1 SURVIVORS (Caca e Cacador) - i Roxie
1 SURVIVORS (Caca e Cacador) - i Roxie
1 SURVIVORS (Caca e Cacador) - i Roxie
Está escuro. As ruas são iluminadas por alguns postes, e ainda assim
pareço ter dificuldade para enxergar com clareza.
Meus pés estão doloridos. Estou a algumas horas correndo pelas
ruas de Nova York completamente descalça, sem me importar com o fato de
ter sangue no asfalto a cada passo dado. Preciso despistá-los.
Não sei onde está Josh, se está vivo, se o levaram também, quem
são essas pessoas e quanto tempo exatamente estive naquele lugar. Não sei
absolutamente nada. Exceto, que neste momento, há uma SUV prata,
rondando todas as ruas de Nova York à minha procura.
Eu consegui fugir.
Eu consegui. Consegui me livrar daqueles homens... De suas mãos...
De tudo. De tudo que tenho certeza que sempre haverá traumas a serem
superados. Apesar de saber que será impossível.
Os meus pés doem. Minhas roupas estão rasgadas, alguns pedaços
de pano caídos pelo meu corpo nu. Ainda assim, não posso olhar para trás e
não posso pensar que eles estão me caçando como um animal por estas ruas
e ninguém parece se dar conta.
Lágrimas escorrem de meus olhos sem permissão, sangue mancha
meus pés e a dor já não existe. Adormeceu. Pedaços de vidro e pedras
minúsculas afundam na sola do meu pé, ainda assim, eu as ignoro. Nada
mais importa, exceto fugir e procurar por Josh.
Por favor, não esteja morto… Por favor, Josh, esteja bem!
De repente, o soar dos motores da SUV às minhas costas faz o meu
corpo estremecer e um arrepio sobe pela minha espinha. Sob as luzes
escassas da cidade, imersa no pavor imensurável que sufoca a minha alma e
me impede de respirar corretamente, o baque da compreensão estremece
todas as fibras do meu corpo.
Eles me encontraram.
Eu abraço meu corpo, respirando fundo, tentando levar algum
oxigênio para meus pulmões, mas tudo que consigo é ouvir os motores
indicando que o carro está próximo demais, e minhas pernas tão exaustas,
cogitam me deixar na mão dessa vez.
Tudo está perdido. Eles vão me levar para lá novamente, vão me
machucar novamente e nada disso terá valido a pena. Eu serei nada mais
que um brinquedo novamente, e jamais, verei Josh outra vez.
Me encolho, pronta para sentir o baque de ser atirada para longe e
arrastada para dentro do carro outra vez. Jogo meu corpo no chão sujo e
frio, totalmente rendida, sem forças, chorando e desesperada, quando sinto
duas mãos balançarem meu ombro. Com muita força.
— As! — Josh. — As... Acorde.
Sua voz doce e calma parece tão longe e tão perto... Parece
alcançável, por mais que eu saiba que não é verdade. Eu o perdi. Perdi meu
irmão para sempre.
— Irmã! Por favor, abra os olhos.
Outro chacoalhão.
Meus olhos se abrem bruscamente enquanto os raios solares
invadindo as janelas trazem um desconforto devido à sua sensibilidade.
Inspiro em busca de ar, em busca de um ritmo saudável para as
subidas exageradas do meu peito. Ergo meu corpo e minhas mãos
instantaneamente sobem para minha cabeça, sentindo a pontada aguda que
indica uma dor forte na lateral. Enxaqueca.
Vago os meus olhos lentamente pelo local, apenas para me dar conta
que estou no meu quarto. As paredes cor de avelã e a luz que adentra pela
janela parecem mais incômodas hoje. Encaro o raio de luz que atravessa as
cortinas e fecho os olhos, sentindo meu peito acalmar e a minha respiração
tornar-se lenta e regular.
Sinto uma mão no meu ombro.
— Foi apenas um pesadelo — É a voz de Josh. — As... Pensei que
os pesadelos tivessem diminuído.
Há algum resquício de mágoa em seu tom de voz, e eu o entendo. O
nosso passado não é bom e a nossa vida tampouco foi. Então, eu disse a ele
que meus pesadelos tinham chegado ao fim porque não queria preocupa-lo,
não queria deixar o meu irmão de dez anos triste por saber que sua irmã
mais velha ainda não aprendeu a lidar com o passado. Dizer que está tudo
bem e me esforçar para lhe convencer de que não estamos correndo perigo
me pareceu uma boa opção. Mas acho que subestimei meu irmãozinho.
— Deveria parar de mentir para mim, não sou mais uma criança.
Abro meus olhos e movo a minha cabeça para o lado, encontrando
seu par de olhos azuis me encarando de volta, suas sobrancelhas franzidas e
um bico fofo em seus lábios. Abafo uma risada e lhe estendo minha mão na
intenção de puxá-lo para um abraço. Josh demora alguns segundos
encarando a minha mão, mas acaba cedendo.
— Estou bem, Josh. Os pesadelos continuam, todas as noites, sem
exceção — explico, o prendendo em meus abraços e depositando um beijo
na pele macia de sua testa. — Estou aprendendo a lidar com eles ainda,
nunca é fácil enfrentar aquela noite outra vez, sentir o desespero outra vez,
e o medo de ter perdido você — engulo algo preso na garganta. Acho que o
medo de dizer as palavras erradas para Josh. — Mas garanto a você, se algo
estivesse errado eu diria na mesma hora. Acho que preciso enfrentar isso,
mas te juro, está tudo bem.
Não sei quando me tornei boa nas mentiras, principalmente quando
lhe digo que está tudo bem, quando na verdade, não sei quando o pesadelo
acabará de uma vez.
— Está bem — Ele cede. — Posso dormir com você todos os dias...
Não sei. Talvez a minha presença faça você se sentir melhor e não tenha
pesadelos.
Suas palavras me fazem sorrir.
Não sei quando Josh tornou-se mais do que uma criança. Ele parece
saber mais do que eu, parece saber exatamente qual é a nossa realidade e
talvez isso me entristeça. Não quero essa vida para ele, quero que Josh seja
uma criança feliz, livre, e normal. Ao invés disso, está em meus abraços
oferecendo-se para dormir com sua irmã de vinte anos para que não tenha
mais pesadelos assombrosos a noite.
Tudo que sempre quis foi protegê-lo, deixá-lo confortável e que se
sentisse seguro, contudo, acho que está sendo totalmente o contrário. Josh é
a minha força, e por ele estamos aqui. Em uma cidade pequena na
Califórnia, tentando ser pessoas normais e com vontade de ter tudo aquilo
que nunca fomos livres para ter.
Vida.
É até irônico imaginar que eu teria o luxo de vivê-la como gostaria.
— Que horas são? — pergunto, varrendo a cama com as mãos na
busca pelo meu telefone.
Josh resmunga, afundando a sua cabeça entre os travesseiros.
— Não…
No momento em que alcanço o meu telefone e noto as horas, solto
um xingamento, interrompendo a frase de Josh.
— Você está atrasado! — Me esforço em levantar da cama, mas
acabo presa entre os lençóis. — Cacete! — resmungo, sem paciência.
São quase oito. Josh deveria estar no colégio às sete, e bem, eu meio
que deveria estar no meu primeiro dia como atendente em uma cafeteria.
Nós estamos tentando ter uma vida normal, e isso também inclui fazer
coisas que pessoas normais fazem. Talvez ser a novata atrasada no primeiro
dia seja até normal demais, temo que eu esteja aprendendo rápido a viver
em uma cidade pequena.
— Talvez eu tenha desligado o seu despertador — confessa, com
sua voz tão baixa quanto um sussurro. — Não quero ir para a droga…
— Não xingue!
Josh suspira, abanando os braços ao lado do corpo e o batendo
contra o colchão.
— Tudo bem! Só estou dizendo que eu não preciso ficar sentado por
horas em uma sala cheia de crianças, colorindo pássaros e animais
extraterrestres — ele está sério, encarando o teto e parecendo indignado. —
É chato!
— Na verdade, não é não. É o que vai garantir um futuro para você.
Finalmente consigo me livrar dos lençóis e levanto, alcançando a
mala de roupas de Josh e o entregando uma muda de roupas para que se
arrume.
Josh me encara receoso, porém, estende as suas mãos e alcança as
roupas em minha mão. Ele sabe o quanto lutamos para isto, então, tudo que
pode fazer é apenas não retrucar.
— Eu te amo. — Sussurro para ele, observando-o se afastar a
contragosto com as roupas sobre um dos ombros.
— Eu também! — Sopra de volta, ainda irritado ao arrastar os pés
até o banheiro.
Observo-o com um mínimo sorriso nos lábios. Sinto um aperto no
meu coração por vê-lo crescendo e simplesmente se conformando que a
nossa vida nunca será feita de escolhas que nós julgamos melhores. Isso é
triste. Amargo. Ainda assim, eu nunca poderei ser mais grata pelo meu
irmão confiar que sempre farei as melhores escolhas para ele, mesmo que
doa em mim. Porque é tudo o que faço desde que restou apenas nós dois.
Estamos na cidade há apenas um mês e tudo que temos é um kitnet
minúsculo de um cômodo com apenas uma cama e uma geladeira. Não
temos armários, fogão, tampouco comida o suficiente para todos os dias.
Nossas roupas ainda estão em nossas malas improvisadas, ainda assim, sou
grata por ter ao menos eletricidade.
Não é uma casa enorme, tampouco luxuosa, mas é o que poderei
pagar com a pouca grana da cafeteria. Eu só espero que sobre alguma coisa
dela para que possa matar a fome de Josh.
Três dias.
Setenta e duas horas e quatro mil trezentos e vinte minutos sem
piscar os olhos.
Esse tempo tem sido um completo desastre. Josh me fez perguntas
sobre o que faremos para lidar com a situação, recebi ligações a respeito das
minhas faltas consecutivas no trabalho e meu subconsciente não permite
que eu feche os olhos nem por um minuto. Tenho medo de fazê-lo e
simplesmente tudo virar uma bagunça completa, sem emendas ou chances
de ser consertada. É como se eu quisesse estar atenta a qualquer movimento
suspeito a todo momento, tomada pela preocupação e medo.
Sinto que estamos sendo observados a todo tempo, a queimação em
minha nuca, o arrepio que sobe pela base de minha coluna e causa temores
em minhas pernas faz isso parecer ainda mais real. É como se fosse um
aviso, um alerta vermelho. O perigo está de volta, estou começando a
entender que não há escapatória para gente como eu, mesmo que a ideia
seja quase um sonho.
Mas não existe um final feliz para mim, afinal eles não existem.
Ninguém é inteiramente feliz, sempre há parcelas sombrias de uma tristeza
imaculada. Por mais que tente esconder, ocultar e dizer que não está ali.
Acontece que uma hora a conta sempre vem, porque ela vai aparecer, então
você entende que se enganar é um ato de covardia ainda pior do que
simplesmente aceitar que tem uma vida perfeita.
Não sou hipócrita.
Sei que a felicidade existe, mesmo que em pequenas parcelas.
E sei que ela deve ser a razão para eu me manter na mesma posição
dos últimos três dias segurando um revólver enquanto observo Josh dormir.
Saber que o tenho comigo, que ninguém pode tirá-lo de mim e que sua
existência é o que acalma a minha imensidão de caos, é onde está a minha
felicidade. Pura e límpida, porque quando há a presença do meu irmão, me
recuso permitir que os meus demônios poluam sua alma como fizeram com
a minha.
Não deve passar das 06h da manhã. Os raios solares que invadem as
frestas do quarto de hotel onde estamos passando as últimas noites com os
trocados que recebo de gorjeta iluminam as paredes cobertas por um papel
de parede antigo. Os pássaros cantam do lado de fora, assim como o som
estrondoso das músicas estouradas que ressoam dos quartos ao lado. Todas
as janelas e a porta estão trancadas desde que chegamos aqui há três noites,
além da barreira feita com uma cadeira debaixo da maçaneta.
O desconforto que sinto em meu corpo por estar na mesma posição
a tempo demais me traz alguns resmungos dolorosos quando alongo o meu
pescoço. Meus olhos ardem como se eu estivesse segurando o choro e meu
sistema nervoso não parece estar predisposto a funcionar corretamente, mas
meu consciente ainda funciona perfeitamente.
Minha audição é aguçada todas as vezes que ouço passos e ruídos
suspeitos vindos do lado de fora, apesar da maioria deles se tratar apenas do
casal de hipsters que se movem até o parapeito do andar para fumar um
baseado juntos. Sinto que estou enlouquecendo e que estou permitindo que
ele mexa com a minha cabeça, que me faça duvidar da minha capacidade…
Cacete, Aspen!
Durante todo esse tempo procurei não me importar com o fato dele
estar na cidade, apesar de estar assustada com o seu silêncio. E Cristo...
como eu odeio a sensação de um silêncio ensurdecedor. Sei que está
brincando com a minha cabeça e que voltou apenas para me mostrar que
sempre esteve no controle e que não serei capaz de ter uma vida que não o
inclua, mesmo que seja dolorosa, amarga e caótica. Ele jamais se importaria
com isso porque é exatamente o que lhe atrai. Caos.
No passado nós sempre fomos opostos.
Eu sempre fui a doce Sofia, aquela que acreditava em sua bondade.
Aquela que enxergava a sua face quando todos viam apenas a sua máscara.
Sempre fui a personificação da luz em sua vida, eu trouxe brilho para o
abismo que ele era. Em troca disso, sua escuridão me corrompeu. Ele
envenenou a minha alma e me tornou sombria, traiu a minha confiança e
partiu meu coração em milhares de pedacinhos.
Quando estava no cativeiro, sempre criei milhares de cenários como
esse. Jurei que quando o encontrasse uma outra vez, faria de tudo para
matá-lo simplesmente por ter me ferido. Chega de aceitar, chega de chorar e
de buscar razões para justificar ações tão desleais. Eu já havia aprendido a
minha lição com Sebastian, o meu pai. Mas com ele eu não iria cometer o
mesmo erro.
Porém, como nunca pude controlar minhas ações referentes a ele,
ainda estou presa num quarto de hotel, com medo de encarar a realidade dos
fatos, com medo de encará-lo e perceber que me perdi de vez. Com um
medo imenso das consequências que sua presença traz, porque onde quer
que esteja, a tempestade o acompanha. E ela sempre costuma devastar tudo
pelo caminho.
— As? — Ergo os olhos num rompante quando ouço a voz
sonolenta de Josh.
Rapidamente agarro o revólver e o posiciono de maneira segura por
baixo do moletom, mantendo-o longe dos olhos de Josh. Não que meu
irmão não saiba qual é a vida que a irmã mais velha leva, é apenas a minha
decisão de mantê-lo longe dessa realidade.
— Bom dia — sussurro, piscando algumas vezes para afastar o
sono. Sinto minha cabeça latejar no processo. — Dormiu bem?
Josh tem o conhecimento de que nossas vidas jamais voltarão a ser
como antes, nunca o poupei da verdade, apesar de omitir informações que
não cabe a ele. Ainda me lembro do alívio que senti quando o peguei em
meus braços após sentir-me liberta novamente, foi como sentir o ar retornar
aos meus pulmões, como se a vida finalmente me abraçasse novamente.
Ainda me lembro da faísca que se acendeu em meu peito como se
meu corpo fosse feito de gasolina e o meu amor por meu irmão, o isqueiro
que o incendiaria. Eu não posso permitir que ninguém nos separe outra vez,
que o tirem de mim e o machuquem da mesma forma que fizeram comigo.
Josh não merece nada que destrua a essência que ainda vive dentro de si, e
sei que ele entende que sua irmã mais velha, uma completa lunática - porém
amorosa -, daria a vida por ele sem pensar duas vezes.
É por esta razão que seus olhos amendoados (que resplandecem o
azul mais vivido e cintilante de todo o mundo) demonstram todos os tipos
de sentimentos, exceto o medo. Ele sabe que está seguro ao meu lado.
— Tudo bem? — funga, coçando os olhos com a manga da camiseta
de manga comprida.
Suas bochechas ruborizadas acentuam-se devido a sua pele
amassada, os olhos sonolentos buscam pelos meus no minuto que usa um
dos cotovelos para apoiar-se na cama, expressando a sua nítida
preocupação. Não contenho o curvar dos meus lábios em um sorriso.
— Estou ótima. E você? — apoiando meus pés cobertos pelos tênis
surrados no chão, levo os cotovelos aos joelhos ao devolver-lhe a pergunta.
Josh acena, mostrando-me aqueles dentes miúdos e alinhados. Ele
pensa em me responder, no entanto, o roncar de seu estômago que reverbera
por todo o nosso quarto de hotel é o suficiente para substituir o sorriso de
seus lábios por uma linha fina junto de uma expressão cheia de decepção,
quase como se ele se sentisse culpado por sentir fome.
Me amaldiçoo por dentro.
— Com fome. Você está com fome. — concluo em meio a uma
lufada de ar. — Precisa se alimentar…
Seu rosto delicado e precioso é abraçado por uma expressão
entristecida, seus ombros caem e capto o exato momento em que seu corpo
encolhe na cama. Se meu coração estivesse inteiro, este seria o exato
momento que ele seria despedaçado em milhares de fragmentos. Isso…
Porra, quando foi que me tornei tão incapaz? Tão estúpida?
— A nossa dispensa acabou ontem pela manhã… Eu ia te contar,
mas fiquei com medo de ser mais uma preocupação para você — a cada
palavra de Josh, ele fere ainda mais o âmago de minha alma.
Aperto os olhos, juntando minhas mãos enquanto busco controlar
meus sentimentos. Um dos meus pés começa a tamborilar contra o chão
enquanto busco me apegar aos poucos dólares que restam na gaveta do
criado. É o suficiente para comida, mas não por muito tempo. Não por mais
de dois dias.
Tenho estado tanto tempo grudada nesta cadeira, espiando pelas
persianas a todo tempo e definhando em minha própria infelicidade e
desgosto que sequer me atentei ao fato de que há uma criança aqui dentro.
Protegê-la dos males da porta para fora ainda é uma boa iniciativa, mas não
posso me esquecer que da porta para dentro ela ainda deve sobreviver.
Três dias presa aqui dentro.
Três dias sem conseguir reunir coragem o suficiente para trabalhar.
Três dias sem conseguir encarar meu reflexo no espelho sem
repudiar o que vejo, sem sentir enjoo por ser tão fraca. Como é que
sobrevivi até aqui, droga?
Os ossos de sua clavícula nunca estiveram tão aparentes, os braços
magros e as pernas finas… Meu irmão está vivendo em uma completa
desgraça simplesmente pelo sangue que corre em minhas veias estar
circulando pelas suas também. E só agora, erguendo meus olhos para
examinar sua estatura débil, percebo o quão decepcionada estou comigo
mesma por permitir que tenhamos chegado tão longe. Tão além dos limites.
Prometi que cuidaria de nós, prometi que daria a ele uma segurança
inabalável incapaz de nos submeter a uma realidade tão miserável. Mas… o
que fazer quando a miséria é parte de mim? Quando ela é incapaz de largar
a minha mão porque se adaptou a deplorável situação que me arrasta todos
os dias para uma infinita angústia?
É como nadar contra a maré. É como desejar o impossível.
E mesmo sendo difícil, não há maneiras de buscar por respostas que
se encaixam como uma justificativa da razão para que tenhamos chegado a
este nível. O peso da culpa esmaga meu peito e quase posso sentir as
batidas do meu coração falharem devido à insistência de meu corpo
fragilizado em manter-se funcionando, mas embora o aperto esteja imenso
em meu peito e o amargor da tristeza envolva meu paladar, o que faço, na
verdade, é erguer minha cabeça e vestir a armadura na qual me tornei uma
especialista em adotar ao sorrir para meu irmão como se tudo estivesse
bem.
— Você vai pra escola hoje, está bem? — sorrio, levantando-me a
fim de tocar sua pele. — Não há perigo algum lá fora, vai ficar bem.
Seus olhos cabisbaixos encontram os meus em um ato desconfiado e
hesitante antes de alternar seus olhos até o local onde mantenho a pistola
escondida. É claro que ele já a viu antes mesmo que eu pudesse escondê-la.
Faz parte do nosso sangue.
— Então por que está com isso? — pergunta baixinho, arrancando-
me um riso carregado de dor.
É ultra perigoso lá fora, Josh, mas é a escola que pode te dar
comida o suficiente para que não morra de fome, não a sua irmã covarde e
assustada. Sinto muito.
— É só precaução. Não posso arriscar, você sabe.
É claro que não posso dizer a ele que provavelmente nós
passaríamos fome pelos próximos dias se por um acaso as minhas preces
injustificáveis não forem o suficiente para convencer Rubens a me devolver
meu emprego. Ir a escola é o que pode salvá-lo, quanto a mim, não importa.
Josh importa. Apenas ele.
— Você jura? — faz bico.
Com este ato, é impossível não me aproximar para abraçá-lo o mais
forte que posso. O medo de perdê-lo me aterroriza, e saber que estou prestes
a enlouquecer e arriscar a sua vida apenas porque estou permitindo que as
sombras de um passado injusto assombre nossas vidas faz com que eu
pareça estúpida, porque meu amor por ele sempre é maior do que qualquer
coisa no mundo, até as mais ameaçadoras e apavorantes. É quando meus
instintos são ativados, o modo sobrevivência na qual sempre busquei me
apegar.
É por isso que não me importo em quebrar um juramento, não
quando a finalidade maior ainda significa protegê-lo a todo, e qualquer,
custo.
— Eu juro.
Ouço o som da sua risada, e quando Josh corresponde o meu abraço,
aperto-o mais forte. O cheiro de casa entre seus cabelos e o som da vida
sendo refletida nas batidas de seu coração, apaga minimamente a sensação
assustadora que preenche meu peito, porque não importa o que espera por
nós lá fora ou quem eu tenha que ferir para manter-nos à salvo, ainda vou
dar a minha vida por isto.
Corri tanto para longe de Lexie após o meu surto psicótico que não
quis saber para onde eu fugiria desta vez, apenas corri para longe. Não olhei
para o lado, não segui uma rota, não olhei as placas para me localizar na
cidade que só me habituei ao caminho de casa e para o café. Eu só queria ir
para longe, extravasar, gritar o mais alto que podia até o meu cérebro inchar
e explodir em milhares de pedaços.
Não conseguia respirar.
Não conseguia controlar o meu corpo, a minha mente, minhas
ações…
É como se eu estivesse no automático, habituada a lidar com as
explosões engatilhadas sempre pelo mesmo causador: o passado. É como se
um buraco estivesse impedindo que o ar chegue aos pulmões, não consigo
pensar, e não importa o quanto eu lute, sempre vou voltar para o mesmo
lugar, embora eu adore fingir que nada pode me machucar com tanta força.
Estar acostumada com a dor não significa que com o tempo ela deixa de
doer. Muito pelo contrário, cada vez que ela se manifesta, todas as malditas
vezes conseguem ser mais dolorosas do que a anterior.
De novo. De novo. De novo. Um ciclo vicioso.
Não me lembro de uma época em que eu tenha me sentido
confortável por estar em meu próprio corpo. Hoje em dia ele apenas
incomoda. Enoja. É como se eu não me sentisse limpa, como se a cada vez
que eu piscasse os meus olhos, pudesse sentir as mãos ásperas e
repugnantes em contato com a minha pele, deslizando, acariciando como se
eu pudesse sentir prazer. Como se eu gostasse.
Uma coisa que eu aprendi sendo o principal troféu da máfia mais
poderosa do país, é que não importa o quanto desesperada você esteja, eles
gostam. Eles adoram ver você correr. Ou tentar. São os maiores sugadores
de almas, pois nunca será o suficiente. Sempre querem mais, mais, e mais.
Até que não reste uma única alma intacta, sem um único arranhão.
Passei a acreditar que não é que eu seja especial. Eu sou resistente.
Eu luto. É o que eles mais adoram é um desafio, porque sabem que uma
hora ou outra haverá desistência. Ninguém consegue fugir por tanto tempo,
uma hora simplesmente passa a aceitar o seu destino.
No meu caso, eu tive que aprender sozinha a me defender, a levantar
barreiras, descobrir os limites… Foi assim que eu soube exatamente o que
fazer para fugir da prisão há alguns meses. Foi assim que me mantive viva
até aqui. E é assim que pretendo sobreviver até que todos sejam mortos.
Mas ele… ele é um outro assunto. É pessoal.
Não quero jamais ser deixada levar pelas emoções, quero que sua
queda seja tão dolorosa quanto foi a minha. Quero que ele sinta a dor da
traição, a dor da frustração e do arrependimento. E não, não há
possibilidades que eu o perdoe. Não quando tudo de bom em mim foi
destruído graças ao rompimento de suas promessas.
Desta vez, no entanto, me sinto impotente. Era fácil odiá-lo nas
sombras de sua ausência, sem que tenha decidido retornar para a minha vida
como se eu ainda o pertencesse. Não é como se eu estivesse disposta a
deixá-lo ter algum tipo de poder sobre mim após anos consecutivos de
sofrimento. Ele não merece essa merda. Porém, isso não impede com que o
meu subconsciente reaja às memórias ruins que a sua existência
desencadeia.
São tantas coisas. Tantas merdas. E eu só quero ser a porra de um
ser-humano normal.
É um novo dia, no entanto, sei que novas lutas brotarão como a
grande azarada que sou.
Sinto as lágrimas brotarem em meus olhos e reajo, balançando a
cabeça e negando a porra da permissão aos meus olhos para que as deixem
cair. Deixo de encarar o pequeno riacho ao lado do parque e torno a
caminhar, desta vez, finalmente decidida a voltar para casa. No entanto,
levo uma das mãos ao cós de minha jeans quando sinto o meu corpo colidir
contra algo, ou alguém.
Meus dedos alcançam o revólver e estou pronta para engatilhar
quando finalmente ouço sua voz.
— Ah, merda! — resmunga. — Desculpe, você está bem?
Sopro algumas mechas do meu cabelo que despejaram-se para fora
do meu capuz na colisão. O encaro, deparando-me com um par de olhos cor
de avelã e fios escuros totalmente bagunçados no topo de sua cabeça. Ele
não parece sequer surpreso, e por mais que eu não seja obcecada em passar
metade do meu tempo encarando as pessoas e registrando seus respectivos
rostos em meu cérebro, tenho certeza de que nunca o vi por aqui. O cara de
mais ou menos vinte e poucos anos franze o cenho, analisando-me por
breves instantes e tudo o que faço é aprumar a minha postura, afundando as
mãos no moletom outra vez antes de encarar seus olhos. Seus olhos
escorregam até o volume aparente sobre o moletom causado pela arma, e eu
pisco, esperando que seja apenas uma análise inocente.
— Estou bem, obrigada. — murmuro, prestes a dar meia volta e
sumir daqui.
— Ei, espera! — me viro, olhando-o.
O garoto sorri sutilmente, estendendo a mão direita em minha
direção. Sem esconder minha surpresa, encaro a sua mão sem apertá-la.
Não é como se eu estivesse acostumada com essas coisas de cumprimentar,
e tal.
— Você deve apertá-la e dizer o seu nome — esclarece,
gesticulando com a cabeça em direção a sua mão. — Como uma forma de
se apresentar de volta, sabe? — Ele inclina levemente a cabeça para o lado.
Um sorriso sutil enfeitando seus lábios.
Encaro seus olhos ao comprimir os lábios em uma linha reta.
— Por que eu faria isso?
O garoto engole em seco e puxa a sua mão de volta, a afundando no
bolso frontal do seu jeans. Imediatamente me arrependo de ter sido
grosseira e lhe ofereço um sorriso exagerado, como se estivesse prestes a
dizer a coisa mais engraçada do mundo.
— Você pode ser um maníaco, ou talvez esteja me perseguindo para
obter informações sobre o meu paradeiro e ir correndo repassar a
informação para o seu chefe que está me procurando em cada canto do
mundo, muito a fim de me matar.
As palavras saem rapidamente dos meus lábios, quase que de forma
automática.
Nós nos encaramos cerca de dois segundos antes que o
desconhecido caia em uma gargalhada, revelando os seus dentes brancos e
nivelados. Eu, por minha vez, forço um riso totalmente mal articulado para
que não me pareça como uma maluca desvairada.
— Isso foi muito específico — seus olhos diminuem conforme ele
gargalha, no entanto, ainda consigo identificar a coloração avelã marcante.
— Eu sou o Michael, mas não precisa me dizer o seu nome. Não se
preocupe. — O garoto ergue as mãos em sinal de rendimento, ainda
sorrindo.
Mordo os lábios para disfarçar tamanho constrangimento. Talvez eu
tenha começado a acreditar que o meu passado está me deixando maluca.
Cristo... eu realmente não nasci para socializar com o resto do mundo.
— Foi um prazer conhecer você, loirinha — diz ele, desviando os
olhos para os fios do meu cabelo que estão para fora do capuz e passando
por mim lentamente, até que esteja literalmente ao meu lado. — Muito
cuidado por aí, ouvi dizer que essas estradas são perigosas.
Assinto, observando seus passos lentos e cautelosos, como se
estivesse perdido ou algo assim. Desconfiada, mantenho meu olhar em sua
figura distanciando-se. Assim como eu não deveria estar nesta estrada
sozinha, acredito que ela também seja perigosa para as demais pessoas.
Neste caso, o que ele está tentando insinuar?
— Você não estava indo para o outro lado? — o questiono ao notar
seus passos lentos para a direção oposta que estava indo antes de nossa
colisão. Se nos esbarramos, ele deveria estar indo para o outro lado.
Seus passos cessam, então, novamente o garoto gira sobre os
calcanhares e seus lábios se comprimem ao gesticular um aceno com o
polegar na direção oposta.
— Claro. O outro lado.
Ergo uma das sobrancelhas, analisando-o por completo. Observo
suas botas enlameadas, os passos rígidos, as roupas clássicas para um
californiano, os olhos profundos e curiosos… Ele não faz esforço algum
para não parecer um suspeito. Seus olhos continuam fixos nos meus
enquanto se distancia lentamente, quase como se não pudesse desviá-lo.
Ele me olha como se estivesse intrigado com a minha aparência.
E são poucas as pessoas que o fazem, geralmente são aquelas que
desejam me arruinar.
— Boa noite, loira.
Não respondo.
Dou as costas a ele.
Caminho em silêncio enquanto o vento espanta os meus fios de
cabelo para longe. Olhando para trás, eu o vejo exatamente como pensei
que estaria: me olhando de volta.
Meus sentidos se apuram no momento em que minhas mãos passam
a suar dentro dos bolsos do moletom. Respiro fundo e desvio o olhar. Ele
não é um pedestre comum. Vejo isto em seus olhos, vejo na forma como ele
parece me observar como se eu fosse divina, como se quisesse passar mais
tempo do que o necessário olhando para mim.
Meu coração espanca o meu peito e sopro um ar agonizante,
apressando o passo de volta ao meu caminho como se minha vida
dependesse disso. Então é isso. Eles me encontraram.
Minhas pernas tremem. As memórias latejam a minha cabeça e me
fazem duvidar da força que eu pensava possuir, a que eu costumo
demonstrar para todas as pessoas. Mas há alguém para quem eu não posso
mentir, ocultar, enganar, manipular. Esse alguém sou eu. Eu sei o que estou
sentindo neste momento, sei que me sinto dilacerada por ter o meu anseio
tirado de mim mais uma vez, por ter que lutar quando tudo o que quero é
viver. Por ter que vestir a máscara da frieza quando tudo o que eu preciso é
sentir. Extravasar.
Os humanos costumam fazer isso para que se sintam melhor. Para
que se sintam descarregados.
Mas eu me recuso a ser como eles, pois é ao fazê-lo que minha
mente entenderá que pode simplesmente tornar-se humana. Sentir. E eu não
posso, pois mesmo que eu despreze os ensinamentos de meu pai, uma coisa
que ele costumava dizer é algo que eu nunca me esqueci.
— Sentimento é uma arma quando na mão de pessoas erradas,
sempre recorrem a ela quando precisam atingi-la.
Pois bem, querido pai. Você é um grandíssimo bosta, quem diria que
me ajudaria a enfrentar grandes adversidades.
O único capaz de acender alguma chama dentro de mim é Josh, e
por ele eu incendiarei o mundo e lutarei para estar viva, mesmo que tenha
que abdicar de tudo aquilo que me satisfaz. Começando por esta cidade.
É hora de viajarmos para longe mais uma vez. O suficiente para
fazê-los me caçar como completos imbecis.
Eu não vou voltar para lá. Não posso voltar.
Eu não posso. Não posso. Não posso. Não posso.
Olho para trás novamente ao chegar no centro da cidade, buscando
por qualquer sinal do homem da estrada. Não vejo nada além da rua escura,
iluminada pelos postes sobre minha cabeça. Ele desapareceu em meio à
escuridão. Meu peito sobe e desce em busca de um fôlego que estava
prendendo desde que praticamente desapareci daquela estrada. Atordoada,
encosto contra uma das paredes da calçada para respirar, no entanto, é
quando o faço que ouço murmúrios e pancadas próximo de mim.
Merda.
O som de algumas buzinas desperta-me dos devaneios e varro as
ruas com o olhar a fim de me certificar de que não há um carro prestes a me
atropelar.
Entretanto, o som de alguma discussão não muito distante chama
minha atenção. Olho ao redor até encontrar um carro próximo a um
estabelecimento de tatuagem, os faróis minimamente acesos e ambas as
portas arreganhadas, atrapalhando o percurso dos demais carros que
transitam pela rua. O que claramente foi o motivo das buzinas.
Finas gotas de chuva caem sob o meu capuz e trinco os dentes,
sentindo um arrepio percorrer todo o meu corpo até a ponta dos meus pés.
Está frio.
Quando raios começou a chover?
— Vá se foder, cara! Estou dizendo, eu não fiz absolutamente nada!
— resmunga um dos homens ao ser arrastado pelo capuz para fora do
estabelecimento. O cara que o segura está totalmente vestido de preto com
um gorro tapando a sua cabeça, e não parece estar muito a fim de prolongar
a conversa.
Remexo as minhas mãos dentro do tecido de lã e varro a rua com o
olhar, não encontrando nada além de carros transitando e poucos pedestres
que parecem não se importar com a discussão do outro lado da rua.
Eu não deveria agir como uma fofoqueira de merda, deveria apenas
seguir com o meu caminho e deixar de prestar atenção no que não me
convém. Entretanto, sigo encarando o cara de preto atirar o corpo do
homem contra o capô do carro.
— Por que caralhos eu deveria acreditar em você, Stuart? — rebate,
agora com as mãos no colarinho do moletom do cara, aproximando os seus
rostos.
— Turner, cara... Estou te dizendo, eu não tenho nada a ver com
esquemas de prostituição e essas merdas — o homem tenta desvencilhar-se
do agarre, portanto, o outro reforça o aperto. — Eu estou aqui trabalhando e
tentando dar uma boa vida para a minha filha! Acha que eu tenho tempo
para me envolver com caras barra pesada? — Choraminga, arrastando a
sola de seus pés contra o asfalto.
