que eu sequer havia notado.
A luz vermelha-neon brilha no visor indicando que o elevador se
aproxima. Jay olha para trás, em direção a escadaria, parecendo inquieto.
Seus olhos não vêm até os meus, então começo a me sentir extremamente
desconfortável.
Quando as portas se abrem, Jay é rápido em agarrar uma das minhas
mãos, desvencilhando o meu abraço e me arrastando para dentro da caixa
de metal. Sentir seu toque bruto incendeia a minha pele. Porém, sou ágil
quando me solto de seu agarre e me mantenho parada em frente a porta,
impedindo que ela se feche e me negando a segui-lo sem uma única
explicação.
Notando minha imposição, seus olhos finalmente encontram os
meus. E diferentemente de todos os demais dias, posso notar a presença da
luxúria em seu olhar. Seus olhos analisam-me por completo e nenhum de
nós dois se move. Ficamos ali, encarando um ao outro em completo
silêncio.
Eu não darei o braço a torcer.
E ele parece se divertir com isso.
Normalmente eu seguiria os seus passos e obedeceria a qualquer
uma das suas ordens sem hesitar. No entanto, estou farta disso. Estou farta
de não poder tomar uma decisão sozinha, de não poder escolher a que lugar
eu irei e com quem estarei. Eu não posso permitir que Jay me trate da forma
que o meu pai sempre me tratou, forçando-me a obedecer às suas ordens
sem ao menos a necessidade de uma explicação, me controlando a todo
momento. Eu não quero mais ser assim.
— Se você não me disser onde nós vamos, eu não vou entrar nesse
elevador com você. — Firmo os nossos olhares, transmitindo confiança em
cada palavra. — Eu mereço uma resposta.
Basta dois segundos para os seus lábios se curvarem em um sorriso
satisfeito. Suas sobrancelhas se erguem levemente e seus lábios se
reprimem no mesmo instante em que sua cabeça é inclinada para a direita.
— Você tem duas escolhas. Venha comigo e descubra, ou se
martirize por não se render a uma aventura. — Ele responde com
tranquilidade.
Sou tomada pela confusão. Meu cérebro parece dar um giro de
noventa graus enquanto eu busco compreender as suas palavras. Ele está me
desafiando?
— Me poupe de uma resposta e me veja ir embora, ou me diga o
que pretende fazer comigo e me leve com você. — Retribuo.
Ele ri.
O filho da mãe ri tão verdadeiramente que o sorriso alcança os seus
olhos e as covinhas, até então inexistentes, ganham vida a cada lado de seu
rosto.
— Então você quer jogar?
— Não, quero honestidade.
Seu sorriso morre lentamente enquanto sua língua umedece os
lábios carnudos. Jay é um homem bonito, isso é um fato, estranhamente
perigoso e atraente na mesma proporção, mas ainda assim eu me recuso a
ceder às seduções de sua beleza. Sem respostas, sem passeio.
— Bom. — Parece orgulhoso. — Vou fazer de você uma de nós.
Vou treinar você. — Ele responde, por fim.
Quase rio.
— Me treinar?
Os treinamentos neste lugar são voltados para os homens, nunca vi
uma presença feminina no prédio desde a minha chegada. Exceto Kelly,
Marta, e bom, a garota de cabelos tingidos de vermelho. No entanto, elas
não treinam como os homens. Eles são especializados naquela coisa e, se
por alguma razão, Jay pensa que eu posso fazer algo parecido com aquilo,
provavelmente irei gargalhar da sua cara e chamá-lo de louco.
— Você não quer ser alguém, Clarke? — É uma pergunta retórica.
— Farei de você mais do que isso, e não duvide dessa hipótese, nem de si
mesma. Eu odiaria ter que te provar o contrário.
A resposta é como um balde de água fria na minha cara. Não posso
conter a vergonha que atinge o meu rosto quando desvio o olhar e olho uma
última vez para a escadaria.
— Eu… — Tento procurar por alguma palavra conivente ao
momento, mas nada parece apropriado.
— Em primeiro lugar, você não é fraca. Não é alguém incapaz de se
defender e sem valor. — Tornando a encará-lo, observo o seu par de olhos
negros profundos. — Você precisa saber que as nossas piores qualidades e
melhores defeitos são encontrados quando estamos perdidos. Quando tudo
o que queremos é encontrar uma solução para o vazio que sentimos do lado
de dentro. — A familiaridade de suas palavras me pega desprevenida, e
nem que eu passasse horas verificando o dicionário, poderia encontrar
palavras certas para descrever melhor o que estou sentindo. — Quer saber
qual é a melhor parte?
Engulo em seco, sentindo a tão familiar onda de choque percorrendo
a ponta dos meus pés até o último fio de cabelo.
— Qual?
Ele sorri, revelando os dentes brancos e alinhados.
— Não sentir medo. Não se sentir amarrado, limitado. As correntes
não vão te prender para sempre. — Sua voz ecoa na lata de metal, soando
como música para os meus ouvidos. — Se livre disso, confie em mim. Você
ficará melhor sem essa máscara de boa menina.
Jay relaxa o corpo contra o metal do elevador e afunda as mãos no
bolso mais uma vez, analisando-me enquanto espera ansiosamente por uma
resposta. Não posso dizer que ele parece estar duvidando da minha
capacidade, porque é o contrário disso. Na verdade ele parece até torcer
para que eu aceite, pois se o fizer, significa que um passo está dado para
finalmente ser alguém livre das infinitas ordens de meu pai.
Será um começo.
E, novamente, não consigo entender como ele parece saber
exatamente quais palavras usar para descrever a forma como eu me sinto. É
como se ele conhecesse bem este percurso.
Meu corpo parece queimar como brasa viva, a ponta dos meus pés
formiga ao encará-lo de volta, sem entender como consegue compreender
tudo o que se passa dentro da minha cabeça tão facilmente. O quebra-
cabeça que há aqui dentro parece ser insignificante para ele, parece fácil
demais. Jay me entende, compreende que tudo que mais quero é me livrar
dos resquícios de tudo aquilo que o meu pai me forçou a ser. A aceitar. E eu
nem precisei dizer isso a ele.
Jay quer me ajudar a ser eu mesma. A me encontrar.
Eu quero ser alguém, ele está certo. Tenho muito medo, ele também
tem razão. Quero preencher o vazio que há dentro de mim e Jay não poderia
descrever melhor o que vibra aqui dentro.
Respirando fundo, não hesito quando avanço dois passos para
dentro e o ruído da porta de metal se fechando soa às minhas costas. Não o
encaro outra vez, não faço absolutamente nada. Apenas encosto-me ao
metal e o deixo me guiar para o caminho mais difícil que percorrerei de
agora em diante
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Ele não tem esse direito. Não há qualquer razão concreta para
acreditar que tem algum poder sobre mim, não lhe dei a entender que nós
ainda somos os mesmos. Não pedi para que ele me ajudasse. Não pedi por
nada disso.
Quis grudar em seu pescoço a partir do momento em que ele entrou
no carro, furioso, pronto para seguir aqueles caras e matá-los, e eu não
consigo compreender a razão para que ele esteja tão fora de si. A culpa de
tudo isso é exclusivamente sua, então por que ele age como se não fosse?
Por que ele continua com esse teatro? Por que ele não consegue se esquecer
da minha existência?
— Abra o carro, Jason. — Levando uma das mãos à maçaneta, eu a
abro tão agressivamente que posso sentir o material prestes a se partir ao
meio. — Abra a droga do carro! — Grito, girando o meu corpo
abruptamente para encará-lo.
Sua mandíbula travada é um claro sinal de que ele segue fora de si,
seus olhos profundos não se desviam nem por um minuto da estrada. Ele
leva uma das mãos a marcha no meio de nós e, sem dizer uma palavra,
continua dirigindo.
Ele está me ignorando.
Os meus olhos queimam, meu sangue está borbulhando como se
fosse entrar em combustão a qualquer momento e tudo que eu quero é
empurrá-lo para longe, socá-lo, usar de todos os palavrões existentes na
face da Terra para que ele se sinta exatamente como o ordinário que é.
Isso não é um jogo, ele não vai testar os meus limites assim como
gosta de fazer, eu não vou deixar. Essa merda é real, vou fazer ele se
arrepender de cada segundo que me mantém por perto. Vou arruiná-lo, sem
remorso, sem medo, sem a porra de um arrependimento. Assim como ele
fez.
— O que porra você quer de mim?! — Exclamo, ignorando por
completo a presença de Naten no banco de trás. — Você é um cretino,
Jason, a porra de um cretino depravado. — As palavras saem dos meus
lábios como facas, golpeando-o sem o mínimo remorso. — Três anos! Três
anos se passaram e você nunca me procurou, nunca tentou se explicar e
nunca se importou tanto quanto dizia!
Ele não move um músculo, seus olhos continuam fixos na estrada e
sua mandíbula é retraída repetidas vezes. Mas ele não me encara, não diz
uma palavra e não tenta se justificar. Nem mesmo consegue olhar nos meus
olhos. Ele sabe que é merecedor de todo o meu desprezo e não se importa
nem um pouco com isso. Vejo a indiferença em seu olhar. Em suas ações.
Quando me dou conta de que não terei uma resposta, desprezo a
mim mesma ao sentir os meus olhos marejarem. Não sei ao certo o motivo,
mas é literalmente a primeira vez que ouso dizer em voz alta tudo aquilo
que me atormentou nos últimos anos. Dói aceitar que eu não passo de uma
tola inconsequente.
Eu não quero transparecer o quanto o seu silêncio fere o meu
interior. É como uma navalha, rasgando o meu corpo de ponta a ponta,
jorrando evidências da minha dor em forma de lágrimas. Mas eu não
permitirei, ele não merece isso. Eu o desprezo.
— Aspen, você precisa se acalmar. — É a voz de Naten. Não há
sarcasmo ou vestígios de que esta é mais uma das suas gracinhas, é só… o
Naten.
O antigo Naten. O meu amigo. Aquele que era verdadeiro comigo.
Balanço a cabeça, deixando claro que este se trata do típico
momento no qual não baixarei a guarda. Não vou me acalmar enquanto
estiver ao lado de Jason. No entanto, Naten não deveria ser o culpado por
ações que não foram cometidas por ele, não quero culpá-lo. Estou farta de
machucar todos ao meu redor quando apenas um deles é merecedor.
— Não, Naten. Não vou me acalmar. — Eu o fito por cima do
ombro, controlando o bolo de lágrimas esperando uma única ordem para
despencar de meus olhos. Não vou deixar. — Eu quero descer da porra do
carro agora!
Naten corrige a postura, claramente desconfortável com a situação.
Não o culpo, não posso dizer que estou adorando o momento. Ele abre a
boca para dizer alguma coisa, mas com os olhos fixos ao meus, me oferece
aquele olhar de superproteção que eu não via há anos.
— Você está em perigo. Não é um jogo, e isso aqui… — Alterna
com o seu indicador entre eu e Jason. — Não importa. Vocês dois podem
brigar, discutir, gritar, e podem até matar um ao outro quando tudo isso
acabar. Por enquanto, você precisa entender que as coisas estão ruins e que
não temos tempo pra isso.
Fato.
As coisas estão péssimas. Está tudo um completo caos, e eu não
consigo colocar a minha cabeça em ordem quando tudo que penso é em me
manter longe de Jason e tudo que inclui a sua presença. Não posso mais
ficar em WonderFall, a minha identidade foi descoberta e embora esteja
arruinada e sem uma saída, sei que encontrarei uma em meio a mil
possibilidades negativas, mas não pedirei ajuda a nenhum deles.
Lidei com os meus próprios problemas durante os últimos três anos.
Eu me mantive viva, sobrevivi a toda aquela merda. Não precisei de Jason
para isso, não precisei da academia e não precisei ser protegida. Eu fiz isso.
E não quero ser protegida.
Quero ser livre.
Quero ser alguém normal.
Mas tudo que tenho certeza que farei daqui para frente, será arrumar
as malas e entrar no primeiro ônibus de viagem ao nascer do sol. Eu não
ficarei aqui, não colocarei a vida de Josh em risco, eu o protegerei. E se ser
a porra de uma vadia traiçoeira for necessário para mantê-lo a salvo e longe
de toda essa bagunça, eu o farei sem pensar duas vezes. Afinal, não seria a
primeira vez.
— Eu entendo que as coisas estão ruins, sempre entendi, porque
sempre estiveram no mesmo lugar. — Ergo a cabeça, aprofundando os
nossos olhares. — E eu pretendo lidar com isso sozinha.
Noto o franzir de suas sobrancelhas no mesmo segundo em que
sinto o olhar de Jason queimar a minha mandíbula. Parece que finalmente
atrai sua atenção até mim. No entanto, mantenho os meus olhos fixos nos de
Naten, sem dar importância para quando a velocidade do carro é reduzida.
— O que você está dizendo? — Indaga Naten.
— Que eu vou lidar com as minhas merdas, não quero a sua ajuda.
— Girando o pescoço, deparo-me com os olhos de Jason brilhando em
direção aos meus. Ele sequer pisca. — Nem a sua.
O carro é freado bruscamente. Seguro-me no assento para impedir
que seja atirada de cara para o banco. Naten resmunga algum xingamento.
Jason me encara, fúria exalando de cada poro.
— Você não tem escolha.
Arqueio uma das sobrancelhas, desafiando-o. O carro está parado,
mas as suas mãos ainda seguram o volante com firmeza. Ele está irritado, e
veja só que grande novidade, isso não significa nada para mim.
— Você não pode me impedir. E não vai. Entenda de uma vez por
todas que não sou um de seus soldados para quem cospe ordens e lhe
obedecem como cachorrinhos adestrados. — Decreto, conferindo a
maçaneta da porta mais uma vez. Me dando conta de que segue trancada,
suspiro encarando-o com todo o ódio que aflora dentro de mim. — Abra a
droga dessa porta, Jason.
Ele não parece minimamente intimidado sob o meu olhar, a
tranquilidade que exala de seus olhos escuros faz a chama fervente do meu
peito simplesmente ebulir. Jason sabe o quanto eu o desprezo, sei que ele
pode enxergar isso na forma como o olho. Sabe que se eu pudesse apagar
todos os momentos que vivemos juntos, eu o faria sem pensar duas vezes.
Me arrependo amargamente de ter confiado a minha vida a alguém que
mentia para mim a todo momento. Alguém que nunca se importou
verdadeiramente com o meu bem estar.
Portanto, quando firmo os nossos olhares e me jogo nas profundezas
de todo o repúdio que Jason representa, sou incapaz de ignorar o exato
momento que os seus olhos revelam o que seus lábios não podem expressar.
Ele não se importa. Não dá a mínima para a forma como me sinto a seu
respeito. Tudo o que ele quer é ter o maldito controle, mesmo que arruine a
minha vida no processo.
Inspiro profundamente, sugando todo o ar que posso, sentindo o ar
fervente alcançar a ponta das minhas narinas e ferver o meu cérebro. Sinto
vontade de explodir, de força-lo a encarar os meus olhos enquanto digo tudo
o que ele parece ignorar. Uma delas é a forma como ele traiu a minha
confiança e me quebrou de uma maneira que nunca tive forças o suficiente
para recolher os pedaços, somente usar emendas como um tapa buraco
enquanto faço de conta que ainda sou a mesma pessoa de anos atrás.
Mas até mesmo uma grande tola como eu consegue visualizar a
frieza esbanjada em um olhar cruel e um coração congelado. Sei que não
importa o quanto eu grite, o quanto exija por uma resposta e por uma razão.
No fim, ele é apenas essa pessoa repugnante e impiedosa que não consegue
enxergar nada além dele mesmo. O resto do mundo poderia explodir e ele
ainda estaria desta mesma forma, frio como a Antártica, enquanto nada
estiver o atingindo.
Tudo o que eu sinto é nojo. Nojo por tê-lo amado. Nojo por ter
confiado cegamente neste desconhecido. Nojo por ter colocado a minha
mão no fogo por ele e ter sido queimada por elas até que minha alma
virasse cinzas.
— Eu odeio você. — Sussurro, sem deixar de encará-lo. Quero que
ele veja o quão baixa posso ser. — Você é tão covarde, tão fraco que nem
consegue olhar nos meus olhos. O que você sente? Me diga, é culpa? —
Uso o meu tom mais amargo, o mais cruel.
Seus olhos desviam-se dos meus, quase como se ouvir todas aquelas
palavras pudesse parti-lo ao meio, mas quem é que ele quer enganar? A
muralha de indiferença ainda está aqui, nítida para os olhos que quiserem
ver.
A impiedade deseja me consumir. Me domar. Me descontrolar.
Enquanto no fundo, a doce garotinha ainda espera por alguma resposta que
não seja o seu silêncio.
Em meu peito há uma disputa indomável entre duas versões
terríveis. Basta decidir quem eu vou permitir que vença essa batalha.
Libertando todo o ar dos meus pulmões, permito que uma única
lágrima escape de um dos meus olhos conforme uso ambos os punhos para
socar diversas vezes o vidro da janela, o parabrisa, o banco e tudo que entra
no meu campo de visão. O silêncio dentro do carro é ensurdecedor, sei que
ambos estão observando a minha crise, no entanto, não posso controlar o
turbilhão de sentimentos que esmagam o meu coração e assumem o
controle do meu corpo.
Isso dói.
Dói perceber que tudo que enfrentei em todos esses anos não foi
capaz de fazer de mim uma mulher forte o suficiente para enfrentar o
próprio passado. As próprias feridas. Deveria ser fácil, eu jurei a mim
mesma que seria, então por que tudo parece mais difícil na prática?
As coisas que enfrentei pelo descuido de suas atitudes são
irreversíveis, não há maneiras de recolher os pedaços daquilo que restou.
Tudo está perdido. Ainda assim, ele está aqui, ao meu lado, agindo como se
eu fosse meramente uma problemática com a qual ele precisa lidar.
Seco os olhos com a manga da jaqueta e sinto a veia pulsar em
minha testa como consequência de meus batimentos acelerados. Talvez eu
goste de como a dor esteja se infiltrando em meu sistema, como ela me
quebra, me esmaga, me dilacera. É assim que costumamos aprender devidas
lições, levando porrada da vida. Já levei muitas, e doeu, doeu como o
inferno. Não foi o fim do mundo, mas dessa vez eu vou revidar.
Cometo o erro de virar o meu corpo no banco em sua direção e
encará-lo, observando-o ligar o carro novamente. Uma de suas mãos
posiciona-se no meio de nós para trocar a marcha, dando partida no carro
no processo. Seus olhos não encontram os meus em momento algum.
— Uma vez eu jurei que amaria você pelo resto da vida — Sussurro
entredentes, sem conter o riso irônico que me escapa em meio às lágrimas.
— E quebrei a promessa. Normalmente eu não costumo voltar atrás no que
eu digo.
Fecho um dos punhos contra a manga da jaqueta, pressionando em
seu bíceps com tanta força que Jason trava a mandíbula e prende o corpo no
mesmo lugar. Ele me ouve atentamente, mas ainda é o monstro incapaz de
sentir ou agir como um humano emocionalmente faria.
— Então guarde as minhas palavras… — Esmurro o seu corpo com
todas as minhas forças, incomodada com a facilidade que ele consegue
fingir que não estou aqui. — Você pode me perseguir, se quiser. Continue
na minha cola, continue exatamente onde está, seu merda. Vou precisar que
você esteja perto o bastante para fazer da sua vida um completo inferno
enquanto você respirar. E não vou dar para trás dessa vez.
Jason sequer se move, sequer me fita, sequer mexe um único
músculo. Suas mãos rodeiam o volante e seus olhos não se desviam da
estrada enquanto dirige, ignorando por completo o quanto eu estou faminta
por uma resposta, sem necessariamente especificar que é disso que eu
preciso. Ele sabe, sabe que tudo que importa para mim é tudo, menos a
droga do seu silêncio.
Mas uma luz no fim do túnel traz um clarão que ilumina as jaulas
submersas em mim, porque ele finalmente me fita.
Os olhos frios. Vagos. Distantes. Cruéis. Impiedosos.
Ele abre a sua boca, observando-me com aquele mesmo olhar
predador. Então eu espero que diga alguma coisa, e quando o faz, é quando
eu perco totalmente o controle.
— Vá em frente. Você sabe quem sempre vence a batalha, no fim
das contas.
Não penso. Só ajo.
Soco seu corpo diversas vezes, sem pensar, sem refletir, sem me dar
conta do quão descontrolada pareço ser. Completamente desligada do meu
lado racional das coisas, insulto-o sem me importar com o quanto estou
demonstrando o poder que sua existência ainda possui sobre mim. E por
mais que eu tenha criado diversos cenários para o momento em que o
encontrasse, nada do que planejei está sendo concretizado. Eu simplesmente
não tenho forças para lutar contra a força da natureza.
Liberto tudo aquilo que me assombrou durante os últimos anos,
revelando o lado em que muitas das vezes mantive nas profundezas do meu
coração.
Só deixo de socá-lo quando um soluço escapa da minha garganta e
Naten segura os meus punhos, impedindo que eu o atinja outra vez.
— Se acalme. — É um pedido sincero, carregado de compreensão.
Sua voz sai tão baixa quanto um sussurro.
O segundo soluço me escapa quando me dou por vencida, desistindo
de lutar contra o aperto de Naten. Estou fraca demais para isso, estou
fodidamente destruída.
Sua indiferença… Estranhamente, doeu.
No fim, nada fez sentido. Há um dia, eu queria encontrá-lo e fazê-lo
pagar por toda a angústia que causou, queria matá-lo. Pensei que pudesse
fazer isso, que poderia acabar com todo o meu sofrimento de uma vez. No
entanto, apagando-o da face da Terra, eu também não estaria em eterno
sofrimento?
Sou tão patética. Chorando, desabando aos pés daquele que eu
parecia tão certa em repudiar.
Sou a porra de uma hipócrita.
Sua mãe deve estar decepcionada com você, criatura insolente —
o meu subconsciente ri, debochando. A risada ecoando por cada canto do
meu cérebro.
Fecho os olhos com tanta força que posso sentir os meus miolos
remexerem dentro de mim. A culpa, a dor, o lamento, de repente, vem à
tona como um balde de água fria, cessando as minha lágrimas e despertando
todo o ódio que sinto de mim mesma. O nojo. A repulsa.
Me desculpe, mãe, me desculpe, me desculpe…
Então, sem a minha permissão, as memórias vem à tona como um
lembrete de que eu deveria manter a minha promessa.

Meu coração dói.


Tudo despedaçou.
Tudo dilacerou.
Tudo terminou.
Tudo foi uma mentira.
Ele mentiu para mim.
Não, ele não pode ter feito isso comigo.
Ele vai voltar.
Irá esclarecer tudo.
— Agora você está a salvo, garota. Com quem realmente se importa
com você, não chore. — O homem diz, levando as mãos ao meu antebraço e
iniciando uma carícia suave no local.
Recolho o meu braço, sem conter o medo que sinto daqueles olhos.
Daquela expressão tão cruel, da voz tão assustadora. Ele não é confiável,
não pode ser. Ele não pode estar falando sério, pode?
— Eu não te conheço. —Ergo o olhar, encarando o seu par de olhos
horrendos. — Por que eu deveria acreditar em uma palavra do que diz?
Ele abafa um riso, levando a ponta dos dedos aos lábios finos.
— Querida, você é tão jovem, por que está se deixando levar por
uma paixão tão medíocre? — Indaga, ajoelhando-se aos meus pés na beira
da cama. — Ele conseguiu fazer a sua cabeça em um período tão curto de
tempo?
Franzindo o cenho, sinto o tão familiar arrepio no pé da barriga. É
comum, tem sido comum desde que me esforço a acreditar que há algum
engano em toda essa história. Não pode ser real. Ele virá me buscar.
Encaro o homem à minha frente, dando espaço à frieza que me foi
ensinada.
— E você é velho. — Mantenho o tom de voz indiferente. — O que
pode saber sobre paixão? — Baixando o olhar, encaro os anéis dourados
ao redor de seus dedos. Nenhum deles se parece com uma aliança de
casamento. — O senhor não tem uma aliança, não é casado. Então como
você pode chamar algo que nunca vivenciou de medíocre?
As palavras são cruéis. Mas não, eu não sou mais tão ingênua, sei
exatamente onde ele quer chegar. Foram meses de treinamento com Jay, eu
estava atenta aos mínimos detalhes que eram oferecidos graças ao
descuido de alguém. É o caso do homem à minha frente, que,
miseravelmente, acredita que sou uma garotinha infantil sem o
conhecimento básico.
Eu lhe provarei o contrário.
Não acreditarei em uma única palavra que ele me disser.
Jay precisa vir até aqui. Precisa esclarecer as coisas, precisa me
dizer que tudo aquilo era uma mentira para nos afastar. Eu confiarei nele,
jamais em alguém tão horrendo como este homem. Jamais em alguém que
me arrancou de seus braços a contragosto.
— Sofia Clarke…. — Cantarola, levantando-se lentamente. Eu o
sigo com o olhar. — Você me lembra tanto a sua mãe. Os olhos gélidos, o
rosto tão inocente e puro. — Inclinando-se para frente, ele acaricia minha
bochecha com a ponta dos dedos. — Mas quando virávamos as costas, ela
se transformava numa vadia cruel. — Cuspindo as palavras, ele aperta
minha pele com dois de seus dedos.
Arregalo os olhos, sentindo o meu coração palpitar dentro do peito
por ouvi-lo falar da minha mãe de forma tão cruel. Ele a conheceu? De
onde ele tirou tudo isso?
— Você conhecia a minha mãe? — A pergunta é sincera, repleta de
dúvidas a serem respondidas.
Ele sorri, finalmente largando a minha pele daqueles dedos sujos,
retornando a sua postura em seguida.
— É claro. — Admite, retirando o que parece ser um charuto do
bolso de sua roupa casual. — Nosso fim não foi muito agradável, ela era
encantadora na mesma proporção em que conseguia ser uma pedra no meu
sapato. — Ele suspira, levando o charuto aos lábios.
Eu continuo sem entender onde ele quer chegar com essa conversa,
mas a minha respiração acelerada é difícil de controlar e temo
amargamente o que acontecerá nos próximos segundos.
Apenas quero entender o que eu faço neste lugar. Onde está o meu
irmão? Onde está a droga do Jay? Por que ele permitiu que me levassem
para longe?
— O que eu quero dizer, pequena Clarke… — Soprando a fumaça
pelo ar, ele aproxima-se em passos curtos. — É que você é jovem demais,
há tempo para impedir que seja uma cadela inútil como a sua mãe.
Cadela?
Faço uma careta, afastando-me da beira da cama e encolhendo-me
no centro do colchão. É uma tentativa de manter o meu corpo o mais longe
possível desse cara. Ele me dá nojo.
— Não fale assim da minha mãe! — Exclamo, sentindo arrepios
gélidos por todo o meu corpo.
Ele ri, achando graça na mudança repentina de personalidade que
tomou conta de mim.
— É claro. Esqueça a sua antiga vida e esqueça o seu namoradinho,
porque agora você me pertence. — Seus lábios finos e sem cor se reprimem,
anunciando o seu prazer explícito ao dizer aquelas palavras.
Engulo em seco.
— Você é louco. — Desacreditada, levanto-me da cama e caminho
até a porta, quero abri-la e sumir deste lugar, mas as minhas expectativas
são quebradas quando o ruído da fechadura indica que está trancada. Eu o
encaro, o desespero corroendo cada célula. — Deixe-me sair.
Ele sorri, revelando os dentes amarelados.
— Querida, você não entendeu? Você me pertence, não vai a lugar
algum.
— Você vai se arrepender do que está fazendo. — Jay mataria
aquele homem, ele não sabe onde está se metendo. — E eu vou lhe oferecer
um sorriso de dentes amarelos bem semelhantes ao seu. — Cuspo as
palavras, afastando-me do homem e encolhendo o meu corpo na cama pela
segunda vez.
O cara segue me encarando. Ele parece seguro de si, está se
divertindo com a situação.
Ele é nojento. Horrendo. Indiscutivelmente assustador. Quero sair
deste lugar, quero correr, fugir, desaparecer. Mas eu preciso me acalmar,
porque não estou sozinha. Sei que ele está vindo, ele tem que vir.
Por que ele está demorando tanto?
Encaro o lugar no qual fui atirada como um animal há algumas
horas, depois de ser arrastada para longe. O quarto se parece com algo
luxuoso, as cores branco e dourado destacam cada pequeno detalhe nas
paredes e teto. O chão brilha feito diamante, as cortinas brancas parecem
ter acabado de sair de uma lavadora e a cama é grande o suficiente para
que alguém durma em todas as posições possíveis.
Se parece com um cômodo de um castelo. É simples e luxuoso. Mas
nada disso me atrai quando tudo que desejo são as paredes cinzas feitas de
concreto do meu verdadeiro quarto. A minha verdadeira casa.
— Deixe-me ver se entendi. — O ruído de seus calçados indica o
seu caminhar pelo quarto. — Eu ajudo você, mostro quem realmente está
ao seu lado. E ainda assim, você está perdidamente apaixonada pelo
homem que matou a sua mãe? — A risada amarga que lhe escapa faz com
que eu esconda o meu rosto entre os joelhos. — Você realmente é uma vadia
cruel, pior do que a sua mãe poderia ter sido.
Engulo em seco, apertando os meus olhos como se aquilo pudesse
facilitar a minha tentativa de ignorar todas aquelas mentiras. Ele não está
falando sério, claro que não. Claramente inventou toda aquela história
para afastar Jay. Ele quer Jay fora de seu caminho e criar uma história
falsa de uma tragédia dolorosa é um grande golpe baixo.
Ele quer entrar na minha cabeça, distorcer os fatos da realidade,
mas eu não vou deixar.
— Você está mentindo. — A minha voz treme, e eu uso todo o meu
autocontrole para não transparecer o quão abalada aquelas palavras me
deixam.
Confio minha vida ao Jay, ele nunca mentiria para mim. Nunca me
machucaria em uma proporção tão gigantesca, porque ele me ama.
Ele me ama, ele me ama, ele me ama, ele me ama — repito na
minha cabeça diversas vezes.
Tudo isso é uma mentira, acalme-se.
Abraço o meu corpo, sentindo minhas pálpebras arderem pela
quantidade de força que uso para apertar os olhos. Tudo que preciso é
ignorar o que vem da boca do homem e esperar até que Jay venha me
resgatar, então ele dirá que foi uma armação para mantê-lo longe de mim,
ele dirá que tudo foi um engano, ele com certeza diria que foi um engano.
Sim, sem dúvidas.
Ouço os seus resmungos, no entanto, a minha insistência em
ignorar qualquer outra verdade além da que realmente importa, faz com
que a sua voz rouca se transforme em ruídos. Apenas ruídos. Não me
importo com o que ele quer dizer, não quero ouvir ninguém além de Jay.
— Acabarei com o seu sofrimento. — A sua voz ecoa no momento
em que sinto algo gelado e leve colidir contra as minhas pernas. — Veja
por si só e quando ele partir o seu coração, não diga que eu não a avisei.
O tilintar de chaves em contato com a fechadura é o que pude ouvir
antes da porta colidir contra o batente e a fechadura ser trancafiada outra
vez.
Quando ergo a cabeça, o quarto está vazio. Ele desapareceu.
Sinto os meus olhos úmidos, entretanto, a minha consciência diz que
essas lágrimas são frutos do desespero que tenho de ouvir a voz de Jay
outra vez. De vê-lo. Tudo ficará bem quando aquela porta for derrubada e
aquele homem pedir misericórdia pela própria vida.
Nós não o perdoaremos. Jay nunca o perdoaria.
Colocando as pernas para fora do colchão, noto quando pequenos
envelopes escorrem pelo chão. Olho ao redor mais uma vez, lembrando-me
do que senti em colisão com as minhas pernas antes de estar sozinha no
quarto.
Com receio, escorrego pelo colchão até cair de bunda no chão,
alcançando os envelopes com a ponta dos dedos. Arrasto-os pelo chão até
que a minha mão possa alcançá-los, e quando ergo à altura dos olhos,
consigo notar a caligrafia fina e escura sob a moldura.
"Sofia Clarke"
Isso é para mim?
Franzo o cenho, conforme abro os envelopes de uma vez. Os meus
dedos tremem, e sei que o que pode haver ali não é algo bom. Aquele
homem parece ser o oposto de coisas boas, e é o que eu deveria esperar de
algo vindo diretamente dele.
Abrindo todos os envelopes, posiciono-os na palma da minha mão
em ordem e viro de ponta cabeça, atirando para o chão todo o conteúdo
que há em cada um deles.
Papéis brilhantes batem contra o chão e, sem hesitar, reúno todos
eles pelo azulejo até que possa vê-los com clareza. O material fosco do
papel faz parecer com o mesmo utilizado em fotografias impressas.
Então quando meus olhos encontram o que há em cada um daqueles
retângulos, é como se um martelo que pesasse toneladas estivesse
esmagando o meu coração, o meu peito, o meu corpo, minha sanidade, os
meus sentimentos… Tudo está sendo destroçado em milhares de
pedacinhos.
Lágrimas caem.
Não.
Despencam.
Não consigo respirar, não consigo digerir o que estou vendo bem
diante de mim, não consigo acreditar em nada disso. Mas eu deveria
aceitar que não há o que possa ser feito. As provas estão bem aqui. Mas
não consigo. Não consigo, merda, não posso!
Alcançando uma das fotografias, encaro o momento exato em que
alguém fotografa Jay de joelhos, lambuzado por muito sangue em suas
mãos e em todas as suas roupas. À sua direita, a pistola brilha como um
raio, apoiada ao lado do corpo aos seus pés.
Não um corpo qualquer.
O corpo da minha mãe.
O cabelo loiro espalhado pelo asfalto de um beco, está vermelho. É
sangue. Há tanto sangue em seus fios de cabelo, em seu rosto, e em todas
as suas roupas estampadas. E mesmo que esta dor seja incomparável,
observo o seu olhar fixo denunciando que ali não havia vida. Ela estava
morta.
Um soluço engasgado me escapa quando as lágrimas mancham
todas as fotografias espalhadas no chão. Em todas elas aparece o corpo
frágil daquela que me deu a vida, morta, em uma das fotos sendo
carregada por Jay até o seu carro, em outra ele alcança a pistola e guarda
no cós da calça. Em outra, ele entra no maldito carro e some sem olhar
para trás.
Cerro o punho, esmagando a fotografia entre os dedos. As lágrimas
despencam sem autorização, sem controle algum, e eu já não tenho forças
para manter o meu corpo firme. É quando, fraca e desacreditada, caio de
cara nas fotografias, sem me importar com o hematoma que provavelmente
ficaria no meu rosto pela colisão ao chão.
Descontrolada, magoada, ferida, e destroçada, eu soco o chão
repetidas vezes conforme abafo os meus soluços nas fotografias.
A dor parece não ter fim, dói respirar, dói estar viva.
Os momentos que nós tivemos, todos os meses em que estivemos
juntos, nos apaixonando, nos dedicando a um amor fadado à ruína, era
tudo uma farsa?
Um grito sufocado escapa dos meus lábios e eu não consigo deixar
de socar todas as fotografias. Não consigo deixar de tentar apagá-las da
memória, mesmo que eu saiba que ainda que eu viva por mil anos, aquelas
imagens estarão mais vivas e saudáveis do que nunca na minha cabeça.
Nunca conseguirei me perdoar, nunca poderei perdoá-lo, nunca
serei capaz de seguir em frente. E mesmo que aquela porta seja arrombada
agora mesmo e Jay venha ao meu socorro com uma explicação para o que
está bem nas minhas mãos, jamais o perdoarei, porque nunca, jamais, ele
será capaz de mudar os fatos.
Não foram as dificuldades naturais que a mataram. Não foi uma
doença qualquer.
Foi o homem que jurei amar até o fim da minha vida.
Ele fez com que eu me sentisse importante, me deu carinho, me deu
um lar, cuidou de mim, fez com que eu me encontrasse e fosse uma garota
diferente do que todos esperavam de mim. Ele se apaixonou por mim, ele
fez com que eu me apaixonasse por ele, me disse as palavras mais belas
que não poderia haver nos filmes mais românticos existentes, me entendeu,
me consolou, Jay me beijou, me abraçou e me curou.
Todas as vezes em que eu estava chorando naquela janela,
conversando com as estrelas imaginando que era a minha mãe, todas as
vezes que implorei para que ela voltasse para mim, ele estava lá. Me
consolou, acalmou a tempestade que se formava dentro de mim. Impediu
um desastre natural.
E fez tudo isto enquanto tinha a plena ciência de que era o culpado
de tudo. De todas as minhas lágrimas. De todo meu sofrimento.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Eu não posso perdoá-lo por nada disso.


Por nada do que fui fadada a vivenciar, é uma promessa que fiz
depois de meses caindo em lágrimas naquele inferno. Onde Floyd me
largou e, às vezes, me usou como a porra de um objeto descartável.
Tudo ainda me machuca, não posso negar. Eu esperava que ao vê-lo,
meu cérebro soubesse que deveria matá-lo e acabar com a vida medíocre
que tem. Ele deveria pagar por todos os momentos que esperei por ele, que
desejei tê-lo por perto mesmo com tudo de ruim que havia feito e do caos
que plantou, porque não conseguia me livrar de todo aquele sentimento. No
entanto, aconteceu o contrário. Chorei, implorei por uma explicação, e
ainda assim, ele consegue ignorar tudo que estou expressando bem na sua
frente e não dá a mínima importância.
Mas as coisas são diferentes, eu não posso estar tão vulnerável e tão
magoada por alguém que sequer consegue olhar nos meus olhos e confessar
todas as merdas que fez ao longo dos anos.
É por este motivo e muitos outros, que não penso muito quando
puxo o freio de mão de uma vez, causando o ruído de pneus sendo freados
bruscamente no asfalto. Ele não quer me deixar ir, então vou obrigá-lo a
isso.
Jason segura o volante com uma das mãos na tentativa de manter a
direção sob controle, e com a sua mão livre, solta o freio de mão e diminui
a velocidade. Acontece tudo tão rápido, que quando seus olhos encontram
os meus e o carro para de se movimentar, enxergo o pino do que parece ser
uma trava no painel.
Desvio os olhos até os seus, e ali posso enxergar o que parece ser
um desafio. Ele está me desafiando, acha que não sou capaz de
simplesmente fugir, no entanto, expressando um sublime desprezo, levo a
ponta dos dedos ao objeto e quando a trava desaparece, abro a porta e salto
para fora do carro rapidamente.
— Aspen! — Ouço o meu nome ser chamado, no entanto, apoio-me
no teto do carro e dou a volta pela traseira, deixando-os para trás.
O trânsito está extenso e tenho a certeza de que a culpada sou eu. As
buzinas soam em direção ao carro de Jason parado bem no meio da estrada,
e atravessando a rua sem o mínimo cuidado de olhar para ambos os lados, a
buzina de uma motocicleta que vinha em minha direção explode à minha
esquerda e girando a cabeça bruscamente para a direção, tudo que vejo é o
corpo do motorista ir direto ao asfalto juntamente de sua moto na tentativa
de desviar do meu corpo.
O grito repreensivo dos demais motoristas reverbera pela rodovia
enquanto outros atiram xingamentos ao dono do Mustang em uma
atmosfera caótica.
No meio de toda a confusão, encaro o motorista esforçando-se para
levantar da rodovia, estendo a minha mão para ele e lhe ofereço ajuda.
Receoso, o homem leva cerca de dois segundos para aceitá-la, e quando ele
usa a minha mão como apoio e a outra para retirar o veículo pesado de cima
do corpo, posso enxergar pela visão periférica a figura de Jason saindo de
dentro do carro pela porta do motorista.
Desvio o olhar para o homem à minha frente, desesperada para
desaparecer deste lugar.
— Me desculpe. — Ofereço, quando com a ajuda dos demais
homens presentes, a moto é retirada de cima do corpo. — Está machucado?
O homem nega, passando uma das mãos pela cabeça, como se
estivesse sentindo dor no local. Eu estou prestes a lhe oferecer ajuda,
chamar uma ambulância ou algo parecido, quando viro o pescoço para a
direita e observo Jason aproximar-se de nós a passos largos, sua expressão
exalando impaciência e fúria. Sua mandíbula está travada e os olhares
julgadores de todos aqueles motoristas furiosos por seu carro seguir no
mesmo lugar não parecem incomodá-lo. A todo momento, os seus olhos
estão fixos aos meus, sem dar importância para o restante do mundo ao seu
redor.
Sentindo o meu coração dar dois pulos dentro do peito, arregalo os
olhos enquanto ouço o canto dos pneus do carro de Jason, giro sobre os
calcanhares e vejo o carro virar a primeira à direita, desaparecendo do meu
campo de visão. Devido aos passos largos que são dados por Jason na
minha direção, presumo que Naten seja quem está no volante.
Sirenes de ambulância ou polícia local parecem estar em uma
distância não muito longa, e sem a intenção de estar presente no tumulto
quando eles chegarem, distancio-me do homem e corro.
Ultrapasso os carros estacionados no meio da pista rapidamente,
minha respiração acelerada tornando-se indomável.
Em meio à fuga, arrisco olhar para trás uma única vez, e ela é o
suficiente para enxergar Jason próximo demais. Perto demais. No entanto,
diferentemente de mim, ele não está correndo. Suas pernas longas
caminham tranquilamente pela calçada em uma velocidade média, seguindo
os meus passos, sem desviar o olhar por um único segundo, como um
lunático.
Sentindo-me pesada e extremamente desconfortável com o material
da jaqueta, eu a retiro desajeitadamente sem deixar de correr pelas ruas.
Quando ergo o meu olhar, noto quando a ambulância de paramédicos passa
diretamente por nós, rumo ao acidente causado há alguns minutos. Quando
as sirenes tornam-se abafadas em uma distância segura, atiro a jaqueta para
um canto qualquer da calçada no segundo em que avanço em um beco da
esquerda, sem me importar com o cheiro azedo que vem dos latões de lixo.
Não olho para trás, não ouso observá-lo caçar por mim exatamente
como fizeram nos últimos meses. O desespero que eu poderia sentir com a
cena, causa arrepios pelo corpo ao me lembrar do quanto lutava pela minha
vida quando Floyd enviava os seus homens à minha procura. Eles
farejavam o meu desespero como cães treinados e eu, uma mera garota que
lutava pela vida, dava tudo de si pela liberdade.
Desta vez não será diferente. Eu não quero estar perto dele, não
consigo encará-lo outra vez após aquela droga de humilhação dentro do
carro. Por mais que o meu lado racional esteja gritando para que me lembre
do que ele fez, do mal que causou, eu lhe dei a última oportunidade.
Deixei que ele abrisse a droga da boca e me desse uma razão para
ter feito o que fez. Uma razão para ter brincado com os meus sentimentos,
me usado, destruído o meu coração. Ele não fez isso, no entanto.
Sendo assim, farei absolutamente tudo para desaparecer de sua vida,
desta cidade e até mesmo desta merda de país, se for necessário para mantê-
lo longe. Por essa razão, corro rapidamente em direção ao colégio de Josh.
Eu vou tirá-lo de lá e nós vamos embora, vou manter o meu irmão a salvo.
Preciso protegê-lo.
— Baker! — A voz grave e firme soa às minhas costas. Tão grave
que sinto meus órgãos pularem dentro de mim.
Não dou importância, desvio o meu corpo das cestas de lixo e
escadas de prédios que existem no beco estreito.
— Corra o quanto quiser, eu vou pegar você. — Ameaça. — E
quando acontecer, vou mantê-la em cativeiro se for preciso.
Arfo em meio a uma respirada e outra, enxergando a claridade que
vem do fim do beco. Quase lá. Vamos, Aspen.
— Não tenho medo de você. — Cuspo de volta, gritando em meio a
arfadas. — Não seja egocêntrico.
— Deveria.
Sua voz está próxima, eu sei que é questão de tempo até que suas
mãos agarrem o meu braço, levando-nos novamente a uma discussão sem
fim, mas mantenho os meus olhos fixos na maldita claridade. Parece
distante demais e o meu fôlego não coopera para que a alcance mais rápido.
— Pare de resistir, Baker, você não pode fugir. Não pode se
esconder.
Bufo um riso, sentindo a minha respiração falhar.
Não posso?
— Está dizendo que alguém que despistou dezenas de homens
treinados, não pode fugir de um fodido como você?
Então como um flash, rápido demais, sinto quando uma das suas
mãos agarram o meu ombro e força a minha lombar a manter-se rente a
parede.
Arfo pelo susto, meu coração martelando meu peito em uma
velocidade indomável.
— É exatamente o que estou dizendo.
Ergo o olhar, desvencilhando-me de seu agarre em meu ombro. Seu
corpo próximo demais me encurrala contra a parede e, mesmo que eu queira
soca-lo ou simplesmente fugir pela segunda vez, ele não vai permitir.
Para ele se trata apenas de um jogo.
— Me solta! — Tento empurrá-lo, porém, ambas as suas mãos
alcançam os meus punhos e o mantém sob seu agarre.
A ardência no local é incômoda, as feridas abaixo da gaze ainda
estão cobertas pelo suéter, ainda assim o seu agarre causa arrepios no local.
Entretanto, o encaro profundamente, me esforçando para não expressar o
quanto isso machuca.
Seus olhos escuros se fixam nos meus. Sua língua envolve o
piercing no canto do lábio inferior como se previsse que eu seguiria o seu
movimento. As mãos adentram ao meio de nós e juntas aprisionam os meus
pulsos contra os nossos corpos. Eu não posso me mover.
— Você é a caça ou o caçador, Baker?
Seu olhar busca pelo meu, esperando ansiosamente pela minha
resposta. Eu sei onde raios Jason pretende chegar com este jogo, sei o que
ele quer fazer e não vou permitir que ele o faça.
Sopro as mechas do meu cabelo que caem pelo meu rosto, atirando-
os em direção aos seus olhos que sequer piscam com o movimento.
— Por quê? — Indago, desafiando-o. — Tem medo que eu seja a
única sobrevivente em meio à caçada?
Jason perde cerca de dois segundos encarando-me antes de abrir um
sorriso sutil no canto dos lábios.
— Então você é a caça. — Afirma sem rodeios.
— Ou talvez eu seja um caçador bom em manipular as próprias
presas. — Respondo no mesmo tom, rude e breve.
Seu sorriso desmonta em um piscar de olhos, trazendo de volta a sua
aura caótica, embora seus olhos estejam ainda mais escuros do que o
habitual. Ele me olha com atenção, parecendo perdido em cada detalhe.
Todo aquele olhar que me é oferecido provoca arrepios no pé da minha
barriga. Jason me olha como se pudesse enxergar a minha alma, como se as
minhas palavras tivessem acabado de desmontá-lo.
Seus olhos não se desviam dos meus, seu agarre em minhas mãos é
intenso, quase como se houvesse desejo de sua parte. Ainda assim, me
esforço para afastá-lo. Toda esta proximidade está me sufocando. Ele me
sufoca.
Encarando-o como o ímã que aquela escuridão agarra os metais
cravados no meu coração, não sou capaz de desviar os meus olhos nem por
um único segundo. Sei bem que estou cometendo um erro, que sou suja,
imunda, um desastre, uma vadia desalmada, tudo por estar sentindo o calor
vibrar por cada canto do meu corpo apenas por estar presa em seu olhar.
Meu coração palpita duas, três, cinco vezes seguidas quando Jason
aproxima o rosto do meu sem esboçar qualquer emoção e, com a ponta dos
dedos, circula a ponta do meu queixo como o gesto que aquecia o meu
coração há alguns anos. Não tenho outra reação senão fechar os olhos sob o
seu toque.
Suja. Cruel. Vadia. Hipócrita de merda! —Meu subconsciente
ofusca a minha mente.
— Você tenta, tenta e tenta… — Sussurra contra os fios de cabelo,
eu posso senti-lo inalar o cheiro que vem dos fios.
Sentindo-o tão próximo, o cheiro que exala de Jason é tão familiar,
que quase o inalo como a porra de uma viciada. Seu cheiro me traz
nostalgia, um tempo no qual eu amaria tê-lo impregnado em minha pele. No
entanto, há algo de diferente. Algo que eu ainda não consegui descobrir o
que pode ser.
— Mas no fundo… No fundo você sabe que nunca vai conseguir
fugir de mim. As memórias vão te perseguir, vão te tirar o fôlego, te
enlouquecer… — Arfo. Sua voz está tão rouca que temo ter desaprendido a
respirar.
O calor que percorre pelo meu corpo é capaz de derreter um cubo de
gelo. Eu poderia até mesmo derreter a porra de uma montanha coberta de
neve, mas não sou capaz de ignorar a chama ardente causada pelo culpado
da minha ruína. Do meu sofrimento.
— Você não sabe de nada. — Minha boca está dizendo o que meu
corpo nem se dá o trabalho de afirmar.
Jason suspira pesadamente, movimentando as mãos no meio de
nossos corpos.
Arquejo quando uma de suas mãos larga o meu pulso e sem o
mínimo cuidado a leva até o meu pescoço, me enforcando conforme os seus
lábios pairam sobre a minha mandíbula. Arregalo os olhos e Jason força o
meu corpo contra a parede, fazendo-me senti-lo colado a mim.
— Então diga… — Noto quando a sua mandíbula trava e os seus
olhos se fecham. — Diga que eu sou desprezível, Baker, diga que eu sou a
porra de um canalha! Mas diga isso enquanto tenta convencer a si mesma
de que todo esse ódio é real. No fundo, nós dois sabemos a resposta.
Fecho os olhos, sentindo-o raspar a ponta dos lábios contra a minha
mandíbula, provocando-me. O metal frio de seu piercing entra em contato
com a minha pele e quando a sua mão que antes segurava o meu punho se
desvencilha do meio de nossos corpos e agarra o meu quadril com
brutalidade, desprezo a sua existência como personificação do pecado.
Repugnante, monstruoso, estúpido e horrendo, no entanto, caloroso e
tentador.
— Eu odeio você. — Afirmo, sentindo-o acariciar a minha nuca
com uma das mãos. — Eu te desprezo, Jason. Você é repugnante.
Ouço quando ele abafa um riso, como se duvidasse do que sai dos
meus lábios. O calor de seu hálito bate contra o meu pescoço e um combo
de arrepios gélidos escorre pelo meu corpo no mesmo milésimo de
segundo.
— Eu poderia acreditar... — Suspirando contra o meu pescoço, uma
das mãos de Jason agarra o meu braço com brutalidade, prendendo-me
contra si. — Mas se eu sou tão insignificante assim, por que ainda sou o
único a receber alguma parte de você? Alguma demonstração?
Arregalo os olhos, sem esconder o quão surpresa suas palavras me
deixam. As batidas do meu coração aceleram, meu peito torna a doer, minha
respiração arde e a minha cabeça gira alucinadamente.
— Não espere bondade de mim. Não estou aqui para abraçá-la e
dizer que o passado foi um erro, porque não foi. Fiz tudo o que eu queria
fazer e não me arrependo.
Aí está.
Sua frieza. Sua Indiferença.
As raízes que foram escondidas por tanto tempo e eu, como uma
grande tola, caí feito idiota.
Eu não estava esperando pela pontada que atinge meu coração, mas
ela vem com tanta força que me sinto uma grande inútil por ter esperado
qualquer coisa que fosse do homem à minha frente.
O balde de água fria vem quando me amaldiçoo por vê-lo como
alguém que já amei com todos os átomos de meu corpo. Mas é assim que
funciona esse jogo, Jason gosta do ódio que nutro por ele, gosta de ser
desprezado e é como se nunca tivesse existido um coração dentro de si.
A ficha demora alguns segundos para cair.
Mas ela cai.
O homem diante de mim é um completo desconhecido. Alguém que
não merece outro sentimento senão a repulsa.
Ele quer que eu o despreze, mas para me ferir, para me destruir e
humilhar, quer que eu o faça junto a ele. Em sua presença.
Em um momento de distração, o meu corpo é virado subitamente e
ambos os meus braços são puxados para trás, firmes contra a palma das
mãos de Jason. Ele firma o aperto nos meus pulsos e a dor presente no lugar
acelera as batidas do meu coração, no entanto, quando observo o vislumbre
do carro aproximando-se da saída do beco, sinto seus lábios aproximarem-
se de meu ouvido às minhas costas.
Sua muralha de músculos pressionam o meu corpo junto ao seu.
Minha ira ferve, ela clama por libertação.
— Eu disse que iria mantê-la em cativeiro se fosse preciso. — Sua
voz é rude e baixa, levando-me ao limite. — Você pode até ser uma ótima
caçadora, mas hoje você é apenas a caça. Não se esqueça de quem lhe
ensinou tudo o que sabe.
Então eu percebo. Como se finalmente tudo fizesse o devido
sentido, eu percebo o quanto amaldiçoada sou desde o momento em que
Jason entrou na minha vida. Quando nova, mamãe costumava se referir a
mim como o seu girassol, porque girassóis não murcham nem mesmo
diante de uma tempestade. Para ela, girassóis eram o reflexo de pureza,
bondade, esperança, felicidade e gentileza. Mas talvez ela tenha se
esquecido que normalmente eles costumam morrer pela falta do sol, a falta
do que dá vida a eles. Essa é especialmente a função dele, seus olhos
escuros como a noite carecidos da presença de estrelas, apagando qualquer
mínima existência de luz, é o que me apaga. É o que me mata. É o que me
distancia da minha verdadeira essência.
Perceber isso é o que me motiva a entender que não há como reviver
algo que já morreu. E que se algum dia existiu alguma parte em mim que
esteve viva, eu não me lembro. Pois, mesmo que eu tente me esquecer do
quanto foi duro sobreviver a uma tempestade com toda a esperança viva
dentro de mim trazendo vida aos meus pulmões, nada vai conseguir me
fazer esquecer de como a escuridão cumpriu a sua tarefa tão mais fácil. Sem
dificuldade alguma.
Como se me apagar fosse o seu real objetivo.
NEW YORK - 2019
ANTES

— O que é este lugar? — Os olhos de Clarke brilham, seus lábios


entreabertos mal se movem conforme ela avança alguns passos adiante.
Fechando a porta às minhas costas, relaxo o meu corpo contra a
parede e cruzo os braços, observando-a por completo, concentrado em seus
movimentos sutis.
Não era a minha intenção trazê-la ao subterrâneo do prédio onde
tem sido a minha casa há anos. Ninguém vem até aqui além de Hyuk e
Williams, e prefiro que seja assim. Gosto do meu espaço. Dividi-lo com
mais alguém significa mostrar um lado que poucas pessoas conhecem. E eu
não entendo porque a trouxe até aqui. No entanto, nada faz muito sentido
para mim quando eu a vejo sendo exatamente o oposto do que imaginava
que fosse. Não consigo agir racionalmente.
Não quando a ouço conversar com as estrelas como se tivesse
alguma culpa quanto ao que ocorreu nos últimos anos. Ela deveria culpar
Sebastian, deveria odiá-lo e fazer com que ele pague. Sei que ela pode fazer
isso, sei que ela consegue ser mais do que aquela merdinha inconsequente
esperava que seria.
Foda-se a racionalidade. Eu quero transformá-la no pior dos
pesadelos de Sebastian.
Seus olhos curiosos observam cada canto do espaço e tocam cada
objeto com a ponta dos dedos, aparentemente extasiada pela diferença
abrupta de ambientes que há no mesmo prédio. Quando seus pés alcançam a
prateleira amadeirada e uma das mãos capturam um dos livros empoeirados,
o levanta no ar, encarando-me por cima dos ombros.
— Você lê? — Um sorriso surge no canto dos seus lábios. — Isso
tudo é seu? — Clarke varre o subterrâneo com o olhar. Ela parece admirar
cada detalhe de um simples quarto em túneis abandonados.
Suspiro, relaxando o meu corpo contra a parede.
— É tudo meu.
O sorriso que brota nos seus lábios cresce ainda mais quando seus
pés a levam até às diversas prateleiras recheadas de medalhas e luvas de
boxe penduradas pela amarração. Sinto um arrepio percorrer pelo meu
corpo, sem entender como estou permitindo que ela veja este meu lado. O
humano. Aquele que eu contenho como se a minha vida dependesse disso.
— O que você competiu? — Pergunta, tocando as medalhas
delicadamente com a ponta dos dedos.
De longe, eu posso admirá-la sem que o receio me impeça.
— Luta de rua.
Clarke franze as sobrancelhas, sem deixar de sorrir. Seus dentes
alinhados fazem com que seu sorriso transmita a mais bela das purezas.
Quando ela me encara por cima do ombro, leva uma das mãos ao rosto para
colocar alguns fios de cabelo atrás da orelha. Um ato tão simples consegue
deixá-la ainda mais linda.
— Você tem um gosto tão peculiar. — Bufa um riso, desviando os
olhos para o restante do quarto. — Mata pessoas, mas ainda lê um bom
livro. É lutador de rua, mas sequer aparenta ser tão violento...
Um sorriso brota no canto dos meus lábios e, descruzando os meus
braços, avanço alguns passos em sua direção. Clarke segue de costas,
analisando cada canto do meu esconderijo, então aproximando-me às suas
costas, aproximo o meu rosto do seu ouvido em silêncio.
— A primeira lição para você ser uma de nós, Clarke, é nunca
confiar no que é visível apenas para os olhos. — Noto quando o seu corpo
estremece pela proximidade súbita. — Se você quer descobrir algo,
perguntar é uma péssima ideia. Pessoas mentem, escondem e manipulam,
então seja corajosa e descubra por si só.
Afastando-me de seu corpo, quando Clarke gira sobre os
calcanhares para encarar-me, seus olhos azuis estão escuros e profundos, as
pupilas dilatadas escondendo o tom vivido dos olhos. Eu gosto de como ela
consegue mudar de personalidade tão rapidamente, é como se ela soubesse
o que fazer a todo instante, no entanto, ser limitada por toda a sua vida
dificulta a sua evolução. E eu mudarei isso.
— Eu não sei como... — Receosa, Clarke baixa o olhar e brinca com
os próprios dedos. Quis rir da mudança repentina uma segunda vez, como
se ela fosse uma garotinha fraca e incapaz. Não é, e quero provar isso a ela.
— Eu vou ajudar você.
Seus olhos curiosos voltam aos meus e seus braços baixam ao lado
de seu corpo. Quando Clarke endireita o pescoço e empina o nariz, vejo sua
disposição para enfrentar o desafio.
— Como você vai fazer isso? — Pergunta.
Caminhando até o centro do quarto onde estão posicionados três
sacos de pancadas pendurados ao teto, balanço as correntes e giro sobre os
calcanhares para voltar a encará-la. Clarke não compreende quais são as
minhas intenções, tampouco acredito que ela vá gostar do processo. Mas
será necessário. Sendo assim, sem remorso, bato duas vezes no couro do
saco e lhe convido a se aproximar com um aceno de cabeça.
Ela parece receosa, mas não pensa duas vezes em obedecer o meu
comando ao captá-lo. Satisfeito, eu caminho até as prateleiras e retiro de lá
um par de luvas boxeadoras. Quando as entrego para ela, uma linha se
forma no meio de suas sobrancelhas, no entanto, não houve nenhum
questionamento.
A observo por todo o processo em que coloca as luvas
desajeitadamente. Os seus dentes superiores mordiscam os lábios como se
ela estivesse usando de toda a sua concentração para colocar as malditas
luvas corretamente. Quero rir da cena, mas optando pelo oposto, dou a volta
pelo saco de pancadas e cruzo os braços, a um passo de distância,
esperando-a terminar.
— E então? — Clarke bate ambos os punhos um contra o outro,
como se estivesse prestes a lutar.
Não contenho o sorriso que aparece no canto dos meus lábios.
Quando me aproximo do saco de pancadas e afundo ambas as mãos nos
bolsos do jeans, noto quando a garota engole em seco.
— Quando você está triste, quando quer uma resposta para tudo que
aconteceu nos últimos anos. Como você se sente? — Questiono, rodeando a
fonte de suas limitações.
Firmando nossos olhares, seu corpo parece reagir diferente do que
esperava. Seus braços abaixam, é como se ela estivesse, de repente,
sentindo-se infinitamente entristecida. Clarke está baixando a guarda, como
se fosse um alvo fácil demais.
— Eu sinto muitas coisas, Jay. É um turbilhão de sentimentos, não
posso escolher apenas um deles. — Sussurra ela, receosa.
Umedeço os lábios e a desafio visualmente.
Vamos lá, Clarke. Não é apenas isso.
— O que você sente? Me diga.
Ela deveria libertar tudo aquilo que a impede de ser quem realmente
é. Quem ela quer ser. Tudo isso depende de como ela age perante aos
problemas à sua frente e se ela conseguir lidar com todas as merdas que
sobreviveu nos últimos anos, não tenho dúvida de que o resto será apenas
um detalhe insignificante.
Clarke suspira pesadamente, abraçando o próprio corpo com
dificuldade devido às luvas.
— Eu não sei! — Exclama, sua voz falhando miseravelmente. —
Não sei como isso pode me ajudar, sinceramente.
Assinto, aproximando-me da garota a passos breves. Quando a
alcanço, com a dúvida se poderia avançar um passo a mais para tocá-la,
levo a ponta dos dedos até o seu queixo. Quando Clarke não protesta,
entendo como passe livre e acaricio a ponta do queixo com o indicador e o
polegar, o erguendo o suficiente para conectar os nossos olhares. Ela engole
em seco.
Não diz uma única palavra, mas reforço meu apelo visual de que
está tudo bem e que este é apenas o processo a ser percorrido. Seus lábios
rosados abrem minimamente, seu arfar pesado revelando seu nervosismo.
— Você se lembra do dia que sequestrei você? — Pergunto,
lembrando-me do seu comportamento duvidoso.
Clarke me olha meio incerta antes de esbanjar um sorriso sutil no
canto dos lábios.
— Sim, eu me lembro. Mas o que isso tem a ver?
Contenho o movimento dos meus dedos em seu queixo e solto um
longo suspiro antes de lhe fazer a pergunta que certamente, Clarke não vai
gostar de responder. No entanto, a sua aversão a toque naquela tarde era por
algum motivo, seu alívio por estar fora do colégio, tinha um motivo. Tudo
que ela tem feito desde que pisou os pés neste prédio, são por algum motivo
e preciso que ela os liberte.
Talvez desta forma ela se dê conta de que os seus problemas só
serão considerados obstáculos se ela permitir que assim seja.
— Por que você pretendia fugir do colégio? — Puxando as mãos de
volta e afundando-as nos bolsos do jeans, mantenho o tom de voz rígido. —
Saint Lorenzo é conhecido por ser um colégio de alta qualidade de ensino.
Não havia reclamações, não havia queixas, não havia insatisfação com nada
que fosse relacionado a ele. — Aponto, sem ocultar a minha investigação
dedicada ao assunto. — Então me diga, de onde veio a sua insatisfação?
Clarke mantém a sua expressão incerta, como se não houvesse uma
razão específica para o seu comportamento, no entanto, está exposto em seu
olhar que não pode ser apenas isso. Ela está escondendo algo que pode
ajudá-la a superar todo o passado e mesmo que doa, mesmo que o inferno
dos últimos anos sejam cruéis e ela não possa se esquecer do sofrimento,
ele deve ao menos fortalecê-la.
Passei por diversos estágios como esse. Sofri como um cretino, me
neguei a acreditar que fosse superar toda aquela merda. Duvidei da minha
capacidade, duvidei que eu poderia ser alguém na vida e que a cor da minha
pele não interferiria no meu futuro, assim como Floyd dizia que seria. Eu
duvidei de coisas que pareciam inalcançáveis porque alguém disse que
seriam e isso arrancou de mim aquela coisa chamada esperança.
Não foi fácil recuperá-la, no entanto. Mas eu consegui, e fiz isso
sem a ajuda de ninguém. Clarke tem a mim, e após anos acompanhando o
seu crescimento, eu seria um merda do caralho se a deixasse enfrentar a
barra que para mim, foi uma tarefa tão difícil.
É o mínimo que eu posso fazer. Eu devo isso à ela e devo isso à sua
mãe.
— E isso importa? — Um riso carregado de melancolia lhe escapa.
— Eu não quero falar sobre isso. — Recuando alguns passos e esforçando-
se para retirar as luvas boxeadoras, Clarke sequer olha em meus olhos.
Enrijeço a mandíbula, observando os seus movimentos atentamente.
Clarke suspira, resmunga e apunhala as próprias mãos, tentando se livrar
das malditas luvas. Eu não me mexo, não digo uma palavra sequer, tudo que
posso fazer é acompanhar os mais sombrios dos seus segredos corroendo-a
internamente e externamente. É explícito. Eu posso ver.
— Essa droga! — Resmunga, afundando uma das luvas na parte
inferior do bíceps. — Argh!
— Por que está irritada? — Questiono, com a intenção de fazer com
que ela exploda.
Ela não responde.
A forma como os seus lábios reprimem repetidas vezes, revelam o
quanto este assunto pode ser sensível para ela.
— Clarke, por que você está irritada? — O tom rígido em minha
voz finalmente atrai a sua atenção.
Quando o seu olhar colide com o meu, sou incapaz de ignorar a
velocidade que o seu peito sobe e desce em uma respiração frenética. Seus
lábios se curvam em um sorriso, no entanto, não há sequer um vislumbre de
felicidade nele. Ela parece incrédula e indiscutivelmente abalada, os olhos
brilham intensamente como se pudessem revelar as suas dores sem precisar
dizer uma única palavra.
Eu a entendo, entendo tudo que existe dentro de sua cabeça.
Entretanto, preciso ouvi-la dizer, preciso que ela liberte tudo aquilo que a
mantém presa na mesma gaiola que o pai a trancou. Na mesma gaiola que
um dia eu já estive.
— Eu não estou irritada, Jay! — O tom de voz choroso acelera as
batidas do meu coração. — Eu estou muito triste, muito, muito triste. —
Um sorriso lhe escapa quando uma lágrima solitária escorre pelo rosto
corado. — E com raiva. Muita raiva! — Exclama entredentes, no entanto, a
tristeza ainda é perceptível no tom de voz.
Liberto um longo suspiro, disposto a ouvir tudo que ela está disposta
a revelar.
— Por quê?
Balançando a cabeça negativamente, Clarke simplesmente desiste
de tentar retirar as luvas. Piscando algumas vezes seguidas, ela mordisca os
lábios inferiores fortemente antes de erguer o olhar até o meu.
— Os últimos meses foram horríveis e quase insuportáveis. Eu
ainda não consigo entender… Não consigo colocar na minha cabeça que
perdi anos da minha vida acreditando que o meu pai me amava e que só
precisava de uma razão para confiar no meu futuro. No que eu poderia
conquistar. — Outra lágrima escorre, e a sua voz falha. — Mas então a
minha mãe morreu... — Sorri amargamente, transparecendo o quanto o
assunto aguça o seu sofrimento. — Quase perdi o meu irmão porque meu
pai o entregou para a adoção como se Jonah não significasse nada para ele.
Eu fui jogada em um colégio interno onde metade das garotas eram
educadas por aqueles que o meu pai enganava. Fui chamada de vigarista
sem fazer ideia do que raios isso significava!
Engulo o nó na garganta e aprumo a postura, mas não ouso
interrompê-la quando seca as lágrimas com o antebraço e firma os nossos
olhares.
— Você queria saber como eu me sinto, Jay. E a verdade é que eu
sinto raiva por ter perdido tanto tempo tentando ser perfeita para alguém
cheio de defeitos. Sinto raiva por ter permitido que o meu pai fizesse tanta
desfeita do meu esforço e ainda assim, eu ainda continuava me humilhando
por um terço de sua atenção. Sinto raiva por ter perdido tanto tempo
tentando agradá-lo, que sequer pude aproveitar a companhia da minha mãe!
— Lágrimas jorram de seus olhos e Clarke gesticula pelo ar como se o ato
pudesse amenizar a sua dor. — Sinto raiva por não saber me defender, por
não ter forças para contrariar todas as barbaridades que diziam para mim
naquele colégio. Sinto uma raiva enorme, Jay, por não ter desprezado
aquele homem enquanto tive a chance! — Seu peito sobe e desce em uma
velocidade intensa, e apesar de seu rosto estar corado pela a aparência de
quem esteve chorando, não há resquícios de tristeza em sua expressão.
Quase sorrio por satisfação em vê-la tão confiante, no entanto, tudo que eu
faço é observá-la como se o restante do mundo tivesse desaparecido.
— O que faziam com você?
— Bullying. — Clarke dá de ombros, como se fosse algo óbvio. —
Eu era ridicularizada por ter este sobrenome, todo mundo daquele lugar
sabia quem eu era e que não deveria estar ali. — Franzo o cenho revelando
a minha confusão, a garota percebendo a minha reação, sussurra: — O
colégio era público, Jay, sabe o que fazem com filhas de políticos corruptos
quando estamos longe da mídia?
Aprumo a postura no segundo em que enrijeço a mandíbula, me
dando conta de que por todo o tempo em que me convenci de que ela estava
a salvo naquele lugar, tudo não passava de uma fachada infernal por falta de
informações da minha parte. Eu poderia tê-la perdido e isso seria uma
merda colossal.
— Diga que alguém tocou em um fio de cabelo seu, e eu incendiarei
o lugar.
Não é um blefe.
— Você não faria isso. — Firmando os nossos olhares, Clarke
realmente parece tentada a acreditar nas próprias palavras.
— Eu colocaria fogo em Nova York inteira se isso fizesse você se
sentir melhor. Não duvide da minha imprudência, Clarke.
Ela não responde.
Seu corpo congela no mesmo lugar, mas o movimento de sua
garganta indicando que ela engole em seco não poderia, em hipótese
alguma, passar despercebido por mim.
Ambos estamos estáticos no mesmo lugar, encarando um ao outro
como se isto fosse o suficiente para compreender o que se passa em nossas
cabeças. Não é difícil sentir a tensão que sobrevoa o ambiente em que nós
estamos, não para mim. É fácil compreender que tudo isso não é por um
motivo tão banal como para irritar o meu pai. Nunca foi. É maior do que
isso.
Clarke vai repudiar a minha existência mais cedo ou mais tarde, é
inevitável. Eu não gosto da ideia de ser odiado por ela, no entanto, sou
incapaz de ignorá-la e evitar que estejamos tão próximos. Eu jurei que seria
assim, jurei que iria me manter longe dela para a sua própria proteção e que
tudo seria mais fácil se nós não tivéssemos uma relação. Eu sou um mar de
problemas quando ela parece ser a solução para todos eles. E isso é uma
droga, porque mesmo que me mantivesse longe, há sempre um ímã me
arrastando para perto outra vez.
E eu, como um covarde do caralho, não consigo resistir.
Quando não tenho uma resposta de sua parte, limpo a garganta e lhe
instigo a continuar no mesmo ritmo de minutos atrás.
— Vem cá. — Mantenho o tom de voz rígido o suficiente para que
ela obedeça ao meu comando.
Engolindo em seco, Clarke avança alguns passos receosos até estar a
alguns centímetros de distância do saco de pancadas. Noto que ela não sabe
exatamente o que fazer, já que sacode as luvas pelo ar ao lado do corpo,
mantendo sempre os olhos fixos aos meus.
— Me mostre. — Levo as mãos até o saco de pancadas,
interrompendo o seu balanço no ar.
Uma interrogação surge acima de sua cabeça.
— Mostrar o quê?
Quando o som das correntes soam no espaço, cruzo os meus braços
e gesticulo com a cabeça em direção ao saco.
— Não sei, Clarke. Faça alguma coisa.
Parecendo se dar conta do que estou querendo dizer, Clarke desvia o
olhar até o saco de pancadas e reforça a linha que se forma no meio de suas
sobrancelhas.
— Você sabe exatamente o que fazer, sabe como amenizar toda a
agonia dentro de si. Então faça. — Ordeno, sabendo que o incentivo é
exatamente o que ela precisa.
Bastou apenas dois segundos para Clarke se posicionar
desajeitadamente, mantendo sua total compostura com um dos pés mais
avançado do que o outro, seus olhos se fixam no saco e quando um dos
punhos bate contra o couro, um suspiro longo escapa de seus lábios.
Com uma pausa curta de um segundo, sem desviar o olhar fixo ao
saco de pancadas, Clarke parece incerta do que faz. Então, como um
lembrete de que ela não precisa se preocupar com o turbilhão de
sentimentos que a perturba, me aproximo até estar às suas costas. Levo uma
das pernas ao meio das suas, separando-as em um movimento sutil. Clarke
não questiona a minha ação, embora este seja o primeiro toque íntimo que
havíamos tido até o momento.
Observando o subir e descer de seu peito como um lembrete de que
a sua respiração está acelerada, inclino o meu corpo para a frente o
suficiente para agarrar ambos os seus antebraços.
— Aperte o punho com toda a força que conseguir, Clarke. Aqui nós
temos luvas para proteger os nossos ossos, lá fora você vai precisar protegê-
los por si só. — Escorrego ambas as mãos até alcançar o par de luvas,
apertando-os contra o seu punho. — Seja firme nos seus golpes e não perca
o foco. — Sussurro contra o seu ouvido, esforçando-me para ignorar a
tensão que corre o meu corpo por estar tão próximo a ela. — Este não é
mais um saco de pancadas, agora isso aqui são todas as pessoas que feriram
você, e você... — Largando ambos os braços, retiro os fios de cabelo que
escorrem por seu rosto levemente corado. — Não é mais Sofia Clarke. Você
não é a garota ingênua que acredita ser, agora você é aquela que fere
primeiro. A que machuca primeiro. A que não dá para trás. — Recuo dois
passos, observando-a soltar a respiração que segurava por todo o tempo em
que eu a instruí.
Cruzo os meus braços e mantenho os meus olhos fixos na garota de
cabelos loiros que tem a atenção direcionada ao saco de pancadas. A
concentração que emana de seu olhar, transparece o quanto Clarke parece
começar a entender o que raios vai sair de tudo isso. Ela está prestes a
libertar tudo que a mantém no mesmo lugar e quando sentir um fio da
liberdade, jamais aceitará ser limitada outra vez.
Eu não vou deixar. Ela será uma de nós.
Quando Clarke ergue o olhar e dá o primeiro golpe no saco de
pancadas, não posso conter o sorriso que brota nos meus lábios. Eu já a vi
golpeando sacos outra vez, porém há algo de diferente nessa. A mandíbula
perfeitamente contornada e contraída, a posição correta, os olhos fixos e
profundos, os golpes certeiros...
Ela definitivamente aprende rápido.
Movimento-me ao seu redor, analisando os seus golpes
cautelosamente. Os pés ainda estão posicionados da maneira que os deixei,
os punhos perfeitamente cerrados por baixo da luva e sei disto por notar a
força com que ela golpeia o saco. E, embora eu esteja rondando o seu corpo
na intenção de atrair a sua atenção, seus olhos não se desviam do foco
principal. Gosto disso.
— Firme! — Grito, usando de toda a minha rigidez para pressioná-
la. — Mais rápido, Clarke. Se estivéssemos em uma briga de verdade, você
teria sido derrubada há pelo menos cinco minutos. — Provoco, tornando a
rondá-la.
Clarke mordisca os lábios antes de resmungar algum xingamento
baixo demais para que eu a escute. Bufo um riso, me dando conta do quanto
pressioná-la poderia libertar mais emoções do que eu esperava. Palavrões?
Ela é mesmo uma caixinha de surpresas.
— Você é uma de nós, Clarke? — Zombo. — Nós repudiamos os
fracos e repudiamos o meio-termo. Você é uma de nós? Então faça por
merecer!
Cesso o meu movimento no momento em que sou surpreendido pelo
vislumbre de sua figura à minha frente. Seus olhos finalmente encontram os
meus na mesma rapidez que o punho vem rijo em direção ao meu peitoral.
Uma linha se forma no meio de minhas sobrancelhas quando por
reflexo, contenho o seu golpe ao agarrar o seu pulso. A luva já está em
contato com o meu corpo, no entanto, a força depositada nele é totalmente
contida por mim.
Alternando o olhar sutilmente entre o seu punho e o meu corpo, ergo
o olhar até encontrar os seus olhos gélidos. Neles encontro fúria e desafio.
Não há sequer um vislumbre mínimo do que Clarke era há alguns minutos,
tudo que eu posso enxergar é uma mulher decidida e livre.
Fora da porra da gaiola.
— Não me chame de fraca de novo. — Sua voz desafiadora
preenche o curto espaço entre nós. — Você não faz ideia do que eu posso
fazer.
Eu não fazia ideia de como nós humanos podemos captar o acelerar
ou o diminuir do ritmo das batidas dos nossos corações até ouvi-la dizer
essas palavras tão firmes na porra da minha frente. Tenho certeza que o meu
coração errou duas ou três batidas e isso provavelmente vai tirar o meu sono
por pelo menos duas noites.
Precisei entreabrir os lábios para recuperar o ar que sequer notei
estar contendo por todo este tempo.
Clarke mantém os olhos fixos nos meus, e mesmo que eu queira
parabenizá-la por finalmente estar tendo um avanço rápido demais para
quem começou recentemente, eu simplesmente não consigo abrir a porra da
boca. Estou paralisado. Congelado. Nem mesmo sei a razão.
— O que foi? — Questiona, o tom zombeteiro presente no tom de
voz doce. — Estava tão mandão há alguns segundos e de repente... O que
foi? — Suspira. — Perdeu a fala?
Engulo em seco.
— Clarke. — Eu a repreendo, sem conter a falha perceptível no meu
tom de voz.
— O que foi? — Questiona, desafiando-me a cada maldito segundo.
Respiro fundo, finalmente largando o seu pulso e recuando alguns
passos. Eu preciso de um minuto, preciso reorganizar a minha cabeça
fodida, e tudo isso deve ser feito longe dela. Para a sua segurança. O que eu
senti quando ela me desafiou é totalmente inapropriado.
Proibido.
— Fim da aula. — Aviso, indiferente. — Volte para o seu quarto.
Não olho em sua direção, não quero encará-la e correr o risco de ser
imprudente. Eu duvido do que estou sentindo nesse momento, e mesmo que
me esforce para tentar entender, estar em sua presença apenas dificulta todo
meu esforço para colocar a minha cabeça no devido lugar.
Não sei exatamente de onde vem toda esta tensão causada por uma
única frase. Não qualquer uma, não foi uma mera frase insignificante. Foi
um raio de luz no breu em que estive preso há meses e até anos. Eu observei
Clarke no fundo do poço, criei um vínculo com a garota que sequer
necessitou de uma mínima interação extensa.
Não precisávamos dessa merda. Eu não precisei dessa merda para
encará-la com olhos diferentes do que estava habituada, no entanto, tudo
agora está confuso pra caralho e sequer consigo separar a realidade do
mundo fantasioso que existe apenas na minha cabeça.
Quando ergo o olhar e percebo quando toda a luxúria presente em
seu olhar se esvai como em um passe de mágica, preciso conter o meu
corpo para não reagir àquela mínima reação negativa. No entanto, reforço
os nossos olhares e transmito o que de fato, deveria ser transmitido. Desde o
início.
Sei que não deveria estar imaginando Clarke nos meus braços. Não
deveria estar imaginando como seria sentir os seus lábios carnudos e
rosados nos meus. Ela é apenas uma garota que precisa de proteção e eu
estou aqui para lhe dar exatamente isso. Me render aos desejos é como
oferecer o oposto. O caos. Eu deveria arrancar o meu cérebro e até todos os
meus órgãos se isso pudesse apagar todos os pensamentos que tive no
momento em que ela abriu a boca.
No entanto, não posso mentir para mim mesmo. Não posso fazer
com que o meu cérebro aceite que isso é uma má escolha quando nunca
costumo fazer boas escolhas ao longo da vida. Essa seria só mais uma delas.
— Mas...
Contraio a mandíbula no mesmo milésimo de segundo que cerro o
punho ao lado do corpo. Minha pulsação vibra em meu pescoço, pisco por
alguns segundos, tentando controlar os meus olhos, a minha boca, minhas
mãos. Apenas para que eles não cedam ao que minha mente deseja.
— Vá.
Giro sobre os calcanhares e finjo estar interessado demais nas
malditas medalhas expostas nas prateleiras à minha frente. Eu não dou a
mínima para elas, não dou a mínima para nada presente nesta droga de
quarto quando a garota que reina os meus pensamentos está bem ao meu
lado.
Odeio permitir que meu subconsciente aja por conta própria. Não
posso contaminá-la, simplesmente não posso fazer com que ela seja afetada
pela bomba relógio que eu sou, não posso levá-la para a droga do inferno
junto a mim, não quando ela é a porra de um anjo.
Por esta razão, fecho os olhos e respiro profundamente quando o
soar da porta fechando-se às minhas costas explode no subterrâneo.
A magoei, não há dúvidas. No entanto, ela nunca vai imaginar que
tudo isso foi feito por ela. Para ela. Para protegê-la. Mesmo que isso rasgue
o meu peito como uma navalha cortando-me em dois, de dentro para fora.
Afundo o rosto nas mãos, tentando mantê-la longe dos meus
pensamentos por ao menos alguns segundos. Estimulo os meus músculos e
ergo a cabeça, alongando o meu pescoço repetidas vezes enquanto
mantenho os meus olhos fechados. O seu cheiro ainda está sobrevoando o
quarto, impregnado em meu sistema, e mesmo que ela já não esteja aqui,
mesmo que me esforce para tirá-la da cabeça, o seu cheiro sempre vem de
encontro ao meu olfato como se fosse o seu principal destino. Eu vou o
inalar como um viciado, afinal.
O soar do ruído da porta abrindo-se pela segunda vez ecoa às
minhas costas e apenas isso é necessário para que meus olhos abram
abruptamente. Sinto a minha linha d'água arder pela quantidade de tempo
que forcei os meus olhos a manterem-se fechados e quando a porta colide
contra o batente, me viro para ver de quem se trata a visita.
Eu não espero que seja Clarke. Não espero que ela volte mesmo
depois de ter sido expulsa de uma maneira tão rude. Ela foi criada desta
forma, foi criada para aceitar todas as merdas que lhe eram ordenadas. Eu
espero que isso mude em breve, no entanto, não vai ser tão rápido como
imaginei.
Soube que eu tenho razão quando erguendo o olhar, encontro os
olhos miúdos de Hyuk observando-me de longe enquanto traga um cigarro.
Aprumando a postura, firmo os nossos olhares e noto quando um
meio-sorriso cobre os seus lábios. Eu sei o que ele está pensando, sei que
provavelmente ele sabe que estou infinitamente fodido como ele disse que
estaria. No entanto, o matarei agora mesmo se ouvir as malditas palavras
mágicas saírem de sua boca.
— Diga alguma merda e eu mato você.
Desencostando da parede ao lado da porta, Hyuk traga o seu cigarro
uma segunda vez antes de se aproximar e oferecer-me a ponta flamejante do
objeto com um sorriso travesso nos lábios.
Desconfiado, aceito o cigarro e o trago aos lábios sem desviar os
nossos olhares inquietos.
Não vai demorar muito até que Hyuk abra a boca, é de sua natureza
não controlar a própria língua.
— Sabe… — Zomba, empurrando-me pelo ombro levemente. — Eu
não sou nenhum fofoqueiro, menos ainda um curioso sem educação. Mas eu
estava de passagem há alguns minutos e por um acaso do destino, encontrei
a cabelos dourados em prantos. Por alguma coincidência drástica, ela vinha
da entrada subterrânea. — Hyuk sorri perversamente, testando a porra da
minha paciência. — Isso tem alguma conexão com o seu caso ultra secreto
com Cassie? — Zomba ele.
Claro.
Me esqueci do momento em que Cassie aproximou-se de mim no
salão de treinamento com a intenção de provocar Clarke. Infantil de sua
parte, eu diria. Ela simplesmente não consegue se dar conta de que nós
nunca tivemos nada além de sexo casual, e tudo isto não teria sequer um
fiapo de chances de ir para frente. Não existe um nós. Nunca existiu e
nunca existirá. Sendo assim, Cassie entrou em algum tipo de disputa com
Clarke para conquistar a minha atenção desde que percebeu que Clarke a
tem sem usar todo o esforço que ela se dedica tanto. No entanto, ela criou
algum tipo de disputa solo, porque Clarke sequer se importa com sua
rivalidade desnecessária.
Eu disse isso a ela antes de subir os degraus e encontrar Clarke no
último andar. Talvez Cassie tenha caído em prantos para chamar atenção e
isso tenha resultado na visita inesperada de Hyuk.
— Não há nenhum caso. — Indiferente, trago o cigarro, soprando a
fumaça pelo ar. — E não. Clarke não tem uma mínima conexão com Cassie.
Não as compare.
Hyuk bufa um riso, tomando o cigarro de meus dedos para tragá-lo.
— Bom, diga isso a ela. — Zomba, sem interromper a sua tragada.
— “Não as compare”. — Hyuk imita, balançando a ponta dos dedos no ar.
— Você já está falando como um bunda mole. Não te reconheço mais.
Nego, empurrando-o para longe conforme roubo o cigarro de seus
dedos. Hyuk gargalha, achando graça.
— Eu disse a você, Jason. — Leva uma das mãos ao meu ombro,
como um apoio emocional. — Você está apaixonado, cara, pare de resistir.
Sempre esteve.
Minha vez de bufar um riso incrédulo.
— Eu não posso. — Confesso, desviando os olhos para um canto
aleatório do quarto. — Nós sabemos disso.
Hyuk dá de ombros.
— Você não teve culpa quanto ao que aconteceu. — Resmunga. —
Não se culpe por um crime que não cometeu.
Não, eu não cometi. No entanto, minha parcela de culpa ainda pode
ser válida.
Hyuk sabe disso, eu sei disso, todos nós sabemos e ninguém pode
apagar o que aconteceu. Tampouco agir como se nada tivesse de fato,
acontecido.
Dou uma última tragada no cigarro antes de lhe entregar. Dou as
costas para o meu amigo, ignorando toda a minha vontade de subir todos os
degraus e pedir perdão à Clarke. Não por ter sido ruim para ela hoje, não
por ter criado infinitas falsas realidades que nunca seria de fato realizadas,
mas sim por ter tirado dela todas as coisas boas que ainda poderia ter. Tudo
por um segredo que não me pertence e que não cabe a mim revelar. Preciso
me livrar de tudo isso e simplesmente ser um cara ruim que poderia
conquistá-la, no entanto, sou ruim, mentiroso, cruel e a porra de um
merdinha.
Ela não me perdoaria.
— O que vai fazer agora? — Pergunta Hyuk às minhas costas.
Sem encará-lo, retiro alguns baseados do fundo de uma das gavetas.
Isso vai relaxar a minha cabeça e fazer com que tudo pareça menos terrível
por pelo menos algumas horas. Sendo assim, é o suficiente.
Me viro para ele, balançando os baseados no ar quando um sorriso
depravado brota nos meus lábios.
— Tem sido uma semana do caralho. — Suspiro, convidando-o
visualmente.
Hyuk sorri quando joga o cigarro para o chão e o pisoteia com a sola
dos pés.
— Sim, foi uma semana do caralho. — Concorda, esbanjando um
sorriso de orelha-a-orelha quando retira um dos baseados de minha mão.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

— Se não me soltar agora, você vai se arrepender! — rosno,


tentando me livrar de seu agarre às minhas costas.
Jason não parece minimamente interessado em obedecer a minha
ordem ou apenas sentir-se ameaçado. Ele simplesmente parece certo do que
faz, e não pretende abrir mão.
Apertando ambos os meus pulsos às minhas costas, Jason força meu
corpo a movimentar-se e caminhar em direção ao carro.
Um gemido doloroso escapa de meus lábios por sentir as feridas em
meu pulso arderem com a pressão feita no local, e mesmo que eu não queira
transparecer o quanto aquilo machuca, não consigo evitar.
— Não vou entrar no seu carro pela segunda vez! — Torço os
lábios, contendo as dezenas de insultos presos na ponta da língua. — Você é
louco, um obsessivo doente!
Tento de toda forma desvencilhar-me de seu agarre, balançando o
meu corpo e o empurrando para trás, no entanto, ele sequer sai do lugar.
— E você percebeu só agora? Pensei que fosse mais inteligente.
Eu estou furiosa e o motivo está claro demais para negar. Estou
furiosa por Jason mentir para mim, por não tentar se explicar, por ainda
estar aqui, agora, na minha vida, mas principalmente, por ter conseguido
entrar na minha cabeça e derrubar todas as paredes que eu havia construído
ao longo dos anos para a minha própria proteção.
A questão é: eu estou furiosa com Jason, ou comigo mesma por dar
a ele passe livre para me quebrar?
Me sinto cruel por ter sentido absolutamente tudo, menos o
sentimento transmitido pelo ódio no segundo em que suas mãos tocaram o
meu corpo. Me sinto terrível por não odiá-lo no minuto em que
aproximando-se de mim, ele se pareceu com o cara na qual eu me
apaixonei.
Não era, afinal.
Nada nele se assemelha ao cara na qual eu me sentia tão segura. Tão
acolhida. Seus olhos tão sombrios estão cheios de pecado, de tempestade,
de monstruosidade. Tão intensos quanto as que ele ignora com tanta
veracidade dentro de si. Eu as conheço, no entanto. Ele não pode escondê-
las de mim, não quando foi ele quem me ensinou a interpretar olhares com
tanta facilidade.
— Hey, Aspen! — Uma voz doce vem da direção do carro de Jason,
fazendo-me deixar de lutar contra a sua força.
Aprumando a minha postura para que possa enxergar com clareza
quem chama por mim, mal raciocino quando o vidro do Mustang tão escuro
e fumê está rente as borrachas, completamente baixo.
Meus olhos se arregalam quando me deparo com os olhos confusos
de Josh, suas mãos rente ao suporte do vidro e um meio sorriso no rosto.
Mas… que porra?
— Josh? — Com dificuldade devido ao aperto nos pulsos, tento
encarar Jason às minhas costas. — Você… está usando o meu irmão contra
mim, seu filho da puta?!
Isso não pode estar acontecendo.
Primeiro ele nos persegue como um depravado pelas rodovias da
cidade, então faz uma compra enorme para a minha casa como se eu não
pudesse ser capaz de lutar para dar ao meu irmão tudo que hoje faz falta
para ele. Mas agora ele passou dos limites. Ele ultrapassou uma linha. Não
é mais sobre o meu bem, sobre provocações ou disputas. Jason tirou o meu
irmão do colégio sem o meu consentimento para usá-lo como ponte para
que eu o obedeça.
Quão sujo ele é?
Reforçando o aperto em meus pulsos, quase não consigo conter o
gemido que percorre toda a minha garganta quando uso de todas as minhas
forças para impedir que soe em voz alta. Jason leva uma das pernas à parte
posterior do meu joelho, empurrando o meu corpo para a frente, em direção
ao carro.
Eu não deixo de encará-lo por cima do ombro, emanando desprezo
por cada poro.
— Você não é a única que pode jogar sujo, eu que ensinei tudo a
você, então pare de achar que pode lutar contra isso. — diz ele, indiferente,
como se não tivesse acabado de testar a minha paciência.
— O quê? — Um riso amargo me escapa. — Você é realmente
egocêntrico. Eu não sou absolutamente NADA parecida com você, e tudo
que eu sei, aprendi tentando sobreviver no inferno que você me largou. O
quão irônico isso é? — Reforço, observando-o engolir em seco.
Jason parece impaciente, como se pela primeira vez desde que eu o
encontrei, ele não tenha se abalado com as minhas palavras tão cruéis.
— Você não faz ideia da merda que diz. Fique calada, vire-se, e
entre na porra do carro. — Ordena, empurrando-me pela segunda vez nos
joelhos.
Ignoro o seu pedido, sentindo o ardor fervente crescer na ponta do
meu nariz.
— Não fale comigo como se eu fosse a sua propriedade! —
Esbravejo, balançando ambos os braços com todas as minhas forças,
mesmo o ato esteja aguçando as minhas feridas. — Eu faço total ideia do
que eu digo, não ouse me dizer que estou errada depois de todo esse tempo.
— Ei, seus idiotas! Na frente do garoto não. — Ouço gritos vindos
da direção do Mustang. A voz de Naten.
Ambos o ignoramos.
O mundo parece em silêncio.
Espero por algum deboche, rebatimento, explosão, crise de auto ego
inflado, qualquer reação presunçosa de Jason. No entanto, quando as suas
mãos largam os meus pulsos e seus olhos escuros mergulham com
profundidade nos meus, a confusão abraça a minha expressão.
— Você pode escolher entrar no carro por conta própria, ou eu posso
obrigar você a isso. — Diz, sua voz rouca e rígida preenchendo o curto
espaço entre nós. Com um aceno rápido de cabeça, Jason gesticula em
direção ao carro. — Entre. No. Carro. — me desafia, proferindo as palavras
pausadamente.
Girando sobre os calcanhares, aprofundo os nossos olhares com
veemência. Chamas alarmantes se estendem sobre nós como uma manta,
reunindo todo aquele fogo em um só lugar.
— Ou o quê?
Jason desvia os olhos por alguns segundos em algum ponto às
minhas costas, e eu presumo que talvez ele esteja encarando alguém em seu
carro. Quando seus olhos voltam para os meus, eles estão escuros e
profundos, indecifráveis.
— Ou então nós teremos problemas. — decreta. — Você pode
pensar que eu sou um monstro, cruel, horrendo, e todos os demais nomes
pessimistas. É uma escolha sua. Não vou julgá-la. — Avança dois passos,
fazendo-me erguer o queixo para continuar encarando-o. — Mas você terá
que se acostumar com a minha presença. Goste ou não, contente ou não,
não vou tirar a porra dos olhos de você outra vez. Ficou claro para você?
Pisco algumas vezes e alterno o olhar entre os seus olhos para
enxergar onde se encontra o vislumbre da piada que eu acabo de ouvir. No
entanto, ele parece certo demais do que disse. Não há absolutamente nada
ali, e mesmo que eu me esforce para compreendê-lo, é óbvio que Jason não
vai dar o braço a torcer.
O que raios ele quer, afinal?
Já não bastava todo o inferno que sobrevivi por culpa de sua
imprudência? De suas mentiras? De sua máscara de bom menino?
Aquele ditado sobre os raios nunca caírem no mesmo lugar é a
maior estupidez já criada. Se a destruição for o destino final do lugar
atingido, não há escapatória. É como uma maldição. Nada, nem ninguém,
pode fugir do seu destino final.
Eu sou um lugar amaldiçoado. Jason é o raio que sempre cai na
minha cabeça no meio de uma tempestade horrenda. Então ele me destrói e
consequentemente causa a minha ruína, assim como na primeira vez.
Continuar no mesmo lugar e ser atingido pelo maldito raio que
eletrecutaria todos os meus sentidos mais uma vez, ou apenas me esconder
até que a tempestade termine, é uma escolha minha. Eu devo ter o poder de
escolha. Eu tenho um. Então por que diabos eu continuo parada, à sua
frente, esperando até que ele me destrua mais uma vez?
— Nós não teremos problemas — respirando fundo, declaro em voz
alta: — Nós temos problemas.
Uma de suas sobrancelhas se erguem, e por um milésimo de
segundo, posso enxergar a confusão exposta em seu olhar.
— Nós sempre tivemos problemas. Quando você me sequestrou,
quando fingiu ser o meu amigo, quando me consolou por estar sofrendo
demais com a morte da minha mãe… — O fiapo de decepção não está
exposta no meu tom de voz, mas ela existe. — Você fingia viver em um
mundo colorido quando tudo que existia era um preto e branco. Sem cor,
repleto de mentiras e más condutas. Então me diz, como você consegue? —
Indago.
Noto quando seu peito sobe e desce em um suspiro pesado, e mesmo
que nós estejamos sendo acompanhados por uma plateia formada pelo meu
irmão e Naten Hyuk, nenhum de nós parece se importar muito com a
exposição.
— O quê?
O vento forte atinge o meu rosto, tirando alguns fios de cabelos para
longe dali.
— Olhar nos meus olhos sabendo que tirou absolutamente tudo de
mim.
Ele fica em silêncio.
Tudo que nós podemos ouvir é o roncar do motor de seu Mustang,
juntamente das folhas secas de outono sendo arrastadas pelo vento ao chão.
Dessa vez, Jason não usa a sua personalidade maldosa, ele não faz com que
eu o odeie ainda mais, não me ataca. Só continua ali, parado, olhando para
mim como se não soubesse o que dizer pela primeira vez.
Apesar de estar sentindo raiva de mim mesma por ainda estar a sua
frente esperando por respostas que jamais me serão dadas, isso não é tudo.
Ele precisa saber de tudo que eu passei nos últimos anos, e mesmo que doa,
ou que ele não se importe, eu quero fazê-lo sentir ao menos um fiapo de
tudo aquilo que me assombra. Então, nós estaremos quites.
— Você desapareceu por anos. Tudo que eu queria era ouvir uma
explicação e eu sabia que você teria uma. Sabia que você olharia nos meus
olhos e diria que tudo aquilo era uma mentira, Jason. Eu esperei por isso. —
Confesso, sussurrando enquanto encaro o seu par de olhos escuros. — Eu
nunca acreditei no que Floyd havia dito. Nem mesmo quis acreditar quando
ele me entregou aquelas fotos. Tudo que eu sabia era que você teria uma
explicação plausível para tudo aquilo. Nem mesmo com as provas eu me
deixei levar por manipulações, esperei por você. Eu esperei.
— Não…
— Deixe-me terminar. — gesticulo com as mãos para que ele fique
calado. — Você nunca vai ouvir isso de mim outra vez, então escute bem.
Preste muita atenção.
Acenando com a cabeça, Jason afunda as mãos nos bolsos e baixa o
olhar, firmando-o no meu.
— Esperei por você. Floyd dizia que você não voltaria e que eu me
decepcionaria, mas eu confiei em tudo que você já tinha me dito. Acreditei
nas suas palavras mesmo tendo provas concretas de que você tinha
assassinado a minha própria mãe. Ainda assim, mantive a minha promessa
de que nós venceríamos todas as barreiras. — bufo um riso amargo,
desacreditada quanto ao que sai dos meus próprios lábios. — Mas então se
passou um mês… três meses… um ano… E você realmente havia
desaparecido. Você nunca voltou.
— Eu não desapareci — é tudo o que ele diz. Indiferente, frio,
inexpressivo. Como se nada disso tivesse algum significado para ele.
Que grande surpresa.
Bufo outro riso. No entanto, eu sei que neste há dor.
— Ah, não? — Indago, sarcástica. — Então aonde você estava
quando Floyd me usou como alavanca para o seu site de pornografia
infantil? — meus olhos marejam quando a raiva me domina. — Sofri
assédio, fui escandalizada, exposta, violentada… — Revelo, sentindo a
tensão invadir o meu corpo.
Os olhos baixos de Jason, de repente, como se uma chave tivesse
girado em sua cabeça, se erguem em um movimento rápido, e quando
enxergo a veia centralizada em sua testa pulsando, noto que algo mudou.
Não é indiferença brilhando em seus olhos dessa vez, é algo muito pior. É
fúria implacável. É fogo vivo.
— O que você acabou de dizer? — questiona, avançando um passo
e consequentemente, obrigando-me a recuar dois.
Engulo em seco.
— Eu falei tantas coisas e você está preocupa…
— Repita o que você disse — repete, sua mandíbula contraindo-se
com força.
Franzo o cenho, sem entender o que raios ele quer saber.
— Eu fui assediada.
— Disse que foi violentada. Defina essa merda. — Jason mantém os
olhos fixos nos meus, e toda a sua expressão neutra é substituída pela
impaciência.
De repente, uma luz brilha na minha cabeça rápido demais. Eu não
esperava essa reação, não esperava que ele agisse como se não soubesse o
que de fato havia acontecido comigo naquele lugar. Ele esteve por todo este
tempo desaparecido e simplesmente não se importou com o que acontecia
comigo, tampouco fez questão disso.
Eu não consigo evitar a minha surpresa, então ele realmente não faz
ideia do que aconteceu comigo por todos esses anos?
Jason realmente não deu a mínima para onde eu estava e tudo que
sofria em sua ausência. Ele não se importou, e eu simplesmente não consigo
aceitar que de repente, ele esteja tão preocupado com a porra do meu bem
estar. Como caralhos ele consegue?
— Isso importa? — Minha voz falha, e mais do que nunca, me sinto
fútil.
É a primeira vez que eu digo em voz alta. É a primeira vez que me
permito voltar lá e reviver as cenas, os toques, o terror. É a primeira vez que
me sinto envergonhada e suja quando deveria me sentir como a vítima.
Minha respiração acelera. Sinto os cortes em meus pulsos coçarem,
implorando para que eu dê ao meu braço mais algumas feridas que possam
anular a angústia entalada no meu peito. Me sinto pequena demais para
suportar essa dor, me sinto culpada por não ter lutado o suficiente, por não
ter sido tão forte quanto esperava que fosse.
Seus olhos alternam entre os meus durante cinco segundos,
explorando o que está expressado, explorando o que sinto. E ele vê, sei que
sim. Ele vê porque nunca fui boa em esconder alguma coisa dele. É uma
maldição.
Percebendo o que tento a todo custo manter longe de seu alcance,
Jason coça a testa com a ponta dos dedos quando recua alguns passos,
pensativo, perturbado. Seus lábios reprimem e por algum motivo, seu olhar
desvia para qualquer outro lugar que não seja os meus olhos.
— Pela porra do universo e pelo caralho da minha paciência, Baker,
diga que é um engano o que estou pensando. Não me diga que tocaram em
você, caralho. — Esbraveja, causando uma onda de espasmos pelo meu
corpo quando seus olhos encontram os meus. Pela primeira vez, quando
olho seus olhos, sinto terror. Sinto medo. — Diga que eu entendi errado.
Franzo o cenho.
Minhas sobrancelhas se juntam. Não consigo compreender o que
estou sentindo. Ódio, tristeza, imponência, decepção. Tudo isso corrói o
meu subconsciente, e nada deveria ser assim. Meus sentidos berram na
minha cabeça, perguntando-me que porra eu ainda faço aqui. Por que estou
lhe dando alguma explicação? Por que eu ainda não tirei o meu irmão
daquele maldito carro e arrumei as malas para longe daqui?
Nada parece fazer muito sentido.
Nada parece certo.
Tampouco o fato do homem que me destruiu estar aparentemente
furioso por descobrir que eu fui violentada parece fazer algum sentido.
Quão facilmente manipulável eu sou para permitir ser confundida desse
jeito?
Eu já não posso estar aqui criando razões inexistentes para lhe dar
uma segunda chance, não quando ele consegue agir como se não fizesse
ideia do que havia acontecido naquele quarto. Floyd sempre me dizia ter
contato direto com Jason, sempre dizia o quão patética eu parecia por estar
esperando o socorro de alguém que não se importa com um fio de cabelo
meu.
Eu o ignorava, no entanto.
Eu sempre apostei todas as drogas das fichas em Jason mesmo que
ele fosse realmente um assassino. Eu sabia que haveria razões para isso.
Jason teria uma explicação, como sempre teve. E eu entenderia, como
sempre entendi.
Mas agora, observando-o em agonia por descobrir a verdade que há
tanto tempo vem destruindo-me por completo e fazendo-me ter nojo de
ainda estar viva, sei que eu estive errada em diversos momentos.
Estive errada quando decidi confiar em Jason mesmo quando meus
princípios estavam em jogo. Estive errada quando esperei por ele, quando
chamei pelo seu nome tantas vezes que mal posso me lembrar, estive tão
errada quando apesar de tudo, de todo o mal que me causou, ainda o amei.
Estive errada pra caralho quando naquele beco, por um segundo, deixei-me
levar pela sensação de estar em seus braços outra vez e senti-lo colado a
mim.
Eu sou um fracasso.
Depois de tudo, como eu posso sentir mágoa e decepção? O que
significa esse nó na garganta? O que significa esse embrulho no estômago,
como se tivessem acabado de partir-me ao meio?
— Não entendeu errado — afirmo, erguendo o olhar para encará-lo,
sem notar quando foi que eu o abaixei. — E eu não preciso do seu consolo
uma segunda vez, não se preocupe.
Seus olhos brilham, transparecendo o quão furioso ele está Jason
sequer pisca.
— Foi ele? — entredentes, ele pergunta.
Baixando o olhar, noto quando o seu punho trava ao lado do corpo.
Atrás de nós, o som do acelerador do Mustang soa como um lembrete de
que não estamos a sós. No entanto, nos mantemos longe o suficiente para
que aquela conversa fosse particular.
Estamos a dois passos de distância, ainda assim, eu posso sentir a
tensão que ambos emanamos com aquela conversa. Esse não é um assunto
na qual eu penso muito, não quando ainda não posso superar o que havia
acontecido.
Essa, na verdade, é a primeira vez que eu digo em voz alta o que me
neguei a acreditar durante os últimos anos.
Só então, me dou conta de que aquela ferida ainda está sangrando.
Afinal, podem passar os anos, as estações, as horas, os minutos e os
milésimos de segundos, ninguém deveria ter que enfrentar a barra de
superar um abuso. É insuperável, doloroso e inesquecível, como um
pesadelo ruim. E como eu queria que, despertando de um sono profundo, as
memórias daquilo desaparecessem da minha cabeça para sempre e eu
voltasse a me sentir como um ser humano normal.
— Baker — a voz rígida e dura de Jason me fez erguer o queixo
para encará-lo. Só então me dou conta de que ele havia avançado um passo.
— Foi. Ele?
Jason parece extremamente impaciente, furioso, como eu nunca o
havia visto. Ele está irreconhecível, e por mais que seus olhos já sejam
escuros, agora eles estão profundos como um abismo.
Eu sei a quem ele está se referindo, afinal, quando o assunto era
Floyd, Jason nunca reagia muito bem, principalmente quando eu estava
inclusa no assunto.
Isso aparentemente não mudou, eu apenas não consigo diferenciar
se tudo isso é preocupação ou ele está apenas alimentando o seu ego.
— Não! — Esbravejo. — Por que, Jason? Por que isso importa?
Cerrando a mandíbula, Jason agarra uma das minhas mãos com
brutalidade, puxando-me à força para dentro de seu carro. Eu luto, agarro o
seu braço e tento desvencilhar-me de seu toque porque tudo isso é demais
para mim. Quem ele pensa que é? Por que ele tem essa necessidade imbecil
de achar que pode me controlar?
— O que você está fazendo, porra? — o empurro para longe ao me
livrar de suas mãos. — Que inferno, Jason!
— Entra no carro agora, Baker. Não vou pedir mais uma vez. —
Gesticula em direção ao carro, e então, o som da trava da porta soa às
minhas costas. Aguém a abriu pelo lado de dentro.
— Você é inacreditável — resmungo, aproximando-se de seu corpo
a passos breves. — Eu não faço ideia de como eu pude me apaixonar por
você um dia, seu troglodita estúpido!
— Ótimo. Você terá muito tempo para descobrir a fonte dos seus
sentimentos. — Em um movimento veloz, Jason abre a porta do carro e me
empurra para dentro, causando o meu tropeço. — Só não se esqueça que no
fundo, você é igual a mim.
No mesmo segundo em que caio de bunda no banco do passageiro,
noto quando a porta do motorista se abre e a trava é acionada quando Jason
empurra a porta pela segunda vez, o meu primeiro instinto é colocar as
pernas para o lado de dentro a fim de evitar um acidente, e quando a porta
se fecha, um estrondo explode do lado de dentro. Tudo rápido demais.
Minha respiração acelerada está fora de meu controle, e por mais
que eu me esforce para erguer o meu corpo e enfrentá-lo pela segunda vez,
quando Jason entra no carro pela porta do motorista e o roncar do motor
arranca em uma aceleração abrupta, minha cabeça é atirada para o encosto
do banco com brutalidade.
— Mas que porra?! — Exclamo, observando-o trocar a marcha.
Uma mão macia e pequena encontra a minha pelo espaço livre no
meio dos bancos, e quando ergo o olhar para encarar ao meu irmão, sinto
vontade de chorar.
— Josh — beijo sua mão, encarando os seus olhos azuis atentos aos
meus. — Machucaram você? Você está bem? — Vasculho os seus braços,
procurando por qualquer mínimo arranhão em seu corpo.
Meu irmão balança a cabeça em positivo, encarando Naten ao seu
lado com um meio sorriso nos lábios.
— Eu tô bem, Aspen. — Ele sussurra.
Por reflexo, empurro o meu irmão para o lado de Naten e com um
olhar sugestivo, imploro visualmente para que ele mantenha Josh seguro.
Eu não confio nem um pouco no rumo que isso vai tomar.
Percebo que Naten compreende o que eu lhe peço quando um de
seus braços enrosca no estômago do meu irmão e mantém seu corpo rente
ao banco. Aceno brevemente a ele como agradecimento e endireito o meu
corpo no banco do passageiro.
Tornando a encarar o maluco depravado por trás do volante
dirigindo como se não houvesse vidas aqui dentro, o vejo encarar a estrada
como se estivesse em uma hipnose. Ele não pisca, não se move, sequer
parece respirar. Mas os olhos seguem atentos à estrada.
— Jason! — Grito. — Meu irmão está aqui dentro, dirija como um
ser humano normal!
Então, como se estivesse despertado de sua realidade alternativa,
seus olhos encontram os meus. O nosso contato visual dura cinco segundos
até uma das suas mãos trocar a marcha e seu pé pisar no acelerador. Ele me
olha como se quisesse me matar, como se estivesse faminto por isso.
— Hyuk, onde fica Cheese Beer? — pergunta.
— Próxima à direita, na primeira esquina.
Rápido demais, uma das mãos de Jason é posicionada na marcha no
mesmo segundo em que o som dos pneus cantando no asfalto aumentam ao
adentrar em uma curva. Algumas buzinas de motoristas comuns ecoam do
lado de fora, no entanto, Jason sequer olha para o lado, mesmo que a sua
imprudência pudesse ter causado algum acidente.
As batidas do meu coração seguem descompassadas e mesmo que
eu queira normalizá-las, isso está fora do meu controle. Estou com medo,
com raiva e confusa. Não consigo digerir tudo que aconteceu nos últimos
minutos.
Tampouco tenho tempo para isso.
Quando o carro freia bruscamente e meu corpo é atirado em direção
ao painel, uso ambas as mãos como apoio no estofado de couro do banco e
observo Jason retirar uma pistola do cós da jeans. Meus olhos se arregalam
e não tenho outra reação senão tapar a boca com uma das mãos, abafando
um suspiro.
Naten leva uma das mãos ao ombro de Jason e contém o seu
movimento de abrir a porta.
— Jason — seu nome sai como repreensão.
Ele, no entanto, se livra do toque de Naten como se pudesse
contagiá-lo e abre a porta do carro. O som da trava automática ecoa entre
nós, e quando coloca um dos pés para fora, Jason tenta ativar as travas na
intenção de nos manter presos dentro dessa lata velha, sou mais rápida em
conter o seu movimento ao segurar sua mão.
— Não vai nos manter presos aqui.
Seus olhos fulminantes encontram os meus em uma velocidade
impetuosa. Espero que ele rebata as minhas palavras, que seja o cretino que
está habituado a ser, qualquer coisa, no entanto, em completo silêncio Jason
se afasta de meu toque e salta para fora do carro, batendo a porta com uma
força agressiva que sopra meus fios de cabelos para longe.
O observo entrar no que parece ser um bar rústico, a arma brilhando
em sua mão direita como se fosse um objeto comum como qualquer outro.
Como se ninguém pudesse ver. Seus passos são breves e ele parece
completamente decidido a seja lá o que pretende fazer ali dentro.
— Vá — A voz de Naten é clara e objetiva, ele sabe exatamente o
que estou pensando. — Seja lá o que o tenha deixado descontrolado, você
deve saber como lidar.
Engulo em seco, incapaz de ignorar a minha vontade de
simplesmente conter a bomba que Jason é. E eu sei que está prestes a
explodir, doa a quem doer.
Também sei que vou me arrepender amargamente por ter me
preocupado com o fim de toda essa situação. Sei que me arrependerei por
ter um grão de preocupação mantendo o meu cérebro em agonia, e se eu
não sair do carro nesse exato momento e conter a tragédia que está prestes a
acontecer, eu me arrependerei muito mais.
É inevitável. Eu ainda me importo com ele.
Mesmo que ele tenha me partido em milhares de pedacinhos, eu sou
incapaz de deixá-lo despedaçar assim como eu.
Que grande estúpida.
A razão e a emoção batalham em minha cabeça, ambos em uma
eterna discussão quanto ao que devo decidir.
Jason não está no carro, eu poderia pegar Josh e fugir para longe
daqui, seria fácil demais. Naten não me impediria, ele jamais tocaria em um
fio de cabelo meu. No entanto, as minhas emoções estão à flor da pele. Eu
quero salvá-lo, mesmo que para isso eu arruine o meu futuro.
Mas afinal, que futuro me espera?
Ele está perdido.
Eu sequer consigo saber o que vai ser dos meus próximos dias
depois que tudo isso terminar. É tudo como uma montanha-russa, quando
estamos lá em cima, somos incapazes de enxergar o que nos aguarda lá
embaixo. Só há uma forma de descobrir, esta é, indo até lá.
Por este motivo, abro a porta do passageiro com brutalidade e
encaro o meu irmão no banco de trás por alguns segundos enquanto deslizo
para fora do carro.
— Eu já volto, tudo bem? — sussurro, observando-o concordar com
a cabeça. — Eu te amo.
— Também te amo. — Josh sorri, aquecendo meu coração e
fazendo-me esquecer, por segundo, das coisas ruins que me assombram.
Lhe devolvo o sorriso antes de fechar a porta e dar a volta pela
dianteira, apoiando as minhas mãos no carro para impedir que pela maneira
desajeitada que o circulo, não cause uma queda.
Caminho até o estabelecimento com a porta estilo velho-oeste,
sendo capaz de ouvir o som de taças sendo pousadas contra o balcão em
uníssono, assim como gargalhadas longas e conversas paralelas de um
grupo de caras encostados contra sua madeira fosca. Encaro o ambiente por
dois segundos quando um silêncio causado pela presença de uma única
mulher no meio de todos aqueles brutamontes, chama-lhes a atenção.
Constrangida diante de tantos olhares, abraço o meu próprio corpo e
levanto a ponta dos pés para vasculhar o lugar com os olhos, procurando
por qualquer figura parecida com Jason, apesar de seus músculos serem
uma das características que nenhum desses caras possuem.
— Olha o que temos por aqui! — Exclama um cara de meia-idade,
barbudo, e com alguns botões de sua camisa abertos, revelando seus pelos
enormes em seu peitoral. — Rochelle! Por que não nos avisou que teríamos
visita?
Sinto o ardor fervente aquecer meu rosto. Tudo que eu quero é sair
deste lugar exatamente por onde entrei. Me sinto exposta diante de tantos
olhares perversos. Mas não posso recuar, preciso encontrá-lo.
Avanço alguns passos adiante, esforçando-me para passar por todos
os caras que barram a passagem, alguns distraídos com as suas conversas
fúteis, outros bêbados demais para notar a minha presença, outros ocupados
jogando dardos contra a parede, e a grande maioria, concentrados demais
encarando-me como se eu fosse um pedaço de carne suculento em uma
cova de leões famintos.
— Com licença — levo uma das mãos ao casaco do homem que
bebe a sua cerveja exatamente no meio do salão.
O homem me encara por cima dos ombros por dois segundos, então,
discretamente, gira sobre os calcanhares e descaradamente desce os olhos
por toda a extensão do meu corpo. Me sinto desconfortável, e por mais que
eu sinta repulsa do sorriso perverso em sua cara, engulo a bile de volta e me
forço a passar por ele e continuar o meu caminho.
Que droga, Jason. Onde você está?
Espremo meu corpo no meio de toda aquela gente, no processo,
tapando a respiração para não ter que sentir aquele odor de bêbados no meio
de uma tarde comum.
— Uh, olá! — Minha caminhada é interrompida quando um cara
pardo, de olhos verdes e tranças no cabelo, entra em minha frente tapando
completamente a minha visão. — Quem é você? — Ele beberica a sua
cerveja, movendo seu corpo à medida que eu movimento o pescoço para
olhar às suas costas.
Obrigatoriamente, deixo de olhar às suas costas para encarar os seus
olhos. Raiva emanando de meus poros.
— Não importa quem eu sou. Saia da frente.
Em um meio sorriso assustador, o cara revela os dentes amarelados
e provocativos.
— Não é bem assim que funciona, princesa. Quero saber a quem
dos meus velhos amigos você pertence, então eu perguntarei pessoalmente a
razão para que ele tenha escondido tudo isso de nós… — Estendendo a
mão, desvio de seu toque que tinha como destino o meu quadril.
Faço uma careta, sentindo a ânsia de vômito percorrer por todo o
meu peito até a minha garganta. Pisco algumas vezes e sinto meu estômago
revirar.
Isso está me lembrando daquela noite. Aquelas risadas, as piadas, as
gracinhas que ficaram para sempre marcadas na minha memória. Eu sabia
que alguma hora eu encontraria homens muito piores, ainda assim, nada
será capaz de me fazer esquecer do maior dos traumas que jamais serão
superados.
— Tire as mãos de mim. — afasto-me de seu corpo, enfiando meu
corpo no meio da multidão.
No entanto, uma das suas mãos agarra meu braço e me puxa de
volta para ele. Senti que iria vomitar tudo que ingeri durante o dia, quando
posso sentir as minhas costas colidindo contra o seu peitoral.
— Volte aqui, princesa. Você não foge de mim assim, entendeu?
Lhe dou uma cotovelada no peito antes de vasculhar o lugar com os
olhos a fim de encontrar uma lata de lixo mais próxima. O empurro para
longe quando enxergo um vaso de flores não muito longe de nós, então
correndo até lá, o agarro como se ele pudesse salvar a minha vida e vomito
tudo que deveria ser jogado para fora.
Talvez até a minha alma tenha sido jorrada para fora.
De repente, a música faroeste é interrompida e todos parecem estar
prestando atenção em mim. No entanto, fecho meus olhos e aperto o vaso
ao redor dos meus dedos, procurando normalizar minha respiração.
Estou completamente fodida, essa é a verdade. E por mais que eu
tenha evitado me lembrar dos abusos por todos esses anos, é inevitável que
meu corpo reaja de forma contrária ao que eu sou capaz de permitir. Sinto
ânsia. Nojo. Repulsa. Me sinto quebrada, como se não importasse quanto
tempo eu me esforce para superar, ainda estarei estilhaçada. Pedaço por
pedaço.
— Calma aí, cara, eu não sabia que ela era a sua garota. — Uma voz
chorosa explode pelo salão, ganhando som em minha mente desorientada.
Abro os olhos em lentidão, respiro fundo e seco os lábios com a
manga do suéter. Quando afasto o vaso de flores do campo de visão e
observo a cena à minha frente, meus olhos se arregalam de imediato.
Jason está à frente do cara de tranças, sua mandíbula tão marcada
que parece prestes a explodir a qualquer momento. A sua pistola agora está
no meio da testa do homem, o indicador prestes a pressionar o gatilho. Em
um movimento brusco, ele pressiona a boca da pistola contra a pele do
homem, lhe causando um tremor choroso.
— Se ela não fosse a minha garota, você se desculparia?
O homem aperta os olhos e abraça o próprio corpo, temendo que a
sua vida seja tirada em um sopro a qualquer minuto.
Com o ódio aflorado e impaciente, Jason retira a arma de sua testa e
bate com ela no crânio do homem, incentivando-o a abrir a boca.
O bar está em completo silêncio. Todos parecem conhecer Jason e
do que ele é capaz, e mesmo que eu não esteja acostumada com a sua nova
personalidade, eu não duvido que ele faria algo muito pior daqui para
frente. Ele demonstrou isso há minutos atrás, quando agiu como um
descontrolado.
— Eu fiz uma pergunta! — Exclama ele, tornando a posicionar a
pistola na testa do homem.
Estremeço.
— Turner, no meu bar não! — Uma mulher ruiva de olhos escuros
grita do outro lado do balcão, como uma repreensão.
Jason desvia os olhos até ela com uma ferocidade tão intensa, que a
mulher não teve outra escolha exceto fechar a boca e erguer as mãos em
sinal de rendição, aceitando sua derrota. Então, subitamente, ele volta a
encarar o homem à sua frente de uma forma horrenda. Quase como se a
vida em seus olhos tivessem sido arrancadas.
— Você cortaria as próprias mãos por tocar em uma mulher sem a
porra de um consentimento?
— N-Não.
— Não ouvi direito.
O homem suga o nariz, abrindo os olhos em uma velocidade lenta.
— Eu não me desculparia. — Repete, desta vez, alto o suficiente
para que todo o salão ouça. — Também não cortaria as minhas mãos, porra.
Jason afirma com a cabeça sutilmente, quase como alguém que
aceita uma resposta e desiste de pressionar por uma diferente. Eu teria
acreditado nisso em uma outra época, mas agora? Jason exala
desumanidade, exala impetuosidade. Nós dois sabemos que ele é capaz de
qualquer coisa, e uma atrocidade em um bar da cidade é só um pretexto
para extravasar.
Ele está prestes a explodir, e eu sei disso porque seus olhos varrem
por todo o lugar, ele encara todos os caras presentes ali, a dona do
estabelecimento, os bêbados mau caráter, até que seu olhar encontra o meu.
É fatal. Avassalador.
Meu corpo estremece e meus dedos apertam o vaso de flores com
força. Nós nos encaramos com intensidade, e mesmo que tenham milhares
de bêbados no lugar, é como se, de repente, eles tivessem desaparecido.
Jason parece irritado, mas no fundo do seu olhar, naquela parte onde ele
parece esconder com tanta veemência, eu enxergo o que ele tenta esconder.
Aquele lado na qual ele não permite que qualquer um o veja.
Mas eu o vejo.
Por este motivo, não me assusto, não estremeço, sequer movo um
único músculo quando o soar do gatilho explode pelo salão, acompanhado
do som do corpo daquele homem caindo contra o chão, sem vida.
Jason apertou o gatilho, bem aqui na minha frente.
O tiro faz com que todos aqueles homens corram para fora do bar
desesperadamente. O sangue escorre pelo chão amadeirado e com
normalidade, Jason afasta as botas da poça vermelha e afasta-se do cadáver
em um passo para o lado conforme o salão esvazia.
Posso sentir as batidas intensas do meu coração contra o meu peito,
mas não é medo, não é receio, não é rancor. É gratidão. Admiração.
Confusão.
Ele matou por mim.
E céus, que a minha alma encontre a sua paz agora mesmo, pois eu
não sinto um mínimo remorso por isso. Só o que sinto são as batidas
desenfreadas do meu coração maltratando o meu peito enquanto o mundo
desmorona ao nosso redor, mas em momento algum nós deixamos de nos
observar, como se pela primeira vez, fôssemos feitos de uma só carne. Pois
é agora que eu vejo o quanto sua impetuosidade foi implantada dentro de
mim como um vírus que não pode ser vencido.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Faz meses que estou neste inferno. Já não sei o que é real, ou o que
foi articulado pelo meu cérebro porque afinal de contas, imaginar que
talvez as coisas pudessem ter seguido rumos diferentes, não é algo que eu
possa evitar.
O "E se?" É inevitável. Mas não há o que eu possa fazer para
mudar o que está feito.
Ele realmente me largou aqui.
O quão patético eu sou, por acreditar que talvez Marcus Floyd só
estivesse blefando para me manter longe de Clarke?
Eu deveria imaginar que ele nunca blefa. Não quando seus maiores
interesses estão em jogo. Nem mesmo se para conquistá-lo, ele tenha que
manter seu único filho em uma prisão por um crime que não cometeu.
Marcus realmente é um pau no cu do caralho.
Sinto que estou enlouquecendo e a cada dia que se passa dentro
desta caixa de metal, tudo piora. Os meus pensamentos são meus maiores
inimigos, e eu sei que tudo isto é um preço a ser pago. Eu deveria ter dito a
ela toda a verdade, deveria ter acabado com seu sofrimento de uma vez.
Ao invés disso, me apaixonei.
Patético do caralho.
Não por amá-la, não por protegê-la. Mas sim, por ter perdido tempo
demais aproveitando as coisas boas que não tive o privilégio de ter em toda
a minha vida, e ter me esquecido do foco principal que me trouxe até ela.
Era questão de tempo até que ele cumprisse com a promessa de roubá-la, e
eu jurei que isso não aconteceria mesmo que eu tivesse que morrer no
processo.
No entanto, ele deu um jeito de me tirar da reta e me manter vivo
para viver com este fardo.
Agora, tudo que me resta é observar essas paredes cimentadas e
refletir sobre o que poderia ter sido diferente se eu tivesse agido antes dele.
Se eu tivesse me livrado dos segredos que não me pertencem, ou ao menos,
lhe entregado aquela maldita carta escrita por sua mãe. Eram suas últimas
palavras para a filha, e eu fui um tremendo de um imbecil por achar que
aquilo podia esperar.
Clarke deve me odiar nesse momento. Ela deve desejar a minha
morte, mesmo que eu tenha sacrificado absolutamente tudo por sua
segurança. Sua confiança. E eu não posso fazer absolutamente nada a
respeito.