— Você não tem filhos, Stuart — vocifera, erguendo o corpo do
homem pelo moletom com facilidade. — Você é um fodido que mora com a
mãe aos trinta e dois e solteiro. Acha que eu sou algum tipo de imbecil?!
O som de um sino indicando que a porta do estabelecimento foi
aberta preenche a rua, revelando outro cara alto e bem agasalhado,
carregando alguns papéis e um computador nas mãos. No entanto, o cara
com o gorro na cabeça não parece se importar com a presença do homem,
pois no mesmo segundo, ergue o seu punho direito e o acerta contra o rosto
de Stuart, fazendo o seu corpo cambalear para trás e colidir contra o capô
do carro, deslizando rapidamente para o asfalto devido a umidade do capô.
Mais buzinas ecoam quando o corpo de Stuart quase é atropelado
por um carro.
— Entra no carro.
— Eu não vou entrar na porra do seu carro, Turner! Estou no meio
de uma sessã... — Stuart é interrompido quando o cara posiciona a sola de
sua bota em seu pescoço, forçando-o a encará-lo.
— Entra na porra do carro!
Sinto a minha respiração acelerar quando o olhar do cara com o
computador cai sobre mim. Merda. Rapidamente torno a caminhar, tentando
a todo custo esconder o meu rosto entre o meu capuz.
Não sei o que estava acontecendo ali, mas, eu não estou nem um
pouco a fim de descobrir. No momento, estou xingando mentalmente todas
as minhas prováveis gerações passadas por me tornarem tão fofoqueira!
Não ouso olhar para trás, apenas acelero o meu passo e viro na
primeira curva a fim de estar longe o mais rápido possível. Estou me
escondendo de criminosos perigosos e não tenho a intenção de me envolver
com mais deles.
Será que é tão difícil assim me manter longe de problemas?
— Ei, você aí!
Estremeço. Um arrepio fervoroso percorre cada canto do meu corpo
e tudo que quero é simplesmente correr por todas as ruas até simplesmente
desaparecer da vista de qualquer um. No entanto, apenas sigo caminhando
como se não tivesse escutado absolutamente nada.
— Garoto! Tô mandando você parar!
Remexo as minhas mãos por baixo do meu moletom a fim de
encontrar minha arma, e quando sinto a ponta dos meus dedos colidirem
com o metal, prendendo-o entre os meus dedos, giro sobre os calcanhares,
pronta para apertar o gatilho e estourar os seus miolos se ele tentar alguma
gracinha. Ele vai me seguir até o inferno, então, não há outra alternativa a
não ser enfrentá-lo. Girando o meu corpo em sua direção, vejo a sua
silhueta próxima o bastante para tocar em mim, mas antes que o faça, eu
sou mais rápida em apontar a minha arma diretamente em sua carótida.
Próxima o bastante para machucá-lo e longe o suficiente para não causar
uma ferida profunda.
Estou engatilhando esta arma vezes demais no dia de hoje.
Os seus olhos bem contornados e arregalados são a primeira coisa
que encontro, seguido de seus lábios entreabertos e as mãos erguendo-se em
sinal de rendimento lentamente, como se estivesse indicando que não quer
me machucar. Entretanto, quando franzo o cenho e comprimo os lábios ao
notar suas mãos retirando o capuz de seu moletom, sou surpreendida ao
reconhecê-lo.
— Mas que merda?
— Ora, mas que surpresa!
Balanço a cabeça negativamente e abaixo a arma lentamente,
observando o curvar de seus lábios em um sorriso de canto.
— Naten Hyuk — murmuro o seu nome em um sussurro, incrédula
por vê-lo.
— Eu também senti sua falta, se quer saber… — Naten sorri,
erguendo os seus braços em minha direção.
Argh! Seu senso de humor péssimo continua o mesmo.
Faço uma careta.
— Que porra é essa? Reuniãozinha do Scooby-Doo para desvendar
o grande mistério por trás da cidade?
Naten umedece os seus lábios e olha para trás, parecendo certificar-
se de que estamos a sós.
— Agora você xinga, estou impressionado. — Torna a me encarar,
gesticulando com a cabeça em direção ao revólver ainda em minha mão. —
E anda armada por aí. Que merda é essa, garota? Virou algum tipo de
Batgirl?
— E você virou um delinquente — murmuro. — Pensa que eu não
vi a sua invasão no estabelecimento? Está baixando de nível, Hyuk. Pensei
que seria algum tipo de hacker indestrutível que acabaria com esse governo
de merda, mas você apenas invade estabelecimentos e agride senhores de
idade. — Estalo a língua. — Que grande decepção.
Naten sorri, fazendo com que seus olhos diminuam bruscamente.
Naten nasceu em Nova York, mas seus pais são coreanos. Logo, os
seus fios de cabelo são extremamente negros e caídos pelo seu rosto claro, e
os olhos são miúdos, coisa que eu acharia extremamente fofa se não
estivesse com vontade de matá-lo aqui e agora.
— Quanto a isso não estou impressionado. Você sempre foi uma
fofoqueira. — Ele avança um passo e aproxima os lábios do meu ouvido,
sussurrando: — E para o seu governo, eu não sou um delinquente. E sim, eu
estou tentando destruir um esquema perigoso do governo e aquele cara que
você viu o meu amigo espancar, faz parte de um grupo de caras
extremamente cuzões que merecem arder no inferno. Então não, não baixei
o meu nível. Muito cuidado, boneca, as aparências enganam. — Ele se
afasta, fixando os nossos olhares. O seu, exalando divertimento.
Afundo o revólver no bolso do meu moletom e me esforço para não
desviar os nossos olhares.
— Isso não muda o fato de que você é a porra de um traíra.
Ouço o som de sua gargalhada, e firmo os nossos olhares. Sinto
vontade de perguntá-lo o que está fazendo aqui e qual é a do plano de todos
eles ao reaparecer de repente na minha vida e acreditar que serão bem
aceitos. No entanto, demonstrar o meu interesse em qualquer um dos
assuntos que envolvem a academia de Williams, é tudo que eu não desejo.
Não pretendo viver outro inferno como aquele. Aprendi a minha lição.
Vivenciar memórias do passado está fora de cogitação.
— Existem pessoas que precisam seguir ordens — murmura,
recuando alguns passos e envolvendo o seu lábio inferior entre dois dedos.
— Pessoas que entendem que o mundo não gira ao redor de suas
necessidades. Você entende isso, Clarke?
Bufo um riso carregado de ironia.
Odeio quando me chamam assim.
— O que eu não entendo, Naten, é como você consegue olhar nos
meus olhos e falar sobre seguir ordens — digo a ele. — Eu segui a porra
das ordens, fui obediente, esperei pelo momento certo para conseguir ter a
vida que tanto sonhei. Ao invés disso, fui apunhalada pelas costas. Então
me diga, de que serve a porra das ordens? O que elas podem garantir? —
questiono, sem me dar conta de que o meu tom de voz já não é suave. Posso
sentir a pele do meu rosto queimar como brasa.
Naten entreabre os lábios para responder ao meu questionamento,
entretanto, não lhe dou oportunidade de seguir.
— Não seja um burro do caralho, e tampouco acredite que eu sou.
Espero que todos vocês queimem na porra do inferno, porque no fim são
todos farinha do mesmo saco!
Encaro o seu par de olhos atentos uma última vez antes de girar
sobre os calcanhares e tornar a caminhar em direção a minha casa.
Entretanto, sou interrompida com o soar de sua voz rígida e zombeteira.
Cesso o passo.
— Você está chateada, Clarke, e eu entendo os seus motivos. Não
estou aqui para te julgar — a luxúria desapareceu de seu tom de voz, que
agora, exala rigidez. —, mas não seja a porcaria de uma egoísta. Todos nós
temos motivos para atitudes duvidosas e que nem sempre serão do nosso
agrado, mas essa é a porra da vida! As coisas não se resolvem com
mudanças de comportamento e ameaças constantes, garota. Geralmente,
quando existe algum problema, as pessoas normais sentam e tentam
entender os dois lados da moeda.
Eu me viro para encará-lo.
Travo a mandíbula.
Ele prossegue:
— Mas você apenas foge, desaparece do nosso rastro e segue com a
sua vida odiando todas as pessoas por algum motivo que criou na sua
própria mente! — Ele pausa ao puxar o ar com certo desespero. Quero
contrariá-lo, porque nada disso é o que parece. Tudo está errado e ele é um
idiota por pensar desta forma. Mas não o faço. — Você nem ao menos nos
perguntou diretamente o que de fato aconteceu. Lexie me contou que
decidiu revelar a verdade sobre a verdadeira identidade para você,
simplesmente, porque estava lhe partindo o coração ver você tão assustada
com tudo e com todas as pessoas.
Engulo em seco ao avançar um passo em sua direção.
Minha pulsação explode a cada lufada de ar pesado que é liberada.
— E o que isso importa?!
Suas mãos passeiam entre os seus fios negros, enquanto um sorriso
carregado de nervosismo ocupa os seus lábios.
— Aquela garota enfrentou coisas tão horríveis quanto você. Lexie é
a garota mais forte que eu conheço e a mais corajosa, você sabe por quê? —
Questiona, cruzando os braços e trancando a mandíbula.
As palavras parecem desaparecer do meu vocabulário e já não sou
capaz de raciocinar, e, antes que me dou conta, estou negando. A boca
abrindo várias vezes ao tentar formular um contra-argumento decente.
Mas eu falho.
— Porque a melhor amiga dela se tornou uma garota egoísta que
não pensa em nada além de si mesma e não consegue enxergar os
problemas das pessoas porque para ela, nenhum sofrimento é válido e tão
doloroso quanto o dela — diz ele. — E ainda assim Lexie não consegue
desistir dela. Isso se chama empatia e solidariedade, Aspen, coisa que você
não tem. E me atrevo a dizer que, certamente, Sofia Clarke teria.
Sem perceber, arregalo os olhos. Caramba. Ok. Merda!
Fui pega desprevenida com as suas palavras tão cruéis para o nível
Naten. Entretanto, talvez o choque não tenha sido por suas palavras e sim,
talvez, por saber que não estão erradas.
Sentimentos são armas quando na mão de pessoas erradas.
Eu sei que fui agressiva demais com Lexie no outro dia. Não que o
real motivo da minha raiva esteja errado, mas, sei que exagerei. Não estava
enxergando o quão cruel eu havia sido, até Naten me dar um choque de
realidade há alguns poucos segundos. Tudo bem. Fui uma grande babaca
sem noção. Mas ela também errou comigo.
Assim é a vida. Você recebe aquilo que oferece.
— Espero que você reflita sobre as suas atitudes recentes,
bonequinha. Ninguém aqui quer machucar você. — Naten zomba ao
cantarolar o apelido extremamente ridículo que me deu há anos atrás,
fazendo com que eu desperte dos devaneios.
Ergo o pescoço para encará-lo, sem notar em que momento eu o
abaixei.
É notável o quanto Naten mudou desde a última vez em que nos
vimos. Seu rosto está maduro, e seus músculos definidos. Apesar de
inicialmente o seu semblante estar divertido e aéreo como nos velhos
tempos, a sua atual expressão deixa bem claro que Naten já não é um garoto
tão brincalhão. Ele se parece com um homem. Aqueles com
responsabilidades e que sabem o momento certo de encerrar com a
brincadeira.
Talvez essa seja a razão por estar tão surpresa por suas palavras. Me
pergunto o que ele teve que passar para se tornar mais frio do que o
habitual, mas afasto os pensamentos no mesmo instante. Não me importo.
— O que você está fazendo aqui, afinal? — eu o questiono, em uma
tentativa de mudar o rumo da conversa e me sentir menos constrangida.
— Eu moro aqui.
Franzo o cenho, sem compreender o que de fato ele quer dizer
com... morar aqui.
— O que você quer dizer com isso? — questiono, antes de torcer os
lábios ao sentir o vento frio contra o meu rosto.
Naten inclina o corpo em minha direção no mesmo segundo, após
varrer a rua com o olhar e fixar os nossos olhares.
— A sua raivinha vai acabar sendo um desperdício quando você se
der conta de que essa cidade não é o seu território. Tudo acontece como nós
queremos que aconteça, Aspen. — ele diz, afastando-se de mim pouco a
pouco. — E se você está aqui, é porque nós queremos que esteja.
Engulo o nó na garganta, sentindo-me um pouco confusa com o que
acaba de sair de seus lábios.
Desde o início, sempre esteve claro que a academia era como uma
gangue de caras dispostos a darem as suas vidas pela missão. Eu nunca
consegui me tornar uma deles, por ser nova demais para lidar com questões
criminosas. No entanto, não participar do grupo e ser burra são coisas
extremamente opostas. Eu não era uma completa idiota.
Eu costumava estar sempre atenta, observando e captando todos os
movimentos de todos os integrantes da academia. Eles são ossos duros de
roer. O treinamento intensivo de alguns duravam quase doze horas, e quase
todos eles ocorriam pela madrugada. E apesar de ter em mente que todos
eles estão ali para cumprir o mesmo objetivo, nada nunca irá ocultar o fato
de que ele é como um líder.
Naquela época, os treinamentos para Jason eram reduzidos. Sempre
reduzidos. Nunca presenciei um de seus treinamentos que tenha durado
mais de uma hora. Ele sempre pareceu estar à frente de qualquer um. Jason
é calculista e previsível, e digo isto porque pude presenciar milhares de
vezes em que ele demonstrou ser bom em armar planos.
Ele sabe de tudo. Ele é a porra de uma pedra no meu sapato. E após
as palavras de Naten, tenho ainda mais certeza de que minha presença em
WonderFall não é por acaso.
Quando eu finalmente me libertei da prisão de Floyd, eu estava tão
quebrada e amaldiçoada que não conseguia entender como tudo aquilo
estava acontecendo comigo. Eu não entendia como podia ser merecedora. A
negação foi a minha melhor amiga, foi com sua ajuda que consegui ignorar
as sensações desconfortáveis de ter sempre algum toque indesejado sob
minha pele, foi com ela que eu aprendi a me proteger, a levantar o meu
escudo e aprender a ser tão cruel quanto o resto do mundo pode ser.
No entanto, ainda que naquela época eu tenha sido árdua na maioria
das vezes porque antes de permitir sentir a minha própria dor, eu só queria
mesmo cuidar de Josh. Dar a ele uma vida aparentemente feliz, e só então
eu poderia me preocupar com os meus demônios. Mas nada me preparou
para a manipulação da Revolução. Eu os subestimei.
Eles sempre saberão onde eu estou.
Sempre farejam o meu cheiro.
Sempre encontram uma forma de me manipular para que as coisas
saiam exatamente como querem que saia. E agora eu sei.
— Essa não é uma cidade pequena e segura, não é? — sorrio
amargamente. — Eu fui atraída para o ninho de vocês.
Burra.
Do.
Caralho.
— Não — ele gira sobre os calcanhares, encarando-me. — Digamos
que é apenas uma garantia.
— Garantia?!
Posso notar o aumento do meu tom de voz, mas definitivamente não
me importo.
Mais uma vez.
Enganada. Mais uma porra de vez.
— Jason do caralho. — Naten resmunga, levando as mãos até os
olhos, onde os esfrega impacientemente.
Eu me aproximo, sentindo o meu rosto ferver ao sentir tamanha
raiva. O vento frio e as gotas finas de chuva já são insignificantes para mim.
Cesso o passo quando estou a sua frente, e ao notar a minha
presença, Naten me encara com o seu par de olhos curiosos.
— Eu poderia matar você agora. Poderia encontrar diversas
maneiras de fazer com que você me enxergue com outros olhos — sinto os
meus olhos queimarem, ainda assim, firmo os nossos olhares enquanto as
palavras saem de forma automática de meus lábios em pura rigidez. — Não
sou mais uma criança que vocês podem domar como quiserem. Não sou a
porra de uma marionete, Hyuk. Eu tenho vontade própria e sei me defender.
Não pense que apenas porque temos um passado amigável, vou poupar
você de um sofrimento equivalente ao meu. Não somos amigos e não
preciso de nenhuma ajuda ou proteção sua ou de quem quer que esteja
dando a maldita ordem!
Respiro fundo, sentindo o meu peito doer por passar alguns minutos
sem respirar. Eu sequer percebi que estava prendendo a respiração.
Eu espero que Naten sorria ou apenas arrume uma forma de zoar
com a minha cara como sempre faz, ou apenas... acabar com a minha raça
como fez há algum tempo quando o assunto era Lexie. Mas, ele não o faz.
Surpreendentemente, ele assente.
— Lindas palavras — ele ergue o capuz, e noto o seu pomo-de-adão
mover-se quando engole a saliva. — Mas não sou eu o merecedor delas.
Você quer culpar alguém? Entre no estabelecimento. Faça um acerto de
contas de uma vez e deixe-me fora de ameaças e toda essa merda de vocês.
— Naten gesticula com a cabeça em direção ao estabelecimento onde eu o
vi há alguns minutos. — Jason do caralho, sempre me fodendo com a porra
do trabalho sujo. — ele murmura, e desta vez, percebo ser mais para ele
mesmo, do que para mim.
Franzo o cenho, desviando o meu olhar para um canto qualquer.
Isso quer dizer que...? Era...?
Era ele?
Jason estava bem na minha frente por todo o tempo em que estive
bisbilhotando a briga na frente do estabelecimento. Ele estava bem na
minha frente. Meu Deus. Eu poderia estar encontrando formas de matá-lo
agora mesmo, ou por todo o tempo em que estive discutindo e ofendendo
Naten de todas as formas possíveis, mas o idiota do Hyuk pensou em me
dizer isto apenas quando eu o ameaço de morte.
Se eu soubesse que era apenas fazer isto, teria feito antes.
— Tem uma porta nos fundos. Você precisa entrar no beco do lado
direito e virar a primeira esquerda, abra a segunda porta e pegue a chave
que estará debaixo do tapete brega de boas-vindas. — Ele me guia e eu ergo
o olhar, encarando-o como uma abobada. Hyuk parece notar a minha
confusão, pois faz uma careta e dá de ombros. — Leve isto como um acerto
de contas. Estou cansado de ouvir os seus resmungos que pertencem a outra
pessoa.
— Obrigado — agradeço. Afundo as mãos no bolso do meu
moletom e arrumo o meu cabelo que já estava praticamente para fora do
capuz. — Mas ainda estou decidindo o que farei com você.
Ele sorri sem mostrar os dentes.
— Estarei esperando.
Dou de ombros e passo por ele, caminhando em direção ao
estabelecimento.
Não espero por alguma resposta de Hyuk, apenas movo as minhas
mãos por dentro do moletom ao empunhar a arma que parece faiscar por
finalmente ser útil para algo interessante. Um acerto de contas.
NEW YORK - 2019
ANTES
É por volta das onze da noite e Jonah está deitado no meu colo com
o seu cabelo loiro sob os meus dedos enquanto seus olhos azuis me encaram
de volta ao passo que eu imploro para que Deus não plante dúvidas sobre
nossa mãe em sua cabeça. Eu não quero dizer para o meu irmão que somos
órfãos agora e que mamãe não vai voltar. Não quando ele ainda é uma
criança e tem uma chance de crescer sem a bagunça que é a nossa vida.
Ele precisa ser amado, precisa de carinho e de muita atenção. E se
existe uma força superior olhando para mim lá de cima, eu sei que Ele me
dará forças para dar tudo isso para o meu irmão, da mesma forma que sei
que mamãe faria.
— Sosô? — Um sorriso brota no canto dos meus lábios quando o
meu irmão chama por mim pelo apelido que tanto aquece o meu coração.
Mamãe gostava de me chamar assim.
— Sim, meu amor?
Seus olhos azuis são tão intensos quanto os de mamãe, e o brilho
que há nele quase faz com que eu sinta inveja por transmitirem tanta
inocência. A inocência que agora eu sinto saudades mais do que nunca. Seu
cabelo loiro é como o meu, completamente macio ao redor dos meus dedos
enquanto o massageio, assim como as sardinhas quase inexistentes em seu
nariz.
Ele lembra a mamãe em muitos aspectos.
— Tudo bem? — sua pergunta me surpreende, mas como em uma
mentira antiquada, sou rápida em afirmar.
— Estou bem, Jonah, por quê?
— Parece que você tava chorando...
Eu abro um sorriso triste, usando de todas as minhas forças para não
permitir que a sua voz suave faça com que o choro torne a dar as caras. Eu
ainda estou sensível, é um fato. A cada segundo quero libertar muitas outras
lágrimas, mas Jonah não precisa saber disso. Tampouco presenciar.
— É impressão sua, pirralho. — Ameaço fazer cócegas no meu
irmão, levando a ponta dos meus dedos à altura da barriga, cravando-os em
seu umbigo.
É uma clara tentativa de mudar o rumo da conversa.
Meu irmão encolhe o seu corpo, erguendo os joelhos o suficiente
para impedir o meu fácil acesso a sua barriga. Uma gargalhada genuína
escapa de seus lábios e eu o acompanho.
— P-Para! — Jonah se esforça em afastar as minhas mãos, e seus
olhos se fecham conforme o sorriso se alarga.
Afasto as minhas mãos da barriga de Jonah, mas ainda estamos
gargalhando. É bom ter um momento como esse com o meu irmão, faz
parecer que nada pode nos atingir se estivermos juntos. Como se tudo
ficasse bem. Eu sei que é verdade, e que agora somos eu e ele contra todo o
resto do mundo.
Conforme nossos risos cessam, o meu irmão volta a aconchegar-se
no meu colo. Seu corpo encolhe contra o edredom e as mãos apanham
alguns fios do meu cabelo caídos em meu rosto.
Apesar de, infelizmente, não ter tido muito tempo com mamãe,
Jonah herdou alguns hábitos que apenas ela tinha. De alguma forma, eu
sinto que ela ainda está entre nós. Em nossos corações. Estará para sempre.
— Não acha que é hora de dormir? — o questiono, tornando a
acariciar o seu cabelo macio.
O meu irmão larga os fios do meu cabelo e junta as palmas,
posicionando-as abaixo da cabeça, procurando por uma posição
confortável.
— Você pode cantar pra mim?
O seu pedido me surpreende.
Jonah já escutou algumas cantorias minhas quando eu era
apaixonada pela coisa e tudo que importava para mim era alcançar o sonho
de viver da música. No entanto, as circunstâncias mudaram. Eu já não
encaro a música como um conforto, não quero mais usá-la como algo
positivo na minha vida.
Papai destruiu isso também.
Tudo que eu consigo agora é enxergar a música, a cantoria e o
sentimento transmitido nela, como um gatilho. Ele transformou o meu
sonho em um completo pesadelo.
Ainda assim, quando encaro o par de olhos azuis do meu irmão
encarando-me como o Gato de Botas, soube que não conseguirei recusar o
seu pedido.
— Claro — acaricio o seu couro cabeludo, sem conter o sorriso no
canto dos meus lábios. — Feche os olhos.
A ponta dos meus dedos vagam pela extensão do couro cabeludo do
meu irmão, testa e têmpora, na tentativa de relaxá-lo. Quando um suspiro
longo escapa dos pulmões de Jonah e suas pálpebras se fecham, sei que é
hora de começar.
Fecho os olhos e vasculho a minha mente para encontrar uma
música apta para o momento, sentindo-me nervosa por, após tanto tempo,
ousar cantar novamente. Faz anos que as letras não se encaixam nos meus
lábios e as canções perderam completamente a graça e o significado.
Mas eu preciso fazer isso.
Respirando fundo, levo uma das mãos ao rosto suave de Jonah e o
acaricio conforme uso a mão livre para acariciar o cabelo. Então, limpando
a garganta eu inicio.
Eu sou uma fênix na água
Um peixe que aprendeu a voar
E eu sempre fui uma filha
Mas penas foram feitas para o céu
Então eu estou desejando, desejando além
Pela empolgação de chegar
É só que eu prefiro estar causando o caos
Do que deitar na ponta afiada desta faca
Com cada pequeno desastre...
Eu vou deixar as águas continuarem a me levar para algum lugar real
Porque eles dizem que lar é onde seu coração está inalterável
É onde você vai quando está sozinho
É onde você vai para descansar os seus ossos
Não é apenas onde você deita sua cabeça
Não é apenas onde você arruma sua cama
Contanto que estejamos juntos, importa para onde vamos?
As letras saem dos meus lábios como se a minha vida dependesse
disso, mas eu não sinto absolutamente nada, tampouco quero sentir. O meu
coração dói e um aperto quase insuportável se instala no meu peito, e eu sei
bem o porquê.
Baixo o olhar, observando o corpo mole do meu irmão. Seus lábios
entreabertos e o subir e descer do seu peito em uma respiração lenta, indica
que ele dormiu durante a melodia.
Com cuidado, levo ambas as mãos a cada lado de seu rosto e
suavemente o coloco sob o travesseiro. Em um resmungo, Jonah gira o seu
corpo e parece confortável em uma posição de lado, com ambas as mãos
ainda abaixo da cabeça como um apoio.
Arrasto a ponta do edredom pelo colchão e quando está ao meu
alcance, me levanto da cama para entendê-lo pelo seu corpo. Acaricio a sua
bochecha levemente avermelhada com o meu indicador e me afasto em
passos lentos em direção a porta.
Sinto que vou enlouquecer se ficar mais um segundo dentro deste
quarto. Preciso respirar. Preciso de ar fresco.
Antes de sair do quarto, apago a luz e me certifico de que o meu
irmão está mesmo em um sono profundo. Cinco segundos se passam, e
quando Jonah não se move, abro a porta e a fecho ao sair.
Olhando de um lado para o outro, observo o corredor totalmente
vazio, o que é um alívio. Odeio ser perseguida por aqueles dois seguranças
a cada passo que dou.
Agora, finalmente eu posso ter um pouco de liberdade.
Meu coração ainda bate descompassado dentro do meu peito, mas
eu o ignoro com todas as forças que há dentro de mim. Eu não quero sentir
absolutamente nada. Preciso suportar toda a bagagem de uma vida infeliz e
seguir em frente, e eu devo aprender a aceitar que enquanto todas as
memórias seguirem me atormentando e continuarem me abalando, nunca
poderei suportá-las.
Desesperada por um pouco de ar, vago pelos corredores vazios e
sem cor, não encontrando nada além da escuridão. Todos devem estar
dormindo a esta hora, e o lugar vazio como está, parece abandonado e digno
de participação em um filme de terror. Eu jamais ousaria ir além nesta
escuridão.
Encontro o mesmo corredor com algumas luminárias minimalistas
que percorri até encontrar o salão de treinamento. A claridade que há ali é
alta o suficiente para enxergar os degraus, mas nada além disso. Penso que
em algum lugar no fim da escadaria, talvez haja alguma sacada. Lá, talvez
eu possa ter algum tempo sozinha.
Sem perder tempo, subo o lance de escadas, segurando no corrimão
com uma das mãos.
O receio me atinge, por talvez, não ser um lugar adequado para
mim. Ainda assim, a minha necessidade de soltar o ar preso em meus
pulmões fora destas paredes é maior do que qualquer outra coisa.
Chegando ao topo, tudo que vejo nada mais é do que uma porta
branca. Há rachaduras da madeira por toda sua extensão, e a maçaneta
parece velha demais para estar ali, devido a ferrugem totalmente acabada.
Ok, tenho certeza que eu não deveria estar aqui.
Olhando de um lado para o outro e para a escadaria que acabo de
subir, levo uma das mãos à maçaneta e afasto qualquer outro pensamento
que me impeça de abrir a porta. Eu quero me arriscar. Então, olhando à
minha volta uma última vez, abraço o meu próprio corpo antes de entrar.
Avançando um passo adentro, a primeira coisa que me abraça é o
som acústico vindo direto de algum aparelho pousado em uma mesa
improvisada de madeira. Ela parece querer desabar em qualquer momento,
então, com cuidado adentro o lugar por completo e fecho a porta. Varro toda
a extensão do salão com o olhar, as paredes são iguais às demais, todas
cimentadas e sem muita cor. Uma cama está posicionada no centro do salão,
ao lado dela, dois criados com abajures pouco iluminados destacam o
ambiente.
Há roupas espalhadas pelo colchão, todas escuras, ornando
perfeitamente com o lençol branco.
Uma coluna cimentada divide o salão em dois cômodos, e do outro
lado, tudo está escuro.
Minhas mãos deslizam pelo moletom da minha calça, sentindo-me
como uma completa intrometida. Mas quando noto a presença de uma
janela feita de vidro no centro de uma das paredes, com a cortina voando
para fora como consequência da ventania, sequer raciocino sobre o quão
antiquada eu devo estar sendo quando sem hesitar, corro até ela. Minhas
mãos agarram a cortina e retirando-a do meu caminho, eu jogo a cabeça
para fora, sentindo o vento extremamente gelado contra a pele do meu
rosto.
Como uma viciada, respiro fundo tantas vezes que mal posso contar.
Meu cabelo paira sob o ar e os meus olhos se fecham com o alívio.
Jesus, como isso é bom.
Posso sentir minha bochecha gelar com a mudança repentina de
temperatura, mas nada é melhor do que a sensação de respirar o ar fresco
após dias. Meus pés se juntam no chão e quando abro os olhos, baixando o
olhar, finalmente noto a altura que me encontro.
Puta merda, isso é alto.
Meus olhos saltam em terror quando torno a erguer a cabeça e
percebo a total falta de iluminação na rua onde estamos. É um completo
breu. A lua no céu é quase a única coisa que me ajuda a enxergar a altura do
prédio em que estamos.
— Gostou da vista?
Giro sobre os calcanhares tão rápido que minha visão embaça com a
tontura.
— Ai, merda! — Levo uma das mãos ao peito, apertando-o
exatamente acima do coração.
Um riso ecoa, e quando finalmente consigo normalizar a minha
visão, posso reconhecer Jay.
— Você é maluco ou algo assim? — respiro fundo, sentindo a gota
de suor escorrer pela minha testa.
Jay logo a minha frente, com ambas as mãos dentro do bolso do seu
jeans escuro e o corpo inclinado contra a parede, bufa um riso.
— Você está invadindo o meu quarto e eu que sou o maluco? — O
seu tom sarcástico não passa despercebido.
Arqueio a sobrancelha, desviando os meus olhos dele por alguns
segundos para observar o salão mais uma vez. A cama desarrumada, as
roupas espalhadas e escuras como ele sempre é habituado a usar, me fazem
aceitar que esta não é uma mentira. Eu realmente sou uma intrusa, uma
daquelas malcriadas.
— Me desculpa, eu só precisava respirar um pouco. Não era a
minha intenção atrapalhar. — Gesticulo algo com as mãos, totalmente
confusa e desajeitada. Estou decepcionada e muito constrangida, sem saber
o que fazer para me livrar dessa situação. Então tudo que eu faço é
caminhar em direção a porta, pronta para voltar para o meu quarto.
Quando estou prestes a passar por ele e fingir que nada disso
aconteceu, uma das suas mãos agarra o meu antebraço, interceptando o meu
movimento.
— Não consegue dormir?
Encarando-o outra vez, o seu sorriso já não está presente nos lábios
e ele parece realmente interessado na pergunta.
Nego.
— Não acho que eu consiga — solto o ar dos pulmões, sentindo-me
um pouco tola sob o seu olhar que parece enxergar a minha alma. — De
qualquer forma, me desculpe por invadir o seu quarto. Confesso que estou
um pouco chateada por você ter uma janela maior que a minha. — Quis
brincar, apontando com a cabeça em direção a janela.
De fato ela é melhor do que a que há no meu quarto, principalmente
por não estar tão alta a ponto de ser impossível observar a luz do dia.
Ele ri, desviando os olhos para onde eu acabo de apontar.
— Posso transferir você para um quarto com janela, se for da sua
vontade. — Seu olhar volta ao meu, e preciso engolir em seco ao quase ser
arrastada para o abismo tão profundo que são os seus olhos.
Tão bonitos.
Balanço a cabeça, afastando os meus pensamentos quando o garoto
larga o meu braço.
— Não é necessário, sério, não quero incomodar.
Jay se afasta e retira o que se parece com um cigarro do bolso
traseiro, junto a um isqueiro. Acompanho os seus movimentos até o
momento em que ele sopra a fumaça pelo salão e prende o cigarro entre os
dedos.
Ele não é novo demais para usar essa coisa? - penso.
Cuida da sua vida! - meu subconsciente rebate.
Balanço a cabeça, sem conseguir acreditar que eu estou em uma
discussão interna comigo mesma. Eu realmente estou enlouquecendo.
— Você não me incomoda, Clarke. Na verdade, é o contrário disso.
O encaro, sentindo o meu rosto queimar com o seu olhar fulminante
fixo em mim. Ele me deixa envergonhada? O que é isso?
Abraço o meu próprio corpo e abro a boca repetidas vezes tentando
formular uma resposta, mas nada parece ser suficiente. Ele está sendo gentil
desde o dia em que pisei neste prédio. No entanto, não sei como agir ou me
comportar em situações como essa. Tudo parece ser exagerado demais ou
forçado demais, como se eu ainda fosse o que papai me moldou para ser.
Não tenho a mínima ideia de como agir para me livrar dos padrões
estabelecidos por ele. Preciso criar o meu próprio. Sem a ajuda de ninguém.
Então, sabendo que vou me arrepender amargamente pelos
próximos minutos, me preparo para me sujeitar a uma tentativa de puxar um
assunto.
Qualquer coisa que me livre do pimentão que eu sei que meu rosto
se tornou.
— Então, Kelly é a sua irmã? — É óbvio que ela é sua irmã, Sofia,
que droga de pergunta é essa?
Balanço a cabeça e me atrapalho nas palavras em uma nova
oportunidade de consertar o vexame que estou passando.
— Quer dizer... Eu sei que ela é a sua irmã, mas... só estou querendo
dizer que foi uma surpresa pra mim. Ela disse que é de consideração. —
Atropelo as palavras e sem a mínima noção do que faço, finjo uma tosse
para justificar a minha frase mal formulada.
Estou com tanta vergonha que fixo os meus olhos no chão
cimentado como se a minha vida dependesse disso, não quero erguer o
olhar e encarar a realidade do que está acontecendo. Tampouco quero ver
aquele olhar julgador que todos me oferecem. O que ele deve estar
pensando de mim agora?
O quão difícil seria cavar este chão de concreto, me enfiar dentro
dele e nunca mais sair?
As maçãs do meu rosto queimam pela vergonha, e meus dedos
acariciam um ao outro para amenizar a agonia do meu corpo.
— Clarke — quando a sua voz rouca chega aos meus ouvidos,
erguendo os olhos receosos para encará-lo, diferentemente do que eu
imaginava, Jay não tem a mínima sombra de um sorriso no rosto. Ele
mantém uma das mãos em seu cigarro e seus olhos analisam cada canto do
meu rosto. — Por que está nervosa?
Engulo em seco quando cessando o movimento dos meus dedos,
abraço o meu próprio corpo outra vez, como se isto pudesse aliviar o que
sinto.
Não quero ser sincera com ele, não quero dizer que todas as pessoas
que eu tentava algum diálogo nos últimos meses, achavam-se no direito de
me humilhar, atormentar todos os meus dias e me desprezar apenas porque
eu sou filha de Sebastian Hazel Clarke. Não quero dizer que eu espero a
mesma coisa de todas as pessoas.
Ser largada em um colégio infestado de filhos daqueles que meu pai
roubava milhões de dólares, realmente foi um verdadeiro pesadelo.
— Não estou nervosa — Minto. As palavras saem tão baixas que
nem mesmo eu me ouço.
— Não minta. — O garoto atira a ponta flamejante do cigarro para o
chão e o pisoteia com suas botas. Deixo de acompanhar o movimento dos
seus pés apenas quando começam a caminhar em minha direção.
Erguendo o pescoço, meu coração acelera descompassado conforme
o garoto se aproxima, e sequer sei o motivo.
— Não estou mentindo — sussurro, e quando os seus olhos descem
à altura do meu pescoço e me acompanham engolir em seco, sei que ele
pega a minha mentira.
Ele é observador.
Um sorriso no canto dos seus lábios carnudos leva os meus olhos até
o local. Meu corpo queima a cada passo que Jay avança em minha direção e
apesar de sentir medo de sua proximidade, meus pés cravados no chão de
concreto não permitem que eu me mova.
Acompanho cada movimento seu e não ouso transmitir o quão tensa
estou, afinal, sei que um passo em falso, ele poderia enxergar tudo aquilo
que está escondido perfeitamente dentro de mim.
Torno a encarar os seus olhos quando o garoto cessa o passo à
minha frente, uma onda de choque percorre cada milímetro do meu corpo a
partir do momento que sinto a colisão de dois de seus dedos na ponta do
meu queixo, iniciando uma carícia leve com o polegar no local. Meu corpo
estremece conforme sinto a temperatura de seus dedos quentes como a
brasa em contato com a minha pele fria, e por mais que a proximidade em
que estamos seja uma novidade para mim, eu não me afasto.
Seu toque é bom. Coincidentemente, me lembra a forma como
mamãe beijava a ponta do meu nariz ou acariciava o meu rosto com a
pontinha dos dedos.
Não sinto vontade de fugir quando ele o faz, o que é estranho.
— Tudo bem. Use a janela quando quiser. Você já conhece o
caminho. — seu polegar acaricia a ponta do meu queixo em círculos uma
última vez, antes de Jay puxar a mão para si novamente e com um sorriso
genuíno sem mostrar os dentes, recuar alguns passos, sem quebrar o nosso
contato visual.
De repente, o meu corpo parece ser feito de Lego e temo desmontar
a qualquer momento.
— Por que você está sendo tão gentil comigo? — ouso perguntar ao
abaixar os braços e deixá-los ao lado do corpo.
Ele sorri.
— Gentileza não é o meu forte. Mas você vai descobrir isso. —
Noto quando a sua mão estende para trás e agarra a maçaneta da porta. —
Boa noite, Clarke. Aproveite a vista.
Então ele se vai deixando-me plantada no centro do quarto com
milhares de dúvidas voando sob minha cabeça e com o corpo mole como
uma gelatina.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA
Não sei quando foi que as lágrimas deixaram de rolar pelo meu
rosto durante a noite, mas quando eu abro os meus olhos e enfrento a
claridade que entra pela janela aguçando a sensibilidade dos meus olhos,
percebo que este vai ser outro dia daqueles cheios e irritantes pra cacete.
— Merda! — Murmuro, agarrando parte do edredom e o puxando
para cobrir os meus olhos.
Conforme eu tento arrastar o tecido aos meus olhos, a ponta dos
meus dedos se arrasta pelo lençol ao meu lado, mas quando derrapo a palma
da minha mão pelo espaço vago do colchão e o encontro completamente
vazio, abro os olhos e levanto-me em um sobressalto.
— Josh! — Meus olhos estão sensíveis, mas me esforço para
mantê-los abertos.
Posso sentir o meu cabelo roçando boa parte do meu rosto e o
meu corpo parece pesar uma tonelada devido as roupas que eu não me dei o
trabalho de trocar ontem a noite quando fugi para casa como uma covarde.
Meus olhos semi-abertos dificultam a minha tentativa de olhar ao
redor, ainda assim, observando o quarto em um raio de noventa graus em
ambos os lados, meu coração falha quando encontro o quarto vazio.
Acordar sem o meu irmão ao meu lado quando ele é sempre o
último a levantar, é desesperador e preocupante.
— Josh? — Chamo pelo seu nome uma segunda vez, levantando-me
da cama desajeitadamente e equilibrando o meu corpo em uma só perna.
Minha cabeça gira pela tontura e eu sinto que posso cair a qualquer
momento, mas usando de todas as minhas forças, me levanto, equilibrando
o meu corpo desta vez em ambas as pernas.
— As… — Ouço a voz do meu irmão ecoar, na direção da divisória
da mini cozinha com tranquilidade e quase penso ter notado empolgação no
tom de voz.
Solto o ar e finalmente esfrego os meus olhos para enxergar com
clareza. Jesus. Eu realmente estou ficando maluca com toda essa merda.
Caminho lentamente em direção ao outro cômodo para garantir que
o meu irmão está são e salvo. Os meus pés parecem uma batata que acaba
de ser cozida dentro dos tênis extremamente apertados, mas apenas os
ignoro e sigo o meu caminho até Josh.
Apoio-me na parede que separa os dois cômodos para passar pela
porta, e só quando ergo o meu olhar, noto o tanto de sacolas que há no chão.
Josh, ao lado dela, enfia dois pedaços enormes do que parece ser torta de
limão na boca. Que merda é essa?
— Isso aqui é uma delícia! — Eu nem sei como consigo
compreender o que ele diz com tanta torta enfiada na sua boca.
De onde veio tudo isso?
A cena parece ter feito desaparecer a tontura ou qualquer outra coisa
que me impeça de caminhar rapidamente até Josh e retirar os pedaços de
torta que estão fora da boca. Imediatamente atiro os restos para um canto
qualquer e vasculho as sacolas, estranhando o fato de ter toda aquela
comida dentro da nossa casa.
— De onde veio isso, Josh? — questiono, alcançando uma das
sacolas e separando as alças para verificar o que há dentro.
Biscoitos, muita comida congelada, macarrão instantâneo,
salgadinhos, caixas de donuts, caixas de torta de limão e morango, pote de
sorvete e muitas outras guloseimas que eu nem posso sonhar em comprar.
Que merda é essa?
Largo as sacolas e encaro meu irmão que ainda limpa o canto dos
lábios com o dedo e leva à boca os resquícios de torta, feliz como nunca.
— Josh! — Me esforço para ser rígida o suficiente para o meu irmão
perceber que não há nada de engraçado em tudo isso e que é hora de falar
sério.
Ele me encara, finalmente deixando de lado toda esta comida.
— De onde veio isso? — pergunto mais uma vez.
Meu irmão se encolhe, abraça os próprios joelhos e me oferece um
daqueles olhares de quem aprontou e está escondendo a travessura que
provavelmente me faria ter duas paradas cardíacas e um derrame.
Firmo os nossos olhares e Josh finalmente parece se dar conta de
que estou zangada com ele.
Eu não o ensinei a abrir aquela porta enquanto eu não estivesse
presente, também não o ensinei a comer qualquer coisa que não fosse eu a
oferecer. Ele quebrou uma das lições mais importantes ao longo destes
anos, então sim, eu estou zangada.
— Foi um presente… — Sua voz chorosa não me convence. — Ele
disse que eu poderia comer à vontade.
Franzo o cenho, sentindo o meu coração acelerar.
— Ele? Ele quem?
— Jason… — Josh desvia os olhos para o próprio corpo e retira
algo parecido com uma pulseira do bolso. — Ele me disse pra te entregar
isso, e que você tinha esquecido com ele noite passada.
Levo uma das mãos até o cordão preto da pulseira e enrolando-a
entre dois dedos trago a altura dos olhos, e o ato é o suficiente para
reconhecer de onde ela veio. O pingente de revólver balança no ar, o
símbolo de caveira preso entre ele, ornando como se a arma fosse uma
espada e estivesse partindo o crânio em dois.
Eu conheço isto.
É o mesmo símbolo bordado na jaqueta de Lexie ontem a noite, mas
não é esta a questão aqui, não é isso que chama a minha atenção, afinal, eu
sempre soube qual é o símbolo da Academia. No entanto, este aqui não é
um cordão comum. Eu já o vi uma vez, há muito tempo atrás.
É o cordão do Jason.
Ainda me lembro de vê-lo usando em seu pescoço por cima das
camisetas casuais que costumava vestir.
Ele transformou o próprio cordão em uma pulseira e ainda teve a
coragem de me enviar.
Quem caralhos ele pensa que é?
— Quem autorizou você a abrir a porta da nossa casa para
estranhos, Josh? O que eu te disse sobre isso? — estou furiosa, e mais uma
vez Jason está conseguindo tudo que quer. Abalar as minhas estruturas.
Meu irmão baixa o olhar e cruza os braços conforme sua cabeça
balança de um lado para o outro, aparentemente pensando em uma resposta
para a minha dúvida. E tinha que ser uma das boas.
No entanto, a ação do meu irmão é totalmente contrária ao que eu
realmente esperava. Seus ombros sacodem à medida que ele ergue os olhos
e ri baixinho.
Qual é a droga da graça?
— Ele disse que diria isso, e que eu deveria chamar você de
ranzinza quando o fizesse. — Meu irmão espreme os lábios, contendo o seu
riso quando nota que em meus olhos não há diversão alguma.
O interior de minhas narinas queima e minhas mãos começam a
tremer pela força imensa que é depositada em meu autocontrole.
Então esse é o seu jogo. Usar Josh contra mim.
O filho da puta mal pode esperar o tombo que seria descobrir que eu
não cairei na cilada mais uma vez.
— Foi ele quem trouxe toda essa comida?
Ele apenas assente. Seu corpo está completamente encolhido contra
a parede e seus olhos brilham, assim como a lambança em seus dedos. Meu
irmão pode odiar quando eu sou dura com ele, mas essa situação específica
precisa disso, Josh precisa entender que o passado está no passado e que
nada do que estávamos acostumados continua igual. Ciclos se encerram e as
pessoas mudam. Jason não é nada do que meu irmão pôde conhecer e ele
precisa entender isso de uma vez.
Tomo a frente da situação e inclino o meu corpo o suficiente para
prender as alças das sacolas em minhas mãos e trazê-las contra o meu peito
à medida que o ódio me cega e dispensa o apoio da racionalidade no meio
da confusão. Caminho no meio de nosso quarto de hotel com toda a comida
em meus braços, ouvindo os passos de Josh ao meu encalço quando chego
até a pia da mini-cozinha caindo aos pedaços.
Jogo os sacos na cuba e reviro o plástico, derrubando os alimentos
todos perfeitamente empacotados. Ele pensa que eu preciso de alguma porra
de caridade? Nesse caso, ele pode ir se foder.
Já me sinto impotente.
Já me sinto uma irmã de bosta. Incapaz. Neurótica.
Entregar uma dúzia de comidas em minha casa para provar que eu
preciso de ajuda e que seria obrigada a abrir mão de meu orgulho, tudo
porque é Josh o mais necessitado, é um golpe baixo. O cúmulo do que eu
sei que posso aguentar, isso já é demais até mesmo para mim.
Parece que é o que querem. Testar os meus limites.
Agarro uma das comidas e abro a embalagem, prestes a jogá-la na
lixeira. Não quero que alguém veja tal vulnerabilidade como passe livre
para mexer com a minha cabeça e manipular as minhas ações. Estou na
merda? Sim. Sem dinheiro para alimentar o meu irmão? Sim. Mas nem
mesmo isso é uma razão para baixar o nível de uma forma tão humilhante.
— Todas vão para o lixo? — sua voz chorosa às minhas costas me
liberta do transe caótico na qual estava imersa.
Com a embalagem em mãos, me viro, encontrando o rosto angelical
de Josh cabisbaixo e os lábios ainda sujos de chantilly. Baixo a guarda. Meu
coração se aperta na mesma hora, como se estivesse sendo esmagado por
todos os lados.
Há muito tempo eu não via um sorriso tão genuíno no rosto do meu
irmão, e tudo isso por ter diversas variedades do que comer diariamente.
Não vou negar, isso é a porra de um inferno. Tudo isso. Josh agiu por
impulso apenas porque poderia ter o que comer e quase nos colocou em
risco.
Se dependesse de mim, eu jogaria toda essa comida dentro da
privada e alimentaria os diversos insetos e vermes que devem viver no
esgoto, porque é para isso que serve tudo que vem dele. No entanto, não sou
apenas eu a prejudicada com toda essa história, eu ainda tenho uma criança
para cuidar e alimentar, e tudo isso, toda essa comida… provavelmente
facilitaria a nossa vida financeira por pelo menos algumas semanas.
Eu me coloco de pé, respirando fundo e mais uma vez, abrindo mão
de todo o meu orgulho para o bem do ser mais importante para mim. Posso
engolir o meu orgulho desta vez, se isto significar que não serei assombrada
pelo ronco de sua barriga durante a noite.
Afundo a mão no bolso a fim de guardar a pulseira para depois
pensar sobre o que eu farei a respeito dela, então ofereço a palma da mão
para Josh.
Ele ergue o pescoço e uma lágrima solitária escorre pelo seu rosto.
Só então eu percebo que estou sendo uma otária com o meu irmão graças a
ele. Tudo que envolve Jason não termina bem, eu sei disso, e mesmo assim
não me dei conta que estava perdendo o controle.
E mais uma vez, ele consegue o que quer.
— Vem, está tudo bem — balanço a mão, esperando que ele a
agarre.
Receoso, Josh pega a minha mão e circula a minha cintura com os
braços.
— Me desculpa, As, me desculpa, tá?
Acaricio o cabelo que despencou em seu rosto, afastando-os para
longe e fecho os olhos, me sentindo péssima por ter sido tão exagerada.
Josh não tinha como saber das coisas que eu o poupei, não tinha como ele
saber que o cara que nos ajudou mais do que qualquer um há alguns anos,
teria se transformado em um completo estranho e alguém que devemos
abominar até o seu último suspiro.
Meu Deus, eu realmente sou uma péssima irmã.
— Está tudo bem, Josh — ajoelho-me à sua frente, afastando-o o
suficiente para fitar os meus olhos. — Por que não me mostra tudo que
temos para comer?
A sombra de um sorriso se forma nos lábios dele e eu finalmente
entendo que deveria ter sido assim desde o início.
— Sério? — uma luz brilha em seus olhos ilustres.
Meu corpo incendeia, sei que em algum momento eu me
arrependerei por ter engolido o meu orgulho com tanta facilidade. Uma
hora, com toda certeza eu vou me amaldiçoar por ter dependido do pão que
o diabo amassou porque é o que pode saciar a minha fome. No entanto, não
será agora.
Assinto sem hesitar, contemplando a animação que controla os pés
de Josh ao guiá-lo até a cuba da pia com um sorriso insubstituível
estampado em seus lábios.
— Tem macarrão instantâneo — Ele toma algumas embalagens de
lámen em ambas as mãos, balançando-as no ar. — Não são os seus
favoritos?
Sim, sou literalmente apaixonada por macarrão instantâneo, e agora
eu sei que não é apenas o Josh que se lembra dessa informação.
— São sim — alcanço o pacote e trago à altura dos olhos, contendo
um sorriso conforme leio os sabores. — Talharim, carne com tomate,
legumes… Parece bom. — Baixando a embalagem para liberar o meu
campo de visão, encaro o meu irmão e balanço o pacote no ar. — Posso
cozinhar naquela coisa elétrica na cozinha, que tal um jantar?
Meu irmão ri, divertindo-se com a ideia.
— Eu topo!
Me sinto desprotegida e muito exposta.
Decidi que eu deveria me vestir sem que estivesse estampado na
minha testa “sou uma fugitiva”. Foi extremamente difícil sair de casa sem o
capuz cobrindo toda a minha cabeça e sem as minhas costumeiras roupas
largas. Mais difícil do que isso, foi tentar me convencer a não voltar para
casa e deixar que os homens de Floyd se fodam.
É claro que estou fazendo isso por ter a plena consciência de que
estão procurando por uma garota nas mesmas características que eu, mas
talvez agindo como uma civil comum e indefesa, eu fosse riscada da lista de
suspeitas. No entanto, ainda não descobri se é uma ideia genial ou mais uma
perda de tempo.
Erguendo o olhar pelas calçadas da cidade após rodar por todas as
lojas da proximidade atrás de um emprego suportável e humilhante por 15
dólares e ter sido rejeitada em todas elas, cesso o meu passo quando vejo a
silhueta de Lexie boquiaberta bem diante de mim a alguns metros,
observando-me com os olhos esbugalhados ao analisar o meu visual.
— E aí? — Lexie cantarola conforme desce os olhos por toda a
extensão do meu corpo ao caminhar na minha direção. — Quem é você,
garota?
Vasculhei todas as minhas roupas até encontrar um jeans justo e uma
jaqueta qualquer branca, sem capuz, por cima de uma blusa fina canelada
gola alta. Não fazia ideia de como aquilo tinha ido parar nas minhas coisas,
mas eu não posso reclamar. Ao menos estou apresentável para ser chutada
de todos os estabelecimentos, como de costume. Nos pés, meu único par de
coturnos desgastados, porém utilizáveis, completam o meu visual. Estou
parecendo com uma típica garota da Califórnia desesperada por um
trabalho.
— Alguém que não vê a hora de ir pra casa e tirar essa coisa —
aponto para a jaqueta tão velha que parece pesar toneladas.
Lexie ri.
— Não é tão ruim, você se acostuma — Aconchegando-se ao meu
lado e relaxando suas costas na mesma parede em que eu estava, Lexie me
encara. — Você está bem?
Ela está adorável. Seus lábios estão preenchidos por um gloss, como
sempre, seu cabelo preso em um rabo de cavalo no topo da cabeça e em seu
corpo, as típicas roupas pretas. Lexie consegue se parecer com a garotinha
inocente na qual eu me lembro, e com uma mulher cheia de cicatrizes, na
mesma proporção.
Sei que a pergunta foi direcionada ao episódio de ontem, mas eu não
quero falar sobre isso. Principalmente depois do que houve mais cedo.
— Considerando que fui enxotada para fora dos padrões de jovens
merecedores de um emprego de bosta, não, não tá nada bem.
Lexie torce os lábios, examinando o meu semblante decepcionado.
— Está procurando por emprego?
— Tenho uma criança para sustentar.
— Posso conversar com Rubens. Ele vai entender se eu disser que
você está passando por uma barra.
A encaro esperançosa, mordendo os lábios ao segurar a palavra “por
favor” que insiste em subir pela minha garganta. Já não me importa quantas
humilhações eu tenha que suportar até que possa ser uma mulher corajosa o
suficiente para encarar os meus próprios demônios para o bem da única
parte pura que há em minha vida. Mas o preço que seria pago… Ele fere os
meus princípios.
Quanto à Lexie, eu não sei como será a nossa relação de agora em
diante, mas definitivamente não quero fazer do nosso elo um diário de
mágoas e desgraças. Não quero cometer o mesmo erro. Nós já estivemos
aqui antes e quase pensei que a perderia para sempre pelas raízes do
passado, agora quero apenas cortá-las e cuidar da semente todos os dias
para que não adoeça.
Sujar a semente com o mesmo veneno que a matou da primeira vez
nos levaria de volta para o mesmo erro e a impediria de crescer. Assim é o
ciclo da vida.
— Eu agradeceria muito. — Quebro o silêncio ao desviar o olhar
para o movimento da rua, contemplando o voo dos pássaros até uma árvore
não muito distante de nós.
Lexie cruza os braços, assentindo levemente com a cabeça.
— Que isso… — a encaro, observando o sorriso sincero que brota
nos seus lábios. — Sabe que ainda pode sempre contar comigo.
Sorrio fraco, abaixando a cabeça. A verdade é apenas uma, estou
constrangida pela maneira que a tratei antes. Lexie ainda é a amável garota
que sempre me entendeu e me tratou como parte de si. Sempre tivemos esta
afeição uma pela outra, mas do lado de cá as coisas tinham balançado
demais nos últimos tempos e tudo estava completamente fora do lugar. Uma
grande turbulência emocional.
Ainda assim eu me arrependo por ter sido tão bruta e por ter
escolhido palavras tão baixas para atingi-la.
— Eu realmente tô feliz por você estar viva. Me desculpa por ter
sido tão explosiva. — Sussurro, relaxando as minhas costas no tronco de
uma árvore.
Lexie suspira, soprando um riso desacreditado.
— Eu já sabia que era da boca pra fora, de qualquer maneira — vira
a cabeça para a minha direção e estala a língua no céu da boca. — E a
propósito, tô feliz pra caralho por você estar aqui.
— Ah, acho que tudo seria melhor em outras circunstâncias… —
Sem dúvidas qualquer outro lugar que não estivesse infestado de capachos
do Floyd, seria melhor. Estou rindo da piada, mas na verdade isso
claramente seria um motivo para me debulhar em lágrimas.
— Eu sobrevivi a dois tiros, meu amor. Nem a morte quis conviver
comigo no inferno, então vamos ver o que aqueles cuzões vão fazer a
respeito. — Arregalo os olhos, incrédula por Lexie estar dizendo algo assim
em público, mas ela realmente não parece se importar.
Faço uma careta e olho ao nosso redor, apenas para me certificar de
que estamos sozinhas.
Assim que Lexie dá de ombros e age com total naturalidade, noto
que duas senhorinhas passam caminhando ao nosso lado, nos encarando
como se fossemos duas monstruosidades. Uma delas murmura um “Jesus
Cristo” enquanto a outra apenas gesticula o sinal da cruz em seu peito. Quis
rir da cena, mas tudo o que faço é esconder os lábios e arranhar a garganta,
engolindo a gargalhada que ameaça me escapar.
Lexie arqueia uma das sobrancelhas, me encarando como se eu
fosse algum tipo raro de extraterrestre, eu apenas gesticulo disfarçadamente
em direção às senhoras que resmungam algo baixinho enquanto nos fitam
por cima do ombro, esperando que a minha amiga entenda de uma vez por
todas que eu não tenho o mínimo interesse de responder perguntas sobre ser
uma comparsa de crime na delegacia.
— Ah — Lexie inclina a cabeça, finalmente se dando conta que
alguém a ouviu. — As senhoras não têm educação? É feio ouvir a conversa
dos outros. Só por causa disso, pedirei ao meu grão-senhor das trevas para
que as visite esta noite! — O seu tom maquiavélico faz com que as
senhoras corram entre os carros, especificamente, para longe de nós.
Quase engasgo com a risada que me escapa, imediatamente tapo a
boca com uma das mãos para abafar o som constrangedor.
— Você enlouqueceu?
Lexie ri, jogando a cabeça em direção a calçada, convidando-me
para uma caminhada casual. Eu a acompanho, ainda rindo em medidas
controladas.
— Aspen, tipo, todo mundo da cidade sabe quem eu sou — revela,
sem conter uma gargalhada genuína. — Não é novidade pra ninguém que
eu sou desequilibrada. Mas confesso, não há nada que pague a cara delas.
— Lexie tosse, contendo uma gargalhada que poderia chamar a atenção de
toda a cidade.
Lhe dou um empurrão de leve, que só a incentiva a aumentar o riso.
— Elas podem nos denunciar! — Faço uma careta antes de encará-
la por cima do ombro. — E como assim as pessoas sabem quem você é?
Cessando o riso, Lexie dá de ombros no mesmo segundo em que
paramos diante de uma faixa de pedestre, esperando o sinal abrir para que
possamos atravessar.
— Eu nasci aqui — revela. — Como você sabe, eu sou irmã de
consideração de você sabe quem. — Ela faz uma careta ao citar o novo
apelido para citar o assunto proibido em nossa relação, e por incrível que
pareça eu quis rir.
— Sim, mas eu pensei que você tinha nascido em Nova York —
desvio de pedestres conforme atravessamos a rua.
— Eu cresci em um lar adotivo, na verdade. Nunca soube de
verdade em que lugar exatamente minha “mãe” deu à luz a mim — Lexie
faz aspas com os dedos ainda agarrados na alça da mochila. — Mas a partir
do momento que eu tive mentalidade para saber onde estava, eu me
apaixonei pela cidade. O lado ruim de cidade pequena são os fofoqueiros de
plantão, então sim, a maioria aqui sabe que eu sou descontrolada e emotiva
demais. Eles me acham exagerada.
Nós já tínhamos tido essa conversa, então, tudo que eu faço é
confirmar com a cabeça e seguir caminhando. Lexie e eu somos mais
parecidas do que gostaríamos e um dos motivos é ambas termos sido usadas
para um esquema sujo. Eu entendo que não é fácil ter esse lado da sua vida
exposto para milhares de pessoas, simplesmente não consigo compreender
como está a sua cabeça quando a cada passo dado nas ruas, as pessoas te
observam e te julgam sem saber um terço do que viveu. Ela não parece se
importar, mas quando vivemos momentos tão apavorantes como esses,
aprendemos a fingir bem. A oferecer um sorriso e acenar. Mesmo quando
desejamos apenas desmoronar.
Embora Lexie pareça não se importar, eu a conheço o suficiente
para saber que tudo isto não é nem um pouco confortável para ela. E por
este motivo, não sinto a mínima vontade de prolongar o assunto.
— Então foi assim que você se tornou tão íntima de Rubens? —
pergunto, mudando o assunto.
Lexie sorri, parecendo viajar nas próprias lembranças de sua mente.
— Rubens é um ser humano incrível. Ele me ajudou muitas vezes
quando criança, tipo, com comida fresca, teto, um banho quente… Com
uma vaguinha de emprego mixuruca para espiar minha amiga fujona… —
quando Lexie ergue o olhar para me encarar, um ponto aleatório em algum
lugar da rua onde estamos, seu sorriso desaparece e o par de sobrancelhas
se juntam. — Aqueles caras, ali — gesticulando com a cabeça suavemente,
a morena me encara. — Você reconhece algum?
Sigo o seu olhar, espremendo os olhos para facilitar a minha visão.
É quando encontro dois homens encostados casualmente em uma SUV
prata, ambos de braços cruzados enquanto observam o caminho que
fizemos há alguns segundos. Aguço a minha visão e quando procuro
vasculhar o rosto do garoto de cabelos castanhos tão alto quanto o homem
barbudo ao seu lado, eu o reconheço de imediato.
Cessamos o passo e posiciono-a à minha frente, na intenção de tapar
completamente a visão da dupla.
— Aquele garoto, o de camisa escura e suéter, eu já o vi antes. —
pisco algumas vezes, tentando me recordar do maldito nome dele. Aguço
todos os meus sentidos e me esforço para me lembrar de todos os detalhes
da nossa conversa.
Lexie encara disfarçadamente o outro lado da rua onde estão os
caras e seus olhos voltam aos meus outra vez, procurando por uma resposta.
— Eu precisava de um ar… Depois da nossa conversa. Então fugi
para uma estrada deserta e fiquei apenas ali, encarando o riacho e
repassando os últimos anos quando um cara apareceu. Do nada. Ele quis
saber o meu nome, pagou de simpático… Esbarrou em mim
acidentalmente… — balanço a cabeça e começo a ligar os pontos
lentamente.
Interrompendo-me, Lexie balança a cabeça e mordiscou os lábios.
— Você disse a ele? — questiona. — O seu nome.
Nego.
Assentindo, Lexie circunda meus ombros com um de seus braços,
puxando-me para ela e colando os nossos quadris. Faço uma careta e estou
prestes a resmungar, quando o aperto de sua mão me cala como uma
repreensão.
— Temos que improvisar, a partir de agora somos um casal —
arregalo os olhos, mas ela simplesmente não permite que eu abra a boca
para resmungar. — Na próxima esquina vamos nos separar, você vai para a
direita e eu para a esquerda, vou me esconder e te seguir assim que der. Se
nenhum deles seguir você, então funcionou.
Não é uma má ideia, apesar de ser extremamente arriscado. Porém,
de qualquer forma, assim que avançarmos alguns passos à frente, eles nos
notariam de qualquer jeito. Ou seja, não há outra alternativa. Eu preciso me
arriscar e agir como uma civil normal que tem uma namorada e estão
caminhando juntas por essa linda cidade, é uma coisa extremamente
normal, não?
— Tá legal — concordo, circundando a sua cintura com um dos
braços. — Próxima à direita, né?
— Próxima à direita. — Confirma.
Aquiesço.
Lexie captura o seu telefone no bolso traseiro da jeans com a mão
livre e o ergue à altura dos olhos. Acompanho o seu movimento apenas para
me dar conta de que ela pretende fazer com que pareça que estamos
entretidas com algo que há no celular. Ela é realmente inteligente.
Nós sussurramos coisas totalmente sem sentido conforme
caminhamos pela calçada. Não ouso erguer o olhar para observar os caras
do outro lado da rua, só não sei se o motivo é por estar com um medo
infernal ou apenas porque não faço ideia de como agir fora das sombras.
Lexie me guia, o seu braço relaxa casualmente em meu ombro e
seus lábios se curvam em um sorriso atrativo conforme gesticula em direção
ao telefone, como um aviso para que eu siga os seus passos e faça de conta
que há algo de engraçado no aparelho. Seguindo os seus passos, eu abro um
sorriso suave e forço o meu aperto em sua cintura, relaxando a minha
cabeça em seu ombro.
Eu não estou olhando para a cena, mas sei que estamos fazendo um
bom trabalho. Realmente parecemos com um casal bem apaixonado.
Deixo de encarar o telefone apenas quando ouço a voz rouca de um
cara parado bem à nossa frente. Meu coração parece errar uma batida, mas
uso todo o meu autocontrole para manter as minhas expressões o mais
natural possível. Quando ergo o olhar, percebo que estamos literalmente na
merda.
O cara da estrada está a poucos metros de distância, ambas as mãos
nos bolsos do seu jeans e o cabelo totalmente bagunçado, além do sorriso
gentil que adorna os lábios. Ele é um bom ator, não?
— Com licença, meninas — Ele encara Lexie por alguns segundos,
e quando as suas esferas castanhas vem ao meu encontro, sua expressão
surpresa indica que ele me reconheceu. — Oi… é… A garota da história
bizarra do chefe assassino, não é? — Ele parece conter um riso, eu, no
entanto, apenas abraço o corpo de Lexie e me esforço ao máximo para ser
gentil.
— Sou eu.
Lexie me encara de soslaio, sem deixar de acompanhar a conversa e
relaxar o braço em meu ombro. Eu encaro o sujeito e procuro encontrar
algum vestígio de que ele pode mesmo ser algum suspeito. No entanto, ele
continua com o seu par de olhos brilhantes, como se de fato não fosse
alguém que devêssemos nos preocupar.
Tão convincente.
— Bom, eu não quero atrapalhar o casal — desviando os olhos dos
meus, o homem encara Lexie por tempo demais e quase pergunto se há algo
de errado. No entanto, ele balança a cabeça e volta a me encarar. — É que
na verdade, eu e o meu amigo estamos fazendo uma pesquisa para a
universidade e estamos procurando por uma garota específica que poderia
nos ajudar com esse pequeno problema — Ele aponta na direção de seu
amigo.
Nós seguimos o seu sinal, e o olhar completamente mal
intencionado de seu amigo encostado no capô do carro, mantendo a todo
tempo um telefone em mãos à altura do quadril, extermina todas as minhas
dúvidas, se é que havia alguma. Isso está longe de ser uma cena agradável
de se ver.
Volto a encará-lo no momento em que ele prossegue:
— Nós sabemos que ela vive por estas redondezas, mas não a
encontramos em lugar algum — coçando a nuca com a ponta dos dedos, seu
olhar alterna entre mim e Lexie. — Por acaso vocês não conhecem Sofia
Clarke?
Eu congelo.
A saliva que eu engulo completamente no seco parece ser feita de
navalhas e rasga toda a minha garganta por dentro. Meu aperto em Lexie se
intensifica e eu simplesmente não sei como agir ou como responder a sua
pergunta sem demonstrar o pavor que estou sentindo dentro de mim.
Imploro mentalmente para Lexie tomar a frente do assunto, pois se
depender de mim, nós estaremos mortas.
— Eu procurei por ela há alguns dias, perguntei diretamente a
alguns moradores e não obtive uma resposta positiva — isso explica porquê
ele decidiu “esbarrar” em mim durante a noite.
Abro a boca para respondê-lo, no entanto, Lexie guarda o seu
telefone novamente no bolso do jeans e inclina a cabeça, aproximando os
nossos rostos. Respiro fundo e a encaro, perguntando visualmente que
merda ela está fazendo, porém, mal tenho tempo para raciocinar o que
acontece, porque os seus lábios grudam nos meus.
É um beijo técnico, nada de língua, nada de saliva, no entanto, o
cheiro e textura de seu gloss substitui completamente o que poderia ter sido
incluído no beijo. Tem cheiro de chiclete. Além do cheiro suave de seu
perfume que parece vir direto até as minhas narinas.
Quis me separar dela imediatamente, porém Lexie retira a mão de
meu ombro para levá-la a minha nuca, onde reúne boa parte do meu cabelo
e o joga todo para só um lado, afastando-o enquanto os seus lábios
preenchidos de gloss espalham beijos por meu queixo, mandíbula e nariz.
— Não conhecemos essa tal Clarke aí — responde, finalmente
afastando os nossos rostos para encará-lo. — Nós passamos metade do
tempo por aí, invadindo propriedades privadas para que possamos nos pegar
sem sofrer homofobia, sabe? Os filhos da puta tratam a gente como se
pudéssemos passar HIV pelo ar. — suspirando, ela estala a língua e finge
uma tosse exagerada. — Sabe como é, eles ainda estão no maldito século
dezoito, quando as mulheres engravidavam sem parar e eram obrigadas a
servir o marido como se tivesse um pau banhado a ouro. Enfim, o que eu
quero dizer é que nós somos excluídas por sermos lésbicas, sabe? Fazemos
até a posição da tesoura e… — Lexie gesticula a posição com as mãos,
arrancando de mim uma gargalhada tão genuína que mal tenho tempo para
perceber o que faço, quando o garoto levanta a mão, impedindo-a de
continuar a sua fala.
— Sim, claro, já entendi — ele sorri um tanto quanto constrangido,
retirando a mão de seu bolso e recuando um passo. — Obrigado pela ajuda,
meninas, desculpem o incômodo.
O homem dá as costas para nós e caminha exatamente para onde
estava no primeiro momento. Posso ver a figura de seu amigo finalmente
desviar os olhos de nós parecendo insatisfeito quando viu o amigo voltar
para o carro. No entanto, desvio os meus olhos e praticamente arrasto Lexie
para longe dali.
Meu rosto queima como um pimentão e eu não sei se é pelo
constrangimento gigante da situação ou por Lexie ter me beijado. De
qualquer forma, foi o que salvou a nossa pele e eu não poderia ser mais
grata.