Piso no acelerador e dirijo às pressas em direção ao nosso prédio. As


memórias me assolam, torturam minha cabeça e me fazem duvidar de quem
eu sou.
Estou descontrolado. Instável. Louco pra caralho.
Alguém tocou nela.
Alguém tocou no que me pertence.
Alguém foi corajoso o suficiente para desafiar a minha insanidade.
Não fazer a mínima ideia de onde encontrar o culpado, faz com que
eu me sinta em agonia. A culpa me corrói. Tudo poderia ter sido diferente.
Ela não deveria estar passando por isso, porra. Tudo que eu fiz para evitar
essa merda, todo o meu esforço…
Todas as malditas vezes que precisei ser rude para mantê-la longe.
Sirenes da polícia soam pelas ruas e não é preciso ser um gênio para
descobrir o destino final. Ambulâncias passam direto por nós e sem desviar
os olhos da estrada eu passo a marcha, acelerando enquanto viro à esquerda
para pegar uma rodovia pouco movimentada.
Baker ao meu lado segue inquieta. Não disse uma única palavra
desde que nós saímos do bar. Ela sequer protestou quando ordenei que
entrasse no carro. Isso me surpreendeu, mas não houve descontração,
provocações, nada. Tudo foi breve.
Não é como se eu quisesse conversar com ela neste momento. Estou
puto pra caralho. Sei que a partir do momento em que eu ouvir mais uma
palavra quanto ao que ela sobreviveu nestes anos, não vou responder por
mim.
Pisco algumas vezes quando sinto meu telefone vibrar no bolso do
jeans. Substituindo as mãos no volante, uso a mais próxima para retirar o
telefone do tecido e levá-lo a orelha sem me importar em ler o visor.
— O quê?
— Me diga que o assassinato no Cheese Beer não foi você.
— Sem perguntas óbvias, Williams.
— Caralho — ouço seu suspiro do outro lado da linha. — Onde está
o Hyuk? Como ele permitiu que você fosse tão imprudente?
O silêncio no carro segue ensurdecedor e eu sei que todos podem
ouvir o que é dito do outro lado da linha.
— Desde quando eu preciso de babá? — O meu tom gélido é
indiferente.
— Desde quando você perdeu a porra da cabeça, Jason. — cospe,
sendo tão rígido quanto fui há segundos atrás. — Você não está sendo
prudente e isso vai custar a sua vida se continuar sendo tão irresponsável.
Inclino a cabeça, firmando o celular entre o ombro para usar a mão
para trocar a marcha.
— Bom, é a minha vida. Eu decido isso.
Um suspiro longo ecoa pelo auto falante.
— Conversaremos quando você chegar.
— Não conte comigo.
Sem esperar por sua resposta, desligo a chamada e atiro o telefone
para algum canto aleatório do painel.
Williams é assunto para outra hora. Eu não pedi para voltar para a
academia, não pedi por sua ajuda, e sempre deixei claro as minhas
verdadeiras intenções. E, a esta altura, ele deveria saber que eu moveria
Céus e Terra para encontrar culpados. Então, destruiria cada um deles.
Aquele monte de merda no bar foi apenas o premiado da vez. Isto
não acaba aqui. O azar dele foi testar a minha paciência quando eu só estava
atrás de uma informação.
Sinto todas as minhas entranhas arderem como brasa, sufocando o
meu interior e impedindo que eu respire corretamente. Sequer sinto os meus
dedos envoltos ao volante pela tamanha força que os mantenho
pressionados ali.
Minha nuca queima e sinto que estou sendo observado, mas não
tenho coragem para desviar os olhos da estrada. E, por mais que seja duro
admitir que estou com um medo do caralho de encará-la, sei que é questão
de tempo até que a porra da ficha caia.
É minha culpa.
Eu causei isso.
Causei isso quando não disse à ela que jamais, nem que a porra do
universo estivesse prestes a desmoronar e deixar de existir, eu seria capaz
de cometer uma atrocidade tão absurda quanto assassinar a sua mãe. Causei
isso quando guardei segredos, quando tentei mudar a sua percepção de que
o mundo era cruel, quando agi como um desgraçado porque sempre me
considerei perigoso para ela. Tudo porque eu podia jurar que entre Céus e
Terra, nós estaríamos juntos. Eu a protegeria da crueldade, a tornaria forte o
suficiente para lidar com a porra da negligência humana.
Eu estava errado, afinal. Eu não estava aqui, não estive aqui quando
ela mais precisou.
Cantando pneu, ajo no automático quando estaciono o carro à frente
do prédio e salto para fora dele como um louco desgovernado, sem olhar
para trás, sem conter a força com que bato a porta contra a lataria, ou com
qualquer outra coisa que não seja estar longe o suficiente de todos.
Especialmente dela.
Me sinto sufocado, como se o ar não estivesse fazendo o mínimo
esforço para chegar aos meus pulmões.
Os meus neurônios parecem entrar em combustão e eu sei que
minhas ações estão totalmente fora do meu controle. Caminhando a passos
largos para dentro do prédio, posso ouvir a enorme televisão no salão de
entrada ligado em algum jornal onde jornalistas afirmam procurar por um
homem negro de aproximadamente um metro e noventa de altura, o
principal suspeito de um homicídio a sangue frio a um civil inocente.
Patéticos imbecis.
Quando meus olhos vagam por todos os caras no salão de braços
cruzados, eles notam a minha presença. Seus olhos chegam até os meus em
uma rapidez exagerada. Paro de andar e acompanho os seus olhares
receosos em direção a televisão.
Meu rosto está estampado no jornal, seguido de uma gravação feita
por câmeras de estabelecimentos próximos da região filmando o exato
momento em que Baker e eu saímos do bar às pressas e entramos no carro.
A única diferença é que não é apenas a minha cara estampada na porra de
um jornal mundial televiosionado. Baker está bem ali ao meu lado. Ambos
suspeitos de um crime abominável.
Em seguida, a câmera é direcionada em direção à entrada do bar
tomada por bombeiros, socorristas e policiais. Os civis ali presentes
demonstram choque e comoção pelo trágico acidente que nada mais é, do
que o final de um filho da puta que merece arder na porra do inferno. No
entanto, eles não estão preparados para sair de suas caixas cubiculares onde
todos os civis são inocentes e não merecem um fim tão desumano. A
verdade é que esses cuzões tão honrados após a morte, não seriam notados
por metade de toda essa gente que demonstra solidariedade por alguém que
não conhecem, até descobrirem o quão sujo ele poderia ter sido durante a
vida.
São todos grandes hipócritas.
Quando o ruído de passos às minhas costas me chama a atenção,
ignoro todo o salão repleto de caras e giro sobre os calcanhares, levando o
meu olhar até a garota de olhos arregalados que encara a televisão,
horrorizada. Mesmo com uma distância considerável, eu ainda posso notar
a sua pupila dilatando e tornando o seu par de olhos azuis mais escuros e
profundos.
Hyuk passa diretamente por ela após deixar o garoto ao seu lado, e
só desvio os meus olhos de Baker quando o meu amigo cessa o passo à
minha frente.
— Me dê a chave do carro — pede, estendendo a palma da mão em
minha direção.
Todos os policiais da cidade devem estar atrás do meu carro neste
momento para me alcançar, e mesmo que eu tenha dezenas de placas
substituíveis para situações como estas, largá-lo na porta de nosso prédio
colocaria todos aqui em risco, inclusive Baker. Por essa razão, entrego-lhe o
bolo de chaves sem protestar.
Hyuk acena brevemente com a cabeça antes de dar as costas para
mim e seguir exatamente por onde entrou. Sigo observando-o distanciar-se
conforme o som abafado das vozes de jornalistas repudiando a ação de um
maníaco torna-se distante na minha cabeça.
Minha veia ainda pulsa em minha testa e eu preciso fechar meus
olhos e puxar todo o ar que consigo, afinal, não estou muito interessado em
continuar respirando. No entanto, não posso ter o privilégio de escolher isso
agora. Tenho outra missão e não permitirei que alguém me impeça de
cumpri-la.
O som dos jornalistas expondo mundialmente o quão alto está a
porcentagem de homicídios a sangue frio nas proximidades nos últimos
meses ecoam pelo salão, antes dos infinitos depoimento de vários homens
embriagados que descrevem diversas vezes quais foram os meus passos até
que atirasse no cretino. O irônico é que nenhum deles diz para as câmeras o
real motivo do crime ser cometido.
Em outras circunstâncias, eu acharia graça dessa cena grotesca.
Mas agora não consigo pensar direito, não consigo colocar minha
cabeça em ordem e me esquecer do que ouvi. Meus órgãos estão entrando
em combustão, meu cérebro parece estar em um cubículo, sendo esmagado
até que ele finalmente derreta e sangue se espalhe por cada canto deste
maldito lugar.
Deixando Baker plantada na entrada do prédio, avanço alguns
passos para seguir caminho em direção ao terraço. Quando chego ao
alcance das mesas expostas no centro do salão, chuto a sequência de quatro
cadeiras executivas para longe, causando um estrondo no lugar. A televisão
ainda está acesa, mas nenhum dos caras presentes ali concentram suas
atenções nela. Todos me observam, eu sei disso. Mas, que porra isso
importa?
As cadeiras amontoam-se quando caem juntas ao chão, e, sem
controlar meus impulsos, arranco os fios ligados a diversos teclados de
computadores até atirá-los para o chão, espalhando teclas negras por todos
os lados.
— Jay, cara, calma aí — sinto meu ombro ser puxado para trás por
um dos caras, a fim de acalmar a irritação que consome meu sangue. —
Acalme-se…
Em um impulso, desvencilho-me de seu toque em um giro sobre os
calcanhares, empurrando-o para longe de mim em um ato arrogante e
descontrolado.
— Me solta, porra. — Ralho, sentindo a ponta do meu nariz quente
como o inferno.
Quando ergo o pescoço para encará-lo, vejo Louren, um dos
ajudantes de Hyuk. Ameaço empurrá-lo para longe pela segunda vez
quando o cara ergue os braços em sinal de rendimento e recua dois passos,
deixando-me livre.
Não me teste, porra. É o que eu quis lhe dizer ao encará-lo com o
olhar mais macabro que ele poderia ver em toda sua vida.
Louren não diz uma única palavra e eu levo isso como um sinal de
que ele entendeu perfeitamente o recado.
Passo por ele como um vulto, trombando em seu ombro no
processo, fazendo-o cambalear propositalmente. Não é como se ele não me
conhecesse, saber exatamente o que não fazer em um estado explosivo
como o meu não é um mistério.
— Williams está procurando por você — Louren declara.
Não paro de andar.
— Você pode mandar ele ir se foder — respondo, desaparecendo de
sua visão.
Subo a escadaria que leva aos demais andares com rapidez,
esticando as pernas para que possa movimentá-las de dois em dois degraus.
Williams tem uma parcela de culpa em tudo isso. Eu fiz um único
pedido a ele quando me visitou na cadeia antes de ir para a solitária e
permanecer lá por anos. Eu estava preso, poderia facilmente pedir para que
ele me arranjasse homens pertinentes o suficiente para me arrancar daquele
buraco infernal. Poderia ter implorado para que ele dissesse a verdade para
ela apenas porque eu não conseguiria suportar a ideia de ser desprezado por
ela enquanto estivesse atrás das grades. No entanto, não foi o que eu fiz. O
único pedido que eu lhe fiz foi para que a mantivesse a salvo. Não importa
quem morresse no processo. Não importa se para isso, ele tivesse que tirar o
meu prazer de enfiar uma bala na cabeça de Marcus Floyd.
Eu não ficaria puto.
Não se ela estivesse perfeitamente bem.
Ela não está, no entanto.
Alcançando o terraço do prédio, bato a porta de metal com força
contra as paredes, ouvindo o baque ser ecoado pelas escadas do lado de
dentro. Sinto o vento frio colidir contra o meu rosto e alcanço a beira do
prédio, equilibrando-me nos dois pés para enxergar o movimento das ruas.
De cima, posso ver os carros civis serem movidos para o
acostamento das rodovias enquanto viaturas passam por eles em uma
velocidade de, não menos que 90 km/h. Logo na dianteira, o carro da
funerária é escoltado por ambulâncias e um camburão exclusivo.
As sirenes são ouvidas com facilidade, e apesar da distância, é como
se elas estivessem sendo ecoadas diretamente na porra do meu cérebro.
Aperto os punhos ao lado do corpo e fecho os olhos com força,
rangendo meus dentes conforme me esforço para controlar as batidas do
meu coração descompassadas. Minha nuca arde, minha pele queima e meus
pés formigam. Eu ainda posso sentir o cheiro do sangue do cretino que,
provavelmente, está respingado por toda a minha roupa.
Eu poderia ignorar tudo que estou sentindo neste momento, é sem
dúvidas um caminho mais fácil. Sou bom nisso. Mas eu não posso. Não
posso me esquecer da sensação que é ter o meu coração despedaçado em
tamanhos minúsculos e quase imperceptíveis.
Vou precisar me lembrar de como é sentir que o mundo desmoronou.
Vou precisar me lembrar de como é implorar para que algo seja irreal.
Mentira. Ilusão. Porque vou precisar imaginar que os homens que
trabalham para Marcus Floyd sentirão a mesma coisa quando eu estiver
prestes a arrancar suas cabeças.
Farei-os implorar pela vida. Pelo ar. Para que aquela coisa seja uma
ilusão feita de seus cérebros minúsculos e inúteis.
Eles não esperavam que eu fosse capaz de sair daquela espelunca
antes que os meus dentes caíssem ou a minha pele envelhecesse. Ou talvez
esperavam que eu ficasse gagá andando sob muletas, sem compreender
onde estava e então, começasse a sofrer da perda de memória irreparável.
Esta é a única razão que vejo para que eles tenham achado que era
uma ótima ideia tocar em um fio de cabelo de Aspen Baker. Sinto muito,
homens desprovidos de um cérebro. Ainda estou vivo.
O som da porta rangendo às minhas costas é o suficiente para que eu
liberte um suspiro longo e abra os meus olhos com cautela, sendo agraciado
com a paisagem de nuvens acinzentadas e céu escuro sem vida.
— Espero que esteja aproveitando a paisagem — a voz dura e rígida
de Williams, me leva a ranger os dentes. — Ela pode ser a última.
O encaro por cima do ombro como se pudesse arrancar sua cabeça
em um estalar de dedos.
— Bom, então junte-se a mim. Seu próximo destino será lutar contra
a gravidade para lutar pela sua vida se não começar a abrir a porra da boca.
— Giro sobre os calcanhares, indicando que eu poderia facilmente jogá-lo
prédio abaixo.
Ele cruza os braços, soprando um riso amargo. No entanto, quando
ergo uma das sobrancelhas como um convite para que ele continue a testar
os meus limites, o seu riso cessa imediatamente.
— Abrir a boca? Quanto ao quê? — Indaga, curioso. — Você é o
único que me deve explicações.
Avanço cinco passos em sua direção, sentindo o vento gelado entrar
em uma rixa disputada contra a fervura da minha pele.
— Eu fiz um único pedido! — Esbravejo, cuspindo as palavras na
sua cara quando estou perto o bastante. — UM. ÚNICO. PEDIDO.
WILLIAMS.
Apesar de lutar contra o meu agarre, Williams não parece
minimamente intimidado ou assustado. Minhas mãos agarram a gola de sua
camiseta e o som do tecido se rasgando em algum lugar, chama sua atenção.
— Do que você está falando? — O franzir de suas sobrancelhas
denuncia a sua falta de informação.
Um riso quase me escapa.
Claro. Como é que ele poderia saber?
Se ao menos estivesse concentrado na tarefa que designei a ele,
saberia como responder a um questionamento sem fazer essa expressão
estúpida de quem sequer fez algum esforço.
— Você é estúpido! — Largo a gola de sua camiseta, empurrando-o
para longe. — Ela foi estuprada, Williams, consegue imaginar o que eu
estou sentindo? — Questiono, sentindo o fervor em minha pele aumentar
alguns graus positivos.
O homem de cabelos escuros a minha frente pigarreia, levando as
mãos até a gola de sua camiseta, esticando-a em torno de seus ombros.
— Ah, isso. — Ele inclina o pescoço ao fechar os olhos, e por um
segundo, suponho que talvez ele esteja temendo esta conversa há algum
tempo.
O que realmente me tira do sério, é ver Williams tratar esta situação
como se não fosse uma novidade. Ele sabia. Ele escondeu isso de mim, me
deixou acreditar que ela ainda tinha algum fio de sanidade. Que estava sã e
salva.
Não há exagero algum em suas falas mais cedo. Ela enfrentou o
inferno. Os demônios mais cruéis e sombrios, aqueles que fizeram-a
duvidar da própria existência, não há dúvidas.
E, juro por Deus, se Williams não abrir a boca quanto ao que
exatamente aconteceu enquanto eu alucinava na porra de uma solitária no
subterrâneo de uma penitenciária, irei matá-lo. Não irei cogitar a
possibilidade de repensar esta ideia por sermos amigos, por termos um
passado, uma história. E que se foda toda essa escrotisse sobre amizades
reais. Ele nunca foi uma.
— Você sabia? — Indago, ameaçando me aproximar outra vez.
Williams anui, lentamente, em um aceno comum, como se isto não
fosse algo capaz de fazê-lo ir ao inferno e voltar. Não como é comigo.
— Descobri há algum tempo quando vazou um vídeo em um site
dark. — Explica ele, fazendo-me abrir mão de avançar em sua direção. —
Hackearam o servidor da Luxury, e por sorte, conseguimos derrubar o vídeo
antes que mais de cem mil pessoas o vissem.
Ranjo os dentes, sentindo o meu coração dilacerar dentro de mim,
esperando ansiosamente até que ele não diga o que eu espero que esteja
querendo dizer. Isso me destruiria, me partiria, me arruinaria.
— Assim como há três anos, a Luxury ainda tem hackers bons no
assunto. Acho até que quem quer que ele seja, futuramente, talvez possa dar
algum trabalho para o Hyuk. — Suspira ele, levando a palma de sua mão
até a cabeça, coçando-a lentamente.
— O que isso quer dizer, Williams? — Eu o apresso, sem conter a
minha ansiedade.
Suspirando, seus olhos cautelosos voltam para os meus com
intensidade.
— O vídeo foi publicado por alguém de dentro da Luxury, menos de
uma hora depois foi removido. Mas, já tinha sido assistido por cerca de
oitenta e nove mil assinantes da plataforma. — Diz ele. — Pedi ao Louren
para investigar o local onde foi publicado ou excluído para que pudéssemos
arrombar o lugar e resgatá-la, mas os nossos computadores não foram
capazes de entrar na rede da Luxury. Eles bloquearam todos os acessos. —
Williams suspira pesadamente, observando-me atentamente.
Eu sinto que meus joelhos podem ceder a qualquer momento e me
levar direto para o concreto deste chão, mas nem mesmo isso sou capaz de
demonstrar. Eu não consigo sentir absolutamente nada, as sirenes nas ruas
cessam, as buzinas, as vozes alheias, tudo se tornou distante e abafado.
Meus olhos só possuem um único alvo. Os meus ouvidos não podem
servir para nada que não seja direcionado ao que sai da boca de Williams.
Eu sou literalmente um saco de bosta. Inútil, imprestável.
— Pensamos que ela estava segura na França, Jason, mas contatei
Julien, o melhor soldado da unidade e ele afirmou que ela nunca pisou lá
dentro. Talvez tenhamos caído em uma emboscada. Talvez ela tenha sido
levada no trajeto, não sei, não tem como saber!
Ele prossegue:
— Antes que pergunte, Louren foi a minha única opção para
investigar todo o sequestro. Eu não podia pedir ajuda ao Hyuk. Sei o quanto
aquele garoto é fiel a você. Ele teria vasculhado todo o banco de dados até
que encontrasse o lugar, então se arriscaria sozinho porque é isso que o
amigo dele faria. — Williams ri, não por achar graça, é uma risada
monótona.
Umedeço meus lábios, sentindo a textura seca que se forma pela
quantidade de tempo que eu respiro pela boca. Completamente
desorientado.
— Talvez porque ele seja um bom amigo. — Respondo como se
fosse óbvio. — Isso é o que bons amigos fazem, Williams. Fazem de tudo
para cumprir com a porra de uma missão.
Estou furioso, no entanto, ainda posso sentir meus olhos marejados
em minha linha d'água. É como o inferno. Essas lágrimas doem, ardem,
queimam como a lava. Eu não consigo imaginar o que Baker enfrentou por
todo este tempo, e mesmo que eu feche os olhos e me esforce para tal, sei
que não suportaria. É demais para mim.
Onde foi que eu errei, inferno?
— Sei que está irritado agora, e tudo bem, não vou tirar sua razão.
Mas escute, se descontrolar não é uma opção. — Aproximando-se,
Williams ergue uma das mãos para tocar o meu ombro na intenção de
tranquilizar-me. — Vamos consertar todas as coisas, Jason, é uma porra de
promessa.
Em um ato sutil e insensível, desvio-me de seu toque ao mover o
corpo para a esquerda.
— Para você é fácil falar. Vá para o inferno, Williams, você sabe o
que é ser promovido a vilão? Sabe o que é carregar uma culpa como essa?
— Sinto uma lágrima despencar dos meus olhos. A mais dolorosa delas.
Williams abaixa a cabeça, aceitando que desta vez, ele não sairá
ganhando. E, mesmo que ele me prenda em uma cadeira elétrica e me
torture a fim de me manter preso neste prédio, darei um jeito de escapar e
caçar todos os membros da Luxury mesmo que custe a minha vida. É um
dia de sorte para eles, que ocasionalmente, eu tenha provocado uma ronda
policial por toda WonderFall ao atirar em outro cuzão. Deveriam agradecer
ao seu deus que certamente, jamais pode ser Aquele lá de cima.
— Não sei. Mas entendo. — Suspirando, seus olhos voltaram-se aos
meus. — Por isso, você precisa saber… — Diz ele, instigando-me.
Ergo a cabeça, encarando-o por baixo dos cílios. E, sem dizer uma
única palavra, deixo que ele prossiga.
— Mesmo que não pudéssemos identificar onde era localizada a
base da Luxury, Baker escapou e Hyuk a localizou com a ajuda das câmeras
de segurança. Foi quando soubemos que ela não estava segura todo esse
tempo. — Explica ele, erguendo os braços em sinal de rendição. — E
aquele vídeo gerou uma grande quantidade de caras interessados na garota.
Digamos que, talvez, ele tenha sido enviado para outros sites pornográficos
mundiais. O que esteve ao nosso alcance foi apagar todas as chances de ser
visto novamente pela web e atraí-la para a cidade, acredito que foi uma
maneira eficiente de mantê-la a salvo.
Minha garganta fecha, há algo entalado que me suga o ar e me parte
em dois. Me quebranta. Fecho os olhos, implorando para que tudo isto seja
apenas mais uma das alucinações que enfrentei na prisão.
No fundo, sei que se trata de uma. Não dessa vez. Nenhuma dor que
senti naquele lugar, implorando por uma segunda chance, implorando para
que existisse uma máquina do tempo e me teletransportasse até o passado
onde eu mudaria todas as formas com que lidei com aquelas merdas…
Nada daquilo é comparado com a destruição que está me corroendo do
último fio de cabelo até a ponta dos pés neste exato momento.
Caralho.
— Sim, Jason, você pediu pela verdade e estou dando ela a você.
Suporte-a. — Sem aviso prévio, sinto quando sua mão toca o meu ombro
em um gesto de consolo.
Desta vez, não recuo. Não me movo. Sequer abro os olhos.
Tudo dói.
— Sofia Clarke foi estuprada por três homens. Todos faziam parte
da Luxury, há pelo menos um ano, foram expulsos da organização. Não
sabemos o motivo. — Explica ele, oferecendo-me uma carícia no local. —
Filmaram todo o ato e o subiram no site da Luxury. Como eu disse, não por
muito tempo, mas o suficiente para colocá-la na mira de toda a máfia de
tráfico sexual.
Sentindo-me fraco e impotente, deixo que as lágrimas despenquem
dos meus olhos sem a porra de uma mínima força para controlá-las. Elas
caem contra o meu moletom, encharcam o meu rosto e fazem de mim um
homem com o coração destroçado.
Pareço estar flutuando, sequer posso sentir meus pés sendo
sustentados pelo chão. Minha cabeça dói, meus olhos queimam pela força
que é feita para mantê-los fechados, com medo de encarar a realidade.
Meus punhos estão fechados com mais força do que eu acreditava possuir,
e, apesar de sentir os ossos da minha mão pedirem por um segundo para
respirar, sou incapaz de conter minha própria força.
— Pedi ao Louren que fizesse o reconhecimento facial de todos que
apareciam no vídeo. — Declara Williams.
Abro os olhos em uma velocidade descomunal, encarando seu rosto
com intensidade, sinto quando o ódio aflorado explode em milhares de
formas quando um sorriso sujo, cruel e amargo brota no canto da boca dele.
Vamos, diga o que estou esperando.
Diga, diga. Diga que tem os nomes, diga que sabe onde os filhos da
puta estão.
É tudo que eu preciso.
— Sei onde eles vivem, Jason. — Declara. — Sei o nome civil
completo, data de nascimento, nome dos familiares, e… endereço.
Então acontece.
Meus olhos queimam como o inferno.
Não penso muito quando seco meus olhos com a manga do moletom
e aprumo a postura, substituindo toda aquela dor por um único objetivo. Eu
levarei os filhos da puta ao mesmo inferno que enviaram a minha garota
sem a porra de uma concessão. Eles a tocaram, a feriram, implantaram
diversos traumas àquela que mais do que ninguém, merecia uma vida limpa
e respeitosa. Tiraram isso dela, tiraram absolutamente tudo dela quando
destruíram os seus princípios.
Em troca, nada mais justo do que tirar deles a vida. Não a usarão
para nada útil, no fim das contas.
NEW YORK - 2019
ANTES

Mordisco o biscoito de chocolate preso entre meu anelar e o polegar,


mastigando com força demais enquanto o som da crocância explode entre
meus dentes. Entre as paredes de concreto, meus olhos seguem fixos na
cena de Jay e àquela garota, cabelos avermelhados como o fogo voando
pelo ar preso a um rabo de cavalo no topo da cabeça, conforme lutam entre
si.
Minha lombar está confortavelmente repousada contra a parede,
meus braços cruzados em uma altura considerável para que eu possa levar
mais um biscoito aos lábios.
Os grunhidos que vinham direto do ringue soam logo após risadas
breves femininas. Kelly ao meu lado, parece tão entediada quanto eu,
levando uma garrafa d’água casualmente aos lábios. E, dando repetidos
longos goles, seus olhos seguem os meus, bufando uma risada monótona
em seguida.
— Seria intromissão da minha parte perguntar… Talvez, a razão
para que você esteja mutilando Cassie com os olhos? — Pergunta ela,
rosqueando a tampa da garrafa.
Desvio meus olhos da cena no segundo em que Jay acerta um golpe
na tal Cassie, nas pernas, nocauteando-a quando seu corpo cai contra o chão
com força. Resmungos soam de lá, mas não torno a observar a cena ridícula
para saber o que de fato acontece em seguida.
— Cassie… — Repito o nome da garota, tédio emanando do meu
timbre. — Há uma razão para que Jay esteja treinando com ela? Quero
dizer, ela mora aqui, não? Deveria saber se defender, eu acho.
Faz algumas semanas desde que houve o episódio no subterrâneo,
onde Jay ensinou-me alguns golpes e me passou uma experiência nova de
auto confiança, antes de me chutar como se eu fosse uma pobre garotinha.
Não trocamos uma única palavra desde então, e de qualquer forma, estou
um pouco ferida por saber que ele treina alguém enquanto eu sigo aqui, nas
sombras de sua promessa quebrada.
Não que eu esteja tirando o crédito da garota, talvez ela possa estar
na mesma esperança de fazer parte de toda essa confusão que tanto nos
atrai, como eu. Mas então, me lembro de como nós pareciamos próximos no
subterrâneo do prédio, um lugar que certamente eu nunca conheceria se ele
não tivesse me apresentado. Ou seja, Jay confiou em mim. Me senti tão
bem, longe de todos os pesadelos que assombram a minha cabeça, longe da
dor, da confusão, da negação. Foi libertador.
Mas então ele me chutou. Tudo desmoronou naquele momento, e eu
me senti enganada e estúpida pela segunda vez, desde então.
— Cassie é presunçosa. — Kelly declara, sua voz tão baixa quanto
um sussurro. — Seu ego indestrutível é incapaz de fazê-la perceber que
somos todos farinha do mesmo saco, exceto, claro, quando Jay entra em
cena. Resumindo, ela sabe se defender, mas finge ter sofrido de uma
amnésia surreal quando ele está por perto. — Ela joga a cabeça em direção
ao ringue, e percebendo o seu movimento, sigo seu olhar.
Jay está de pé ao lado das cordas grossas com a sua camiseta entre
os dedos, parece procurar pela barra. Ao seu lado, Cassie faz biquinho
enquanto parece implorar por algo a ele, que apenas responde algo com não
menos de três palavras e o semblante da garota cai ao chão em desânimo.
— Viu só? — Um riso escapa da garganta de Kelly. — Cassie é
muito previsível. É até engraçado.
Observo quando a garota recolhe seu par de luvas do chão e
caminha fortemente em nossa direção. Seus pés parecem prestes a
desmoronar o prédio inteiro pela força que seus passos batem contra o chão.
Quando ela está perto o suficiente, nossos olhares se cruzam por dois
segundos e apenas isto é o suficiente para notar o ódio que se encontra em
sua expressão.
Meu corpo congela quando caminhando em direção a porta, seus
olhos continuam perseguindo-me em completo horror até que ele é
interrompido pela presença de uma parede de concreto ao sair do salão de
treinamento.
O que foi isso?
Engulo em seco quando desviando os olhos da porta, os levo de
volta para o ringue, apenas para encontrar Jay ainda de costas para nós
passando a sua camiseta pela cabeça e cobrindo o seu peitoral nu. No
entanto, o rápido segundo em que eu o vi de costas foi o suficiente para
notar marcas expostas em toda a extensão de sua pele. Parecem fundas,
porém, curadas. Não sei, na verdade, foi rápido demais.
— Não se preocupe com ela, Cassie parece uma ameaça mas ela
jamais faria algo contra você. — Kelly declara, conforme recolhe seus
pertences no chão. — A menos que ela queira que Jay a mate. — Ela ri,
achando graça no próprio comentário.
Eu curvo os lábios em um sorriso, ainda extasiada pelo que vi. Ou o
que acho que vi.
Talvez fossem marcas causadas pelo seu trabalho?
Ou então, alguém realmente o feriu para valer.
De qualquer forma, não serei eu a perguntar.
— Sofi, você vai ficar legal? — Kelly pergunta, despertando-me dos
devaneios quando ergo o olhar para ela, piscando diversas vezes. — O
treino me deixou exausta, preciso de uma refeição reforçada. Você vem? —
Seu olhar busca o meu, franzindo as sobrancelhas negras ao observar o meu
comportamento aéreo.
Balanço a cabeça, esforçando-me para agir normalmente. Forço
minha lombar a deixar a parede e abano as minhas mãos, me livrando dos
resquícios de farelos deixados pelos biscoitos, muito bons por sinal. No
processo, curvo meus lábios em um sorriso gentil.
— Claro. — Apresso-me ao dizer. — Preciso encontrar Jonah.
Marta foi muito gentil em se oferecer para cuidar dele por essa noite.
Jonah está um pouco aborrecido nos últimos dias, não fala comigo,
tampouco reage às minhas brincadeiras. Até quis cantar para ele pela
segunda vez, abrindo mão dos meus traumas, ainda assim, nem um único
sorriso foi projetado de seus lábios.
Foi horrível testemunhar o meu irmão tão abatido, e por um
momento, temi que ele se lembrasse dos últimos meses. Eu sei que ele se
lembraria da nossa mãe e principalmente, daquele que teve uma
importância crucial - mas não menos desprezível -, na nossa criação. No
entanto, eu não queria que ele sentisse tudo isso.
É inevitável, eu sei. Mesmo assim, corta o meu coração vê-lo tão
deprimido. Diversas vezes eu quis perguntar a ele se sabia que mamãe já
não estava entre nós, no entanto, me faltou coragem.
Sou covarde.
Não é como se fosse fácil dizer: “Olá, irmãozinho, sei que você tem
apenas sete anos, mas eu gostaria de dizer que a mamãe está morta e nós
nunca saberemos onde raios ela está enterrada. Triste, eu sei, mas temos
que superar. ”
Meu Deus, isso seria terrível.
Aproximei-me bastante de Marta nos últimos dias, e, ela é quase
como uma irmã mais velha para mim. Me aconselha e às vezes até tira um
sorriso verdadeiro dos meus lábios mesmo que por dentro eu esteja
arruinada. Gosto dela, e segundo ela, seria fácil lidar com o meu irmão já
que ela está na Terra o triplo da minha idade, e logo, têm mais
conhecimento para lidar com crianças pré traumatizadas.
Não rebati, no entanto. Ela realmente deve ser melhor nessas coisas
do que uma garota quebrada de dezessete anos.
— Você acha que ele sente falta dela? — Kelly pergunta,
acompanhando-me a passos lentos em direção à porta.
Apesar da tentação ser muita, não ouso desviar meus olhos do chão
conforme caminhamos em direção a escadaria. Solto a respiração apenas
quando pisamos no primeiro degrau, afastando-nos do salão de treinamento
onde provavelmente, Jay estaria se perguntando por qual razão sequer
olhei-o nos olhos durante todo o tempo em que estive no salão
acompanhando Kelly.
Porque você me magoou, idiota.
— Eu acho que é impossível não sentir. — Disparo, livrando-me dos
pensamentos aéreos. — Jonah pode ser novo demais, mas não é idiota.
Mamãe deu muito amor a ele, mais do que eu poderia pensar em dar algum
dia. Ele deve sentir falta disso, não sou metade do que ela foi.
Kelly anui.
— Diga a ele, Sofi. — Aconselha, seus olhos cautelosos encontram
os meus quando cessamos o passo na entrada do refeitório. — Nós apenas
poderemos nos curar de alguma ferida se aceitarmos que não há como nos
livrarmos dela. É como jogar álcool em um corte profundo, vai doer pra
caramba, mas a cicatrização será mais rápida. Pense nisso. — Uma
piscadela é o que ela me oferece a seguir de um sorriso gentil, acariciando
meu antebraço brevemente antes de adentrar ao refeitório.
— Como ele está? — Pergunto à Marta, posicionando ambos os
cotovelos na bancada e pousando meu rosto entre as mãos.
Do outro lado do mármore, Marta limpa as mãos no avental
quadriculado circundando sua cintura e me oferece um olhar cuidadoso.
Mordisco os lábios, tremendo o que ela dirá em seguida.
— O que posso dizer é que ele não está bem. — Declara,
analisando-me com uma expressão confusa no rosto. — Está abalado. É
como se ele não conseguisse falar, se expressar… Só quer ficar calado no
canto dele. — Ela explica, uma de suas mãos circulando uma bacia enorme
conforme a outra revira batatas com um garfo no recipiente.
Anuindo, desvio o meu olhar para algum canto aleatório da cozinha.
Meu peito incha, como se estivesse preenchido com líquido até que eu não
possa mais respirar. Meus olhos ardem e sei que é pelas lágrimas insistentes
que o pressionam, ainda assim, pisco para afastá-las.
Acho que Kelly está certa, afinal de contas. Preciso dizer ao Jonah a
verdade e talvez assim, ele se abra comigo. De qualquer maneira.
Chorando, fazendo birra por esconder a verdade, gritando, se revoltando…
Que seja. Preciso que ele faça qualquer coisa além de ignorar tudo - e todos
-, porque isto está partindo o meu coração.
Eu sei que ele é apenas uma criança com sintomas explícitos de
negação, ainda assim, não posso negar que é como se eu estivesse
revivendo aquela dor da perda outra vez. A sensação do peito inchado e dos
pés estarem flutuando sem apoio algum ainda não se foi totalmente, e ver o
meu irmão desta forma apenas intensifica aquele sentimento que ainda não
está nem perto do fim.
— Ele é uma criança, pequena. Você teve o seu momento de luto, e
mesmo sem ter nenhuma noção do que aconteceu, ele também está tendo o
dele. — Marta diz, sem desviar a sua atenção do recipiente repleto de
batatas agora amassadas. — Deixe-o um pouco sozinho. Tenho certeza de
que a partir do momento em que ele sentir que está preparado para uma
conversa, vai procurar a irmã. — Aconselha, encarando-me por baixo dos
cílios enquanto seus lábios se curvam em um sorriso gentil.
Ela tem razão.
Preciso dar espaço a ele. Não importa se é apenas uma criança,
ainda assim, ele tem sentimentos. Precisa de espaço o suficiente para formar
perguntas ou qualquer outra coisa que seja destinada a mim.
A última coisa que eu quero é que Jonah se sinta sufocado com tanta
pressão depositada em suas costas.
Suspiro profundamente antes de cruzar os meus braços à altura do
peito e devolver um meio sorriso sem mostrar os dentes para Marta.
— Obrigada. — Agradeço, a encarando com gratidão exposta no
olhar. — Não sei como agradecer, Marta. Você tem sido como uma…
— Mãe. — Sua voz fina e madura me interrompe, deixando-me sem
palavras.
Devido a intromissão, é como se eu não me sentisse culpada por
pensar na possibilidade de considerá-la um título que jamais poderia ser
substituído. Não que eu tenha pensado em tal possibilidade, mamãe nunca
seria substituída nem que cientistas fizessem um clone idêntico a tudo o que
ela era.
Também é um pouco sinistro pensar que conheço esta mulher há
poucas semanas e esteja cogitando considerá-la tão importante para mim.
Mas simplesmente não posso evitar. Marta faz tudo parecer mais
fácil, ela tem cuidado de nós. Não só de mim, ao que parece, a mulher é
responsável por enfiar juízo na maioria dos homens deste lugar. Todos a
amam, então, como eu poderia esperar que comigo fosse diferente?
Estou realmente tentando me acostumar com a minha nova vida. O
lugar, as pessoas, rotinas e, principalmente, com o quão sinistro todos os
caras parecem ser. Essa parte vai ser difícil, eu sei. Um arrepio sobe pela
minha espinha apenas em cogitar a possibilidade de fazer alguma coisa que
não seja aceita por eles. São assustadores.
Entretanto, por mais assustador que tudo isso possa ser, realmente
quero participar. E, me tornar um deles é um dos caminhos que estou
disposta a tentar, não importa se eu fracassar. Ficarei feliz em ter sido
corajosa o suficiente para tentar.
Anuindo lentamente, mal percebo quando o canto dos meus lábios
curva-se em um sorriso.
Marta retribui, depositando o recipiente acima do balcão de
mármore para alcançar outros recipientes com cenouras, couve, folhas e
tomates.
— Não se preocupe, não é a minha intenção ocupar o lugar daquela
que deu a luz a você. — Assegura, como se pudesse ler os meus
pensamentos. — Isso não é algo que deveria ser substituível. Mas eu estarei
aqui para quando você precisar, garota. Serei como uma segunda mãe.
Apenas um pouco desajeitada. — Um riso lhe escapa, e é impossível não
acompanhá-la.
— Você não é desajeitada. — Levo uma das mãos para capturar um
dos tomates cereja ao meu alcance.
Recolho-a imediatamente quando uma colher de plástico colide
contra o dorso da minha mão, causando uma ardência no local. Um
grunhido me escapa quando ergo o olhar para Marta, encontrando nada
menos que um sorriso descarado.
— Você está aqui há apenas algumas semanas e já está pegando as
manias dos garotos, hein? — Sua voz emana diversão, apesar de ter uma
pitada de repreensão. — Nada de tirar uma casquinha antes da hora,
mocinha.
Rio, mergulhando a mão avermelhada entre as coxas para aliviar a
ardência. Ela realmente tem um espírito materno de impressionar.
— Agora vá. Não acho que aquele garoto vá parar de observar você
como um predador enquanto continuar aqui. — Secando as mãos no avental
em torno da cintura, Marta gesticula para algum ponto às minhas costas.
Curiosa, viro a cara de supetão por cima do ombro.
A poucos metros, Jay está casualmente recostado em uma das
paredes com um cigarro preso entre os dedos, não está aceso, não há
nenhuma ponta flamejante ou alguma fumaça indicando que ele está
fumando. Além do mais, não acho que Marta estaria tão calma por flagrar a
sua cozinha impecável sendo tomada por fumaça tóxica.
Seus braços estão cruzados à altura do peito e o olhar curioso fixo
em minha direção como se pudesse enxergar os meus pensamentos.
Engulo em seco, de repente, sentindo-me nervosa sob o seu olhar.
Arrumo a postura e volto a olhar para Marta, agora concentrada em untar
uma forma de metal.
Por que ele está me observando?
Ele é confuso, isso eu não posso negar. É meu amigo, então de
repente, não é mais. É gentil comigo, mas simplesmente do nada, é o que eu
gostaria de nomear: um completo ogro.
Me ignora, mas então minutos depois está me perseguindo e me
observando à espreita.
Mas que raios?
Eu realmente gostaria de entender isto como um grave problema de
bipolaridade, no entanto, sei que Jay é intenso demais para se limitar a
simples rótulos. Acho, inclusive, que se ele pudesse ouvir os meus
pensamentos neste exato momento soltaria alguma piadinha estúpida e
ignoraria totalmente o que deveria ser levado em consideração.
— Não se preocupe com ele. — diz Marta, despertando-me dos
pensamentos. — Ele é difícil de entender, mas se algum dia ele demonstrar
isso a você, significa que você está no caminho certo.
Uma ruga se forma no meio das minhas sobrancelhas e levanto o
queixo para observá-la.
— Não entendi.
Marta sorri e, com as mãos ágeis, despeja o que parece ser a massa
de um bolo por toda a extensão da forma.
— Conheço esse garoto como ninguém, eu estive presente nas
partes mais sombrias de sua história. — Revela, com a voz calma e
exalando sinceridade. — E, vá por mim, pequena, ele parece estar
confortável com você. E o irônico é que dificilmente ele consegue
demonstrar a intensidade de algum sentimento à alguém. — Por fim, Marta
gira sobre os calcanhares para levar o recipiente até o forno elétrico.
Quando eu abro a boca para perguntar como ela pode conhecê-lo tão
bem, o forno é fechado e as suas mãos são limpas no avental, girando
novamente, os olhos esverdeados colidem contra os meus.
— Para alguém que participou dos pesadelos de um garoto ferido e
desesperançoso, a diferença é notável. — Aponta. — Mas não serei eu a
contar a você algo que não cabe a mim. Agora vá, menina. Estarei de olho
em Jonah até que volte.
Pisco algumas vezes, em choque por tudo que foi dito por Marta.
Um garoto ferido e desesperançoso.
A diferença é notável.
Uma parte mais sombria de sua história.
Então, como se o meu cérebro tivesse sido chacoalhado diversas
vezes, uma luz pisca na minha cabeça, a interrogação desaparecendo pelo ar
como mágica.
Jay teve uma vida ruim? Meu Deus, será que ele teve uma vida
miserável e esta seja a razão para que ele seja tão frio, sentimentalmente
falando?
Se esta for a verdade oculta atrás das cortinas, eu realmente não
conseguirei compreender a razão para que ele tenha os próprios problemas
para lidar e ainda assim, estar se sujeitando a cuidar daqueles que deveriam
ser apenas meus. Quero dizer, tudo que eu queria quando cheguei até aqui
era que o meu pai fosse morto. Independentemente de quem o faria.
Jay foi mais do que eu esperava quando assegurou com todas as
palavras que o faria. Eu confiei nele a partir dali, entreguei as agulhas que
costurariam as minhas feridas em suas mãos e esperei até que ele estancasse
o sangramento. No entanto, em nenhuma hipótese, eu pensei no lado de que
talvez Jay tivesse os próprios problemas para resolver.
Fui muito egoísta e individualista. Quão terrível sou eu?
Com o semblante caído e as pernas enfraquecidas, salto da bancada
e ofereço um sorriso gentil para Marta quando ela me olha por baixo dos
cílios com atenção enquanto mergulha pratos debaixo da torneira.
— Hey, Marta. — Eu a chamo quando começo a caminhar em
direção a saída. — Obrigada. — Sussurro, movimentando os lábios
lentamente para que ela possa fazer a leitura labial.
Ela sorri, acenando um tchauzinho gentil com a ponta dos dedos.
Quando viro o rosto para olhar para a frente, me deparo com Jay já
desencostando da parede, o cigarro que antes estava entre os seus dedos já
desapareceu, e devido ao olhar curioso que ele me lança, preciso engolir em
seco quando cesso o passo a sua frente.
— Você não vai parar de me observar? — Indago, inclinando a
cabeça levemente.
Seus olhos seguem firmes nos meus por longos cinco segundos
antes de seus lábios serem curvados em um sorriso sem mostrar os dentes.
— Nunca.
Enrugando o nariz, dou de ombros.
— Já fazem algumas semanas desde que você me deu um baita pé
na bunda… — Aponto, erguendo um dos braços para encarar as minhas
unhas médias com resquícios de sujeiras debaixo.
Este prédio, apesar de ser cuidado, é tomado por poeira que quando
se esgueira até as unhas, nem o diabo consegue tirá-la.
— Não foi um pé na bunda. — Nega, encarando o meu movimento
de tentar limpar as unhas.
Rio, tomada pelo constrangimento.
— Bom, meio que foi sim.
Estou tentando convencer a ele e a mim mesma de que não havia
rancor algum no meu tom de voz ou na forma como pareço ter a
necessidade de limpar as minhas unhas quando sequer as notei até o
momento. Mas a quem eu quero enganar? A verdade é que estou guardando
um rancor gigante dentro de mim, não só porque ele me dispensou como se
não fosse nada além de um capacho, mas também, por mesmo depois de
prometer me transformar em alguém capaz de se proteger, ele abriu mão da
maldita promessa para treinar outra pessoa que, como Kelly disse, não tem
a mínima necessidade.
Não que eu não possa fazer isso sozinha, já que tem sido exatamente
o que eu tenho feito durante a noite quando todos estão em suas camas. Vou
até o salão de treinamentos e repito os mesmos movimentos aos quais ele
me ensinou no outro dia. Várias e várias vezes, liberando todos os
sentimentos presos dentro de mim, foi bom, não posso negar. Senti o meu
corpo toneladas mais leve depois de uma semana inteira repetindo o mesmo
processo. No entanto, eu não poderia continuar treinando o mesmo golpe
para sempre.
Eu precisava de alguém com experiência o suficiente para me
ensinar além do que eu sabia.
Kelly não é uma opção, já que ela está no mesmo processo de
treinamento juntamente com um dos amigos de Jay, Naten, acho que este é
o seu nome. Eu ainda não o conheci, ele parece gentil e paciente o
suficiente para me guiar neste processo, no entanto, não quis incomodar
ambos com a intromissão de mais uma aluna indesejada e atrapalhar a
evolução de Kelly.
Eu estava desmotivada, ainda estou, na verdade. E vê-lo
praticamente me jogar para o escanteio como se não tivesse me incentivado
a iniciar um treinamento, deixando-me completamente alheia e perdida no
processo, meio que me chateou um pouquinho.
Ele suspira, aceitando a minha opinião. Sua aproximação repentina a
alguns passos adiante, colocando-se a minha frente a poucos metros de
fazer com que a minha testa colida contra o seu peitoral, desperta-me dos
pensamentos e ergo o pescoço para encará-lo.
— Eu vou recompensar você, está bem? — Assegura, apesar de ter
soado como uma pergunta. — Vem comigo. — Jay estende uma das mãos
ao lado do corpo e sigo o seu movimento, encarando a ação como um
convite, apesar de não ter se parecido com um.
Subindo o olhar desde o seu braço, bíceps, pescoço e olhos, a
confusão toma a minha expressão.
— Para onde?
Apesar de parecer impaciente, seu braço continua erguido a poucos
milímetros de distância do meu braço, mas em hipótese alguma ele me toca.
Ele franze as sobrancelhas no mesmo segundo em que seus olhos
parecem implorar para que eu mantenha a minha boca fechada.
— Confie em mim. Apenas venha.
Deveria confiar nele?
Na verdade, eu já confio. Mas, de alguma forma, depois de nossa
última interação, pensei que algo havia mudado nisso tudo. Talvez a
intensidade da confiança que eu iria depositar nele?
Não, acho que não. Se estivesse receosa quanto ao que ele faria
comigo, não acho que estaria a um passo de estender a minha mão e agarrar
a sua com a minha.
Ele não vai me machucar.
Respirando fundo, abandono os meus pensamentos contraditórios
quando ergo a palma da minha mão e a envolvo juntamente com a sua. Com
o polegar, ele acaricia o espaço entre dois dedos levemente, causando uma
onda de arrepios pelo meu corpo, eu observo cada carícia.
Ergo o olhar a tempo o suficiente para captar o leve sorriso no canto
de seus lábios, mas ao contrário do que normalmente eu faria, não zombo
disso.
Ficamos cerca de dez segundos naquela posição, seus olhos fixos
nos meus e os meus sentidos fixos em completamente tudo que ele está
acendendo no meu corpo, desde as chamas que vem de seu olhar, até as
carícias leves - porém desesperadas -, feitas em minha mão.
Seu olhar busca o meu, atento a percepção de que estou a um passo
de desmontar inteira nesse exato momento. Odeio como ele sempre parece
saber tudo o que estou sentindo ou pensando.
Naquele dia, eu senti quando Jay pareceu estar tão tenso quanto eu.
No momento do treino, os incentivos, a confiança que ele me proporcionou,
tudo aquilo foi capaz de me fazer suplicar internamente para que não
acabasse. Eu queria sentir aquilo por mais tempo. A liberdade, a certeza de
que tudo ficaria bem, o conforto, a confiança de que ele me ajudaria a
alcançar os meus objetivos, a tensão.
Foi tudo novo, é claro. Ainda assim, a proximidade que pareciamos
ter foi algo surreal, parecia que eu o conhecia há muito tempo e vice-versa.
Embora tenhamos nos conhecido há anos atrás naquele concurso, é como se
ele conhecesse a verdadeira Sofia Clarke. Sem pré-definições.
Eu daria tudo para voltar a sentir o seu olhar queimando sobre mim
naquele subterrâneo, ordenando para que mantivesse a postura e tivesse
confiança em mim mesma. Meu Deus, ele realmente fez com que eu
parecesse forte o suficiente.
Me senti capaz.
E tudo isso, na mesma intensidade que me senti a ponto de perder a
capacidade de manter-me em pé quando ele me encarou como um predador
quando o desafiei. E, por mais que eu estivesse enfrentando uma
dificuldade quanto a toques depois de apanhar tantas vezes naquele colégio
por crimes que não cometi, eu quis que ele me tocasse.
Qualquer coisa. Uma carícia, um abraço, um toque, qualquer
porcaria de coisa. No entanto, ele me descartou. Durante aquela noite,
perguntei a mim mesma diversas vezes se havia algum problema comigo, se
o fato de ser filha de um criminoso o fazia sentir repulsa de mim ou algo
assim. Foi horrível.
Eu jurei a mim mesma naquele momento que ignoraria as malditas
borboletas disputando para alcançar o meu coração, quando ele se
aproximasse de mim outra vez.
Não conseguia entender que raios era aquilo. Esse frio na barriga, as
borboletas, a necessidade de tê-lo por perto… O que era isso?
Mas agora, perante a seus olhos escuros que dizem mais do que
cartas poderiam dizer, com o movimento de seu polegar circulando a minha
pele, não sou capaz de ignorar as malditas borboletas. Elas estão aqui. Me
resta descobrir o que raios elas querem comigo.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

— O que é que você estava dizendo? — Ironizo, forçando uma cara


de paisagem quando deslizo a minha faca desde o seu queixo até a garganta,
causando uma cachoeira de sangue.
Olho para baixo e então ergo uma das sobrancelhas. A minha
roupa está encharcada de sangue e as minhas mãos não estão muito
diferentes, acho até que poderia fazer uma participação especial em Carrie.
Quase sorrio pela referência patética, mas não é um momento
adequado. Eu preciso contemplar a paisagem.
O cara se contorce na cadeira enquanto as suas mãos tentam se
livrar das cordas que as prendem no suporte de madeira. O infeliz me
subestimou, então espero até o último minuto em que ele para de se debater
em uma batalha para lutar pela própria vida, embora nós dois saibamos que
ele já está fadado a uma vida após a morte eterna ao lado do diabo.
Quando enfim tenho a honra de testemunhar o último sopro de
vida esvair-se do seu corpo inútil, um rosnado escapa da minha garganta
quando chuto o peito do cadáver para trás, fazendo ele e a cadeira ir de
encontro com o chão. Estou puto pra caralho, mas simplesmente não posso
lhe dar o gostinho de presenciar o quanto as suas palavras me tiraram da
linha. O filho da puta tinha que morrer sabendo que eu reviraria o mundo
atrás de seus comparsas.
De qualquer forma, de que adiantou sacrificar-se para salvar a
pele daqueles que não pensariam duas vezes em deixar que você seja morto
a sangue frio a fim de preservar a própria vida?
Burro do caralho. Lhe darei um tempo a sós com o diabo para que
possam discutir quem poderia ser o mais imbecil.
— Que sujeira. — Ouço quando Hyuk resmunga às minhas
costas, seus passos cautelosos e quase silenciosos.
Eu o olho por cima do ombro, causando-lhe uma carranca e
percebo que talvez seja pela a minha aparência não tão apresentável. Ele
aperta os lábios e retira o laptop de baixo do braço, dando batidinhas leves e
brincalhonas pelo material enquanto um sorriso perverso brota na sua cara.
Me viro, curioso para descobrir qual será a informação que irá
tirar este maldito peso das minhas costas. Meu corpo está tenso pra caralho
e já não sei o que posso fazer para diminuir toda essa merda. Nem mesmo
enfiar uma faca na garganta do imbecil foi capaz de fazer brotar um riacho
repleto de unicórnios e arco-íris aqui dentro. Parece que estou regredindo.
Olhando para Hyuk, noto quando ele abre o seu computador e o
apoia em uma das mesas empoeiradas de Jorge Mekslyolt, arrastando
diversas papeladas até a beira, e então espalhando-as pela sala de estar do
homem. Desvio os olhos até o cadáver envolto por uma poça de sangue
seguido de pegadas que provavelmente foram causadas por mim. Olho para
o olhar fixo de Jorge por dois segundos antes de dar de ombros e voltar a
minha atenção ao meu amigo.
— Não acho que nós estamos na estaca zero, veja só... — Hyuk
digita algumas coisas no computador antes de afastá-lo o suficiente para
que eu possa enxergar apropriadamente a tela. — Mekslyolt não tem essa
propriedade há muito tempo, entrei nos arquivos e pesquisei tudo sobre a
compra do imóvel e o nome do vendedor. Ela foi comprada recentemente,
como se estivessem preparados para a nossa visitinha. Não acho que o
vendedor esteja envolvido, porque se for, não foi cuidadoso. É fácil
encontrá-lo. — Explica ele.
Na tela, a imagem de uma casa de estrutura de madeira coberta por
neve e folhas secas de outono. Do lado de fora, brinquedos infantis estão
espalhados pelo jardim morto enquanto à esquerda, um parque simples que
parece ser projetado pelo morador da casa está coberto por pegadas infantis.
Aperto os olhos, olhando fixamente para a casa. Pela visão aérea
proporcionada pelos drones de Hyuk, noto que a casa não fica localizada
em uma zona rural onde qualquer um poderia comprar um terreno e
construir a estrutura. É como se ela fosse localizada em um pico de
montanha, longe de estabelecimentos, longe das pessoas e escondido o
suficiente para que, quem esteja do lado de dentro, possa ter conhecimento
caso a área seja invadida.
Um local seguro o suficiente para se esconder do resto do mundo,
ou de pessoas que podem estar caçando você por cada canto do mundo.
— Essa é a casa de Jimmy Mccall, o dono de uma das maiores
empresas imobiliárias de pelo menos dez Estados. — Hyuk estala a língua e
apenas espero, sabendo que há mais. — Como eu disse, é fácil demais
encontrá-lo. Mas este é o problema, Jason, ninguém envolvido em tráfico
de mulheres é corajoso o suficiente para deixar informações privilegiadas
para qualquer um que queira acessá-lo na web. Deveria ter ao menos algum
código de acesso. — O tom sugestivo de Hyuk é explícito quando,
erguendo uma das mãos, ele coça a ponta do queixo com o indicador e volta
a atenção para o laptop, puxando-o para perto. — A menos que...
Pisco, enquanto o meu cérebro trabalha para encaixar as peças.
— Você queira ser encontrado. — Completo, cortando a sua linha de
raciocínio.
Os olhos miúdos de Hyuk voltam aos meus por cima dos óculos
quadrados típicos antes de suspirar ao mesmo tempo que um meio sorriso
brota no canto de sua boca.
— Exatamente! — Comemora, alcançando as teclas com a ponta
dos dedos para digitar. — Ou Jimmy é um cara burro pra cacete ou ele está
esperando que alguém o encontre. Precisamos descobrir se é um pedido de
socorro ou uma emboscada para apagar possíveis ameaças.
Assinto, nada surpreso por tamanha inteligência de Hyuk. Ele é bom
nessas coisas, não é atoa que ele é o cérebro da coisa. Em missões como
essa onde provavelmente terei que matar algum cretino, Hyuk sempre fica
do lado de fora, dentro do carro, mexendo os pauzinhos e fazendo mágicas
no seu laptop para conseguir alguma informação nos arquivos de
computadores ou telefones que possam haver no lugar, já que o alvo estará
distraído o suficiente com a minha presença para não se dar conta de que
está sendo invadido.
Quanto a esta casa, olhando em volta para a decoração minimalista
do lugar, realmente não se parece com um local frequentemente visitado.
Jorge estava aqui quando chegamos, não sei dizer se foi uma sorte arriscada
ou uma semente plantada.
Sendo assim, algo me diz que o vendedor da propriedade terá uma
visitinha em breve para nos explicar exatamente como conheceu o
proprietário do lugar e o que sabe sobre o indivíduo. Não acho que ele
esteja no escuro como nós, algo útil ele terá para nos entregar, seja por bem
ou por mal.
— Onde fica o lugar? — Pergunto, focando a minha atenção no
computador outra vez. — Estava nevando. — Observo, curioso pelo fato de
não estarmos em uma época fria.
Hyuk continua digitando, mantendo os olhos na tela por longos
segundos enquanto parece vasculhar o Google atrás de alguma informação.
Eu levo o antebraço à testa, secando os resquícios de sangue que sinto
escorrer pela minha têmpora.
— Encontrei. — Ele assobia, orgulhoso de si. — Monte Whitney. É
uma parte morta da Califórnia, apesar de haver trilhas e excursões. A casa
deve estar escondida o suficiente para passar batido, mas isso não significa
que seja possível subir até lá. Estamos no outono, lá em cima é frio o
bastante pra fazer o nosso corpo se debater até virar um pedaço de gelo.
Isso explica a neve. — Hyuk explica, apoiando ambas as mãos na borda da
mesa.
Bom, isso será difícil, mas não impossível. Picos californianos não
costumam ser tão perigosos, e mesmo que eu esteja errado e tenhamos que
enfrentar animais selvagens e graus negativos de frio, preciso arriscar a
tentativa. É literalmente a primeira vez em uma semana que temos uma
possível informação a ser investigada.
Floyd está em silêncio há muito tempo, e isso me cheira a
carnificina. Eu gostaria de descobrir o que ele tem planejado, mas tenho
certeza de que ele não é corajoso o suficiente para dar as caras e mostrar
diretamente a mim qual o seu plano genial.
Por isso, minha única alternativa até o momento é encontrar os seus
homens - culpados, ou não - pelo sofrimento causado à Baker. Claro, minha
intenção principal é encontrar os malditos que tocaram em um fio de seu
cabelo e esfolar os seus corpos para que os pombos detonem até o último
grão de carne, mas, se por algum acaso, no processo eu encontrar Marcus
Floyd e descubrir de uma vez por todas o que ele planejou nos últimos três
anos, seria um chute certeiro.
Não pretendo permitir que a Luxury saia ilesa de tudo o que
causaram a milhares de garotinhas e especialmente à Baker. Não há perdão,
e mesmo se houvesse, eu plantaria uma bomba nuclear na porra do universo
para destruir essa possibilidade.
— Você consegue arranjar uma rota, algum mapa ou alguma merda
assim? — Pergunto, dando voz aos meus objetivos.
Hyuk me encara por cima dos óculos, erguendo o seu corpo para
cima e colocando-se de pé para me encarar. Eu sigo seu olhar, esperando
que ele inicie o seu discurso de que estou tomando a decisão errada e tudo
que provavelmente entraria por um ouvido e sairia pelo outro.
— É suicídio subir até o pico de uma montanha no meio do outono
sem equipamentos necessários. — Hyuk rebate, erguendo o braço para
fechar o seu laptop e recolher os seus demais equipamentos sobre a mesa.
— Você não acha estranho que um agente imobiliário tenha uma
casa em algum lugar no meio de uma montanha? — Subo a sobrancelha..
— Ele é o quê? O homem das cavernas?
— Não sabemos o que ele é, e é exatamente por isso que é perigoso
subir até lá sem a porra de um preparo. — Repreende. — Você é mais
inteligente do que isso cara, deixe as emoções de lado por um único
momento e pense no que você está dizendo. Eu serei traumatizado pra
sempre se tiver que assistir o seu pau ser engolido por ursos, então pelo
amor de Deus, não seja um idiota.
Sua voz emite toda a preocupação que ele sente pela a minha falta
de controle quando o assunto envolve as minhas emoções, no entanto, vejo
graça na forma com que expõe isso em voz alta.
Apenas guardo o meu riso para mim quando assinto, concordando
que, desta vez, estou sendo negligente. É melhor esperar até que tenhamos
informações e preparo o suficiente para dar um passo tão grandioso que
com um mínimo descuido, pode colocar tudo a perder. Não é uma opção
arriscar tudo, então, apesar de sentir a minha carne fritar dentro de mim
com a necessidade de causar mortes que provavelmente ninguém notaria,
preciso me acalmar. Isso vai acontecer, só é preciso tempo.
Muito tempo. E paciência.

Adentro o prédio alto e com aparência rústica, o lugar onde deveria


ser o meu lar, porém, neste momento é onde menos me sinto em casa.
Olho para ambos os lados após ultrapassar a porta, atraindo diversos
olhares em minha direção. Estão surpresos por me verem aqui tão cedo, sei
disso, mas apesar de estar a um passo de arrancar a cabeça de Williams,
tenho propósitos a cumprir e infelizmente, eles me trazem até esta cidade
outra vez.
Hyuk me segue logo atrás com suas bolsas jogadas pelos ombros
devido ao nosso mini acampamento de uma semana procurando por pistas.
O fato de nosso principal suspeito viver em um lugar que deveria ser
proibido a habitação, atraiu as nossas atenções para o que pode - ou não -
estar por vir. Só há uma forma de descobrir onde está Marcus Floyd e todos
os seus súditos infelizes, e por mais que a minha vontade seja de caçá-los
como um depravado, preciso buscar informações antes de qualquer coisa.
Não pretendo deixá-lo escapar.
— O que aconteceu com ele?
Os sussurros continuam conforme eu dou passos adiante, adentrando
ao prédio por completo. Minhas roupas seguem sujas e fedendo a sangue
seco, meu rosto deve estar repleto de respingos avermelhados e sequer me
importo com a minha aparência pouco apresentável.
Caminho apressadamente em direção ao escritório de Williams no
fim do corredor, sequer olho para o lado para encontrar olhares julgadores e
curiosos. É bom que ninguém queira pagar para ver o que raios poderia ter
me irritado tanto para ter passado dos limites.
Se é que algum dia ele existiu.
Quando alcanço a porta metálica do escritório, sequer bato ou peço
pela permissão casual para a minha grande majestade. Reprimo o meu olhar
e os miro na figura de Williams sentado à sua mesa casualmente, seus dedos
entrelaçados estão repousados na madeira de sua mesa e seu corpo
recostado confortavelmente contra a almofada de sua cadeira de escritório.
Ele já estava esperando por nós, mediante ao fato de que sequer parece
surpreso quando entro na sala como um furacão, apontando o meu
indicador em sua direção como um claro sinal de que não estou aqui para
firmar uma amizade.
— Monte Whitney. Soa familiar? — Questiono, aproximando-me de
sua mesa.
Williams relaxa as suas mãos, mas sua postura segue ereta e
exalando autoridade. Parece tranquilo e relaxado, apesar de seu olhar cair
por toda a extensão do meu corpo.
Ergo uma das sobrancelhas, ansioso pela sua resposta.
— Na verdade, sim. — Confessa, seus olhos finalmente se
encontrando com os meus. — Meu pai costumava me levar até lá quando
criança, fazíamos trilhas e acampamentos duas vezes por mês em família.
Ouço quando a porta se fecha e, pelo suspiro às minhas costas
seguido do farfalhar de tecido se misturando no chão, sei que Hyuk está às
minhas costas.
Minha atenção se fixa em Williams, curioso para descobrir a exata
razão para que o Monte Whitney possa ter alguma possível ligação com a
merda que ele acabou de me dizer.
— Por quê? — Ele indaga, curioso, fixando os seus olhos repulsivos
em minha direção.
Dou de ombros.
— Você perdeu o direito de ter respostas quando as negou para mim
— Soo tão indiferente quanto ele merece. — Apenas me diga como eu
chego até o lugar e eu prometo não acabar com a sua cara. É um bom
negócio, na verdade.
Seus olhos saltam de repente, surpreso pela minha falta de
sensibilidade. E sequer acredito que algum dia a tive.
— Você está perdendo o juízo? — Seu tom de repreensão soa pelo
escritório, seu corpo levanta-se repentinamente da cadeira, afastando-a da
mesa.
Sigo de pé, olhando com a mesma autoridade de líder que ele jamais
poderá possuir. Não consigo entender como não joguei para fora todo o meu
almoço quando o encarei pela primeira vez após uma semana. Estou
enojado apenas em estar no mesmo ambiente, ele deveria saber que quanto
mais longe eu estiver, mais tempo de vida ele terá.
Não consigo perdoá-lo e tampouco me esqueci da forma como ele
tentou consertar as coisas. Não é assim que funciona, porra. Não é como
derrubar um vidro no chão e catar os caquinhos, mostrando-se arrependido
e apontando soluções para que todo aquele vidro volte a se encaixar. Nada
importaria, ele estaria quebrado e ponto final.
Não importa quantos pedidos de perdão sejam implorados ou
quantas vezes eu tente consertá-lo. O que está quebrado continuará
quebrado.
— Não. — Respondo, sem rodeios. — Muito pelo contrário, acho
que estou com mais juízo do que conseguiria ter caso estivéssemos a sós. —
Encaro Hyuk por cima do ombro, notando a forma como ele encara toda a
situação com um olhar de arrependimento.
Ele se parece com quem interviria caso avançasse um passo a mais
em direção a Williams. Hyuk é leal, esse é um dos motivos para considerá-
lo meu irmão, o seu coração consegue ser bom na mesma intensidade
quanto patético.
— O que está insinuando, Jason? — Williams aumenta o tom de
voz, atraindo a minha atenção até ele pela segunda vez. Sua mão espalma
contra a mesa e sigo o movimento com o olhar, demonstrando o quanto o
ato está longe de me intimidar. — Você não vai chegar aqui e me ameaçar,
ouviu? Fui honesto em cada palavra e procurei meios de fazer o que você
me pediu, não seja um moleque mimado, porra. Olhe para você, está
parecendo como um...
Umedeço os lábios, interrompendo-o imediatamente.
— Eu não me importo com nada que você diz. Me poupe de tanta
hipocrisia, pelo amor de Deus. As vezes me pergunto se você também não
estava contando com a ideia de que eu apodreceria naquela prisão,
Williams. Tudo seria mais simples pra você, não? — Debocho, cuspindo as
palavras em sua cara quando apoio o meu corpo sob ambas as mãos contra
a mesa, inclinando-o em sua direção. — Você continuaria sendo o alfa
adorado por toda essa gente tão patética quanto você e não precisaria se
preocupar em cumprir uma promessa simples. Você quase me enganou,
confesso.
Seus olhos apertam e quase consigo notar as chamas que envolvem
a sua íris em um abraço feroz. Ele está furioso e me contento em provocá-
lo, ele merece se sentir tão impotente quanto me senti por longos anos.
— De que merda você está falando? — Sua pergunta parece
desesperada, apesar de um sorriso amargo envolver os seus lábios. — Eu fiz
absolutamente tudo que estava ao meu alcance! Precisa se preocupar mais
com os seus verdadeiros inimigos, Jason, porque eu realmente não sou um
deles.
Um riso brota nos meus lábios quando aprumo a minha postura,
recolhendo as minhas mãos para longe de sua mesa.
— Que seja. Não estou aqui para discutir e choramingar, você sabe
que não o perdoarei e isso é o suficiente.
Williams abaixa a cabeça, assentindo devagar quando o seu olhar se
ergue o suficiente para colidir a algum ponto atrás de mim, até Hyuk.
— Bom, sente-se. — Parecendo se dar por vencido, Williams
gesticula em direção às cadeiras de frente para a sua mesa.
Hyuk caminha até uma delas, acomodando-se em silêncio. Eu
apenas seguro o estofado antes de puxá-lo o suficiente para que o meu
corpo possa aconchegar-se.
— Você não. — Williams repreende sem olhar para mim, focado em
digitar em seu computador. — Você fede a cadáver.
Não lhe dou ouvidos, apenas me acomodo no assento e cruzo os
meus braços, libertando um longo suspiro quando sinto as minhas costas
relaxarem contra o estofado. Foi uma longa viagem e meu corpo realmente
parece ter sido revirado em um liquidificador.
Relaxo o pescoço, esticando-o de um lado para o outro enquanto
ignoro o resmungo de Williams à minha frente, provavelmente por estar
deixando um rastro de sangue por seu estofado a cada movimento feito.
Propositalmente, ergo uma das minhas mangas do moletom onde o
sangue se acumula e o esfrego contra o tecido, espalhando-o de ponta a
outra. Um riso quase me escapa quando Hyuk empurra o meu ombro com
uma força considerável, gesticulando em direção ao Williams que têm os
seus braços cruzados aguardando até que eu termine a minha crise de
provocação.
— Você tem doze anos? — Hyuk desaprova.
Reprimo os lábios, escondendo o meu sorriso provocador quando
mantenho a minha atenção em Williams. Pau no cu do caralho.
— Primeiramente, o Monte Whitney está fechado para excursões há
pelo menos dois anos. Seja lá o que vocês pensam que encontrarão naquele
lugar, é impossível. Ele está literalmente abandonado. — Williams nos
mostra a tela do computador, onde persevera a imagem de uma faixa de
aviso à frente do Monte.
Encaro a imagem, pedaços de neve derretidos espalhados pela
entrada e pegadas de terra sujam o lugar juntamente com pedaços de
gravetos e lenhas atirados como se pudessem barrar a entrada.
Estreito os olhos ao notar Hyuk pensativo olhando para a imagem.
— Qual a relação desse lugar conosco? — Questiona ele, curioso.
— Quero dizer, nós viemos para WonderFall por ordem sua, então de
repente, todos os nossos inimigos que viviam em Nova York estão aqui?
Cruzo os braços, acatando as informações de Hyuk. Ele está certo,
depois que fomos descobertos em Nova York, eu não estava presente para
acompanhar o que de fato aconteceu com o nosso prédio ou para onde
iríamos. De repente, estamos em uma cidade distante o suficiente para que
nenhum dos desgraçados nos encontrem.
Mas então eles caçam por Baker, a perseguem e assassinam a nossa
fonte de informação.
Se esta fosse de fato, uma cidade pequena e longe dos perigos, por
que se parece com um ninho para atrair problemas?
Abomino a ideia de ter passado tanto tempo naquele inferno, isso
impede que eu leia tão facilmente o olhar desconfiado que é dado em nossa
direção. Williams está escondendo algo de nós, para variar.
— Por que o lugar onde é provável que seja a base do tráfico
infantil, teria alguma ligação com você, Williams? — Hyuk pressiona.
Não há nenhuma suspeita sobre o que pode ser o lugar, nós apenas
sabemos que ele existe e que possui ligação com a Luxury. Hyuk está
mentindo para arrancar informações de Williams e espero que isto funcione.
Direciono o meu olhar até Williams a tempo suficiente para captar o
seu olhar congelar e uma ruga formar-se no meio de suas sobrancelhas. Ele
parece confuso na mesma intensidade em que parece ter ideia do que
estamos falando.
— Como? — Ele desvia o seu olhar até o chão, em uma batalha
interna com os pensamentos. — Você tem uma foto do lugar? — Ergue o
olhar para nós.
Continuo imóvel, cruzando os meus dedos à frente do meu corpo ao
demonstrar o quanto o seu semblante de desentendido é capaz de entediar
até mesmo uma barata.
Hyuk, no entanto, ergue o seu corpo e direciona a tela do
computador para que possa digitar alguma informação. Segundos depois,
aperta uma das teclas Enter, então se acomoda ao meu lado outra vez.
Trocamos olhares por cerca de dois segundos, ambos desconfiados e
a um passo de perder toda a maldita confiança que depositamos em
Williams por anos.
— Não pode ser. — Williams suspira, atraindo os nossos olhares até
ele. — Esse lugar deveria estar destruído.
Ergo uma das sobrancelhas, acompanhando o subir e descer de seus
olhos na imagem da cabana que Hyuk e eu estávamos falando há algumas
horas. Seu queixo cai, os cílios batendo algumas vezes contra a pele ao
encarar a tela.
— É familiar? — Inclino o meu corpo levemente para a frente.
Seus olhos profundos encontram os meus, sua cabeça balançando de
um lado para o outro em negativo algumas vezes antes de encostar o seu
corpo novamente contra a cadeira.
— É mais do que isso. Essa cabana foi construída pelo meu pai,
anos atrás. Ele tinha a mania de acampar por lá quando precisava de um
tempo sozinho, e mesmo quando viajávamos em família, esse era o lugar
que usávamos para nos aquecer durante a noite. — Ele mordisca os lábios,
aéreo, como se estivesse descrente.
Hyuk limpa a garganta.
— Bom, alguém a roubou. E, eu não acho que está sendo usada para
alguma reuniãozinha familiar.
Ele sorri amargamente, seu olhar ainda perdido em algum
pensamento obscuro.
— Ninguém a roubou. — Afirma. — Eu nos trouxe para
WonderFall porque cresci aqui, sempre foi uma cidade tranquila. O
ambiente seria discreto para que pudéssemos acabar com a Luxury de uma
só vez, algo menos chamativo e essas merdas. — Ele dá de ombros. — Não
vou sentar aqui e contar a minha história de vida, tudo que precisam saber é
que eu não tive boas companhias no decorrer dos anos. Nunca tive, e
também não tenho súditos para me adorarem como se eu fosse profano. —
Seus olhos encontram os meus, e percebo sua fisgada.
Travo os dentes, observando-o enquanto seus olhos seguem fixos
em nós.
Ele já conhecia as redondezas desta parte da Califórnia. Talvez isso
explique a razão para a cidade ao lado ter sido um conselho seu para manter
escondido mais um dos meus segredos.
— Minha família tinha dinheiro o suficiente para construir milhares
de prédios como esse, mas por alguma razão, fui jogado para fora do
testamento do meu pai. Drama familiar. — Ri ironicamente. — Acho que
eu não fazia o tipo de filho capacho que faria exatamente o que o pai
ordenava toda a porra do tempo. Eu tinha a minha própria personalidade,
não senti falta de um único centavo daquela merda de testamento.
Arqueio uma das sobrancelhas, surpreso pela revelação repentina de
uma parte de sua vida que jamais procurei saber. Nós sempre fomos
próximos o suficiente para confiarmos a nossa vida um ao outro, mas não
para sentar e conversar sobre qual infância poderia ter sido mais fodida.
— Eu não tive mais contato com a minha família depois da morte do
meu pai. Encarei o funeral como uma chance de viver tudo o que sempre
tive vontade, então fui embora para Nova York. — Seu olhar alterna entre
nós, antes de abaixar a cabeça e cobrir os lábios com uma das mãos,
perturbado. — O resto vocês já sabem.
A academia foi um passo importante na vida de Williams, isso todos
aqui têm conhecimento. Ele deu duro para construir tudo que muitos
chamam de casa, mas ainda assim, não consigo encontrar a relação que isso
pode ter com a porra da cabana.
— E o que a cabana tem a ver com isso?
Hyuk e eu nos entreolhamos, seus olhos miúdos por trás do par de
óculos julgam o meu comportamento. Quis rir da forma como os seus
braços se cruzaram sobre o peito, parecendo tão entediado quanto eu.
Williams suspira, levantando-se da cadeira, causando um ruído de
borrachas arrastando-se pelo concreto.
— A ordem para a cabana ser demolida foi dada logo após a morte
do meu pai, no entanto, bem... Ela não foi. — Diz. — E eu tenho uma ideia
de quem seja o culpado. O meu irmão, ele sempre teve um gene interesseiro
de impressionar.
Hyuk e eu nos entreolhamos, ambos com a expressão desconfiada
no olhar.
— Por favor, não me diga que o desgraçado se chama Jimmy
Mccall. — Suspiro, a tensão voltando como a sensação de vento frio para os
meus músculos.
— Não sabia que tinha irmãos. — Hyuk se pronuncia, sua voz tão
surpresa quanto a minha.
Viro a cabeça em direção ao Williams, de pé ao lado da mesa com
ambas as mãos enfiadas nos bolsos frontais de sua calça. Seus olhos se
abaixam, e quando um suspiro lhe escapa, sei que tudo é exatamente como
parece. Williams tem um irmão que está meramente envolvido no tráfico
infantil e de mulheres e, por alguma razão, estamos em seu território que há
muito tempo tem estado livre para que ele continue cometendo as suas
atrocidades.
Williams não contava com essa ideia pelo olhar confuso e surpreso
que ele nos lança por descobrir a verdade com facilidade. Nós jamais
imaginamos que tudo estaria ligado, a cidade, as famílias, as razões para
que sejamos tão intensos em nossa missão principal. Tudo isso se iniciou
com um propósito que sentíamos vontade de alcançar, doa a quem doer.
Não é segredo que Williams perdeu a sua filha há alguns anos,
quando a menina tinha cinco anos. A mãe era uma cretina aproveitadora,
sugou tantos homens que muitos deles perderam a razão para continuar ao
seu lado, Williams foi um deles. No entanto, quando encontrou um
desgraçado a altura, não soube o que fazer quando o cara assassinou a sua
filha enquanto a mulher dormia profundamente, acreditando que estava a
salvo ao manter um maníaco miserável sob o próprio teto.
Ele foi a primeira pessoa que assassinei a sangue frio. Não foi o
último e não acho que esta lista esteja perto de se encerrar.
Consigo enxergar de longe as razões para que ele tenha se envolvido
no universo de resgatar garotinhas inocentes de situações deploráveis, no
entanto, o que cobre o seu olhar neste exato momento não parece ter relação
com tristeza ou rancor, se parece com raiva. Ele consegue demonstrar
surpresa e fúria na mesma intensidade.
— Uma das razões para que eu tenha me afastado da minha família
foi a obsessão deles com a grana. O meu pai era louco, não se contentava
com absolutamente nada do que ele tinha. O meu irmão, curtia sair com os
amigos e pagar de pegador para as garotas do colégio com o carro legal,
roupas legais... Tudo que não lhe pertencia. — Williams gesticula
loucamente, rindo amargamente no processo. — O dinheiro era sujo e eu
nunca quis descobrir de onde raios vinha tudo aquilo. A minha dúvida
acabou, no entanto.
Ele caminha pelo escritório, coçando o queixo dolorosamente com a
ponta dos dedos. Seus olhos estão perdidos e amargurados, uma tristeza
sem fim envolvendo-o por completo.
— Eu sou o filho bastardo, nascido de uma traição. Jimmy, no
entanto, primogênito legítimo e, como devem imaginar, nós nunca nos
demos bem. — Explica, sentando-se em sua cadeira almofadada. Seu corpo
se acomoda por completo, seus olhos se fecham por impulso. — Pensei que
tinha me livrado desse filho da puta, quantas pedras eu devo ter atirado na
porra da cruz?
Hyuk ri, sua risada cheia de sarcasmo.
— Vai precisar recolhê-las de joelhos quando Jesus Cristo ouvir
você acrescentar o "porra" antes da Cruz.
Bufo um riso, abaixando a cabeça para tentar disfarçar o quão
desprevenido fui pego pela a sua objeção.
Williams resmunga algum pedido de perdão para o céus, mas estou
muito ocupado notando o ranger da porta indicar que foi aberta
abruptamente. Meus olhos se dirigem imediatamente em direção a ela,
encontrando os olhos escuros de Lexie fixados em minha direção.
Seu corpo suado indica que ela andou treinando durante a tarde,
seus fios escuros presos no topo da cabeça e seu peito subindo e descendo
em uma respiração acelerada. Seu olhar vasculha o meu corpo, horrorizada
pela forma que eu provavelmente estou vestido. Ainda não consigo
entender como ninguém neste lugar parece estar acostumado com a nossa
realidade.
— Meu Deus, cara, você está horrível. — Uma carranca cobre os
seus olhos quando ela se aproxima, cobrindo o nariz com o antebraço nu. —
Você fede a urubu em decomposição.
Ouço o riso de Hyuk e noto quando os olhos de Lexie desviam-se
para as minhas costas onde ele está sentado. Ela mantém os seus olhos fixos
no meu amigo por longos segundos, parece até ter se esquecido que todos
nesta sala estão testemunhando a forma como ela é péssima em esconder o
quanto é seduzida por Hyuk.
Quando um riso cobre os meus lábios, noto que ela parece despertar
do transe e captura o meu olhar pela segunda vez, se dando conta de que foi
pega no flagra. Ela dá de ombros, mas ainda mantenho o meu olhar
desconfiado em sua figura.
Não sei o que anda rolando, mas definitivamente, isso não foi um
olhar amigável de boas-vindas.
— Vocês me devem uma explicação. — De repente, o seu tom
zombeteiro é substituído pela frustração. — Estão fora há uma semana,
cacete, faço parte de vocês agora. Tem noção do quanto eu fiquei
preocupada? — Questiona ela, causando um alvoroço no meio do escritório
enquanto nós apenas cruzamos nossos braços e a assistimos. — Não me
olhem com essa cara, eu mereço saber da verdade.
Me levanto da cadeira, gesticulando em direção a porta para me
livrar deste show desnecessário.
— Como bem sabem, preciso de um banho. — Me despeço,
avançando alguns passos em direção a porta. — Hyuk, colete informações
até o amanhecer, nós vamos até o Monte Whitney. Só há uma forma de
descobrir o que precisamos e não será dentro desta sala ou há quilômetros
de distância. — Aviso, prestes a alcançar a maçaneta.
No entanto, antes que eu possa abri-la, o movimento da madeira
colidindo contra a minha têmpora, causa um desconforto agoniante no
local. Tapo os olhos por impulso, cessando o movimento da porta enquanto
massageio o lugar. Um resmungo me escapa quando ergo o olhar e me
deparo com as esferas gélidas de Baker, ambas me encarando com
indiferença. Seus lábios estão fechados e reprimidos, seu semblante tão
neutro quanto frenético.
Congelo no local, preso na forma como os seus olhos parecem me
puxar direto para a profundidade do oceano pacífico.
Meus lábios se abrem levemente, surpreso pela forma com que ela
não parece sentir a necessidade de estar a quilômetros de distância de mim,
ou apenas me culpar por erros que jamais cometeria. Ela simplesmente
parece normal, ainda que seus olhos transmitam a mesma repulsa a qual eu
já estou habituado.
Ela ergue o queixo no mesmo instante em que seus olhos vasculham
o meu corpo, encarando-o sem a mínima expressão de horror. Parece estar
me encarando em dias habituais onde eu jamais estaria coberto de sangue
de cadáver, e por mais que aquilo me impressione, sei que ela jamais me
deixaria enxergar muito além do que ela está disposta a permitir.
Eu mudarei isso, no entanto.
Não tenho reação quando Baker empurra a porta o suficiente para
passar como um vulto por mim, colocando-se ao lado de Lexie. Mantenho
uma das mãos cobrindo a minha têmpora dolorida enquanto sigo os seus
movimentos, o meu olhar escorregando por toda a extensão do seu corpo
quando enfim noto a presença das roupas de Lexie em seu corpo.
Ela usa um macacão preto, feito especialmente para criar a
facilidade no treinamento. Nos pés, um par de botas de combate cobrem o
seu tornozelo, cadarços amarrados frouxamente no topo da amarração. A
lycra do tecido do macacão se ajusta perfeitamente em cada curva do seu
corpo, e o cabelo loiro espalhado por seus ombros cria um perfeito contraste
entre a escuridão e a pureza. Está linda. Linda pra caralho.
Quando ela enfim gira sobre os calcanhares e cruza os braços à
altura do peito, seus olhos encontram os meus pela segunda vez, a poucos
segundos de causar a minha ruína ao me deparar com os azuis mais vívidos
que eu verei em toda a minha trágica existência.
Baker inclina a cabeça levemente, capturando o meu olhar
descontraído em sua direção. Capturo seu olhar indiferente quando uma
carranca cobre a sua expressão, ignorando toda a tensão que ela poderia
sentir sob o meu olhar.
Seu desprezo não vai durar muito, embora eu saiba que ele é
essencial.
— Você estava dizendo que irão ao Monte? — Lexie intervém,
despertando-me do transe. — Qual Monte? Onde fica isso?
— Não importa, princesa. Isso é assunto de gente grande. — Hyuk
provoca, levantando-se da cadeira e arrastando-a em direção ao suporte da
mesa.
Lexie avança alguns passos em sua direção, passando por mim com
rapidez quando se coloca à frente de Hyuk, desafiando-o com o olhar de
superioridade.
— Eu faço coisas extraordinárias, príncipe. Não preciso ter um pau
entre as pernas para ser capaz.
Cruzo os meus braços, desviando o meu olhar para o que realmente
ganha a minha atenção. Baker, à minha direita, varre o meu corpo com o
olhar. Desde as roupas manchadas de sangue, quanto aos suportes de facas
ensanguentadas no cós da minha calça. Ela observa tudo atentamente, e
como o centro da minha atenção, eu capto absolutamente tudo que ela faz.
— Eu sei. Você faz coisas incríveis, como por exemplo entrar na
droga do seu quarto e manter o bico fora de onde não é chamada. — Rebate
Hyuk, causando uma onda de calor causada pelas chamas que esvaem do
crânio de Lexie.
Baker desvia o seu olhar quando nota que está sendo observada, sua
língua umedecendo os seus lábios lentamente. Eu sigo o movimento,
extasiado pela a porra da sensação de imaginar como seria se a tivesse
como minha.
A sensação da impotência quando se possui algo valioso e tem a
chance de guardá-lo e protegê-lo, e mesmo assim ter permitido que fosse
arrancado de suas mãos, se trata de uma dor que pode destruir o coração de
alguém. Talvez eu saiba disso porque sinto que o meu deixou de funcionar
há dias. Há anos. Desde quando perdi o que o mantinha funcionando.
Lexie rosna, atraindo a minha atenção até o show de horrores a
tempo suficiente para impedir que ela empurre Hyuk para longe. Avanço
dois passos, prendendo os seus pulsos no ar quando os seguro com força.
— Já chega! — Williams finalmente intervém, levantando-se de sua
mesa rapidamente.
Lexie engole os insultos que estavam prestes a escapar de seus
lábios diante da repreensão. Seu olhar fulmina Hyuk nesta distância.
— Vocês são ridículos! Por que confiar em mulheres para fazer
parte de uma missão nunca esteve realmente em cogitação? — Indaga,
alternando o seu olhar fulminante em direção a nós três. — Ouvi dizer que
vocês estavam se divertindo por aí, enquanto nós ficamos largadas aqui
como animais enjaulados.
Eu largo os seus braços, libertando-a do meu agarre.
— Isso não é uma brincadeira, Lexie. Há caras treinados lá fora que
não ficarão parados enquanto você coloca em ação diversas estratégias de
golpes. Não são um saco de pancadas. — Digo a ela, rigidez em cada uma
das palavras. — Nós não a estamos proibindo de fazer algo concreto, não
confunda proibição com proteção.
Realmente nunca esteve em cogitação chamá-la para missões onde o
perigo é mais do que um mero aviso. Lidar com Floyd é mais complicado
do que posso explicar em palavras a ela, e por mais que eu queira muito que
entenda que além de tudo, as minhas intenções são pessoais, sei que tudo
seria em vão.
Lexie sente a necessidade de sair da zona de conforto, eu a entendo
completamente, acompanhei boa parte de sua história, e se tem alguém que
ela pode ouvir e aceitar conselhos de boca fechada, é aquele que nunca
colocaria a sua vida em risco.
Ela definitivamente é boa no que faz, fiquei surpreso pela sua
evolução em lutas e inteligência. Não acho que deveria ser desperdiçado.
No entanto, eu não posso colocá-la na mira daqueles que a tiveram por
algum período curto de tempo. Não posso perdê-la.
— Ela faz parte da academia — A voz doce de Baker faz com que
eu erga o meu olhar para encará-la por baixo dos cílios. — Estive aqui
antes, e sei o quanto significa vestir o símbolo de representação, então de
que adianta oferecê-la a ela, se não é capaz de confiar na sua capacidade?
— Questiona, largando ambos os braços ao lado do corpo.
Estreito o olhar, encarando-a enquanto um arrepio sobe pela minha
espinha. Seus olhos desafiadores estão fixos nos meus, e por mais que odeie
a razão pela qual seus olhos deixaram de transmitir sua verdadeira essência,
ela finalmente parece depositar confiança o suficiente em si mesma. Me
esforcei para que ela reconhecesse o quão poderosa poderia ser quando
abrisse mão de tudo aquilo que a prendia em uma gaiola, e agora a vejo
livre, finalmente encarando quem realmente é.
As razões, no entanto, me tiram do sério.
— Lexie deu duro para chegar onde está, mas isso não significa que
esteja pronta para encarar mundo afora. — Williams a responde com
tranquilidade.
Baker desvia o seu olhar até ele, seu queixo erguido o suficiente
para deixá-la ainda mais sexy com o ar de superioridade que faz a porra dos
meus órgãos estremecerem.
— Líderes normalmente apostam todas as fichas nos seus
discípulos. Você é um líder, Williams?
Ergo uma das sobrancelhas, trocando um olhar breve com Hyuk que
mantém o mesmo olhar surpreso em direção a mim. Ambos estamos
estáticos pela resposta de Baker, expostos ao silêncio ensurdecedor que se
instalou no escritório.
Williams sorri levemente, cruzando todos os seus dedos acima de
sua mesa quando ergue o olhar tão desafiador quanto o de Baker, em sua
direção.
— Rótulos não são o meu forte, mas o que eu posso dizer é que os
líderes são fracos, um único objetivo a ser alcançado é atípico. Eu sou mais
do que isso, posso te garantir. — Ele diz a ela, casualmente, o tom
zombeteiro presente em cada uma das palavras.
Baker sorri, revelando os dentes perfeitamente alinhados. Não o
bastante para alcançar os olhos fundos.
— Então você espera sempre por mais, não é? — Ela pergunta,
iniciando uma disputa.
Williams se acomoda em sua cadeira antes de assentir brevemente
com a cabeça.
— Então vejamos… Estou sendo procurada pela polícia por um
crime que não cometi, passei tempo0 demais trancafiada, e estar em quatro
paredes todos os dias, todos os momentos, está me enlouquecendo. —
Baker avança alguns passos em direção a mesa, seu corpo deixando um
rastro do perfume suave que exala dela. — Deixe-me participar da missão
que eles estão fazendo e eu provo a você que posso ser mais do que um
peso morto aqui dentro. Não tenho intenção de ficar parada aqui esperando
até que alguém invada o lugar e me leve para outra prisão. De novo. — Ela
relembra, deslizando o seu polegar pela madeira da mesa.
Em um sobressalto, viro-me em sua direção.
— Não.
Encaro Williams com veemência, desafiando-o a dizer as palavras
que me fariam perder totalmente o controle. Ele não faz ideia da real
intenção desta missão, além de destruir com a Luxury, pretendo destruir
aqueles que feriram Baker e proporcioná-los uma morte dolorosa.
Passear no ninho da Luxury com a principal atração em mãos é
como tentar caminhar no corredor da morte. Não posso simplesmente lidar
com o objetivo de matá-los e ainda mantê-la em segurança, isso vai além do
meu controle. Não sou capaz de manter a minha raiva sob controle quando
finalmente encontrar aqueles que tiraram de mim o que sempre me
pertenceu, não quando ainda estou tentando mantê-la longe de seu alcance.
Não é um segredo que Baker está mais forte e confiante do que
algum dia eu a treinei para ser, confio absolutamente no que sei que ela é
capaz. Sei que ela pode nos surpreender, mas também pode destruir a porra
do meu coração se eu tiver que assistir a algum desgraçado tocando em
algum fio de cabelo seu.
Definitivamente não. Isto está fora de cogitação. Preciso me manter
na linha e controlado, e o fato disso ser o contrário do que sou capaz de
fazer em sua presença apenas aumenta as razões para que a resposta
continue sendo não.
— Não? — Baker me questiona, o tom sarcástico brincando em sua
voz. — Você não pode me controlar, já não é o suficiente o que você fez
com a minha vida? — Um riso amargo lhe escapa quando me encara com
seus olhos brilhantes e furiosos.
Silêncio.
— Cristo! — Lexie resmunga, cobrindo o seu rosto com a palma de
suas mãos.
Hyuk suspira fortemente, negando com a cabeça quando encara
Williams brevemente.
Meu coração adota uma velocidade intensa dentro do peito.
— O meu voto é não. — Revela, sem rodeios. — E Baker, pelo
amor de Deus, estamos fazendo isso por você, então abaixe a merda do tom.
— Hyuk explode, encarando Baker ao revelar mais do que ele tinha
permissão para fazer.
Seus olhos se arregalam quando ele se dá conta de que falou demais,
e quando seus olhos miúdos encontram com os meus, não pude fazer nada
além de fulminá-lo com toda a força que há dentro de mim.
— O quê? — Baker parece confusa. — Por mim?
Williams baixa o olhar, compreendendo o que está acontecendo
aqui. Lexie mordisca os lábios no mesmo instante em que sua ficha parece
cair. Todos nesta sala, no fundo, sabem exatamente o que pensar a respeito
da revelação de Hyuk.
Ninguém diz uma única palavra, a tensão do lugar provoca uma
agonia insana dentro do meu peito e eu sei que não há uma saída fácil para
me livrar da situação. Ela descobriria a verdade e por mais que eu odeie a
maneira de dizê-lo, eu sei que em algum lugar dentro do seu peito, ela sabe
exatamente o que pensar a respeito.
— Então é isso? De repente, todos ficaram mudos?
Mordo os lábios, encarando-a com olhos cuidadosos.
Ela sorri amargamente, a descrença exposta no momento em que ela
cobre a testa com a palma de sua mão e apoia o seu corpo na mesa com a
mão livre.
Com um olhar sugestivo, encaro Williams por alguns segundos
antes de gesticular em direção à porta. Esta é uma conversa na qual eu não
pretendo alimentar uma plateia, eu preciso lidar com Baker sozinho, e após
uma semana do ocorrido, mantê-la aqui em absoluto silêncio está fora de
cogitação.
Entendendo o recado, Williams acena em concordância antes de
chamar a atenção dos outros e juntos, saem do escritório e nos deixam a
sós.
Quando ouço a porta se fechar, me aproximo da garota encostada na
mesa, gentilmente levando uma das mãos ao seu rosto, onde ergo o seu
queixo o suficiente para fazê-la olhar diretamente para mim.
A fervura de sua pele em contato com o meu toque faz o meu corpo
estremecer e eu nunca vou me acostumar com o poder que Baker possui
sobre mim. Ela pode me arruinar em um estalar de dedos e ainda não
descobriu isto.
Quando seus olhos azuis encontram os meus, acaricio o seu queixo
lentamente, espalhando um rubor vermelho de sangue pela a sua pele clara.
Ela não reclama, no entanto, e eu não posso negar o quão linda a sua pele
fica com resquícios de sangue.
— Eu não fazia ideia do que haviam feito com você — Sussurro,
sendo sincero em cada palavra. — Eu realmente acreditei que você estava à
salvo, me entende?
Os seus olhos brilham, e por mais que eu queira acreditar que ela me
repudia, seus olhos dizem o contrário. Ela sequer se afasta do meu toque. É
nítido o quanto o nosso toque tem o poder de curar e matar. Nunca
saberemos como controlar sua imensurável força.
— É difícil compreender, eu sei. Mas, olhe para mim, amor, você
realmente acha que eu permitiria que alguém além de mim arruinasse você?
— Meu olhar busca o seu com desespero, mal posso respirar.
Baker engole em seco, erguendo o queixo para encarar-me quando
uma de suas mãos friamente afasta a minha mão do contato de sua pele.
Imediatamente sinto falta da sua pele fervente, no entanto, não protesto
quando ela balança a cabeça negativamente.
— Isso não muda o fato de que você desapareceu por três anos. —
Cospe. — Não muda o fato de que você matou a minha mãe.
Nego com a cabeça, repousando uma das mãos próxima a sua, na
mesa, inclinando o meu corpo para a frente, em sua direção.
— Desapareci por três anos porque estava preso, princesa. Não acha
que eu já paguei pelos os meus pecados? — Eu a pressiono, prendendo o
seu corpo ao redor do meu.
Baker franze o cenho, curiosa ao ouvir as minhas palavras.
Não era a minha intenção revelar a verdade à ela, não enquanto não
for o momento. Quero que ela possa me amar com todos os meus defeitos e
pecados, se ela for capaz disto, então porra, eu poderia levá-la até o céu e
inferno ao meu lado sem que um único ser mortal ou divino interfira
naquilo que nos mantém unidos.
Baker precisa enxergar além da caixinha, precisa enxergar o que está
à sua frente. Quando ela o fizer, não vou mais precisar dizer uma única
palavra referente ao que a faz repudiar a minha existência. Ela jamais
acreditará em suas próprias palavras quando o seu corpo dizer totalmente o
contrário daquilo que ela pensa ser real.
— Você esteve na prisão? — Ela questiona, sua voz baixa e sexy. —
E não se engane, mesmo que você reze a Deus de joelhos por mil anos, os
seus pecados não serão perdoados.
Me aproximo, sussurrando enquanto visualizo sua figura por
completo.
— Se eu rezar a você de joelhos, então serei perdoado?
Baker estremece. Seu olhar fixa nos meus por longos segundos, a
tensão espalhando-se entre nós como um gás tóxico que nos sufocaria a
qualquer instante. Eu não reclamaria se fosse sufocado pelo ar que ela
respira.
— Não sou uma divindade para ser adorada ou rezada.
O meu olhar escorrega até os seus lábios carnudos e rosados, seus
dentes superiores capturando-os lentamente enquanto o meu olhar segue
cada movimento. Sinto a eletricidade em contato com o meu corpo e
preciso conter todos os demônios que imploram para que eu a reivindique
aqui e agora.
— Você é.
Por alguns segundos, Baker devolve o meu olhar perverso, como se
pudesse sentir que está diante do único homem capaz de destruir o mundo
se este fosse o seu desejo. Ela sabe. Sei disso porque é o que seus olhos me
dizem, apesar do ódio que a impede de acreditar.
Então, escolhendo o lado irracional, ela balança a cabeça e desvia do
assunto.
— Você não me procurou porque estava preso. — É uma afirmação,
e ela faz com que eu encare os seus olhos mais uma vez. — Por que eu não
sabia sobre isso?
Avanço um passo, aproximando os nossos corpos e fazendo com
que Baker arrume a sua postura, firmando o aperto na mesa as suas costas.
Noto quando os seus olhos congelam em meus lábios, sua respiração
tensa exposta pela forma com que os seus lábios precisam entreabrir para
respirar com facilidade.
— Porque eu não queria que soubesse. É melhor que você me odeie,
porque eu não sou bom pra você.
Por favor, não me odeie.
É tão difícil de lidar.
Ela ri ironicamente.
— Você estar preso por todos esses anos não diminui a gravidade da
situação. Você espera que eu seja gentil por descobrir que você estava
pagando pelo crime que cometeu? Isso é óbvio, Jason, não significa
absolutamente nada. — Ela revira os olhos, conturbada.
Balanço a cabeça, disposto a abrir mão dos pensamentos impuros
que meu subconsciente planta na minha cabeça enquanto a vejo sorrir.
— Eu sinto muito. — Sussurro, sendo sincero. — Por tudo que você
precisou enfrentar.
Baker nega, virando o seu corpo abruptamente na tentativa de
afastar-se da prisão que eu havia formado ao redor do seu corpo. No
entanto, uma das minhas mãos escorrega para o seu quadril onde o firmo no
lugar, impedindo que ela escape.
Seus olhos encontram os meus, um suspiro irritado escapando de
seus lábios ao se dar conta de que ela não se livraria dessa conversa.
— É fodido da sua parte acreditar que eu não faria absolutamente
nada se alguém sonhasse em tocar você. — Digo a ela, desacreditado. —
Você realmente acreditou nisso? Acreditou que eu permitiria?
Ela dá de ombros, nitidamente incomodada com o assunto.
— Você permitiu, e de qualquer forma eles sairam ilesos, então de
que tudo isso importa?
Firmo o aperto em seu quadril, a raiva subindo em minha espinha ao
imaginar tudo que havia acontecido em minha ausência. Eu deveria ter feito
mais, isso é óbvio, não consigo me perdoar por nada do que poderia ter sido
evitado se tivesse existido um pouco mais de insistência.
O desconforto que Baker sente quando é citado o assunto,
demonstra o quão sensível ainda é para ela. Os desgraçados a
traumatizaram e eu não poderia ter motivos mais concretos para caçá-los
com tanto desespero. Preciso que eles morram, mesmo que isso não seja o
suficiente para amenizar a agonia e a dor que sufoca o meu peito.
— Por enquanto. Estão livres por enquanto. — Eu a relembro.
Ela balança a cabeça negativamente no minuto em que um riso
desconfiado lhe escapa.
— E o que você vai fazer? Caçar um por um como um animal
selvagem? — A pergunta é zombeteira, seus olhos desacreditados quanto ao
que sai dos lábios.
Ergo uma das sobrancelhas, imóvel enquanto ela acha graça no que
estou fazendo. Meus dedos movimentam-se em seu quadril, apertando a sua
carne com suavidade, finalmente interrompendo o seu riso. Baker me
encara seriamente quando o riso é rompido, seu olhar busca o meu com
desespero.
— Ah, meu Deus, você está fazendo exatamente isso, não é?
Bufo um riso, subindo a minha carícia até a sua cintura onde agarro
a sua carne com uma força considerável, o suficiente para erguer o seu
corpo sobre a mesa de Williams e me enfiar no meio de suas pernas. Baker
arfa, seus olhos arregalados acompanhando o movimento enquanto eu
movo uma das mãos até o seu pescoço, afastando os fios de cabelo para
trás.
Então, cautelosamente, me aproximo de seu rosto e deixo um beijo
gélido em sua têmpora antes de espalhar o meu hálito pela a sua pele,
trilhando um caminho até o ouvido.
Eu deveria ser mais rude.
Mais frio.
Um cuzão.
Não deveria tê-la dessa forma em minhas mãos…
— Acredite em mim quando digo que nenhum deles sairá ileso do
que fizeram. — Sussurro, cada palavra sendo dita lentamente. — Vou matar
cada um deles, fazê-los sofrer e implorar pela a vida. Você sente esse
cheiro? — Pergunto, provocando-a.
Ela suspira, seu peito subindo e descendo em uma respiração tensa.
— Que cheiro?
Trilho um caminho até o seu pescoço, inalando o seu cheiro viciante
como um drogado de merda. A sua pele arrepiando a cada contato que
minha respiração faz pelo caminho.
— Do sangue. É isso que você vai ver daqui em diante, meu corpo
coberto de sangue daqueles que causaram dor a você. — Deposito um beijo
suave em seu pescoço, controlando-me o máximo que posso para não
mordiscar, lamber e chupar. O cheiro desta mulher é viciante. Bom pra
caralho.
Sinto quando uma de suas mãos se apoia no meu ombro, seu corpo
finalmente relaxando sob o meu toque.
— E se você tiver me causado dor? Vai se machucar também?
Trinco os dentes, apoiando a minha testa em sua pele ao inalar o seu
cheiro a fim de amenizar a agonia que domina cada célula do meu corpo.
— Então lhe darei as minhas armas para você acabar com a minha
vida. — Respondo, fechando os meus olhos. — Já é doloroso o suficiente
imaginar que eu tenha destruído você, não me diga que eu a machuquei
porque não faço ideia se poderei recolher os meus cacos.
Porra.
O que estou fazendo?
Seu corpo amolece debaixo de mim.
— Você me arruinou.
Suspiro, puxando todo o ar que posso para controlar a minha
necessidade de ter mais dela. Mais do que eu poderia tirar. Mais do que eu
mereço.
— Você me odeia? — Pergunto, desesperado.
Baker firma o aperto em meu ombro, suspirando pesadamente
quando inclina o seu corpo para a frente, causando a colisão dos meus
lábios úmidos em sua pele outra vez. Desta vez, deposito um beijo
demorado ao umedecer a sua pele com a minha língua fervente, incapaz de
controlar tudo o que eu sinto.
Quase penso que algo está mudando. Que a forma na qual ela me
toca é o início de nossa história e que pode haver uma saída para o inferno
no qual fomos jogados sem aviso prévio. Mas me engano. Me engano
quando penso que a mulher a qual possui o meu coração nas mãos, não
descobriria uma forma de destruí-lo tanto quanto eu fiz com o seu.
— Odeio. Eu quero que você morra, e se você não disser ao
Williams que precisa de mim nesta porra de missão, eu vou matar você. —
Seu tom de voz mudou, e só abro os olhos quando sinto um metal frio e
pontudo em contato com a minha barriga.
Bingo, manipuladora infernal.
Afasto-me de Baker, descendo o olhar de seu peito subindo e
descendo, sua barriga sexy, seu quadril feito para as minhas mãos, e o meio
de nossos corpos, onde ela mantém um revólver apontado diretamente para
o meu estômago.
Sua respiração ainda está acelerada, eu sei que nada disso foi pela
mera intenção de me ameaçar, foi real. Ela me quis, eu a quis. Eu ainda a
quero. Ela sentiu, sei disso, mas nem mesmo a força implacável de nossos
desejos são suficientes para anular a força de um ódio mortal.
Meus olhos esfomeados encontram os seus, os meus lábios ardem
pela necessidade de beijar toda a sua pele por mais um único segundo, eu a
quero mais do que posso manter sob controle. A forma como ela sempre
encontra uma maneira de virar o jogo e estar em vantagem, faz com que
todos os meus membros entrem em combustão. Meu Deus, como eu a
quero.
Um sorriso perverso brota nos meus lábios quando Baker força a
boca da arma em minha pele, o metal afundando em minha barriga. Seus
dedos apertam o metal como se fosse pressionar o gatilho a qualquer
momento, e não é segredo que eu posso facilmente virar o jogo e tirá-la da
vantagem, mas que graça haveria nisso?
Ela fica sexy quando acredita que tem tudo sob controle. Nós dois
sabemos o final desta história.
Com um sorriso no rosto, afasto o meu corpo do seu, erguendo
ambas as mãos em sinal de rendição ao encará-la por baixo dos cílios. Ela
mantém sua arma apontada em minha direção, ameaçando-me com o olhar
tenebroso que me é oferecido.
— Não estou brincando, eu vou nessa missão. Isso é sobre mim, e
eu me recuso a ser incapaz de vingar a mim mesma. — Ela salta para fora
da mesa, colocando-se em pé. — Você vai fazer o que eu pedi porque eu
sou insistente, e mesmo que você tente me impedir, vou dar um jeito de
arruinar o seu plano.
Recuando alguns passos, mantenho as minhas mãos erguidas em
sinal de rendição quando deslizo o olhar pelo seu corpo, suas curvas
destacadas e perfeitamente desenhadas por cima do macacão colado. Seu
pescoço descoberto ainda está avermelhado pela força que eu fazia para
controlar o meu peso no lugar, mantendo o controle. Os seus lábios
entreabertos o suficiente para que eu possa enxergar os dentes alinhados são
o claro sinal de que ela está tão tensa quanto eu.
Ela não pode negar, não para mim. Eu estou de olho em
absolutamente tudo que lhe diz respeito.
Eu sempre a vejo.
Com um sorriso no canto dos lábios, umedeço os meus lábios e fixo
os meus olhos em suas esferas tão profundas e gélidas. Se estar sujo de
sangue daqueles que a tocaram me causa um imenso prazer, não imagino
como me sentirei quando vê-la no mesmo estado.
— Justo.
NEW YORK- 2019
ANTES

Quando chegamos ao estacionamento do prédio, Jay ainda mantém


a sua mão agarrada à minha, mantendo-a presa o suficiente ao redor da sua.
Em um movimento sutil, quando chegamos à beira da coluna que separa as
vagas de estacionamento, a sua mão larga a minha e gentilmente me
empurra para trás de seu corpo, como se ele fosse o meu escudo.
Sua cabeça salta para fora da coluna e Jay movimenta a sua cabeça
de um lado para o outro, vagando o seu olhar para ambos os lados. Ele
parece averiguar se o caminho está livre.
— Qual é o problema em apenas sairmos? — Indago, confusa.
Com um movimento rápido, Jay sobe o capuz do moletom à cabeça
e segura a minha mão outra vez, arrastando-me em direção a um dos carros
estacionado no canto esquerdo. Sua mão livre vasculha o bolso traseiro do
seu jeans por dois segundos, arrancando de lá um molho de chaves.
— Você está sendo perseguida, precisamos ser discretos. — Ele
explica, movendo o seu polegar até um dos botões acompanhados da chave
que causa um “plim” familiar seguido de luzes amarelas dos faróis. — Sem
dizer que Williams ficaria puto pra caralho por estar colocando você em
risco.
Ergo a sobrancelha quando abro a porta do carro e me sento no
banco do passageiro conforme Jay faz o mesmo do lado do motorista.
— Williams — Repito o nome. — Eu não o conheço, quem é ele?
Jay leva a chave ao contato fazendo soar o rugir do motor quando
liga o carro.
— Nosso líder. — Diz ele. — Você vai conhecê-lo em breve, não se
preocupe.
Assinto.
Tudo bem, não deve ser difícil cumprimentar o dono de uma
empresa que mata pessoas, protege outras. Vai ser moleza.
— Você disse que Williams vai surtar se ver você me colocando em
perigo. — Repito a sua frase, curiosa. — Então por que está fazendo isso?
Jay sorri, sem desviar os olhos do parabrisas quando enfia a mão no
meio de nós até o que parece ser a marcha.
— Estou em débito com você, se esqueceu?
Eu me calo, aprumando a minha postura no banco de couro e
afundando ambas as mãos no meio das coxas para aquecê-las.
Um sorriso se forma no canto dos meus lábios por sua resposta.
Quero agradecê-lo por ter sido honesto e cumprir com uma promessa, mas
apenas viro a cabeça em direção a janela e observo todo o trajeto feito até
chegarmos ao lado de fora do prédio.
Observo quando passamos por uma rodovia movimentada, repleta
de carros, pessoas, ônibus e ciclistas. A lua brilha no céu e as luzes
amarelas dos postes a fazem ficar o mais elegante possível. No alto dos
prédios, telões expõem alguma marca famosa de creme facial enquanto a
modelo, linda por sinal, posa com o recipiente nas mãos e o aplica no rosto
brilhante e sedoso com a ponta dos dedos.
Apesar da velocidade reduzida, quando passamos por mais prédios,
ergo o pescoço pela janela para continuar observando os telões por mais
tempo. Ouço o riso abafado de Jay ao meu lado, mas não o encaro.
Eu vivo em Nova York desde que nasci e tudo isto ainda é novo para
mim. Nunca fui para nenhum outro lugar que não fosse a minha casa e os
lugares nos quais o meu pai me fazia ir. Sempre foi o meu desejo conhecer
todos esses lugares chiques e elegantes, apesar de sempre estar fora do meu
alcance.
Sempre observei as ruas de Nova York do lado de dentro do carro do
meu pai, mas o fazia com algum sentimento amargurado, como se eu
ansiasse a liberdade, como o meu principal objetivo. Agora, eu vejo como
paisagens maravilhosas assim como são, porque diferente de meses atrás,
agora me sinto livre.
— É lindo — Sussurro, assim quando passamos por um jardim que
divide duas rodovias.
Ele é como vasos enormes com flores vivas e bem-cuidadas, luzes
brilhantes circundam as rosas, piscando em sincronia com as demais leds de
diversas cores diferentes. Um sopro me escapa quando mais adiante, um
grupo orquestral toca lindamente uma melodia na calçada, o som é dividido
entre violinos, violoncelos e piano.
Ao redor do grupo há pessoas retirando notas de seus bolsos e
atirando para a caixa de um violino pousada no chão à frente do piano.
Sem perceber, um sorriso largo brota nos meus lábios.
— Eles são tão talentosos!
Palmas explodem das pessoas que acompanham a apresentação e eu
quis aplaudi-los também, porque aquilo é nada mais do que uma pura arte, a
mais bela delas.
Como um impulso, imediatamente sinto saudade de como me sentia
viva e radiante quando estava atrás das teclas pretas e brancas de um piano.
— Eles sempre tocam por aqui durante as sextas-feiras. — Jay
informa, pisando no acelerador e afastando-nos do grupo. — Posso trazê-la
mais vezes, se quiser.
Viro a cabeça para encará-lo, um sorriso exalando gratidão no canto
dos lábios.
— Eu ia adorar. — Digo a ele. — Obrigada.
Ele não responde, apenas me encara por cima do ombro com um
sorriso leve nos lábios.
Então, sentindo-me mais leve do que poderia estar, ajusto o meu
corpo no couro do banco e repouso às minhas costas, abraçando o meu
corpo enquanto observo os prédios pela janela, da forma que posso, devido
a posição em que estou.
O restante do caminho é silencioso, e não posso dizer nada.
Ninguém nunca tinha sido tão gentil comigo exceto a minha mãe, a
gentileza na qual me é dada neste momento é totalmente nova para mim.
Me sinto tão feliz que sinto a necessidade de agradecê-lo a cada cinco
segundos.
Uma simples coisa como observar prédios e acompanhar orquestras
tocarem em uma calçada de rua não deveria ser uma novidade para mim.
Nova York é assim, repleta de pessoas-zumbis, mas também de pessoas
vivas o suficiente para te fazer sentir a vida tanto quanto elas. É o meu caso,
eu diria. Senti-me tão bem e tudo com algo simples que deveria estar
acostumada a vivenciar.
No entanto, não tive este privilégio.
Jay de alguma forma sabia disso e fez com que me esquecesse de
todas as preocupações por um momento. Eu o admiro muito por isso.
— Chegamos. — Anuncia, despertando-me dos pensamentos.
Ergo o meu corpo, observando o lado de fora.
— Onde estamos? — Pergunto, não enxergando nada além de uma
porta de metal com uma alavanca vermelha do lado direito.
Jay retira as chaves do contato e o ouço retirar o cinto de segurança.
— Você vai ver, vem. — Jay abre a porta, saltando para fora com
rapidez.
Eu o acompanho, abrindo a maçaneta e colocando as pernas para
fora para me equilibrar. Quando ergo o corpo, fecho a porta do carro e
encaro a de metal diante de mim por longos segundos na tentativa de
encontrar uma razão para que eu queira entrar aí. Não acho que ele deve
ser muito diferente de um necrotério, devido a sua aparência externa.
Eu não quero entrar aí.
As paredes são mofadas e o lodo escorre do telhado até a superfície,
espalhando-se pela parede tijolada até chegar ao início da porta de metal,
onde escorre até a maçaneta. Ainda sou capaz de notar gotas do que parece
ser água de esgoto pingar pela ponta próximo aos meus pés. Sim, está
decidido, não vou entrar aí.
De repente, a voz rouca de Jay soa as minhas costas, fazendo-me
olhar para ele por cima do ombro.
— O que diabos você está esperando? — Ele indaga, encarando-me
curioso. — É do outro lado, Clarke.
Ah!
Um alívio percorre o meu corpo na mesma intensidade em que sinto
as minhas bochechas queimarem pela vergonha de ter sido tão patética. É
claro que ele não me faria entrar por aquela porta macabra. Que alívio.
Limpando a garganta, giro sobre os calcanhares ao fingir uma tosse
quando me aproximo de Jay e atravessamos a rua, lado a lado.
— Você não estava achando que eu entraria com você naquela coisa,
não é? — Indaga ele, sinto o seu olhar queimando na lateral do meu rosto.
Claro que sim!
— Claro que não. — Minto.
Sentindo o seu olhar julgador queimar a minha nuca, finjo postura
quando chegamos à frente de uma longa janela vidraça, coberta por cortinas
marsala do lado de dentro, impedindo que tenha ideias do que seja este
lugar.
Forçando a visão, abraço o meu próprio corpo quando olho Jay ao
meu lado, curiosa.
— O que é esse lugar? — Pergunto a ele.
Jay encara as janelas por longos segundos antes de ignorar-me por
completo e caminhar em direção a porta, também feita de vidro, levando o
polegar até o que parece ser uma trava automática, observando-a por longos
segundos. Olho ao redor, notando a diferença da rodovia que estávamos
antes, para essa. A rua é deserta, carros estacionados nas beiras da calçada
possuem resquícios de chuva nos capôs e parabrisas. A noite parece
tranquila.
Um suspiro de Jay chama a minha atenção até ele.
— Vamos. — Ele apressa, agora, com o telefone em mãos.
Antes que eu possa ter alguma reação, o ruído da trava destravando
soa na direção da porta e uma luz verde é acionada na maçaneta, liberando a
nossa entrada. Jay gesticula com a cabeça em direção a porta como um
convite para que eu entre primeiro.
Receosa, mordisco os lábios levemente com os dentes superiores ao
me aproximar lentamente.
A porta de vidro brilha intensamente como se tivesse acabado de ser
polida, o meu corpo até reflete nas vidraças. Pelo reflexo, posso notar o
olhar de Jay seguindo cada um dos meus passos, cautelosamente.
O toldo cor-de-rosa acima de nossas cabeças ecoa um ruído quase
imperceptível causado pelo vento forte o suficiente para fazê-lo balançar
gradativamente. Não faço ideia do que é este lugar, no entanto, a aparência
externa das paredes preenchidas por dois tons de cor-de-rosa, faz com que
ele pareça sofisticado. Talvez seja algum restaurante?
Sinto vontade de perguntar novamente, mas me contenho.
Com a palma da mão, Jay empurra a porta para dentro com
tranquilidade, movendo o seu corpo levemente para o lado, abrindo
caminho para que eu entre. Assim o faço, avançando dois passos para
dentro, observando a escuridão que preenche o salão.
Giro sobre os calcanhares a tempo de ver Jay repetindo o processo,
segurando a porta com a palma da mão enquanto move o seu corpo para
dentro. Quando ouvimos a trava indicar que a porta foi trancada novamente,
abraço o meu próprio corpo enquanto aguardo por alguma resposta de Jay.
Afundando o telefone no bolso frontal do jeans, noto quando o
vislumbre de sua figura escura e sombreada pela escuridão, revela o seu
corpo aproximando-se de mim a passos curtos.
Sem dizer uma palavra, Jay agarra o meu antebraço e me guia salão
a frente. Receosa, ergo o meu braço livre a altura do quadril para me
certificar de que, caso haja algum móvel no caminho não cause algum
esbarro improvável. O seu aperto é firme, e sei que por ter uma pele
sensível, assim que ele remover os seus dedos dali ficarão marcas
temporárias.
Não saber o que está prestes a acontecer faz os meus nervos
remexerem dentro de mim como se estivessem em uma batedeira.
Não que eu esteja esperando alguma tragédia, como um sequestro,
por exemplo. No entanto, mesmo que não seja nada do que se passa na
minha cabeça, ainda assim isso causa alguma coisa. O que de fato não é
bom.
— Jay — Sussurro, minha voz falha e a ansiedade explícita.
Espero por dois segundos, minha respiração acelerada por tamanho
nervosismo.
No entanto, não tenho respostas.
Sinto quando o meu corpo colide contra algum tipo de barreira,
causando uma ardência incomum no meu quadril. Resmungo, soltando-me
do agarre de Jay para acariciar a minha pele por cima do moletom.
— Jay, diga alguma…
Eu me calo quando de repente, as luzes se acendem. Fecho os olhos
por instinto por conta do primeiro contato com a luz, e então pisco algumas
vezes, tentada a mantê-los abertos para enxergar com clareza o local.
Quando forçando a visão, encaro o lugar, meus lábios abrem
levemente pela surpresa que não posso conter. À minha frente, há um
enorme palco de madeira sendo iluminado por um lustre pendurado acima
de instrumentos musicais. A cortina marsala não está completamente
fechada, mantendo ao alcance da minha visão as diversas opções de
instrumentos que há ali.
No centro do palco, mais a frente, há um microfone sendo
sustentado por um pedestal. O chão feito de madeira brilha, talvez até possa
usá-lo como espelho para encarar o meu reflexo.
Girando sobre os calcanhares, viro a cabeça para observar o que há
atrás de mim. Milhares de espelhos expostos em duas paredes de cada lado
do salão refletem as diversas cadeiras marsala enfileiradas como se o lugar
fosse exatamente algum tipo de ginásio teatral.
Sem esconder a minha surpresa, levo uma das mãos à boca para
tapá-la. Meus olhos brilham perante aquela paisagem e por mais que o
cenário me cause um gatilho perturbador sempre que o vejo, essa não é uma
dessas vezes. Eu me sinto bem.
— Jay… — Sussurro, minha voz revelando o quão encantada estou.
— Meu Deus, isso é tão lindo.
Ouço os seus passos cautelosos soarem pelo chão amadeirado, no
entanto, não o encaro para me certificar se está aproximando-se ou
distanciando-se.
— Sim, é. — Concorda, e pela voz divertida posso jurar que ele está
sorrindo. — Eu sabia que você gostaria.
Finalmente o encaro, curvando os meus lábios em um sorriso.
— É incrível — Digo a ele, piscando algumas vezes seguidas. —
Obrigada. — Agradeço, sem conter a felicidade que sinto nesse momento.
Recostado ao palco, Jay cruza os braços e coça o próprio queixo
com dois de seus dedos com um sorriso maroto no canto dos lábios,
parecendo concentrado em me observar.
— Suba. — Sugere ele, mantendo um sorriso travesso nos lábios
enquanto gesticula em direção ao palco.
Meu rosto arde e abraço o meu próprio corpo, quase esbarrando nos
meus próprios pés quando giro sobre os meus calcanhares para encará-lo
frente a frente.
— O quê? — Questiono, minha voz sendo acompanhada por um
riso discreto. — Eu não vou subir.
Jay firma os nossos olhares com intensidade, como se estivesse
ordenando visualmente para que eu faça o que ele pede. Apenas engulo em
seco e levo o olhar até o palco, observando mais à direita, ao lado de um
violoncelo, onde está o piano.
Esfrego ambas as mãos pelos braços quando sinto aquela mesma
sensação de estar libertando os meus sentimentos na música, já que nunca
pude libertá-los de outra forma sem que fosse repreendida. Não que, de
repente, eu tenha me apaixonado outra vez por tudo isso. Acho que vai ser
difícil algum dia retornar a tocar, ou apenas cantar. O meu pai fez o meu
maior sonho se parecer como um monstro de sete cabeças prestes a me
devorar, e apesar de saber que tudo o que um dia ele já me disse não
passava de um plano para me manter escondida do resto do mundo, ainda
sou assombrada por sua voz grossa e autoritária repreendendo as minhas
atitudes, por mais banais que fossem.
Admiro muito todas as boas sensações que a música me
proporcionou, ainda assim, não sou capaz de estar atrás de um piano e não
me lembrar das coisas horríveis que foram causadas pela insistência ao
sonho de ser uma grande artista.
Dizem que sonhos têm um poder de nos levar às alturas, mas quem
é que disse que não pode ser literalmente o oposto disso?
— Qual é o problema, Clarke? — Pergunta Jay.
Ergo o olhar até o seu, observando a sombra quase imperceptível de
preocupação por trás de seus olhos escuros e profundos. Posso ver os cílios
escuros batendo contra a sua pele quando ele pisca, aprofundando os nossos
olhares em uma intensidade que faz um arrepio passear na minha barriga.
— Não acho que eu consiga fazer isso. — Revelo, receosa por
decepcioná-lo. — O meu pai…
— O seu pai é um merda — Interrompe, irritado. — Não pense nele
agora.
Me calo perante a sua interrupção. A fúria imaculada na escuridão
de seus olhos quase parece como se ele não suportasse a ideia de dividir
este momento com um homem tão horrível quanto o meu pai.
Mordisco o canto dos lábios com os dentes superiores, me sentindo
imediatamente envergonhada. A minha pele queima e devo estar parecendo
uma completa idiota neste exato momento. Ele tem razão, eu não deveria
estar presa a um passado que levou-me à ruína e destruiu completamente
tudo de ouro que havia em mim. Eu deveria seguir em frente.
Sou patética por estar presa a um sentimento paterno que não
deveria existir. Ele me vendeu. Vendeu a própria filha em troca de dinheiro,
e apesar de nenhum dos compradores ter colocado as mãos sujas e
carniceiras em mim, ainda assim ele me vendeu. Sujo, horrível e desumano,
é o que ele é.
Então por que raios não consigo fazer coisas que me lembram dele?
Eu deveria mandá-lo para o inferno.
— Você pediu para que eu treinasse você — A voz rouca de Jay me
desperta dos pensamentos. E quando ergo o olhar, o vejo caminhar em
minha direção lentamente, como se fizéssemos parte do mundo selvagem e
de repente, ele fosse um predador, e eu, a presa. — Isso não se aplica
apenas às lutas, você saberá se defender quando abrir mão de tudo que a
prende em um mundo de receio e insegurança. — Explica ele, rondando o
meu corpo lentamente. — Estar aqui não é pura diversão, Clarke, quero que
você suba naquele palco e mostre para mim o que você pode fazer quando
está diante de uma situação difícil.
Engulo em seco, estática, sentindo a sua presença às minhas costas.
— Você precisa entender que quando se é um de nós, situações
difíceis aparecerão de repente, quando menos esperarmos. Não vai haver
tempo para pensar e refletir se é uma boa ideia tomar alguma atitude ou
esperar que alguém o faça para você. Aqui, ninguém além de você, poderá
resolver os próprios problemas. — Vejo sua sombra à minha esquerda com
a visão periférica, e virando a cabeça naquela direção, me deparo com Jay
de braços cruzados esperando alguma reação minha.
O meu peito sobe e desce em uma respiração elevada quando levo
os olhos até o palco e entro em uma eterna disputa visual com a droga de
um piano. Ele não pode devolver o meu olhar, no entanto, parece
intimidador o suficiente para fazer as minhas pernas enfraquecerem.
— E como cantar pode me ajudar a lidar com problemas reais? —
Questiono, a curiosidade exposta no meu timbre.
Jay bufa um riso quando larga os seus braços ao lado do corpo e
caminha em minha direção lentamente, aproximando os nossos corpos. Eu
observo todos os seus passos sem tirar os olhos dos seus, há algo em seus
olhos profundos que servem como imã para os meus.
Quando próximo o suficiente, Jay ergue um dos braços e com a
ponta dos dedos, acaricia a ponta do meu queixo. Meu corpo estremece
juntamente com a onda de choque que se instala na ponta dos meus pés e
tem fim apenas no último fio de cabelo. Abrindo os lábios, expiro
profundamente, libertando o ar preso nos pulmões.
— Não é sobre cantar, Clarke. Apesar de estar louco para te ouvir
outra vez, os planos são outros. — Ele admite, com um sorriso travesso no
canto dos lábios.
Prendo a respiração, erguendo o olhar para encarar os seus olhos
devido a nossa diferença de altura. O seu polegar continua acariciando a
ponta do meu queixo e sinto uma vontade desesperada de relaxar a minha
cabeça na palma de sua mão, com a necessidade de ter mais daquele toque.
Estou surpresa e extremamente envergonhada.
Naquela noite, do concurso, eu sabia que Jay havia me assistido.
Ainda me lembro da maneira determinada na qual ele disse com todas as
palavras que aquela coroa seria apenas minha. Naquela época, isso não
importou. Eu não o conhecia, não dava a mínima para a atenção que havia
ganhado dele. Eu só queria ter o prêmio em mãos. Só estava interessada no
que ele podia me oferecer.
No entanto, agora pareço completamente desesperada para ter essa
atenção outra vez, apesar de parecer que sempre a possuí.
Anos se passaram e Jay ainda está obcecado em me ouvir cantar
outra vez, isso significa que ele gostou do que ouviu?
As borboletas, as malditas borboletas dançam na minha barriga,
todas em uma sincronia perfeita. Eu quero socá-las ao mesmo tempo em
que gostaria de tê-las por mais alguns minutos.
O que é isso?
— E quais são os planos? — Sussurro, deliciando-me internamente
com o toque de seus dedos.
O seu sorriso alarga, revelando os dentes perfeitamente alinhados e
covinhas minimalistas na bochecha lisa. No mesmo segundo, meu coração
pula dentro do peito e arregalo os olhos, sem entender a razão.
— O principal? — Ele congela os seus dedos na minha pele.
O seu toque fervente ainda continua em contato com o local e
imploro mentalmente para que ele mantenha a sua mão exatamente onde
está, apenas não consigo entender a razão para que esteja tão confortável
com o seu toque. Não é suficiente, eu quero mais.
Em um impulso, agarro seu pulso e escorrego com a minha mão até
alcançar os seus dedos, onde com o indicador, movimento ambos os nossos
dedos pela a minha pele, incentivando-o a continuar.
Seus olhos descem pelos meus lábios, nariz, bochecha e queixo,
onde ele acompanha o meu movimento com os olhos cautelosos e
predadores. O sorriso que estica os seus lábios desaparece em câmera lenta,
acompanhando o meu dedo que guia o seu pela a minha pele.
— Há outros?
Jay finalmente ergue o olhar, congelando-o um pouco abaixo dos
meus olhos, especificamente nos meus lábios.
— Vários. — Ele diz de repente, erguendo o olhar até o meu com
firmeza.
Jay aproxima o rosto do meu, afastando a sua mão da minha em um
movimento sutil, no entanto, ela continua apertando a minha como algum
tipo de concha. Abaixando-a lentamente para o lado do nosso corpo, com a
mão livre, Jay afasta os fios de cabelo do meu rosto e os coloca para trás da
orelha antes de levar os lábios quentes e macios até a minha bochecha,
depositando um beijo gentil e demorado próximo ao maxilar.
Meu corpo se aquece, minha respiração acelera e eu percebo que
esse tipo de toque é totalmente novo para mim. Mas se não estivesse
confortável com isso, o meu corpo não deveria estar implorando por mais,
não é?
— E-Então me diz um… — Contenho a arfada de ar, sentindo-me
tensa por tê-lo tão perto.
— Meu principal plano é não arruinar você esta noite.
Meu coração acelera e preciso arrumar a minha postura para que
meu corpo não incline em direção ao seu. Fechando os olhos, eu respiro
fundo e forço um aperto sutil na palma de sua mão, sem enxergar palavras
adequadas para responder a tudo isto.
Meu corpo parece estar sob encanto, congelado de frente para o seu
sem algum controle para me afastar ou aproximar. Eu simplesmente estou
estática, presa no encanto de suas palavras tão benévolas e controversas.
— Você pode me arruinar quando quiser, desde que não o faça com
o meu coração.
Quando abro os meus olhos, eu o vejo aqui bem diante de mim com
os olhos misteriosos e agonizantes. Ele me olha como se sentisse a
necessidade de decorar cada traço de minha face, como se fosse demais
para o seu cérebro assimilar. Exatamente ali, com o toque acendendo uma
chama alarmante em meu peito, nossos olhares se encontram e não é como
olhar para qualquer outro alguém. Não é tão banal. É como se tivéssemos
nascido para observar um ao outro.
Eu o vejo vacilar, vejo nas veias saltadas em seu pulso e na forma
como ele parece ter dificuldades para respirar, fazendo-me acreditar que as
minhas palavras lhe causaram alguma coisa. Alguma coisa na qual ele
parece usar todas as suas forças para conter. Para impedir.
— Sinto muito por ter sido imbecil no outro dia, embora eu odeie ter
que sentir. — Ele revela, baixinho, afastando o seu rosto o suficiente para
me observar melhor.
Percebo que ele se refere ao dia em que ele me chutou após o treino
e por conta disso, quase enxergo o meu semblante cair diante dos meus pés.
— Odeia?
— Odeio ter que sentir muito por querer você. Odeio ter que me
distanciar quando tudo o que eu quero é que seja minha. — Range os
dentes. — Isso faz de mim um monstro? Faz de mim a porra de um doente?
Ele parece perturbado, as veias em seu pescoço pulsam sob meu
olhar e percebo que ele pode sentir toda essa tensão assim como eu. Ao
menos, eu espero que sim.
— Não — Sussurro, sentindo a minha voz falhar no processo.
Então, limpando a garganta, eu prossigo: — Não se eu também quiser ser
sua.
Jay pisca algumas vezes, parecendo surpreso pela minha resposta.
Ele busca o meu olhar, vasculhando até a minha alma a procura de algum
resquício de brincadeira que poderia haver nas minhas palavras. Mas é real,
eu não faço ideia da razão para estar tão extasiada em imaginá-lo em minha
vida, mas realmente é o meu desejo.
Jay faz com que eu me sinta confortável e capaz de todas as coisas
que sinto vontade de alcançar. Eu não poderia desejar ninguém diferente
para estar em minha vida, e não importa como eu faria isso, mas eu o
manteria nela, custe o que custar.
E dessa vez ninguém está me incentivando a nada. Sou apenas eu e
os meus próprios sentimentos.
NEW YORK - 2019
ANTES

Estou em choque, extasiada pela forma com que os olhos


esfomeados de Jay buscam os meus. Seu par de sobrancelhas franzidas, a
mandíbula perfeitamente desenhada, a forma como o seu toque em minha
pele arde como as chamas ardentes. Ele me envia faíscas do seu mais
profundo desejo e eu, sem o mínimo controle do meu corpo, as agarro.
— Você sabe o que está dizendo? — Indaga ele, em um sussurro,
emanando desespero em cada sílaba.
Eu sei?
Não posso evitar, na verdade, eu gosto da forma como Jay faz com
que eu me sinta. Ele me enxerga mais do que qualquer um, e mesmo que eu
consiga negar em gesticulação, o que sinto diria exatamente o contrário.
Não sei exatamente o que estou sentindo por Jay, mas
definitivamente, gostaria de descobrir junto a ele.
— Sim — Afirmo, erguendo o meu olhar até ao seu. — Não sei o
que é o frio na barriga que sinto quando você está por perto, Jay, mas você
pode me explicar. Não pode?
Seus olhos piscam em surpresa, e um sorriso sutil no canto dos seus
lábios chama a minha atenção, covinhas brotam em suas bochechas
enquanto a ponta de seus dedos acariciam o meu rosto, trilhando um
caminho até a ponta do meu queixo. Ele faz tudo com gentileza e calmaria,
como se soubesse exatamente o que fazer em situações como essa.
Ele costuma fazer muitas coisas como essa?
Quero dizer, aquela garota, Cassie, parecia ter intimidade o
suficiente com Jay naquele ringue. Será que ela costuma sentir o mesmo
frio na barriga que sinto quando estou próxima a ele?
Jay é atraente o suficiente para chamar a atenção de várias outras
garotas, não acho que isto seja um choque. No entanto, meio que me sinto
desconfortável por ser uma daquelas que não sabem o que estão fazendo.
Ele me acharia entediante por isso?
— Essa sensação — Jay silencia os meus pensamentos quando
aproxima o seu corpo do meu pela segunda vez, uma de suas mãos
repousando em meu quadril onde brinca com a barra de meu moletom. — É
o que sentimos quando estamos apaixonados. O frio na barriga, a vontade
desesperadora de estar por perto, a dificuldade para respirar… Tudo isso é
paixão, Clarke.
Um nó fervente se instala na minha garganta, e quando Jay reforça o
seu aperto no meu quadril e avança um passo diminuindo completamente a
distância de um palmo que antes tínhamos, eu me atrevo a erguer o queixo,
encarando-o profundamente.
— Mas e você, sente? — Pergunto baixinho, prendendo o seu olhar
em mim.
Jay suspira, e abaixando a cabeça para me encarar, sua mão livre
trilha um caminho desde a lombar até a minha nuca, provocando-me um
arrepio constante. Seus dedos entrelaçam em meus fios de cabelo,
prendendo-os em sua mão e mantendo-me completamente refém de seu
corpo.
— Desde o momento em que eu a vi. — Responde, sua voz rouca
exalando desespero.
Sem perceber, meus lábios se curvam em um sorriso esperançoso,
meu olhar completamente perdido no precipício que são os seus olhos.
Jay gosta de mim.
Não sei o que tudo isso significa, mas estou feliz. O meu peito
queima pela emoção da primeira vez sentindo algo além de admiração por
alguém, isso vai muito além. Eu sinto alguma coisa mais profunda por Jay e
estou disposta a me jogar nessa insanidade para descobrir onde raios este
sentimento me levará.
Pela primeira vez, me sinto eu mesma. Meu pai não está aqui para
me forçar a criar um sentimento por algum garoto, ele não me obrigou a
passar um tempo com quem me livraria de suas mãos, não chacoalhou o
meu corpo e resmungou palavras de desmotivação que fariam com que me
distanciasse do primeiro raio de paixão.
Estou fazendo isto por vontade própria, realmente estou aqui, nos
braços de Jay, porque eu quero estar.
— Você tinha razão. — Eu sussurro, relaxando a minha nuca sob o
seu agarre no local. — Me ajudou a ser alguém. Meu pai não me
influenciou a gostar de você, até acho que ele me mataria se notasse uma
aproximação a um garoto por menos de quinhentos metros. — Apesar das
circunstâncias, uma risada bufada escapa pelos meus lábios.
Jay sorri, revelando as covinhas extremamente atraentes.
— As circunstâncias mudaram, Clarke, agora sou eu que o mataria
se o visse a menos de cinco mil quilômetros de distância de você.
Sorrio no segundo em que fecho os olhos, contemplando a sensação
de seus dedos adentrando os meus fios de cabelo e levando o meu corpo em
direção ao seu lentamente. Posso sentir o ar quente de sua respiração em
meu rosto, e apesar de estar aquecida o suficiente sob o calor do seu corpo,
um arrepio frio como o Alaska percorre o meu corpo.
O que acontece agora?
Eu não faço ideia do que desejo, mas posso afirmar que me afastar
não está incluso no pacote. Jay está despertando algo desesperador dentro
de mim, a loucura para ter mais de seu toque. Para conhecer a paixão de
perto.
— Você vai me beijar? — Pergunto, abrindo os olhos com
dificuldade para encará-lo.
Jay está próximo demais, seus lábios a poucos metros de distância.
Sua cabeça inclinada, seus olhos fixos nos meus lábios perante os meus
sussurros. Ele parece tão hipnotizado quanto eu.
— Você quer que eu te beije?
Assinto, inclinando a minha cabeça em direção ao seu toque. A
ponta de seus dedos acariciam o meu couro cabeludo provocando uma
sensação relaxante no local, é viciante.
— Sim — Levo uma das minhas mãos ao seu rosto. — Por favor. —
meu sussurro se parece com uma petição desesperada, enquanto eu acaricio
o canto de sua boca com a ponta dos dedos, meu olhar preso nos lábios
carnudos e úmidos.
Jay quebra a nossa distância quando agarra o meu quadril com
brutalidade, colando os nossos corpos com necessidade. Os dedos
emaranhados em meus cabelos puxam o meu rosto para a sua direção e
quase deixo de respirar quando Jay inclina a sua cabeça e a mergulha em
meu pescoço.
Arfo quando sinto o primeiro contato de seus lábios quentes na pele
sensível, não tenho outra alternativa senão fechar os meus olhos e trilhar um
caminho desde as suas costas até os seus fios cacheados com os dedos.
De repente, Jay não está sendo tão gentil. É como se ele estivesse
libertando aquilo que esteve preso há muito tempo. Sua boca deposita
beijos suaves, porém intensos, por toda a extensão da minha pele. Seus
dedos puxam os meus fios com certa agressividade e o meu quadril parece
uma massa de modelar em suas mãos. Ele o puxa, aperta e acaricia, tudo
com desespero e intensidade. Então ele repete o mesmo processo de novo e
de novo, até que seja impossível manter as minhas pernas firmes.
— Você não sabe… — Jay sussurra, sua voz carregada de
descontrole enquanto seus lábios maltratam o meu pescoço. —, o tamanho
do seu erro em permitir que eu toque você.
O seu agarre em meu quadril muda a rota até a minha cintura,
fazendo uma pressão no local que quase faz com que eu erga as minhas
pernas para entrelaça-las ao redor do seu corpo.
Já posso sentir as borboletas batendo as asinhas no meu estômago,
minhas pernas parecem ter perdido a habilidade de sustentar o meu peso no
chão. Meu subconsciente grita para que eu quebre a nossa distância e cole
os nossos lábios, mesmo que eu não tenha a mínima ideia de como o fazer.
Isso é paixão?
Meu Deus, seja lá o que for, é indiscutivelmente bom.
— Não é um erro, não quando tudo parece tão certo — Digo a ele,
meus lábios próximos ao seu ouvido.
O corpo de Jay estremece e, quando sinto a mordida suave e
agressiva em minha pele, sei que também existem borboletas em seu
estômago. Elas fazem com que percamos a habilidade de controlar as
nossas ações. Eu mal me reconheço quando entrelaço os seus caracóis em
meus dedos e os agarro com força, causando outra mordida na pele do meu
pescoço. Desta vez, tenho certeza que ficará alguma marca no lugar.
— Você não entende — Jay afasta o seu rosto do meu pescoço em
um rompante e a minha única alternativa é abrir os olhos para encará-lo. —
Nós não podemos. Você não merece isso. Eu não te mereço.
Faço uma careta, aprofundando os nossos olhares a fim de encontrar
algum vestígio de que aquela poderia ser mais uma de suas brincadeiras. O
que o faz pensar algo dessa dimensão?
Quem o feriu ao nível de fazê-lo temer a própria felicidade? A estar
habituado a uma vida solitária?
Seus olhos estão fixos nos meus, suas mãos largam o meu corpo e
quando recua um passo para longe percebo que, seja lá quem o fez, obteve
sucesso na missão.
— Você… Está falando sério? — Pergunto, tentando contornar a
situação. — Por que você está fugindo da própria felicidade?
Abraço o meu próprio corpo, na tentativa de amenizar o
constrangimento.
Ele me observa atentamente, vejo um tipo de brilho surpreso através
de suas íris. Não é tão difícil ligar os pontos. Uma vida ruim causa feridas
que embora sejam invisíveis, doem igualmente.
Eu sei do que estou falando.
Envergonhada, recuo alguns passos e busco interpretá-lo. O quão
ferido ele está?
Quão grande será o meu esforço para curá-lo?
— Não se puna… — Peço, vendo-o sorrir como se estivesse
sugerindo o impossível.
— Eu me sinto culpado por estar apaixonado por você. Quero me
punir por isso. — Diz ele, seus olhos cautelosos encarando os meus. — Isso
não deveria acontecer. Não há espaço para mim no seu mundo.
A minha garganta seca e o meu corpo congela porque, apesar de ter
se encerrado um daqueles momentos em que nós revelamos a verdade
referente aos nossos sentimentos, essa é a primeira vez que Jay diz em voz
alta que está apaixonado por mim. Quero sentir raiva dele por me rejeitar,
por me chutar outra vez e não se importar com a forma com que eu me sinto
mas, ainda assim, meu coração palpita com a sensação de ouvi-lo dizer
mais uma vez sobre os seus sentimentos.
— Então não se culpe. Não há nada de errado em gostar de alguém.
Meu corpo se aquece e, de repente, o frio lá fora parece ter
desaparecido.
— Eu não gosto. Essa palavra não chega nem perto do que sinto.
Você deveria sentir medo. Deveria fugir antes que eu coloque as minhas
mãos em você. — Se aproxima, seus braços balançando pelo ar conforme
gesticula coisas sem nexo.
Inclino a cabeça, examinando-o.
— Não vou fugir de você.
Jay sorri, conturbado ao ouvir as minhas palavras. Então ergue o seu
olhar, desafiando-me quando assente, como se estivesse pensando “é, tudo
bem, vamos ver se você é tão durona assim”.
— Eu sou filho de um cara fodido que sofreu por toda a infância, fui
maltratado e espancado. Meu pai fazia questão de pagar colégios caros pra
mim porque o prazer dele era assistir o filho apanhando para mauricinhos
herdeiros. — Cospe ele, sua voz exalando agressividade, porém aquilo não
me assusta nem um pouco. — De repente, ouvi algum idiota engrandecer a
própria filha que sequer havia nascido. Fiquei obcecado por isso, queria
salvá-la de um futuro cruel como o meu. Poupá-la de um sofrimento. — Jay
balança os ombros, irritado.
Minha respiração aumenta o ritmo e me concentro em ouvir
atentamente tudo o que ele me diz, porque embora esteja irritado ou
aborrecido, é a primeira vez que o homem se abre comigo e me permite
conhecê-lo além do que vejo dentro daquele prédio, ou talvez do que Kelly
diz a mim. Este é apenas ele, dizendo o que quer dizer. Tenho muito a
rebater, mas com certeza o farei depois que ele libertar o que tem que
libertar. Não ousaria interrompê-lo.
— Embora ele não falasse de você, ainda serviu para que eu a
encontrasse nas mesmas condições. Eu a salvei. Apenas para roubá-la para
mim. — Exclama, de repente, fazendo os meus olhos arregalarem e
espasmos correrem pelo o meu corpo. — Você tinha doze anos, estava em
um colégio e agia como uma criança, fazia nojeiras e era escandalosa. Eu
tinha quinze, e estava observando você de longe, perdido nos seus olhos
que são tão malditamente azuis, no seu jeito retraído e na forma como você
parecia ver vida até no que estava morto.
Engulo em seco, meus olhos arregalados enquanto nego devagar
com a cabeça. Quero perguntar como tudo isso aconteceu, mas ele
simplesmente corta qualquer linha de raciocínio que eu possa construir. A
confusão me abraça, e tudo o que quero é me livrar dela. O que tudo isso
quer dizer?
— Eu via você feliz quando recebia abraços e beijos da sua mãe,
mas também via você triste e encolhida pelos cantos quando era rejeitada
pelo seu pai. Eu via tudo. E me enxergava em você. — Jay aproxima os
nossos corpos, apertando ambos os meus braços com as mãos. Não me
movo. — Conheço você há mais tempo do que imagina, aquela noite no
concurso não foi a primeira vez que a vi.
De repente, fica difícil manter o meu cérebro funcionando.
— O quê?
Ele…
Meu Deus. Isso realmente é verdade?
Porque se for… As peças finalmente começam a se encaixar, e se
Jay realmente me conhece como está dizendo, sabe que sou inteligente o
suficiente para conseguir desvendar tudo o que está me dizendo. Aquela
noite, no concurso, ele me deu muitas pistas de que eu estava fazendo
acordos com alguém que eu não conhecia. Mas se ele estava lá para me
ajudar, significa que ele já sabia alguma coisa sobre mim. Merda!
Significa que ele quis me ajudar porque sabia a importância que
tinha para mim.
Ele realmente sabe mais coisas do que posso imaginar. Isto explica
também porque anos depois acordei em uma cama confortável em um
prédio rústico no meio do nada. Ele me sequestrou, mas também me salvou.
Jesus, ele realmente está falando sério…
Eu a salvei. Apenas para roubá-la para mim.
Levo uma das mãos à boca, sem esconder a surpresa que me atinge
como um soco na boca do estômago.
— Você…
Jay suspira, seu aperto intensifica em meus braços.
— Viu só? Você está com nojo de mim. — Seu par de olhos brilha
em frustração. — Se quiser fugir, fuja. É sempre assim, no fim das contas.
Balanço a cabeça, livrando-me de seu toque ao recuar alguns passos,
Jay gesticula em direção à porta por onde entramos, indicando a saída. Eu
vejo em seus olhos o quanto ele parece ferido por supor que eu fugiria,
mesmo que ele mal esteja olhando em minha direção para não expor sua
vulnerabilidade. Me afasto, minhas costas batendo contra a borda do palco,
avisando-me de que não há mais para onde ir.
As veias em seu pescoço pulsam em conjunto, seu semblante se
torna nada mais do que uma máscara feita por traços fisionômicos muito
diferentes do que sempre esteve visível aos meus olhos. Há uma manta
dividindo minha opinião sobre ele, pois nunca imaginei que haviam tantas
razões por trás de suas ações relacionadas a mim, não vou negar, é
assustador pensar que tenho reinado em sua cabeça quando sequer o
conhecia. Mas existe um outro lado, o que diz que quando eu mais
precisava ser vista, ele me via. Quando precisei de socorro, quando precisei
ser acolhida, sempre foi ele que esteve lá.
Sinto medo de cometer um grande erro, sinto que posso estar
cavando a minha própria cova, mas me concentro em enxergar um lado da
manta que me ajuda a compreendê-lo. Quero ouvir tudo o que ele tem a me
dizer, quero entender as suas razões e principalmente, não quero ter que
desapegar do frio na barriga que Jay desperta em mim.
— Não vou fugir de você. — Ergo o pescoço, transmitindo firmeza
no que digo.
— Você está segura longe de mim. É assim que deve ser.
Estou definitivamente assustada. Isso significa que nada foi por um
acaso, ele estava naquele concurso porque estava me seguindo, ele me
sequestrou porque tinha uma obsessão maluca em me ter por perto, me deu
um teto, cuidou de mim, me ensinou coisas… Tudo isso porque era o que
ele queria ter tido em sua infância quando mais precisou?
Eu não estava errada, afinal de contas. Marta me deu pistas de que
Jay havia tido uma vida ruim e eu estava esperando um momento adequado
para perguntar diretamente a ele, mas há uma parte dentro de mim que se
alegra por ter sido ele a dizer. Por não ter beijado os meus lábios sem me
dizer a verdade.
Se ele me dissesse tudo isto quando já tivéssemos passado desta
fase, provavelmente eu fugiria desesperadamente, acreditando que seria
sequestrada e mantida em cativeiro por anos e anos. Mas ainda assim, me
sentiria traída. Mesmo que quisesse compreendê-lo, me sentiria quebrada, e
mesmo que quisesse perdoá-lo, eu teria medo. Mas agora? Agora eu confio
nele, por abrir o seu coração, por me dizer a verdade, por ser assustador na
mesma intensidade que um completo maluco. E ainda assim, estar
preocupado com a forma com que me sinto.
— Você não é um monstro, sinto muito que tenham te intitulado
como um. — Finalmente digo a ele, meus lábios tremendo pelo nervosismo.
— Até mesmo os vilões possuem um lado oculto da história. E eu vou ouvir
o seu, apenas pare de me afastar.
Jay ergue uma das sobrancelhas, como se estivesse surpreso com a
minha resposta.
— Clarke. — Jay ergue a palma de suas mãos, cauteloso, de
repente. — Eu sou o que sou. Não procure justificativas nisso, para não se
frustrar. Porque não há uma.
Encolho o meu corpo, tentando de todas as formas desviar o meu
olhar do garoto à minha frente. Nunca perguntei diretamente a sua idade,
mas se ele tinha quinze - como disse - enquanto me observava aos doze,
significa que Jay é três anos mais velho. O que, definitivamente, me assusta
ainda mais devido às circunstâncias.
Quero dizer, ele acabou de revelar que praticamente tem sido como
um stalker durante todos esses anos, me seguindo, fascinado ou algo do
tipo. Eu deveria, tecnicamente, estar com medo. Mas apesar de tudo, ainda
quero que ele me conte mais, que me diga tudo sobre a sua vida e o que
raios aconteceu com o pai deplorável, mas os olhos esfomeados e quase
arregalados que ele lança em minha direção, fazem-me cogitar a
possibilidade de correr o mais rápido possível até a porta, embora eu
soubesse que não o faria.
— Você foi quebrado? — Pergunto baixinho, apesar de imaginar a
resposta, observando os seus olhos acompanharem os meus.
Jay pisca, vasculha meus olhos, desvia o olhar, suspira, e só então…
Após longos minutos, é quando o seu silêncio responde a minha pergunta.
Toco o seu rosto suavemente, trazendo o seu olhar de volta para o
meu enquanto me vejo sendo arrastada para sua imensidão de traumas
ocultos.
— Não há nenhum problema em ser quebrado — Digo a ele. — Eu
posso recolher os seus cacos enquanto você recolhe os meus.
Jay parece conturbado, seus olhos brilham sob as luzes cristalinas do
salão, seu corpo colado ao meu, suas mãos trilhando um caminho desde os
ombros até a minha cintura, onde apertam com firmeza, parece que ele
sente a necessidade de confirmar se realmente estou aqui. Se sou real.
Encaro os seus olhos, sussurrando baixinho:
— No fim, podemos nos encaixar de novo.
Seus lábios inferiores se curvam em uma linha fina, seus olhos
escurecem a cada carícia feita em minha pele.
— Você não sabe quem eu sou. Não tenho conserto.
— Então me diga quem você é.
Jay baixa o olhar, encarando o chão por um instante.
— Não sou um cara legal, afinal, mato pessoas para proteger outras.
Mas eu quero que isso fique claro para você. — Diz. — Esse é o meu
trabalho, eu sou um assassino. Já matei muitos caras, todos ruins e que
mereciam estar a sete palmos da terra, mas também resgatei muitas garotas
como você.
Umedeço os lábios, prestando atenção em cada palavra dita por ele.
— Nem sempre tive sucesso, não consegui evitar que algumas
fossem tragicamente traumatizadas por um abuso. — Ele fecha os olhos,
parece que dói assumir o resultado. — Mas alcancei você primeiro do que
eles, e nem fodendo vou me permitir falhar outra vez.
Estou confusa demais para digerir tudo o que ele diz, mas quero
acreditar que as intenções são boas. Jay me salvou, sabe-se Deus onde eu
estaria se ele não tivesse sido um louco depravado ao me resgatar daquele
colégio, eu estaria sendo espancada e o pior, seria perseguida como se fosse
uma ameaça para aqueles adolescentes.
Eu não merecia nada daquilo, no fundo sei disso, e Jay me trata
como se pudesse me oferecer o contrário do que tive até o momento. Quero
acreditar nele e que jamais seria capaz de me machucar, porém estou com
medo. Medo de ser enganada, talvez. Ou então, medo de que ele possa me
proporcionar ainda mais terror, embora eu tema que meu verdadeiro terror
seja não tê-lo em minha vida.
— Diga alguma coisa… — Sussurra, sua testa apoiando-se na
minha com gentileza, porém, desesperado. — Por favor.
Eu fecho os olhos, extasiada com a fragrância de seu perfume suave
e amadeirado.
Quero saber o que pensar e o que dizer, mas não faço ideia de por
onde começar. A verdade é que não é uma novidade que Jay mate pessoas,
ele não pareceu muito gentil quando afirmou que mataria o meu pai, e eu
confiei fielmente em sua promessa de que o faria. Isso não me assusta, a sua
profissão… Não me assusta. Ele a usa para o bem, e chego a sentir mais
borboletas voarem por todo o meu corpo quando o imagino resgatando
ainda mais garotinhas de suas prisões.
É como se este fosse mais um motivo para me render a paixão que
sinto por ele.
Eu não me importo com as vidas que se vão, não aquelas que
causaram dor à garotas que apenas almejam viver a vida com libertação. Eu
quis isso durante anos, e apesar de não ter sofrido metade do que podem
sofrer, eu fico feliz que Jay trabalhe para proporcionar a elas exatamente a
liberdade que não lhe foram concedidas por longos anos. Eu sou uma das
garotas que sonham com isso, e por entender exatamente o que é a dor de
viver em uma gaiola, não dou a mínima para o sangue que Jay tem em suas
mãos.
Ele é mais do que eu imaginei. Deus, me pergunto se ele realmente
existe.
Ainda estou assustada por estar sob o seu olhar desde a minha
infância, sendo o centro do que ele poderia almejar. E, apesar de não ser fã
da forma como ele chegou até a mim, o que posso dizer é que estou
contente por nossos caminhos terem se cruzado. Ele me salvou, e eu não
consigo enxergar um único motivo para não me derreter aos seus pés.
Sim, isso é paixão.
— Você se considera um monstro por isso? Por reacender a
esperança para garotas quebradas?
Jay nega.
— Eu sou um monstro por tantas outras razões. Se eu dissesse, você
fugiria.
— Sua escuridão não me assusta. — Finalmente digo a ele,
conectando os nossos olhares enquanto movimento as minhas mãos,
levando-as a cada lado de seu rosto perfeitamente desenhado. — Você foi
sincero comigo, e eu agradeço por isso. Mas não me afaste quando estiver
com os lábios a poucos centímetros dos meus. Isso é cruel.
Ele sorri, enquanto seus olhos buscam os meus com certa surpresa,
talvez ele esperasse que eu surtasse e o chamasse de maluco, e eu realmente
quase o fiz. Mas isto foi antes de enxergar o que realmente queria me dizer.
Ele se abriu para mim, foi apenas… Ele. E simplesmente não consigo
conter a chama que cresce a cada segundo em que estou próxima a ele.
— Não quero quebrar você. — Sussurra, puxando-me em sua
direção.
Acaricio o seu rosto, circulando o seu lábio inferior com a ponta do
polegar. Meus olhos escorregam até o local, fascinada com a cor
avermelhada que cobre a sua boca entreaberta, seu hálito colidindo contra o
meu rosto.
— Só não quebre o meu coração. O resto eu posso consertar. —
Contra-argumento, impedindo que ele responda algo à altura.
Deslizo o meu polegar pelo seu lábio, tentada a aproximar o meu
rosto e acabar com a distância que separa a sua boca da minha. Eu quero
senti-lo, provar de sua boca à minha. Quero que ele seja o primeiro com
quem descobrirei o que é ser uma mulher. Quero descobrir qual é a
sensação de ser beijada enquanto carícias percorrem pelo o meu corpo,
meus pensamentos me levando à Marte enquanto viajo nos seus toques.
Ainda sou capaz de sentir as suas carícias em meu quadril, seus
beijos em meu pescoço, suas mordidas, Deus… A forma como a sua língua
quente se espalhava pela a minha pele. Eu estava desesperada por mais, e
quero que ele seja capaz de me proporcionar exatamente isso outra vez.
Sua respiração elevada me mostra que ele anseia pela mesma coisa,
e não consigo entender a razão para que ele esteja demorando tanto. Será
que ele precisa de uma afirmação minha? Uma atitude? Um incentivo?
Céus, eu não sei como dar mais sinais. Sequer me lembro do motivo
de estarmos aqui.
— Jay… — Imploro, minha voz soando rouca o suficiente para
sentir o seu corpo estremecer.
Ele pressiona o meu corpo contra o palco, sua carícia no meu
quadril intensificando a cada respiração que se esvai de nosso pulmão. Por
impulso, fecho os meus olhos e enrosco os braços ao redor do seu pescoço,
acariciando a sua nuca.
— Se eu quebrar você… — Ele sussurra, uma das mãos
mergulhando ao redor dos meus cabelos, erguendo a minha cabeça o
suficiente para encarar os seus olhos famintos encarando-me com puro
desejo. — Eu serei o único com permissão a fazê-lo, prometo a você.
Essa é a última coisa que ele diz antes de quebrar a distância de
nossos rostos, colando nossas bocas com rapidez. Congelo, sentindo a
pressão de seus lábios quentes sobre os meus e uma eletricidade vaga pelo
meu corpo no segundo em que Jay puxa os meus cabelos, quase como se
estivesse tentando se controlar para não ir mais além.
Eu reforço o meu aperto em sua nuca, ficando na ponta dos pés para
sentir mais dos seus lábios carnudos contra os meus.
Um rosnado escapa de Jay quando ele parece se dar por vencido.
Uma de suas mãos escorrega até a parte inferior da minha coxa onde a puxa
com firmeza para cima, erguendo o meu corpo para que as minhas pernas
rodeiem o seu quadril.
Sua mão segue em minha perna, subindo até a minha lombar e
congelando em meu quadril, apertando-o com certa agressividade, porém,
nunca abandonando a gentileza.
Seus olhos estão fechados com força e por falta de experiência,
apenas imito o seu movimento e fecho os meus olhos, permitindo-me sentir
tudo aquilo que tenho direito.
Minhas costas batem com força contra a madeira do palco no
mesmo segundo em que sua língua invade a minha boca. Um gemido sobe
pela minha garganta, mas apenas cravo os meus dedos em sua nuca e com a
outra acaricio os seus cachos agora desfeitos. Minha boca cedendo ao
pedido da sua língua para ir além.
Jesus. Isso é bom.
Meu corpo queima, uma eletricidade vaga desde o último fio de
cabelo envolto pela mão firme de Jay, até a ponta do meu dedo do pé.
Quero implorar por mais, porque finalmente estou me sentindo completa
sob o toque de sua boca, mãos… E absolutamente tudo que o envolve. Ele é
quente, viciante…
Nunca pensei que pudesse me sentir tão bem, tão preenchida, um
fogo corroendo cada órgão e me mostrando que posso sim ser completa.
Não é tarde demais. Jay pode me dar o mundo ou então nós o roubaremos
juntos.
Decido arriscar exatamente o que ele está fazendo, então junto a
minha língua à sua e o provoco, chupando-a com ferocidade. Em resposta,
Jay empurra o meu corpo contra o palco, sua mão escorregando do meu
cabelo e deixando o meu couro cabeludo dolorido pela força que faz no
lugar, então a mantém em meu pescoço, aprofundando o nosso beijo.
Um sorriso me escapa e percebo que ele pode senti-lo quando os
seus dentes superiores alcançam o meu lábio inferior e o puxa entre eles,
cessando o meu riso.
Cristo!
Não tenho tempo para processar o quão bom é o seu beijo e quantas
borboletas saem voando de meu estômago quando Jay respira pesadamente
contra a minha boca, permitindo-me sentir o quanto nosso momento
também o enlouquece. Ele está gostando tanto quanto eu, saber disso faz o
meu coração palpitar contra a minha pele. Dois segundos para respirar é o
suficiente para que Jay esmague a minha boca contra a sua outra vez, desta
vez, sigo o seu primeiro movimento e peço passagem para que a minha
língua o faça ver estrelas assim como ele fez comigo há alguns segundos.
O pedido é aceito, então não perco tempo quando busco a sua língua
com a minha, fascinada em sentir a eletricidade que corre pelo o meu corpo
quando sinto o toque de ambas entrando em sincronia. Jay acaricia a minha
mandíbula com o polegar, pressionando o meu rosto para trás na intenção
de dominar aquele beijo. Não posso negar, ele realmente é bom nisso.
O cheiro de seu perfume se choca contra as minhas narinas e o inalo
profundamente, é bom o suficiente para me fazer cair em seus braços a
qualquer instante. Aparentemente, viciante é uma palavra que combina com
Jay.
De repente, sou surpreendida quando ele mordisca o meu lábio
inferior e o mantém preso em seus dentes por longos segundos, nossas
testas grudadas, ambos em silêncio enquanto nos recuperamos da
adrenalina. Meu coração palpita com força, e temo que tenha desaprendido
a respirar quando larga os meus lábios e inclina a minha cabeça,
mergulhando a sua boca em meu pescoço.
Mantenho os olhos fechados, afundando as minhas mãos em seus
cabelos e jogando a cabeça para trás, extasiada demais para sentir qualquer
receio de lhe dar exatamente o que quer.
Jay deposita beijos por todo o meu pescoço e sua língua maltrata
toda a pele sensível com chupadas suaves. Sei que isso pode causar marcas
no local, mas a forma gentil com que puxa a minha pele não parece um
destes casos. No entanto, suas mãos firmes em meu quadril e mandíbula,
revelam o quanto Jay precisa se controlar para manter-se na linha.
— Clarke — Jay sussurra, sua língua trilhando um caminho até a
minha mandíbula e causando-me arrepios por todo o corpo. — Me prometa
que eu serei o único que poderá causar estes arrepios em você.
Assinto desesperadamente. Sim, quem eu poderia desejar com mais
intensidade? Sim, sim, sim, apenas você.
— Só você, Jay.
Ele suspira, capturando a minha boca de novo. Desta vez, se trata de
um beijo menos agressivo e exalando gentileza. Não há a presença de
língua, mas seus lábios carnudos molham os meus como se houvesse.
Estou viciada. Preciso de mais.
No entanto, ambos congelamos quando o soar do toque de seu
celular faz com que saltemos em um susto incomum. Abro os olhos,
despertando do transe em que seus lábios me colocaram por longos
minutos.
Jay me encara, seus lábios inchados e o cabelo bagunçado. Ele está
uma completa confusão e sei que não devo estar tão diferente. No entanto,
ele consegue ficar ainda mais bonito. Os cachos escorregam até a sua testa,
os olhos profundos e a dificuldade que ele parece ter para respirar…
Acho que tenho uma nova vista favorita. E não é aquela que vejo na
janela do seu quarto em uma noite estrelada.
Seus olhos me encaram com cautela, como se estivesse me
analisando da mesma forma que faço com ele. Seu olhar despenca até os
meus lábios, congelando no local por longos segundos, até que se dá conta
de que o toque insuportável de seu telefone não deixará de nos atrapalhar.
Jay balança a cabeça e leva a ponta dos dedos até os meus lábios,
plantando um beijo suave antes de me soltar no chão e dar uma última
analisada antes de retirar o telefone do bolso e afastar-se o suficiente para
atender.
Abraço o meu corpo ao encostar no palco, encarando-o de soslaio e
me dando conta de que o plano de Jay foi totalmente por água abaixo. Não
me atreveria a subir ali agora, não quando a minha vontade seria de pular
em seus braços e beijá-lo outra vez.
Um sorriso cresce no canto dos meus lábios e levo a ponta dos
dedos até eles, sendo capaz de sentir a dormência do local depois de suas
mordidas intensas. A forma como ele os puxou… Como parecia saber
exatamente o que estava fazendo… Meu Deus, ainda consigo sentir o seu
gosto em minha língua.
Talvez eu esteja sendo uma boba. Minha falta de experiência torna
tudo novo, um território totalmente desconhecido. Talvez viver trancafiada
no mesmo lugar por toda vida tenha um lado positivo.
Pois Jay me mostrará coisas que me trazem vida. Ele vai trazer
oxigênio de volta aos meus pulmões, sei que sim.
— Fale devagar, Hyuk, pelo amor de Deus. Não consigo entender.
— Ouço o seu resmungo alto demais pelo telefone e volto a encará-lo,
curiosa.
Vago o olhar pelo salão, desta vez, notando os quadros artísticos
pendurados no topo das paredes - que não estavam revestidas por espelhos
-, e então o frio começa a brotar em meu corpo outra vez.
— Floyd está onde?! — Exclama. — Está brincando?
Eu mordisco os meus lábios, confusa pela alteração de sua voz e a
forma como ele parece mais irritado do que eu já tinha o visto alguma vez.
Quem estava ao telefone? Quem era Hyuk ou… Floyd?
Quem quer que seja este cara, parece irritá-lo profundamente.
— Sim, tudo bem. — Ele suspira, parecendo conturbado. — Ganhe
tempo, chegarei aí em dez minutos.
Arqueio uma das sobrancelhas, encarando-o com suspeita em meu
olhar.
— Não sei, Hyuk. Faça o melhor que conseguir, apenas o mantenha
com a boca fechada. — Diz ele com rispidez antes de desligar o telefone e
caminhar em minha direção a passos largos.
Abro a boca para perguntar o que está acontecendo e por que ele
parece tão irritado de repente, mas não tenho um único segundo para
questioná-lo antes da sua mão agarrar o meu antebraço e me puxar em sua
direção, me arrastando com facilidade em direção a saída, como se o meu
peso fosse equivalente a um grão de areia.
Franzo o cenho, esforçando-me para me soltar de seu agarre.
Balanço o meu corpo algumas vezes seguidas antes de empurrá-lo e cessar
o meu passo, cruzando os meus braços a altura dos peitos.
Jay me segue com o olhar, impaciente, encarando-me com os olhos
mais frios nunca vistos em seu rosto por mim.
— O que aconteceu? — Questiono, deixando claro que não moverei
um músculo até que ele me dê alguma resposta.
Jay suspira, relaxando os seus músculos ao caminhar em minha
direção. Engulo em seco quando ele se coloca à minha frente e me encara
com veracidade.
— Olha, linda, eu realmente preciso que você me escute agora, está
bem? — Ele sussurra, parecendo se esforçar para ser gentil, apesar das
veias aparentes em seu pescoço anunciarem sua irritação. — Você está
sendo caçada, Clarke, e um dos caras com interesse altíssimo em você está
no nosso prédio. Eu preciso chegar até lá rápido, e realmente facilitaria as
coisas se você confiasse em mim e não fizesse perguntas só por agora, ok?
— Busca o meu olhar, o brilho dos seus olhos desta vez exala fúria, mas
gosto da forma como ele parece se controlar para ser paciente comigo.
Seja lá o que esteja nos esperando, vamos descobrir quando
chegarmos lá. Jay não vai me dizer nada, não por agora, consigo
compreender o quanto ele parece estar irritado. Não é a minha intenção
provocá-lo ainda mais.
Balanço a cabeça, cedendo ao pedido desesperado para que
mantenha a minha boca fechada.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Olhos fechados.
A mente sobrevoando todos os cantos da Terra a fim de esquecer
onde eu estou. E a razão para estar.
O punho dói, os ossos a ponto de saltarem para fora a qualquer
momento por tamanha dormência no lugar. Eu havia socado estas quatro
paredes por tempo demais, ao que parece.
Tudo o que eu queria era ter força o suficiente para derrubar as
portas de puro aço, quebrá-las ao meio e acabar com a agonia que já não
posso mais manter sob controle. Já não tenho noção do tempo, sei apenas
que estou dentro desta solitária fria e suja por mais tempo do que posso
suportar.
É como me sentir sufocado. Impaciente. Desesperado.
Mas, enquanto as lágrimas despencam dos meus olhos, minha
garganta arde por tamanho esforço ao conter soluços dolorosos. Minha
cabeça dói, e eu nem me lembro quando foi a última vez em que estive
debaixo de um chuveiro.
Minhas roupas ainda são as mesmas daquela noite. Meu cabelo
seco está repleto de poeira e duro como ferro. Meu coração bate
enlouquecidamente como se eu estivesse a beira da morte, enquanto
sentado no colchão ao chão, com os joelhos erguidos e a cabeça baixa
entre as pernas, jogo para fora todas as lágrimas dolorosas como lâminas
afiadas o suficiente para abrir a minha pele e arrancar o meu coração fora
com uma facilidade inigualável.
Mas a quem quero enganar?
Acabou. Eu vou morrer aqui, Floyd jamais ousaria abrir estas
portas e permitir que eu aja contra ele outra vez.
E se algum dia ele permitir, pode ser considerado o homem mais
patético de todo o universo, porque eu não pararia até causar o seu
sofrimento e de todos os demais que algum dia, decidiram trabalhar ao seu
lado.
Que se fodam todos. Eles vão morrer. Algum dia.
Quando um soluço se esvai pela solitária minúscula e apertada, me
dou conta que não tem mais volta. Estou quebrado, destroçado e arruinado.
De repente, enquanto me perco no som de soluços que me escapam sem a
porra de uma permissão, me pergunto quando foi que permiti que isso
acontecesse.
Então, como se a ficha caísse em um piscar de olhos, eu soube.
Causei a minha queda quando cego pela necessidade de manter
Clarke à salvo, eu acreditei que poderíamos ser espertos o suficiente para
destruir a Luxury e Marcus Floyd antes mesmo que tivessem a chance de
armar contra nós. Tive esse pensamento patético quando tinha a porra do
dedo sobre o gatilho, pronto para explodir os seus miolos e manda-lo para
o inferno, onde é o seu lugar.
Agora tudo faz mais sentido.
Eu deveria ter puxado o gatilho.
Porra… Eu deveria…
Outro soluço escapa.
Então, com a cara encharcada e o corpo enfraquecido, jogo a
cabeça para trás e contenho um gemido quando ouço o ruído do meu
cérebro chacoalhando dentro da minha cabeça quando ela bate com força
demais contra a parede.
Não uma, nem duas vezes. Mas o suficiente para correr o risco de
quebrá-la ao meio.
Não ouso abrir os olhos. Tenho medo do que pode acontecer se eu
enxergar as cores acinzentadas e o chão de concreto coberto de lodo e
areia molhada. Tenho medo de erguer a cabeça, enxergar a porta de aço
completamente suja, trancada e firme, e então, a ficha de que tudo está
acabado, finalmente caia.
Eu não quero encará-la. Que se foda se isso parece covardia e se
estou sendo um chorão. Eu não quero encarar a realidade.
Foda-se ela.
Ela doí.
Jogo a cabeça para trás outra vez, apertando os olhos e cerrando
os punhos apoiados sobre o joelho. Não importa o quanto parece doloroso
bater com a cabeça contra uma parede de concreto repetidas vezes, nada é
mais doloroso do que a aceitação de que você não passa de um inútil. Ele
sempre me disse isso, e eu não quis acreditar.
Acontece que ele tinha razão, afinal.