Olho a nossa volta, ainda enxergando os caras encostados no carro
observando nós nos afastarmos. Por mais que inicialmente eu tenha odiado
a ideia de nos separarmos e ter que lidar com uma possível fuga
completamente sozinha, agora me parece ser uma ajuda vinda direto do
meu protetor lá de cima.
— Nos vemos daqui a pouco, então? — pergunto, encarando-a
quando alcançamos a primeira esquina.
Tenho medo que ela note o quão apavorada eu me sinto.
Lexie mordisca os lábios e me encara, afirmando com a cabeça. Ela
parece ainda mais leve do que no início, e embora eu me questione do
porquê, meio que agradeço por não ser um assunto que deve ser
prolongado. É melhor assim.
— Cuidado, ok?
Afundo ambas as mãos nos bolsos da jaqueta e assinto recuando
alguns passos em direção a curva que me leva para o lado oposto.
— Você também.
Não espero por uma resposta, giro sobre os calcanhares e acelero o
passo para o caso de ser perseguida e ter que manter uma distância
considerada daqueles caras. Isso certamente facilitaria a minha fuga.
De segundo em segundo olho para trás, sentindo a agonia me
corroer por dentro como um vírus mortal. Não é uma novidade para mim,
tudo isso já aconteceu outras vezes e por experiência própria, eu odeio cada
segundo disso. Fugir era a última coisa que eu imaginava vivenciar quando
viemos para cá. A vida perfeita que eu imaginei já não existe, mas eu tenho
que aprender a lidar.
Assim é a minha vida. Não existem bons momentos, somente
aqueles que podem me matar. E este assunto em específico, mata cada
pedaço meu a cada dia que passa.
Sinto uma queimação em minha nuca, como a sensação de estar
sendo observada. É estranho, já senti isso outras vezes, mas nunca gostei
dos calafrios que vinham junto dela.
Olho ao meu redor, sentindo-me um pouco nervosa. A rua está um
completo breu, ao contrário da rodovia completamente movimentada em
que caminhávamos há alguns minutos. O tempo está nublado, as ruas
úmidas por consequência do tempo chuvoso, o céu repleto de nuvens
escuras e o sol se nega a dar as caras, o que apenas facilita para que isso se
pareça com uma cena desagradável.
Não há ninguém na rua além de mim, mas o formigamento em
minha nuca não deixa de queimar.
Sigo a minha caminhada, desta vez, prestando atenção em todos os
carros que estão no acostamento. A minha figura reflete nos vidros
transparentes, e me sinto aliviada por perceber que todos os carros estão
vazios.
No entanto, a minha tranquilidade dura até o momento em que
caminhando ao lado dos carros, noto a minha figura refletida
completamente em um dos vidros. Cesso o meu passo e encaro o meu
reflexo, fazendo uma concha com uma das mãos na intenção de facilitar a
minha tentativa de olhar o que há do lado de dentro.
Porém, varrendo o meu olhar até a extensão do carro, noto os vidros
totalmente escuros e a pintura fosca. Aquele carro não é desconhecido por
mim.
Eu já o vi antes.
Há alguns dias.
Este é o Mustang de Jason.
Imediatamente me recordo da merda que ele fez hoje cedo, enquanto
eu dormia tranquilamente. Enquanto eu implorava para que as lembranças
de sua existência simplesmente evaporassem da minha cabeça. Ele quis me
provocar, quis fazer com que me sentisse mais incapaz do que já sinto, e
além de tudo, usou aquilo que eu mais amo para me atingir.
Por que eu não poderia lhe pagar na mesma moeda?
Eu realmente espero que esse carro tenha algum valor para ele.
E, talvez eu queira retirar o que disse. Talvez haja sim alguns
momentos bons na minha vida a serem aproveitados.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA
Manter a cabeça no lugar tem sido uma das missões mais difíceis
que eu poderia enfrentar. Toda vez que fecho os olhos me vejo dentro
daquele muquifo, sem a mínima vontade de continuar respirando. É como
se nada pudesse apagar os últimos anos da minha cabeça.
Tudo ainda me atormenta. Como a porra de um espinho que crava
na pele e não deixa de te ferir até que o arranque, mesmo que sinta a mais
cruel das dores. A mais insuportável.
Não há outra explicação para tudo isso. Realmente estou
enlouquecendo, estou destruído e estou fora dos trilhos. Isso não deveria me
surpreender?
Pela primeira vez em anos, estou sem saída. Estou puto pra caralho
e nada importa além de caçar um por um todos eles, cada maldito filho da
puta que subestimou o demônio que sempre disseram que eu seria. Há
algum tempo atrás, eu odiaria a ideia de ser comparado a um demônio pelos
motivos errados, mas agora, eu realmente espero que eles tenham ciência de
seus pecados, porque serei eu, a condená-los eternamente.
— Cara — Ao meu lado, ouço a voz de Hyuk. Eu o encaro de
soslaio, despertando-me dos devaneios. — Tem certeza que quer fazer isso?
Hyuk quer garantir que eu sei bem o que estou prestes a fazer.
Entendo a sua preocupação, ele tem medo do que pode acontecer com todos
ao meu redor caso, de repente, quando ninguém estiver esperando, a bomba
relógio dentro de mim exploda. Não o julgo por isso. Nem mesmo eu, que
sei absolutamente tudo sobre o que estou sentindo no momento, sou capaz
de controlar e prever o que farei em seguida.
É como se eu estivesse no modo automático.
— Está pulando fora? — Digo o encarando por cima do ombro,
Hyuk sorri sarcasticamente ainda encarando os meus olhos.
— Vamos nessa. — Ele varre a rua com o olhar por breves segundos
antes de abrir a porta do Mustang e erguer o capuz pela cabeça.
Eu o acompanho sem ter o trabalho de esconder a minha identidade.
Pulo do carro e dou a volta pela frente, enfiando as mãos nos bolsos da
jaqueta.
— Acha que ele vai estar aí? — Questiona conforme caminhamos
até a entrada do prédio.
— Ele não tem um lugar melhor pra se esconder.
Hyuk apenas assente quando leva uma das mãos até a maçaneta do
prédio e me olha uma última vez antes de abri-la abruptamente e levar a
mão livre para alcançar a arma presa no jeans. Quando o ruído da porta
colidindo contra o batente de madeira ecoa pelo hall de entrada, ergo o
pescoço para encarar o lance de escadas retrô caindo aos pedaços, o papel
de parede apodrecido e as madeiras abaixo dos nossos pés causando um eco
por todo o ambiente a cada passo que avançamos.
— Que porra de lugar é esse? — Hyuk grunhe conforme tapa o seu
nariz com o antebraço. O cheiro do lugar é horrível. — Floyd não deveria
ao menos pagar por uma estadia decente para os capachos dele?
Sigo observando o lugar, sem deixar de reparar nos quadros bizarros
pendurados na entrada, algo a ver com símbolos satanistas.
As flores mortas dentro dos vasos transparentes esclarecem a nossa
dúvida de que não há gente normal vivendo nessa espelunca.
Duvido muito que Stuart Mccall viva dentro deste lixão com a
própria mãe, embora espere que seja realmente uma mentira. A cena que
aconteceria com ele, nenhuma mãe deveria presenciar.
— Marcus não se importa com ninguém além dele mesmo, não é
uma novidade. — É uma afirmação óbvia, mas é preciso dizer em voz alta.
Hyuk não diz mais nada, entendo que ele ainda esteja tentando
compreender quem sou agora, já que não consigo dizer absolutamente nada
sobre os últimos três anos. No entanto, isso não é algo que eu precise dizer.
Tenho outros planos. Explorar o meu ódio acumulado de uma outra
maneira.
Sem esperar por uma resposta, subo os degraus de dois em dois,
acelerando a minha chegada ao segundo andar.
O meu sangue ferve, a ponta dos meus dedos arde pela tamanha
força que eu uso ao cerrar os punhos dentro do bolso. Meu coração acelera
de maneira descompassada e sinto que essa agonia não vai acabar até que
eu liberte tudo aquilo que ainda me mantém preso ao passado.
Quando enxergo o letreiro prateado do apartamento 13B brilhando
sob a madeira da porta, me aproximo a passos largos. Olho ao meu redor
para garantir que não há outros caras além de Stuart hospedados no lugar.
Tudo está um completo breu, nem um ruído sequer vem das outras duas
portas posicionadas à nossa esquerda.
Encaro Hyuk por um segundo, avisando-o visualmente que irei
arrombar.
Quando ele assente, não tardo a erguer uma das pernas e usar de
toda a minha força para chutar a porta, apenas para o caso de Stuart ter
travas reforçadas. A porta bate com força contra o batente com tamanha
brutalidade que o metal da maçaneta cai do suporte e rola pelo chão.
Ignoro todo o barulho e puxo a arma presa no quadril, levantando-a
à altura dos olhos ao mesmo tempo que invado o apartamento de Stuart. O
mal dos homens do meu pai é que eles não entendem que eu sou parte de
uma raça ainda pior do que aquele que lhe dá as ordens, o que certamente
faz com que eles duvidem de minha capacidade.
Mas não por muito tempo.
Vasculho cada canto do apartamento com os olhos, sem deixar de
apontar a minha arma para cada lugar.
Há tantas pichações nas paredes que o branco quase não é visível
por baixo do preto grafite. O sofá laranja surrado no meio da sala é o único
móvel que torna o ambiente menos vazio. Há latas de cervejas atiradas por
todo o chão, um colchão velho e desgastado no centro da sala e o odor
horrível que vem direto do que parece ser um banheiro não permite que eu
mantenha os meus braços livres. Cubro metade do rosto com o antebraço e
observo Naten fazer exatamente o mesmo.
— Porra. — Resmunga, conforme caminha na direção do banheiro.
Alcançando a madeira com a ponta dos dedos, Hyuk empurra levemente a
porta e grunhe, jogando a cabeça para trás. — Parece que Stuart andou
irritando mais gente do que imaginávamos.
Sem entender o que ele quer dizer, tomo a sua frente, observando o
que há dentro do cômodo.
Reprimo os lábios e solto um longo suspiro ao encontrar o corpo de
Stuart sem vida por cima de muito vômito e álcool. Eu conheço isso, os
homens do Marcus não possuem uma maneira muito comum de deixar uma
trilha de corpos por Nova York. Eles nunca costumam dar um fim no corpo,
porque querem ser vistos e querem ser temidos.
Este é o fim de todos os informantes que são descobertos. Stuart era
um deles, e bastou apenas algumas horas após a minha descoberta para que
ele fosse morto. Há quanto tempo eles estão em WonderFall?
— Nosso cara está morto. — Hyuk fecha a porta do banheiro e varre
o apartamento com o olhar até se encontrar com o meu. — Acha que foram
os mesmos que você encontrou no Studio?
Travo a mandíbula ao confirmar com a cabeça levemente. Não é
uma coincidência, eles estavam atrás do Stuart e sabiam que nós o faríamos
falar. Por bem, por mal, não importa. Ele nos daria as informações que
quiséssemos ter, porque o merdinha imprestável aceitaria tudo, menos uma
morte lenta e dolorosa. Ele não conhecia a palavra lealdade quando a sua
vida corria algum risco.
Stuart era um merda. E agora é um saco de merda inútil.
— Qual é o plano?
Penso em respondê-lo, no entanto, de repente, a minha cabeça
parece pesada demais para ser sustentada apenas pelo pescoço. Minha visão
é duplicada e tudo parece ser menor do que realmente é.
Os efeitos colaterais do LSD.
A minha pele arde e queima e o suor que escorre na pele do meu
rosto não é algo que eu não saiba lidar. Se trata de uma das merdas causadas
pela crise de abstinência, e tudo que eu consigo desejar neste momento
estressante por ter perdido a nossa única fonte de informação, é acabar com
o plástico recheado de cocaína que tenho certeza estar enfiado no bolso
traseiro do jeans.
No entanto, isso não é o tipo de coisa que Hyuk precisa saber.
Ninguém precisa.
Sei que é questão de tempo alguém perceber o meu comportamento
agressivo e aéreo. Não é algo que eu consigo esconder muito bem,
tampouco faço questão. Mas essa merda há de ser resolvida e eu preciso
fazer sozinho. Não é como se alguém pudesse me ajudar com o meu vício
descontrolado em drogas.
É a única coisa capaz de acalmar os meus demônios.
A minha válvula de escape.
— Jason, você tá me ouvindo? —O tom impaciente de Hyuk faz
com que eu erga o pescoço para encará-lo. Quando nota a minha atenção,
torna a falar alguma coisa que eu não consigo decifrar. Leitura labial não é
o meu forte, e por que caralho o mundo parece estar no mudo? — Então,
você entendeu?
— Sim — Não tardo a dizer.
Preciso sair daqui.
— No computador dele deve haver alguma coisa, vou procurar por
ele. — Hyuk caminha em câmera lenta, além de sua figura estar
completamente desfocada. Me dou conta de que ele procura pela merda do
computador quando o borrão preto de seus braços bagunça o sofá e as
porcarias que há nele.
Eu preciso sair daqui.
— Que seja, vou esperar no carro.
Não esperando por uma resposta de Hyuk, saio em disparada para
fora do apartamento. Tudo gira como a porra de um beyblade, e nada faz
muito sentido na minha cabeça. O suor frio escorre por ambas as têmporas
e, de repente, esta já não é uma tarde fria e chuvosa de WonderFall. Parece
estar fazendo cerca de trinta graus.
Levo uma das mãos até o corrimão da escada e me esforço para
enxergar os degraus. O som do ambiente desapareceu por completo, não há
ruídos das madeiras e nem mesmo posso ouvir o som das minhas botas
tropeçando na descida de um degrau para o outro. A respiração ofegante e
as batidas do meu coração são tudo que eu posso ouvir quando reforço o
meu aperto no corrimão e uso todas as minhas forças para impedir que meu
corpo saia rolando pelas escadas abaixo.
— Porra! — Resmungo, piscando diversas vezes na tentativa de
normalizar a minha visão.
Baixando a cabeça e expirando profundamente, fecho os olhos e
puxo todo o ar que consigo. Os meus pulmões estão fodidos, mas estou
contando com que eles não me deixem na mão agora. Tudo está cooperando
para que eu pare de resistir e me afunde naquilo que por muitos anos foi o
meu refúgio. Mas não estou disposto a me perder nessa merda outra vez.
Respiro fundo uma última vez, antes de colocar toda a minha força
em ambos os braços e usar o corrimão como apoio para erguer o meu corpo.
Quando abro os olhos, a tontura não desaparece, mas eu sei que isto só pode
ser um teste comigo mesmo.
Por quanto tempo você ainda vai resistir?
Eu não quero responder as vozes da minha cabeça, e talvez o motivo
seja porque não faço a mínima ideia de qual seja a resposta.
Que se foda essa merda.
Contraio os meus ombros e relaxo o pescoço, soltando o ar preso há
minutos. Solto o corrimão e me arrasto escadaria abaixo conforme seco boa
parte do suor com o antebraço coberto pelo moletom. Caminho em passos
largos e me esforço para não tropeçar nos meus próprios pés no caminho até
o meu carro.
No primeiro contato com a claridade, ergo o pescoço e permito que
todo aquele ar fresco abrace a minha pele, então respiro fundo e o inalo
como a porra de um viciado. Fecho os olhos e espero que todo o calor
infernal seja substituído pelos calafrios causados pelo vento frio.
Estou perdendo o controle e sei bem disso. A prisão e tudo que vivi
dentro dela ainda perturba a minha cabeça, me deixa frágil e incapaz de agir
conscientemente. Os últimos três anos são pequenos borrões que eu gostaria
de apagar da cabeça, queria que nunca tivessem existido. Mais do que isso,
queria voltar há três anos atrás e fazer as coisas de outro jeito, como não ser
um filho da puta emotivo e ter matado Marcus no primeiro segundo que
pisou dentro do meu território.
Eu falhei. Sou um filho da puta do caralho por ter feito as coisas do
jeito errado e as consequências que vieram depois disso são merecidas. Sei
disso.
Entro no carro, esfrego os olhos com uma das mãos e agarro o
volante. Respiro fundo tantas vezes que posso sentir a ardência do sangue
que circula pelo meu corpo. A ponta esbranquiçada dos meus dedos é um
claro sinal de que possuo muita coisa reprimida para colocar para fora, mas
eles tinham um alvo específico. Muitos deles.
Não percebi que agarrava o volante com tanta força, até ser
despertado pelo baque de algo sendo arremessado pelo capô. Sou
transportado de minhas lembranças e consequentemente afrouxo o aperto,
observando a tonalidade avermelhada retornar para a ponta dos dedos.
Solto o longo suspiro de um ar que estava preso nos pulmões e
afasto todas aquelas lembranças da minha cabeça. Não é algo que goste de
me lembrar. Eu odeio tudo referente ao passado, odeio ainda mais o monte
de lixo que me tornei depois dele. Eu sequer sei quem sou.
Estou perturbado, de fato. O tempo preso em um mini quadrado
minúsculo deixou-me fodido. Eu ainda estou tentando me acostumar com a
ideia da realidade realmente existir. Os últimos anos não foram nada além
de sonhos e realidades alternativas que nunca existiriam.
Eu ainda duvido que realmente esteja respirando e não seja apenas
uma falsa realidade que o meu cérebro criou para distorcer os fatos do que
eu mais desejei nos últimos anos.
— Cretino imbecil — Ouço um resmungo do lado de fora do0
Mustang.
Largo o volante e movo o meu corpo no banco o suficiente para
tentar enxergar o vidro traseiro, na intenção de encontrar de onde vem
aquela voz tão familiar. Quando varro a traseira do carro com o olhar, não
vejo nada além de outros carros estacionados.
Endireito o meu corpo mais uma vez e levo ambos os braços até o
volante, usando-os como apoio para a minha cabeça, onde a apoio e solto
alguns xingamentos, por mais uma vez, estar preso em uma porra de sonho
infinito. Eu ouço vozes, mas nada é real.
Mais uma vez, os tremores se manifestam no meu corpo. É como se
eles estivessem implorando pela cocaína, como se soubessem que ela
aliviaria toda a tensão presente nos meus músculos. A agonia sumiria, sei
disso. Mas o que viria depois, a depressão constante que me levaria ao
fundo do poço outra vez, me destruiria. E não teria ninguém para me jogar
uma corda.
A sensação de tranquilidade oferecida pela cocaína não significaria
nada depois que a brisa passasse e a ficha começasse a cair. Nada teria
valido a pena. Aquela merda somente desacelera os sentimentos que uma
hora ou outra virão à tona.
— Toma essa, cretino! — A mesma voz abafada ecoa do lado de
fora, interrompendo os meus pensamentos.
Mal tenho tempo para processar o que acontece quando o mesmo
baque de algo sendo arremessado na lataria do carro chama a minha
atenção, e erguendo a cabeça abruptamente, procuro de onde vem toda
aquela merda.
O meu primeiro instinto é encarar a portaria do prédio de Stuart,
procurando por Hyuk. Mas não há nenhum sinal de que ele tenha terminado
o seu trabalho lá em cima.
Confuso, varro a rua com o olhar uma segunda vez, e quando os
meus olhos encontram a figura de Baker segurando um tijolo com ambas as
mãos e o arremessando com toda a sua força para o capô do meu carro, não
tenho qualquer outra reação além de piscar diversas vezes para garantir que
essa merda é verdadeira.
— Você vai se arrepender por ter entrado no meu caminho… — Ela
resmunga, quebrando o tijolo em milhares de pedacinhos diversas vezes na
lataria do capô.
O estrago custaria uma grana para ser consertado. É um prejuízo que
eu teria que arcar, mas, eu estou tão perplexo encarando-a, que mal consigo
processar o fato de que ela está destruindo a porra do meu Mustang.
Desencostando do volante, relaxo o meu corpo no banco do carro e
cruzo os braços, engolindo em seco conforme a analiso. Baker está
diferente de quando a encontrei na noite passada. Suas roupas não fazem o
seu estilo, aquelas botas ridículas não são mesmo algo que combine com a
sua personalidade. No entanto, ela está tão fodidamente atraente com o
cabelo loiro espalhado por seus ombros em um balanço suave, com os seus
olhos mais azuis do que eu podia me lembrar, brilhando mais do que a porra
de uma estrela, que poderia ser considerada a personificação da perfeição.
Ela não sabe disso, mas é a mulher mais linda que eu vi em todos os
malditos anos da minha trágica existência.
Não parece minimamente preocupada em ser pega e denunciada por
vandalismo. Baker não teme absolutamente nada, nem ninguém, quando
age por consequência de sua raiva. Eu sabia que seu sentimento por mim
não seria o mesmo, sabia que ela me culparia por todos esses anos, e sabia
que agora ela seria uma mulher que sabia se defender.
A noite de ontem foi um claro sinal de que não devo subestimá-la.
Em hipótese alguma.
No entanto, eu ainda estou obcecado em testar os seus limites. Ela
será a porra da minha tentação ou a minha perdição, e independente do
resultado, eu estarei feliz por simplesmente tê-la ao meu lado. Ela me
pertence. Isso não mudou.
Então me dou conta de que certamente será minha perdição. Baker
reina em cada célula do meu corpo, em cada átomo e em cada partícula. Ela
é a porra do meu oxigênio e sobreviver a isso sob o seu desprezo, será o
meu maior desafio.
— Que porra é essa?! — Hyuk. Não tinha um momento pior para
ele aparecer.
Baker estremece e desvia a sua atenção para Hyuk antes de destruir
a lateral do Mustang com o que parece ser um parafuso.
— Você sempre encontra um jeito de entrar no meu caminho, não é?
— Há deboche no seu tom de voz. — Me deixa, Naten.
Eu ouço os passos de Hyuk aproximando-se do carro, mas nada é
capaz de fazer com que desvie os meus olhos de Baker. Os lábios rosados e
as sardinhas espalhadas pela maçã de seu rosto ainda são capazes de
acelerar as batidas do meu coração.
— Te deixar? — Caçoa. — Você está destruindo a porra do carro
que eu vou embora, caralho. Como é que eu vou te deixar? — A afinação
de voz na última frase de Hyuk é capaz de tirar um riso meu.
Baker finalmente larga o tijolo de suas mãos e abana ambas as
palmas para se livrar dos resquícios de poeira. A garota franze o cenho e
cruza os braços à altura do peito, firmando o olhar em Hyuk.
— Eu… — Ela parece envergonhada. — Este não é o carro do
Jason?
Eu daria tudo para eternizar essa vista de Baker envergonhada. Isso
me lembra a minha garota.
— Ah, sim, claro que é. — Hyuk está brincando com ela, e devo
admitir que eu estou adorando capturar o exato momento em que ela engole
em seco. — E esse carro é tipo um membro da família dele, sacou? — O
som da palma de Hyuk batendo contra o teto do carro ecoa do lado de
dentro, enquanto ele produz uma negação com a língua. — Pegou no ponto
fraco, bonequinha.
Baker descruza os braços, bufando um riso, incrédula, enquanto
observa Naten do outro lado do carro. Ele mal sabe que eu sequer estou me
importando com a porra do carro agora.
— Acho que você não deve ter se dado conta que eu estou pouco me
fodendo para o que se refere ao seu amigo, Naten. Mas acho que é culpa
minha não ter deixado tão claro. — A curvatura de seus lábios em um
sorriso dura apenas um segundo, porque todo seu semblante é substituído
pelo desprezo. — E pare de me chamar assim, não sou mais uma criança.
O meu sorriso também desaparece e a tensão torna a me incomodar.
Eu odeio ouvi-la dizer com tanta convicção o quanto a minha existência é
indiferente para ela. É como se eu nunca tivesse significado absolutamente
nada, enquanto ela sempre foi o meu mundo.
— Não? — Questiona Hyuk, e pela visão periférica, noto quando
ele cruza os braços e bufa um riso. — Eu podia jurar que estava encarando
uma birrenta imatura. Geralmente são as crianças que agem assim, não?
Hyuk não suporta a maneira como eu sou desprezado pela mulher
que movo céus e Terra para proteger. Ultimamente, a honestidade não tem
sido nosso ponto forte um com o outro, sei que ambos estamos escondendo
coisas e, por isso, a nossa relação parece ser totalmente profissional. Algo
mudou, não somos os mesmos.
No entanto, mais do que ninguém, Hyuk conhece absolutamente
tudo sobre mim. Ele sabe o quão fodido eu pareço ficar quando ouço as
palavras cruéis semelhantes à estacas sendo cravadas no meu peito. Mas eu
mereço ser desprezado por ela. Mereço tudo aquilo.
— Você deveria ser o meu amigo, sabe? — Desta vez, a voz de
Baker falha constantemente. Ela parece querer desabar. — Não entendo
porque você não fica do meu lado, Naten. Eu fui ferida! Você não entende?
— Ela gesticula em direção ao próprio coração. Seu tom de voz choroso é
capaz de despedaçar o meu coração.
Fecho os olhos com toda a força que posso, esforçando-me para
ignorar aquela maldita voz gritando na minha cabeça que sou o culpado de
toda sua dor. Eu causei a destruição do meu bem mais precioso. Eu a
arruinei. Eu sabia que a realidade poderia ser diferente, mas passei tanto
tempo me convencendo de que tudo aquilo foi minha culpa, que passei a
acreditar nessa versão.
Nem que eu viva um milhão de anos, poderei encontrar algo mais
doloroso do que a rejeição de um amor verdadeiro.
— Você não foi a única. — Hyuk baixa o tom de voz, parece ser um
comentário qualquer. — Mas eu não vou te explicar sobre isso Aspen,
duvido que você entenderia.
Isso precisava acabar.
Essa dor precisa parar.
Eu não ficarei aqui, sentado, ouvindo-a dizer o quanto sofreu pelas
mãos do Floyd. Essa merda é demais para mim. Afinal, até mesmo os
piores demônios possuem feridas que não foram cicatrizadas. Geralmente,
esse é o motivo de sua rebelião. Mas eu não estou aqui para me rebelar, esse
é o poder de Baker sobre mim. Eu estou aqui para amá-la, mesmo que nas
sombras de sua abominação.
Quando abro mão de todo o medo de encarar as suas esferas frias
mais uma vez, saio de dentro do carro, observando Hyuk afastar-se para que
a porta não bata contra o seu corpo no processo. Quando me coloco de pé
ao seu lado e enfrento Baker, ela parece completamente surpresa e - quase -
assustada, por me ver ali. Ou talvez ela só esteja em choque por perceber
que em todo este tempo, eu estava observando-a e ouvindo tudo o que ela
tinha a dizer.
Seus lábios entreabertos revelam a aceleração de sua respiração, já
que o vapor causado pelo frio que sai de sua boca em um suspiro longo, a
denuncia. Seus olhos me analisam tanto quanto os meus e tudo parece ter
desaparecido ao nosso redor. Só existe nós. Ela é tudo que vejo.
Minha mandíbula travada é um claro sinal de que ainda estou
nervoso por estar à sua frente, e tudo piora quando a surpresa exposta em
seu olhar é substituída pela mágoa.
Por mais que não seja o que eu sinto, esbanjo uma expressão ainda
mais indiferente como se não me importasse. Ela parece acreditar, já que
seu semblante cai por um milissegundo, expressando a sua surpresa. Ótimo.
É melhor que seja assim.
Desvio o meu olhar no momento em que ela olha para ambos os
lados, parecendo preocupada. Quando o meu olhar colide com o capô do
meu carro, o encontro totalmente arranhado. A tintura foi destruída. O
parachoque está amassado, e eu ainda não consigo entender como ela fez
tudo aquilo com um tijolo.
— Você estava mesmo assistindo ao showzinho de camarote? —
Hyuk ri, aproximando-se de mim em um passo curto.
Estou prestes a concordar, quando observo um Camaro vermelho
aproximar-se de nós. Baker congela, parece extremamente assustada e sem
opções, mas não é aquilo que ganha a minha atenção, e sim o par de
imbecis sentados no lado de dentro. Eles não parecem notar a minha
presença, mas notam a dela. A forma que a encaram não me agrada nem um
pouco.
— Baker — Eu a chamo, aproximando-me dela do outro lado com
rapidez.
A garota estremece, assustada com a chamada repentina. Seus olhos
se encontram com os meus e o olhar que Baker me oferece parece tão
semelhante ao de Sofia Clarke há muito tempo atrás, que por um momento,
penso que ela ainda é a mesma garota por quem me apaixonei. Mas é uma
mentira. Isso é apenas o que eu desejo que seja verdade.
Desvio os nossos olhares, sem a mínima intenção de demonstrar o
quão fodido eu estou. Ela perceberia no meu olhar, sei disso. Então travo a
mandíbula, abro a porta do passageiro e me esforço para não assustá-la
quando gesticulo em direção ao banco do carona.
— Entra no carro.
Baker ri incrédula, cruzando os braços na altura do peito como um
claro sinal de que não me obedeceria.
— Não vou entrar na porcaria do seu carro.
Eu a encaro, segundos depois de observar o borrão vermelho
daquele carro aproximar-se de nós. Imploro visualmente para que ela me
obedeça apenas por uma vez.
— Não é momento para testar a minha paciência. Entra na droga do
carro. — Reforço, encarando-a tão profundamente que posso notar o
movimento de sua garganta ao engolir em seco.
Quando ela olha ao nosso redor uma última vez e percebe que o
carro está próximo demais, parece não pensar duas vezes quando inclina o
corpo e senta no banco, cruzando os braços enquanto mantém o olhar ereto.
Quis agradecê-la por isso, mas não serviria de nada, ela não se importa.
Fecho a porta às minhas costas e Hyuk se coloca ao meu lado,
seguindo o meu olhar totalmente direcionado ao carro que agora diminui a
velocidade ao passar na nossa frente.
Aperto os dentes com tanta força que sou incapaz de sentir a minha
mandíbula quando enxergo o motorista colocar um dos braços contra o
suporte do vidro casualmente, acenando para nós como se fossem típicos
moradores comuns da cidade. Sei que não são, porque os conheço.
Eles estão aqui por um motivo e não é para apreciar a beleza da
cidade.
— Jason. — Sinto o aperto nada suave de Hyuk no meu pulso. Uma
repreensão. — Não perca o controle, estamos em público.
Eu não compreendo o que ele queria dizer, até me dar conta de que
Hyuk estava impedindo que eu sacasse a arma presa na minha cintura. O
meu punho está cerrado ao redor do metal, mas os meus olhos em hipótese
alguma se desviaram do carro que se afasta de nós em uma velocidade
reduzida.
Sinto a minha pele queimar. Os meus olhos estão cegos pelo ódio, e
saber o motivo de suas respectivas visitas na cidade apenas incentiva o meu
ódio a aflorar. Isso explica o motivo para Baker estar tão assustada.
Não posso controlar a minha raiva quando percebo que, de fato, ela
definitivamente não está segura. Portanto, não estou disposto a deixar que
algo aconteça a ela, não outra vez.
NEW YORK - 2019
ANTES
Ele não tem esse direito. Não há qualquer razão concreta para
acreditar que tem algum poder sobre mim, não lhe dei a entender que nós
ainda somos os mesmos. Não pedi para que ele me ajudasse. Não pedi por
nada disso.
Quis grudar em seu pescoço a partir do momento em que ele entrou
no carro, furioso, pronto para seguir aqueles caras e matá-los, e eu não
consigo compreender a razão para que ele esteja tão fora de si. A culpa de
tudo isso é exclusivamente sua, então por que ele age como se não fosse?
Por que ele continua com esse teatro? Por que ele não consegue se esquecer
da minha existência?
— Abra o carro, Jason. — Levando uma das mãos à maçaneta, eu a
abro tão agressivamente que posso sentir o material prestes a se partir ao
meio. — Abra a droga do carro! — Grito, girando o meu corpo
abruptamente para encará-lo.
Sua mandíbula travada é um claro sinal de que ele segue fora de si,
seus olhos profundos não se desviam nem por um minuto da estrada. Ele
leva uma das mãos a marcha no meio de nós e, sem dizer uma palavra,
continua dirigindo.
Ele está me ignorando.
Os meus olhos queimam, meu sangue está borbulhando como se
fosse entrar em combustão a qualquer momento e tudo que eu quero é
empurrá-lo para longe, socá-lo, usar de todos os palavrões existentes na
face da Terra para que ele se sinta exatamente como o ordinário que é.
Isso não é um jogo, ele não vai testar os meus limites assim como
gosta de fazer, eu não vou deixar. Essa merda é real, vou fazer ele se
arrepender de cada segundo que me mantém por perto. Vou arruiná-lo, sem
remorso, sem medo, sem a porra de um arrependimento. Assim como ele
fez.
— O que porra você quer de mim?! — Exclamo, ignorando por
completo a presença de Naten no banco de trás. — Você é um cretino,
Jason, a porra de um cretino depravado. — As palavras saem dos meus
lábios como facas, golpeando-o sem o mínimo remorso. — Três anos! Três
anos se passaram e você nunca me procurou, nunca tentou se explicar e
nunca se importou tanto quanto dizia!
Ele não move um músculo, seus olhos continuam fixos na estrada e
sua mandíbula é retraída repetidas vezes. Mas ele não me encara, não diz
uma palavra e não tenta se justificar. Nem mesmo consegue olhar nos meus
olhos. Ele sabe que é merecedor de todo o meu desprezo e não se importa
nem um pouco com isso. Vejo a indiferença em seu olhar. Em suas ações.
Quando me dou conta de que não terei uma resposta, desprezo a
mim mesma ao sentir os meus olhos marejarem. Não sei ao certo o motivo,
mas é literalmente a primeira vez que ouso dizer em voz alta tudo aquilo
que me atormentou nos últimos anos. Dói aceitar que eu não passo de uma
tola inconsequente.
Eu não quero transparecer o quanto o seu silêncio fere o meu
interior. É como uma navalha, rasgando o meu corpo de ponta a ponta,
jorrando evidências da minha dor em forma de lágrimas. Mas eu não
permitirei, ele não merece isso. Eu o desprezo.
— Aspen, você precisa se acalmar. — É a voz de Naten. Não há
sarcasmo ou vestígios de que esta é mais uma das suas gracinhas, é só… o
Naten.
O antigo Naten. O meu amigo. Aquele que era verdadeiro comigo.
Balanço a cabeça, deixando claro que este se trata do típico
momento no qual não baixarei a guarda. Não vou me acalmar enquanto
estiver ao lado de Jason. No entanto, Naten não deveria ser o culpado por
ações que não foram cometidas por ele, não quero culpá-lo. Estou farta de
machucar todos ao meu redor quando apenas um deles é merecedor.
— Não, Naten. Não vou me acalmar. — Eu o fito por cima do
ombro, controlando o bolo de lágrimas esperando uma única ordem para
despencar de meus olhos. Não vou deixar. — Eu quero descer da porra do
carro agora!
Naten corrige a postura, claramente desconfortável com a situação.
Não o culpo, não posso dizer que estou adorando o momento. Ele abre a
boca para dizer alguma coisa, mas com os olhos fixos ao meus, me oferece
aquele olhar de superproteção que eu não via há anos.
— Você está em perigo. Não é um jogo, e isso aqui… — Alterna
com o seu indicador entre eu e Jason. — Não importa. Vocês dois podem
brigar, discutir, gritar, e podem até matar um ao outro quando tudo isso
acabar. Por enquanto, você precisa entender que as coisas estão ruins e que
não temos tempo pra isso.
Fato.
As coisas estão péssimas. Está tudo um completo caos, e eu não
consigo colocar a minha cabeça em ordem quando tudo que penso é em me
manter longe de Jason e tudo que inclui a sua presença. Não posso mais
ficar em WonderFall, a minha identidade foi descoberta e embora esteja
arruinada e sem uma saída, sei que encontrarei uma em meio a mil
possibilidades negativas, mas não pedirei ajuda a nenhum deles.
Lidei com os meus próprios problemas durante os últimos três anos.
Eu me mantive viva, sobrevivi a toda aquela merda. Não precisei de Jason
para isso, não precisei da academia e não precisei ser protegida. Eu fiz isso.
E não quero ser protegida.
Quero ser livre.
Quero ser alguém normal.
Mas tudo que tenho certeza que farei daqui para frente, será arrumar
as malas e entrar no primeiro ônibus de viagem ao nascer do sol. Eu não
ficarei aqui, não colocarei a vida de Josh em risco, eu o protegerei. E se ser
a porra de uma vadia traiçoeira for necessário para mantê-lo a salvo e longe
de toda essa bagunça, eu o farei sem pensar duas vezes. Afinal, não seria a
primeira vez.
— Eu entendo que as coisas estão ruins, sempre entendi, porque
sempre estiveram no mesmo lugar. — Ergo a cabeça, aprofundando os
nossos olhares. — E eu pretendo lidar com isso sozinha.
Noto o franzir de suas sobrancelhas no mesmo segundo em que
sinto o olhar de Jason queimar a minha mandíbula. Parece que finalmente
atrai sua atenção até mim. No entanto, mantenho os meus olhos fixos nos de
Naten, sem dar importância para quando a velocidade do carro é reduzida.
— O que você está dizendo? — Indaga Naten.
— Que eu vou lidar com as minhas merdas, não quero a sua ajuda.
— Girando o pescoço, deparo-me com os olhos de Jason brilhando em
direção aos meus. Ele sequer pisca. — Nem a sua.
O carro é freado bruscamente. Seguro-me no assento para impedir
que seja atirada de cara para o banco. Naten resmunga algum xingamento.
Jason me encara, fúria exalando de cada poro.
— Você não tem escolha.
Arqueio uma das sobrancelhas, desafiando-o. O carro está parado,
mas as suas mãos ainda seguram o volante com firmeza. Ele está irritado, e
veja só que grande novidade, isso não significa nada para mim.
— Você não pode me impedir. E não vai. Entenda de uma vez por
todas que não sou um de seus soldados para quem cospe ordens e lhe
obedecem como cachorrinhos adestrados. — Decreto, conferindo a
maçaneta da porta mais uma vez. Me dando conta de que segue trancada,
suspiro encarando-o com todo o ódio que aflora dentro de mim. — Abra a
droga dessa porta, Jason.
Ele não parece minimamente intimidado sob o meu olhar, a
tranquilidade que exala de seus olhos escuros faz a chama fervente do meu
peito simplesmente ebulir. Jason sabe o quanto eu o desprezo, sei que ele
pode enxergar isso na forma como o olho. Sabe que se eu pudesse apagar
todos os momentos que vivemos juntos, eu o faria sem pensar duas vezes.
Me arrependo amargamente de ter confiado a minha vida a alguém que
mentia para mim a todo momento. Alguém que nunca se importou
verdadeiramente com o meu bem estar.
Portanto, quando firmo os nossos olhares e me jogo nas profundezas
de todo o repúdio que Jason representa, sou incapaz de ignorar o exato
momento que os seus olhos revelam o que seus lábios não podem expressar.
Ele não se importa. Não dá a mínima para a forma como me sinto a seu
respeito. Tudo o que ele quer é ter o maldito controle, mesmo que arruine a
minha vida no processo.
Inspiro profundamente, sugando todo o ar que posso, sentindo o ar
fervente alcançar a ponta das minhas narinas e ferver o meu cérebro. Sinto
vontade de explodir, de força-lo a encarar os meus olhos enquanto digo tudo
o que ele parece ignorar. Uma delas é a forma como ele traiu a minha
confiança e me quebrou de uma maneira que nunca tive forças o suficiente
para recolher os pedaços, somente usar emendas como um tapa buraco
enquanto faço de conta que ainda sou a mesma pessoa de anos atrás.
Mas até mesmo uma grande tola como eu consegue visualizar a
frieza esbanjada em um olhar cruel e um coração congelado. Sei que não
importa o quanto eu grite, o quanto exija por uma resposta e por uma razão.
No fim, ele é apenas essa pessoa repugnante e impiedosa que não consegue
enxergar nada além dele mesmo. O resto do mundo poderia explodir e ele
ainda estaria desta mesma forma, frio como a Antártica, enquanto nada
estiver o atingindo.
Tudo o que eu sinto é nojo. Nojo por tê-lo amado. Nojo por ter
confiado cegamente neste desconhecido. Nojo por ter colocado a minha
mão no fogo por ele e ter sido queimada por elas até que minha alma
virasse cinzas.
— Eu odeio você. — Sussurro, sem deixar de encará-lo. Quero que
ele veja o quão baixa posso ser. — Você é tão covarde, tão fraco que nem
consegue olhar nos meus olhos. O que você sente? Me diga, é culpa? —
Uso o meu tom mais amargo, o mais cruel.
Seus olhos desviam-se dos meus, quase como se ouvir todas aquelas
palavras pudesse parti-lo ao meio, mas quem é que ele quer enganar? A
muralha de indiferença ainda está aqui, nítida para os olhos que quiserem
ver.
A impiedade deseja me consumir. Me domar. Me descontrolar.
Enquanto no fundo, a doce garotinha ainda espera por alguma resposta que
não seja o seu silêncio.
Em meu peito há uma disputa indomável entre duas versões
terríveis. Basta decidir quem eu vou permitir que vença essa batalha.
Libertando todo o ar dos meus pulmões, permito que uma única
lágrima escape de um dos meus olhos conforme uso ambos os punhos para
socar diversas vezes o vidro da janela, o parabrisa, o banco e tudo que entra
no meu campo de visão. O silêncio dentro do carro é ensurdecedor, sei que
ambos estão observando a minha crise, no entanto, não posso controlar o
turbilhão de sentimentos que esmagam o meu coração e assumem o
controle do meu corpo.
Isso dói.
Dói perceber que tudo que enfrentei em todos esses anos não foi
capaz de fazer de mim uma mulher forte o suficiente para enfrentar o
próprio passado. As próprias feridas. Deveria ser fácil, eu jurei a mim
mesma que seria, então por que tudo parece mais difícil na prática?
As coisas que enfrentei pelo descuido de suas atitudes são
irreversíveis, não há maneiras de recolher os pedaços daquilo que restou.
Tudo está perdido. Ainda assim, ele está aqui, ao meu lado, agindo como se
eu fosse meramente uma problemática com a qual ele precisa lidar.
Seco os olhos com a manga da jaqueta e sinto a veia pulsar em
minha testa como consequência de meus batimentos acelerados. Talvez eu
goste de como a dor esteja se infiltrando em meu sistema, como ela me
quebra, me esmaga, me dilacera. É assim que costumamos aprender devidas
lições, levando porrada da vida. Já levei muitas, e doeu, doeu como o
inferno. Não foi o fim do mundo, mas dessa vez eu vou revidar.
Cometo o erro de virar o meu corpo no banco em sua direção e
encará-lo, observando-o ligar o carro novamente. Uma de suas mãos
posiciona-se no meio de nós para trocar a marcha, dando partida no carro
no processo. Seus olhos não encontram os meus em momento algum.
— Uma vez eu jurei que amaria você pelo resto da vida — Sussurro
entredentes, sem conter o riso irônico que me escapa em meio às lágrimas.
— E quebrei a promessa. Normalmente eu não costumo voltar atrás no que
eu digo.
Fecho um dos punhos contra a manga da jaqueta, pressionando em
seu bíceps com tanta força que Jason trava a mandíbula e prende o corpo no
mesmo lugar. Ele me ouve atentamente, mas ainda é o monstro incapaz de
sentir ou agir como um humano emocionalmente faria.
— Então guarde as minhas palavras… — Esmurro o seu corpo com
todas as minhas forças, incomodada com a facilidade que ele consegue
fingir que não estou aqui. — Você pode me perseguir, se quiser. Continue
na minha cola, continue exatamente onde está, seu merda. Vou precisar que
você esteja perto o bastante para fazer da sua vida um completo inferno
enquanto você respirar. E não vou dar para trás dessa vez.
Jason sequer se move, sequer me fita, sequer mexe um único
músculo. Suas mãos rodeiam o volante e seus olhos não se desviam da
estrada enquanto dirige, ignorando por completo o quanto eu estou faminta
por uma resposta, sem necessariamente especificar que é disso que eu
preciso. Ele sabe, sabe que tudo que importa para mim é tudo, menos a
droga do seu silêncio.
Mas uma luz no fim do túnel traz um clarão que ilumina as jaulas
submersas em mim, porque ele finalmente me fita.
Os olhos frios. Vagos. Distantes. Cruéis. Impiedosos.
Ele abre a sua boca, observando-me com aquele mesmo olhar
predador. Então eu espero que diga alguma coisa, e quando o faz, é quando
eu perco totalmente o controle.
— Vá em frente. Você sabe quem sempre vence a batalha, no fim
das contas.
Não penso. Só ajo.
Soco seu corpo diversas vezes, sem pensar, sem refletir, sem me dar
conta do quão descontrolada pareço ser. Completamente desligada do meu
lado racional das coisas, insulto-o sem me importar com o quanto estou
demonstrando o poder que sua existência ainda possui sobre mim. E por
mais que eu tenha criado diversos cenários para o momento em que o
encontrasse, nada do que planejei está sendo concretizado. Eu simplesmente
não tenho forças para lutar contra a força da natureza.
Liberto tudo aquilo que me assombrou durante os últimos anos,
revelando o lado em que muitas das vezes mantive nas profundezas do meu
coração.
Só deixo de socá-lo quando um soluço escapa da minha garganta e
Naten segura os meus punhos, impedindo que eu o atinja outra vez.
— Se acalme. — É um pedido sincero, carregado de compreensão.
Sua voz sai tão baixa quanto um sussurro.
O segundo soluço me escapa quando me dou por vencida, desistindo
de lutar contra o aperto de Naten. Estou fraca demais para isso, estou
fodidamente destruída.
Sua indiferença… Estranhamente, doeu.
No fim, nada fez sentido. Há um dia, eu queria encontrá-lo e fazê-lo
pagar por toda a angústia que causou, queria matá-lo. Pensei que pudesse
fazer isso, que poderia acabar com todo o meu sofrimento de uma vez. No
entanto, apagando-o da face da Terra, eu também não estaria em eterno
sofrimento?
Sou tão patética. Chorando, desabando aos pés daquele que eu
parecia tão certa em repudiar.
Sou a porra de uma hipócrita.
Sua mãe deve estar decepcionada com você, criatura insolente —
o meu subconsciente ri, debochando. A risada ecoando por cada canto do
meu cérebro.
Fecho os olhos com tanta força que posso sentir os meus miolos
remexerem dentro de mim. A culpa, a dor, o lamento, de repente, vem à
tona como um balde de água fria, cessando as minha lágrimas e despertando
todo o ódio que sinto de mim mesma. O nojo. A repulsa.
Me desculpe, mãe, me desculpe, me desculpe…
Então, sem a minha permissão, as memórias vem à tona como um
lembrete de que eu deveria manter a minha promessa.
Faz meses que estou neste inferno. Já não sei o que é real, ou o que
foi articulado pelo meu cérebro porque afinal de contas, imaginar que
talvez as coisas pudessem ter seguido rumos diferentes, não é algo que eu
possa evitar.
O "E se?" É inevitável. Mas não há o que eu possa fazer para
mudar o que está feito.
Ele realmente me largou aqui.
O quão patético eu sou, por acreditar que talvez Marcus Floyd só
estivesse blefando para me manter longe de Clarke?
Eu deveria imaginar que ele nunca blefa. Não quando seus maiores
interesses estão em jogo. Nem mesmo se para conquistá-lo, ele tenha que
manter seu único filho em uma prisão por um crime que não cometeu.
Marcus realmente é um pau no cu do caralho.
Sinto que estou enlouquecendo e a cada dia que se passa dentro
desta caixa de metal, tudo piora. Os meus pensamentos são meus maiores
inimigos, e eu sei que tudo isto é um preço a ser pago. Eu deveria ter dito a
ela toda a verdade, deveria ter acabado com seu sofrimento de uma vez.
Ao invés disso, me apaixonei.
Patético do caralho.
Não por amá-la, não por protegê-la. Mas sim, por ter perdido tempo
demais aproveitando as coisas boas que não tive o privilégio de ter em toda
a minha vida, e ter me esquecido do foco principal que me trouxe até ela.
Era questão de tempo até que ele cumprisse com a promessa de roubá-la, e
eu jurei que isso não aconteceria mesmo que eu tivesse que morrer no
processo.
No entanto, ele deu um jeito de me tirar da reta e me manter vivo
para viver com este fardo.
Agora, tudo que me resta é observar essas paredes cimentadas e
refletir sobre o que poderia ter sido diferente se eu tivesse agido antes dele.
Se eu tivesse me livrado dos segredos que não me pertencem, ou ao menos,
lhe entregado aquela maldita carta escrita por sua mãe. Eram suas últimas
palavras para a filha, e eu fui um tremendo de um imbecil por achar que
aquilo podia esperar.
Clarke deve me odiar nesse momento. Ela deve desejar a minha
morte, mesmo que eu tenha sacrificado absolutamente tudo por sua
segurança. Sua confiança. E eu não posso fazer absolutamente nada a
respeito.
Olhos fechados.
A mente sobrevoando todos os cantos da Terra a fim de esquecer
onde eu estou. E a razão para estar.
O punho dói, os ossos a ponto de saltarem para fora a qualquer
momento por tamanha dormência no lugar. Eu havia socado estas quatro
paredes por tempo demais, ao que parece.
Tudo o que eu queria era ter força o suficiente para derrubar as
portas de puro aço, quebrá-las ao meio e acabar com a agonia que já não
posso mais manter sob controle. Já não tenho noção do tempo, sei apenas
que estou dentro desta solitária fria e suja por mais tempo do que posso
suportar.
É como me sentir sufocado. Impaciente. Desesperado.
Mas, enquanto as lágrimas despencam dos meus olhos, minha
garganta arde por tamanho esforço ao conter soluços dolorosos. Minha
cabeça dói, e eu nem me lembro quando foi a última vez em que estive
debaixo de um chuveiro.
Minhas roupas ainda são as mesmas daquela noite. Meu cabelo
seco está repleto de poeira e duro como ferro. Meu coração bate
enlouquecidamente como se eu estivesse a beira da morte, enquanto
sentado no colchão ao chão, com os joelhos erguidos e a cabeça baixa
entre as pernas, jogo para fora todas as lágrimas dolorosas como lâminas
afiadas o suficiente para abrir a minha pele e arrancar o meu coração fora
com uma facilidade inigualável.
Mas a quem quero enganar?
Acabou. Eu vou morrer aqui, Floyd jamais ousaria abrir estas
portas e permitir que eu aja contra ele outra vez.
E se algum dia ele permitir, pode ser considerado o homem mais
patético de todo o universo, porque eu não pararia até causar o seu
sofrimento e de todos os demais que algum dia, decidiram trabalhar ao seu
lado.
Que se fodam todos. Eles vão morrer. Algum dia.
Quando um soluço se esvai pela solitária minúscula e apertada, me
dou conta que não tem mais volta. Estou quebrado, destroçado e arruinado.
De repente, enquanto me perco no som de soluços que me escapam sem a
porra de uma permissão, me pergunto quando foi que permiti que isso
acontecesse.
Então, como se a ficha caísse em um piscar de olhos, eu soube.
Causei a minha queda quando cego pela necessidade de manter
Clarke à salvo, eu acreditei que poderíamos ser espertos o suficiente para
destruir a Luxury e Marcus Floyd antes mesmo que tivessem a chance de
armar contra nós. Tive esse pensamento patético quando tinha a porra do
dedo sobre o gatilho, pronto para explodir os seus miolos e manda-lo para
o inferno, onde é o seu lugar.
Agora tudo faz mais sentido.
Eu deveria ter puxado o gatilho.
Porra… Eu deveria…
Outro soluço escapa.
Então, com a cara encharcada e o corpo enfraquecido, jogo a
cabeça para trás e contenho um gemido quando ouço o ruído do meu
cérebro chacoalhando dentro da minha cabeça quando ela bate com força
demais contra a parede.
Não uma, nem duas vezes. Mas o suficiente para correr o risco de
quebrá-la ao meio.
Não ouso abrir os olhos. Tenho medo do que pode acontecer se eu
enxergar as cores acinzentadas e o chão de concreto coberto de lodo e
areia molhada. Tenho medo de erguer a cabeça, enxergar a porta de aço
completamente suja, trancada e firme, e então, a ficha de que tudo está
acabado, finalmente caia.
Eu não quero encará-la. Que se foda se isso parece covardia e se
estou sendo um chorão. Eu não quero encarar a realidade.
Foda-se ela.
Ela doí.
Jogo a cabeça para trás outra vez, apertando os olhos e cerrando
os punhos apoiados sobre o joelho. Não importa o quanto parece doloroso
bater com a cabeça contra uma parede de concreto repetidas vezes, nada é
mais doloroso do que a aceitação de que você não passa de um inútil. Ele
sempre me disse isso, e eu não quis acreditar.
Acontece que ele tinha razão, afinal.
Meu peito queima, a brasa viva se espalha por todo o meu corpo
sem que possa contê-las. Sinto que posso explodir a qualquer instante, meu
cérebro se recusa a acreditar na merda que fiz. É exatamente por isso que
não penso muito quando vasculho todo o meu quarto procurando por um
pouco de pó.
Geralmente, eu não o uso. Cocaína foi a minha calmaria por muito
tempo, quando estava exausto demais para lidar com as porcarias do meu
pai. Quando me sentia impotente e inútil, graças aos seus lembretes diários.
Eu quero parar. Quero mesmo. Sei bem qual será o meu destino se por
algum acaso, me tornar um viciado. Vou ser exatamente quem ele dizia que
eu seria. Um maldito sem futuro.
Não me restou opção senão adaptar o meu corpo a se contentar com
a nicotina. Não deixa de ser um vício, porém, ele não faria de mim um
completo lunático. Fumo para me aliviar, para não perder a cabeça e jogar
as merdas para o alto, sei que meu descontrole pode destruir o nosso plano,
então lutar contra um vício neste momento é como lutar contra a maré. Não
me importo de estar parecendo com um total desequilibrado, porque é o que
eu sou.
Só preciso me manter na linha.
As vozes da minha cabeça não conseguem me fazer esquecer do
quanto sofri em suas mãos. Ainda ouço os meus gritos, as súplicas para que
ele me deixasse em paz. Me lembro do quanto me esforcei para perdoá-lo, e
do quanto desejei ter nascido diferente apenas para agradá-lo. No fim, nada
disso teve importância, porque nunca fui eu quem deveria ter nascido
diferente.
A porra do mundo seria melhor se Marcus Floyd não tivesse
nascido.
Ele seria melhor se eu não tivesse nascido.
Chuto as caixas de papelão para longe, abro as gavetas do armário e
as vasculho a fundo, procurando por algum pacote que tenha esquecido de
tirar do meu alcance. Meu coração bate com força contra o meu peito, sem
controle algum.
Não importa o que faça para acalmar o meu sistema nervoso, será
tudo em vão. Só preciso amenizar o meu estresse de alguma forma, porque
a culpa está corroendo as minhas entranhas. A culpa de ter sido a porra de
um covarde.
A culpa por ter falhado.
Vasculho o quarto com o olhar, notando a bagunça que havia feito.
As minhas roupas estão espalhadas pelo chão, caixas, abajures e lençóis,
também ao chão.
A busca alucinante por um pouco de esperança. Ilusão.
Rosno quando meu punho acerta a madeira do armário com força, a
fúria preenchendo o meu interior.
Eu deveria ter puxado a porra do gatilho.
Ele teve coragem de insultá-la na minha frente, de travar uma guerra
e, porra, teve a coragem de dizer tudo isso enquanto sorria. Por mais que me
esforce para pensar que ele estava se arriscando demais, essa não é a única
verdade por cima da balança.
É difícil de aceitar que ele havia feito isso porque duvidava da
minha capacidade. Sabia que eu não puxaria a porra do gatilho. Ele sabia
que eu travaria. E brincou com este fato bem na minha cara.
Acho que a principal razão para que esteja tão profundamente
alucinado pelo ódio, é por ter a plena consciência de que ele tem razão.
Estar cara a cara com Floyd não era a intenção, porque mesmo que eu tenha
superado tudo que enfrentei ao seu lado, não significa que o meu eu do
passado tenha superado também.
Me senti como a porra de um chorão outra vez, sensível e carente
de alguma droga de sentimento. Me senti impotente e inferior a ele, como
ele disse que seria.
Filho da puta.
No fim, sou pior do que ele, por sequer ter tido forças para puxar
a droga do gatilho. As coisas seriam mais fáceis, eu estaria livre, poderia
superar de uma vez por todas as coisas que fui fadado a viver. Clarke estaria
à salvo, Kelly estaria à salvo. Luxury acabaria. E, mesmo que naquele
momento eu levasse uma bala no meio da testa por ter tirado a vida de um
homem que é considerado um onipotente, ainda assim, ele viria comigo
enfrentar o grande julgamento final. Assim seria melhor.
Mas não.
Eu hesitei.
Esta simples hesitação levou-o a sair por aquelas portas com a porra
de um sorriso infernal na boca, acreditando que venceu mais uma guerra.
Talvez eu acredite que ele tenha realmente vencido, uma vez que não há
outra justificativa para que tenha saído do meu território com vida.
Irritado, saio do quarto frustrado. Se não tenho um pouco de pó,
sei perfeitamente onde conseguir.
No entanto, antes disso preciso me certificar de que ela está bem.
Não pretendo prolongar muito assunto, não sei qual pode ser o meu
comportamento e não quero ser um merda com ela. Ela não merece. Só
preciso garantir que está bem. Só isso.
Desço as escadas com rapidez, ignorando toda a movimentação
pelos corredores. Marcus Floyd havia entrado com facilidade no nosso
território, todos os homens do batalhão devem descobrir como exatamente
isso aconteceu. Não é muito difícil de adivinhar, nós nunca entregaríamos o
nosso lugar de bandeja para a Luxury.
Não quando mantemos aqui os maiores tesouros que eles gostariam
de colocar as mãos.
Kelly e Clarke valem mais do que uma quantidade suja de grana, e
não vou permitir que elas desapareçam de vista ou estejam em perigo.
A verdade é clara e específica. Temos um traidor entre nós.
Mais tarde, eu mesmo terei uma conversa com cada um dos
homens que estavam de guarda durante o tempo em que estive com Clarke.
Eles não contavam com a ausência dela no prédio, e, só de imaginar o que
teria acontecido caso os homens da Luxury tivessem colocado os olhos nela
enquanto todos estávamos distraídos, sinto o meu sangue entrar em
combustão.
Alguém está traindo a nossa confiança e vai desejar nunca tê-lo
feito quando descobrir quem ele é.
Paro à frente do quarto de Clarke, ergo o punho e bato três vezes
contra a madeira gasta, exatamente como combinamos.
Olho ao redor enquanto espero ansiosamente pela sua
identificação de que não se trata de outra pessoa do lado de fora. Dois
guardas passam por mim às pressas, eu os encaro profundamente,
procurando por algum resquício de desconfiança. Em seguida, escorrego o
olhar até o símbolo bordado em suas camisetas, procurando pela
identificação do batalhão.
Ambos cessam o passo e parecem receosos de abrir a boca e
causar a Terceira Guerra Mundial. No entanto, não há motivo algum para tal
desconfiança se estiverem limpos. Não sou um completo lunático.
— Turner, nós olhamos todo o térreo do prédio e pedimos à
informática para que entrem nas câmeras e descubram como ele entrou com
tanta facilidade. — Informa um deles, aprumando a postura.
Balanço a cabeça em afirmação quando noto o dourado abaixo da
caveira indicando que pertencem ao batalhão ouro. Isso significa que se
estão em um nível tão alto, é por serem merecedores. Se por algum acaso
houvesse algum traidor entre o batalhão mais alto, nós saberíamos.
— Williams? — Pergunto, curioso devido a sua ausência.
A partir do momento em que Floyd saiu por aquelas portas,
Williams desapareceu. Puto, frustrado ou estressado, ele deveria estar aqui
para comandar a situação. Ele é o líder, deveria dizer o que fazer e orientar
os batalhões. Essa não é a minha função.
— Não sei, cara. Se trancou no escritório e pediu por um minuto. —
Diz.
Balanço a cabeça outra vez, estressado com todas as merdas que se
passam pela minha cabeça neste exato momento.
Williams não poderá reclamar de minhas escolhas mais tarde, ele
sabe o quão irritado me encontro quando falhamos em alguma missão.
Nesta, definitivamente, estamos em risco. Não vou colocar tudo a perder e
não me deixarei levar pelo desapontamento de termos sido descobertos.
Estou puto? Sim. Estou me sentindo um merda? Com certeza.
Mas não permitirei que Floyd se sinta tão poderoso outra vez. Ele
que se foda. Williams pode superar o desvio do caminho mais coerente da
coisa.
Coço a nuca antes de erguer o olhar e suspirar profundamente.
— Reúnam todos no salão de treinamento. Desço em alguns
minutos.
Ambos assentem com um brilho desconfiado nos olhos e, então,
seguem o caminho em direção às escadarias.
Não acho que tenha sido difícil adivinhar quais são as minhas
intenções, já que graças a Williams, minhas explosões devem ser limitadas.
Ele não está aqui, no entanto. Não ficarei parado enquanto o líder precisa de
um minuto para colocar a cabeça no lugar. Ele pode lidar com o fato de que
estamos em risco e eu jamais permitiria que ele nos disciplinasse como se
isto fosse um teste do além para testar a nossa lealdade.
Resolver as coisas no diálogo é coisa para gente patética que
acredita no perdão divino e que as coisas são como devem ser.
Não temos tempo para isso.
Ele sempre soube disso quando me escolheu como o seu braço
direito, sabe que não limito as minhas punições tanto quanto minhas
responsabilidades aqui dentro. E se ainda assim ele permite que eu os
coloque em ação, não é um problema meu.
Descobrirei quem está traindo a nossa confiança e conseguirei
tempo o suficiente para colocar o prédio em segurança para manter as duas
à salvo. Eu não estou disposto a quebrar uma promessa, e Williams deve
entender que nem todos aqui são agraciados com o seu bom senso.
Aéreo, encaro a porta de madeira do quarto de Clarke. A
maçaneta se encontra do mesmo jeito que deixei, e do lado de fora, não
ouço sequer um ruído que poderia existir lá dentro.
Giro sobre os calcanhares e analiso a porta, decidindo se deveria
agir como o cara que queria ser para ela. E, apesar dos meus instintos
gritarem para que seja cauteloso, não consigo conter os nervos que saltam
pelo meu corpo, completamente louco pela necessidade de saber se ela está
bem.
Encaro a porta por dois segundos antes de jogar a porra do auto
controle para o alto e agarrar a maçaneta com força, sem paciência para
lidar com a calma que nunca possuí.
Eu apenas preciso me certificar de como ela está, depois disso,
me sentirei menos tenso. Poderei descontar as minhas frustrações em outras
coisas. Os repuxos nos músculos apenas auxiliam o meu cérebro a perder a
capacidade de raciocinar.
Quando giro a maçaneta e entro no quarto, sinto como se eu não
estivesse respirando. Meu pulmão infla e mal consigo conter a porra do
pavor que me domina quando vasculho todo o quarto com o olhar, entro no
banheiro solitário, abro os armários, olho debaixo da cama... Tudo isso para
acreditar que ela realmente não está aqui.
Frustrado, levo a palma da mão à testa e trilho um caminho até o
cabelo, puxando-o com força.
Ela não está aqui.
Meus olhos ardem e a veia em minha testa pulsa, sentindo a
necessidade de explodir a qualquer segundo.
Travo a mandíbula com força demais quando respiro fundo e
decido que deveria vasculhar a porra do prédio antes de tirar a arma do cós
da minha calça e matar a todos que podem estar traindo a nossa confiança.
Eles morrerão da forma mais cruel se Clarke não for encontrada.
Vão desejar nunca ter pisado os seus pés neste prédio.
Se Marcus a levou, eu o encontrarei, juro por Deus, não me
permitirei vacilar com a porra da arma apontada para a sua cabeça outra
vez.
Sequer olho para os lados quando saio do quarto e caminho em
direção às escadas.
O mundo está em silêncio. Mas as vozes na minha cabeça que
insistem em prever o pior, não.
Desço os degraus com rapidez, ignorando a movimentação ao
meu redor. Estou lutando para me convencer de que Kelly pode tê-la levado
para um local mais seguro.
Essa hipótese é a mais simples e a mais fácil de se acreditar.
Nunca me senti tão impotente. Não consigo me perdoar por
vacilar, e se Marcus teve sucesso em sua missão de colocar as mãos no que
nunca o pertenceu, jamais conseguirei lidar com as consequências do
fracasso.
Eu nunca senti o meu sangue ferver com tamanha intensidade.
Estou a um fio de perder a cabeça, de me render ao desespero e
aceitar que sou um covarde. E que tudo isso é minha culpa.
No entanto, quando estou prestes a girar o corpo para descer os
degraus que restam, congelo no topo da escada quando uma das minhas
mãos aperta o corrimão e meus olhos encontram com os de Hyuk em puro
reflexo.
Endireito a postura e procuro interpretar o olhar distante e receoso
que me é dado quando nossos olhares se cruzam. Entretanto, apesar de estar
curioso para descobrir a razão para que ele pareça tão tenso, não é
necessariamente isto que ganha a minha atenção.
No degrau mais baixo, encolhida e com o rosto entre as mãos,
Clarke parece estar enfrentando alguma crise. Sei disso quando o som
agudo de seu soluço ecoa escadaria abaixo. Ao seu lado, Kelly mantém a
loira entre os seus braços, acariciando os seus fios, parecendo se esforçar
para acalmá-la.
Encaro aquela cena com um aperto devastador no peito.
Imagino o pior.
Penso que as coisas podem ser piores do que imaginei.
Penso em todas as coisas que fariam com que ela me odiasse e eu,
consequentemente, desprezasse a minha existência.
No entanto, quando Kelly ergue a cabeça para me encarar, Clarke
nota o silêncio ensurdecedor que se instala entre nós. Não sei sobre o que
estavam falando ou a razão para que ela esteja se debulhando em lágrimas,
mas por um momento, temo que posso despedaçar quando ela ergue a
cabeça e conecta os nossos olhares.
Meu coração instantaneamente palpita contra o peito e meus pés
parecem ter deixado o apoio do chão. Os olhos avermelhados, a ponta do
nariz enrugada e a bochecha corada de Clarke indicam que ela deveria estar
naquele estado há pelo menos alguns minutos.
Quero perguntar quem a feriu, e então pedir perdão por minha
covardia irreparável. Quero voltar no tempo e consertar a merda que eu fiz.
— Jay… — Ela sussurra, levantando-se de forma desajeitada.
Parece aliviada em me ver.
Kelly se afasta para dar espaço para que Clarke se levante, seu
olhar nunca deixando o meu. Todos ali parecem desconfiados, como se
estivessem poupando uma informação que seria capaz de me enlouquecer.
Torno a encarar Clarke, varrendo meu olhar por cada canto de seu
corpo a fim de encontrar algum mínimo arranhão.
— Pare de me vasculhar, eu estou bem. — A sua voz doce e
gentil me faz encará-la. Clarke sobe alguns degraus e cessa o passo no
degrau abaixo, mantendo-se na altura de minha cintura.
Estreito o olhar e busco interpretá-la. Os olhos azuis fixos nos
meus tentam me arrastar para um oceano profundo e sem saída, as mãos
que rodeiam a minha cintura me proporcionam a sensação de alívio, e
quando o seu corpo abraça o meu, só então me permito respirar outra vez.
Quase fecho os olhos e aprofundo-me na sensação de tê-la perto
de mim. Engulo tão em seco ao imaginá-la distante, que preciso entreabrir a
boca para buscar por um ar escasso demais.
— Me desculpa. Você provavelmente vai ficar furioso e eu fui
irresponsável, mas... — Clarke larga o meu corpo e inclina a cabeça,
conectando os nossos olhares. — Eu fui patética, Jay, apenas isso. Não
tenho outra explicação.
A expressão confusa que preenche o meu rosto deve ser óbvia
demais, porque Clarke abraça o próprio corpo e tenta afastar-se de mim
outra vez, contudo, apenas seguro o seu antebraço com força o suficiente
para mantê-la exatamente onde está. Clarke me lança aquele olhar repleto
de pavor, assustada com o agarre repentino.
Não a solto.
Mantendo os nossos olhares conectados, direciono a pergunta a
outra pessoa que sinto nos encarar a todo minuto.
— O que aconteceu, Hyuk? — O tom rígido que domina a minha
voz, indica a intensidade do meu nervosismo.
Clarke suspira, tentando responder a pergunta que não foi
direcionada a ela.
A expressão desconfiada, a forma como ela parece entender que
eu estou furioso e fora de controle, a forma como parece compreender que
não consigo manter a minha cabeça em ordem quando a sua segurança está
em jogo.
Ela sabe.
Clarke é mais do que imaginei que fosse, e não acho que desta
vez ela tenha se interessado em manter a curiosidade e a obediência como
prioridade.
— Eu…
Então a realidade vem como um baque, intensa demais, como um
balde de água fria em uma manhã de graus negativos.
— Você não foi para onde eu pedi que fosse, não é? — A
interrompo.
Espero que ela negue. Espero, porra, que ela diga que estou
errado. Que jamais teria se colocado em risco em tais circunstâncias. Quero
mesmo que ela diga que nunca cometeria um ato de ingenuidade tão
gigantesco.
Penso que não.
No entanto, meu achismo cai por terra quando sua cabeça nega,
devagar, sem pressa, e receosa.
Porra.
Abano a cabeça, negando com veemência enquanto umedeço a
boca seca demais. Desvio os nossos olhares, porque não consigo encará-la.
Não consigo encará-la porque não posso lidar com a ideia de que realmente
acredita ser comum colocar a própria vida em risco desta forma.
Não foi falta de aviso. Nós sempre dizemos que não somos
bonzinhos, não estamos aqui para lidar com arco-íris e unicórnios coloridos.