Levanto da cama frustrado e impaciente, colocando as pernas para


fora do colchão e acariciando o topo da cabeça com a mão esquerda.
Suspiro pesadamente, afundando o rosto contra a palma da minha
mão livre.
O silêncio em minha volta é ensurdecedor, mas nada nunca esteve
tão barulhento quanto a minha mente.
Odeio me deitar todas as noites e me lembrar dos últimos três anos.
Odeio ter que me lembrar que eles realmente existiram, que não foi apenas
uma merda de alucinação.
Tenho dificuldades para dormir desde a prisão, fechar os olhos e
manter os meus demônios internos sob controle sempre foi o meu maior
desafio, então não costumo dar brecha para me atormentar. É a saída mais
fácil. Parece que tive uma recaída, no entanto.
Abro os olhos, enxergando com dificuldade a escuridão do quarto
iluminado apenas pela claridade da noite que invade o cômodo pelos raios
da janela que não estão cobertos pela cortina blackout.
Sou capaz de ouvir os grilos cantarem do lado de fora e as árvores
balançarem pela brisa forte do vento. Isso significa que estamos perto de
nosso objetivo, deve ser um bom sinal. Apesar de estar frio em WonderFall,
nada é mais congelante do que o alto de uma montanha. Estamos perto.
Ao que parece, quanto mais próximos estamos do nosso objetivo, eu
me sinto ainda mais furioso. Meu sangue ferve e não sei por quanto tempo
mais conseguirei manter os meus demônios enjaulados no meu peito. Eles
batem, berram, queimam a minha pele e destroem o meu interior, tudo com
a ansiedade de serem libertos. O desejo de fazer pagar.
É como se eles estivessem sofrendo. Sobrevivendo de migalhas, até
que sua fome seja saciada com o sangue daquele que está demorando
demais para lidar comigo.
Para ser homem.
Para sair das espreitas, para abrir mão de seus sacerdotes inúteis e
estar frente a frente comigo. Cara a cara com o demônio que ele mesmo
criou.
Aquele que ele despreza.
Vou adorar esfregar na sua cara que realmente foi um erro dos
grandes permitir que eu estivesse do lado de fora outra vez. E, por Deus,
não estou disposto a falhar.
Cansado de me esforçar e lidar com lembranças outra vez, levanto
da cama e alcanço o meu celular, enfiando-o dentro do jeans e abrindo uma
das gavetas do criado ao lado da cama, pegando o meu maço de cigarros.
Cigarro é pouco para saciar a minha necessidade de esquecer do que
me atormenta, e apesar de saber onde encontraria algo mais forte e que
algum dia me ajudou a sobreviver, ando tentando enviar a minha mente para
longe. Algum lugar distante o suficiente que me faça esquecer onde está o
saco de pó que tenho levado comigo para todo lugar, apenas para o caso de
ser necessário.
Ligo o visor do telefone e ao ver que faltam menos de duas horas
para o nascer do sol, visto uma das camisetas de dentro da mala no pé da
cama, antes de guardar o maço e o isqueiro no bolso traseiro do jeans.
Então, abro a porta do quarto e dou de cara com uma escuridão ainda mais
intensa.
O hotel é deserto, a placa com o nome Vegas pisca com dificuldade,
as cores azuis e vermelhas falhando devido a força mínima de eletricidade
que deve estar suportando todas as luminárias. Ou então, ela deve apenas
ser velha, devido às condições precárias dos ferros que a sustentam.
O estacionamento está vazio, exceto pelo nosso carro e não mais de
outros dois.
Me certifiquei de que os demais hóspedes não fossem uma ameaça
para nós, e ao investigar o zelador e a recepcionista, descobri que a dona do
hotel é uma velha senhora de setenta anos. Não foi difícil encontrá-la,
difícil foi, realmente, fazer com que ela parasse de falar todos os
acontecimentos de sua vida desde os vinte e um quando conheceu o seu
falecido marido, e juntos, decidiram criar um negócio próprio. Algo
parecido como manter a tradição viva, mesmo que eles não estejam em vida
para assistir ao feito.
Uma história de tocar o coração.
Para uma senhora que passa vinte e quatro horas de frente para a
televisão, estranhei o fato dela não me reconhecer de imediato. Mas não
reclamei.
Foi o suficiente para me certificar de que os demais hóspedes não
passam de adolescentes rebeldes que vêm todas as semanas para o hotel
afastado da cidade para trepar com as suas namoradas. De fato, não serão
um problema.
Suspirando, desço as escadas íngremes que levam direto ao
estacionamento. O ranger das madeiras velhas soam sob o peso do meu
corpo, mas as desço com rapidez até chegar ao carro de Hyuk, onde encosto
meu corpo contra o capô e acendo um cigarro, meu olhar fixo no horizonte.
As nuvens escuras se espalham e as estrelas brilham no céu. Uma,
em especial, brilha de uma forma em que todas as outras parecem
irrelevantes.
Guardo o isqueiro junto ao meu celular no bolso frontal e levo o
cigarro até os lábios, fechando os olhos ao tragar como se a minha vida
dependesse disso. Posso sentir a fumaça se prender no meu pulmão, corroer
tudo que tem direito e voltar para a superfície, se esvaindo juntamente com
o vento frio. A mudança de temperatura entre ambos se mistura conforme
voam para longe.
Meus olhos pesam pela falta de sono e a minha cabeça dói como o
inferno. E, por mais que me esforce para esquecer que o motivo do meu
peito estar tão apertado está a poucos metros de mim, eu não posso. Não
parece certo.
Baker está no quarto ao lado do meu, dividindo uma cama pequena
e desconfortável com Lexie.
Não foi fácil permitir que ela estivesse aqui, prestes a entrar em uma
confusão ainda maior do que havia enfrentado. Por minha causa.
Porra, não foi fácil permitir que ela tomasse as próprias decisões,
que estivesse pronta, realmente, para lidar com as consequências das
próprias ações. Mas foi fácil acreditar que ela é capaz de lidar com o que
nos enfrentasse.
Confio no que ela pode fazer para salvar a si mesma, confio
plenamente na sua capacidade. Afinal, ela esteve como suspeita oficial de
um homicídio em Nova York há algum tempo, quando matou um
motoqueiro na fronteira, antes de chegar a WonderFall. Ele tentou tocá-la.
Ela se defendeu.
Baker não ficou parada e não permitiu que aquilo a arruinasse mais
uma vez.
Não fiquei surpreso quando Hyuk me mostrou todos os arquivos de
suspeitas e câmeras de segurança, onde mostram Baker enfiando uma faca
de açougueiro no estômago do cara, em seguida, correndo para longe sem
olhar para trás.
Não foi suspeita por muito tempo, pois todas as gravações foram
apagadas de qualquer arquivo policial, por Hyuk. Ela estava livre.
Ainda assim, eu sei do que ela é capaz.
O tempo que passamos juntos há três anos não foi completamente
esquecido. Ela usa de todas as técnicas que a ensinei, aquela gravação foi a
prova. A forma como ela o atacou abaixando o quadril, empurrando o corpo
para a frente a fim de enviar o seu peso para atacá-lo mais profundamente.
Ela ainda se lembra, sei disso. Não ousaria duvidar.
A necessidade de provar a ela que não estou aqui para lhe machucar
ou destruir ainda mais aquilo que ela tenta proteger do resto do mundo, foi
o que impulsionou a minha permissão para que ela estivesse aqui.
Tudo isso é sobre ela, assim como ela disse.
Preciso permitir que ela saiba enfrentar os seus demônios, não
importa o tamanho do medo que sinta dela se ferir pelo caminho. Se
acontecer, estarei aqui para cuidar e lhe curar. Da forma que puder.
Mesmo sendo um homem desprezível.
— Tem mais um?
Viro a cabeça para o lado encarando Hyuk ao meu lado, encostado
no capô e olhando para o horizonte.
Há quanto tempo ele está ali?
Não respondo. Levo o cigarro aos lábios e o mantenho preso ali
enquanto capturo outro cigarro no bolso e o entrego, juntamente ao
isqueiro.
— Sabe… — Ele inicia. Ouço quando o ruído do isqueiro indica
que ele acendeu o seu cigarro. — Você devia dizer a ela.
Eu o encaro por cima do ombro, tragando o meu cigarro, sem dizer
uma única palavra.
— Quando nos conhecemos, não pensei que você seria um cara tão
meticuloso futuramente. — Diz, ainda encarando o horizonte com o cigarro
entre os lábios. — Você tinha aquela postura de quem poderia enfiar uma
faca nos olhos de qualquer um dos mimadinhos que dissessem uma palavra
pra você, mas eu sabia que era só uma armadura de proteção. Você nunca
foi um cara ruim, essa é a verdade.
Quis rir, me lembrando de quando Hyuk e eu treinávamos luta de
rua no mesmo galpão que mauricinhos preconceituosos do caralho
costumavam frequentar para dizer “olha como eu sou fodão”.
— O que eu não entendo cara, é a razão para que você goste tanto
de se punir. Mesmo sabendo que não é o demônio que todos dizem que é.
Desvio o olhar, negando dolorosamente com a cabeça.
— Você viu o mesmo que eu. A culpa foi minha. — Me refiro ao
vídeo, e ele sabe disso.
Sinto o seu olhar queimando em meu perfil.
— Desde que Baker chegou até nós, ela nunca pareceu odiar você
por abuso algum. — Sua voz é dura, repreensiva. — Ela culpa você pela
morte da Eleanor, Jason.
— Mesmo se não me culpasse, Hyuk. Eu me culpo, eu! —
Finalmente o encaro, segurando o cigarro entre os dedos para respirar
profundamente. — Se eu tivesse…
Sido mais rápido. Se tivesse apertado o maldito gatilho…
Engulo o restante da frase.
Nós temos uma amizade forte o suficiente para que possa
demonstrar a minha fraqueza sem muito esforço. Hyuk compreende o que
estou dizendo, não preciso de tamanho esforço para deixar claro o quanto
estou destruído.
A mágoa em minha voz é perceptível, e mesmo que fosse qualquer
outra pessoa no lugar de Hyuk, agora estou fraco demais para limitar as
minhas emoções. Quero explodir o mundo inteiro com tantas emoções,
quero expor o quão dolorosas elas são. Quero me sentir livre do peso. Da
dor. Mas não posso, então apenas me contento.
— Por que não conta a ela? — A pergunta é sincera.
Balanço a cabeça, sentindo o meu peito arder pelo turbilhão de
lembranças que vinham à tona de uma só vez.
— Você tem o poder de consertar tudo na palma da sua mão, Jason.
Ela seria sua, ela te perdoaria. Então por que não conta para ela? — Ele
insiste, pressionando-me na ponta do precipício.
Não respondo.
Não quero dizer em voz alta.
Aperto a mandíbula e contenho a vontade de fugir da conversa.
Hyuk me conhece mais do que eu gostaria de admitir, sabe como entrar na
porra da minha cabeça e revirar os meus miolos, um por um.
— Por que não conta pra ela que você não a matou? Que você tinha
Eleanor como uma segunda mãe, que caiu em uma cilada para que
parecesse culpado e ela o odiasse?
Prendo a respiração.
Solto a fumaça, sentindo o ar corroer os cantos internos dos meus
pulmões e trilhar um caminho até a minha garganta. As liberto, sentindo
toda a dor e a dormência. Então atiro o cigarro para longe, aceitando tudo
que Hyuk disse. Não é mentira. Ele está certo.
Está tudo em minhas mãos. Tenho o poder de acabar com todos os
argumentos de Baker referentes ao assassinato de sua mãe. Tenho provas de
que ela foi morta por Sebastian. Eu sou apenas uma peça insignificante que
foi usada para carregar toda a culpa, como se estivesse enfiando as sujeiras
debaixo do tapete.
É onde elas estão até hoje. Acumulando sujeiras e mais sujeiras.
Algum dia, serei eu a puxar o tapete. A sujeira virá à tona e, junto
delas, os verdadeiros culpados. Não há dúvidas.
— Você sempre a quis. Quando conseguiu, ela foi tirada de você. —
Hyuk diz, atirando o cigarro pela mesma direção onde havia jogado o meu,
então sopra a fumaça, endireitando o seu corpo e deixando o capô. — Ela
sempre foi sua, afinal. E se você não a tem agora, é porque se culpa demais
por erros que não cometeu. Seja esperto Jay, pegue a garota. — O conselho
me acerta em cheio, mas não o suficiente para me convencer de que aquela
é uma boa ideia.
Nego por instinto, fixando o olhar no horizonte, onde a claridade do
nascer do sol dá algum sinal de vida. Pouca, quase inexistente, mas está lá.
— É melhor que ela me odeie.
Ele assobia.
— Besteira.
Me viro.
— De que adiantaria? — Pergunto, minha voz soa monótona. —
Dizer a verdade não apaga os últimos três anos. Baker continuaria quebrada
e eu ainda seria o culpado. Ela continuar me odiando é uma consequência.
Não a culpo por acreditar no que disseram a ela, porque eu não estava lá
para desmentir. Ela acreditou no que viu, não é difícil encaixar as peças.
Além de que, você e eu sabemos que sempre serei o culpado por tanta
desgraça.
Hyuk abre a boca para rebater, mas eu o impeço com o erguer de
dois dedos, acenando para que ele fique quieto. Tenho mais a dizer.
— Agora, a razão para estar completamente descontrolado nunca foi
por ela me odiar. Esse é um direito totalmente dela, não vou contradizer
nada. — Suspiro, disposto a finalmente abrir o jogo para o meu irmão. —
Eu nunca estive numa prisão, Hyuk. Aquilo foi só o que os jornais
transmitiram para que vocês me procurassem no lugar errado. Não estive
em uma cela, rodeado de assassinos, estupradores e doentes obsessivos.
Estava debaixo de seus pés. — O encaro, conectando os nossos olhares.
Os olhos de Hyuk ficaram, de repente, ainda menores. Suas
sobrancelhas se franzem e uma ruga brota no meio delas, transparecendo a
sua confusão.
— Debaixo dos seus pés? — Ele ergue uma sobrancelha.
Afirmo.
— Túneis. O subterrâneo da prisão. — Quero rir, não porque é
engraçado, mas por tamanha ingenuidade.
A sua pele fica pálida, de repente Hyuk parece ter um milhão de
perguntas a serem feitas. Estou disposto a respondê-las, porque no fim das
contas, ele ainda é o único que estaria ao meu lado quando realmente
precisasse.
— Você estava preso na porra de um subterrâneo? — Questiona,
descrente. Apenas afirmo com a cabeça. — Que filhos da puta!
Não era algo que eu não estivesse acostumado, afinal o meu quarto
ficava na porra de um subterrâneo em Nova York. Mas viver em um
subterrâneo completamente sujo e lamacento, com direito a uma refeição
por dia, água escassa e sem contato nenhum com o restante do mundo,
abraçando os meus demônios interiores e me rendendo ao psicoticismo, foi
uma experiência infernal.
Quero me esquecer de todos os segundos que sobrevivi àquelas
quatro paredes apertadas. Mas não posso. Não consigo. As lembranças são
um lembrete de que não posso fugir do que fui condenado a enfrentar,
preciso me lembrar perfeitamente de cada momento. Cada choro doído,
cada alucinação que parecia boa demais para ser verdade, cada vez que
pensava que sobreviveria aquilo, mas quando abria os meu olhos, tudo
estava exatamente igual.
— Como você não quer que eu me culpe se, enquanto eu estava
sendo torturado, estavam machucando ela? Tocando nela? — Levo as mãos
à nuca, sentindo minha cabeça fermentar.
Ainda não consigo lidar com tudo.
Quando, com a necessidade desesperada de sentir algo real, recorri a
algo que me faria ir às nuvens e voltar, quantas vezes fossem necessárias.
Foi o que eu fiz quando as portas da prisão me libertaram. Não
acreditei, pensei que seria mais uma das alucinações filhas da puta que me
faziam fugir da realidade, apenas para que a volta até ela fosse ainda mais
sufocante. Mas não era. Era real.
— Se era na porra do subterrâneo, como deixaram você sair? —
Pergunta, agonia estampada no seu semblante.
Dou de ombros.
— Nunca procurei saber. Eu estava alucinando. Não sabia o que era
e o que não era real. Mas quando as portas abriram, não me importei de
perguntar qual era a pegadinha. Só tentei ser discreto e fugi antes que
notassem a minha ausência. — Explico, a sensação esquisita na beira do
estômago ganhando vida.
Eu sei o que ela significa. E a odeio.
A maldita dor.
A sensação da culpa. Da prepotência.
Hyuk vira o corpo para a minha direção, mas não quero encará-lo.
Ignoro o seu olhar queimando ao meu lado, odiando a maneira como eu me
sinto tão prepotente depois dos últimos três anos. Eu deveria causar
prepotência, não ser a própria, em carne e osso.
Que vergonha.
— Que porra fizeram com você? — Ele sussurra, sua voz falhando
no processo. — Estranhamos o seu comportamento quando voltou, algo
estava diferente. Mas nós respeitamos o seu espaço, deixamos você lidar
com as suas merdas porque talvez fosse isso que você precisava para
superar o que tinha acontecido. Mas agora? — Ele ri, monótono. — Agora
as suas merdas são minhas também.
Solto um riso anasalado, achando graça na forma como ele parece
disposto a se jogar na lama por mim. Panaca.
— Estou bem, Hyuk.
— Bem? — Ele gargalha, irônico. — Sou hacker. Meu trabalho é
ser observador e notar coisas que ninguém notaria. Acha que o pacotinho de
pó mágico que carrega no bolso passaria despercebido por mim?
Eu o encaro bem a tempo de vê-lo enfiar as mãos no bolso do jeans
e capturar o mesmo pacote que eu jurava estar bem escondido por todo esse
tempo. O filho da puta tem a coragem de balançar o pacote no ar por dois
segundos antes de abrir o plástico com dificuldade e virá-lo para baixo. Os
meus olhos brilham quando vejo o pó cair no chão de terra, o branco se
misturando com o vermelho escuro do barro.
Quero socá-lo.
Quero dizer que aquele é um problema meu. Quero afasta-lo e
mandar que ele se foda, porque são os meus assuntos. Os meus problemas.
Os meus surtos, porra. Meus.
Mas não me mexo.
Mantenho a minha boca fechada, olhando para o seu semblante
tranquilo e sereno, com sangue nos olhos. Que porra ele fez? Aquela era a
única garantia de que eu não ia perder a cabeça, que manteria a minha
cabeça nas rédeas quando tudo parecesse demais para mim. Ele tinha
destruído isso. Agora eu sou um perigo para todos que estiverem próximos.
E maldito seja. Maldito seja Naten Hyuk por ter feito essa merda em
uma viagem com Baker nos acompanhando.
— Está irritado? — Pergunta, girando sobre os calcanhares quando
erguendo o plástico, agora vazio, entre dois de seus dedos, o joga pelo ar. —
Que bom. Agora lide com os seus problemas sem recorrer a um caminho
mais fácil, seu merdinha. — Zomba, afastando-se lentamente.
Fico cerca de dois segundos encarando as suas costas, decidindo se
deveria ser tão baixo. Mas não sou o único covarde aqui, não aceitarei ser
colocado nesta posição sozinho. Não quando ele faz parecer que sou o
único aqui que deveria lidar com as minhas merdas.
— Hyuk — Chamo por ele, minha voz soa rígida. Ele apenas cessa
os passos e me encara por cima dos ombros. — Eu poderia sim ter ela na
palma da minha mão, poderia jogar tudo para o alto e dizer tudo o que está
preso aqui dentro por tanto tempo. Dizer que a amo. Que a porra do ar é
escasso demais quando estou perto dela. — Suspiro, engolindo em seco ao
dizer aquilo que está preso há tempo demais. — Mas eu sei que isso seria
egoísmo demais. E sou egoísta pra caralho, sou um merda, mas quero que
ela jogue as merdas todas para o alto e venha até mim, como eu vou até ela.
Nem consigo respirar quando a vejo desprezando a porra da minha
existência enquanto só consigo enaltecer a dela.
Hyuk gira sobre os calcanhares, um sorriso brincando no canto de
seus lábios. Percebo que ele já tem ideia de onde pretendo chegar, o seu
olhar desafiador me mostra o quanto ele tem medo de ouvir o que estou
prestes a dizer. Mas eu não me importo. Estamos brincando da porra do
jogo da verdade, não é?
Ele deve suportar a sua carga também.
— Sou a porra de um serial killer psicótico e observador. Acha que
eu não notaria a forma como você tem olhado para Lexie nos últimos dias?
— Uso a sua frase contra ele, provocando-o. — Posso ser um covarde e
todas essas merdas, mas não estou sozinho nessa. E essa é a magia da coisa,
irmão. — Abano os braços, caminhando até ele a passos breves. Quando
estou ao seu lado, ofereço tapas amigáveis em seu ombro. — Acho que
somos dois grandes covardes, afinal de contas.
Hyuk ri, inclinando a cabeça para o lado como se estivesse
reprimindo um: "É, você me pegou".
Eu não sei o que de fato está acontecendo entre Hyuk e Lexie, mas
devido a falta de argumentos que Hyuk demonstra, se tinha alguma dúvida
se de fato acontece alguma coisa entre os dois, ela acaba por desaparecer.
Eles sempre foram próximos e Lexie sempre pareceu gostar da
forma que Hyuk a tratava. Pareciam inseparáveis. E, apesar de não fazer
ideia da razão para que de repente eles pareçam se odiar, tenho certeza de
que Hyuk consertará.
— Não vai me dar o sermão tradicional? — O tom zombeteiro não
abandona sua voz. — Algo como "se você machucar a minha irmã, eu mato
você"?
Dou de ombros conforme caminho em direção às escadas do hotel,
de volta para o meu quarto.
— Não é necessário. Você sabe o que vai acontecer se machucá-la
— Aviso, sem olhar para trás.
Ouço o seu riso às minhas costas, mas continuo andando em direção
ao quarto. Não demoraria muito até que o sol nascesse, e eu preciso me
preparar para enfrentar o que quer que esteja nos aguardando.
Que não será uma recepção calorosa, nós já sabemos.
Não estou contando com isso.
Tudo que preciso é surpreendê-los. Ver o terror em seus olhos, o
desespero por ficar, finalmente, cara a cara com a morte.
E não vou desperdiçar nem um mísero segundo.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Sentada no chão, abraçada ao meu corpo e me esforçando para


conter os soluços que escapam em disparado das minhas cordas vocais,
não me mexo quando a porta sendo aberta bruscamente me causa arrepios
pelo corpo. Só poderia ser alguém, e eu sabia que ele diria algo sobre ter
me avisado que isso aconteceria.
— Ele está chamando por você. — Ouço uma voz fina e cabisbaixa,
como se eu fosse digna de sua pena.
Ergo a cabeça, sentindo as lágrimas rolarem pela minha bochecha.
Meus olhos ardem e sei que ficarão como estão por um longo tempo.
— É melhor você vir logo. Ele odeia atrasos.
Estreito o olhar, encarando a garota de cabelos castanhos e roupas
justas apertando o punho ao redor da maçaneta, antes de me oferecer um
olhar carismático e sair do quarto.
A dúvida me toma por completo, afinal, estou aqui há algumas
semanas e essa é a primeira vez que Floyd envia alguém para tentar me
tirar do quarto. Ele sempre falhou, mas dessa vez parece ser uma ordem,
não um pedido.
Eu não conheço aquela garota, sequer sabia que existem outras
garotas na casa além de mim, mas a julgar pela forma que ela parece
entender a profundidade do meu sofrimento pela maneira que me olha, não
tenho dúvidas de que a melhor alternativa é me levantar e acabar com isso.
Ele não vai me deixar em paz. Além disso, estou cansada de ficar
sentada no chão duro e gelado, chorando todo o dia, esperando por um
socorro que não virá. Agora isso está claro o suficiente.
Não gosto de imaginar como estou sendo patética, mas é mais fácil
lidar com as coisas assim, do que enfrentar a realidade das coisas. Se eu
me permitir aceitar que é assim que elas são, vou continuar desabando,
todos os dias.
O aperto no peito é intenso e a ardência nos olhos dolorosa. Por
quanto tempo vou ficar assim?
Balanço a cabeça, exausta demais para encontrar uma resposta que
não está ao meu alcance. Exausta demais para fazer outra coisa que não
seja me levantar do chão e sair pela porta, abrindo mão do livre arbítrio
para suprir as necessidades daquele que tem o poder de fazer comigo tudo
que sentir vontade. Talvez, se eu for uma boa menina, ele seja piedoso.
Saio pela porta, abraçando o meu próprio corpo e me esforçando
para conter um arrepio que sobe pela minha espinha quando dou de cara
com a mesma garota. Estreito o olhar, buscando interpretá-la.
Os seus cabelos são castanhos, quase de um tom avermelhado, os
olhos parecem uma mistura de verde com cinza. São tão profundos que
tenho medo, mas busco disfarçar a minha reação. Descendo o olhar, encaro
as suas roupas justas e apertadas demais, como se estivessem sufocando-a.
Todas as curvas destacadas do seu corpo ficam aparentes naquelas roupas,
mas o que realmente faz o medo vir à tona dentro de mim, é o fato de que
ela não parece ser muito mais velha do que eu.
Sinto um incômodo no pé da barriga, junto da vontade
avassaladora de chorar de novo.
Então é isso que terei de suportar.
— Se quer um conselho, eu diria pra você abrir mão da sua postura
de garota chorona. — Diz ela, descendo o olhar desde os meus olhos até os
pés. — E use as roupas que estão no seu armário. Ele odeia meninas
difíceis de lidar e desobedientes. Mas não estou dizendo isso para assustar
você, é a realidade dentro dessa casa. Pense que é um jogo de
sobrevivência. — A garota começa a caminhar corredor à frente, chamando
por mim com um aceno de cabeça. Eu a acompanho, com medo e
insegurança. — Você pode ter as melhores armas, mas se não for
inteligente e souber o que está fazendo, seus recursos não servem de nada.
Então seja inteligente, faça o que lhe pedirem e use isso a seu favor, ok?
Uso um dos braços para secar o meu rosto ainda úmido pelas
lágrimas.
Se ela está falando sério, se está sendo sincera, eu não quero sofrer
consequência alguma. Me parece bem mais simples ser obediente e parecer
como uma boa menina.
— Por que eu deveria confiar em você, se eu nem te conheço? —
Aumento o passo para alcançá-la. Ela parece com pressa.
De repente, ela cessa o passo em frente a uma porta branca, com
listras vermelhas. A maçaneta brilha como se alguém tivesse acabado de a
polir, e nós podemos ouvir sussurros vindos do lado de dentro. Encolho o
meu corpo e ela gira sobre os calcanhares, fixando o seu olhar tenebroso
no meu.
— Você não precisa confiar em mim, entender que isso não é uma
piada e que sou a única que será gentil com você aqui dentro, é o
suficiente.
Fecho a boca, sem ter o que dizer.
Se ela é realmente como eu, se está aqui contra a sua vontade,
talvez tenha se esforçado para conquistar essa expressão confiante e a
facilidade de lidar com o que deveria assustá-la. E eu sou a novata, a que
provavelmente será a chorona, a difícil de lidar, a que trará problemas.
Ninguém gosta de lidar com pessoas que podem prejudicar você, então
provavelmente estaria sozinha nessa, se não fosse por ela.
Não confio nela, não tenho motivos para isso. Mas ela está certa,
tenho que sobreviver e aceitar que essa será a minha vida de agora em
diante. Jay não virá. Eu estou sozinha, como jamais estive antes. E se
quiser sair daqui o mais rápido possível, preciso me parecer com uma
menina fácil de lidar, então eles não se preocuparão comigo.
E só então, terei tempo para observar o lugar e me preparar para
uma fuga.
— Tudo bem. — Suspiro, aceitando a sua gentileza. — Obrigada
por ter sido legal.
Ela dá de ombros, levando uma das mãos à maçaneta, mas antes de
abri-la, seus olhos capturam os meus novamente.
— Não os decepcione. Novatas sempre são alvos principais e nunca
são bem recebidas. Os impressione, prove que pode ser útil. — Aconselha,
tomando a frente e abrindo uma fresta da porta. Posso ouvir os sussurros
cessarem quando nossa presença é notada. — Lembre-se, sobreviva, não
faça besteiras.
A última coisa que faço antes que a porta se abra e todos os olhares
do lado de dentro venham em minha direção com rapidez, é concordar.
Congelo quando vejo Floyd sentado casualmente em uma cadeira estofada
ao lado de outros três homens, todos seguram copos de bebidas em suas
mãos, e os olhos parecem buscar o meu corpo com desespero.
Quando a garota se move para o lado e lhes oferece visão total de
mim, sinto um desespero inigualável corroendo as minhas entranhas. Floyd
se levanta, dá um último gole em sua bebida e estica o seu smoking sob o
corpo, caminhando em minha direção com um sorriso amarelo no rosto.
Ele gesticula para que vá em sua direção, ansioso para a minha
apresentação nada amigável.
Engulo em seco, alternando o meu olhar até a garota que mantém
os olhos fixos nos meus, quase obrigando-me a obedecer. Mas estou
congelada. Assustada demais, com um pavor sem igual destroçando todo o
meu interior.
Porém, no fundo, eu sei que não há uma saída. Preciso enfrentar
Floyd e tudo o que está preparado para mim.

As lembranças vêm à tona como flashes impossíveis de serem


suportados, e nunca sou capaz de impedir que me atormentem. Elas fazem
parte da bagagem que trago comigo, as dores, as lágrimas, o luto, a
superação… Mas, positivamente, também fazem parte do meu
fortalecimento. De quem eu era e de como lutei para me tornar capaz.
Tudo é um turbilhão de prós e contras.
E agora, nesta cama, incapaz de dormir, sei que estou me lembrando
de todas as situações que enfrentei na casa de bonecas de Floyd, porque elas
são parte da minha capacidade de ultrapassar limites que parecem inviáveis.
Estou aqui, em uma viagem com Jason para vingar tudo que foi
tirado de mim sem uma droga de permissão. Entretanto, eu deveria me
culpar por estar trabalhando ao lado daquele que tirou de mim a única
pessoa que destruiria o mundo para me manter segura.
Minha mãe sobreviveu por anos ao lado de um monstro, colocou um
sorriso no rosto e evitou pensar que ele nos arruinaria. Talvez, o motivo
fosse por dar a nós, Josh e eu, uma vida na qual não passaríamos
necessidades. Nunca vou perdoá-la por abrir mão de uma vida ao nosso
lado, para nos proteger.
Eu não reclamaria de sobreviver à seca, se ela estivesse aqui, agora,
ao nosso lado.
Mas eu a entendo.
Entendo porque faço exatamente a mesma coisa pelo meu irmão.
O amor nos faz cometer atrocidades inexplicáveis e absurdas, mas
acho que essa é a maior prova de que ele é real. Afinal, se não somos
capazes de oferecer a nossa vida, que é o nosso bem mais precioso, em
troca daquela que guardamos um sentimento tão verdadeiro, de que outra
forma poderíamos provar para alguém que o amamos tão profundamente?
No entanto, como eu suportaria a dor de aceitar a prova de amor
mais sincera e verdadeira, se ela foi causada pelas mãos daquele que tinha a
droga do meu coração na palma de sua mão?
Me sinto horrível por estar aqui. Sinto como se mamãe estivesse
olhando por mim com aquele olhar desapontado, julgando todas as minhas
atitudes. Ela não me perdoaria por ter decidido, durante a última noite, abrir
mão da tentativa tosca de assassinar Jason enquanto ele dormia.
Eu preciso dele para me tornar livre, para que possa fugir com Josh
para um lugar novo, para darmos início, de verdade, a uma vida digna.
Estou cansada de fugir, de temer a minha própria sombra. Até quando isso
vai durar?
Preciso colocar Josh como prioridade. O meu rancor e toda a repulsa
que sinto por Jason, pode ficar em segundo plano, por enquanto.
Quando, finalmente, a raça mais suja que eu poderia ter conhecido,
for extinta dessa porra de universo, sumirei de sua vida. Não vou matá-lo,
quero que Jason sobreviva a dor do desprezo, quero que acorde todos os
dias com toneladas em cima de si, carregando o peso de ter destruído a
única pessoa que o amaria verdadeiramente.
Essa é uma punição severa, ainda pior do que a morte. Ele precisa
enfrentá-la, não há nada pior do que se sentir imprudente e incapaz. É o
suficiente para ele, por ora.
— Baker, estou entrando. — Ou0ço a sua voz grave e rouca
anunciar, seguido do som do ranger da porta.
Não me mexo, continuo deitada, abraçando o meu corpo enquanto
encolho as minhas pernas a altura do quadril, protegendo-me da brisa fria
que invade o quarto quando ele fecha a porta.
— Está acordada?
Ouço passos suaves avançando em minha direção.
Não respondo.
Não somos amigos, estar aqui e abrir mão da promessa de matá-lo
não significa passe livre para que fiquemos próximos outra vez. Isso não vai
acontecer. Então, por que ele está aqui?
— Lexie está arrumando as nossas malas no carro, vai amanhecer
em breve. — Avisa. O colchão afunda e as madeiras da velha cama rangem,
indicando que ele está sentado na beira.
Eu sei que ele pode me ver. Os meus olhos abertos fixos no criado-
mudo empoeirado e vintage, tentando esquecer das lembranças
perturbadoras que ainda mantém o meu interior preso em um cubículo.
— Hyuk está procurando por pistas nos arredores do Monte
Whitney que possam facilitar a nossa entrada, não acho que vá ser fácil
subir a montanha. — Ele torna a dizer, sua voz rouca soando suavemente.
— Então precisaremos de casacos extras. — Não o encaro ao dizer,
não quero encarar.
O meu peito está apertado, como se estivesse cometendo o maior ato
de traição existente no mundo. Me culpo por estar aqui e me culpo por
ainda estar presa ao que me destruiu, e ainda assim, não ser capaz de me
libertar.
Quero chorar.
Quero desabar de verdade, porque tenho a plena noção de que
minha vida nunca será a mesma. Nunca serei considerada uma civil comum,
aquela na qual trabalha em um estabelecimento local e ganha diversas
amizades mais velhas por ser extremamente divertida. Isso só acontece nos
meus sonhos. Naqueles mais distantes.
Essa é a minha vida agora. Fugir, evitar ser vista publicamente por
ter sido acusada de cúmplice de homicídio, pensar demais em tudo que
poderia ter sido diferente se as minhas atitudes fossem outras, reprimir
sentimentos contidos por tempo demais, odiar ser incapaz de ser mais forte,
apesar de ter enfrentado tantas situações que estimulam a evolução. E por
fim, ir atrás de uma libertação.
Estou cansada de lutar tanto para conseguir bons retornos, para
conseguir uma boa casa, uma boa comida, uma boa educação, uma boa
vida… E no fim, tudo ser exatamente o oposto do que poderia ser
considerado algo bom.
É um eterno ciclo vicioso. Vejo algum ponto positivo, busco adaptá-
lo na minha situação e adiciono esperança demais, então quando dá errado,
a queda seguinte é sempre mais dolorosa do que a última.
No entanto, definitivamente, estou cansada. Por este motivo, não
tenho forças para entrar em joguinhos com Jason. Não quero brigar, não
quero xingar, não quero fazer absolutamente nada. Desta vez, ele ganha a
rodada.
— Você está bem? — O tom de voz é baixo, curioso.
Não respondo.
Temo que se eu abrir a boca, ao invés de palavras, escaparão
soluços.
Não quero chorar, não na frente dele.
— Baker, você está bem? — Pergunta outra vez, desta vez, ouço o
farfalhar de lençóis e a movimentação abrupta no colchão. Sei que está se
aproximando.
Fecho os olhos, exausta demais para lidar com Jason.
— Você não se importa, Jason, apenas me deixe. — Sou rígida,
porém, não me mexo. — Desço em alguns minutos. — É uma tentativa de
expulsá-lo, mas como suspeitava, Jason também não se move.
— Você realmente acredita nisso? — A pergunta me faz abrir os
olhos. — Acredita que eu não me importo?
Finalmente o encaro, observando a proximidade de nossos corpos.
Estou deitada de lado, mantendo uma das mãos por baixo do travesseiro
macio, sentindo o formigamento brotar aos poucos na minha pele por estar
há horas na mesma posição. Jason está sentado ao meu lado, ambas as mãos
apoiadas em seus joelhos e os olhos escuros fixos nos meus.
— Tenho motivos para pensar o contrário?
Ele assente, quase parecendo ter sido magoado por minhas palavras,
mas eu não vou cair em seu jogo. Estou magoada, mas ainda não sou burra.
— Queria mudar a sua percepção das coisas.
Sou rápida em rebater.
— Bom, você não pode.
— Não posso porque você não aceita outras versões além da sua? —
Isso já virou um jogo da verdade, e as nossas vozes aumentam o tom a cada
alfinetada de provocação.
— Não pode porque você partiu meu coração! — Explodo, sentindo
o meu peito ferver com a sensação de extravasar. — Você é desprezível.
Apenas… Saia.
Jason se cala.
O silêncio constrangedor preenche o quarto do hotel, e a falta de
barulho faz os meus olhos queimarem pela necessidade de derramar aquelas
lágrimas tão insistentes. Mas já fiz isso antes, já chorei, implorei por uma
resposta a Jason naquele carro e ele simplesmente não foi capaz de abrir a
droga da boca.
Eu lhe dei uma última oportunidade, ele fez a sua escolha.
Agora também fiz a minha.
Desvio o olhar, abraçando o travesseiro com força demais.
— Sinto muito. — Jason sussurra, um suspiro doloroso escapando
de seus lábios.
Pena.
É pena que sinto esvair de cada uma de suas palavras. Talvez seja
por ter descoberto o que aconteceu comigo nos anos em que esteve fora?
Pisco algumas vezes, ignorando o aperto no peito que me força a
sentir emoções opostas ao desprezo.
Não preciso de sua pena.
— Não vou discutir com você — Sugo o nariz, girando o meu corpo
o suficiente para conectar os nossos olhares. Jason está tenso, o olhar
cabisbaixo e os olhos fundos. — Não consigo mais fazer isso. Nós estamos
aqui por uma razão e depois disso eu vou desaparecer do seu radar. Não
quero contato com você, não quero contato com a academia, não quero nem
me lembrar do que um dia existiu entre nós. Então nós podemos pular a
parte em que você se esforça para resolver as coisas aqui, porque realmente
não tenho mais forças pra isso. — O tom de voz decepcionado está em cada
palavra, apesar do esforço para contê-lo.
Ergo o meu corpo, me esforçando para manter os olhos em qualquer
outro lugar do quarto a fim de evitar que as lágrimas despenquem. Não
quero parecer tão frágil, não quero mostrar a ele onde dói, apesar de nada
disso ser uma novidade para ele.
Jogo as pernas para fora do colchão, usando ambas as mãos para
centralizar o moletom no meu corpo. Jason ainda está calado, observando
todos os meus movimentos com concentração. Sinto a minha bochecha
queimar pela sensação de estar sob o seu olhar fulminante.
Não ouso olhar para ele.
Alcanço a minha bolsa de viagem onde estão todas as minhas roupas
que resgataram da minha casa antes de virmos para essa viagem. A arrasto
pelo chão frio até estar ao meu alcance, guardo todos os meus pertences de
forma atrapalhada e evito pensar em qualquer outra coisa que não seja
terminar com essa missão de uma vez por todas.
— Baker. — Sua voz ecoa, ela parece engasgada, como se ele
estivesse fazendo um esforço enorme para encontrar as palavras corretas
para terminar a frase.
— Não precisa me dizer nada, você teve a sua chance. — Eu o
interrompo, fecho o zíper da minha bolsa e a jogo por cima do ombro.
Quando giro sobre os calcanhares, Jason se levanta e ergue o olhar,
conectando-o ao meu. Agarro as alças da bolsa contra o meu ombro e
procuro não demonstrar o quão destruída estou neste momento, e quantas
coisas rondam a minha cabeça.
Não quero me sentir tão vulnerável quando ele está por perto, não
era para isso estar acontecendo. Não quero sentir o frio na barriga tão
doloroso por, mesmo depois de tudo, não conseguir abrir mão
completamente do sentimento que nutria por ele, por tempo demais.
Mas aqui está, corroendo todo o meu interior e me lembrando do
quão imprudente e cruel eu sou. Esse é um lembrete que não posso ignorar,
afinal, não posso fugir. Mesmo que eu o fizesse, essa droga me perseguiria
até o inferno.
Me sinto como uma alma julgada em meio às chamas do inferno
por, mesmo dentre todas as circunstâncias, ainda ser capaz de sentir algum
tipo de emoção por Jason.
Era fácil demais odiá-lo nas sombras de sua ausência.
— Saia. — Ordeno ao firmar nossos olhares que parecem queimar.
Se eu pudesse…
Se eu pudesse voltar atrás, se pudesse apagar todas as lembranças de
seus sorrisos tão cheios de esperança, dos olhares intensos e das promessas
que me apeguei com tudo o que tinha… Me pergunto em que momento lhe
entreguei o meu coração a ponto de não pertencer somente a mim, embora o
inferno tenha se infiltrado em minha vida por este trágico erro irreversível.
Eu reverteria todo o passado se tivesse este poder em mãos, pois
pior do que lidar com cada parcela do ódio infiltrado em meu sistema
corroendo cada grão de meu interior, é testemunhar Jason olhando-me como
se estivesse habituado a este tipo de rancor.
Como se precisasse dele.
Como se não o intimidasse.
Como se ainda fosse capaz de sentir alguma porcaria em seu frio
coração.
Piada.
Um meio sorriso amargo preenche meus lábios quando percebo que
ele não irá obedecer a minha ordem. Será que ele costuma divertir-se com o
quanto fere a minha alma? Com o quanto mexe com a minha cabeça?
Seus olhos transmitem hesitação, sua mandíbula é enrijecida com
tanta força que quase faz parecer que Jason está engolindo palavras que
gostaria de cuspir. Ele não quer ir, mas também não quer ficar.
Então que porra ele quer?
Por que ele age como se a rejeição doesse, quando me trata com
tanta insensibilidade?
Quando me fere sem hesitar?
— Que merda está esperando? — Questiono, balançando a cabeça,
furiosa. — Saia da minha frente, Jason.
Jason afunda as mãos nos bolsos de seu moletom e se aproxima de
mim, seus olhos jamais deixando os meus. A minha única alternativa é
erguer o queixo para aprofundar nossos olhares, como uma tentativa de
tentar demonstrar o contrário do que estou sentindo. Ele não precisa saber
de absolutamente nada do que pertence somente a mim. Da dor que só cabe
em mim.
— Não. — Nós estamos a um palmo de distância.
Cruzo os meus braços, controlando um riso carregado de deboche
que ameaça escapar da minha garganta.
— Que porra você quer de mim, afinal? — É uma pergunta retórica.
— Você não tem a droga de um poder para consertar todas as merdas que
você causou, se é isso que espera. Não há absolutamente nada que esteja ao
seu alcance para conseguir ter algo de mim outra vez. Consegue entender
isso? Suma da minha vida de uma vez, porque a única coisa que você pode
oferecer para as pessoas ao seu redor é desgraça. — Eu deveria ser rígida,
mas as palavras saem como facas.
Estou demonstrando dor. Isso é ruim.
Jason aperta os olhos por alguns segundos e embora eu veja esforços
de sua parte para tentar evitar, ainda é visível a dor que minhas palavras
causaram. Seus olhos buscam os meus como se pudesse justificar todo o
passado, como se quisesse mudá-lo. Ele parece estar em agonia.
— Não, porra! — Ele bufa, irritado. Jason coça a nuca com uma das
mãos e suspira, exausto. — O que o meu pai disse a você, Baker, o que ele
pode ter feito para revirar a porra da sua cabeça com tanta facilidade?
Ergo uma das sobrancelhas.
Jason continua falando, seus lábios se movem com maestria e as
veias saltam em seu pescoço, demonstrando o quanto ele usa de suas
emoções para expressar tais frustrações. Eu não o ouço, no entanto. A porra
do universo está em silêncio absoluto desde o momento em que o ouvi dizer
a porra da palavra pai.
— Pai?
Jason fecha a boca, seus olhos brilham com o reflexo da pouca
claridade que invade as frestas da janela.
Meus pés congelam no chão, cravam no piso frio como se tivessem
sido pregados. Os meus olhos buscam os seus com pura confusão exposta
em cada profundidade da troca visual, busco entender o que ele quer dizer
com isso, procuro por uma resposta. No entanto, Jason sequer parece se dar
conta de que despertou uma dúvida infernal na droga da minha cabeça.
Sequer me importo quando a bolsa contra o meu ombro cai contra o
chão.
— Você disse a palavra pai na mesma frase em que afirmou que ele
disse alguma coisa a mim. — Meu coração aperta, mas não ouso vacilar. —
Você tem contato com o seu pai, Jason, e eu o conheci. Quem é ele? —
Pergunto, ansiedade corroendo todas as minhas entranhas.
Seus olhos saltam por um único segundo, o pânico toma a sua
expressão e o pomo-de-adão se move lentamente por sua garganta. Eu capto
a porra do momento em que Jason desvia o olhar e parece procurar por uma
resposta. Se fosse possível, ele cavaria um buraco no chão para fugir desta
conversa. Mas eu não permitiria. Não, porra.
— Você tinha tanto a dizer há alguns segundos, Jason, e de repente,
que porra aconteceu?
Ele sorri, sarcástico.
— O dia em que você descobrir que há coisas por baixo do tapete
em que você dorme toda noite, vai se surpreender com tanta sujeira que tem
acumulado. — Diz, finalmente olhando nos meus olhos. Jason quebra a
nossa distância e firma os nossos olhares tão profundamente que temo
vacilar a qualquer segundo. — Você acha que é forte, não? Vamos ver como
você lida com a verdade, Baker. — Ele é duro nas palavras, mas não tenho
tempo para processá-las antes que Jason gire sobre os calcanhares e erga
ambos os braços, puxando moletom e camiseta pela a cabeça de uma só
vez.
Engulo em seco.
Contenho uma arfada quando os meus olhos fixam em suas costas
nuas. A pele brilha, a prata de sua corrente presa ao pescoço orna
perfeitamente com o contraste de sua pele e os músculos se contraem
repetidas vezes conforme Jason espia por cima do ombro. Não é isso que
tem a minha atenção, no entanto.
Há cortes feios e escuros por toda a sua pele, arranhões profundos e
cicatrizes saradas. Há alguns avermelhados, como se não tivessem sido
feitos há tanto tempo, outros, já cicatrizados. Um arranhão destacado vinha
desde a sua nuca até o fim de sua costela, formando um arco escuro ao
redor da vermelhidão. À esquerda, uma cicatriz em formato circular
semelhante a uma bituca de cigarro, parece fazer parte de sua pele. À
direita, cortes recentes ainda avermelhados fazem de sua pele ainda mais
marcada.
Além das marcas cicatrizadas, não pude deixar de me impressionar
com a quantidade de tatuagens que preenchem a pele de seu corpo. Em seu
bíceps direito, algo parecido como uma flor desabrochando é bem
construído em seu músculo. No bíceps esquerdo, uma caveira sendo partida
ao meio por um revólver preenche toda a parte externa do braço. O símbolo
da academia. Em sua nuca, o desenho de asas sangrando quase cobrem boa
parte dos arranhões feitos no local.
Descendo o olhar, quando noto a presença de uma outra tatuagem
seguindo traços até o seu tórax, aprumo a minha visão e tento enxergá-la
com clareza, devido a nossa posição desconfortável. No entanto, notando a
forma como eu o vasculho, Jason atira o moletom para a cama onde estava
deitada e passa a camiseta pela a cabeça em uma velocidade imensa, antes
que eu possa terminar de analisar todas as suas marcas.
— Que eu sou filho de um fodido nunca foi um segredo para você.
Não escondi quem eu sou e não tentei amenizar quem eu verdadeiramente
queria me tornar, e você nunca pareceu se incomodar com o meu passado.
Ele não importa, afinal, quem eu sou hoje não é graças à vida de merda que
tive quando criança. — Diz, rígido, encarando-me com veemência. — Mas
você continua acreditando que é capaz de lidar com todas as merdas que
evitei dizer porque não suportaria receber essa porra de olhar. Esse onde
você parece desprezar cada pedaço do que eu sou. — Jason aponta,
avançando passos em minha direção e fazendo com que, gradativamente, eu
recue dois. Ele está me encurralando.
Rio sem humor.
Ele é uma tremenda piada.
— Que surpresa.
Arquejo quando as minhas costas encostam na parede, em
sequência, estremeço quando a palma firme de sua mão bate contra a parede
ao lado do meu rosto, pressionando-me contra ele.
— Você se acha melhor do que eu, Baker. Você faz com que me
odeie a cada segundo em que vejo você desprezar tudo que eu sou. Mas
sabe de uma coisa? — Pergunta, seu olhar escorregando dos meus olhos aos
meus lábios, sem disfarçar a ação.
Engulo o nó na garganta, esforçando-me para não me render a sua
tentativa de me desequilibrar. Seria em vão, eu sei, mas definitivamente me
recuso a lhe dar o gostinho da sensação de me ter sob controle.
Quando não o respondo, Jason sorri, monótono, amargo.
— Será que você vai se odiar tanto quanto eu me odeio, quando
descobrir que é apaixonada pelo filho do homem que a manteve em
cativeiro? Que a arruinou?
Então acontece. Meus olhos travam no abismo tão profundo que são
os seus. Meu peito incha e chego a cambalear para trás, mas a parede está
ali, me segurando. Não consigo conter a manifestação da surpresa, embora
meu semblante esteja rígido como pedra.
Os pontos se conectam como mágica, e estaria mentindo se dissesse
que a informação não rompeu o meu peito como lâminas afiadas. Sinto-me
sufocada. Angustiada.
Traída.
— O quê? — Minha voz falha, mas não me importo com o fato de
que estou visivelmente abalada.
Jason se cala, apenas continua no mesmo lugar, estático, encarando-
me com expectativa. Ele queria descobrir qual seria a minha reação, queria
ver com os próprios olhos como eu lidaria com aquela revelação. Chego a
esta conclusão quando ele alterna o olhar entre os meus olhos, ansioso.
— O que quer dizer com isso, Jason? — Meu coração palpita em
meu peito como se fosse a droga de um martelo de puro aço.
Eu sei a resposta.
Sei do que ele fala.
Mas… Porra, não quero acreditar. Não quero pensar que ele
escondeu isso de mim por todo este maldito tempo.
Sinto a sua respiração em contato com o meu rosto, seu olhar
queima em contato com o meu, um jamais deixando o outro. Jason suspira e
sinto o peso de sua respiração. Quero sair desta armadilha em que me
aprisiona, mas os meus pés simplesmente não obedecem ao meu comando.
— Diga alguma coisa! — Soco o seu peitoral com ambas as mãos.
Ele sequer se move. — Quem é a droga do seu pai, Jason?
Me preparo para estapear o seu peitoral pela segunda vez, no
entanto, Jason contém o meu movimento quando segura os meus pulsos no
ar, prendendo-os ao redor de sua mão firme.
Um rosnado me escapa, cheio de frustração.
— A porra do meu nome é Lewis Floyd, Baker. O que você acabou
de ver, são muitas marcas causadas na minha infância, por ele. Por me
negar a participar do futuro reservado a mim. — Ele cospe as palavras, com
firmeza. — Acabei de dar você a porra das peças, organize-as e se esforce
para encaixar tudo que faria você entender boa parte da situação. Você
acredita que eu sou um merda? Ótimo. Acredita que eu nunca amei você?
Vá em frente. Acredita que eu não teria movido um único músculo se
sonhasse que você tinha sido violentada? Você não poderia estar mais
errada, porra.
Arregalo os olhos, sentindo a peça dentro do meu cérebro encaixar-
se como mágica. Seu peito sobe e desce, eu não consigo identificar se ele
está irritado ou frustrado, mas sei que Jason, neste momento, é uma pessoa
diferente do que demonstra todos os dias. Não há nada de irônico em seu
olhar, nenhuma brincadeira, não há espaço para o seu silêncio.
— Você pode estar irritada, pode estar furiosa por descobrir que em
todo este tempo, eu estava te protegendo de quem me feriu por toda a minha
vida. Mas acredite, Baker, ninguém está mais furioso com essa merda, do
que eu.
Meus olhos queimam e ardem. Sei que é pelas tão insistentes
lágrimas que acumulam-se em minhas íris, contudo, há uma parte dentro de
mim que se nega a derramar outra lágrima diante de Jason.
Mais uma mentira acaba de ser incluída no pacote.
Lewis Floyd.
A porra de um Floyd!
Contenho o suspiro que ameaça escapar, e umedecendo os lábios,
decido quebrar o silêncio.
— Pensei que você nunca conseguiria fazer com que eu o odiasse
ainda mais. As suas surpresas nunca chegam ao fim. — Engulo o bolo na
garganta, temendo que minhas próprias pernas cedam ao chão.
Ele ri, amargo, largando os meus braços e recuando alguns passos,
afundando o seu rosto em ambas as suas mãos. Ele parece ter abafado um
rosnado em sua mão, mas quando os olhos buscam os meus outra vez, algo
mudou. Estão sombrios e profundos, como se estivessem preparando-se
para expressar a mais pura crueldade.
— E você ainda está aqui! — Exclama, indiferente. — Não sou a
única porra de monstro a ser julgado, afinal. Não aja como se eu fosse.
Uma ruga se forma no meio de minhas sobrancelhas e procuro não
demonstrar o quanto a versão indiferente de Jason me surpreende. No
entanto, não lhe dou o prazer de me ver murchar.
— Não é por você — Rosno. — Não estou aqui por você, Jason.
Você não significa nada para mim.
Ele abaixa a cabeça, um meio-sorriso incrédulo brincando em seus
lábios. Posso ver a porra do veneno escorrendo no canto de sua boca.
— Mas não pode negar que a porra do seu coração ainda bate por
mim. — Rebate, e desta vez fecho a boca, incapaz de responder a altura.
Não é uma completa mentira, eu sou tão suja quanto ele. — Acha que não
notei a forma como o seu corpo reage a mim? Essa é a sua forma de ignorar
o seu desprezo? Essa é a sua forma de superar o mal que te causei?
Engulo em seco, incapaz de reagir a sua versão insensível. Não
posso falar absolutamente nada, porque ele não está errado. Eu sou uma
traiçoeira do caralho por estar aqui, sou uma vadia ordinária por suprir
sentimentos pelo assassino da minha mãe e, consequentemente, filho do
homem que destruiu a minha vida. Eu sou ainda pior por naquela porra de
escritório, por um milésimo de segundo, ter cogitado a possibilidade de me
render ao seu toque.
Não sei o que pensar e como reagir a todas as coisas que rondam a
minha cabeça neste momento, sequer consigo reunir forças para rebater a
um questionamento simples. É só dizer que não, porra, que não reajo de
forma alguma a ele. Que eu não sou suja o bastante para isso, que não sou
tão cruel.
Mas a verdade é outra. A realidade dói, e dói ainda mais saber que
no fundo, sim, eu sou.
— Passe a tentar com mais vontade, porque eu reconheço uma
mentirosa de longe. Então faça um favor a si mesma, não ouse jogar para o
ralo tudo o que você aprendeu com os piores demônios. Eles podem até ser
razoáveis com você, mas eu, não.
É um desafio.
E eu odeio ser desafiada. Odeio me sentir incapaz.
Mas ele não se importa.
— É uma ameaça? — Ergo o queixo, sentindo o peito queimar pela
fúria imaculada.
Jason dá as costas para mim, inclina o seu corpo o suficiente para
alcançar a minha mala caída contra o chão, a joga por cima do ombro com
facilidade e alcança o seu moletom, atirando-o ao mesmo destino da mala.
Só então, ele me encara por cima do ombro e suspira, antes de me levar ao
limite.
— É uma promessa. Toda vez que você pensar que pode ignorar
essa chama dentro de você, estarei aqui para lembrá-la de que você é o
reflexo daquele que repudia. — Diz ele, andando calmamente em direção à
porta.
Jason segura a maçaneta com uma das mãos, girando-a sem pressa,
o raio da claridade que nasce no horizonte, invade a fresta que havia aberto.
E, sem olhar para trás, ele finaliza.
— Pode continuar mentindo para si mesma. Nós dois sabemos que
não é ódio que você sente todas as vezes que olha para mim. É exatamente
isso que nos iguala.
Então ele sai, fechando a porta em um baque que ecoa por todo o
lado de dentro, seu cheiro amadeirado ainda circula pelas quatro paredes e
meu corpo segue imóvel rente a parede, temendo que a qualquer momento a
textura do papel de parede fosco e envelhecido, faça parte da minha pele.
Fecho os olhos, querendo chorar. Os aperto com tanta força, que
sinto a pontada aguda no topo da cabeça, como se o meu cérebro fosse
explodir. Eu o odeio tanto, porra. Odeio tanto a forma como ele ainda tem
poder absoluto sobre mim, como consegue controlar os meus passos, as
minhas ações, até a porra da minha respiração.
Quero descer até lá e enfrentá-lo, dizer que ele não tem nenhum tipo
de poder sobre mim, que eu não farei absolutamente nada que ele diga,
principalmente usando o tom exigente. Quem ele pensa que é? E o pior,
quem caralhos sou eu, para permitir que ele fale comigo desta forma?
Suspiro, usando o meu punho fechado para bater contra a parede,
controlando os meus nervos e as minhas explosões frustradas. Meu corpo
treme, minha respiração acelerada é um claro sinal de que mesmo se eu
tivesse a plena coragem de descer até lá, mentiras e mais mentiras sairiam
dos meus lábios. Absolutamente tudo que eu dissesse a ele, seria para
provar que ele está errado. Mas ele está?
Não. Não está.
Essa é a razão para que eu queira desaparecer desta porra de mundo
e me esquecer do maior dos crimes que eu poderia cometer. O ato mais
repudiado e infeliz. A incapacidade de esquecê-lo. A incapacidade de
impedir que as memórias venham à tona.
Eu sou uma vadia do caralho.
Minha mãe deve sentir nojo de quem eu sou. Eu não a julgo, afinal,
também desprezo quem tenho sido nos últimos dias.
Quem ele tem cooperado para que eu seja.
E, mesmo dentre todas as circunstâncias, não posso negar que Jason
está certo, sou igualzinha a ele. Sou cruel, impiedosa, má, suja e mentirosa.
Absolutamente todas as coisas que antes, ele me ensinou a ser. A diferença,
é que ele foi a porra do meu professor, sabe domar esse papel melhor do
que eu.
Meu pulso queima ao redor da gaze sobre os meus ferimentos em
processo de cicatrização. Sinto uma vontade descontrolada de me punir
outra vez, de sentir dor, a dor de ser alguém tão repugnante. A dor de sentir
alguma porra de sentimento incontrolável por Jason Turner, e não ser capaz
de abrir mão da chama tão familiar que arde na porra do meu estômago.
Fodam-se as borboletas, eu as queimarei na porra do inferno, afinal,
é para lá que eu vou. Não há perdão para almas como a minha.
NEW YORK - 2019
ANTES

Em menos de dez minutos estamos à frente do prédio, Jay observa


os diversos carros estacionados do lado de fora. São carros escuros o
suficiente para que não possamos enxergar o lado de dentro, a lataria brilha
como se alguém tivesse polido o carro durante o dia inteiro. Parece o tipo
de veículo que transportaria o presidente dos Estados Unidos ou algo assim,
quis fazer piada com essa observação, mas quando viro a minha cabeça e
percebo a expressão gélida de Jay, encolho o meu corpo no banco do
passageiro e opto por ficar calada.
Ao passarmos pela entrada do prédio, Jay diminui a velocidade
conforme encara dois dos seguranças armados, observando o carro com
certa desconfiança logo na entrada.
Nós trocamos um breve olhar. Penso que Jay vá pedir para que eu
me esconda no banco de trás para que ninguém saiba que ele havia saído
comigo, já que parecia ser uma quebra de regras.
No entanto, seu olhar escorrega pelo meu corpo e sua mandíbula
trava, seu pomo-de-adão mexendo lentamente ao indicar que ele engole em
seco. Então, diferentemente do que eu pensei que ele faria, Jay desvia o
olhar para o outro lado e mantém o volante firme entre sua mão quando
desce o vidro e joga a cabeça para fora, encarando o cara armado e
absurdamente enorme.
— Sou eu. — Informa, sua voz indiferente.
Eles trocam um olhar sinistro por longos segundos antes do cara
inclinar o seu corpo e vasculhar o lado de dentro do carro com os olhos, até
que seu olhar encontra o meu. Eu me encolho no banco, sentindo-me
desconfortável pelo olhar profundo e insensível que ele direciona a mim,
mas não tenho o que temer. Jay está comigo.
— Arranjando problemas, hein? — O homem zomba, tocando o
ombro de Jay como se fossem íntimos ou algo assim.
Jay vira a cabeça, uma de suas mãos trocando a marcha conforme o
ruído do motor preenche o silêncio ensurdecedor que se instalou em poucos
segundos.
— Não acho que isso seja da sua conta. Apenas libere a porra da
passagem. — Diz ele, seu tom rígido e firme fez com que meu corpo
congele no banco do passageiro.
O cara balança a cabeça, afastando-se do veículo depois de bater
com a palma de sua mão contra a lataria por duas vezes. O ato se parece
como um aviso de que nossa passagem foi liberada, já que logo em seguida
os portões de metal se abrem e Jay acelera para dentro com rapidez.
Minhas costas colidem contra o banco, meus olhos se arregalam
pela agressividade com que ele parece estar exalando desde que o seu
celular tocou naquele ginásio.
Sei que ele está irritado, quer dizer, ele afirmou mais de uma vez
que me protegeria de quem quer que estivesse atrás de mim, e mesmo que
eu não saiba exatamente quem são essas pessoas, sei que elas o fazem
perder o controle. Principalmente quem está lá em cima esperando por ele.
— Escuta — Ele diz após estacionar o carro rapidamente em uma
das vagas e virar o corpo em direção ao meu. — Preciso que você pegue o
elevador e vá para o décimo andar. Procure por Kelly e não saia do quarto
até que eu bata três vezes contra a porta, me entendeu? — Seu olhar
congela sob o meu, esperando por uma resposta.
Abro a boca, sem saber exatamente como me portar em uma
situação como essa.
— Me diga que você entendeu, Clarke. — Sua voz firme estremece
o meu corpo.
Tudo o que eu faço é balançar a cabeça em positivo duas vezes, com
a dificuldade de encontrar palavras para dizer a ele que entendi. A forma
como ele parece extremamente irritado me deixa quase sem ar, sem saber
qual seria a forma correta de me portar. No entanto, não acho que exista
uma.
— É provável que o seu irmão esteja com Kelly agora, então fiquem
os três no quarto e não saiam por nada. — Ele avisa, retirando as chaves do
contato e vejo as luzes do painel apagarem. — Por favor, ok? — Jay se vira
para mim, plantando um beijo suave na minha bochecha antes de abrir a
porta do motorista e saltar para fora do carro.
Engulo em seco, sentindo o frescor do seu perfume ainda presente
em cada parte do carro quando ele fecha a porta com agressividade. O vento
traz o seu cheiro viciante até minhas narinas outra vez.
Eu o observo dar a volta pelo capô do carro, ambas as mãos
afundando nos bolsos do jeans e os olhos fixos no elevador por onde
descemos. Sua mandíbula se contrai repetidas vezes, e mesmo pela
distância, eu consigo notar a irritação preencher o seu rosto com uma
grande facilidade.
Ele se esforça em parecer controlado em minha presença e, por mais
que o admire por isso, gosto da forma como ele parece furioso quando se
trata de minha segurança.
Estou curiosa para descobrir quem é a pessoa que o deixa tão tenso,
mas não quero irritá-lo. Provavelmente ele ficaria ainda mais furioso se eu
não subisse para o meu quarto agora mesmo e o deixasse resolver as coisas.
Quem for este cara, sei que não irá me receber com um lindo buquê de
rosas frescas e uma cesta com os meus chocolates favoritos, já que ele faz
parte da porcentagem de homens que eu com certeza desejaria a morte. Ela
se iniciou com aquele que me criou, no entanto.
Sei que pessoas cruéis nunca deixarão de ser cruéis, e não acho que
o homem que está lá em cima seja uma pessoa na qual devemos confiar.
Não quando ele faz com que todas as veias do corpo de Jay pulsem no
mesmo momento.
Não deve ser uma boa pessoa, e eu não sou uma pessoa burra apesar
de parecer tão desligada e sensível. Sei que Jay não quer que eu seja vista
porque sabe que isso me colocará em perigo, e não é exatamente o que ele
quer. Nem eu. No entanto, quero descobrir coisas que Jay não vai dizer
diretamente para mim. Quero descobrir coisas que façam de mim uma
garota mais forte, a verdade já não me assusta e quero ser capaz de suportar
mais do que o necessário.
Jay não vai descobrir se espiar um pouquinho, eu acho.
Olho para o painel na frente do elevador, notando o número oito em
vermelho, congelado no sensor. Isso significa que Jay saltou naquele andar,
então sei exatamente para onde ir.
Olho para os lados, a minha mão escorregando até a maçaneta da
porta.
Preciso ser esperta. Seria óbvio demais se eu entrasse naquele
elevador e simplesmente acabasse de frente para quem eu deveria estar me
escondendo. Seria péssimo acenar como quem diz: "Olá, é por mim que
você está procurando, mas sinto em dizer que o meu segurança particular
obcecado não vai permitir que você toque a sua mão cheia de dedos em
mim, desculpe".
Definitivamente esta não é uma opção.
Salto para fora do carro, fechando a porta em um baque quando
cubro a minha cabeça com o capuz do moletom e giro sobre os calcanhares,
correndo em direção ao elevador com rapidez.
Olhando para ambos os lados, me certifico de que ninguém esteja
atrás de mim e então aperto o botão, as portas do elevador se abrem para
mim cerca de cinco segundos depois. Abraço o meu próprio corpo e aperto
o número dez no painel de numerais da cor néon quando entro a caixa de
metal.
O plano é simples, vou saltar no décimo andar como o combinado,
então não precisarei mentir quando Jay perguntar se realmente fiz o que ele
pediu. Eu cheguei ao andar, só não preciso confirmar que estive nele por
todo o tempo. Mas isso ele definitivamente não precisa saber. Depois disso,
o caminho vai estar livre para que eu possa usar as escadas, então ficaria
fácil me movimentar e encontrar um lugar adequado para espiar o que está
acontecendo. Talvez a conversa deles me proporcione as respostas que
estou procurando.
Jay precisa me desculpar, mas eu realmente preciso de respostas
mais concretas sobre onde estou. Tudo isso ainda não foi explicado
diretamente a mim, e eu preciso ser corajosa se realmente quiser continuar
aqui. Foi isso que ele me ensinou, não é?
Algo como lidar com os próprios problemas, e tal.
É o que estou fazendo. É o que preciso fazer.
Quando o sino soa e as portas se abrem, imediatamente jogo a
cabeça para fora do elevador, olhando para ambos os lados para me
certificar de que o corredor está vazio. Tenho certeza de que se aquele cara
for perigoso, todos os caras do batalhão estarão participando da reunião ou
seja lá o que estejam fazendo no oitavo andar, isso significa que a barra está
limpa por aqui.
Caminhando para fora do elevador, corro em direção às escadas,
descendo os degraus com suavidade, fazendo todo o esforço do mundo para
não fazer um único barulho indesejado que possa chamar a atenção de
alguém.
As escadarias estão silenciosas e escuras, o único som capaz de
chamar a minha atenção são as vozes abafadas e distantes que soam de
algum lugar mais abaixo. Andares abaixo.
Cubro a minha boca com a palma da mão, com medo de que eles
possam ouvir o som da minha respiração, mesmo que de longe.
Continuo descendo as escadas com cuidado para não tropeçar nos
degraus que enxergo com dificuldade devido a claridade fraca que ilumina
o lugar. Meus pés se movem com cautela enquanto uso a mão livre para me
apoiar na parede, a fim de usá-la como guia.
Descendo o último degrau, noto que já não existem outros degraus
para serem descidos pela claridade que vem da abertura onde deveria haver
uma porta. Eu mantenho a minha boca fechada e caminho na ponta dos pés
até a parede mais próxima, arrastando o corpo em direção à abertura para
aguçar os meus ouvidos e escutar o que é dito dentro do cômodo.
Quando dou cinco passos a mais, ouço a voz grave de Jay,
aparentemente furioso.
— Dá o fora daqui! — Exclama ele. — Tem sorte de não ter uma
bala cravada no seu cérebro agora mesmo.
Uma risada rouca, grave, e indiscutivelmente assustadora soa. Meu
corpo arrepia ao ouvi-la.
— Me dê logo o que me pertence e prometo não fazer de sua vida
um inferno. É um acordo justo, não concorda?
Encolho o meu corpo contra a parede.
— Acordo é o caralho! — Jay rebate, seu grito ecoando escadaria
abaixo. — Saia do prédio agora mesmo, não estou brincando, não me
desafie a matar você. É o que eu tenho esperado por anos.
De repente, o tilintar do som de um clique soa como se alguém
estivesse brincando com a rosca de um isqueiro diversas vezes, então outra
vez, e mais uma. O ruído ecoa pelo menos dez vezes, segundo as minhas
contas internas.
Engolindo em seco, apoio o meu corpo na parede com ambas as
mãos e jogo a cabeça para fora um pouquinho, apenas o suficiente para
olhar o que acontece lá dentro. Quando o meu olho direito escapa pela
borda da abertura, fecho o olho esquerdo para que ele não me atrapalhe a
encarar a cena.
Com o semblante fechado, vejo Jay com uma arma em sua mão, o
polegar posicionado em um suporte acima do que parecia ser um pino de
trava, e o indicador mais abaixo, no gatilho. Sua mandíbula está travada, a
arma apontada diretamente para o crânio do cara à sua frente.
Arregalo o olho, encarando a cena que irá aterrorizar os meus
pensamentos pelas próximas semanas. O cara à sua frente também segura
uma arma, está apontada diretamente para o crânio de Jay, igualmente.
Ao redor dos dois, há um grupo de pessoas. Reconheço o uniforme
dos caras que frequentam o prédio, ao redor de Jay, todos com uma arma
em suas mãos apontadas para o grupo de caras assustadores que rodeavam o
corpo do homem de cabelos grisalhos à frente de Jay. É como se estivessem
firmando uma guerra, e ninguém ali estivesse disposto a ceder.
Uma risada desacreditada explode, a voz rígida e de um cara com
menos de quarenta anos vem logo em seguida.
— Bem, não estou surpreso — Zomba, inclinando a sua cabeça,
como se estivesse tentando intimidá-lo. — Mas não precisamos brigar por
uma boceta, apenas entregue-a e você evitará uma guerra que não pode
vencer.
Outra risada, desta vez, os lábios de Jay estão curvados em um
sorriso assustador. Seus olhos brilham e, pela distância, não posso
diferenciar o que exatamente os preenchem. Ódio ou dor.
— Você é corajoso — Diz Jay. — Acha que não tenho coragem de
puxar a porra do gatilho? — Desafia, seu sorriso desaparecendo tão rápido
quanto brotou.
— Você tem? — O velho provoca, brincando com os nervos de Jay.
De repente, quase não consigo raciocinar o que acontece quando o
corpo de um dos homens ao redor do homem cai no chão, um círculo
avermelhado formando-se no meio de sua testa. Jay segue o cadáver com o
olhar, e tapo a boca com uma das mãos para abafar um grunhido.
O homem de cabelos grisalhos deixa de sorrir, fulminando o cara de
cabelos escuros e visual social que sai da multidão ao redor de Jay. Ele, no
entanto, não deixa de encarar o velho com os olhos brilhantes e a arma
ainda apontada para o seu crânio.
Não foi Jay que puxou o gatilho, ele não matou aquele homem, mas
definitivamente parecia querer muito.
— Essa conversa acabou, Floyd — O homem de cabelos escuros
anuncia, guardando a sua arma no cós de sua calça conforme caminha até
Jay. — Tire os seus capangas da minha propriedade, inclusive o cadáver. O
dever de cavar uma cova e inventar uma desculpa para a família, pra
continuar acobertando o trabalho estúpido que ele fez durante a vida, é todo
seu. — Uma de suas mãos toca o ombro de Jay, como se aquilo pudesse
acalmá-lo.
No entanto, ele sequer pisca, apenas mantém os seus olhos
marejados fixos no tal Floyd. Ele parece completamente fora de si, como se
pudesse enfiar dezenas de balas no seu crânio agora mesmo e destruir
qualquer chance que ele tenha de sobreviver a um massacre a sangue frio.
Sinto que ele está se controlando ao máximo para se manter calmo.
Talvez saiba que uma guerra no meio da noite levantaria suspeitas,
não sei. Ou talvez ele só estivesse guardando esse momento para outra hora.
— Williams! — Floyd cantarola, puxando a sua arma de volta para
si, e afastando-a do crânio de Jay. Um sorriso brinca em seus lábios finos e
nojentos.
No entanto, seu sorriso desaparece quando a arma de Jay colide
contra a sua cabeça com força, causando um gemido de dor de sua parte. As
armas de seus companheiros são todas apontadas para Jay na mesma hora e
temo que ele fique ferido. Por favor, não.
Tudo que posso imaginar é que um destes malucos atirem em Jay e
o impeçam de voltar para mim. Ele precisa se acalmar e se livrar desta
situação.
Tudo isso é por mim? Ele está colocando a sua vida em risco por
mim?
Merda, não. Eu não posso permitir, não posso deixar que ele perca a
própria vida para me salvar. Aquele cara está aqui para me levar, aliás, ele
disse eu o pertenço.
Quão longe meu próprio pai foi?
O quanto ele me odeia?
Eu o odeio. Meu Deus, Sebastian Hazel Clarke, eu o odeio.
— Se manda daqui, seu filho da puta. — Jay xinga, raiva exalando
de seu tom. — Apareça aqui outra vez e envio a sua cabeça como aviso
para o restante dos seus homens. Você não a terá, me ouviu? Nenhum deles.
Entenda de uma vez por todas.
Aperto os olhos, recolhendo a minha cabeça e a inclinando contra a
parede. Não posso deixar que Jay se machuque… Não posso…
— Sofia! — Ouço um sussurro à minha frente, e abro os olhos de
supetão, assustada.
Kelly está aqui, abraçando o próprio corpo e me olhando com o seu
par de olhos arregalados. Ela parece tão assustada quanto eu, seu pescoço se
inclina para olhar o que há lá dentro, assim como eu estava fazendo há
alguns segundos, e quando torna a me encarar, seus olhos me analisam por
completo.
Meus olhos marejados indicam o medo, assustada e sem a mínima
ideia do que fazer.
A risada do homem de cabelos grisalhos explode lá de dentro, e
encolho o meu corpo para acalmar os meus nervos.
— Ei! — Ela me chama, estendendo uma das mãos para tocar o meu
braço. — Sofia, não era pra você estar aqui. — Apesar de estar sussurrando
para que não sejamos descobertas, seu tom de voz é melancólico, quase
como se ela sentisse pena de mim.
Balanço a cabeça, tentada a entrar naquele salão e acabar com a
bagunça que provavelmente colocará Jay - e todos nós - em risco. Eu me
sinto culpada, porque mesmo que o tempo tenha passado e eu tenha perdido
quem mais me importava no caminho, continuo colocando pessoas
importantes em risco. Apenas porque sentem a necessidade de me proteger.
Qual é o problema comigo, droga?
— Eu preciso entrar lá — Ergo o olhar até Kelly, esperando que não
tenha soado como um pedido, porque não se trata de um.
Ela arregala os olhos, aproximando-se de mim rapidamente antes de
espiar mais uma vez o que acontece lá dentro.
— Ficou maluca? — Repreende ela, tentando controlar o seu tom de
voz para que não seja ouvida. — Sofia, esse homem é perigoso, ok? Floyd
é insensível e não vai parar até que coloque as suas mãos sujas em você. —
Desespero e preocupação preenche seu tom.
Uma lágrima solitária escapa de um dos meus olhos.
— Todas as armas lá dentro estão apontadas para a cabeça de Jay —
Digo, sentindo o meu coração apertar ao imaginá-lo ferido. Por mim. —
Não posso permitir que ele se machuque… Que ninguém se machuque por
mim. — respiro fundo para conter um soluço.
Kelly abre a boca para rebater, no entanto, um estalo soa lá de
dentro e estremeço o meu corpo contra a parede, a adrenalina causada pelo
susto fazendo todas as minhas entranhas balançarem dentro de mim.
Alguém apertou o gatilho.
O silêncio ensurdecedor preenche o lugar, a ponto de nós ouvirmos
o corpo de algum cara cair no chão drasticamente.
Meus olhos arregalam-se e levo uma das mãos à boca, tapando-a
para me manter quieta. Meu Deus, o que foi isso?
— Tire esse sorriso do rosto, Floyd. — Jay ordena, sua voz grave é
como um grito sufocado. — Já perdeu dois de seus homens, vai esperar até
que eu enfie uma bala na sua cabeça e eles não tenham mais a quem seguir
ordens?
Um suspiro de alívio escapa dos meus lábios ao redor da palma de
minha mão, porque se Jay parece tão irritado e descontrolado, significa que
ele não é o corpo que ouvi despencar contra o chão.
Apesar de assustada, reúno forças e coragem para espiar o lado de
dentro. Minhas mãos tremem e quero simplesmente impedir que tudo isso
aconteça por minha causa, mas apesar de ter a necessidade de ser uma
heroína e salvar toda essa gente de uma morte cruel e trágica no chão de
concreto de um prédio qualquer, sei que é mais do que isso. Vai além disso.
É mais do que imaginei que fosse.
Quando espio no canto da abertura, Jay ainda tem a sua arma
apontada para Floyd, mas as armas dos caras que o protegem estão
absolutamente todas, apontadas para a cabeça de Jay. No entanto, ele sequer
desvia os olhos do cara à sua frente, como se não importasse se ele tivesse
uma dúzia de armas apontadas para o seu cérebro. Tudo que realmente
importa é o homem que o ameaça constantemente, encarando-o com a
mesma intensidade e um olhar que diz mais do que eu consigo decifrar.
— Bem, você é durão. — Floyd torce os lábios, rendendo ambas as
mãos em sinal de rendição.
De repente, todas as armas baixam, exceto a de Jay e a dos caras que
frequentam o prédio.
— Mas não se engane, quem vence a batalha nunca é aquele que
vence a guerra. — Anuncia. — Não é nada que você já não saiba, afinal.
Jay o fulmina com o olhar, seus olhos queimam como o inferno. Ele
parece fora de si, como se pudesse queimar aquele homem a qualquer
instante. E, então, algo me diz que isso está longe de encerrar.
MONTE WHITNEY - 2022
AGORA

— É aqui. — Jason diz, puxando o freio de mão com agilidade.


Todos nós olhamos pela janela fumê tomada pela nevasca devido a
ventania voraz que se deu início desde que chegamos ao Monte. Ainda
preciso me acostumar com a temperatura congelante aqui de cima, estou
abraçando o meu corpo com força enquanto me esforço para conter as
batidas incessantes nos dentes. Estou envergonhada para pedir um casaco a
mais para Lexie, já que o que tinha na mala não é o suficiente para enfrentar
os graus negativos que devem estar nessa cidade.
Lexie inclina o seu corpo, olhando para fora com os olhos
semicerrados.
— Pensei que a cabana do Williams ficava no topo da montanha. —
Ela se aconchega ao meu lado outra vez.
Naten, no banco do passageiro, fecha o seu notebook e o enfia em
uma mochila espaçosa.
— Estamos na estrada durante o dia todo, precisamos descansar, ao
amanhecer nós subiremos a montanha. Essa cabana é um aluguel
temporário. — Explica ele, com calma.
Olho para fora, encarando a cabana na esquina de uma subida
íngreme, as madeiras que mantém a cabana em pé estão tomadas por neve e
excesso de água. A estrada não é muito diferente, o excesso de neve faz o
preto do petróleo das estradas quase desaparecer no meio de tanta neve. Foi
quase um milagre subir até aqui sem afundar.
Está escuro, não podemos enxergar com clareza tudo que há por
cima desta estrada, no entanto, não acho que eles tenham vindo até aqui
sem um preparo lógico de equipamentos. Nós podemos subir agora, e ao
amanhecer, teremos mais informações do que teríamos quando
acordássemos e nos dessemos conta que perdemos tempo demais.
— Estão cansados? — Direciono a pergunta para Naten e Lexie. —
Acho que não podemos perder tempo, subir agora quando ninguém está
esperando por visitas é menos arriscado.
Jason concorda, ainda olhando pelo vidro.
Naten estica o corpo no banco, um suspiro escapando de seus lábios.
— Na verdade, sim. Estou com uma puta dor de cabeça, não tiro os
olhos do computador desde a madrugada retrasada. Preciso mesmo de um
banho e um cochilo.
Afirmo com a cabeça. Não posso ser egoísta com Naten, apesar de
nossas discordâncias em algumas ocasiões, ele está mesmo se esforçando
por seus amigos, inclusive por mim. Gosto de como ele sempre foi alguém
leal e esforçado, Naten sempre foi alguém a quem não me arrependo de ter
conhecido. Espero que ele pense o mesmo sobre mim.
— Sabe, ele tem razão. — Lexie cruza os braços, olhando para
frente enquanto prossegue: — É melhor descansarmos, foi uma viagem
longa. Além do mais, se encontrarmos alguém lá em cima, nenhum de nós
terá força o bastante para enfrentar.
Naten ergue os braços, abrindo-os ainda de olhos fechados,
concordando totalmente com Lexie. Estranho o fato que, de repente,
parecem próximos outra vez. Naquele escritório, pareciam sentir a vontade
louca de matar um ao outro a qualquer hora, mas agora, parecem
comparsas.
Olho para Lexie por cima do ombro desconfiada, e ainda com os
braços cruzados e o corpo perfeitamente encostado contra o couro do
banco, ela devolve o olhar debochado e dá de ombros, agindo com
indiferença ao que desejo dizer a ela visualmente.
— Bom, nós ganhamos, Baker. — Naten ergue o corpo, alcança a
sua mochila apoiada em seus pés e leva uma das mãos à maçaneta da porta,
preparando-se para sair do carro. — Três a um, então nada de aventuras
perigosas em um nevoeiro.
Naten abre a porta, e me dou por vencida, abraçando o corpo com
força quando a brisa fria, e insuportável de ser suportada com apenas aquele
casaco fino, atinge a minha pele. Lexie também começa a se mover,
recolhendo as suas mochilas no centro do banco como uma barreira entre
nós.
Eu suspiro, prestes a começar a recolher os meus pertences, quando
a voz rígida de Jason congela todos nós no lugar.
— Eu não votei.
Nós três o encaramos de imediato.
Naten resmunga um xingamento, recolhe a sua perna para dentro e
fecha a porta, nossos rostos faltam congelar pelo gelo que invade o carro
com a pancada da porta. Jason encara Naten e ambos trocam um olhar
sinistro enquanto Lexie e eu apenas observamos a cena, ambas quietas e
com uma interrogação girando sobre nossas cabeças.
— Com licença, viu? — Lexie interfere, ignorando a presença dos
dois quando me encara e joga as mochilas sobre o ombro. — Se você não se
importa em dividir o espaço com dois malucos, preciso mesmo fazer xixi e
o meu canal urinário não é obrigado a entender que preciso observar a uma
ceninha dessas enquanto ele implora por uma privada. — Resmunga um
xingamento quando salta para fora do carro e corre até a porta amadeirada
da cabana. A lâmpada amarela brilha sobre a sua cabeça.
Eu a observo, contendo um riso quando ela gira a maçaneta e se dá
conta de que precisa de uma chave para entrar. Ela bufa, irritada, quando
fulmina a janela escura do carro com fúria exposta em seu olhar, suas
pernas apertando-se uma na outra conforme grita para que abram a droga da
porta.
Naten ri, saltando para fora do carro, e tilintando as chaves no ar
para provocar Lexie, que o insulta instantaneamente.
Vejo quando Naten abre a porta e Lexie a empurra para entrar na
cabana, largando as suas mochilas pelo caminho. Naten as pega no chão,
levando-as consigo para dentro.
No entanto, como um balde de água gelada, meu sorriso desaparece
como passe de mágica quando sinto algo rígido ser colocado delicadamente
acima das minhas pernas encolhidas no banco. Viro a cabeça, enxergando
Jason com uma jaqueta de couro entre os dedos, oferecendo-a para mim.
Ergo uma das sobrancelhas.
— O que é isso? — O questiono, seguindo a carícia delicada e breve
que a ponta de seu dedo causa na minha coxa.
Estremeço, mas firmo os nossos olhares e espero por uma resposta.
— Vista, você está congelando. — Recolhe as mãos de volta para si.
Minhas mãos alcançam a jaqueta preta, de couro, que
coincidentemente, tem o seu cheiro. Mesmo afastada, ainda sinto o perfume
alcançando as minhas narinas. Massageio o couro e meus dedos escorregam
pela parte interna da jaqueta, sentindo a maciez da pelúcia revestida por
dentro. Parece quente o suficiente para aquecer os meus braços, que
congelam dolorosamente.
Ergo o olhar outra vez, encontrando os olhos profundos de Jason
acompanhando os meus movimentos.
— Mais esmolas?
Ele nega. Parece indiferente.
— Resista a sua vontade louca de brigar comigo desta vez, Baker.
Você está com frio e estou oferecendo a minha blusa a você. Pegue e vista,
ela é sua.
Aperto a parte interna da jaqueta entre os meus dedos, aquecendo-
os. Tento manter o meu orgulho intacto e fingir que não preciso de ajuda
alguma, mas quando olho para fora e testemunho a friagem que me espera,
me contento com a vasta humilhação.
— Vou devolver. — Respondo, vestindo a jaqueta com rapidez e de
forma desajeitada devido ao espaço apertado do banco traseiro.
A visto por cima do moletom fino que já tenho em meu corpo, e
quando cruzo os meus braços e me apresso em fechar o zíper, sinto o meu
corpo por inteiro gritar em alívio. Sinto-me mais quente, apesar do curto
tempo em que a vesti, porém, é mais do que tive desde que pisamos nessa
cidade fria, há pelo menos três horas.
Suspiro aliviada, encolhendo o meu corpo enquanto espero
ansiosamente pelo momento em que sentirei o meu sangue esquentar e
consequentemente, tornar a sentir a ponta dos meus dedos.
— Tenho mais uma coisa. — Jason anuncia, fazendo-me erguer o
olhar em sua direção.
Ele vasculha os bolsos de sua jeans com agilidade, e quando ergue
um pedaço fino de elástico entre os dedos, meu semblante cai.
O objeto entre seus dedos se trata da pulseira que ele deu a mim no
dia em que invadiu a minha casa, eu havia deixado ela no bolso do
moletom, me lembro disso. Não a tirei de lá, sequer me lembrava do colar
que havia se transformado em uma pulseira, mas lá está ela, balançando
contra o ar e sendo sustentada pelos dedos firmes de Jason.
— Roubei da sua mala antes de sairmos do hotel. Quero que a use.
— Ele a entrega para mim.
Recuso imediatamente.
— Eu não quero, Jason, se ela estava sendo mantida no fundo da
minha mala, significa que eu sequer me lembrava da existência. — Sou
dura nas palavras. — E não mexa nas minhas coisas outra vez.
Pensei que ele fosse rebater tudo que eu disse e que entraríamos
novamente naquela disputa idiota onde um tenta diminuir o outro, então ele
viria com a porra do discurso que somos iguais, de novo.
Mas não é o que ele faz.
Jason move um dos braços para as suas costas e puxa uma arma do
cós de sua jeans, erguendo-a o suficiente para que eu a veja. Olho para a
pistola em sua mão, e mais uma vez, quero xingá-lo.
Ele está segurando a arma que eu mantinha em minha casa para
proteger Josh e eu. A maldita arma que roubei de um dos homens da
Luxury.
Sequer me lembrava que ela existia, merda. Ela está aqui, no
entanto, brilhando ao redor das mãos de Jason.
— Isso também é seu. — Ele zomba, girando-a entre os dedos. — E
sim, Baker, quero que você use a pulseira e carregue essa arma para todo
lugar que for, a partir de hoje.
Um meio-sorriso incrédulo brota nos meus lábios.
Ele está falando sério?
— Por quê? — Questiono, irritada.
Ele estica a sua mão, entregando a pistola e a pulseira diretamente
em meu colo. Olho para os itens posicionados em minhas coxas e para ele,
repetidas vezes, sem entender qual é a porra da pegadinha.
Ele inclina o corpo, abre o porta-luvas, tira uma das armas de lá,
depois vasculha todo o carro com os olhos, parecendo buscar por algo.
Faz tudo isso sem responder a minha pergunta e sem olhar para
mim. Ele apenas o fez, quando levanta do banco do motorista e inclina o
corpo em minha direção, no meio dos bancos. Prendo a respiração quando
sinto o seu perfume invadir o meu espaço pessoal. Eu o olho por baixo dos
cílios, sentindo o meu corpo esquentar de imediato.
Ele ergue um dos braços e parece alcançar o que pretendia, pois
parece usufruir de uma certa força quando puxa o que busca para si. Viro a
cabeça, vendo-o com uma mochila enorme entre as mãos, puxando-a por
cima de nossas cabeças, sem afastar o seu corpo do meu e sem tirar os olhos
dos meus.
Ele abre um sorriso sutil no canto dos lábios, e quando atira a
mochila para o banco do passageiro com uma habilidade inegável, uma das
suas mãos alcança a pulseira em meu colo e com a mão livre, Jason puxa
um dos meus braços para si.
Imediatamente tento afastá-lo, sentindo que ele poderia ver os meus
cortes e criar uma nova discussão onde eu o acuso, onde o culpo.
Porém, felizmente, Jason estende o elástico da pulseira ao redor do
meu pulso por cima da jaqueta, amarrando-o com facilidade. Acompanho a
agilidade de seus dedos que fazem um nó perfeito para manter o elástico
firme ao meu braço.
Ao terminar, puxa a jaqueta para cima e centraliza a pulseira no meu
pulso, no entanto, sou rápida em puxar o meu braço de volta e firmo os
nossos olhares, deixando claro que isso é um toque íntimo demais para a
nossa atual relação.
Agradeço mentalmente a ausência de um questionamento referente
ao meu desconforto, porque eu não sou boa em mentir para Jason, ele
captaria a minha má fé no mesmo milésimo de segundo. Isso é problema
meu, ele não deveria saber, não deve saber.
— Tudo isso para que? — Questiono, balançando o meu braço para
que a pulseira escorregue pela jaqueta. — Quer marcar território? —
Zombo, com monotonia escorrendo de meus lábios.
Jason ri, afastando-se de mim.
Sigo os seus movimentos com o olhar quando ele guarda uma das
armas no cós de sua jeans e alcança a mochila, tomando-a para si.
— Nós vamos nos adiantar. Hyuk e Lexie podem descansar, você e
eu, vamos subir a montanha. — Declara, olhando para mim no mesmo
instante, desafio estampado em seu olhar. — Agora você tem a prova de
que faz parte de nós, e se qualquer um tocar em você, saberá que o seu
próximo destino serão as portas do inferno.
Prendo a respiração.
Tenho perguntas a fazer, quero questioná-lo e me impor, mas Jason
me interrompe antes mesmo que tenha a chance de abrir a boca.
— Pegue a arma, Baker. Você não precisa de uma aula de como usá-
la, não é?
Ergo uma das sobrancelhas, encarando a sua ironia como um
desafio.
— Quer pagar para ver?
Ele nega, sorrindo minimamente, quase como se tivesse plena
confiança no que digo. — Será uma longa caminhada, se prepare.
NEW YORK - 2019
ANTES

Meu peito queima, a brasa viva se espalha por todo o meu corpo
sem que possa contê-las. Sinto que posso explodir a qualquer instante, meu
cérebro se recusa a acreditar na merda que fiz. É exatamente por isso que
não penso muito quando vasculho todo o meu quarto procurando por um
pouco de pó.
Geralmente, eu não o uso. Cocaína foi a minha calmaria por muito
tempo, quando estava exausto demais para lidar com as porcarias do meu
pai. Quando me sentia impotente e inútil, graças aos seus lembretes diários.
Eu quero parar. Quero mesmo. Sei bem qual será o meu destino se por
algum acaso, me tornar um viciado. Vou ser exatamente quem ele dizia que
eu seria. Um maldito sem futuro.
Não me restou opção senão adaptar o meu corpo a se contentar com
a nicotina. Não deixa de ser um vício, porém, ele não faria de mim um
completo lunático. Fumo para me aliviar, para não perder a cabeça e jogar
as merdas para o alto, sei que meu descontrole pode destruir o nosso plano,
então lutar contra um vício neste momento é como lutar contra a maré. Não
me importo de estar parecendo com um total desequilibrado, porque é o que
eu sou.
Só preciso me manter na linha.
As vozes da minha cabeça não conseguem me fazer esquecer do
quanto sofri em suas mãos. Ainda ouço os meus gritos, as súplicas para que
ele me deixasse em paz. Me lembro do quanto me esforcei para perdoá-lo, e
do quanto desejei ter nascido diferente apenas para agradá-lo. No fim, nada
disso teve importância, porque nunca fui eu quem deveria ter nascido
diferente.
A porra do mundo seria melhor se Marcus Floyd não tivesse
nascido.
Ele seria melhor se eu não tivesse nascido.
Chuto as caixas de papelão para longe, abro as gavetas do armário e
as vasculho a fundo, procurando por algum pacote que tenha esquecido de
tirar do meu alcance. Meu coração bate com força contra o meu peito, sem
controle algum.
Não importa o que faça para acalmar o meu sistema nervoso, será
tudo em vão. Só preciso amenizar o meu estresse de alguma forma, porque
a culpa está corroendo as minhas entranhas. A culpa de ter sido a porra de
um covarde.
A culpa por ter falhado.
Vasculho o quarto com o olhar, notando a bagunça que havia feito.
As minhas roupas estão espalhadas pelo chão, caixas, abajures e lençóis,
também ao chão.
A busca alucinante por um pouco de esperança. Ilusão.
Rosno quando meu punho acerta a madeira do armário com força, a
fúria preenchendo o meu interior.
Eu deveria ter puxado a porra do gatilho.
Ele teve coragem de insultá-la na minha frente, de travar uma guerra
e, porra, teve a coragem de dizer tudo isso enquanto sorria. Por mais que me
esforce para pensar que ele estava se arriscando demais, essa não é a única
verdade por cima da balança.
É difícil de aceitar que ele havia feito isso porque duvidava da
minha capacidade. Sabia que eu não puxaria a porra do gatilho. Ele sabia
que eu travaria. E brincou com este fato bem na minha cara.
Acho que a principal razão para que esteja tão profundamente
alucinado pelo ódio, é por ter a plena consciência de que ele tem razão.
Estar cara a cara com Floyd não era a intenção, porque mesmo que eu tenha
superado tudo que enfrentei ao seu lado, não significa que o meu eu do
passado tenha superado também.
Me senti como a porra de um chorão outra vez, sensível e carente
de alguma droga de sentimento. Me senti impotente e inferior a ele, como
ele disse que seria.
Filho da puta.
No fim, sou pior do que ele, por sequer ter tido forças para puxar
a droga do gatilho. As coisas seriam mais fáceis, eu estaria livre, poderia
superar de uma vez por todas as coisas que fui fadado a viver. Clarke estaria
à salvo, Kelly estaria à salvo. Luxury acabaria. E, mesmo que naquele
momento eu levasse uma bala no meio da testa por ter tirado a vida de um
homem que é considerado um onipotente, ainda assim, ele viria comigo
enfrentar o grande julgamento final. Assim seria melhor.
Mas não.
Eu hesitei.
Esta simples hesitação levou-o a sair por aquelas portas com a porra
de um sorriso infernal na boca, acreditando que venceu mais uma guerra.
Talvez eu acredite que ele tenha realmente vencido, uma vez que não há
outra justificativa para que tenha saído do meu território com vida.
Irritado, saio do quarto frustrado. Se não tenho um pouco de pó,
sei perfeitamente onde conseguir.
No entanto, antes disso preciso me certificar de que ela está bem.
Não pretendo prolongar muito assunto, não sei qual pode ser o meu
comportamento e não quero ser um merda com ela. Ela não merece. Só
preciso garantir que está bem. Só isso.
Desço as escadas com rapidez, ignorando toda a movimentação
pelos corredores. Marcus Floyd havia entrado com facilidade no nosso
território, todos os homens do batalhão devem descobrir como exatamente
isso aconteceu. Não é muito difícil de adivinhar, nós nunca entregaríamos o
nosso lugar de bandeja para a Luxury.
Não quando mantemos aqui os maiores tesouros que eles gostariam
de colocar as mãos.
Kelly e Clarke valem mais do que uma quantidade suja de grana, e
não vou permitir que elas desapareçam de vista ou estejam em perigo.
A verdade é clara e específica. Temos um traidor entre nós.
Mais tarde, eu mesmo terei uma conversa com cada um dos
homens que estavam de guarda durante o tempo em que estive com Clarke.
Eles não contavam com a ausência dela no prédio, e, só de imaginar o que
teria acontecido caso os homens da Luxury tivessem colocado os olhos nela
enquanto todos estávamos distraídos, sinto o meu sangue entrar em
combustão.
Alguém está traindo a nossa confiança e vai desejar nunca tê-lo
feito quando descobrir quem ele é.
Paro à frente do quarto de Clarke, ergo o punho e bato três vezes
contra a madeira gasta, exatamente como combinamos.
Olho ao redor enquanto espero ansiosamente pela sua
identificação de que não se trata de outra pessoa do lado de fora. Dois
guardas passam por mim às pressas, eu os encaro profundamente,
procurando por algum resquício de desconfiança. Em seguida, escorrego o
olhar até o símbolo bordado em suas camisetas, procurando pela
identificação do batalhão.
Ambos cessam o passo e parecem receosos de abrir a boca e
causar a Terceira Guerra Mundial. No entanto, não há motivo algum para tal
desconfiança se estiverem limpos. Não sou um completo lunático.
— Turner, nós olhamos todo o térreo do prédio e pedimos à
informática para que entrem nas câmeras e descubram como ele entrou com
tanta facilidade. — Informa um deles, aprumando a postura.
Balanço a cabeça em afirmação quando noto o dourado abaixo da
caveira indicando que pertencem ao batalhão ouro. Isso significa que se
estão em um nível tão alto, é por serem merecedores. Se por algum acaso
houvesse algum traidor entre o batalhão mais alto, nós saberíamos.
— Williams? — Pergunto, curioso devido a sua ausência.
A partir do momento em que Floyd saiu por aquelas portas,
Williams desapareceu. Puto, frustrado ou estressado, ele deveria estar aqui
para comandar a situação. Ele é o líder, deveria dizer o que fazer e orientar
os batalhões. Essa não é a minha função.
— Não sei, cara. Se trancou no escritório e pediu por um minuto. —
Diz.
Balanço a cabeça outra vez, estressado com todas as merdas que se
passam pela minha cabeça neste exato momento.
Williams não poderá reclamar de minhas escolhas mais tarde, ele
sabe o quão irritado me encontro quando falhamos em alguma missão.
Nesta, definitivamente, estamos em risco. Não vou colocar tudo a perder e
não me deixarei levar pelo desapontamento de termos sido descobertos.
Estou puto? Sim. Estou me sentindo um merda? Com certeza.
Mas não permitirei que Floyd se sinta tão poderoso outra vez. Ele
que se foda. Williams pode superar o desvio do caminho mais coerente da
coisa.
Coço a nuca antes de erguer o olhar e suspirar profundamente.
— Reúnam todos no salão de treinamento. Desço em alguns
minutos.
Ambos assentem com um brilho desconfiado nos olhos e, então,
seguem o caminho em direção às escadarias.
Não acho que tenha sido difícil adivinhar quais são as minhas
intenções, já que graças a Williams, minhas explosões devem ser limitadas.
Ele não está aqui, no entanto. Não ficarei parado enquanto o líder precisa de
um minuto para colocar a cabeça no lugar. Ele pode lidar com o fato de que
estamos em risco e eu jamais permitiria que ele nos disciplinasse como se
isto fosse um teste do além para testar a nossa lealdade.
Resolver as coisas no diálogo é coisa para gente patética que
acredita no perdão divino e que as coisas são como devem ser.
Não temos tempo para isso.
Ele sempre soube disso quando me escolheu como o seu braço
direito, sabe que não limito as minhas punições tanto quanto minhas
responsabilidades aqui dentro. E se ainda assim ele permite que eu os
coloque em ação, não é um problema meu.
Descobrirei quem está traindo a nossa confiança e conseguirei
tempo o suficiente para colocar o prédio em segurança para manter as duas
à salvo. Eu não estou disposto a quebrar uma promessa, e Williams deve
entender que nem todos aqui são agraciados com o seu bom senso.
Aéreo, encaro a porta de madeira do quarto de Clarke. A
maçaneta se encontra do mesmo jeito que deixei, e do lado de fora, não
ouço sequer um ruído que poderia existir lá dentro.
Giro sobre os calcanhares e analiso a porta, decidindo se deveria
agir como o cara que queria ser para ela. E, apesar dos meus instintos
gritarem para que seja cauteloso, não consigo conter os nervos que saltam
pelo meu corpo, completamente louco pela necessidade de saber se ela está
bem.
Encaro a porta por dois segundos antes de jogar a porra do auto
controle para o alto e agarrar a maçaneta com força, sem paciência para
lidar com a calma que nunca possuí.
Eu apenas preciso me certificar de como ela está, depois disso,
me sentirei menos tenso. Poderei descontar as minhas frustrações em outras
coisas. Os repuxos nos músculos apenas auxiliam o meu cérebro a perder a
capacidade de raciocinar.
Quando giro a maçaneta e entro no quarto, sinto como se eu não
estivesse respirando. Meu pulmão infla e mal consigo conter a porra do
pavor que me domina quando vasculho todo o quarto com o olhar, entro no
banheiro solitário, abro os armários, olho debaixo da cama... Tudo isso para
acreditar que ela realmente não está aqui.
Frustrado, levo a palma da mão à testa e trilho um caminho até o
cabelo, puxando-o com força.
Ela não está aqui.
Meus olhos ardem e a veia em minha testa pulsa, sentindo a
necessidade de explodir a qualquer segundo.
Travo a mandíbula com força demais quando respiro fundo e
decido que deveria vasculhar a porra do prédio antes de tirar a arma do cós
da minha calça e matar a todos que podem estar traindo a nossa confiança.
Eles morrerão da forma mais cruel se Clarke não for encontrada.
Vão desejar nunca ter pisado os seus pés neste prédio.
Se Marcus a levou, eu o encontrarei, juro por Deus, não me
permitirei vacilar com a porra da arma apontada para a sua cabeça outra
vez.
Sequer olho para os lados quando saio do quarto e caminho em
direção às escadas.
O mundo está em silêncio. Mas as vozes na minha cabeça que
insistem em prever o pior, não.
Desço os degraus com rapidez, ignorando a movimentação ao
meu redor. Estou lutando para me convencer de que Kelly pode tê-la levado
para um local mais seguro.
Essa hipótese é a mais simples e a mais fácil de se acreditar.
Nunca me senti tão impotente. Não consigo me perdoar por
vacilar, e se Marcus teve sucesso em sua missão de colocar as mãos no que
nunca o pertenceu, jamais conseguirei lidar com as consequências do
fracasso.
Eu nunca senti o meu sangue ferver com tamanha intensidade.
Estou a um fio de perder a cabeça, de me render ao desespero e
aceitar que sou um covarde. E que tudo isso é minha culpa.
No entanto, quando estou prestes a girar o corpo para descer os
degraus que restam, congelo no topo da escada quando uma das minhas
mãos aperta o corrimão e meus olhos encontram com os de Hyuk em puro
reflexo.
Endireito a postura e procuro interpretar o olhar distante e receoso
que me é dado quando nossos olhares se cruzam. Entretanto, apesar de estar
curioso para descobrir a razão para que ele pareça tão tenso, não é
necessariamente isto que ganha a minha atenção.
No degrau mais baixo, encolhida e com o rosto entre as mãos,
Clarke parece estar enfrentando alguma crise. Sei disso quando o som
agudo de seu soluço ecoa escadaria abaixo. Ao seu lado, Kelly mantém a
loira entre os seus braços, acariciando os seus fios, parecendo se esforçar
para acalmá-la.
Encaro aquela cena com um aperto devastador no peito.
Imagino o pior.
Penso que as coisas podem ser piores do que imaginei.
Penso em todas as coisas que fariam com que ela me odiasse e eu,
consequentemente, desprezasse a minha existência.
No entanto, quando Kelly ergue a cabeça para me encarar, Clarke
nota o silêncio ensurdecedor que se instala entre nós. Não sei sobre o que
estavam falando ou a razão para que ela esteja se debulhando em lágrimas,
mas por um momento, temo que posso despedaçar quando ela ergue a
cabeça e conecta os nossos olhares.
Meu coração instantaneamente palpita contra o peito e meus pés
parecem ter deixado o apoio do chão. Os olhos avermelhados, a ponta do
nariz enrugada e a bochecha corada de Clarke indicam que ela deveria estar
naquele estado há pelo menos alguns minutos.
Quero perguntar quem a feriu, e então pedir perdão por minha
covardia irreparável. Quero voltar no tempo e consertar a merda que eu fiz.
— Jay… — Ela sussurra, levantando-se de forma desajeitada.
Parece aliviada em me ver.
Kelly se afasta para dar espaço para que Clarke se levante, seu
olhar nunca deixando o meu. Todos ali parecem desconfiados, como se
estivessem poupando uma informação que seria capaz de me enlouquecer.
Torno a encarar Clarke, varrendo meu olhar por cada canto de seu
corpo a fim de encontrar algum mínimo arranhão.
— Pare de me vasculhar, eu estou bem. — A sua voz doce e
gentil me faz encará-la. Clarke sobe alguns degraus e cessa o passo no
degrau abaixo, mantendo-se na altura de minha cintura.
Estreito o olhar e busco interpretá-la. Os olhos azuis fixos nos
meus tentam me arrastar para um oceano profundo e sem saída, as mãos
que rodeiam a minha cintura me proporcionam a sensação de alívio, e
quando o seu corpo abraça o meu, só então me permito respirar outra vez.
Quase fecho os olhos e aprofundo-me na sensação de tê-la perto
de mim. Engulo tão em seco ao imaginá-la distante, que preciso entreabrir a
boca para buscar por um ar escasso demais.
— Me desculpa. Você provavelmente vai ficar furioso e eu fui
irresponsável, mas... — Clarke larga o meu corpo e inclina a cabeça,
conectando os nossos olhares. — Eu fui patética, Jay, apenas isso. Não
tenho outra explicação.
A expressão confusa que preenche o meu rosto deve ser óbvia
demais, porque Clarke abraça o próprio corpo e tenta afastar-se de mim
outra vez, contudo, apenas seguro o seu antebraço com força o suficiente
para mantê-la exatamente onde está. Clarke me lança aquele olhar repleto
de pavor, assustada com o agarre repentino.
Não a solto.
Mantendo os nossos olhares conectados, direciono a pergunta a
outra pessoa que sinto nos encarar a todo minuto.
— O que aconteceu, Hyuk? — O tom rígido que domina a minha
voz, indica a intensidade do meu nervosismo.
Clarke suspira, tentando responder a pergunta que não foi
direcionada a ela.
A expressão desconfiada, a forma como ela parece entender que
eu estou furioso e fora de controle, a forma como parece compreender que
não consigo manter a minha cabeça em ordem quando a sua segurança está
em jogo.
Ela sabe.
Clarke é mais do que imaginei que fosse, e não acho que desta
vez ela tenha se interessado em manter a curiosidade e a obediência como
prioridade.
— Eu…
Então a realidade vem como um baque, intensa demais, como um
balde de água fria em uma manhã de graus negativos.
— Você não foi para onde eu pedi que fosse, não é? — A
interrompo.
Espero que ela negue. Espero, porra, que ela diga que estou
errado. Que jamais teria se colocado em risco em tais circunstâncias. Quero
mesmo que ela diga que nunca cometeria um ato de ingenuidade tão
gigantesco.
Penso que não.
No entanto, meu achismo cai por terra quando sua cabeça nega,
devagar, sem pressa, e receosa.
Porra.
Abano a cabeça, negando com veemência enquanto umedeço a
boca seca demais. Desvio os nossos olhares, porque não consigo encará-la.
Não consigo encará-la porque não posso lidar com a ideia de que realmente
acredita ser comum colocar a própria vida em risco desta forma.
Não foi falta de aviso. Nós sempre dizemos que não somos
bonzinhos, não estamos aqui para lidar com arco-íris e unicórnios coloridos.
Nosso mundo é cinza, cruel e horrendo. Ela não vê? Não consegue enxergar
que apesar de todos os defeitos, fazemos o que fazemos para proteger
pessoas como ela? Não vê que a porra da curiosidade é exatamente o que
poderia arrasta-la para o buraco?
— Ninguém a viu, Jay, relaxe. — Kelly diz, seu tom é vacilante.
É como se ela estivesse com medo de mim. Da minha reação.
Um riso amargo me escapa.
Só pode ser brincadeira.
Ignoro Kelly, ignoro Hyuk, há apenas uma pessoa aqui que me
tira das rédeas.
— Eu te pedi um favor, Clarke. Não coloquei uma arma na sua
cabeça e te obriguei a permanecer dentro do quarto. Eu pedi. Com a porra
da educação. — Ignoro qualquer outra pessoa que esteja entre nós, conecto
os nossos olhares outra vez, me esforçando para ser paciente. Apesar de ser
um desafio. — Sinceramente, não sei mais o que dizer a você. Isso não é
uma brincadeira, pare de se arriscar, porque você tem muito a perder.
Ela junta as sobrancelhas, nitidamente abalada com a minha
resposta rígida.
Eu realmente queria que tivesse outra alternativa, mas ela não
parece ser o tipo de pessoa que aceita as coisas como são sem o auxílio de
um chacoalhão.
— Eu só... Queria entender como as coisas são, eu acho.
Bufo um riso incrédulo quando tomo uma das suas mãos e aperto-
a contra a minha.
— Você acha que consegue lidar com as coisas como elas
realmente são? — Desafio-a, sentindo minha voz falhar no processo.
— Pensei que você estivesse me treinando para isso. — Clarke
responde, aparentemente abatida pelo tom que preencheu a minha voz. Ela
responde à altura.
Não é uma mentira, realmente planejava treiná-la do zero, para só
então mostrar como é a nossa realidade. Não acho que as coisas sendo
como são, iriam contaminar os seus olhos com um brilho imensurável
causado pela realização. Isso não aconteceria.
Mas eu estou puto. Pela primeira vez, ela conseguiu me tirar do
sério.
As coisas não sairão como o planejado, porque ela acabou de
destruir todas as chances de conhecer - aos poucos - a vida que a aguardava.
Que esperava pelo o seu amadurecimento, pelo comprometimento e a droga
da obediência que ela negou ter quando a pedi para ficar na droga do
quarto.
— Certo. — Meneio a cabeça em direção às escadas. Minha voz é
firme. Eu estou convidando-a para um passeio não muito convidativo.
Ela pisca algumas vezes, alternando o olhar entre as escadarias e
eu. É óbvio o seu receio, mas é isso que ela realmente quer, não é?
— Você acha que pode lidar com o que eu sou, não acha? —
Indago, debochando da situação. — Então vamos ver como você se sai no
processo.
Antes que ela possa protestar, levo uma das mãos até o seu
antebraço e a puxo escadaria acima. Ela prende os pés no chão, como se
estivesse prestes a soltar mais um daqueles protestos de que não iria para
nenhum lugar se não tivesse uma resposta. Ela não a terá, no entanto. É o
que ela quer, descobrir a verdade por si só. Então quando ela encarar as
coisas como elas são, verá que nem sempre o ato de coragem é válido. Às
vezes, precisamos ser coerentes, abaixar a cabeça e seguir uma ordem.
— Ei, ei! — Hyuk intervém. Viro a cabeça a tempo o suficiente
para vê-lo pular de dois em dois degraus, a fim de nos alcançar no topo da
escada. Quando me encara, seus olhos capturam o meu agarre no braço de
Clarke, então tornam aos meus outra vez, visivelmente incrédulos. — Ela
não está pronta. Você não está pensando direito.
Eu o olho, sentindo a necessidade de conter a minha vontade de
arrastá-la para um lugar que não brilharia os seus olhos, e temo dizer, que a
faria sentir medo de mim. Do que eu fui obrigado a me tornar para
sobreviver.
Quase concordo com ele, quase baixo a guarda e digo que ele tem
razão.
Mas não é isso que faço.
— Nós dois sabemos que eu nunca faço boas escolhas. Talvez eu
me arrependa mais tarde, ou talvez não. — Digo a ele. — Vá ao salão de
treinamento e leve o seu equipamento, é tudo que peço.
Hyuk coça a cabeça, jogando os fios lisos para trás. Ele parece tão
apavorado quanto eu.
— Maldita hora que eu decidi ser o irmão de um desequilibrado
— Resmunga, mais para si mesmo do que para mim. Suspira pesado e abre
os olhos, mirando-os em mim. — Certo, certo. Vou pegar o meu
computador e apareço por lá. Não faça nenhuma bobagem.
Dou de ombros, arrastando Clarke para perto de mim. Ela não
protesta em nenhum momento.
— Não vou fazer nada que já não deveria ter sido feito. — Cuspo
as palavras, pronto para girar sobre os calcanhares e seguir com o meu
caminho. No entanto, a figura encolhida e os olhos arregalados de Kelly
chamam a minha atenção. Pela primeira vez, ela parece assustada com o
que virá a seguir. — Não se preocupe, não é nada que você não seja capaz
de suportar. — Direciono as palavras à ela, lembrando-a visualmente de que
ela é a porra de uma garota forte pra caralho.
Ela sobreviveu a infernos piores que definitivamente não merecia,
e este no qual enfrenta neste momento, é simplesmente para protegê-la.
Hyuk foi o responsável por treiná-la até que eu encontrasse Clarke. Ele é
paciente e astuto, não acho que ela esteja na estaca zero, não totalmente. Ela
sabe suportar essas merdas, confio plenamente em sua capacidade.
O seu passado é a evidência principal de que ela é forte e capaz.
Dito isso, puxo Clarke ao próximo andar, diretamente ao salão de
treinamento onde todos os batalhões já devem esperar por mim.
— Jay, você está me assustando. — Clarke sopra, conforme tenta
acompanhar os meus passos largos.
Contenho um riso irônico.
— Estou? — Debocho, largo o seu braço e viro o corpo para encará-
la. — Por que estou te assustando, Clarke? Por que perdi a cabeça? Por que
estou furioso com você? — Indago, aprofundando os nossos olhares como
nunca havia feito.
Noto quando ela respira fundo, seus olhos parecem
decepcionados e ela parece querer fugir deste prédio, especificamente, para
longe de mim. Seus braços se cruzam na altura do peito e ela mordisca o
canto dos lábios, desta vez, como se estivesse envergonhada.
— Está me assustando porque está parecendo com ele. — Ela
suspira, desviando os nossos olhares como se aquilo pudesse me machucar.
— Você não é assim. Não é…
— Não sou o quê? — A interrompo, a um fio de perder a cabeça.
— Não sou como ele? Não me compare com o seu pai, Clarke, ou você
definitivamente não vai gostar do que vai ver.
Ela se cala.
Estou me sentindo o maior cuzão de todos os tempos por tratá-la
dessa maneira, porém, como poderia ser diferente? Como eu poderia estar
menos furioso quando estive a um fio de perdê-la? Por que caralhos ela não
consegue se dar conta de que a única coisa que faria com que eu realmente
fosse destroçado, seria se por algum acaso do destino, eu a perdesse?
Não é difícil de adivinhar, cacete.
Pela primeira vez na vida, tenho algo em minhas mãos que nunca
passou pelas mãos daquele que se acha tão superior. Ele não a tem. Ela é
minha. Isso o irrita e o faz querer desesperadamente tê-la para si, para só
então, conseguir me atingir de alguma maneira.
Jurei que seria paciente e omitiria boa parte de nossas realidades.
Jurei que levaria as coisas em um ritmo lento, com calma.
Mas agora tudo está por um fio. Eu preciso protegê-la e só há
uma forma de fazê-la acreditar de uma vez por todas de que nada disso é
alguma brincadeira.
— Eu teria dito a verdade para você se, por algum acaso, tivesse
perguntado antes de chegar com todo esse ar de superioridade. — Ela
finalmente declara.
Inclino a cabeça em sua direção, olhando fixamente para o par de
olhos azuis vidrados nos meus. Suas sobrancelhas se franzem e seus braços
largam o seu corpo, caindo ao seu lado. Ela avança alguns passos em minha
direção e ergue o queixo o suficiente para não quebrar o nosso contato
visual.
Eu observo todos os mínimos detalhes, desde a sua sinceridade,
até a forma como parece destroçar toda a proteção entre a fúria e a razão
que mantenho presa em meu peito.
— Eu teria dito que fiquei curiosa para conhecer mais sobre você,
para ter respostas que você não me diz. — Revela, seu tom de voz é baixo e
suave. No entanto, a decepção ainda é presente ali. — Quis conhecer cada
lado seu, porque nada do que eu imaginava que você fosse, poderia me
assustar. A minha opinião continua a mesma. — Ela afirma, finalmente
cessando o passo à minha frente.
Ouço cada palavra com atenção.
— Se tivesse perguntado diretamente a mim, saberia que fiquei
apavorada por ver tantas armas apontadas para a sua cabeça. Fiquei com
medo de perder a única pessoa que acreditou em mim. Que me ajudou a
sentir alguma coisa. — Explica lentamente, para que nada do que diz possa
passar despercebido por mim.
Engulo em seco, pronto para questioná-la.
— Você estava espiando?
Ela não esconde o meio-sorriso incrédulo que cresce no canto da
boca rosada e carnuda.
— Não tive medo quando você apontou a sua arma para a cabeça
daquele homem, não tive medo quando você atirou no crânio do outro cara.
Não tive medo quando gritou comigo e pareceu descarregar todo o peso da
sua raiva em mim. Tive medo da sua atitude de não me dar uma única
chance de explicar as minhas razões, porque foi exatamente isso que passei
na minha infância. Não importavam os meus motivos, eu sempre estava
errada se não seguisse a uma ordem idiota. Você fez a mesma coisa, Jay. —
Ela se aproxima, colando os nossos corpos em um abraço suave, sem
apertos, sem intensidade.
Confuso, olho para baixo, encarando o seu couro cabeludo loiro
enquanto ela relaxa a sua cabeça em meu peito, certamente ouvindo as
batidas descompassadas do meu coração.
— Não sei qual é o seu grande plano, mas nada vai fazer com que
tenha medo de você. Não se você deixar de ser um babaca e permitir que eu
mesma te explique diretamente quais foram as minhas más escolhas. — Sua
voz se torna um sussurro.
Fecho os meus olhos, travando a mandíbula com força enquanto
tento me manter sob controle.
Meu Deus.
Ela é mesmo real?
Ela existe, porra?
Ninguém nunca fez isso. Ninguém buscou entender as minhas
merdas, ninguém nunca ignorou a minha crueldade porque este sempre foi
um traço que se destacou em mim. Todos temem o monstro que eu sou, o
monstro que tento evitar a todo custo mas que já se tornou parte de mim.
Parte esta que não posso remover. Ainda assim ela está aqui, acalmando o
furacão que ameaça invadir o meu peito com uma facilidade desconhecida
por mim até então.
Abro a boca para conseguir respirar melhor, contendo as minhas
mãos que desejam estar ao redor de seus cabelos outra vez. A minha boca
que deseja sentir o gosto da sua outra vez, meus dedos que desejam apertar
a sua carne contra a minha, outra porra de vez.
Não sei o que ela tem, mas há algo em Sofia Clarke que me puxa
diretamente até ela. Como se fosse o metal e o meu corpo um maldito imã.
Ela não parece ser real, não parece estar ao meu alcance, parece ser aquele
tipo de garota inalcançável e proibida. E mesmo que houvesse alguém para
me impedir de reivindicá-la, a menos que esta pessoa fosse um deus
supremo, jamais seria capaz de ter sucesso em sua missão medíocre.
Inclinando a cabeça, ergo um dos braços e levanto a sua cabeça.
Ela abre os olhos de supetão e me olha de uma maneira tão profunda que
por um segundo, quase me esqueço qual é a minha prioridade no momento.
Então, afundo a minha mão em seus cabelos e os sinto aquecer a
palma da minha mão. Sinto quando uma das suas mãos viaja por baixo da
minha camiseta, trilhando um caminho até a minha costela e quando sigo o
seu movimento, noto os respingos de sangue que existem na camiseta.
Quero afastar Clarke desta bagunça, mas ela não parece se incomodar,
parece até confortável demais.
A fervura da sua mão em contato com a minha pele faz com que a
minha respiração acelere. Sei que se ela continuar nesse ritmo, terei que
avisá-la sobre as consequências de mexer com a minha cabeça.
Ela não está pronta para um passo tão elevado.
Ainda não.
Clarke viaja sua mão até a minha barriga, a ponta dos dedos tocando
delicadamente cada gominho que há ali. Ela segue o mesmo ritmo
cautelosamente, provocando-me, e quando a ponta suave de seus dedos toca
o meu mamilo, seguro o seu pulso e interrompo a carícia prazerosa demais.
Ela franze o cenho, confusa. Sei que teme que tenha feito algo de
errado, mas apesar de estar longe disso, não digo nada. Não parece ser o
momento. Só a olho com toda a admiração que sinto e encaro os seus lábios
entreabertos, tendo a plena consciência de que estou fodido. Não posso
voltar atrás.
Um sorriso perverso cresce nos meus lábios quando aproximo o
rosto do seu e colo os nossos lábios, esquecendo-me completamente de que
há pelo menos vinte minutos eu precisava de um pouco de pó para me
acalmar e ela conseguiu isto em segundos. Ela se tornou a minha nova
droga favorita.
Procuro ignorar o arrepio que cresce no pé da minha barriga
quando sinto a sua língua invadir a minha boca sem um aviso ou alguma
permissão. Ainda não descobri como ela beija tão bem com toda a pouca
experiência que possui, mas não importa, contanto que eu seja o único a
provar do gosto insubstituível que apenas a sua boca formidável possui.
Eu largo os seus cabelos e traço um caminho desde a nuca,
bochecha, e mandíbula. Mantenho a minha mão abaixo de seu queixo,
cobrindo boa parte de sua garganta com o tamanho da minha mão.
Clarke arfa, indicando que a força que coloco no toque não é tão
gentil como eu esperava que fosse.
Como poderia?
Não consigo ter racionalidade alguma quando a tenho em minhas
mãos.
Eu inclino a cabeça e aprofundo o nosso beijo, tomando o
controle do beijo que tanto necessito. Não peço permissão para invadir a
sua boca com a minha língua, tampouco para chupar a sua com tanta
ferocidade. Rosno quando Clarke aperta a minha cintura com ambas as
mãos e mordisca o meu lábio inferior.
Sem perceber, começamos a caminhar sem direção específica até
que sinto o seu corpo atingir uma parede. Só então me permito agarrar uma
das suas pernas com a mão livre e erguer o seu corpo, firmando-o no
corrimão.
O arrepio na virilha é fatal, não consigo conter a forma com que a
minha mão acaricia a sua perna macia. Não consigo conter o meu aperto em
sua garganta, resistindo a vontade alucinante de sufocá-la com o mais puro
prazer. O maior deles.
Depois disso, me insulto internamente por não conseguir ter
algum controle. Ela suga tudo o que tenho. Me tira do eixo. E eu sei que
estou fodendo com tudo.
Mas não consigo parar. Não posso.
Empurro o seu corpo contra a parede, tomando a sua boca com a
minha da melhor forma que posso, resistindo a satisfação que me preenche
por, finalmente, ter Sofia Clarke em meus braços, aqui comigo, porra.
Chupo a sua língua com força, arrancando dela um gemido de
satisfação. Ela leva as mãos para os meus cabelos e os puxa entre os dedos,
arranhando o meu couro cabeludo como pode. Consigo sentir a sua
respiração pesada contra o meu rosto, seus lábios indicam o desespero que a
preenche por dentro da mesma forma que acontece comigo, ainda que o seu
seja menos problemático.
— Você é o primeiro garoto que eu beijei. — Ela confessa,
puxando o meu lábio inferior entre os dentes. Isso é sexy pra caralho. —
Acho que vai ser o único, também.
Sorrio, nada surpreso pela revelação. Eu sabia que ela não tinha
muita experiência, mas talvez ela tivesse beijado algum bebezão durante o
primário, ou coisas assim. Estou honrado por sua cogitação de me manter
em tal posição por tanto tempo. Não desejaria que fosse diferente.
— Ninguém além de mim tem permissão para provar o seu gosto
— Acaricio os seus lábios com a ponta dos dedos, provocando-a. — Você é
minha.
Sua pupila dilatada é um claro sinal de que ela concorda com o
que estou dizendo. Linda.
— Ninguém além de você tem permissão para me explicar o que
significa essa vontade avassaladora de fazer xixi enquanto você está me
beijando. — O adendo quase me faz vacilar. A inocência com que ela diz
isso, faz o meu coração arder como brasa e o meu pau começar a ganhar
vida dentro do jeans.
Repreendo o meu subconsciente imediatamente. Porra, não.
Ela acaba de admitir que fica excitada quando está me beijando.
Apenas não sabe disso.
Respiro fundo antes de recuar um passo e desviar o olhar, tentando
distrair a minha mente com qualquer outra coisa que não seja arruiná-la
aqui e agora. Não, isto está fora de cogitação. Se acalme, Jason do caralho.
— O que foi? Eu disse alguma coisa errada? — Ela desce do
corrimão, buscando o meu olhar.
Eu nego, piscando diversas vezes a fim de amenizar o fervor que
aquece a minha pele.
Como posso me surpreender?
Ela viveu toda a sua vida longe dos próprios desejos e livre arbítrio.
Sequer sabe o que é tesão ou prazer próprio. É tudo tão novo…
Respiro fundo, controlando-me o máximo que posso.
Forço uma tosse.
— Disse mais coisas do que gostaria de dizer, isso não posso
negar. — Zombo, mudando o rumo da situação. — Agora vamos, preciso
resolver uma coisa.
Ela apenas assente e se aproxima de mim, colocando-se em minha
frente e ajeitando toda a minha camiseta, gola e cabelos.
— Se vai dar uma lição nos caras, precisa se livrar da aparência
de quem acabou de dar um belo trato na garota que deveria estar
protegendo. — Ela zomba, deslizando a palma de sua mão pela minha
camiseta a fim de amenizar o excesso amarrotado.
Um meio-sorriso perverso brota na minha boca.
— E não era isso que eu estava fazendo?
Ela mantém uma das mãos em minha virilha, abaixo da barra da
camiseta, quando conecta os nossos olhares e devolve o sorriso perverso na
mesma intensidade.
— Era, mas ninguém precisa saber disso. — Responde, recuando
alguns passos em direção às escadas para continuarmos o nosso caminho.
Então olhando por cima dos ombros, ela instiga: — Você não vem?
Respiro fundo, caminhando até ela com um sorriso no canto da
boca.
Essa garota ainda vai me matar…
Ela ergue um dos braços e balança os dedos no ar, convidando a
minha mão a entrelaçar na sua. Acompanho o movimento e não hesito em
segurá-la e firmar o aperto, com medo de soltá-la e descobrir que nada disso
é real. Eu ficaria apavorado.
Pela primeira vez em muitos anos, realmente sinto o meu coração
aquecido pela chama da felicidade. Estou confortável, finalmente sentindo
que sou amado pelo que realmente sou. Sem mentiras, meias-verdades ou
invenções. Sou só eu sendo eu. É só ela sendo ela, me amando do jeito que
eu sou.
Ela me tem na palma da sua mão e poderia levar-me ao céu ou
descartar-me para o inferno quando quisesse. A minha sentença virá quando
ela descobrir que tem esse poder.
— Vai ser muito feio? — Ela indaga de repente, se referindo à
reunião no salão de treinamento.
Aperto a sua mão e acaricio a divisão de seus dedos com a ponta do
indicador, procurando acalmá-la.
— Depende do que vou descobrir.
Quando descemos o último degrau, a viro de frente para mim e
mantenho o seu corpo ereto quando acaricio os seus ombros, fazendo-a me
olhar.
— Quero você atrás de mim o tempo todo, agarre a mão de Kelly e
fique onde eu possa te ver quando precisar me certificar de que tudo está
exatamente onde eu deixei. — Instruo, ouvindo os cochichos vindos do
salão. Estamos do lado de fora, a um passo de enfrentá-los. — Dessa vez,
você não vai querer ser desobediente, não é? Preciso que você…
— Estarei bem atrás de você, Jay. — Ela interrompe, revirando os
seus olhos na órbita. Eu ergo uma das sobrancelhas. — Eu juro, não vou
fazer nada parecido outra vez.
Assinto, disposto a lhe dar a oportunidade de mostrar a sua
competência, pela segunda vez.
— Então vamos.
É a minha vez de erguer um dos braços e convidá-la a segurar a
minha mão. Notando o meu movimento, Clarke sorri e alterna o olhar entre
a minha mão e os meus olhos.
— Pensei que você não quisesse que soubessem que estamos
juntos.
Eu rio pela forma como ela parece receosa ao definir um rótulo
para o que somos. Quis zombar disso, mas não é o momento para
discutirmos sobre o nível da nossa atual relação.
Outra hora.
— É bom que eles saibam que você me pertence.
Clarke bufa um riso, agarrando a minha mão e apertando-a contra
a sua palma.
— Eu pertenço a você?
Sopro uma risada.
— Antes mesmo que pudesse desconfiar.
Não lhe dou tempo o suficiente para responder a minha provocação,
já que avanço alguns passos adiante e nos arrasto para dentro do salão.
Imediatamente, todos ali notam a minha presença.
Os caras estão todos reunidos no canto do salão em seus círculos de
afinidades, cochichando sobre algum assunto, mas quando seus olhos
percebem a minha presença, começam a se movimentar em direção ao
centro do salão. Outros, que estavam no ringue treinando no tempo livre,
também vem para o centro.
Passamos por eles como furacões. Clarke parece tensa, sinto a
palma de sua mão suar pela tensão, ela odeia toda a atenção que é
direcionada a ela. Sei disso. Então com o objetivo de acalmá-la, aperto a
sua mão e a encaro de soslaio.
— Fique calma, linda. — Sussurro, alto o suficiente para que apenas
ela ouça. — Ninguém aqui está te julgando.
Ela balança a cabeça repetidas vezes, negando-se a olhar para
qualquer outro ponto que não sejam as paredes de concreto à sua frente.
Quando direciono o olhar até os seguranças que fazem turno nesta
noite, alterno o olhar entre o quarteto por longos segundos enquanto sigo o
meu caminho. Eles deixam de conversar entre si ao notar a minha atenção
direcionada a eles. Um deles engole em seco e eu o encaro, decidindo que
será por ali que começarei.
Quando me coloco ao centro do salão, solto a mão de Clarke ao
mantê-la às minhas costas. Não demora muito até que Kelly e Hyuk
adentrem pela porta do salão, ambos carregando notebooks e outros
equipamentos que apenas Hyuk entende como funciona.
Espero que ambos se aproximem. Os caras dos batalhões esperam
de braços cruzados, todos com os seus respectivos uniformes pretos,
bordados com o símbolo da academia. Vago o meu olhar por cada um deles,
imaginando quem seria patético o suficiente para vestir a uma farda desta e
ainda ser capaz de traí-la.
Todos estão em silêncio encarando-me dentre todas as pessoas que
existem aqui. Suas atenções estão fixadas em mim.
É assim que deve ser. Há duas opções, essa noite será um
completo desastre, ou uma saída para os nossos problemas, porque, se eu
descobrir quem está nos traindo, ele não morrerá até que nos diga todas as
informações que precisamos descobrir.
— Qual é o seu plano? — Hyuk pergunta quando se aproxima.
Ele mantém duas caixas de plástico pretas abaixo do braço. — Preciso
organizar os materiais.
Eu assinto, aproximando-me de seu ouvido.
— Preciso que acesse todas as câmeras com áudio do prédio.
Principalmente aquelas da entrada, saída, e também aquelas que instalou no
subterrâneo, por precaução.
Nem todos sabem que há outras câmeras espalhadas pelo prédio,
além daquelas que todos os caras da informática possuem passe livre para
acessar. Há aquelas que ninguém, além de Hyuk, consegue acesso. São os
benefícios de ter um amigo bom pra caralho no que faz.
Sabíamos que uma hora precisaríamos de uma saída ou um plano
B, Hyuk nunca esteve errado quanto a isto.
— Certo — Ele abre um sorriso minimalista, como se estivesse se
gabando. — Algum horário específico?
Cruzo os meus braços.
— O dia inteiro.
Não esperando pela sua resposta, viro-me em direção aos caras que
esperam pacientemente por uma satisfação. Coloco ambos os braços para
trás e procuro emanar a liderança que preciso ter neste momento. Inclino o
queixo e deixo Hyuk para trás quando avanço alguns passos e olho em
direção aos seguranças do turno.
— Venham aqui.
Eles se entreolham, mas quando notam que não há escapatória,
avançam alguns passos até estarem à minha frente. Todos enfileirados, a
cabeça baixa e os olhos fixados no chão, como mocinhas covardes.
— Ash Scov, qual era o seu turno? — Direciono a pergunta ao
segurança da ponta esquerda. Caminho até ele e o obrigo a me encarar.
Ele ergue o olhar, visivelmente intimidado perante a mim.
— Minha responsabilidade era toda a zona de entrada e saída
durante a tarde, senhor. — Responde ele, sinto a sua voz tremer.
Balanço a cabeça, girando o meu corpo para encarar Hyuk às
minhas costas que desta vez, está ajoelhado ao chão, digitando
apressadamente em seu notebook.
— Verifique o turno da tarde primeiro, Hyuk. Quero descobrir se
o nosso querido Ash está sendo honesto. — Giro novamente sobre os
calcanhares, encontrando os seus olhos apavorados em minha direção. —
Se você está cometendo algum ato de traição, essa é a sua grande chance de
dizer a verdade. Ou vocês dizem a verdade ou nós descobriremos. Não serei
tão piedoso quanto Williams.
Ash abre a boca para responder, mas quando algo parece atingi-lo
com firmeza, balança a cabeça e mantém os olhos fixos no chão.
Eu inclino o meu corpo o suficiente para sussurrar em seu ouvido:
— Me diga, Ash, Marcus Floyd passou por você enquanto nós
estávamos distraídos? — Questiono.
Sinto o tremor de seu corpo, mas não me movo.
— Ele te ofereceu grana? Um bom salário?
Ash finalmente reage, erguendo a cabeça e aprumando a sua
postura como nunca havia feito. Os seus olhos estão vermelhos, algo me diz
que está a um fio de se debulhar em lágrimas, eu gosto de como soa
intimidador para ele, mas espero por sua resposta.
— Não, senhor. — Responde, firme. — Eu jurei lealdade à
academia, não houve traição alguma da minha parte.
Torço os lábios, pendendo a cabeça para o lado, parcialmente
surpreso.
— Bom, Ash. É o que nós vamos ver.
Viro até Hyuk, lhe oferecendo um olhar sugestivo. Preciso que ele
apresse as coisas, há pelo menos mais cem de nossos homens para
analisarmos.
Entendendo o recado, ele inclina o corpo e captura um fone de
ouvido estilo headsets, colocando-o em seus ouvidos. Um clique do mouse
soa, e todos nós sabemos que a hora da verdade está próxima demais.
Aproveitando-me da situação, encaro os seguranças por cima do
ombro e os ofereço uma piscadela provocante, instigando-os a denunciar
quem realmente são. Quando todos os quatro dão de ombros e desviam a
atenção, eu não contenho o riso que escapa da garganta. Imbecis.
— Ash Scov não saiu do seu posto por um segundo sequer.
Tampouco teve contato com os demais seguranças. — Hyuk anuncia,
fazendo-me interromper o meu riso amargo.
Eu torno a encarar Scov por cima do ombro a tempo suficiente
para vê-lo suspirar aliviado. Ele estava sendo honesto então, no fim das
contas.
— É o seu dia de sorte, Scov. — Anuncio ao dar batidas firmes
em seu ombro. — Está liberado, por ora. Lembre-se, estou de olho em você.
— Aviso, avançando para o próximo segurança.
Xavier Peroni, alto o bastante para intimidar qualquer intruso,
mas não o suficiente para me fazer vacilar.
— Xavier, qual era o seu turno no dia de hoje?
Ele ergue o olhar, sem a pontada de pavor que o seu amigo
demonstrou a alguns minutos. Este é um ponto positivo a ser considerado.
Ou ele era um homem honesto, ou um grande filho da puta.
— Pela manhã eu estava fazendo ronda no estacionamento, pela
tarde fui direcionado ao térreo. — Explica.
Ergo uma das sobrancelhas, curioso.
— De quem veio a ordem para mudar a sua posição?
Noto quando Xavier vira a cabeça, firmando uma troca de olhares
sinistra com o próximo a ser interrogado, Harry Miller, o segurança pelo
qual nunca partilhei tanta confiança. Os acompanho durante toda a troca
visual, Miller aparentemente mais tenso do que Xavier.
— Senhor, se me permite falar... — Ergo o olhar quando um dos
caras do batalhão, Alex, se manifesta. Permito que fale com um menear de
cabeça. — Ontem a noite, durante a ronda que Williams pediu para que o
batalhão fizesse, nós vimos um dos nossos tendo uma conversa bastante
duvidosa com um cara dentro de uma SUV, há pelo menos uma quadra
daqui.
Ouço o que ele tem a dizer atentamente, acenando para que ele
prossiga. O salão segue em absoluto silêncio.
— Nós pensamos que fosse outra pessoa, apesar de eu jurar que
havia visto o brasão da academia bordado na sua jaqueta. — Diz. — Não
tivemos tempo para compartilhar do que vimos, não antes da surpresinha
desagradável no dia de hoje. — Abana a cabeça como o claro sinal de que
terminou o que tinha a dizer.
Concordo, agradecendo-o visualmente pela informação deveras
útil.
— Olha só... — Debocho, andando de um lado para o outro, de
frente para a fileira dos seguranças. — Vou precisar jogar uni-duni-tê, ou
um de vocês vai me dizer a porra da verdade?
Ash Scov recua alguns passos, infiltrando-se no meio do restante
dos batalhões. Não me importo com seu afastamento, uma vez que ele
provou a sua lealdade.
Espero cerca de dois minutos enquanto o silêncio ensurdecedor
predomina no salão. Nenhum deles abre a boca.
— Xavier, responda a pergunta. — O pressiono, com autoridade.
Ele limpa a garganta, nitidamente intimidado.
— Nenhuma ordem foi dada, senhor. — Ele responde com receio.
Torcendo os lábios, dou-me por vencido quando noto que nenhum
deles abrirá a boca enquanto não for forçado a isso. Até o momento, Harry
Miller é o meu suspeito principal, desde o momento em que ele encarava
Williams com uma carranca, sentindo-se superior, ele esteve em minha
mira. Nunca consegui confiar nesse cara, não quando ele parecia ser tão
duvidoso.
No entanto, ele não é mesmo o tipo de cara que diria a verdade. É
covarde demais para isso.
Mas estou disposto a entrar no seu joguinho sujo.
Virando-me de costas para os batalhões, eu afundo a mão no
bolso do meu jeans até capturar uma moeda. Giro-a nos dedos no momento
em que giro sobre os calcanhares, erguendo-a no alto para que todos -
principalmente aqueles que seriam julgados - a vejam.
— Um jogo, então. — Sugiro, oferecendo-os um sorriso sujo e
perverso.
Avanço dois passos até estar cara a cara com Harry Miller, eu
sorrindo ironicamente e ele travando a mandíbula com uma força capaz de
explodir os dentes. Acho deveras divertido causar este efeito em homens
como ele.
— Cara ou coroa, Miller? — Pergunto enquanto giro a moeda
entre dois dos meus dedos.
Ele não responde. Seu nariz enruga e a veia aparente em sua testa
chega a pulsar.
O meu sorriso alarga..
— Certo, coroa então.
Giro a moeda duas vezes entre os dedos, antes de jogá-la na
palma da minha mão, sem me dar o trabalho de verificar qual é o resultado.
Fixo os nossos olhares e não o desvio quando debocho da cara dele,
achando graça na maneira como ele reage a minha resposta, aparentemente
puto pra caralho.
— Deu coroa. É a sua vez de abrir a boca.
Ele não se move, mas segue todos os meus movimentos com o
fogo aparente em seu olhar, principalmente em saber que desconfio de sua
lealdade ao sequer me incomodar para verificar se realmente havia dado a
porra da coroa na moeda. Eu quero ouvi-lo, mesmo que para isso tenha que
torturá-lo.
Entro em seu jogo, mas acontece que ele não é o protagonista. Eu
dominarei a coisa, ele sabe disso. Sei que sabe, pois o mesmo sorriso sujo
que eu tinha nos lábios, brota em sua boca. Ele aceita o desafio, basta
decidir quem será o vencedor.
MONTE WHITNEY - 2022
AGORA

A caminhada é silenciosa.
Carrego uma mochila na costas recheada de equipamentos
necessários para a loucura que estamos fazendo. É burrice subir uma
montanha durante a noite, principalmente sem o auxílio de uma lanterna.
Isso provavelmente atrairia a atenção que não queremos. Eu soube que seria
um desafio no momento em que decidi acompanhá-la, mas quis mesmo
assim, apesar dos riscos.
É a chance perfeita para ficarmos a sós. A chance de aproveitar sua
presença mesmo que sob o silêncio.
A chance de imaginar como seria se eu pudesse tê-la.
Viro a cabeça, observando os seus dentes superiores batendo
contra os inferiores devido ao frio, ela tenta trancar o queixo e conter o
tremor, mas devido ao vento forte, Baker apenas abraça o seu corpo e
procura se aquecer contra a jaqueta.
— Posso te arrumar outra dessa, se quiser. — Me refiro à jaqueta,
tentando iniciar um papo.
Baker me lança um olhar significativo de soslaio, antes de dar de
ombros e voltar a atenção para o asfalto coberto de neve que tentamos
enfrentar.
— Não, obrigada.
Balanço a cabeça, aceitando que este não é um assunto ao qual ela
pretende prolongar. Certo, plano B.
Eu ainda não consigo encontrar a maneira correta de agir perto
dela. Não tínhamos conversado sobre o vídeo que Williams mencionou,
sequer sei se devemos. Tudo que consigo fazer é ser cauteloso, me
aproximar a ela de uma forma lenta e cautelosa que faça com que perceba o
quanto realmente me importo, apesar de não parecer em determinadas
circunstâncias.
Sei que será em vão, ela não parece disposta a isso.
Ouvi-la dizer que eu parti o seu coração rompeu todas as barreiras
que havia construído dentro de mim. Aquilo machucou pra caralho.
Mas não posso desistir, eu devo isso a ela.
— Por que você quis subir a montanha durante a noite, afinal? —
Indago, sentindo a brisa de neve sobrevoar as nossas cabeças. Está tão frio
que eu sequer sinto os meus dedos, embora estejam cobertos por luvas de
couro.
— Porque eu quero acabar com isso o mais rápido possível. —
Responde, sem olhar para mim. — Ainda tenho uma vida para recuperar.
A encaro, observando a sua mandíbula perfeitamente contornada
contrair pela força que faz para conter os tremores.
— Nós dois sabemos que você nunca quis essa vida normal e sem
graça que esperava ter em WonderFall. — Aponto, provando o quanto eu a
conheço, mesmo que ela tente provar o contrário. — É normal demais pra
você.
Ela sopra um riso, mesmo quando seus lábios tremem de
imediato.
— Você não sabe de nada, Lewis Floyd.
Firmo os meus pés sob a neve, cravando-os no lugar com toda a
força que posso. Apesar do tom irônico que Baker usa ao dizer o meu
verdadeiro nome, não escondo a feição decepcionada que senti ao vê-la
zombar da sinceridade que lhe ofereci em todo aquele discurso. É notável o
quanto ele não significou nada para ela.
Não consigo julgá-la, apesar dos fatos. No seu lugar, eu seria um
pouco mais cuzão. É por isso que diferentemente do que ela espera que eu
faça, respiro fundo e procuro soar o mais paciente possível nas próximas
palavras.
Estou sendo hipócrita por iniciar uma conversa, para começar.
Contudo, é o único jeito de saciar a minha fome de um fruto completamente
proibido para mim.
— Não gosto de como esse nome soa na sua boca. Jason é bem
mais tentador.
Baker bufa, visivelmente irritada pela minha provocação.
Satisfeito, torno a caminhar ao seu lado enquanto minha boca se
curva em um meio-sorriso, o breu a nossa frente dificulta a nossa
capacidade de enxergar adiante, mas sei que mais cedo ou mais tarde, nós
nos encontraremos. Nesse momento, aproveitar a situação é prioridade.
— Eu odeio ter que começar uma conversa com você, mas eu
preciso saber… — Ela começa, me olhando por cima do ombro de supetão.
A sua sobrancelha erguida levemente com a dúvida aparente em seu olhar.
— Por que você não me contou?
Suspiro, notando a fumaça congelante esvair de meus lábios.
— Sobre o quê?
Baker movimenta as mãos por baixo do gorro que havia colocado
antes de enfrentarmos a subida desafiadora da montanha. Ela parece
arrumar os fios de cabelos para cobrir a sua orelha, e deduzo que talvez elas
estejam congeladas.
— Você sempre soube tudo sobre mim, e pensei que conhecia
você também. Mas agora vejo que não conheço absolutamente nada, nunca
conheci. — Ela diz de maneira suave e formal, sem me atacar. — Eu vi
Floyd apontar uma arma para a sua cabeça, Jason, porque você nunca me
disse que ele era o seu pai? — Dessa vez, a pontada de mágoa preenche o
seu tom de voz.
Continuo caminhando, mantendo os meus olhos fixados na
maneira como ela parece realmente necessitada daquela resposta, talvez
isso a machuque. O fato de ter escondido algo tão banal.
Seus braços abraçam o corpo, as bochechas brancas e ruborizadas
estão ainda mais avermelhadas devido às rajadas de vento congelantes que a
atingem.
Por um segundo, penso como seria se eu acabasse com essa tortura e
dissesse toda a verdade. Ela me odiaria, não há dúvidas, mas o ódio seria
direcionado a uma razão merecedora. Eu entenderia o sentimento negativo
direcionado a mim se fosse por um pecado que realmente cometi.
Este não é o momento adequado, no entanto. Mas estou certo de que
não lhe pouparia a minha sinceridade, caso fosse.
— Não queria que você me odiasse. — Revelo, sem receio
algum. — Era vergonhoso demais ser filho dele, principalmente naquelas
circunstâncias. — Me refiro ao trabalho de Marcus, e ela abana a cabeça,
entendendo o que quero dizer.
Umedecendo os lábios secos pela ventania, dou espaço para que
ela responda à altura.
— Então você escondeu isso de mim porque achou que eu te
rejeitaria por ser filho de um babaca que fez de mim um objeto descartável?
— Questiona, mirando as esferas azuis na minha direção. Mesmo com a
pouca luz que temos ao nosso redor, eles ainda são os olhos mais lindos que
eu já vi.
Devolvo o olhar sombrio conforme abano a cabeça em
concordância. Me sinto um covarde por não conseguir dizer em voz alta,
mas sei que ela não verá problemas na minha estupidez.
— Sabe o que é mais engraçado? — Ela ri, sem achar graça. —
Eu não teria rejeitado você se tivesse me dito a verdade desde o início.
Quase vacilo com o peso das suas palavras. Elas são demais para
mim. Normalmente, já sinto a vontade desesperadora de voltar no tempo e
consertar as coisas, tudo seria menos complicado de ser resolvido. Ambos
estaríamos menos fodidos, e mesmo que isso não significasse completa
felicidade, eu estaria realizado se os fatores que fizeram dos últimos três
anos tão dolorosos simplesmente desaparecessem. Isso seria suficiente.
De fato, tudo seria menos complicado se eu nunca tivesse
poupado Baker da verdade. Ela aguentaria.
Mas está feito. E ela me odeia.
E é melhor assim.
— Eu até teria te amado um pouquinho mais. — Prossegue, me
encarando com intensidade por cima do ombro. — Saber que você estava
disposto a ir contra os princípios daquele que te colocou no mundo só para
me proteger, me faria fazer qualquer coisa para te dar o amor que ele nunca
te deu. Você o mereceria.
Desvio o olhar, fixando-o nos galhos secos de árvores caídas
contra a neve. A lua brilha, a luz que emana dela reflete diretamente em
nós, como se fossemos protagonistas da noite fria. Tenho vergonha de como
pareço fútil perto do brilho que vibra diretamente para a loira ao meu lado.
Contudo, não consigo encará-la.
Covarde.
— Não foi isso que você fez, no entanto.
— Não. — Respondo, o gosto amargo das palavras corroendo a
minha garganta por não conseguir engoli-las.
Ela concorda, antes de respirar fundo e afastar-se de mim,
vasculhando os bolsos da jaqueta enquanto volta a ignorar a minha
presença. Então eu percebo que ela está encerrando a nossa conversa.
De volta à estaca zero.
Diminuo o ritmo dos passos quando Baker retira do bolso o que
parece ser uma lanterna. Não sei qual foi o momento exato que ela a pegou,
mas não a questiono. Gosto da maneira como ela sabe ser discreta para se
precaver, essa é a auto segurança que sempre a incentivei a desenvolver.
Ela ergue uma das mãos ao escorregar o polegar no botão
minúsculo do aparelho. Quando a luz neon clareia o lugar onde estamos,
noto que alcançamos o topo da montanha. A neve está espalhada por todos
os cantos, flocos caem do céu e encharcam as nossas roupas, e temo que,
desta vez eu tenha sido negligente em subir até aqui sem ao menos uma
cabana de plástico para nos proteger do frio por ora.
Varro os olhos pela montanha, observando as faixas de boas-
vindas e lixos úmidos e acabados de turistas por todo o lugar, árvores estão
caídas pela neve e parecem ter sido arrancadas e colocadas ali para barrar a
entrada de qualquer um que não tenha permissão para tal.
Baker afunda uma das mãos no bolso da jaqueta e aponta a luz
diretamente para os galhos secos na entrada da montanha.
— Quando entrarmos, vamos nos separar. — Diz, sem parecer
pedir permissão. — Você trouxe uma lanterna para você, sim?
Balanço a cabeça, e avanço alguns passos na sua direção, prestes
a arrancar a lanterna de sua mão quando Baker a esconde atrás de seu corpo
e ergue o queixo, desafiando-me visualmente. Ela aprofunda os nossos
olhares com tanta intensidade como se dissesse "apenas tente, seu cuzão".
Cesso o meu passo a poucos centímetros do seu rosto, sentindo o
frescor de sua respiração atingir o meu rosto.
— Não vamos nos separar.
Ela sorri, um agudo amargo escapando de sua garganta.
— Sim, nós vamos.
O cheiro suave do seu xampu invade o meu nariz, e não consigo
evitar inalar o seu cheiro. Inevitavelmente, meus olhos escorregam até os
lábios carnudos e irresistíveis. Chamando por mim.
— Não.
Quando ergo o olhar novamente, seus olhos ainda estão fixos nos
meus. Ela acompanha todos os meus movimentos, inclusive, acaba de me
flagrar vidrado em sua boca fodidamente atrativa.
Ela sorri, provocando uma onda de arrepios dolorosos pela minha
espinha.
Maldita.
— Já passou da hora de você se dar conta de que não seguirei as
suas ordens como uma cadelinha encoleirada. — Provoca, recuando dois
passos sem quebrar o nosso contato visual. — Vou ser discreta enquanto
tento descobrir alguma coisa por perto. Tente não se perder até lá. — Ela
gira sobre os calcanhares e caminha até os galhos, erguendo as pernas de
maneira ágil ao saltar por cima deles.
Acompanho os seus movimentos, vidrado na maneira como as
suas pernas se erguem para ultrapassar as barreiras. Observo quando a jeans
que Baker usa se molda perfeitamente ao redor de seu corpo pelo
movimento feito, e suas coxas grossas amontoam uma quantidade
significativa de tecido contra a sua pele. Não faço ideia de como consegui
reunir todos estes detalhes na porra dessa escuridão, mas nada faz muito
sentido quando o assunto é ela.
A vejo desaparecer do meu campo de visão, ela se afasta o
suficiente para que apenas o círculo desfocado da lanterna seja visível para
localizá-la há metros de distância, se perdendo dentre tantos flocos de neve
que caem do céu.
Quando ela também desaparece juntamente com a sua presença
insubstituível, me permito fechar os olhos e soltar a respiração pesada que
sequer percebi estar contendo.