Nosso mundo é cinza, cruel e horrendo. Ela não vê? Não consegue enxergar
que apesar de todos os defeitos, fazemos o que fazemos para proteger
pessoas como ela? Não vê que a porra da curiosidade é exatamente o que
poderia arrasta-la para o buraco?
— Ninguém a viu, Jay, relaxe. — Kelly diz, seu tom é vacilante.
É como se ela estivesse com medo de mim. Da minha reação.
Um riso amargo me escapa.
Só pode ser brincadeira.
Ignoro Kelly, ignoro Hyuk, há apenas uma pessoa aqui que me
tira das rédeas.
— Eu te pedi um favor, Clarke. Não coloquei uma arma na sua
cabeça e te obriguei a permanecer dentro do quarto. Eu pedi. Com a porra
da educação. — Ignoro qualquer outra pessoa que esteja entre nós, conecto
os nossos olhares outra vez, me esforçando para ser paciente. Apesar de ser
um desafio. — Sinceramente, não sei mais o que dizer a você. Isso não é
uma brincadeira, pare de se arriscar, porque você tem muito a perder.
Ela junta as sobrancelhas, nitidamente abalada com a minha
resposta rígida.
Eu realmente queria que tivesse outra alternativa, mas ela não
parece ser o tipo de pessoa que aceita as coisas como são sem o auxílio de
um chacoalhão.
— Eu só... Queria entender como as coisas são, eu acho.
Bufo um riso incrédulo quando tomo uma das suas mãos e aperto-
a contra a minha.
— Você acha que consegue lidar com as coisas como elas
realmente são? — Desafio-a, sentindo minha voz falhar no processo.
— Pensei que você estivesse me treinando para isso. — Clarke
responde, aparentemente abatida pelo tom que preencheu a minha voz. Ela
responde à altura.
Não é uma mentira, realmente planejava treiná-la do zero, para só
então mostrar como é a nossa realidade. Não acho que as coisas sendo
como são, iriam contaminar os seus olhos com um brilho imensurável
causado pela realização. Isso não aconteceria.
Mas eu estou puto. Pela primeira vez, ela conseguiu me tirar do
sério.
As coisas não sairão como o planejado, porque ela acabou de
destruir todas as chances de conhecer - aos poucos - a vida que a aguardava.
Que esperava pelo o seu amadurecimento, pelo comprometimento e a droga
da obediência que ela negou ter quando a pedi para ficar na droga do
quarto.
— Certo. — Meneio a cabeça em direção às escadas. Minha voz é
firme. Eu estou convidando-a para um passeio não muito convidativo.
Ela pisca algumas vezes, alternando o olhar entre as escadarias e
eu. É óbvio o seu receio, mas é isso que ela realmente quer, não é?
— Você acha que pode lidar com o que eu sou, não acha? —
Indago, debochando da situação. — Então vamos ver como você se sai no
processo.
Antes que ela possa protestar, levo uma das mãos até o seu
antebraço e a puxo escadaria acima. Ela prende os pés no chão, como se
estivesse prestes a soltar mais um daqueles protestos de que não iria para
nenhum lugar se não tivesse uma resposta. Ela não a terá, no entanto. É o
que ela quer, descobrir a verdade por si só. Então quando ela encarar as
coisas como elas são, verá que nem sempre o ato de coragem é válido. Às
vezes, precisamos ser coerentes, abaixar a cabeça e seguir uma ordem.
— Ei, ei! — Hyuk intervém. Viro a cabeça a tempo o suficiente
para vê-lo pular de dois em dois degraus, a fim de nos alcançar no topo da
escada. Quando me encara, seus olhos capturam o meu agarre no braço de
Clarke, então tornam aos meus outra vez, visivelmente incrédulos. — Ela
não está pronta. Você não está pensando direito.
Eu o olho, sentindo a necessidade de conter a minha vontade de
arrastá-la para um lugar que não brilharia os seus olhos, e temo dizer, que a
faria sentir medo de mim. Do que eu fui obrigado a me tornar para
sobreviver.
Quase concordo com ele, quase baixo a guarda e digo que ele tem
razão.
Mas não é isso que faço.
— Nós dois sabemos que eu nunca faço boas escolhas. Talvez eu
me arrependa mais tarde, ou talvez não. — Digo a ele. — Vá ao salão de
treinamento e leve o seu equipamento, é tudo que peço.
Hyuk coça a cabeça, jogando os fios lisos para trás. Ele parece tão
apavorado quanto eu.
— Maldita hora que eu decidi ser o irmão de um desequilibrado
— Resmunga, mais para si mesmo do que para mim. Suspira pesado e abre
os olhos, mirando-os em mim. — Certo, certo. Vou pegar o meu
computador e apareço por lá. Não faça nenhuma bobagem.
Dou de ombros, arrastando Clarke para perto de mim. Ela não
protesta em nenhum momento.
— Não vou fazer nada que já não deveria ter sido feito. — Cuspo
as palavras, pronto para girar sobre os calcanhares e seguir com o meu
caminho. No entanto, a figura encolhida e os olhos arregalados de Kelly
chamam a minha atenção. Pela primeira vez, ela parece assustada com o
que virá a seguir. — Não se preocupe, não é nada que você não seja capaz
de suportar. — Direciono as palavras à ela, lembrando-a visualmente de que
ela é a porra de uma garota forte pra caralho.
Ela sobreviveu a infernos piores que definitivamente não merecia,
e este no qual enfrenta neste momento, é simplesmente para protegê-la.
Hyuk foi o responsável por treiná-la até que eu encontrasse Clarke. Ele é
paciente e astuto, não acho que ela esteja na estaca zero, não totalmente. Ela
sabe suportar essas merdas, confio plenamente em sua capacidade.
O seu passado é a evidência principal de que ela é forte e capaz.
Dito isso, puxo Clarke ao próximo andar, diretamente ao salão de
treinamento onde todos os batalhões já devem esperar por mim.
— Jay, você está me assustando. — Clarke sopra, conforme tenta
acompanhar os meus passos largos.
Contenho um riso irônico.
— Estou? — Debocho, largo o seu braço e viro o corpo para encará-
la. — Por que estou te assustando, Clarke? Por que perdi a cabeça? Por que
estou furioso com você? — Indago, aprofundando os nossos olhares como
nunca havia feito.
Noto quando ela respira fundo, seus olhos parecem
decepcionados e ela parece querer fugir deste prédio, especificamente, para
longe de mim. Seus braços se cruzam na altura do peito e ela mordisca o
canto dos lábios, desta vez, como se estivesse envergonhada.
— Está me assustando porque está parecendo com ele. — Ela
suspira, desviando os nossos olhares como se aquilo pudesse me machucar.
— Você não é assim. Não é…
— Não sou o quê? — A interrompo, a um fio de perder a cabeça.
— Não sou como ele? Não me compare com o seu pai, Clarke, ou você
definitivamente não vai gostar do que vai ver.
Ela se cala.
Estou me sentindo o maior cuzão de todos os tempos por tratá-la
dessa maneira, porém, como poderia ser diferente? Como eu poderia estar
menos furioso quando estive a um fio de perdê-la? Por que caralhos ela não
consegue se dar conta de que a única coisa que faria com que eu realmente
fosse destroçado, seria se por algum acaso do destino, eu a perdesse?
Não é difícil de adivinhar, cacete.
Pela primeira vez na vida, tenho algo em minhas mãos que nunca
passou pelas mãos daquele que se acha tão superior. Ele não a tem. Ela é
minha. Isso o irrita e o faz querer desesperadamente tê-la para si, para só
então, conseguir me atingir de alguma maneira.
Jurei que seria paciente e omitiria boa parte de nossas realidades.
Jurei que levaria as coisas em um ritmo lento, com calma.
Mas agora tudo está por um fio. Eu preciso protegê-la e só há
uma forma de fazê-la acreditar de uma vez por todas de que nada disso é
alguma brincadeira.
— Eu teria dito a verdade para você se, por algum acaso, tivesse
perguntado antes de chegar com todo esse ar de superioridade. — Ela
finalmente declara.
Inclino a cabeça em sua direção, olhando fixamente para o par de
olhos azuis vidrados nos meus. Suas sobrancelhas se franzem e seus braços
largam o seu corpo, caindo ao seu lado. Ela avança alguns passos em minha
direção e ergue o queixo o suficiente para não quebrar o nosso contato
visual.
Eu observo todos os mínimos detalhes, desde a sua sinceridade,
até a forma como parece destroçar toda a proteção entre a fúria e a razão
que mantenho presa em meu peito.
— Eu teria dito que fiquei curiosa para conhecer mais sobre você,
para ter respostas que você não me diz. — Revela, seu tom de voz é baixo e
suave. No entanto, a decepção ainda é presente ali. — Quis conhecer cada
lado seu, porque nada do que eu imaginava que você fosse, poderia me
assustar. A minha opinião continua a mesma. — Ela afirma, finalmente
cessando o passo à minha frente.
Ouço cada palavra com atenção.
— Se tivesse perguntado diretamente a mim, saberia que fiquei
apavorada por ver tantas armas apontadas para a sua cabeça. Fiquei com
medo de perder a única pessoa que acreditou em mim. Que me ajudou a
sentir alguma coisa. — Explica lentamente, para que nada do que diz possa
passar despercebido por mim.
Engulo em seco, pronto para questioná-la.
— Você estava espiando?
Ela não esconde o meio-sorriso incrédulo que cresce no canto da
boca rosada e carnuda.
— Não tive medo quando você apontou a sua arma para a cabeça
daquele homem, não tive medo quando você atirou no crânio do outro cara.
Não tive medo quando gritou comigo e pareceu descarregar todo o peso da
sua raiva em mim. Tive medo da sua atitude de não me dar uma única
chance de explicar as minhas razões, porque foi exatamente isso que passei
na minha infância. Não importavam os meus motivos, eu sempre estava
errada se não seguisse a uma ordem idiota. Você fez a mesma coisa, Jay. —
Ela se aproxima, colando os nossos corpos em um abraço suave, sem
apertos, sem intensidade.
Confuso, olho para baixo, encarando o seu couro cabeludo loiro
enquanto ela relaxa a sua cabeça em meu peito, certamente ouvindo as
batidas descompassadas do meu coração.
— Não sei qual é o seu grande plano, mas nada vai fazer com que
tenha medo de você. Não se você deixar de ser um babaca e permitir que eu
mesma te explique diretamente quais foram as minhas más escolhas. — Sua
voz se torna um sussurro.
Fecho os meus olhos, travando a mandíbula com força enquanto
tento me manter sob controle.
Meu Deus.
Ela é mesmo real?
Ela existe, porra?
Ninguém nunca fez isso. Ninguém buscou entender as minhas
merdas, ninguém nunca ignorou a minha crueldade porque este sempre foi
um traço que se destacou em mim. Todos temem o monstro que eu sou, o
monstro que tento evitar a todo custo mas que já se tornou parte de mim.
Parte esta que não posso remover. Ainda assim ela está aqui, acalmando o
furacão que ameaça invadir o meu peito com uma facilidade desconhecida
por mim até então.
Abro a boca para conseguir respirar melhor, contendo as minhas
mãos que desejam estar ao redor de seus cabelos outra vez. A minha boca
que deseja sentir o gosto da sua outra vez, meus dedos que desejam apertar
a sua carne contra a minha, outra porra de vez.
Não sei o que ela tem, mas há algo em Sofia Clarke que me puxa
diretamente até ela. Como se fosse o metal e o meu corpo um maldito imã.
Ela não parece ser real, não parece estar ao meu alcance, parece ser aquele
tipo de garota inalcançável e proibida. E mesmo que houvesse alguém para
me impedir de reivindicá-la, a menos que esta pessoa fosse um deus
supremo, jamais seria capaz de ter sucesso em sua missão medíocre.
Inclinando a cabeça, ergo um dos braços e levanto a sua cabeça.
Ela abre os olhos de supetão e me olha de uma maneira tão profunda que
por um segundo, quase me esqueço qual é a minha prioridade no momento.
Então, afundo a minha mão em seus cabelos e os sinto aquecer a
palma da minha mão. Sinto quando uma das suas mãos viaja por baixo da
minha camiseta, trilhando um caminho até a minha costela e quando sigo o
seu movimento, noto os respingos de sangue que existem na camiseta.
Quero afastar Clarke desta bagunça, mas ela não parece se incomodar,
parece até confortável demais.
A fervura da sua mão em contato com a minha pele faz com que a
minha respiração acelere. Sei que se ela continuar nesse ritmo, terei que
avisá-la sobre as consequências de mexer com a minha cabeça.
Ela não está pronta para um passo tão elevado.
Ainda não.
Clarke viaja sua mão até a minha barriga, a ponta dos dedos tocando
delicadamente cada gominho que há ali. Ela segue o mesmo ritmo
cautelosamente, provocando-me, e quando a ponta suave de seus dedos toca
o meu mamilo, seguro o seu pulso e interrompo a carícia prazerosa demais.
Ela franze o cenho, confusa. Sei que teme que tenha feito algo de
errado, mas apesar de estar longe disso, não digo nada. Não parece ser o
momento. Só a olho com toda a admiração que sinto e encaro os seus lábios
entreabertos, tendo a plena consciência de que estou fodido. Não posso
voltar atrás.
Um sorriso perverso cresce nos meus lábios quando aproximo o
rosto do seu e colo os nossos lábios, esquecendo-me completamente de que
há pelo menos vinte minutos eu precisava de um pouco de pó para me
acalmar e ela conseguiu isto em segundos. Ela se tornou a minha nova
droga favorita.
Procuro ignorar o arrepio que cresce no pé da minha barriga
quando sinto a sua língua invadir a minha boca sem um aviso ou alguma
permissão. Ainda não descobri como ela beija tão bem com toda a pouca
experiência que possui, mas não importa, contanto que eu seja o único a
provar do gosto insubstituível que apenas a sua boca formidável possui.
Eu largo os seus cabelos e traço um caminho desde a nuca,
bochecha, e mandíbula. Mantenho a minha mão abaixo de seu queixo,
cobrindo boa parte de sua garganta com o tamanho da minha mão.
Clarke arfa, indicando que a força que coloco no toque não é tão
gentil como eu esperava que fosse.
Como poderia?
Não consigo ter racionalidade alguma quando a tenho em minhas
mãos.
Eu inclino a cabeça e aprofundo o nosso beijo, tomando o
controle do beijo que tanto necessito. Não peço permissão para invadir a
sua boca com a minha língua, tampouco para chupar a sua com tanta
ferocidade. Rosno quando Clarke aperta a minha cintura com ambas as
mãos e mordisca o meu lábio inferior.
Sem perceber, começamos a caminhar sem direção específica até
que sinto o seu corpo atingir uma parede. Só então me permito agarrar uma
das suas pernas com a mão livre e erguer o seu corpo, firmando-o no
corrimão.
O arrepio na virilha é fatal, não consigo conter a forma com que a
minha mão acaricia a sua perna macia. Não consigo conter o meu aperto em
sua garganta, resistindo a vontade alucinante de sufocá-la com o mais puro
prazer. O maior deles.
Depois disso, me insulto internamente por não conseguir ter
algum controle. Ela suga tudo o que tenho. Me tira do eixo. E eu sei que
estou fodendo com tudo.
Mas não consigo parar. Não posso.
Empurro o seu corpo contra a parede, tomando a sua boca com a
minha da melhor forma que posso, resistindo a satisfação que me preenche
por, finalmente, ter Sofia Clarke em meus braços, aqui comigo, porra.
Chupo a sua língua com força, arrancando dela um gemido de
satisfação. Ela leva as mãos para os meus cabelos e os puxa entre os dedos,
arranhando o meu couro cabeludo como pode. Consigo sentir a sua
respiração pesada contra o meu rosto, seus lábios indicam o desespero que a
preenche por dentro da mesma forma que acontece comigo, ainda que o seu
seja menos problemático.
— Você é o primeiro garoto que eu beijei. — Ela confessa,
puxando o meu lábio inferior entre os dentes. Isso é sexy pra caralho. —
Acho que vai ser o único, também.
Sorrio, nada surpreso pela revelação. Eu sabia que ela não tinha
muita experiência, mas talvez ela tivesse beijado algum bebezão durante o
primário, ou coisas assim. Estou honrado por sua cogitação de me manter
em tal posição por tanto tempo. Não desejaria que fosse diferente.
— Ninguém além de mim tem permissão para provar o seu gosto
— Acaricio os seus lábios com a ponta dos dedos, provocando-a. — Você é
minha.
Sua pupila dilatada é um claro sinal de que ela concorda com o
que estou dizendo. Linda.
— Ninguém além de você tem permissão para me explicar o que
significa essa vontade avassaladora de fazer xixi enquanto você está me
beijando. — O adendo quase me faz vacilar. A inocência com que ela diz
isso, faz o meu coração arder como brasa e o meu pau começar a ganhar
vida dentro do jeans.
Repreendo o meu subconsciente imediatamente. Porra, não.
Ela acaba de admitir que fica excitada quando está me beijando.
Apenas não sabe disso.
Respiro fundo antes de recuar um passo e desviar o olhar, tentando
distrair a minha mente com qualquer outra coisa que não seja arruiná-la
aqui e agora. Não, isto está fora de cogitação. Se acalme, Jason do caralho.
— O que foi? Eu disse alguma coisa errada? — Ela desce do
corrimão, buscando o meu olhar.
Eu nego, piscando diversas vezes a fim de amenizar o fervor que
aquece a minha pele.
Como posso me surpreender?
Ela viveu toda a sua vida longe dos próprios desejos e livre arbítrio.
Sequer sabe o que é tesão ou prazer próprio. É tudo tão novo…
Respiro fundo, controlando-me o máximo que posso.
Forço uma tosse.
— Disse mais coisas do que gostaria de dizer, isso não posso
negar. — Zombo, mudando o rumo da situação. — Agora vamos, preciso
resolver uma coisa.
Ela apenas assente e se aproxima de mim, colocando-se em minha
frente e ajeitando toda a minha camiseta, gola e cabelos.
— Se vai dar uma lição nos caras, precisa se livrar da aparência
de quem acabou de dar um belo trato na garota que deveria estar
protegendo. — Ela zomba, deslizando a palma de sua mão pela minha
camiseta a fim de amenizar o excesso amarrotado.
Um meio-sorriso perverso brota na minha boca.
— E não era isso que eu estava fazendo?
Ela mantém uma das mãos em minha virilha, abaixo da barra da
camiseta, quando conecta os nossos olhares e devolve o sorriso perverso na
mesma intensidade.
— Era, mas ninguém precisa saber disso. — Responde, recuando
alguns passos em direção às escadas para continuarmos o nosso caminho.
Então olhando por cima dos ombros, ela instiga: — Você não vem?
Respiro fundo, caminhando até ela com um sorriso no canto da
boca.
Essa garota ainda vai me matar…
Ela ergue um dos braços e balança os dedos no ar, convidando a
minha mão a entrelaçar na sua. Acompanho o movimento e não hesito em
segurá-la e firmar o aperto, com medo de soltá-la e descobrir que nada disso
é real. Eu ficaria apavorado.
Pela primeira vez em muitos anos, realmente sinto o meu coração
aquecido pela chama da felicidade. Estou confortável, finalmente sentindo
que sou amado pelo que realmente sou. Sem mentiras, meias-verdades ou
invenções. Sou só eu sendo eu. É só ela sendo ela, me amando do jeito que
eu sou.
Ela me tem na palma da sua mão e poderia levar-me ao céu ou
descartar-me para o inferno quando quisesse. A minha sentença virá quando
ela descobrir que tem esse poder.
— Vai ser muito feio? — Ela indaga de repente, se referindo à
reunião no salão de treinamento.
Aperto a sua mão e acaricio a divisão de seus dedos com a ponta do
indicador, procurando acalmá-la.
— Depende do que vou descobrir.
Quando descemos o último degrau, a viro de frente para mim e
mantenho o seu corpo ereto quando acaricio os seus ombros, fazendo-a me
olhar.
— Quero você atrás de mim o tempo todo, agarre a mão de Kelly e
fique onde eu possa te ver quando precisar me certificar de que tudo está
exatamente onde eu deixei. — Instruo, ouvindo os cochichos vindos do
salão. Estamos do lado de fora, a um passo de enfrentá-los. — Dessa vez,
você não vai querer ser desobediente, não é? Preciso que você…
— Estarei bem atrás de você, Jay. — Ela interrompe, revirando os
seus olhos na órbita. Eu ergo uma das sobrancelhas. — Eu juro, não vou
fazer nada parecido outra vez.
Assinto, disposto a lhe dar a oportunidade de mostrar a sua
competência, pela segunda vez.
— Então vamos.
É a minha vez de erguer um dos braços e convidá-la a segurar a
minha mão. Notando o meu movimento, Clarke sorri e alterna o olhar entre
a minha mão e os meus olhos.
— Pensei que você não quisesse que soubessem que estamos
juntos.
Eu rio pela forma como ela parece receosa ao definir um rótulo
para o que somos. Quis zombar disso, mas não é o momento para
discutirmos sobre o nível da nossa atual relação.
Outra hora.
— É bom que eles saibam que você me pertence.
Clarke bufa um riso, agarrando a minha mão e apertando-a contra
a sua palma.
— Eu pertenço a você?
Sopro uma risada.
— Antes mesmo que pudesse desconfiar.
Não lhe dou tempo o suficiente para responder a minha provocação,
já que avanço alguns passos adiante e nos arrasto para dentro do salão.
Imediatamente, todos ali notam a minha presença.
Os caras estão todos reunidos no canto do salão em seus círculos de
afinidades, cochichando sobre algum assunto, mas quando seus olhos
percebem a minha presença, começam a se movimentar em direção ao
centro do salão. Outros, que estavam no ringue treinando no tempo livre,
também vem para o centro.
Passamos por eles como furacões. Clarke parece tensa, sinto a
palma de sua mão suar pela tensão, ela odeia toda a atenção que é
direcionada a ela. Sei disso. Então com o objetivo de acalmá-la, aperto a
sua mão e a encaro de soslaio.
— Fique calma, linda. — Sussurro, alto o suficiente para que apenas
ela ouça. — Ninguém aqui está te julgando.
Ela balança a cabeça repetidas vezes, negando-se a olhar para
qualquer outro ponto que não sejam as paredes de concreto à sua frente.
Quando direciono o olhar até os seguranças que fazem turno nesta
noite, alterno o olhar entre o quarteto por longos segundos enquanto sigo o
meu caminho. Eles deixam de conversar entre si ao notar a minha atenção
direcionada a eles. Um deles engole em seco e eu o encaro, decidindo que
será por ali que começarei.
Quando me coloco ao centro do salão, solto a mão de Clarke ao
mantê-la às minhas costas. Não demora muito até que Kelly e Hyuk
adentrem pela porta do salão, ambos carregando notebooks e outros
equipamentos que apenas Hyuk entende como funciona.
Espero que ambos se aproximem. Os caras dos batalhões esperam
de braços cruzados, todos com os seus respectivos uniformes pretos,
bordados com o símbolo da academia. Vago o meu olhar por cada um deles,
imaginando quem seria patético o suficiente para vestir a uma farda desta e
ainda ser capaz de traí-la.
Todos estão em silêncio encarando-me dentre todas as pessoas que
existem aqui. Suas atenções estão fixadas em mim.
É assim que deve ser. Há duas opções, essa noite será um
completo desastre, ou uma saída para os nossos problemas, porque, se eu
descobrir quem está nos traindo, ele não morrerá até que nos diga todas as
informações que precisamos descobrir.
— Qual é o seu plano? — Hyuk pergunta quando se aproxima.
Ele mantém duas caixas de plástico pretas abaixo do braço. — Preciso
organizar os materiais.
Eu assinto, aproximando-me de seu ouvido.
— Preciso que acesse todas as câmeras com áudio do prédio.
Principalmente aquelas da entrada, saída, e também aquelas que instalou no
subterrâneo, por precaução.
Nem todos sabem que há outras câmeras espalhadas pelo prédio,
além daquelas que todos os caras da informática possuem passe livre para
acessar. Há aquelas que ninguém, além de Hyuk, consegue acesso. São os
benefícios de ter um amigo bom pra caralho no que faz.
Sabíamos que uma hora precisaríamos de uma saída ou um plano
B, Hyuk nunca esteve errado quanto a isto.
— Certo — Ele abre um sorriso minimalista, como se estivesse se
gabando. — Algum horário específico?
Cruzo os meus braços.
— O dia inteiro.
Não esperando pela sua resposta, viro-me em direção aos caras que
esperam pacientemente por uma satisfação. Coloco ambos os braços para
trás e procuro emanar a liderança que preciso ter neste momento. Inclino o
queixo e deixo Hyuk para trás quando avanço alguns passos e olho em
direção aos seguranças do turno.
— Venham aqui.
Eles se entreolham, mas quando notam que não há escapatória,
avançam alguns passos até estarem à minha frente. Todos enfileirados, a
cabeça baixa e os olhos fixados no chão, como mocinhas covardes.
— Ash Scov, qual era o seu turno? — Direciono a pergunta ao
segurança da ponta esquerda. Caminho até ele e o obrigo a me encarar.
Ele ergue o olhar, visivelmente intimidado perante a mim.
— Minha responsabilidade era toda a zona de entrada e saída
durante a tarde, senhor. — Responde ele, sinto a sua voz tremer.
Balanço a cabeça, girando o meu corpo para encarar Hyuk às
minhas costas que desta vez, está ajoelhado ao chão, digitando
apressadamente em seu notebook.
— Verifique o turno da tarde primeiro, Hyuk. Quero descobrir se
o nosso querido Ash está sendo honesto. — Giro novamente sobre os
calcanhares, encontrando os seus olhos apavorados em minha direção. —
Se você está cometendo algum ato de traição, essa é a sua grande chance de
dizer a verdade. Ou vocês dizem a verdade ou nós descobriremos. Não serei
tão piedoso quanto Williams.
Ash abre a boca para responder, mas quando algo parece atingi-lo
com firmeza, balança a cabeça e mantém os olhos fixos no chão.
Eu inclino o meu corpo o suficiente para sussurrar em seu ouvido:
— Me diga, Ash, Marcus Floyd passou por você enquanto nós
estávamos distraídos? — Questiono.
Sinto o tremor de seu corpo, mas não me movo.
— Ele te ofereceu grana? Um bom salário?
Ash finalmente reage, erguendo a cabeça e aprumando a sua
postura como nunca havia feito. Os seus olhos estão vermelhos, algo me diz
que está a um fio de se debulhar em lágrimas, eu gosto de como soa
intimidador para ele, mas espero por sua resposta.
— Não, senhor. — Responde, firme. — Eu jurei lealdade à
academia, não houve traição alguma da minha parte.
Torço os lábios, pendendo a cabeça para o lado, parcialmente
surpreso.
— Bom, Ash. É o que nós vamos ver.
Viro até Hyuk, lhe oferecendo um olhar sugestivo. Preciso que ele
apresse as coisas, há pelo menos mais cem de nossos homens para
analisarmos.
Entendendo o recado, ele inclina o corpo e captura um fone de
ouvido estilo headsets, colocando-o em seus ouvidos. Um clique do mouse
soa, e todos nós sabemos que a hora da verdade está próxima demais.
Aproveitando-me da situação, encaro os seguranças por cima do
ombro e os ofereço uma piscadela provocante, instigando-os a denunciar
quem realmente são. Quando todos os quatro dão de ombros e desviam a
atenção, eu não contenho o riso que escapa da garganta. Imbecis.
— Ash Scov não saiu do seu posto por um segundo sequer.
Tampouco teve contato com os demais seguranças. — Hyuk anuncia,
fazendo-me interromper o meu riso amargo.
Eu torno a encarar Scov por cima do ombro a tempo suficiente
para vê-lo suspirar aliviado. Ele estava sendo honesto então, no fim das
contas.
— É o seu dia de sorte, Scov. — Anuncio ao dar batidas firmes
em seu ombro. — Está liberado, por ora. Lembre-se, estou de olho em você.
— Aviso, avançando para o próximo segurança.
Xavier Peroni, alto o bastante para intimidar qualquer intruso,
mas não o suficiente para me fazer vacilar.
— Xavier, qual era o seu turno no dia de hoje?
Ele ergue o olhar, sem a pontada de pavor que o seu amigo
demonstrou a alguns minutos. Este é um ponto positivo a ser considerado.
Ou ele era um homem honesto, ou um grande filho da puta.
— Pela manhã eu estava fazendo ronda no estacionamento, pela
tarde fui direcionado ao térreo. — Explica.
Ergo uma das sobrancelhas, curioso.
— De quem veio a ordem para mudar a sua posição?
Noto quando Xavier vira a cabeça, firmando uma troca de olhares
sinistra com o próximo a ser interrogado, Harry Miller, o segurança pelo
qual nunca partilhei tanta confiança. Os acompanho durante toda a troca
visual, Miller aparentemente mais tenso do que Xavier.
— Senhor, se me permite falar... — Ergo o olhar quando um dos
caras do batalhão, Alex, se manifesta. Permito que fale com um menear de
cabeça. — Ontem a noite, durante a ronda que Williams pediu para que o
batalhão fizesse, nós vimos um dos nossos tendo uma conversa bastante
duvidosa com um cara dentro de uma SUV, há pelo menos uma quadra
daqui.
Ouço o que ele tem a dizer atentamente, acenando para que ele
prossiga. O salão segue em absoluto silêncio.
— Nós pensamos que fosse outra pessoa, apesar de eu jurar que
havia visto o brasão da academia bordado na sua jaqueta. — Diz. — Não
tivemos tempo para compartilhar do que vimos, não antes da surpresinha
desagradável no dia de hoje. — Abana a cabeça como o claro sinal de que
terminou o que tinha a dizer.
Concordo, agradecendo-o visualmente pela informação deveras
útil.
— Olha só... — Debocho, andando de um lado para o outro, de
frente para a fileira dos seguranças. — Vou precisar jogar uni-duni-tê, ou
um de vocês vai me dizer a porra da verdade?
Ash Scov recua alguns passos, infiltrando-se no meio do restante
dos batalhões. Não me importo com seu afastamento, uma vez que ele
provou a sua lealdade.
Espero cerca de dois minutos enquanto o silêncio ensurdecedor
predomina no salão. Nenhum deles abre a boca.
— Xavier, responda a pergunta. — O pressiono, com autoridade.
Ele limpa a garganta, nitidamente intimidado.
— Nenhuma ordem foi dada, senhor. — Ele responde com receio.
Torcendo os lábios, dou-me por vencido quando noto que nenhum
deles abrirá a boca enquanto não for forçado a isso. Até o momento, Harry
Miller é o meu suspeito principal, desde o momento em que ele encarava
Williams com uma carranca, sentindo-se superior, ele esteve em minha
mira. Nunca consegui confiar nesse cara, não quando ele parecia ser tão
duvidoso.
No entanto, ele não é mesmo o tipo de cara que diria a verdade. É
covarde demais para isso.
Mas estou disposto a entrar no seu joguinho sujo.
Virando-me de costas para os batalhões, eu afundo a mão no
bolso do meu jeans até capturar uma moeda. Giro-a nos dedos no momento
em que giro sobre os calcanhares, erguendo-a no alto para que todos -
principalmente aqueles que seriam julgados - a vejam.
— Um jogo, então. — Sugiro, oferecendo-os um sorriso sujo e
perverso.
Avanço dois passos até estar cara a cara com Harry Miller, eu
sorrindo ironicamente e ele travando a mandíbula com uma força capaz de
explodir os dentes. Acho deveras divertido causar este efeito em homens
como ele.
— Cara ou coroa, Miller? — Pergunto enquanto giro a moeda
entre dois dos meus dedos.
Ele não responde. Seu nariz enruga e a veia aparente em sua testa
chega a pulsar.
O meu sorriso alarga..
— Certo, coroa então.
Giro a moeda duas vezes entre os dedos, antes de jogá-la na
palma da minha mão, sem me dar o trabalho de verificar qual é o resultado.
Fixo os nossos olhares e não o desvio quando debocho da cara dele,
achando graça na maneira como ele reage a minha resposta, aparentemente
puto pra caralho.
— Deu coroa. É a sua vez de abrir a boca.
Ele não se move, mas segue todos os meus movimentos com o
fogo aparente em seu olhar, principalmente em saber que desconfio de sua
lealdade ao sequer me incomodar para verificar se realmente havia dado a
porra da coroa na moeda. Eu quero ouvi-lo, mesmo que para isso tenha que
torturá-lo.
Entro em seu jogo, mas acontece que ele não é o protagonista. Eu
dominarei a coisa, ele sabe disso. Sei que sabe, pois o mesmo sorriso sujo
que eu tinha nos lábios, brota em sua boca. Ele aceita o desafio, basta
decidir quem será o vencedor.
MONTE WHITNEY - 2022
AGORA
A caminhada é silenciosa.
Carrego uma mochila na costas recheada de equipamentos
necessários para a loucura que estamos fazendo. É burrice subir uma
montanha durante a noite, principalmente sem o auxílio de uma lanterna.
Isso provavelmente atrairia a atenção que não queremos. Eu soube que seria
um desafio no momento em que decidi acompanhá-la, mas quis mesmo
assim, apesar dos riscos.
É a chance perfeita para ficarmos a sós. A chance de aproveitar sua
presença mesmo que sob o silêncio.
A chance de imaginar como seria se eu pudesse tê-la.
Viro a cabeça, observando os seus dentes superiores batendo
contra os inferiores devido ao frio, ela tenta trancar o queixo e conter o
tremor, mas devido ao vento forte, Baker apenas abraça o seu corpo e
procura se aquecer contra a jaqueta.
— Posso te arrumar outra dessa, se quiser. — Me refiro à jaqueta,
tentando iniciar um papo.
Baker me lança um olhar significativo de soslaio, antes de dar de
ombros e voltar a atenção para o asfalto coberto de neve que tentamos
enfrentar.
— Não, obrigada.
Balanço a cabeça, aceitando que este não é um assunto ao qual ela
pretende prolongar. Certo, plano B.
Eu ainda não consigo encontrar a maneira correta de agir perto
dela. Não tínhamos conversado sobre o vídeo que Williams mencionou,
sequer sei se devemos. Tudo que consigo fazer é ser cauteloso, me
aproximar a ela de uma forma lenta e cautelosa que faça com que perceba o
quanto realmente me importo, apesar de não parecer em determinadas
circunstâncias.
Sei que será em vão, ela não parece disposta a isso.
Ouvi-la dizer que eu parti o seu coração rompeu todas as barreiras
que havia construído dentro de mim. Aquilo machucou pra caralho.
Mas não posso desistir, eu devo isso a ela.
— Por que você quis subir a montanha durante a noite, afinal? —
Indago, sentindo a brisa de neve sobrevoar as nossas cabeças. Está tão frio
que eu sequer sinto os meus dedos, embora estejam cobertos por luvas de
couro.
— Porque eu quero acabar com isso o mais rápido possível. —
Responde, sem olhar para mim. — Ainda tenho uma vida para recuperar.
A encaro, observando a sua mandíbula perfeitamente contornada
contrair pela força que faz para conter os tremores.
— Nós dois sabemos que você nunca quis essa vida normal e sem
graça que esperava ter em WonderFall. — Aponto, provando o quanto eu a
conheço, mesmo que ela tente provar o contrário. — É normal demais pra
você.
Ela sopra um riso, mesmo quando seus lábios tremem de
imediato.
— Você não sabe de nada, Lewis Floyd.
Firmo os meus pés sob a neve, cravando-os no lugar com toda a
força que posso. Apesar do tom irônico que Baker usa ao dizer o meu
verdadeiro nome, não escondo a feição decepcionada que senti ao vê-la
zombar da sinceridade que lhe ofereci em todo aquele discurso. É notável o
quanto ele não significou nada para ela.
Não consigo julgá-la, apesar dos fatos. No seu lugar, eu seria um
pouco mais cuzão. É por isso que diferentemente do que ela espera que eu
faça, respiro fundo e procuro soar o mais paciente possível nas próximas
palavras.
Estou sendo hipócrita por iniciar uma conversa, para começar.
Contudo, é o único jeito de saciar a minha fome de um fruto completamente
proibido para mim.
— Não gosto de como esse nome soa na sua boca. Jason é bem
mais tentador.
Baker bufa, visivelmente irritada pela minha provocação.
Satisfeito, torno a caminhar ao seu lado enquanto minha boca se
curva em um meio-sorriso, o breu a nossa frente dificulta a nossa
capacidade de enxergar adiante, mas sei que mais cedo ou mais tarde, nós
nos encontraremos. Nesse momento, aproveitar a situação é prioridade.
— Eu odeio ter que começar uma conversa com você, mas eu
preciso saber… — Ela começa, me olhando por cima do ombro de supetão.
A sua sobrancelha erguida levemente com a dúvida aparente em seu olhar.
— Por que você não me contou?
Suspiro, notando a fumaça congelante esvair de meus lábios.
— Sobre o quê?
Baker movimenta as mãos por baixo do gorro que havia colocado
antes de enfrentarmos a subida desafiadora da montanha. Ela parece
arrumar os fios de cabelos para cobrir a sua orelha, e deduzo que talvez elas
estejam congeladas.
— Você sempre soube tudo sobre mim, e pensei que conhecia
você também. Mas agora vejo que não conheço absolutamente nada, nunca
conheci. — Ela diz de maneira suave e formal, sem me atacar. — Eu vi
Floyd apontar uma arma para a sua cabeça, Jason, porque você nunca me
disse que ele era o seu pai? — Dessa vez, a pontada de mágoa preenche o
seu tom de voz.
Continuo caminhando, mantendo os meus olhos fixados na
maneira como ela parece realmente necessitada daquela resposta, talvez
isso a machuque. O fato de ter escondido algo tão banal.
Seus braços abraçam o corpo, as bochechas brancas e ruborizadas
estão ainda mais avermelhadas devido às rajadas de vento congelantes que a
atingem.
Por um segundo, penso como seria se eu acabasse com essa tortura e
dissesse toda a verdade. Ela me odiaria, não há dúvidas, mas o ódio seria
direcionado a uma razão merecedora. Eu entenderia o sentimento negativo
direcionado a mim se fosse por um pecado que realmente cometi.
Este não é o momento adequado, no entanto. Mas estou certo de que
não lhe pouparia a minha sinceridade, caso fosse.
— Não queria que você me odiasse. — Revelo, sem receio
algum. — Era vergonhoso demais ser filho dele, principalmente naquelas
circunstâncias. — Me refiro ao trabalho de Marcus, e ela abana a cabeça,
entendendo o que quero dizer.
Umedecendo os lábios secos pela ventania, dou espaço para que
ela responda à altura.
— Então você escondeu isso de mim porque achou que eu te
rejeitaria por ser filho de um babaca que fez de mim um objeto descartável?
— Questiona, mirando as esferas azuis na minha direção. Mesmo com a
pouca luz que temos ao nosso redor, eles ainda são os olhos mais lindos que
eu já vi.
Devolvo o olhar sombrio conforme abano a cabeça em
concordância. Me sinto um covarde por não conseguir dizer em voz alta,
mas sei que ela não verá problemas na minha estupidez.
— Sabe o que é mais engraçado? — Ela ri, sem achar graça. —
Eu não teria rejeitado você se tivesse me dito a verdade desde o início.
Quase vacilo com o peso das suas palavras. Elas são demais para
mim. Normalmente, já sinto a vontade desesperadora de voltar no tempo e
consertar as coisas, tudo seria menos complicado de ser resolvido. Ambos
estaríamos menos fodidos, e mesmo que isso não significasse completa
felicidade, eu estaria realizado se os fatores que fizeram dos últimos três
anos tão dolorosos simplesmente desaparecessem. Isso seria suficiente.
De fato, tudo seria menos complicado se eu nunca tivesse
poupado Baker da verdade. Ela aguentaria.
Mas está feito. E ela me odeia.
E é melhor assim.
— Eu até teria te amado um pouquinho mais. — Prossegue, me
encarando com intensidade por cima do ombro. — Saber que você estava
disposto a ir contra os princípios daquele que te colocou no mundo só para
me proteger, me faria fazer qualquer coisa para te dar o amor que ele nunca
te deu. Você o mereceria.
Desvio o olhar, fixando-o nos galhos secos de árvores caídas
contra a neve. A lua brilha, a luz que emana dela reflete diretamente em
nós, como se fossemos protagonistas da noite fria. Tenho vergonha de como
pareço fútil perto do brilho que vibra diretamente para a loira ao meu lado.
Contudo, não consigo encará-la.
Covarde.
— Não foi isso que você fez, no entanto.
— Não. — Respondo, o gosto amargo das palavras corroendo a
minha garganta por não conseguir engoli-las.
Ela concorda, antes de respirar fundo e afastar-se de mim,
vasculhando os bolsos da jaqueta enquanto volta a ignorar a minha
presença. Então eu percebo que ela está encerrando a nossa conversa.
De volta à estaca zero.
Diminuo o ritmo dos passos quando Baker retira do bolso o que
parece ser uma lanterna. Não sei qual foi o momento exato que ela a pegou,
mas não a questiono. Gosto da maneira como ela sabe ser discreta para se
precaver, essa é a auto segurança que sempre a incentivei a desenvolver.
Ela ergue uma das mãos ao escorregar o polegar no botão
minúsculo do aparelho. Quando a luz neon clareia o lugar onde estamos,
noto que alcançamos o topo da montanha. A neve está espalhada por todos
os cantos, flocos caem do céu e encharcam as nossas roupas, e temo que,
desta vez eu tenha sido negligente em subir até aqui sem ao menos uma
cabana de plástico para nos proteger do frio por ora.
Varro os olhos pela montanha, observando as faixas de boas-
vindas e lixos úmidos e acabados de turistas por todo o lugar, árvores estão
caídas pela neve e parecem ter sido arrancadas e colocadas ali para barrar a
entrada de qualquer um que não tenha permissão para tal.
Baker afunda uma das mãos no bolso da jaqueta e aponta a luz
diretamente para os galhos secos na entrada da montanha.
— Quando entrarmos, vamos nos separar. — Diz, sem parecer
pedir permissão. — Você trouxe uma lanterna para você, sim?
Balanço a cabeça, e avanço alguns passos na sua direção, prestes
a arrancar a lanterna de sua mão quando Baker a esconde atrás de seu corpo
e ergue o queixo, desafiando-me visualmente. Ela aprofunda os nossos
olhares com tanta intensidade como se dissesse "apenas tente, seu cuzão".
Cesso o meu passo a poucos centímetros do seu rosto, sentindo o
frescor de sua respiração atingir o meu rosto.
— Não vamos nos separar.
Ela sorri, um agudo amargo escapando de sua garganta.
— Sim, nós vamos.
O cheiro suave do seu xampu invade o meu nariz, e não consigo
evitar inalar o seu cheiro. Inevitavelmente, meus olhos escorregam até os
lábios carnudos e irresistíveis. Chamando por mim.
— Não.
Quando ergo o olhar novamente, seus olhos ainda estão fixos nos
meus. Ela acompanha todos os meus movimentos, inclusive, acaba de me
flagrar vidrado em sua boca fodidamente atrativa.
Ela sorri, provocando uma onda de arrepios dolorosos pela minha
espinha.
Maldita.
— Já passou da hora de você se dar conta de que não seguirei as
suas ordens como uma cadelinha encoleirada. — Provoca, recuando dois
passos sem quebrar o nosso contato visual. — Vou ser discreta enquanto
tento descobrir alguma coisa por perto. Tente não se perder até lá. — Ela
gira sobre os calcanhares e caminha até os galhos, erguendo as pernas de
maneira ágil ao saltar por cima deles.
Acompanho os seus movimentos, vidrado na maneira como as
suas pernas se erguem para ultrapassar as barreiras. Observo quando a jeans
que Baker usa se molda perfeitamente ao redor de seu corpo pelo
movimento feito, e suas coxas grossas amontoam uma quantidade
significativa de tecido contra a sua pele. Não faço ideia de como consegui
reunir todos estes detalhes na porra dessa escuridão, mas nada faz muito
sentido quando o assunto é ela.
A vejo desaparecer do meu campo de visão, ela se afasta o
suficiente para que apenas o círculo desfocado da lanterna seja visível para
localizá-la há metros de distância, se perdendo dentre tantos flocos de neve
que caem do céu.
Quando ela também desaparece juntamente com a sua presença
insubstituível, me permito fechar os olhos e soltar a respiração pesada que
sequer percebi estar contendo.
Uma cabana.
Olho para a cabana escondida entre milhares de galhos secos,
como se uma tempestade agressiva tivesse arrastado todos eles para o
telhado.
Engulo um rosnado feroz quando uma onda de neve atinge o meu
rosto, fazendo-o congelar instantaneamente. Minha pele arde com o contato
direto com o gelo, e levo o antebraço até o local imediatamente, tentando
amenizar a ardência causada pelo frio.
Afastando o antebraço do rosto, noto quando os resquícios de
neve se desmancham no tecido, como um claro sinal de que a minha pele
está encharcada.
Olho para ambos os lados, procurando por alguma movimentação
suspeita antes de ir verificar se há alguém do lado de dentro.
Diferentemente de Baker, eu não tenho uma lanterna. Não pensei que seria
útil, não quando poderia atrair atenção diretamente a nós.
Mas como eu esperava, ela não dá a mínima.
Avanço alguns passos adiante, correndo sob a neve macia aos
meus pés para alcançar as janelas congeladas da cabana. Quando as
alcanço, relaxo o meu corpo contra a madeira e me esforço para enxergar
algo vindo lá de dentro.
Nenhuma luz está acesa. E o único ruído que posso ouvir de fora,
é o som do ponteiro de algum relógio de parede bater descompassadamente.
Respirando fundo, caminho até a porta e giro a maçaneta, apenas
para confirmar a minha dedução de que está trancada. Quando a giro, me
surpreende o ruído oco que a madeira faz ao ser arrastada para fora,
indicando que não há tranca alguma.
É uma boa alternativa para sobrevivermos a esta noite, afinal, não
há probabilidades de ficarmos em contato direto com a neve durante toda a
madrugada. A tempestade está mais agressiva do que imaginamos, e
independente de toda a nossa ânsia de encontrar pistas o suficiente antes de
darmos o fora, seria burrice enfrentar a força traiçoeira da natureza.
Eu duvido muito que Baker aceitará estar em uma mini cabana ao
meu lado, mas estou preparado para arrastá-la, se for preciso.
Abrindo a porta, arrasto o meu corpo para dentro cautelosamente,
levando uma das mãos em direção ao cós da minha jeans, onde está a minha
arma. Mantenho os dedos firmes contra a coronha, até que olho ao redor e
tudo que posso enxergar são teias de aranha e poucos móveis empoeirados.
O lugar está abandonado.
Largo a minha mochila contra o chão, extremamente concentrado
ao varrer o olhar pelo lugar.
O chão feito de madeira range perante o meu peso quando avanço
três passos adiante, olhando ao redor.
As teias de aranha dominam os cantos superiores das paredes, as
madeiras que mantém as paredes sustentadas contra o chão, possuem
pequenos vãos abertos que provocam pequenas goteiras de neve derretida.
O vento frio passa direto por aquele vão, mas nada é tão insuportável
quanto a ventania congelante que enfrentamos lá fora.
Fecho a porta às minhas costas e analiso os móveis desgastados
no centro da cabana. O lustre dourado com detalhes minimalistas prateados
aparenta ser luxuoso, apesar da poeira acumulada em cada curva do objeto.
No canto esquerdo, há um colchonete de ar contra a parede, ao lado de
cobertores e lençóis perfeitamente dobrados.
Caixas de papelão estão nomeadas como bugigangas por todo o
lado. Na parede ao meu lado direito, há uma pequena mesa improvisada de
pedaços velhos de madeira sustentando algumas papeladas e uma xícara
usada, claramente largada ali há pelo menos algumas semanas.
Mais a frente, há uma porta que deduzo dar a um banheiro. A
porta de madeira está entreaberta, uma toalha vermelha estendida sob ela de
forma alinhada.
Relaxando os meus músculos, estou prestes a caminhar até lá para
confirmar minha dedução, quando o som agudo do que parece ser um tiro
ecoa do lado de fora, alto o suficiente para fazer os meus órgãos saltarem
em alerta e os pássaros sobrevoarem as árvores, cantando desesperadamente
pelo espanto.
Pisco algumas vezes, atordoado. Não penso muito quando recuo
alguns passos em direção à porta, meus pensamentos viajando para o único
ser capaz de destruir a minha sanidade. Baker.
O tempo parece ter parado, consigo ouvir o som da minha
respiração elevada e as batidas do meu coração que parecem saltar contra o
meu peito em uma maldita câmera lenta.
Seu nome ecoa repetidas vezes dentro da minha cabeça, sendo o
meu único objetivo a ser alcançado. Preciso encontrá-la, preciso garantir
que não a perdi outra vez. Preciso garantir que não voltarei a me culpar
eternamente por ter destruído a sua vida. Por tê-la arruinado mais do que
planejava.
Então, quando dou por mim, estou do lado de fora, atravessando a
tempestade fria que abraça o meu corpo, emitindo um rosnado frustrado
enquanto o meu pé afunda na neve congelada. Faço força para tirá-lo de lá,
e apesar de estar usando toda a minha maldita força para encontrá-la o mais
rápido possível, a coisa apenas funciona quando inclino o meu corpo e
afundo as mãos na neve, outro rosnado escapando enquanto sinto a minha
pele arder da forma mais agonizante pelo contato direto com o gelo.
Então eu começo a cavar.
Ignoro as faíscas que escapam da minha boca ao emitir um
rosnado ou dois. Ignoro a sensação de ter os meus dedos arrancados fora.
Ignoro a sensação de estar prestes a congelar e morrer nesta montanha fria e
abandonada.
E continuo cavando.
Repito o processo três ou quatro vezes, até conseguir libertar o
meu pé daquele buraco fundo. Então corro, tropeçando nos meus próprios
pés enquanto vasculho todos os cantos da montanha, procurando
desesperadamente pelo círculo desfocado de sua maldita lanterna.
— Baker! — Grito, sem me importar com o fato de que
estávamos tentando ser discretos.
Isso sequer importa agora. Tudo que importa é encontrá-la e me
certificar de que aquele maldito tiro não a atingiu. Que não foi direcionado
a ela.
Mais pássaros sobrevoam sobre as árvores, cantando
desesperadamente enquanto desaparecem entre os galhos. Acompanho o
bater de suas asas, implorando para que o homem lá de cima esteja olhando
por mim, por essa vez, apenas por essa vez.
— Baker! — Grito, arrastando os meus pés pela neve,
atravessando diversos galhos para encontrá-la.
Onde você está?
Amaldiçoo todos os seres divinos por tirarem ela de mim, assim
como amaldiçoo a mim mesmo por ter permitido que ela fosse para longe.
Que soltasse a minha mão.
Quando viro uma curva de vinte graus para a direita, encontro um
galho seco ao lado de uma descida íngreme improvisada de neve. Eu a
encaro com a respiração acelerada, olhando diretamente para o rastro do
que parece ser sangue fresco, trilhando um caminho desde o exato local
onde eu firmo os meus pés, até o que poderia haver lá para baixo.
Alguém foi morto exatamente aqui, onde eu estou.
Alguém está tentando esconder o corpo aqui e agora, acreditando
que não há ninguém por perto para ouvi-lo.
Caralho....
Pulo para baixo, varrendo o olhar para todos os lados com o
desespero explícito. Eu preciso encontrá-la, cacete.
Não quero pensar no pior. Não quero me precipitar.
Não quero acreditar que tenha a perdido de vez, não consigo
acreditar que eu permiti que ela passasse diretamente pela a minha mão e a
largasse em uma velocidade imensa, em tão pouco tempo. Eu não quero
mesmo acreditar que fui tão burro pra caralho.
Não, porra. Claro que não.
Meus pés deslizam adiante, girando o meu corpo abruptamente
quando uma movimentação vista pela a minha visão periférica, faz com que
eu olhe diretamente para a figura de alguém arrastando um corpo com
dificuldade pela neve.
Penso ter deixado de respirar.
Meu coração para de bater por pelo menos, dois minutos.
Não o sinto. Não sinto absolutamente nada além da porra da
admiração.
Baker está ali, com seus cabelos loiros espalhados pelo ar,
cobrindo metade de seu rosto enquanto resmunga xingamentos baixos
demais para serem ouvidos. Ao lado do corpo, a arma que entreguei está
posicionada com a trava desativada, da maneira mais segura de evitar que
algum tiro acidentalmente escape.
Eu a observo calado, admirado pela forma como ela parece ter
ideia de como se livrar de um corpo, principalmente em nossas atuais
condições.
Baker vasculha os bolsos do homem, afundando as suas mãos em
seu jeans, procurando por algum objeto que ele carregue ali.
Meu peito sobe e desce, meu coração dói e não sinto o meu corpo,
pareço ter sido esmagado por um caminhão de vinte toneladas de peso. Meu
corpo está moído, mas tudo que consigo sentir é a extrema necessidade de
tê-la em minhas mãos.
— Baker. — Sussurro, caminhando em sua direção o mais rápido
que posso. Minha voz transmite o quão aliviado estou.
A garota se assusta, erguendo a cabeça rapidamente para me
encarar. Seus olhos azuis arregalados transmitem o medo que ela tinha de
ser outra pessoa ao invés de mim. Mas não é. Eu sempre estarei aqui para
ela, estarei em todos os momentos em que ela precisar segurar uma mão e
sentir-se segura. Eu a protegerei de toda a porra do mundo, custe o que
custar.
Até mesmo de mim.
Ela suspira assustada quando não suportando os meus desejos
internos, envolvo o seu corpo pequeno entre os meus braços e a aperto com
toda a força que posso ali mesmo, tentando acabar com a agonia que sinto
por imaginar que havia a perdido para sempre.
Ela está aqui. Ela está aqui.
Repito milhares de vezes para mim mesmo, a fim de acalmar o
meu extremo nervosismo.
— O que você está fazendo? — Ela pergunta, sua voz baixa
abafada contra o meu peito. Não respondo, apenas me concentro em inalar
o cheiro viciante de seu xampu e me convencer de que ela é real. — Jason?
Raspo os meus lábios congelados pela sua cabeça, sentindo os
seus fios de cabelo causarem cócegas estranhamente boas pela minha pele.
— Shhh… — Peço, fechando os meus olhos. — Fiquei
apavorado pra caralho, Baker, não faça essa porra comigo.
Ouço o seu riso abafado contra o meu peito, mas não tenho
coragem de largar o seu corpo para permitir que ela se afaste. Estou
confortável em ter seu corpo próximo ao meu, assim como deve ser.
— Eu disse que sabia usar uma arma, babaca. — Debocha,
fazendo certa pressão em seus braços para se livrar dos meus. — Agora me
solte.
Ignoro a sua tentativa, sequer preciso fazer algum esforço para
mantê-la exatamente onde está. Meu coração bate tão forte que tenho medo
de soltá-la e perdê-la para sempre.
Não posso arriscar.
— É, você sabe. — Concordo, respirando contra a sua cabeça,
inalando o cheiro suave que vem dos seus fios. — Você está bem. — Não é
uma pergunta, estou tentando convencer a mim mesmo de que realmente
está bem.
Tentando me convencer de que não falhei novamente tentando
acertar.
Quero mantê-la por perto para sempre, daquela mesma maneira,
apesar de saber que ela jamais me permitiria ir tão longe.
— Estou melhor do que ele — Baker se afasta, fazendo com que
abra os meus olhos para encará-la, sentindo a falta de seu corpo colado ao
meu. O tom sarcástico que usa ao dizer aquilo quase me faz sorrir, mas o
pavor ainda domina algumas de minhas camadas. — Ele apareceu do nada
e…
Pisco, ouvindo ruídos de galhos rompendo-se em uma pequena
distância de onde estamos.
Olho para todos os lados, tentando identificar de qual posição
aquele som vem.
— O que foi isso? — Ela pergunta enquanto avanço passos
cautelosos em direção ao morto, o suficiente para alcançar a sua arma ao
lado do corpo.
Interrompo Baker quando a pego pela mão e ultrapasso as
árvores, levando-a comigo. Os pequenos galhos que existem na trilha
minúscula de neve arranham o meu rosto enquanto os enfrento, esperando
tirá-la daquela proximidade.
Mantenho uma das mãos contra o cós, pronto para enfiar uma
bala na cabeça do primeiro imbecil que entrar no nosso caminho.
Claramente estamos no lugar certo, e seja quem for aquele cara
que ela matou, não pode ser o único nesta montanha. O tiro provavelmente
os atraiu até o lugar, então não vai demorar muito para começarem a
vasculhar a área ao se darem por conta de que não estão sozinhos. O intuito
é manter Baker em segurança até que possa me recuperar e estar apto a
enfrentá-los. Não há mesmo chances de enfrentar este pessoal enquanto
meus dedos parecem ter sido extraídos.
Nós descansaremos e mais tarde, quando estiver recuperado o
suficiente para lidar com a Luxury exatamente como merecem, não pensarei
duas vezes em adicionar mais cadáveres ao homem que deixamos para trás.
Não vai demorar.
Eles vão se arrepender por todas as merdas que fizeram.
— Para onde está me levando? — Ela pergunta, enquanto eu
desvio de vários galhos úmidos para tentar encontrar o caminho de volta à
cabana.
Não respondo, tudo que quero é encontrar a maldita cabana e dar
um jeito de mantê-la segura e aquecida. Mesmo com a escuridão, consigo
notar como a sua pele está gelada e os lábios secos, após passar tanto tempo
em contato direto com a friagem. Os fios loiros estão molhados e o gorro
preto que usa parece prestes a congelar o seu cérebro.
Eu não tenho forças para pensar em nada que não seja encontrar a
cabana e cuidar para que ela fique aquecida. Não consigo me preocupar
com a quantidade de ar frio que preenche os meus pulmões, tudo que vejo é
ela. O medo de encontrá-la sem vida ainda me apavora, mesmo que ela
esteja bem do meu lado neste exato momento.
Nunca vou me acostumar com a maneira como Baker consegue
me fazer pensar que não é real. Que ela existe apenas no mais profundo dos
meus sonhos, aqueles que parecem tão inalcançáveis.
— Jason... — Ela suspira, no exato momento em que meus dedos
escorregam de seu antebraço e encontram os seus dedos, entrelaçando-os
por puro reflexo.
Uma onda elétrica invade o meu corpo, causando um suspiro
inconsequente, os meus dedos ardem por finalmente, começar a sentir as
consequências causadas pela quantidade de vezes que afundei as mãos
naquela neve.
— Encontrei uma cabana — Revelo, olhando ao redor para tentar
localizar o lugar onde estamos. — Tem toalha, cobertores e parece
confortável. Vamos passar a noite lá, você toma um banho e pode se manter
aquecida.
— Jason! — Baker se liberta do meu agarre, fazendo-me girar o
corpo para encará-la. — Que droga há de errado com você?
Meus lábios estremecem.
Olho para o par de olhos azuis, tentando enxergar a crença na vida
que ela costumava ter, há muito tempo atrás.
Tento encontrar vestígios de Sofia Clarke, aquela doce garota que
via o bem em todas as pessoas, mesmo que fossem fodidas o suficiente para
jamais merecê-la. Aquela garota que me amou, aquela que não teve medo
das coisas que eu podia fazer para mantê-la para sempre ao meu lado.
Aquela garota que segurou a minha mão e jamais a soltou, mesmo quando
acreditava estar tão sozinho.
Ela está ali.
Mas agora, tudo que vejo são cinzas do que um dia ela foi.
Tudo é mais doloroso quando me dou conta de que a culpa é
minha.
Quero ajoelhar aqui mesmo, perante o nevoeiro impiedoso que
nos atinge, quero deixar que a força da natureza me julgue, porque depois
de todos esses anos, não me sinto digno de nada disso. Me sinto hipócrita
por saber que tudo teria sido evitado se naquela noite, se naquela maldita
noite... Eu tivesse puxado o gatilho.
— Por que você está agindo dessa forma? — Ela questiona,
aparentemente furiosa.
Quero desviar do assunto, quero pedir perdão e dizer que estou
traumatizado. Que quando ouvi aquele tiro, não pensei em nada além de
acabar com a minha vida infeliz e inútil, se por algum acaso, ela estivesse
morta. Quis dizer que estava tão apavorado, que não conseguia respirar.
Que não conseguia sequer pensar em outra coisa que não fosse nela, e em
todas as malditas vezes que escrevia o seu nome contra uma parede de
concreto para fantasiar que ela estava ali comigo, naquela cela suja e
solitária.
Tudo porque as coisas pareciam mais fáceis se ela estivesse ao
meu lado.
— Por que está tão apavorado? — Ela pressiona.
Quero dizer que em cada dia destes três anos, não teve um, que eu
não tenha revivido todos os nossos momentos juntos. A cada lembrança, era
a caligrafia de seu nome sendo gravada eternamente em um concreto
antigo.
Aquilo servia para ela ser eterna nos meus pesadelos, porque no
fim, apenas ela poderia me salvar dele.
Quero dizer tudo isso.
Mas respiro fundo, encaro as suas esferas azuis curiosas e ignoro
todos os demônios que juntam as suas forças para mantê-la longe de mim. É
tarde demais.
— Porque eu me importo com você! — Exclamo, suspirando
pesadamente no processo. — Caralho, você não vê?
Um riso me escapa quando coço a testa, me arrependendo
imediatamente por ter me deixado levar. É a primeira vez que digo estas
palavras à ela após tantos anos. Calo a boca e espero até que ela exploda,
espero até que ela me culpe mais uma vez por todos os pecados que não
cometi.
Mas não me importo com isso. Não quis fazer as coisas certas,
porque aquilo não faz o nosso estilo. Não somos corretos. Somos o puro e
sublime caos.
O olhar desafiador no rosto de Baker é substituído por choque.
Seu peito sobe e desce em um suspiro leve, seus olhos confusos nunca
deixam os meus. Espero até que ela quebre o maldito silêncio, mas tudo que
ela faz é rir.
Ela ri.
Uma gargalhada alta e sincera.
Por longos minutos.
— Não diga besteiras, seu imbecil! — Seus dentes capturam os
lábios inferiores, mordiscando-os enquanto caminha em minha direção. —
Não diga isso de novo. — Pisco ao acompanhar os seus passos, mas quando
dou por conta, ela já está esmurrando o meu peitoral.
Olho para baixo, sentindo a dor de seus socos tão firmes contra o
meu peito. Entretanto, não me movo. Deixo que ela extravase.
Baker esmurra com tanta força que posso ouvir os seus rosnados
frustrados por não conseguir socá-lo com mais força do que é capaz.
— Qual é a porra do seu problema? — Exclama, irritada, olhando
diretamente para mim. — Você acha que isso é uma piada? Acha que é só
dizer as palavrinhas mágicas que eu volto a ser apaixonada por você? Veja
que grande novidade, você não significa nada para mim.
— Quieta. — A interrompo.
Baker rosna, furiosa.
— Eu te odeio!
É a minha vez de rir.
Minha boca se curva em um sorriso, e mesmo que todas aquelas
palavras tenham ferido o meu interior, posso superar.
— Então prove.
Ela ergue a sobrancelha, batendo com o seu punho diretamente no
meu estômago.
Não me movo.
— Eu provo que odeio você todos os dias, isso não é humilhante
o suficiente pra você?
Balanço a cabeça em negação, finalmente segurando os seus
braços para que ela pare de me esmurrar. É a minha vez de jogar o seu jogo,
ela não suportaria, de qualquer maneira.
— Prove aqui e agora. — Desafio. Avanço um passo em sua
direção e colo os nossos corpos, sentindo a sua respiração bater contra o
meu pescoço quando ela eleva o pescoço para me encarar. — Você tem duas
opções: seja uma covarde e resista a mim quando sou tudo que deseja, ou
desta vez, só por essa noite, deixe-me provar que ninguém nunca te terá na
palma das mãos como eu a tenho. — Sussurro, aproximando os meus lábios
até um dos seus ouvidos. — Se me odeia tanto, prove com atitudes.
Palavras nunca significaram nada no meu mundo.
Ela ri, incrédula. Quando olha para mim e se dá conta de que não é
mais uma brincadeira, seu riso morre tão rápido quanto nasceu.
Baker não se mexe, seu corpo segue imóvel e sua respiração
lenta, então quando sinto que ela está a um fio de ceder ao desejo que
suprimos um pelo o outro, arrasto os lábios por sua bochecha, sentindo a
neve derretida umedecer os meus lábios. Fecho os olhos com o contato frio,
trilhando um caminho de beijos molhados por seu pescoço e queixo,
provocando-a da maneira que posso.
— Me diga, amor, você consegue resistir? — Mordisco o seu
queixo, acompanhando o momento em que ela fecha os olhos. — Quando
você deita na sua cama, você odeia a mim ou aos seus desejos obscuros?
— Cheiro o seu pescoço, inalando o perfume doce que vem direto dela.
Baker inclina a cabeça, desvencilhando-se do aperto que faço em
seus braços. Penso que ela vai me afastar e ir contra as minhas provocações,
provando mais uma vez que ela sempre desprezaria tudo que envolve a
mim.
Penso que subestimei a porra desta mulher.
No entanto, quando sinto uma das suas mãos agarrar a minha
nuca e as unhas arranharem o meu pescoço sem um mínimo pudor, eu
soube que há mais para descobrir. Ela é a porra de um livro misterioso, e eu
amo o suspense que ela transmite.
Respiro pesado e fecho os meus olhos quando leva a ponta dos
dedos à minha boca, massageando-a com o polegar.
— Sempre pensei que você seria a causa da minha evolução… —
Sussurra. Sinto quando o farfalhar de sua jaqueta indica que ela aproximou
o corpo do meu. Posso sentir o seu hálito frio bater contra a minha cara. —
Mas você foi a causa da minha ruína. Fez de mim a porra de um monstro.
Um gemido sobe pela minha garganta quando sinto seus lábios
roçarem os meus, sua língua quente tocando a minha boca por poucos
segundos. Mas o suficiente para fazer as minhas pernas fraquejarem.
— Você nunca entrou na minha vida para fazer de mim uma
pessoa melhor. — Ela sussurra, puxando o meu lábio inferior entre os
dentes. Travo a mandíbula e engulo em seco. — Você entrou para me
mostrar quem eu realmente sou.
Ergo um dos braços, alcançando o seu quadril com brutalidade.
Prendendo-a no lugar, com medo de que de repente, tudo acabe.
— E a verdade... — Seus lábios escorregam até a minha
mandíbula, mordiscando-a com a ponta dos dentes. — É que eu sou tão
insana quanto você. É por isso que não me sinto culpada por desejar você
agora.
Um rosnado sobe pela minha garganta quando capturo o seu
pescoço enquanto mantenho a outra mão presa contra o seu quadril. Eu a
encaro com profundidade, deslizando os meus dedos por sua nuca, trilhando
um caminho até o queixo, onde escorrego propositalmente a minha mão até
a sua garganta, pressionando-a em seu pulso. Baker prende a respiração. Eu
a enforco.
— Não me faça foder você contra toda essa neve, Baker.
Ela sorri, erguendo a cabeça para respirar melhor.
— Está pulando fora?
Meus olhos queimam, meu aperto contra o seu pescoço
intensifica e não penso em como deveria estar machucando-a daquela
maneira. Ela pediu por isso, então eu darei isso a ela.
A última coisa que passa pelos meus olhos é o sorriso provocante
pra caralho que Baker lança em minha direção antes de arrastá-la em
direção à árvore mais próxima e prender o seu corpo contra o tronco, sem
deixar de enforcá-la no processo.
Baker arqueja com a maneira grosseira que empurro o seu corpo
contra a árvore.
Mergulho a mão livre para o seu quadril, tentando encontrar uma
forma de ultrapassar toda aquela porra de tecido. Preciso tocá-la, sentir a
sua pele contra a minha.
— Você sabe que se fizermos isso não tem mais volta, não sabe?
Sinto seu corpo estremecer.
— Qual é a consequência? — Arfa.
— Vou foder com a sua cabeça até que você não possa resistir ao
desejo que mantém escondido aí dentro. Vou fazer você vir até mim e
desejar nunca ter ido embora.
Com a lua de testemunha, nossos olhares se cruzam da maneira mais
impetuosa e violenta, vejo o fogo em seu olhar assim como sei que são
refletidos nos meus. Seu corpo reage a mim e sua mente tenta me expulsar,
mas nós dois sabemos que a força de nossa relação sobressai a qualquer
outra.
— Não se orgulhe tanto, talvez seja eu quem esteja fodendo com
a sua. — Baker sussurra, instigando-me.
Ranjo os dentes. Mulher maldita.
— Até o fim da noite nós vamos ver quem realmente fode quem.
Não dou tempo para que responda.
Um gemido escapa de sua garganta quando erguendo a cabeça,
tomo a sua boca com a minha com ferocidade e intensidade. Meus lábios
esmagam os seus e não sou gentil quando capturo os seus lábios inferiores
entre os dentes, mordendo a carne com a força que luto para conter. Sabia
que não seria gentil com ela, não há probabilidades de eu conseguir
controlar todo o fogo que sobe pela a minha espinha fazendo-me ignorar
toda aquela porra de nevoeiro que se forma ao nosso redor.
É indiscutivelmente inexplicável que ela tenha o mesmo gosto de
anos atrás. O mesmo toque intenso, a mesma facilidade de me levar ao
limite.
Largando a sua garganta, pressiono o seu corpo contra o tronco da
árvore quando uso as duas mãos para procurar pelo zíper da jaqueta.
Suas mãos viajam pela minha nuca, arranhando toda a extensão
do meu pescoço. Quero unir os nossos corpos, sentir como seria se
fôssemos um só.