Uma cabana.
Olho para a cabana escondida entre milhares de galhos secos,
como se uma tempestade agressiva tivesse arrastado todos eles para o
telhado.
Engulo um rosnado feroz quando uma onda de neve atinge o meu
rosto, fazendo-o congelar instantaneamente. Minha pele arde com o contato
direto com o gelo, e levo o antebraço até o local imediatamente, tentando
amenizar a ardência causada pelo frio.
Afastando o antebraço do rosto, noto quando os resquícios de
neve se desmancham no tecido, como um claro sinal de que a minha pele
está encharcada.
Olho para ambos os lados, procurando por alguma movimentação
suspeita antes de ir verificar se há alguém do lado de dentro.
Diferentemente de Baker, eu não tenho uma lanterna. Não pensei que seria
útil, não quando poderia atrair atenção diretamente a nós.
Mas como eu esperava, ela não dá a mínima.
Avanço alguns passos adiante, correndo sob a neve macia aos
meus pés para alcançar as janelas congeladas da cabana. Quando as
alcanço, relaxo o meu corpo contra a madeira e me esforço para enxergar
algo vindo lá de dentro.
Nenhuma luz está acesa. E o único ruído que posso ouvir de fora,
é o som do ponteiro de algum relógio de parede bater descompassadamente.
Respirando fundo, caminho até a porta e giro a maçaneta, apenas
para confirmar a minha dedução de que está trancada. Quando a giro, me
surpreende o ruído oco que a madeira faz ao ser arrastada para fora,
indicando que não há tranca alguma.
É uma boa alternativa para sobrevivermos a esta noite, afinal, não
há probabilidades de ficarmos em contato direto com a neve durante toda a
madrugada. A tempestade está mais agressiva do que imaginamos, e
independente de toda a nossa ânsia de encontrar pistas o suficiente antes de
darmos o fora, seria burrice enfrentar a força traiçoeira da natureza.
Eu duvido muito que Baker aceitará estar em uma mini cabana ao
meu lado, mas estou preparado para arrastá-la, se for preciso.
Abrindo a porta, arrasto o meu corpo para dentro cautelosamente,
levando uma das mãos em direção ao cós da minha jeans, onde está a minha
arma. Mantenho os dedos firmes contra a coronha, até que olho ao redor e
tudo que posso enxergar são teias de aranha e poucos móveis empoeirados.
O lugar está abandonado.
Largo a minha mochila contra o chão, extremamente concentrado
ao varrer o olhar pelo lugar.
O chão feito de madeira range perante o meu peso quando avanço
três passos adiante, olhando ao redor.
As teias de aranha dominam os cantos superiores das paredes, as
madeiras que mantém as paredes sustentadas contra o chão, possuem
pequenos vãos abertos que provocam pequenas goteiras de neve derretida.
O vento frio passa direto por aquele vão, mas nada é tão insuportável
quanto a ventania congelante que enfrentamos lá fora.
Fecho a porta às minhas costas e analiso os móveis desgastados
no centro da cabana. O lustre dourado com detalhes minimalistas prateados
aparenta ser luxuoso, apesar da poeira acumulada em cada curva do objeto.
No canto esquerdo, há um colchonete de ar contra a parede, ao lado de
cobertores e lençóis perfeitamente dobrados.
Caixas de papelão estão nomeadas como bugigangas por todo o
lado. Na parede ao meu lado direito, há uma pequena mesa improvisada de
pedaços velhos de madeira sustentando algumas papeladas e uma xícara
usada, claramente largada ali há pelo menos algumas semanas.
Mais a frente, há uma porta que deduzo dar a um banheiro. A
porta de madeira está entreaberta, uma toalha vermelha estendida sob ela de
forma alinhada.
Relaxando os meus músculos, estou prestes a caminhar até lá para
confirmar minha dedução, quando o som agudo do que parece ser um tiro
ecoa do lado de fora, alto o suficiente para fazer os meus órgãos saltarem
em alerta e os pássaros sobrevoarem as árvores, cantando desesperadamente
pelo espanto.
Pisco algumas vezes, atordoado. Não penso muito quando recuo
alguns passos em direção à porta, meus pensamentos viajando para o único
ser capaz de destruir a minha sanidade. Baker.
O tempo parece ter parado, consigo ouvir o som da minha
respiração elevada e as batidas do meu coração que parecem saltar contra o
meu peito em uma maldita câmera lenta.
Seu nome ecoa repetidas vezes dentro da minha cabeça, sendo o
meu único objetivo a ser alcançado. Preciso encontrá-la, preciso garantir
que não a perdi outra vez. Preciso garantir que não voltarei a me culpar
eternamente por ter destruído a sua vida. Por tê-la arruinado mais do que
planejava.
Então, quando dou por mim, estou do lado de fora, atravessando a
tempestade fria que abraça o meu corpo, emitindo um rosnado frustrado
enquanto o meu pé afunda na neve congelada. Faço força para tirá-lo de lá,
e apesar de estar usando toda a minha maldita força para encontrá-la o mais
rápido possível, a coisa apenas funciona quando inclino o meu corpo e
afundo as mãos na neve, outro rosnado escapando enquanto sinto a minha
pele arder da forma mais agonizante pelo contato direto com o gelo.
Então eu começo a cavar.
Ignoro as faíscas que escapam da minha boca ao emitir um
rosnado ou dois. Ignoro a sensação de ter os meus dedos arrancados fora.
Ignoro a sensação de estar prestes a congelar e morrer nesta montanha fria e
abandonada.
E continuo cavando.
Repito o processo três ou quatro vezes, até conseguir libertar o
meu pé daquele buraco fundo. Então corro, tropeçando nos meus próprios
pés enquanto vasculho todos os cantos da montanha, procurando
desesperadamente pelo círculo desfocado de sua maldita lanterna.
— Baker! — Grito, sem me importar com o fato de que
estávamos tentando ser discretos.
Isso sequer importa agora. Tudo que importa é encontrá-la e me
certificar de que aquele maldito tiro não a atingiu. Que não foi direcionado
a ela.
Mais pássaros sobrevoam sobre as árvores, cantando
desesperadamente enquanto desaparecem entre os galhos. Acompanho o
bater de suas asas, implorando para que o homem lá de cima esteja olhando
por mim, por essa vez, apenas por essa vez.
— Baker! — Grito, arrastando os meus pés pela neve,
atravessando diversos galhos para encontrá-la.
Onde você está?
Amaldiçoo todos os seres divinos por tirarem ela de mim, assim
como amaldiçoo a mim mesmo por ter permitido que ela fosse para longe.
Que soltasse a minha mão.
Quando viro uma curva de vinte graus para a direita, encontro um
galho seco ao lado de uma descida íngreme improvisada de neve. Eu a
encaro com a respiração acelerada, olhando diretamente para o rastro do
que parece ser sangue fresco, trilhando um caminho desde o exato local
onde eu firmo os meus pés, até o que poderia haver lá para baixo.
Alguém foi morto exatamente aqui, onde eu estou.
Alguém está tentando esconder o corpo aqui e agora, acreditando
que não há ninguém por perto para ouvi-lo.
Caralho....
Pulo para baixo, varrendo o olhar para todos os lados com o
desespero explícito. Eu preciso encontrá-la, cacete.
Não quero pensar no pior. Não quero me precipitar.
Não quero acreditar que tenha a perdido de vez, não consigo
acreditar que eu permiti que ela passasse diretamente pela a minha mão e a
largasse em uma velocidade imensa, em tão pouco tempo. Eu não quero
mesmo acreditar que fui tão burro pra caralho.
Não, porra. Claro que não.
Meus pés deslizam adiante, girando o meu corpo abruptamente
quando uma movimentação vista pela a minha visão periférica, faz com que
eu olhe diretamente para a figura de alguém arrastando um corpo com
dificuldade pela neve.
Penso ter deixado de respirar.
Meu coração para de bater por pelo menos, dois minutos.
Não o sinto. Não sinto absolutamente nada além da porra da
admiração.
Baker está ali, com seus cabelos loiros espalhados pelo ar,
cobrindo metade de seu rosto enquanto resmunga xingamentos baixos
demais para serem ouvidos. Ao lado do corpo, a arma que entreguei está
posicionada com a trava desativada, da maneira mais segura de evitar que
algum tiro acidentalmente escape.
Eu a observo calado, admirado pela forma como ela parece ter
ideia de como se livrar de um corpo, principalmente em nossas atuais
condições.
Baker vasculha os bolsos do homem, afundando as suas mãos em
seu jeans, procurando por algum objeto que ele carregue ali.
Meu peito sobe e desce, meu coração dói e não sinto o meu corpo,
pareço ter sido esmagado por um caminhão de vinte toneladas de peso. Meu
corpo está moído, mas tudo que consigo sentir é a extrema necessidade de
tê-la em minhas mãos.
— Baker. — Sussurro, caminhando em sua direção o mais rápido
que posso. Minha voz transmite o quão aliviado estou.
A garota se assusta, erguendo a cabeça rapidamente para me
encarar. Seus olhos azuis arregalados transmitem o medo que ela tinha de
ser outra pessoa ao invés de mim. Mas não é. Eu sempre estarei aqui para
ela, estarei em todos os momentos em que ela precisar segurar uma mão e
sentir-se segura. Eu a protegerei de toda a porra do mundo, custe o que
custar.
Até mesmo de mim.
Ela suspira assustada quando não suportando os meus desejos
internos, envolvo o seu corpo pequeno entre os meus braços e a aperto com
toda a força que posso ali mesmo, tentando acabar com a agonia que sinto
por imaginar que havia a perdido para sempre.
Ela está aqui. Ela está aqui.
Repito milhares de vezes para mim mesmo, a fim de acalmar o
meu extremo nervosismo.
— O que você está fazendo? — Ela pergunta, sua voz baixa
abafada contra o meu peito. Não respondo, apenas me concentro em inalar
o cheiro viciante de seu xampu e me convencer de que ela é real. — Jason?
Raspo os meus lábios congelados pela sua cabeça, sentindo os
seus fios de cabelo causarem cócegas estranhamente boas pela minha pele.
— Shhh… — Peço, fechando os meus olhos. — Fiquei
apavorado pra caralho, Baker, não faça essa porra comigo.
Ouço o seu riso abafado contra o meu peito, mas não tenho
coragem de largar o seu corpo para permitir que ela se afaste. Estou
confortável em ter seu corpo próximo ao meu, assim como deve ser.
— Eu disse que sabia usar uma arma, babaca. — Debocha,
fazendo certa pressão em seus braços para se livrar dos meus. — Agora me
solte.
Ignoro a sua tentativa, sequer preciso fazer algum esforço para
mantê-la exatamente onde está. Meu coração bate tão forte que tenho medo
de soltá-la e perdê-la para sempre.
Não posso arriscar.
— É, você sabe. — Concordo, respirando contra a sua cabeça,
inalando o cheiro suave que vem dos seus fios. — Você está bem. — Não é
uma pergunta, estou tentando convencer a mim mesmo de que realmente
está bem.
Tentando me convencer de que não falhei novamente tentando
acertar.
Quero mantê-la por perto para sempre, daquela mesma maneira,
apesar de saber que ela jamais me permitiria ir tão longe.
— Estou melhor do que ele — Baker se afasta, fazendo com que
abra os meus olhos para encará-la, sentindo a falta de seu corpo colado ao
meu. O tom sarcástico que usa ao dizer aquilo quase me faz sorrir, mas o
pavor ainda domina algumas de minhas camadas. — Ele apareceu do nada
e…
Pisco, ouvindo ruídos de galhos rompendo-se em uma pequena
distância de onde estamos.
Olho para todos os lados, tentando identificar de qual posição
aquele som vem.
— O que foi isso? — Ela pergunta enquanto avanço passos
cautelosos em direção ao morto, o suficiente para alcançar a sua arma ao
lado do corpo.
Interrompo Baker quando a pego pela mão e ultrapasso as
árvores, levando-a comigo. Os pequenos galhos que existem na trilha
minúscula de neve arranham o meu rosto enquanto os enfrento, esperando
tirá-la daquela proximidade.
Mantenho uma das mãos contra o cós, pronto para enfiar uma
bala na cabeça do primeiro imbecil que entrar no nosso caminho.
Claramente estamos no lugar certo, e seja quem for aquele cara
que ela matou, não pode ser o único nesta montanha. O tiro provavelmente
os atraiu até o lugar, então não vai demorar muito para começarem a
vasculhar a área ao se darem por conta de que não estão sozinhos. O intuito
é manter Baker em segurança até que possa me recuperar e estar apto a
enfrentá-los. Não há mesmo chances de enfrentar este pessoal enquanto
meus dedos parecem ter sido extraídos.
Nós descansaremos e mais tarde, quando estiver recuperado o
suficiente para lidar com a Luxury exatamente como merecem, não pensarei
duas vezes em adicionar mais cadáveres ao homem que deixamos para trás.
Não vai demorar.
Eles vão se arrepender por todas as merdas que fizeram.
— Para onde está me levando? — Ela pergunta, enquanto eu
desvio de vários galhos úmidos para tentar encontrar o caminho de volta à
cabana.
Não respondo, tudo que quero é encontrar a maldita cabana e dar
um jeito de mantê-la segura e aquecida. Mesmo com a escuridão, consigo
notar como a sua pele está gelada e os lábios secos, após passar tanto tempo
em contato direto com a friagem. Os fios loiros estão molhados e o gorro
preto que usa parece prestes a congelar o seu cérebro.
Eu não tenho forças para pensar em nada que não seja encontrar a
cabana e cuidar para que ela fique aquecida. Não consigo me preocupar
com a quantidade de ar frio que preenche os meus pulmões, tudo que vejo é
ela. O medo de encontrá-la sem vida ainda me apavora, mesmo que ela
esteja bem do meu lado neste exato momento.
Nunca vou me acostumar com a maneira como Baker consegue
me fazer pensar que não é real. Que ela existe apenas no mais profundo dos
meus sonhos, aqueles que parecem tão inalcançáveis.
— Jason... — Ela suspira, no exato momento em que meus dedos
escorregam de seu antebraço e encontram os seus dedos, entrelaçando-os
por puro reflexo.
Uma onda elétrica invade o meu corpo, causando um suspiro
inconsequente, os meus dedos ardem por finalmente, começar a sentir as
consequências causadas pela quantidade de vezes que afundei as mãos
naquela neve.
— Encontrei uma cabana — Revelo, olhando ao redor para tentar
localizar o lugar onde estamos. — Tem toalha, cobertores e parece
confortável. Vamos passar a noite lá, você toma um banho e pode se manter
aquecida.
— Jason! — Baker se liberta do meu agarre, fazendo-me girar o
corpo para encará-la. — Que droga há de errado com você?
Meus lábios estremecem.
Olho para o par de olhos azuis, tentando enxergar a crença na vida
que ela costumava ter, há muito tempo atrás.
Tento encontrar vestígios de Sofia Clarke, aquela doce garota que
via o bem em todas as pessoas, mesmo que fossem fodidas o suficiente para
jamais merecê-la. Aquela garota que me amou, aquela que não teve medo
das coisas que eu podia fazer para mantê-la para sempre ao meu lado.
Aquela garota que segurou a minha mão e jamais a soltou, mesmo quando
acreditava estar tão sozinho.
Ela está ali.
Mas agora, tudo que vejo são cinzas do que um dia ela foi.
Tudo é mais doloroso quando me dou conta de que a culpa é
minha.
Quero ajoelhar aqui mesmo, perante o nevoeiro impiedoso que
nos atinge, quero deixar que a força da natureza me julgue, porque depois
de todos esses anos, não me sinto digno de nada disso. Me sinto hipócrita
por saber que tudo teria sido evitado se naquela noite, se naquela maldita
noite... Eu tivesse puxado o gatilho.
— Por que você está agindo dessa forma? — Ela questiona,
aparentemente furiosa.
Quero desviar do assunto, quero pedir perdão e dizer que estou
traumatizado. Que quando ouvi aquele tiro, não pensei em nada além de
acabar com a minha vida infeliz e inútil, se por algum acaso, ela estivesse
morta. Quis dizer que estava tão apavorado, que não conseguia respirar.
Que não conseguia sequer pensar em outra coisa que não fosse nela, e em
todas as malditas vezes que escrevia o seu nome contra uma parede de
concreto para fantasiar que ela estava ali comigo, naquela cela suja e
solitária.
Tudo porque as coisas pareciam mais fáceis se ela estivesse ao
meu lado.
— Por que está tão apavorado? — Ela pressiona.
Quero dizer que em cada dia destes três anos, não teve um, que eu
não tenha revivido todos os nossos momentos juntos. A cada lembrança, era
a caligrafia de seu nome sendo gravada eternamente em um concreto
antigo.
Aquilo servia para ela ser eterna nos meus pesadelos, porque no
fim, apenas ela poderia me salvar dele.
Quero dizer tudo isso.
Mas respiro fundo, encaro as suas esferas azuis curiosas e ignoro
todos os demônios que juntam as suas forças para mantê-la longe de mim. É
tarde demais.
— Porque eu me importo com você! — Exclamo, suspirando
pesadamente no processo. — Caralho, você não vê?
Um riso me escapa quando coço a testa, me arrependendo
imediatamente por ter me deixado levar. É a primeira vez que digo estas
palavras à ela após tantos anos. Calo a boca e espero até que ela exploda,
espero até que ela me culpe mais uma vez por todos os pecados que não
cometi.
Mas não me importo com isso. Não quis fazer as coisas certas,
porque aquilo não faz o nosso estilo. Não somos corretos. Somos o puro e
sublime caos.
O olhar desafiador no rosto de Baker é substituído por choque.
Seu peito sobe e desce em um suspiro leve, seus olhos confusos nunca
deixam os meus. Espero até que ela quebre o maldito silêncio, mas tudo que
ela faz é rir.
Ela ri.
Uma gargalhada alta e sincera.
Por longos minutos.
— Não diga besteiras, seu imbecil! — Seus dentes capturam os
lábios inferiores, mordiscando-os enquanto caminha em minha direção. —
Não diga isso de novo. — Pisco ao acompanhar os seus passos, mas quando
dou por conta, ela já está esmurrando o meu peitoral.
Olho para baixo, sentindo a dor de seus socos tão firmes contra o
meu peito. Entretanto, não me movo. Deixo que ela extravase.
Baker esmurra com tanta força que posso ouvir os seus rosnados
frustrados por não conseguir socá-lo com mais força do que é capaz.
— Qual é a porra do seu problema? — Exclama, irritada, olhando
diretamente para mim. — Você acha que isso é uma piada? Acha que é só
dizer as palavrinhas mágicas que eu volto a ser apaixonada por você? Veja
que grande novidade, você não significa nada para mim.
— Quieta. — A interrompo.
Baker rosna, furiosa.
— Eu te odeio!
É a minha vez de rir.
Minha boca se curva em um sorriso, e mesmo que todas aquelas
palavras tenham ferido o meu interior, posso superar.
— Então prove.
Ela ergue a sobrancelha, batendo com o seu punho diretamente no
meu estômago.
Não me movo.
— Eu provo que odeio você todos os dias, isso não é humilhante
o suficiente pra você?
Balanço a cabeça em negação, finalmente segurando os seus
braços para que ela pare de me esmurrar. É a minha vez de jogar o seu jogo,
ela não suportaria, de qualquer maneira.
— Prove aqui e agora. — Desafio. Avanço um passo em sua
direção e colo os nossos corpos, sentindo a sua respiração bater contra o
meu pescoço quando ela eleva o pescoço para me encarar. — Você tem duas
opções: seja uma covarde e resista a mim quando sou tudo que deseja, ou
desta vez, só por essa noite, deixe-me provar que ninguém nunca te terá na
palma das mãos como eu a tenho. — Sussurro, aproximando os meus lábios
até um dos seus ouvidos. — Se me odeia tanto, prove com atitudes.
Palavras nunca significaram nada no meu mundo.
Ela ri, incrédula. Quando olha para mim e se dá conta de que não é
mais uma brincadeira, seu riso morre tão rápido quanto nasceu.
Baker não se mexe, seu corpo segue imóvel e sua respiração
lenta, então quando sinto que ela está a um fio de ceder ao desejo que
suprimos um pelo o outro, arrasto os lábios por sua bochecha, sentindo a
neve derretida umedecer os meus lábios. Fecho os olhos com o contato frio,
trilhando um caminho de beijos molhados por seu pescoço e queixo,
provocando-a da maneira que posso.
— Me diga, amor, você consegue resistir? — Mordisco o seu
queixo, acompanhando o momento em que ela fecha os olhos. — Quando
você deita na sua cama, você odeia a mim ou aos seus desejos obscuros?
— Cheiro o seu pescoço, inalando o perfume doce que vem direto dela.
Baker inclina a cabeça, desvencilhando-se do aperto que faço em
seus braços. Penso que ela vai me afastar e ir contra as minhas provocações,
provando mais uma vez que ela sempre desprezaria tudo que envolve a
mim.
Penso que subestimei a porra desta mulher.
No entanto, quando sinto uma das suas mãos agarrar a minha
nuca e as unhas arranharem o meu pescoço sem um mínimo pudor, eu
soube que há mais para descobrir. Ela é a porra de um livro misterioso, e eu
amo o suspense que ela transmite.
Respiro pesado e fecho os meus olhos quando leva a ponta dos
dedos à minha boca, massageando-a com o polegar.
— Sempre pensei que você seria a causa da minha evolução… —
Sussurra. Sinto quando o farfalhar de sua jaqueta indica que ela aproximou
o corpo do meu. Posso sentir o seu hálito frio bater contra a minha cara. —
Mas você foi a causa da minha ruína. Fez de mim a porra de um monstro.
Um gemido sobe pela minha garganta quando sinto seus lábios
roçarem os meus, sua língua quente tocando a minha boca por poucos
segundos. Mas o suficiente para fazer as minhas pernas fraquejarem.
— Você nunca entrou na minha vida para fazer de mim uma
pessoa melhor. — Ela sussurra, puxando o meu lábio inferior entre os
dentes. Travo a mandíbula e engulo em seco. — Você entrou para me
mostrar quem eu realmente sou.
Ergo um dos braços, alcançando o seu quadril com brutalidade.
Prendendo-a no lugar, com medo de que de repente, tudo acabe.
— E a verdade... — Seus lábios escorregam até a minha
mandíbula, mordiscando-a com a ponta dos dentes. — É que eu sou tão
insana quanto você. É por isso que não me sinto culpada por desejar você
agora.
Um rosnado sobe pela minha garganta quando capturo o seu
pescoço enquanto mantenho a outra mão presa contra o seu quadril. Eu a
encaro com profundidade, deslizando os meus dedos por sua nuca, trilhando
um caminho até o queixo, onde escorrego propositalmente a minha mão até
a sua garganta, pressionando-a em seu pulso. Baker prende a respiração. Eu
a enforco.
— Não me faça foder você contra toda essa neve, Baker.
Ela sorri, erguendo a cabeça para respirar melhor.
— Está pulando fora?
Meus olhos queimam, meu aperto contra o seu pescoço
intensifica e não penso em como deveria estar machucando-a daquela
maneira. Ela pediu por isso, então eu darei isso a ela.
A última coisa que passa pelos meus olhos é o sorriso provocante
pra caralho que Baker lança em minha direção antes de arrastá-la em
direção à árvore mais próxima e prender o seu corpo contra o tronco, sem
deixar de enforcá-la no processo.
Baker arqueja com a maneira grosseira que empurro o seu corpo
contra a árvore.
Mergulho a mão livre para o seu quadril, tentando encontrar uma
forma de ultrapassar toda aquela porra de tecido. Preciso tocá-la, sentir a
sua pele contra a minha.
— Você sabe que se fizermos isso não tem mais volta, não sabe?
Sinto seu corpo estremecer.
— Qual é a consequência? — Arfa.
— Vou foder com a sua cabeça até que você não possa resistir ao
desejo que mantém escondido aí dentro. Vou fazer você vir até mim e
desejar nunca ter ido embora.
Com a lua de testemunha, nossos olhares se cruzam da maneira mais
impetuosa e violenta, vejo o fogo em seu olhar assim como sei que são
refletidos nos meus. Seu corpo reage a mim e sua mente tenta me expulsar,
mas nós dois sabemos que a força de nossa relação sobressai a qualquer
outra.
— Não se orgulhe tanto, talvez seja eu quem esteja fodendo com
a sua. — Baker sussurra, instigando-me.
Ranjo os dentes. Mulher maldita.
— Até o fim da noite nós vamos ver quem realmente fode quem.
Não dou tempo para que responda.
Um gemido escapa de sua garganta quando erguendo a cabeça,
tomo a sua boca com a minha com ferocidade e intensidade. Meus lábios
esmagam os seus e não sou gentil quando capturo os seus lábios inferiores
entre os dentes, mordendo a carne com a força que luto para conter. Sabia
que não seria gentil com ela, não há probabilidades de eu conseguir
controlar todo o fogo que sobe pela a minha espinha fazendo-me ignorar
toda aquela porra de nevoeiro que se forma ao nosso redor.
É indiscutivelmente inexplicável que ela tenha o mesmo gosto de
anos atrás. O mesmo toque intenso, a mesma facilidade de me levar ao
limite.
Largando a sua garganta, pressiono o seu corpo contra o tronco da
árvore quando uso as duas mãos para procurar pelo zíper da jaqueta.
Suas mãos viajam pela minha nuca, arranhando toda a extensão
do meu pescoço. Quero unir os nossos corpos, sentir como seria se
fôssemos um só.
Invado a sua boca com a minha língua, procurando
desesperadamente pela sua. Seus lábios acompanham os meus movimentos,
seus dentes mordiscando os meus lábios com força. Aprofundo o nosso
beijo e quando sinto a sua língua deslizar contra a minha, um gemido
prazeroso sobe pela minha garganta.
Que saudade.
No minuto em que encontro o maldito zíper da jaqueta, não hesito
em abri-lo o mais rápido possível. Quando o tiro de seu corpo e o atiro para
uma direção aleatória, Baker afunda as unhas na minha nuca e morde o meu
lábio inferior com toda a força que pode.
A sua boca macia captura a minha de uma forma que eu jamais
ousaria me esquecer. A forma como a sua língua parece saber exatamente
quais movimentos fazer para me levar à loucura faz o meu pau doer de tão
duro.
— Se está esperando que eu seja tão gentil com você, estou
pronto para lidar com mais uma de suas decepções. — Digo a ela quando
separo as nossas bocas tempo o suficiente para me livrar do seu moletom,
abrindo o zíper com pressa.
Ela abre os olhos, seus lábios carnudos e avermelhados inchados
pela pressão que eu faço para acabar com eles. Meus.
— Não pedi por sua gentileza.
Quando abro o seu zíper, preciso umedecer os lábios repetidas
vezes ao me deparar com o par de mamilos duros, ambos apontados
diretamente para a minha direção. Engulo em seco ao imaginá-los na minha
boca, o tamanho perfeito para abocanhá-los da maneira mais depravada.
A cor rosada ao redor do mamilo, as pintinhas pequenas
espalhadas pelo seu peitoral, a cintura fina e perfeitamente contornada, os
quadris largos e o pescoço extremamente convidativo…
Caralho.
Ela está bem aqui, porra, bem na minha frente.
— Porra. — Rosno ao inclinar o meu corpo o suficiente para
capturar os seus peitos entre as mãos.
O meu primeiro instinto é apertar o seu seio direito na palma da
minha mão, como se fosse uma massa de modelar, observando a maneira
como ele parece ter sido feito para caber perfeitamente em minha palma.
Em seguida, deslizo dois dedos para o seu mamilo e o prendo entre o dedo
médio e o indicador, levando-o diretamente para a minha boca, o mordendo
com força.
O gemido rouco que escapa de sua garganta atrai uma corrente
elétrica diretamente para o meu pau.
— Gostosa pra caralho. — Chupo o seu mamilo, circulando a
ponta da língua pelo biquinho extremamente duro.
Baker joga a cabeça para trás, relaxando-a contra o tronco da
árvore. Seus lábios estão úmidos pela quantidade de neve que derrete
instantaneamente ao sentir o calor de sua pele.
Não existe paisagem melhor para ser vista. Nem todas as obras de
Van Gogh seriam capazes de vencer a arte que é Aspen Baker gemendo
loucamente para mim enquanto a reivindico, como deveria ter feito há
muito tempo.
— Sim... — Ela geme, baixinho, seus dedos passeando pela a
minha cabeça, empurrando-me diretamente para os seus peitos.
Sorrio.
— Sim? — Questiono, tornando a minha postura habitual. No
entanto, não ouso largar o seu peito, mantendo o seu mamilo entre os meus
dedos quando aproximo o meu rosto do seu e mordisco a sua mandíbula. —
Você gosta disso?
Ela concorda desesperadamente, seus olhos fechados com força
enquanto pressiono o mamilo duro entre os dedos.
— Hum? — Aperto mais forte, desta vez, arrancando um gemido
alto da loira tomada por prazer. — Quero respostas que envolvam palavras,
Baker.
Ela abre os olhos, a pupila extremamente dilatada brilha em
minha direção quando uma das suas mãos agarra a minha nuca e me puxa
diretamente para ela, colando os nossos lábios com desespero.
Largo o seu peito, me rendendo ao gosto insubstituível da sua
boca. Seus lábios carnudos envolvem os meus com agressividade, sua
língua invade a minha boca e gemidos desesperados escapam de sua
garganta. Eu levo uma das mãos ao cós de sua jeans e procuro loucamente
pelo botão enquanto com a outra, agarro o seu queixo e puxo a sua boca em
direção a minha com agressividade.
Mergulho a minha língua em sua boca, preenchendo cada canto
dela como eu deveria. Marcando-a como minha.
Ao encontrar o botão de sua calça, estou prestes a me livrar dele
quando Baker parece ter outros planos. Ela se afasta dos meus braços e
passa por baixo deles. Sigo o seu movimento com o olhar, meu peito
subindo e descendo com pura adrenalina.
Vejo quando ela joga os seus fios de cabelo para trás. Vejo quando
Baker se livra do jeans e o joga para longe com o auxílio dos pés. Vejo
quando ela desliza o polegar dos dois lados de sua calcinha, fazendo a
minha garganta secar com a vista.
Vejo quando ela mede todo o meu corpo com o olhar.
Porra, eu vejo quando ela ajoelha diante de mim.
— Depois dessa noite, tudo vai mudar — Ela sussurra ao se
aproximar, seus joelhos deixando pegadas pela neve. Seu corpo umedece
lentamente por flocos de neve que caem sobre ele. — Você e eu vamos nos
falar enquanto estivermos aqui nesta missão. Mas depois disso... — Me
alcança, empurrando o meu corpo contra o tronco da árvore em que ela
estava.
Suspiro, meus olhos nunca deixam os seus enquanto ela leva
ambas as mãos em direção ao cinto da minha jeans, desfazendo a fivela
com agilidade. Meu peito dói e minha boca seca, tudo que eu quero é me
afundar naquele oceano de problemas que ela se tornou.
Capturo a minha arma antes que ela possa se livrar da minha
jeans, e então a jogo para a neve, em um local específico para que possa
alcançá-la quando for necessário.
Então a olho, não querendo perder um segundo da vista de Aspen
Baker sobre seus joelhos, desfazendo a fivela do meu cinto, encarando-me
como se eu fosse o seu deus.
— Nunca mais vou falar com você — Diz, abaixando as minhas
calças lentamente. A ponta de suas unhas arranha a minha virilha. Fecho os
olhos e encosto a cabeça na árvore, sentindo o meu pau doer de tão duro. —
Nunca mais vou conseguir olhar na sua cara sabendo do que eu fiz esta
noite, Jason, nunca vou me perdoar por isso. — Ela agarra o cós da minha
cueca, dando a ela o mesmo destino da minha jeans.
Me livro de ambos com o auxílio dos pés. Meu corpo queima
perante o seu toque e não sei quanto mais poderei aguentar.
— Então aproveite essa noite, esqueça o seu ego de pensar que
pode foder com a minha cabeça… — Suas unhas deslizam pela minha
virilha. — Porque será você que não poderá viver sem se lembrar de como a
garota que o odeia te chupou melhor do que ninguém. E ainda assim, terá
que conviver com o fato de que não terá o mesmo privilégio outra vez.
Sua mão escorrega até o meu pau, rodeando-o com a palma fria
por toda sua extensão, e não contenho o gemido rouco e desesperado que
sobe pela minha garganta. A xingo de todos os nomes possíveis, xingo todo
o maldito universo por ter demorado tanto tempo para sentir essa sensação.
Caralho…
Porra…
Inferno.
Sequer penso em suas últimas palavras, não rebato a elas, embora
eu saiba que essa noite não é o fim de nada, apenas o início. Não quero
estragar o momento, e apenas por isso me concentro em sentir os seus
dedos trabalharem com perfeição ao redor do meu pau. Penso que ela
realmente vai foder com a minha cabeça, penso até que não poderei
esquecer como é a sensação de ter as suas mãos em meu pau após três anos,
mas o simples pensamento vai para a casa do caralho quando a maldita
ergue dois de seus dedos e os desliza por minha glande, espalhando o pré
líquido em movimentos circulares. A ação me faz rosnar em um prazer
descomunal.
— Caralho! — Por reflexo, levo uma das mãos até a sua,
auxiliando-a para firmar o seu aperto em minha extensão. Eu a ensino como
apertar o meu pau ao redor de sua mão, e ela aceita o meu incentivo, e desta
vez, sinto as minhas bolas queimarem pelo tesão extremo. — Puta que
pariu! — Jogo a cabeça para trás em agonia.
Ela afasta a minha mão, querendo assumir o controle sozinha. Eu
não reclamo, sequer abro a boca, apenas permito que conduza a coisa pelo
tempo em que eu suportar. O depois é só questão de tempo.
Com dificuldade, Baker parece frustrada ao deslizar a sua mão ao
redor do meu pau e não obter o completo sucesso em deslizá-lo em uma
punheta. Curioso, a olho para saber o que ela vai fazer para que tenha
sucesso em sua função. Ela me encara, seus olhos cruzando os meus em um
rompante, como se estivesse me desafiando tanto quanto eu a desafio.
Quando percebe a minha ansiedade, é quase como se eu estivesse de frente
para o próprio diabo. Ela não sorri, não me provoca, não permite que seu
prazer enfeitice os seus atos. Ela os tem sob controle, assim como me tem
na palma de suas mãos.
Ela sabe disso.
Sabe perfeitamente que tem razão, que pode foder com a minha
cabeça em um estalar de dedos.
Que pode me arruinar.
Tenho certeza disso quando Baker mira os olhos escurecidos nos
meus, em um combate entre a ira e o desejo. O rancor e a tentação. Não
faço ideia de qual dos lados ela opta por escolher, mas é quando sinto a sua
palma prensar o meu pau, que passo a não dar a mínima para o que ela
denomina como uma melhor opção.
Porque sim, ela é a única capaz de foder com minha cabeça. A
única capaz de me fazer enviar a racionalidade para a casa do caralho,
porque não importa que estejamos sendo perseguidos neste exato momento
pela floresta, não importa que estejamos em uma nevasca, não importa que
ela me despreze, não importa que eu a tenha destruído. No fim, ela é quem
me destrói quando com os olhos fixos nos meus, ela abre os seus lábios e
desliza a ponta da sua língua desde o local onde sua mão está agarrada, até
a ponta do meu pau onde passa alguns minutos rodeando o local sensível,
enviando cargas elétricas por todo o meu corpo.
Travo o maxilar com força, contendo um gemido sufocado.
— Eu posso ter o seu pau entre as mãos, — sussurra. Aperto os
olhos, alucinado de prazer quando a sinto deslizar o meu pau pelos lábios
carnudos como se fosse a porra de um batom. — posso tê-lo entre os meus
lábios, na minha garganta, entre as minhas pernas… Mas nunca serei de
fato sua. Consegue lidar com o fato de que sou só uma transa de uma noite?
Rosno um xingamento, sem conseguir conter o quão duro me deixa
ao deslizar os malditos lábios pelo meu membro, quase levo uma das mãos
a sua nuca e a obrigo a enfiá-lo em sua boca até que engasgue, mas sei
quais são as suas intenções. Ela quer brincar comigo? Vejamos como se sai
quando o golpe vem de ambos os lados.
— Mas e você? Consegue lidar com o fato de que nunca poderá,
de fato, me odiar? — Provoco, minha voz sai em um gemido rouco.
— Quem disse a você que eu não o odeio?
Sorrio provocativo ao fitá-la por um momento, vendo-a se divertir
com o meu pau entre sua mão.
— Tire a calcinha.
Ela congela os seus movimentos por um instante, encarando-me
com os olhos confusos na mesma proporção que fazem total ideia do que
estou dizendo. Intensifico os nossos olhares, desejando eternizar a visão de
seu corpo de joelhos diante do homem que ela diz odiar, mas o chupa como
se desejasse fazê-lo a anos.
— Por que eu faria isso?
— Tire. — Ordeno, e, inevitavelmente, levo uma das mãos a sua
nuca, agarrando um punhado do seu cabelo. Ela arfa.
— Você é um imbecil. — Baker larga o meu pau e se levanta,
colocando-se à minha frente. Nossos peitos se tocam, seus mamilos roçam o
meu peitoral ainda coberto pela jaqueta, e o fato de estar vestido enquanto
ela está praticamente nua para mim parece incomodá-la, mas ela não diz
nada sobre isto. — Acha que a minha calcinha pode provar alguma coisa a
você?
— Se não pode, então tire.
— Não significa nada.
Impaciente, habilidosamente eu ranjo os dentes e inverto as
nossas posições, pressionando-a contra o tronco de árvore mais uma vez.
Ela geme, não sei dizer se pela excitação ou se sua pele raspou contra
algum fiapo de madeira, mas apenas me concentro em prová-la que posso
ser um grande filho da puta, mas ela não é tão diferente de mim.
Ajoelho aos seus pés, levando as mãos até ambas as coxas,
pressionando a sua carne entre a minha palma. Suspiro em satisfação ao
sentir a sua pele quente, como se não estivéssemos em um ambiente tão
frio. No entanto, quando meus olhos cruzam com o tecido de sua calcinha,
sorrio como um completo depravado. Que grande mentirosa.
— Então é disso que você estava com medo? — Pergunto,
erguendo o olhar para fitá-la respirando pesadamente com a cabeça pousada
no tronco. Ela não me olha em nenhum momento. — De que eu visse o
quanto a sua boceta chama por mim?
— Ela não chama por voc…
Suspiro, irritado.
Chega de ser paciente com você.
Se não vai admitir por bem, será por mal.
— Então vejamos. — Sem piedade, levo os dedos até cada lado
de sua calcinha e a puxo com tanta agressividade que o tecido se rompe e
permanece entre os meus dedos.
Ela grita, finalmente direcionando o seu olhar a mim com suas
íris encharcadas de pavor, como se eu realmente fosse fazer alguma merda
que ela não estivesse concordando. Você não está me parando, porra, então
não me olhe desse jeito.
— Você é tão ordinária que nem se dá ao trabalho de fechar as
pernas. É um convite, meu amor? — Zombo, admirado ao observar a sua
excitação escorrer no interior de sua coxa.
— Vá em frente, faça o que quiser fazer. Você nunca vai
conseguir possuir o que tanto deseja. — Sua voz é doce, apesar de parecer
inebriada pelo tesão.
— Eu sempre consigo o que desejo. — Com as mãos agarradas à
sua carne, separo as suas coxas o suficiente para aproximar o meu rosto e
deslizar a ponta do meu nariz por sua boceta.
A sinto retesar o seu corpo.
Posso vê-la jogar a cabeça para trás.
Posso vê-la conter um gemido.
Posso ver a quantidade excessiva de excitação que ainda escorre
pelas suas pernas.
Mas a maldita ainda se nega a me mostrar o quanto também
deseja a mim.
O quanto deseja que eu coloque a minha língua para fora e a
chupe, a leve do céu ao inferno em segundos e a faça entender ao menos
uma parcela do sentimento obscuro que tenho guardado há anos. Ela
aguentaria? Suportaria?
Não sei, porque ela não me dá uma única pista de que seria capaz
de suportar tudo o que tenho para oferecer a ela, ainda que saiba que não
haveria uma oposição. Sei exatamente o que ela sente, sei exatamente como
levá-la ao limite, mas odeio ter que me contentar com meras suposições.
Quero vê-la implorar. Quero vê-la mirar os meus olhos com tanto desejo
quanto faço com ela. Quero que possa enxergar o inferno em meus olhos
enquanto eu enxergo o céu nos seus.
Não quero apenas uma noite de sexo.
Não quando sei que nossos desejos podem nos levar muito mais
além.
É por isso que contenho a minha vontade de deslizar a língua por
sua fenda e provocar ao seu clitóris. Aperto as suas pernas com tanta força
que temo quebrá-la ao meio ao fazê-lo. Ouço sua respiração ofegante, sei
que ela espera pelo próximo passo, sei que espera que dê o que ela deseja
enquanto segue fingindo que pode me odiar. Sei que espera que me
contente apenas com o meu prazer.
Você não poderia estar mais errada, meu amor.
Ergo o meu olhar e a vejo observando os meus movimentos com
o desejo coberto em seus olhos, impedindo que enxergue algum desprezo
que possa existir ali. Quase me dou por vencido e lhe dou exatamente o que
deseja, quase perco a cabeça. Então me lembro de suas palavras, de suas
afirmações, de suas mentiras. De sua máscara.
— Embora o cheiro de sua boceta seja capaz de me entorpecer…
— Murmuro, deslizando a ponta do nariz até a parte inferior de suas coxas
sujas por sua excitação. — Embora eu queira chupá-la até que o mundo
testemunhe a grandeza de suas mentiras… — Inevitavelmente, minha
língua escolhe não obedecer ao comando de meu cérebro e simplesmente
desliza por sua pele, capturando a sua excitação. Quase gemo por
satisfação. Porra. Gostosa. Lambo os lábios, sem conter o meu vício
descontrolado. Levo a língua até a pele e lambo até que não reste nenhuma
gota em sua pele senão a de minha saliva. A ouço gemer, e meu pau duro
feito pedra chega a doer. — Ainda sou o cara que você deseja morto. Ainda
sou aquele que você despreza. Então façamos o seguinte, meu amor…
Me afasto.
Lambo os meus lábios e preciso respirar profundamente para não
me ajoelhar diante dela novamente e a reivindicar de uma vez. Mas me
contenho.
Baker ainda está completamente escorada contra o tronco da
árvore, seus lábios entreabertos e os dentes superiores capturando-os em
uma mordida dolorosa. Percebo que a força que usa é grande quando noto a
vermelhidão além do natural em seus lábios. Está ainda mais atraente do
que em qualquer outro momento, ainda mais gostosa do que jamais
testemunhei.
Porra.
E, só quando tento me levantar, percebo que seus dedos estão
cravados em minha nuca, forçando-me sua direção. Como se ela desejasse
que eu a possuísse, como se me quisesse. Espero que ela abra a boca e diga
com todas as palavras, e então eu mandarei o meu plano para o inferno e a
possuirei.
Mas ela não faz.
Ela continua me encarando como se eu fosse o seu deus, mas não
se permite depositar fé alguma em mim.
Que assim seja.
Me afasto de seu toque e me levanto, me apressando em me
recompor, deixando-a com uma feição confusa estampada em sua face.
Bom. Vejamos quanto o seu desprezo durará.
— Quando eu foder com a sua cabeça o bastante para pedir por
mim, você sabe onde me encontrar. Até lá, você pode se contentar com as
vagas lembranças de como quase implorou por mim esta noite.
MONTE WHITNEY - 2022
AGORA

A verdade é só uma.
Não faço ideia de como, com que força ou que tipo de demônio
havia se apossado de meu corpo por ter cogitado a ideia de me render a ele.
De ignorar a fome pela vingança que tem cegado os meus olhos desde o
momento em que o peso de sua traição recaiu sobre os meus ombros.
Não importa o que eu faça, Jason sempre irá bagunçar os meus
sentidos e me fazer duvidar e perder de vista o caminho que me leva até os
meus verdadeiros princípios. Me considero uma tremenda farsa por ter
permitido que ele tocasse o meu corpo com as mesmas mãos que seguraram
o meu coração, mas que optaram por parti-lo ao meio. Assim como permiti
que beijasse a minha boca com os mesmos lábios que me prometeram o
mundo, mas optaram por arrancá-lo de mim.
A questão é: quem é a verdadeira farsa? O infeliz que faz juras
hipócritas ou a que se rende a elas mesmo quando deseja enfiar uma faca
em seu coração?
É verdade que eu poderia culpá-lo, poderia até mesmo usar o
momento como uma tática para fazê-lo pagar, mas sou eu quem ainda está
nua, sentindo a brisa congelante de uma pré tempestade enquanto o peso de
suas palavras infla o meu peito com tanta força que respirar se torna uma
tarefa difícil.
Só fico aqui, exatamente na mesma posição, fitando os seus olhos
intensos e esfomeados. Vejo o desejo em seu olhar, vejo o quanto ele sente
fome e o quanto a minha alma lhe parece apetitosa. Vejo o quanto ele me
quer, assim como sei que ele vê o quanto também o quis, mesmo que contra
a minha vontade.
Ele não me conhece.
É o que também vejo em seu olhar.
Ele conhece uma parte minha a qual tenho ignorado desde quando
precisei mover os meus próprios pauzinhos para sobreviver. Ele conhece
uma parte que era apaixonada por ele em um nível ao qual deveria ser
considerado um crime, porque sim, naquela época eu poderia mover Céus e
Terra para que nosso elo não fosse destruído de uma forma tão bárbara.
Mas ele não conhece a mim. A versão depois dele.
Ele não sabe que agora, eu moveria Céus e Terra para ser ainda mais
mentirosa e fingida do que ele nem mesmo é capaz de notar. Ele não sabe
que eu posso sim ser cruel, mesmo que para isso eu tenha que abdicar de
minha dignidade, mesmo que tenha que passar por cima da minha dor.
— Me larga! — O empurro, finalmente me livrando da prisão de
seus braços.
— Você é covarde. — Ele diz, rangendo os dentes ao levar ambas as
suas mãos a cada um dos meus braços, prendendo-me contra o tronco da
árvore outra vez.
Arfo, soprando meu cabelo para longe da minha visão.
— Oh, desculpe. Você esperava que eu me rastejasse aos seus pés?
Esperava que eu implorasse por um orgasmo?
Mesmo que na penumbra da escuridão, ainda posso ver a união de
suas sobrancelhas ao encarar-me.
— É o que você quer.
Tento puxar os braços, mas a sua força me obriga a aceitar a
posição.
— É o que você adoraria. É o que você está louco para que eu peça.
— Corrijo. — Porque para você é mais fácil obedecer a um pedido do que
ser aquele que o faz.
Vejo quando seus olhos escurecem. Seus músculos enrijecem e sua
mandíbula trava com tanta força que temo vê-la partir bem na minha frente.
Seu aperto agressivo em meus braços é um claro sinal de sua tremenda fúria
por estar diante da maior das verdades.
Eu posso ser cruel.
Não me desafie.
Não me olhe desse jeito.
Não aja como se eu fosse a única por um fio aqui.
E principalmente, não me faça desejá-lo, inferno!
Seus olhos me capturam com tanta destreza que sinto o mundo
desaparecer diante da testemunha do impasse entre o ódio e a incerteza. Eu
o odeio, odeio mais do que tudo nesta vida e temo odiá-lo ainda mais
quando chegar o grande momento de minha reencarnação, mas nada, nada
neste mundo pode superar o quanto eu odeio o que ele está despertando em
mim neste momento.
— Porra! — Ele rosna, agressivo e compulsivo. Vejo as veias de seu
pescoço saltarem no mesmo segundo em que o vejo acertar um golpe na
árvore atrás de mim, quase como se a ideia de que eu estou certa o
perturbasse.
Eu poderia facilmente recuar, temer que seu descontrole colocasse
minha vida em perigo ou me encolher com medo. Poderia acreditar que sua
ira se criou devido à rejeição, que ele me odeia tanto quanto eu o odeio e
que ele poderia me matar agora com toda a facilidade. Eu não teria
escapatória, não haveria testemunhas ou sequer socorro que poderia me
ajudar.
Mas a verdade é outra.
E eu sei que dentre todos os sentimentos envolvidos em seu
descontrole, nenhum deles é alimentado pelo ódio.
Percebo isto quando Jason se afasta em um rompante, com um olhar
sombrio e distante, mirando-o em qualquer outro ponto que não seja a
minha figura. Posso ver a fumaça esvaindo de seus lábios em uma lufada
pesada, denunciando a frequência elevada de sua respiração. No entanto,
ainda que eu deva temê-lo como o monstro que pode ser, continuo
exatamente no mesmo lugar, ao passo em que uso as minhas mãos para
colocar as minhas roupas em seus devidos lugares, tendo a sua figura como
alvo de meu olhar a todo instante.
Observo-o apertar os punhos com tanta força que sua pele
embranquece, mesmo que a iluminação esteja confundindo os fatos. Sua
língua umedece o lábios inferior e meus olhos se prendem no rodear de seu
piercing ao redor de sua pele, e por puro reflexo, entreabro os meus lábios
para liberar uma lufada pesada.
— Dói ser vencido? — Pergunto, quebrando o silêncio.
Seus olhos me encontram conforme os dedos ágeis abotoam seu
jeans de uma maneira tão rápida que meus olhos sequer conseguem
acompanhar.
Jason, sem dizer uma palavra, arrasta as suas botas pela neve,
deixando pegadas por onde passa, até alcançar a sua arma e a bolsa, a qual
joga sobre um dos ombros. Quando torna a me encarar, há tanta frieza e
tempestuosidade impregnadas em sua alma que sinto um arrepio correr pela
minha pele no mesmo segundo.
— Não tanto quanto vai doer se deitar hoje a noite e perceber que
não sou o único em agonia aqui. Mas não se preocupe, não é do meu feitio
usar isso contra você para fazer parecer que sou superior. Estamos no
mesmo degrau.
Ele passa por mim, deixando o rastro de seu maldito cheiro livre
para que eu possa inalar.
Há muitas maneiras de chutá-lo, de colocá-lo de volta no lugar ao
qual não percebi que havia escapado. Quando foi que lhe dei a liberdade de
brincar com a minha cabeça desta maneira? De me tocar? De me causar
tremores nada semelhantes ao ódio imaculado por anos?
Embora eu não saiba a resposta, sei que o problema não está nele.
O problema não é quem comete o maldito ato, e sim, ainda que discordem,
quem permite que o faça. Sei que cometi um grande erro por ter vindo parar
aqui, no topo da montanha infestada de homens que desejam me matar
enquanto espero proteção daquele que eu desejo matar. Quanta ironia.
Hipocrisia.
A verdade é que o meu mundo nunca foi humanamente normal
como todos os demais, sempre há uma sombra enraizada que me puxa para
o absoluto caos sempre que tento escapar. Eu nasci para essa vida, aprendi a
me moldar para que não fosse morta nos primeiros atos, como uma fraca.
Aprendi a adotar uma personalidade a qual ninguém esperava que eu
fizesse. Surpreendi a todos.
Sei que só preciso fazer isto mais uma vez.
Só mais uma.

Retiro peça por peça que cobre o meu corpo quando fecho a porta
do minúsculo banheiro da cabana onde precisamos nos abrigar devido à
forte tempestade lá fora.
A forte ventania e a quantidade de neve que cai do céu, trouxe uma
tempestade tão agressiva que ao olhar pela janela no alto do banheiro, posso
ver o vidro enraizado pelo nevoeiro que o congela. Estamos presos aqui
dentro até que possamos voltar para a cabana onde Naten e Lexie estão. É a
única alternativa já que tivemos a plena e absoluta certeza de que há
inimigos no topo desta montanha, assim como previsto.
Me sinto sufocada por saber de todas as atrocidades que devem se
passar aqui em cima, onde ninguém pode ouvir ou socorrer qualquer um
que esteja em sofrimento. Todas as vezes que penso nisso, minha mente
traiçoeira me leva de volta ao passado, onde tenho conhecimento que se
trata do lugar onde a minha alma se perdeu.
A captura de pessoas, intituladas como mercadorias, são feitas
sempre em público. Eventos beneficentes, lojas, shows, passeios e até
mesmo caminhadas. Chamar a atenção da Luxury é a pior coisa que pode
acontecer com uma pobre garota que merece ter toda a vida pela frente.
Raramente são escolhidos meninos.
O mundo deles é machista.
Os homens são sempre o centro do coração, quando as mulheres são
sacrificadas para mantê-lo funcionando.
Somos moldadas, disciplinadas e orientadas a servir a um homem
com o que ele desejar, pois somos submissas a eles. Devemos obediência
por termos tido o azar de nascer inferiores.
Somos tratadas como um mero objeto que será quebrado de mil
maneiras distintas até que o último grão se perca abaixo dos pés de todos
eles.
O que acontece em nosso casulo, sempre escondido no lugar mais
afastado de cidades, onde jamais alguém procuraria, apenas nós sabemos.
As humilhações, o asco, as ordens, os olhares de satisfação que não
deveriam ser destinados a nós… Tudo isto apenas mulheres como nós
saberiam explicar o quanto dói saber que não importa o que você faça,
ainda existirá dezenas de desgraçados que acharão divertido destruir uma
vida como se não fosse nada, assim como fizeram com você.
Como se não fosse nada.
Talvez esta seja a razão para que eu contenha a ira fervorosa em
meu peito, massacrando-o com o peso enorme da traição.
Se eu não estivesse aqui, provavelmente receberia notícias de que
Floyd e seus homens seguem sendo louvados como deuses pelo país,
quando, na verdade, usa sua influência para traficar garotas e as espalhar
pelo mundo como se fosse um produto em despache. Mas, comigo aqui, na
presença do homem que me feriu, eu tenho a chance de vingar a minha dor.
Não que vá deixar de doer, mas saber que os culpados estão mortos, talvez
traga algum tipo de conforto ao meu peito.
Talvez eu consiga dormir à noite sabendo que meu valor não está
totalmente no lixo.
Mas, ainda que eu esteja no lugar correto, tê-lo por perto ainda me
enfurece. Me quebra em infinitas maneiras. Me desconcerta.
Me deixa no escuro, sem saber para onde fugir, porque todos os
caminhos são igualmente sombrios, não importa para onde eu vá.
Ao enxaguar os fios do meu cabelo que estavam congelados antes
do banho, desligo o registro e alcanço a toalha para retirar o excesso de
água. Seco o meu corpo diante do espelho, observando o meu reflexo.
Nunca vou me acostumar com as olheiras fundas, as cicatrizes da
automutilação que tenho espalhadas por meus pulsos quando, muitas vezes,
foram a minha forma de suportar a forte agonia. Foi o que me
impossibilitou de ceder aos desejos das vozes em minha mente obscura na
qual diziam que eu deveria desistir da minha vida.
E eu quis. Quis acabar com ela porque respirar doía.
Olhar para trás e me dar conta de todas as coisas horríveis que
suportei, servem para que eu erga a minha cabeça e perceba que ninguém
pode definir do que eu sou, ou não, capaz. Eu cheguei até aqui, sobrevivi
quando todos acreditavam que morreria logo na primeira dificuldade, e eu
quase cedi. Mas as marcas estão aqui para me mostrar que não importa o
quanto doa, o quanto pareça insuportável, ainda é possível suportar. Vencer
as vozes. Vencer o medo e a falsa incapacidade.
Cá estou eu, embora odiando o que miro no espelho, embora
odiando a minha face e tudo o que ela representa, ainda sinto orgulho por
não ter aceitado o fracasso.
Não posso dizer que a dor desapareceu como em um passe de
mágica, porque seria a maior mentira que passaria pela minha cabeça. Mas
posso dizer que me acostumei com ela, e que o antes me machucava, agora
só desperta o grande sentimento de “eu já sabia que isso aconteceria”. Ela
se camuflou dentro de mim e fez do meu interior a sua casa; talvez seja por
isto que lidar com a minha dor desperta o pior de mim, porque a minha
mente já sabe os gatilhos que ela trará.
Funciona como uma barreira protetora.
Ainda que doa, atacar é a saída mais fácil; se render ao que ela causa
é sinônimo de fraqueza. E isto não foi ninguém que me disse, foi o que a
vida me ensinou quando precisei dar a cara a tapa e aprender a caminhar
sozinha.
Sei que esta é a minha grande preocupação, saber que Jason está ao
lado de fora do banheiro e que precisarei encará-lo em algum momento. O
ódio é um sentimento, sentir é natural. Mas eu sei que mais do que ninguém
um dia conseguiu, ao me encarar por dois segundos, Jason perceberá que o
ódio não é nada menos do que um fervor causado pela intensidade de um
desejo proibido. Eu o odeio, mas nenhum ódio é superior ao que sinto por
mim mesma tendo total conhecimento de que mesmo que pouco, mesmo
que quase inexistente, ainda o desejo.
Quão horrenda será a minha sentença por tal ato?
Imagino que melhor do que aquela causada por mim mesma.
Merda.
Soltando um longo suspiro, desvio o olhar do meu reflexo e ignoro
as vozes em minha mente, a tensão em minha pele e a agonia em meu
âmago. Sinto meu estômago revirar, sinto vontade de fugir pela floresta e
me perder em meio à tempestade apenas para não dar de cara com o fruto
de uma traição contra mim mesma.
Mas sei que seria mais um motivo para ser chamada de algo que eu
não sou.
Ao vestir todas as roupas secas e podendo, enfim, sentir-me
aquecida novamente, solto uma lufada de ar ao alcançar a manga da fina
blusa em meu corpo para esconder os cortes abaixo do pano. Não sinto a
necessidade de tapá-los com gaze, pelo simples fato de que ninguém
chegará perto sem que eu permita, então simplesmente faço o básico e
guardo o restante dos meus pertences na bolsa, paralisando com os olhos
fixos na maçaneta enferrujada da porta.
Não posso me limitar sempre que Jason estiver por perto, já estive
aqui antes, não é o fim do mundo.
Não é o fim do mundo.
Abro a porta e ignoro as batidas latentes em meu peito. Coloco o
primeiro pé para fora e quando ergo o olhar, eu o vejo sentado em uma
cadeira de madeira, com os cotovelos apoiados em seus joelhos e uma das
mãos se move ao seu rosto, onde alcança o cigarro entre os seus lábios para
libertar a fumaça pelo ar. Sua musculatura está rígida, posso vê-la saltar e
parecer dura como aço contra a camiseta preta básica que cobre o seu peito,
agora sem a presença de sua jaqueta.
Vejo as linhas de suas tatuagens que descem por seus braços
musculosos e duros, até a pele de seu pescoço onde os traços finalizam em
um novo desenho em sua nuca. Em todo o tempo, Jason permanece
tragando o seu cigarro com os olhos fixos em suas botas travadas contra o
chão, no entanto, como se sentisse a minha presença, seu olhar se ergue e
suas orbes encontram as minhas.
É tempestuoso e caótico, mas nunca me pareceu tão desvendável.
Ergo o queixo e ignoro o misto de sensações ardentes que fervem o
meu sangue, avançando meu próximo passo para fora do banheiro que
abandona a minha pele com seu vapor aquecido.
— Não deveria estar fumando aqui dentro.
Embora eu tenha desviado os nossos olhares, ainda posso sentí-lo
queimar a minha nuca e o restante do meu corpo como uma manta
impenetrável. Inferno.
— Isso nunca te incomodou, por que agora? — Sua voz grave e
rouca poderia causar até mesmo tremores nas madeiras que erguem esta
cabana.
Quero inventar dezenas de respostas que o façam excluir a
possibilidade de que eu possa gostar do cheiro causado pela nicotina em
conjunto com o cheiro de seu perfume suave, embora seja exatamente isto
que me enfureça. Abro a boca para dizer qualquer coisa que me venha à
mente ao passo que caminho até o colchonete já montado e limpo para que
me deite, no entanto, as palavras morrem em minha boca antes mesmo que
saiam, seguido por um suspiro assustado quando os meus olhos piscam
duas ou três vezes, não encontrando nada além da completa escuridão.
Viro a cabeça de um lado para o outro a fim de constatar o óbvio,
buscando por qualquer sinal de luz que me faça acreditar que estou ficando
louca. Mas basta que meus olhos encontrem a ponta flamejante do cigarro
de Jason, para aceitar a circunstância.
Estamos sem energia.
Sem luz.
Está tão escuro que somente o seu cigarro possui um fiapo de
coloração ao meu redor. Sinto meu coração bater ainda mais depressa,
causando uma respiração desenfreada que se adequa ao tremor que alcança
a porta da cabana e a ventania extrema que vem de fora.
Então eu entendo.
A tempestade.
A tempestade acaba de me deixar na porra de uma cabana com
Jason sem o menor sinal de claridade.
— Merda. — Suspiro, recuando alguns passos até que as minhas
costas batam contra a parede mais próxima.
É mais seguro aqui, onde eu posso vê-lo exatamente de onde estou,
garantindo que continue distante.
— Se havia alguém nos perseguindo pela floresta, será demolido
pela tempestade e seu corpo nunca será encontrado em meio a tanta neve.
Provavelmente morrerá de hipotermia e vai nos poupar de um esforço
desnecessário, então a falta de energia agora é o menor de nossos
problemas. — Ouço o ranger de sua cadeira velha, indicando o erguer de
seu corpo. Vejo a silhueta de sua mão alcançar o cigarro e atirá-lo ao chão,
antes de ouvi-lo o esmagar com a sola de sua bota, apagando o último fiapo
de luz que denunciava a sua posição.
Ele julga ser o menor dos problemas quando, na realidade, estar em
sua presença nesta cabana atrai mais perigo do que meros homens que eu
poderia matar sem o mínimo remorso. Mas aqui… Aqui as coisas são
diferentes.
Aqui há remorso.
Recosto-me contra a parede e o silêncio me perturba. O vento
balança as janelas e a porta, tão caótico quando o ambiente silencioso e
enigmático entre estas paredes de madeira.
Não ouço um ruído sequer, e a ideia de que ele possa estar me
rondando e brincando comigo sem que possa vê-lo, tão sorrateiro, me deixa
em completa agonia. Porque não importa quão bom tenha sido o meu
treinamento e o quanto eu seja boa em captar coisas que passariam
despercebidas por pessoas comuns, ele ainda é mais ardiloso do que eu
conseguiria ser em toda a minha vida. Um aluno nunca consegue ser melhor
do que o seu professor, a menos que ele queira.
— Ligue a lanterna do seu telefone. Não me sinto confortável no
escuro com você. — Minha voz treme, e aperto os punhos para acalmar os
nervos.
Silêncio.
Jason se cala e é exatamente isto que me dá medo. Seu silêncio é
sinônimo de caos e desordem, uma vez que sua voz é quem o determina.
Mas quando não o faz, é o que lhe faz perceber que a diversão da vez é
arruinar sem que um aviso seja dado.
— Não vou pedir de novo, Jason. Eu não confio em você e…
Me calo.
Engulo as palavras quando finalmente, após minutos de completa
calmaria, finalmente sinto a sua presença. Porque ele permite que eu sinta.
Sorrateiro e perverso, é isso o que ele é. Sinto seu peito estufado bater
contra o meu, que sobe e desce em uma respiração desordenada, e o baque
de seu braço repousando acima da minha cabeça é o que me faz prendê-la.
— Eu também não confio em mim, Baker, principalmente quando se
trata de você. — Sua voz é um sussurro em agonia, que sai arrastado ao
passo em que sinto a ponta de seu nariz escorregar por minha face, em
minha bochecha que agora parece pegar fogo.
Espremo o meu corpo contra a parede, forçando os meus punhos a
se fecharem, acreditando que a força depositada ali possa sobressair a de
uma tensão a qual pensei estar morta. Mantenho os meus olhos abertos,
encarando a silhueta forte e grande diante de mim, que desliza a ponta de
seu nariz por minha mandíbula até encontrar a pele sensível do meu
pescoço. Contenho a respiração e sinto a sua língua deslizar na lateral do
meu pescoço, especificamente em meu pulso, onde o latejar denuncia o meu
nervosismo. Ele, mais uma vez, parece satisfeito com o efeito que causa em
mim quando sinto sua mão possessiva e grosseira, tomar um lado da minha
cintura com agressividade, como se estivesse se contendo. Se segurando.
— Então se afaste. — Reúno forças para dizer.
— Eu disse que não confio em mim quando se trata de você e
quando digo isso, quero dizer que não importa o quanto eu odeie ceder, se
eu não o fizer, vou perder a cabeça. — Soa como uma confissão. — Você
não odeia esse momento tanto quanto eu, mas sei que o deseja quase na
mesma proporção. Então vamos acabar logo com isso.
Arfo ao sentir os seus dedos ásperos pressionarem a minha cintura e
me puxar de encontro a si, colando os nossos peitos enquanto a sua língua
desliza pela pele do meu pescoço como se fosse a coisa mais saborosa que
já colocou a boca. Por reflexo, fecho os olhos e sua mão livre afasta os fios
úmidos do meu cabelo para trás, dando-lhe ainda mais acesso a minha pele.
— Não vou ser a sua válvula de escape. — Arfo, minha voz treme e
minhas pernas parecem perder a sua força, mas não importa o que eu faça,
não consigo me afastar.
Não consigo impedi-lo.
Não sei nem se quero impedir.
Quero afastá-lo, quero puni-lo por colocar as suas mãos podres em
mim, mas ao mesmo tempo, uma parte minha deseja que ele vá mais além,
que faça de uma vez. Que sane a minha vontade.
Fico em um impasse, entre agarrar a corda que me puxa para a
claridade ou cortá-la ao meio, escolhendo ficar no abismo fundo, onde é o
meu lugar. É um momento no qual sempre soube qual seria a minha reação,
mas as coisas são diferentes na prática. Na prática, não há racionalidade
alguma que o faça escolher pelo lado da salvação. Às vezes, a perdição soa
mais tentadora. Posso dizer que este é o caso deste momento, porque
quando sinto a sua mão repousada em minha cintura apertar a minha carne e
seu corpo empurrar o meu contra a parede, pressionando-me enquanto sua
palma invade a minha blusa e se infiltra por baixo dela, com os dedos
calejados massacrando-me por completo, perco qualquer capacidade de
raciocinar.
— Você não é. — Afirma. — Amanhã nós podemos fingir que isso
não aconteceu. Posso voltar a ser o bastardo desprezível e você pode voltar
a me desejar apodrecendo em um caixão. Mas agora, eu quero que me
deseje dos pés à cabeça, assim como eu a desejo. Me beije e me toque,
porque se não o fizer vou perder a porra da cabeça.
Seu rosnado é o suficiente para que erga as minhas mãos trêmulas e
as leve até cada lado de seu rosto com uma impetuosidade tão grande que o
vejo suspirar pelo contato. Ergo a minha cabeça e trago a sua até estar
diante de mim, sinto sua respiração em meu rosto e só quando tenho
absoluta certeza de que ele está com os olhos em mim, solto as seguintes
palavras:
— Isso não muda nada. — Afirmo. — Não muda o meu ódio e o
meu desprezo. Não muda quem você é.
— Isso não muda nada. — Concorda. — Ao nascer do sol, você e eu
ainda seremos a ruína um do outro. Estou contente com a posição que
ocupo na sua vida, e é melhor que seja assim.
Respiro fundo, sentindo uma fagulha incômoda em meu estômago,
mas procuro me recompor antes que ele perceba o meu desconforto. Não é
momento para sentir, tampouco para me mostrar frágil e desconcertada.
Está sendo uma escolha e terei que arcar com as consequências.
— Eu te odeio. — Rosno com tanta força, que sinto meu toque pesar
em sua pele. Ele sequer parece incomodado.
— Que bom. — É tudo o que diz ao levar ambas as mãos até os
meus punhos e segurá-los contra a sua face, contendo a minha
agressividade.
Meu corpo inteiro ferve e minha alma parece ter se perdido em
algum lugar, meus sentidos também, porque não há outra razão para que
esteja me rendendo a ele. Ao que causa em mim, ao que deveríamos ter
sido. Queria que ele pudesse sentir a minha dor por estar aqui, queria que
entendesse que meu mundo foi destruído e que sou tão fodida que me atraio
pela destruição e que é por isso que continuo aos seus pés. A vida nunca foi
bondosa comigo, a bondade me parece inexistente. O que me resta é me
apegar às sombras da única coisa que conheço: terror absoluto.
Isso talvez explique porque estou prestes a transar com o homem
que destruiu a minha vida, após prometê-lo uma vida desprovida de paz.
É a única razão.
Os dedos de Jason largam os meus punhos e os afastam de sua pele,
como se meu toque o queimasse. Ele me larga, vejo sua silhueta se mover e
ouço o ruído de tecido. Busco compreender o que acontece, mas a minha
dúvida é sanada quando novamente ele está diante de mim, pressionando-
me contra a parede e ao tocá-lo, sinto a pele de seu abdômen nua. Não
tenho tempo para contestá-lo, porque Jason se aproxima e afasta as minhas
pernas de uma forma habilidosa, com um dos joelhos. Ergo a cabeça para
respirar, no entanto, sou impedida de fazê-lo quando o choque de sua boca
contra a minha de maneira possessiva e desesperada, me tira do eixo.
Por reflexo, levo ambas as mãos à sua nuca, deslizando por sua
cabeça raspada enquanto a outra trata de arranhar a pele onde
provavelmente há traços de uma tatuagem. Sinto o seu piercing gélido em
meus lábios, provocando-me uma sensação tão boa que o resto do mundo
parece ter desaparecido. Seus lábios esmagam os meus e eu gosto, gosto da
maneira como sua língua pede passagem e de como cedo, gosto de como
ela transita por cada canto, de como seus dentes mordem os meus lábios,
tão forte que um gemido me escapa.
Tenho certeza de que haverá sangue se eu o tocar.
Sinto-o esmagar a minha cintura e uma de suas pernas roça o meio
das minhas, provocando-me sensações tão arrebatadoras que sequer tenho
tempo para me arrepender. Sua outra mão afunda em minha nuca e agarra
um punhado de meu cabelo entre o seu punho, afastando a minha cabeça
para trás até que bata contra a parede. Eu arfo, desnorteada, mas basta que
seus lábios raspem os meus novamente para que perca o resto de
consciência que me resta.
— Não entendo como você ainda acredita que eu destruí a sua vida,
quando é você quem destrói a minha todos os dias. — Rosna, prendendo os
meus cabelos entre seus dedos como se me odiasse. Como se não suportasse
o que faz. — Porra, você poderia acabar com ela e eu sequer tentaria
impedir. Sempre foi assim, sempre foi você quem me teve na palma de suas
mãos, não o contrário.
Procuro entender o enigma entre as suas palavras, procuro encontrar
as entrelinhas em sua frase que me façam compreendê-lo, mas sei que seria
em vão. Não muda nada, de qualquer forma.
— De costas. — Ordena, e sua agressividade me pega desprevenida,
mas não o questiono. Apenas obedeço.
Me quebre como só você sabe fazer.
Me amaldiçoe para todo o sempre.
É irrevogavelmente impossível que possa existir uma sensação tão
arrebatadora quanto o cheiro do homem agarrado às minhas costas, que
lambe o lóbulo da minha orelha de uma maneira pecaminosa. É
irrevogavelmente impossível que eu possa dormir a noite sem me lembrar
de como é tê-lo agarrado a mim como nos velhos tempos. Seu toque é
agressivo, desesperado e possessivo. Jason me toma em suas mãos como se
pudesse me partir ao meio a qualquer minuto, e entendo que ele poderia
muito bem fazê-lo se quisesse, por nossa diferença enorme de estatura. Mas
não só isso.
Eu o sinto pressionar o peito contra as minhas costas, sinto alcançar
a barra da minha blusa e deslizar os dedos pelo tecido de uma maneira
impaciente. Então quase arrebento os glóbulos oculares quando o ouço se
partir, assim como sinto a minha pele arder.
Liberto um grande suspiro ao notar que ele acaba de rasgar a minha
blusa com as próprias mãos, mas nem que eu me importasse conseguiria
abrir a boca para contestá-lo. Fecho os olhos ao sentir as duas mãos
trabalharem em descer a calça jeans que cobre a parte de baixo, seus dedos
deslizam pelo botão e o abrem, mas só quando ele faz menção de abri-la, eu
afasto as suas mãos e tomo o seu lugar, fazendo por ele.
— Faça logo. — Ordeno, sentindo o tremor denunciar o meu
desespero.
Ele não responde, sequer há necessidade.
Ouço o ruído de seu zíper. Ouço o som do cinto batendo contra o
chão. Ouço sua respiração em meu pescoço outra vez, e é neste segundo
que fecho os meus olhos e decido ignorar toda a racionalidade. Que se dane.
Jason é o perigo, é a personificação da destruição, ainda assim, é por ele
que meu coração bate com tanta força que sequer posso imaginar um
momento da minha vida que não o tenha desejado.
É um erro. É a porra de um crime que não há perdão existente na
face da terra, mas nunca o desejei, de qualquer maneira.
Seus dedos deslizam pelo tecido da minha calcinha e não demora
muito para senti-la deslizar por entre as minhas pernas. Sinto o interior de
minhas coxas encharcado, minha boceta pulsa com tanta força que quase
grito para que ele a toque. Exatamente no lugar onde ela implora, onde o
inchaço implora por um alívio.
Mas, como se ouvisse os meus pensamentos, Jason ri rouco em meu
pescoço conforme seus lábios chupam a pele nua abaixo da orelha.
— Peça.
Nego.
— Jason. — Repreendo. — Não me provoque, inferno.
Ele sequer se abala.
— Quero ouvir as palavras, Baker.
Desgraçado.
Ele sabe que meu orgulho sempre será maior do que qualquer
desejo, quer me ver implorar para que me foda, que me destrua, porque seu
prazer é onde se encontra a minha dor.
— Foda a minha boceta agora ou eu a darei para alguém que a
queira sem grandes burocracias. — Opto por provocá-lo, mesmo que seja
um tópico doloroso.
Sei que apesar de demonstrar a sua grande insatisfação comigo, por
me afastar e por me colocar sempre como o elo mais fraco, ele jamais
gostaria de me ver com um outro alguém. E, como imaginei, foi tudo o que
precisei dizer para que ele perdesse o resto de sanidade que tinha.
Jason empunha boa parte do meu cabelo e puxa a minha cabeça para
trás com rapidez, fazendo-a recostar contra o seu ombro e o bico dos meus
seios raspam de forma dolorosa contra a madeira da parede. Gemo contra o
seu pescoço, abrindo a boca o suficiente para chupar a sua pele e sentir seu
gosto nela, como se tê-lo prestes a se enfiar dentro de mim fosse
insuficiente.
— Não se atreva a falar uma coisa como essa outra vez, porque eu
poderia exterminar cada homem na Terra antes que você possa ser tocada
por qualquer um deles. — Rosna, com raiva, cego pelo desejo. — Tenho
certeza que em seu coração há o meu nome tatuado, e vou me certificar de
que sua boceta também tenha. Não importa o quanto fuja, inferno, você
ainda continua sendo minha. Você nasceu para isso.
Há um tom furioso emanando de cada palavra, e basta que ele
recoste a altura de sua virilha contra a minha bunda, para que eu entenda a
proporção de cada uma. Fecho os meus olhos e me apoio na parede com as
duas mãos, afastando minhas pernas minimamente, desejando o seu toque,
desejando-o infindavelmente.
Sinto o seu pau deslizar entre as minhas dobras, é grande, tão grande
que temo ser quebrada em dois pedaços neste exato momento. Meu interior
pulsa, meu âmago implora para que ele nos una e que, mesmo por um curto
período de tempo, possa sentir como é ser tocada por quem realmente
desejo.
— Vou destruir você, Jason. Vou quebrá-lo por tudo o que me faz
sentir. — Sopro, entre um gemido ou outro quando sinto sua mão livre
posicionar-se no meio das minhas pernas e afastá-las mais um pouco, seus
dedos deslizam por minha excitação por um momento e quase perco o
equilíbrio.
— Chegou tarde. Não há mais nada para ser quebrado.
Então eu sinto a cabeça do seu pau ser pressionada contra o meu
clitóris.
Gemo.
Inferno. Inferno. Inferno.
Por que isso é tão bom?
Ele arfa contra o meu rosto.
Não há penetração, tudo o que ele faz é deslizar a ponta por minha
extensão, deslizando-a para cima e para baixo e demorando-se no clitóris
como se o meu desespero o excitasse. Seu pau está tão duro que posso
sentir meu ponto sensível inchar ainda mais quando é pressionado ali, mas
nada, nada se compara a sensação de seu gemido rouco quando o pau
escorrega e é pressionado em minha entrada.
— Caralho! — Rosna, completamente rendido ao tesão.
Sei que somos movidos por isto, pelo errado, pelo proibido, e que é
exatamente isso o que nos mantém respirando. Então dou isso a ele. Eu me
curvo contra a sua virilha e posiciono a minha bunda contra o seu pau de
uma maneira bruta que, inevitavelmente, faz com que deslize para dentro
devido à excitação que já escorre por toda a sua extensão. Sequer imagino
como esteja seu interior.
Apoio-me na parede e me curvo ainda mais, empurrando-o para o
fundo sem que este seja um movimento seu.
Seu gemido me desconcerta.
O puxão em meu cabelo quase me leva a colar os nossos corpos
novamente, mas concentro-me em manter o meu apoio e deixar a minha
bunda na devida posição.
Ele faz o primeiro movimento, empurrando tão fundo que vejo
estrelas.
— Nossa. — Arfo. — Nossa, nossa, nossa.
Ele não para.
Sinto as suas bolas baterem contra a minha bunda e seu puxão em
meu cabelo é tão agressivo que tenho a certeza de que grande parte dele
ficará preso entre seus dedos mesmo que me liberte. Nossos gemidos
entram em sincronia e já não me importo com a vida lá fora, não me
importo com meus objetivos e com a tempestade que poderia destruir esta
cabana conosco dentro. Nada importa senão as estocadas violentas que
fazem a minha consciência desaparecer.
Sua mão que não está em meu cabelo segura um lado de minha
bunda, possibilitando que haja mais espaço para que ele possa se enfiar. Eu
o sinto tão fundo que minha intimidade dói, sua grossura deixará uma
ardência que levará tempo para ser superada, ainda assim é a melhor
sensação que tenho o prazer de sentir há anos.
Mesmo que doa saber disso quando acordar.
Admitir é duro, mas este é um fato que ninguém nunca saberá senão
eu.
— Pare de me apertar dessa forma ou eu vou jorrar dentro de você,
caralho. — Avisa.
Não entendo o que ele diz, posiciono as mãos na parede novamente
e quando sinto sua mão largar a minha bunda e se infiltrar entre os meus
grandes lábios, alcançando o clitóris e pressionando-o entre os dedos, eu
fecho as pernas com toda a força e grito alto. Neste segundo, entendo o que
ele disse.
Meu clitóris pulsa com força e minha entrada também. Eu a sinto
esmagar o seu pau.
— Caralho, Baker! Eu mandei você… — Arfa, empurrando com
mais força. Me desequilibro e meu rosto vai de encontro à parede. Demoro
a entender a minha posição, mas quando as estocadas se tornam impiedosas,
percebo que ele está em seu limite. — PORRA!
Sinto o pé da minha barriga ferver e o clitóris formigar, a penetração
continua agressiva e forte, mas quando sinto um tapa estourar na pele da
minha bunda, o grito sai quase automático. Então explodo, explodo entre os
seus braços enquanto ele desfere outro e mais outro tapa, empurrando forte
e diversas vezes até que sinto meu interior ser preenchido por seu líquido.
Sigo ali, escorada contra a parede enquanto meu interior arde, meus
seios estão doloridos e a minha bunda queima. Todo lugar onde ele esteve
com as mãos está dormente, mas ainda assim nunca me senti tão esgotada.
O silêncio se instala outra vez, sem o som profano de suas
estocadas. Há apenas nossas respirações e o barulho das janelas batendo
devido à forte força do vento.
Ele ainda está dentro de mim quando larga o meu cabelo e desliza a
sua palma por minha bunda, como se quisesse acalmar a ardência ali, então
alcança a minha nuca e me puxa de encontro a ele novamente, até que
minhas costas estão contra o seu peito.
— Agora eu tenho mais certeza de que você nunca poderá me
desprezar com tanto afinco. Assim como sei que nunca conseguirei me
esquecer do som dos seus gemidos e da sua boceta encharcada engolindo
meu pau. — Ele lambe o meu rosto, como um cão. — Estamos
amaldiçoados.
NEW YORK - 2019
ANTES

Bato com os pés no chão de concreto repetidas vezes ao respirar


fundo, lutando para ignorar os gritos e xingamentos que vem da sala onde
Jay adentrou junto dos homens em que ele acredita se tratar de traidores.
Apesar da porta estar fechada e Jay ter proibido a minha entrada,
não é difícil adivinhar o que acontece do lado de dentro. Os gritos dolorosos
são altos demais, os xingamentos ecoam da maneira mais agressiva que já
pude ouvir.
Jay está torturando-os.
Os resmungos tornam-se mais graves quando ruídos de corpos
sendo atirados para o chão ecoam abafadamente. Espasmos correm por toda
a extensão do meu corpo, minha mente me leva diretamente para o
momento em que afirmei estar de acordo com toda essa gente e os seus
meios nada misericordiosos de conseguir uma informação.
Apesar de concordar com a vida que Jay leva aqui dentro, eu
realmente não pensava que ouvir gritos e pedidos lúcidos de socorro seria
tão desesperador. É como se eu sentisse o dever de salvar quem quer que
esteja sofrendo em suas mãos.
É como um reflexo da humanidade. O cuidado com o próximo.
Tenho certeza de que Jay sabia que eu sofreria com tais exageros
emocionais, pois quando ele adentrou àquela porta e depositou um beijo
tranquilizador a minha testa, fez questão de deixar um de seus cães
certificando-se de que eu não obtivesse sucesso em minha possível
intromissão.
Quando ergo o olhar e encontro os olhos miúdos apontados em
minha direção, não contenho um suspiro indignado que sobe pela minha
garganta.
— Por que eu não posso entrar? — Questiono, na tentativa de
conseguir alguma resposta que não tenha sido direcionada a mim. — Eu
não vou fazer nada!
O garoto ri, seu corpo relaxadamente recostado contra a parede ao
lado da porta, bloqueando a minha entrada.
— Nós nunca conversamos, não posso dizer que conheço você.
Mas eu não sou um idiota e nós dois sabemos.
Me calo. Ele não é um completo estranho para mim, já o tinha
visto outras vezes ao lado de Jay, ou então, treinando Kelly no salão de
treinamentos. Ele sempre me pareceu ser alguém de confiança para Jay, já
que ele sempre teve uma proximidade maior com a sua irmã. E,
considerando que é ele quem está me vigiando neste momento, tenho a
absoluta certeza de que ele é confiável.
— Eu só preciso saber se ele está bem. Estou preocupada. —
Anuncio, minha voz chorosa parecia estar o enganando direitinho.
Ou ao menos, é o que eu penso.
Ameaço avançar alguns passos no segundo em que levanto um
dos braços para alcançar a maçaneta. O garoto congela o meu movimento
quando coloca-se à minha frente e leva ambas as mãos para os meus
ombros, afastando-me da madeira.
— No seu lugar, eu me preocuparia mais com a vida de quem
entrar no caminho dele. — Ele responde, recolhendo as mãos de volta para
o lado de seu corpo.
Eu resmungo, frustrada.
— Mas…
— Sem "mas". Ele está lá dentro para encontrar o culpado por
colocar você em risco. Está mesmo preocupada com o fim deles? —
Pergunta. Eu me calo. — Ele se preocupa com você, Clarke. Não faça
nenhuma besteira, porque tudo que ele quer é manter você à salvo.
Um grito sufocado vem de dentro do cômodo e estremeço pelo
susto, meus olhos automaticamente voam em direção a porta, temendo o
que exatamente poderia estar acontecendo. Mas antes que eu possa agir por
instinto próprio, o garoto segura a base do meu antebraço, afastando o meu
corpo com um empurrão leve e sutil.
— Essa é a nossa vida. Você e Kelly são a prova de que eles não
vão parar até que consigam poluir o mundo com tanta merda. Você precisa
se acostumar com isso, porque até que consigamos destruí-los, vocês
estarão em perigo.
Ergo uma das sobrancelhas, confusa.
— Kelly também...?
Não é preciso terminar a frase, sei que ele entende.
Ele larga o meu braço, acenando devagar.
— Aquele cara que você viu apontar uma arma para a cabeça de
Jay, é o chefe da máfia que se responsabiliza por tudo. Também foi quem
manteve Kelly em um cativeiro por quatro anos.
Suspiro, observando-o afastar os fios de cabelo liso que caem
sobre os seus olhos.
— Quatro anos? — Arregalo os olhos, minha voz denuncia o meu
espanto.
O garoto acena mais uma vez, está explícito o quanto ele se
esforça para me dar poucos detalhes. Palavras, ao que parece, não são muito
o seu forte. Isso é algo que ele tem em comum com o Jay, e sinceramente,
não posso dizer que aprovo a forma como todos parecem omitir algo de
mim.
Eu quero respostas, já estou farta de testemunhar desgraças e
assuntos que todos parecem desaprovar a minha intromissão. Eles me
trouxeram para cá, Jay quis me tornar um deles, então por que parecem tão
preocupados em me manter longe dos assuntos?
Tudo está muito confuso em minha cabeça. E Kelly, meu Deus.
Como isso aconteceu?
— Mas... — Eu observo os seus olhos pequenos e brilhantes
vagarem pelos corredores, antes de conectá-los aos meus. — Nós
estudamos no mesmo colégio. Em um concurso de talentos, Kelly estava
acompanhada de sua família... Eu vi. Eu até... Imaginei como seria a minha
vida se for acaso eu tivesse uma família como a dela…
O garoto umedece os lábios e captura-os com os dentes
superiores, como se estivesse contendo um riso irônico.
— Vá por mim, se você souber de uma vírgula do que aconteceu
na vida dessa menina, vai desejar voltar atrás e nunca se imaginar em seu
lugar. — é tudo que ele diz.
Franzo o cenho, confusa.
Naquela noite, eu me lembro de tê-la visto chorar. Ela parecia
estar chorando, na verdade.
Lembro-me de que ela foi extremamente legal comigo, quando
todas as outras garotas sequer me olhavam, dentre todas elas, Kelly me
notou. Ela não parecia estar feliz ao participar do concurso, eu também
nunca entendi o porquê. Mas, se o garoto está falando a verdade, há mais
coisas por trás daquela noite do que eu sei.
Todos parecem saber, na verdade, menos eu.
E, sinceramente, estou cansada de ser tratada como criança.
Abro a boca para contestar o seu comentário, mas ele gira sobre
os calcanhares e torna a recostar o seu corpo contra a mesma parede em que
estava, ao lado da porta. Ele faz o mesmo com a sua cabeça, encarando as
paredes de concreto como se fossem a coisa mais interessante que já vira.
— Eu adoraria responder mais de suas perguntas, Clarke. Mas,
honestamente, tenho amor à minha vida. — Ele diz sem olhar para mim.
Engulo em seco.
— Como?
Seus olhos encontram os meus, mas seu corpo não se move.
— Nós crescemos juntos. Jay e eu. Ele sempre teve razões para
querer destruir muitas coisas, e nunca foi questionado por isso. Mas agora,
todos nós temos medo do quão longe ele pode ir para proteger você. — Ele
diz, com toda a sua naturalidade e classe. — Mas diferentemente deles, o
meu medo está ligado ao quão longe vocês podem ir, juntos.
Arqueio a sobrancelha.
Ele não me dá espaço para perguntas, pois cala a minha boca com
um comentário honesto.
— Porque Jay é indecifrável. Ele não é um cara ruim, mas
também não demonstra ser um cara bom. Ele deixa as pessoas tirarem suas
próprias conclusões, porque não dá a mínima para opiniões alheias. —
Outro grito soa de dentro do salão, mas desta vez, eu mal o ouço, parece
distante. — Ele sabe controlar as emoções como ninguém, porque foi como
ele foi ensinado a fazer. Mas você está derrubando as paredes dele, e
honestamente, isso me assusta.
Uma linha se forma no meio de suas sobrancelhas, evidenciando
o fio de preocupação. Ele cruza os braços e desvia o olhar mais uma vez,
suspirando em alívio.
Continuo estática, processando as suas palavras.
— Você parece conhecê-lo bem…
Ele acena.
— Somos irmãos. Ninguém o conhece melhor do que eu.
Ele diz com tanta convicção que, por um segundo, cogito a
possibilidade de serem realmente irmãos. Mas com toda certeza se trata de
um termo usado para descrever o quão próximos são. Eles não são nem um
pouco parecidos fisicamente.
O garoto possui cabelos tão lisos que despencam para os seus
olhos a cada minuto, seus lábios são finos e bem contornados. Os seus olhos
são pequenos e puxados em sua extremidade, escuros e profundos.
Jay é o oposto de todas as características do garoto.
Exceto pelos músculos que são visíveis por cima de sua camiseta
preta. O corpo aparentemente avançado para suas respectivas idades, é uma
das poucas coisas que possuem em comum.
— Obrigada... — Agradeço, indicando uma continuação da frase,
para que ele a complete com uma apresentação.
Finalmente abro mão do meu instinto heróico. Já havia me
esquecido do que acontecia por trás desta porta.
Ele baixa o olhar, interpretando a minha frase por longos
segundos antes de limpar a garganta casualmente.
— Naten. Naten Hyuk.
Eu aceno, forçando um sorriso gentil no canto dos lábios.
— Obrigada então, Naten. Você disse mais coisas do que qualquer
outra pessoa teria me dito.
— Não me agradeça. Eu tive uma participação importante no seu
sequestro, talvez você me odeie se por algum acaso se lembrar da
quantidade de força que usei para amarrar os seus braços na mala de um
carro.
Eu rio baixinho, achando graça na maneira como ele parece correr
de um elogio. Todas as pessoas aqui parecem temer alguma coisa, isso é
tipo um requisito para entrar para este tipo de clube de assassinos?
— Nesse caso, obrigada de novo. Me sinto mais feliz aqui do que
jamais me senti em qualquer outro lugar.
Ele acena, um sorriso sutil enfeita os seus lábios finos quando
descruza os braços no mesmo segundo em que a maçaneta da porta é
girada.
Eu me endireito, ansiosa para vê-lo. Naten continua no mesmo
lugar, sem se mover.
Meu coração bate incontáveis vezes contra o meu peito, forte
demais para ser controlado. Minhas mãos transpiram ao lado do meu corpo,
e tudo que eu faço é arrastar a ponta dos dedos entre a palma, procurando
relaxar-me.
A porta é aberta, revelando o corpo de Jay. A primeira coisa que
enxergo são os seus olhos fundos, praticamente vazios. A segunda coisa,
são os dois corpos desacordados sentados em uma cadeira de metal, dessa
distância, posso enxergar os seus pulsos presos às costas da cadeira. Ao
lado deles, ferramentas como alicates e tesouras enfeitam o chão ao lado de
pedaços rígidos do que parece ser madeira dura. Todos possuem colorações
avermelhadas, e não demora muito para que eu enxergue a mesma
coloração no corpo dos homens. Em seus braços, pescoço, cabeça e roupas.
Aquilo é sangue.
A terceira coisa que meus olhos encontram são as suas roupas
escuras, todas possuem respingos avermelhados como aqueles que haviam
lá dentro. Um suspiro me escapa quando finalmente me dou conta de que
suas roupas estão sujas de sangue.
Sangue dos traidores.
Jay avança dois passos para fora, fechando a porta às suas costas
ao perceber para onde eu olho.
— Você está bem? — Quebro o silêncio, vasculhando a extensão
do seu corpo com o olhar, buscando por algum sinal de ferimentos.
Jay analisa o meu olhar, um meio-sorriso provocador brinca no
canto de seus lábios e em meio a tantas preocupações, não consigo entender
o que ele está achando tão divertido.
— Estou bem, amor.
Ele diz como se fosse óbvio, e eu não duvido mesmo que seja. Jay
provavelmente é perigoso e forte o suficiente para se cuidar sozinho. Eu
estava lá embaixo, eu vi como todos os outros caras do batalhão o
respeitam. Nem mesmo pareciam muito à vontade para respirar, o receio de
suas respirações provocarem uma fatia de irritação naquele que lhes
causava tanto pavor, deixava-os tensos. Eu vi tudo aquilo, e não posso dizer
que não fiquei espantada pela forma pavorosa como homens visualmente
maduros e adultos, não conseguem olhar para os olhos do garoto de vinte
anos, com medo do que ele possa fazer caso sinta-se ameaçado.
Jay é respeitado e superior a todos neste prédio.
Então por que eu fico tão assustada ao imaginá-lo ferido?
Ele sabe muito bem se defender.
Aceno, aceitando a sua condição atual. Ele sabe se defender.
Repito a mim mesma.
— E então? — A voz rouca e sutil de Naten causa a nossa quebra
de olhares, Jay vira a cabeça de supetão, encarando-o ao seu lado esquerdo.
Seus olhos encontram os meus, analisam o meu comportamento
da forma mais discreta antes de levá-los a Jay, onde os mantém fixos. A
forma como ele me encara, deixa-me levemente desconfortável. Não porque
sinto medo ou algo do tipo, mas porque ele parece compreender tudo que eu
sinto sem que eu o diga uma mínima palavra.
Ou então, talvez esteja certificando-se de que eu não sou uma
ameaça para o seu amigo, não é uma alternativa duvidosa para alguém
como eles.
Ainda assim, é intrigante a forma como me encara.
— Estão inconscientes. Xavier não abre a boca, Miller é mais
durão do que eu pensei, mas não temos alternativas. Precisamos fazê-los
falar. — Jay anuncia, sua mandíbula desenhada flexiona ao fim da frase.
Naten leva uma das mãos ao queixo, alisando-o com delicadeza
enquanto parece prestes a dar uma ideia que possivelmente vai contra todas
as leis legais.
— Tenho a ficha de ambos... — Naten limpa a garganta, baixando
o olhar. — Se não falam por bem, falarão por mal. Eles devem ter família
em algum lugar, eu presumo.
Jay suspira em meio a um riso.
— Tenho certeza que sim.
Estreito o olhar, erguendo uma das sobrancelhas ao encaixar as
peças exatamente como deveria. Eles planejam torturar os familiares
daqueles que traíram a sua confiança?
— Desculpa, mas isso não é errado? — Pergunto, decidida a
expor a minha opinião, embora seja insignificante.
Ambos direcionam suas atenções a mim, o arquear sutil da
sobrancelha de Jay causa um embrulho no meu estômago. Por um segundo,
cogito a possibilidade dele estar decepcionado.
— Eles são os únicos culpados por... Trair. Não acham exagero
culpar pessoas que não tem uma mínima ligação com o que eles fizeram?
— Pergunto, soando o mais convincente que posso.
Naten espreme os lábios. Noto quando os seus cabelos escorrem
pelos olhos e quando ele se apoia na parede, um suspiro escapa de sua boca
juntamente de uma risada baixinha.
Jay sorri, mordiscando o canto da boca como o costume que ele
possui. Já tenho reparado nisso. Covinhas brotam em suas bochechas, os
dentes perfeitamente nivelados capturam os lábios conforme ele contém o
seu riso.
— Nós não vamos machucá-los, Clarke. — Ele garante, mas ao
contrário do que penso que ele faria, ele não parece zombar da minha
intuição. — É uma tática para causar pânico, apenas isso.
Arqueio a sobrancelha.
— Há formas melhores de causar pânico em alguém sem
envolver pessoas boas.
Naten ri de novo, erguendo a cabeça para me encarar.
— Por exemplo?
Aguço a visão, endireitando o meu corpo em uma postura firme e
rígida, deixando de lado todo o receio que há pouco me incomodava.
— Uma vez, ouvi falar sobre algo chamado psicologia reversa. —
Eu digo a eles, alternando o meu olhar entre ambos. — Li em algum livro
que essa técnica é como um jogo, e vocês gostam muito dessa coisa, não?
Jay ri, abaixando o olhar. Naten segue encarando-me com
curiosidade, desta vez, aguça a sua postura e aproxima-se de supetão.
— E o que isso significa?
Dou de ombros.
— Basicamente, é usar as intenções do seu inimigo contra ele
mesmo. É como levá-lo diretamente para a cova. — Umedeço os lábios. —
Se eles realmente são traidores, vocês acham que eles já não sabiam que
uma hora seriam torturados? Há milhares de filmes como esse, torturas até a
morte para no fim acabarem sem nem uma informação útil. Já vi muitos
deles.
Não é uma mentira, viver trancafiada dentro de metros quadrados
de um quarto foi o bastante para que eu buscasse fugir da realidade. Livros,
estudos, filmes e música eram o que tornavam as coisas menos dolorosas, e
considerando a situação, não acho que momentos tão normais como assistir
a filmes de ação sozinha na pré-adolescência tenha sido tão inútil.
Devo agradecer aos produtores de Hollywood por me
proporcionarem uma válvula de escape um tanto problemática.
Jay busca o meu olhar, e mesmo com a claridade escassa do
corredor onde estamos, eu ainda consigo enxergar com clareza o meio-
sorriso no canto de sua boca.
— E qual é a sua ideia?
Devolvo o sorriso, procurando engolir o medo que me assola ao
dizer as palavras que assombrariam os próximos anos da minha vida.
— Eles são inferiores, o que significa que tecnicamente, possuem
um chefe. Mas... a lealdade deles não foi direcionada a vocês.
Jay desvia o olhar para o chão, concentrado naquilo que é dito.
Sua cabeça se inclina levemente quando os seus olhos encontram os meus
outra vez, desta vez, uma risada amarga escapa de sua garganta, ele parece
ter encaixado as peças mais rápido do que eu poderia imaginar.
— Mas é direcionada a outro alguém. — Ele completa, por fim.
Naten encara o amigo, a surpresa exposta em seu olhar também é
uma novidade para mim. Ele é sempre tão... Inexpressivo.
— Pense comigo. O quão apavorados eles ficariam se ao invés de
vocês, fosse o chefe deles, questionando a imprudência por terem sido
pegos. Os dois perdem, o chefe e o informante. Um não consegue
informações, e o outro perde toda a garantia que lhe seria dada caso
tivessem sucesso em sua missão. — Prossigo com o meu raciocínio. — Eles
teriam muito a perder se fossem descobertos, mas aqui, tudo que eles têm a
perder é a vida. E se o cara para quem eles trabalham for tão ruim assim,
vocês estariam fazendo um favor para eles ao acabar com o sofrimento tão
rápido.
Jay suspira.
— Ela tem razão.
Naten apoia o queixo sobre o punho, ainda alheio ao que acabara
de ouvir.
— Disse que eles estão inconscientes? — Direciona a pergunta ao
Jay, que responde em afirmativo. — Ótimo, é a nossa chance. Essa não é
uma má ideia, na verdade.
Faço uma careta, odiando a maneira como ele parece ter
dificuldade em elogiar algo que foi bem pensado.
— Sabe, não é muito difícil admitir que os meus métodos são
mais inteligentes — Provoco, conforme ele gira sobre os calcanhares ao
conter uma risada baixa, mas eu a ouço.
— Você não é tão péssima quanto eu pensei que seria, se é o que
quer saber, bonequinha. — Ele grita, acenando um "tchauzinho" com a
ponta dos dedos.
Jay, ao meu lado, sorri ao levar uma das mãos à lateral do meu
pescoço, aproximando o seu corpo sujo e ensanguentado de mim. Por
instinto, me afasto para que mantenha a devida distância. Ele não parece
muito apto a concordar com a minha ideia, no entanto.
Ele sorri perverso quando as minhas costas acertam a parede mais
próxima.
— Fique longe — Ameaço, esticando o braço para limitar a sua
proximidade.
Jay agarra ambos os meus antebraços e um resmungo irritado
escapa dos meus lábios quando ele puxa o meu corpo em direção ao seu,
colando os nossos peitorais. A risada rouca que ele liberta em seguida,
vacila as batidas do meu coração, mas estou concentrada demais em não ser
suja de sangue alheio.
Sequer parece que ele estava completamente fora de si há
algumas horas.
— Você não me quer longe. — Suas mãos pousam em meu
quadril, massageando a carne com necessidade.
Viro a cabeça, olhando para o corredor vazio. Naten deveria ter
ido organizar o nosso plano. Digo, o plano deles.
— Você é um terrorista muito sádico. — Provoco, deslizando uma
das mãos por suas costas.
Ele sorri, brincando com a droga do meu coração.
— Você me surpreende cada vez mais. Podemos fazer uma boa
dupla de terroristas, não acha? — Ele aproxima o rosto, inclinando a sua
cabeça para mordiscar a minha mandíbula.
Eu tombo a cabeça para o lado, desmanchando em seus braços.
— Uma dupla?
Ele acena, sua boca ocupada demais beijando a minha pele
exposta. Eu fecho os olhos, mergulhando uma das mãos em seus cachos
desfeitos.
— Como Bonnie e Clyde, Sr. e Sra. Smith…
Sua boca desliza pela minha pele, a temperatura quente de sua
língua atinge o meu pescoço, seus dentes capturam a pele sensível com
maestria, depositando beijos suaves e gentis ao final, quebrando o gelo
desconfortável da dor fina.
Tão bom…
— Jane e John não são designados a matar um ao outro? —
Questiono, massageando os seus fios.
Sinto os seus dentes rasparem em minha pele ao sentir o seu
sorriso.
— Mas não matam. — Ele responde.
Meus lábios se curvam em um sorriso perverso, gostando da
forma como brincamos um com o outro. Somos mais parecidos do que eu
imaginei.
— Mas isso não apaga a tentativa de ambos. John quase matou a
Jane.
Ele ri, erguendo o olhar ao meu de forma calorosa.
— Assim como Jane quase matou o John. Uma troca formidável
de amor tóxico, eu diria. — Seus lábios depositam um beijo rápido no canto
da minha boca, o suficiente para fazer o frio se espalhar pela minha barriga.
— Sim, mas não acho que nós podemos ser uma personificação
deles. Não imagino você apontando uma arma para a minha cabeça.
Ele ri.
Sua risada é rouca e extremamente bonita, os seus caninos se
destacam dentre todos os dentes quando ele sorri. Eu ainda não me
acostumei com a sua beleza extrema.
Como alguém pode nascer tão bonito?
— Mesmo que eu esteja apontando uma arma para a sua cabeça,
tenha a certeza de que o meu objetivo não será atingir você.
Ergo uma das sobrancelhas, uma risada escapando de meus
lábios. Por instinto, levo uma das mãos aos lábios para esconder o meu
sorriso.
— Você é louco.
Ele afasta a minha mão em desaprovação, capturando os meus
lábios em um beijo rápido, engolindo boa parte da minha risada. Eu sinto
suas mãos desenharem a minha cintura, escorregarem até o início das
minhas coxas e voltarem ao quadril, onde apertam a carne entre os dedos
com desespero.
— Preciso ir. Hyuk precisa da minha ajuda e preciso descobrir em
que nível estamos. Abaixo ou acima. — Ele larga o meu quadril, minhas
mãos escorregam por seu pescoço e ombros, trilhando um caminho
automático até o peitoral rígido.
— Tenho certeza de que você vai descobrir.
Jay conecta os nossos olhares, suas covinhas minimalistas brotam
em sua bochecha direita, aprofundando-se conforme o seu sorriso se alarga.
Meu peito incha e as batidas do meu coração aceleram quando escorrego o
olhar até os seus lábios carnudos, admirando-os. Eu ainda não consigo
compreender o que é todo esse sentimento que o envolve, mas sei que
algum dia descobrirei.
— Passe um tempo com o seu irmão. Eu volto em breve. — Ele
finalmente me larga, afastando o seu corpo com lentidão.
Aceno, abraçando o meu próprio corpo.
— Lembre-se de que eles precisam acreditar que foram
capturados pelo chefe. Seja convincente, é uma boa chance.
Ele balança a cabeça, recuando passos sem girar sobre os
calcanhares ou desconectar nossos olhares.
— Sim senhora. — Ele leva dois dedos na lateral de sua cabeça,
gesticulando um aceno rápido de que "até logo".
Quando Jay vira o próximo corredor em direção às escadas, olho
ao redor, meus olhos congelando sobre a porta da sala de tortura. Um
suspiro me escapa quando caminho até ela, observando a chave dourada e
fosca sob a fechadura.
Agarro a maçaneta, olhando fixamente para o trinco destravado
da porta.
Jay deve ter se esquecido de trancar.
Eu vi como os caras estavam amarrados contra a cadeira, e a
menos que sejam agraciados com uma força sobrenatural, não conseguirão
se levantar dali sem o auxílio de uma faca.
Minha mente viaja até a minha conversa com Naten.
Se eles realmente ajudaram aquelas pessoas a entrarem no prédio
e apontarem uma arma para a cabeça de Jay, ameaçando matá-lo de uma
forma brutal e desumana estando sob o vosso teto, o que seriam capazes de
fazer se por algum acaso, conseguissem sair daquela cadeira?
Tenho certeza de que fariam absolutamente tudo para livrar-se das
consequências da punição. Eles já foram descobertos, então não se
preocupariam com a quantidade de corpos que deixariam para trás. Não
teriam nada a perder, eu acho.
E por mais que eu tenha chegado até aqui com a necessidade de
salvá-los, porque acredito fielmente em perdão e segundas chances, não
posso permitir que o meu cérebro dite quem as merece. Isso não é algo que
eu possa julgar, não é a minha função.
Mas sempre que eu fecho os olhos, sou capaz de ouvir o ruído
sufocante e extremamente alto de uma arma sendo engatilhada. Da bala
sendo projetada. Ou do corpo caindo contra o chão, sem vida.
Tudo poderia ter sido pior se por algum acaso, eu tivesse sido
vista.
Eles não pensaram nisso quando traíram a confiança de Jay, não
pensaram na vida infeliz que eu tive ao lado de um homem desalmado. Eles
realmente iriam ajudar aquele homem velho, de aparência assustadora, a me
levar para onde seja lá o seu ninho.
Eu não terei piedade de homens assim.
Eles são o reflexo do meu pai.
Sebastian era impiedoso comigo ao me manter escondida durante
toda a minha infância enquanto eu deveria estar aproveitando a vida. Ele foi
desalmado quando empurrou o corpo da minha mãe para dentro do quarto
para puni-la, sem importar-se com o fato de que os seus filhos ouviam
absolutamente tudo.
Eles merecem o fim trágico que os aguarda. Todos eles.
Não penso duas vezes para girar a chave contra a fechadura,
trancando-a por completo. O ruído do metal movimentando-se ao trinco,
tranquiliza o meu coração da forma mais esquisita. Sinto-me estranha por
estar sendo cúmplice de tortura, mas também me sinto corajosa. Essa foi
uma decisão minha, tomada com base em todos os momentos de
infelicidade que suportei até hoje.
Não vou me arrepender de odiar aqueles que querem me
machucar.
Essa é uma personalidade que eu acabo de nomear como minha.
Jay voltará em breve, e aqueles que agiram de má fé se
arrependerão.
Sem olhar para trás, caminho pelos corredores em direção ao meu
quarto. Jonah possivelmente está dormindo, e por mais que eu tenha
concordado em dar um tempo para ele, preciso aproveitar a companhia do
meu irmão ou consolá-lo.
É óbvio que ele sente saudades da mamãe. Eu também sinto.
Mas para mim é mais simples aceitar que ela não voltará. Jonah
teve pouco tempo ao seu lado, não desfrutou da sua companhia como
deveria e eu realmente sinto por isso. Sinto por ele não ter uma figura
materna ou paterna para acolher os seus piores dias.
O sofrimento é doloroso e os furos em meu coração causados pela
dor da perda levarão séculos para cicatrizar. É difícil aceitar que preciso ser
a mãe que ele não terá. Não sei por onde começar, mas ela certamente faria
a coisa certa para demonstrar que tudo está bem.
Não tenho facilidade nisso, também.
Mas preciso me esforçar…
Procuro sempre distrair a minha mente, sei que no momento em
que eu adentrar o meu quarto e fechar os olhos, vou sentir sua falta. Vou me
lembrar de sua voz, de seu carinho, do seu cheiro e da forma como ela nos
amava mais do que a si mesma.
O suficiente para abrir mão de sua vida para nos proporcionar
coisas boas.
Jonah com certeza vai levar anos para compreender a perda, mas
eu estarei aqui para quando ele se der conta de que nós sobrevivemos ao
inferno e conseguimos ultrapassar o fogo em brasa, graças à ela.
Ele a amará um pouco mais, disso eu tenho certeza.
Eu o ajudarei a se apegar a memórias boas, aquelas que nunca
devem morrer.
Caminhando pelo penúltimo corredor em direção aos demais
andares, sussurros vindos de uma porta destacada dentre as outras, chamam
a minha atenção. Cesso o meu passo, varrendo os olhos por toda a extensão
do corredor, inclusive pelo caminho onde eu tinha acabado de percorrer.
A porta de madeira é pintada de uma tintura vermelha como o
vinho, a sua fechadura é tão velha que fiapos pretos de ferrugem
descascavam por sua extensão. Arqueio a sobrancelha conforme sussurros
ainda são ouvidos do lado de dentro da porta extremamente assustadora.
As portas deste lugar sempre são simples, alguns andares mal as
tinham. Os caras deste lugar são alheios a importância que uma porta teria,
então presumo que ela seja usada somente quando necessário.
Como um quarto.
É tarde da noite e todos os caras devem estar atentos depois do
que ocorreu. Jay está vagando pelos corredores como um completo
terrorista desequilibrado, e depois da cena que ele planejou no salão de
treinamento, não acho que os demais caras queirão provar de sua
capacidade quando irritado.
Eles deveriam estar atentos à invasão agora, não é?
Então... Quem está do outro lado desta porta?
As coisas nesse lugar estão se tornando cada vez mais esquisitas e
eu sei que deveria estar borrando as minhas calças neste instante, mas
simplesmente não consigo abrir mão da minha curiosidade quando caminho
até a porta em passos leves, sem a menor intenção de chamar a atenção.
Não se meta, Sofia, vá para o quarto!
O déjà-vu acontece, e novamente estou espiando o que
certamente, não deveria.
Espalmo as mãos sobre a madeira com delicadeza, aproximando a
lateral do meu rosto contra a porta, na intenção de ouvir algo do que é dito
lá dentro.
Quando encosto a orelha na madeira, fecho os olhos e procuro
concentrar-me unicamente no que deveria ser escutado.
Se quem está por trás dessa porta é outro traidor agindo pelas
costas de Jay, certamente, eu agirei como uma fofoqueira desgovernada ao
sair em disparada para dizer a ele, sem dúvidas. Tudo que eu preciso é me
esforçar um pouquinho mais para ouvir o que era…
Meus pensamentos são interrompidos quando a porta é aberta.
Meu corpo avança para a frente e minhas mãos escorregam pela
madeira fosca.
Minha cabeça tomba para a frente e vejo o vislumbre do chão de
concreto devidamente desfocado aproximando-se dos meus olhos. Penso
que irei de cara para o chão, e de quebra, serei descoberta. Seja quem for
essa pessoa, se certificará de que eu não me aproxime de Jay outra vez.
Meu estômago embrulha e minha cabeça dói.
O impacto do meu rosto colidindo contra um peitoral rígido e
firme, causa um misto de sensações pavorosas.
Minhas mãos seguram em seus ombros pela velocidade do
impacto, e quando dou por conta de que estou sobre um possível assassino,
afasto-me de imediato de seu corpo, recuando passos breves para trás,
completamente apavorada.
Quero gritar.
Meus olhos vagam para o lado de dentro do cômodo de onde ele
saiu, as paredes de concreto... As cortinas brancas... O chão cimentado...
Tudo é exatamente igual ao restante dos cômodos. Exceto, pela quantidade
do que parece ser papéis em um monte alto, sendo sustentados pelo que
parece ser uma caixa pequena e aveludada sobre elas, acima de um criado.
Não tenho tempo para me certificar de que estava certa, pois o
homem avança alguns passos e bate a porta às suas costas, provocando um
baque abafado por todo o corredor.
Meu coração pula.
Minhas mãos começam a suar.
Com o pavor dominando as minhas entranhas, tomo coragem para
encará-lo. Ergo o olhar com receio, desejando voltar no tempo e descer as
drogas das escadas direto para o meu quarto.
Quando tenho plena visão de sua figura, deparo-me com olhos
esverdeados, cabelos castanhos com alguns fios grisalhos enfeitando a
lateral raspada. Seus lábios são finos e reprimidos, sua pele branca, rugas
espalhadas por cada extensão abaixo dos olhos. Apesar de parecer adulto,
ele ainda possui uma aparência formidável para a sua idade.
De imediato, eu o reconheço.
Já o tinha visto antes. Há algumas horas, na verdade.
Ele estava naquele salão, acalmando Jay quando ele parecia
querer estourar o cérebro do homem de cabelos grisalhos que lhe apontava
uma arma.
Ele tem o semblante sério, a linha fina em seus lábios denuncia a
sua falta de simpatia. Seus olhos são tão profundos quanto os de Jay, e a sua
postura é firme e superior, como se ele não temesse que acaba de ser pego
em flagrante. Se é que ele estava fazendo algo de errado…
Pisco duas vezes, recordando-me do seu nome, e
consequentemente do seu título dentro do prédio.
Ai, meu Deus.
Este é Williams.
Ele desliza as mãos por sua roupa, esticando-a com perfeição
conforme gira o corpo com rapidez para traçar correntes grossas pela
fechadura da porta, trancando-a com um cadeado enorme prateado, em
seguida.
Arregalo os olhos, sem saber o que dizer, ou o que pensar.
O que há lá dentro para que ele tenha tanto empenho em
proteger?
Ou esconder…
Ele gira novamente sobre os calcanhares quando espalma ambas
as mãos, livrando-se da poeira e sujeira deixadas pelas correntes
enferrujadas.
Seus olhos encontram os meus e engulo em seco, congelando os
pés contra o chão frio.
— Você deve ser Sofia Clarke, eu presumo.
MONTE WHITNEY - 2022
AGORA

O mundo está silencioso. Mal ouço a minha respiração, pareço ter


perdido a capacidade de ouvir.
Eu sempre gostei muito da forma como sempre fui observadora a
ponto de não deixar absolutamente nada passar batido perante os meus
olhos. Desde às vezes que eu precisava fingir prestar atenção em outros
pontos aleatórios, quando na verdade, estava ocupada demais reparando
nos homens que o meu pai deixava que entrassem em nossa casa.
Talvez eu tenha deixado o meu lado observador para trás, junto
de toda a minha vida. De tudo que eu amava com todo o meu coração.
Não porque foi uma escolha, ou, talvez porque realmente queria
deixar para trás. Apesar de querer me esquecer de tudo que vivi nos
últimos meses, não é esta a causa para que eu queira tanto desaparecer.
Não é a causa para que o mundo esteja no mudo, para mim.
É o fato de estar despida dos pés à cabeça, em um salão luxuoso
sob um lustre que deve custar milhares de dólares, brilhando acima de
minha cabeça como se fosse feito de diamante puro. Sinto a sola dos meus
pés tremer em sua extremidade, os meus ossos parecem ter a necessidade
de quebrar a qualquer momento. É como se o meu corpo fosse desmontar
perante o olhar sombrio que estou recebendo dos cinco homens que varrem
os olhos por cada parte do meu corpo nu.
Desconforto, pavor, dor.
São os sentimentos que predominam no meu interior.
Sei que eu deveria ser forte, deveria saber como reagir a
momentos como esse, afinal, aquela garota foi específica quando afirmou
mais de uma vez, que os homens não seriam gentis. Ninguém seria. Talvez
ela estivesse completamente certa, porque além de estar sob os seus olhares
pecaminosos, ainda há uma fileira de garotas às minhas costas. Todas
nuas, com os braços à frente dos corpos e com as mãos entrelaçadas. É
como se elas estivessem adorando-os, completamente à sua mercê.
Elas mal olham em minha direção, e quando o fazem, posso ver o
olhar julgador que lançam para mim.
Qual é o problema delas? Por que não fazem absolutamente
nada?
Por que não correm desta sala? Por que parecem tão submissas?
— Sofia Clarke — A voz grave de Floyd, no centro dos homens,
com o seu ar de superioridade emanando, ecoa. — Dê um passo à frente,
querida.
Meu estômago embrulha, porque a forma como ele coça a ponta
do queixo, revelando os anéis brilhantes sob os dedos sem tirar os olhos do
meu corpo, examinando cada mínima curva como se fosse a coisa mais
interessante que ele vê há muito tempo, faz com que eu queira chorar.
Olho para o lado, alternando o meu olhar entre as demais
garotas tão neutras. Elas parecem acostumadas com toda essa cerimônia
grotesca, e mesmo que houvesse uma explicação plausível para isso, eu não
entenderia. Não quando elas agiram tão naturalmente quando ordenaram
que tirassemos nossas roupas, ou quando me forçaram a tirar as minhas,
porque segundo eles, eu sou a novata que cheira a medo, mas que em
breve, provará do absoluto terror.
Como elas podem fazer isso? Como elas conseguem?
Meu Deus.
Abraço o meu próprio corpo, minha garganta está tão seca que
eu mal sinto a saliva contra a minha língua. Sinto como se eu estivesse
prestes a morrer, nada nunca foi mais profundo do que o sentimento
desesperador que preenche o meu interior com uma agressividade mordaz.
Pisco algumas vezes, afastando as lágrimas que insistem em
reunir-se na linha d'água.
Meu peito dói muito, eu sinto falta de como me sentia super
segura há algumas semanas. E agora, tudo que me resta são os pedaços
quebrados do meu coração. Jonah está por aí, sozinho, e eu não faço ideia
do que fazer para chegar até ele, tudo que eu sei é que preciso fazer isso.
Preciso encontrar o meu irmão, o único que verdadeiramente esteve ao meu
lado, o único para quem eu deveria ter dado o meu amor.
Respiro fundo quando meus olhos encontram as duas esferas da
garota que me guiou até aqui. Ela tem a postura rígida, seu peito
extremamente cheio e diferentemente das demais garotas, ela não tem as
mãos entrelaçadas à frente do corpo, ela as mantém ao lado, sem importar-
se com o fato de que o seu corpo, desta forma, está completamente exposto.
O ar de superioridade que exala da garota, faz com que ela
pareça estar a um nível acima das demais. Ela age como se fosse, me olha
como se fosse.
Mas quando fixo os nossos olhares com a intensidade que ela o
fez quando me encontrou, lembro-me de suas palavras tão firmes de que
devo sobreviver a isso. Não fazer besteiras.
Se ela é do bem ou do mal, não importa. As suas palavras são a
única garantia que eu tenho de que preciso ser forte desta vez, manter a
calma e agir da maneira que todos esperam que eu aja, ser rebelde e
demonstrar que serei um problema para eles, está fora de cogitação.
A academia me ensinou muitas coisas além de nunca confiar em
mais ninguém, uma delas, é pensar adiante. Ser mais inteligente, estar um
passo à frente.
E, por mais que queira apagar todos os meses que estive naquele
prédio, me recuso a ser uma completa marionete. Serei inteligente, vou
obedecê-los e demonstrar ser uma boa peça no joguinho que eles parecem
dispostos a jogar. Farei absolutamente qualquer coisa para fugir deste
lugar e dar o fora da cidade com o meu irmão. Juntos.

— Está tão calada — Lexie comenta, ao meu lado, enquanto gira


um espeto de marshmallow perante a fogueira. — Está tudo bem? Não te
vejo tão calada desde o colégio.
Mantenho os meus olhos fixos nas brasas de fogo que esquentam
as minhas mãos, mesmo que estejam escondidas contra os meus braços,
conforme os abraço para me proteger da brisa fria que nos atinge.
Não sei o que dizer. Há dois dias, Jason comentou que a melhor
opção era encontrarmos Naten e Lexie na cabana outra vez, já que a
montanha estaria perigosa pela atenção que havíamos chamado ao matar
um deles. O melhor seria esperar que a poeira baixasse, então daremos a
cartada final que eles não esperam.
Eu não rebati.
Não trocamos muitas palavras desde aquela noite, quando ele saiu
de dentro de mim e partiu para o banheiro para tomar um banho gelado,
mesmo que estivesse um frio infernal. Então eu soube que os demais dias
seriam iguais. Silenciosos e gélidos. É melhor assim. Quando a tempestade
acabou, demos o fora daquela cabana abandonada. Tenho evitado o seu
olhar até então, porque sei que vou ferir a mim mesma se conectá-lo ao
meu.
Nada aconteceu naquela floresta. Nada aconteceu na cabana. É
melhor que eu pense assim.
Somos estranhos outra vez, eu o odeio com mais intensidade, e
não pretendo voltar atrás em uma decisão que está tomada há três anos. Ele
merece o meu desprezo, e por mais que não consiga fazê-lo com tanta
maestria, poderei ignorá-lo e ferir os seus sentimentos que agora sei que
supre por mim. Isso será o suficiente para quebrar o seu miserável coração,
assim como fez com o meu.
— O que quer que eu diga? — Pergunto, sem direcionar o meu
olhar para ela.
O ruído das madeiras queimando ecoa entre nós, as brasas de
fogo refletem em nossas peles.
Viro a cabeça, voltando a encarar as faíscas com o coração
acelerado dentro do peito. Um turbilhão de sentimentos predominam dentro
de mim, e apesar de querer que desapareçam, sei que ficarão ali por mais
algum tempo. Os meus sentidos foram chacoalhados, e em tal movimento
brusco, perdi todas as peças que os mantinham sob controle.
Algo ainda está entalado na garganta, e tudo que quero é cuspir
tudo que causa esse bolo enorme no meu estômago.
O desespero por respostas ainda está aqui, ansiando para ser
suprido, mas quão longe terei que ir para alcançá-las?
Não faço ideia, mas eu iria até o inferno por elas.
— Sinto muito que você tenha sido tão exposta... — Ela declara
em um sussurro, sua voz é baixa e monótona. — Descobri recentemente
sobre o vídeo.
Por instinto, eu apenas engulo o nó na garganta e luto para afastar
os pensamentos. Este é um gatilho que não sei se consigo conter, o ataque
de pânico sempre que me lembro dos momentos pavorosos que vivi ao lado
de Marcus Floyd ainda atormenta os meus dias e assombra as minhas
noites. Por mais que eu lute para tentar evitar a dor do abuso, não consigo
fazê-lo tão bem quanto gostaria.
Ainda consigo sentir a ardência na garganta de tanto gritar por
socorro.
Ainda sinto a forma tão insensível que tocaram a minha pele. A
forma como destruíram toda a minha sanidade.
— Está tudo bem. — Sou apática, mesmo que por dentro mal
sinta as batidas do meu coração.
Minha boca seca. Eu umedeço os lábios e me concentro nas
faíscas de fogo que flutuam sobre a fogueira, nervosa demais para encarar
outra coisa que não seja elas.
Então eles sabem sobre o vídeo.
Eles sabem sobre tudo.
Eu, mais uma vez, não sei de nada.
Quão patética sou por ainda estar aqui?
— Não está tudo bem, As. Você foi estuprada. — Ela diz com
tanta revolta, que não penso muito quando viro a cabeça, encarando os seus
olhos.
— Está feito. Quer que eu faça o que? Chore as pitangas?
Não faço ideia de como eles sabem sobre o maldito vídeo. Mas
como sempre, a academia sabe sobre todas as merdas, sabem
absolutamente tudo o que acontece às minhas costas. A maldita confiança
que depositamos no clube de idiotas que guardam tanta informação e nada
fazem, é absurda. Estou cansada de sempre voltar para o mesmo caminho,
para as mesmas pessoas e para o mesmo fracasso absoluto de sempre.
Quão patética eu sou, inferno?
— Não precisa me tratar como se eu fosse a culpada. Estou
tentando ajudar você.
Solto um riso anasalado.
— Você me ajuda não mencionando esse assunto.
Lexie suspira, levantando-se do chão com rapidez, como se de
repente, eu fosse alguma doença transmissível.
— Nossa. Parabéns, você realmente consegue afastar todo mundo
de você.
Levanto a cabeça, olhando para ela.
— Lexie, não aja como se eu precisasse de alguma ajuda. Eu
precisei, no passado. Agora, tudo que preciso é manter a distância de todos
vocês.
Ela ri, sua língua acaricia o lado interno de sua bochecha.
Naquele segundo, eu soube que ela está prestes a cuspir o pior dos venenos.
— O seu coração estar quebrado não é um motivo para você
descontar as suas mágoas em quem não tem qualquer relação com o que te
aconteceu. Eu sou a sua amiga, As!
Eu me levanto.
Apoio-me sobre as mãos e endireito a postura, batendo as palmas
para me livrar dos resquícios de sujeira. Quando conecto os nossos olhares,
percebo que a conversa será uma disputa sobre quem pode ser mais cruel.
Quem aqui possui o coração mais quebrado? Quem havia sido mais
destroçada? Quem ainda tem alguma sanidade?
Ao que parece, somos duas partes quebradas do que um dia
fomos. Como se um véu separasse cada versão que um dia tivemos.
— Você é a minha amiga? Sério? — Questiono, incrédula. Um
meio-sorriso brinca no canto dos lábios.
Ela acena, visivelmente irritada.
— Sim, eu sou. Eu sempre estive do seu lado, pelo amor de Deus.
Você está completamente perdida, Aspen, completamente. Nem consegue se
dar conta de que eu entendo você e quero te ajudar.
— Você mente pra mim. Você esconde coisas. Você age como se
eu fosse uma criança imatura, porra, como quer que aceite a sua ajuda? É
como se lançar em um buraco escuro sem saber o que encontrará lá
embaixo. — Meu sangue ferve, ouço os destroços de minha alma em algum
lugar dentro de mim.
Lexie se cala. Seus olhos congelam nos meus como se quisesse
explodir e revelar mais coisas do que pode, então eu a enfrento. Aprofundo
nossos olhares com fervor, a desafio a abrir a boca e lidar com os seus
problemas. É isso que ela quer, não é? Então, por que todo esse silêncio?
Eu não darei para trás.
É fácil negar que toda a minha revolta vem de algum lugar. É
fácil negar que eu não estou em um mix de sentimentos depois do que
ocorreu há dois dias, negando-me a acreditar que realmente me sujeitei a
algo tão sujo e incontrolável.
Incontrolável.
É assim que Jason Turner me deixa, e me recuso a permitir que
ele domine as minhas reações.
— A única mentirosa que temos entre nós é você. Como é a
sensação de esconder os seus verdadeiros sentimentos por odiar senti-los?
— Ela arqueia a sobrancelha. — Deve ser terrível, eu imagino.
Meu sangue ferve e as minhas mãos suam ao lado do meu corpo.
Eu trinco os dentes com tanta força enquanto a encaro, que por um segundo,
odeio tê-la conhecido. Odeio que ela me conheça tão bem. Odeio que ela
esteja certa.
— Você... — Me aproximo dela em passos curtos e objetivos.
— Você é cruel porque enfrentou muitas situações, As? —
Indaga. — Ótimo, então seremos cruéis na mesma intensidade, ou você está
se esquecendo que eu levei dois tiros para proteger você, inferno?
Avanço outro passo.
E mais um.
E então, estamos cara a cara. Olho no olho.
O silêncio ensurdecedor se instala entre nós, tudo que se ouve são
as faíscas que estalam sob a fogueira. As nossas respirações são tão intensas
que posso ouvi-las, mas não é isso que tem a minha atenção. Em sua
bochecha esquerda, uma lágrima solitária escorre no vão de seu nariz,
escorregando até o início dos lábios superiores.
Se trata da maior demonstração de dor. A lágrima solitária sempre
será mais pesada do que todas as outras escorrendo em conjunto, porque
aquela é a mais difícil de controlar. A que diz muitas coisas. Coisas que
palavras não seriam suficientes para descrever.
Sabendo disso, eu deveria controlar a minha língua e dar o fora
daqui antes que exploda e aja como uma arma mortal prestes a ferir todos
que encontrar. Mas não é o que faço.
Eu posso ser cruel. Ninguém aqui me conhece, ninguém poderia
conhecer. E provarei isso a eles.
— Eu deveria te agradecer?
Então acontece.
Lexie mordisca os lábios, contendo as lágrimas que se reúnem em
sua linha d'água. Sinto o meu coração arder, meus olhos queimam pela
necessidade alucinante de colocar para fora tudo que sinto neste momento.
Mas uma coisa é certa: não posso evitar ser cruel.
Neste momento, coisas maiores vibram dentro de mim. Tudo isso
seria evitado se, há três anos, eu não tivesse aceitado a ajuda de um
desconhecido que jurou me proteger. Tudo seria diferente se eu não tivesse
confiado nele. Tudo seria completamente diferente se eu não tivesse me
apaixonado pelos seus olhos escuros que pareciam implorar por um apoio
emocional. Se não tivesse me apaixonado por ele, se não tivesse entregado
o meu coração para um assassino, eu não estaria sendo tão agressiva com
todos ao meu redor por culpá-lo.
No entanto, eu também culpo a mim mesma. Se não o tivesse
amado de todo o meu coração, tudo doeria menos.
Uma lágrima despenca dos meus olhos, mesmo que sem
permissão.
Elas dizem tanto…
Dizem o que eu jamais diria em voz alta.
— Você é…
— Cruel? Insensível? — Questiono, sentindo o meu sangue
ferver. — Sim, Lexie, eu sou. E não me sinto mal por ser assim.
Nós nos encaramos por cerca de dois segundos antes de nosso
contato visual ser interrompido ao notarmos as duas silhuetas de Jason e
Hyuk, um ao lado do outro, ambos sérios e inexpressivos. Quando viro a
cabeça e conecto o olhar ao de Jason, sou rápida em secar o meu rosto antes
que note o quanto possui um poder inimaginável sobre mim.
Seus olhos procuram interpretar a minha figura, mas tudo que
faço é dar as costas para Lexie e caminhar até ambos, que sequer se movem
conforme eu me aproximo.
Hyuk encara Lexie com um olhar culposo. Ele sequer parece ter
notado a minha presença, e quando ouço o soluço abafado às minhas costas,
percebo que talvez eu tenha sido dura demais. Fui cruel demais, tosca
demais, e o culpado está bem à minha frente, acompanhando os meus
passos com o olhar, rígido e frio. Quase tanto quanto o topo da montanha.
Eu não sei o quanto ele ouviu, mas sei que não aprovaria a minha
falta de sensibilidade com sua irmã.
Eu também não aprovo, mas tudo isso está além do que posso
manter sob o meu controle.
Passo por ele como um vulto, arrastando os pés pelo chão com
tanta força que sinto os flocos de neve afundarem sob o meu peso. Abraço o
meu corpo com força quando adentro a cabana e corro em direção à saída.
Meus olhos queimam, minha garganta seca e a minha respiração
falha.
Eu prometi a mim mesma que não deixaria que os sentimentos
mal-resolvidos atrapalhassem a minha conduta, mas olha onde estamos.
Estaca zero.
Chegando ao lado de fora, bato a porta da cabana com tanta força
que ouço o estrondo que ecoa ao lado de dentro. Arrasto os pés pela neve e
sinto a minha pele gelar pelo contato direto com os flocos miúdos de neve
que caem do céu.
Caminho pela estrada, afundando os pés com tanta profundidade
que liberto alguns resmungos frustrados ao tentar puxá-los de volta para a
superfície. A irritação é um dos pontos que nunca soube controlar, e por
mais que sinta que será um problema para mim, o mecanismo de defesa não
falha. Ela é a única garantia que tenho.
— Para. — A voz grave explode às minhas costas e não preciso
me virar para saber de quem se trata.
Eu ignoro.
— Mandei parar de andar, Baker.
Continuo andando, como se o silêncio fosse absoluto.
Não pretendo trocar uma única palavra com ele. Ele já fez
demais, confundir a minha cabeça não é o suficiente?
Além de ter testemunhado um lado sensível que eu não pretendia
revelar tão cedo, ao menos não para ele. Estou envergonhada e confusa, por
que tudo tem que ser assim?
— Caralho, para de andar! — Ouço o seu resmungo quando Jason
puxa o meu braço, congelando os meus passos. — Que porra foi aquela?
Perdeu a cabeça? — Ele gira o meu corpo para encará-lo.
Odeio que minha força não seja pária à dele para revidar aos seus
puxões.
— Perdi a cabeça, perdi a sanidade, perdi a minha vida e a minha
mãe. Quer que eu continue com a lista? — Arqueio a sobrancelha quando o
encarei.
Jason ergue minimamente o cenho ao ouvir as minhas palavras.
— Qual é a porra do seu problema?
Dou de ombros, puxando o meu braço de seu agarre com
grosseria.
— Tenho muitos deles, mas o principal continua sendo você. —
Giro sobre os calcanhares, pronta para continuar com a minha caminhada
sem rumo. — Me deixe em paz, Jason.
Faço menção de avançar alguns passos, mas desta vez, o seu
agarre é diretamente no meu pescoço, exatamente onde esteve com os
dedos há dois dias. Onde as marcas me trouxeram para este finito abismo.
— Não seja uma mimada, me escute bem — Ele reforça o seu
aperto, sem ter noção do quanto aquilo me machuca. — Estou tentando
acompanhar o seu ritmo e ser cauteloso, mas você está acabando com a
minha paciência!
Eu ergo o queixo, buscando por um ar que ele bloqueia com a
palma da mão. Um sorriso amargo brota nos meus lábios, mesmo com
dificuldade. Mesmo que não sinta a menor vontade de sorrir.
— Sim, vamos lá, mostre a sua verdadeira face. A capa está
caindo, super-herói. — Debocho, sentindo o ar faltar aos meus pulmões.
Jason rosna, largando o meu pescoço como se estivesse jogando
um pedaço de carne para cães famintos. Não me surpreendo, a máscara de
homem caridoso e honesto não demorou muito a cair.
Cambaleio para trás, lutando para manter o meu corpo sobre os
pés conforme busco pelo ar.
Levanto a cabeça ainda ofegante, endireitando a minha postura.
— Está passando dos limites. — Avisa, uma das mãos coça o
queixo em desconforto.
Uma risada amarga sobe pela minha garganta.
— Você quer mesmo falar sobre limites comigo, Jason? —
Mantenho o tom apático. — Precisa da porra de um espelho?
Estou completamente fora de mim, isso é um fato. Fico irritada
por todos seguirem Jason como se fosse alguma seita, e a academia, os
seguidores atacados pelo espírito submisso. Que porra é essa? Por que todos
agem como se ele fosse o todo-poderoso?
Há três anos, ele me treinou para fazer diferente do que todos
esperavam, então, por que toda a surpresa por se deparar com uma pessoa,
entre um milhão, confrontando a sua má conduta?
Eu diria até que diferentemente do que está habituado, estou
ferindo o seu ego. Fazendo o que ninguém tem coragem o suficiente para
fazer.
Ele me encara como se não acreditasse no que vê, na mudança
repentina de comportamento que provavelmente acreditava não ser comum.
Ao menos, não até agora. Ele não conhece mais nada sobre mim, tudo que
conheceu foi uma parte de mim que estava tentando descobrir quem era.
Ele deveria se acostumar com a minha nova personalidade
agressiva e insensível, pois é a única garantia que tenho para manter os
meus sentimentos nos seus devidos lugares onde nem mesmo ele pode
alcançar.
Observo o seu semblante neutro por dois segundos antes de notar
o sorriso sujo que cresce no canto dos lábios, o piercing brilha ao redor de
seu lábio, assim como as covinhas começam a brotar em sua bochecha.
— Tenho um bem na minha frente. Um reflexo mais realista do
que qualquer outro pedaço de vidro. Você está partindo muitos corações,
Baker, acha que isso a torna melhor do que eu?
Não gosto da forma como ele acha divertido brincar com a minha
cabeça. Por que caralhos ele está sorrindo? O que é tão engraçado?
Ele não parece achar a mínima graça na situação, mas o fato de
saber que minha fúria tem nome e sobrenome, o instiga.
— Na verdade, eu não dou a mínima. Que isso sirva de
aprendizado para, enfim, me deixarem em paz. — Não poupo grosseria.
Sinto a neve umedecer os meus cabelos, assim como o sangue
esquenta a minha pele. Um equilíbrio perfeito.
— Talvez você não tenha entendido muito bem o recado, então eu
vou refrescar a sua memória — Jason aproxima-se de mim. — Você está
conosco nessa missão, foi você que quis estar aqui. Então entenda que pelo
nome da organização que te mantém viva, o mínimo é que você entenda que
não há possibilidades de que você suma de vista.
Uma gargalhada carregada de crueldade sobe pela minha
garganta, não poupo o exagero na forma como aparento achar hilária a sua
suposição. Nunca fui tão forçada.
— Da última vez que fizeram promessas, eu tive mãos em meu
corpo e um vídeo comprovado na web. Sua organização não está sendo
muito convincente ultimamente, então procure outra desculpa para justificar
sua obsessão.
— Que porra está havendo com você?! — Ele exclama de
repente, aproximando o seu corpo de uma forma que tenho que levantar o
queixo para continuar encarando-o.
— O que foi? Está tão acostumado com a minha submissão que
não consegue lidar com a minha verdadeira personalidade? — Aprofundo
os nossos olhares com intensidade, enxergando a pupila levemente dilatada
de Jason.
— Ok. — Ele parece disposto a dar-se por vencido. — Qual é a
relação que essa mudança tem com duas noites atrás?
Rio, ironicamente.
— Por favor, você se acha tão importante assim?
Jason leva uma das mãos para a lateral do meu pescoço,
contornando-o com a palma firme de sua mão. Os seus dedos rodeiam o
meu pulso e o meu sorriso desaparece no mesmo segundo. Engulo em seco,
e sei que ele pode sentir o movimento da minha garganta.
— Não foi o que eu perguntei. — Sua mandíbula flexiona, seus
olhos tornam-se mais fundos do que realmente são.
Odeio toda a facilidade que tenho em analisar os seus mais
discretos detalhes.
— Me solta! — Rodeio o seu pulso com uma das mãos,
esforçando-me para afastar o seu toque da minha pele.
Jason é mais forte do que eu, e por mais que me esforce para
obter sucesso em minha tentativa, ela é miseravelmente falha.
— Está puta comigo por foder você contra a parede ou está puta
consigo mesma por ter gostado? — Sua pergunta envia uma quantidade
significativa de ódio para o meu peito.
Eu só não sei se ela é direcionada a ele, ou a mim.
Trinco os dentes com força, contendo um rosnado que não cabe
dentro de mim. Pela primeira vez, eu me sinto impotente por não conseguir
reagir a uma mera pergunta, por não conseguir reagir a ele. Deveria ser
menos sentimental a essas merdas, afinal, a minha vida está em jogo aqui.
Mas por que não consigo fazer absolutamente nada?
Por que todos os meus esforços são em vão?
— É hora de descobrir quem você realmente odeia, Baker. Não
seja uma mimada descontando a sua falta de controle em pessoas que se
importam com você e não merecem um terço de toda a sua insensibilidade.
— Ele diz, áspero. Seus olhos não deixam os meus. — Não aja como se
você fosse a vítima aqui. Eu não fiz nada que você não quisesse, não cometi
nenhum crime. Arque com as consequências das suas escolhas, porque você
quis aquilo. Você permitiu.
Pela segunda vez em uma hora, Jason me larga como se eu fosse
um saco de batatas. Meu pescoço arde pela quantidade de força que usava
para manter o meu corpo no lugar, e minha garganta seca pela falta de ar.
Continuo estática no mesmo lugar, meus pés afundam na neve
contra o asfalto e a minha pele se encontra umedecida pelos flocos de neve
que caem contra ela. Meu corpo ferve, e eu sei que essa é a razão para não
sentir absolutamente nada quanto ao frio que está ao lado de fora.
Jason suspira, enfiando as mãos nos bolsos frontais de sua jeans,
casualmente ele gira sobre os calcanhares e vira as costas para mim. Ele não
olha para trás, mas posso ver o vapor que sai de sua boca conforme suspira
ao afastar-se de mim.
O fundo dos meus olhos arde. Aquela visão não é estranha para
mim, em menos de dois dias, Jason jogou verdades devastadoras contra a
mesa e deu as costas para mim, para que eu lidasse com aquilo da minha
maneira. Para que tirasse as minhas próprias conclusões. Ele não se importa
se a minha conclusão criar mais algum tipo de ódio alucinante por ele.
Tudo porque, no fundo, ele sabe que tem total razão.
Sabe que me odeio por sentir alguma coisa por ele dentro de mim,
que não seja o maldito ódio.
E, o que dói, é vê-lo pular fora da situação e deixar que eu lide
com a culpa da forma mais dolorosa.
— Você venceu. — Grito, chamando a sua atenção. Ele para de
andar, mas não se vira. — Disse que foderia a minha cabeça e cumpriu com
a promessa. Pensei que você fosse incapaz de fazê-lo, mas parabéns, ainda
há alguma parcela de sinceridade aí dentro, no fim das contas.
Ele fica calado por alguns segundos e dessa distância, tudo que
posso enxergar é a sua nuca. A tatuagem de asas escapando da gola alta de
sua jaqueta.
Mordo os lábios, contendo o choro entalado na garganta ao vê-lo
tão próximo e tão distante.
Há três anos pensei ter sobrevivido às etapas do luto. Pela
segunda vez.
A perda doeu. Perdê-lo doeu.
Primeiro veio a negação, eu me neguei a acreditar que me
abandonaria de uma forma tão sagaz nas mãos de quem me destruiria.
Aquilo parecia ter sido invenção da minha cabeça, porque ele nunca, em
hipótese alguma, permitiria que eu fosse arruinada.
Segundo, me senti angustiada quando Marcus Floyd me mostrou
as fotos de Jason Turner ao lado do corpo sem vida da minha mãe. Senti
raiva por ter confiado em alguém como ele, por ter entregado o meu
coração e a minha vida na palma de sua mão. Cheguei a me condenar por
tê-lo amado, por ter desejado uma vida inteira ao seu lado, o único que
poderia trazer alegria aos meus dias mais sombrios.
Terceiro, mesmo depois de saber que tudo estava perdido e que
não o veria novamente, procurei enganar o meu sistema emocional de que
entraria por aquelas portas a qualquer minuto. Procurei me convencer de
que as coisas melhorariam, fantasiei a sua aparição até o último dia. Tudo
porque eu precisava dele. Ao menos, pensei que sim.
Por último, quando me dei conta de que tudo aquilo não tinha
uma saída, desabei no chão frio e nos meus próprios braços, dando-me
conta de que a minha vida estava acabada. Que amá-lo custou a minha
liberdade e os meus sonhos, que custou a minha felicidade. Chorei nos
braços da única pessoa que poderia erguer o meu corpo e mostrar um único
caminho para a minha libertação. Eu mesma.
— No fim de tudo, não sou eu quem fode a sua cabeça. Você o
faz sozinha. É hora de encarar a realidade e finalmente parar de fugir,
Baker. Porque eu te garanto, quando ela te alcançar, a queda vai ser bem
dolorosa. — Ele diz pela última vez, antes de continuar o seu caminho de
volta para a cabana.
De repente, estou sozinha outra vez.
Ou talvez, nem tanto, os pensamentos autodestrutivos que culpam
a mim mesma por desejá-lo, ainda estão ao meu lado, prestes a me arrastar
para o caminho sombrio até ao inferno.
O suspiro que escapa pela minha boca em seguida, balança todos
os meus sentidos, fazendo os meus pés me levarem para qualquer outro
lugar que não seja ao lado daquele que destrói a droga da minha vida.
Arrasto os pés na neve congelada por cerca do que parece durar
horas. Meus pés ardem pela quantidade de tempo que estiveram em contato
com o gelo, mas nada dói mais do que o aperto que sinto no peito por sentir
que estou traindo o amor daquela que sempre fez de tudo por mim. Eleanor
Clarke, quão decepcionada você está comigo neste momento?
Eu só preciso de uma resposta: Por que ele a matou?
Não estou pedindo por muita coisa, o quanto lhe custa abrir a
boca?
Definitivamente cheguei ao meu limite, estou cansada demais
para brigar por uma resposta que não chegará até mim sem o meu esforço.
Se eu a quero, eu vou até ela. Estou cansada de pedir por respostas, por
implorar como uma desgovernada para no fim receber as mesmas respostas
de que não querem me magoar. Que é para o meu bem.
Fodam-se os discursos como discos arranhados, estou cansada de todos
eles.
MONTE WHITNEY - 2022
AGORA

Tão cansada, desço a estrada com tanta raiva em meio as lágrimas,


que não sou capaz de parar de andar por um minuto sequer. Derramo muitas
lágrimas no caminho, meu coração está entalado na garganta, eu o ouço
gritar por socorro, mas não posso ajudá-lo. Não posso nem mesmo ajudar a
mim mesma a superar um amor miserável.
Ando por todas as ruas, sentindo os meus pés afundarem na neve
congelada, os flocos umedecem os meus cabelos e encharcam as minhas
roupas. Não me importo dos meus lábios racharem, nem de deixar de sentir
as minhas mãos por tamanho frio.
Continuo andando por horas, e só paro quando encontro um
estabelecimento retrô na esquina de uma rodovia. Quando abro a porta, me
dou conta de que se trata de um bar. O som do sino sobre a porta anuncia a
minha entrada, todos ali notam a minha chegada.
De repente, minha mente me leva até o bar em WonderFall, onde
Jason atirou na cabeça de um cara por ter posto as suas mãos em mim.
Naquele minuto, eu o venerei mais do que gostaria de admitir. Quis que as
circunstâncias fossem diferentes e que, com uma ajudinha do destino, ele
não fosse um assassino. Talvez, desta forma, pudesse me apaixonar por ele
sem que me sentisse a pior pessoa do mundo por isto.
Eu me sentiria aliviada, na verdade. Amá-lo sem sentir a culpa
partir o meu coração, seria mais libertador do que querer amá-lo, mas
simplesmente não poder.
Abaixo a cabeça quando fecho a porta às minhas costas e avanço
alguns passos adiante, caminhando em direção ao balcão, onde um homem
baixo, de cabelos brancos e barba enorme, olha fixamente em minha
direção.
— Boa noite, garota. O que faz por aqui? — Ele pergunta,
curioso.
Apoio ambos os antebraços no balcão de madeira, sentindo o
olhar dos demais homens aqui presentes queimando em minha mandíbula.
Sou carne nova no pedaço, todos possuem as suas atenções fixas em mim.
Encaro o homem de barba, pensando em uma boa resposta para
convencê-lo de que não sou uma garota perdida, isso obviamente, atrairia
bêbados para a minha cola, e em um descuido, saí daquela cabana sem a
minha arma. Entrar em uma enrascada agora está fora de cogitação.
Limpo a garganta, pendendo a cabeça para ambos os lados antes
de iniciar a minha mentira mais improvisada.
— Boa noite... — Olho para o seu macacão cor de avelã, lendo o
seu nome no broche. — Welsh. Eu estou de viagem pela cidade, vim até
aqui ao lado do meu namorado. — Tento soar convincente, sugando o nariz
no processo ao encarar os seus olhos verdes. — Mas descobri que ele me
traiu. — Finjo secar o canto dos olhos com a ponta dos dedos, baixando o
olhar da forma mais monótona.
Uma música que parece ser do gênero rock toca pelas caixas de
som, e isto, honestamente, me atrapalha para concretizar uma atuação
impecável.
Os homens sentados nos bancos à frente do balcão, tomam um
gole da bebida de seus copos transparentes, mas meu olhar está fixo no
copo que um deles arrasta pelo balcão, em minha direção.
— Você precisa disso mais do que eu. — Ele resmunga, estalando
a língua no céu da boca.
Faço uma careta, encarando o líquido transparente com o olhar
desconfiado.
— É só vodka, vai se sentir melhor depois de beber. — Welsh
pontua, girando sobre os calcanhares por curtos segundos para pegar um
dos copos vazios em sua mesa e enchê-la da mesma bebida. — É por conta
da casa.
Acompanho o copo ser arrastado pelo balcão, minha garganta
seca implora por algum líquido que não seja a saliva, e realmente preciso de
algo que me faça esquecer das últimas horas. Nem mesmo o álcool será
capaz de amenizar a culpa por ser miseravelmente apaixonada por Jason
Turner, eu sei disso. Mas, o simples fato da ideia parecer convincente, traz
uma luz para a escuridão que estive no caminho até aqui.
Não penso no que faço até sentir o líquido ardiloso queimando a
minha garganta. Uma carranca se forma no meu rosto quando engulo tudo
de uma vez, e fecho os olhos pelo impacto, balançando a cabeça como se
estivesse acabado de chupar um limão.
Os três caem na gargalhada.
— É isso aí!— Um deles diz em meio ao riso.
— Nos diga... Como você descobriu? — Welsh pergunta.
Eu abro os olhos, cobrindo a boca por breves segundos para me
acostumar com a ardência em minha língua.
— Flagrou os dois na cama ou algo assim? — O outro pergunta,
relaxando o seu corpo contra o balcão.
Torço os lábios, alheia a sua pergunta.
— Na verdade, ele matou a minha mãe. — Só me dou conta do
que eu digo, depois que as palavras saem da minha boca.
Welsh para de secar um dos copos que havia acabado de tirar da
lavadora e me encara perplexo, os outros dois sequer piscam. Eu, por minha
vez, não planejo voltar atrás. É tarde demais.
— Ele matou a sua mãe? — Welsh aproxima-se, seus olhos são
tão grandes que posso enxergar cada detalhe dele.
Abaixo a cabeça, acenando devagar. Cubro os olhos com as mãos,
como se doesse falar sobre o assunto. Mas o que importa? Eles sequer se
lembrarão dessa conversa pela manhã, e consequentemente, eu me sentirei
mais leve.
— E fez isso antes que eu me apaixonasse por ele — Desabafo.
— Vocês conseguem imaginar que ele me beijou e esteve ao meu lado por
todo o tempo em que escondia isso de mim? — Aperto o copo entre a
minha mão, estendendo-o em direção ao Welsh, que não tarda a preenchê-lo
da bebida outra vez.
O álcool não é bom, mas gosto da sensação queimando o meu
interior. Eu até posso dizer que ela aliviou, de alguma maneira, a queimação
no meu coração.
— Você não chamou a polícia? — O da esquerda, de cabelos
loiros e sardas no rosto, pergunta. Ele parece desacreditar da minha história.
Eu bebo o líquido do copo, sentindo-me algumas toneladas mais
leve.
— Ele foi preso. Ficou na cadeia por três anos, mas agora ele está
de volta e age como se me quisesse longe, mas me encara como se eu fosse
digna de adoração. — Eu rio, amarga. — Quero odiá-lo, mas… Inferno, ele
me confunde!
Welsh ri baixinho, completamente concentrado no que digo.
— Ele está atrás de você agora? — O moreno de cabelos
cacheados, parecendo velho demais, pergunta. — Se estiver, você pode
ficar conosco até que se sinta segura.
Eu abano a cabeça rápido demais, sentindo-me zonza no
processo. Dou mais um gole no líquido e o encaro.
— Ele sempre está atrás de mim. Inclusive, nós transamos em
uma cabana abandonada no topo do Monte Whitney em meio a tempestade
que teve na cidade há duas noites, porque ele sempre está atrás de mim. —
Bufo, não entendendo como não sinto vergonha de falar sobre o assunto. —
E veja que irônico, ele até prometeu que cuidaria de mim, antes de me
entregar para uma organização de tráfico de mulheres que abus…
— Que porra é essa? — Welsh questiona, claramente perplexo
quanto a tudo que ouviu. — Nós vamos chamar a polícia e vamos garantir
que você esteja livre de quem quer que seja esse lunático.
Bebo todo o líquido que resta, esticando a mão para ele como um
aviso para largar o telefone que captura no bolso traseiro de seu macacão.
— Não faça isso, porque se ele descobrir, vai matar vocês. — Eu
declaro, apática.
Welsh arregala os olhos, como se estivesse finalmente se dando
conta de que o seu problema começou quando entrei por aquela porta. Ele
está lidando com uma mulher de coração partido, negando a se entregar por
um amor fracassado. Isso deve ser o suficiente para deixá-lo desesperado.
Ele guarda o celular e eu suspiro. É óbvio que não permitiria que
ele ligasse para a polícia, a chance de sermos reconhecidos e reportados
para a polícia de WonderFall é grande demais, e ainda tenho assuntos para
resolver na montanha.
— Como pode estar tão tranquila? — O loiro pergunta. Seu
semblante assustado não me pega desprevenida.
Eu, casualmente, estendo o copo para Welsh e lhe imploro por
mais um pouco do líquido que amenizou o buraco que tenho no peito. Ele
balança a cabeça em negação, como se soubesse que está cometendo um
erro, mas enche o copo e o entrega para mim.
Tudo que faço é dar dois grandes goles antes de relaxar as minhas
costas na cadeira.
— Ele não vai me machucar. — Anuncio, mordendo o canto dos
lábios. — É mais fácil ele enfiar uma bala no meio da própria cabeça.
Welsh ri.
— Como você pode ter tanta certeza?
Eu estreito o olhar, encarando-o por baixo dos cílios.
— Nosso amor é incompreensível, vocês não entenderiam. —
Gemo, apoiando os meus braços contra a bancada, levando a minha cabeça
junto. Encaro o chão com dificuldade, me sinto tonta. — Vocês me acham
louca por ainda amá-lo?
Quando levanto a cabeça, é quando noto que lágrimas caem dos
meus olhos em disparada, mas eu não consigo contê-las. Me sinto estúpida
por estar abrindo o meu coração, após muito tempo, com bêbados em um
bar de esquina. Mas eles não acreditarão em uma única palavra do que eu
disser, então eu não pararei até me sentir leve.
Até me esquecer que o amo.
— Eu queria entender por que ele tem que ser assim... Vocês
conseguem imaginar alguma coisa? Porque nada faz sentido para mim…
Um soluço escapa de meus lábios, e então, outro. Tudo que quero
é entender a razão para que o meu maldito coração ainda bata por Jason. Ele
não merece a porra do meu amor.
— Desculpe, ainda estou processando a parte em que vocês
transam em meio a um nevoeiro. — O loiro diz, bebendo do seu copo todo
o líquido de uma vez.
Seco o rosto com o antebraço, então faço o mesmo. Alcanço o
copo e bebo todo o líquido de uma vez, batendo-o contra a madeira do
balcão em seguida, como se estivéssemos participando de uma rodada
classificativa de quem bebe mais.
Os três riem.
— Eu vou dar o fora, preciso voltar para casa antes que eu precise
explicar para a minha esposa tudo que ouvi hoje. — Ele suspira, retirando o
seu boné da cabeça com a ponta dos dedos.
Eu levanto de supetão, bloqueando sua passagem. Tropeço nos
meus próprios pés e meu corpo é jogado em sua direção, me apoio em seus
ombros e tento manter o meu corpo firme ao chão quando levanto a cabeça
para encará-lo.
— Mas eu ainda preciso de conselhos!
Ele ri, levando ambas as mãos ao meu bíceps, afastando-me de
sua frente gentilmente.
— Estou velho demais pra isso. Só se cuide, amá-lo não é tão
errado se você souber em que buraco está se enfiando. — Ele lança uma
piscadela em minha direção, antes de acenar para os outros caras e
caminhar em direção a porta.
Eu bufo, exausta demais para fazer qualquer outra coisa.
Amá-lo não é tão errado se você souber em que buraco está se
enfiando.
Eu sei exatamente onde estou me enfiando, e acho que isso é
motivo para amá-lo ainda mais. Porra, porra, porra!
— Filho da puta! Por que tenho que amá-lo tanto? — Exclamo,
irritada.
Welsh ri, junto do homem que restou à sua frente.
Quando os encaro, levo as mãos à cintura com o questionamento
de qual é a graça que eles enxergam aqui. Estou enfrentando uma crise
gravíssima de amor próprio, e mesmo que saiba que eu sou mais
importante, não consigo me colocar em primeiro lugar.
Por que tudo é tão complicado?
Por que Jason maldito Turner, existe?
— Você está de coração partido. Sabe que o fim de um
sentimento é como os estágios do luto, não sabe?
Eu o encaro, sentindo os meus olhos demorarem para encontrar a
sua figura. Me sinto drasticamente tonta, mas procuro me concentrar no que
ele diz.
— Luto eu senti pela minha mãe. Por ele, eu deveria sentir ódio,
desprezo e indiferença.
Welsh dá a volta pelo balcão e atira o pano que havia em seu
ombro para algum canto da mesa que sustenta as bebidas. Eu mordo os
lábios, sentindo o choro entalado na garganta se manifestar outra vez. Estou
fazendo muito isso, e as consequências virão pela manhã, quando eu me
lembrar que contei toda a minha vida para estranhos que provavelmente,
sequer acreditam em um terço do que digo.
Jason, pela primeira vez, abalou as minhas estruturas como um
furacão categoria 5. Esse é o nível máximo de um furacão, o mais mortal e
feroz. Aquele que devasta tudo que vier pela frente e tira as coisas do lugar,
a força da ventania levando para um lugar distante que nem mesmo seria
possível encontrá-los novamente. É assim que me sinto, devastada e
perdida, em uma proporção que não faço ideia se conseguirei me encontrar
novamente e entender tudo que estou sentindo.
Jason me confunde e me faz querer correr para a sua confusão,
porque de alguma forma, perante todos os seus pecados e crimes, não serei
eu quem irá julgá-lo. Mas, no fim de tudo, quem poderá garantir que não
sou tão pecadora quanto ele? Tão devastadora?
Ninguém pode garantir nada.
Nada nunca foi uma garantia.
Estremeço perante o toque repentino de Welsh ao meu ombro, é
um gesto doce e gentil, como se estivesse tentando acalmar o meu interior e
cessar o meu pranto.
— Respire, menina. No fim, somos todos humanos e nem sempre
vamos aprovar as nossas atitudes. Está tudo bem. — Ele diz, calmo e
relaxado.
Eu aceno devagar, secando o rosto com a manga da jaqueta que
ainda está úmida.
Pisco algumas vezes. Meus olhos parecem ter a necessidade
desesperadora de manterem-se abertos, meus pés parecem estar sobre as
nuvens, flutuando. Não sei o quanto bebi, mas sei que o meu corpo é fraco
demais para suportar álcool puro, além de ser a minha primeira vez em
contato com bebidas.
Estou tonta e sinto como se estivesse em câmera lenta, o meu
corpo demora para me responder e atender aos meus comandos. Isso é o
suficiente para que eu saiba que o álcool alterou as minhas ações, eu não
estou bêbada, mas estou fora de mim.
— Eu posso usar o banheiro? — Pergunto, com dificuldade.
Welsh acena, gesticulando em direção a uma porta no canto
esquerdo do bar, onde há uma entrada quadricular com luzes vermelhas
contornando-a.
— Por ali.
Eu não respondo. Tudo que faço é caminhar lentamente em
direção ao banheiro, sentindo a minha cabeça latejar de tanto que chorei
neste dia. Horas se passaram depois da briga que tive com Lexie e Jason,
não sei se estão procurando por mim ou se ainda se importam comigo da
mesma maneira que diziam se importar. Eu havia passado dos limites, não
imagino que eles consigam estender o plano de serem bons para mim. Não
quando consigo ser o pior de seus pesadelos, quando machucada.
Acaricio a lateral da minha cabeça repetidas vezes, acelerando os
passos em direção ao banheiro. Atravesso o salão com rapidez, ignorando
todos os olhares julgadores que são direcionados a mim. Eles nunca viram
alguma mulher antes?
Quando encontro a porta de madeira com o símbolo sexual
feminino, abro a porta com rapidez, fechando-a as minhas costas no
segundo em que adentro o quadrado minúsculo que capacita apenas uma
pessoa por vez.
Respiro fundo quando fecho os olhos e procuro entender todas as
emoções que enfrento no dia de hoje. Eu não deveria estar tão abalada. Por
que não consigo pensar racionalmente em situações que o envolvem?
Eu deveria fazer tantas coisas... Dentre elas, odiá-lo. Na teoria,
parece fácil demais. Na prática, nem tanto.
Era para ele se sentir tão mal, não eu.
Era para ele se odiar, não eu.
Era para ele estar morto, não ela.
Mas espera, será que eu gostaria mesmo que ele estivesse morto?
Será que eu suportaria a dor de perdê-lo para a porra da morte?
Maldito.
Ele me confunde.
Esse é o motivo por odiá-lo tão profundamente. É o motivo para
que eu queira destruí-lo, assim como fez comigo.
Desencosto da porta quando caminho até a pia, ligando a torneira
para enxaguar as minhas mãos que parecem congeladas. Rodeio-as pelo
sabonete e às limpo durante o tempo em que encaro o meu reflexo no
espelho acima da pia. Encaro os meus lábios carnudos rachados e
avermelhados, a minha mandíbula desenhada e as olheiras abaixo dos
olhos.
Os meus olhos são quase tão azuis quanto o oceano, mas ali, a
pupila parece maior do que a íris. A escuridão o preenche por completo, e
os meus cílios são tão grandes que fazem com que o meu olhar fique
mortal.
Não gosto do que vejo.
Talvez por me lembrar da minha mãe, ou então, por parecer
inocente demais. Os cabelos loiros estão tão secos que quando enxugo as
mãos e os acaricio, sinto como se estivesse acariciando uma palha. Minha
mãe amava cuidar do meu cabelo, ela gostava de como me parecia com ela.
Ela não está aqui, afinal. E, lembrar dela, assombra os meus dias
e atormenta as minhas noites. É uma tortura encarar o meu reflexo e ver que
me tornei um ser tão repugnante.
Sou suja demais.
Só quero me livrar da minha aparência.
Só quero parar de olhar para o meu corpo e não me sentir nem um
pouco arrependida por saber de onde vem todas aquelas marcas possessivas
em formato de mãos.
Eu não consigo me sentir arrependida, talvez, porque realmente
não estou.
Suspiro pesadamente quando desligo a torneira e olho ao redor,
vendo as diversas prateleiras que sustentam diversos produtos de limpeza
contra a parede. Os armários parecem trancados, mas quando caminho até
eles e abro a primeira porta, consigo enxergar milhares de produtos de
beleza como shampoo, cremes e sabonetes.
Reviro os produtos até encontrar algo que possa ajudar a aceitar a
minha aparência sem que me sinta uma ordinária fodida.
Vasculho todos os armários, deixo todas as portas abertas e parto
para as gavetas. Quando abro a primeira, me deparo com uma tesoura
pequena. Eu a encaro por alguns segundos, então, sem pensar, eu a pego e a
mantenho em minhas mãos enquanto vasculho as demais.
São cerca de cinco gavetas, todas não possuem nada além de
grampos, escovas de dentes, pedaços de papéis, luvas descartáveis e
cotonetes. Minha expectativa estava chegando ao fim, quando abro a última
gaveta e me deparo com uma caixa do que parece ser tintura para cabelo.
Ajoelho-me no chão, agarrando a caixa entre a minha mão. Com
cuidado, eu a tiro da gaveta e a trago para fora, para onde eu possa analisá-
la melhor.
Leio os rótulos de como deve ser usada, leio sobre os riscos que
poderia ocorrer caso a tintura entre em contato com os olhos, leio sobre a
força que ela possui e quando a giro para ler a sua extremidade, encaro a
modelo sorridente, segurando a mesma caixa com os cabelos escuros como
a noite voando ao vento. Escorrego o olhar até a parte inferior da caixa,
onde está localizado o tom que ela possui.
Preto.
Eu me levanto, encarando a caixa com luxúria no olhar.
Caminho até a pia e atiro a tesoura contra a cuba, abrindo a caixa
desajeitadamente.
O loiro deve desaparecer, esse é o começo para me tornar quem
realmente sou sem que me lembre dela a cada segundo.
Sofia Clarke já morreu há muito tempo, mas hoje eu a enterrarei.
Retiro o recipiente onde a tinta é conservada, e a levo até onde
está a tesoura, para que primeiro possa acabar com as pontas secas.
Agarro a tesoura e me livro da jaqueta, observando o meu busto
repleto de chupões. Os encaro por tempo demais, observando os círculos
roxos que a língua de Jason deixou ali. Os circulo com a ponta dos dedos,
forçando eles contra a dormência apenas para sentir um fio da dor que senti
naquela noite.
Como os seus lábios me maltrataram, mas também me adoraram.
Como os seus apertos em minha garganta tiraram todo o meu ar,
mas também enviaram-os diretamente para o meu pulmão.
Escorrego os dedos para a marca de seus dedos que tenho
conhecimento de estarem em minha cintura, embora não as veja,
deslizando-os para cada rascunho de suas marcas em minha pele.
Eu deveria me culpar. Repito a mim mesma.
Mas não me culpo.
Outra lágrima despenca dos meus olhos quando posiciono a
tesoura em meus dedos e com a outra mão, capturo os meus cabelos e os
puxo para frente, separando-os em mechas finas para cortá-los.
Faço todo o processo com fúria exposta no olhar conforme encaro
o meu reflexo, temendo o que me tornarei daqui a diante. Corto cada um
dos fios, deixo que os pedaços grossos de cabelos caiam contra a pia e
espalhem fios curtos para todos os lados.
Só paro de cortar cada mecha quando olho para o meu reflexo e
me sinto satisfeita.
Em seguida, poupo tempo quando abro o pequeno recipiente de
tinta com os dentes e começo a despejá-lo contra o meu couro cabeludo.
Espalho tinta por cada fio de cabelo, sujando as minhas mãos no processo.
Observo a tinta lentamente se adequar ao tom que os meus fios naturais
possibilitam que eles cheguem.
Faço tudo com ferocidade e agilidade.
Lavo o cabelo na pia e deixo que o ralo leve para longe todos os
fios curtos de cabelo que grudaram contra a cuba. Deixo que os meus dedos
fiquem pretos e tiro todo o excesso de tinta que mancha a minha cabeça.
Repito o processo pelo menos três vezes até notar que a cuba não
apresenta nenhum sinal de tintura preta que sai da minha cabeça.
Sinto a gaze em meus pulsos pingando água fria por mergulhar a
mão abaixo da torneira, mas sequer me parece um ponto válido no
momento.
Quando levanto a cabeça e fecho a torneira, espremo a ponta dos
meus cabelos para enxugá-lo. Então ergo o olhar, encarando a minha figura
no espelho.
Minha garganta seca quando escorrego as mãos pelos fios, agora
curtos, espalhando-os. Balanço a cabeça até que eles estejam rebeldes e não
escorridos pelo excesso de água.
Meu cabelo não chega à altura do queixo, uma franja
completamente desajeitada escorre de ambos os lados desde a partição
central. Os meus olhos estão mais destacados do que nunca estiveram, e
penso notar que as olheiras também diminuíram. Inclino a cabeça para o
lado e mergulho as mãos nos fios úmidos, um sorriso satisfeito crescendo
nos meus lábios por gostar do que vejo.
O loiro desapareceu.
Tudo é escuro, sombrio e fatídico. Assim como eu pretendo me
tornar a partir de hoje.
Mordo os lábios quando dou as costas para o espelho e, sobre os
ombros, olho para o comprimento do meu cabelo. Ele ainda pinga gotas de
água pesadas e extremamente geladas, mas nem mesmo isso pode pagar
pela sensação de alívio que eu sinto nesse momento.
Olho ao redor, procurando por alguma toalha que possa me ajudar
a me livrar de todo aquele excesso, mas quando noto que não há
absolutamente nada para me auxiliar, levanto os braços e me livro da minha
camiseta, usando-a para enxugar os meus fios.
A sensação é libertadora.
Excepcional. Única.
O sentimento relaxante que sinto em cada segundo que encaro o
meu reflexo é genial. Eu sinto como se desta vez, Aspen realmente tenha
nascido, e com o nascimento dela, o sepultamento de Sofia Clarke acontece,
porque, absolutamente nada em mim, lembra a garota cheia de traumas e
caridosa que eu era.
Agora eu sou o oposto do que fui criada para me tornar.
— Baker, abra a porra da porta! — Duas batidas agressivas e
firmes causam o meu sobressalto pelo susto, deixando cair a camiseta de
minhas mãos.
Jason.
Como ele chegou até aqui?
Mantenho silêncio absoluto, encarando a porta de madeira e o
silêncio ensurdecedor que se instala após as suas duas batidas agressivas e
desesperadas.
— Ou você abre, ou eu vou derrubá-la. Não estou brincando. —
Ameaça, sua voz rouca e agressiva soa fatídica.
Eu engulo em seco.
— O que você quer? — Pergunto, manifestando a minha
presença. — Não disse o suficiente?
Ouço o seu suspiro.
Nada mais.
E isso me assusta, porque Jason não é muito fã da paciência.
— Ótimo. Então eu vou contar até três. — Ouço o seu punho
colidir contra a madeira pela terceira vez. — Um…
Eu olho ao redor, procurando por algum tipo de coisa afiada que
possa me ajudar a me defender do louco obsessivo que é Jason Turner
impaciente.
— Dois…
Sem pensar, agarro a tesoura com a qual cortei meu cabelo e me
aproximo da porta em passos silenciosos. Eu não tenho escolha, como o
maldito ardiloso que ele é, não vai me deixar em paz até que eu abra a
maldita porta.
Imediatamente, alcanço a jaqueta e cubro meu corpo sem a presença
da camisa encharcada, apenas o faço desesperada para esconder as gazes
em meus pulsos.
— Três. — O seu punho bate na porta pela última vez.
No entanto, antes que ele possa concretizar com o seu plano de
derrubá-la, eu a abro.
Observo o seu rosto com seriedade.
Jason tem ambas as mãos a cada lado do batente, seus olhos fixos
nos meus com tanta intensidade que sinto um arrepio vagar por cada
extremidade do meu corpo.
Ele tem uma carranca sombria no olhar, suas sobrancelhas estão
juntas e ainda usa a mesma roupa de antes, exceto pela forma nada discreta
que mantém uma arma presa ao cós da sua calça. Ele quer mostrar que é
perigoso, e não duvido da hipótese de que ele usou de toda a sua
manipulação para descobrir que eu estava aqui.
Maldito bartender fofoqueiro.
— O que você quer? — Pergunto, afastando-me da porta.
Seus olhos viajam dos meus olhos até os meus cabelos, então eles
retornam para minhas íris e descem até o meu pescoço e busto. Quando sigo
o seu olhar, é quando noto a vulgar abertura da jaqueta aberta entre os meus
seios. Os chupões estão ainda mais expostos, assim como as mordidas e as
marcas de seus dedos.
É a primeira vez que os vê.
Ele não diz nada, apenas endireita a sua postura e se enfia no
banheiro junto comigo, passando o trinco na porta em seguida.
Eu junto as sobrancelhas e aponto a tesoura em sua direção.
Que merda ele está fazendo?
Eu não sei. Mas é perigoso. Nós dois. Em um banheiro. Sozinhos.
Jason avança alguns passos em minha direção, alternando o olhar
entre os meus olhos e a tesoura que aponto em direção ao seu estômago.
— Pare de se aproximar. — Aviso, ameaçando atacá-lo.
Não é um bom momento para que ele esteja aqui, ainda estou
tonta pela quantidade de álcool que ingeri, mas principalmente, sinto todo o
meu emocional se desconcertar em sua presença. Eu o olho, e sinto o choro
entalar na minha garganta, respiro fundo e sinto vontade de apenas relaxar
em seus braços.
Há um misto de emoções fazendo de meu peito o seu lar,
confundindo-me e levando a questionar os meus princípios. Quando foi que
eu me tornei tão acessível a ele?
Quando as minhas costas batem contra o armário mais próximo,
Jason com toda a facilidade que tem, agarra o meu pulso e tira a tesoura da
minha mão, jogando-a para longe de onde estamos. Eu arfo quando ele
levanta um dos braços e aproxima a mão de meu rosto, circulando uma
mecha do meu cabelo úmido entre o seu indicador.
— Pensei que você não podia ficar mais linda. — Ele suspira,
encarando o meu busto sem um mínimo esforço para disfarçar. — Mas acho
que é para isso que servem os pecados. Maldita seja por ser a causa da
minha ruína.
MONTE WHITNEY - 2022
AGORA

Linda.
A primeira pessoa que me chamou de linda foi minha mãe. Ainda
me lembro das vezes que ela passava a escova de cabelo raquete lilás que
mantinha sobre a sua penteadeira entre os meus fios loiros enquanto cantava
uma de suas músicas favoritas.
Acho que aquele era o único momento em que realmente se
permitia ser ela mesma. Os momentos que tínhamos a sós antes que
Sebastian chegasse do seu encontro casual com compradores, eram únicos.
Neles eu podia conhecê-la melhor.
Passei anos ao seu lado e uma dor infinitamente dolorosa parece
tomar o meu peito quando me lembro de que eu nunca a conheci de
verdade.
Tudo que eu sei é que ela nos amava mais do que a si mesma.
Josh era o seu tudo, apesar de não ter tido muito tempo ao seu lado, e eu por
muito tempo, fui a sua salvação. Ela costumava dizer que eu era o seu anjo,
porque eu traria a libertação que ela precisava.
Nunca descobri o que ela quis dizer com isso.
Sei que nunca vou descobrir. E, tampouco ouvirei dizer o quanto
os meus fios loiros lembram os seus, porque eu os destruí. Sou covarde
demais para lidar com a dor da saudade.
São como facas rompendo todas as camadas de pele e afundando-
se no meu coração como um baque mortal. Não poderei sobreviver a isso,
tampouco à maneira como Jason me olha como Eleanor me olhava. O
brilho nos olhos ao dizer o quanto eu estou bonita transparece na escuridão
de suas esferas, e realmente pensei que não podia odiá-lo mais, mas estava
perdidamente errada.
— Não me venha com essa! — Afasto a sua mão com um tapa
grosseiro em seu dorso. — Devo lembrar a você todas as palavras cruéis
que disse há algumas horas? Não sou tão carente para ouvir um único
elogio e mágicamente me esquecer de todas as suas merdas. Diga o que
quer de uma vez.
Eu ainda estou magoada por tudo que ele havia me dito, mas
estou ainda mais abalada por tudo que eu disse para todos aqueles bêbados
há poucos minutos. Quão humilhado o álcool pode nos deixar?
— Você também disse coisas, Baker — Ele suspira, seu tom é
rígido, apesar do semblante sereno. — Posso ter sido um cuzão, mas não
estou sozinho nessa.
Afasto o meu corpo do armário, avançando alguns passos breves
para fechar o zíper da jaqueta.
— Você é pior do que eu, de qualquer maneira. — Digo quando
estico o tecido contra o meu peito, finalmente olhando para ele por cima do
ombro. — Você é uma bomba-relógio, Jason, e não vou permitir que
exploda perto de mim outra vez.
Eu gostaria de descobrir a fórmula para me esquecer de todos os
sentimentos que tive por ele, só assim eu poderia seguir em frente. Jason
ainda mexe comigo, e toda vez que estou cara a cara com ele, sinto que
mais um pedaço do meu coraçã.o se perde no seu abismo profundo.
— Bomba-relógio? — Ele ri, apático. — Sério?
Balanço os ombros com indiferença. Eu tremo de frio, apesar do
meu organismo queimar pela quantidade de álcool que há no meu sistema.
Sinto os meus lábios racharem, a onda congelante que cresce na
ponta dos meus pés por dentro da bota desconfortável traz um choque de
calafrios por todo o meu corpo.
— Você destrói tudo o que toca. Você não consegue sobreviver
sem arrastar alguém para o buraco junto com você. — Giro sobre os
calcanhares, me sentindo cruel por destilar o veneno mais mortal em sua
direção. — Isso foi o que levou nós dois à ruína. Então não, eu não sou a
causa da sua ruína. Você quem causou a minha.
Aponto o dedo em sua direção como um padre julgador. Julgo os
seus pecados como se eu não tivesse os meus próprios para cuidar, um deles
é estar culpando-o por me destruir quando nem mesmo eu sou capaz de
odiá-lo por isso.
Jason pisca cerca de três vezes consecutivas, ele não parece
minimamente abalado com o que acaba de ouvir, e é exatamente isso que
me preocupa. O gelo em seu olhar, o modo como todas as suas linhas de
expressão desaparecem de seu rosto quando fecho a boca. A forma como
esconde o seu sorriso amargo e endireita a postura, como se nada pudesse
doer mais do que aquelas palavras. Ele não transparece, no entanto.
— Quanto você bebeu? — Pergunta de repente, ignorando a
minha alfinetada.
— Não sei, não fiquei contando shot por shot. O que sei é que não
bebi o suficiente para me esquecer de tudo que acabei de falar.
Jason abana a cabeça.
— Ótimo. Nós temos uma missão hoje e preciso que você mais
ajude do que atrapalhe. Depois disso nós voltaremos para WonderFall e
você pode voltar para a sua vida infeliz. É o que você quer, não é? — Ele
não parece minimamente emotivo, mas a forma como as palavras
indiferentes saem de seus lábios, me incomoda.
— Como? — Arqueio a sobrancelha, acompanhando os seus
passos com o olhar.
Jason passa por mim com rapidez, deixando o rastro de seu
perfume doce pelo ar.
— Nós temos uma missão, Baker, foi por isso que eu vim. Você
pode decidir bancar a adulta responsável e vir comigo ou pode continuar
fazendo birra como uma criancinha. Pode escolher, não vou interferir na sua
decisão. — Quando alcança a porta, uma de suas mãos agarra a maçaneta
entre a palma. Ele não se vira quando com todo o seu ar indiferente, diz: —
Quando ela acabar, eu direi toda a verdade para você, quer você queira, ou
não. E, honestamente, espero que ela doa.
Fecho os olhos com força quando o banheiro fica vazio outra vez
sem a sua presença. O baque da porta sendo fechada abruptamente balança
os meus sentidos e faz com que a dor fininha da culpa alfinete o meu peito.
O som do rock que toca sem parar pelos alto-falantes do bar fica
mais alto, o som de risadas grossas e adultas ainda são ouvidas, mesmo pela
distância.
Meu coração bate alucinadamente pela sensação tão
desconfortável de tê-lo magoado. Eu peguei pesado, reconheço o peso de
minhas palavras, mas precisei partir o seu coração para que ele tivesse
alguma reação.
O preço da verdade é alto.
Quão longe irei por ela?
Só há um jeito de descobrir.
Jason está aqui e, irritado ou não, ele fez uma proposta. Eu não
deveria recusá-la, porque tudo que pode direcionar o meu destino, é o
passado. As coisas que aconteceram há anos, que nunca sequer descobri. A
história da minha mãe, a razão para que ela tenha se casado com Sebastian,
o motivo de sua morte tão horrenda, as inúmeras vezes que me perguntei a
razão para que ele tenha feito o que fez, tudo está prestes a ser respondido.
Seguir a minha vida sem a sua sombra perseguindo todos os meus
passos.
Quão louca estou por essa libertação?
Eu ainda quero isto?
Se a resposta é sim, por que o sentimento da perda assombra o
meu estômago como uma maldita borboleta perdendo as suas asas?
Jason incendeia todos os meus sentidos, e tenho dúvidas se o meu
corpo realmente é formado por água, ou gasolina. Eu sempre cedo. Queimo
por ele.
Sou tão ridícula.
Instantaneamente, balanço a cabeça e relaxo os meus músculos,
soltando um longo suspiro conforme tento organizar os meus pensamentos e
colocar os meus objetivos em primeiro lugar.
Foda-se as borboletas.
Quando decido abrir a porta e sair do banheiro, não penso muito
ao apagar a luz no interruptor e arrasto a ponta dos dedos pelo batente ao
atravessar o corredor.
Caminho rapidamente pelo chão de madeira, fazendo os meus
passos longos ecoarem pela madeira rústica que parece estar ali há anos.
Elas estão velhas e surradas, o papel de parede quadriculado também é o
charme das paredes, entrando em oposição com as inúmeras decorações de
cabeças de urso, veado e touro, penduradas nas paredes. É bizarro e
assustador.
O lugar parece ter sido construído no século passado, os vitrais e
todas as lâmpadas penduradas ao teto parecem ter sido projetadas à mão.
Não é um lugar luxuoso e confortável, mas aparentemente, é uma válvula
de escape para várias pessoas como foi para mim, também.
Passando pelo corredor sombrio, volto para o bar em passos
lentos, encarando o chão de madeira conforme as minhas botas criam um
ruído sonoro oco no chão.
— Ei, menina! — Levanto a cabeça de supetão quando reconheço
a voz de Welsh.
Estou a poucos passos da porta de saída, meu subconsciente tão
aéreo que demoro para notar que ele chama por mim. Welsh ainda está atrás
do balcão, seus olhos fundos estão mirados em minha direção, e só quando
escorrego o olhar para o seu nariz ensanguentado, permito que os meus pés
me guiem até ele.
— Welsh, o que aconteceu? — Pergunto, olhando para o sangue
seco que mancha a pele abaixo do nariz. — Você está sangrando.
Quando levanto o olhar até o seu, noto quando os seus olhos
analisam o topo da minha cabeça e baixam novamente para os meus. Ele
tem um semblante calmo e sereno, apesar de estar machucado.
— Gostei do cabelo. — Ele elogia, gesticulando um aceno com a
cabeça. — Quanto a isso, parece que o seu namorado é mesmo osso duro de
roer. — Welsh usa a ponta dos dedos para secar o buço, espalhando sangue
por suas bochechas coradas.
Eu levanto uma sobrancelha.
— Ele quem fez isso?
Welsh acena.
— Parece que ele é um pouco esquentado. Mas não se preocupe,
eu o mereci.
— Por quê?
— Ameacei chamar a polícia se ele não a deixasse em paz — O
homem bufa um riso, secando os dedos ensanguentados no pano sobre o
ombro. — Ele não curtiu muito a ideia, como você pode notar.
Eu cruzo os meus braços, varrendo os olhos pelo bar ao perceber
que muitos olhares ali estão direcionados diretamente para mim. Os caras
que antes bebiam de seus copos totalmente aéreos, desta vez, fixam seus
olhares em nós, quase como se descobrir o que está acontecendo fosse mais
interessante.
— Eu sinto muito, Welsh — Coço o meu couro cabeludo, fazendo
gotas ásperas de água escorregarem pelo meu pescoço. — Eu não deveria
ter envolvido você.
Ele sorri fraco, leva o pano até o seu nariz e estanca o
sangramento.
— Você vai ficar bem? — Pergunta. — Se ele for mesmo um
psicótico, eu posso inventar que você foi dar uma volta.
Bufo um riso, achando graça da forma como ele acredita
fielmente que seria tão fácil escapar de Jason.
— Vou ficar bem — Garanto, abanando a cabeça. — Obrigada
por me ouvir, estou me sentindo mais leve.
Arrastando as botas pela madeira fosca do chão, recuo alguns
passos em direção à porta enquanto aceno para o restante dos caras que
estavam envolvidos em minha conversa quando cheguei até aqui.
— Cuide-se. — Welsh faz uma careta quando força o pano contra
o nariz, mas usa a outra mão para acenar um "adeus".
Sorrindo fraco, giro sobre os calcanhares e caminho até a saída do
bar.
É estranho como me senti livre para ser quem eu realmente sou
com pessoas que nunca havia visto em toda a minha vida. Eles me ouviram,
não julgaram as minhas escolhas mesmo que eu tenha citado mil motivos
para que o fizessem. Mas não. Eles foram como amigos, me acolheram
quando eu mais precisava de um espaço para liberar tudo o que estava me
engasgando.
Nunca os verei novamente, mas estou emanando gratidão por
terem proporcionado a mim, um momento tão simples que nunca tive a
honra de conseguir.
Foi bom me sentir como uma pessoa comum dentre tantas
perturbações, mas quando passo pela porta e encaro a brisa fria que vem do
céu e as gotas congelantes de neve batem contra o meu rosto, umedecendo-
o, é literalmente como um balde de água fria. A verdade é uma só.
A realidade é outra.
E é hora de encará-la.

O caminho até a cabana foi agonizante. Jason dirigiu de volta como


um desgovernado, pisou no acelerador contra toda aquela neve que cobria
as ruas, manteve os seus olhos fixos na estrada de neve mesmo quando
fulminei a sua mandíbula travada por longos minutos.
Nenhuma palavra ou olhar foi direcionado a mim.
O único som que podia ouvir era do motor rangendo perante as
suas aceleradas.
Mas não podia julgá-lo ou contrariar a sua atitude, já que eu era a
causa dela. Fui cruel nas palavras e destilei tanto rancor em suas costas que
nunca imaginava vê-lo tão fora de si.
Até o momento, nem um único olhar foi direcionado em minha
direção. É como se ele estivesse ignorando por completo a minha presença.
Sua mandíbula segue travada como se estivesse segurando a
respiração desde o momento em que saiu daquele banheiro. Seus olhos
estão vazios e apontados sem direção específica. Ele parece perdido nos
próprios pensamentos, mas não ousou abrir a boca desde o momento em
que chegamos até aqui.
Está imóvel no canto da cabana, recostado à parede com os
braços devidamente cruzados. Parece sereno e calmo, mas o conheço o
bastante para saber que nunca esteve tão irritado.
Hyuk está sentado no centro da cabana, seus olhos apontados para
a tela do seu computador apoiado sobre o chão, a tela refletia no seu par de
óculos sobre o nariz.
— Tem alguma coisa errada... É como se eles estivessem abrindo
caminho para nós, não estão fazendo o mínimo esforço para esconder o
código de acesso para as câmeras ou para o sistema. — Naten parece
preocupado, um de seus dedos coça o canto da boca em inquietação. — É
como o dia em que fomos até a casa de McCall, foi fácil demais acessar as
informações que precisamos, é estranho... — Ele suspira, afogando o rosto
em ambas as mãos.
Eu estou sentada ao lado de Lexie, ambas encolhidas em um
único colchonete estendido sobre o chão. Ela abraça o próprio corpo, parece
abalada, apesar de tê-la flagrado me encarando uma vez ou outra. Os fios
ondulados de seu cabelo escorrem no canto de seu rosto, enfeitando o seu
rosto oval.
— É fácil demais entrar nas câmeras daquela casa, mas esse é o
problema. Por que eles querem facilitar tanto para nós?
Encolhida na parede, arrasto os pés pelo colchonete até que possa
apoiar a minha cabeça nos meus joelhos.
— O que você descobriu? — Jason finalmente pergunta, sem
expressar nenhum tipo de emoção no seu tom de voz.
— Eles estão dando uma festa de gala na cidade ao lado.
Provavelmente Floyd e todos os demais compradores estão presentes lá, a
esta hora. — Hyuk diz, e finalmente posso ver o olhar de Jason voar para a
sua direção como uma criança olharia para um pedaço de doce. — Nicholas
Stanford, Brandon Smith e Joe Bolton também estão participando da
reunião.
Jason larga os braços ao lado do corpo, enquanto levanto uma das
sobrancelhas.
Joe Bolton. Eu conheço este nome.
"Calma, menina, Joe será gentil com você"
"Bolton, é a minha vez.”
Pisco algumas vezes enquanto afasto os flashs da cena que há
tanto tempo tenho tentado me esquecer. Os três homens eram cruéis e
impiedosos, mas apenas um deles agia como se eu o pertencesse. Joe
Bolton foi o único que teve o seu nome exposto, e mesmo que pudesse me
esquecer daquela informação, Naten a desencadearia neste momento, assim
como o fez.
Joe Bolton é o diabo na terra, não se importou com a dor que
causaria a mim, ele até gostava dos meus gritos implorando por socorro. Ele
se excitava com eles, porque dentre todos aqueles gritos, os seus
movimentos eram intensos e mais brutos como se ele pudesse desmontar o
meu corpo em um estalar de dedos. A risada amarga que ele soltou quando
olhou para o meu corpo mole contra aquela cama foi o suficiente para que
eu percebesse o quanto a sua alma era suja e impiedosa.
Ele gostou do que havia feito, e não se arrependia nem um pouco.
— Você disse Joe Bolton? — A minha voz sai, mas eu não
consigo definir muito bem o que sinto quando não consigo ouvi-la.
Naten olha para mim, o terror em seus olhos dura apenas dois
segundos. Parece que ele não faz ideia de que aquele nome poderia ser
reconhecido por mim, mas infelizmente, é mais do que apenas uma
identificação.
— Sim. Você o conhece? — Naten parece se esforçar para ser
cauteloso.
Engulo em seco quando baixo o olhar e sinto as minhas pálpebras
queimarem.
Lembrar-me de seu sorriso sujo ou de suas mãos frequentando
lugares em que não foi convidado, não é como conhecer Joe Bolton, é como
conhecer o próprio diabo.
Muitos acreditam que o diabo está sentado em seu trono
governando os demônios e enviando-os para fazer o trabalho sujo. Ele
mesmo o faz, e geralmente, está camuflado em pele de cordeiro para nos
levar para o fundo do poço assim como ele sempre esteve. Entretanto, no
meu caso, o diabo não precisou se esforçar para me convencer de que era
uma boa pessoa, ele teve prazer em mostrar a sua verdadeira face e destruir
tudo que havia de bom em mim. A porra do diabo não está governando o
inferno, ele está na terra, caminhando dentre os humanos para alimentar-se
de mais almas corrompidas.
A minha não foi o suficiente para saciar a sua fome.
E isso dói.
Não respondo a sua pergunta, tudo que eu faço é encolher as
minhas pernas e abraçá-las. O meu peito queima pela raiva de imaginá-lo
frequentando festas importantes como se fosse um homem de negócios
extremamente importante, mas que, nunca teve honra o suficiente para ser
nomeado um cara para tal. Todos estão lá, financeiramente estáveis, com a
grana que o meu corpo havia proporcionado a eles, enquanto eu ainda luto
para conseguir um pedaço de pão para manter meu corpo funcionando.
O psicológico abalado é apenas um bônus, o foco principal
sempre foi sustentar Josh e mantê-lo à salvo. Mas a vida é tão injusta, por
que pessoas ruins sempre estão no topo da cadeia alimentar, enquanto
aquelas que os colocaram onde estão, sofrem as consequências de terem
sido usadas?
— Vocês assistiram ao vídeo?
A pergunta vem de repente, Naten me encara com o semblante
mais neutro que pode, apesar de jurar ter visto uma sombra do que parece
ser pena exposta em seu olhar. Lá no fundo. Lexie fica inquieta ao meu
lado, ouço quando o farfalhar do colchonete se arrastando abaixo de nossos
corpos causa um ruído pela cabana, sinto quando uma de suas mãos acaricia
as minhas costas e entendo que o ato só pode ser uma confirmação.
Não direciono o meu olhar para Jason, não quero olhar em seus
olhos e enfrentar mais sentimentos do que posso lidar neste momento.
Estou envergonhada.
Me sinto suja.
— O vídeo não está mais na web, eu me certifiquei de que o link
fosse removido e incluí senhas indecifráveis para qualquer um que tente
acessá-lo em qualquer outro país. Você está segura, Aspen. — Naten diz,
oferecendo um sorriso fraco de canto.
Eu admiro a forma como Naten sempre parece me odiar quando
eu ataco o seu amigo, mas quando Jason não está incluído em nossa
conversa, ele sempre demonstra tratar a nossa relação como se fossemos
irmãos.
— Eu não sabia que ele tinha ido para a web. — Confesso, meio
incerta.
Naten suspira.
— Se você quer saber, nós não sabíamos da existência do vídeo
até poucos dias. Williams escondeu de mim porque sabia que eu faria
alguma coisa para matá-los. O vídeo estava fora da web até o momento
porque Louren deu um jeito de apagá-lo, mas não em definitivo. Agora eu o
fiz, então sim, ninguém pode acessá-lo sem que eu saiba.
Arqueio a sobrancelha.
— Por que Williams se preocuparia com eles?
— Ele é muito justo, gosta de ter as coisas feitas exatamente da
forma que ele acredita ser a mais viável. E o nosso método é oposto ao
dele... — Lexie diz ao meu lado.
Eu viro a cabeça, olhando em sua direção.
— Ele tem uma organização que defende o tráfico de mulheres e
não acha justo matar quem o pratica? — Levanto a questão. — Eu nunca
confiei nele, e não entendo como vocês o fazem quando sempre esteve
óbvio que ele não se importa com muitas das coisas que deveria.
Um riso abafado soa. Olho para o lado, vendo o sorriso
debochado de Jason no canto da boca quando finalmente levanto o olhar
para encará-lo.
— Acha que nós já não saberíamos se o Williams estivesse nos
traindo?
Encaro a frieza do seu olhar com toda igualdade, nós levantamos
as nossas barreiras com necessidade, dando limites para a nossa conexão.
Não há espaço para ela neste instante, só para o que sentimos: Raiva e
frustração.
— Para quem foi treinado para lidar com traidores, você confia
muito fácil nas pessoas. Esse é o seu erro.
Lexie pigarreia, tomando a cabana por sua tosse seca em seguida.
Naten me encara, ele não parece irritado pela forma como estou
tratando o seu amigo, seu olhar está fixo em minha direção, mas ele parece
distante. É como se ele estivesse aqui, mas os pensamentos voam para
longe.
— Por que acha isso? — Ele finalmente pergunta, afastando o seu
computador com uma das mãos quando ergue o olhar, despertando-se dos
devaneios.
Dou de ombros.
— Ele nunca me pareceu confiável. Sempre com todo aquele ar
de superioridade ditando o que vocês devem fazer. Ele nunca diz o que
vocês podem fazer, só diz que não é o momento ideal e que precisam ter
calma. Na época eu não percebia, mas olhando agora, por que nunca é o
momento certo? — Indago. — Parece desculpa de quem quer atrasar um
lado e adiantar o outro.
Lexie movimenta-se no colchonete, cruzando as suas pernas em
borboleta quando endireita a sua postura.
— Não. Tire isso da sua cabeça, é impossível. — Jason nega,
afundando as mãos nos bolsos até que tira de lá um maço de cigarro e o
leva aos lábios. — Williams fundou a academia, ele seria um idiota de jogar
tudo para o lixo.
Arqueio a sobrancelha.
— Pensei que você tivesse dito que a Revolução foi fundada por
uma família francesa. — Eu digo, lembrando-me vagamente da vez em que
ele me contou esta história há alguns anos.
Jason prende o cigarro entre os dentes, levando a chama do
isqueiro prateado até a ponta cor de avelã.
— A Revolução foi quem fundou a hierarquia que nós seguimos,
e ela continua exatamente onde foi fundada. A nossa academia nunca teve
um nome, mas foi a segunda base fundada. Hoje em dia tem mais delas
espalhadas por outros países. O que quero dizer, é que foi Williams quem
fundou a que estamos alojados.
Quando conversamos sobre isso, Jason não prolongou muito o
assunto. Eu pensava que talvez ele se sentisse desconfortável com tudo
aquilo, mas nunca perguntei diretamente como havia se envolvido com toda
aquela gente. É a primeira vez que ele fala uma verdade com tanta
naturalidade, eu não sabia se estava fazendo aquilo por estar com o sangue
quente, ou por ainda estar irritado com tudo que disse a ele no bar.
— Williams comanda todas elas?
Naten ri baixinho, coçando o canto de seus olhos com o indicador
e o polegar.
— Ele mal consegue dar conta de uma.
A academia ter sido fundada na França não é uma novidade para
mim, mas saber que há mais delas por cada canto do mundo, sim. Se A
Revolução é tão poderosa, por que um homem tão popular como Marcus
Floyd, ainda possui tantas riquezas em suas mãos? Com toda a vantagem
que eles possuem, por que ele ainda está vivo, fazendo festas de gala e
expondo meninas perdidas como se elas estivessem concordando com tudo
aquilo?
Tantas perguntas.
— E como alguém como ele chegou ao poder da academia?
Esticando as mãos para alcançar o seu computador e óculos,
Naten se levanta com ambos abaixo do braço.
— Não sabemos. O que sabemos é que ele tem medo do fundador
francês e do braço direito bizarro dele, então nós realmente esperamos que
você esteja errada, caso contrário, ele já pode ser considerado um homem
morto. — Ele diz, soltando um suspiro pesado. — Fim da aula, meninas.
— Não, não! Espera. — Me levanto rapidamente, tropeçando nos
meus próprios pés no caminho. — Quem é esse fundador francês? Por que
Williams teria medo dele?
Ele ri.
Naten continua a andar, deixando que a minha mente produza
uma resposta para a pergunta. Mas não posso, está longe da minha
capacidade.
— Vamos subir até a montanha, é o momento perfeito para
invadirmos e descobrir o que exatamente estão tramando. O máximo que
enfrentaremos será alguns guardas, todos estão ocupados demais naquela
festa. — Hyuk pontua.
— E depois? — Lexie pergunta quando se levanta e endireita a
postura ao meu lado.
Jason não diz mais nada. Vejo quando ele sai para fora da cabana
sem direcionar uma única palavra ou olhar para nenhum de nós. O ruído
alarmante que a batida da porta causa quando ele a bate, estremece o meu
coração e me faz perceber que, pela primeira vez, eu terei a minha
liberdade. Ele parece decidido a me deixar em paz, parece que finalmente
eu o machuquei o bastante.
— Depois nós vamos acabar com aquela porra de festa. — Ele
diz, por fim. Mas, gira sobre os calcanhares e alterna o seu olhar entre a
porta e eu, usando ambas as mãos para enfiar o seu computador em uma
mochila. — Podemos conversar sobre suas suspeitas, se você quiser, mas
faremos isso quando Jay não estiver por perto. É um assunto delicado.
O que ele quer dizer com delicado?
— Por quê?
Uma coisa é fato, Naten protege Jason com a sua vida,
independentemente de Jason ter sido horrível comigo, Hyuk está sempre ao
seu lado. Os dois se entendem bem.
— Williams tirou ele do purgatório, não acho que ele consiga
enxergá-lo como um vilão. Mas eu vou ouvir as suas teorias, e se forem
válidas, você terá a minha atenção.
Os meus lábios são curvados em um meio-sorriso de canto, por
um minuto, me lembro do tempo em que era bom conversar com alguém.
Ter um amigo, pessoas com quem contar. Ele está me dando um voto de
confiança, e como uma criancinha, imaginei como seria se o nosso grupo
voltasse a ser o mesmo.
Claro, é uma hipótese fora de cogitação. O líder do grupo e eu,
nos odiamos ainda mais do que antes.
É melhor assim.
Eu o agradeço visualmente enquanto lhe ofereço um meio-sorriso.
Tudo que ele faz é acenar em uma breve concordância quando joga a
mochila por cima do ombro, então sem dizer uma única palavra, sai pelo
mesmo caminho que Jason havia feito. O ambiente está tenso e
desconfortável, porque no segundo em que ele fecha a porta e desaparece da
cabana, resta apenas Lexie e eu.
Nossa discussão foi intensa e cruel. Eu disse coisas que não
deveria, e bem... Ela também. Mas a culpa está sobre mim, afinal, fui eu
quem deixei os meus assuntos internos interferirem na amizade que há
tempo tempo eu me culpava por ter perdido.
Agora ela está aqui bem na minha frente, e tudo que consigo fazer
é transformar tudo isso nele. Por que não posso fazer algo diferente?
— Se você quer saber, eu acredito em você — Ela finalmente
quebra o silêncio, estalando a sua língua no céu da boca. É uma mania
específica dela. — Williams era um cara legal no início, eu sempre gostei
da forma como ele era super-protetor com os meninos. Mas agora ele está
tão... — Abre e fecha a boca, buscando pelas palavras corretas.
— Frio? — Sugiro quando viro a cabeça para encará-la.
Ela acena, fechando a boca por completo.
— É, frio é uma boa definição.
Balanço a cabeça em concordância, temendo que quando abra a
boca, palavras erradas saiam dela. Não quero magoá-la mais do que já fiz.
Ela teve razão, mais cedo. Lexie levou dois tiros por mim, e sou egoísta o
suficiente para transformar o seu feito em algo sobre ele.
Ela merece mais do que isso.
— Acho que todos nós estamos um pouco frios, no fim das contas
— Balanço os ombros. — A vida estragou quem deveríamos ter sido.
Lexie sorri fraco, seus olhos brilham perante a pouca iluminação
que temos aqui. Ela ainda é a mesma pessoa doce e gentil, mesmo que
tenha enfrentado tantas merdas ao longo dos anos. Eu a invejo, porque
assim como Jason, eu também sou uma bomba-relógio. Sempre machuco
todos que se aproximam de mim, mesmo que não seja intencional.
— Não, ainda somos os mesmos — Ela diz, avançando alguns
passos em direção ao colchonete posicionado na lateral oposta da cabana,
onde está uma das malas que devem ser suas. — Só estamos um pouco
perdidos. Encontrar a si mesmo é algo muito difícil, mas não é impossível.
Inclino o meu corpo para acompanhar melhor os seus passos
quando Lexie passa cada alça de sua mala pelos braços e balança o corpo,
ajustando-a em suas costas.
— Como você consegue?
Lexie me encara por baixo dos cílios, eu posso ver as íris
brilharem em minha direção.
— O que?
— Continuar sendo você mesmo depois de... — Engulo as
palavras, sem saber como definir a sua situação.
Lexie caminha em minha direção enquanto um sorriso brota em
seus lábios, que pela primeira vez em muitos dias, está livre do gloss. Seus
fios encaracolados são tão suaves que a fazem parecer com o ser mais puro
que já pisou nesta terra.
— Nem tudo é como parece, eu também passei por essa fase
explosiva quando tentava superar todos os momentos que eram revividos na
minha cabeça, As. Eu entendo como você se sente, é por isso que não me
sinto no direito de ficar irritada quando você explode ou me insulta. Já me
senti como você. — Lexie leva uma das mãos ao meu antebraço, arrastando
os dedos pela jaqueta lentamente, como se estivesse tentando me
tranquilizar. — Sinto falta da nossa relação.
Lexie sorri sem mostrar os dentes quando recolhe a sua mão de
volta para si e passa por mim lentamente, seus passos são cautelosos e
serenos, eu não preciso olhar para trás para saber que ela está saindo por
aquela porta.
Meus olhos estão fixos em algum ponto específico do chão, eu
sinto o meu coração bater contra o meu peito com intensidade e meus
órgãos internos latejarem pela necessidade de relaxá-los.
Estou me sentindo a pior pessoa do mundo por ter sido tão cruel
com ela, por ter descarregado a minha mágoa na única pessoa que parece
me amar com todos os meus defeitos incluídos no pacote. Lexie é tão
compreensível e amável, que me pergunto em que momento da minha vida
passei a merecer alguém como ela.
Então, quando a porta bate contra a madeira e sinto o peso da
solidão me assolar, é como se as minhas barreiras estivessem finalmente
despencando. A máscara cai e o meu mundo desaba, porque é aqui, perante
o cômodo solitário de uma cabana no meio de uma montanha, com uma
única lâmpada amarela iluminando o lugar e fazendo dele mais
aconchegante, que me sinto impotente. Mas acima de tudo, corajosa.
MONTE WHITNEY - 2022
AGORA

— Temos um plano? — Lexie pergunta quando alcançamos o topo


da montanha. Estamos todos bem agasalhados perante a tempestade fria de
neve que nos atinge, no entanto, o frio é a menor de nossas preocupações
quando estamos diante da cabana de Jimmy Mccall.
— Sim, o plano é entrar e matar qualquer coisa que se mova. —
Jason diz ríspido, mas quando Naten bufa um riso perante o seu comentário,
soube que ele está brincando. Ou pensamos que sim.
Lexie revira os olhos, caminhando até que está perante nós três,
como se estivesse tomando as rédeas e sendo a capitã do grupo. Naten e eu
trocamos um olhar desconfiado quando a morena cruza os braços, sua
silhueta mal é vista por toda a escuridão ao nosso redor. O que facilita a
nossa capacidade de enxergá-la, são as luzes amarelas que vem direto da
cabana além dos galhos secos onde estamos escondidos.
— Ok, é melhor nós nos separarmos — Ela diz, erguendo o
queixo como se estivesse se esforçando para emanar autoridade. — Não
sabemos o que espera por nós lá dentro, entrar naquela cabana em grupo
seria suicídio. Acho que é melhor aproveitar a oportunidade de que todos
estão ocupados na maldita festa e recolher o máximo de informações que
conseguirmos.
Naten afirma em positivo quando coça a ponta do queixo com os
dedos cobertos por um par de luvas de couro.
— É o mais viável, de fato.
Apesar da pouca iluminação, não é difícil enxergar o sorriso largo
que cresce nos lábios de Lexie quando ela junta ambas as palmas e
conectando os indicadores, aponta diretamente para Naten.
— Ótimo, você vem comigo.
Viro a cabeça, encarando o maxilar contornado de Jason, que
continua inquieto, ao meu lado. Seus olhos estão fixos em Lexie, mas sua
expressão é tão fria que a missão de o interpretar se torna impossível. Ele
está sendo mais frio do que eu jamais pude testemunhar e, honestamente,
essa sua versão me preocupa.
Ele parece me odiar tanto quando eu o odiei nos últimos anos, e
por um único segundo, me sinto magoada por ele não ter esboçado o
mínimo de felicidade ao notar que faríamos esta missão juntos.
No entanto, não importa. É melhor assim.
Limpo a garganta, tornando a encarar Lexie que ainda tem os
olhos fixos nos meus. Seu semblante é tranquilo, apesar do sorriso
significativo que mantém no canto dos lábios. Então eu finalmente percebo.
Isso não passa de uma armação.
— Você disse que não sabemos o que vamos encontrar lá dentro,
e é verdade — Pontuo, usando uma das mãos para endireitar as alças da
mochila sobre as minhas costas. — É por isso que devemos separar as
duplas de acordo com a lógica. Você e eu somos uma boa dupla, posso ser o
cérebro enquanto você é a força. O mesmo acontece com Naten e Jason. É o
mais inteligente a se fazer.
Lexie torce os lábios, arqueando a sobrancelha em discordância.
— Por que eu não posso ser o cérebro?
Ela está odiando a minha ousadia de ir contra as suas armações.
Posso ver os seus olhos queimarem em desaprovação, mas não vou dar para
trás agora. O foco no momento não é resolver questões impossíveis com o
seu irmão, logo, passar tempo ao seu lado é inviável. Não há a mínima
necessidade.
— Você pode ser o que quiser, Lexie — Jason finalmente
murmura. — Só vamos acabar logo com isso.
Viro a cabeça a tempo de vê-lo ajustar a sua arma no cós de sua
calça por baixo da jaqueta. Suas mãos também estão cobertas de luvas
assim como as minhas e as de Lexie, é uma precaução para que não
deixemos rastros por onde colocarmos as mãos.
Seu olhar encontra o meu por um milésimo de segundo quando
passa por mim com rapidez, deixando o rastro de seu perfume para trás.
Jason joga a alça de sua mochila de suprimentos por cima do ombro e
respira fundo antes de desviar os nossos olhares e enfiar o corpo entre os
galhos secos, desaparecendo de nossa visão enquanto caminha
impacientemente até a cabana.
Uma linha se forma no meio de minhas sobrancelhas enquanto
observo a sua silhueta desaparecer entre os galhos. Minha garganta está
seca e o sentimento negativo quanto a toda aquela sensação, ainda traz um
incômodo incomum dentro de mim. Eu não consigo entender o que
exatamente ela significa, mas é como ter uma bola entalada na garganta.
— Quanto mal humor! — Ela murmura, erguendo ambas as mãos
em sinal de rendição.
Finalmente desvio os olhos da trilha sombria a qual ele seguiu e
direciono a minha atenção à garota que inclina o seu corpo para alcançar a
sua bolsa atirada contra a neve.
— Belo plano — Naten zomba, soltando uma risada rouca ao
puxar uma mecha de seu cabelo. — Agora sabemos porque você não é o
cérebro.
Lexie ergue o seu corpo tão rápido que preciso piscar duas vezes
para conseguir enxergar o exato momento em que ela levanta uma das mãos
para lhe dar um soco diretamente na cara, mas Naten desvia e com um
sorriso no canto da boca, segue pelo mesmo caminho que Jason trilhou.
— Argh! — Ela resmunga, firmando a sola de seu sapato contra a
neve, tão fundo que o contorno é aparente ao seu redor. — Imbecil.
Arqueio a sobrancelha, desconfiada.
— O que foi isso?
Levando ambas as mãos para as alças de sua mochila, Lexie
caminha pausadamente até a trilha entre os galhos, seu corpo parece tão
pesado com todas aquelas jaquetas que ela usa, que seus braços flutuam ao
lado de seu corpo.
— Isso o quê?
Sem enxergar outra alternativa, apresso o passo para acompanhá-
la, devidamente curiosa para entender por que ela parece estar fugindo
dessa conversa.
— Essa interação gritando "tensão sexual" — Bufo um riso,
olhando para o seu rosto de perfil.
Lexie torce os lábios, visivelmente incomodada com o assunto.
— Você é louca. Naten é um bom amigo, mas é só isso. — Ela
usa uma das mãos para afastar os galhos que dificultam os seus passos.
Faço exatamente o mesmo do meu lado direito enquanto alguns flocos de
neve presos aos galhos umedecem a minha luva.
— Está me dizendo que vocês nunca tiveram qualquer relação
que amigos não teriam? — Pergunto, soando provocativa.
Lexie olha para mim de soslaio, seus cílios batem contra a pele
abaixo dos olhos repetidas vezes, e agora, ela não pode mentir para mim.
Os olhos não mentem.
— Não, estou dizendo que somos apenas amigos.
Solto um riso anasalado.
— Ele sempre cuidou bem de você. Lembro perfeitamente de
como ele parecia odiar todas as pessoas que viviam ao redor dele, mas os
olhos pequenos sempre brilhavam quando você aparecia. — Digo,
lembrando-me de quando eu assistia aos seus treinos.
Naten sempre pareceu fascinado por Lexie, eu só não entendia
porque apesar de ela também parecer fascinada por ele, ambos tratavam um
ao outro como meros seres insignificantes.
Lexie sempre teve um coração enorme, não consigo imaginar o
que o fez se tornar tão minúsculo.
— Você se lembra da Cassie? — A pergunta é inesperada.
Pisco algumas vezes enquanto continuo a afastar os galhos do
caminho. As marcas de botas estão pisoteadas contra toda aquela neve, elas
guiam o nosso caminho.
— Cassie? — Bufo um riso, lembrando-me vagamente de nossa
história mal resolvida. — Sim, eu me lembro.
Cassie foi a primeira mulher que enxerguei como rival. Ela queria
o que era meu, e não tornei a sua vida fácil enquanto provava que ela não o
teria.
— Naten trepou com ela. — Sua voz é carregada de rancor e…
Mágoa?
Arregalo os olhos quando viro a cabeça para encará-la, sem
acreditar no que estou ouvindo. Naten? O Naten Hyuk que eu conheço
havia dormido com Cassie?
— O quê? — Pergunto, assustada. — O Naten?
Lexie abana a cabeça, sem demonstrar muito do que sente no
momento, mas a conheço o suficiente para notar os olhos fundos e a
expressão tão neutra que usa como algum tipo de máscara para tapar as suas
feridas. Ela acha que deve ser forte a todo instante, mas está absurdamente
errada.
— Foi logo depois da morte da mãe dele. Quando ele recebeu a
notícia, estávamos em um treino para que recuperasse os meus movimentos.
A minha costela ainda estava passando pela fase de cicatrização e ainda era
difícil erguer o braço para aplicar algum golpe, então ele estava me
ajudando. — Seus olhos estão fixos no chão enquanto fala, e a ouço com
toda a minha atenção. — Eu vi quando ele desabou, eu o segurei nos meus
braços. Nós não tínhamos nada, mas ele sabia que eu estava apaixonada por
ele. Deixei que chorasse no meu colo e o acalmei, porque ele tinha acabado
de perder o melhor amigo. Jason estava na prisão e a academia estava
desmoronando, o seu irmão não dava a mínima para ele, mas eu estava ali
para ele.
— E o que aconteceu?
Lexie suspira.
— Depois de passar horas desabafando sobre a maneira como se
sentia, Naten foi para o quarto e disse que precisava ficar sozinho para
colocar a cabeça no lugar. Eu entendi, afinal, me sentia da mesma maneira.
Tinha perdido você e o meu irmão. — Sinto o seu olhar queimar em meu
rosto, mas continuo olhando para as pegadas na neve. — No meio da noite,
fui ao seu quarto porque pensei que ele precisaria de apoio emocional. Eu
não conseguia dormir de jeito nenhum, só conseguia pensar nele e na forma
como se sentia, mas quando abri a porta do quarto e vi todos os pacotes de
cocaína jogados pelo chão e os cabelos vermelhos espalhados pelo colchão,
soube que não se preocupava tanto comigo quanto me preocupava com ele.
A forma monótona como Lexie solta uma risada quando fecha a
boca, aperta o meu coração de forma que sinta como se fosse eu no seu
lugar. A mágoa e a decepção existem, e nós não podemos controlá-las.
No fim, todos somos pobres criaturas com os corações partidos e
perdidos em algum lugar do mundo.
— Eu sinto muito — Sussurro quando ergo o olhar até o seu. —
Eu não fazia ideia…
Lexie sorri fraco quando chegamos ao fim da trilha, ambas
cessamos o passo de frente para a cabana mal iluminada, e seus olhos estão
tão abatidos que tudo que quero fazer no momento é abraçá-la e pedir
perdão por todas as coisas horríveis que tinha dito desde o momento em que
nos reencontramos.
Mas isso não é o suficiente.
Eu me sinto um monstro infernal por tê-la culpado por tantas
merdas que não merecia.
Quanto à Cassie, espero que essa vadia morra.
— Você não tinha como saber — Lexie diz — Não se preocupe,
já faz muito tempo e nós somos amigos, mas não consigo perdoar o que ele
fez. Hyuk que se foda.
Rio com seu comentário.
— É, ele que se foda.
Lexie sorri, puxando-me pelo antebraço quando joga a cabeça em
direção à cabana localizada no centro de um bosque abandonado.
— Pronta?
Concordo.
— Mais do que nunca.
Ela ri baixinho quando, enfim, caminhamos juntas em direção à
entrada da cabana. Quando chegamos à superfície da escadaria de madeira
que leva ao hall de entrada, Lexie me puxa pelo braço e me leva ao chão
junto a ela, agachando-se de forma que o nosso corpo não seja visto para
quem estivesse além das portas de vidro além das escadas.
Entendo de imediato o seu plano e sigo todos os seus passos.
Lexie arrasta os pés pela neve, ambas caminhamos agachadas pela lateral
da cabana até alcançarmos o que parece ser os fundos.
As luzes nesta parte da cabana são ainda mais escassas do que a
entrada. Tudo que ilumina o local é uma arandela colonial de parede ao lado
da porta de alumínio que leva para a parte interior da cabana. A luz é fraca e
limitada, mas de qualquer forma, terá que servir.
— Acho que vou tentar entrar pelo hall, só como garantia de que
se estiver alguém esperando por nós do lado de dentro, uma de nós consiga
fugir. — Ela sussurra, jogando a cabeça em direção à porta de metal. —
Acha que consegue entrar e me encontrar do outro lado?
Sinto as minhas pernas tremerem em pavor, mas afirmo com a
cabeça.
— Perfeito. Seja cautelosa e tenha cuidado com as câmeras, evite
ser vista. — Ela avisa quando arrasta os pés pela neve, recuando alguns
passos.
— Sei me cuidar. E você, vai ficar bem? — Pergunto quando a
vejo se afastar o suficiente para despertar um fio de preocupação em meu
peito.
Lexie abre um sorriso perverso quando enfia uma das mãos por
baixo de suas jaquetas, especificamente na região de seus seios, e tira de lá
o que parece ser uma desert eagle.
— Claro. Vou meter bala no primeiro cuzão que entrar no meu
caminho. — Ela zomba, balançando o cano da arma pelo ar quando gira
sobre os calcanhares.
Bufo um riso perante a cena ridícula.
Contemplo a cena de sua silhueta desaparecendo do meu campo
de visão, orgulhosa por vê-la tão confiante e decidida. Os tempos realmente
haviam mudado, e nós somos pessoas completamente diferentes da noite
em que trocamos as primeiras palavras. O que tinha acontecido com aquelas
garotinhas? Não sabemos, mas haviam sido substituídas por versões mais
fortes e corajosas.
Versões bem mais interessantes, diga-se de passagem.
Quando Lexie desaparece por completo, apresso-me em me
aproximar da porta de alumínio. Subo os dois degraus que levam até ela,
usando de todo o meu autocontrole para que meus pés não façam tanto
barulho contra a madeira abaixo das botas.
Mordo os lábios com força quando finalmente, perante a porta,
levo a mão até a maçaneta prateada e varro os olhos pelo telhado,
verificando se não há câmeras apontadas diretamente para onde estou.
Olho para o canto superior onde alguns flocos de neve caem e
derretem, formando uma goteira contra o chão de madeira. E logo ali, no
canto mais escondido onde os olhos nunca batem, está ela.
A maldita câmera.
A luz incandescente vermelha pisca em minha direção como um
claro sinal de que estou sendo filmada.
Penso em mil maneiras de tentar alcançá-la e quebrar o vidro ou
arrancar os fios, mas quando passo dois minutos a encarando sem conseguir
decidir o que fazer, é quando a luz se apaga e todas as luzes que refletiam
ao seu redor, desaparecem. É como se, de repente, ela tivesse sido
desligada.
Não tenho tempo para processar o que acontece, porque no
segundo em que uma linha se forma no meio das minhas sobrancelhas em
confusão, a porta de alumínio é aberta.
O ruído da trava sendo destrancada soa, e largo a maçaneta no
mesmo instante, sem entender como tudo aconteceu.
Baixo o olhar, levando a ponta de um dos pés até o batente,
impedindo que a porta feche com a brisa forte do vento.
É quando, erguendo o olhar, noto o visor repleto de numerações
de zero a nove, conectados à trava da porta. Os fios vermelhos e azuis estão
entrelaçados por toda a lateral do batente, trilhando um caminho até a tela
onde presumo ser onde os caras digitam o código para ter acesso à entrada.
Meus lábios erguem em um meio-sorriso quando finalmente
entendo o que está acontecendo.
Hyuk.
Ele deve ter feito isso. Deve ter liberado as portas e desligado as
câmeras para facilitar a nossa invasão sem que desconfiem de algo fora do
lugar quando voltarem.
Ele pode ter sido um cuzão com Lexie, mas ainda é o cérebro
perfeito para qualquer missão. Naten é insano em tudo que faz.
Sem esperar por mais algum sinal, agarro a maçaneta da porta e a
abro o suficiente para enfiar a minha cabeça contra uma fresta, varrendo o
ambiente com o olhar antes de enfiar-me por completo. Por reflexo, levo
uma das mãos ao cós da minha jeans onde está a arma e a puxo para a frente
do corpo, entrando no lugar quando me asseguro de que a barra está limpa.
Com a arma presa entre os dedos ao lado do corpo, fecho a porta
de alumínio às minhas costas e analiso o lugar.
Sofás e poltronas estão espalhados por cada canto da sala. Uma
mesa circular decorada com panos rendados e diversos tipos de bebidas
alcoólicas em garrafas vintage ao lado de copos de uísque enfeitam o lugar.
As paredes são feitas à base de tijolos maciços, quadros de diversos
filósofos como Aristóteles e Sócrates, logo abaixo, frases impactantes e
reflexivas de cada um deles eram escritas em destaque, como se de fato,
alguém a visse todos os dias.
Reviro os olhos com a cena. Quanta hipocrisia.
A sala parece ser utilizada para reuniões de negócios, visto que
todas aquelas poltronas possuem estofado de veludo e são organizadas em
formato circular ao redor da mesa de centro. O cinzeiro apoiado na lateral
daquela mesa, possui um charuto apagado sobre ele.
Olho ao redor, me dando conta de que estou literalmente no lugar
mais importante que deve haver em toda esta cabana, isso explica a trava
eletrônica.
Sem delongas, arrasto os pés pela madeira abaixo e caminho
rapidamente até às prateleiras rentes à parede. Livros e dezenas de
papeladas a enfeitam em ordem alfabética.
Passo os dedos por diversas daquelas pastas, a ponta deles treme
enquanto meus olhos focam diretamente nos nomes escritos em suas
laterais, como algum tipo de identificação.
Nomes femininos.
Morgan Leblon - Compartimento C
Luna Mitch Blair - Compartimento ?
Marina Pensyal - Compartimento B
Pisco quando capturo a pasta de Luna Mitch Blair, ela é a única
que não possui um compartimento. Floyd sempre gostava de nomear as
suas prisioneiras por compartimento. Aquelas que não deveriam estar aqui,
são chamadas de Compartimento A, porque são as principais fontes de
dinheiro e precisam ter todo o cuidado para não serem expostas. Aquelas
que são vistas como prostitutas da Luxury e fazem parte de toda a porcaria,
servindo como diversão para os homens dali, são chamadas de
Compartimento B.
Compartimento C são aquelas que estão no processo de
adaptação. Floyd enche as suas cabeças de mentiras esfarrapadas sobre o
quanto suas vidas financeiras vão alavancar se trabalharem para a Luxury.
Então, quando menos esperam, ele as engole. Ninguém que entra para a
Luxury, sai dela. É um eterno ciclo vicioso.
No entanto, Luna Mitch Blair é como um fantasma em toda essa
bagunça. Por quê?
Floyd não permitiria que uma de suas preciosas fontes de grana
fossem garotas sem identificação. Isso significaria que elas não existem
dentro de toda essa organização, e definitivamente, Marcus Floyd não
permitiria.
Quem é você, Luna?
Mantenho a pasta entre a minha mão, apoiando a arma sobre a
prateleira para conseguir folhear as páginas sem dificuldade. O som áspero
das folhas envelhecidas soam entre os meus dedos quando avanço algumas
páginas, varrendo os olhos pelas milhares de fotografias grampeadas no
topo de cada uma delas com o auxílio de um clips.
Contendo a respiração, observo as fotografias fixadas nas
páginas. Observo a imagem da garota ruiva, as bochechas coradas e repletas
de sardinhas enfeitam a sua maçã. Os lábios rosados e pequenos, curvados
em um sorriso amoroso. O cabelo está solto sobre os ombros e ela usa um
vestido florido em seu corpo, os ombros são caídos e as flores vibram em
um tom rosado e alaranjado. A garota não parece ter menos do que a idade
de Josh.
Abaixo das fotos, todas as informações da menina são descritas
em fileiras; sua idade, altura, país de origem e informações sobre os seus
genitores estão logo abaixo. No entanto, todas as informações sobre os seus
pais ou irmãos estão riscadas com algum tipo de tinta, impedindo que eu
leia os nomes de seus familiares. Definitivamente, é como se eles não
existissem.
Arqueando a sobrancelha e devidamente curiosa para descobrir a
origem da falta de informações e de um compartimento, inverto a posição
dos dedos para que possa folhear as páginas e ir a fundo em tudo que leio,
no entanto, quando escorrego os dedos pela página áspera, o som do trinco
da porta de entrada da sala soa, indicando que além da porta às minhas
costas, outra também foi aberta.
Eu só não sei se o ato também é obra de Hyuk, e honestamente,
espero mesmo que sim.
Por impulso, largo a ficha sobre os livros enfileirados nas
prateleiras e alcanço a minha arma. Prendo-a entre os meus dedos e levo o
indicador até o gatilho quando, usando o polegar, destravo o pino e a aponto
diretamente para a porta, esperando até que seja aberta.
Sinto as batidas do meu coração acelerar quando o eco apavorante
da porta sendo aberta soa no pequeno cômodo, como se estivesse sendo
empurrada da maneira mais lenta e agonizante. O bolo entalado na minha
garganta custa ser engolido, mas quando o faço, pressiono o indicador
contra o gatilho, prestes a atirar em quem quer que esteja entrando no local.
Quase não respiro quando ela finalmente é aberta por completo e
outra arma é apontada para a minha direção. Jason está perante ela,
apontando a sua glock diretamente para a minha cabeça, seus olhos
queimam e parecem tão profundos que por um segundo, eu realmente
acredito que ele vá atirar em mim.
Solto a respiração em alívio quando seus olhos reconhecem a
minha figura e seu semblante sombrio e vazio, é substituído pela calmaria.
Ele parece tão aliviado quanto eu.
— Inferno! — Arfo, abaixando a arma. — Eu podia ter atirado
em você.
Ele não reage quando fecha a porta atrás de si e abaixa o braço.
— Pensei que fosse o que você queria fazer. — Diz, seus olhos
capturam os meus por longos segundos antes de desviá-lo.
— Ainda quero. — Corrijo, revirando os olhos no processo. —
Prometo que vou fazer isso quando você decidir abrir a boca e responder
todas as minhas perguntas.
Jason suspira, como se estivesse farto do meu comportamento.
— Onde está a sua dupla?
Dou de ombros conforme ouço os seus passos aproximando-se de
mim. Torno a agarrar a ficha entre a minha palma e volto a folhear as
páginas, buscando por mais informações sobre Luna.
— Nós nos separamos. — Não olho para ele ao dizer. —
Encontrei os arquivos da Luxury, eles continuam vendendo corpos
femininos como se não valessem nada. — Abano a cabeça, puxando outras
fichas das demais meninas. — Três milhões de dólares por venda. Isso não
é como se eles estivessem apenas vendendo o corpo para a internet e lucrar
em cima da exposição, eles estão vendendo as meninas para os
compradores. — Os números rotulados como "preço", são bem visíveis e
fáceis de se entender. Isso realmente está acontecendo. Quão longe eles
podem ir?
O seu corpo se aproxima, posso sentir a sua respiração pesada
bater contra a minha mandíbula quando Jason ergue uma das mãos e tira os
papéis da minha mão de forma invasiva, levando-os a altura dos olhos.
Viro a cabeça, olhando diretamente para o seu rosto de perfil
completamente concentrado na dúzia de papéis.
— São crianças. — Ele resmunga mais para si mesmo do que
para mim. — Crianças. — Ele trava os dentes com força, sua voz é grave e
imparcial.
Aceno.
— Não consigo imaginar o que elas estão sentindo, mas sei que
não podemos deixar que isso continue. — Sussurro, meu peito dói por
lembrar-me de como é a sensação de ter a minha vida roubada.
Sufocante.
Tão doloroso.
— Todas elas vão estar livres em breve. Já deixei que isso se
estendesse por tempo demais. — Jason entrega-me as fichas com cuidado,
sinto o seu olhar queimar em meu rosto. — Pegue tudo que conseguir.
Ele parece decepcionado consigo mesmo, parece sentir dor por ler
tudo o que há naqueles papéis. E principalmente, eu vejo o quanto se culpa.
O quanto lhe parte o coração, mesmo que seu semblante físico seja duro
demais para deixar transparecer.
Olho para o lado, vendo o seu rosto tão contornado e visivelmente
impaciente. Jason coça os lábios com a palma de sua mão e não faz
nenhuma cerimônia quando dá as costas para mim e caminha
apressadamente em direção à porta de madeira, seus passos são frios e
intensos, como se estivesse tão irritado que não possa controlar o peso que
investe nos pés.
— Por quê? — Ouso perguntar.
Ele segura a arma entre os dedos antes de enfiá-la no suporte de
sua jeans que parece ser feito especialmente para aquela função. Sua mão
agarra a maçaneta entre a sua palma, ele a aperta com tanta força que a
silhueta redonda do suporte desaparece perante todo o tamanho de sua mão.
Engulo em seco quando os seus olhos fundos encontram os meus,
eu nunca testemunhei Jason tão fora de si.
Vejo o fundo de seus olhos brilharem, vejo o quanto lhe dói. Vejo
seus pedaços quebrando-se ainda mais dentro de si, mas como o mais
verdadeiro e cru de meu reflexo, a frieza ainda é uma manta protetora que
se infiltra em seu semblante; embora o mundo por dentro esteja uma
completa bagunça.
— A menos que você queira virar cinzas, pegue o que conseguir e
volte para a floresta. — Sua voz é fria e rude. — Tudo vai queimar. Esse
será o meu aviso de que estamos chegando.
Encaro a sua silhueta desaparecer porta afora, sem descobrir o
que realmente possui a minha atenção; Jason fora de si, ou sua tamanha
insistência em dar àqueles que machucaram a todos nós, um fim tão
deplorável quanto os seus feitos em vida?
MONTE WHITNEY - 2022
AGORA

Tudo que eu vejo é fogo. Sangue. Destruição.


Ele continua me subestimando. Continua agindo como se eu
ainda fosse a porra do moleque que tremeu as pernas com a arma apontada
para a sua cabeça. Ele acha mesmo que hesitarei outra vez?
Quão fraco ele acha que eu sou?
Três anos em uma solitária, tempo o suficiente para planejar
formas mais deploráveis de esquartejá-lo e tirar esse maldito peso de
minhas costas. Mas ele não faz ideia dos planos que preparei, e só saberá
quando eu puser os meus olhos nele. Pior será quando eu puser as minhas
mãos.
Marcus Floyd não faz ideia do monstro que colocou no mundo.
Tenho certeza que pensou em todos os detalhes, exceto em como faria para
me apagar de seu caminho, porque eu não o farei.
— Onde você está? — Aciono a escuta presa ao lóbulo da minha
orelha, um aparelho que Hyuk programou para nossas missões.
O silêncio reina por cerca de cinco segundos antes que o som
pesado de sua respiração soe do outro lado.
— Pare aí — Avisa de maneira atrapalhada, quase em um
sussurro.
Levo os dedos até a escuta, pressionando-a contra a minha orelha
para que possa ouvi-lo com clareza.
— O quê?
— Mandei parar de andar, porra. — Sua voz explode, desta vez,
com clareza o suficiente para que eu sinta vontade de atirar aquela escuta
para longe, devido à altura. — Tem um cara à sua esquerda.
Torço os lábios e viro o pescoço de um lado para o outro,
relaxando os meus músculos tensos pra caralho quando puxo a minha arma
presa ao suporte do jeans e encosto-me à parede, olhando para o próximo
corredor com cuidado, apenas para certificar-me de quantos guardas terei de
enfrentar.
— Não tenho tempo para brincar de tiro ao alvo, Hyuk. Incendiar
a cabana e deixá-los queimar me poupará um tempo que ficarei feliz em
economizar.
Ouço a sua risada abafada do outro lado, mas não prolongo a
conversa. Eu tenho outros planos para esta noite, e nenhuma delas inclui
gastar o meu tempo com meros guardas que trabalharam por um curto
período de tempo para uma organização criminosa, a fim de ganhar um
salário que não colocaria uma dúzia de pães em sua mesa. Estarei fazendo
um favor em deixá-los queimar, a vida após a morte é o suficiente para
repensarem o quão longe poderiam ter ido em suas trajetórias, se por algum
acaso, tivessem pensado em terem sido bons sujeitos.
— Sabe que eles são tão culpados quanto aqueles que estão
naquela festa, sim?
Dou meia volta, caminhando entre o corredor luxuoso com piso
de madeira e paredes extremamente brancas, o tapete vermelho aveludado
com bordas douradas é pisoteados pelos meus pés sujos de neve, o lustre
que deve valer milhares de dólares brilha sobre a minha cabeça, e eu não
gosto de pensar de onde tinham tirado toda aquela grana. Pensar na resposta
faz o meu sangue entrar em combustão.
— Tenho certeza de que terão tempo o suficiente para pensar em
suas más escolhas enquanto o fogo não os alcança.
Ser um Floyd despertou o meu lado mais sombrio. E,
sinceramente, no lugar de toda essa gente, eu teria pavor de entrar no
caminho de uma besta procurando por outra. A guerra foi iniciada há três
anos, quando ele se esqueceu que eu carrego os mesmos traços sanguíneos
sujos que ele.
Apenas não o uso como gostaria que eu o fizesse.
E esse é um dos seus piores pesadelos, tenho certeza de que sim.
— Sabe que até o fim dessa guerra, apenas um de vocês sairá
vivo, não sabe? — Sua voz soa preocupada do outro da linha, e em
resposta, travo o maxilar com tanta força que não consigo sentir os meus
dentes.
— Nós dois sabemos que eu não pretendo falhar outra vez.
Ouço o seu riso do outro lado, e então deduzo que Naten saiba
exatamente do que estou falando. Ele não está disposto a abandonar essa
missão tanto quanto eu, e está óbvio que desistir não é uma opção. O
mundo está prestes a descobrir o tipo de gente que colocam na porra do
poder, e se para isso eu precisar destruir o meu futuro e arruinar uma vida
que nunca acreditei que pudesse ter, ótimo, eu estou bem com isso.
— É disso que eu estou falando. — Ele ri, e o soar de seus dedos
ágeis movimentando-se pelas teclas de seu computador soa do outro lado.
— Vamos ver… Ótimo, há um porão não muito longe de onde você está
agora. Não consigo acesso às câmeras, algo está bloqueando o meu acesso,
mas é possível que seja lá o que tenha naquele lugar, tem alguma
importância.
Uno as sobrancelhas quando chego ao fim do corredor e cesso o
passo contra a parede, olhando de um lado para o outro em busca de alguma
movimentação. O lugar é importante para a Luxury, então, por que porra ele
está tão vazio? Qual é a pegadinha?
— Você sempre tem acesso a tudo, Hyuk, qual é o problema? —
Deixo explícito a minha desconfiança.
Algo me cheira mal, e o silêncio não me agrada. Não nestas
circunstâncias.
— A quase tudo, aparentemente. — O suspiro que acompanha as
teclas barulhentas de seu computador, me incomoda profundamente. —
Você perdeu muitos episódios, Jay, o hacker deles é tão bom quanto eu.
Desconfortável àquele assunto, pressiono os dedos contra o metal
frio da minha pistola e estalo o pescoço, relaxando-o de um lado para o
outro enquanto o silêncio perturbador brinca com a minha cabeça. Ele está
certo, eu estou atrasado em milhares de pontos nesta missão e odeio este
fato, no entanto, nada me incomoda mais do que estar a um passo atrás da
Luxury.
— Você está me dizendo que passaram-se anos e ainda não
descobriu quem é o cuzão que fode com a gente? — Encosto o meu corpo
contra a parede, uma das mãos brincando com o conector em meu ouvido.
— O que estou dizendo é que ele usa técnicas opostas às minhas.
O que é estranho, porque nenhuma delas deveria ser indecifrável. Ao
menos, não para mim.
Desencostando-me da parede, ultrapasso o corredor com
velocidade, procurando por alguma porta que me leve direto ao porão. O
corredor é sombrio, apesar da decoração luxuosa e extremamente vintage.
Nada parece ter sido criado com o intuito de armazenar milhares de
informações sobre tráfico de mulheres.
A aparência física do lugar é como se fosse uma cabana comum e
familiar.
— Nada é indecifrável para você. Talvez esteja apenas
procurando no lugar errado.
O silêncio ensurdecedor ocupa a ligação, e eu percebo que Hyuk
está ocupado organizando as informações em sua cabeça. Fico em silêncio,
deixando-o pensar, enquanto abro porta por porta no corredor, deparando-
me com diversos quartos e armazéns vazios.
— Sabe de uma coisa? — De repente ele suspira, as teclas
afundam sob o seu toque. — Quando estávamos na casa de Jimmy, a nossa
principal suspeita era a de que estavam nos arrastando para a verdade,
exatamente o oposto do que deveriam fazer…
Reunindo as sobrancelhas, enfio a minha bota na fresta de uma
das portas entreaberta no fim do corredor, empurrando-a com um leve
chute, apontando a arma para a escuridão que assola o interior da sala, em
seguida.
O deixo falar enquanto a confusão assola a minha cabeça.
— Nós não quisemos acreditar tanto nesta possibilidade. Mas e se
for exatamente o que estavam fazendo?
Ainda calado, arrasto a luva de couro fosca pelo papel de parede
antigo da parede interior, buscando por algum interruptor que possa clarear
toda a imensidão.
Avanço um passo cauteloso, o dedo firme contra o gatilho, um
único passo em falso de qualquer um que esteja aqui dentro, e então ele
morre.
— Não é impossível, Jay, estão tentando chamar a nossa atenção.
Eles nos trouxeram até aqui, inferno. — Hyuk suspira no minuto em que
encontro o interruptor e adentro ao cômodo, apontando a minha arma para
todos os cantos da sala.
Inquieto, congelo o passo na entrada da porta amadeirada. Meus
olhos percorrem cada canto da sala, desde as diversas telas de
computadores presas a um suporte contra a parede, até aos demais
notebooks apoiados contra uma bancada de alumínio. Uma cadeira de
escritório gira de um lado para o outro, enquanto um par de pernas é
apoiada contra a maldita mesa.
Estreito o olhar, observando o momento exato em que as diversas
telas se acendem em minha direção. Todas elas contém gravações de todos
os nossos percursos até chegarmos até aqui. Ao lado direito, eu reconheço o
momento exato em que Hyuk e eu saímos da casa de Jimmy. Ao lado
esquerdo, a gravação do treino dos batalhões em tempo real, ilumina a tela
grande.
Enquanto, na tela central, destacada dentre todas aquelas outras e
ainda maior do que elas, reconheço o momento em que Baker adentrou ao
bar, nas últimas horas.
O desgraçado acompanhou todos os nossos passos. Tudo que
fazíamos. Era daqui que ele tinha acesso a todos os nossos avanços?
A porra de um ninho.
— Filho da puta. — Resmungo quando direciono a arma para o
seu corpo ainda completamente relaxado contra a cadeira. De costas para
mim, vidrado na dúzia de teclados e telas bem à sua frente.
O soar da trava finalmente chama a sua atenção, porque, no
segundo em que ameaço tirar a sua vida sem um único receio, é quando a
sua cabeça pende para o lado, e eu sei que ele pode me ver com o auxílio de
sua visão periférica.
— Calminha, Turner. Eu te ajudo e é assim que você me
agradece?
Tranco a mandíbula com uma força indiscutível quando avanço
em sua direção o mais rápido que posso, não porque eu preciso saber quem
ele é. Não porque eu preciso descobrir a razão para que ele tenha fodido a
nossa cabeça e nos guiado até o ninho da Luxury. Mas sim, porque eu
reconheço a sua maldita voz.
Um hacker, porra?
O agarro pelo colarinho de sua camiseta, puxando-o com tanta
brutalidade que ele se desequilibra e cai diretamente contra o chão, lutando
para lidar com a força que não faz ideia que eu possuo.
— Eu deveria ter matado você quando tive a porra da
oportunidade, seu infeliz. — Cuspo, desta vez, jogando-o contra o chão
como se fosse um saco de batatas.
Noto o sorrisinho infeliz que ele mantém no canto dos lábios
quando procura equilibrar-se com as mãos, lutando para colocar-se de pé.
Com o sangue subindo inteiramente à cabeça, ignoro todos os
gritos de Hyuk do outro lado da linha. Ele deve estar ansioso por
informações sobre a merda que está acontecendo, já que não tem acesso às
câmeras nesta localidade, mas não posso parar. Não quando uso de toda a
minha força para chutar a cara de Kylian Hyuk com toda a força que posso,
admirado pela gosma de sangue que voa de sua boca para o chão.
— Você nos enganou direitinho. Usando de toda essa sua cara de
imbecil para nos convencer de que era um bom moço ocupado demais com
drogas e mulheres. Devo lhe parabenizar, Kylian, realmente impressionante.
— Não poupo força quando jogo a minha arma para algum canto aleatório e
antes que ele possa se levantar, desfiro outros três chutes em sua costela,
arrancando gemidos dolorosos de sua garganta. Eu não preciso de uma
porra de arma para lidar com este merda, esse é um assunto que gostarei de
sujar as minhas mãos. — O quê? Achou que receberia saudações? Algum
tipo de agradecimento? Acha que isso vai livrar a sua bunda de alguma
merda que tenha feito?! — Esbravejo, meus olhos queimam com a imagem
de seu corpo caído e enfraquecido contra o chão.
A raiva que sinto não é algo que possa controlar. É fatal e
mortífera. Tudo em mim queima, talvez, como se eu estivesse cara a cara
com aquele que me colocou no mundo.
Descontrolado, resmungo milhares de xingamentos enquanto
repito os mesmos golpes contra o seu corpo cansado, arrancando vários e
vários gemidos de dor que ecoam corredor afora. Os chutes atingem a sua
cabeça, as pernas, a costela e as costas. O som que escapa de sua boca é
desesperador, como se implorasse por uma chance para se explicar.
— Todos estes anos nós procuramos por uma forma de destruir a
Luxury. Sabe quantas vidas inocentes foram perdidas no caminho? —
Indago, destilando tanto ódio que minhas pálpebras tremem. — Sabe
quantas vezes chegamos bem perto, e então fomos jogados para longe como
se não fôssemos nada? E melhor, Kylian, você consegue me dizer quem é a
porra do culpado? — Ajoelhando-me contra o chão com uma das pernas,
encaro o seu rosto ensanguentado e o nariz inchado, enquanto ele procura
por um ar que não consegue inalar. — Você é o culpado. O seu erro foi ter
nos guiado até aqui, Kylian, você acaba de cavar a própria cova. E não me
importo com a sua linhagem, não me importo com o laço familiar e
realmente não pretendo me arrepender por matá-lo.
Kylian fecha os olhos, seu peito sobe e desce rapidamente,
entrando em constância absoluta com os batimentos acelerados do coração.
Sem esperar por um único segundo, destilo a minha fúria quando
acerto o primeiro soco em sua cara, arrancando um grito desesperado de
suas cordas vocais.
Fora de controle, não contenho os demais incontáveis golpes que
acerto em seu rosto já deformado, soltando xingamentos involuntários ao
descarregar tanta da raiva que vinha suprindo há anos. Ele é a causa de
tantos dos nossos fracassos e de nossas batalhas perdidas, e ainda assim,
nos trouxe até aqui.
Há uma razão.
E nós vamos descobrir.
Depois que eu o matar. Depois que vê-lo partir com a consciência
de que arruinou milhares de vidas, não apenas a de Baker.
Soco a sua cara até que o meu punho queime e o seu sangue
espirre diretamente no meu rosto. Mas não me permito parar, não quando eu
tenho um dos culpados na palma de minha mão. Não importa quantas
informações podemos arrancar de Kylian, nós as encontraremos sem a
ajuda deste imbecil, porque, na realidade, ele nunca foi útil para uma única
merda.
Meus golpes são cessados quando, abruptamente, meu corpo é
puxado para trás com facilidade. Ouso afastar as mãos que puxam-me para
longe, louco por uma vingança que pretendo buscar. Que preciso buscar. No
entanto, o mundo parece sair do modo silencioso quando a voz rude de
Hyuk alcança os meus sentidos.
— Que porra?!
Desvencilhando-me de seu puxão a fim de partir para cima de
Kylian ainda que machuque Hyuk no processo, o empurro para longe e
avanço como um animal para cima do infeliz, que por sua vez, arrasta os
joelhos pelo chão frio a fim de levantar-se. No entanto, ele não o faria.
— Jason, cacete! — Ouço o seu grito quando sinto ambas as suas
mãos lutarem para impedir o meu avanço.
Desviando de suas mãos, alcanço o corpo de Kylian e ajoelho-me
ao seu lado, forçando a palma de minha mão contra a sua nuca, beliscando a
carne entre a pele enquanto bato com a sua cabeça contra o concreto por
incontáveis vezes seguidas.
— Quanto? — Rosno ao ouvi-lo gemer com a dor insuportável
que parece balançar os seus sentidos. — Quanto custou a sua traição, huh?
Valeu a pena, porra?
As veias em minha testa saltam perante tanto ódio acumulado, e
eu sei que não posso controlar absolutamente nada disso. O dia vinha sendo
uma merda e tudo apenas piora.
Foram anos buscando por pistas sobre quem poderia estar
vazando as nossas informações. Há três anos, tivemos o nosso banco de
dados invadido e todos os nossos arquivos roubados, como se não fosse
absolutamente nada. Era impossível. Hyuk tinha uma alta habilidade de
mantê-los completamente seguros de toda possível invasão.
Mas nunca, em porra de hipótese alguma, imaginamos que o
culpado estava bem debaixo de nosso nariz. Aquele que conhece o irmão
mais do que demonstrava.
— N-Nada. — Ele funga com dificuldade quando largo a sua
nuca, abandonando a sua cabeça completamente ensanguentada pelo chão
frio. — Não recebi nada, inferno.
Em um riso amargo e descrente, levanto-me, afastando o meu
corpo do seu, caso contrário, não pararei até que ele esteja morto.
— Era… Você? — Cesso o riso quando Hyuk avança à minha
frente, caminhando em passos lentos até o corpo do irmão, que parece ter
aberto mão de levantar-se.
Kylian segue deitado de barriga para cima, uma de suas mãos
apoiadas contra a barriga enquanto a outra limpa metade do sangue que
escorre da lateral de sua cabeça, seus olhos mal abrem pela quantidade de
força que usei para socá-lo no local.
— Bom te ver, irmão. — Ele grunhe, provavelmente, por sentir
alguma dor incômoda.
Hyuk segue encarando-o com os olhos confusos, sua boca abre e
fecha em busca de palavras para o que ele esteja querendo dizer, mas
absolutamente nada sai de sua boca. Eu deveria imaginar. Um choque e
tanto, não?
— Bom me ver? — Ele ri. — Tá me zoando, seu filho da puta?
Perturbado, arrasto os pés até os computadores e observo as
câmeras de segurança, todas elas fixadas em cada ponto da casa. Tudo está
aqui. A porra de Kylian Hyuk via absolutamente tudo.
Preciso me concentrar em todos os retângulos com imagens das
câmeras, a fim de controlar a vontade descontrolada de matá-lo sem
hesitação. No entanto, entendo que por mais que eu esteja irritado o
bastante para ser um cuzão, Hyuk tem mais assuntos pendentes com o
irmão e eu lhe devo alguma coisa útil, para variar.
É uma tarefa difícil pra caralho, mas eu devo isso a ele.
— Não — Kylian murmura com dificuldade em meio à uma tosse
seca que não preciso olhar para saber que ele cospe sangue. — Você precisa
me ouvir.
— Te ouvir?
— Naten, porra!
— Te ouvir, caralho? — Ele repete, ainda mais irritado do que
qualquer outra vez que eu o tenha visto em todos os anos de nossa amizade.
— Era isso que estava fazendo enquanto a nossa mãe definhava até a
morte? Quando ignorou todas as minhas ligações? — Ele ri, mas ali não há
humor algum. — Não foi por mim. Foi um pedido dela, a última porra de
pedido da sua mãe, seu filho da puta!
Inquieto, encaro a cena por cima do ombro a tempo de captar o
exato momento em que Hyuk dispara dezenas de chutes contra o corpo já
fragilizado de seu irmão. Ele não poupa agressividade, não usa a mínima
gentileza para disparar xingamentos e socos perturbadores em cada canto
do corpo do cara que devia estar ao seu lado. Que nos enganou e nos traiu.
— Ela deu tudo a você, inclusive, a oportunidade de ir embora e
lutar por uma vida normal. E o que você fez? — Hyuk destila o seu ódio em
excesso no corpo fragilizado, e apesar do tom rude e firme, consigo
enxergar a mágoa que também acompanha a sua raiva. — O que porra ele
ofereceu para você, inferno?
Mais sangue se espalha pelo chão frio da sala, o punho de Hyuk
não sai ileso de toda a sujeira. Seus dedos estão cobertos de sangue, mas
por algum motivo, seu irmão não revida nem um dos golpes. Não se move,
tampouco abre a boca. É como se ele soubesse que merece tudo isso.
E eu não intervenho.
— Estou há anos trabalhando para libertar crianças expostas
sexualmente, anos tentando descobrir quem é o culpado por bloquear as
minhas descobertas e afastar-me da verdade. Nunca, porra, nunca, imaginei
que poderia ser você! — Rosna. — Nós crescemos aprendendo as mesmas
idiotices, mas você nunca deu tanta importância. Então diga-me, Kylian,
por quê? Você realmente acredita que nos guiar até a verdade livraria você
do purgatório?
O silêncio ensurdecedor preenche a sala quando Hyuk bate contra
o rosto imóvel do irmão duas vezes seguidas antes que uma figura pequena
e ágil corra até os corpos caídos contra o chão, suas mãos tocam os ombros
de Hyuk e o envolvem em um abraço, puxando-o para longe do irmão.
Mantenho o meu corpo exatamente onde está, observando Hyuk
ceder aos braços pequenos, mas insistentes, de Lexie.
— Não. — Kylian finalmente sussurra, sua voz sai com
dificuldade devido a quantidade significativa de sangue que escorre de sua
boca. — Nada pode me livrar do purgatório, então você pode me matar, se
quiser, tudo vai continuar sendo uma grande merda. — A monotonia
escorrega de sua boca como se tudo isso, de fato, o machucasse.
Hyuk rosna enquanto Lexie parece reforçar o seu aperto contra
seus ombros, usando de toda a sua força para afastá-lo de seu irmão.
— Você acha que é o único perdido? Acha que é o único que
sente falta dela? — Kylian segue dizendo, sua voz sai como sussurros. —
Nem todo mundo tem um propósito de vida após o luto, irmão.
Direciono meu olhar até Hyuk, e é neste momento, nesse
milésimo de segundo que eu vejo as lágrimas despencarem de seus olhos
com uma facilidade tão grande, que Lexie precisa apertar os seus braços
entre as mãos pequenas, controlando-o enquanto seus músculos enrijecidos
denunciam sua decepção, embora exista ódio.
Ainda é seu irmão, afinal.
— Que se foda! — Ele rebate. — Mate-o, Jason, porque se você
não o fizer, faço eu.
Lexie se vê obrigada a soltar os braços de Hyuk quando ele sai
em completa irritação pela porta. O sigo com o olhar, observando o
momento exato em que ele usa o antebraço para secar o seu rosto
respingado de sangue, embora eu saiba que também existem lágrimas
infiltradas ali. A cena é rápida, mas o suficiente para os meus olhos
congelarem na figura de Baker ao lado do batente, com os olhos curiosos e
braços cruzados, observando Hyuk afastar-se de nós.
— Vamos, acabe com isso. — Kylian murmura.
Direciono o meu olhar para ele, observando-o encarar-me com
dificuldade. Uma lágrima solitária escorre de um dos olhos feridos
enquanto seus braços se erguem para o alto, como se ele estivesse pedindo
ajuda aos céus. No entanto, ele não o receberá.
Sequer o merece.
— Você é um merda — Lexie aponta para Kylian. — Espero que
você sofra, seu infeliz. Ele não precisa de você.
Kylian fixa o olhar em Lexie, respirando com dificuldade
enquanto o seu peito sobe e desce com lentidão.
— Ele nunca precisou de mim.
Lexie sorri, mordendo o canto de sua boca ao destilar o seu
veneno mais fatal.
— Um dia ele precisou. Você não estava lá pra ele, no entanto.
Kylian arqueia uma de suas sobrancelhas.
— Isso não é da sua conta. Não devo explicações alguma para
você.
Irritado, ajoelho-me diante da minha arma e a capturo, alcançando
o corpo de Kylian com agilidade em seguida.
— Fale com ela desta forma outra vez e eu juro que faço você se
arrepender. E acredite, vai doer.
Ele tosse, inclinando o seu corpo para o lado ao cuspir sangue
próximo às minhas botas. Observo a poça escorrer enquanto decido a merda
que farei com este imbecil.
— Me diga, Jason, você realmente acredita que eu sou o vilão? —
Ele me encara, brincando com a minha cabeça. Seu olhar soa tão
intimidador quanto o do irmão. — Acha que eu os traria aqui sem uma
razão?
Brinco com a minha arma, girando-a em meu indicador.
— Me dê uma única razão para não estourar a sua cabeça agora e
eu não o farei.
Lexie afasta-se, encarando o corpo enfraquecido do gêmeo de
Hyuk com a mesma expressão que a vi sustentar no rosto por boa parte de
sua infância. Isto não faz de mim o cara mais feliz de todo o mundo,
ninguém quer Kylian Hyuk morto mais do que eu, mas por outro lado, ele
deve ter razão. Quantas informações ele não poderia nos proporcionar?
Quanto da Luxury não deve haver em todos aqueles computadores que
apenas ele tem o acesso?
— É simples — Ele funga. — Você não quer descobrir qual o
próximo passo de seu pai?
Bingo.
É tudo que ele precisava dizer para ter a porra da minha atenção.
— Acha que eu sou algum tipo de imbecil? — Indago,
ajoelhando-me à sua altura ao apontar o cano da arma diretamente para a
sua testa. — O que caralho te faz pensar que acredito em uma única palavra
do que diz?
Apesar de completamente ensanguentado, noto quando Kylian
engole em seco, resmungando diversos gemidos dolorosos. Ele mal pode
abrir os seus olhos, o rosto está completamente deformado.
— Não acredite. É uma escolha sua. — Ele morde a boca quando
leva as mãos para as costas e ao acariciar algum ponto específico que lhe
causa dor, um grito lhe escapa. — Quem você acha que livrou a sua bunda
da prisão? Quem acha que abriu aquelas portas para você?!
Estreito o olhar quando empurro o cano da arma em sua testa,
mas não o respondo. Porque porra, se houver mesmo uma chance disso ser
verdade, eu gostaria de descobrir o porquê.
— Tudo que eu fiz até agora foi para chamar a atenção do meu
irmão, inferno. Eu livrei a sua bunda, livrei a bunda do maior diamante da
Luxury daquela casa de bonecas de Floyd. Eu livrei todos vocês, então pare
de ser um filho da puta e me agradeça para variar, porra!
Sinto o meu pulso queimar quando perco o controle e o acerto na
cabeça com o metal frio da glock. Calo a sua boca no mesmo instante que
ele precisa engolir os xingamentos para conseguir respirar ou alguma merda
assim. E eu poderia ter feito pior, se Baker não estivesse ao lado dele,
ajudando-o a se levantar.
Que porra ela está fazendo?
— Vai ajudá-lo? — A pergunta soa monótona quando levanto o
meu corpo e seco o suor de meu rosto com o antebraço. — Sério, Baker,
você não sabe mesmo quando parar de sugar a porra da minha paciência?
Ela ignora a minha explosão, erguendo o corpo de Kylian como
se ele de fato, importasse alguma coisa para ela. Seu cabelo seco e escuro
despenca contra o rosto pálido ao usar de toda a sua força para levantar o
corpo daquele que deveria estar morto há, pelo menos, dois minutos.
Às minhas costas, ouço o suspiro de desaprovação de Lexie ao
encarar a mesma cena que compartilhamos. E, eu percebo que ela está tão
puta quanto eu, quando caminha para fora daquela sala em passos firmes e
duros, desaparecendo do meu campo de visão sem que eu tenha algum
tempo para questioná-la.
Kylian grunhe e geme de dor, sangue escorre do topo de sua
cabeça onde eu o atingi, trilhando um caminho vagaroso até o seu maxilar.
— Deixe-o. — Ordeno, sem me mover. Trinco os dentes com
força, contendo a vontade alucinante de tirá-la de dentro desta sala à força.
Ela parece não me ouvir. Ao menos, finge que não o faz.
— Eu mandei deixá-lo, Baker! — Aumento o tom de voz,
finalmente ganhando um pouco de sua atenção quando ela gira sobre os
calcanhares com brutalidade e anda até estar a minha frente, batendo o seu
indicador contra o meu peito com uma agressividade que vem direto
daquele abismo que enxergo nos olhos que um dia foram mais puros do que
qualquer outra coisa.
— Não, eu não vou deixá-lo. Você me trouxe até aqui, então eu
tenho um poder de tomar decisões também. Vou ouvir o que ele tem a dizer
e vou fazer isso enquanto você vai lá para fora e coloca a sua cabeça no
lugar. Nós dois sabemos que esse comportamento explosivo não tem
qualquer relação com o que está nesta sala, ele se iniciou antes disso, então
pare de ser um mandão egocêntrico e deixe-me fazer algo a favor desta
missão. É o mínimo.
Fulmino-a com o olhar, carente de algum tipo de reação que não
soe como a porra de um desafio. Tudo porque ela sabe o que está me
incomodando desde o momento em que ouvi-a desprezar tudo que eu sou,
quando ela é exatamente igual a mim.
A porra dessa mulher sabe o quanto mexe comigo. Esse é o meu
erro, deixar transparente o ponto exato onde ela deve tocar para conseguir
calar a minha boca.
No entanto, eu não tenho controle das minhas emoções no
momento. Ela tirou um péssimo dia para bancar a solidária.
— Por acaso você pensa que está falando com quem? — Não
poupo sarcasmo. — Você deixou muito claro a minha posição. E a minha
não mudou absolutamente nada, Baker. Quer perder o seu tempo com
alguém que traiu a nossa confiança? Vá em frente, faça o que você quiser.
Você tem cinco minutos.
Afundo a minha arma no suporte do jeans, caminhando em
direção à porta em busca do meu autocontrole ao respirar fundo diversas
vezes seguidas, sabendo que eu me arrependerei amargamente por permitir
que ela fique a sós com o homem que eu deveria apagar.
— Eu preciso de mais. — Ela anuncia às minhas costas, sua voz é
firme e resistente.
Não viro-me em sua direção quando atravesso a sala, usando uma
das mãos para retirar a escuta de um dos ouvidos.
— Em cinco minutos a cabana estará em chamas. Seja breve ou
queime junto a ele.
Falo com tanta convicção que ela poderia mesmo acreditar que eu
não atravessaria as chamas ardentes desta cabana se por algum acaso infeliz
do destino ela estivesse presa ao lado de dentro. Ela não precisa saber, no
entanto.
Saio por aquela porta com o corpo em chamas, a mente viajando
por todos os cantos possíveis que possam fazer com que eu me esqueça do
que acontece ao lado de dentro daquela sala. Minhas veias pulsam e nada
faz sentido na minha cabeça.
Nada faz a porra do sentido.
MONTE WHITNEY - 2022
AGORA

Encolhido contra a parede, sinto o meu estômago roncar pela


vontade alucinante de me alimentar. Eu não o faço há pelo menos dois dias,
se estou certo. Ou três, quatro… Foda-se. Não é importante.
Eu já não sei por quanto tempo estou preso nesta cela. Não faço
ideia de como está o mundo lá fora, de como está a academia ou como se
parecem as pessoas reais. Os humanos. Isso ainda existe?
Eu não vejo um há dias. Meses. Anos?
Quando fecho os olhos, ainda sonho com o par de olhos azuis e
brilhantes, direcionando a minha alma para um caminho iluminado. Uma
luz que me levaria para a saída do caos que estou preso desde que a vi
passar entre os meus dedos e ser arrastada para longe. Onde está o meu
anjo? Se eu acabar com a minha vida agora, o encontrarei?
Ela ainda se lembra de mim?
Será que odeia uma versão minha que nunca sequer existiu?
Será que ela compreende que eu me forço a ficar vivo todos os
dias para conseguir encontrá-la? Para conseguir amá-la?
Não, como ela poderia saber? Eu a omiti de toda a verdade. Eu a
impedi de conhecer quem eu realmente sou, todas as minhas marcas e
cicatrizes. Ela as desconhece. Enquanto as suas, para mim, sempre foram o
mais visíveis possível.
Eu a conheci de corpo e alma, enquanto ela, pensava conhecer
alguma parte de mim. Ela pode ter conhecido o lado que sempre foi
fascinado por sua beleza indiscutivelmente única e celestial. Fascinado por
todas as feridas que compartilhamos. Mas é isso. Ela não conhece Jason
Turner e suas cicatrizes. Ela conhece uma parte do que um dia foi Lewis
Floyd.
Eu não sou mais esse cara.
Não quero ser.
Eu quero que ela saiba o quanto luto para esconder tudo que sou
e tudo que vi nesta vida, mas quem poderia me garantir que ela não
soltaria a minha mão?
Nunca saberei. Vou morrer neste inferno e jamais poderei
concretizar a promessa que fiz à Eleanor.
Fui apenas mais um que falhou com ela. Será que algum dia ela
poderá me perdoar?
Levantando a cabeça, encaro as paredes de concreto tomadas por
riscos e textos espalhados por cada canto, tudo absolutamente feito com um
pedaço grosso de pedra. Os nomes espalhados, as ameaças direcionadas a
Marcus Floyd, como se em algum dia, ele fosse ler toda aquela idiotice. As
declarações feitas para Clarke, as infinitas vezes que escrevi o quanto a
amo. Tudo porque é fácil demais dizer isto quando não preciso esperar por
sua reação. Os riscos sem cabimento, os arranhões, as marcas de sangue
de quando bati a minha cabeça com tanta força contra o concreto, que a
marca da minha loucura ficou ali. Tudo. Absolutamente tudo isto é a prova
de que eu estou enlouquecendo. Me tornei um cara bizarro e psicótico, tudo
porque subestimei a capacidade do maior cuzão que já pisou nessa Terra
maldita.
Fecho os olhos e me permito sentir. Qualquer coisa que seja.
Apenas sinta, seu idiota. Prove que ainda é um ser humano.
Respiro fundo e apoio a cabeça contra a parede, mal sinto o meu
estômago e as minhas pernas. O meu corpo da barriga para baixo parece
ter perdido a porra da capacidade de se mover.
Crio diversos momentos em minha cabeça. Crio e recrio
momentos que fariam com que sentisse alguma coisa feliz, triste, ou
enlouquecedora. Repito o processo por pelo menos dez vezes, tudo com o
intuito de me sentir menos… Morto. Nada do que tento, no entanto, é capaz
de apagar o sentimento de culpa que assola o meu interior.
Exceto, claro, o som peculiar do metal colidindo contra a porta
fria e extremamente reforçada à puro aço. O som de uma trava automática
sendo acionada, desperta-me dos devaneios quando abro os olhos e
observo a porta levemente aberta.
Sim. Aquela mesma porta que deveria estar trancada até que
Jesus Cristo descesse à Terra e me levasse ao templo celestial por pura e
sincera pena.
Respiro fundo durante dois minutos enquanto meus olhos
focalizam na porta entreaberta. A fresta é o suficiente para que eu note a
sua abertura, mas não o bastante para que eu veja algum raio solar que
indique que essa merda pode ser real.
Não acredito que seja real.
Nada parece real há muito tempo.
Mas a curiosidade enche o meu peito de esperança quando forço
as minhas pernas a funcionarem, sem saber exatamente como fazer para
caminhar. Eu não faço algo assim há muito tempo, mas busco aprender em
questão de segundos quando arrasto os pés ainda vestidos de sapatos
velhos ao caminhar em direção à porta com a ajuda do fio de esperança
que insiste em preencher alguma parte dentro de mim.
Quando estico o braço e sinto os meus dedos passarem direto por
aquela fresta sem absolutamente nada barrando a minha saída, eu entendo
que não é um delírio da minha cabeça. Não é uma alucinação. A porta
realmente está aberta.
Não sei como e por que, mas não espero até que alguém venha
impedir que eu volte a respirar fora desta caixa. Tudo que faço é forçar os
meus pés a se moverem e os meus olhos a se manterem abertos.
Não olho para trás. Não deveria olhar.
Eu quero provar a sensação da liberdade outra vez, mesmo que
seja outra porra de uma mentira criada pelo meu cérebro traiçoeiro e
muito filho da puta.

Agarro a garrafa de uísque velho com força demais contra a minha


mão, jorrando o líquido por todo canto, sem direção específica. As cortinas
escuras que enfeitam as paredes já estão completamente encharcadas.
Apesar de duvidoso, algo está claro, Kylian me libertou. Três
anos sendo torturado e aprisionado para enfim, ser liberto. Ele estava se
divertindo com toda aquela cena? Realmente, em alguma realidade
alternativa, ele acreditou que eu o deixaria sair ileso por tudo que causou a
nós?
A resposta é óbvia e me incomoda como o inferno. A verdade é
que todos acreditam fielmente que eu ainda sou o garoto medroso e
hesitante, criado por Marcus Floyd à sua maneira incoerente.
Eu ainda sou o mesmo, isto é inegável. Ainda me esforço todos os
dias para me esquecer do quão perdido eu parecia estar naquela cela, ou
quando ganhei a liberdade e me dei conta de que tudo estava realmente
perdido.
Porque, de todas as coisas que eu não podia falhar, uma em
especial, a mais importante delas, eu falhei.
E não havia volta.
Mas eu sinto a minha pele rasgar todas as vezes que penso em
todas as sujeiras que ainda estão por baixo dos tapetes. Se eu pudesse voltar
atrás, não há dúvidas de que faria muitas coisas diferentes. Com certeza, eu
não deixaria Marcus Floyd ter tanto poder a ponto de conseguir todos os
recursos para nos destruir, bem debaixo do nosso nariz.
Só agora, após anos, as coisas começam a fazer algum sentido.
Tudo aconteceu por uma razão. Tudo. Sem exceção.
— Ele não estava mentindo.
Ouço a voz fria e rígida às minhas costas quando retiro um
isqueiro de um dos bolsos, brincando com o clicker em meu polegar.
— E? — A insatisfação com tudo que acontece ao redor é
explícita, e eu sei que Baker percebe.
— Foi ele quem libertou você.
Quase gargalho descaradamente da fala óbvia, mas não posso
transparecer tamanha irritação.
— Você jura?
Ouço os seus passos ágeis às minhas costas, e quando me viro
para encará-la, é quando dou de cara com sua figura irritada e impaciente
bem na minha frente.
— Você está sendo desnecessário, Jason, qual é o seu problema?
Umedeço os lábios quando olho diretamente para as suas esferas
gélidas e profundas.
— Não sabia que tratá-la da mesma maneira que você faz comigo
seria considerado um problema. Desde quando você se tornou tão hipócrita?
Estou irritado, e Baker está escolhendo um péssimo dia para
questionar a minha maneira de ser quando, desde que saí daquele inferno de
lugar, tenho tentado e tentado quando é sempre ela quem me instiga. Todas
as vezes.
— Como? — Ela parece vacilar, mas nada afasta a expressão de
desprezo em seu rosto contornado. — Hipócrita? Eu sou hipócrita? — Ela
funga, soltando um riso quase que debochado.
— Além de mim, não tem outra pessoa aqui, tem? — Olho para
baixo, fixando os nossos olhares devido a nossa diferença de altura.
Baker examina o meu olhar, sua expressão é confusa e perdida,
como se ela não estivesse esperando nada da interação agressiva e
impulsiva. Mas quem poderia me julgar? Não estou fazendo tudo isso
porque gosto de magoá-la ou alguma merda assim, mas assim como,
segundo ela, eu tenho o dever de entendê-la, e faço isso muito bem, ela
também deveria se esforçar para compreender uma única vírgula do que eu
venho sentindo há anos. Odeio pensar que ela me vê como um cretino, e
vou continuar sendo.
— Você é um babaca!
— Ainda assim você está aqui.
Seus lábios se contraem quando seus punhos, por baixo de todo
aquele couro da luva, cerram ao lado de seu corpo. Seus dentes trincam e os
olhos escurecem enquanto ela parece repudiar tudo que sou. Continuo na
mesma posição perante o desafio.
Vamos lá, Baker. Faça qualquer coisa. Grite comigo, me bata, me
insulte. Reaja.
Deixe-me provar que somos farinha do mesmo saco.
— Quer saber?! — Ela abana a cabeça. — Eu deveria ter
desaparecido no mundo quando tive a chance, tudo isso é uma perda de
tempo! Que se foda você, a Luxury, a academia, o Williams e toda essa
porcaria de gêmeos opostos.
Ela gira sobre os calcanhares e faz menção de caminhar até a
porta.
— Fuja. — Sopro. — Vamos, é o que você faz de melhor. Quem é
covarde agora?
Baker cessa o passo e me encara por cima do ombro com uma
carranca sinistra.
— Esperei por você, mesmo que tivesse todos os motivos para
querer decepá-lo, eu ainda queria ouvir o que tinha a dizer. Tem sido assim
há anos, e mesmo diante de mim, seu idiota, você nem sabe como lidar com
o problema que sua própria covardia causou. Não faz ideia de como lidar
comigo. Tem certeza que esse título pertence a mim? — Ela ri amarga pra
cacete, mas deixa explícito o quanto sente além do desprezo.
Fico calado, olhando para os seus olhos fixos em mim, esperando
por alguma reação. Minha cabeça viaja diretamente para todos os
momentos que passamos juntos, até por todos aqueles que enfrentei
sozinho, porque sempre fui fraco quando o assunto é ela.
Sempre fui incapaz.
— Sinceramente, tô cansada de você. Tô cansada de nós, de toda
essa merda e da sua mudança repentina de humor. — Ela se vira, avançando
passos lentos e agonizantes em minha direção. — A minha paciência com
você morreu há anos e ainda não descobri qual a porra da dificuldade que
eu tenho em manter você longe de mim, porque eu não te suporto.
Travo a mandíbula, nitidamente desconfortável.
Afaste-a. Afaste-a. Afaste-a.
Você vai quebrá-la.
Ela já suportou o suficiente.
AFASTE-A.
— Não. Você não suporta a ideia de que o seu coração ainda bata
por mim, não confunda os sinais.
Baker nega, sua boca se curva em um meio-sorriso.
— Você se acha especial?
Nego, brincando com o isqueiro em uma das mãos.
— Especial é um termo muito inferior, eu daria um nome mais
criativo.
Seu sorriso desaparece no minuto em que levo uma das mãos ao
seu braço e a puxo de encontro a mim, relaxando a palma em sua lombar ao
colar o seu corpo junto ao meu. O grito assustado que escapa de sua
garganta é a gota d'água que eu precisava para afundar o rosto em seu
pescoço.
— Que porra você está fazendo? — Ela indaga, empurrando os
meus ombros para trás na intenção de afastar o meu toque de seu corpo.
Não dou ouvidos a nada que sai de sua boca desde o momento em
que aspiro o cheiro viciante que vem direto de seu cabelo curto. Ela não faz
ideia do quanto este novo visual a deixa ainda mais linda. Não faz ideia de
todas as barbaridades que imaginei cometendo ao seu corpo desde que o
contemplei repleto de minhas marcas.
— Você não faz ideia. — Sussurro. — Não faz ideia, Baker…
Ela arfa quando aperto a carne de sua pele com força.
Não a quebre.
Não a arruine.
— Me larga, Jason. — Ela pede, por mais que a reação de seu
corpo pareça desejar o oposto.
Nego, arrastando os lábios úmidos pela pele desnuda em seu
pescoço. Ela encolhe o pescoço, arrepiando-se com o toque.
— Largar você? — Não uso sarcasmo. — Você está presa a mim
por toda a eternidade.
Ambas as suas mãos viajam por meus ombros enquanto ela
parece lutar uma batalha interna para descobrir se tenta me afastar ou me
aproximar.
— Você me confunde. Me quer por perto, então me afasta, você
me fode contra a parede, depois me ignora como se eu fosse o problema.
Parece se importar comigo, e de repente… Bum! Me trata como se eu fosse
um lixo. — Uma de suas mãos trilha um caminho pela minha nuca,
mantendo a minha boca exatamente onde está.
Balanço a cabeça, mordiscando o seu pescoço como o louco
descontrolado que eu sou.
— Você mais do que ninguém deveria saber que se eu mantenho
você longe, é para protegê-la. Não é algo que eu concorde.
NÃO A ARRUINE.
ESTÁ FALANDO DEMAIS.
Baker estremece contra mim, seus lábios raspam no lóbulo de
minha orelha quando forço o seu corpo contra o meu, louco por uma
necessidade de fundi-los.
— Eu não quero ser protegida. Não deixei isso claro?
Sorrio contra o seu pescoço, raspando o piercing contra a pele
macia e gostosa.
— Claro que não quer, você nasceu para admirar o caos, assim
como eu. — Minha voz sai como uma confissão. — É o que sempre
estivemos habituados.
Estou falando demais.
Porra.
Ela tomba a cabeça para o lado quando cravo os dentes em sua
clavícula, arrancando-lhe um grito doloroso e satisfatório, soa quase como
música para os meus ouvidos.
Tenho ciência de que não deveria estar fazendo nada disso, não
deveria estar tocando-a quando todos os alertas explodem para que eu esteja
longe. Sei que a verdade a quebraria, a arruinaria de uma forma que
perderia as esperanças por completo.
Fiz a minha escolha quando optei por mantê-la longe dos
negócios que pretendia destruir. Talvez eu esteja errado, talvez haja alguma
hipótese para sairmos de toda essa bagunça, porque se somos fortes
individualmente, por que também não seríamos juntos?
Porra.
O que é que estou pensando?
— Como eu poderia admirar tanto o que um dia me destruiu?
Usando a mão livre, prendo o isqueiro entre os dedos e mergulho
por baixo de sua jaqueta, ansioso para sentir o contato de sua pele na minha
outra vez. Mesmo que haja infinitas correntes proibindo-me de chegar até
ela, mesmo que eu saiba o quanto me arrependerei, nada nunca é forte o
bastante para me impedir.
Sequer consigo colocar a minha cabeça em ordem quando estou
em tua presença.
Baker me faz querer ir contra tudo o que planejei. Ela me faz
querer tomá-la em meus braços e cuidar das dores que eu mesmo causei.
Ela me faz querer sentir. Mesmo que seja um perigo para ela.
— Da mesma forma que o faz quando olha para mim.
Levanto o olhar para encará-la, observando os seus olhos
fechados e os lábios entreabertos, auxiliando-a para respirar com mais
facilidade. Sua bochecha está corada e irresistivelmente atrativa. Não existe
nada em Baker que não seja malditamente atrativo.
Não há um pingo de racionalidade dentro de mim, porque nunca
odiei vê-la direcionar aquele olhar tão isento de esperança até mim. Não
quando eu sempre a possuí. A esperança que tenho em salvá-la é o que me
mantém vivo, respirando.
Não há outro propósito.
— E você odeia isso. Odeia que seu coração bata tão forte em
minha presença, odeia que eu esteja vivo quando nem mesmo consegue me
matar.
Fascinado por sua beleza indiscutivelmente imensa, observo os seus
dentes nivelados morderem o lábio inferior com força. A desgraçada não
quer mesmo dar o braço a torcer, mas não permitirei que isso continue
como está.
Ela deveria saber que sou como um animal, em certas ocasiões.
— Não me subestime, porque odeio você com todas as minhas
forças. Sou capaz de matá-lo. — Ela sussurra, trancando a mandíbula com
força.
Um sorriso perverso cobre os meus lábios quando sem o mínimo
pudor, encontro o botão de seu jeans e não uso gentileza ao agarrar a borda
do tecido grosso e puxo o botão, abrindo-o com todo o desespero que rasga-
me a pele. Puxo o zíper com a mesma brutalidade e ignorância, não
tardando a minha ansiedade quando mergulho uma das mãos em sua
calcinha e sinto a umidade de sua excitação encharcar a ponta deles.
— Me odeia, é? — Debocho. — Você costuma molhar a calcinha
por quem odeia?
Ela arfa quando puxo o tecido áspero de sua calcinha para o lado
e mergulho dois dedos em sua fenda, capturando boa parte de sua excitação
e a espalhando por toda sua boceta, trilhando um caminho úmido até o seu
clitóris, onde acaricio o seu ponto de prazer em movimentos circulares por
cerca de dois segundos.
O suficiente para seus braços rodearem o meu pescoço e um
gemido manhoso ser liberto bem na porra do meu ouvido.
— Eu juro, Baker, se você gemer assim de novo, não vou parar
até comer você. — Empurro um dos dedos em sua entrada enquanto uso o
polegar para massagear o clitóris inchado e convidativo. — É o que você
quer?
Ela suspira contra o meu pescoço, a luva impede que as suas
unhas rasguem a minha nuca.
— Nada do que disse para você foi uma mentira, tudo que eu
disse foi a mais pura e sincera verdade. Seja na montanha, no passado ou
outro inferno de lugar. — Ouço o seu gemido manhoso quando acelero o
movimento do meu polegar, no momento em que afundo o dedo médio em
sua entrada apertada. — Mentir para você traz um gosto amargo para minha
boca. É por isso que eu não posso mais fazer isso.
O meu dedo desliza com facilidade para dentro dela devido a sua
excitação, no entanto, nem que eu fosse testado por um milhão de vezes,
jamais poderia me acostumar com o quanto essa porra de mulher é apertada
e macia.
— Estive tentando, tentando e tentando. — Sussurro, fechando os
meus olhos ao sentir as suas pernas fraquejarem contra o meu corpo. Seus
braços rodeiam meu pescoço e os lábios soltam gemidos involuntários e
extremamente sexys que estão a um fio de me fazer perder a cabeça. —
Mas simplesmente cansei de ouvir os seus resmungos. Cansei de ter que
lidar com o seu mal comportamento e rebeldia, nada me irrita mais do que a
sua insistência em acreditar que sou a porra de um monstro. — Cuspo as
palavras com rapidez enquanto estoco o meu dedo repetidas vezes em sua
boceta, afundando-o o máximo que posso, provocando-a em seu clitóris
inchado e extremamente molhado. — E talvez eu seja um. Mas serei o
monstro que te persegue, aquele que se infiltra debaixo de sua cama e
espera até que você durma para invadir os seus pesadelos e jamais deixar
que você se livre de sua imagem e perseguição.
— Você é um infeliz. — Ela geme, usando os dentes fortes para
morder a minha mandíbula.
Eu sorrio, demonstrando o quão satisfeito estou por tê-la
exatamente onde sempre pertenceu. Na porra das minhas mãos.
— Talvez eu seja o primeiro monstro a receber de joelhos um
pedido de perdão de sua presa. Sabe por quê? — Instigo-a, juntando um dos
dedos ao dedo médio ao estocá-la com mais intensidade.
Sua boceta esmaga os meus dedos em uma proporção que fecho
os olhos para controlar a vontade alucinante de fodê-la aqui mesmo.
Baker grita, seus gemidos são desesperados e intensos, e quando
seus lábios tentam capturar os meus em um beijo intenso e profundo, desvio
o meu rosto ao me dar conta de que ela está prestes a gozar.
Como o filho da puta que ela acredita que eu sou, retiro os dedos
de sua boceta e os levo aos lábios, lambendo a sua excitação como o
viciado infernal que sou. Fecho os olhos e provo de seu gosto extremamente
viciante, o sabor doce e gostoso atinge o meu paladar e de repente, não há
nada que eu queira fazer mais do que ter a sua bunda sentada na minha cara.
Chupo o seu gosto com toda a luxúria que continua dentro de
mim. O meu pau inchado dentro do jeans é a maior prova de que Baker me
tem na palma de suas mãos.
Ela pediria por socorro quando provasse de cada gota do que
tenho reservado para ela há anos.
— Deixa eu adivinhar… — Ela engole em seco, sem entender
absolutamente nada do que acontece. Tanto quanto desnorteada por imenso
prazer. — Este é mais um dos seus jogos.
Limpo os dedos com lentidão com os olhos fixos nos seus. Ela
acompanha visualmente todas as lambidas em sua excitação, e sua boca está
tão seca que preciso conter todos os demônios dentro de mim que me fazem
querer abdicar de todo o meu plano maligno e reivindicá-la exatamente
aqui, outra vez. Mas não o faço.
Não posso.
— Jason? — Ela rosna. — Me responda.
Baker parece perdida e extremamente irritada. O zíper de sua
calça ainda está aberto e sua respiração acelerada, como se ansiasse pela
sensação de alívio que apenas eu poderia proporcioná-la. Não estou muito
confortável para lhe dar o que ela tanto busca, no entanto.
— Claro, amor. — Concordo, lambendo os meus lábios em busca
de mais do que só há no meio de suas pernas. — Vem cá. — Chamo-a com
os dedos, convidando-a a se aproximar.
Ela se contém, engole em seco por duas vezes antes de avançar
um passo em minha direção e inclinar o rosto, enfiando a lateral de sua
cabeça na minha boca para que eu revele o meu segredo precioso para ela.
Quando enfim ela está próxima o suficiente de minha boca,
umedeço os lábios e sussurro contra o seu ouvido:
— Chega de joguinhos. — decreto. — Não sou o monstro que
você procura. Quer alguém para culpar? Posso dar isso a você. Mas, em
hipótese alguma diga outra vez que eu assassinei a sua mãe. Porque, se você
o fizer, juro por Deus… — Mordisco o lóbulo de sua orelha, sentindo o
meu corpo pegar fogo ao desejo infernal que sinto por cada parte sua. —
Vou fazer você engolir todas as ofensas, todos os golpes, todos os desprezos
e ignorância. Você vai precisar me implorar pelo seu perdão, porque
acredite, Baker, eu não a matei. E você deveria sentir vergonha por cogitar
essa possibilidade.
Afasto-me do seu corpo, deixando-a estática e sem reação no
mesmo lugar. Seu corpo não se move e seus olhos não desviam-se do chão,
mas vejo o momento exato em que uma barreira parece cair entre nós,
porque esta é a primeira vez que ouso demonstrar um terço do que
realmente sinto. Sem remorso ou hesitação.
Baker tem uma parte de Jason Turner, ou talvez, ele por inteiro.
Sendo um erro ou não, consequências nunca foram um problema
para mim.
Giro o isqueiro na palma de minha mão, engolindo toda a minha
vontade de arrastá-la para um dos quartos e mostrá-la o quanto ainda há
para descobrir. Ela ainda tem muito de mim para suportar, e inferno, como
eu quero que sinta tudo neste exato momento.
Porque nada, nem que eu viva por séculos, serei capaz de me
esquecer do olhar penetrante e em completa chamas, que é direcionado a
mim no segundo em que acendo o isqueiro e atiro-o na direção de todo
aquele álcool que havia despejado pela sala antes de sua intromissão. Uma
chama alarmante sobe às minhas costas enquanto eu a encaro com toda
ternura e luxúria.
— Espero que tenha reunido informações suficientes como eu a
ordenei. — Não há sorrisos, provocações ou jogos. Sou apenas eu
quebrando o maldito silêncio e indo contra todas as vozes de minha cabeça
que imploram por ele. — É melhor se proteger do caos, amor. Você pediu
por ele e estou cansado demais para negá-lo, então suporte-o, ou deixe-o te
engolir.
No fim, nós dois sabemos que eu nunca fui bom em seguir ordens
ou planos. O que é bom, visto que acabo de arruinar mais um deles.
NEW YORK - 2019
ANTES

— Como você está? — Beijo-o à testa, arrastando os lábios por sua


pele macia até beijá-lo em sua pálpebra.
Jonah abana a cabeça, erguendo o seu par de olhos azuis até os
meus com lentidão e nitidamente abalado com tudo que vem acontecendo
nos últimos dias. Esta é a primeira vez que eu tomo coragem para iniciar
uma conversa sobre o que ele está sentindo, até ontem, eu não o faria.
Temia que Jonah perguntasse algo referente aos nossos pais e eu ficasse
nitidamente desconfortável por não conseguir falar a verdade para ele. E,
definitivamente, não vou falar nada que não seja necessário para que ele
entenda a gravidade de nossa atual condição.
Devo entender que Jonah é um humano tanto quanto eu, não
posso privá-lo de sentir algo que seja necessário para o seu crescimento
como pessoa. Ele deve saber que nossa mãe está morta e o nosso pai…
Bem, não é uma pessoa confiável. Ele deve entender que agora somos
somente nós, lutando por nós e para sobrevivermos.
Jonah não fala absolutamente nada. Em resposta, ele relaxa a sua
cabeça contra o meu peito e afunda o rosto em meu moletom, como se
estivesse exausto demais para uma criança de sua idade suportar.
Fixo o meu olhar na parede cinzenta do nosso quarto, usando uma
das mãos para acariciar a sua cabeleira loira.
— Somos só nós agora, Jonah. — Aperto o seu corpo contra o
meu, concentrada em ouvir a sua respiração nitidamente elevada. — Sei que
nunca vou substituir a mamãe, mas eu juro que farei o impossível para
suprir pelo menos metade do amor que ela daria a você.
Ouço um dos seus soluços e no mesmo segundo sei que meu
irmão já está grande o suficiente para entender o que significa o termo:
somos só nós. Minha pequena e reluzente criança inteligente. É assim que
mamãe o chamaria.
Se ela estivesse aqui.
— Juro que um dia você vai entender tudo, e quando tiver idade o
suficiente, não vou poupá-lo de uma única informação. Contarei tudo a
você. Mas agora… — Sinto o fundo dos meus olhos arder em constante e
imensa vontade de desabar. Mas eu não posso. Tenho que parecer forte para
ele e por ele. — Agora você tem que ser o menino forte que ela sempre
disse que você seria. Nunca vou substituí-la, mas estou aqui por você tanto
quanto ela estaria.
Jonah rodeia a minha cintura com o seu braço, apertando o meu
corpo contra o seu com uma força imensa, quase como se quisesse que eu
fosse outra pessoa. Como se imaginasse que sou ela. E eu permito. Permito
porque mesmo que seja uma completa mentira, no seu lugar eu também
gostaria de me enganar pelo menos uma vez, uma última vez… Que a
estava abraçando.
Na cama, sentada na beira com Jonah ao meu lado, o puxo para o
meu colo e deixo que ele chore com o rosto enterrado em meu peito.
Continuo olhando para a parede sem cor como se fosse a coisa mais
interessante que vi desde que fui liberta do colégio onde papai me
abandonou, porque eu sei que se baixar o meu olhar e ver o meu irmão
neste estado, eu chorarei. Vou desabar sem esforços enquanto peço aos céus
em infinitas linguagens para que devolva a minha mãe a mim. A nós.
Porque, se existe uma vida onde ela não estaria presente, ela seria dolorosa
e infinitamente vazia.
Mamãe era luz. E quando ela se foi, o mundo ficou cinza e
sombrio.
No entanto, eu agradeço infinitamente por Jonah sequer ter
perguntado sobre o nosso pai. Talvez, o fato dele não ter sido presente em
sua infância, facilite a cabeça inocente de meu irmão de não enxergá-lo
como uma figura paterna. Em partes, levo isso como algo bom. Afinal, ele
nunca foi como um pai para nós.
É melhor que Jonah não se lembre dele.
Porque se lembrar, sentirá o mesmo vazio causado pela dor da
decepção.
— Eu te amo muito, Jonah. Sei que você não quer falar agora,
mas saiba que a sua irmã estará aqui para você quando se sentir confortável
para falar alguma coisa ou quando precisar de um colo. — Beijo a sua
cabeleira, puxando o seu corpo para perto, aconchegando-o em meus
braços.
Meu irmão fecha os olhos e mantém o seu rosto escondido contra
o meu peito enquanto o seu sobe e desce em uma respiração lenta, porém
intensa.
Fico na mesma posição por pelo menos trinta minutos enquanto
meus olhos tentam conter todas as lágrimas que insistem em reunir-se em
minha linha d’água. Eu ainda não descobri como farei para seguir em frente
sem nossa mãe, mas este é um daqueles momentos que tento descobrir.
Jonah precisa de mim mais do que qualquer outra coisa, e eu
como irmã mais velha, sei que preciso ser forte por nós. É o que mamãe
desejaria.
Na teoria, parece fácil demais abrir um sorriso e fingir que não
sinto a sua falta a cada ar que inalo. Na prática, tudo que quero é me
afundar em lágrimas enquanto reflito na quantidade de momentos que
poderíamos ter tido juntos. Nós três. Sem o papai.
Tivemos poucos momentos juntos. Quando estávamos a sós, eu
adorava a maneira como mamãe penteava o meu cabelo ou escolhia as
minhas roupas. Eram sempre vestidos cor-de-rosa ou amarelas, como
girassóis. Ela dizia que as duas cores combinavam com os meus olhos. Mas,
quando papai entrava em cena, ela sempre procurava me vestir com roupas
maiores. De uma hora para outra, ela ia contra tudo que dizia a mim quando
estávamos a sós.
Eram sempre calças largas e suéteres compridos.
Ela parecia ter medo do papai. Tinha medo do que ele pensaria a
respeito de certas atitudes.
E eu até me pergunto se ela sabia o que ele pretendia fazer
comigo. A sua única filha. A primogênita.
Eu nunca saberei. Ela morreu e não posso ter momentos com ela,
não posso perguntar o que foi toda a vida que me apresentaram desde que
era uma criancinha. Não posso perguntar a razão para tantas mentiras e
tantos segredos, para tanta farsa e mudanças repentinas de personalidade.
Não posso perguntar absolutamente nada. Ela morreu.
Dói saber que, principalmente, nunca a conhecerei como ela
realmente é. Sem estar sob a sombra de um homem tão cruel quanto o seu
marido.
Fecho os olhos quando a primeira lágrima escorre pelo meu rosto
e despenca contra o corpo de Jonah. Baixo o olhar, observando o seu corpo
já relaxado em meu colo. Ele dormiu.
Levo uma das mãos para o seu rosto, onde acaricio a sua
bochecha, secando a lágrima que havia despencado de meu rosto. Seus
olhos estão fechados e as bochechas coradas. Sem perceber, um meio-
sorriso cresce em meus lábios quando deslizo o indicador por sua pele ao
me dar conta do quanto somos parecidos com a nossa mãe.
Tenho certeza de que isso é uma dádiva que nunca devemos
esquecer. Ela foi tirada de nós, mas ainda temos um ao outro para sempre
lembrarmos de que ela ainda está aqui. Não fisicamente, mas nos detalhes.
Levanto a cabeça quando enxergo uma silhueta parada em um vão
entre a porta do quarto. Levo os olhos até o lugar, deparando-me com os
olhos escuros e a expressão singela de Jay. Ele alterna o olhar entre mim e o
corpo de Jonah em meu colo, até que suspira e adentra o quarto, fechando a
porta em suas costas com tranquilidade.
Nós não nos falamos desde esta madrugada quando lhe ajudei
com o plano. Não intervi em absolutamente nada depois que ele se foi, não
depois de ter sido minimamente apresentada ao dono deste lugar.
— Oi — Sopro, oferecendo um sorriso sem mostrar os dentes.
Jay caminha até a beira da cama em passos lentos e cautelosos,
seus olhos fixos em meu irmão.
— Como ele está?
Quando nos alcança, Jay inclina-se quando apoia um dos joelhos
contra o chão, colocando-se à nossa altura. Ele aproxima o rosto do meu e
deposita um beijo demorado e gentil em minha testa, seus lábios
permanecem firmes em minha pele como se estivesse há semanas sem me
ver.
— Ele é inteligente. Sabe que não verá a nossa mãe outra vez. —
Digo enquanto volta a sua posição, nossos olhares fixos um no outro. — Ele
não quer falar, acho que é como um…
— Trauma. — Jay responde por mim.
Mordo os lábios com força quando afirmo com a cabeça devagar,
sem a mínima pressa.
— Dê tempo a ele. Jonah precisa disso para compreender as
coisas como elas são.
Abano a cabeça enquanto o seguro com força em meu colo,
desejando muito, se pudesse, tirar aquela dor dele e enviá-la para mim. Eu
sentiria tudo em seu lugar.
Jay parece se dar conta de como me sinto, pois suas mãos grandes
e firmes envolvem o corpo do meu irmão e o puxam para si, libertando o
meu colo de seu peso.
Com as sobrancelhas juntas, observo a cena sem dizer nada. Jay
leva o meu irmão até a sua cama do outro lado do quarto e parece usar de
toda a sua gentileza ao apoiar Jonah entre os lençóis. Meu irmão respira
lentamente e torce os lábios ao ser deixado naquela posição. Uma de suas
mãos sobe até o seu peito e permanece ali, demonstrando seu relaxamento.
Quando se dá conta disso, Jay puxa o cobertor e o estende sobre o corpo,
até alcançar a altura de seus ombros.
Sem perceber, um sorriso brinca no canto da minha boca ao
observar a cena de Jay devidamente delicado. Delicado em uma proporção
que nunca tinha testemunhado sendo usada por ele, até agora.
Quando se vira e pega no flagra a minha encarada cheia de
segundas intenções, ele sorri sem mostrar os dentes.
— O que foi?
Eu desvio o olhar, um pouco constrangida.
— Nada, é que… Você parece gostar de crianças.
Jay sorri, revelando a fileira de dentes brancos. As covinhas em
suas bochechas ficam mais fundas quando realmente parece achar graça de
algo, já notei esse pequeno detalhe.
— E gosto. Vou gostar ainda mais quando tiver as minhas
próprias.
Meu sorriso morre no segundo em que sinto a minha bochecha
queimar pelo constrangimento. Meus olhos desviam-se até o meu irmão
dormindo em sua cama e depois fixam-se em qualquer outro ponto
aleatório, tudo na tentativa de amenizar o rubor que deve estar preenchendo
o meu rosto.
Ele gostaria de…?
— Quando chegar a hora, é claro. — Ele termina, sua risada
rouca ecoando no pequeno ambiente.
Abano a cabeça, um pouco tímida.
— E você pretende apresentar essa… Vida, para eles?
Jay sorri, jogando a cabeça em direção à porta. Quando ele
caminha até ela e agarra a maçaneta em sua palma, entendo que quer que eu
o siga. Então o faço.
— Já está pensando no futuro dos nossos filhos? — Ele me
arrasta para fora do quarto, uma de suas mãos guia o meu corpo apoiada
com gentileza em minha lombar. — Eu sei que você está ansiosa para viver
uma vida ao meu lado, mas vamos com calma… — O tom brincalhão dele
quase me faz rir.
Reviro os olhos.
— Você é muito convencido.
Jay ri, rodeando a minha cintura com uma de suas mãos. Sinto um
arrepio percorrer o meu corpo quando pressiona a sua mão firme contra a
minha pele, talvez até tenha sentido o meu rosto queimar pela vergonha.
Tudo que faço, no entanto, é limpar a garganta e fingir que não estou
sentindo o meu coração queimar pela sensação de tê-lo tão perto outra vez.
Tudo que eu sei é que estou sentindo alguma coisa por Jay. Ele
faz com que me sinta bem. Em meio a todo esse caos, ele faz com que as
coisas sejam mais suportáveis. A morte da minha mãe é algo que não
poderei superar nem que viva por mil anos, porém, tenho certeza de que ser
firme e cuidar de Jonah sozinha, seria bem mais complicado.
Jay me ajuda tanto, e eu sei que esse é um dos motivos para que
goste tanto dele.
O sorriso dele e a forma como parece fazer o possível para fazer
com que eu me sinta bem também é um dos motivos, mas jamais diria isso
a ele.
— Marta disse que ele não está bem — Diz conforme nos guia
para as escadarias. — Seu irmão. — Esclarece quando o meu par de
sobrancelhas se reúnem em confusão.
— É… — Descemos as escadas, Jay recolhe ambas as mãos para
enfiá-las nos bolsos frontais de sua jeans e eu sinto o seu olhar queimar a
lateral do meu rosto. — Ele sente falta dela.
Ele suspira.
— Não tenho experiência com crianças, mas posso ajudar você
com isso — Pelo tom de sua voz, eu percebo que ele sorri..
Olho por cima dos ombros, encontrando o seu meio-sorriso no
canto dos lábios.
— Me ajudar?
— Sim. Não sou um bom exemplo a ser seguido também, mas
posso ajudá-lo a superar essa barra.
Torço os lábios, surpresa com o que sugere.
— Está propondo uma sessão de terapia para o meu irmão de sete
anos?
O seu sorriso aumenta.
— Não. Seu irmão é um homem, Clarke, algum dia, sinto lhe
dizer, mas a sua companhia não vai ser suficiente para ele. E eu tenho
algumas vivências para usar como incentivo.
Ergo uma das sobrancelhas, encarando-o com uma carranca no
rosto quando alcançamos o fim das escadas.
— Ele é só um garoto. — Sem perceber, rolo os meus olhos na
órbita.
Jay pende a cabeça para o lado quando torce os lábios e quebra o
nosso contato visual por alguns segundos para vasculhar o nosso destino
com os olhos.
Quero perguntar o que ele viveu… Antes. No entanto, sei que
talvez não seja um assunto que ele se sinta confortável. Então me contenho.
— Um garoto que em breve será um homem. Em toda essa
confusão, ele precisa ser forte. Tenho certeza de que é o que a mãe de vocês
desejaria.
Jay não me olha nos olhos ao dizer aquilo, o tom de sua voz é
minucioso, como se ali houvesse mais coisas a serem notadas do que o que
estava expondo para mim. No entanto, não tenho tempo para questioná-lo
antes de seu corpo passar pelo meu em passos lentos, então entendo que ele
está encerrando essa conversa.
Sinto uma queimação extremamente familiar no peito, a forma
como Jay falou do que mamãe desejaria foi como se ele a conhecesse. Foi
como se soubesse exatamente o que alegraria o coração puro daquela que
sempre lutou para nos manter seguros.
Foi estranho ao mesmo nível em que foi reconfortante imaginar
como seria se ela estivesse aqui. Ela gostaria de Jay tanto quanto eu?
Nunca saberei.
— Vem cá.
Giro sobre os calcanhares quando ouço a sua voz rouca,
finalmente varrendo o lugar onde estamos pela primeira vez desde que
chegamos até aqui. Observo as paredes de concreto, a iluminação fraca e a
quantidade de poeira e bugigangas que estão atiradas em todo canto por ali.
Imediatamente reconheço onde estamos, porém, apesar de parecer idêntico
ao quarto no subterrâneo, não é exatamente onde estamos.
Um salão retangular e repleto de sacos de pancadas e outros
equipamentos de treinamento, incluindo diversos suportes de plástico contra
as paredes firmando armas e facas no devido lugar.
Arregalo os olhos quando enxergo os bonecos improvisados no
canto esquerdo do salão. Eles possuem a altura de um cara comum, e todos
eles compartilham de buracos no meio de suas cabeças.
— É onde eu treino constantemente — Explica, movimentando-se
pelo lugar. — Ali é tiro ao alvo, é bom aquecer a pontaria antes de sair para
as missões. — Ele gesticula em direção aos bonecos, deslizando a sua mão
contra as correntes que sustentam os sacos de pancadas no telhado.
Engulo em seco enquanto cenários desastrosos de suas
respectivas missões brotam em minha mente.
— Missões… — Repito, finalmente forçando os meus pés a
circularem pelo salão. Acaricio a fileira de sacos de pancadas no centro do
salão, caminho até o balcão onde diversas armas são expostas sem o
mínimo cuidado. Algumas são pequenas e discretas, como aquela em que vi
Jay apontar para a cabeça do homem que invadiu o prédio. Outras são
grandes, tão grandes que poderiam ser maiores que os meus braços. — Você
realmente as usa? Já usou elas para tirar a vida de alguém? — Viro a
cabeça, buscando o seu olhar por cima do ombro.
Jay ainda tem as mãos em seus bolsos, mas quando nota a
curiosidade em meu olhar, avança alguns passos cautelosos e serenos em
minha direção. Ele mantém uma expressão tranquila no rosto apesar de
estar perante o meu espanto.
— Você se incomodaria se a resposta fosse “sim”?
Mordo o canto dos lábios, levando a ponta dos dedos até as
armas, acariciando a forma áspera do metal.
— Vou reformular a pergunta. — Eu o encaro por baixo dos
cílios, acariciando o metal frio com a ponta dos dedos. — Já as usou para
matar pessoas inocentes?
Jay bufa um riso, a curva de seus lábios em um sorriso me faz
seguir o movimento com o olhar. Neste caso, é impossível não acompanhá-
lo.
— Não. — Ele se aproxima, colocando-se perto demais quando
estica um dos braços e agarra a arma entre a palma de sua mão, levantando-
a para o alto e puxando-a para si por cima da minha cabeça. — Eu mato
quem merece ser morto. As pessoas fazem o próprio destino, Clarke,
ninguém tem o poder de traçar o rumo de ninguém. Se eles morrerem, é
porque escolheram este caminho. Não sou o culpado por ter tirado a vida de
ninguém, por mais que tenha sido eu quem apertou o gatilho. É o que
chamamos de Carma.
Giro sobre os calcanhares, olhando diretamente para as suas mãos
movimentando-se pelos metais, retirando uma das partes da arma e
jogando-a de volta para o balcão. Ele parece desmontar toda a extensão da
arma com toda a facilidade do mundo, movimentando suas mãos com a
experiência de quem sabe exatamente o que faz.
— Então todas as pessoas que você já matou são pessoas ruins?
— Pergunto, observando o seu sorrisinho enquanto continua olhando
fixamente para a arma em suas mãos.
— É exatamente o que estou falando. — Ele responde, finalmente
parecendo terminar o que pretende fazer naquela arma. Seus olhos escuros
encontram os meus. — Por culpa deles, devo lembrar.
Não contenho o riso abafado que sobe pela minha garganta
quando ele me encara com aqueles olhos cheios de diversão.
Sequer parece que estamos falando sobre a vida e a morte de
pessoas ruins. Eu nem me reconheço na verdade. Estou simplesmente
conversando sobre o fato do garoto ao qual tem aquecido o meu coração,
matar pessoas, abertamente. Isso não deveria me fazer correr daqui o mais
rápido que pudesse?
Por que é que pareço tão presa a tudo isso?
— Posso perguntar como você se tornou tão alheio ao sentimento
de matar alguém?
Jay entrega-me a arma antes de gesticular em direção aos bonecos
do outro lado do salão.
Sinto um gelo incomum atravessar o meu corpo quando o metal
frio está entre os meus dedos. A ponta de onde sairia a bala capaz de tirar
uma vida, está rente ao meu antebraço, arrastando pela minha pele. Mordo a
boca com força, ignorando todos os sentidos que me fazem querer atirar
aquela coisa para qualquer outro lugar.
Estou apavorada.
Com as pernas bambas em uma tremedeira sutil, sigo Jay até o
canto do salão sem olhar para um local específico. Tudo que tento fazer é
esquecer que carrego uma arma daquele tamanho em meus braços.
— É bem simples, na verdade. Foi no que me transformaram. —
Ele diz com tranquilidade enquanto caminhamos. — Quando criança, eu
sempre fui bem simples e objetivo, tudo que queria era ser um bom cara
para que o meu pai me enxergasse.
Jay fala com naturalidade e tranquilidade, apenas o ouço e deixo
que prossiga. Afinal, esta é a primeira vez que ele parece tão confortável em
falar abertamente sobre o seu passado.
Eu realmente quero ouvir mais sobre a sua vida e como ele se
tornou a pessoa que é. Por esta razão, evito conectar os nossos olhares a fim
de que ele não olhe em meus olhos e sinta o arrependimento por, talvez,
estar falando demais.
— Eu nem imaginava que seria esse cara que eu sou agora, mas
garanto a você, não foi fácil me tornar alguém tão impiedoso.
Quando alcançamos os bonecos, noto quando Jay se afasta e
recosta-se na parede mais próxima. Eu levanto a cabeça, conectando os
nossos olhares pela primeira vez. Seus olhos me analisam profundamente,
seus lábios entreabertos indicam que ele não terminou de contar a sua
história, mas sua cabeça gesticula em direção aos bonecos.
Não é difícil adivinhar o que quer que eu faça.
Levanto a arma contra o meu peito, segurando em sua
extremidade para que possa posicioná-la de forma como pudesse atirar para
o que esteja à minha frente. No entanto, me atrapalho em meus movimentos
e acabo escorregando os dedos no suporte do gatilho.
Por sorte, quando o som do tiro ecoa com aquele ruído familiar de
que algo deu muito errado, ouço os passos de Jay aproximarem-se de mim.
Vejo quando ele retira uma das peças da arma que havia
desmontado do suporte há alguns minutos de seu bolso, então a levanta no
ar.
— Tirar o carregador da arma quando entregá-la para uma
iniciante é fundamental. — Ele brinca com o suporte entre os dedos antes
de atirá-lo para um dos balcões próximo de nós.
Junto as minhas sobrancelhas.
— Você já sabia que eu faria algo idiota. — Sussurro, meio
decepcionada.
Ele sorri.
— Todos nós fazemos algo idiota quando tocamos em uma arma
pela primeira vez. — Jay puxa a arma de minhas mãos delicadamente,
então a apoia em um dos balcões antes de voltar-se até mim e puxar uma
pistola do cós de sua calça. — Eu só queria garantir que você não se
machucasse no processo.
Meio receosa, abraço o meu próprio corpo.
— Não se acanhe, Clarke, é o primeiro passo para se tornar
alguém confiante. — Ele leva uma das mãos até a ponta do meu queixo,
obrigando-me a erguer o olhar para encará-lo. — Tenha postura e não
abaixe a cabeça, jamais.
Encaro os seus olhos com intensidade ao sentir o seu polegar
deslizar pela minha pele, acariciando o meu queixo lentamente. Este gesto é
tão confortável que eu poderia relaxar constantemente apenas em senti-lo.
— Você sabe que eu tenho dezessete anos, não sabe? — Bufo um
riso arrastado. — Não é como se eu fosse me tornar uma assassina daqui
alguns dias.
Jay não sorri, seus olhos continuam fixos nos meus quando com a
outra mão, empurra a pistola contra o meu peito e força-me a segurá-la com
uma das mãos.
— Se tornando uma assassina ou não, você tem que aprender a se
defender. — De repente, ele parece rígido e mandão. — O mundo lá fora é
perigoso e impiedoso, preciso que você saiba apontar para a cabeça de
algum imbecil se por algum acaso ele ousar tocar em você.
Engulo em seco perante a sua seriedade, mas não ouso quebrar o
nosso contato visual. O olhar de Jay nesse instante é cheio de preocupação e
medo. Seus olhos parecem querer garantir que mesmo se ele não estiver por
perto quando eu precisar, saberei muito bem como revidar e ser forte como
ele foi. Como ele é.
Não o questiono mais do que o necessário. Sei que no final, ele só
quer garantir que eu fique bem.
Jay está fazendo o seu melhor.
Calada, movimento-me até estar cara a cara com o boneco de
plástico. Atrás dele existem alguns materiais que devem servir para abafar o
impacto do tiro e que não atravesse algum ponto que não deveria. Parece
seguro.
Então respiro fundo e desta vez, com cuidado, procuro
movimentar o meu indicador no gatilho com calma. Não tenho pressa. E,
apesar de estar extremamente nervosa por segurar uma arma real em minha
mão pela primeira vez, dou o meu melhor para manter a calma e não
desviar a atenção para outro lugar.
Com cuidado, levo outra mão para a parte superior da arma para
cessar a tremedeira de minha mão e tomar coragem para erguê-la, assim
como vi Jay fazer na última noite.
— É um pouco pesada, eu sei. — Ouço sua voz rouca às minhas
costas. — Mas você se acostuma. Quando apontá-la em direção ao alvo,
respire fundo e não desvie a sua atenção, foco no inimigo e não deixe o seu
nervosismo atrapalhar a pontaria. — Ele me guia. Posso sentir o seu corpo
bem próximo às minhas costas.
Mas assim como diz, não me deixo distrair com a aproximação de
nossos corpos. Mantenho os olhos fixos no boneco e procuro manter a
respiração tranquila, porque todo aquele ofego está me desconcentrando.
— Respondendo a sua pergunta, não sinto absolutamente nada
quando mato alguém porque a minha vida foi um completo desastre. Faço
isso porque quero destruir a vida daqueles que, para se sentirem vivos,
precisam destruir outras vidas no processo. É injusto. — Continua. Sua
presença é notável, sinto o seu hálito bater contra a pele nua da minha nuca.
— Não sinto nada, Clarke, é o fim que merecem.
Levanto a arma com o auxílio das duas mãos, erguendo-as o
suficiente até que a pontaria esteja literalmente apontada para o peitoral do
boneco.
— Você conhece a história de Hades? — Pergunta.
Sinto uma de suas mãos tocar o meu cotovelo, onde pressiona
com firmeza até que eu seja obrigada a apontar a arma em direção ao crânio
do boneco.
— O irmão carrasco? É claro que conheço. É mitologia.
Ouço a sua risada às minhas costas. Ela soa intrigante e cheia de
monotonia.
— Por que todos enxergam o deus do submundo como um
carrasco? — Questiona. — Ele só era o irmão injustiçado.
— Eu deveria enxergar bondade em alguém que senta no trono do
inferno? — Eu rio.
Mitologia grega é um universo enorme onde podemos decretar
qual será a nossa opinião sobre os erros e poucos acertos daqueles que são
exaltados. Se realmente existiu, ou não, nunca saberemos. Mas que é cheia
de injustiça e versões distintas, é um fato.
Ninguém pode garantir que Zeus era tão poderoso. Para mim, ele
nunca passou de um monstro que usava do poder para implantar o caos em
todo o lugar que andava.
No entanto, essa é a magia de histórias contadas por outro tipo de
geração. Ninguém pode garantir nada. Nós sabemos do que nos é dito,
enquanto isso criamos nossa própria opinião.
E para mim, Hades não passa de outro monstro cruel e traiçoeiro,
até que se prove o contrário.
— Você vai se surpreender quando souber que deuses do inferno
podem ser mais bondosos do que aqueles que vivem no Olimpo se passando
por boas pessoas. — Ele responde. — Você tem um exemplo bem na sua
frente, Clarke, a mitologia está em todo lugar. Há diversos Zeus andando
pela terra, mas poucos Hades.
Giro sobre os calcanhares, encarando-o com profundidade. Seus
olhos frios e escuros como um abismo sem fim brilham em minha direção
com ansiedade pela minha resposta. De repente, nunca estive tão curiosa
para descobrir de onde vem aquela opinião específica.
— Me dê um único motivo para enxergar bondade em Hades. —
Eu o desafio.
Jay me oferece um meio-sorriso.
Vejo o interesse em seu olhar, e é bom que estejamos conversando
sobre assuntos tão opostos ao que normalmente fazemos. É bom vê-lo desta
forma. Tão livre.
— Te darei vários. Hades é o irmão injustiçado. Aquele que
sempre viu os irmãos serem mais exaltados do que ele, sendo que tinha o
mesmo sangue celestial correndo em suas veias. No fim, foram eles, Zeus e
Poseidon, que tiveram a honra de escolher primeiro os seus lugares.
Adivinha para quem sobrou o lugar sujo, cheio de demônios e longe do
céu? — Jay ri baixinho. — Hades não era o monstro. Ele aceitou de bom
grado comandar o inferno porque foi o que lhe restou, mas não reclamou e
não foi um filho da puta com as pessoas por ter o sangue de Cronos na veia.
Acredito que ele sequer se sentia privilegiado por ser filho desse cara, ele
era um lixo. É por isso que eu não o enxergo como vilão. Não foi ele quem
abusou de garotas, não foi o rei do inferno que tocou a própria irmã, não era
ele quem se sentia superior às pessoas por ser tão ganancioso e narcisista.
Há tantos desses por aí, a mitologia sendo um mito ou não, continua
presente no nosso mundo. — Ele pende a cabeça para o lado, confiante de
que a sua opinião está certa e deveria me convencer o contrário.
Molho os lábios, encarando-o como se pudesse enxergar mais ali
do que está exposto em seu olhar.
— Não estou surpresa por você entender tanto sobre a mitologia.
Mas estou surpresa por perceber que esse ponto de vista realmente parece
convincente. — Tento brincar, descontraindo o momento estranho.
Jay sorri. E o faz como se estivesse adorando ter aquele tipo de
conversa.
Ele parece gostar de expor suas opiniões e inteligência. É incrível
como parece ainda mais bonito quando o faz.
— Claro que é convincente. Você sabe que estou certo. —
Gesticula em direção ao boneco com a cabeça, incentivando-me a focar a
atenção no que estávamos fazendo. — Deuses bonzinhos não existem, é só
um paradigma criado pelas pessoas. Na verdade, sempre esteve muito claro
que os vilões são os únicos que destruiriam o mundo para matar caras como
Zeus. Não concorda? — Ele instiga, empurrando o meu corpo levemente
para a frente, onde com uma das mãos, acaricia a minha nuca e força com
delicadeza o meu rosto para a direção oposta, forçando-me a olhar para
frente.
Sinto o meu coração queimar com aquelas palavras e a
proximidade de seu corpo às minhas costas. Seu hálito com cheiro de
nicotina vem direto até o meu nariz junto ao perfume extremamente
cheiroso. Jay fala baixinho, quase em um sussurro.
Foco a minha atenção quando forço os meus braços a levantar e
apontar a arma em direção ao boneco. Mantenho a mira certeira em sua
testa, receosa de que estou fazendo a coisa como deveria.
E apesar de estar extremamente nervosa por segurar uma arma
entre as mãos pela primeira vez, nunca estive tão confortável na presença de
Jay. É como se estivesse conhecendo o seu verdadeiro eu, o cara inteligente,
cheio de opiniões próprias e incentivador. Ele não está assustador com a sua
máscara de homem mau, mas sim sendo o mais parecido com um garoto
normal.
Queria poder estar com essa sua versão para sempre.
— Pelo que me lembro, Hades sequestrou uma garota. Isso não é
considerado algo preocupante? — Aprofundo o assunto, certa de que
gostaria de continuar tirando mais do que Jay guarda apenas para si.
Quero que divida as suas opiniões comigo.
Mas tudo que ele faz é rir. Tão verdadeiro, de uma forma que
jamais testemunhei, o som de sua gargalhada tão contagiante quase me faz
ter a certeza de que estou apaixonada.
— Irônico, não?
Eu o olho por cima do ombro antes de juntar as sobrancelhas em
confusão. O semblante divertido e o meio-sorriso provocador é o suficiente
para que me dê conta de que foi exatamente o que fez comigo.
É impossível não me juntar a ele na gargalhada.
— O argumento foi ruim, não foi? — Pergunto em meio aos risos.
Ele assente, uma risada rouca escapando de sua garganta.
— Foi péssimo. — Jay se aproxima, colocando-se às minhas
costas. — Aí está a prova de que Hades não é um monstro. Parece que eu
venci a rodada.
Seu queixo pousa contra o topo da minha cabeça e a sua mão
direita alcança a minha mão que segura a arma. Sua mão livre puxa a minha
esquerda e as une na arma, posicionando-as da forma correta para que eu
possa manter o equilíbrio perfeito para puxar o gatilho.
— Acho que entendo como Hades se sentiu quando roubou
aquela garota para si. É uma sensação do caralho sentir que pode explodir o
mundo por alguém. — Jay sussurra em meu ouvido, trilhando um caminho
com o indicador entre o vão de meus dedos até chegar ao gatilho, onde
pressiona o seu dedo e força-me a atirar.
Sinto meu coração errar duas batidas quando o ruído penetrante
do tiro ecoa no salão. O eco esvai por todo o lugar e ecoa entre os vãos dos
corredores, meu corpo inteiro estremece perante o impacto e parece que
todos os meus órgãos irão pular para fora do meu corpo, mas nada pode
superar a sensação extraordinária que sinto quando olho para o boneco de
plástico e noto o formato circular bem centrado no meio de sua testa,
poucos centímetros acima dos olhos.
Um meio-sorriso brinca nos meus lábios quando Jay segue
incentivando-me a atirar outras vezes, posicionando o meu corpo da forma
correta e ordenando os meus dedos que às vezes escorregam do lugar onde
realmente devem estar.
Repetimos o processo pelo menos três vezes antes que eu atire
repetidas vezes - sem parar - contra o boneco que já está completamente
repleto de buracos. A adrenalina que corre por minhas veias é insana e
duvidosa, no entanto, sem dúvidas se trata de um sentimento que nunca
senti em toda a minha vida. E eu gosto.
De repente, as balas caem contra o chão com rapidez e o meu
dedo pressiona o gatilho com força e necessidade, tudo ao meu redor
desaparece enquanto aponto a arma para diversas partes do corpo do boneco
enquanto deduzo onde o meu tiro acertará. Então fico feliz quando a bala
passa de raspão. Isso já é alguma coisa.
O sorriso brinca em minha boca. E, só noto que Jay largou a
minha mão e me deixou conduzir a pontaria, quando as balas acabam e ao
apertar o gatilho, a bala não acerta ao boneco. O ruído oco soa, e me dou
conta de que passei tempo demais na mesma posição.
Meu coração bate descompassado contra o peito, a respiração
acelerada é o que me faz notar as gotas de suor que escorrem pela minha
têmpora. Eu só não sei se todo este sentimento é pela sensação
extraordinária de ter alguma liberdade, ou pelas palavras tão específicas
ditas em meu ouvido.
— Estou impressionado. — Ouço a sua voz nas minhas costas. É
rouca e cheia de diversão.
Me viro a tempo de enxergá-lo recostado à parede, seus braços
estão cruzados enquanto uma de suas mãos massageiam os seus lábios
carnudos com a ponta dos dedos. Jay tem um sorrisinho quase
imperceptível no canto da boca. Alguns de seus cachos caem em seu rosto
de uma forma que o torna ainda mais bonito.
— Acho que acabei de entender como aquela garota se sentiu
quando se apaixonou pelo seu sequestrador. — Eu o respondo, ainda
viajando em seu comentário de alguns minutos. — É bom encontrar alguém
que pode te dar um pouco da sensação que sempre quis ter, mas nunca
pôde.
Jay ergue as sobrancelhas em surpresa. Seus olhos me analisam
enquanto prende o lábio inferior entre dois de seus dedos.
— Garota… — Ele suspira, desviando o olhar para algum ponto
aleatório após me analisar por longos segundos.
Eu largo a arma no mesmo balcão antes de caminhar em sua
direção a passos cautelosos. Quando Jay nota a minha proximidade, ergue o
olhar para me encarar e dessa vez, sinto medo do que enxergo em seus
olhos.
Há tantas coisas.
Luxúria, hesitação, paixão, receio, necessidade, atração.
— Gosto de você, Jay — Digo quando estou à sua frente. Olho
diretamente para os seus olhos, com medo que ele recue. — Você faz tudo
parecer mais fácil. Estou até começando a achar que nascemos para nos
encontrar.
Ele não diz nada, seus olhos não se desviam para nenhum outro
lugar. O salão de repente fica pequeno para nós dois, tudo parece
insanamente pouco para nós. Estou tão perdida em seus olhos. Na forma
como suas mãos parecem ter a necessidade de me tocar, mas são contidas.
Na forma como seus lábios parecem querer me beijar, mas tudo que fazem é
reprimir um sorriso de canto. Na forma como ele parece louco por mim,
mas parece ter medo.
— Fala alguma coisa. — Sussurro, começando a me sentir
constrangida.
Jay engole em seco e pisca algumas vezes seguidas, como se
estivesse despertado de um transe profundo.
— A resposta é sim.
— Sim? — Pergunto, confusa.
Ele abana a cabeça.
— Nascemos para nos encontrar. E eu juro, agora que você está
aqui, nada pode tirar você das minhas mãos. — Um arrepio vaga por todo o
meu corpo quando a ponta de seus dedos encontra o meu queixo e acaricia a
sua ponta com delicadeza e possessão. — Sou completamente apaixonado
por você, isso é motivo o suficiente para te procurar em cada canto do
mundo se por algum acaso infeliz do destino, você escapar de minhas mãos.
Sua voz é tão objetiva e rouca, que não tenho outra alternativa
exceto fechar os olhos e permitir-me sentir toda a sua carícia fervorosa.
— Então me segure com força.
NEW YORK - 2019
ANTES

Abro os olhos com dificuldade quando sinto o farfalhar de nossas


roupas enquanto Jay junta os nossos corpos e puxa-me para si. Um de seus
braços circunda a minha cintura e a outra segue em meu queixo, puxando o
meu rosto de encontro ao seu.
Ouço o seu suspiro exausto, como se estivesse abrindo mão de
todo o seu autocontrole para me beijar. Jay sempre parece usar de muita
força para o fazer, eu apenas não consigo identificar a razão para isto.
Sua testa cola na minha e sua mão aperta a minha cintura com
força, trilhando um caminho até a lombar e puxando o meu corpo com mais
força para colar ao seu, como se a proximidade que já temos não fosse o
suficiente para ele.
Jay fecha os olhos e a mão em meu queixo trilha um caminho até
o pescoço, mergulhando em minha nuca por baixo de toda a cabeleira loira.
Nossas respirações de repente, são uma só.
Seus lábios parecem ainda mais formidáveis e carnudos deste
ângulo, assim como o seu cheiro parece ainda mais viciante.
É nesse minuto, sentindo o seu lábio roçar no meu em um beijo
suave e lento, que entendo que tudo que sinto por Jay se trata de paixão. As
borboletas no estômago, o frio na barriga, a sensação de que poderia estar
ao seu lado todos os dias.
Paixão.
Meu Deus. Este sentimento é tão bom que é como se trouxesse
vida para o meu corpo. Para a minha alma.
Sinto como se pudesse fazer todas as loucuras possíveis se fosse
para estar com Jay. Desde aceitar conviver em um prédio repleto de caras
armados, à segurar uma arma e atirar em um boneco como se fosse me
tornar uma assassina pelos próximos dias.
Estou disposta a isto.
Por ele.
Decido isto quando seus lábios espremem os meus com força
contra os seus. Ele suspira com força quando me beija, ambas as mãos me
puxam para si e seus dedos enroscam em meus cabelos ao buscar por algum
apoio.
Jay suga o meu lábio inferior e invade a minha boca com a língua,
aprofundando o beijo da maneira mais bruta e gentil que já presenciei. Um
equilíbrio perfeito. Ele é confuso, assim como seus movimentos. Eu não
consigo desvendar se quer ser cuidadoso ou agressivo, mas a combinação
de duas de suas personalidades me agrada.
Penso em juntar a minha língua a sua quando puxo o seu lábio
inferior e acaricio o seu peitoral com ambas as mãos, no entanto, é quando
um pigarro nitidamente incomodado soa, que nós nos afastamos com
rapidez.
O peito de Jay sobe e desce com rapidez. Sua respiração está tão
acelerada quanto a minha, seus olhos encontram os meus quando nos
afastamos, mas não tenho tempo para analisar o que eles querem me dizer.
Porque quando me viro e enxergo a figura do líder deles de braços
cruzados, encostado contra a parede enquanto alisa a sua barba por fazer,
direcionando aqueles olhos obscuros em minha direção, tudo que faço é
engolir em seco e procurar por palavras que sejam suficientes para me
explicar.
Sequer sei o porquê, mas tudo naquele homem parece obscuro e
tenebroso, tenho medo de sua presença.
— Olha quem decidiu aparecer — Jay usa o tom sarcástico ao
saudar o seu líder. — Tirou tempo suficiente ou preciso cuidar dos assuntos
por mais alguns dias?
Viro a cabeça, encarando o seu semblante visivelmente
incomodado por cima do ombro.
Seus olhos estão fixos na direção do homem, mas a sua mão
continua firme em minha lombar. Eu sequer percebi que nós não estamos
tão distantes assim.
Desconfortável àquela situação e sentindo o meu rosto queimar
pela vergonha de ter sido pega dando uns amassos no cara que deveria estar
cuidando de mim, tento desvencilhar-me de sua mão. No entanto, sem olhar
para mim, Jay intensifica a firmeza de sua mão e me mantém exatamente
onde estou.
— Bom, agora eu estou aqui.— Williams diz. — E não temos
tempo para tudo… — Seus olhos desviam-se de Jay por alguns segundos e
então encontram os meus, ele me analisa como se fosse a primeira vez que
coloca os olhos em mim. Parece encantado na mesma proporção em que
parece intrigado. — Isso. Então venha comigo, temos muito o que
conversar referente ao nosso plano. — Ele limpa a garganta enquanto usa
uma das mãos para ajeitar a gola de sua camiseta social.
Jay não se mexe.
— Não há o que conversar sobre plano algum. Já dei o meu
próprio jeito.
Williams congela, seus olhos são direcionados para Jay em uma
velocidade absurda.
— Como assim você deu o seu próprio jeito? O que isso quer
dizer? — De repente, ele não se parece nada com o cara calmo que
aparentou ser na noite anterior.
Pela segunda vez, eu tento me soltar de Jay, certa de que não
deveria estar participando dessa conversa. Estou me sentindo extremamente
desconfortável, como se estivesse prestes a testemunhar uma discussão que
não cabe a mim.
— Quer dizer que nós demos o nosso jeito, simples assim. — Jay
força o meu corpo no lugar como se precisasse de mim ali para manter o
controle, não tenho a mínima coragem de tentar me soltar pela terceira vez.
— Floyd esteve aqui e você simplesmente desapareceu por horas. Nós não
temos tempo para lidar com a sua crise de descontrole, Williams.
Williams suspira.
— Eu precisava de um momento. — Sua voz sai quase em um
rosnado. Seus dedos acariciam a pele enrugada de sua testa. — Me diga que
vocês não fizeram nenhuma idiotice e podemos dar um jeito no que seja lá
que tenham feito.
Baixo o olhar, sem saber como agir.
— Xavier e Miller estão mortos. — Jay anuncia.
Levanto o olhar, surpresa por ter a primeira informação referente
ao plano que ajudei-os a armar na última noite.
— Mortos? — Williams parece incrédulo. — Por qual motivo?
— Você saberia se tivesse liderado o seu batalhão após a invasão.
— Jay responde à altura.
Incerta do que estou fazendo, levanto a cabeça quando me sinto
extremamente desconfortável perante o silêncio ensurdecedor que se
instalou no salão após a última frase de Jay. Vejo quando ele trava a
mandíbula e encara o homem com um olhar decepcionado, mas também
vejo quando Williams o encara com desprezo no olhar.
Ele não é o líder de todos eles? Por que os trata com tamanha
ignorância?
— Espera. — Eu finalmente me afasto de Jay, certa de que
preciso consertar a confusão que foi iniciada por minha causa. — A ideia de
torturar aqueles caras foi minha. Sei que não faço parte desse lugar ou que
não tenho o direito, mas pensei que talvez a minha ideia pudesse…
Sou interrompida.
— Você pensou errado.
Fecho a boca, sentindo as palavras morrerem na minha língua.
— Você não tem o direito de falar assim com ela, se queria que as
coisas fossem feitas da sua maneira, devia ter estado aqui! — Jay afasta-se
de mim, fazendo menção de caminhar até o seu líder. Parece furioso e
infinitamente incomodado com o tom de voz que Williams usou para falar
comigo. — Eu fiz o que deveria ser feito, e faria de novo.
Eu seguro o seu antebraço, impedindo-o de avançar mais algum
passo. Jay não luta contra a minha intervenção, mas também não parece
muito feliz com ela.
— Essa academia tem princípios e regras! — Williams rebate. —
Você sabia de cada uma delas quando aceitou fazer parte de tudo isso, então
abaixe a sua cabeça e aceite quando receber uma repreensão. Controle a
garota e faça o seu trabalho, apenas o seu trabalho. — Williams troca
olhares comigo antes de girar sobre os calcanhares e simplesmente dar as
costas para nós. — Esteja no salão em cinco minutos, teremos reunião. —
Ele cessa o passo perante a saída e me encara por cima do ombro antes de
limpar a garganta. — É bom que você participe, Sofia, está na hora de nos
conhecermos.
Engulo em seco, assustada com o tom rude e firme.
Sem dizer mais uma única palavra, Williams desaparece do salão
e nos deixa sozinhos outra vez.
— O que está acontecendo?
Viro a cabeça, encontrando o par de olhos escuros de Kelly ao
meu lado. Ela parece confusa e um pouco perdida em toda a movimentação
ao nosso redor, mas apenas segue o que todos fazem e enfia as mãos no
bolso de sua jaqueta.
Nós estamos no fundo do salão de treinamentos, afastadas de toda
a muvuca que se formou no centro da sala onde todos os caras do batalhão
se organizam em fileiras enquanto esperamos pela chegada de Williams.
Jay está à frente do batalhão junto ao Naten, seu amigo sussurra
algumas palavras em seu ouvido, mas não tem nenhuma resposta. Seu
semblante é sério e inexpressivo desde o momento em que saímos do
subterrâneo. Ele parece furioso, no entanto, parece conter todas as suas
vontades com bastante dificuldade.
— Williams descobriu sobre a última noite logo após flagrar Jay e
eu nos… beijando. — Baixo a cabeça na última palavra, um pouco
constrangida.
— É uma reunião? — Ela parece ignorar a minha revelação sobre
ter beijado o seu irmão.
Afirmo.
— Ele disse que eu deveria participar porque era hora de nos
conhecermos. — Explico. — Ele parecia rude e um cara extremamente
cruel, Kelly. — Eu a encaro, observando o seu rosto de perfil.
As vozes soam por todo o salão, todos parecem aflitos quanto ao
motivo desta reunião, alguns sequer se movem. Parecem verdadeiros robôs.
Por que todos estão tão afoitos por causa daquele homem?
— Isso é ruim. — Ela diz, por fim. — Williams dificilmente
convoca uma reunião. Ele não disse o motivo? — Ela me olha com aqueles
olhos intensos.
Nego.
— Não, mas eu decidi que tenho medo dele. Você devia ter visto
a forma como ele me encarou quando soube que a ideia tinha sido minha.
— Não acredito que ele tenha sido tão agressivo. É o Williams…
— Ela sussurra, parecia desconfiada.
Engulo o nó na garganta.
— Ontem à noite nós nos encontramos, ele fez algumas perguntas
e agiu como se eu fosse importante para a academia. Eu confiei que ele
fosse realmente me manter segura. — Abano a cabeça. — Mas hoje ele
parecia diferente, Kelly, tive medo do olhar que lançou na minha direção. É
como se ele me odiasse.
Ela concorda, compreendendo o que eu quero dizer.
— Talvez ele só esteja irritado com a invasão. Floyd tem esse
poder sobre nós, ele sempre consegue bagunçar a nossa cabeça. — Kelly
leva uma das mãos ao meu antebraço, acariciando-o com delicadeza
enquanto me oferece um sorriso gentil. — Ele não odeia você, okay? Não é
pessoal. São só coisas demais para a cabeça dele.
Concordo.
É, nem tudo é sobre você, Sofia.
Eu olho diretamente para os seus olhos escuros antes de aceitar
que ela tem total razão. Estou no prédio há poucas semanas, não tenho
como exigir que confiem no meu julgamento ou que o líder acredite que
algum plano criado por mim realmente funcione.
Nenhum adulto consciente confiaria o futuro de sua organização a
uma adolescente de luto.
Aliás, eu estava lá na noite passada, vi a forma como o tal Floyd
parecia intimidador. A forma como sorria e a forma como agia com Jay e o
restante do batalhão. Ele é cruel e impiedoso, dava para notar em seu olhar.
Williams não está tão errado em exigir que sigam as regras do
prédio. Além do mais, ele foi invadido justamente por pessoas terem
quebrado-as.
Ouvindo o som de passos firmes causados por botas grossas de
combate, endireito a postura e levanto a cabeça quando Williams adentra ao
salão acompanhado de mais dois homens que o seguem até a frente do
batalhão.
Um arrepio sobe pelo meu corpo enquanto os acompanho com o
olhar em absoluto silêncio.
Os caras fazem silêncio enquanto esperam o líder se posicionar
para revelar a razão para esta reunião, ninguém dá um pio até o momento
que ele gira sobre os calcanhares, colocando-se à frente de todos nós. Em
toda a sua glória, ele eleva o queixo.
— Suponho que vocês saibam porque estão aqui. — Williams
encara todos os caras com um ar de superioridade. Seu semblante é tão frio
que temo ter baixado a temperatura do ambiente só com a ferocidade de seu
olhar tenebroso. — Nós tivemos uma invasão ontem à noite e quase
perdemos tudo que temos. Por sorte, Floyd não queria nada além de deixar
claro que ele ainda é mais poderoso do que nós.
Movo o olhar até o centro das fileiras onde um dos caras ergue a
mão, pedindo permissão para falar.
Com um aceno de cabeça, Williams o concede.
— Estou na academia há três anos e em todos eles você sempre
foi o primeiro a dizer que Floyd nunca faz nada sem caso pensado. O que
mudou? — Seu questionamento é objetivo. — Ele entrou aqui, apontou
uma arma para as nossas cabeças e foi embora. Ileso, devo lembrar. Que
merda é essa?
Ninguém dá um pio.
Williams curva os lábios finos em um meio-sorriso antes de
levantar a cabeça e encarar o garoto.
— Qual é o seu nome mesmo?
— Liam Gilbert.
Williams acena.
— A resposta é simples, Gilbert. Eu não sou um imbecil. Floyd
não entrou aqui sozinho e não armou todo o plano sem ajuda externa. Matá-
lo sem qualquer informação é burrice. — Ele coloca as mãos atrás de seu
corpo, sua postura é ereta. Como a de um líder. — Essa merda, na qual você
mencionou, são protocolos. Não questione a posição do seu líder outra vez,
estamos entendidos?
O garoto balança a cabeça em concordância e abaixa a cabeça,
certo de que aquela é uma briga a qual ele não pretende comprar.
Engulo em seco, observando os olhos de Williams vagarem por
todos no salão antes de encontrar a figura de Jay às suas costas, no entanto,
Jay sequer direciona o olhar para o líder.
Sua expressão é tempestuosa, furiosa e perigosa.
O clima no salão parece pesar toneladas. Kelly ao meu lado
sequer parece respirar.
Pela primeira vez desde que cheguei no prédio, estou assustada
com o buraco no qual me enfiei. De repente, tudo isso não parece tão
seguro assim.
— Todos sabemos que os protocolos devem ser seguidos, não
importa quão alto seja o risco. Tínhamos traidores entre nós, e ao que
parece, já estão mortos. — Anuncia. — E eu sequer coloquei os olhos neles.
Devo ressaltar o quão imprudente foi essa atitude?
— Deveríamos ter cruzado os braços e esperado até que o todo-
poderoso resolvesse sair da toca? — Jay direciona o olhar frio em direção
ao Williams pela primeira vez. De repente, o salão parece pequeno demais.
Naten cruza os seus braços e coça o pescoço, parece tão irritado
quanto Jay, apesar de parecer mais controlado.
O silêncio reina no salão por dois longos segundos, todo mundo
parece perplexo perante a resposta grosseira e rude direcionada ao líder,
mas ninguém tem a coragem de intervir na tensão que parece rodear apenas
os dois.
— Floyd ainda está solto e não temos nenhuma informação! De
que valeu toda essa ceninha? — Grita, furioso e impaciente.
— Você não tem nenhuma informação. — Jay o corrige. — Eu fiz
o meu trabalho como deveria ter sido feito e não estou completamente no
escuro. Não mais. — Ele o responde com tranquilidade, por mais que
pareça querer voar no pescoço de seu líder. Eu não posso julgá-lo, para que
serve toda aquela grosseria? Ele não era um deus ou algo assim, não lhe
custa nada ser gentil.
— Não é uma justificativa. — Williams o repreende, coçando os
olhos com dois de seus dedos. — Pelo amor de Deus, quanta imprudência.
Jay se cala.
Ninguém move um músculo.
Eu mal consigo me mover no canto que parece pequeno demais
para o meu corpo, mas noto quando os olhos gélidos e nebulosos de Jay
erguem-se até colidir contra os meus. Ele me analisa e parece querer muito
descobrir o que se passa na minha cabeça nesse momento, porque nós não
trocamos duas palavras depois que saímos daquele salão. Sequer nos
olhamos.
Quero descobrir o que sente nesse momento, minha vontade
realmente é de correr até ele e implorar para que abra o coração para mim
outra vez. Seria incrível descobrir mais sobre Jay. Principalmente sobre
toda essa confusão em que se enfiou ou da razão para que ele não seja o
líder dessa organização quando ele é o que mais parece apto para a função.
— Certo, tudo bem! — Williams suspira, parece lutar contra os
próprios pensamentos. — A partir de hoje está redondamente proibida a
entrada de qualquer presença feminina nos salões de treinamentos e sala de
reuniões. Os planos e todo o resto serão organizados por membros da
academia, fui claro? Nada acontece sem que seja aprovado por mim. — Ele
troca um olhar significativo com Jay. — Não temos tempo para perder com
futilidades passageiras, então sejam profissionais e cumpram com o
juramento de vocês. Estarei na sala de reuniões em poucos minutos para
organizarmos a primeira missão.
Jay cruza os braços à altura do peito e tranca a mandíbula.
— Algo mais, chefe? — Pergunta, soando furioso e sarcástico. A
veia em seu pescoço pulsa.
Williams nega.
— Dispensados. — Ele dá as costas para todos nós. — Quero
você na minha sala em um minuto. — A sua intenção era falar baixo o
suficiente apenas para que Jay o ouvisse, mas todos nós escutamos.
Então ele caminha pela porta do salão e desaparece pela
escadaria.
— Isso foi… — Eu ouço a voz de Kelly ao meu lado.
— Apavorante.
Não a encaro, mas ouço o seu murmúrio em concordância.
Meus olhos percorrem cada canto do salão, a movimentação é
nítida e silenciosa. Os caras se movem com objetividade, caminhando com
pressa até as escadarias enquanto alguns cochicham entre si alguma coisa
sobre a reunião. Kelly é a próxima a se mover, ela se enfia entre os rapazes
e se move com rapidez até o seu treinador - Naten - que ainda está imóvel
no mesmo lugar. Seu olhar é perdido e ele parece longe demais de onde
estamos, mas quando Kelly toca o seu braço com a ponta dos dedos, ele a
encara com rapidez.
Movo o meu olhar, tentando a todo custo encontrar os cachos de
Jay no meio de toda essa gente.
Avanço alguns passos e esbarro em algumas pessoas, mas não me
importo em me desculpar. Tudo que quero é encontrá-lo para que eu possa
me sentir segura outra vez.
No entanto, ele não está em lugar algum.
Então, quando o último cara sai e me encontro sozinha no centro
do salão, entendo que a coisa está séria e que, definitivamente, eu não sou a
prioridade no momento.
Seja lá o que esteja acontecendo, iniciei uma confusão que não
tinha a menor intenção. Era melhor sequer ter aberto a boca. Eu seguiria
sendo invisível e Jay não estaria em uma furada por minha causa, afinal, fui
eu quem o incentivou a matar aquelas pessoas.
Não estava nos meus planos. Mas fiz mesmo assim.
Ele os matou.
Tudo porque eu abri a minha boca.
— Sofia, não é? — Estremeço em um susto inevitável ao ouvir a
voz fina ao meu lado.
Viro a cabeça, deparando-me com os fios tingidos de vermelho da
garota que andava pelos corredores do prédio com liberdade.
— É… — Digo, receosa.
Eu sei quem ela é, mas não quero que ela saiba que já havia
notado a sua presença.
— Escuta, Sofia, eu sou a Cassie. — Ela sequer estende a mão
para cumprimentar-me. — Não quero prolongar muito assunto com você,
aliás, você é bem inocente. Mas espero que você tenha ciência do que
acabou de acontecer nesse salão, sim?
Reúno as sobrancelhas, meramente incomodada com o seu tom
rude e julgador.
— Eu…
— Por algum motivo você chegou e tudo isso aqui virou uma
confusão. Jay não era tão imprudente e irresponsável, você está tirando toda
a concentração dele ao que realmente importa. Ninguém aqui participa da
academia para conseguir uma boa namorada e agirem juntos contra
criminosos altamente treinados, então se você quer ajudá-lo, fique longe. —
Cassie usa uma das mãos para colocar uma mecha dos cabelos
avermelhados atrás da orelha. — Você destruiu a nossa chance de sermos
aceitas e isso me irritou profundamente, então só… Saia do caminho. É o
melhor para todos nós.
Meu estômago revira.
Minha boca seca e minhas mãos movem-se ao lado do meu corpo
como se não soubesse o que fazer com elas. Fico totalmente desestabilizada
e perdida nos movimentos de meu corpo, sequer posso acreditar no que
acabo de ouvir.
Mas tudo que faço é balançar a cabeça, aceitando que ela não está
totalmente errada, apesar de ter usado um tom rude demais para expor o seu
ponto de vista.
Eu não a julgo, afinal, se estivesse aqui há muito tempo lutando e
lutando para fazer parte de uma organização e alguma garota destruísse a
minha chance, eu também me sentiria mal. Não a afrontaria como uma
selvagem no poder como Cassie está fazendo, mas ficaria abalada.
Ela está certa.
— Eu sinto muito — Sussurro, desviando os nossos olhares. —
Acho que eu só queria ajudar.
Ela bufa um riso, a palma de sua mão aperta o meu ombro com
mais força do que deveria. Acompanho o movimento e sinto como se ela
quisesse de fato me machucar.
— Não atrapalhe. Isso já é de grande ajuda.
Quando encontro o seu olhar, um sorriso sem mostrar os dentes é
tudo que me oferece antes de largar o meu ombro e caminhar com maestria
até a saída do salão.
Fico aqui, tentando engolir o nó que se forma na minha garganta
antes que eu possa me engasgar com ele. O ar parece ser incapaz de
alcançar o meu pulmão e nunca me senti tão constrangida.
Não porque sei que gosto de Jay e que doeria me afastar de sua
presença. Não porque Cassie quer que eu o faça.
Mas sim porque no fundo, naquele lugar inalcançável do meu
pobre e miserável coração, eu sei que dói como o inferno sentir que estou
atrapalhando. Ou que sou um completo fracasso. Papai fez com que eu me
sentisse assim por toda a minha vida e nunca se importou com a quantidade
de vezes que partiu o meu coração ao negar um pouco de atenção à sua
única filha.
Ele o fazia com tanta facilidade que sequer parecia ter algum
vínculo comigo.
Então quando por fim tenho algum tipo de atenção para mim,
tudo o que mais desejei por anos e anos, eu arruino a minha oportunidade.
Eu a arruino quando jogo o meu coração nos braços do primeiro homem
que se declara obcecado por mim, tudo porque o sentimento que implanta
em meu coração é capaz de fazer todas as lembranças ruins simplesmente
desaparecerem. Ou talvez, metade delas. A arruino quando olho em seus
olhos e enxergo um amor que poderia fazer de mim a garota mais sortuda
de todo o universo, ou talvez a mais quebrada.
Tudo isso começou com ele.
Papai me arruinou com a falta de seu amor.
E agora sou incapaz de manter o meu coração funcionando sem
sentir uma gota do que ele negou a mim.
NEW YORK - 2019
ANTES

ALGUMAS HORAS APÓS A INVASÃO…


Caminhando pelos corredores largos do prédio, não contenho os
meus pés ágeis que me levam direto para fora do quarto da tormenta.
Aquele no qual nenhum invasor, inimigo ou traidor, sai respirando. A regra
é clara, os traidores devem se arrepender por ter quebrado o elo de
juramento da academia. A lei é falha e os julgamentos não são suficientes,
estamos aqui para mostrar que nós definimos a nossa própria sentença.
A ideia de Clarke foi um chute certeiro para o que precisávamos.
Sequer pensamos na possibilidade de fazê-los acreditar que fazemos parte
da Luxury. No entanto, é a nossa única alternativa.
Não acho que Xavier ou Miller irão abrir a boca e apenas falar o
que queremos ouvir. Seria fácil demais. E a morte já é uma certeza para
eles, afinal, não há como entrar no nosso território, passar-se por um de nós,
sentar à nossa mesa, comer de nossa comida e compartilhar de nossos
segredos, enquanto se é um traidor.
Eles cavaram a própria cova. Não posso permitir que sobrevivam
a essa noite, não quando quase colocaram tudo a perder.
No entanto, temos um assunto em pauta para lidar. Victor Mercier
está de olhos atentos em todos nós por um motivo não tão desconhecido.
Sua filha está morta.
Como a organização mais renomada nos meios de proximidade de
seu desaparecimento, tínhamos a obrigação de mantê-la a salvo,
independentemente de quaisquer riscos que poderíamos correr em
específicos casos. Eu tive esta oportunidade de levá-la a salvo para os
braços de seus familiares, no entanto, minha covardia nos levou ao maior
dos fracassos. E desta vez, eu temo que a coisa simplesmente exploda e nos
leve para o buraco de uma só vez.
— Turner! — Um deles, vestido em uma das melhores fardas
usadas pelos soldados de Mercier, ergue ambos os braços para me saudar.
— É uma honra finalmente conhecê-lo.
Descendo os últimos degraus que nos levam até o
estacionamento, aprumo a minha postura no exato momento em que o
segundo deles, seu parceiro, desce de seu carro escuro e coloca-se ao lado
do companheiro.
De acordo com o meu relógio, fazem, pelo menos, oito horas
desde que Floyd saiu pelas portas do prédio como se fosse bem-vindo e esta
fosse a sua fortaleza. O sol já está raiando ao lado de fora.
Não tinha uma pior hora para que Mercier enviasse os seus
soldados para nossa unidade.
Resta descobrir o porquê.
— Julien — Encaro o broche alfinetado em seu peito, onde as
letras cursivas de seu nome brilham perante as luminárias da garagem. — A
que devo essa honra?
Aperto a sua mão, encarando-o com todo o ar confiante que
preciso demonstrar agora, embora esteja perdido. Qualquer passo em falso,
seremos descobertos e nem mesmo Williams saberá o que fazer perante
tanta bagunça.
Seus olhos brilham em minha direção enquanto ele me analisa
profundamente, como se estivesse buscando alguma hesitação em meu
olhar, qualquer mínima coisa que o fizesse desconfiar de alguma ação.
— Assuntos pendentes. — Nós quebramos o contato visual
quando sua dupla, o cara alto e barbudo, mantendo a expressão inelegível
em seu rosto estica a sua mão em minha direção.
— David Gaillard. — Apresenta-se. — Nós viemos por ordem de
Mercier, sinto muito que tenhamos dado as caras em um horário tão... Fora
dos padrões.
Aperto a sua mão por dois segundos, concordando com o seu
comentário. Parece até que decidiram vir em um momento em que
realmente não esperávamos, esperando encontrar alguma coisa fora do
lugar.
— Não temos o que temer. — Afasto-me, levando ambas as mãos
para trás do corpo.
— Sabemos que não. — É Julien quem responde. — Não que
estejamos incomodados com a sua recepção, mas se permite o
questionamento... Onde está o líder?
Aperto os punhos às minhas costas, erguendo o queixo na
tentativa de impedir que eu seja tão facilmente manipulado perante os
soldados de Mercier. Se nos consideramos pessoas impiedosas, eles são
ainda piores. Mercier investe em treinamentos altamente especializados
para que não haja, em hipótese alguma, algum tipo de falha dos seus.
Embora nós sejamos treinados igualmente, o fazemos de forma mais
individual e sem contar com o auxílio da experiência de terceiros.
Nós fazemos o nosso trabalho com maestria assim como eles,
entretanto, de alguma forma, eles ainda são superiores.
Está aí algo que não me dou muito bem. A maldita sensação de
ser inferior.
— Williams não está em um bom momento.
É simplesmente uma merda que esta visita esteja acontecendo após
uma invasão inesperada e a eliminação de soldados. Nenhum de nós está
em um bom momento, no entanto, lidar com a Revolução sem que Williams
esteja ciente do que acontece é uma porcaria ainda maior. Que ele vai ficar
puto não é segredo para ninguém.
Julien sorri de escárnio.
— Nenhum de nós está, meu amigo.
Balanço a cabeça em concordância. Ele não está totalmente
errado, nenhum cara que foi iniciado na Academia está em um bom
momento, quem dirá o líder deles.
Hoje o dia está sendo um completo inferno. Verdade seja dita.
— Há algum problema? — Decido partir para a parte que
realmente importa. — Não é como se a França e os Estados Unidos fossem
vizinhos, então se estão aqui, não é para tomar um chá e conversar sobre o
caminhar de nossas vidas, eu presumo.
Gaillard ri.
— Você não é nada parecido com o seu pai.
Direciono o meu olhar até ele sem esboçar nenhum tipo de
expressão que indique a menor graça que o seu comentário poderia ter
despertado em mim, caso realmente houvesse uma.
— Não precisa de muito para chegar a essa conclusão.
Julien arranha a garganta, usando o som para interromper a troca
de olhares desconfortável que acontece entre o seu amigo e eu. Apesar de
nossas diferenças de títulos, ele não está em posição para citar um assunto
que não lhe cabe, não importa o quão superior seja.
— Nós temos uma mensagem do Mercier. Ela deve ser entregue
para o líder da unidade, e então o nosso trabalho será concluído. — Julien
explica, fazendo-me encará-lo com curiosidade.
— E eu posso saber do que se trata? — Não uso tom sarcástico,
simplesmente quero entender o que causa a aparição de Victor após anos
sem nos enviar quaisquer sinal de vida.
Ele só o faz quando as coisas estão prestes a ficarem feias.
— Você saberá em breve — Julien caminha até o lance de
escadas, ignorando completamente o elevador. — Leve-nos até a sala dele e
conversaremos a respeito.
Sinto o meu corpo esquentar enquanto Gaillard acompanha o seu
amigo e deixa-me completamente a sós no estacionamento, sendo
perseguido visualmente pelo olhar curioso do batalhão ainda em seu postos,
nitidamente tensos, assim como deveriam. Após a falha imperdoável que
levou a insatisfatória visita de Marcus, eu realmente espero que desta vez,
estejam fazendo a coisa da maneira correta.
Embora eu saiba que a esta hora os corredores do prédio estão
vazios, ainda me incomoda o fato de que soldados de Mercier estejam no
mesmo ambiente que peças raras. Kelly e Clarke são peças fundamentais
que mantemos sob nossas asas, sendo protegidas e amparadas. Afinal, só
deixarão de ser proibidas em nosso meio quando forem iniciadas na
academia e jurarem lealdade à Revolução. No entanto, ainda são proibidas
entre nós. Mantê-las à salvo é a minha missão, mesmo que inclua ir contra o
meu juramento para seguir com a minha promessa.
— Ainda precisamos que você nos mostre o caminho, Turner —
Ouço o grito de Julien perante as paredes abafadas da escadaria e
despertando-me do transe, olho ao redor, dirigindo-me até o lance de
escadas.
Retirando uma das luvas adornadas em minhas mãos, estico os
dedos e posso respirar ao sentir o sangue tornar a circular pela minha
palma. A noite por completo foi um desastre, nunca estive tão tenso e
preocupado com o rumo que tudo isto levará. Floyd já está ciente de que
estamos com as garotas e conseguiu esta informação com a ajuda de seus
informantes que sentaram à nossa mesa, comeram de nossa comida,
apertaram as nossas mãos e vestiram a nossa farda. Chego a me sentir
estressado por pensar nas incontáveis vezes que conversei com um deles e
desconfiei de Miller.
Tudo isto poderia ter sido evitado se eu tivesse dado ouvidos às
minhas teorias.
Não há escapatória. E agora temos mais uma droga de problema
posto em nossa balança, ter Victor Mercier em nossa cola é o maior deles.
— Sintam-se em casa. — Aponto para a porta do escritório de
Williams quando a alcançamos, dando-lhes o aval para abri-la.
O corredor está em completo silêncio.
Hyuk está ocupado demais planejando a nossa missão de arrancar
informações de Xavier e Miller, dei-lhe esta missão a partir do momento em
que o TI avisou-me que tínhamos visitas e fui obrigado a me ausentar de
nossos planejamentos. Além disso, estava contando que ele tenha escondido
muito bem os corpos, seria um problema do caralho lidar com a
desconfiança dos soldados. O que acontece nesta unidade, é bom que
continue aqui. Ao sair, o problema poderá triplicar, e não é bem o que
precisamos neste momento.
Ao contrário do que eu estava esperando dos soldados da
Revolução, Julien aproxima-se da porta e bate com o punho duas vezes
contra a madeira, em toda a classe que nós sabemos bem que não lhe é
cabível.
Quero revirar os olhos, mas não o faço.
Quando a porta se abre, os olhos de Williams primeiramente
encontram-se com os meus enquanto ele fecha os botões superiores de sua
camiseta social azul-marinho. O colarinho ainda está rente ao seu pescoço e
as mangas altas, à altura de seu cotovelo. Ele sequer parece o mesmo cara
estressado que saiu como um furacão do salão ao ficar, pela primeira vez
após anos, cara a cara com o maior de seus inimigos. Parece mais calmo.
Presumo que dizer que acabo de assassinar seus soldados não seja
uma boa ideia no momento.
Ele reúne as sobrancelhas em sinal de confusão e ao notar a
presença dos demais caras desconhecidos, ele me olha como se perguntasse
que caralho está acontecendo, então abre passagem para que entremos em
sua sala.
A dupla é a primeira a entrar, suas botas de couro causam um eco
abafado contra o chão.
— Bom dia? — Ao fechar a sua camiseta por completo, Williams
dá a volta por sua mesa e senta-se em sua cadeira confortável. — Não me
diga que são problemas, sequer tive a oportunidade de tomar a porra de um
café.
Cruzo os meus braços à altura do peito quando arrasto os pés para
dentro da sala e recosto-me à porta, após fechá-la.
Julien e Gaillard sentam-se à sua frente, estranhamente sentindo-
se em casa.
— Depende do ponto de vista. — Julien movimenta-se na
cadeira, sigo-o com o olhar quando puxando algo retangular do bolso
traseiro de sua calça, ele o joga contra a mesa. — Você considera um
problema que Victor Mercier tenha recebido este presentinho em nossa
unidade há cerca de uma semana?
Curioso, arrasto os pés no chão ao aprumar a postura e aguçar a
visão, enxergando o pedaço de papel semelhante a um envelope. Suas
bordas são coloridas, como um cartão postal, no entanto, em sua frente,
onde a maioria dos cartões postais são assinados e lacrados, há um broche
circular do tamanho de um charuto.
Williams alterna o seu olhar do envelope até Julien, que apenas
recosta-se na cadeira e gesticula para o envelope, seus olhos fixos em
Williams, obrigando-o a abrir.
— Se trata de um documento hospitalar onde Eleanor passou por
um procedimento para aborto. — A expressão de Julien é serena e sutil,
apesar do tom rígido e do cruzar de pernas que foi capaz de fazer com que
Williams engula em seco. — Ela passou pelo atendimento, sua gravidez foi
confirmada e ela teve acesso aos especialistas que retirariam a criança. Este
é o exame que comprova a gestação, mas não há um que comprove a
retirada do feto.
Minha boca seca e os meus pés quase falham na missão de manter
o meu corpo de pé.
Eu sempre soube. Qualquer um que conheça a história de Eleanor,
saberia que seu futuro já estava traçado antes mesmo que tivesse a chance
de evitá-lo, embora tenha tentado até que o último sopro de vida deixou o
seu corpo.
Mas nunca.
Em hipótese alguma, eu teria cogitado a possibilidade dela ter
tentado interromper sua gravidez. Seus filhos eram tudo o que possuía de
bom, sequer posso imaginar o quão destroçada ela estaria se não tivesse o
amparo do que ela mesma gerou.
Contudo, o que realmente me incomoda é o fato da Revolução
possuir esta prova e todo o perigo englobado na situação.
— Somos a Revolução, senhores. Nada passa despercebido por
nós, embora tenha sido missão desta unidade mantê-la à salvo. — Julien
ressalta. — No envelope há fotografias antigas, puxadas de uma câmera de
segurança do hospital de Nova York. Nela, vocês verão a figura de Eleanor
caminhando entre os civis enquanto parece amparar o seu… Ventre.
Julien coça a garganta, parece desconfortável com o assunto. A
atmosfera inteira parece incômoda, embora eu acredite que nenhum dos
homens presentes nesta sala possa compreender o quão agoniado estou.
Nenhum deles entenderia.
— O que está insinuando? — Williams indaga.
Mantenho minha cabeça baixa, evitando direcionar o meu olhar a
qualquer um deles. Nunca fui um homem medroso, seja pela educação que
tive ou pelas atrocidades que suportei quando mais novo, ainda sou o
mesmo. Ou pensava que sim, porque agora enquanto as minhas mãos suam
e o meu coração espanca o peito, me dou conta de que nunca me senti tão
aterrorizado em toda a minha vida.
Meu pai sempre afirmou o quanto sou inútil, o quanto ele me
enxerga como uma pedra no caminho, alguém que destrói tudo o que toca.
Não acreditei em suas palavras nem mesmo quando esperei por seu amparo,
nem quando mais precisei de um pai.
Talvez agora ele finalmente tenha sucesso em suas tentativas
amargas de tirar o meu crédito, me desprezar, me inferiorizar.
Pois o medo de ser descoberto, de colocar tudo a perder e quebrá-
la de uma vez, me coloca na exata posição onde sempre desejou que eu
estivesse. Inferior a tudo e a todos.
— Não tenho o poder de insinuar nada. Estou aqui para
questioná-los e voltar para a França com mais respostas do que me deram
em quase uma década. — Sua resposta estremece a atmosfera, treme as
minhas pernas e me força a encará-lo.
— E quanto a vocês? — Indago. — Se Eleanor realmente tinha
alguma importância, por que não vieram nos ajudar? Por que se calar e
esperar pelo bom resultado enquanto se vê o companheiro à beira do
fracasso?
Julien me encara, uma tempestuosidade atroz atravessa os seus
olhos e por um momento, me arrependo das palavras escolhidas para
confrontá-lo, pois já sou considerado uma ameaça aqui dentro.
Sequer me consideram útil.
Embora eu tenha feito mais do que qualquer um deles em anos de
juramento.
— Você mesmo disse, Turner, França e Estados Unidos não são
vizinhos. É por isso que a unidade recebeu a devida missão de proteger
Eleanor. — Diz áspero, desviando sua atenção como se eu não fosse nada.
Como se não suportasse olhar para mim. — E agora, há uma chance,
mesmo que pequena, para que consertem o erro de vocês.
Williams se levanta, ele pisca os seus olhos incontáveis vezes e
vejo a forma como destila uma ira descomunal ao braço direito de Victor,
vejo o quanto ele se contém para não explodir, pois não é apenas a sua
bunda que está em jogo aqui.
E ele sabe.
Ele sabe.
Sabe que nenhum deles entenderia se disséssemos a verdade.
— Não nos culpe, Roy. — O líder quase rosna. — Eleanor podia
muito bem se defender sozinha, ela sabia o que estava fazendo e nos
manteve longe por uma razão, mesmo que desconhecida por nós. Fizemos o
que pudemos, sinto muito que não tenha sido o bastante, mande os meus
pêsames para Victor.
Embora eu duvide que ele se importe.
Vejo o quanto ele se esforça para não terminar sua frase.
Ainda somos os peões aqui, e não há o menor espaço para nossas
respectivas opiniões.
A verdade é que sempre estivemos a um passo à frente, a
Revolução nunca conseguiu enxergar o sublime potencial que Eleanor
possuía. Ela sempre soube o que estava fazendo, mesmo quando a
enxergavam como um fardo.
Ela nunca foi um, no entanto.
— Se ela sabia se defender sozinha, por qual razão está morta? —
Julien rebate. — Não aumente o seu tom de voz comigo, Williams, saiba a
sua posição.
Meus olhos ardem, me incomodo pela forma a qual ele lhe
direciona a palavra. Estamos em nossa casa, porra, nosso lar. Quem ele
pensa que é?
Sem conter o fogo que sobe pelo meu pescoço e trilha um
caminho devastador até os meus olhos, fulmino Julien com o olhar durante
um minuto. Nós mantemos um conflito visual que duraria ainda mais tempo
se eu não o rompesse na velocidade da luz e antes que perceba, estou diante
de sua figura, largando as rédeas sem me importar com o estrago que virá
depois.
— Não fale como se pudesse derrubá-lo, afinal não é você quem
senta no trono mais alto. Estamos na mesma posição, no mesmo lugar, na
mesma merda de situação e o broche pendurado em seu peito é o mesmo
que está no nosso. — Não há grosseria, apenas rigidez o suficiente para
levá-lo a erguer o seu queixo como o alfa que acredita ser, aprofundando
nossos olhares com uma destreza e intensidade que me incomoda. — Diga
o que você quer aqui de uma vez, mas não insulte o meu líder na minha
frente ou lhe dirija a palavra de qualquer forma, porque assim como você
está aqui para honrar o nome do seu, eu estou na mesma posição.
O silêncio se instaura na sala como um vírus tóxico, engolindo-
nos.
Sequer posso entender o que se passa, pois em todo momento
estou observando o seu semblante sério e as feições curiosas, mesmo que
rígida. O olhar desse cara me incomoda, sua soberba me enfurece e a sua
coragem de vir até a minha casa e nos acusar de um erro cometido em
conjunto, possui o mesmo poder.
Não posso mentir, não posso dizer que não estou apavorado com
o que acontecerá de agora em diante, mas nenhum deles esteve aqui,
nenhum deles conhece a nossa história e não importa o quanto eu esteja
perdendo crédito ao confrontá-lo, nós dois sabemos que eu nunca fui bem-
vindo.
Estou apenas fazendo jus à minha fama.
Aberração? Descontrolado?
Não importa, isso não faz de mim o único pecador entre nós.
Julien observa cada mínimo movimento meu, embora eu tenha a
absoluta certeza de que nenhum músculo é movimentado exceto os meus
punhos cerrados ao lado do corpo.
Não coloque tudo a perder.
— Jason, sente-se. — Williams ordena, sendo o primeiro a
quebrar o maldito silêncio.
Vejo o exato momento em que Gaillard se aproxima do
companheiro e leva uma das mãos ao seu ombro, afastando-o de mim,
embora haja uma manta apagando o mundo ao nosso redor e nos fazem
ignorar qualquer outra coisa que não seja nos encarar.
Quando não me movo, Williams novamente ordena, com sua voz
grave e nem um pouco bem-humorada.
— Jason, eu mandei você se sentar.
Sei porquê ele faz isso. Porque age como se devêssemos seguir
um protocolo.
A Revolução pode nos derrubar, pode me cortar de vez e me
mandar para um buraco no qual eu jamais poderei sair outra vez. O poder
da organização é maior do que podemos imaginar, sua influência, embora
anônima, tem o poder de conseguir tudo o que quer, na hora que deseja e
mesmo que haja riscos. Eles passam por todos eles como se não fossem
nada, provando em todas as vezes que são invictos.
Talvez esta seja a razão para que eu esteja tão furioso, tão
estressado e agoniado. Não consigo pensar o que eu faria se eles
descobrissem a verdade, aquela a qual todos desta unidade possuem
conhecimento, embora não haja a permissão para ser dito em qualquer
momento. É uma informação confidencial, sendo ela a única coisa que a
Revolução não pode arrancar de nós.
Saber que há um traidor me enfurece.
Me desequilibra.
Me faz querer cometer atrocidades para impedir que a bomba
exploda, mesmo que eu seja o que falta para explodi-la.
Impedir que aconteça vai contra as leis da física.
Estou perdido, tão malditamente perturbado que não há outra
opção senão a de me sentar na cadeira e afastar os fios do cabelo que
grudam em minha testa devido ao suor. nunca estive tão nervoso, tão
assustado com o rumo que a minha escolha finalmente está optando por
seguir.
Não que eu já não soubesse que ela chegaria até este nível.
Mas foi rápido. Tão rápido que tenho medo de falhar e perdê-la
para sempre.
— A missão designada a vocês, segundo Victor Mercier, é
encontrar a criança e entregá-la para ele, onde é o seu lugar. — Julien
anuncia, sua voz é grave e tão fatal quanto um gole em um veneno. —
Vocês têm o prazo de dois meses para cumprir, acredito que não desejam
perder definitivamente o voto de confiança que Victor está concedendo.
Respiro fundo.
Se controle. Se contenha. Não estrague tudo!
Inferno.
É a missão mais difícil que eu tenho de cumprir em anos, porque
manter a minha boca fechada agora é o que nos dará tempo. É o que garante
a possibilidade para a armação de um plano coerente para salvar a nossa
pele e, consequentemente, a de alguém que nunca pediu para ser posta no
meio dessa porra.
Aperto os punhos e mordo o interior da bochecha com força,
enrijeço os músculos e arranjo um ritmo na batucada dos meus pés contra o
piso, faço qualquer coisa que possa me conter, mas não direciono o olhar a
nenhum deles, não me obrigo a fazê-lo porque sei o que acontece sempre
que estou diante da possibilidade de perdê-la.
Por mais que eu não esteja aqui para ser o mocinho, sinto vontade
de me tornar um para ela. Embora eu saiba que mocinhos não fazem o seu
tipo, que ela se apaixonou pelo caos que posso oferecer a ela.
E eu lhe darei exatamente isso.
Pode não ser agora, pode não acontecer tão rápido quanto
esperamos, mas um dia a Revolução descobrirá a sua identidade e fará de
tudo para tê-la. Quando chegar este dia, eu tenho certeza que estarei pronto
para destruí-la. Que vire cinzas, mas não sobrará espaço para que arruinem
o que pertence somente a mim.
— E depois? — Ouço a voz de Williams.
Ouço passos.
Ouço a maçaneta ser movimentada.
Ouço murmúrios.
— O destino de todos está em suas mãos, Williams. — Sua
resposta é vaga, mas objetiva. — Caso haja algum avanço, sabe como me
encontrar.
NEW YORK - 2019
ANTES

HORAS ATUAIS
— Olhos nela, Hyuk — Ordeno rapidamente. — Nas duas. O tempo
todo.
Tudo que ele faz é abanar a cabeça e seguir em direção oposta,
misturando-se no meio de todos os caras que circulam na retirada do salão.
Eu fiz exatamente o mesmo após o fim daquela reunião estúpida.
Não sou um completo santo. Sei que apesar das boas intenções, fui
um canalha por me apaixonar pela única pessoa que deveria estar longe das
minhas mãos, porque se algum dia eu a tocasse, ela estaria correndo um
perigo irreversível. Mesmo assim, eu o fiz.
A Revolução está no nosso pé, Victor Mercier em breve saberá que
sua única filha foi alvo de infinitos abusos psicológicos e físicos, assim
como foi a principal atração da Luxury por anos e anos, servindo aos mais
renomados empresários da cidade por simplesmente ser a mais bela mulher
que já puseram os seus olhos. A notícia de que sua filha deu à luz aos seus
netos também irá impactar e desestabilizar todas as estruturas do cara rígido
que sempre aparentou ser.
Afinal, o líder da organização anônima mais temida de nossas
redondezas, também deve possuir um coração. Embora ele não tenha dado
as caras em todos estes anos.
Uma guerra foi travada quando aqueles documentos foram postos
em suas mãos, e a única forma de tirar o meu pescoço da forca, é abrindo a
boca quanto a tudo que eu sei sobre Eleanor e seus filhos. Começando pela
parte em que usando de toda a minha curiosidade aflorada, busquei pela
garota a qual meu pai desejava com tanto entusiasmo.
Eu jamais poderia saber que a minha curiosidade faria de mim o
único capaz de compreender a história de Eleanor Mercier. O único capaz
de proteger Sofia Clarke.

Está chovendo.
As gotas ásperas de água fria como a Antártica batem contra a
minha testa e sinto os cachos do meu cabelo se desfazerem acima da minha
cabeça.
Para me aquecer, eu enfio as mãos nos bolsos do moletom vermelho
velho que encontrei no fundo do meu armário. É inverno e ainda assim, as
únicas roupas que poderiam me aquecer foram presentes de Marta. Ela não
veio para o trabalho hoje, e o meu pai tampouco se importa comigo o
suficiente para evitar que eu morra de hipotermia durante a noite.
É... Tudo bem. Ele não é muito de se importar mesmo.
A cortina do meu quarto balança por consequência do vento forte
que acompanha toda a tempestade. Meus pés escorregam contra o material
do telhado do lado de fora da janela, e mesmo que os raios estejam
brilhando sob o céu e os relâmpagos façam o meu corpo estremecer, eu não
consigo me mover.
A chuva é boa.
É bom sentir alguma coisa além da infinita solidão que é estar todo
dia trancafiado dentro daquele quarto esperando até que minha comida
seja entregue todos os dias às sete da manhã, às três da tarde e às oito da
noite. É frustrante.
Meu pai não sabe que descobri essa pouca liberdade que possuo. O
telhado é escorregadio e a altura de nossa casa faz com que eu pense em
fugir, provavelmente não o faria sem quebrar alguma parte do corpo no
processo. Sendo assim, não acho que ele tenha considerado essa
possibilidade, pois se tivesse, grades já estariam sendo instaladas para
evitar o meu atrevimento, como ele chamaria.
É uma merda.
Sequer sei porque ele me odeia tanto. Talvez seja porque não sou
tão parecido com ele.
Ainda assim, nada parece justificável o suficiente para que eu
entenda porque ele me mantém nessa porcaria de quarto o tempo todo,
como um verdadeiro prisioneiro.
Já o ouvi falar várias vezes sobre mulheres. Dezenas delas. Todas
são endeusadas e desejadas com tanta devoção, que realmente me sinto
curioso para descobrir a razão para que não tenha uma. Onde está a
minha mãe? Casamentos costumam durar para toda a vida, se eu nasci em
um, onde ela está?
Por que ela não faz nada para impedir este comportamento de seu
marido?
Por que permite que me trate com tanto desprezo?
Respiro fundo.
Não importa.
Se ela realmente tivesse algum interesse em estar ao meu lado, ela o
faria. Mas me deixou aqui, abandonado com o homem que me trata como
se eu fosse algum tipo de animal. Como se eu fosse um monstro.
Outro raio explode no céu escuro e as gotas de chuva tornam-se
mais agressivas.
Não me mexo.
A sensação é boa.
É o mais humano que me sinto em muito tempo.
— Me larga! — Ouço um grito abafado não muito longe de onde
estou.
Não posso deduzir se trata-se de homem ou mulher, devido ao som
alarmante da chuva.
— Largar você?! — Este é um homem, não há dúvidas. — Você está
tentando me foder, mulher?
Mulher.
Viro a cabeça, usando a manga encharcada do moletom para secar
as gotas de chuva em meus cílios para tentar enxergar com mais clareza.
No entanto, quanto mais me esforço, mais forte as gotas caem.
Nós não moramos em um bairro muito acessível. Ao que pude
enxergar, as casas são sempre muito arquitetadas e bem decoradas, os
carros - aparentemente classe alta -, estão estacionados à frente de suas
casas com zero preocupação pela possibilidade de serem roubados. Os
portões das casas são automáticos, todos eles têm travas eletrônicas que
pedem por algum tipo de digital ou senha ao ser acionada.
Nossa casa está em um bairro distante e recheado de
engomadinhos, quanto a isso eu não tenho dúvidas. Sei que o meu pai é
rico, apenas não consigo entender qual é o seu trabalho. Ele nunca fala
sobre.
Não fala sobre nada, na realidade.
— Claro que não, Sebastian! — A mulher berra. — Eu te dei tudo o
que você queria, o que mais você quer de mim?!
O som de sua voz parece mais audível.
Ela parece tremer.
Viro a cabeça novamente, procurando pelo local de onde vem toda
aquela discussão.
Nunca tive muito acesso ao lado de fora, não sei se estas discussões
costumam ser frequentes ou se está acontecendo justamente quando posso
ouvi-la. O que está acontecendo, afinal?
Seco o rosto da maneira que posso com o único moletom que eu
tenho - agora encharcado -, mas não importa. Olho para as casas ao lado
da nossa, ao lado direito, a casa amarela não tem nenhum sinal de que
aquela discussão possa vir de lá. As luzes estão todas apagadas, as janelas
sequer estão abertas para que a voz deles esteja tão audível.
Então é quando viro a cabeça para a esquerda, especificamente
para a casa cor de avelã com uma varanda espaçosa e aparentemente
confortável à frente da minha casa, que noto a luz amarelada vindo
diretamente do que parece ser um quarto. A casa é bonita e muito bem
decorada, mas o que me chama a atenção, é notar a mulher alta de cabelos
longos e loiros que se encontra de pé, de frente para a janela da varanda
com a mão repousada contra a sua barriga grande. Grande demais.
Ela olha fixamente para algum ponto específico dentro do quarto,
ou para alguém. Seus olhos parecem assustados, ou apavorados... Eu não
consigo definir muito bem, por conta da chuva e da distância.
— Você disse que era uma menina! — A voz grossa do homem soa
agressiva. — Você tem noção do quão fodido eu estou?
Mesmo em toda aquela distância, ainda consigo vê-la acariciar a
sua barriga enquanto a sua outra mão é erguida até a sua boca, onde ela a
tapa ao conter o que parece ser um choro quase engasgado e sufocante.
— Você está fodido porque não pode usar os meus filhos para
sustentar a sua bunda por mais alguns anos? — Ela engasga. — Que bom
que é um menino, então!
É quando ela fecha a boca, que sinto meus pés escorregarem contra
o telhado quando assisto a mão grande e áspera bater com força contra o
rosto da mulher, fazendo-a cambalear para trás e tropeçar nos próprios
pés, no entanto, consegue se equilibrar o suficiente para não ir de encontro
ao chão.
Eu engulo em seco, a saliva desce como uma faca afiada, rasgando
a minha garganta ao testemunhar tamanha crueldade.
Ela faz uma careta, como se estivesse sentindo uma dor
insuportável enquanto não deixa de proteger a sua barriga com a ajuda de
seus braços. É como se ela não se importasse com o que acontece a ela,
desde que ele não toque em sua barriga.
Franzo o cenho, sentindo o meu coração acelerar enquanto assisto
a cena perturbadora com toda a atenção que não deveria. Ele está
agredindo uma mulher? Isso não é considerado um crime?
Ele está...
Meu Deus.
Ele a agrediu.
— Você entrou na minha casa para me foder, você veio até mim
para me prejudicar, sua puta! E vá por mim, você só está viva porque eu
quero que esteja. — O homem se aproxima, e é quando ele se coloca à sua
frente, que eu o vejo sussurrar algo baixo o suficiente para que eu não
possa ouvir.
Ele passa a mão em seus cabelos grisalhos, e quando inclina a
cabeça o suficiente para que eu o veja, reconheço-o de imediato. O
smoking casual que ele possui em seu corpo não é muito diferente daqueles
que o meu pai usa em seu dia a dia para negociar com os seus amigos, mas
aquele em específico, aquele homem... Eu já o vi antes.
Há algumas semanas.
Ele estava conversando sobre a sua mulher estar esperando um
filho...
E que esperava que fosse uma menina.
É ela...
Pisco algumas vezes, apoiando ambas as mãos nas telhas
escorregadias para equilibrar o meu corpo. Meu coração bate
descompassado contra o meu peito, nunca tinha visto uma cena tão
apavorante.
— Se depender de mim, os meus filhos nunca vão ser responsáveis
por encher o seu bolso. Nem que eu morra para evitar... — A mulher chora
desesperada, ela parece em um estado irreversível de tristeza profunda.
À sua frente, o homem endireita a sua postura e alisa o seu smoking,
resvalando a mão contra o tecido enquanto uma risada rouca lhe escapa.
Ele não parece minimamente abalado com o que acabara de fazer à uma
mulher.
Que tipo de pessoa ele é?
— Um deles já me dá muita grana, querida. São estas as vantagens
de traçar um futuro antes que aconteça. — Ele responde. — E você vai ficar
de bico bem fechado e guardar o meu segredinho como a boa menina que o
seu pai te criou para ser, porque se não... Você sabe o que acontece.
E então ele dá as costas para ela.
E se vai.
A deixa ali, sozinha, chorando como uma mulher desesperada. Sua
barriga é grande, seus soluços são ouvidos com tanta facilidade que sequer
havia notado que a chuva diminuiu. Ela está grávida, e mesmo que eu
queira entender como isso funciona... Está longe do meu entendimento.
Mas tudo está tão confuso.
Porque eu não sei qual é o envolvimento do meu pai com aquele
homem, não sei por que aquela mulher aceita ser tratada daquela maneira
e por que o meu pai se envolve com caras desse tipo. Não sei de nada.
E eu quero saber. Porque se souber, entenderei mais da vida que ele
tenta manter escondida de mim. Das coisas que ele tenta ocultar, e talvez eu
seja finalmente reconhecido como uma pessoa normal, e não como um
monstro.
Eu não sou um.
Embora eu esteja com medo e o meu coração disparado em uma
proporção imensa, meu corpo parece congelado contra aquelas telhas,
assim como as minhas mãos. Apesar de querer fugir e me esconder, eu fico.
Fico aqui encarando aquela mulher frustrada e acabada, chorando em
desespero enquanto seus olhos se fixam no teto. Ela parece estar pedindo
por algum socorro divino, como se estivesse realmente acreditando que
Deus enviaria alguém para livrá-la, ou protegê-la.
Engulo em seco com o incômodo de assistir toda a cena.
Quero sair e me enfiar no quarto, fingir que nunca vi aquilo ou que
nada aconteceu. Talvez a minha punição seja menor.
Apesar de querer muito ser útil.
Mas quando vejo o suspiro sair de sua boca e a sua cabeça girar,
seus olhos buscando algum ponto como se ela sentisse que está sendo
observada, soube que seria descoberto e que provavelmente, essa noite
mudaria toda a minha vida, para sempre.

Nem mesmo Williams sabe sobre a noite em que eu a conheci. Ele


não faz ideia do quanto Eleanor enfiou na minha cabeça que sou mais do
que Floyd e me fez acreditar. Ela me mostrou a saída, me deu um propósito.
Mas isso não importa agora.
A Revolução vem em primeiro lugar; porém eu não tenho dúvidas
do que realmente é uma prioridade para mim no momento.
— Você ultrapassou todos os limites! — Williams espalma as mãos
contra a sua mesa quando fecho a porta às minhas costas. — Todos os
limites, Jason! Você realmente acreditou que isso daria certo?
Eu poderia me enganar e acreditar que ele está puto porque matei os
únicos que poderiam nos tirar do escuro, mas não me darei ao trabalho.
Afinal, esta não é a fonte de sua raiva e eu sei disso.
Ele pode enganar todo o batalhão do lado de fora com toda a sua
soberana glória, entretanto, aqui somos só nós. Ele pode tirar a máscara.
— Quais limites? — Arranho a garganta. — Foi você quem surtou
na frente de todos.
Calo a boca quando ele bate com a palma de sua mão contra a sua
mesa, causando um estrondo ensurdecedor.
— Você fodeu com tudo! — Arqueio a sobrancelha, esperando até
que ele prossiga. — Tem noção do que Mercier vai fazer quando descobrir?
— Quando descobrir o quê? — Rondo. — Que tentei evitar toda a
situação? Deixe-o descobrir, vai ser...
— Que você está namorando com a filha de Eleanor! — Me calo. —
A menina é uma criança, porra, está aqui para ser protegida e enviada com
segurança para a França, como deveria ter acontecido com a mãe dela!
— Ela não vai para a França.
A coisa está mais avançada do que imaginei. Mesmo que eu tenha
uma missão para ser concluída, não estou preparado para desapegar de
Clarke.
Williams ri de escárnio, a veia de seu pescoço pulsa em completo
nervosismo, ele está puto pra cacete.
— Por quê? Porque você quer continuar enfiando a sua língua na
boca dela? — Provoca. — Ela não é para o seu bico, Jason, acorda para a
porra da vida!
Engulo a saliva com dificuldade, porque essa é uma frase que
costuma despertar o meu lado agressivo.
Quando você passa toda a sua vida escutando o quão desprezível e
inútil é, aquilo corrói as suas entranhas e faz com que você realmente não
pareça digno de ter coisas boas na vida. Não permite que você acredite ser
capaz de ser melhor do que um dia disseram que seria.
— Você fala como ele. — Aprumo a postura. Um suspiro exaustivo
me escapa porque estou farto de toda aquela situação. — Se quer anunciar a
minha saída da Academia, o faça. Levarei comigo tudo o que eu sei e tudo o
que resgatei por conta própria.
Williams abaixa a cabeça, acariciando o seu rosto em exaustão como
se realmente estivesse arrependido por suas últimas palavras. Mas não está.
— Como você esperava que eu reagiria ao ser questionado pela
matriz por uma decisão que sequer deveria ter sido cogitada? Eu que apoiei
você, quando sempre foi a minha bunda que esteve em perigo.
— Não sou o seu fantoche, Williams. Agradeço por ter me dado um
teto quando não tinha nada, mas não posso agradecer pelo seu apoio. Você
somente o faz quando pode receber alguma merda em troca. — Explodo,
sequer me importa sua posição ou seu cargo. — Agora está feito, acha que
dizer a eles a verdade vai adoçar a punição? Que será menos dolorosa? Está
feito! Não é hora de voltar atrás.
Ele é o meu líder, mas também é o meu amigo, e mesmo que me
esforce para esconder a mágoa, não consigo.
— Eu estou tentando abrir os seus olhos! — Ele grita, autoritário. —
Você tem feito coisas idiotas, Jason, tudo porque quer manter a garota
protegida. Mas está se esquecendo que nós somos movidos por ordens, e
que mesmo que Mercier não saiba sobre a existência da menina, ela ainda é
uma Mercier! Tenha respeito.
Bufo um riso.
Ele quer mesmo falar sobre respeito comigo?
— Em que momento eu a desrespeitei? Tudo que fiz foi porque ela
pediu, porque ela quis. Não venha me transformar em um monstro.
— Ela também pediu que você matasse os únicos que podiam nos
levar até a Luxury? — Questiona. — Porque você o fez, Jason, e não foi
porque quis protegê-la, e sim porque estava movido pela raiva, você sequer
tem noção do estrago que pode fazer sempre que está em um desses surtos?
Dou de ombros.
— Eles mereceram.
— Eles tinham informações!
— Que agora estão comigo. — Rebato com convicção.
Nós nos encaramos por alguns minutos, seus olhos parecem tentar
interpretar os meus, mas estou tão irritado e indiscutivelmente puto, que
sequer dou a oportunidade para que pergunte sobre o que rolou após a nossa
conversa com Julien.
As crises de raiva não apareciam há tempos.
Estar com Clarke me permitiu contê-las, mas agora a está atiçando
novamente com uma facilidade indiscutível.
Eu sequer sabia que podia ser tão descontrolado e devastador,
entretanto, tenho me sentido assim sempre que me lembro dos últimos anos.
Sempre que me lembro daquela noite. Sempre que eu a vejo.
A coisa explodiu quando fui obrigado a reviver todos os momentos
desde que vi Eleanor sendo agredida por seu marido; aquele que deveria
protegê-la e ser devoto ao matrimônio, isso até chegar aos meus ouvidos de
que ele nunca foi um. Nunca se casaram. Sebastian não queria nada além de
lhe enfiar filhos para que pudesse enfiá-los no esquema hierárquico.
Como sempre, o poder é a única coisa que lhes importa.
Toda vez que fecho os olhos, ainda consigo vê-la tão frágil e
abalada, implorando para que eu mantenha os seus filhos à salvo porque
sabia que não sobreviveria àquilo. Ela sabia que estava arruinada.
Agora tudo está em risco porque o seu único pedido está sendo
ameaçado.
Eu estarei aqui para fazer justiça, ou pelo menos, lutar por ela. O
meu destino é fazer por elas, o que nunca fizeram por mim. Mesmo que eu
precise perder a consciência e cometer atrocidades no processo.
Matar Xavier e Miller foi um destes desastres.
Torturados, machucados, arruinados, amaldiçoados e mortos.
Exatamente como deve ser.
— E o que você sabe? — Williams mantém os olhos fixos em
minha direção, ele sequer pisca, apesar de parecer mais pacífico do que
alguns minutos.
Eu não tenho nenhuma informação vinda deles, mas tenho os seus
celulares que devem haver mais do que algum dia nos diriam.
— Hyuk está com os celulares dos dois — Aviso. — Em poucos
dias ele irá nos atualizar.
Ele suspira.
— Está bem. — Dando a volta em sua cadeira, ele se senta e relaxa
os cotovelos na mesa, massageando a sua nuca com as duas mãos. — Vou
escalar alguém para ficar responsável pela segurança da menina, você está
dispensado dessa função.
Afundo as mãos nos bolsos do jeans, completamente
despreocupado.
— Ninguém além de mim vai ter os olhos nela. Não me importa se
você é o líder, para ser honesto.
Ele ergue o olhar, visivelmente furioso pela minha afronta.
Não me importo, afinal, a missão é mantê-la à salvo, e perante
tantos acontecimentos envolvendo traidores, eu sou o mais apto para a
função. Não haverá discussões, porque ele sabe exatamente disso.
— Não serei o responsável a explicar exatamente qual é a
brincadeira que você está tendo com a neta de Victor.
Cansado de toda aquela conversa, agarro a maçaneta e não me dou o
trabalho de encará-lo quando saio pela porta com toda a impaciência que
está me corroendo desde que ele se achou no direito de me tratar como um
dos seus subordinados. Não é assim que funciona, eu tenho algum direito
aqui dentro, por menor que seja.
— Eu cuido disso. — É o que digo antes de bater a porta com
indelicadeza e desaparecer entre os corredores.

Bato duas vezes contra o saco de pancadas, revezando entre ambas


as mãos. O meu punho dói pela quantidade de vezes que eu o forço a
continuar batendo contra o saco, mesmo que os círculos arroxeados estejam
enfeitando todo o dorso da minha mão.
É uma forma de amenizar todo o estresse dos últimos dias, apenas
para evitar que a minha explosão prejudique todos ao meu redor.
O suor escorre pelas minhas têmporas, o calor corrói o meu corpo e
o faz queimar de cima a baixo. Como um choque térmico.
Com os olhos fixos no material negro do saco, concentro-me nos
golpes certeiros que causam o balançar de correntes que mantém o alvo
exatamente onde está.
— O dever o chama. — Ouço a voz de Hyuk anunciar às minhas
costas.
Profiro o último golpe no saco antes de encará-lo por cima do
ombro e cessar o balanço das correntes com uma das mãos enquanto
procuro por um ritmo equilibrado para a minha respiração. Eu não faço
ideia de por quanto tempo estou repetindo os mesmos golpes.
Preciso manter a calma.
— Meu único dever tem olhos azuis fascinantes, cabelos longos e
loiros e não deve medir mais do que um e cinquenta e dois. — Forço um
sorriso, nitidamente usando o sarcasmo para deixar claro que não estou
disposto a seja lá o que há para mim lá em cima.
Ele me encara com os seus olhos curiosos. Ele sabe que estou puto e
sem a mínima paciência para enfrentar toda aquela gente. Não é difícil
adivinhar.
— Bom... Acho que é uma boa hora para te avisar que o seu dever
está sentada na mesma mesa que Julien Roy..
Retiro a faixa fina de gaze presa no dorso de minha mão e a jogo em
algum lugar. Com rapidez, eu alcanço a minha camiseta e a passo pela
cabeça.
Não é uma boa notícia. Imaginar Clarke no mesmo ambiente em que
um soldado de Mercier desperta um incômodo agonizante na beira do meu
estômago. Principalmente Julien Roy, sei que um passo em falso e ele irá
reconhecer os seus traços e ligar um ponto ou dois.
Estaríamos fodidos.
Merda.
— Ei, ei, paradinho aí. — Estou prestes a sair pela porta quando
Hyuk empurra o meu ombro e me prensa no lugar, interrompendo o meu
movimento. — Devo te lembrar o que acontece quando você sai da linha?
Nego.
— Estou bem.
É uma perda de tempo tentar mentir para ele.
— Você tá puto.
Quase rio.
— Me dê uma única razão para não renunciar o meu juramento,
Hyuk, porque estou disposto a passar por todas as merdas de um traidor se
eu estiver livre de toda essa fachada infernal! — Rosno. — Não estou aqui
para ser tratado como se não tivesse renunciado todos os últimos anos pela
Revolução.
Ele suspira.
— Julien Roy sabe? — Ele quer saber, e tenho ideia sobre o que está
perguntando. Hyuk sempre usa um tom hesitante para perguntar sobre ela.
— A Revolução possui documentos que comprovam a existência de
uma gravidez da Eleanor antes de sua morte — Explico. — Nos deram dois
meses para encontrar a criança e entregá-la para a França.
Hyuk junta as sobrancelhas, me observa por alguns segundos como
se estivesse interpretando o meu olhar, e quando o faz, entende a nossa
exata posição.
— Merda.
— Eu sinto que eles desconfiam de nós, que estão milimetricamente
desvendando os mistérios ao nosso redor.
Ele parece confuso por alguns segundos, perdido em seus
pensamentos.
— Eles nos matariam se soubessem que temos dois de seus filhos
conosco há meses.
Sequer posso manter a cabeça coerente quando penso nessa
possibilidade.
— Williams está puto com a desconfiança de Julien, e puto comigo
por estar apaixonado por ela. Sei que ele tem a noção do que posso fazer
para protegê-la, Hyuk, e se me consideram uma ameaça pelo sobrenome
que carrego, farei jus a ele se ousarem tocar em um fio de cabelo dela.
Seus olhos brilham em hesitação, sei que qualquer um que me
conheça o suficiente, irá temer as palavras que saem da minha boca porque
não há mentira em nenhuma delas. Eu queimo o mundo, destruo
organizações e me torno um carrasco, mas ninguém toca no que é meu.
Hyuk suspira, coçando a sua nuca ao analisar o meu semblante
inexpressivo.
— Pense com a porra da cabeça de cima! — Ele rosna, espalmando
a mão em meu ombro. — A sua obsessão por Sofia Clarke pode acabar com
tudo se você não souber equilibrar tanta informação. Victor Mercier irá
levá-la de volta para a família, Jay, e você não pode ir contra. Ela precisa se
recuperar...
Eu o interrompo. De novo. E farei quantas vezes forem necessárias.
— Ela não vai para a porra da França! — Exclamo, afastando-me.
— Quando ele vier até nós, estaremos longe. Ela fica. Comigo.
Passo pela porta, esbarrando em seu ombro no processo. Hyuk solta
um longo suspiro. Sei que ele não está de acordo com boa parte dos meus
planos, mas eu não preciso do apoio de ninguém. Ele entende isso.
— E quanto à Kelly? — Questiona.
Não olho para ele ao dizer:
— Acho que você não entendeu, Hyuk. Vou tirá-los da Academia
em breve e não dou a mínima para as consequências.
Ele bufa um riso amargo.
— Você está se matando e vai levá-los junto com você!
Muito pelo contrário, estou salvando-os de um fim trágico. Posso
fazer mais por eles do que sua família jamais faria. Sequer me importo se
isso se parece com egoísmo.
No fim, eu sei que ele irá me acompanhar. Amigos são para essas
coisas.
E eu já estou decidido.

Adentrando ao refeitório, aguço a visão no segundo em que avisto a


mesa mais afastada do lugar, Marta servindo bandejas do que parece ser
pratos formidáveis de comida fresca. Os cabelos longos e loiros de Clarke
brilham junto aos de seu irmão sentado ao seu lado. À sua frente, Kelly
sorri para o garoto enquanto lhe oferece algum petisco.
Ao lado direito de Kelly, Julien Roy encara Clarke com tanta
curiosidade que posso adivinhar o que se passa na cabeça dele. Afinal, não
é uma tarefa muito difícil se perder em tamanha beleza.
Eu sei bem disso.
Mas há um perigo eminente em deixá-lo reparar tanto assim em seus
traços.
O parceiro de Roy não está presente na mesa, ele é o único presente
além de Marta. Suas mãos entrelaçadas sobre a mesa e os olhos fixos na
figura sorridente de Clarke dão sentido às minhas suspeitas, eles estavam
tendo uma conversa.
Uma conversa.
Me aproximo aos poucos, escondendo ambas as mãos nos bolsos do
jeans para não tornar tão explícito o meu incômodo.
— Ei, Jay! — Kelly é a primeira a notar minha aproximação. —
Senta com a gente.
Sem dizer uma palavra, sento-me ao lado de Clarke e direciono o
meu olhar para Julien Roy, que imediatamente me encara com um meio-
sorriso provocador na cara antes de tornar a olhar para ela. Parece
fascinado.
— Você está suado! — Marta faz uma careta ao servir a mesa com
um prato recheado do que parecem ser torradas. — Deveria tomar um
banho antes de sentar-se à mesa.
Forço um sorriso.
— Sempre tão receptiva.
Ela ri baixinho.
— Se precisarem de algo mais, chamem por mim. — Ela adiciona
alguns molhos especiais na mesa e se retira, carregando a bandeja por baixo
do braço.
Sinto o olhar de Clarke queimar em minha mandíbula,
provavelmente questionando a razão para que eu não tenha a
cumprimentado.
— Então, digam-me... Qual era o assunto? Não parem porque eu
cheguei. — Olho para Julien, que sorri de escárnio como o bom filho da
puta que é.
Eu não gosto desse infeliz.
Kelly enfia duas torradas na boca após enfiá-las no molho
temperado.
— Sofia estava dizendo sobre o dia em que o conheceu... — Ele diz.
— Eu não sabia que você gostava de assistir aos musicais...
É claro que ele tentaria tirar a história a limpo. Está me testando.
— Sou um homem clássico, Julien... A modernidade não me atrai.
Ele ri baixinho.
Kelly morde a torrada, causando o ruído do farfalhar de farelos
enquanto alterna o seu olhar entre nós.
Clarke ainda está calada ao meu lado, mas sei que ela me encara.
Posso sentir o seu olhar sobre mim, mas não ouso retribuí-la. Sei que minha
boca pode mentir e obter sucesso na missão de tratá-la como alguém
comum, mas os meus olhos não mentiriam.
E tudo o que quero evitar é que Roy veja a verdade em meu olhar
quando eu encará-la.
O clima está pesado, sei que todos aqui podem senti-lo.
— Você estava dizendo que o seu pai não era muito liberal, não é?
— Ele a pergunta. — Colombie não é um colégio muito reservado, milhares
de garotas que já estudaram por algum tempo, já ingressaram em suas
carreiras...
Clarke abaixa a cabeça, nitidamente desconfortável com o assunto.
— Foi minha mãe quem o convenceu. — Suas mãos se movem
desconfortavelmente sobre a mesa, noto quando ela arranha o pulso com
dois de seus dedos. — Ele nunca permitiria.
Mordo o lábio inferior, tentando conter a minha vontade de carregá-
la para longe dessa conversa que lhe desperta gatilhos irreversíveis.
Julien alterna o olhar entre nós, ainda concentrado em seus
pensamentos.
— Entendo... Quantos anos você tem? — Ele a ronda como a porra
de um predador. — Sua mãe...
— Ela… — Clarke parece impaciente, suas unhas arranham o seu
pulso com indelicadeza. Julien observa o seu movimento, notando a forma
como ela parece nervosa diante de tantos questionamentos. — E-Eu... Você
se incomoda se não falarmos sobre... Ela?
Kelly olha para a amiga com o semblante caído, é fácil perceber o
quanto a morte de sua mãe a afeta. Sempre seria assim, porque Eleanor
realmente amou seus filhos mais do que a si mesma.
Abrindo mão do meu auto controle, eu relaxo as minhas mãos e
tranco a mandíbula com força enquanto levo a palma de minha mão até a
perna de Clarke por baixo da mesa com a intenção de acalmá-la. Julien me
encara dessa vez, e quando toco em sua perna macia e acaricio com
delicadeza, Clarke para de beliscar o seu pulso e solta um longo suspiro,
usando uma das mãos para acariciar a cabeça do irmão.
No entanto, os olhos curiosos e vastos de Julien ainda me encaram,
e quando ele pisca algumas vezes ao nos observar, eu me dou conta que ele
é um homem bom no que faz. Dá para ver no seu olhar que ele sabe o que
está rolando, não precisa de alguém para dizer. Ele está me testando.
A Revolução tem os melhores soldados, os melhores treinamentos,
as melhores armas, as melhores táticas, os melhores líderes e os melhores
co-líderes. Se ele ainda está aqui, é porque não pretende sair sem toda a
informação que necessita.
Ele quer mais do que dissemos a ele naquela porra de escritório.
E eu acabei de dar isso a ele.
Ele sabe.
Não importa se ele desconfia ou não da maternidade de Clarke, ver
em meus olhos o quanto me esforço para acalmá-la e que sempre apareço
para destruir a sua tentativa de rondá-la e arrancar informações que eu
nunca diria, além de fulminá-lo com o olhar três vezes mais enfurecido por
cada vez que ele a observa, é o suficiente.
E, se algum dia duvidei da minha capacidade de cometer atrocidades
e absurdos por uma única pessoa neste mundo, acabo de ter a absoluta
certeza de que eu farei todo o possível para mantê-la à salvo. Longe do
caos. Longe da bagunça e das tragédias que o meu mundo traria para a sua
vida. Tudo porque eu não suportaria ser rejeitado pela única pessoa que
trouxe um novo rumo para a minha vida.
Eu fugiria com ela agora mesmo.
Levaria para longe de todos, onde ninguém poderia tirá-la dos meus
braços.
— É bom conhecer você, Sofia — Julien anuncia. — Espero vê-la
mais vezes...
Sinto quando o corpo de Clarke fica rijo sob meu toque, mas ela
assente e lhe oferece um sorriso gentil como a doce menina que é.
Não a arruine, Jason.
— Eu também... — Ela engole em seco. — Julien Roy. — ela
sussurra o seu nome. Demoro para entender que ela olha para o broche em
seu peito.
Ele sorri.
Quase como se estivesse realmente encantado com tudo o que vê..
Eu não tenho dúvidas de que ele pensa exatamente como eu na primeira vez
em que a vi. Uma cópia fiel de Eleanor. Clarke é idêntica à mãe, não deve
haver dúvidas existentes em sua cabeça sobre o fato dela realmente ter o
DNA Mercier correndo em suas veias.
— Em breve. — Sopra antes de se levantar e espalmar as mãos
contra a mesa. O refeitório parece silencioso para mim, porque tudo que
existe na minha cabeça é a sua voz e a sua presença. Ele me traz
desconforto. — Estou feliz em testemunhar a competência e a conduta da
unidade, levarei elogios para Mercier, sem dúvidas. Não se esqueça de
nosso combinado. — Ele direciona o aviso a mim.
Bufo um riso.
— Leve minhas saudações.
Ele retribui o riso.
Julien entende o que eu quero dizer, ele não é um completo burro.
— Irei.
Então ele se vai.
Nos deixa na mesa, e só quando olho para trás e verifico se ele ainda
está presente no refeitório, posso respirar em alívio e relaxar os meus
músculos.
Fecho os meus olhos por um segundo, sentindo uma pontada
desconfortável na cabeça por sugar tanta má energia que me rondou nos
últimos dias. Estou estressado pra caralho, e tudo se torna mais difícil de se
organizar quando não há algum resquício de sanidade.
— Jay, quem era esse homem? — Kelly pergunta, sua voz é mansa e
serena. — Ele me assusta.
— Não era ninguém.
Engulo a saliva presa na garganta, temendo o que virá a seguir.
Dificilmente sinto-me tão intimidado por alguém ou alguma situação,
entretanto, desta vez, eu não tenho outra alternativa. Tirá-los de Victor
Mercier é uma missão quase impossível, porque ele usará de todo o seu
grandioso poder para nos encontrar, e eu não estou disposto a recuar.
Poder, autoridade e soberania são coisas que apenas um de nós tem
sobre as mãos. Ainda assim, imaginar o caos que nos aguarda é capaz de
estremecer a porra das estruturas.
Eu estou prestes a travar uma guerra de ambos os lados, e nós
estamos bem no centro, fadados a ser atingidos por todos os lados.
Victor Mercier poderia dar uma vida digna para eles. Sei que ele
lhes ofereceria toda a herança de seu império, se pudesse. Em prol da
memória de sua filha. De seu legado. No entanto, Eleanor confiou a vida de
seus filhos a mim, não a ele. Ela me fez prometer que eu destruiria o mundo
por eles, e eu o farei.
Independentemente de qualquer consequência.
Espero algum dia descobrir a razão para que eu tenha sido digno de
tamanha responsabilidade.
A Revolução não é a minha inimiga. Victor Mercier não é um
inimigo. Tudo isto é apenas um sacrifício de um pobre cara que não
consegue abrir mão da sensação de finalmente, não estar só.
MONTE WHITNEY - 2022
AGORA

Tic, Tac...
Respiro fundo.
Tic, Tac...
Pisco os olhos e uno as sobrancelhas até que se tornem apenas uma.
Tic, Tac...
O fogo enche a sala. As chamas parecem fatais.
Cambaleio para trás, tropeçando em meus próprios pés enquanto
minha cabeça tenta compreender o que acabo de ouvir. Não é real. Não
pode ser real.
— Meu Deus... — Sopro, finalmente conectando o meu olhar ao
dele sem acreditar que mais uma vez, eu havia permitido que ele me
tocasse. Que arrancasse mais do que sobrou de minha sanidade.
Sinto os olhos dele examinando cada um dos meus movimentos, ele
me encara com o mesmo olhar dominador e possessivo de sempre. Como se
eu o pertencesse. Como se pudesse fazer exatamente tudo o que quisesse
comigo.
Jason Turner está bem aqui, em toda a sua postura habitual, em todo
o seu poder interno e externo, à frente das chamas alarmantes que crescem
às suas costas. Ele parece intocável. Parece a porra de um rei.
— O tempo passa e você continua com essa ideia maluca de que
sempre pode me manipular... — Estou mais decepcionada comigo do que
com ele, já que sou eu quem sempre reajo aos seus encantos. — E eu
sempre caio como uma burra!
Levanto os braços, usando-os para tapar o meu rosto enquanto sinto
as lágrimas escorrendo como se fossem sangue dos meus olhos. Dói
respirar e dói saber que mesmo que Jason sempre voltasse a me manipular,
eu cairia. De novo e de novo. Em um looping. Porque mesmo que ele me
fira e me destrua como um ferimento mortal, eu ainda estarei aqui sentindo
coisas por ele. Respirando por ele.
Meu corpo começa a esquentar, meu rosto queima em brasa viva, o
suor já escorre por minhas têmporas devido ao ambiente caótico e
incendiado em que nos encontramos.
— Não dessa vez, Jason! — Minha garganta dói ao forçá-la ao falar.
Arde. — Não posso acreditar em você. Não irei! Você passa anos mentindo
pra mim e pensa que é só negar que eu vou acreditar em você, mas não
adianta. Eu vi! Vi todas as fotos!
O choro entalado na minha garganta é tão fatal e devastador, que eu
poderia libertá-lo e toda uma Nação ouviria os meus soluços. Tamanha é a
dor e o sofrimento, é demais para mim.
— Olhe para mim. — Ele ordena.
Nego.
— Você é doente! Um lunático! — Engasgo um soluço.
— Olhe para mim. — Sua voz é rígida e autoritária.
Ele não pode acreditar que o seu plano de fingir que eu não o odeio
e que nada aconteceu, iria mesmo funcionar. Essa é a primeira vez que ele
me diz alguma coisa ou me contraria, porque em todas as vezes em que lhe
implorei por alguma verdade, ele não o fez. Ele se calou. Omitiu, negou a
verdade. Como ele pode pensar que desta vez eu acreditaria em uma única
palavra?
Não, porra, eu não vou cair em toda a sua manipulação outra vez.
Lembro-me de ter criado milhares de cenários que iriam contra tudo
que eu vi naquelas fotografias, quando estava sendo mantida naquele
quarto. Eu realmente pensei que ele poderia ter uma explicação que
mudaria tudo, que faria com que o meu peito não explodisse e a minha alma
se perdesse em algum lugar, exatamente como aconteceu.
Mas não.
Não aconteceu nada disso.
— Estou mandando você olhar para mim, Baker.
Solto um riso tão sarcástico que realmente parece que eu estou
vendo alguma graça em toda aquela palhaçada. Eu não sinto a força das
minhas pernas, tampouco me importo com as chamas intensa que rodeiam o
nosso corpo nessa sala quadricular.
— Quem você acha que é? — Abano os braços, finalmente
erguendo o meu olhar e conectando-o ao seu. — Você se acha poderoso?
Noto o seu pomo-de-adão mover-se em sua garganta em uma
velocidade lenta, a saliva parece descer dolorosamente. Seu maxilar se
contrai, entretanto, seus olhos não abandonam os meus.
Jason sequer se importa com todo aquele fogo que está à um fio de
atingi-lo e fazê-lo queimar.
A sala se parece com o inferno. Nós somos os protagonistas de toda
a devassidão de sua aparência.
— Você acha que eu acredito no que você diz?! — Um sorriso
melancólico cresce na minha boca em meio às lágrimas. Seu olhar é
tempestuoso e sombrio, é como me jogar em um buraco negro. — Eu estou
cansada! Toda vez que você vem, eu deixo você entrar, deixo você partir o
meu coração todas as malditas vezes! Deixo você se enfiar dentro de mim,
deixo você me tocar e me sujar mais do que qualquer outro homem
conseguiria! Por que você faz isso? Me responda, apenas me responda.
— Olhe nos meus olhos e você saberá se eu estou mentindo. — Sua
voz é rouca e extremamente rígida.
— Eu estou olhando! — Grito, impaciente. — E ainda assim não
consigo acreditar em uma única palavra que você diz.
— Olhe para mim, Baker! — O suor escorre por seu rosto, também.
Que merda ele quer que eu faça?
Estou olhando para ele, sequer posso enxergar as suas pupilas
devido a imensidão negra que ocupam os seus olhos e fazem dele ainda
mais sombrio e misterioso. Perigoso e tempestuoso. Entretanto, eu não vejo
nada. Não há nada para ver.
— Eu estou...
— Você está olhando para o Jason, olhe para mim! O meu eu,
aquele que você conheceu. Olhe para quem verdadeiramente amou você e
diga se parece que eu estou mentindo, mas diga com sinceridade e
convicção.
Eu sempre o enxerguei. Sempre vi além do que ele permitia que
outras pessoas enxergassem sobre si. Costumava compreender todos os seus
olhares vagos, todas as encaradas possessivas e a forma como ele contraía a
mandíbula quando estava em uma situação desconfortável, ou nervoso. Ou
então quando ele sentia a necessidade de me tocar sempre que precisava me
sentir para que eu entendesse por seu toque, mais do que ele expressava por
palavras.
Seu olhar nunca foi difícil de desvendar. Jason nunca foi um
mistério para mim.
É exatamente por isso que eu evito olhar diretamente para o seu
interior e a sua vasta imensidão, porque mesmo que o meu sangue borbulhe
de raiva e meu coração doa por ser tamanha a dor da traição, eu tenho
medo. Medo de deixá-lo me convencer de que realmente não o havia feito,
porque grande são as chances de eu acreditar em suas palavras.
Por mais que eu queira estar livre de seus encantos e do imenso
poder que ele tem sobre mim, não adianta ir contra a força da natureza. Ela
sempre vence.
A ilusão é mais libertadora do que a verdade, e eu não quero sentir
mais dor. Estou tão exausta...
Fecho os olhos com força quando as lágrimas se acumulam na
minha linha d'água e pela força que eu os pressiono, despencam por meu
rosto e acumulam-se em meu queixo.
E que são enxugadas pelos dedos de Jason Turner, que agora
acariciam a minha pele com todo o cuidado, como se, se não o fizesse, meu
corpo fosse virar cinzas.
— Abra os seus olhos e olhe para mim — Ele pede, é uma súplica
tão honesta que não resisto.
E eu faço.
Tudo porque uma parte minha, bem lá no fundo, submerso e
escondido entre as minhas entranhas e mais profundos sentimentos, quer
acreditar no que ele diz. A Sofia que eu enterrei está louca para dar as caras
novamente e foder com tudo o que tenho reconstruído graças à sua
ingenuidade.
— O que você quer que eu enxergue? — Meu olhar busca o seu, um
soluço sobe pela minha garganta e escapa por entre os lábios entreabertos.
— Não há nada para ver em você. Não há verdade alguma.
Eu realmente quero me convencer.
— Eu menti para você. — Diz com convicção. — Eu não sou um
monstro perverso, Baker, eu não matei a sua mãe e não acho que deveria ter
levado isso tão adiante.
Alterno o olhar entre as suas orbes, tentando, veemente, encontrar
algum resquício de brincadeira que poderia vir de sua parte. Qualquer coisa
que responda os meus diversos questionamentos. Por que Jason faz isso
comigo? Por que é tão divertido brincar com o meu coração e com os
resquícios do que restou da minha alma?
As prateleiras de madeira presas rente à parede despencam contra o
chão devido à força do fogo que as queima, mas nós sequer demos alguma
atenção para o caos ao nosso redor. Nós somos o verdadeiro caos.
— Eu não vejo verdade alguma em você, caramba! — Esbravejo,
tremendo contra o seu toque. — Não vejo nada além de manipulação,
omissão e mais mentiras, porque foi a única coisa que você me ofereceu
desde que me conheceu.
Jason parece durão e insensível na maioria das vezes, mas nesse
segundo, seu olhar transmite o mais puro e límpido arrependimento. Ele
parece estar destruído.
Eu fervo em agonia e tensão. Quero chorar. Quero matá-lo. Quero
arrancar a verdade ou acreditar em suas palavras. Quero todas as coisas.
Sou um misto de emoções.
— Eu te ofereci mais do que isso. Você sabe que sim. — Ele rebate
com rigidez e sem hesitar.
— Você me ofereceu o quê? — Quase rio, mas a mágoa está presa
em minha garganta. Sabia que não iria durar muito até que eu extravasasse.
— Nem o seu coração me foi oferecido, porque você sequer tem um.
Ele inspira fortemente.
— Eu tenho um coração, você o tem em suas mãos. — Minha boca
seca. — E a cada maldita vez que me obriga a carregar a culpa, você
esmaga cada parte dele.
Suspiro.
— Você esmagou o meu primeiro.
— Eu cuidei de você.
— Você me arruinou!
— Eu te amei!
Meu rosto ferve.
— Você me destruiu!
— E ainda estou tentando recolher os pedaços e reconstruir você,
porra.
O soluço escapa forte e intensamente, fazendo as lágrimas
fervorosas escorrerem pela pele do meu rosto e trilharem um caminho
eterno e flamejante até o meu queixo. Deus, isso dói. Está doendo muito.
— Pare de mentir para mim, Jason... — Cambaleio para trás,
sentindo o chão desaparecer conforme realmente cogito a possibilidade de
ser uma verdade. — Tanto faz! Só pare! Pare, porque está doendo muito!
Tropeço em meus próprios pés, minhas lágrimas já não podem ser
controladas e os meus instintos desaparecem por completo, fazendo-me
desequilibrar-me e despencar em direção ao chão. Perco completamente as
forças, não sei no que acreditar, e se algum dia, alguém já foi sincero
comigo.
No entanto, antes que eu possa sentir o meu corpo despencar contra
o chão duro, sinto as mãos grandes de Jason rodearem a minha cintura,
puxando-me para si. Ele segura o meu corpo com facilidade, sua respiração
pesada é enviada em contato com o meu pescoço.
Tento empurrá-lo, chuto as suas pernas como posso e me rendo ao
choro desesperado.
Meu mundo está despencando. E Jason me segura como se eu fosse
o seu. Como se ele estivesse tentando evitar que tudo desmoronasse.
— Me larga!
E ele o faz.
Sabe que eu faria o possível para afastá-lo de mim e sabe que
preciso de um minuto. De tempo para compreender tudo o que está
acontecendo...
Mas ele só o faz quando me arrasta para fora daquela sala e fecha a
porta, deixando que tudo vire cinzas do lado de dentro. Tudo que eu faço é
encostar contra a parede e chorar. Choro forte. De soluçar. O choro mais
sincero e doloroso que já havia escapado de mim em todos estes anos.
— Sua mãe foi enviada para a cidade à procura de pistas. — Jason
diz enquanto encosto a minha cabeça contra a parede e fecho os olhos.
Arrasto os pés no chão, trazendo os meus joelhos para mim e
encolhendo o corpo.
— Cale a boca! Eu não acredito em você! — Não posso acreditar.
Não irei.
— Quieta. Escute. — Autoritário, ele ajoelha-se à minha frente para
estar à minha altura. — A sua mãe trabalhava para a Revolução. Ela
recolhia pistas e levava à matriz, era especialista no que fazia e o líder
confiava nela. Ele sabia que ela faria um bom trabalho, não importando o
que custasse.
Fecho os olhos enquanto suspiros são soltos pelos meus pulmões.
Estou com dificuldade para respirar, tudo dói e tudo é fatal.
— Por que caralhos eu confiaria em você? — Sugo o nariz. — Por
que eu acreditaria nas palavras de quem testemunhou a morte dela? De
quem esteve perante o seu corpo?!
Eu o vi. Ele estava lá.
Perante o corpo de quem verdadeiramente poderia renascer a
vontade de viver que há tanto tempo não existe dentro de mim. A única que
verdadeiramente me amou. Jason estava com a porra de uma arma na mão,
ele esteve sujo com o sangue dela. Ele a carregou para a droga do seu carro
e sabe Deus onde ele a colocou. Onde ele a enterrou. Ela sequer teve um
funeral!
— Porque eu estou falando a verdade. A Revolução tem inimigos
perigosos por todo o mundo, e Eleanor era um alvo fácil.
As lágrimas fizeram cócegas em meu rosto.
— Por que ela seria um alvo fácil?
Ele fica em silêncio por alguns segundos.
Sua respiração é pesada.
As lágrimas não param de jorrar de meus olhos, meu peito dói em
uma intensidade maior do que algum dia já pude sentir.
— Porque ela era a herdeira. — Responde. — Herdeira de toda A
Revolução. Herdeira da maior empresa da França. Herdeira da maior
ameaça para todas as redes de tráfico de mulheres em todo o mundo,
incluindo a Luxury.
Meu peito infla.
Minha garganta seca.
Eu não sei de onde tiro tamanha força, mas com tamanha habilidade
e rapidez, me desvencilho dos braços fortes e grandes de Jason e ergo a
cabeça. Preciso olhar para os seus olhos, preciso ter certeza do que acabo de
ouvir.
— O quê?
Jason recua um passo.
Ele me analisa por completo, seus olhos percorrem cada mínimo
canto do meu rosto, inclusive a lágrima solitária, pesada e dolorosa que
escorre do meu olho direito e desce com toda a lentidão. Esse é o tipo de
lágrima mais doloroso. O mais fatal.
— Sua mãe não era sozinha no mundo, Baker. Ela tinha família,
especificamente um pai que lidera todas as unidades da academia. — Não.
Não. Não. — A sua mãe era uma assassina. Uma espiã e uma profissional
no que fazia. Não era uma mulher metida a camponesa, como você pensou.
Expiro com raiva, secando o meu rosto com o dorso da minha mão.
Encaro-o com sangue no olhar, meu corpo está incendiando, meu cérebro já
está frito, e eu nunca me senti tão zangada. E triste. E irritada. E enganada.
E destruída.
— Você está mentindo! — Rosno. — A minha mãe era uma boa
mulher e sozinha neste mundo! Nós éramos a única família dela, nós
éramos tudo que ela tinha!
— Não estou contradizendo você.
O fogo combina comigo agora. Eu estou queimando.
— Você só diz mentiras! — Espalmo as mãos em seu peitoral duro
como uma rocha, porém, ele sequer sai do lugar. — Mentiras, mentiras e
mais mentiras! — Continuo empurrando-o.
— Eleanor foi morta como parte de um acordo, Baker. Pessoas
como Marcus Floyd e Sebastian Hazel, não sentem piedade, não sentem
remorso e não hesitam. Você foi gerada com um único intuito: ter a sua
herança roubada e o império conquistado, então, eventualmente, eles não
teriam a quem temer.
Tudo parece vermelho. Tudo é sangue. Caos. Rompimento e
destroços.
Ouço o restante do que sobrou do meu coração partindo-se dentro de
mim. Ouço as rachaduras. Os pedaços partindo-se.
— Você. Está. Mentindo! — Grito, berrando como uma louca
esgotada. Como uma mulher destruída.
Ele intensifica o nosso olhar, não se mostra minimamente abalado.
— Eu não estava lá para matá-la, estava lá para salvá-la. — Por fim,
ele sana a minha dúvida. — E você precisa saber que é um alvo agora,
Baker, porque você é a primogênita da primogênita. Você é a próxima
herdeira quando for a única sobrevivente da família.
Estreito o olhar, minha cabeça está confusa e as lágrimas que
despencam sem autorização, não permitem que eu compreenda as coisas
com clareza. Eu cheguei ao limite.
— E você precisa saber, desta vez, eu não vou hesitar. — Ele diz
áspero. — Não vou parar para pensar na quantidade de vidas que eu vou
tirar para conseguir manter você segura. Não me importo com nenhuma
delas. Porque é isso que eu sou. Egoísta e sádico. Nada, nem ninguém, vai
tirar você de mim outra vez. E eu estou disposto a explodir o mundo para te
provar isso.
Doí.
Dói como o inferno. Dói como se alguém tivesse perfurado o meu
peito com a força de sua mão e arrancado o meu coração para fora. Dói
como se tivessem o pisoteado e o atirado para que os lobos se alimentassem
do meu sofrimento. Dói como se eu a tivesse perdido de novo, outra vez e
outra vez, como um looping.
Não tem fim.
Quando um grito engasgado escapa de minha garganta como forma
de libertar o caos que corrompe o meu interior e faz os meus órgãos
explodirem junto a todo aquele choro desesperado, ouço o som da lâmpada
da sala explodir e os cacos de vidro caírem sobre o chão. O ruído do fogo
espalhando-se é mais alto, a fumaça tóxica vaza por baixo da porta.
— Não pode ser real... — Suspiro, meus olhos doem muito
enquanto as lágrimas não param de jorrar. É uma dor fatal.
Estremeço o meu corpo quando sinto a dor profunda do luto. Como
se eu finalmente estivesse enterrando tudo o que sobrou da minha essência.
Conforme o encaro com os olhos minimamente abertos, sinto-me
destruída, como se não houvesse outra saída além do fim. Eu quero que
todo aquele caos me domine, quero ser levada para algum lugar onde há
paz. Quero me tornar cinzas, talvez assim, a dor não possa me alcançar.
— Baker, olhe para mim. — Jason ergue o meu queixo com
brutalidade, sua voz é abafada. Tudo que posso ouvir é o som das chamas
aproximando-se de nós na velocidade da luz e das batidas lentas, quase
inexistentes, do meu pobre coração. — OLHE PARA MIM!
Soluço.
Tento respirar fundo, mas tudo que eu posso inalar é a fumaça tóxica
de toda aquela porcaria queimada. Meu pulmão tem dificuldades para
extrair oxigênio.
Meus olhos seguem os seus em uma completa lentidão, porque tudo
que consigo fazer é desejar o meu fim e chorar. E cair. E desmoronar.
Jason abre e fecha a boca, ele parece estar falando alguma coisa,
mas não o ouço. Não posso ouvir.
Houve uma época onde eu iria confiar fielmente em suas palavras,
mesmo que estivessem longe de qualquer realidade. Eu faria isso porque o
amava, porque por mais absurda que fossem as suas suposições, eu confiava
que Jason jamais mentiria para mim. Ele jamais diria qualquer coisa com o
intuito de me machucar. De acabar comigo.
Mas tudo mudou.
Hoje as coisas são diferentes. Eu sei do que ele é capaz e sei que é
horrendo e impiedoso e insensível, sei que ele seria capaz de matar pessoas
por motivos fúteis que jamais seriam levados em conta.
Mas eu também sei que minha vida sempre será uma caixinha de
surpresas, sejam elas boas, ou ruins. Sei que a minha mãe guardava
segredos, sei que ela mantinha diversas coisas para si mesma só para que
nós estivéssemos à salvo. Josh e eu.
Ela não parecia uma assassina.
Ela sequer parecia ter noção de como segurar uma arma, imagina
usá-la para matar pessoas?
Eu me recuso a acreditar nisso, me recuso acreditar que a minha
mãe, aquela mulher sorridente e gentil, doce e carinhosa, fazia parte de todo
esse caos que arruinou a nossa vida. Me recuso a acreditar que nós podemos
ter algum vínculo familiar e que, em todos esses anos, eu me enfiei em
bares e em lixões, e em lugares duvidosos e em casas abandonadas para
sobreviver quando sequer estava sozinha na vida.
Que porra de familiares permitiriam que alguém passasse por tais
provações?
Que tipo de pessoa olharia nos meus olhos e diria com todas as
letras que gostaria de me arruinar, quando sempre tenta impedir que eu seja
destruída?
Um soluço rasga a minha garganta junto a um gemido de dor.
As muralhas estão caindo.
Eu estou caindo.
— Você pediu pela verdade, por que não consegue suportá-la? —
Ele acaricia o meu queixo, erguendo-o para encará-lo.
Abro os olhos com lentidão.
Porque a verdade dói.
Olho para Jason em meio às lágrimas e aos soluços, observo a
imensidão de seus olhos e quero me jogar no abismo que possui. Quero
fazê-lo cair por ter sido tão cruel, por ter destruído a minha vida, por mentir,
por me matar por dentro.
Em minha mente, lembranças do sorriso de minha mãe vibram no
meu interior. As imagens quase apagadas de seus olhos tão azuis quanto o
oceano, o doce som de sua voz, as figuras de sua imagem cuidando de
Josh... Não há como ser verdade. Ela era pura e gentil, jamais faria parte
dessa bagunça...
Ela teria me dito. Nós éramos próximas.
Ela teria me dito alguma coisa...
— Porque não pode ser verdade. — Sopro, exausta.
Eu tirarei esta história a limpo. Farei o que puder para desmentir
todas as porcarias que saíram pela boca do homem que partiu o meu
coração e o arruinarei, assim como ele fez comigo.
Há alguém que não mentiria para mim.
Levanto-me do chão com dificuldade, arrastando os pés no chão ao
erguer o meu corpo. Empurro Jason para longe enquanto corro entre os
corredores com rapidez, olhando para todos os lados à procura de Lexie.
Meus pés vacilam, minhas pernas não sentem a mínima vontade de
obedecer aos comandos, entretanto, mesmo em meio a tanta fraqueza e
hesitação, continuo a correr pelos corredores. Meu pescoço soa e minhas
mãos tremem. Nada disso vai passar enquanto eu não ouvir da boca dela.
Da única que não pode mentir para mim.
Nós éramos sozinhos. Não tenho família. Não há chances de ser
verdade.
Porque família não abandona família. A família teria evitado que eu
fosse quebrada...
Ouço o som da voz de Jason chamando por mim. Ouço o seu
suspiro e o seu xingamento, mas não me viro. Não me dou ao trabalho de
olhar para trás para verificar se ele está me seguindo, porque não é
necessário. Jason sempre me seguiria.
— Lexie! — Chamo por ela, arrastando os dedos pelas paredes.
A fumaça que vem da sala em que Jason ateou fogo já circula por
todos os cômodos da cabana. O cheiro de papel queimado e de madeira
velha adentra os meus pulmões e me faz ter dificuldade para respirar.
— Lexie! — A minha voz treme, meu coração martela contra o meu
peito.
O som de uma porta se abrindo é o que envia um fio de esperança
para o meu peito.
— Aspen? — Ouço a sua voz carregada de preocupação. — O que
está acontecendo? Onde você está?
Cesso o passo, olhando ao meu redor enquanto os meus olhos ardem
pela fumaça que os abraça.
— Lexie... — Minha voz mal sai. Tudo em mim dói. — Lexie, eu
preciso de você.
As paredes são escuras, adornadas por papéis de parede que já dão
sinais de que derreterão em breve. Continuo correndo pelos corredores até
sentir que se trata de onde ecoou a sua voz.
— Estou aqui! — Ela grita.
Viro a cabeça para a direita, virando o corredor e encontrando a sua
figura recostada a uma das portas que devem levar a algum tipo de quarto.
Ela vasculha o lugar com os olhos, parecendo procurar por algo. Mas
quando fecha a porta e seus olhos encontram os meus, Lexie larga tudo o
que está fazendo e vem ao meu encontro.
Quando as suas mãos me tocam, eu me jogo em seus braços.
— Ei, o que foi? — Lexie massageia o meu couro cabeludo
enquanto mais soluços escapam da minha garganta.
Balanço a cabeça.
— Lexie, por favor... — Levanto a cabeça. — Preciso que você seja
sincera comigo.
Seus olhos me analisam por completo antes de desviarem até algum
ponto atrás de mim e congelarem por alguns segundos. Ela engole em seco,
e não é preciso ser um gênio para saber que ele está bem atrás de nós.
Ela fica em silêncio, talvez por já ter uma ideia sobre o que se trata a
minha petição.
— Foi Jason quem a matou? — Pergunto. — Foi ele quem a
assassinou, Lexie?
Observo os seus olhos escuros analisarem os meus, ela parece
minimamente tentada a mentir para mim. Mas quando eu a vejo olhar para
ele de novo, sei que não haverá outra resposta.
— Ele nunca faria isso. — Suspira.
Expiro com força.
— A minha mãe...
— Ela foi assassinada por pessoas que realmente são os seus
inimigos, As. — Ela me interrompe com gentileza. — Pessoas estas que
estão procurando por você neste exato momento, porque você é...
Balanço a cabeça.
— Não me venha com essa história de que eu sou herdeira! —
Exclamo, irritada. — A minha mãe está morta e o meu pai nunca deixaria
nada além de completo sofrimento para mim, ele me desprezava!
— Não estou falando do seu pai. — Lexie diz. — E sim do seu avô.
Reúno as sobrancelhas.
— Meu avô? — Um riso amargo me escapa. — Para com isso,
Lexie, para de brincadeira. Eu não tenho família!
— As...
Sou rápida em interrompê-la quando a minha mão se levanta e com
o ódio que eu tenho acumulado em meu interior, golpeio o seu rosto.
O seu rosto é jogado para o lado com tamanha intensidade do golpe,
Lexie leva uma das mãos com rapidez até o local atingido para acariciá-lo.
Seus olhos se fecham e um arquejo lhe escapa por tamanha surpresa.
Não me dou ao trabalho de me importar. Ninguém aqui se importa
comigo, então por que eu deveria?
— Vá se foder — Sou rude no xingamento. — Você é como ele.
Mentirosa, ardilosa e cruel, Lexie, porque em todas as vezes em que eu te
pedia por uma resposta, você a negava para mim. Você me machucou
também. Eu te odeio por isso e odeio ter confiado em você por cada
segundo da minha vida! — Grito.
Não lhe dou oportunidade de resposta.
Viro o meu corpo para trás, olhando diretamente para o par de olhos
obscuros que falta me engolir de volta. Não há problemas, o sentimento é
totalmente recíproco, eu o desprezo ainda mais.
Por todas as mentiras.
— Eu vou atrás da verdade. Vou procurar todos os meios de saber se
o que você me disse é verdade, Jason, e quando eu descobrir, você vai se
arrepender por ter entrado na droga do meu caminho e ter feito com que eu
me apaixonasse pela pessoa desprezível que você é. — A lágrima que
escorre é suja. Cruel. Faz de mim um monstro insensível. — Se você
pensou que abrir a boca faria com que eu te odiasse menos, você está
enganado. Eu te odeio mais do que se tivesse mantido a porra da boca
trancada a sete chaves!
Então eu me viro.
Seco aquelas infinitas lágrimas que escorrem do meu rosto com o
dorso da minha mão e saio pela única porta que daria para o lado de fora da
cabana.
Os deixo ali parados, refletindo sobre a grande merda que fizeram
em minha vida. A grande destruição que tinham feito com a garota pura que
eu costumava ser antes de conhecê-los. Os deixo observar a minha retirada,
porque a próxima vez que eu retornar, será para destruir eles.
Por matar a minha mãe.
Por matar a minha sanidade.
Por matar o meu coração.
Por matar a mim.
É uma vingança particular, porque mesmo que me esforce para me
esquecer de todas as vezes que abracei o culpado da minha ruína, quando
lembro, eu morro mais um pouco por dentro. Todas as vezes que me lembro
de como beijá-lo trazia esperança e felicidade para o meu coração, é como
esfaquear o meu peito. Todas as vezes que me lembro de como confiei a
minha alegria a ele, é como ter a certeza de que ele nunca será capaz de
realmente cumprir com as expectativas, porque ele é o oposto disso. Jason é
o caos, a destruição, a desolação e a desesperança.
Ele acabou de matar o que havia restado do meu coração. Agora eu
sou como ele, um completo caos.
E não há como voltar atrás.
Só paro de andar quando chego até a floresta e caio contra a neve,
de joelhos, suplicando por ar. Suplicando por força e por coragem.
Ergo a cabeça e encaro o céu estrelado com dificuldade devido às
lágrimas.
Lembro-me de quando eu ia para a janela do quarto de Jason olhar
para as estrelas e conversar com a minha mãe. Ela era brilhante e iluminada,
assim como uma estrela. Sei que ela estava me olhando naquele tempo, e
sei que está me olhando agora.
Sei que ela tem os seus olhos em mim e sei que não vai me
decepcionar e me destroçar assim como todos aqueles que se aproximam.
O choro vem com força. O grito também. A súplica por um socorro
divino, por qualquer coisa que possa fazer de tudo isso um completo
pesadelo.
Nada vem, no entanto. Nada me socorre, nada me ajuda a preencher
esse buraco imenso dentro do meu peito.
Nada consegue me salvar desse completo pesadelo.
A minha mente está confusa. Eu não sei no que acreditar porque,
mesmo que eu não confie em uma palavra do que Jason havia dito, não
posso apagar a possibilidade de ser real. Isso significaria que eu o odiei por
motivos inexistentes, significaria que eu odiei a pessoa errada por três
malditos anos. Significaria que ele mentiu para mim simplesmente porque
achava engraçado a forma como eu me apegava a ele mesmo existindo uma
chance dele ter tirado de mim, a única pessoa que verdadeiramente me
amou.
Me sinto patética e manipulada. E enganada. Destruída.
Não me abala a possibilidade da minha mãe ter sido uma espiã. Ela
era esperta e confiante, apesar de sempre parecer abrir mão de suas garras
quando Sebastian aproximava-se de Josh e eu. Ela sempre nos protegia, isto
estava acima de tudo. Sei que tudo o que ela fez teve uma razão, porém, eu
realmente acreditei que seria incluída em sua história. Em sua vida.
Tudo em mim está desconstruído. As paredes caíram e mais uma
vez, eu não tenho nada.
— Sabe, eu realmente pensei que ele demoraria mais algum tempo
para te dizer a verdade — Uma voz ecoa ao meu lado, o ruído vindo junto a
ventania. — Mas a julgar pelo seu choro insuportável, temo que ele foi mais
rápido do que eu pensei.
Levanto a cabeça com dificuldade, meus olhos ardem e minhas
pálpebras parecem pesar toneladas.
Essa voz...
Eu a conheço.
Meus joelhos tremem e levo ambas as mãos para o chão coberto de
neve, sentindo a frieza entrar em contato com a minha pele de imediato.
— Chegou a hora de acertarmos as contas, menina insolente.
Sequer tenho tempo para processar o que está acontecendo ou erguer
o meu corpo, porque minha boca imediatamente é tapada com o que parece
ser um pano. Não está seco. Nele há algum produto amargo e
desconcertante, minhas narinas ardem e meus olhos não conseguem manter-
se abertos.
Minha visão escurece.
Então eu sei que minha fraqueza é a minha maior inimiga. Ela é a
minha ruína. As pessoas que a causam, também.
Porque são todos eles que destroem quem eu deveria ter sido.

O som do que parece ser madeiras sendo atiradas contra o chão faz-
me abrir os olhos. Minha cabeça dói muito, meus músculos estão doloridos
e pesados, como se eu tivesse ingerido milhares de relaxantes musculares.
Eu não me movo, tudo ainda está completamente embaçado para
mim. Meus olhos não funcionam corretamente.
Tudo dói.
— Bu! — Ele ri ao ver o espasmo que causa em meu corpo pelo
susto.
Um par de sapatos escuros são postos em meu campo de visão, só
então percebo que a minha cabeça está baixa. E a minha bunda sentada em
uma cadeira desconfortável para caramba.
Com dificuldade, eu levanto a cabeça.
Um baita de um erro do cacete, porque quando olho para os olhos
escuros, quero enrolar as minhas mãos em seu pescoço e matá-lo asfixiado.
Talvez até fosse pouco quanto ao que ele realmente merece.
— Filho da... — Fungo, completamente extasiada pela fúria que me
corrói.
Ele sorri ardiloso, suas rugas abaixo do nariz curvam-se pela largura
de seus lábios.
— Puta...? — Ele completa. — A pirralha agora xinga?
Então as lembranças retornam com força.
Minha mente clareia como a porra de um flash intenso. Com ela,
vem todas as lembranças do que aconteceu dentro daquela droga de cabana,
e tudo após a minha saída.
Até ser apagada pela porra do maior dos cuzões.
— Eu vou matar você — Salivo, usando toda a minha força para
cuspir diretamente na sua cara. — Xingar é a única mudança que você não
deveria se preocupar agora, seu cuzão.
Balanço o meu corpo e cerro os dentes quando sinto as minhas mãos
livres ao lado do meu corpo.
Arqueio a sobrancelha.
Que tipo de piada é essa?
— Para que tanto alarde? — Sua voz grave ecoa. — Você não está
presa, então vamos... Me mate.
Meu corpo não responde com sabedoria àquela afronta, tudo ainda
está mole e enfraquecido. Eu quero partir para cima dele e acabar com toda
essa confiança que tem para me deixar solta quando tudo que eu quero é
matá-lo. Quão corajoso ele é?
A julgar pelo sorriso completamente amargo e convencido que
cresce em seu rosto, percebo que ele sabe exatamente que eu não farei nada.
— Foi o que eu pensei. — Sebastian Hazel Clarke levanta-se do
chão enquanto usa uma flanela para secar o seu rosto.
Eu nunca senti tamanha raiva e repulsa em toda a minha vida. Estar
cara a cara com Sebastian é como estar de frente para o diabo. Um passo
em falso e ele poderia me destruir, mas tudo que não sabe é que eu já estou
destruída. Não há o que roubar de mim, porque ele tirou tudo.
— Que merda você usou em mim? — Pergunto, sentindo-me
enfraquecida.
Ele age como se eu fosse a coisa mais importante para a sua vida
quando torna a me encarar com todo aquele ar de preocupação que ambos
sabemos ser inexistente.
— Clorofórmio. Não se preocupe, o efeito dura menos de vinte e
quatro horas, em poucas horas você vai poder voltar a choramingar e se
portar como uma selvagem.
Expiro com força, recuperando um ar que não chega aos meus
pulmões.
— Você me drogou?!
Ele nega.
— Você chora muito alto. Estava me incomodando. — Zomba. — E
presumo que você não aceitaria dar uma volta com o seu velho por livre e
espontânea vontade.
Levanto a cabeça, desviando das sombras de seu olhar sombrio por
poucos segundos a fim de examinar o lugar onde estamos.
Semelhante a um porão, as paredes são adornadas por concreto
velho e a lâmpada amarela brilha bem acima da minha cabeça enquanto um
fio suave de vento balança o lustre de plástico à sua volta. O chão é sujo e
frio, o lugar parece se com uma sala de torturas, a julgar pela mesa de metal
que é o único enfeite no centro da sala, como se o meu cadáver fosse estar
perante o alumínio frio dela em poucos minutos.
Ele vive aqui?
— O que você quer de mim? — Erguendo o olhar, eu o encaro por
baixo dos cílios enquanto meu cabelo úmido roça em minha bochecha
quente. — Sua casa costumava ser menos parecida com um lixão, naquela
época em que você tinha alguém para encher o seu bolso. — Ironizo,
arrancando-lhe uma risada.
— Tem razão — Ele afirma. — Eu quero a minha vida de volta, e
você vai me ajudar a tê-la.
É a minha vez de rir.
— E por que eu faria isso?
— Porque eu tenho as respostas que você procura. — Ele é certeiro
e objetivo. — É uma troca justa, não acha, Sofia?
Pisco algumas vezes. Meu corpo dói como se eu tivesse sido
esmagada por rochas imensas, tudo em mim está frágil e exausto. Mas
ainda assim, eu não consigo parar de juntar forças para reagir a este
encontro fatídico.
Analiso a sua estatura com curiosidade, Sebastian está diferente. Ele
agora usa roupas casuais, em sua cabeça, um boné azul-marinho cobre os
seus cabelos grisalhos e o deixa com a aparência acabada. Sua barba por
fazer deixa claro que ele é uma pessoa completamente diferente do que
quando eu o vi pela última vez.
Ele está fodido. Completamente patético.
— O que te faz pensar que eu quero alguma coisa de você?! —
Apoio às minhas mãos na beira da cadeira de alumínio ao reunir forças para
me colocar de pé. — Por mim, você pode ir para o inferno e levar as
respostas junto com você. O que eu quero e preciso saber, descobrirei
sozinha.
Sebastian movimenta-se pela sala, o som de seus sapatos colidindo
contra aquele chão imundo acelera as batidas do meu coração. Meu peito
ferve e minha cabeça lateja por tanta informação a ser processada.
Entretanto, acima de tudo, eu queria ter forças para matá-lo.
Queria ter forças para acabar com a memória de merda que guardo
referente a este homem.
Queria ter forças para vingar a minha mãe.
Afinal, estou diante do causador de sua ruína.
De nosso sofrimento.
— Você é capaz? — Ele instiga a minha insanidade. — Eu confesso,
subestimei você. Acreditei que você seria uma pedra no meu sapato, mas
você cresceu. É movida pela raiva, pelo sabor da vingança.
Sebastian alcança uma prateleira que eu sequer havia notado
naquela sala quadricular, suas mãos agarram uma caixa de bugigangas e
erguem o que parece ser uma pasta de arquivos.
— Neste envelope há todas as informações sobre a sua mãe. — Ele
me encara por cima dos ombros, seu olhar é carregado de escuridão e
perdição. — Nós as coletamos quando descobrimos de seu envolvimento
com A Revolução. Ela tentou nos enviar para uma emboscada, mas
esqueceu que nós sempre fomos mais inteligentes. — Um sorriso cresce em
seus lábios. — Mas você parece mais inteligente. É fria. Cruel e objetiva.
Respiro fundo. Meus olhos queimam em brasas vivas enquanto eu
desvio o meu olhar entre sua encarada mortal e o objeto preso em sua mão.
— Até mesmo uma barata soa mais convincente do que você. — Eu
não quero acreditar que ele poderia falar alguma verdade. — Está blefando.
Ele ri.
— Eu não blefo. — Garante, voltando a caminhar em minha
direção. Acompanho todos os seus movimentos enquanto ele se coloca à
minha frente e então estende a pasta avermelhada em minha direção. —
Quer descobrir quem é a vadiazinha que a sua mãe era? Então pegue.
Engulo em seco, tentada a acabar com essa tortura.
— Vamos lá, Sofia, você sabe que quer abrir.
Levanto a cabeça, consequentemente conectando os nossos olhares
tempestuosos. As rugas ao lado de seus olhos são finas e aparentes, sua
aparência sombria e duvidosa, no entanto. Sebastian descobrirá que eu
posso ser tão sádica quanto ele.
— Não. Não quero. — Afirmo, batendo com a palma da minha mão
em sua pasta e fazendo-a voar pelo ar até cair contra o chão em uma
distância considerável. — Eu sei quem ela era, porque eu a conhecia. O que
realmente quero saber, é como você tem coragem de estar cara a cara
comigo depois de todos esses anos, porque eu juro, tudo o que eu mais
quero é arrancar o seu coração do peito, seu imbecil! — Ameaço, olhando
diretamente para o fundo de seus olhos sombrios.
Sebastian torce os lábios e olha para o seu relógio de pulso por
alguns segundos, então empurra o meu corpo fortemente para trás,
causando a minha queda diretamente onde eu estava quando despertei. A
minha bunda dói pelo impacto forte contra a cadeira, porém, não tenho
tempo para resistir ao seu avanço, porque quando meu corpo resolve
obedecer alguma porra de comando meu, os meus pulsos já estão cobertos
por suas mãos enquanto ele os prende para trás do meu corpo.
Luto contra os seus apertos, balanço o meu corpo enquanto um
rosnado feroz escapa da minha garganta.
Meu Deus, eu quero matá-lo.
Toda a imensidão dos sentimentos devastadores que dominam o
meu peito enquanto eu estava naquela cabana, presa no olhar tempestuoso e
devasso de Jason, não é comparada com o sentimento de repulsa e da
infinita fúria que acabara de me preencher a partir do momento que
Sebastian sustenta o seu corpo sobre uma das pernas contra o chão e coloca-
se à minha altura.
Levanto a minha perna e chuto o seu peito com força, soltando
xingamentos involuntários para que ele não se aproxime de mim.
O que ele faz, no entanto, é o oposto.
Sebastian contém os meus movimentos ao segurar ambas as minhas
pernas e conter qualquer outro ataque instintivo que eu poderia lhe causar.
— Que porra você quer de mim, inferno?! — Sopro os cabelos que
despencam para os meus olhos com toda a bagunça. — Me diz! Você já me
tirou tudo, o que mais você quer?
Eu quero chorar.
Não porque estou diante do maior dos meus pesadelos, não porque
estou cansada ou desolada. Mas sim porque eu já não aguento tanto caos e
desgraças em minha vida, não aguento mais não ser nada além de uma peça
usada por todos. Sem exceção.
Todos se aproximam de mim porque desejam algo, porque querem
algo que eu possa tornar mais acessível a eles.
Mas e quanto a mim?
E quanto a mim, porra?
Ninguém sequer pode entender que eu estou quebrada por dentro e
cansada de ser apenas um peão no meio de tanto poder. Eu sequer me
importo com isso, não me importo com a droga da herança de minha mãe,
não me importo com a fome que ela poderia ter evitado para nós. Não me
importo com a vida confortável que ela poderia conceder a nós, nós a
merecíamos.
Não me importo com Sebastian e com toda a sua ganância
exorbitante ou a sua arrogância vasta.
Não me importo com o quanto Jason diz me amar, porque o amor
não destrói. O amor não desola e não é devastador.
Não me importo com o que minha mãe fez antes de sua vida ser
tirada, afinal, nada disso vai trazê-la de volta.
Não me importo com nada.
Porque nada das coisas que eu deveria me importar, apagarão os
últimos anos e trarão de volta uma vida digna, feliz e próspera, na qual eu
realmente deveria ter sido agraciada. Ninguém deveria ser tão infeliz.
Ninguém deveria ser tão quebrado.
Então, o que caralhos a importância me trará?
Nada.
É o fim da linha, porque tudo isso é como lutar contra a maré. É
inútil.
— O que eu quero é uma troca de favores. — Sebastian diz ao
prender os meus pulsos com o que parece ser uma corda.
Meu corpo ferve e o suor escorre pelas minhas costas.
— Você é patético — Um riso amargo me escapa. — Nem morta eu
te faria algum favor, seu escroto.
Os seus pés circulam o meu corpo até colocar-se à minha frente.
Ergo a cabeça, levantando o queixo para encará-lo com confiança.
Olho no olho, nós nos encaramos como se estivessem travando uma
batalha.
— Nem mesmo se eu te oferecer o sabor da vingança? — Ele
provoca e arqueio a sobrancelha. — Te dou a vida de Jason Turner, para que
você decida o que fazer com ela.
Uma risada se arrasta para fora da minha boca.
— O que te faz pensar que ele não te mataria antes de você pensar
em colocar as suas mãos nele?
Sebastian sorri.
— Não se pode fazer mal a quem não pode ver.
Minha garganta queima pela necessidade de ingerir algum líquido.
— Você se tornou invisível?
O sarcasmo me serve como uma arma, mas Sebastian mal parece
notar quando parece se orgulhar de seu plano maligno.
Seu sorriso cresce deliberadamente.
— Há mais gente envolvida nisso do que você imagina.
Um riso me escapa por tamanha descrença, eu sequer acredito que
Sebastian Hazel Clarke, o homem que me abandonou em um colégio como
um animal para fugir de suas responsabilidades, está me propondo um
acordo doentio para sair da vida miserável em que ele mesmo se enfiou.
Me impressiona o fato dele realmente acreditar que ter a sua cabeça
não seria prazeroso para mim, também.
Os dois são culpados pela minha dor. Por tanto caos devido às suas
mentiras e manipulações.
Eu não mudei o meu desejo de vê-lo morto apenas porque ele
resolveu abrir a boca sobre alguma coisa. Ninguém pode me garantir que
Jason falou a verdade, que não é mais uma de suas manipulações para me
manter por perto, para então, me destruir novamente.
Uma vez foi o bastante. Aprendi a minha lição.
Fazer uma aliança com Sebastian não é uma completa burrice, assim
como ele disse, eu não sou uma idiota.
Descobrir a verdade sobre o que a minha mãe era, sobre a verdade
por trás de sua morte, é o meu objetivo no momento.
Não me importo com quantas pessoas destruirei no caminho, porque
ninguém se importou com esta covardia quando foi a minha vez.
Estou cansada de chorar. Cansada de buscar pela verdade naqueles
que nunca foram sinceros comigo.
Eu descobrirei a verdade e quando souber de tudo, eu terei dois
alvos na minha mão. Eu saberei como me livrar deles para sempre, então
talvez, eu consiga me libertar. Viver uma vida de verdade.
Ou tentar.
Usando o seu plano como meu, usando a sua ganância e egoísmo
contra ele mesmo, não hesito quando olho para o fundo de seus olhos
esperançosos. Os olhos que anseiam pela resposta que ele precisa, pela
nossa união, aquela que no fim não lhe traria nada além da sua ruína. Da
sua morte.
— O que você quer que eu faça?
Sebastian levanta-se do chão, batendo as suas palmas ao livrar-se da
sujeira que vem do chão em que ele se encontra. Seu sorriso cresce e seus
pés o levam para as minhas costas onde ele desata as cordas com agilidade,
libertando o meu corpo de suas amarras.
Ele não faz ideia do que está fazendo.
— Sabia que você faria a escolha certa.
Ele não faz mesmo ideia.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Ninguém desconfia de nada.


O meu saber, no entanto, é o suficiente para desejar estar longe
quando a bomba explodir. Sebastian tem planos maiores do que eu poderia
imaginar, e em todos eles o fim é o mesmo: o império reconquistado.
Não foi difícil voltar para a cabana e recolher os meus trapos, assim
como não foi nada demais fingir que toda aquela conversa não tinha
acontecido. No fim, todos entenderam que era mais fácil agir como se tudo
estivesse bem.
Porque eu explodiria. Eu choraria, sofreria e sentiria. Faria tudo o
que fosse preciso depois que a angústia do meu peito fosse sanada.
Eu virarei cinzas se for preciso, mas tudo isto acontecerá depois que
eu souber de toda a verdade que nunca foi revelada para mim. A minha
história de vida ainda é um mistério, Sebastian sequer aparentou sentir
vontade de partilhar de suas informações comigo.
Tudo que ele quer é poder. Dinheiro. Luxo. Sem se importar em me
usar no processo de novo.
Seria até cômico se eu realmente não me sentisse abalada.
Mas ele pagará.
— Você vai nos dizer onde é a base da Luxury. — Jason rosna
contra o rosto de Kylian.
Com a cabeça baixa e o olhar penetrante, observo o corpo de Kylian
pingando sangue enquanto o seu irmão e Jason o torturam até o sol raiar. Já
é dia lá fora, e eu sequer me dei o prazer de fechar os olhos e dormir por
alguns minutos.
Já estamos na cabana onde encontramos abrigo. Lexie dorme
profundamente no canto esquerdo da cabana, como se ela não se importasse
com o barulho da carne humana sendo atingida bem ao seu lado.
No centro da sala, Kylian tem os seus braços e pernas amarrados
com uma corda em uma cadeira. Seu corpo está repleto de feridas fundas
onde a sua carne já é visível a olho nu. Seus olhos miúdos estão tão fundos
que sequer se pode enxergar vida neles.
Seu peitoral está completamente açoitado. Mas ele não luta por sua
vida. Ele apenas aceita sua condição.
— Eu já disse que não sou um inimigo. — Kylian ergue a cabeça
com dificuldade. Ao movimentar os lábios, o sangue pastoso escorre de sua
boca como suco.
Não tenho quaisquer reação diante toda a tortura.
Eu ainda estou hipnotizada por todas as coisas que ouvi nesta noite.
O ódio esteve cegando os meus sentidos, porque eu já não sinto nada em
assistir a uma tortura. Seja remorso ou agonia. Nada. Eu o assisto como se
estivesse vendo um programa de TV.
Meus olhos o tempo todo estão fixos em Jason. Em sua figura
poderosa e perigosa. Em seu semblante cego pelo ódio.
E eu quis que fosse ele naquela cadeira. Eu quis que ele estivesse
sendo torturado.
Desejei que ele sofresse tanto quanto eu sofri. Queria que Jason
Turner e Sebastian Hazel queimassem no inferno.
Calada e encolhida no canto da parede, observo quando Jason retira
um alicate do suporte de seu jeans e posiciona a ponta dele no peitoral de
Kylian, mais precisamente em seu mamilo direito.
— Resposta errada.
Um grito alarmante e agonizante escapa de sua garganta quando ele
aperta o alicate e puxa com força, um arrepio percorre minha espinha por
imaginar o tamanho daquela dor.
Eu posso ver as lágrimas escorrendo de seus olhos.
— Do que adianta saber a porra da localização da base? — Kylian
choraminga. — Todas as crianças e todas as mulheres são distribuídas para
bordéis. É a forma mais discreta de comercializar sem chamar a atenção.
Sinto um desconforto incomum assolar o meu peito ao imaginar
crianças frequentando lugares tão imundos. E principalmente ouvi-lo tratar
o assunto como se fosse algo normal.
— Quero o nome dos compradores. — Jason pressiona o alicate no
outro mamilo, e desta vez, vejo as pernas de Kylian vacilarem, mesmo que
ele esteja sentado. — E não me dê a resposta errada outra vez, porque eu
estou doido para alimentar os ursos desta montanha. Ouvi dizer que carne
fresca são suas favoritas.
Kylian arfa.
— Eles não revelam suas identidades porque sabem que a
Revolução está em todo lugar. Por acaso você acha que eles são burros? —
Kylian cospe o sangue no chão e direciona o olhar para a minha direção. —
Você acha que Marcus Floyd teria corrompido a menina? Ela é literalmente
o diamante mais valioso da Luxury. Ele não teria feito isso.
Reúno as sobrancelhas.
— Eu tenho um nome. — Sou rude. — E que porra é essa de
diamante?
Kylian sorri. Seus dentes vermelhos escarlate são assustadores na
mesma proporção que nojentos.
— Agora eu sei porque ela o odeia tanto. — Kylian encara Jason
com zombaria. — É tão difícil assim falar a porra da verdade?
Jason rosna no momento em que puxa o alicate pela segunda vez, e
desta, Kylian grita tão alto que juro ter sentido as paredes estremecerem.
Lexie levanta o corpo com rapidez, seus olhos focalizam na cena rápido o
bastante para entender o que de fato está acontecendo.
Hyuk finalmente age, vestindo o seu semblante e ação mórbida,
longe de tudo o que já demonstrou enquanto estivemos juntos.
— Você acha que isso é uma piada? — Vejo quando suas mãos
rodeiam o cabo de um bisturi. — Nós não precisamos de você para
conseguir informações. Eu não preciso de você. Então por que você faz
piadas e age como se eu não fosse te matar?
Jason recua um passo. Ele entende que aquilo é mais do que um
ódio mortal pela missão ter sido um fracasso. É pessoal.
— Você é cômico, Kylian, cômico. — Naten parece fora de si. Seu
rosnado apenas não é mais alarmante do que o grito que rasga a garganta de
Kylian quando o bisturi trilha um caminho entre o centro de seu peito até a
boca do estômago. O sangue escorre como água. O vermelho escarlate
desliza por sua pele e trilha um caminho escasso até reunir gotas o
suficiente para molhar o chão. — Já passei por coisas demais para me
deixar encarecer por um cara que viu a mãe na beira do leito de morte e
sumiu pelo mundo. Tudo para quê? Para isso? Pra me provar que você pode
ser tão inteligente quanto eu? — Hyuk ri monótono. — Adivinha, Kylian,
você não é.
Movimento-me desconfortavelmente no chão. Meus pés arrastam-se
na madeira ríspida quando desvio o olhar da cena perturbadora. Hyuk está
descontrolado em tudo o que faz. Na força que usa para rasgar o corpo de
seu irmão e nas palavras cruéis que nunca havia demonstrado ter
conhecimento.
Eu achava que ele era rude comigo. Achava que Hyuk era grosseiro
e insensível demais, claro, isto foi antes de testemunhar a forma como ele
reage a uma traição próxima.
É então que eu finalmente entendo.
Hyuk não é somente a inteligência da coisa. Ele também luta pelo o
que acredita, luta para superar pendências do passado. Tudo isto enquanto o
seu irmão usava os seus programas e os seus equipamentos para praticar a
violência que esteve nos torturando desde que coloquei os meus pés neste
mundo turbulento.
Mas claro, isto vem de muito antes. O rancor é antigo e a mágoa
também.
— Ele falou sobre um diamante. — Todos na cabana direcionam os
seus olhares para a minha direção. Lexie mal pisca. Naten me olha por cima
do ombro, e o olhar de Jason me queima atrás do amigo como se fosse a sua
sombra. Ele exala escuridão. — Eu quero saber o que significa.
Kylian geme de dor quando ergue a cabeça para me encarar. O
sangue escorre de seus lábios, assim como o restante de seu corpo.
— Você quer uma resposta? Então procure pela Comunidade X. —
Mais um gemido doloroso. — Eu não entrei para a Luxury para destruir
vocês. Entrei porque precisava reunir informações.
Sinto o olhar de Jason desviar-se de meu rosto, porque sempre sinto
a sua atenção queimando em meu semblante.
— Comunidade X? — é Jason quem pergunta, mas todos nós
estamos curiosos.
Kylian respira com dificuldade devido aos rasgos profundos que o
bisturi de Hyuk causou em seu corpo. O chão está tomado pelo vermelho de
seu sangue.
A cena sangrenta deveria me assustar, no entanto, tudo ali torna-se
natural. Porque tudo está apenas começando, eu sei disso.
Kylian ri, atraindo a minha atenção até o seu semblante pálido.
— Foi por isso que eu te libertei, seu imbecil. — Kylian encara
Jason. Seus olhos queimam, seus fios úmidos caem contra os seus olhos. —
Você definharia naquela prisão se não fosse por mim. Não sobraria nada
além dos seus restos esqueléticos naquela cela.
— Ter me libertado foi o seu maior erro, porque de um jeito ou de
outro, você vai morrer. — Jason rosna.
Kylian suspira.
— Tudo bem. Se eu não morrer pelas mãos de vocês, morrerei pelas
mãos da Comunidade X. — Sua voz é um sopro. Todos nós sabemos que
ele não durará muito. Seu corpo inteiramente pálido e o sangue que escorre
de sua boca como se fosse saliva, nos confirma o óbvio.
— Eu preciso de uma resposta, Kylian, apenas uma. — Naten
ajoelha-se perante o corpo debilitado de seu irmão, então rasga um de seus
joelhos, arrancando gritos e gemidos do gêmeo. — Acabe com essa tortura.
Abre a porra da boca e me diga por quê.
Kylian está fragilizado e à beira da morte, ainda assim, seu
semblante demonstra frieza.
Ele parece ser completamente diferente do irmão. Enquanto Naten
parece ser fiel aos amigos e companheiro aos que são considerados família,
seu irmão parece frio. Rude e impiedoso. Tudo em Kylian parece
questionável, exceto a razão para que tenha escolhido seguir o caminho que
prejudica garotas como eu. Não existem explicações para tal escolha, assim
como não existe conserto.
Ele fez a sua escolha.
E mesmo que Naten esteja puto com o abandono, ele ainda quer
entender os motivos do irmão. Eu consigo ver na forma como ele parece
disposto a ouvi-lo, porque se fosse outro cara qualquer nesta cadeira, já
estaria morto. Mas Naten não diria isso. Ele também não compreende que
situações como esta não possuem razões.
Porque não existem motivos para pessoas ruins serem pessoas ruins.
Elas apenas são. Está em seu DNA.
— Não procure por um motivo, irmão. — Kylian sopra. Todos nós
ficamos em silêncio. — Eu fiz porque quis fazer, não sou o irmão bonzinho.
Você sabe disso desde sempre. Então não tente compreender.
Naten rosna.
— Sabe todas as crianças que são vendidas para o comércio de
prostituição e são arrancadas de suas famílias covardemente? — Sua voz
vacila, e Jason encara o amigo como se sentisse a sua dor. Como se o
compreendesse. — Você participou disso, porra!
Fecho os olhos quando Naten ergue o seu corpo e soca o rosto de
Kylian com força. O som de seu punho colidindo contra o corpo fragilizado
preenche o ambiente, seguido do grunhido choroso que escapa de Naten.
Seus golpes são certeiros e rígidos, eu sei que sim. Kylian não diz nada,
também não impede o irmão de amenizar toda aquela tensão.
— A Comunidade X... — Kylian sopra com dificuldade, e só então
posso ouvir os golpes de Naten cessarem. — É mais perigosa do que a
Luxury. Vocês devem se preparar para conhecê-los.
— Quem são eles?! — Viro a cabeça a ponto de observar Naten
sacar a sua arma e apontá-la para o irmão. Suas mãos tremem. — Fale logo!
Kylian relaxa o pescoço na cadeira. Eu posso ver a vida se esvair de
seu corpo, porque ele definitivamente está morrendo.
— São eles que compram as crianças. A Luxury fica com as
mulheres adultas. — Mais sangue escorre de sua boca e de seu nariz
completamente deformado. — Eles pagaram por ela. E estão mais perto do
que vocês imaginam. São impiedosos, há literalmente uma guerra se
aproximando e não estar aqui para testemunhá-la será um privilégio.
Quando seus olhos encontram os meus, eu soube que ele não está se
referindo a nenhuma das crianças que são mantidas em uma prisão por estas
pessoas.
Ele se refere a mim.
A Comunidade X, quem quer que seja, quer a mim. Pagou por mim.
Eles procuram por mim.
— Onde eles estão? — É Jason quem se aproxima de Kylian e
sacode o seu corpo desesperadamente. Impaciente, ele rosna contra o seu
rosto: — Eu quero nomes, filho da puta! — Ele balança e balança, no
entanto, observo o último fio de vida sair como suspiro dos lábios gélidos
de Kylian.
Contudo, antes que seus olhos possam mergulhar no mar da morte,
eles miram na figura de Hyuk enquanto uma lágrima escorre no canto de
um dos olhos.
— Sinto muito, irmão. Tudo o que fiz até o momento foi para ter a
sua atenção, para finalmente ser visto da mesma maneira que você é. — Ele
tosse, cuspindo sangue por seu peitoral. — Sei que nossa mãe sente orgulho
de você, mas só há espaço para um de nós nesse mundo. Fique com ele.
Então sua cabeça pende para o lado, assim como os olhos
desprovidos de vida seguem apontados para a figura de Hyuk, que neste
exato instante, derruba mais do que uma ou duas lágrimas. Seu rosto está
encharcado, e suas veias faltam saltarem para fora devido a imensa tristeza
que parece desolar seu interior.
Eu congelo perante a cena. Perante o clima tenso que se instala
contra nós.
Hyuk abaixa a cabeça e suspira exausto, afastando-se de nós e
saindo para fora da cabana com rapidez. Ninguém dá um pio, todos nós
entendemos que ele precisa de um momento, afinal, ele perdeu o último
familiar que tinha. Ele está sozinho. E da pior forma possível, porque
nenhuma dor é mais dilaceradora do que a dor da traição. Tudo é mais
sangrento e fatal, é como se não soubéssemos respirar, como se nossos
pulmões não conseguissem funcionar porque a tortura devastadora de
sentir-se impotente é maior do que a vontade de manter o próprio corpo
funcionando.
Eu o compreendo.
Porque eu não fui traída apenas uma vez. Foram duas vezes.
Mas apenas da segunda vez pude sentir o gosto amargo perfurar o
meu paladar. Nenhuma outra dor se compara a esta, porque realmente senti
que naquele dia, os meus pulmões desistiram de manter-me viva. Porque eu
morri.
Foi por entendê-lo, que eu abri mão do orgulho e segui o mesmo
caminho para fora da cabana. Afundei os meus pés na neve quando alcancei
o exterior da cabana, rodeei-a e vasculhei a rua deserta com o olhar,
procurando por Naten.
A conversa com Sebastian ainda se repete como looping em minha
cabeça, eu ainda posso ouvi-lo fazer juras de que me ajudaria a destruir
Jason Turner. Ele realmente acredita que nós podemos ser uma dupla e que
em algum momento da minha vida, eu voltaria a confiar no homem que
destruiu a minha infância.
Os momentos que passamos juntos ainda são uma incógnita.
Tudo em mim ainda precisa de uma resposta. Tudo ainda é vago
demais.
Incluindo tudo o que Jason havia dito. Eu preciso descobrir se é real.
Kylian criou uma outra incógnita dentre tantas outras, porque se a
Luxury não é responsável pelas crianças, então por que estive vivendo
todos aqueles anos sob o domínio de Marcus Floyd?
Eu o vi lá em todas as exposições. Eu e as outras garotas éramos
analisadas e vendidas como se fôssemos mercadorias baratas. Algumas
delas eram enviadas para outros casulos longe de nós, outras eram leiloadas
e entregues para os seus compradores.
Eu, no entanto, era considerada proibida. Ninguém deveria tocar.
Eu não seria leiloada porque sempre acreditaram que eu fosse de
grande utilidade. Apenas nunca descobri porquê.
O diamante.
Kylian sabia demais.
E eu tenho a impressão de que mesmo que eu tenha ciência do que é
a Luxury e que os homens de Marcus estão procurando por mim, tenho a
impressão de que nunca soube de nada, afinal de contas.
Sebastian não escapa de toda esta desconfiança. Tudo nele atiça os
meus sentidos.
Congelo os meus pés no chão quando enxergo a silhueta de Naten
Hyuk recostado ao seu carro, o cigarro entre seus dedos parece apetitoso.
Seus olhos encaram a lua como se ela fosse a coisa mais bela que já vira.
Aproximo-me em silêncio.
Recosto-me ao seu lado e espero. Espero até que ele quebre aquele
silêncio, porque não faço ideia do que dizer.
— Eu esperava que os ursos viessem me consolar, mas nem na pior
das hipóteses cogitei que fosse você a vir. — Ele usa o tom zombeteiro,
apesar de ambos sabermos que está chateado.
Encaro-o por cima do ombro.
— Sinto muito.
Naten traga o cigarro e sopra a fumaça no ar com paciência e
lentidão.
— Não sinta.
— Ele era o seu irmão. — O relembro.
— Ele era o capacho do Floyd. Desconheço o cara lá de dentro.
Observo-o tragando aquele cigarro como se realmente o acalmasse.
Naten parece completamente magoado, a umidade no canto de seus olhos
não me deixa mentir. Mas a sua postura rígida engana apenas a ele mesmo.
Reunindo coragem, estico o braço e balanço os dedos, indicando
que desejo dar um trago junto a ele.
Seus olhos miúdos viram-se para a minha direção junto a um franzir
de sobrancelhas surpreso.
— Desde quando você fuma?
— Eu não fumo.
Ele bufa um riso.
— De jeito nenhum. Não vou ser o responsável por foder os seus
pulmões.
Reviro os olhos com o seu comentário.
— Me dê logo essa merda, Naten. — O tom autoritário o faz rir.
— Eu deveria saber que o seu personagem gentil não duraria muito
tempo — Ele dá um último trago antes de oferecer a bituca para mim. Eu a
pego de bom grado.
Prendo-o entre os meus dedos e o levo aos lábios. Puxo o ar com
força, sentindo o gosto amargo da nicotina invadir a minha boca e trilhar
um caminho fervoroso até os meus pulmões. Na primeira tragada, acabo me
atrapalhando com a quantidade de força que uso para sugar a fumaça e me
engasgo, tossindo diversas vezes para aliviar o desconforto na garganta.
Sinto a palma de Naten bater diversas vezes contra as minhas costas.
— Não quero matar outra pessoa hoje, Aspen, então me dê essa
porra antes que eu tenha um AVC. — Hyuk puxa o meu braço com rapidez
e retira a bituca de meus dedos, levando-a para si e prendendo em seus
lábios, arrancando um riso genuíno de minha parte.
Naten sorri, seus dentes alinhados brotando em seus lábios como
prova de que aquele foi um bom momento de distração. Mas o momento
constrangedor após a brincadeira chega, porque junto dele vem o silêncio.
E nenhum de nós parece saber o que falar.
Eu não quero enfrentar esse constrangimento. Estou envergonhada
por ter vindo até aqui, no fim das contas.
— Eu...
— Então...
Falamos em uníssono.
Constrangida, abaixo a cabeça e gesticulo para que ele dê
continuidade. É bom saber que eu não sou a única desconfortável entre nós,
porque apesar de nos conhecermos, nossa amizade já não é a mesma.
Ambos sabemos disso.
— Não serei o cara que vai te dizer a verdade, porque esta função
não cabe a mim. Mas quer saber de uma coisa? — Seus olhos investigam os
meus, e eu o encaro com curiosidade. — Ninguém nunca vai te amar e te
proteger mais do que o cara lá dentro. Ele te venera e te enaltece, Aspen, ele
te adora. Porque você é o único motivo para que ele não esteja morto.
Não zombo de suas palavras apesar de não acreditar em uma única
palavra do que foi dito. Não debocho ou ajo com agressividade, por respeito
ao Naten. Ele pode estar dizendo tudo aquilo para proteger o seu amigo, ou
então porque deseja que todo este clima desapareça, mas nada do que ele
fizer vai funcionar.
Eu não tenho como voltar atrás, já tenho o destino traçado. A maior
prova disso é quando voltei para a cabana e decidi agir como se tudo
estivesse bem. Quando olhei para os seus olhos e desejei-o morto. Não há
volta.
— E ele é um burro por estar perdendo tempo enquanto pode
consertar tudo agora mesmo. — Sua sinceridade me atinge em cheio. —
Espero que quando ele decida abrir o bico, você não tenha causado a
Terceira Guerra Mundial.
Ah, eu terei.
Já é tarde demais.
Porque a Terceira Guerra Mundial é um termo muito inferior ao que
eu realmente tenho reservado para Jason Turner.

Em apenas algumas horas estamos de frente para o prédio da


Academia.
Eu tremo de saudades do abraço reconfortante do meu irmão. Meu
corpo necessita sentir o seu calor. O seu amor. A família é a única coisa que
eu consigo me importar quando, sem olhar para trás, salto do carro e corro
em direção à entrada.
Não me preocupo com nada.
Nada que aconteceu naquela montanha tem o poder de me parar.
Tudo que eu quero é estar com o único que sempre traria vida de volta para
o meu interior.
Ele me salvaria do caos interno que irrompe todo o meu ser e
transforma o meu sangue em cinzas.
Evito olhar ao redor quando alcanço o interior do prédio, evito
pensar que todos ali estão surpresos em me ver novamente, e que,
provavelmente, me acham uma completa louca.
Mas eu não paro.
Acelero o passo e ignoro o mundo ao meu redor.
Até encontrá-lo.
Até vê-lo bem ali.
Sentado à mesa, sorrindo e conversando enquanto uma diversidade
de comidas trazem luz para os seus olhos.
Então congelo.
Não sei dizer se eu sinto felicidade ou medo, mas acima de tantos
sentimentos, existe a gratidão. Bem no fundo. Eu estou grata.
Há tempos não via um sorriso tão largo no rosto de Josh. Mesmo
que eu pulasse várias refeições para oferecer-lhe o meu jantar, nada seria
mais valioso do que o sorriso em seu rosto.
E ele sorri.
Sorri como se não pudesse estar mais feliz.
E o seu sorriso cresce ainda mais quando suas orbes cristalinas
pousam em minha figura.
Um pouco incerta, ajoelho-me no chão com o auxílio de um joelho e
abro os braços, convidando-o a me apertar forte. Convidando-o a matar a
saudade que sinto de seu carinho.
E ele o faz.
— Aspen! — Seus braços rodeiam o meu pescoço com força. Seu
cheiro doce invade as minhas narinas e eu não posso conter o sorriso que
cresce em meus lábios. — Que saudade!
Balanço a cabeça, sem evitar que os meus olhos fechem para que eu
possa aproveitar este momento.
— Meu garoto. — Aperto o seu corpo contra o meu, depositando
beijos carinhosos por seu rosto corado.
— O que aconteceu no seu cabelo? — Rugas brotam no nariz do
meu irmão. — Você está assustadora.
Bufo um riso.
— Você sabe que sua irmã não bate muito bem, não é?
Ele concorda em meio ao riso.
— Mas você está linda, eu gostei. — Meu irmão beija o meu rosto.
— Muito linda.
Meu coração parece quente como uma fornalha, porque mesmo que
a minha vida seja um completo caos e a bagunça apenas se espalhe
conforme o tempo passa, Josh tem o poder de ativar o meu senso humano.
A minha humanidade.
Eu o amo tanto.
— Marta cuidou de mim enquanto esteve fora... Você precisa ver
esse lugar, Aspen... Tem outras crianças aqui — Josh sussurra como se
fosse um segredo. — E elas são legais. Mas parecem tão assustadas...
Reúno as sobrancelhas em confusão.
— Outras crianças?
Meu irmão concorda.
— Vem cá...
Josh segura em meu antebraço e me guia por um corredor largo da
academia. Seus passos são ansiosos e o sorriso em seu rosto sereno.
Não ouso interferir no que Josh quer me mostrar, apenas deixo que
ele me arraste pela multidão que só agora eu percebo. Os caras parecem
curiosos ao nos encarar, fardados e com um semblante severo, nenhum
deles ousa abrir a boca quando Josh abre uma das portas no fim do corredor.
Hesito em segui-lo.
No entanto, quando Josh abre aquela porta e arrasta o meu corpo
para dentro, não tenho outra reação senão congelar os meus pés contra o
cimento do chão. Meus músculos parecem ter desaprendido a responder o
meu cérebro, porque nenhum deles obedece aos meus comandos.
A primeira coisa que enxergo são as milhares de camas enfileiradas
em um salão retangular, algumas azuis, outras amarelas, outras rosadas... Os
grafites nas paredes é o que chama a minha atenção, mas nada, mesmo que
houvesse milhares de detalhes a serem vistos, nada seria capaz de ocultar as
crianças que brincam no centro do salão.
Não há muito.
Não há luxo ali.
Apenas uma mesa grande o suficiente para que caibam todas elas,
dezenas de lápis de cor enfileirados sobre a mesa e folhas em branco. Já em
outras, há desenhos impressos para serem coloridos.
E elas parecem extremamente concentradas no que fazem.
— Vem, vou te apresentar para eles. — Josh parece completamente
empolgado.
Meu irmão agarra a minha mão e me puxa para a direção das
crianças, que ao notarem a minha presença, erguem os seus olhos
desconfiados para me observar.
Sinto-me exposta perante os olhares, no entanto, ajoelho-me no chão
e balanço os dedos no ar em um cumprimento.
— Oi.
Nenhuma delas me responde.
— Está tudo bem. Essa é a Aspen, a minha irmã. Ela é como nós,
vocês não precisam ter medo.
Encaro o meu irmão surpresa pela facilidade que ele tem em se
comunicar com aquelas crianças.
— Você disse que a sua irmã era parecida com você. — O garoto
sentado à ponta esquerda daquela mesa quebra o silêncio, fazendo-me
encará-lo. — Ela não se parece nada com você.
O garoto tem os seus olhos fixos em minha figura, todos eles me
analisam com desconfiança e medo, mas há algo a mais naquele garoto. Ele
me olha com desprezo, como se temesse a minha presença.
Seus olhos escuros e a pele negra me trazem vagas lembranças, no
entanto, nenhuma delas merecem ser lembradas.
— Eu pintei o cabelo. — Respondo por Josh, abrindo mão do
desconforto que sentia para me comunicar com as crianças. — Sou uma
procurada da polícia, preciso disfarçar a minha aparência...
Meu irmão me olha de soslaio, como se estivesse implorando para
que eu não dissesse coisas estranhas.
Eu já fui uma criança assustada, e por já ter sido uma, preciso ser
sincera com as crianças. Eu gostaria que tivessem sido comigo.
— Você é uma procurada da polícia? — Uma garotinha de olhos
claros e cabelos cacheados pergunta, atraindo a minha atenção até o seu
rosto ferido.
A menina tem esparadrapos ao lado direito do rosto, impedindo-me
de verificar qual pode ser o seu ferimento. Um dos olhos está tapado, mas o
que resta, me observa com receio enquanto espera por uma resposta.
— Sou.
— E que crime você cometeu? — O garoto enigmático torna a
perguntar.
Pisco algumas vezes enquanto a saliva desce como faca em minha
garganta. As lembranças daquele dia vêm à tona com uma força anormal.
— Eu fui cúmplice de assassinato a um homem que tentou me tocar
sem consentimento. — Explico calmamente.
Me sinto estranha por estar compartilhando de meus imensuráveis
pecados a uma dúzia de crianças curiosas e, aparentemente, assustadas.
— O que é ser cúmplice? — Outra garotinha pergunta.
— É quando você permite que alguém cometa o crime em sua frente
e simplesmente não faz algo a respeito, mesmo sabendo que é algo errado e
fora da lei.
A menina abana a cabeça.
— Mas porque você não fez nada, tia?
Sorrio envergonhada.
— Porque é o que os homens que tocam no que não foram
convidados, merecem.
O garoto limpa a garganta, atraindo a minha atenção até a sua figura
enigmática. Seus lábios se curvam minimamente em um sorriso, mas ele
parece ter medo de fazê-lo.
— Legal. — É o que ele responde.
Não contenho o sorriso que cresce em meus lábios quando o garoto
desvia o olhar para algum canto aleatório e parece fazer de conta que nunca
participou daquela conversa. Ele se levanta e caminha até uma das camas
postas no salão, deitando-se como se precisasse daquele conforto.
Observo a cena com calmaria. O menino parece conturbado, apesar
de parecer o mais velho dentre todas as demais crianças. Ele tem o
semblante sério e desconfiado, como se todos que estivessem em seu campo
de visão fossem capazes de machucá-lo.
É preocupante saber que uma criança inocente de sua idade já está
se rendendo a situações tão deploráveis e mórbidas. Ninguém merece
aquilo.
As demais crianças se calam por completo quando o garoto se retira.
Observo-as colorir aqueles papéis em silêncio, acompanhando o movimento
lento de seus dedos sobre o lápis. Seus sentidos às vezes fazem com que
seus olhos venham até a minha figura, talvez para garantir que eu ainda
estou no mesmo lugar, longe demais para fazer algo que possa machucá-las.
Isto quebra o meu coração mais do que eu posso descrever em
palavras.
Dói testemunhar uma cena tão lamentável. Dói entender que aquelas
crianças não estão aqui por vontade própria e que, de alguma maneira, a
academia havia resgatado-as da Comunidade X, aquela responsável pelas
crianças, na qual Kylian havia mencionado.
Dói compreender que tudo é mais grandioso do que eu pensava e
que o mundo é podre demais para ter seres tão puros e íntegros. Nada, nem
ninguém, está preparado para entender que crianças jamais devem ser um
sinal de fraqueza, como se machucá-las fosse um mar aberto. Como se não
fosse causar nada em suas vidas, nenhuma cicatriz e nenhum trauma.
Eu sou a prova de que essa teoria é a droga de uma mentira.
Pensei em milhares de formas que poderia destruir de uma vez por
todas o império de Marcus Floyd e toda a sujeira que ele carrega com si, a
maldade em seu sangue é como veneno. É mortal. É dilaceradora. E não há
cura, porque nem mesmo a morte pode salvá-lo de tamanha insensibilidade.
Crianças deveriam ser crianças. Deveriam viver e serem postas
diante de um holofote da vida para serem vistas e lembradas, para viverem
a infância como deveria ser vivida.
O amor, o acolhimento e a alegria transformaria as suas vidas, assim
como teria transformado a minha, se eu tivesse tido a oportunidade.
No fim, estamos no mesmo lugar.
Traumatizados e feridos. Machucados e quebrados. Esmagados e
dilacerados.
E dói.
Dói ver o mesmo filme pela segunda vez, porque da primeira não foi
doloroso o suficiente.
— Ei, As... — Meu irmão cutuca o meu braço.
Só então eu noto a lágrima solitária que escorre pelo meu rosto
enquanto encaro os desenhos sombrios e confusos das crianças cheias de
histórias para contar. Por um segundo, quero agradecer a quem tenha
colocado-as aqui, porque ter pelo menos um momento como criança para
ser lembrado, faria a diferença em suas vidas. Sei que sim.
Seco o rosto e encaro o meu irmão que tem um lápis amarelo entre
os dedos, encarando-me com um meio sorriso contagiante nos lábios.
— Descobri que girassóis significam alegria... — Josh estica o braço
em minha direção. Baixo o olhar e analiso a folha de papel em sua mão,
nela, o desenho colorido de um girassol no centro da folha faz-me sorrir
largo. — Fiz pra você. E desta vez nem achei tão ruim a ideia de desenhar
girassóis.
Sem perceber, puxo meu irmão para um segundo abraço apertado
enquanto tomo o desenho de suas mãos pequenas.
Ele mal sabe que isto é mais do que um girassol e que de fato, está
me dando alegria.
Fico em silêncio o resto do dia.
Ajudar Josh a cuidar daquelas crianças despertou um lado sensível
dentro de mim, eu não consigo pensar em nada além de vingar aquelas
crianças e enviá-las de volta para as suas famílias. O instinto super-protetor
que sempre esteve dentro de mim para com o meu irmão desta vez está
mais intenso, como se eu não pudesse controlá-lo.
Porque eu senti que deveria fazer algo por aquelas crianças. Senti
que meu dever era protegê-las.
Isso inclui as crianças que ainda estão em posse da Comunidade X.
Não sabemos quantas ainda são, mas sabemos que eles nunca vão
deixar de alimentar os monstros que existem dentro de si.
É horrendo olhar para aquelas vidas dentro de uma sala moldada
para trazer conforto, mesmo que seja em um ambiente tão caótico. Dói
enxergar o medo no olhar daquelas crianças apenas em ouvir o som da porta
sendo aberta.
Não há como aproximar-se muito delas. Conversar é uma habilidade
que poucas conseguem obter, outras, sequer olham em seu rosto com medo
do que verão.
Jamais quero imaginar o que despertou tamanho medo.
O que eu quero, realmente, é vingar cada uma delas.
Caminhando pelo corredor, vasculho a área procurando por quem
menos deveria. Mas que, não tenho dúvidas de que me ajudaria.
Os caras do batalhão passam por mim como vultos, sequer notam a
minha presença, ou então são especialistas em ignorá-la.
Não importa, afinal.
Eu desconheço o interior deste prédio, tudo é mais espaçoso e
repleto de corredores estreitos, as paredes tomadas por desenhos grafite
dificultam a melhor visualização do lugar.
As luzes estão acesas, apesar de não obterem uma boa iluminação.
Deduzo que seja para sermos discretos.
Quando chego ao fim do corredor, viro à direita e é quando o vejo.
Agachado sobre uma das pernas vasculhando papéis. Ele parece
concentrado no que faz, apesar de ter uma companhia ao seu lado que não
para de falar por um único segundo.
Reúno as sobrancelhas quando me aproximo da sala e bato duas
vezes à porta.
Jason me encara por cima do ombro e enxergo a surpresa em seu
olhar por me ver ali, ao contrário de sua companhia, que desliza o seu olhar
por meu corpo e sorri minimamente.
Cruzo os meus braços e encosto o meu corpo contra o batente,
direcionando o meu olhar para os olhos escuros que me examinam
profundamente.
— Precisamos conversar.
Jason abana a cabeça minimamente, colocando-se em pé e
afundando as mãos nos bolsos.
— Nós ainda não terminamos... — Cassie choraminga, fazendo-me
conter um riso diante de sua humilhação.
Jason gesticula em direção à porta.
— Pode ir, Cassie.
Nenhum outro som que fizéssemos poderia ser ouvido quando em
competição com o respirar fundo de indignação da garota. Cassie ainda é a
mesma carente de atenção de Jason, mas o que também não mudou é a
forma fria a qual ele lida com ela.
Em dias melhores, eu lidaria com ela com o mesmo desprezo que
ela lida comigo quando eu era inocente demais para notar a sua má fé.
Hoje não é um bom dia, no entanto.
Cassie caminha em minha direção, o seu perfume permanece entre
nós quando ela passa por mim rapidamente, deixando o rastro amargo da
raiva feroz.
Não me movo, sequer lhe direciono o olhar. Ambas sabemos que os
tempos mudaram e que não lidarei com ela da maneira inocente na qual
costumava fazer.
Ao invés disso, eu poderia rir de sua audácia.
No entanto, está fora de cogitação brincar com a situação. Eu estou
aqui para propor um acordo, mesmo que tenha de abrir mão do meu orgulho
e fúria.
— Pode falar. — Seu tom é objetivo.
Jason se vira para alcançar as papeladas reviradas ao chão, mas eu
sei que ele me ouve e presta atenção no som de minha voz.
— Eu vi a sala de crianças — Sou direta. — Há quanto tempo estão
aqui?
Jason continua a organizar os papéis.
— Uma ou duas semanas.
— Você já tentou conversar com elas? — Manifesto a minha
revolta. — Jason, elas estão destruídas...
— Eu sei.
Limpo a garganta.
— Não deveria ser assim.
— Não.
— Então por que nós não estamos fazendo nada? — Imaginar a
intensidade do sofrimento daquelas crianças me incomoda mais do que
qualquer outra coisa.
Ao reunir todos os papéis, Jason os leva a uma bancada de mármore
e os espalha pela pedra, atraindo a minha atenção até o lugar.
— Em cada papel desse, há uma ficha pessoal de cada criança que
resgatamos, e aquelas que constam o carimbo com o símbolo do X, são
aquelas que ainda não foram resgatadas porque foram vendidas ou estão no
processo para serem leiloadas.
Me aproximo, direcionando o meu olhar para os papéis.
— X?
Ele aquiesce.
— Sim, Kylian não mentiu. A Comunidade X realmente existe.
Eu o encaro enquanto raspo a ponta dos meus dedos por aquelas
fotos das crianças.
— Porque ele diria a verdade?
Seus olhos escuros se fixam aos meus, as olheiras escuras abaixo
dos olhos deixam evidente que Jason não dorme bem há dias.
— Acredito que Kylian só era um cara com a cabeça fodida, Baker.
Ele queria ser notado, e a melhor forma de chamar a atenção de um hacker,
é sendo tão bom quanto ele para despertar um interesse do outro lado — Ele
desvia os olhos para as papeladas, apontando para uma delas, em
específico. — Mas eu não quero me importar com ele. Ele nos traiu e teve o
fim que mereceu, ponto final. O que me importa agora é desvendar todo o
mistério.
Sigo o seu olhar.
— Qual mistério?
Jason resvala a ponta dos dedos pelas folhas de papel, separando-as
em ordens. Ao lado direito, ficam todas as que possuem o carimbo escarlate
do símbolo X, enquanto à esquerda, ficam aquelas carentes do sinal que
tanto tememos.
Chego a reconhecer algumas das crianças nas miniaturas de suas
fotos aos papéis, o garoto sorridente, negro e aparentemente feliz, é o que
atinge o meu peito com força. Porque eu o vi. E a diferença em seu
semblante é notória a quilômetros de distância.
A diferença do antes e depois é notória em todas as crianças. É
como dividi-las entre luz e escuridão. Bem e mal.
Meu peito queima diante daquelas imagens, eu posso sentir as suas
dores. Posso sentir absolutamente tudo.
— Esse mistério. — Ao capturar uma das folhas, sinto o ar faltar em
meus pulmões quando Jason move aquela folha até que esteja acima de
todas as demais.
Levo alguns minutos para reconhecer a minha face.
Para entender que é a minha imagem naquela folha.
Para compreender que aquela caligrafia forma as letras do meu
nome.
Levo mais tempo do que pensei para engolir o nó que se formou em
minha garganta quando enxergo o X acima da minha foto.
A marcação.
Um arrepio agonizante corrói as minhas veias sanguíneas e por um
segundo penso ter perdido a habilidade de respirar.
— O que...
— Você está marcada, Baker. Kylian tinha razão.
Pisco os olhos, desnorteada.
— Mas... Como isso pode ter acontecido? — Capturo o papel,
escorregando o olhar por todas as informações que nela existem. Minhas
características pessoais. Meus hobbies. — Isso está certo? Porque se a
marcação significa que eu fui vendida…
Eu deveria estar em qualquer outro lugar, exceto aqui.
É por isso que me caçam como um animal.
Movo meus olhos até Jason e pela primeira vez não consigo
interpretar o olhar que me é oferecido. Ele parece irritado, apesar de
desorientado e confuso. Ele não consegue me mostrar nada além de uma
completa bagunça em seu semblante.
— Nós não sabemos quem são eles. — Sopra irritado. — Mas
sabemos que os seus principais hobbies são crianças. Já é motivo o
suficiente para conhecerem o inferno mais cedo.
Abano a cabeça.
— Eu...
Sinto uma de suas mãos tocar o meu antebraço de forma gentil,
como se estivesse tentado a me acalmar, no entanto, um tanto quanto
receoso com a minha reação. Eu, no entanto, não movo um músculo.
É estranho sentir-me dessa forma em sua presença.
É estranho sentir que ele pode me entender.
— Nós vamos descobrir quem eles são antes que possam vender
mais crianças ou tocarem em um fio de cabelo seu, Baker, essa guerra já
começou há muito tempo.
Sinto-me vagamente desconfortável perante a sua afirmação de que
está prestes a firmar uma segunda promessa que não faço ideia se ele
cumprirá. Ou se quebrará mais uma delas, apenas pelo prazer de assistir a
minha queda antes que eu tenha o prazer de assistir a sua.
Por isso, afasto-me de seu toque ao recuar um passo.
Ele entende o recado, pois toma o braço para si e baixa o olhar.
Ele sabe que não adianta tentar vencer essa batalha, porque eu estou
disposta a lutar.
— E se eu quiser entrar para a batalha?
Seu olhar se ergue com rapidez.
— Você pode.
Assusto-me com a facilidade em convencê-lo de que eu sou capaz.
— Não vai me impedir?
Ele sorri minimamente. O piercing em seu lábio brilha diante dos
raios de luz.
— Não. — Sua resposta vem com força. — Não vou omitir nada e
não vou te manter longe dessa realidade. Você quer participar disso e ver
com os seus próprios olhos o que eu nunca consegui descrever com
palavras? Eu não vou impedir.
Ergo minimamente as sobrancelhas ao analisá-lo.
— E se eu ainda quiser matar você quando tudo acabar?
Jason parece disposto a assistir o fim daquele filme assim como eu
pareço disposta a fazer tudo o que for necessário para tirar o peso de minhas
costas que há tempos não permite que a leveza me atinja.
— Você não vai.
— Como você sabe?
— Eu conheço você.
Não evito que um riso abafado me escape.
— Então deveria saber que eu não quebro promessas.
— Assim como eu sei que me matar significaria matar um pouco de
si mesma no processo.
Recuo outro passo, cambaleando perante o peso de suas palavras.
Quero contestá-lo e ir contra as suas palavras, apesar de saber que no fundo,
naquele imensurável buraco negro que há dentro de mim, ele tem razão.
Por isso faço a escolha mais sábia.
Dou as costas e caminho em direção a saída.
Porque eu não quero revidar.
Melhor seria provar com atitudes que ele não vencerá essa guerra.
Eu consigo.
Sei que sim.
— Trabalharemos juntos, então. Depois disso veremos se você é
realmente sábio no que diz.
Então trilho o caminho para fora tendo a ciência de que no fim tudo
será um imenso impasse.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Não consigo ficar no mesmo ambiente que Jason e não sentir o meu
sangue borbulhando, minhas pálpebras pesando e o meu coração adotando
um ritmo absurdamente fora do comum. Está indiscutivelmente fora de
cogitação que eu lhe dê o mérito de estar certo quando diz que não
conseguiria matá-lo.
Eu posso fazer isso.
Posso acabar com a tortura.
Por que ele duvida de minha capacidade? Por que acredita que eu
não o faria?
Quando eu lhe dei o poder de desvendar-me tão facilmente?
Pior, quando foi que decidi que matá-lo não ocupa o topo da lista de
meus principais objetivos?
Quando foi que passei a suportar estar no mesmo ambiente que ele?
É inadmissível que Jason tenha tanto poder sobre mim, e é
inadmissível que seja eu a dar este direito para ele.
Estou frustrada.
Tão frustrada que sequer compreendo o misto de emoções que me
invadem e fazem duvidar da minha capacidade, da minha história, da minha
força e da minha competência. Dos meus princípios.
Sequer imagino o quão pisoteada eu seria se ela estivesse aqui.
Sinto falta de sentir o seu carinho, ser agraciada com os seus beijos cheios
do gosto da salvação, do cheiro de casa, da sensação de finalmente baixar a
guarda e permitir-se ser amparada.
Não me lembro se existiu uma última vez em que eu tenha sido
acolhida. Se existiu um tempo em que a vida era apenas recheada de
problemas comuns, não aqueles em que sou obrigada a me tornar um
monstro para sobreviver. Para não ser engolida.
Sequer me lembro de um momento no qual eu tenha sido protegida.
Por Deus, quando foi que me tornei tão insignificante e vazia?
Caminhando sem rumo pelos corredores inertes, ao sentir um aperto
agudo e sufocante em meu peito, paro de andar e levo uma das mãos ao
centro, massageando a minha carne enquanto puxo por um ar que parece
não ser o suficiente para sanar as necessidades necessárias.
Quando foi que eu me tornei tão… Vulnerável?
Não sei por qual razão em específico, se testemunhar a vida
daquelas crianças sendo arruinadas como a minha um dia foi, se
testemunhar o homem que partiu meu coração travar uma guerra para
impedir que eu seja mais quebrada, quando tudo o que eu quero é quebrá-lo,
ou se foi o encontro com meu pai que me deixou tão atordoada. Mas
acontece.
Minhas placas defensivas parecem ter se cansado de fazer todo o
trabalho sozinhas, porque em um segundo estou certa de que sou o pior ser
humano do mundo, traiçoeira e desumana. Mas no outro, estou recostada na
parede com os olhos fechados e uma dificuldade alarmante para respirar,
confirmando o óbvio.
Eu nunca fui desprovida de um coração.
E talvez seja essa a razão para que eu sofra tanto.
Quando foi que voltei a ser tão fraca, inferno?
— Baker. — Sinto duas mãos tocarem meus ombros, mãos grandes
e temerosas. — Olhe para mim.
Quando foi que ele passou a farejar minha dor?
—Não preciso de ajuda. — Sussurro, embora eu saiba que é tudo o
que desejo.
— Eu sei que não.
Não sei como acontece, ou o que exatamente sinto em meu corpo,
mas há uma tonelada de peso sobre minhas costas que me obriga a baixar a
minha guarda e simplesmente desistir de lutar contra a força de minha dor.
Respiro fundo enquanto meu coração martela contra o peito e o suor desliza
por minha face, então um sopro gélido alcança o meu rosto e junto dele vem
o cheiro tão familiar da nicotina.
Seus braços tomando o meu corpo para si é a última coisa que sinto
antes do meu subconsciente decidir que precisa descansar.
Abro os meus olhos, mesmo que a claridade tremenda lhes cause um
incômodo. Pisco algumas vezes, tentando me lembrar em que momento
adormeci ou onde exatamente estou, mas o incômodo em minha visão é tão
extremo que não tenho outra alternativa senão levar as mãos aos olhos e
libertar um longo suspiro.
Minhas pálpebras pesam, e sei que não durmo bem há semanas,
talvez seja esta a razão para que minha cabeça doa tanto e sequer consiga
raciocinar sem desejar apagar profundamente outra vez.
Entretanto, ao ouvir um longo ruído semelhante ao som de uma
respiração ao meu lado, posiciono-me onde quer que esteja recostada e me
levanto, sentindo-me imediatamente um pouco tonta, mas pronta para me
proteger caso seja necessário. Levo as mãos até a cintura, buscando pelo
metal da arma que sempre carrego ali, no entanto, é ao notar a sua ausência
que meu coração adota um ritmo conturbado.
— Procurando por isso?
Ouvir a sua voz envia um arrepio gélido por meu corpo, pois junto
dele, acompanham as lembranças do que aconteceu antes que eu
simplesmente apagasse em seus braços. O que eu diria? Como agiria?
Ninguém dorme nos braços de alguém que despreza.
Movo os meus olhos até a sua figura, encontrando o par de olhos
negros e intensos mirados em mim, enquanto uma de suas mãos está
segurando a minha arma entre os dedos, colocando-a em meu campo de
visão.
— Por que você está com a minha arma? — Busco por palavras,
mesmo que estar sob a mira de seu olhar as apague de meu vocabulário.
Jason não diz nada, parece perdido em seus próprios pensamentos,
como se não quisesse responder a minha pergunta porque em sua mente
também existem várias delas.
— É a primeira coisa que você procura quando abre os olhos. —
Não é uma pergunta, ele parece afirmar mais para si mesmo do que a mim.
— Por quê?
Balanço a cabeça em negativo, um tanto quanto confusa.
Por que ele está fazendo essa pergunta? Por que ele está aqui ao meu
lado, primeiramente?
— É o que acontece quando você acorda de um sono e percebe que
não é nele que mora o verdadeiro pesadelo.
Minha resposta parece virar uma chave dentro dele, pois capto o
exato momento em que seu peito coberto pela camiseta escura limita o
movimento que expõe a sua respiração. Ele sobe e desce em uma
velocidade lenta, mas os seus olhos não desviam dos meus em momento
algum.
Eles brilham com um tipo de emoção que não consigo identificar,
mas não se trata da ira, da mágoa ou da frustração, é quase como se ele
lamentasse.
Sequer desvio os nossos olhares, pois há algo encoberto ali que
desperta a minha curiosidade. E eu quero entendê-lo, identificar quais são
os seus verdadeiros sentimentos, tendo a total ciência que ele jamais me
diria.
Jason pisca e é o primeiro a quebrar o contato visual, direcionando-o
para algum lugar à nossa volta no segundo em que respira fundo,
entregando-me a pistola como se ouvir a minha resposta fosse o suficiente
para acabar com sua dúvida inicial.
Sigo calada, observando-o repousar o objeto em meu colo como se
eu não pudesse usá-la contra ele.
Sequer aparenta se importar.
Está completamente concentrado em olhar para fora, um tanto
quanto inquieto.
Sigo seu olhar, pela primeira vez, permitindo-me olhar ao nosso
redor para identificar onde estou. A primeira coisa que encontro é o vidro
fumê de seu Mustang, além do meu corpo coberto por uma jaqueta escura
que possui o seu cheiro.
Movo as minhas mãos, finalmente tateando-as ao meu redor até que
entenda que tudo isso não se trata de um sonho. Eu realmente estou aqui,
dentro do carro de Jason, com meu corpo coberto por sua jaqueta durante o
tempo em que dormia.
Por quanto tempo eu dormi?
Onde estamos? E por que ele me carregou para fora do prédio ao seu
lado sem que eu tenha concordado?
— Onde nós estamos? — Questiono. — Por que você me…
— Você já vai descobrir. — Sua voz é um sopro, ele sequer se dá ao
trabalho de incomodar-se com o meu tom, parece exausto.
Me calo.
É estranho vê-lo tão inquieto.
Não sinto coisa alguma, mas há algo sobrevoando a atmosfera que
não me permite compreendê-lo com facilidade.
— Quanto tempo fiquei apagada?
— Duas horas. — Ele não me direciona o olhar. — Você desmaiou.
Engulo o bolo preso na garganta. Não é uma novidade, já era de se
esperar que o meu corpo simplesmente desistisse de suportar a carga que
nunca foi destinada a ele.
— E você me carregou até o seu carro?
Jason finalmente direciona os seus olhos até mim, tão profundos e
enigmáticos que sua aura soa caótica por inteira. Os raios solares
atravessam o vidro e refletem em sua pele, fazendo-me enxergar suas
pupilas dilatadas.
— Carreguei.
Reúno as sobrancelhas.
Acredito nunca tê-lo testemunhado agindo de uma maneira tão fria,
desprovida de sentimentos e sarcasmos que sempre pareceram fazer parte
de quem é. Não que me importe, mas o que raios pode ter acontecido para
que esteja agindo como se eu fosse… Indiferente?
—Você…
— Saia do carro. — Ordena.
Há algo muito estranho aqui.
Há algo acontecendo.
— Não vou sair do carro, eu nem sei onde estou.
Jason abre a porta e salta para fora com uma rapidez imensurável.
Observo quando ele bate a porta com força, dá a volta no carro e alcança a
maçaneta da porta do passageiro, abrindo-a para que eu saia.
Sua expressão é dura como pedra, não há como identificar o que
raios ele transmite pois há barreiras impedindo-me de decidir se devo, ou
não, obedecê-lo.
— Não tenho forças para discutir com você agora, então, por favor,
desça do carro e venha comigo. — Pede com tranquilidade, observando-me
a todo tempo.
Sinto-me em um impasse, não sei o que aconteceu no tempo em que
estive apagada, mas sei que nada pode me garantir que não há perigo algum
do lado de fora. Ainda assim, a segunda certeza que possuo é que Jason
jamais ousaria colocar a minha vida em perigo.
Não quando me olha dessa forma, como se quisesse recolher os
meus cacos para si e juntar cada um deles.
É besteira, eu sei.
Mas também sei que só há uma forma de descobrir o que deseja me
mostrar.
Então deixo para trás sua jaqueta e capturo a minha arma,
colocando-a na cintura por baixo da blusa. Ele acompanha o movimento
sem dizer absolutamente nada, sabe que eu jamais sairia sem garantir que
tenho como me defender caso seja necessário, mesmo que seja dele.
Jason dá um passo para trás quando salto do carro apenas para que
nossos corpos não se esbarrem, então observo sua face e aprofundo nossos
olhares, acompanhando o movimento de sua mandíbula sendo travada.
— Espero que valha a pena seja lá o que você tenha planejado, e que
nada disso me faça odiá-lo ainda mais. — Meu tom é áspero, apenas para
que ele saiba sua posição.
— Vai na frente. — Meneia a cabeça ao lado direito, enfiando
ambas as mãos nos bolsos do jeans.
Reúno as sobrancelhas, seguindo o seu olhar.
É quando o faço que o mundo inteiro parece pesar toneladas, os
raios solares ofuscam os meus olhos e me fazem cobrir o topo deles com
uma das mãos em formato de concha, apenas para que possa enxergar com
ainda mais clareza a entrada do que parece ser um cemitério.
Confusa, eu engulo a saliva e avanço alguns passos, observando o
caminho envolto por um arco onde o nome do lugar envolto por folhas
secas lhe trazem o ar amargo da perda, atraindo infinitas sensações
dilacerantes.
Meu peito infla e minhas mãos suam ao lado de meu corpo.
Memórias me trazem a sensação do luto que há tanto tempo tem
atormentado a minha alma. Flashes dos poucos momentos ao lado de uma
pessoa que sempre me deu forças necessárias para continuar viva, aceleram
os meus batimentos cardíacos e trazem uma queimação ao fundo dos meus
olhos.
Um misto de emoções me partem o coração no mesmo instante.
Um gatilho.
Estar aqui é um gatilho.
Por que Jason me traria a um cemitério?
Por que ele me colocaria nessa posição extrema de vulnerabilidade?
Será este mais um de seus jogos?
Olhando mais adiante, observo uma sequência de lápides e grama
verde como aquelas do jardim que mamãe costumava cuidar. Aqui há
infinitas histórias, todas perdidas e destinadas a este fim dilacerante para
quem fica, mas reconfortante para quem parte.
Terei eu a coragem de entrar?
Posso suportar a dor do luto mais uma vez?
Neste momento, não há ira, rancor, mágoa ou receio que seja forte o
bastante para sobressair a dor do luto. Sequer penso sobre o fato de Jason se
aproximar e colocar-se ao meu lado, também não penso racionalmente
quando seus dedos tocam o meu braço e, em uma carícia lenta, desliza até
que a ponta deles raspe contra os meus, em um ato reconfortante.
Congelada no mesmo lugar, sinto meus olhos arderem e lágrimas
nublarem a minha visão.
— É a última vez que vou te causar dor. — Anuncia, sua voz faz
com que uma única lágrima deslize em minha face.
A última.
Por que ele faz isso comigo?
Por que me quebra dessa maneira?
— Há um jazigo neste cemitério feito para a sua família. — Ele diz
de forma serena, quase como se pisasse em ovos. — Estamos onde eu
enviei o corpo da sua mãe para ser velado e enterrado de forma digna.
O encaro por cima do ombro, e é ao ver a hesitação em seu olhar, a
rigidez desaparecendo de sua feição, que mais lágrimas despencam de meus
olhos.
Eu não fui ao velório da minha própria mãe.
Não pude dar um último adeus antes que fôssemos separadas de
forma definitiva.
Sequer tive acesso ao paradeiro de seu corpo, sempre pensei que
jamais teria a oportunidade de visitá-la e permitir-me sentir a dor do luto
como uma pessoa normal.
Mas olha só onde nós estamos.
Ela está bem aqui.
Tão perto, caramba.
— Ela está enterrada aqui? — Balbucio, minha voz embargada
quase não pode ser ouvida.
— Não apenas ela.
Confusa, eu o encaro com o par de sobrancelhas franzidos.
De quem mais ele fala?
Sebastian não está morto. Josh não está morto. Não há outro familiar
que possa estar enterrado ao seu lado, então, de quem raios ele fala?
— Vem. — Jason estende a sua mão, convidando-me a acompanhá-
lo.
Outra lágrima desliza pelo meu rosto.
Observo suas esferas fixas nas minhas, a intensidade de nossa troca
de olhares é tão grande que não há outra resposta existente que não seja o
toque de minha mão ao redor da sua.
Pode ser um erro, posso estar pulando no abismo de uma vez ou
posso estar indo direto para a saída, é um risco que só saberei o resultado se
decidir passar por ele. É o que eu escolho ao ser arrastada para dentro do
cemitério, é o que escolho ao observar as suas costas enquanto
caminhamos, enquanto tento decidir o que exatamente sinto em relação a
ele neste exato momento.
Dúvida, hesitação, medo ou gratidão?
Ninguém nunca conseguirá compreender a proporção do que sinto
quando existe a menor possibilidade de descobrir onde está o corpo de
alguém que se foi, mas sempre foi a sua salvação. Minha mãe sempre será a
minha âncora, aquela que aparece quando as coisas estão ruins e me
conforta, me protege e diz que tudo ficará bem, mesmo que seja apenas a
minha cabeça que dê voz aos meus próprios desejos.
Há anos, sua morte é o que mais possui o poder para me destroçar.
Eu posso lidar com a dor de ser como um prêmio nobel para os homens,
posso lidar com o fato de todos eles desejarem sugar a minha alma até que
não sobre nada para se reerguer e posso lidar com a dor de ter perdido o
único homem que pensei ter me amado.
Mas nunca, nunca serei capaz de lidar com a sua morte.
Meu girassol.
Ela sempre foi o girassol da minha vida enquanto eu me tornava
uma rosa com espinhos.
— É aqui. — Jason indica o jazigo familiar coberto por folhas secas
e galhos verdes.
Paro de caminhar, por reflexo, nossas mãos são separadas e ambos
direcionamos nossos olhares para a grade do portão que possui um cadeado
mantendo-o inacessível.
A ansiedade me corrói, embora esteja apavorada para descobrir o
que me aguarda do lado de dentro. Penso em perguntá-lo como entraremos,
mas quando olho para ele, o vejo retirar uma chave de seu bolso,
caminhando até o portão para liberar nossa passagem.
Me calo.
Ele tem a chave do jazigo.
Observo-o destravar o cadeado e olhar ao nosso redor para garantir
que estamos sozinhos, e eu faço o mesmo. O vento sopra um ar gélido
direto para o meu rosto, balança as árvores que rodeiam o cemitério e afasta
as folhas pela grama.
Há pessoas longe de nós ajoelhadas sobre alguns túmulos, mas
sequer parecem notar a nossa presença. E garantir isto é o suficiente para
que fiquemos em paz.
Sem esperar por um convite, caminho em sua direção e respiro
fundo, olhando para o céu azul por um curto período de tempo antes de
arrastar o meu corpo para dentro do jazigo.
Jason vem logo atrás.
Ele fecha o portão atrás de si e ouço os seus passos lentos atrás de
mim, no entanto, sequer dou importância a eles quando meus olhos
encontram as dezenas de buquês de flores espalhadas pelo jazigo, onde duas
lápides prateadas brilham em perfeito polimento.
Levo uma das mãos à boca, a tapando quando avanço alguns passos
e sinto o cheiro fresco das flores. Elas não estão aqui há muito tempo, sei
que são fresquinhas e do exato gosto de minha mãe, pois são idênticas
àquelas que ela plantava em seu jardim.
— Eu a visito sempre que posso. — Ouço a voz de Jason às minhas
costas. — E quando não podia, sabia que alguém vinha reabastecer o
estoque floral. — Sei que talvez ele se refira ao tempo em que esteve preso.
Eu o encaro, completamente atordoada enquanto lágrimas escorrem
sem permissão alguma de meus olhos.
Meu Deus.
Como ele…?
— São as flores que ela gostava. — Reprimo um soluço. — Hibisco,
girassóis e violetas.
Todas espalhadas por todo o jazigo.
Não há nenhum lugar que tenha flores murchas ou secas, todas estão
completamente vivas e lhe dando o devido conforto que sempre mereceu.
— Estamos na cidade ao lado onde ninguém buscará por pistas. É
uma cidade comum e livre de turistas, sei que é onde você gostaria que ela
estivesse. — Diz ele. — Eu sequer sei porque a trouxe até aqui, eu deveria
afastá-la e fazê-la desprezar a minha existência.
Me viro.
Lágrimas escorrem sem permissão alguma.
Por quê?
— Você já faz isso. — Afirmo. — Você me quebra, me destrói, me
confunde e me amaldiçoa para todo o sempre, Jason, porque é impossível
ser digna de salvação quando eu ainda vejo verdade em você.
Não há nada que possa impedir as minhas barreiras de caírem por
terra, e acabo de desistir da tentativa.
— Quero acreditar em você. Quero acreditar que não a matou. —
Confesso. — Mas eu passei três anos da minha vida acreditando nisso, por
que você assume a culpa do que não fez? Por que você veria prazer em me
destruir?
Desabo.
Choro, soluço e observo seus olhos frios ainda em contato com os
meus. Jason não se move, ele parece enxergar a minha alma, parece
observar a olho nu cada uma de minhas feridas e parece sentir a
necessidade de curá-las. Mas há algo ali, há algo que o impede.
— Olhe para trás. — Pede com serenidade, meneando sua cabeça
para a direção.
Eu o faço.
Me viro atordoada, em meio a lágrimas, soluços e sentindo as
minhas pernas ameaçarem partir-se ao meio, mas tudo parece ficar ainda
mais confuso quando dou de cara com as lápides prateadas contra a parede
onde a caligrafia dos nomes em perfeito estado a enfeitam.
O nome de minha mãe brilha sob o mármore de pedra, sinto vontade
de deslizar os meus dedos por cada letra como se estivesse tocando o seu
rosto outra vez, como se ela pudesse preencher o vazio que sinto.
Eu preciso tanto.
Mas novamente, meus olhos são destinados à caligrafia ao seu lado,
vivendo nas sombras de suas asas por todo este tempo. Há surpresa em meu
olhar, há algo que impede o meu coração de bater em um ritmo saudável
porque o mundo inteiro parece possuir uma quantidade de ar que não é
suficiente para manter o meu corpo vivo.
Recuo um passo, tapando a minha boca ao abafar um soluço.
Meu mundo parece prestes a desabar e desta vez sequer tenho forças
para segurá-lo.
Não quando cada traço daquela caligrafia forma as letras do meu
nome.
— O que é isso…? — Sopro, sentindo minha cabeça latejar por
imensa dor. — Por que meu nome está naquela lápide?
Sinto seu corpo próximo ao meu, mas em nenhum momento ele me
toca. E eu agradeço por isso, pois sequer sei identificar qual será o
sentimento que me dominará se o fizer.
— Sinto muito por ter arruinado a sua vida. — Seu sopro em meu
ouvido me fere a alma. É arrastado. Dolorido. — Seu nome está naquela
lápide pois precisei forjar a sua morte porque não era capaz de deixá-la ir.
Fui ordenado a enviá-la para sua família na França, mas optei por me tornar
um traidor a abrir mão de você.
De costas para ele, tapo a boca com força e choro baixo. Liberto as
lágrimas presas há anos, toda a mágoa sobre as minhas costas são liberadas
em lágrimas pesadas que me corroem a alma. Fecho os meus olhos e sinto
sua respiração pesada bater contra a pele exposta de minha nuca.
Dói, dói.
Meu Deus, como dói.
Ouço os pedaços do meu coração se partindo ainda mais, ouço
minhas entranhas se remoerem em agonia dentro de mim e um mal-estar me
anestesiar de uma forma a qual respirar sequer é uma opção cogitada.
Saber que ele pode estar dizendo a verdade é o que parte o meu
coração, pois isto seria a chave para quase todos os mistérios que envolvem
o meu passado. A minha família, de fato, se interessou por cuidar de mim,
por evitar uma catástrofe. Tantas coisas teriam sido diferentes.
Merda, tudo seria tão diferente, inferno.
Se ele estiver certo, se Jason finalmente está me dizendo uma
verdade neste momento, significa que eu poderia nunca ter ido parar nas
mãos de Marcus Floyd, nunca teria sido quebrada pelos seus homens e não
teria ido parar numa porra de site pornográfico. Eu não teria tido
dificuldades para cuidar de Josh, eu não teria o meu coração partido, eu não
seria alvo de todo um esquema da máfia, eu não teria passado fome, não
teria visto Josh em um estado tão mórbido.
Se ele estiver certo, porra, tudo o que vivi até o momento foi em
vão.
Tudo porque ele não conseguiu pensar no meu bem estar, somente
no seu.
Quão egoísta ele é?
Quão doente?
Possessa, me viro, sequer dando importância aos soluços que
escapam de minha garganta ao encará-lo assim, face a face. Quando
conecto nossos olhares e sei que ele pode enxergar a ira presente em meus
olhos, sua mandíbula é enrijecida com força no mesmo segundo em que
desliza os olhos para a lápide às minhas costas.
Eu poderia rir, inferno.
Olhe para mim.
Veja o quanto você me destruiu.
— Você esperava que… Me trazendo até o túmulo da minha mãe, eu
poderia perdoá-lo por ser egoísta o suficiente para optar por me ver
definhar, desde que não fosse longe de você? — Rio amarga. — Foi um
golpe tão baixo, caramba! — Explodo, gritando contra o seu rosto.
Ele não se mexe.
Não faz absolutamente nada, mas no canto de seus olhos, uma
lágrima desliza entre o vão de seu nariz. Apenas uma.
— Você pode não tê-la matado, Jason, mas olhe para mim, veja tudo
o que fez comigo. E me trazer aqui, me falar isso no túmulo que eu
acreditava ser inexistente, é tão… Imperdoável!
Com a ausência de resposta, eu ergo o meu punho e soco o seu
peito.
Por Deus, quando isso vai acabar? Quando vai parar de doer?
— É o que você tanto quer, não é? Você quer que eu te odeie? —
Indago, furiosa. — Ótimo, eu já te odeio!
Soco seu peito uma, duas, três vezes.
Libero todo o ódio acumulado pela frustração em meus golpes,
deixo que tudo o machuque assim como machuca a mim. Deixo que ele lide
com a dor sozinho, assim como tenho feito há anos.
Há a dor de ter confiado cegamente no garoto puro de cachinhos,
extremamente super-protetor e cuidadoso, agressivo com todos, explosivo
com o resto do mundo, menos comigo. Aquele que acendeu a chama da
esperança dentro de mim e me deu motivos para me reerguer e encontrar
um novo sentido na vida. Deus, eu o amei, o abracei, o beijei, o entreguei
meu coração de olhos fechados, tudo porque confiava plenamente que ele
cuidaria dele como se não fosse apenas um órgão.
Há a dor de esperar por ele mesmo quando existiam chances dele ter
sido o culpado por tudo o que passei, porque eu ainda acreditava que ele
poderia ter alguma explicação que me fizesse voltar a amá-lo como se
qualquer possibilidade de ser verdade, fosse nula.
Há a dor de existir, até hoje, as chances de ouvi-lo e acreditar que
talvez ele tenha uma boa razão além de seu egoísmo, mas quando se recebe
silêncio diante de um questionamento, a resposta a seguir sempre será a que
menos espera.
E quando ela não vem, a dor é ainda mais mortal.
— Dói muito. — Caio de joelhos, cedendo à insuportável dor. —
Por que você fez isso comigo? Por que você gosta tanto de ver o meu
sofrimento?
Não levanto o meu olhar até ele, não deduzo onde ele está pois o seu
cheiro inebriante infiltrando-se em minhas narinas não torna possível
qualquer outra alternativa. Ele está bem diante de mim, sei que pode me
observar nesta posição inferior, sofrendo e expondo a minha dor como
jamais o fiz.
Saber que sim, que um dia existiu a possibilidade de hoje a minha
vida ser totalmente diferente, rouba o ar de meus pulmões em um nível tão
grande que sequer posso puxá-lo sem que minha consciência ameace partir.
A atmosfera adotou uma aparência caótica, trazendo ao meu peito um
desconforto onde tudo o que desejo é abrir os olhos e ver que tudo se tratou
de um sonho. Uma falsa realidade.
Sempre soube que Jason é do tipo egoísta, o tipo que não aceita
abrir mão do que acredita pertencer somente a ele, mesmo que haja uma
guerra em todo o mundo por conta de suas escolhas. Ele não se importa.
Não lhe dói.
Não lhe causa nada.
Enquanto a mim, não me restou nada.
— Eu nunca entrei na sua vida para ser o seu herói, Baker. — Ouço
sua voz, rígida e entrecortada. — Eu tenho o dever de ser o vilão da sua
história, até que seu ódio por mim seja tão grande que sequer consiga
respirar, e eu o aceitarei de bom grado, porque te machucar para mantê-la
longe é um ato protetor maior do que qualquer herói seria capaz de possuir.
Abro os meus olhos, desnorteada o bastante para que um soluço
escape de meus lábios. Um vilão. Parece que ele realmente está cumprindo
com o seu papel.
Minha alma está despedaçada, porque finalmente existe uma razão
completamente comprovada para que eu o odeie tanto. É o que ele quer, é o
que precisa fazer. Ele está satisfeito em ser o vilão aqui, quando um dia eu
pensei que ele seria o meu herói.
Sou tão estúpida que mesmo com o coração rasgando o meu peito e
me roubando a alma, enviando-a para um abismo ainda mais fundo do que
aquele que estive por todos estes anos, mesmo que eu esteja diante do maior
causador de minha ruína, ainda estou ajoelhada, caída aos seus pés
enquanto o mundo parece desabar em minhas costas.
O peso é demais para suportar.
Sinto que serei esmagada pela sua força voraz.
Perdida em meus próprios pensamentos, levo alguns minutos para
notar o toque plácido e sereno contra a minha pele, tão leve e cuidadoso que
não me dou ao trabalho de impedir. Seus dedos impulsionam o meu queixo
a erguer-se, até que meus olhos nublados encontrem os seus.
Levo um tempo para interpretar o seu olhar, mas quando o faço,
vejo nele a hesitação e a sensação de dever cumprido brilharem ao redor de
sua íris, embora não haja um único fio de satisfação incluído no pacote.
Balanço a cabeça em um menear descrente, sentindo as minhas
paredes internas finalmente destroçadas dentro de mim, abrindo uma
barreira que demorei anos para construir. Desta vez, eu estou
completamente vulnerável. Os cacos se perderam na imensidão do abismo
que acabo de me afundar, eu jamais poderei consertá-los outra vez.
Eu sinto o meu sangue ferver enquanto jorro lágrimas dos meus
olhos. Eu não consigo contê-las, não mais.
— A troco de que? Porque eu me lembro de uma época que você
jurou me proteger. — Indago, jorrando as verdades que há tanto tempo
mantenho presas no meu peito. — Você me ensinou coisas. Eu era só uma
estranha, e de repente, não era tão estranha assim. Então viramos amigos,
você me ensinou como ser uma garota forte e determinada. Então eu me
apaixonei pela forma como você me enxergava além do que os outros
poderiam alcançar, me apaixonei por você da maneira que você sempre foi.
Não olhei para os seus defeitos, não temi o dia seguinte porque você estava
ali para me ajudar, para me proteger. Mas sabe, você me ensinou a como me
proteger de caras como o seu pai, só talvez tenha se esquecido de me
ensinar a como me proteger de caras como você.
Ele me encara quieto, absorvendo todas as palavras enquanto o seu
pomo-de-adão revela o quanto minhas palavras o abalam, de maneira que
ele não é capaz de demonstrar.
As lágrimas escorrem dos meus olhos, acumulando uma quantidade
dolorosa na ponta do meu queixo onde os seus dedos as capturam.
Espero até que diga alguma coisa, embora eu saiba que nada que
saia de seus lábios será suficiente para curar o rasgo incurável que partiu-
me ao meio. Observo o seu olhar perdido, tão vazio de qualquer emoção
que chego a duvidar que ele realmente possua um coração em seu peito.
Me enfurece que ele tenha tanta facilidade em me tirar do eixo, me
desestabilizar e me colocar em uma posição onde não me faltam motivos
para apagá-lo, mas sim, a coragem para isto.
Afinal, a arma em minha cintura poderia resolver o problema. Eu
finalmente estaria livre de uma vez por todas.
Mas, porra, por que tudo parece tão difícil quando deveria ser fácil?
— Você já sabe como se defender de mim, apenas não deseja fazê-
lo. — Sussurra, em um tom tão confiante que não ouso lhe dar o gosto de
me desafiar.
Dou um tapa em sua mão na tentativa de afastar o seu toque de
minha pele, assim como me esforço para reunir forças suficientes para me
colocar de pé. No entanto, ao firmar um dos pés no chão, Jason interrompe
o meu movimento ao segurar o meu pulso com uma brutalidade tão grande
que um grunhido escapa de mim.
Não tenho tempo para pensar no que acontece, pois em um minuto
eu estou prestes a sacar minha arma e lhe provar que não sou mesmo a
covarde que acredita que eu sou, que posso sim reunir coragem o bastante
para me livrar do destino amaldiçoado que possuo enquanto seu coração
ainda estiver funcionando.
Porém não posso, e não porque seu aperto em meu pulso é bruto
demais para que eu possa me mover, mas sim porque quando fito os seus
olhos e os encontro repletos de uma confusão imensurável, no mesmo
instante eu perco o controle das batidas do meu coração.
Jason parece ter percebido o quanto seu aperto em meu pulso foi
doloroso, e ao erguer a mão para afastar o seu toque, bastou apenas que a
manga de minha blusa subisse um único centímetro para que o pano da gaze
deslizasse pelo dorso da minha mão, e junto dele, os resquícios de meu
sangue por conta dos ferimentos são igualmente expostos.
Imediatamente recolho a minha mão, desequilibrando-me pelo
movimento brusco. Jason move as suas esferas até a minha direção com
uma tempestuosidade e velocidade que até então era inexistente, então eu
me afasto e vou ao chão, rastejando para trás enquanto respiro fundo
diversas vezes para que consiga manter a calma.
Penso que ele está procurando maneiras de ignorar o meu olhar,
porque não é capaz de lidar com o monstro que ele mesmo criou, mas
quando sigo o seu olhar e noto qual é o local exato para onde ele olha, meu
corpo congela. Minha boca seca e a garganta arde com a necessidade
sufocante de gritar alto o suficiente para despertar um universo inteiro.
Meu corpo vacila por inteiro quando Jason avança alguns passos em
minha direção.
Cometo a burrice de encará-lo de baixo para cima enquanto me
rastejo para manter uma certa distância, no entanto, Jason precisa apenas
avançar um único passo largo para me alcançar. Seus olhos, desta vez,
possuem um tipo diferente de brilho. Um ao qual nunca o vi esbanjar com
tanta nitidez.
Ele se agacha sobre um dos joelhos à minha frente.
Respiro fundo.
Tudo bem, tudo bem.
Só respire fundo.
— Me dê o seu braço. — Jason ordena.
A resposta negativa vem automática, em um balançar de cabeça que
parece incomodá-lo profundamente, pois sequer me concede a oportunidade
de responder com o uso de palavras.
— Quem machucou você? — Ele pergunta, analisando minha face
com cautela. — Me dê nomes, Baker. Me diga quem arrancou sangue seu.
Nego novamente ao passo que uma lágrima desliza por minha face.
Ele a segue com o olhar, capturando o deslizar em uma lentidão que
parece hipnotizá-lo, torturando cada um de seus miolos.
— Me diga um nome. — É quase uma súplica, embora sua voz seja
sempre rouca e rígida. — Me diga a porra de um nome!
Soluço.
Porra.
Quando foi que eu imaginei que chegaríamos até aqui?
Quando foi que eu imaginei que um dia estaria sendo prensada de
uma maneira que o maior dos meus segredos estivesse prestes a ser exposto
a ele?
Independente de qual seja a resposta, sei que não sairei daqui até
que ele tenha a resposta que tanto procura. Este é um daqueles momentos
em que eu só tenho duas opções: expor as minhas feridas ou deixar que
sejam expostas obrigatoriamente.
É pensando nisso que eu reúno coragem o bastante para questioná-lo
indiretamente.
Feliz?
— Não foi ninguém. — Afirmo, mirando os meus olhos nos seus.
— Só há duas pessoas neste mundo que podem me machucar tão
profundamente que eu tenha vergonha de expor para o mundo. Então, a
menos que você tenha cortado os meus pulsos, a única culpada aqui sou eu.
Aspen Baker é quem você procura. E agora, bonitão, vai me machucar por
eu ter tocado no que apenas você possui o direito de destruir?
E é neste momento que ele avança, sem pudor ou gentileza alguma.
Jason inclina o seu corpo sobre o meu até que eu caia sentada no
chão, tento afastá-lo e impedi-lo de alcançar o seu objetivo, no entanto,
quando ele alcança ambos os meus braços com uma força imensurável que
não pode ser igualada à minha para que eu lute contra, eu solto um suspiro
frustrado. É duro sentir-se tão prepotente.
Ele toma ambos os meus braços em suas mãos e as leva para a
frente de meu corpo, poupando qualquer fio de gentileza ao puxar ambas as
mangas para cima antes que eu tenha a chance de impedir.
Arfo, soprando os meus cabelos para longe do meu rosto.
Então acontece.
Ele congela, toda sua ansiedade é substituída pela falta de reação.
Seus olhos se concentram nas linhas finas de meus pulsos, e apesar de seu
toque ser bruto, há uma mansidão que o torna diferente do segundo anterior.
Então desisto de lutar.
Era o que você queria, não era?
— E agora? Está feliz? — Minha voz embarga, e junto dela eu sinto
um choro entalado em minha garganta.
Posso ver o seu peito subir e descer em uma respiração elevada, sua
mandíbula está travada e ele parece prestes a explodir, apesar do toque em
minha pele se tratar de uma mistura confusa de sentimentos.
— Eu... — Ele analisa os meus braços, parece perder as palavras. —
Você... Porra, o que você fez, Baker? — Seu olhar busca o meu, Jason
parece completamente perturbado, como se estivesse lutando para controlar
a sua vulnerabilidade tanto quanto eu.
Sigo o seu olhar, olhando para os diversos cortes ainda em processo
de cicatrização em ambos os pulsos. Eu deveria ter retirado as gazes para
evitar levantar suspeitas. Nós estávamos em uma montanha, casacos sempre
esconderiam os meus braços o suficiente para não precisar de um pedaço de
gaze que certamente levantaria questões a serem questionadas.
Mas cá estamos nós, e o maior alvo das minhas crises sufocantes
está sob as mãos de quem partiu o meu coração. Será que ele pode enxergar
a profundeza da minha dor? Será que pode compreendê-la? Será que se
importa?
— Não, não, não — Jason fecha os olhos, repetindo as palavras para
si mesmo. Ele está fora de si. — Quando isso começou? Quando você
começou a ferir a si mesma, Baker?
Mais lágrimas despencam dos meus olhos quando Jason aperta o
meu braço ao redor de sua palma firme, pressionando-me para lhe dar uma
resposta.
Engulo em seco, reprimindo um soluço.
— Não importa quando isso começou, o que importa é que
encontrei refúgio nas lâminas. O refúgio que eu precisava naquele
momento. — Eu digo a ele, minha voz falhando no processo.
Jason suspira, a ponta de seus dedos acaricia a minha pele como se
pudesse arrancar dali toda a dor que sufoca. Ele faz tudo parecer mais
doloroso quando uma única lágrima completamente solitária despenca de
seus olhos enquanto me encara, parecendo procurar compreender toda a
bagunça que apenas cresce aqui dentro.
O gesto foi tão rápido e discreto que não o notaria se por algum
acaso, não estivesse olhando fixamente para a sua expressão tão abalada.
Sua mudança expressiva é notória há quilômetros de distância.
— Eu deveria ser o seu refúgio. Deveria estar lá para você. — O seu
tom de voz é desesperado, suas palavras saem dos seus lábios com um
tremor abatido. — Me desculpa, porra. Me desculpa, me desculpa, por
favor. — Jason fecha os olhos, outra lágrima sua despenca.
Meu coração dói.
Eu não entendo todos os motivos para que esteja tão abalado, não
consigo compreender porque ele gosta tanto de confundir o meu coração.
Ele faz isso com uma frequência que ultrapassa os meus limites, uma hora
ele brinca comigo, demonstra ser o monstro insensível que quebrou o meu
coração, então de repente, ele é um homem emocionalmente quebrado,
tratando as minhas feridas como se fossem suas. Como se pudesse pegar
para si toda a dor que algum dia destruiu toda a minha essência.
Era fácil compreendê-lo. Era fácil olhar para os seus olhos escuros e
decifrar os seus sentimentos, porque éramos transparentes um com o outro,
éramos como um só.
Mas agora, neste jazigo, eu não consigo interpretar absolutamente
nada. É como se eu não o conhecesse, como se as nossas vidas fossem tão
intensas que abalam a intensidade da nossa conexão. Ela não existe mais.
Meus olhos enchem d'água quando Jason ergue ambos os meus
braços à altura do rosto, ele inclina o seu corpo levemente para a frente e
abraça a minha pele, mantendo-a próxima de si. Ele acaricia a extensão do
meu antebraço, desenhando os cortes com a ponta do polegar. Seus lábios
tremem, o pulso em seu pescoço pulsa com intensidade, mas Jason não
desvia os seus olhos dos meus cortes por um segundo sequer.
— O que você está fazendo? — A dúvida me alcança quando ele
aproxima o rosto das minhas feridas.
Ele não diz absolutamente nada.
Observo as suas carícias finas e macias contra as minhas feridas,
contornando a base avermelhada que as cercam. As casquinhas começam a
nascer, mas Jason não se importa com isso quando aproxima os lábios das
minhas feridas e deposita um beijo suave e demorado no local, seus olhos
fechando-se no processo.
O contato frio que vem diretamente do seu piercing para as feridas
quentes do meu pulso, envia uma corrente de arrepio avassaladora para todo
o meu corpo.
Eu vacilo.
Meu corpo parece ter virado uma quantidade significativa de
gelatina conforme ele deposita beijos frios por cada um dos cortes, como se
estivesse adorando-os. Ou talvez, como se pudesse curá-los de alguma
maneira intelectual.
— Sinto muito por não estar com você quando precisou de mim —
Sussurra em meio à uma pausa breve entre um beijo e outro. Seus olhos não
encontram os meus, mas sinto quando uma gota quente despenca de seus
olhos contra o meu pulso, escorregando entre as feridas. — Sinto muito por
ser um desgraçado. Eu juro que faria tudo diferente se pudesse, eu estaria ao
seu lado, eu jamais cometeria um erro imbecil que poderia afastá-la de
mim. Eu sinto tanto, Baker, por favor... Você consegue me perdoar?
Balanço a cabeça, sugando o nariz.
— Nunca.
Ele ergue a cabeça, revelando o seu rosto completamente
encharcado de lágrimas tão dolorosas quanto as minhas. Sua mandíbula
trava, seus olhos piscam para afastar as gotas de sua linha d'água, mas eles
se abrem ao tentar encontrar palavras corretas para responder à minha
negação.
As veias de seu pescoço pulsam, Jason parece prestes a desmoronar
bem na minha frente.
— Sim, você pode.
— Não, Jason. Eu nunca vou conseguir perdoar você.
Um soluço sobe pela minha garganta e preenche o espaço apertado
em que estamos, no mesmo instante em que um grunhido baixo e quase
imperceptível escapa de Jason.
Somos uma eterna sincronia de demonstrações dolorosas. Não existe
nada além de dor e sofrimento, somos apenas eu e ele, desmoronando na
frente um do outro.
De repente, eu volto para o início de tudo ao perceber que a nossa
sincronia não desapareceria completamente, mesmo que o odeie
eternamente. No fim, seríamos eu e ele, ambos lutando para sobreviver a
um inferno tão doloroso quanto as raízes de nosso passado incompreendido.
Ambos carregamos cicatrizes em nossas peles que dizem muito
sobre quem somos. Sobre ao que sobrevivemos. Mesmo que por razões
distintas. É por isso que eu jamais poderei perdoá-lo, pois enquanto tento
superar um passado quebrado, ele tenta se curar de um que ele mesmo
quebrou.
Essa é a nossa grande diferença.
— Naquela noite... — Ele sussurra, respirando fundo para
normalizar a sua respiração.
— Não. — Eu o interrompo. — Não fale sobre aquela noite.
O rancor está aqui, apesar de todas as nossas dores em comum. Eu
não quero me lembrar de sua traição, a maior delas.
— Eu nunca quis machucar você. Eu te amei mais do que consigo
suportar, Baker, você é a porra do meu mundo. Só, por favor... Não
machuque o meu coração dessa forma, deixe-me lutar para consertar as
coisas.
— Você não me machucou, você me destruiu! — Retruco, na
tentativa de puxar os meus braços de seu agarre.
Ele reforça o aperto de forma gentil, sem aprovar o meu esforço
para afastá-lo.
— Só preciso de uma chance. Deixe-me esclarecer as coisas. — Ele
implora, seus olhos nunca deixando os meus.
Balanço a cabeça em meio a lágrimas, ignorando todos os meus
instintos traidores implorando para que eu pule diretamente nos seus braços,
de onde o meu eu antigo desejaria jamais ter saído.
— Você teve uma chance. Você poderia ter tido várias delas, porque
mesmo que eu odiasse você naquela época, não suportaria lutar contra todos
os sentimentos que supria por você. Nada nunca foi mais intenso do que o
que senti por você, exceto a raiva por ter destruído tudo ao meu redor. —
Digo a ele, aprofundando nossos olhares da maneira mais intensa que
posso. — Eu lidaria com as vozes na minha cabeça gritando sobre o quão
ordinária eu sou, sobre o quanto minha mãe estaria decepcionada comigo
por amar um imbecil. Por ter cometido o mesmo erro patético que ela. Mas
eu conseguiria lidar com isso se você estivesse lá para mim, se você tivesse
impedido que...
O fim da frase morre na minha garganta quando Jason me puxa
pelos braços e com eles circula a sua cintura ao colar os nossos corpos em
um abraço fervente. Minha cabeça vai direto ao seu peitoral, uma de suas
mãos afunda nos meus fios de cabelo enquanto a outra abraça os meus
ombros para manter o meu corpo exatamente onde está.
Sinto quando ele aperta o meu corpo contra si, quase como se
pudesse fundir os nossos corpos dessa maneira. Sinto quando o seu queixo
toca o topo da minha cabeça, sinto quando os seus lábios roçam os meus
cabelos e depositam beijos demorados em cada extremidade.
Fecho os olhos, relaxando minha cabeça contra o seu peitoral rígido.
Molho a sua camiseta com as minhas lágrimas, abafo soluços contra o seu
coração, enviando para ele a corrente elétrica que as nossas dores possuem
em comum.
Em outro momento, eu poderia desejar viver neste momento falso
por mais alguns minutos, mesmo que seja um erro que apenas servirá para
alimentar a fome do pecado que há dentro de mim. Ter o seu carinho
sempre foi o que eu mais desejei nos dois primeiros anos de sua ausência,
embora existissem motivos de sobra para não fazê-lo.
Tê-lo aqui agora poderia aquecer o meu coração, poderia ser uma
parcela de soluções que tenho buscado há anos.
Mas nada disso muda os fatos que o apontam como o maior traidor
existente em minha vida. Suas mentiras nos levou a esta ruína, e mesmo que
eu adore me enganar e acreditar que sou digna de um pouco de felicidade,
sei que nunca cabe a mim tê-la.
Não há como fugir de seu próprio destino.
Desvencilho-me de seus braços de maneira fria, como se o fervor de
seus membros não causasse absolutamente nada em mim. Nenhum tipo de
emoção.
Jason não luta para nos manter unidos, e quando seco o rosto com as
mãos e afasto os fios de cabelo que grudam em minha face úmida, eu
desvio os nossos olhares até que encontrem a lápide com as caligrafias em
perfeito estado.
Quase sorrio ao encarar o nome de minha mãe, assim como a
mensagem abaixo dele.
“Somente as flores desprovidas de zelo partem cedo.
Que o paraíso seja gentil com sua alma, adorável e querida mãe”
Eu gostaria de me sentar à frente de sua lápide e lhe contar histórias
que há tempo desejo dizer. Eu gostaria de conversar com ela assim como
costumava fazer encarando as estrelas brilhantes no céu.
Mas eu jamais o faria em sua frente.
Não quando já testemunhou boa parte de minha verdadeira essência
no dia de hoje.
Engulo a dor da mágoa, tentando focar em finalizar este momento
antes que eu não possa me reerguer.
Então deslizo o meu olhar para a caligrafia de meu nome, antes de
soltar um riso frouxo ao notar a ausência de qualquer frase poética que
possa afirmar que o caixão não está vazio. Não que eu me importe. Sofia
Clarke não merece nada além de uma completa e pura pena.
— Foi bom você ter me trazido até aqui, no fim das contas —
Suspiro, finalmente encontrando o seu olhar atordoado mirado em minha
direção. — Você me enterrou, e hoje nós fizemos oficialmente um funeral
para a pessoa que você conheceu.
Intensificamos o nosso olhar, ambos conectados pela intensidade da
atmosfera que parece unir as nossas almas, embora a minha esteja fugindo
de seu agarre.
— Não há uma parte sequer dentro de mim que nutra algum tipo de
sentimento por você senão o ódio. Quem você amou, é a mesma pessoa que
você preferiu jogar para os lobos. — Digo, indiferença escorre de meus
lábios. — Temos um acordo, Jason, depois disso você sabe bem o que
acontece. Nunca mais apareça na minha frente, porque se o fizer, não vou
hesitar em matá-lo.
Ele se cala.
E eu caminho até a saída, certa de que não há razões para estender
este momento que para sempre seguirá preso em minha memória. Jamais
me esquecerei de seus beijos em minhas feridas ou de como menti ao dizer
que não sinto nada por ele, embora ele não tenha a necessidade de saber.
Dói agir com tamanha indiferença quando tudo o que sinto é o
oposto. Então, como é que ele consegue?
Seguro a barra do portão de ferro com uma das mãos, prestes a
saltar para fora e partir para fora do jazigo. No entanto, ainda de costas para
ele, eu encaro o céu azul e seco uma lágrima que escorre no canto de meus
olhos antes que ela caia em definitivo.
Não é tão difícil assim.
— Quero a chave deste jazigo em minhas mãos. E se você ousar
dizer a alguém sobre o que viu hoje, nosso acordo estará oficialmente
acabado.
Então eu o deixo sozinho, certa de que meus dias jamais serão iguais
outra vez.
EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

— Olha lá! Chegou o esquisitão. — Uma dúzia de garotos brancos


e engomadinhos cochicham quando adentro o colégio.
Os seus amigos explodiram em uma gargalhada genuína, todos eles
apontam os dedos em minha direção e gargalharam como se eu fosse uma
aberração.
— O esquisitão tem nome! — Rosno na direção do grupo. Meu rosto
queima e meu peito se enche de mágoa e chateação. Aquilo me machuca
mais do que deveria. — Eu não fiz nada para vocês, seus idiotas.
Um deles, o que parece ser o líder que comanda o grupinho patético
que mais parece uma seita, toma a frente dos amigos. Ele parece desgostar
do tom que eu usei para revidar ao vexame que sempre me faziam passar
ao chegar neste inferno de lugar.
— Você nasceu! Esse foi o pecado que você cometeu. — Todos os
alunos expostos ao pátio do colégio deixam de conversar entre si para dar
ouvidos ao que é dito por ele. — Nem mesmo o seu próprio pai quer você, e
está óbvio que é pelo simples fato de você se parecer com um monstro!
Abaixo a cabeça, erguendo minimamente as minhas mãos ao revirá-
las, vasculhando a minha pele para encontrar algum vestígio que possa me
tornar diferente dele ou de todos estes alunos. Somos todos feitos de carne
e ossos, então por que todos eles me desprezam pelo simples fato da minha
pele ter uma tonalidade diferente da deles?
Não é justo comigo. Todos eles me odeiam pelo mesmo motivo. Os
alunos, as pessoas nas ruas, o meu pai. Todos eles me desprezam por uma
razão que eu não escolhi. Por uma razão que deveria ser considerada algo
normal.
Eu não sou esquisitão. Não sou uma aberração.
— Vamos! Me enfrente e me puna por estar irritando você. Venha
aqui e me bata com toda a sua força! — Seus olhos claros rasgam a minha
alma, ele me desafia com todo o seu poder que claramente não é
merecedor.
Os alunos ao nosso redor observam a cena como se estivessem
sentindo pena da dor fulminante que parece esmagar o meu peito e me
enviar direto para um calabouço escuro e solitário, mas ninguém faz nada.
Ninguém o para. Eles estão adorando a cena de um moleque sendo
humilhado por outro.
O que nós temos de tão diferente?
Assim como eu, ele é filho de um empresário renomado. Todos os
alunos deste lugar são filhos de pessoas importantes, porque precisam ser
protegidos de todo o mal exposto do lado de fora. Eles estão seguros aqui
dentro. Menos eu. Eu sou considerado uma ameaça porque sou negro.
Porque tenho marcas em meu corpo que se parecem com algo ameaçador,
mas são apenas cicatrizes de açoites feitas pelo mesmo homem que aparece
publicamente para pregar sobre o quanto este mundo é cruel e o quanto a
sua equipe está lutando para mudar a realidade.
O que ele pode fazer por pessoas que sequer conhece quando não
pode amar o próprio filho? Quando não pode protegê-lo?
— Não seja idiota! — Espalmo as minhas mãos contra o seu
peitoral, impedindo-o de se aproximar. — Não vou bater em você.
Ele afasta as minhas mãos e balança a cabeça repetidas vezes em
afirmação. Seus amigos continuam observando a situação, me encaram
como se pudessem me queimar vivo a qualquer minuto.
— É isso que faz de você um covarde! — Engulo em seco. — É por
isso que o seu pai não divulga o herdeiro, porque ele é um bundão!
Estreito a sobrancelha, confuso.
— Você não sabe do que está falando.
— O seu pai e o meu são bons amigos — Ele debocha. — Ouvi ele
dizer sobre o quão inútil você é para os negócios.
A decepção escorre de meu rosto como suor, mas tento de todo jeito
impedir que minha expressão revele o quanto o assunto “relacionamento
paterno” mexe com a minha cabeça.
— Saia da minha frente! — O empurro sem pudor, convicto em ir em
direção a minha aula.
No entanto, antes que eu possa sair em direção a parte interna do
colégio onde a minha turma está localizada, o garoto segura o meu braço e
puxa o meu corpo de encontro ao seu. Nós não parecemos ter tanta
diferença de idade, mas ele é forte, apesar do físico magro e da expressão
inocente.
— Ninguém neste colégio gosta de você. Você é diferente de todos
nós, a sua cor e a sua aparência... A forma como você se veste e o seu jeito
de falar. Até o seu cabelo assusta as pessoas, então faça um favor para
todos nós e desapareça. — Ele sussurra baixinho. Ninguém ouviu, mas eu,
sim. — Você é um monstro, aceite que ninguém nunca vai olhar para você
sem sentir medo. Ninguém nunca vai amar você.
As suas últimas palavras fazem a minha cabeça girar. De repente,
os alunos ao nosso redor sumiram, os seus amigos evaporaram de meu
campo de visão. Tudo pareceu girar e girar, minha respiração acelerou e as
batidas do meu coração também. Senti como se ele tivesse acabado de
puxar o meu coração do peito e pisoteado as últimas esperanças que eu
guardava a sete chaves em um abismo interno onde alguém poderia me
amar.
Esse é o problema do mundo onde vivemos. Ninguém nunca vai
entender a sua dor, ninguém nunca vai compreender porque você não
consegue aceitar que a sua vida seja tão ruim. Para pessoas ruins, destruir
o seu dia é o suficiente para alegrar o mar de infelicidade que possuem no
coração. Para você, são mais rachaduras que com o tempo tornam-se
feridas incuráveis. E eles nunca vão compreender o tamanho delas.
É exatamente o que ele acaba de fazer.
Suas palavras são como álcool para a minha ferida aberta.
Porque mesmo que tente suportar o peso de fazer parte de uma
família arruinada que nunca me amará como eu sou, ainda me dói. Meu
Deus, como dói.
Por isto não pensei racionalmente quando me livrei da minha
mochila e atirei-a para um canto qualquer do jardim. Não pensei quando
levei ambas as mãos para a garganta do garoto e o enforquei.
Assistir os seus olhos arregalados revelando total pavor é
estranhamente satisfatório. Sua pele branca adotando uma cor
avermelhada também, porque eu ouço gritos para que eu pare de enforcar
o garoto e há outras pessoas gritando sobre como eu sempre fui um
monstro.
Gritos e mais gritos soam em um canto abafado da minha cabeça.
Monstro. Aberração. Esquisito. Doente. Eles gritam sem parar.
Mas eu não paro.
Talvez agora eles tenham um bom motivo para me chamar de
monstro.
Fecho o punho com força e bato incontáveis vezes em seu rosto,
porque alguém deve ensinar a este moleque que pessoas possuem
sentimentos. Que eu não sou um inseto. Que não sou um monstro e não
tenho sangue de barata.
Eu sinto, eu sofro e eu amo. Mas acima de tudo, eu me culpo pra
caramba.
E se eu fosse uma pessoa totalmente diferente? E se eu tivesse
escutado os conselhos de meu pai para ser um bom garoto para ser útil em
seus negócios? E se eu fosse de outra cor? E se eu fosse digno de amor e
carinho?
Lágrimas escorrem de meu rosto quando sinto o meu corpo ser
afastado do garoto, ele chora e atira xingamentos em minha direção. Seu
nariz sangra muito, sua pele branca está completamente encharcada de
sangue e todos os alunos fazem uma roda aos gritos ao seu redor enquanto
outros pedem por socorro.
Todos dão atenção ao branco herdeiro e milionário, todos acolhem
a sua dor e lhe dão apoio, mesmo que ele tenha provocado essa situação ao
despertar gatilhos dentro de mim. Ele disse coisas horríveis e me tratou
como um monstro, ele causou tudo isto e ainda assim está recebendo apoio
de todas as pessoas que visualizaram tudo de perto.
E eu sigo aqui, ajoelhado na grama do jardim enquanto lágrimas
escorrem de meu rosto. Perdi o controle e agi como todos esperavam que
reagisse apenas por não ser capaz de lidar com a minha dor. Com a minha
vida infeliz.
Mal percebo quando o meu corpo é erguido do chão e as pessoas
apontam os seus dedos acusatórios para a minha direção.
— Você está muito encrencado, Lewis. — É a voz do diretor. — Já
estamos buscando contato com o seu pai e em breve ele virá buscar você.
Balanço a cabeça negativamente mais vezes do que posso contar.
— Por favor, não faça isso... — Ele seria capaz de me matar por
envergonha-lo de tal forma.
Meu corpo é arrastado até que seja assentado em uma cadeira
confortável no escritório do diretor. Enxugo as minhas lágrimas e meu
coração bate acelerado, porque eu sei muito bem o que aconteceria comigo
quando ele chegasse até aqui.
Doí muito.
Eu quero fugir para longe. Quero ir embora antes que seus olhos
furiosos encontrem os meus.
— Onde ele está? — Questiono o diretor. — Por que o outro
também não está aqui? Eu não briguei sozinho!
O diretor dá a volta em sua mesa para sentar-se à sua cadeira,
praticamente ignorando o meu questionamento.
— Ele não tocou em você, Lewis. — É uma afirmação. — Temos o
colégio inteiro como testemunha.
Levanto o meu corpo em descrença. Ele sequer me perguntou o que
aconteceu, simplesmente deduziu que a merda havia sido causada por mim.
— Eu sofro racismo nesse colégio desde que fui matriculado. Eles
me humilham todos os dias! Ele também deveria estar aqui, ele também
deveria pagar o preço! — Minha voz soa chorosa e ferida.
O diretor suspira pesadamente, mas não ousa abrir a boca quando
a porta é aberta bruscamente. A agressividade com a qual os passos
caminham duro em nossa direção não me dá outra alternativa senão
compreender que eu pagarei o preço. Um preço alto e injusto por uma
atrocidade que sequer tenho culpa.
E que o meu maior pesadelo está bem atrás de mim.
— Diretor Austin. — A voz rígida de meu pai saúda o diretor. —
Lewis.
Meu corpo estremece diante de sua chamada rígida.
— Pai. — Finalmente reúno coragem para encará-lo.
Sua expressão fria e dura é capaz de destroçar este escritório. Suas
mãos carregam uma maleta, uma a qual ele leva para todo lado em seu
trabalho. Seu corpo ainda está vestido de seu habitual terno cinza escuro. A
gravata dourada reveste o seu pescoço e os olhos fulminantes analisam a
minha alma.
— Você quer me contar alguma coisa? — Seu questionamento é
direto. O Sr. Austin sequer abre o bico diante de tamanha autoridade.
Engulo em seco.
— Eu bati em um garoto. — Calafrios percorrem o meu corpo. —
Mas ele disse coisas horríveis e...
— E, o quê? — Rude, ele pergunta. — E aí você se achou no direito
de bater na cara dele?
Abaixo a cabeça como um fracassado, sabendo que não importa o
quanto eu tente me explicar, todas as pessoas sempre acharão uma forma
de me culpar por algo que eu tentei evitar.
— Eu errei, não tinha necessidade do senhor vir até aqui e... —
Minha visão fica turva e minha cabeça gira para o lado no instante em que
um tapa arde em meu rosto.
— Você é algum idiota?! — Ele rosna. — Eu invisto dólares e
dólares neste colégio para você vir até aqui e agir como um animal?!
Um choramingo escapa de minha garganta.
— Marcus, não precisa agir dessa forma. Podemos resolver de
outra maneira. — O diretor abaixa o seu tom de voz, nitidamente
desconfortável com o que acaba de testemunhar.
O meu pai desvia o seu olhar até Austin e o encara como se pudesse
explodir o seu corpo e fazê-lo desaparecer da terra.
— Não me diga como devo educar o meu filho! — Ele está furioso.
— Este é um assunto nosso.
Sinto como se eu fosse um peixe fora d'água. Nada disso cabia a
mim, tudo é muito doloroso e distante. Apesar de sentir que meu pai está
me envergonhando, ainda é pouco comparado ao que ele realmente fará
quando estivermos a sós.
E mais uma vez, ninguém irá me salvar.
— Podemos apenas assinar uma advertência e o senhor pode ir
embora. A aula continuará normalmente. — Austin sugere.
Meu pai não apresenta nenhuma expressão, seu rosto branco e
cheio de rugas me assusta, porque ele age como se não tivesse um coração.
Como se não fosse capaz de sentir absolutamente nada caso não seja algo
de seu agrado.
— Irei levá-lo comigo. Amanhã assinamos este documento e
prometo não apresentar nenhum comportamento parecido outra vez. —
Papai baixa a guarda. — Peça desculpas ao outro menino por mim.
Austin encara meu pai com desconfiança, ele tem uma caneta entre
os dedos e faz questão de alternar o seu olhar entre nós dois, como se
estivesse prevendo o que aconteceria naquela casa, quando ninguém
estivesse olhando e só restasse os meus gritos internos de socorro.
Aqueles bem parecidos com o que eu possuo neste instante,
implorando visualmente para que ele não deixe que papai me leve.
Preciso apenas de um pouco mais de tempo para planejar a minha
fuga, porque não posso suportar mais açoites. Não posso suportar tanto
desprezo e humilhação. Tudo dói e é insuportável.
— Certo. — Austin suspira, baixando o olhar e causando
formigamento em meu peito. A descrença me atinge em cheio. — Nos vemos
amanhã.
— Certamente. — O meu pai se aproxima de mim, carregando a
minha mochila junto da sua mala e caminhando em direção à porta,
abrindo-a o suficiente para me dar passagem.
Mágoa e medo me tomam por completo, eu sinto como se estivesse
prestes a conhecer o inferno pessoalmente. Tudo em meu corpo dói e meu
coração martela descompassado.
Fecho os olhos por um instante, desejando um dia poder ter uma
vida com a qual me orgulhar. Uma em que eu não sinta medo todos os
segundos, uma em que tudo seja envolto por tristeza e pavor.
Mas então a ficha cai.
Talvez o garoto tenha razão. Talvez o meu principal pecado seja ter
nascido, porque se não o tivesse feito não estaria aqui agora implorando
por um afeto que nunca me foi digno. Eu preciso aceitar isso antes que todo
o caos me destrua.
Porque é apenas isto que a minha vida pode me proporcionar.
Tristeza, caos e pavor.
O amor e afeto são dádivas oferecidas a poucos sortudos. É luz e
paz. E na minha vida, infelizmente só cabe o oposto disso.
O diretor Austin não diz nada quando meu pai agarra o meu braço
e praticamente me arrasta para fora de sua sala, meu pai também não. Ele
me arrasta pelos corredores como se eu fosse um animal, os alunos
encaram a cena como um completo show de circo. Eles dão risada e
zombam da minha situação porque sabem o que vai acontecer comigo e
acham graça. Eles não se importam desde que o açoite não atinja suas
peles.
Me sinto como um completo saco de lixo.
Quis desaparecer, dar um jeito de me soltar de seu braço e fugir
pela cidade. Qualquer outro buraco seria menos doloroso do que estar aqui
e enfrentar a sua fúria.
Mas é tarde demais, porque ele já atravessou o colégio inteiro me
arrastando pela manga do moletom e atirou o meu corpo como algo
insignificante no banco traseiro de seu carro.
Uma tremedeira incomum assola o meu corpo e causa espasmos em
minhas pernas. Os calafrios percorrem toda a minha coluna ao imaginar o
que virá a seguir.
Quis abrir a boca e pedir perdão pela segunda vez, queria dar
algum jeito de me livrar de sua mágoa e decepção. Mas ele não se importa,
o meu pai não se importa com nada além dele mesmo.
E tudo está mais claro do que nunca agora.
— Suba e espere no seu quarto, Lewis. — Ele ordena quando o seu
motorista particular estaciona em nossa garagem.
Hesitante, abro a porta do carro e desvio o olhar para o lado de
fora, buscando alguma saída que facilite a minha fuga antes que o pior
aconteça.
— Você não me ouviu? Suba para o seu quarto. — Ele repete,
áspero.
Estremeço de imediato.
A minha bexiga enche de repente, eu sinto como se a urina fosse
escorrer entre as minhas pernas a qualquer momento. Estou apavorado e
ciente de que eu não mereço isso. Eu não mereço arcar com as
consequências de um erro que não é meu.
— Eu posso ir ao banheiro primeiro? — Peço, ciente de que
necessidades comuns deveriam ser permitidas por ele. — Eu estou
apertado.
Meu pai que mantinha os seus olhos fixos na tela de seu celular,
desce do carro enquanto o visor de seu telefone indica uma nova chamada.
Ele levanta a cabeça apenas para me direcionar um olhar cheio de
impaciência.
— Você ainda está aqui? — Resmunga. — Faça o que tiver de fazer
e suba para a porra do seu quarto. Você já me envergonhou o suficiente por
hoje.
— Mas eu apenas me defendi! — Cometo o erro de retrucar. — Ele
disse coisas horríveis sobre você me desprezar e...
Eu me calo quando ele bate com a sua palma no couro do banco do
carro e sua pele branca adota uma cor avermelhada como pimenta. Ele me
encara como se pudesse apagar a minha existência do mundo.
— Ele disse alguma mentira?! — Rosna. — Pelo amor de Deus,
desapareça da minha frente antes que eu cometa alguma loucura!
Me afasto de imediato quando ele atende a sua ligação com toda a
normalidade e casualidade habitual, um sorriso enfeita o seu rosto
enrugado no segundo em que alguém parece lhe dar alguma novidade do
outro lado da linha. Ele age como se não tivesse acabado de partir o meu
coração.
É como se cada pedaço estivesse se desfazendo dentro de mim,
pedaço por pedaço despenca de meu peito e cai contra o chão como pó.
Papai acaba de destruir o último fio de esperança que eu possuía quanto
ao seu amor por mim.
Ele simplesmente não existe.
Nunca existiu.
Bato a porta com delicadeza para não irritá-lo e caminho em
passos lentos até o banheiro do piso superior. Meus pés se arrastam no
chão como se estivesse fazendo um enorme esforço para continuar em pé, e
realmente estou.
Estou cansado de me sentir um peso morto na vida de quem esteve
ao meu lado desde que me entendo por gente. Como é que eu poderia me
sentir feliz quando sequer tenho algum motivo para isso?
Tudo dói e é intenso demais. O buraco em meu peito parece tão
profundo, é como se eu não soubesse quem sou ou quem pretendo ser. É
como se nada existisse além do meu pai e de suas ordens.
Me sinto ainda mais idiota quando me lembro de que eu o amo.
Mesmo com todos os açoites, todas as ordens, as humilhações, os insultos e
o desdém. Eu o amo. Sou um idiota dos grandes por isto.

— Você vai contar comigo! — Ele grita. A pele de minhas costas


queima em ansiedade tenebrosa. — Cada um desses golpes é para você se
lembrar de como as consequências de suas ações são dolorosas.
Me deito de bruços em minha cama ao fechar os meus olhos com
força. Lágrimas reúnem-se em minha linha d'água e eu temo que
despenquem, porque se ele as ver, não há dúvidas de que minha punição
será dobrada.
Quando vem o primeiro golpe, eu reprimo um grito sufocado. Meu
pulmão se enche de amargura e dor, tudo que consigo sentir é uma
quantidade imensa de angústia e sofrimento.
— Um. — Dissemos em uníssono.
Aperto os dedos contra o lençol da minha cama, controlando a
força para simplesmente não levantar-me e correr para o mais longe que
posso.
Sinto os fiapos de borracha contra minhas costas, indicando que ele
usa algo duro o suficiente para causar cicatrizes em meu corpo.
— Você tem que entender que tudo isso é para fazer de você um
homem. — Sua voz é fria e áspera, ele sequer parece possuir um coração.
— Você precisa ser forte para quando entrar para os negócios da família!
O segundo golpe vem com força.
— D-Dois. — Ofego.
Minha pele arde como o inferno.
— Eu preciso que você me orgulhe! Jamais me envergonhe! —
Rosna ao golpear pela terceira vez.
Desta vez, um grito escapa de minha garganta junto a algumas
lágrimas vítimas de tamanho sofrimento.
— Três! — Urro, sentindo como se meu corpo não funcionasse da
cintura para cima.
— Se você for provocado, você fica calado e se mostra superior,
Lewis. Jamais enfrente ou perca a sua razão, isto é uma fraqueza
imperdoável.
Cubro o meu rosto com as mãos quando vem o quarto golpe. Meu
coração bate descompassado e minhas pernas tremem, minha respiração já
não é possível ser controlada. Ouço o ruído de algum objeto caindo contra
o chão e deduzo que papai tenha desistido de machucar a minha pele, mas
não ouso encará-lo.
— Estou transformando você em um herdeiro de honra. Você
deveria me agradecer. — Uma de suas mãos toca a minha cabeça em um
tipo de carinho completamente esquisito.
Suspiro em meio ao choro engasgado, odiando tudo ao meu redor
com todas as forças. Odiando essa casa, odiando a minha vida, odiando a
minha capacidade de amar uma pessoa assim, odiando a minha existência
e desprezando ainda mais o homem que me colocou no mundo.
— Talvez algum dia você me agradeça por ter moldado você
exatamente como deve ser. Moleques jamais herdarão o mundo, mas os
homens disciplinados, sim. — Ele suspira. — Estarei trabalhando na sala
de visitas. Chamarei Marta para cuidar de suas feridas, então tome um
banho e pense nas últimas horas.
Então ele se vai.
Reprimo um ar que estava prendendo há tempo demais enquanto
sinto o líquido escorrer em minha pele. Eu sei que é sangue. Ele sempre faz
isso, mas desta vez, de alguma forma foi mais doloroso.
Repenso todos os meus atos, transformo a minha atitude no colégio
em algo totalmente diferente apenas para acreditar que talvez eu não
estivesse nestas condições se não tivesse dado ouvidos para aquele garoto.
Se não tivesse permitido que ele entrasse na minha cabeça.
Mudo todos os fatos.
Me transformo em um monstro e culpo os meus sentimentos por
existirem.
Mas só quando a porta bate ao indicar que estou sozinho, é que
choro como um bebê.
Porque além de tudo o que eu sinto agora, a tristeza ainda é o
maior sentimento que domina o meu ser e faz tudo parecer ainda pior do
que realmente é.

Observo as estrelas no céu.


A lua brilha intensamente nessa noite, por algum motivo ela parece
ainda mais radiante hoje.
Talvez seja algum aviso dos céus para que algo seja radiante o
suficiente para amenizar o horror que o dia de hoje havia sido. Ou eu
apenas esteja prestando atenção em sua direção com mais concentração
hoje. Bem, tanto faz.
Sentado no telhado do lado de fora da minha janela eu levanto as
pernas o suficiente para apoiar a minha cabeça em meus joelhos. Fecho os
olhos e sinto a brisa fria da noite colidir contra o meu rosto, trazendo uma
paz inigualável para o meu peito.
Meu coração bate lentamente, pela primeira vez neste dia sinto
como se pudesse dormir eternamente em paz. A sensação de liberdade que
é estar ao pé da janela sobre o telhado é maior do que qualquer outro
sentimento que eu tenha sentido.
Impressionante como o pouco é suficiente para melhorar a bagunça
dentro de mim.
— Um... Dois... — Uma voz distante ecoa. — Um... Dois...
Levanto a cabeça de supetão, o fundo de meus olhos arde por abri-
los tão de repente após chorar por horas seguidas.
— Vamos, meu amor... Dance comigo. — É uma voz feminina.
Imediatamente olho em direção à janela da casa à frente. A varanda
está mal iluminada, no entanto, o quarto está claro o suficiente para que eu
note que o som vem diretamente de lá.
O som de uma música baixa e acústica ecoa, parece estar sendo
tocada em algum instrumento musical parecido com piano. Não sou bom
em diferenciar essas coisas.
— Querida, estou dançando no escuro com você entre os meus
braços... — A mulher cantarola.
Estreito o olhar em direção à casa, deparando-me com alguns
vislumbres de seu corpo sendo movimentado de um lado para o outro
repetidas vezes. Eu enxergo pequenos borrões de um vestido longo e
cabelos muito claros.
Curioso, levanto o pescoço e procuro me adaptar ao som daquela
música tão confortável que sequer havia escutado até ouvir a voz da
mulher.
— Descalços na grama, ouvindo nossa música favorita...
Finalmente posso enxergar a sua figura quando a mulher se coloca
à frente da enorme varanda, entrando em meu campo de visão. Ela sorri
alegremente e gira o seu corpo em círculos ao segurar a mão de uma
garota de ambos os lados de seu corpo.
A menina tem os pés posicionados em cima dos pés da mulher, e ela
balança o seu corpo em movimentos sutis e doces. Elas estão dançando?
— Quando te vi naquele vestido, tão linda... — A menina solta uma
gargalhada contagiante quando a que parece ser a sua mãe solta uma de
suas mãos para acariciar a ponta de seu queixo com os dedos.
Observo a cena concentrado no que vejo e, sem perceber, um
sorriso enfeita os meus lábios enquanto ambas voltam a se movimentar no
ritmo da música. A mulher cantarola a música com perfeição, sua voz é
doce e fina, tão relaxante de ouvir que não posso evitar o brilho no olhar
ao encará-las.
— Agora eu sei, conheci um anjo em pessoa... E ela é perfeita, eu
não mereço isso. — A mulher sorri largo ao ajoelhar-se para abraçar a
garotinha. — Você está perfeita esta noite.
As duas encerram a dança quando a menina beija o rosto da mulher
com delicadeza. Ela abraça e aperta o corpo da mãe como se temesse
perdê-la de vista quando a soltasse.
Outro sorriso se forma em meus lábios.
Ambas possuem cabelos longos e loiros, o sentimento que as
envolve é tão real e verdadeiro que mesmo em minha atual condição,
desejei ter alguém como essa garotinha tem esta mulher. Desejei ter alguém
que me olhe como elas se encaram e como se abraçam como se o mundo
pudesse acabar se não o fizessem.
— Ei! — Desperto-me dos pensamentos quando ouço um assobio
mal-feito. — Oi!
Meu sorriso morre no mesmo instante. Sinto-me desconfortável
quando avisto a garotinha na varanda de sua casa, ela tem as mãos firmes
contra as barras de ferro enquanto os olhos examinam a minha figura
desleixada no telhado de casa.
Olho para ambos os lados para ter certeza de que ela fala comigo.
Ninguém nunca fala comigo. Ninguém me nota. Ninguém ousa abrir
a boca sem a intenção de me atacar.
Aponto o dedo para o meu próprio peito em uma pergunta
silenciosa.
Você está falando comigo? — É o que eu quero dizer.
Claro que sim. — É o que ela quer dizer quando larga uma das
barras para gesticular um jóia com o polegar em minha direção.
Um riso me escapa.
Eu a encaro profundamente. Um laço cor-de-rosa enfeita uma
mecha de seu cabelo longo, seu corpo está coberto por um vestido azul. Sua
pele é tão branca que eu posso confundir com papel, e aquilo realmente
levanta um questionamento em minha cabeça. Por que ela está falando
comigo?
Alguém como… Ela.
A menina sorri em minha direção como se estivesse encantada com
a minha figura.
Ela só desvia o olhar de minha direção quando a mulher com quem
estava dançando coloca-se ao seu lado e acompanha o seu olhar,
finalmente notando a minha presença.
Eu a encaro meio hesitante devido a última vez em que a vi. Ela
examina o meu olhar e fica tempo demais analisando a forma como eu a
olho. Sua barriga havia desaparecido, ela não parece possuir um bebê ali.
Está bastante bonita em seu vestido rosa e branco. As duas são
realmente muito parecidas.
Arrisco ser gentil quando ergo uma das mãos e aceno em sua
direção.
Ela sorri de escárnio, repetindo o movimento como se aquilo nos
conectasse. Então adentra o seu quarto outra vez e retorna poucos
segundos depois com um papel e uma caneta em mãos.
Mantenho os meus olhos na garotinha que ainda me analisa com
um sorriso genuíno nos lábios.
— Psiu... — A mulher chama a minha atenção.
A encaro.
Ela aponta para o pedaço de papel que tem em mãos, segurando
como um cartaz.
Você está bem?
Ela escreveu um bilhete para mim.
Confuso, eu balanço a cabeça negativamente. Então ela entrega o
papel para a garotinha e ergue ambos os polegares, um em positivo e outro
em negativo, indicando que eu deveria responder a sua dúvida daquela
maneira.
E eu o faço.
Sem pensar duas vezes, um dos meus polegares posiciona-se em
negativo.
Eu não deveria estar fazendo isso. Se papai descobrir...
Ela alcança a caneta outra vez e escreve uma nova pergunta.
Entusiasmado, eu sorrio.
Você está feliz?
Outro negativo.
Ela junta as sobrancelhas e vira a página, escrevendo uma nova
pergunta.
Por reflexo, olho para trás em direção a porta do meu quarto onde
uma cadeira pressiona a maçaneta, impedindo que alguém entre sem que
eu permita. Impedindo que papai venha terminar o seu serviço.
— Ei, garotinho... — A garota assobia.
Sua voz é doce. Tão doce que eu queria ouvi-la para sempre.
Você foi ferido?
Ela aponta para o papel e eu congelo.
Minha expressão congela e meu coração acelera.
A garotinha parece tão inocente. Eu posso enxergar o brilho de seus
olhos nesta mesma distância, suas mãozinhas pequenas e na forma doce
como ela parece estar se divertindo com a brincadeira que sequer
compreende.
Balanço a cabeça em negativo quando ela imita o movimento dos
polegares, pressionando-me a continuar com a brincadeira.
Gargalho abafado.
A mulher, pelo contrário da garota, encara-me com os olhos
fulminantes. Ela parece uma leoa raivosa. Parece esperar ansiosamente
pela resposta, sua expressão doce e feliz, de repente, é substituída pela
curiosidade.
Olho para trás outra vez, com medo de que aquela porta seja aberta
e todo o pesadelo retorne.
Aqui está tão bom.
Eu não sorria há muito tempo.
Eu nem sabia que ainda sabia fazer isto.
Outro assobio ecoa.
Por favor, diga... Diz o novo papel.
Sequer penso quando balanço a cabeça em positivo. Apesar do
medo quanto ao que aconteceria comigo, estou cansado de ser ferido e de
não ter motivos para sorrir. Cansado de ser uma criança infeliz.
Sair desta casa seria um alívio, seria como renascer. Ter uma nova
oportunidade.
E mesmo que eu não tenha ideia do que esta mulher pode fazer por
mim, é fácil demais me apegar em uma realidade que eu mesmo criei. É tão
fácil.
Mesmo que eu quebre a cara e sofra mais consequências por minha
rebeldia, nada seria pior do que continuar vivendo para ser açoitado e
humilhado. Dói demais.
A felicidade é um caminho tão simples para crianças infelizes como
eu, o pouco é suficiente. O simples torna-se valioso. Por isso, quando
encaro a mulher novamente e noto o vislumbre de sinceridade em seu olhar
quando ela ergue o papel outra vez, não demoro para movimentar o meu
corpo e adentrar ao meu quarto, deixando-as para trás.
Eu vou salvar você.
Era o que dizia.
Procuro não me apegar aquilo. Eu tenho medo de arriscar dar
lugar para a esperança.
Mas quando deito na minha cama de barriga para baixo para não
atiçar as minhas feridas e encaro o chão, sinto como se finalmente alguém
realmente pudesse se importar comigo.
Mesmo que seja apenas uma realidade distorcida da minha mente
para amenizar a dor em meu peito. Não importa. Porque mesmo que eu me
esforce para evitar, já estou apegado a promessas incertas.

Encaro o telhado do prédio enquanto as lembranças me assolam.


Naquela noite do açoite, eu não pensava que a minha vida viraria
uma completa confusão. Apesar dos fatos, posso dizer que boa parte da
minha vida melhorou.
Não me senti tão sozinho.
— Oi, criança.
Levanto-me rapidamente, deparando-me com a figura de Eleanor
caminhando em passos lentos em minha direção. Seus olhos estão fundos
de um tempo para cá, as olheiras escuras que rodeiam os seus olhos são
cada vez mais aparentes.
Mas ela ainda é linda.
— O que está fazendo aqui? — Pergunto rapidamente. — É
perigoso.
Ela dá de ombros ao aproximar-se e se assentar ao meu lado no
colchão atirado contra o chão. Mesmo que nitidamente ela esteja habituada
a condições melhores, não se incomoda com o que eu tenho a oferecer.
— Você se esqueceu quem eu sou? — Ela sorri. — Eu sei me cuidar.
Apoio ambos os braços sobre os joelhos, encarando-a de perfil.
— Eu sei que sabe. — Concordo. — Assim como sei que você não
viria aqui se não fosse uma emergência. Estar comigo atrai perigo.
Como se estivesse surpresa por notar a minha fácil leitura quanto
aos seus planos, Eleanor sorri e balança a cabeça em afirmativo.
— Você sempre foi muito inteligente, por isso eu acredito que você
seja o futuro dessa organização. — Seu sorriso ilumina boa parte da
escuridão ao meu redor.
É incrível como eu a considero parte de minha família desde que ela
passou a cuidar de meus ferimentos após os açoites e acendeu a chama da
esperança dentro de mim. Foi assim durante anos. Eleanor me transformou
em um sangue-frio, e se eu estou aqui agora é porque ela confiou que eu era
digno.
Afinal, até mesmo este teto é parte de quem ela é.
— Você está se adaptando ao prédio? — Ela pergunta docemente.
— Preciso saber como você está, Lewis.
Mordisco a boca, incerto do que pensar sobre todas as coisas que
tem acontecido nos últimos anos. Inclusive, sobre a minha descoberta sobre
o trabalho tão importante que o meu pai faz. Aquele trabalho podre ao qual
ele me deixava dias naquele quarto sem comer para poder tratar.
Esta nova vida é libertadora. Sinto como se eu pudesse
simplesmente ser eu, mas este é o total problema. Como serei alguém que
sequer conheço?
— Não sei. — Pisco algumas vezes, encarando o chão de concreto.
— Não sei o que pensar ou o que fazer.
Sei que eu deveria ser menos covarde. Sei que eu deveria ser um
homem para suportar toda essa merda, mas acontece que tudo isso é demais
para assimilar. A verdade é que minha vida mudou drasticamente desde o
momento em que a vi pela janela de sua varanda.
— Olhe para mim — Seus dedos macios tocam o meu queixo e com
delicadeza, ela me força a encará-la. — Você é a minha criança escolhida.
Eu acredito na sua força.
Ela acaricia o meu queixo com delicadeza, como se eu fosse feito de
porcelana. É como se fosse a sua maneira de demonstrar carinho.
— Por que alguém me escolheria? — Pergunto exausto. —
Ninguém nunca fez isso.
Ela examina o meu olhar, seu semblante caído faz parecer que ela
toma a minha dor para si.
— Sabe por que eu te contei a verdade, criança? — Ela pergunta.
Nego.
— Porque eu sei que se eu não sobreviver, você vai fazer isso por
mim.
Reúno as sobrancelhas em confusão. Essa opção não existe, ela não
pode me deixar sozinho para lidar com toda essa sujeira.
— Mas você vai sobreviver. — Afirmo. — Você tem que sobreviver.
Eleanor sorri fraco ao acariciar o meu queixo. Ela passa tempo
demais fazendo carinho nessa região, fazendo-me sentir uma onda de
calmaria que desconheço. Mas eu sei que algo está errado, afinal, ela ainda
está lidando com um crime mundial.
— Eu estou em risco. Mas escute, criança... Você pode confiar nas
pessoas desse prédio, está bem? Todos eles são soldados e vão ajudar você a
se tornar um. — Diz ela, apontando ao redor.
Desde que eu cheguei, me foi oferecido um quarto. Ele é cinzento e
moldado por puro concreto, sua extensão é deserta, tudo o que preenche o
espaço é o colchão no qual estamos sentados. O prédio é escuro e deserto,
apesar de haver muitos homens fora deste quarto trabalhando em segredo.
Tudo é novo para mim. Não compreendo nada do que se passa neste
lugar, mas sei que todos aqui seguem ordens a Eleanor. Todos a respeitam.
— Me tornar um soldado? — Assente. — Por quê?
Ela sorri.
— Você se lembra da minha filha? — Questiona de repente.
Paraliso.
Lembro mais do que queria dizer a ela. Eu estou fascinado pela
garota desde a noite em que a vi pela primeira vez.
Não quero dizer a sua mãe que eu a vigio desde que ela despertou
uma curiosidade em meu peito. Tão radiante e preciosa.
Ela se parece com a luz.
— Sim. — É o que eu respondo, ignorando a minha paixão secreta
pela garota.
Eleanor me encara por alguns segundos, seus olhos examinam meu
rosto com cautela.
— Sabe quantas vezes eu pensei em desistir do meu dever para
protegê-la? — Ela ergue os joelhos assim como eu, apoiando-se em suas
pernas com as mãos.
Não respondo.
— Com o tempo, eu aprendi que precisamos abdicar de nossos bens
mais preciosos para um bem maior. Há tantas coisas boas na vida para
serem vividas, mas de que elas servem se apenas um terço de nós pode
vivenciá-la? — Eleanor abaixa a cabeça, resvalando suas mãos por suas
pernas.
— O que você quer dizer? — Demonstro curiosidade.
Um sorriso fraco cresce no canto de seus lábios quando os olhos
azuis cristalinos me aprisionam.
— O que eu quero dizer, Lewis... É que eu nasci para isso. Nasci
para ser uma mulher sangue frio, nasci para matar quantas pessoas forem
necessárias para impedir que pessoas como o seu pai continuem roubando o
direito de outras pessoas viverem. — Ela sequer pisca, sua voz ao dizer
aquilo é fria, mas eu sei que o seu coração é puro e verdadeiro. — Eu
cometi muitos erros na vida, mas estou feliz por ter estado aqui, afinal,
encontrei você.
Ela balança a cabeça repetidas vezes em positivo ao puxar-me para
um abraço sem jeito.
Nunca fui habituado a receber ao menos uma parcela de carinho. A
violência e o desprezo andam lado a lado comigo desde sempre, nunca
disseram o quanto a minha existência é importante. Nunca ninguém havia
sido tão cuidadoso comigo. Nunca ninguém me abraçou.
Por isso, não soube o que fazer nessa situação senão manter o corpo
exatamente como estava, sem mover um único músculo enquanto Eleanor
acaricia carinhosamente as minhas costas.
— Os meus filhos, infelizmente, tiveram a má sorte de ter uma mãe
fadada a destruí-los. Mas eles não ficarão desamparados. — Ela afirma ao
plantar um beijo em minha bochecha. Continuo paralisado. — Conheço
você desde o seu nascimento, criança, conheço as suas dores e o seu
sofrimento. Por isso você está aqui.
— Por quê? — Minha voz sai como um sopro.
— Porque você nasceu pelos motivos errados, mas sobreviverá
pelas razões corretas. — Ela diz convicta, e só nesse momento eu tive medo
do que aconteceria a seguir.
— Por que está me dizendo isso?
Eleanor se levanta ao resvalar a palma das mãos em suas roupas,
organizando-as lindamente, assim como quando ela chegou. Sua expressão
é tomada pela frieza outra vez, como se ela tivesse dois tipos de
personalidade para situações distintas.
— Porque a partir de agora uma guerra está sendo iniciada. —
Anuncia ela, em toda a sua postura gloriosa. — E se as coisas ficarem feias,
você é a minha garantia. Estou apostando todas as minhas fichas em você.
Levanto-me apressadamente.
— Como assim?
Ela sorri ao caminhar até a porta. Sua mão congela na maçaneta mas
não a abre, ao invés disso, seus olhos encontram os meus quando me encara
por cima do ombro.
— Treine e seja o homem que todos duvidaram que você seria, está
bem? Quando chegar a hora, você vai entender tudo.
Confuso, balanço a cabeça.
— Para que finalidade? Qual é o meu objetivo?
— Quebrar o ciclo. E acredite em mim quando digo que já deu
início, basta ir até o fim.
Ela me encara como se soubesse de todos os meus segredos, como
se enxergasse a minha alma e os meus pecados. Os meus medos e
seguranças. Tudo.
E tudo que eu sei é que ela está aqui para destruir as coisas
invisíveis do mundo que estão há tempo demais debaixo dos tapetes.
Eleanor é mais do que a mulher que eu via ser agredida pelo marido. Ela é
mais do que uma mulher sensível tão retraída que parecia ter medo de tudo
ao seu redor.
O que eu via diante das luzes claras daquela varanda, não é nada
comparado ao que realmente faz ela ser quem é.
Ela é genial, na verdade, porque ninguém espera rebelião de alguém
tão submisso ou alguém que parece ser submisso, mas que na verdade está
contando os segundos para arrancar o seu coração.
A mulher de cabelos longos e loiros abre a porta e arrasta o corpo
para fora, no entanto, antes que ela possa fechá-la outra vez, seu corpo é
virado bruscamente e os seus olhos cristalinos encontram os meus.
— Você pode continuar visitando-a. Desta vez, tome cuidado com o
sistema de segurança. — Anuncia ela em meio a um olhar sugestivo.
Rapidamente meu subconsciente me leva de volta para as noites que
eu fugia de minha casa para espreitar às janelas da casa à frente.
Observando a garota a qual me intrigava e despertava curiosidade em meu
peito, decorando os seus gostos e as músicas favoritas, porque não havia
nada mais apaixonante do que a sua imensa inocência.
Ninguém nunca me pegou em minhas fugas, eu acreditava ser um
segredo apenas meu. Acreditei que seria julgado e açoitado por, pela
primeira vez, estar apegado a alguma coisa. A uma garota que não fazia
ideia que eu existia.
Porque aquele dia na varanda não significou nada para ela. Ela
sequer me conhecia. Mas ali, naquela noite, foi quando eu encontrei uma
razão para suportar todas as noites frias e solitárias.
Nunca entendi o porquê, mas precisava conhecê-la.
Mesmo que a minha genética a colocasse em perigo. Mesmo que eu
tivesse nascido para arruinar garotinhas como ela.
No fundo eu sei que nunca seria capaz.
Eu era só um garoto que foi quebrado por desejar o amor paterno e
receber obrigações. Ela é só uma garota que foi quebrada por desejar o
amor paterno e receber rejeição.
Nenhum de nós merece isto. Somos iguais.
Eleanor também deve saber de tudo isso, porque ela me lança uma
piscadela sugestiva ao sair por aquela porta, como se entendesse tudo o que
se passa dentro de mim. É como se eu não precisasse dizer absolutamente
nada. Ela compreende.
Então ela se vai deixando-me neste prédio onde certamente eu
aprenderei mais do que como ser o completo babaca que meu pai gostaria
que eu fosse, e consequentemente, sem saber se a veria outra vez.
NEW YORK - 2019
ANTES

— O seu cabelo é tão macio — Sei que Kelly sorri enquanto resvala
a escova entre os meus fios. — Nunca passe a tesoura nele, isso é uma
ordem.
Rio de seu tom mandão enquanto faço carinho na cabeça de Jonah
deitada em meu colo. Estamos os três confortavelmente na minha cama,
Kelly e eu andamos mais próximas ultimamente. Jonah gosta dela e eu
também. É bizarro como nos sentimos conectados a ela em tão pouco
tempo. Nós formamos um belo trio.
— Por quê? — A fito.
A ponta dos dedos mergulha em meu couro cabeludo, iniciando um
cafuné extremamente relaxante. Quase me permito cair sobre o corpo de
Jonah e dormir profundamente.
— Ah... Ele deixa você tão delicada. Faz você se parecer como
realmente é. — Responde docemente.
Sorrio meio constrangida.
— E com que eu me pareço?
— Luz. Você se parece com a luz. — Kelly se levanta da cama e
deixa a escova lilás apoiada em minha escrivaninha. — Acho que você é a
pessoa mais doce que já conheci.
Uma risada baixinha escapa da minha garganta ao mesmo tempo que
sinto as minhas bochechas queimarem pela timidez. Ninguém nunca tinha
dito nada parecido para mim senão a minha mãe. Ela sempre gostou de me
lembrar o quanto eu era uma doce garota aos seus olhos.
Lembro-me de seu sorriso, de seus olhos azuis repuxando em meio
ao curvar de seus lábios enquanto ela me fazia carinho e me comparava
com girassóis.
Mamãe amava girassóis. Ela gostava de assemelhá-los a nós, porque
assim como girassóis são considerados felicidade, ela dizia que éramos o
símbolo de seu significado. Certo dia, ela me contou sobre a sua lenda.
Estávamos sentadas no jardim de nossa casa onde ela plantava
inúmeros girassóis e cuidava de suas plantas quando o meu pai permitia que
ela o fizesse. Era uma tarde ensolarada, o céu estava tão azul quanto os seus
olhos, poucas nuvens se espalharam por sua extensão enquanto uma brisa
leve atingia o nosso rosto e balançava os nossos cabelos.
Então, olhando em meus olhos enquanto acariciava o meu cabelo
exatamente como Kelly o faz agora, ela me contou cada detalhe da lenda.

— A lenda fala sobre a estrela e o sol. Vou começar dizendo que


existia uma estrelinha muito apaixonada pelo sol. Ela sempre aparecia no
finalzinho de tarde, sempre quando o sol estava partindo, então não podia
contemplar muito a sua presença, afinal, estrelas sempre brilham no
escuro, onde não há luz. — Mamãe pisca os olhos lentamente enquanto
encara as suas plantas e acaricia a minha cabeça amparada em seu colo.
— Toda vez que chegava a hora do sol partir, a estrelinha ficava triste e
chorava. A chuva era o símbolo de sua tristeza e sofrimento. Não havia
nada que fizesse a estrelinha se sentir mais viva mais do que a luz do sol,
ela nem mesmo percebia o quanto o seu brilho próprio era radiante. Ela se
sentia a coisa mais insignificante sem a presença de seu sol.
Pisco, bastante concentrada na história. Então olho para cima e
contemplo o rosto da minha mãe de baixo para cima, sua pele parece coisa
de outro mundo de tão linda.
— E o que a estrelinha fez?
Mamãe sorri.
— A estrelinha procurou por alguém que pudesse ajudá-la. A noite
para ela era sem graça demais, escura demais, então ela procurou pelo Rei
dos Ventos, desesperada por um socorro divino. Ela não estava pedindo
muito, só queria sentir a liberdade do dia ensolarado e sentir o calor que
apenas o sol poderia causar. Era disso que ela necessitava, e foi o que disse
para o Rei dos Ventos.
— A estrelinha conseguiu o que queria? Ela ficou com o sol? —
Minha ansiedade é imensa, mamãe até ri do meu desespero pelo desfecho.
— O Rei dos Ventos propôs uma solução, não havia como uma
estrela estar no mesmo ambiente que o sol. É inviável. Impossível
logicamente. A estrelinha era a mais brilhante durante a noite, mas nada
daquilo importava, então, diante da sugestão do Rei, ela teria que abdicar
de sua posição como estrela e ir morar na Terra. Ela escolheu deixar de ser
uma estrela, não pensou duas vezes.
— O que ela virou?
— Uma semente. — Responde mamãe. — Foi regada durante meses
pelas chuvas intensas que o Rei dos Ventos enviava para ajudá-la a
desabrochar. Então ela virou uma linda planta criada a partir do amor.
Hoje em dia ela é feliz, balança em uma brisa suave durante todo o dia
enquanto o sol envia o seu calor até as suas pétalas, transformando-a em
uma linda flor invejável de tão linda e pura.
Não contenho o sorriso que toma os meus lábios, meu peito se enche
de algo que parece ser felicidade por alguém que sequer existe. É lindo
ouvir histórias que tiveram seus finais felizes, sejam elas verdadeiras ou
não.
— Os girassóis... — Sussurro, compreendendo a razão para que
mamãe goste tanto das suas plantas.
Ela sorri largo, abaixando a cabeça para, finalmente, me olhar nos
olhos.
— Exatamente.
— É lindo, mamãe — Sussurro, viajando nas carícias que faz no
meu cabelo.
— É mais do que uma lenda, meu amor. Eu acho que é mais real do
que nós pensamos. Sempre acreditamos que somos tão desprovidos de
brilho próprio, incapazes de nos sentir felizes, quando na verdade, somos
uma estrela que não consegue enxergar a própria luz.
Meneio a cabeça.
— Você é uma estrelinha. Meu girassol. Eu sou seu sol e estou aqui
para te lembrar que sempre estarei enviando o meu calor para você e te
transformando na mais bela flor desabrochada. — Ela move a sua mão
livre para o meu rosto e aperta a minha bochecha entre os dedos,
arrancando-me risos. — Mas não se apegue ao sol, mesmo se um dia ele se
for, girassóis não morrem em dias nublados. Na verdade, eles até ficam
mais fortes. Não murcham e nem abaixam a cabeça. Eles lutam até que o
seu sol retorne para fazê-los esquecer da tempestade que os assolou.
Junto às sobrancelhas em confusão, fechando os olhos lentamente
ao sentir a sonolência me atingir diante das carícias tão relaxantes de
mamãe. Não há lugar melhor senão o seu colo.
— Mas eu não vou perder o meu sol. Você sempre estará comigo,
sempre.
Ouço o seu sorriso, mesmo que meus olhos estejam pesados para
adormecer em seus braços.
— Sempre estarei com você. Seja como sol ou estrelinha, estarei te
olhando para sempre, meu girassol.
Não entendo o seu último sussurro, no entanto, não tenho tempo
para fazer nenhum outro tipo de pergunta porque adormeço em seu colo.
Sinto quando mamãe me carrega nos braços até o meu quarto e me repousa
nos lençóis macios. Sinto o seu perfume se espalhar pelo meu quarto e ouço
quando seus passos se movimentam até a porta, no entanto, antes que ela
se feche, eles cessam. Sei que ela está me observando, mas não abro os
olhos, porque o sono me ganha e eu adormeço de vez.

Pisco afastando as lembranças dos poucos momentos que tive com a


minha mãe, quando ouço Kelly e o meu irmão brincando em cima da minha
cama. Jonah grita animado tentando proteger a sua barriga enquanto Kelly
ameaça fazer cócegas no lugar.
O quentinho no coração que eu sentia toda vez que tinha momentos
com a minha mãe, retorna para o meu peito rapidamente. É estranho, mas
me sinto bem. Não contenho a gargalhada quando Jonah vira o jogo e pula
em cima da minha mais nova, ou mais antiga, amiga.
— Ah, eu vou te pegar, seu moleque travesso! — Kelly ri, usando os
braços para capturar os seus ombros e as pernas para tentar agarrá-lo.
Eu rio.
— Como assim vocês estão brincando sem mim? — Falo alto, como
se realmente estivesse chateada por estar sendo excluída.
Os dois viram para mim e se afastam totalmente, quase como se
estivessem acreditando em meu tom ameaçador. No entanto, quando os dois
trocam um olhar cúmplice, entendo que o alvo da vez será eu.
— Mantenham distância! — Ameaço, apontando o indicador para a
dupla que se ajoelha no chão para rastejar até mim traiçoeiramente.
Kelly sorri, olhando de soslaio para Jonah que tem um sorrisão na
boca.
É bom vê-lo dessa forma de novo. Ele está voltando a ser o meu
pequeno garotinho alegre.
— Você tá vendo isso, Jonah? — Zomba. — Sofi está pedindo
arrego.
Ele gargalha. Seus dentes pequenos e brancos finalmente aparecem
naquele sorrisão, e eu me sinto maravilhada pela primeira vez em algum
tempo.
— Vamos pegar ela. — Kelly incentiva. — Ela tá merecendo uma
lição.
Levo as mãos ao peito como se me sentisse ofendida.
— Eu? O que eu fiz?
Os dois pulam em cima de mim ao mesmo tempo, forçando-me a ir
contra o chão junto deles. Gargalho alto quando Jonah vem para cima de
mim e faz cócegas em minha barriga, fazendo-me sentir a vontade
alucinante de fazer xixi. Minha barriga dói e sinto o ar se esvaindo dos
meus pulmões enquanto Kelly usa as unhas para arranhar a sola do meu pé,
fazendo-me chacoalhar todo o corpo para escapar daquela tormenta.
— Ahh, para! — Balbucio, gaguejando em meio a falta de ar.
Eles gargalham.
— Você está sendo punida por ser incrível demais! — Kelly
anuncia, arrancando uma risada contagiante de Jonah.
— Eu não posso evitar. É de nascença! — Grito de volta.
As cócegas aumentam.
— Ainda é convencida? Merece punição em dobro! — Gargalho
alto, viajando no momento que quero guardar para sempre em minha
memória.
Em um momento de distração, nos mudo de posição e deixo Jonah
no chão, fazendo Kelly rastejar pelo chão para nos alcançar. Então deixo o
meu irmão rindo no chão e parto para cima dela, usando as minhas mãos
para puxar o seu braço e jogá-la para o chão onde não perco tempo e faço o
mesmo que ela há alguns segundos.
Ela grita alto em meio ao riso.
— Argh! Desculpa! Meu Deus, eu vou morrer! Desculpa, Sofi,
nunca mais faço isso, e-eu juro! — Ela gagueja em meio ao riso e a falta de
ar que a domina.
Repito o mesmo processo algumas vezes até fazê-la arfar buscando
por ar, então, exausta, caio no chão ao lado de Jonah e gargalho junto aos
dois. Um ao lado do outro.
— Acho que gosto muito de vocês — Kelly anuncia ainda rindo, nós
três estamos ofegantes devido à brincadeira.
Faço bico enquanto recupero o ar.
— Eu tenho certeza. — Afirmo, guardando cada pedacinho daquele
momento especial em minha memória.

Após dar um banho no meu irmão junto a Kelly, nós o vestimos e o


colocamos para dormir em minha cama, por ser mais espaçosa. O cabelo
loiro úmido cai em sua testa enquanto alguns fios grudam no travesseiro. Os
lábios entreabertos e a pele minimamente ruborizada enquanto o peito sobe
e desce em uma respiração tranquila, indica que meu irmão está
adormecido.
Ele se parece com um anjo.
Nós nos divertimos bastante durante o dia. Kelly nos mostrou
diversas brincadeiras que, segundo ela, Jay a ensinou. Ela contou histórias
para Jonah e trouxe macarrão instantâneo para comermos no fim da tarde.
Ela também é um anjo. Estou feliz por ter uma amiga para contar.
Eu jamais esquecerei do que ela fez por mim hoje.
Jonah fez algo que desconhecia há muitas semanas. Ele sorriu e
falou. Se divertiu conosco e nos deu esperança de uma vida normal.
Ele fez tudo parecer fácil.
Por um segundo, quis dar a ele tanta coisa. Quis ser para ele, o que
mamãe teria sido.
O seu sorriso apagou qualquer rastro de tristeza que havia dentro de
mim, não senti nada além de gratidão e felicidade no dia de hoje. Acho que
finalmente possuímos um lugar que podemos chamar de casa. De Lar.
— Ele dormiu — Kelly sussurra quando acaricia o seu rosto ao lado
da cama, olhando-me com aquele par de olhos empáticos.
— Ele se divertiu muito — Eu digo. — Obrigada por esse dia.
Kelly sorri envergonhada, caminhando em minha direção até se
colocar à minha frente.
— Eu que te agradeço por existir. Ganhei dois irmãos, Jay, por me
resgatar, e você por ser tão parecida comigo. Eu não seria a mesma se não
fosse por vocês dois.
Enxergo sinceridade em seu olhar.
— Você me considera mesmo a sua irmã? — Pergunto, um pouco
surpresa.
Ela abana a cabeça docemente.
— Sempre achei que nós tínhamos muito em comum, desde as aulas
extras da Sra. Peterson ou o concurso. Quando soube que você era filha
do... Bom, do seu pai, eu sabia que você era especial.
Delicadamente, seguro a sua mão e a acompanho até o lado do
quarto onde não há móveis, então puxo-a para se sentar no chão ao meu
lado e ambas escorregamos na parede. É bom ter alguém para conversar.
Sinto que somos muito próximas.
— Já que você entrou nesse assunto...
Kelly sorri, erguendo os joelhos para abraçá-los. Ela apoia a sua
cabeça nas pernas e me encara.
— O que você quer saber?
Mordo os lábios, pensando se deveria entrar em um assunto que
pode ser delicado para ela, lembrando-me de quando Naten comentou sobre
os anos que ela passou na posse daquelas pessoas cruéis...
— Você não se incomoda em falar do seu passado? — Quero saber.
Ela nega, um pouco aflita, mas finge não notar.
— Para você, não.
— Por que pra mim não?
— Porque eu sei que você não vai me julgar ou me dar a sua pena.
Você entenderia.
Sorrio agradecida, erguendo os meus joelhos para abraçá-los
também. Nós nos olhamos fixamente. Sinto que posso conversar com ela
sobre qualquer coisa.
— Como você foi parar nas mãos de pessoas tão más? — Sussurro,
comovida. — No dia do concurso, eu cheguei a ir na plateia para procurar
pelos meus pais... Vi a sua família lá, eles seguravam placas e torciam por
você...
Ela bufa um riso, desacreditada.
— Não era a minha família.
Arregalo os olhos, abismada.
— E quem eles eram?
Seu semblante cai como uma muralha, revelando o seu olhar mais
entristecido. No mesmo momento, me culpo por ter começado o assunto.
Ela está sempre sorrindo, tão feliz e contagiante, mas ninguém nunca
poderá saber qual monstro ela guarda dentro de si, nem mesmo eu.
— Deixa pra lá — Tento apagar os últimos segundos. — Não
precisa falar. Mas… Eu tenho outra dúvida.
Kelly me olha por alguns segundos sem responder, então cai em um
riso breve, achando graça de minha curiosidade.
Com um aceno de cabeça, ela permite que eu fale.
— Eu conheci o seu irmão naquele dia, no concurso. Nós fizemos
um acordo…
Kelly ri baixinho.
— Deixa eu adivinhar, ele te prometeu a coroa?
Abro a boca, surpresa por seu chute certeiro.
— Como você…
— Jay sempre foi fascinado por você, não é difícil adivinhar. — Ela
empurra o meu ombro de leve. — Além disso, foi bom ele não ter ajudado
você a vencer o concurso.
Reúno as sobrancelhas, olhando-a confusa.
Kelly me observa por alguns segundos, parece pensar se realmente
vale a pena abrir a boca. No entanto, ela desiste de resistir quando faço um
bico.
— O concurso tinha ligação com os homens que querem nos
machucar… — Ela parece hesitante. — A vencedora não ganharia uma
vaga na melhor escola de música, e sim seria despachada para eles. Como
um leilão.
Abro a boca, em choque.
Então é por esta razão que eu a vi chorar quando subiu no palco?
É por esta razão que Jay quebrou a sua promessa e não fez de mim a
vencedora?
Ele sabia sobre isso?
Ele…
Meu Deus.
— Kelly, e-eu… — Me esforço para procurar palavras.
— Não se preocupe. — Ela sorri, amigável. — Ninguém tocou em
mim porque Jay impediu. Ele salvou nós duas naquela noite.
Um sorriso meio entristecido brota na sua boca, mas o brilho em
seus olhos ao ouvir o nome dele já revela tudo. Ela o ama.
Eu, abismada, apenas sinto o aquecer em meu coração ainda mais
intenso do que jamais esteve. O estive culpando por aquela noite quando na
verdade ele estava apenas me mantendo em segurança…
Não consigo dizer nada.
Não tenho reação.
Apenas a observo com um brilho no olhar imensurável.
— Nunca vou conhecer ninguém mais puro do que o Jay — Revela,
parece inerte em seus pensamentos, quase como se um filme passasse
diante dos seus olhos. — Nunca vou conseguir encontrar palavras
suficientes para agradecer por ele simplesmente... Existir.
Apoio a cabeça em minha mão, relaxando enquanto sorrio ao ouvi-la
falar.
— Não sabia que podia amar alguém com tanta intensidade quanto
eu o amo. Ele me trouxe a vida de volta, entende? Me ensinou a respirar,
me ensinou a sobreviver, assim como ele sobreviveu... — Seus olhos
encontram os meus, ela parece querer jogar tudo para fora, no entanto, sinto
que alcançamos um limite.
Ela não irá mais além.
Apesar de estar extremamente curiosa para saber de cada parte da
história dos dois, não ouso pedir por mais. Se ela quisesse dizer algo a mim,
ela o faria por livre e espontânea vontade.
— Sinto que nós somos inseparáveis, apesar de ser apenas a irmã
adotiva. Ele mesmo me adotou como irmã. E sabe que nosso elo é
inquebrável, mesmo sem a presença de um laço sanguíneo. — Afirma,
sorrindo abertamente.
O brilho em seus olhos é notável. Eles resplandecem diante do
assunto.
Ela o ama tanto.
Jay é mesmo o garoto mais gentil em quem já coloquei os meus
olhos. Agora, testemunhando isso da melhor parte dele, não há como ter
dúvidas.
Ele é mesmo incrível.
E se eu tinha alguma dúvida quanto aos meus sentimentos por ele,
elas acabam por desaparecer.
— Você gosta dele? — Sua pergunta me pega desprevenida. É como
se ela ouvisse os meus pensamentos.
Engulo em seco, tentando disfarçar o meu sorrisinho diante do
assunto da vez. Kelly percebe, mas sei que ela quer ouvir da minha boca.
— Gosto.
Ela sorri.
— Jay faria coisas fora de cogitação por mim. Ele enfrentaria céu e
inferno para me proteger, sabe? Nem imagino o que ele faria por você.
Rio baixinho.
— Ele prometeu que mataria o meu pai.
Kelly arregala os olhos, mas quando entende o meu olhar sincero,
explode em um riso.
— Acredite em mim quando digo que não é só o seu pai que ele vai
matar para te manter segura.
Eu rio junto com ela.
— Nós deveríamos nos assustar com essa possibilidade, não?
Ela afirma ainda sorrindo, seus dentes alinhados se destacam em sua
pele bronzeada e olhos castanhos. Kelly é tão linda que nem parece real.
— Racionalmente, sim, emocionalmente, nem um pouco. É por
merecer.
Nós continuamos na mesma posição, ambas sentadas ao chão rindo e
nos divertindo com nossas conversas e piadas sem nexo. Rimos e nos
repreendemos ao ver Jonah virando de um lado para o outro na cama, quase
como se fosse acordar a qualquer instante pelo barulho que fazemos.
No entanto, somos interrompidas quando a porta do meu quarto se
abre e a fresta vazia é substituída pela silhueta de Jay.
Seu rosto se ilumina quando ele nos observa sentadas ao chão, seu
semblante neutro e a expressão logo se tranquiliza, visto que o vão entre a
sua sobrancelha desaparece quando ele adentra o quarto de uma vez. Seu
olhar percorre todo o ambiente e congela no corpo de Jonah adormecido no
colchão, então um mínimo sorriso brota em seus lábios.
Ele veste roupas casuais, roupas que normalmente não usa aqui. Está
sempre vestindo farda escura e coletes semelhantes aos de policiais, mas
agora... Jay está incrivelmente bonito vestindo uma calça de moletom
escura e uma camiseta livre de estampas branca, e tênis. Os cachos em sua
cabeça estão úmidos, e o perfume suave que vaga pelo quarto conforme ele
caminha, indica que está recém banhado.
Lindo.
Depois do que acabo de descobrir, ele está ainda mais maravilhoso.
— Encontrei vocês — Quando nos alcança, ajoelha-se bem na nossa
frente e acaricia a cabeça da irmã, sorrindo para ela enquanto covinhas
minimalistas brotam em sua bochecha. — Oi, rabugenta.
Kelly bufa diante da provocação, mas devolve o sorriso e se move
para depositar um beijo em sua bochecha.
— Como foi a última missão? Você não aparece há alguns dias.
— Estava colocando algumas coisas em ordem. Mas agora estou
aqui, estava com saudades?
Kelly sorri e abraça o seu pescoço, envolvendo o seu corpo em um
ninho movido a um misto de emoções.
Todas boas. É claro.
E eu continuo aqui, admirando a relação pura entre almas gêmeas
que cuidam muito um do outro. A relação entre irmãos que eles construíram
é realmente linda.
— Muita! — Ela se ergue, abraçando-o ainda mais forte.
Ele devolve o abraço, envolvendo o corpo de Kelly em seus braços
musculosos, então afasta o rosto ligeiramente para depositar um beijo sobre
sua cabeça.
Quando se afastam, as esferas escuras de Jay finalmente colidem
contra as minhas. Como um baque, meu coração pula dentro do peito com o
contato visual, e quando ele se aproxima, preciso conter a minha vontade de
pular em seus braços e matar a saudade, no entanto, me controlo diante de
sua irmã.
Jay avança alguns passos e, delicadamente, leva a ponta dos dedos
ao meu queixo, acariciando carinhosamente a pele levemente empinada.
— Oi, linda. — Ele não desvia o olhar de meus olhos. — Você está
bem?
Nós não nos vemos outra vez desde o dia em que o tal Julien Roy
sentou-se conosco à mesa e fez diversas perguntas sobre mim. Sobre o meu
passado e sobre a minha hospedagem no prédio. Naquele dia, Jay parecia
furioso. Mas as suas barreiras sempre parecem despencar e ceder em minha
presença, principalmente quando ele abre mão de suas emoções para
acalmar as minhas.
Derreto diante do seu olhar, minhas bochechas queimam de timidez.
O poder que ele tem sobre mim é esse. Ninguém nunca me olhou da forma
que ele me olha.
— Hmm — Limpo a garganta quando desvio o olhar à suas costas e
encontro uma Kelly sorridente, ela está cheia de segundas intenções, sem
dúvidas. — Estou sim. Mas e você?
Jay enfia as mãos nos bolsos frontais do jeans e abre um sorriso de
lado, covinhas brotando em sua bochecha. Eu quase babo diante da cena.
— Muito melhor agora.
Não importa quanto tempo eu passe em sua presença, nunca vou
conseguir me acostumar com a sua sublime beleza. Jay tem um olhar tão
profundo e intenso, tantas emoções emanam de suas orbes como se fossem
faíscas de fogo ardente. Toda vez que ele me olha dessa mesma maneira,
sinto uma enorme vontade de mergulhar em sua imensidão e descobrir tudo
que fez ele ser assim. Tão irrevogavelmente... Intenso.
— Já que você tá aqui... — Kelly cantarola, nos fazendo desviar
nossos olhares para ela. — Que tal a gente ver um filme?
Jay ri baixinho, virando-se para olhar a irmã.
— Um filme? — Ele parece entediado.
— Ah, para! Vamos... Eu deixo até você escolher. — Ela bate palma
levemente, sem causar barulhos.
Rio da cena.
— Nada de romance. — Ele avisa em um suspiro, se dando por
vencido.
O sorriso de Kelly aumenta, e ela é rápida em pular para os braços
de Jay e depositar um longo beijo em sua bochecha. Ele apenas retribui,
apertando-a contra si.
— Eu vou pedir um dos notebooks do Naten emprestado... Você
acha que ele vai se importar? — Kelly pergunta ao irmão um pouco
hesitante.
Jay solta ela no chão.
— Peça com seu jeitinho carinhoso. Tenho certeza que ele vai lhe
dar um "não" bastante carinhoso também.
Não seguro a gargalhada.
Kelly revira os olhos.
— Nesse caso, eu vou roubar.
Jay ri de um jeito rouco enquanto a irmã sai pela porta e desaparece
pelos corredores sem dizer mais nada.
Um sorriso ainda brinca em minha boca. Eu mal posso acreditar que
esse dia está mesmo acontecendo. Há algumas semanas, se alguém dissesse
que eu estaria tão bem após a morte da minha mãe, eu nunca confiaria nessa
pessoa, porque ela de fato, não me conhece. Não posso dizer que estou
curada, nunca vou estar. Sempre vou sentir falta de tudo o que diz respeito à
minha mãe. Jamais me esquecerei de seus toques, seu carinho, sua forma
tão sincera de demonstrar o seu amor por nós... Sua risada. Meu Deus, vou
sentir tanta falta disso.
No entanto, sinto que tenho pessoas por perto que podem amenizar
esse vazio no meu peito que parece tão sufocante. As risadas que me
arrancam e a sensação de estar segura... Eu sinto que finalmente posso me
apegar a alguma coisa sem que ela me quebre.
Sei que Jay não deixará nada me quebrar. E se por algum acaso um
acidente acontecesse, ele recolheria os cacos e daria um jeito de tapar as
minhas feridas.
Este é o seu instinto protetor.
E eu me sinto tão bem. Tão livre.
— No que você está pensando? — Ele quebra o silêncio.
Abandonando os meus pensamentos, ergo o olhar, e é quando noto
que Jay está a um palmo de distância de mim. Nós estamos muito próximos.
— A-ah. — Balbucio, desorientada. — Nada demais.
Ele fixa aqueles olhos intensos nos meus e toca gentilmente a minha
têmpora, descendo os dedos suavemente por minha bochecha e nariz,
escorrendo até o meu queixo onde ele acaricia com ainda mais cuidado.
— Então me diga.
Olho bem no fundo dos seus olhos. Sinto vontade de acariciar o seu
rosto ou os cachos úmidos sobre a cabeça, mas me contenho.
— Na minha vida. Em como estou me sentindo bem depois de...
Tudo. — Revelo. — Acho que a minha ficha ainda não caiu, que finalmente
estou...
— Livre?
Fecho a boca quando ele completa a minha frase, e, viajando em sua
carícia em meu queixo, assinto lentamente.
— Livre.
Jay é o meu sequestrador. Um assassino frio e treinado, ainda assim,
eu não tenho nenhum pingo de medo de estar em tua presença. Não o vejo
mais daquele jeito, ele não ocupa mais essa posição em meu peito. É mais
do que isso.
Estar ao lado do meu pai, aquele que sempre parecia ser um homem
importante de negócios e responsável, era bem mais aterrorizante.
A diferença é que Jay é sincero comigo.
Ele não esconde quem é. Não esconde sobre ser obcecado por mim
desde quando era uma criança.
E eu não vou esconder a intensidade que ele está se infiltrando
dentro de mim e ocupando um lugar especial em meu coração. Um lugar só
dele.
— Você era um pássaro ferido que ansiava por liberdade, mas agora,
finalmente está recuperando a sua asa para alçar voo. E eu vou te ajudar
com isso.
Não contenho o sorriso que cresce em meus lábios.
— Isso foi profundo. — Sussurro. Meu rosto queima quando ele
move os dedos para a minha bochecha, notando o rubor que a toma. — Foi
lindo.
Seus lábios se curvam minimamente quando, recolhendo a mão para
si, Jay quebra a nossa distância e deposita um longo beijo em minha testa.
Os seus lábios úmidos em contato com a minha pele e o seu perfume suave
alcançando o meu olfato, quase me fizeram delirar.
— Lindo é o que vou te mostrar mais tarde.
Arregalo os olhos.
Sinto meu coração palpitar contra o meu peito e o meu rosto ferver
de vergonha.
Isso é...?
— Porra... Não. — Jay explode em uma gargalhada ao notar o
desespero em meu rosto. — Caralho, não foi isso que eu quis dizer.
É possível que eu fique ainda mais vermelha do que já estou?
Meu Deus.
Acho que eu posso me enterrar agora mesmo. Jesus Cristo.
Penso que não posso ser mais patética, mas quando uma risada
extremamente forçada me escapa para tentar convencê-lo de que ele
entendeu errado a minha expressão, sua gargalhada apenas aumenta e eu
quero sair correndo.
— E-eu...
Jay ri ainda mais largo. Suas covinhas parecem mais fundas nesse
momento.
— Linda, ei... — Permito-me encará-lo quando suas mãos tocam
ambos os lados do meu rosto e me obrigam a conectar nossos olhares. —
Não tô rindo de você. Não tô zombando... Disso.
Reúno as sobrancelhas em confusão. Meu corpo todo parece prestes
a entrar em ebulição, tudo queima.
— Não?
Ele nega.
— Tô rindo por ter usado as palavras erradas, talvez. Me sinto um
idiota. Perdão. — Ele ri de um jeito divertido, como se vivesse para me dar
tal explicação.
Me sinto uma sem-vergonha por estar pensando em coisas que até
cinco meses atrás, nem sabia da existência. Até mesmo estou vendo duplo
sentido em frases... Argh! Jesus, que vergonha!
— Você não me acha boba?
Ele abana a cabeça, olhando no fundo de meus olhos enquanto sorri
da forma mais linda. Seus caninos muito bem aparentes parecem brilhar, e
as covinhas... Cristo. Jay parece um pedaço do céu.
— Nem um pouco. — Diz. — Eu realmente dei a entender outra
coisa, desculpe. Mas... Nós vamos sair. Você vai gostar.
Pisco, tentando me esquecer dos últimos minutos.
— Vai me levar para outro passeio por Nova York? — Pergunto,
abrindo um sorriso gentil e animado.
Jay massageia o meu rosto com carinho, seus olhos possuem um
brilho imenso. Como se não houvesse, para ele, melhor coisa senão me
encarar.
— Melhor.
Sinto a queimação de felicidade em meu peito, quero explodir de
ansiedade. Eu mal posso esperar.
NEW YORK - 2019
ANTES

No fim da noite, Jay e eu somos os únicos acordados quando as


letrinhas sobem indicando o fim do filme. Kelly já se deitou com Jonah e
ambos dormem profundamente aninhados embaixo do edredom.
Essa é a única razão para eu me permitir sair de perto do meu irmão
para descobrir qual é a surpresa de Jay para esta noite.
Então me levanto e visto um suéter branco por baixo do moletom
com capuz e calça também de moletom. Jay disse que independentemente
de estar ao seu lado, eu não deveria me arriscar expondo a minha imagem
pelas ruas. Então concordei. Coloco os meus tênis e puxo o capuz para
cima, deixando os fios loiros escaparem para fora e espalharem pelo tecido
escuro.
Quando chego ao estacionamento onde combinamos de nos
encontrar, Jay me aguarda sentado contra a lataria do capô. Ele veste a
mesma roupa de quando estávamos no quarto, exceto pelas botas em seus
pés e a jaqueta de couro cobrindo os braços musculosos.
— Pronta para a melhor noite da sua vida? — Ele me oferece um
sorriso maroto ao acompanhar os meus passos para a sua direção.
Inclinando a cabeça levemente, enfio as mãos nos bolsos e lhe
devolvo o sorriso.
— Não me deixe mais ansiosa do que já estou... — Meu tom sai
como uma repreensão.
Ele ri.
— Você está linda. — Jay mede o meu corpo com os olhos
lentamente, cada fibra estremecendo diante do olhar concentrado e intenso.
— Só estou usando moletom e tênis. — Eu rio, sem entender a
beleza que ele tanto vê em algo tão simples.
Jay se afasta do capô apenas o suficiente para alcançar a maçaneta
da porta do carona, onde ele a abre gentilmente para mim, sem desviar o
olhar de minha figura por um milésimo de segundo sequer.
— E ainda assim você é a garota mais linda que já vi. — Seus olhos,
mesmo com a distância, parecem mais escuros conforme ele sussurra
baixinho, examinando o meu rosto com... Devoção.
Nunca vou conseguir me acostumar com a intensidade de seus
olhares. Jay sempre consegue me enviar o calor que falta em meu vazio
congelante, bem em meu peito. Ele parece curar todas as minhas feridas
quando me olha desse jeito.
É como se nos conhecêssemos há anos. É como se já estivéssemos
ligados, porque ninguém nunca vai conseguir conquistar uma conexão tão
forte com alguém que conheceu há pouco tempo. Mas conosco parece
funcionar. É como se nós fôssemos criados para isso.
Para estarmos juntos.
Quando me aproximo de Jay, ergo um pouco o meu corpo, ficando
na pontinha dos pés para estar finalmente à sua altura. Toco a pele macia de
seu rosto, arrastando a ponta dos dedos por sua mandíbula e, aproximando o
meu rosto, deposito um beijo cheio de carinho em sua bochecha.
Sinto quando ele fica tenso diante da ação, mas continuo exatamente
onde estou, demorando com meus lábios propositalmente sobre sua pele
cheirosa.
Jay continua imóvel, sua respiração fica pesada e eu me embriago
com o cheiro suave de seu perfume. Ele é muito cheiroso, de fato.
— Esse dia já está sendo mais do que especial, duvido que possa
ficar melhor. — Sussurro quando me afasto, oferecendo um sorriso cheio de
gratidão antes de entrar no carro e aconchegar meu corpo no banco do
carona.
Seguindo-me com o olhar, Jay parece completamente desorientado
quando balança a cabeça como se estivesse afastando os pensamentos e
sorri, fechando a porta enquanto coça o canto dos lábios, disfarçando o
sorriso que brinca ali.
— Depois de hoje talvez você aprenda a não duvidar de nada do que
eu digo. — Ele diz quando se acomoda no banco do motorista e dá partida
no carro.
Dou risada baixinho, encostando a minha cabeça no banco enquanto
admiro o seu rosto de perfil.
— Bobo.
É claro que eu não duvido de nada do que ele diz, principalmente
quando é a respeito da minha felicidade. Sei que ele pode me fazer feliz
com muita facilidade. Mas não vou dizer isso a ele, é claro. Ele está muito
convencido ultimamente e eu me recuso a alimentar o seu ego.

Passo o caminho todo olhando a cidade pela janela. É a minha


segunda vez passeando pelas ruas movimentadas e deslumbrantes de Nova
York, e estou ainda mais apaixonada do que a primeira. Tudo é tão simples,
apenas ruas, pessoas, cores, telões e movimento. Ainda assim, não consigo
me lembrar de momentos tão felizes em minha vida como esse.
Meus olhos brilham quando, de repente, o carro entra em um
caminho estreito para o estacionamento de um parque de diversões. O som
de música infantil explode pelos auto falantes e barracas interativas, junto
das risadas escandalosas de crianças que correm de um lado para o outro
com doces e algodão coloridos em mãos.
Não consigo conter o sorriso no meu rosto quando Jay para o carro e
me encara por cima do ombro, mas estou tão concentrada em olhar para
aquelas luzes coloridas e a roda gigante... A montanha-russa e os outros
diversos brinquedos que nunca imaginei que chegaria tão perto. Pelo menos
não nessa vida.
— Nossa. — Um suspiro me escapa quando pareço perder o fôlego.
— Não me diz que...
Sou interrompida quando Jay salta para fora do carro e dá a volta por
ele, parando em frente à porta do passageiro quando abre e estende a mão
em minha direção enquanto sorri da forma mais apaixonante possível,
deixando-me admirar as suas covinhas.
— Vem. — Ele convida. — Essa noite é sua. Aproveite como nunca
teve a oportunidade.
Eu rio desacreditada quando sinto as lágrimas se acumularem em
minha linha d'água ao tocar a sua mão, aceitando o seu convite totalmente
inegável.
— Jay... — Estou prestes a agradecê-lo.
No entanto, não tenho tempo para falar nada, porque todas as
músicas cessam e alguém passa a pressionar algum tipo de alarme
semelhante a uma buzina de alerta e todas as pessoas presentes no parque
passam a caminhar rumo à saída.
Crianças choram por estarem sendo arrastadas por seus pais para
fora do parque, outras se preocupam apenas em agarrar os seus baldes de
pipoca doce e pirulitos gigantes.
A roda gigante para de se mover e as luzes coloridas se apagam, e
eu, completamente confusa, largo a mão de Jay e alterno meu olhar entre o
movimento de pessoas na saída do parque e no olhar do garoto ao meu lado
fixo nos seguranças do lugar, alheio ao que acontece.
— O que tá acontecendo? — Pergunto, sentindo a brisa fria da noite
atingir o meu rosto e balançar alguns fios do meu cabelo.
Quando as famílias começam a entrar em seus carros e abandonar o
parque de uma vez, Jay acena para um dos seguranças e depois de alguns
segundos, finalmente move seu olhar para mim.
— Vamos?
Reúno as sobrancelhas em confusão.
— O parque está fechado, Jay.
Ele sorri minimamente, afundando as mãos nos bolsos do moletom.
— Sim, está fechado para qualquer outra pessoa que não seja você e
eu.
Arregalo os olhos, sem acreditar no que ouço.
— Mas... Espera! — Pisco os olhos em compreensão. — Você
fechou o parque só para nós dois?
Sorrindo, Jay agarra a minha mão e me arrasta para perto de si,
entrelaçando os nossos dedos e beijando o dorso de minha mão com seus
lábios carnudos e macios.
— Garota esperta.
Sinto meu coração errar em alguma batida e meu rosto queimar.
Meu corpo enfraquece diante de suas palavras e beijos em minha mão, não
consigo acreditar que Jay realmente fez isso.
Saber que ele teve todo o cuidado do mundo para me oferecer uma
noite divertida quando homens cruéis procuram por mim e farão de tudo
para encontrar, faz com que todas as batidas do meu coração sejam
direcionadas para um único alguém. A minha felicidade diante da atitude
dele não permite que me culpe por tirar a diversão das demais crianças que
estiveram aqui durante a noite toda. Eu também mereço me divertir um
pouco, elas podem voltar outra hora enquanto eu só tenho uma única noite.
Vejo quando os seguranças aparecem às costas de Jay e finalmente
me concentro em seus rostos, franzindo o cenho ao notar a semelhança que
eles possuem com os soldados do prédio.
— Está feito, o parque está vazio! — Um deles informa.
Jay afasta os lábios da minha mão e olha para os caras por cima do
ombro, balançando a cabeça em afirmativo lentamente.
— Ótimo. Ninguém entra e ninguém sai. Vocês vão ficar do lado de
fora e garantir que não sejamos interrompidos até que eu os avise. — Sua
voz é grave, ele parece autoritário demais...
Os caras acenam uma única vez e dão as costas para nós.
— Estaremos de olho nos seguranças. Eles estão presos no
armazém. — Um deles grita.
Engulo em seco, assustada com a conversa.
— Mantenha-os de boca fechada. — É a última coisa que Jay
responde a eles antes que desapareçam do nosso campo de visão.
Então, quando ele volta a me encarar, encontra a minha expressão de
espanto e não segura o sorriso descarado que preenche os seus lábios com
muita naturalidade.
— O que é? — Ele pergunta em tom de zombaria.
Arqueio a sobrancelha, finalmente compreendendo que as minhas
suspeitas estavam certíssimas.
— Você não só fechou o parque, como também trouxe os soldados
para sequestrar os seguranças e se passar por eles? — Suspiro, afastando-
me como se estivesse realmente com medo de estar perto dele. — Meu
Deus, você é realmente louco!
Rindo, Jay se aproxima e me abraça por trás, prendendo-me em seu
peito enquanto nossas risadas se misturam. Não há chances de eu ficar
brava com ele, não quando faz todas essas coisas para me fazer feliz.
— Vamos... Não finja que não adora a minha loucura. — Ele beija a
minha têmpora, arrancando-me mais risos.
— Não seja tão convencido, eu ainda tenho medo de você. Seu
insano! — Grito, tentando me livrar dos seus braços que prendem os meus
com uma força imensa.
— Não... Acho que você tem medo de se tornar tão insana quanto
eu. Mas adivinha, linda? Você já é. — Sua risada rouca em meu ouvido me
causa cócegas e me debato em seus braços.
— NUNCA! — Seguro o riso, sabendo exatamente que quer que eu
concorde.
Ele me larga em um movimento brusco, fazendo-me girar nos
calcanhares para encará-lo em confusão. Jay recua alguns passos e move as
mãos para as costas antes de abrir espaço para o mesmo caminho que os
soldados seguiram há alguns minutos. Os olhos escuros exalam desafio.
— Então vai. Segue eles e resgate os seguranças, fale pra todo
mundo que eu cometi o crime horrendo de expulsar todas as crianças do
parque porque queria ter um momento especial com a minha garota.
Congelo diante das palavras. É assustador o quanto diante de toda a
frase, eu só prestei atenção em duas palavras.
— Sua garota? — Pergunto enquanto tento conter o sorrisinho bobo
em minha boca.
Jay não se move.
— Minha garota. Minha. — O tom grave e possessivo que ele usa
estremece as minhas fibras e me faz sorrir completamente rendida a ele.
— Então leve a sua garota para dar um passeio na roda gigante. —
Avanço alguns passos, dessa vez, eu mesma estendendo a minha mão para
ele e fazendo um bico manhoso que arranca-lhe um riso. — Não vou
chamar a polícia para você dessa vez, mas não se acostume...
Rindo, Jay agarra a minha mão e me puxa para si, levando um dos
braços até os meus ombros onde me abraça e nos direciona para a entrada
do parque agora vazio.
— Viu só? Tão insana quanto eu. — Zomba, adorando ter razão.
Encosto a cabeça em seu peito ao sentir minhas bochechas
queimarem. Não o respondo, não acho necessário. Eu apenas me rendo ao
momento mais feliz que tenho em anos da minha vida. Talvez até seja tão
insana quanto ele, e talvez queira muito ser, porque pessoas insanas não
pensam no que estão fazendo ou criam empecilhos para os seus objetivos.
Elas não se importam. Tudo o que importa é viver o momento intensamente
e criar memórias que não devem ser enviadas para o mar do esquecimento.
E eu sei que esta não será. Afinal, é a lembrança que eu guardarei
com muito cuidado para não se perder jamais.
— Ela estava mais bonita com as luzes coloridas. — Aponto quando
chegamos à frente da roda gigante apagada e imóvel.
Jay se afasta sem dizer uma palavra, se enfia na cabine dos
funcionários e parece vasculhar os botões expostos em algum tipo de mesa.
Alguns vermelhos, outros azuis e verdes. Jay clica em um deles e nada
acontece, no entanto, quando pressiona a sua palma no verde, as luzes
acendem e ele recolhe o que parece ser um controle remoto antes de puxar a
minha mão e nos levar para as escadas que levam para as cabines.
— Muito melhor — Sussurro, sentindo o brilho das luzes coloridas
ofuscarem a minha visão.
É tudo tão bonito que eu sorrio à toa, sem conter o misto de emoções
maravilhosas que enchem o meu peito de alegria.
O lugar está deserto e as barracas vazias, a lua ilumina boa parte do
parque carente de luz, e o carrossel centralizado no centro do parque ainda
se movimenta em círculos enquanto as luzes vermelhas e amarelas piscam
sem parar. Eu não acredito que estou mesmo aqui.
— Você vem? — Jay pergunta, despertando-me do transe.
Sorrio largo quando viro a cabeça para vê-lo segurando a trava de
segurança da cabine até que eu entre e ele possa soltá-la. Sem pensar duas
vezes, corro ao seu encontro e me enfio na cabine, sentando do lado
esquerdo do banco desconfortável. Acomodando-se do meu lado, Jay se
certifica de que a trava está firme e ergue o controle remoto que eu
desconfio ser o que nos levará para cima.
— Pronta?
Rindo, balanço a cabeça tantas vezes que até perco as contas.
— Vamos!
Ele ri da minha empolgação e pressiona um único botão que cria um
solavanco que leva as minhas costas a serem pressionadas corretamente no
assento. Eu gargalho alto quando balanço os meus pés no ar e sinto o vento
colidir em meu rosto e balançar todos os meus cabelos.
— Meu Deus! Isso está mesmo acontecendo? Eu estou aqui? —
Olho para ele, encontrando seus olhos fixos em minha direção com um
brilho inexplicável. Ele sorri largo ao me encarar quando toma a minha mão
repousada em meu colo e entrelaça os nossos dedos.
— Nós estamos. — Corrige. — Juntos.
Me perco em seus olhos intensos quando sou aprisionada por eles
em uma troca de olhar tão sincera e apaixonante, que nenhuma palavra
existente no dicionário poderia ser capaz de definir este momento. Nossas
mãos são pressionadas uma contra a outra e é quando percebo que meu
coração queima por um garoto que me trouxe a felicidade que tanto desejei.
Que pensei ser impossível alcançar.
Quando estava presa na casa de meu pai, proibida de ver até mesmo
a minha mãe e o meu irmão, não pensei que poderia ser feliz. Não achei que
poderia sorrir de novo e recuperar a minha essência.
Quando mamãe morreu, eu perdi tudo. Perdi até mesmo o fôlego que
me mantinha respirando, mas sabia que precisava ser forte pela minha vida
e de Jonah. Pensei que seríamos só nós dois contra todo o mundo e as
pessoas cruéis que ainda respiram e estão espalhadas por cada canto da
Terra.
Mas agora eu sei.
Não estou só. Nós não estamos sozinhos.
Porque mesmo que existam milhares de almas podres e pessoas
cruéis, alguém com o coração corrompido e um fio de esperança
inimaginável no par de olhos escuros, é capaz de apagar toda a crueldade
que ameaça nos desamparar.
Jay nunca vai nos deixar.
— Tenho um presente para você. — Ele quebra o silêncio, ainda me
observando atentamente enquanto o seu pomo de adão se move.
— Jay... Você já fez muito...
— Shhhh... — Ele solta a minha mão, apoiando-a em meu colo
novamente quando inclina o seu corpo para retirar algo do bolso traseiro de
seu jeans. — Não é nada demais.
Acompanho cada movimento, completamente perdida em cada
mínima ação.
Quando Jay retira o que parece ser uma pequena raiz de seu bolso
traseiro, assusto-me de imediato. Acompanho os seus dedos delicados
tentando amenizar o amassado em uma flor pequena e delicada sobre sua
palma, tão bonita que quando Jay retira a palma da minha frente e permite
que eu a veja por completo, prendo o fôlego.
— Roubei de um jardim perto do prédio, tive que colocar no bolso
porque não queria estragar a surpresa mas... ela ficou um pouco fodida. —
Ele ri baixo. — Só pensei que você fosse gostar, e-eu...
Delicadamente, levo a ponta do meu polegar aos seus lábios
enquanto os fios do meu cabelo voam pelo ar. Com a outra mão, toco a sua
palma e acaricio a sua pele.
Sinto quando meus olhos se enchem de água.
Isso significa tanto... Tanto.
— Você me trouxe um girassol. — Sussurro baixinho quando uma
única lágrima escorre por minha bochecha. — C-Como você...
Ele seca a minha lágrima, erguendo o meu queixo minimamente
para conectar nossos olhares que, desta vez, queimam um pelo outro.
— Eu já disse, linda. Te observei durante muito tempo. Sei de cada
detalhe sobre você, sobre...
— Minha mãe. — Concluo.
Ele concorda, sorrindo sem mostrar os seus dentes tão bonitos.
— Um girassol para o meu raio de sol. — Ele se move rapidamente
quando segura a base do pequeno girassol e habilidosamente, usa a mão
livre para afastar os fios do meu rosto e levá-los para trás de minha orelha.
— Nunca se deixe apagar, porque se o fizer, apagaremos juntos.
Imóvel, outra lágrima me escapa quando ele posiciona a base do
girassol para a minha orelha e prende ali, junto de todos os meus fios loiros.
— Agora você está ainda mais linda. — Ele desce dois dedos para a
minha bochecha, acariciando e deslizando a minha pele até alcançar o meu
queixo.
Nossos olhares se encontram quando ele usa dois dedos para
acariciar tão docemente que fecho os olhos diante das carícias.
Isso está mesmo acontecendo. Jay conhece cada detalhe sobre a
minha vida, sobre todo o inferno que vivi em minha vida e não se esforça
para esconder absolutamente nada sobre isso. Os girassóis tão importantes
para mim e para a minha história com a minha mãe, aquela que tive tão
poucos momentos para guardar em minha memória, ele está me ajudando a
criar mais uma.
Um elo inquebrável.
Aquele que começou com o amor puro de uma mãe e uma filha,
agora está se expandindo para algo ainda mais profundo e verdadeiro,
tornando o que mamãe e eu criamos, uma ligação intensa sobre o
verdadeiro significado do amor.
— Jay?
— Sim, girassol?
Deixo o sorriso largo se estender em meu rosto, alcançando os olhos
o suficiente para arrancar o mesmo do garoto problema em minha frente.
Esse não é apenas um apelido carinhoso, é muito mais do que isso.
Significa tanto que eu quero congelar o tempo e ficar aqui para sempre.
— Obrigada. — Sou sincera, encarando os seus olhos profundos
enquanto as lembranças vêm à tona.
Mamãe e eu tivemos poucos momentos juntas devido a desconfiança
de meu pai em nos deixar juntas por muito tempo. No entanto, sempre
quando nós nos encontrávamos, ela sempre tinha a maneira doce de
demonstrar o seu instinto protetor e amável, suas carícias eram apenas suas.
Ninguém nunca faria o mesmo que ela, nada seria igual, porque quando ela
fazia, havia sentimento.
Jamais me esqueceria de quando ela tocava o meu queixo e arrastava
os seus dedos delicados pela extensão de minha pele, fazendo o mundo
desaparecer enquanto éramos as únicas coisas que importavam. Jamais me
esqueceria da forma como ela me olhava, como ela sempre parecia
orgulhosa de quem eu estava me tornando e de como as faíscas emanadas
de seus olhos azuis exalavam amor. O mais puro e verdadeiro.
Antes, eu realmente pensei que Jay ter a mesma mania amável de
mamãe, era uma coincidência. Pensei que talvez fosse muita sorte encontrar
alguém capaz de demonstrar carinho por mim da mesma forma como
aquela que mais me amou no mundo. Mas agora? Agora eu sei que ele sabia
o tempo todo e mesmo assim continuou. Jay encontrou uma forma de me
fazer sentir a presença do amor de mamãe repetindo os seus toques quentes
como brasa em minha pele.
Sei que ele pode entender o quanto sou grata apenas olhando em
meus olhos, porque mesmo que eu queira muito falar sobre o quanto a sua
existência é importante para mim e que não sei o que seria de minha vida
sem tê-lo por perto, não há necessidade. Jay consegue interpretar tudo isso
apenas na maneira que eu olho para ele, sei que sim.
Em silêncio, Jay usa uma das mãos para pressionar um dos botões
no controle remoto, fazendo com que a roda gigante congele no topo.
Olho para o céu, admirada pela lua que brilha juntamente das
estrelas. Elas me lembram das infinitas vezes em que estive na janela de seu
quarto conversando com mamãe.
O vento afasta os cabelos do meu rosto e não contenho os meus
olhos que se fecham por reflexo, respirando fundo enquanto a brisa se
arrasta por minha pele e me faz sentir o gostinho tão desejado do que é
realmente estar viva.
— Se você pudesse estar em qualquer lugar do mundo, onde estaria?
— Sua pergunta quebra o silêncio.
— Fácil, eu estaria em uma cidade bem agitada onde eu pudesse me
infiltrar no meio de toda a gente e me sentir humanamente viva. Faria todo
tipo de coisa que não pude fazer antes. — Não abro os olhos ao sussurrar.
— O que você gostaria de fazer?
Eu rio baixinho, sabendo que há tantas opções em minha cabeça que
é difícil escolher apenas uma.
— Eu... Gostaria de ir a restaurantes, comer comida barata e
interagir com as pessoas. Gostaria de ir a bailes e me vestir como uma
princesa, usar saltos altos, dançar na chuva e gostaria muito de rir das piores
piadas pelo simples fato de estar feliz. — Abro os meus olhos e observo os
seus olhos por cima do ombro. — E você, o que faria se estivesse longe
daqui?
Jay não esboça nenhuma reação quando seu olhar escorrega até os
meus lábios e observa a minha língua umedecê-los, então volta a fixar os
seus olhos nos meus quando engole em seco.
— Se não ao seu lado, provavelmente estourando a cabeça de quem
estivesse te levando a bailes e te arrancando gargalhadas.
Não seguro o riso.
— Você é louco.
Jay continua sem esboçar nenhuma reação.
— Foge comigo.
— O quê? — Eu rio desacreditada. — Você é muito louco.
Jay finalmente se move, virando-se completamente para a minha
direção e tomando o meu rosto de ambos os lados com suas mãos grandes,
conectando nossos olhares com tanto desespero que meu sorriso se
desmancha como mágica quando entendo que não é mais uma brincadeira.
Ele fala sério.
— Não, estou falando muito sério, vamos fugir. Eu levo você para
restaurantes na cidade mais agitada e danço na chuva ao seu lado. Nós
podemos começar do zero, podemos ser felizes. — Sua voz é rígida, mas o
olhar está desesperado por uma resposta positiva.
Abro e fecho a boca algumas vezes, incapaz de reagir diante de seu
olhar que, desta vez, parece ainda mais profundo. Cheio de esperança. Lá
no fundo.
— Você largaria tudo... Aqui? Largaria tudo assim pra estar comigo?
Ele sequer pensa quando responde.
— Sem pensar duas vezes.
— Por quê?
— Você não quer? — Ele larga o meu rosto, sua mandíbula
contornada se contraindo algumas vezes quando desvia o olhar para a
direção da lua, como se estivesse evitando me encarar.
— Não é isso, eu quero. Mas... Você... Jay, você é um soldado. —
Balbucio, ficando nervosa diante de sua reação.
Ele parece nervoso, como se a minha resposta o tivesse
decepcionado, e eu realmente sinto muito por isso. Tudo o que quero é sair
desta cidade cheia de más lembranças e levar Jonah para um lugar onde ele
realmente possa crescer sem os infinitos traumas que eu tive.
Mas é mais do que eu quero. Não é tudo sobre mim.
Jay é o soldado mais importante para essa organização, desde que eu
estou no prédio, ele é sempre o mais respeitado e... Tem seu melhor amigo,
Naten, tem sua irmã que já enxerga um lar dentro daquelas paredes de
concreto e tem o meu pai. Tem as missões e o objetivo daquelas pessoas...
Não posso simplesmente tirar Jay de tudo isso porque sou egoísta
demais para me colocar na frente.
— Eu renunciaria ao meu cargo por você. Não preciso dele para
continuar sendo quem sou, e faria sem pensar duas vezes. Tudo o que eu
quero é tirar você do meio dessa confusão antes que...
O toque de seu telefone interrompe a sua fala.
Jay respira fundo e retira o aparelho do bolso de sua jeans, rejeita a
chamada sem nem olhar para a tela e volta a olhar em meus olhos.
— Você não está entendendo, linda, precisamos partir porque...
Outro toque do celular.
— Caralho! Me desculpa. — Ele resmunga, rejeitando-a novamente.
Toco em sua mão, fazendo-o respirar fundo ao tentar acalmar a sua
respiração que já parece elevada demais. Jay está muito nervoso de repente,
e eu estou me sentindo infinitamente culpada por isto.
— Atenda.
— Não. Eu preciso te falar uma coisa e precisa ser agora. — Ele
pisca, balançando a cabeça completamente perturbado.
Firmo o aperto em sua mão, acalmando-o.
— Ainda estarei aqui quando você encerrar a chamada.
Jay solta alguns xingamentos mas parece se dar por vencido quando
toma o telefone em sua mão e aceita a chamada que acende o visor no
segundo seguinte.
Eu apenas me endireito no banco e observo a lua brilhante, perdida
em meus pensamentos, imaginando como seria se eu tivesse apenas
aceitado a sua proposta sem pensar no resto. Eu seria feliz longe daqui, Jay
estaria ao meu lado e sem dúvidas, levaríamos nossos irmãos e quem for
muito importante para nós. Nós iríamos começar do zero e tentar a vida em
um lugar livre das lembranças ruins de nossas vidas.
Ninguém soltaria a mão de ninguém.
Tudo seria mais simples.
Sem soldados, sem pais ruins, sem organizações, guerras,
perseguidores ou medo. Seríamos só nós.
Uma família.
— Williams... — Jay fala ao telefone com um olhar aflito nos olhos.
— Tem certeza? Caralho, não é possível... Sim, caralho, sim, vou para casa
agora mesmo. — Então ele desliga.
— O que foi? — Pergunto, preocupação causando batidas um tanto
lentas em meu coração.
Jay agarra o controle remoto e pressiona um dos botões tantas vezes
que o solavanco causado na roda gigante faz com que eu me desequilibre e
bata com a cabeça no suporte da cabine acima de nossas cabeças.
— Precisamos ir. Sinto muito por ter arruinado sua noite. — É tudo
o que ele diz, sem olhar em meus olhos uma vez sequer.
De repente, ele está frio como a Antártida.
Me arrependo por não ter aceitado o convite, por não ter agradecido
por ter salvado a minha vida no concurso, por não ter dito que estou
apaixonada por ele…
Porque seus olhos escurecem com tanta rapidez que eu temo
desconhecer sua personalidade. Me sinto culpada. Sinto como se eu tivesse
arruinado a sua noite, como se eu tivesse destruído os seus sonhos e planos.
Como se eu tivesse ferido os seus sentimentos e ferido o seu coração.
Não sei.
Não tem como saber qual destas opções parece mais certa, porque
Jay me guia de volta para o carro com tanta pressa e frieza que não me
atrevo a abrir a boca. Ele está tão diferente que tenho medo, medo do que
eu fiz com ele, ou medo do que ele ouviu naquela ligação.
E nunca vou descobrir, aparentemente.
NEW YORK - 2019
ANTES

As três palavras estão presas em minha garganta.


As três malditas palavras que eu pretendia dizer a ela esta noite. As
três palavras que me tiram o sono e me fazem sonhar acordado ao imaginar
uma vida perfeita ao seu lado.
Me sinto a porra de um garotinho quando diante de tamanho
desconforto. Será que ela não consegue enxergar que não desejo vida
alguma sem que ela esteja em cada um dos meus dias?
Será que não vê que não dou a mínima para o meu cargo ou
juramento, que não dou a mínima para esta cidade e para o meu pai, quando
tudo o que quero é tirá-la da mira dele?
Estar longe seria como uma benção.
Iríamos para longe, tão longe que ele jamais colocaria os seus olhos
em nós novamente.
Seríamos livres.
Livres.
Livres para viver.
Mas compreendo que talvez seja confuso demais para ela, entendo
que possa se culpar por me tirar alguma coisa, entendo seus sentimentos.
Porém eu estou… Desesperado. Desesperado para viver ao seu lado sem
medo de sermos feridos.
Principalmente agora.
— O que aconteceu? — Invado o escritório de Williams, louco para
compreender o que de fato aconteceu.
Hyuk também está na sala, parece tão submerso em pensamentos
que sequer percebe a minha presença até que eu me coloque ao seu lado.
Williams está do outro lado da mesa, sentado em sua cadeira com a cabeça
mergulhada nas mãos.
Imediatamente as batidas do meu coração adotam um ritmo
descompassado, pois não existem boas-novas entre nós. É só desgraça,
sofrimento e angústia. Mesmo assim, eu ainda fico surpreso quando os
olhos de Williams se erguem até mim com cautela.
— Estava com ela? — Sua pergunta é genuína, livre de qualquer
outro sentimento negativo.
Aceno, decidido a não esconder qualquer avanço em nossa relação.
Todos devem se acostumar, pois eu não pretendo abrir mão do que somos.
Embora os riscos sejam altos. Mortalmente altos.
— Precisa deixá-la ir, Jay. — É a primeira vez que Hyuk abre a
boca, então nossos olhares se encontram.
Não digo nada, pois estou observando-o com uma atenção
considerável. Hyuk nunca abriu a sua boca quanto ao que eu deveria fazer.
Embora as minhas escolhas não fossem coerentes, ele ainda estaria me
apoiando quando tivesse conhecimento da importância que tem para mim.
Ele sabe o quanto é importante mantê-la ao meu lado.
O que mudou?
— A Revolução…
Me antecipo, nervoso demais para esperar por uma explicação.
— O que foi? O que aconteceu? — Posso sentir as veias em meu
pescoço pulsarem ao falar.
Hyuk desvia o olhar, como se não quisesse lidar com a minha
reação. Não o entendo, e pela raridade deste acontecimento, meus olhos vão
de encontro a Williams que já possui os seus repousados sobre mim em
absoluto silêncio.
— Eles têm uma ficha hospitalar, uma que comprova o parto de
Eleanor. — Sua frase congela meu mundo. — É questão de tempo até que
encontrem o nome de registro e descubram que ela está debaixo do nosso
teto por todo este tempo.
Me sento.
Em silêncio e com o mundo desabando sobre meus ombros, é quase
como se um filme passasse diante dos meus olhos. Um no qual eu fujo com
ela para outro lugar e faço com que sejamos procurados em cada canto da
terra, mas sei que se este fosse mesmo um, o final seria infeliz.
Não é nossa realidade.
A realidade é ainda mais difícil de ser engolida, pois não existe
qualquer possibilidade de salvar a minha cabeça quando formos
descobertos.
Mas sei que eu daria tudo para tentar.
— Então você me chamou até aqui para dizer que vai entregá-la? —
Ergo o olhar, fitando meu líder por baixo dos cílios. — Não faça essa merda
comigo, Williams, não me faça ser o vilão.
— Você precisa entender que a vida dela não é essa. Precisa
entender que vocês são de mundos completamente incompatíveis. — Me
calo diante de sua repreensão. — O lugar dela é na França, Jason, vivendo
uma vida que todos nós sonharemos em viver. Ela é a porra da próxima
herdeira, tem noção do perigo que ela é neste lado do barco? Do quanto
pode ser ferida?
Sei que é verdade.
Sei que nenhuma mentira sai de seus lábios, ainda assim me sinto
como se pudesse preencher o vazio que uma vida perfeita deixaria. Sei que
ela não se importa com nada disso, sei que se Clarke pudesse escolher,
optaria por estar ao meu lado.
Mas aparentemente eu sou o único que enxerga isto.
Sou o único a ver solução nesta enrascada.
— Eu posso protegê-la. — Reúno forças para dizer. — Faço o que
for preciso, reviro o mundo de ponta cabeça para destruir qualquer pista
referente ao seu paradeiro. Mas não posso deixá-la ir.
A calma e paciência de Williams é de se impressionar, pois em
qualquer outro dia ele estaria berrando aos ventos sobre o quanto sou
imprudente e irresponsável. Mas há algo de diferente desta vez. Ele sabe
que me culparei eternamente se algo acontecer a ela, assim como também
sabe que serei condenado a um sofrimento eterno por viver sem sua
presença.
É um impasse.
Dor ou dor.
Não há espaço para felicidade, pois ela não existe em nosso mundo.
— Eu sei que Eleanor foi importante para você, Jason. Sei que ela
foi a responsável por trazer você até mim. Mas não pode perder tudo o que
tem porque acredita que ninguém mais faria por aquela garota um bem
maior do que você. — Sua voz é mansa. — Ela tem um propósito muito
grande nessa terra, assim como você. Juntos vocês são perigosos, pois é o
desejo de Floyd ter acesso a ela. Você não pode vacilar, não pode se render
a esta paixão enquanto aquele homem estiver respirando. Os dois seriam
destroçados. Você e ela.
Hyuk está em silêncio, mas sei que me observa e espera por uma
resposta explosiva. É tudo o que sempre esperam de mim. No entanto, desta
vez eu sinto um aperto incomum assolar meu peito, como a sensação da
perda, como ter a certeza de que tenho posse de algo que nunca coube em
mim.
Uma peça incompatível.
Clarke viveu uma vida de horrores, e embora eu me sinta capaz de
dar a ela uma vida livre de caos, algo dentro de mim parece gargalhar de
meus pensamentos. Sei que o caos vive lado a lado comigo, sei que não
poderei apagar nada do que eu sou.
Mas eu queria poder.
Por ela.
— Não vou ser o cara que te diz o que fazer desta vez. Não decidi
nada até agora, não mandei nenhum retorno a eles. Embora eu seja o líder
da unidade, não vou arrancá-la de seus braços e destruir o laço que temos.
— Baixa o olhar, suspirando lentamente. — Tome uma decisão coerente e
nós estaremos aqui para apoiá-lo, independente de tudo.
Eu poderia agradecê-lo pelo voto de confiança.
Poderia mesmo.
Mas não o faço, pois eu nunca estive tão confuso em toda a minha
vida.
Embora haja apenas uma opção.
Dor ou dor.

Viajei cerca de doze horas para estar bem aqui, diante da lápide de
Eleanor em uma cidade situada na Califórnia. Seu nome brilha na perfeita
caligrafia, ao lado da nova lápide que ordenei que fosse instalada no tempo
em que estive aqui.
Sofia Clarke.
Forjar a morte de alguém deveria ser fácil, basta apenas uma lápide
como esta e uma certidão informando o óbito. Qualquer um acreditaria. No
entanto, embora tenhamos bastante recursos para tornar possível, nada pode
apagar esta sensação de luto enraizada em minha alma.
Observo as lápides uma ao lado da outra. Uma com o corpo velado e
descansando eternamente debaixo da terra enquanto no outro não há nada
mais do que um caixão vazio.
Não foi fácil tomar essa decisão.
Não mesmo.
Sei que serei odiado quando Clarke se tornar uma mulher, sei que
ela irá me desprezar com todas as suas forças porque não há probabilidades
de ser diferente. Mas de alguma forma eu sinto que é o certo a se fazer,
sinto que ninguém nunca vai cuidar dela como eu, que ninguém nunca vai
quebrar o ciclo como eu estou fadado a fazer.
Estou pronto para quebrar o meu juramento.
Estou pronto para ser o alvo da Revolução.
Estou pronto para ser uma decepção para as pessoas que estive
trabalhando por anos e anos.
Mas não estou pronto para deixá-la sair de meus braços.
Tampouco algum dia estarei.
Me aproximo da lápide, sabendo que esta será a última vez que
provavelmente estarei diante dela. Observo as flores espalhadas pelo jazigo
e inalo o frescor como se fosse o meu último sopro de vida são.
Os homens receberam ordens para reabastecer as flores sempre que
estiverem prestes a murchar e morrer. Sei que este jazigo nunca adotará
uma aparência medonha, embora estejamos em um ambiente cheio de dor.
Não é o que eu quero para ela.
Além disso, precisamos ser convincentes se quisermos fazê-los
acreditar que realmente há um corpo enterrado aqui.
Então estará feito.
Fugirei com ela e iremos desaparecer deste mundo antes que possam
pousar os seus olhos sobre nós.
— Quebrar o ciclo, não é? — Observo a lápide de Eleanor,
compreendendo tudo o que ela me preparou para enxergar. — Você nunca
quis essa vida para ela, a cheia de um fardo que você suportou por tantos
anos. Agora eu entendo. — Rio sem humor, ligando os meus próprios
pontos. — Você prefere que ela viva uma vida simples a herdar um império
que pretende destruir a essência que você moldou a ela.
Nunca entendi por que Eleanor nunca recorreu ao pai, por que nunca
pediu por socorro ou por que sempre pareceu confortável em lidar com os
próprios problemas. Mas talvez a verdade tenha estado na minha cara por
todo este tempo, pois a Revolução é moldada por décadas a seguir um ciclo
vicioso. Eles são perigosos, são o alvo para todas as máfias espalhadas pelo
mundo.
Os alvos no momento estão sob a cabeça de Victor Mercier, assim
como um dia já estiveram sob a cabeça de Eleanor.
Mas quando nenhum deles são os responsáveis por plantar ameaças
ao que deveria ser extinto do universo, os alvos pingarão sob a cabeça da
única que restar.
E não irão hesitar em destruí-la.
Não até terem a certeza de que não haverá ameaça alguma
impedindo-os de prosseguir com a comercialização ilegal.
É por isso que meu pai a quer tanto.
É por isso que eu fui criado sob sua maneira incoerente. Marcus
esperava que eu fosse o seu aliado, tão frio quanto ele. Tão cruel e
impiedoso. Ele me moldou para isto, me quebrou, me espancou, me deu
sofrimento para que eu pudesse me tornar um homem forte para suportar a
carga que o seu império colocaria sobre as minhas costas.
Pois ele esperava que eu a tivesse em minhas mãos.
Que eu me juntasse a ela.
Que eu lhe roubasse a sua herança e destruísse de uma vez por todas
a maior ameaça que tem o barrado.
Fui criado para isto.
Ela foi criada para isto.
Um acordo entre amigos que resultou em uma vida infeliz de pobres
almas que lutam para sobreviver.
Sebastian não faz ideia de que criou alguém para me dar forças para
lutar contra um esquema arquitetado por anos.
Marcus não faz ideia de que eu morrerei no processo, se for preciso,
mas jamais permitirei que ele toque em um único fio de cabelo do que
pertence a mim.
Não a ele.
Não a Luxury.
Não a Revolução.
A mim!
— Sua morte não foi em vão. — Por fim, prometo, engolindo a
saliva que rasga a minha garganta e me força a fechar os punhos ao lado do
corpo. — Eu vou quebrar o maldito ciclo.
(…)
— Está feito.
Dois dias se passaram.
Dois dias tentando encontrar forças para encarar Williams e contar
tudo o que tenho planejado. Seu olhar temeroso e repleto de mágoa não me
dá outra alternativa senão acreditar que ele sente dor. Afinal, a partir do
momento em que eu pisar fora deste prédio, posso ser morto a qualquer
instante.
— Você tem certeza disso? — Seu olhar recai ao chão antes dele se
levantar da mesa e dar a volta por ela a fim de me encontrar. — E quanto ao
Hyuk? E quanto a Kelly?
Respiro fundo, meu peito enchendo-se de uma dor com a qual
preciso aprender a lidar.
Dor ou dor.
— Não posso ser egoísta a ponto de levá-los comigo. Ambos estarão
seguros aqui, com você. — Ergo o olhar, encontrando com a figura do
homem que me tirou do fundo do poço. — Eu já estou fadado a isto,
Williams. Você sabe que eu nunca vou conseguir viver em paz.
— Somos sua família. — Sinto sua mão repousar sobre meu ombro
em uma carícia confortante. — E por isso eu não vou te julgar. Eu te amo,
mas meu amor nunca vai ser maior do que o que você sente por ela. Faça o
que deve ser feito. A proteja, se proteja, e quando ela tiver maturidade para
entender tudo o que você fez, nós também estaremos aqui para apoiá-lo.
Só… Por favor, não morra. — Williams ri, e quando ergo o olhar para
acompanhá-lo, vejo uma única lágrima escorrendo por sua face.
Não tenho palavras o suficiente para agradecê-lo pelo voto de
confiança. Pela força. Pelo apoio.
Mas sei que ele sabe o quanto importa para mim.
Sei que sabe o quanto darei a minha vida para me manter vivo. Para
mantê-la viva. Para sobreviver.
— Obrigado. — Agradeço, erguendo-me para lhe dar um abraço
com gosto de adeus.

Me despedi de todos.
Renuncio ao meu juramento.
Kelly chorou como uma criança, implorou para que eu lhe desse
notícias o tempo todo. Implorou para que eu me cuidasse.
Hyuk me abraçou como nunca, apertou a minha mão e olhou nos
meus olhos sem a necessidade de abrir a boca para falar absolutamente
nada. Sei que ele sabe o que se passa dentro de mim, sei que ele entende a
minha decisão e jamais iria contra.
Sentirei falta de todos eles.
Mas deveres são para serem cumpridos.
Eu nunca abriria mão do meu.
Por isto estou prestes a caminhar pelos corredores e partir para o
quarto de Clarke, encaixando as malditas frases que poderão fazer com que
ela aceite vir comigo.
Só preciso dizer que não me importo com o meu cargo.
Que não me importo com nada do que não a inclui.
Que tudo o que quero é moldá-la para a verdade, para que não me
odeie, para que compreenda todos os meus motivos sem que tenha que
testemunhar a escuridão nos seus olhos. Eles são tão lindos para adoecerem.
E eu jamais conseguiria lidar com a dor de seu desprezo.
Só é preciso calma.
Paciência.
Maturidade.
Não é tão difícil.
Eu consigo.
Encaro o relógio, me dando conta de que a noite caiu rápido demais
e que não há mais tempo para adiar essa conversa. Amanhã precisamos
estar longe.
Ela só precisa confiar em mim.
Suspiro, encarando o meu reflexo no espelho antes de dar as costas
para o meu quarto e partir em direção ao corredor. Subo as escadas com
rapidez, ignorando toda a movimentação que nos próximos dias já serão
alvos de minha saudade.
Ao chegar ao salão principal, avisto Marta recolhendo alguns copos
espalhados. Imediatamente me aproximo, certo de que preciso me despedir
dela também.
— Hey, Marta.
Seus olhos encontram os meus e o sorriso que vem em seguida é
praticamente automático.
Nem se eu quisesse conseguiria impedir que o meu brotasse em
minha face.
— Querido! Como você está? — Ela me abraça com força,
arrancando-me um suspiro relaxado. — Não te vejo há dias.
— Estive em uma viagem importante. — Me afasto, tranquilizando-
a. — Estou aqui para me despedir.
Suas sobrancelhas se reúnem, vejo a confusão abraçar a face de
Marta como uma manta.
— Despedir?
Afirmo.
Por que é tão difícil fazer essa merda?
Odeio despedidas.
Marta acompanhou todo meu crescimento. A vida de bosta que
suportei ao lado de Marcus, cuidou de mim, das minhas feridas, não me
deixou desamparado.
Acredito que uma despedida agora será como uma adaga cravada em
seu coração. Afinal, criamos laços em nossas vidas para que sejamos
humanos. É natural. Mas despedidas… Elas nos partem ao meio.
— Renuncio ao meu juramento. Não faço mais parte da academia.
Os lábios de Marta são abertos em completo choque, e a bandeja
sobre suas mãos repleta de copos chega a balançar diante da revelação.
— Você desistiu? Desistiu de tudo?
— Há outras prioridades no momento. — Revelo, engolindo em
seco. — Mas você ainda estará segura aqui. Prometo voltar quando puder.
Antes que eu possa sentir qualquer outra coisa, Marta apoia a
bandeja em algum balcão próximo de nós e me abraça. Por um minuto, fico
imóvel, tentando compreender o que se passa. No outro, estou rodeando seu
corpo com um dos braços enquanto a aperto contra mim.
Não há como ser mais grato.
Por tudo.
Marta também foi responsável por salvar a minha vida, nunca
conseguirei encontrar palavras para agradecê-la.
— É por ela, não é? — Ela sussurra contra o meu ouvido, ainda
abraçando-me. — Ela encontrou o caminho até o seu coração e não sabe a
sorte que tem. Prove ao mundo que seu pai nunca vai conseguir arruinar
você, Jason. Eu sempre acreditei nisso.
Então ela se afasta, sorrindo minimamente ao acariciar o meu
ombro.
— Te vejo em breve? — Ela sorri, e eu a acompanho.
Afirmo na mesma hora.
— Em breve.
Marta sorri e se volta à sua bandeja, desaparecendo pelos corredores
e deixando-me plantado no mesmo lugar com a cabeça a mil. Me sinto
liberto, como se estivesse indo pelo caminho certo.
Me sinto malditamente bem.
Cumprindo o meu dever.
A minha promessa.
Estou prestes a dar meia volta quando erguendo o olhar, vejo Cassie
recostada a uma parede observando-me de longe. Ela me encara curiosa,
parece esperar que eu vá até ela.
Seu olhar é escuro, e a esta altura do campeonato eu sei que a notícia
já está correndo solta pelo prédio sobre a minha renúncia. Sei que nossa
promessa deve estar rodeando a sua mente, mas este agora é um assunto da
academia.
Williams está a par do que deve ser feito.
E com o coração em paz, me viro e parto em direção a ala dos
quartos.
Subo as escadas e sinto meu coração martelando meu peito com
pancadas agressivas. Meu nervosismo é tanto que quando ouço gritos
vindos do salão de treinamentos, sequer dou importância.
Parece que meu cérebro está no mudo.
Mas o silêncio dura pouco.
Dura até o momento em que ouço o meu nome ser chamado em um
grito desesperado.
— Jason! — Alguém grita. — Chamem o Jason!
Imediatamente meu corpo parece sofrer uma descarga elétrica, pois
sequer consigo controlar os meus movimentos ao pular os degraus tão
rápido que por um milagre não me quebro na escadaria.
Minha respiração está descontrolada.
Eu não sei como, com que forças o faço, mas quando invado o salão
e vejo aquelas infinitas armas apontadas direto para a cabeça de Kelly e
outros soldados que deveriam estar em treinamento, meus pés congelam no
chão.
Não me movo.
Não faço besteiras.
Porque agora algo valioso está em jogo.
E se aquele filho da puta não tirar aquela maldita arma da testa de
minha irmã, eu não vou responder por mim.
— Cadê ela? — Um deles rosna em minha direção. — Traga a
garota Mercier agora ou eu vou estourar os miolos dessa inútil!
Os olhos de Kelly estão imersos em água, vermelhos como sangue
assim como o filete de sangue que escorre por seu pescoço, como prova de
que foi ferida antes que eu chegasse até aqui.
Meu sangue ferve, a arma em minha cintura parece queimar pela
ânsia de estourar a testa deste desgraçado. Me sinto impotente novamente,
de mãos atadas. E tudo piora quando o meu silêncio parece irritá-lo ainda
mais para que ele dê um sinal a um outro infeliz que não perde tempo ao
apertar o gatilho e derrubar um dos soldados que se encontrava ao lado
direito de Kelly.
Ela pula, assustada, engasgada em seu próprio choro.
Quanto a mim, só sinto minhas pálpebras tremerem em completa
fúria indomável.
— Não estou para brincadeiras, caralho! A garota, agora! — Ele
grita, forçando-me a apertar os punhos ao lado do corpo com tanta força
que temo quebrar os meus ossos.
— Solte-a. — Ordeno, embora saiba que não estou em posição.
Ele ri, apertando a boca da arma contra sua face propositalmente
para me provocar.
— Acha que tem poder algum? — Debocha, deslizando o objeto
destravado pela bochecha de minha irmã. — Você não é tão importante
assim. Posso matá-lo agora mesmo e o seu pai encontrará outro alguém para
fazer o papel que você estava destinado a fazer. Não é difícil. Acha que
consegue lidar com a morte enquanto tem a ciência de que estamos
estragando tudo o que tentou manter longe de nós? — Ri, amargo. —
Quanta inocência, Floyd.
Rosno, empunhando a minha arma na mesma hora ao apontá-la
diretamente para a sua testa.
— O que é? Vai me matar? — Outra gargalhada. — Não temo a
morte. Se o fizer, amanhã aparecerá outro como eu para roubá-la. Depois
outro, então outro, então outro… É insignificante!
Um ciclo vicioso.
A porra de um ciclo.
Ele não está errado. Sou só uma marionete controlada desde que
nasceu, meu querer nunca é uma opção e minha vida não é apenas minha.
Talvez seja isto que me deixa mais irritado a ponto de apontar a minha arma
em direção a um dos seus companheiros que mantém os soldados
exatamente onde estão.
Então eu aperto o gatilho sem hesitar, com uma fúria eminente
cegando os meus olhos e arrancando qualquer fio de racionalidade que
possa haver em mim.
A bala é certeira em seu peito.
— Eu mato ele. Mato você. Mato o outro, e o outro e quantos forem
necessários — Grito, observando seus olhos sarcásticos seguirem o rastro
de sangue que se espalha ao redor do cadáver, então torna a me encarar com
um sorriso tosco na cara. — Mas se você acha que pode tocar nela, então
realmente terá de me matar. Pois você somente o fará se eu não estiver vivo
para esfolar cada pedaço da sua carne!
Kelly se debulha em lágrimas, como se realmente acreditasse que eu
permitiria que tirassem a sua vida bem na porra da minha frente.
Não.
Não. Não.
— Solte-a. — Rosno, meus olhos queimando como se fossem entrar
em combustão.
Ele me encara em completo desafio, sabe que eu posso ser tão
inteligente quanto ele, mas o que ele não sabe e eu jamais deixaria tão
exposto, é o terror que assola o meu peito e não permite que eu respire
corretamente.
Sinto medo.
Sinto desespero.
Pois fomos pegos desprevenidos.
Outra porra de vez!
Desta vez eu não sei como reagir, pois me sinto tão indefeso que não
consigo pensar. Meu cérebro não quer funcionar e meu peito está tão
inchado que tudo o que desejo é arrancar meu coração para que eu não sinta
absolutamente nada.
As emoções estão me matando.
Estão me dilacerando.
Eu preciso pensar.
Preciso pensar!
Os soldados estão com suas mãos erguidas em rendição, nenhum
deles está com suas armas empunhadas. Talvez seja pelo treinamento no
salão ou simplesmente não quiseram colocar a vida de Kelly em risco, mas
tanto faz, pois meu mundo acaba de ser derrubado quando ouço passos
acelerados subirem as escadas.
Não parecem pertencer a apenas um alguém.
E é exatamente isto que causa um escorrer de suor em minha
têmpora.
Lento e agonizante.
— Puta que pariu! — Ouço Hyuk xingar às minhas costas, então o
ruído de sua arma sendo empunhada soa no segundo seguinte.
Outros passos, mais armas sendo empunhadas, mais xingamentos, e
então subitamente estou rodeado por soldados prontos para iniciar uma
guerra.
Tudo acontece em câmera lenta.
Minha cabeça está uma confusão, e me encontro em um impasse
entre razão e emoção. A qual delas devo conceder o controle? Qual delas
devo permitir que comande as minhas ações?
— Um passo a mais e eu estouro a cabeça dela. — O filho da puta
grita. — Eu quero a…
Ele não consegue terminar a frase.
Minha mente parece girar tantas vezes que perco a capacidade de
raciocinar quando o som de gritos tão familiares alcançam os meus ouvidos
como uma canção de terror.
Imediatamente me viro, alternando o meu olhar entre minha irmã e a
cena que me arranca o fôlego.
Clarke está sendo arrastada pelos braços aos prantos por dois
homens. Dois homens que não possuem uniforme e tampouco são
familiares.
Ela chora tão desesperada que meu controle vai para a casa do
caralho.
Foda-se a razão.
A emoção me parece ser a melhor opção.
— Filho da puta miserável! — Xingo, tentando correr em sua
direção na mesma hora. — Clarke! Eu estou aqui, olhe para mim!
E ela olha.
Seus olhos tão vividos agora são o reflexo de um horror sem
tamanho. Há tanta dor envolvida em suas íris que por um milésimo de
segundo eu cogito a possibilidade de terem a machucado.
Tento ir até ela.
Tento tirá-la das mãos daqueles miseráveis.
É tudo o que quero.
Mas são as mãos de Williams que envolvem o meu braço e me
impedem de obter sucesso em minha missão.
— Não, porra! Calma! — Ele grita, sacudindo o meu corpo como se
soubesse exatamente do estado anestésico em que me encontro.
Mas eu não o ouço.
Invadiram a minha casa.
Invadiram meu território.
Tocaram no que é meu.
Apontaram uma arma para a cabeça da minha irmã.
Colocaram as mãos em Clarke bem na porra da minha frente.
Não penso.
Não há a necessidade de pensar.
Só ajo.
Minha arma empunhada parece ser controlada por seres divinos,
pois mesmo em um estado indomável, ainda sou capaz de mirar o revólver
na direção do homem que tem as mãos agarradas ao corpo de Kelly, e em
um único disparo, seu corpo cai no chão como se já esperasse o seu fim.
Kelly grita, correndo em nossa direção ao buscar amparo.
Então tudo acontece.
Tiros são disparados para todos os lados e eu me movo rápido o
bastante para agarrar a mão de minha irmã e entregá-la a Hyuk. Ela chora
engasgada em seus próprios soluços, e tudo o que consigo fazer é colar os
lábios a sua testa em um beijo rápido antes de dar as costas e procurar por
Clarke.
A confusão se instalou como um vírus.
Todos gritam, atiram, socam e lutam.
O salão se tornou um campo de batalha.
Há sangue por todo o lado, meus pés escorregam em poças e chego a
tropeçar, mas forço meu corpo a se levantar e ultrapassar todos para
encontrá-la.
Meu mundo está prestes a cair.
Estávamos tão perto de estar livre deste pesadelo…
Tão perto!
Corro, uso a minha arma para apagar um ou dois caras que entram
no meu caminho e quando ouço o seu grito chamando por mim, finalmente
consigo sentir o ar voltar aos meus pulmões.
— Jay! — Grita, sua voz me arrasta para o paraíso.
Eu a sigo.
Afasto todos que entram em meu caminho e sigo o som de sua voz,
deixando que os soldados eliminem todos os homens do meu pai para que
eu possa ir até ela. Embora eu queira enfiar uma bala na cabeça de todos
eles por conta própria.
Escorrego outra vez em uma poça de sangue.
E novamente, me levanto já sem forças nos joelhos. Sem fôlego de
vida, sem esperança.
Quando ergo o olhar abatido em sua procura, desta vez eu a
encontro. A vejo sentada no chão, no canto mais afastado do salão
abraçando as suas próprias pernas enquanto esconde o rosto entre as mãos.
Ela chora de um jeito jamais visto, chora como se a dor fosse tanta
que não possa suportar. Chora como se essa vida fosse tudo o que ela não
deseja para si, como se não pertencesse a este lugar.
Então eu entendo.
Não importa o quanto eu tente e o quanto me engane, Clarke não
está segura comigo. Tentei mesmo acreditar que eu sou capaz de mantê-la a
salvo, de ajudá-la a criar memórias reais, a sorrir verdadeiramente, a curar
os seus traumas… Mas quem sou eu para tal função quando nem mesmo
posso fazer o mesmo por mim?
O caos anda lado a lado comigo.
Cresci envolvido por chamas ardentes que nunca serão compatíveis
com o oceano de seus olhos.
Clarke é luz. É vida. É felicidade. Esperança.
Eu sou escuridão, destruição, horror e maldição.
Somos incompatíveis.
Agora eu entendo.
Não posso acreditar que posso protegê-la sozinho quando nem
mesmo consigo fazer isto rodeado de soldados altamente treinados. Quem
seremos nós do lado de fora? Quem eu serei? Quem ela será? Quanto tempo
sobreviveremos?
Não, porra.
Eu tentei.
Tentei mesmo acreditar que era possível.
Mas Clarke pertence a um mundo que não me cabe, e embora eu
queira participar mesmo que como um intruso, terei que me contentar com a
distância.
Ao menos ela estará bem.
E embora eu esteja despedaçado por vê-la partir, reunirei os pedaços
para que ela os coloque em seu devido lugar quando este for o seu desejo.
A amo tanto que dói.
E é por isso que preciso deixá-la partir.
Por isso, quando o salão finalmente se torna um cemitério sangrento,
ela finalmente consegue reunir coragem para erguer os seus olhos e deslizá-
los por cada canto do salão até esbarrar sobre mim.
Vejo felicidade em seus olhos.
Um alívio imensurável.
Então ela se levanta e corre em minha direção.
Seus braços rodeiam a minha cintura com força, manchando minhas
roupas com suas lágrimas dolorosas.
Eu recebo seu abraço, pois sei que esta é uma despedida.
Mesmo que ela não saiba.
A abraço por alguns segundos.
Permito-me respirar por alguns segundos.
Só por alguns segundos.
Mas eles duram pouco, pois no milésimo seguinte, o grito alarmante
me obriga a acender o meu consciente em estado de vulnerabilidade.
— Não!
Acontece rápido.
Nossos corpos se separam rapidamente.
Perco a capacidade de respirar quando abro os meus olhos abatidos e
vejo o corpo de Kelly passar à minha frente como um vulto, colocando-se à
nossa frente como um escudo ao mesmo tempo em que dois disparos
explodem no salão e estremecem a minha carne.
Só consigo compreender o que acontece quando os respingos de
sangue voam para o meu corpo, e atordoado, observo o salão apenas para
perceber que um dos homens havia se arrastado até uma das armas jogadas
ao chão e disparou em nossa direção.
Kelly colocou-se à nossa frente.
Especificamente, à frente de Clarke.
Alguém imediatamente dispara contra o infeliz, apagando-o de vez
enquanto eu em completo terror e paralisação, ajoelho-me diante do corpo
de Kelly e tateio sua pele, encharcando minhas mãos com o seu sangue
apenas para me dar conta de que é real.
Ela foi atingida.
Na minha frente.
O desgraçado sabia que eu me colocaria à frente de Clarke, sabia
que eu sou inteligente o suficiente para prever o seu ataque. Ele contava
com isso.
Contava que fosse o meu corpo caído contra o chão.
Mas o que ele não contava, é com minha vulnerabilidade que
substitui a minha inteligência e reflexo.
Kelly foi mais rápida do que eu.
Malditamente rápida!
— Não, não, não, não… — Pressiono o ferimento, observando a sua
face inexpressiva fitando-me de volta. — Porra!!!!!!!
Ouço passos.
Vejo a multidão aparecer ao nosso redor.
Vejo Hyuk ajoelhar-se ao meu lado.
Vejo Williams ao meu lado, tentando erguer-me pelos braços e ouço
pedidos de socorro direcionados a enfermaria.
Mas não vejo mais nada.
Só sinto dor.
Só sinto culpa.
Caos.
É tudo o que atraio.
Não posso proteger nada.
Não posso proteger ninguém.
E agora eu entendo a maldição que carrego junto a mim, pois onde
eu estiver não haverá uma única alma digna de salvação.
Tampouco a minha.
— Kelly… — Clarke chora, caindo de joelhos ao meu lado. —
Kelly, e-ela…
Seus olhos estão em mim.
Ela tenta me entender. Tenta entender a minha dor, o que estou
pensando.
Mas eu a proíbo.
Sou um mar de decepção ao chorar diante do corpo de Kelly
banhado em sangue, só sei chorar por uma culpa imensurável, uma dor
inconsolável…
Nenhuma palavra sai da minha boca.
Nenhum som.
Nenhum ruído.
Não ouço quando Hyuk grita em direção aos enfermeiros que
invadem o salão, não ouço quando Williams gesticula em direção aos
soldados ao berrar, não ouço quando Clarke parece falar comigo ao meu
lado.
Sequer reajo quando o corpo de Kelly é levado para fora do salão.
Sigo de joelhos, sem reação, com tanta dor que sequer posso
colocar-me de pé.
Decepção.
É o que eu sou.
Para tudo e para todos.
No fim das contas é horrível saber que Marcus sempre esteve certo.
Nunca serei merecedor de nada.
Só da desgraça.
E não importa o quanto doa, o quanto eu me culpe por isto no futuro,
o quanto eu queira voltar atrás e ter feito as coisas de uma forma diferente,
nada vai apagar o que sinto neste exato momento. A sensação da
impotência junto da dor é um mix de sentimentos capaz de matar qualquer
fio de vida dentro de um ser humano, pois tudo o que você quer é conseguir
fazer as coisas da forma correta, mas sabe que ela será dolorosa.
Ainda assim, é uma garantia de que obterá sucesso em sua missão.
Vai doer pra caralho abrir mão do que lutei por anos.
Vai doer pra caralho lidar com seu desprezo ao vê-la crescer
acreditando que eu a abandonei.
Mas que outra opção eu tenho?
É minha única garantia de que ela ficará bem.
Então eu irei embora, para longe daqui. Todos ficarão melhores sem
mim.
Um trágico fim.
Assim como eu sempre mereci.
Me levanto, ignorando-a ao meu lado e agindo como se não me
importasse com a sua dor. Caminho até Williams que massageia a sua
têmpora em um estado perturbado enquanto os soldados parecem tão aflitos
quanto nós, afinal, desta vez conseguiram bagunçar tudo o que construímos
com uma facilidade de impressionar.
Parabéns, Marcus, seu grande filho da puta.
— Williams. — Chamo por ele, observando-o com dificuldade
devido aos olhos nublados pelas lágrimas.
Ele ergue o olhar, chorando assim como eu.
Destruído.
Está de coração partido, esperando que Kelly sobreviva, assim como
eu conto com todas as minhas forças que ela suporte mais esta barra.
Só mais uma.
Sei que vai.
Ela é forte.
Tem que ser.
— Ordene que alguns soldados levem Clarke e o irmão em
segurança para a França agora mesmo. — Digo a ele, enxergando o pavor
em seu olhar diante de minhas palavras. — Não posso protegê-la. Não
posso proteger ninguém.
Lágrimas escorrem de meu rosto sem permissão, e vejo no olhar de
Williams o quanto ele sente muito que eu tenha chegado a esta conclusão.
Não é surpresa alguma.
Estava tão óbvio.
— Tem certeza disso? — Pergunta, confortando-me com uma carícia
no ombro.
Pisco algumas vezes, derramando outras lágrimas no processo.
— Só faça.
E é exatamente o que ele faz ao tomar a mão para si e me deixar
sozinho novamente, esperando pela cena que irá me atormentar pelos
próximos anos.

Do outro lado do salão, Clarke está sentada em uma cadeira


enquanto chora. Seus olhos não encontram os meus, e eu agradeço por isso,
porque quando Williams atravessa a porta novamente com alguns soldados
carregando malas em suas mãos, eu finalmente consigo aceitar que esta de
fato é uma despedida.
— Clarke. — Williams a chama, fazendo com que ela erga o olhar
para encontrá-lo. — Venha até aqui, por favor.
Ela o faz.
Não faço contato visual.
Vai doer menos se eu o evitar.
— Onde está o seu irmão?
Ela suga o nariz, vejo pela visão periférica o erguer de seu braço ao
secar o rosto.
— Dormiu com Marta.
Williams assente.
— Acompanhe os soldados até o estacionamento enquanto
buscaremos seu irmão para acompanhá-lá.
Ouço seu resmungo insatisfeito e me preparo para a situação
seguinte.
— Por quê? — Questiona, sei que ela me encara por alguns
segundos mas eu continuo de cabeça baixa, sem fazer o maldito contato
visual. — Para onde irão me levar?
— Para um lugar seguro.
Ela está me observando.
Sei que sim.
E por este maldito motivo, me obrigo a travar a mandíbula com
força para conter as lágrimas.
— Jay? — Sua voz chorosa me parte a alma. — Jay, você vai junto,
não vai?
Fecho os punhos ao lado do corpo, contendo a tremedeira em
minhas pálpebras.
Porra, por que tem que ser tão difícil?
Por que tem que ser tão doloroso?
Inferno. Inferno.
— Não. — É Williams quem responde. — Ele não vai.
Ele sabe que se a primeira palavra sair da minha boca, desistirei
dessa ideia estúpida e vou mantê-la comigo. Mas não é isto que precisamos
neste momento e todos nós sabemos disso, uma guerra está para ser iniciada
e se Clarke estiver no meio dela, sei que ela será ainda mais devassa.
Ela merece proteção.
Merece conforto.
E não posso dar isto a ela.
— Então eu não vou a lugar algum. — Sua voz adota um tom
elevado. — Jay, você prometeu que estaríamos juntos!
Suas mãos tocam as minhas e ela busca o meu olhar, tão desesperada
que sinto o tremor de sua pele contra a minha.
É demais para mim.
É demais para suportar.
Aperto os olhos, mordendo a língua com força para conter a vontade
de olhar para ela e dizer com todas as palavras que minha decisão é
unicamente por amor.
Mas seria a minha ruína.
Então, sem conter as minhas ações, eu me viro de costas e permito
que a primeira lágrima deslize por minha face ao constatar o silêncio.
Mas não há escolha.
É por amá-la.
— Levem-na. — É tudo que consigo dizer.
Então acontece.
Seu choro me rasga de dentro para fora, seus soluços esmagam meu
coração e seus gritos por meu nome sentenciam minha alma ao buraco mais
fundo que possa estar. Ela grita, pede por favor, chama por mim, me
implora e quase cedo.
Quase cedo.
Mas me mantenho exatamente no mesmo lugar, mesmo com as
lágrimas jorrando de meus olhos sem controle algum, mesmo com a alma
destroçada e o coração quebrado, eu reúno todas as minhas forças até ouvir
o seu choro desaparecer escadaria abaixo.
Fico na mesma posição por minutos, chorando, sofrendo em um
silêncio angustiante. Williams não me conforta, sabe que preciso desta dor
no momento e que não há nada a ser feito para fazê-la parar.
Só depois de derramar outras insistentes lágrimas, eu me permito
descer as escadas com rapidez em direção ao estacionamento para vê-la
partir. Mesmo que de longe, estarei ali para deixar com ela os restos de meu
pobre coração.
Chorando, só paro de andar quando desço o último degrau e observo
o estacionamento vazio com um único carro estacionado no centro. Há
malas deixadas no chão ao seu lado, mas os faróis desligados e as portas
fechadas não me dão alternativa senão acreditar que está vazio.
Já se passaram trinta minutos desde que Clarke foi levada do salão.
Então onde ela está? Por que não estão preparando-se para sair?
Curioso, eu me aproximo e caminho pelo estacionamento de ponta a
ponta, vasculhando cada canto buscando por sinal de soldados em seus
postos ou de Clarke e seu irmão. No entanto, quando chego ao fim do
estacionamento e encontro o completo breu, meu coração chega a palpitar
dentro do peito.
Infinitas possibilidades.
Todas lutando para serem removidas de minha mente.
Não.
Ela está bem.
Meu pensamento não dura muito, no entanto, pois quando volto a
caminhar para o centro do estacionamento e paro diante do carro
centralizado, a porta é aberta e o meu corpo empurrado agressivamente ao
chão.
Atordoado, tento abrir os olhos para enxergar o que acontece.
Mas é tarde demais, pois antes que a coronha de uma arma colida
contra minha face, ouço as palavras que me corroem toda a sanidade que
restou.
— Você é tão inocente que dá pena. Acreditou mesmo que
entraríamos simplesmente para morrer sem benefício algum?
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA

Ando amargurado.
Buscando por um objetivo na vida que não seja me tornar um
assassino para caçar meu próprio pai pelo mundo.
Estou há meses aqui.
Ainda tento compreender as palavras de Eleanor, ainda tento
compreender o meu propósito de vida e qual o ciclo que preciso quebrar.
Ela é uma incógnita.
Eu me levanto todos os dias, me reúno com os caras e treino horas e
horas, criando músculos onde sempre existiram os ossos aparentes. Estou
me tornando um homem, tudo está cooperando para que eu consiga sentir
que sou um ser humano.
Um ser humano que se alimenta, que caminha com as próprias
pernas, que tem livre arbítrio, que pode sorrir, que pode falar e fazer
perguntas sem temer a surra que viria em seguida.
É libertador, embora eu me sinta como um peixe fora d’água. Como
se me faltasse alguma coisa.
Temo que eu tenha me habituado com a vida infeliz ao lado de meu
pai, assim como me habituei as surras e as punições. Agora eu sinto como
se quando ela aparecer novamente, a dor será ainda mais dilacerante do
que qualquer outra vez.
É assim que funciona.
Ele me educou para isto. Para esperar pela dor e me preparar para
senti-la.
O silêncio me incomoda tanto que cansado de esperar por uma
solução para a minha amargura, me levanto e caminho pelos corredores do
prédio em busca de uma mínima distração que pode me tirar desta solidão.
Caminho por entre os salões, observo os caras treinando em
conjunto uma espécie de luta livre. Eles comemoram e parecem se divertir
tanto quanto eu o fiz na última vez que pratiquei.
Foi bom.
Me senti forte, me senti capaz de ignorar a angústia que me
preenche todas as vezes que volto para o meu quarto e observo o teto sem
cor, esperando por algum objetivo de vida.
A vida aqui é libertadora, não posso negar. Os caras são receptivos,
embora ajam como se eu fosse um iniciante.
Não é a minha primeira vez extravasando em lutas.
Este hobbie já faz parte de quem eu sou desde que aprendi que a
dor de um soco causado por um desconhecido nunca será mais doloroso do
que um causado por meu pai.
Eu tiro de letra.
Não é nenhuma novidade.
Observando uma ou outra luta, movo meu olhar até a entrada no
salão quando avisto Williams, o líder, invadir o lugar e cumprimentar
alguns caras amigavelmente.
Ainda não sei o que pensar a seu respeito. Tudo o que sei é que ele é
bom em reparar em mim.
Pois mesmo que ele fale com os demais integrantes, seu olhar está
repousado sobre mim. Parece investigar a minha expressão.
Fico parado, esperando até que ele venha até mim.
Não vai demorar muito.
Pessoas como ele curtem fazer perguntas quando não conseguem
desvendar um olhar.
Encosto em uma das paredes, sentindo a minha cabeça doer por
tanta informação que me traz um desconforto sem igual. Preocupação é a
principal delas.
Quando fugi de casa com a ajuda de Eleanor jamais pensei que meu
pai fosse aceitar isto de bom grado, já que eu sempre fui aquele ao qual ele
conta com a cooperação. É compreensível que eu esteja tão aflito, pois
conheço aquele que me colocou no mundo.
Ele nunca aceita a derrota.
Um dia a cobrança vem, e sei que independente de quando venha,
será igualmente dolorosa.
— Está pensativo. — Ouço a voz de Williams ao meu lado e me viro
de imediato, estranhando o fato de não ter notado a sua aproximação. Ele
sorri com a minha surpresa. — O que se passa na sua cabeça para que
baixe a guarda desta maneira?
Franzo a testa, odiando estar decifrável.
Odeio sair da minha zona de conforto.
— Nada. — Sou direto. — Eleanor não aparece há dias. — Constato
o óbvio, esclarecendo que tudo que desejo são respostas.
Ela não aparece desde a nossa última conversa sobre a quebra de
um ciclo. Me deixou aqui, confuso, querendo saber o que tenho que fazer
para finalmente me sentir útil.
No entanto, até o momento, tudo que sinto é que sou unicamente
inútil.
Williams cruza os seus braços, suspirando ao meu lado.
— Não sei dizer se ela volta.
Sua resposta me faz encará-lo de imediato.
Todas as pessoas podem considerar estúpido o quanto me apeguei a
uma pessoa que mal conheço pelo simples fato de ter me resgatado.
Mas é exatamente isto que aconteceu.
Eleanor e sua bondade ganharam um espaço único em meu peito,
pois ela foi a primeira a oferecer este tipo de demonstração a mim.
A oportunidade de viver, não sobreviver.
Acreditar que não a verei novamente esmaga meu peito de uma
forma angustiante, pois eu realmente criei uma afinidade com a mulher que
desconhecia até três meses atrás.
— Como assim? — Pergunto, minha voz falha no processo. — Onde
ela está?
Williams observa a luta que tinha a minha atenção a alguns
segundos, mas vejo o movimento de sua garganta ao engolir em seco.
Parece tão incômodo quanto eu.
Embora sua expressão seja sempre tão rígida.
— Em uma missão para matar o seu pai. — Seus olhos encontram
os meus como flechas incendiadas. — Isso fere você?
Me impressiono com a rapidez com a qual balanço a cabeça em
negativo.
— Ela está sozinha? — Há terror em minha voz. — Meu pai pode
ser traiçoeiro quando quer, ela estar sozinha para matá-lo é um erro. Ele
vai destruí-la.
Meu pai vai matá-la.
Sem remorso.
Sem hesitar.
Pois é este o seu plano, destruir as vidas de qualquer um que ouse ir
contra as suas vontades.
Pensar na hipótese de receber a notícia de sua morte me apavora de
uma forma tão agressiva que sinto o ar fugir de meus pulmões. Nunca me
senti tão decidido a ajudar alguém a matar o homem que deseja me
destruir.
Mas não por esta razão.
E sim pela possibilidade dele arrancar uma das únicas pessoas a
enxergarem a minha alma nua e crua.
— Ela é treinada para isso. Há soldados com ela, mas ainda assim
não posso intervir. Estou em posição de receber ordens, não de decretá-las.
Me viro.
— Me diga onde ela está. — Peço, sentindo-me tão apavorado que
meus olhos ardem. — Por favor, me diga.
— Não posso. — Afirma. — Mas não se preocupe, ela ficará bem.
Assim como você.
Ele se vira e me deixa exatamente onde estou, com o coração
doendo de pavor enquanto os pensamentos me levam ao paradeiro de seus
filhos. Da dor que eles sentirão se ela for morta para eliminar um homem
como meu pai.
Ela não merece esse fim.
Seus filhos não merecem sofrer pela ausência da mãe que tanto os
protege.
Meu pai me feriu por toda a minha vida, ele me machucou de tantas
formas que até hoje não consigo encontrar os restos dilacerados que me
foram arrancados. Se alguém tem motivos o suficiente para matá-lo, sou
eu. E embora eu tema falhar no processo, ainda sim estarei lá por Eleanor
assim como ela esteve lá para mim quando eu acreditei ter perdido as
esperanças.
Não importa o que eu faça, vou encontrá-la.
Vou impedir que ela destrua a sua vida.
Não importa o quanto eu seja fraco para bater de frente com meu
pai, eu vou tentar ser forte até o fim.
Por ela.

Fujo do prédio quando a noite cai e a lua brilha no céu estrelado. A


chuva fina molha o meu casaco e tudo o que faço é cobrir a minha cabeça
com o capuz antes de ignorar o resto do mundo, embora não saiba para
onde devo ir.
Atravesso becos, ruas escuras, ignoro o peso das gotas grossas que
passam a cair do céu e batem contra minha cabeça. Já estou habituado a
elas.
Sigo um caminho desconhecido, sem saber exatamente qual deles
me leva até a minha casa. De fato, este precisa ser o primeiro lugar a ser
vasculhado. Eleanor mora na casa à frente junto aos seus filhos, sei que é
onde ela deve estar.
Preciso convencê-la a desistir dessa ideia estúpida.
Ou ajudá-la a concluí-la.
Tanto faz.
Só não quero vê-la morrer.
Só não quero me sentir mais angustiado do que já me sinto.
As vezes que passeei por estas ruas fora junto ao meu pai em seu
carro, o que facilita que eu reconheça algumas esquinas ou outras. Sigo
exatamente por elas, mergulhando meus pés em poças d’água e precisando,
hora ou outra, parar para respirar quando a água da chuva escorre pelo
meu rosto e nubla a minha visão.
Corro quando avisto casas luxuosas invadirem o novo cenário da
cidade, tal como um bairro de engomadinhos. O que me leva a acender a
chama da esperança, no entanto, é avistar a rua mais conhecida por mim
como ninguém.
A chuva cai do céu em pancadas agressivas.
Raios explodem no horizonte.
Mas não me atrevo a parar de correr.
Preciso encontrá-la.
Ofegante, avisto luzes amareladas em uma distância tão próxima
que me obrigo a acelerar o passo, esticando as pernas até o limite para
alcançar as casas que nunca desejei tanto estar tão próximo.
No entanto, meu mundo congela e meus pés derrapam no meio do
asfalto, contendo meu caminhar acelerado quando ouço um disparo.
É um tiro?
Isso foi um tiro?
Merda!
Não estou em minha casa ainda, ela está no fim da rua, ela está
mais à frente. Mas é quando vasculho cada canto da rua deserta e
encharcada, que me sinto em uma enrascada maior do que posso suportar.
Meu peito sobe e desce em uma respiração descontrolada, engulo
tanta água da chuva quando ergo os olhos ao céu, que poderia mesmo
pedir ao Deus lá de cima para que me leve agora mesmo, para que me
impeça de viver o absoluto terror, no entanto, o que peço é para que ele me
dê forças para impedir uma barbaridade de acontecer esta noite.
Para que ele não a deixe morrer.
Então, sem hesitar, corro em direção ao disparo sem esperar por
qualquer outro pensamento que possa desviar o meu caminho.
Williams disse que ela estaria em uma missão.
Ela já começou?
Ela já está agindo contra meu pai?
Inferno, eu preciso impedir que…
Meus pensamentos são silenciados quando invado um beco escuro e
avisto um corpo caído contra o chão.
A chuva cai do céu em uma força exagerada.
Há um carro com as portas abertas logo ao fim do beco, nele não
há ninguém. Absolutamente ninguém. Tudo que posso enxergar é o corpo
encharcado no chão como se estivesse… Sem vida.
Imediatamente me aproximo sem hesitar, sem conseguir desviar o
olhar para qualquer outro ponto que não seja o corpo no chão.
Não consigo respirar direito.
Não consigo controlar as batidas do meu coração.
Não consigo fazer merda nenhuma quando meus olhos reconhecem
a vestimenta típica de Eleanor. As roupas estão encharcadas pela água que
cai do céu, mas é o escarlate do sangue que me convence de que esse não
pode ser a porra de um sonho.
É real.
Porra, é real.
Seu cabelo está espalhado pelo asfalto e ao lado de seu corpo um
revólver brilha em meio à escuridão, mas nada disso tem importância
quando estou diante de seu corpo, ajoelhado, tocando seu ferimento,
tocando sua face e conferindo o seu pulso.
Meu coração está doendo tanto.
Essa merda dói tanto.
Que inferno de vida miserável!
Eu perco tudo que tenho, perco todos que tenho.
A solidão nasceu junto a mim, eu nunca poderei viver uma vida com
pessoas reais, sendo amado e sendo acolhido porque meu pai decidiu que
minha vida será um inferno enquanto negar uma vida ao seu lado.
Ele irá destruir tudo e todos que cruzarem o meu caminho.
As lágrimas jorram de meus olhos ao passo que tomo a face de
Eleanor em minhas mãos, sacudindo-o para que ela abra os seus olhos.
Para que continue a lutar.
E quando ela o faz, quando Eleanor com o rosto encharcado pela
chuva, abre os seus olhos e eles encontram com os meus, um mínimo
sorriso brota em seus lábios úmidos.
Choro. Choro. Choro.
Que dor infernal!
— Aí está você. — Ela diz com dificuldade, fazendo uma careta por
ser tamanha sua dor. — Meu salvador.
Soluço, retirando o meu moletom e jogando-o desesperadamente
por cima de seu corpo, tapando o seu ferimento e pressionando-o com certa
força, arrancando de seus lábios alguns gemidos dolorosos.
Não faço ideia do que fazer!!!!!
Deus, por favor, não me abandone!
Por favor, por favor, por favor…
— Shhhh… — O toque de sua mão em meu braço me leva a fita-la.
— Não há o que ser feito por mim agora…
— Não, não, não… — Meus olhos nublados me impedem de
enxergá-la perfeitamente. — Por favor, não faça isso comigo! Eu preciso
que você viva!
Eleanor sorri.
Como um anjo.
Como se não temesse a morte.
— Floyd planejava caçá-lo esta noite. — Ela revela, acariciando
minha face com a ponta de seus dedos. — Sei que ele explodiria o mundo
para colocar as mãos em você outra vez. Então eu lhe dei uma nova
distração.
Confuso, eu abaixo a cabeça enquanto as gotas reunidas em meu
cabelo pingam sobre seu busto.
— Roubei arquivos da Luxury. Eu os escondi em um pendrive
escondido em uma caixa, está em um lugar seguro… — Eleanor tosse,
sangue escorre pelo canto de sua boca e eu sei que não temos muito tempo.
Por mais que doa admitir.
Balanço a cabeça em negativo, negando-me a acreditar que ela
tenha dado a sua vida para evitar que a minha fosse roubada.
— Não sei se há algo de relevante, mas eu o fiz acreditar que sim.
Você estará livre para se preparar para a guerra que se aproxima, Lewis.
— Seus dedos capturam as minhas lágrimas. — Minha hora nesta terra já
acabou. Preciso deixar que minha alma descanse.
— Não… — Minha voz embarga. — Por que você fez isso? Por que
fez isso comigo?
— Por que você é o futuro. É o único que pode quebrar esse ciclo.
Sobreviva, Lewis, encontre a caixa e guarde tudo que há nela com a sua
vida. Você vai sofrer, não posso dizer que não irá… Mas escute bem, tenho
certeza de que no fim de tudo, você será o homem mais realizado deste
mundo.
Ela tosse novamente.
Eu aperto os olhos, sentindo-me um garoto frágil e pequeno demais.
— Como você pode ter tanta certeza?
Seus dedos escorregam, caindo sobre seu corpo quando Eleanor
derrama algumas lágrimas pelos olhos entreabertos e elas caem em seu
rosto em lentidão.
— Eu vejo em seus olhos. Sei que nunca poderei me arrepender por
ter salvo a sua vida. Você fará tudo corretamente.
Desabo sobre seu corpo.
Choro como uma pobre criança indefesa.
Ninguém nunca acreditou em mim desta maneira, sei que ela
abdicou de muitas coisas ao atrasar o meu pai para que eu pudesse ter
mais tempo para continuar fugindo de suas garras até que ele desista de
uma vez por todas. Eleanor está prestes a deixar os seus filhos, a deixar o
seu dever, a deixar a sua vida, a sua história…
Para que eu possa viver.
Para que eu possa quebrar um ciclo que desconheço.
— Eu prometo… — Engasgo entre um soluço e as palavras. — Vou
cuidar de tudo que deixou para trás.
Ergo a cabeça, sabendo que nunca poderei suportar o peso desta
culpa sobre meus ombros.
Seu olhar se perde em algum ponto do horizonte, seus lábios
entreabertos recebem a água da chuva e o corpo amolece abaixo de mim,
então diante desta noite horrenda e destas lágrimas que caem do céu em
um choro desolador, eu vejo o último sopro de vida deixar o seu corpo.
Levo tempo para processar a informação.
Só sei chorar.
Só sei culpar minha existência.
Pois se eu não estivesse aqui, nada disso teria acontecido.
Só sei segurar o seu corpo e deixar que as lágrimas caídas do céu
se juntem aquelas reunidas pelas minhas profundas e amargas dores
incuráveis.
Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela
está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta.
Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está
morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela
está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta.
Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está
morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela
está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta.
Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está
morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela está morta. Ela
está morta. Ela está morta.
Por minha culpa.
Não sei em que momento deixo de chorar, em que momento os
passos se aproximam contra as poças de água ao chão nesta tempestade,
em que momento me forçam a abrir os meus olhos e de que maneira eu
reconheço os soldados.
Mas acontece.
E no segundo seguinte, estou desolado, carregando seu corpo até o
carro ao qual me ordenaram para que eu fizesse.
Sem chão.
Sem sentir absolutamente nada senão a culpa.
Sem enxergar saída.
Faço tudo o que me mandam.
Mas nada serve para que eu possa respirar novamente.
Tudo dói.
A culpa dói.
E nunca conseguirei me habituar a ela.
Hoje dói mais do que ontem.
Amanhã doerá mais do que hoje.
E assim será até o dia que eu morra.

— Porra!
As lágrimas caem de meus olhos como água de um riacho. Sem
controle. Nunca me senti tão impotente em toda a minha vida, tão inútil e
pequeno, frágil e indefeso.
Choro mesmo. Sem remorso.
Até soluçar.
Estou sozinho no jazigo, caído no chão como um saco de bosta
chorando como uma criança, sem coragem o bastante para me colocar de pé
e correr atrás dela.
Para impedir que fuja.
Que saia.
Que me deixe.
Sou um imbecil do caralho, afinal, quando foi que existiu algum
espaço para os meus desejos?
Eles são inúteis.
Não importam.
Mas agora, a manta que cobria os meus olhos finalmente parece cair
por terra. Agora eu vejo. Eu vejo o quanto a machuquei, o quanto a
destrocei quando acreditava que estava protegendo-a.
Já me senti um grande bosta muitas outras vezes, incapaz e fraco,
mas nada, nada pode se comparar com a dor que atravessa meu peito e me
impede de respirar. É como se eu estivesse me afogando, me matando
sozinho por um ar que eu não quero inalar.
Não quero sentir.
Não quero acreditar que eu causei tudo isto.
Não quero acreditar que eu fui burro o bastante para deixar que meu
pai controlasse minhas ações.
As marcas em seus pulsos…
Porra.
Ela estava ferindo a si mesma por todo este tempo enquanto eu me
feria ao mantê-la afastada.
Tudo porque acreditava que a estava protegendo.
Mas ela está tão ferida, inferno. Tão destroçada de uma maneira que
nunca a vi, está quebrada de tantas formas que duvido da minha capacidade
de consertá-la.
Eu serei capaz?
Serei capaz de curar as feridas que eu causei?
Não me lembro de uma vez na qual eu tenha me sentido tão
quebrado. Nem mesmo quando estava na cela, fantasiando com a vida real
que já não cabia a mim, desejando-a por perto, desejando o seu perdão,
desejando o seu amor capaz de me curar…
Eu não me senti tão inútil.
Porque antes eu tentei.
Eu tentei tê-la comigo. Eu tentei lutar para que pudéssemos quebrar
o ciclo de nossos destinos, tentei desviar da maldição e tentei vencer. Tentei
mesmo.
E eu falhei.
Tudo o que eu pensei quando fui liberto, era que eu deveria mantê-la
afastada pois a maldição de seu futuro está em mim. No homem que ela
confiou a sua vida e seu coração, e eu precisei arrancar o meu do peito para
manter o seu funcionando.
Isso até eu descobrir que não há um no meu peito, tampouco no
dela.
Quebrados.
Esmagados.
Dilacerados.
Manipulados.
— Sinto muito. — Ergo o olhar, observando a lápide de Eleanor
com os olhos nublados e o rosto encharcado. — Sinto muito por quebrar
minha promessa.
O soluço me rasga a alma.
— Não sei mais o que fazer. — De joelhos, eu fito a caligrafia de
seu nome como se ela pudesse me enviar o seu socorro. — Eu te prometi
que manteria ela à salvo, e eu fiz isso por todos esses anos. Mantive ela
longe de mim.
Me sinto sufocado.
Sem ar.
Sem oxigênio.
Sem propósito de vida.
Só sei chorar e desabar como nunca o fiz.
— Mas hoje eu tive a certeza de que minha ausência a quebrou mais
do que minha presença. — Engasgo com um soluço. — E eu nunca vou me
perdoar por isso. Nunca vou me perdoar por partir o coração que manteve o
meu funcionando mesmo quando eu queria arrancá-lo do peito.
Levo as mãos aos olhos, a cabeça, ao rosto, arrastando a palma por
todos os cantos como se pudesse amenizar o buraco incurável que sinto em
meu peito. A sensação de morte é presente, pois é como se todos os meus
órgãos tivessem desistido de lutar para me manter vivo.
— Eu a amo tanto. — Soluço, enquanto as lágrimas seguem
jorrando de meus olhos. — Tanto, tanto, tanto, tanto…
Meu pai me estragou tanto.
Ele me amaldiçoou.
Me jurou a infelicidade.
E agora eu entendo a dimensão de seu desejo, pois eu nunca estive
tão arruinado. Sem controle de minhas emoções, eu só sou um pedaço de
carne no prato de todos aqueles que lutaram para me ver definhar.
É o que eu sou.
Um ninguém.
— Espero algum dia poder dizer isso a ela sem temor. — Suspiro,
consciente de que nunca poderei fazê-lo ao mirar seus olhos cobertos por
um ódio ao qual sou merecedor.

Arrasto os pés pela entrada do prédio após estacionar o meu carro de


qualquer jeito ao lado de fora.
Estou embriagado pela dor, a racionalidade já não existe e meus
olhos fundos e doloridos pela quantidade de tempo em que estou vagando
pela cidade sem rumo algum enquanto tento me esquecer do meu
sofrimento indicam o óbvio.
Estou deplorável.
O sol já se pôs, a lua já apareceu no horizonte e eu ainda não
consegui encontrar um propósito para minha existência.
Meus pés não conseguem se erguer do chão para movimentar o meu
corpo corretamente, e eu sei que a razão para tal é a quantidade de cocaína
que ingeri enquanto estive fora.
Não estou conseguindo raciocinar.
Só sinto dor.
Só sinto culpa.
Só sinto vontade de chorar e chorar e chorar.
— Jason? — Ouço alguém chamar por mim, no entanto, sequer me
dou ao trabalho de olhar em sua direção.
Continuo arrastando os pés pelo prédio sem me importar com a
quantidade de olhares que recaem sobre mim.
Não me importo com o quanto pareço fraco.
Não me importo com minha aparência débil.
Não me importo em me parecer covarde.
Na verdade eu sou um, sou mesmo.
— Jay? — Desta vez, reconheço a voz de Lexie. — Jason, o que
aconteceu? O que…
Não a respondo.
Não consigo.
Continuo andando, ignorando o mundo ao meu redor e só consigo
parar quando invado a sala de Williams e caio de joelhos diante de sua
mesa.
Eu choro.
Novamente, me debulho em lágrimas.
É só o que eu sei fazer.
— Porra, que merda aconteceu? — Ouço o som de sua cadeira
sendo arrastada. Ouço seus passos. Ouço sua voz. E com os olhos nublados,
o vejo ajoelhado diante de mim segurando a minha face de ambos os lados.
— Jason, olhe para mim. Olhe para mim, sou eu.
Sinto seus dedos tocarem todo o meu rosto, assim como forçar as
minhas pálpebras para olhar em meus olhos.
— Ele está drogado. — Ele diz a alguém. — Chame alguém, chame
o Hyuk, a enfermeira, qualquer um!
Caio em seu peito, apoiando minha testa em seu ombro. Não sinto
nada, embora eu também possa sentir dor.
É confuso.
É doloroso.
É brutal.
— Eu não preciso de enfermeiros. — Consigo dizer. — Eu preciso
dela. Preciso que seu coração esteja inteiro, não quebrado como o meu…
Soluço contra sua camiseta social.
Sinto sua carícia em minha cabeça, seu abraço de conforto…
— O que você está dizendo? — Sua voz é hesitante. — Me diga o
que aconteceu.
Nego.
É vergonhoso dizer em voz alta o que eu causei.
Me sinto um lixo.
— Eu deveria ter matado o meu pai quando pude… Deveria tê-lo
mandado para o inferno quando tive a chance, então nada disso estaria
acontecendo… — Williams aperta o meu corpo contra si, abraçando-me
como nunca o fez. — Olhe para mim… Eu sou digno de pena.
— Não, porra. Não é. — Ele me abraça. — Não fale sobre si mesmo
desta forma.
Engasgo novamente, encharcando suas roupas com minhas lágrimas
que parecem estar presas há anos.
Dói tanto.
Porra, como dói.
— Eu deveria ter dito a ela a verdade. Deveria ter dito que sua mãe
morreu para me salvar. Que impediu que eu sofresse por toda a eternidade,
mas para isto, morreu em meu lugar. Eu deveria ter aberto a boca, deveria
ter dito que nós dois somos destinados a nos casar desde que nascemos e
que eu a mantive longe para impedir que meu pai tivesse acesso a ela. —
As palavras saem em disparada, rasgando-me a garganta como lâminas. —
Ela entenderia…
— Você fez tudo o que acreditou ser o certo. Não há nada de mal
nisso. Pare de se culpar. — Ouço sua voz trêmula, e sei que ele também está
chorando.
Todos vítimas.
Todos arruinados por um sistema amaldiçoado.
— Eu a arruinei tanto. Quebrei seu coração. — Puxo o ar com
dificuldade. — Eu não queria isso. Não vou conseguir viver com isso.
Ouço passos.
Alguém está correndo pelos corredores.
E é ao sentir mãos em minhas costas que eu entendo minha posição
de vulnerabilidade. Ninguém nunca me viu neste estado, sempre fui muito
bom em cuidar dos meus próprios assuntos e dores sozinho. Nunca precisei
de ninguém para me acudir, para me confortar.
Mas até mesmo o mais forte dos homens possui um ponto fraco.
E hoje todos os meus foram atingidos.
Pois todos são destinados a um mesmo alguém.
A única capaz de me destroçar.
A única capaz de me ferir como ninguém o fez.
A única capaz de fazer da minha existência um trágico erro do
universo.
— Jay, caralho. — É Hyuk. — Porra, me diz o que aconteceu.
Williams, o que houve? — Direciona a pergunta a Williams que se mantém
calado.
Não quero consolo.
Quero jogar para fora.
Quero me sentir como um ser humano, não como a máquina que
tenho sido desde o momento que saí da prisão.
Limitando minhas emoções.
Limitando minha humanidade.
Mas para isto existem consequências.
E as minhas acabam de chegar.
— Eu não quero mais viver. — Sussurro. — Acabe com o meu
sofrimento. Acabe com o sofrimento dela.
— O quê? — Hyuk exclama. Sua voz embarga. — Se levanta, Jay,
inferno. Levanta e pare de dizer coisas assim. Nós estamos aqui com você,
somos sua casa, sua família!
Choro sem parar.
Não sei se o efeito da cocaína torna tudo mais intenso, mas de
algum jeito eu não consigo parar de chorar e de me lamentar pelo passado
irreversível.
Não está no meu controle.
Não mais.
Não estou sendo uma máquina.
Estou sendo humano.
— Não é um bom momento… Você precisa ir… — Ouço Lexie
dizer a alguém.
Ergo a cabeça, finalmente abrindo os meus olhos como se eu já
soubesse exatamente quem estaria diante de mim.
E é olhando na direção da porta que eu a vejo. Seus olhos, tão
vermelhos quanto os meus, derrubam infinitas lágrimas ao constatar o meu
estado, mas as esferas não se desviam dos meus olhos em hipótese alguma.
— Eu o ouvi. — Ela diz, alto o bastante para que todos a ouçamos.
— É verdade?
Seus olhos não vão até outro alguém, e sei que a pergunta é
direcionada a mim.
Nunca me senti tão aliviado.
Embora tema a sua reação.
— Eu nunca quis ferir você. — Lamento, tentando manter meu
corpo sobre um joelho. Quando penso que vou cair, Williams ainda está me
segurando. — Eu nunca fiz nada para te machucar. Mas parece que todos os
meus feitos foram em vão, pois ainda assim você está despedaçada.
Não menciono o que eu vi naquele jazigo, sei que é um assunto que
cabe somente a nós. Mas sei que ela entende o que eu digo e, para ser
sincero, o que realmente me impressiona é a falta de mágoa em seu olhar.
Eu vejo dor.
Apenas dor.
— Você queria respostas. — Rio sem humor. — Aí está! Fui um
filho da puta para manter o meu pai longe da sua herança, mandei sua mãe
para um jazigo porque ela me deu uma nova oportunidade de vida, e forjei a
sua morte porque não pretendia te enviar para a França. Mas eu enviei,
Baker. Eu enviei. Te coloquei como prioridade mesmo com meu
sofrimento. E até hoje nós tentamos descobrir o que raios a levou para as
mãos dele. — Minha voz embargada é o único ruído no escritório. Sequer
ouço minha respiração. — Você e eu nascemos para estarmos juntos em
uma aliança de sobrenomes. E foi isso que eu estive tentando evitar até
hoje.
Vejo seus olhos arregalarem ao passo em que mais lágrimas
escorrem por sua face vermelha. Baker parece conter a respiração enquanto
seus olhos examinam a minha figura, procurando por qualquer fio de
mentira, embora ela saiba que não há um.
Não mais.
Quando eu encontrei aquela caixa, quando encontrei o arquivo que
revelava os planos de meu pai para nós e cartas de Eleanor para os filhos,
meu mundo despedaçou ainda mais ao constatar que ela já sabia de tudo
aquilo.
Ela sabia que eu estava destinado a destruir a vida de sua filha, e
ainda assim enfiou a sua mão no fogo e deu a sua vida para que eu pudesse
provar que eles sempre estiveram errados sobre mim.
Ela sabia de tudo desde sempre.
Sabia que eu chegaria até aqui.
Quebrado ou não, aqui estou eu.
Acreditando fielmente no par de olhos magoados e feridos que
podem me arrancar do fundo do poço com um único voto de confiança.
Foda-se o meu pai.
Foda-se a Luxury.
Foda-se o meu destino.
Foda-se o seu destino.
Foda-se os nossos sobrenomes.
Enviarei todos eles para o inferno se Baker enxergar uma parte na
qual sempre esteve aqui para e por ela.
Sei que se ela me der uma única oportunidade, além de
sobrevivermos ao caos que foi armado pelo meu pai, o caçaremos e o
faremos pagar por toda esta dor que nos causou.

CONTINUA…
Eu diria que Survivors é um desabafo.
Mas há diversos sentidos que podem ser interpretados de forma
totalmente errada à que eu realmente desejo. Então eu vou dizer que
Survivors é o meu refúgio.
Survivors apareceu na minha mente enquanto eu passava por uma
fase muito difícil da minha vida na qual pessoas próximas a mim saberão do
que estou falando.
É um livro cheio de camadas, de sentimento, de emoção, de amor,
de um transbordar imenso de infinitas emoções reunidas em um só lugar.
Foi assim que eu me senti quando comecei a escrever.
É por isso que, primeiramente, quero agradecer a mim, Roxie, por
tanta iniciativa. Eu nunca fui de expor o que sentia, nunca fui de falar ou
demonstrar o que muita das vezes me sufocava. Mas aqui, em Jason, em
Aspen e em suas cicatrizes, eu encontrei uma casa na qual eu precisava me
refugiar para sobreviver à minha própria mente.
E eu consegui.
Eles me ensinaram muitas coisas.
Eles me amadureceram.
E eu amo cada pessoa que se refugiou em nossa casa e encontrou
paz junto a nós.
Quero fazer um segundo agradecimento mais que especial à minha
mãe.
Você é para sempre a minha inspiração. Guerreira, batalhadora,
amorosa e, sem dúvidas, o meu girassol. Obrigada por sempre trazer luz à
sua estrelinha e fazer com que ela brilhe sempre que o desânimo tenta
apagá-la.
Obrigada, Bia Chagas, por ser uma das melhores amigas que o meu
trabalho me trouxe. Obrigada por me ouvir, por me incentivar, por me
orientar quando algo está errado, por levantar a minha cabeça e
principalmente, por demonstrar tanto afeto por eles tanto quanto eu. Você
tem um lugarzão aqui dentro. Te amo, amiga.
Obrigada, Kelly. M, por me ajudar quando nem mesmo eu
acreditava em meu potencial. Obrigada por ser amiga, companheira,
simpática e amorosa. Você é foda e eu nunca vou cansar de dizer isso pra
você. TE AMO MUITO. Nunca me esquecerei do quanto você me apoiou lá
no comecinho, quando eu sequer pensava em publicar o meu livro.
Obrigada, Talibah Casillas, por ter sido uma grande força em todo o
meu lançamento. Por ter me dado a sua mão e se desvirado junto a mim
para que o lançamento fosse perfeito, assim como eu sonhava. Você foi
caprichosa em cada detalhe, obrigada por ser incrível.
Obrigada, Ana Santos, Joh, Bily e Luana (com seus conselhos
maravilhosos). Vocês foram presente de Deus.
E obrigada, leitores, por estarem aqui.
Sem vocês eu não seria nada, tampouco teria a chance de colocar a
história de Jason e Aspen no mundo.
Amo vocês de todo o meu coração.
E espero ter conquistado o de vocês.
Até breve com a parte II.
OBRIGADA POR TUDO.

Roxie.

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