Invado a sua boca com a minha língua, procurando
desesperadamente pela sua. Seus lábios acompanham os meus movimentos,
seus dentes mordiscando os meus lábios com força. Aprofundo o nosso
beijo e quando sinto a sua língua deslizar contra a minha, um gemido
prazeroso sobe pela minha garganta.
Que saudade.
No minuto em que encontro o maldito zíper da jaqueta, não hesito
em abri-lo o mais rápido possível. Quando o tiro de seu corpo e o atiro para
uma direção aleatória, Baker afunda as unhas na minha nuca e morde o meu
lábio inferior com toda a força que pode.
A sua boca macia captura a minha de uma forma que eu jamais
ousaria me esquecer. A forma como a sua língua parece saber exatamente
quais movimentos fazer para me levar à loucura faz o meu pau doer de tão
duro.
— Se está esperando que eu seja tão gentil com você, estou
pronto para lidar com mais uma de suas decepções. — Digo a ela quando
separo as nossas bocas tempo o suficiente para me livrar do seu moletom,
abrindo o zíper com pressa.
Ela abre os olhos, seus lábios carnudos e avermelhados inchados
pela pressão que eu faço para acabar com eles. Meus.
— Não pedi por sua gentileza.
Quando abro o seu zíper, preciso umedecer os lábios repetidas
vezes ao me deparar com o par de mamilos duros, ambos apontados
diretamente para a minha direção. Engulo em seco ao imaginá-los na minha
boca, o tamanho perfeito para abocanhá-los da maneira mais depravada.
A cor rosada ao redor do mamilo, as pintinhas pequenas
espalhadas pelo seu peitoral, a cintura fina e perfeitamente contornada, os
quadris largos e o pescoço extremamente convidativo…
Caralho.
Ela está bem aqui, porra, bem na minha frente.
— Porra. — Rosno ao inclinar o meu corpo o suficiente para
capturar os seus peitos entre as mãos.
O meu primeiro instinto é apertar o seu seio direito na palma da
minha mão, como se fosse uma massa de modelar, observando a maneira
como ele parece ter sido feito para caber perfeitamente em minha palma.
Em seguida, deslizo dois dedos para o seu mamilo e o prendo entre o dedo
médio e o indicador, levando-o diretamente para a minha boca, o mordendo
com força.
O gemido rouco que escapa de sua garganta atrai uma corrente
elétrica diretamente para o meu pau.
— Gostosa pra caralho. — Chupo o seu mamilo, circulando a
ponta da língua pelo biquinho extremamente duro.
Baker joga a cabeça para trás, relaxando-a contra o tronco da
árvore. Seus lábios estão úmidos pela quantidade de neve que derrete
instantaneamente ao sentir o calor de sua pele.
Não existe paisagem melhor para ser vista. Nem todas as obras de
Van Gogh seriam capazes de vencer a arte que é Aspen Baker gemendo
loucamente para mim enquanto a reivindico, como deveria ter feito há
muito tempo.
— Sim... — Ela geme, baixinho, seus dedos passeando pela a
minha cabeça, empurrando-me diretamente para os seus peitos.
Sorrio.
— Sim? — Questiono, tornando a minha postura habitual. No
entanto, não ouso largar o seu peito, mantendo o seu mamilo entre os meus
dedos quando aproximo o meu rosto do seu e mordisco a sua mandíbula. —
Você gosta disso?
Ela concorda desesperadamente, seus olhos fechados com força
enquanto pressiono o mamilo duro entre os dedos.
— Hum? — Aperto mais forte, desta vez, arrancando um gemido
alto da loira tomada por prazer. — Quero respostas que envolvam palavras,
Baker.
Ela abre os olhos, a pupila extremamente dilatada brilha em
minha direção quando uma das suas mãos agarra a minha nuca e me puxa
diretamente para ela, colando os nossos lábios com desespero.
Largo o seu peito, me rendendo ao gosto insubstituível da sua
boca. Seus lábios carnudos envolvem os meus com agressividade, sua
língua invade a minha boca e gemidos desesperados escapam de sua
garganta. Eu levo uma das mãos ao cós de sua jeans e procuro loucamente
pelo botão enquanto com a outra, agarro o seu queixo e puxo a sua boca em
direção a minha com agressividade.
Mergulho a minha língua em sua boca, preenchendo cada canto
dela como eu deveria. Marcando-a como minha.
Ao encontrar o botão de sua calça, estou prestes a me livrar dele
quando Baker parece ter outros planos. Ela se afasta dos meus braços e
passa por baixo deles. Sigo o seu movimento com o olhar, meu peito
subindo e descendo com pura adrenalina.
Vejo quando ela joga os seus fios de cabelo para trás. Vejo quando
Baker se livra do jeans e o joga para longe com o auxílio dos pés. Vejo
quando ela desliza o polegar dos dois lados de sua calcinha, fazendo a
minha garganta secar com a vista.
Vejo quando ela mede todo o meu corpo com o olhar.
Porra, eu vejo quando ela ajoelha diante de mim.
— Depois dessa noite, tudo vai mudar — Ela sussurra ao se
aproximar, seus joelhos deixando pegadas pela neve. Seu corpo umedece
lentamente por flocos de neve que caem sobre ele. — Você e eu vamos nos
falar enquanto estivermos aqui nesta missão. Mas depois disso... — Me
alcança, empurrando o meu corpo contra o tronco da árvore em que ela
estava.
Suspiro, meus olhos nunca deixam os seus enquanto ela leva
ambas as mãos em direção ao cinto da minha jeans, desfazendo a fivela
com agilidade. Meu peito dói e minha boca seca, tudo que eu quero é me
afundar naquele oceano de problemas que ela se tornou.
Capturo a minha arma antes que ela possa se livrar da minha
jeans, e então a jogo para a neve, em um local específico para que possa
alcançá-la quando for necessário.
Então a olho, não querendo perder um segundo da vista de Aspen
Baker sobre seus joelhos, desfazendo a fivela do meu cinto, encarando-me
como se eu fosse o seu deus.
— Nunca mais vou falar com você — Diz, abaixando as minhas
calças lentamente. A ponta de suas unhas arranha a minha virilha. Fecho os
olhos e encosto a cabeça na árvore, sentindo o meu pau doer de tão duro. —
Nunca mais vou conseguir olhar na sua cara sabendo do que eu fiz esta
noite, Jason, nunca vou me perdoar por isso. — Ela agarra o cós da minha
cueca, dando a ela o mesmo destino da minha jeans.
Me livro de ambos com o auxílio dos pés. Meu corpo queima
perante o seu toque e não sei quanto mais poderei aguentar.
— Então aproveite essa noite, esqueça o seu ego de pensar que
pode foder com a minha cabeça… — Suas unhas deslizam pela minha
virilha. — Porque será você que não poderá viver sem se lembrar de como a
garota que o odeia te chupou melhor do que ninguém. E ainda assim, terá
que conviver com o fato de que não terá o mesmo privilégio outra vez.
Sua mão escorrega até o meu pau, rodeando-o com a palma fria
por toda sua extensão, e não contenho o gemido rouco e desesperado que
sobe pela minha garganta. A xingo de todos os nomes possíveis, xingo todo
o maldito universo por ter demorado tanto tempo para sentir essa sensação.
Caralho…
Porra…
Inferno.
Sequer penso em suas últimas palavras, não rebato a elas, embora
eu saiba que essa noite não é o fim de nada, apenas o início. Não quero
estragar o momento, e apenas por isso me concentro em sentir os seus
dedos trabalharem com perfeição ao redor do meu pau. Penso que ela
realmente vai foder com a minha cabeça, penso até que não poderei
esquecer como é a sensação de ter as suas mãos em meu pau após três anos,
mas o simples pensamento vai para a casa do caralho quando a maldita
ergue dois de seus dedos e os desliza por minha glande, espalhando o pré
líquido em movimentos circulares. A ação me faz rosnar em um prazer
descomunal.
— Caralho! — Por reflexo, levo uma das mãos até a sua,
auxiliando-a para firmar o seu aperto em minha extensão. Eu a ensino como
apertar o meu pau ao redor de sua mão, e ela aceita o meu incentivo, e desta
vez, sinto as minhas bolas queimarem pelo tesão extremo. — Puta que
pariu! — Jogo a cabeça para trás em agonia.
Ela afasta a minha mão, querendo assumir o controle sozinha. Eu
não reclamo, sequer abro a boca, apenas permito que conduza a coisa pelo
tempo em que eu suportar. O depois é só questão de tempo.
Com dificuldade, Baker parece frustrada ao deslizar a sua mão ao
redor do meu pau e não obter o completo sucesso em deslizá-lo em uma
punheta. Curioso, a olho para saber o que ela vai fazer para que tenha
sucesso em sua função. Ela me encara, seus olhos cruzando os meus em um
rompante, como se estivesse me desafiando tanto quanto eu a desafio.
Quando percebe a minha ansiedade, é quase como se eu estivesse de frente
para o próprio diabo. Ela não sorri, não me provoca, não permite que seu
prazer enfeitice os seus atos. Ela os tem sob controle, assim como me tem
na palma de suas mãos.
Ela sabe disso.
Sabe perfeitamente que tem razão, que pode foder com a minha
cabeça em um estalar de dedos.
Que pode me arruinar.
Tenho certeza disso quando Baker mira os olhos escurecidos nos
meus, em um combate entre a ira e o desejo. O rancor e a tentação. Não
faço ideia de qual dos lados ela opta por escolher, mas é quando sinto a sua
palma prensar o meu pau, que passo a não dar a mínima para o que ela
denomina como uma melhor opção.
Porque sim, ela é a única capaz de foder com minha cabeça. A
única capaz de me fazer enviar a racionalidade para a casa do caralho,
porque não importa que estejamos sendo perseguidos neste exato momento
pela floresta, não importa que estejamos em uma nevasca, não importa que
ela me despreze, não importa que eu a tenha destruído. No fim, ela é quem
me destrói quando com os olhos fixos nos meus, ela abre os seus lábios e
desliza a ponta da sua língua desde o local onde sua mão está agarrada, até
a ponta do meu pau onde passa alguns minutos rodeando o local sensível,
enviando cargas elétricas por todo o meu corpo.
Travo o maxilar com força, contendo um gemido sufocado.
— Eu posso ter o seu pau entre as mãos, — sussurra. Aperto os
olhos, alucinado de prazer quando a sinto deslizar o meu pau pelos lábios
carnudos como se fosse a porra de um batom. — posso tê-lo entre os meus
lábios, na minha garganta, entre as minhas pernas… Mas nunca serei de
fato sua. Consegue lidar com o fato de que sou só uma transa de uma noite?
Rosno um xingamento, sem conseguir conter o quão duro me deixa
ao deslizar os malditos lábios pelo meu membro, quase levo uma das mãos
a sua nuca e a obrigo a enfiá-lo em sua boca até que engasgue, mas sei
quais são as suas intenções. Ela quer brincar comigo? Vejamos como se sai
quando o golpe vem de ambos os lados.
— Mas e você? Consegue lidar com o fato de que nunca poderá,
de fato, me odiar? — Provoco, minha voz sai em um gemido rouco.
— Quem disse a você que eu não o odeio?
Sorrio provocativo ao fitá-la por um momento, vendo-a se divertir
com o meu pau entre sua mão.
— Tire a calcinha.
Ela congela os seus movimentos por um instante, encarando-me
com os olhos confusos na mesma proporção que fazem total ideia do que
estou dizendo. Intensifico os nossos olhares, desejando eternizar a visão de
seu corpo de joelhos diante do homem que ela diz odiar, mas o chupa como
se desejasse fazê-lo a anos.
— Por que eu faria isso?
— Tire. — Ordeno, e, inevitavelmente, levo uma das mãos a sua
nuca, agarrando um punhado do seu cabelo. Ela arfa.
— Você é um imbecil. — Baker larga o meu pau e se levanta,
colocando-se à minha frente. Nossos peitos se tocam, seus mamilos roçam o
meu peitoral ainda coberto pela jaqueta, e o fato de estar vestido enquanto
ela está praticamente nua para mim parece incomodá-la, mas ela não diz
nada sobre isto. — Acha que a minha calcinha pode provar alguma coisa a
você?
— Se não pode, então tire.
— Não significa nada.
Impaciente, habilidosamente eu ranjo os dentes e inverto as
nossas posições, pressionando-a contra o tronco de árvore mais uma vez.
Ela geme, não sei dizer se pela excitação ou se sua pele raspou contra
algum fiapo de madeira, mas apenas me concentro em prová-la que posso
ser um grande filho da puta, mas ela não é tão diferente de mim.
Ajoelho aos seus pés, levando as mãos até ambas as coxas,
pressionando a sua carne entre a minha palma. Suspiro em satisfação ao
sentir a sua pele quente, como se não estivéssemos em um ambiente tão
frio. No entanto, quando meus olhos cruzam com o tecido de sua calcinha,
sorrio como um completo depravado. Que grande mentirosa.
— Então é disso que você estava com medo? — Pergunto,
erguendo o olhar para fitá-la respirando pesadamente com a cabeça pousada
no tronco. Ela não me olha em nenhum momento. — De que eu visse o
quanto a sua boceta chama por mim?
— Ela não chama por voc…
Suspiro, irritado.
Chega de ser paciente com você.
Se não vai admitir por bem, será por mal.
— Então vejamos. — Sem piedade, levo os dedos até cada lado
de sua calcinha e a puxo com tanta agressividade que o tecido se rompe e
permanece entre os meus dedos.
Ela grita, finalmente direcionando o seu olhar a mim com suas
íris encharcadas de pavor, como se eu realmente fosse fazer alguma merda
que ela não estivesse concordando. Você não está me parando, porra, então
não me olhe desse jeito.
— Você é tão ordinária que nem se dá ao trabalho de fechar as
pernas. É um convite, meu amor? — Zombo, admirado ao observar a sua
excitação escorrer no interior de sua coxa.
— Vá em frente, faça o que quiser fazer. Você nunca vai
conseguir possuir o que tanto deseja. — Sua voz é doce, apesar de parecer
inebriada pelo tesão.
— Eu sempre consigo o que desejo. — Com as mãos agarradas à
sua carne, separo as suas coxas o suficiente para aproximar o meu rosto e
deslizar a ponta do meu nariz por sua boceta.
A sinto retesar o seu corpo.
Posso vê-la jogar a cabeça para trás.
Posso vê-la conter um gemido.
Posso ver a quantidade excessiva de excitação que ainda escorre
pelas suas pernas.
Mas a maldita ainda se nega a me mostrar o quanto também
deseja a mim.
O quanto deseja que eu coloque a minha língua para fora e a
chupe, a leve do céu ao inferno em segundos e a faça entender ao menos
uma parcela do sentimento obscuro que tenho guardado há anos. Ela
aguentaria? Suportaria?
Não sei, porque ela não me dá uma única pista de que seria capaz
de suportar tudo o que tenho para oferecer a ela, ainda que saiba que não
haveria uma oposição. Sei exatamente o que ela sente, sei exatamente como
levá-la ao limite, mas odeio ter que me contentar com meras suposições.
Quero vê-la implorar. Quero vê-la mirar os meus olhos com tanto desejo
quanto faço com ela. Quero que possa enxergar o inferno em meus olhos
enquanto eu enxergo o céu nos seus.
Não quero apenas uma noite de sexo.
Não quando sei que nossos desejos podem nos levar muito mais
além.
É por isso que contenho a minha vontade de deslizar a língua por
sua fenda e provocar ao seu clitóris. Aperto as suas pernas com tanta força
que temo quebrá-la ao meio ao fazê-lo. Ouço sua respiração ofegante, sei
que ela espera pelo próximo passo, sei que espera que dê o que ela deseja
enquanto segue fingindo que pode me odiar. Sei que espera que me
contente apenas com o meu prazer.
Você não poderia estar mais errada, meu amor.
Ergo o meu olhar e a vejo observando os meus movimentos com
o desejo coberto em seus olhos, impedindo que enxergue algum desprezo
que possa existir ali. Quase me dou por vencido e lhe dou exatamente o que
deseja, quase perco a cabeça. Então me lembro de suas palavras, de suas
afirmações, de suas mentiras. De sua máscara.
— Embora o cheiro de sua boceta seja capaz de me entorpecer…
— Murmuro, deslizando a ponta do nariz até a parte inferior de suas coxas
sujas por sua excitação. — Embora eu queira chupá-la até que o mundo
testemunhe a grandeza de suas mentiras… — Inevitavelmente, minha
língua escolhe não obedecer ao comando de meu cérebro e simplesmente
desliza por sua pele, capturando a sua excitação. Quase gemo por
satisfação. Porra. Gostosa. Lambo os lábios, sem conter o meu vício
descontrolado. Levo a língua até a pele e lambo até que não reste nenhuma
gota em sua pele senão a de minha saliva. A ouço gemer, e meu pau duro
feito pedra chega a doer. — Ainda sou o cara que você deseja morto. Ainda
sou aquele que você despreza. Então façamos o seguinte, meu amor…
Me afasto.
Lambo os meus lábios e preciso respirar profundamente para não
me ajoelhar diante dela novamente e a reivindicar de uma vez. Mas me
contenho.
Baker ainda está completamente escorada contra o tronco da
árvore, seus lábios entreabertos e os dentes superiores capturando-os em
uma mordida dolorosa. Percebo que a força que usa é grande quando noto a
vermelhidão além do natural em seus lábios. Está ainda mais atraente do
que em qualquer outro momento, ainda mais gostosa do que jamais
testemunhei.
Porra.
E, só quando tento me levantar, percebo que seus dedos estão
cravados em minha nuca, forçando-me sua direção. Como se ela desejasse
que eu a possuísse, como se me quisesse. Espero que ela abra a boca e diga
com todas as palavras, e então eu mandarei o meu plano para o inferno e a
possuirei.
Mas ela não faz.
Ela continua me encarando como se eu fosse o seu deus, mas não
se permite depositar fé alguma em mim.
Que assim seja.
Me afasto de seu toque e me levanto, me apressando em me
recompor, deixando-a com uma feição confusa estampada em sua face.
Bom. Vejamos quanto o seu desprezo durará.
— Quando eu foder com a sua cabeça o bastante para pedir por
mim, você sabe onde me encontrar. Até lá, você pode se contentar com as
vagas lembranças de como quase implorou por mim esta noite.
MONTE WHITNEY - 2022
AGORA
A verdade é só uma.
Não faço ideia de como, com que força ou que tipo de demônio
havia se apossado de meu corpo por ter cogitado a ideia de me render a ele.
De ignorar a fome pela vingança que tem cegado os meus olhos desde o
momento em que o peso de sua traição recaiu sobre os meus ombros.
Não importa o que eu faça, Jason sempre irá bagunçar os meus
sentidos e me fazer duvidar e perder de vista o caminho que me leva até os
meus verdadeiros princípios. Me considero uma tremenda farsa por ter
permitido que ele tocasse o meu corpo com as mesmas mãos que seguraram
o meu coração, mas que optaram por parti-lo ao meio. Assim como permiti
que beijasse a minha boca com os mesmos lábios que me prometeram o
mundo, mas optaram por arrancá-lo de mim.
A questão é: quem é a verdadeira farsa? O infeliz que faz juras
hipócritas ou a que se rende a elas mesmo quando deseja enfiar uma faca
em seu coração?
É verdade que eu poderia culpá-lo, poderia até mesmo usar o
momento como uma tática para fazê-lo pagar, mas sou eu quem ainda está
nua, sentindo a brisa congelante de uma pré tempestade enquanto o peso de
suas palavras infla o meu peito com tanta força que respirar se torna uma
tarefa difícil.
Só fico aqui, exatamente na mesma posição, fitando os seus olhos
intensos e esfomeados. Vejo o desejo em seu olhar, vejo o quanto ele sente
fome e o quanto a minha alma lhe parece apetitosa. Vejo o quanto ele me
quer, assim como sei que ele vê o quanto também o quis, mesmo que contra
a minha vontade.
Ele não me conhece.
É o que também vejo em seu olhar.
Ele conhece uma parte minha a qual tenho ignorado desde quando
precisei mover os meus próprios pauzinhos para sobreviver. Ele conhece
uma parte que era apaixonada por ele em um nível ao qual deveria ser
considerado um crime, porque sim, naquela época eu poderia mover Céus e
Terra para que nosso elo não fosse destruído de uma forma tão bárbara.
Mas ele não conhece a mim. A versão depois dele.
Ele não sabe que agora, eu moveria Céus e Terra para ser ainda mais
mentirosa e fingida do que ele nem mesmo é capaz de notar. Ele não sabe
que eu posso sim ser cruel, mesmo que para isso eu tenha que abdicar de
minha dignidade, mesmo que tenha que passar por cima da minha dor.
— Me larga! — O empurro, finalmente me livrando da prisão de
seus braços.
— Você é covarde. — Ele diz, rangendo os dentes ao levar ambas as
suas mãos a cada um dos meus braços, prendendo-me contra o tronco da
árvore outra vez.
Arfo, soprando meu cabelo para longe da minha visão.
— Oh, desculpe. Você esperava que eu me rastejasse aos seus pés?
Esperava que eu implorasse por um orgasmo?
Mesmo que na penumbra da escuridão, ainda posso ver a união de
suas sobrancelhas ao encarar-me.
— É o que você quer.
Tento puxar os braços, mas a sua força me obriga a aceitar a
posição.
— É o que você adoraria. É o que você está louco para que eu peça.
— Corrijo. — Porque para você é mais fácil obedecer a um pedido do que
ser aquele que o faz.
Vejo quando seus olhos escurecem. Seus músculos enrijecem e sua
mandíbula trava com tanta força que temo vê-la partir bem na minha frente.
Seu aperto agressivo em meus braços é um claro sinal de sua tremenda fúria
por estar diante da maior das verdades.
Eu posso ser cruel.
Não me desafie.
Não me olhe desse jeito.
Não aja como se eu fosse a única por um fio aqui.
E principalmente, não me faça desejá-lo, inferno!
Seus olhos me capturam com tanta destreza que sinto o mundo
desaparecer diante da testemunha do impasse entre o ódio e a incerteza. Eu
o odeio, odeio mais do que tudo nesta vida e temo odiá-lo ainda mais
quando chegar o grande momento de minha reencarnação, mas nada, nada
neste mundo pode superar o quanto eu odeio o que ele está despertando em
mim neste momento.
— Porra! — Ele rosna, agressivo e compulsivo. Vejo as veias de seu
pescoço saltarem no mesmo segundo em que o vejo acertar um golpe na
árvore atrás de mim, quase como se a ideia de que eu estou certa o
perturbasse.
Eu poderia facilmente recuar, temer que seu descontrole colocasse
minha vida em perigo ou me encolher com medo. Poderia acreditar que sua
ira se criou devido à rejeição, que ele me odeia tanto quanto eu o odeio e
que ele poderia me matar agora com toda a facilidade. Eu não teria
escapatória, não haveria testemunhas ou sequer socorro que poderia me
ajudar.
Mas a verdade é outra.
E eu sei que dentre todos os sentimentos envolvidos em seu
descontrole, nenhum deles é alimentado pelo ódio.
Percebo isto quando Jason se afasta em um rompante, com um olhar
sombrio e distante, mirando-o em qualquer outro ponto que não seja a
minha figura. Posso ver a fumaça esvaindo de seus lábios em uma lufada
pesada, denunciando a frequência elevada de sua respiração. No entanto,
ainda que eu deva temê-lo como o monstro que pode ser, continuo
exatamente no mesmo lugar, ao passo em que uso as minhas mãos para
colocar as minhas roupas em seus devidos lugares, tendo a sua figura como
alvo de meu olhar a todo instante.
Observo-o apertar os punhos com tanta força que sua pele
embranquece, mesmo que a iluminação esteja confundindo os fatos. Sua
língua umedece o lábios inferior e meus olhos se prendem no rodear de seu
piercing ao redor de sua pele, e por puro reflexo, entreabro os meus lábios
para liberar uma lufada pesada.
— Dói ser vencido? — Pergunto, quebrando o silêncio.
Seus olhos me encontram conforme os dedos ágeis abotoam seu
jeans de uma maneira tão rápida que meus olhos sequer conseguem
acompanhar.
Jason, sem dizer uma palavra, arrasta as suas botas pela neve,
deixando pegadas por onde passa, até alcançar a sua arma e a bolsa, a qual
joga sobre um dos ombros. Quando torna a me encarar, há tanta frieza e
tempestuosidade impregnadas em sua alma que sinto um arrepio correr pela
minha pele no mesmo segundo.
— Não tanto quanto vai doer se deitar hoje a noite e perceber que
não sou o único em agonia aqui. Mas não se preocupe, não é do meu feitio
usar isso contra você para fazer parecer que sou superior. Estamos no
mesmo degrau.
Ele passa por mim, deixando o rastro de seu maldito cheiro livre
para que eu possa inalar.
Há muitas maneiras de chutá-lo, de colocá-lo de volta no lugar ao
qual não percebi que havia escapado. Quando foi que lhe dei a liberdade de
brincar com a minha cabeça desta maneira? De me tocar? De me causar
tremores nada semelhantes ao ódio imaculado por anos?
Embora eu não saiba a resposta, sei que o problema não está nele.
O problema não é quem comete o maldito ato, e sim, ainda que discordem,
quem permite que o faça. Sei que cometi um grande erro por ter vindo parar
aqui, no topo da montanha infestada de homens que desejam me matar
enquanto espero proteção daquele que eu desejo matar. Quanta ironia.
Hipocrisia.
A verdade é que o meu mundo nunca foi humanamente normal
como todos os demais, sempre há uma sombra enraizada que me puxa para
o absoluto caos sempre que tento escapar. Eu nasci para essa vida, aprendi a
me moldar para que não fosse morta nos primeiros atos, como uma fraca.
Aprendi a adotar uma personalidade a qual ninguém esperava que eu
fizesse. Surpreendi a todos.
Sei que só preciso fazer isto mais uma vez.
Só mais uma.
Retiro peça por peça que cobre o meu corpo quando fecho a porta
do minúsculo banheiro da cabana onde precisamos nos abrigar devido à
forte tempestade lá fora.
A forte ventania e a quantidade de neve que cai do céu, trouxe uma
tempestade tão agressiva que ao olhar pela janela no alto do banheiro, posso
ver o vidro enraizado pelo nevoeiro que o congela. Estamos presos aqui
dentro até que possamos voltar para a cabana onde Naten e Lexie estão. É a
única alternativa já que tivemos a plena e absoluta certeza de que há
inimigos no topo desta montanha, assim como previsto.
Me sinto sufocada por saber de todas as atrocidades que devem se
passar aqui em cima, onde ninguém pode ouvir ou socorrer qualquer um
que esteja em sofrimento. Todas as vezes que penso nisso, minha mente
traiçoeira me leva de volta ao passado, onde tenho conhecimento que se
trata do lugar onde a minha alma se perdeu.
A captura de pessoas, intituladas como mercadorias, são feitas
sempre em público. Eventos beneficentes, lojas, shows, passeios e até
mesmo caminhadas. Chamar a atenção da Luxury é a pior coisa que pode
acontecer com uma pobre garota que merece ter toda a vida pela frente.
Raramente são escolhidos meninos.
O mundo deles é machista.
Os homens são sempre o centro do coração, quando as mulheres são
sacrificadas para mantê-lo funcionando.
Somos moldadas, disciplinadas e orientadas a servir a um homem
com o que ele desejar, pois somos submissas a eles. Devemos obediência
por termos tido o azar de nascer inferiores.
Somos tratadas como um mero objeto que será quebrado de mil
maneiras distintas até que o último grão se perca abaixo dos pés de todos
eles.
O que acontece em nosso casulo, sempre escondido no lugar mais
afastado de cidades, onde jamais alguém procuraria, apenas nós sabemos.
As humilhações, o asco, as ordens, os olhares de satisfação que não
deveriam ser destinados a nós… Tudo isto apenas mulheres como nós
saberiam explicar o quanto dói saber que não importa o que você faça,
ainda existirá dezenas de desgraçados que acharão divertido destruir uma
vida como se não fosse nada, assim como fizeram com você.
Como se não fosse nada.
Talvez esta seja a razão para que eu contenha a ira fervorosa em
meu peito, massacrando-o com o peso enorme da traição.
Se eu não estivesse aqui, provavelmente receberia notícias de que
Floyd e seus homens seguem sendo louvados como deuses pelo país,
quando, na verdade, usa sua influência para traficar garotas e as espalhar
pelo mundo como se fosse um produto em despache. Mas, comigo aqui, na
presença do homem que me feriu, eu tenho a chance de vingar a minha dor.
Não que vá deixar de doer, mas saber que os culpados estão mortos, talvez
traga algum tipo de conforto ao meu peito.
Talvez eu consiga dormir à noite sabendo que meu valor não está
totalmente no lixo.
Mas, ainda que eu esteja no lugar correto, tê-lo por perto ainda me
enfurece. Me quebra em infinitas maneiras. Me desconcerta.
Me deixa no escuro, sem saber para onde fugir, porque todos os
caminhos são igualmente sombrios, não importa para onde eu vá.
Ao enxaguar os fios do meu cabelo que estavam congelados antes
do banho, desligo o registro e alcanço a toalha para retirar o excesso de
água. Seco o meu corpo diante do espelho, observando o meu reflexo.
Nunca vou me acostumar com as olheiras fundas, as cicatrizes da
automutilação que tenho espalhadas por meus pulsos quando, muitas vezes,
foram a minha forma de suportar a forte agonia. Foi o que me
impossibilitou de ceder aos desejos das vozes em minha mente obscura na
qual diziam que eu deveria desistir da minha vida.
E eu quis. Quis acabar com ela porque respirar doía.
Olhar para trás e me dar conta de todas as coisas horríveis que
suportei, servem para que eu erga a minha cabeça e perceba que ninguém
pode definir do que eu sou, ou não, capaz. Eu cheguei até aqui, sobrevivi
quando todos acreditavam que morreria logo na primeira dificuldade, e eu
quase cedi. Mas as marcas estão aqui para me mostrar que não importa o
quanto doa, o quanto pareça insuportável, ainda é possível suportar. Vencer
as vozes. Vencer o medo e a falsa incapacidade.
Cá estou eu, embora odiando o que miro no espelho, embora
odiando a minha face e tudo o que ela representa, ainda sinto orgulho por
não ter aceitado o fracasso.
Não posso dizer que a dor desapareceu como em um passe de
mágica, porque seria a maior mentira que passaria pela minha cabeça. Mas
posso dizer que me acostumei com ela, e que o antes me machucava, agora
só desperta o grande sentimento de “eu já sabia que isso aconteceria”. Ela
se camuflou dentro de mim e fez do meu interior a sua casa; talvez seja por
isto que lidar com a minha dor desperta o pior de mim, porque a minha
mente já sabe os gatilhos que ela trará.
Funciona como uma barreira protetora.
Ainda que doa, atacar é a saída mais fácil; se render ao que ela causa
é sinônimo de fraqueza. E isto não foi ninguém que me disse, foi o que a
vida me ensinou quando precisei dar a cara a tapa e aprender a caminhar
sozinha.
Sei que esta é a minha grande preocupação, saber que Jason está ao
lado de fora do banheiro e que precisarei encará-lo em algum momento. O
ódio é um sentimento, sentir é natural. Mas eu sei que mais do que ninguém
um dia conseguiu, ao me encarar por dois segundos, Jason perceberá que o
ódio não é nada menos do que um fervor causado pela intensidade de um
desejo proibido. Eu o odeio, mas nenhum ódio é superior ao que sinto por
mim mesma tendo total conhecimento de que mesmo que pouco, mesmo
que quase inexistente, ainda o desejo.
Quão horrenda será a minha sentença por tal ato?
Imagino que melhor do que aquela causada por mim mesma.
Merda.
Soltando um longo suspiro, desvio o olhar do meu reflexo e ignoro
as vozes em minha mente, a tensão em minha pele e a agonia em meu
âmago. Sinto meu estômago revirar, sinto vontade de fugir pela floresta e
me perder em meio à tempestade apenas para não dar de cara com o fruto
de uma traição contra mim mesma.
Mas sei que seria mais um motivo para ser chamada de algo que eu
não sou.
Ao vestir todas as roupas secas e podendo, enfim, sentir-me
aquecida novamente, solto uma lufada de ar ao alcançar a manga da fina
blusa em meu corpo para esconder os cortes abaixo do pano. Não sinto a
necessidade de tapá-los com gaze, pelo simples fato de que ninguém
chegará perto sem que eu permita, então simplesmente faço o básico e
guardo o restante dos meus pertences na bolsa, paralisando com os olhos
fixos na maçaneta enferrujada da porta.
Não posso me limitar sempre que Jason estiver por perto, já estive
aqui antes, não é o fim do mundo.
Não é o fim do mundo.
Abro a porta e ignoro as batidas latentes em meu peito. Coloco o
primeiro pé para fora e quando ergo o olhar, eu o vejo sentado em uma
cadeira de madeira, com os cotovelos apoiados em seus joelhos e uma das
mãos se move ao seu rosto, onde alcança o cigarro entre os seus lábios para
libertar a fumaça pelo ar. Sua musculatura está rígida, posso vê-la saltar e
parecer dura como aço contra a camiseta preta básica que cobre o seu peito,
agora sem a presença de sua jaqueta.
Vejo as linhas de suas tatuagens que descem por seus braços
musculosos e duros, até a pele de seu pescoço onde os traços finalizam em
um novo desenho em sua nuca. Em todo o tempo, Jason permanece
tragando o seu cigarro com os olhos fixos em suas botas travadas contra o
chão, no entanto, como se sentisse a minha presença, seu olhar se ergue e
suas orbes encontram as minhas.
É tempestuoso e caótico, mas nunca me pareceu tão desvendável.
Ergo o queixo e ignoro o misto de sensações ardentes que fervem o
meu sangue, avançando meu próximo passo para fora do banheiro que
abandona a minha pele com seu vapor aquecido.
— Não deveria estar fumando aqui dentro.
Embora eu tenha desviado os nossos olhares, ainda posso sentí-lo
queimar a minha nuca e o restante do meu corpo como uma manta
impenetrável. Inferno.
— Isso nunca te incomodou, por que agora? — Sua voz grave e
rouca poderia causar até mesmo tremores nas madeiras que erguem esta
cabana.
Quero inventar dezenas de respostas que o façam excluir a
possibilidade de que eu possa gostar do cheiro causado pela nicotina em
conjunto com o cheiro de seu perfume suave, embora seja exatamente isto
que me enfureça. Abro a boca para dizer qualquer coisa que me venha à
mente ao passo que caminho até o colchonete já montado e limpo para que
me deite, no entanto, as palavras morrem em minha boca antes mesmo que
saiam, seguido por um suspiro assustado quando os meus olhos piscam
duas ou três vezes, não encontrando nada além da completa escuridão.
Viro a cabeça de um lado para o outro a fim de constatar o óbvio,
buscando por qualquer sinal de luz que me faça acreditar que estou ficando
louca. Mas basta que meus olhos encontrem a ponta flamejante do cigarro
de Jason, para aceitar a circunstância.
Estamos sem energia.
Sem luz.
Está tão escuro que somente o seu cigarro possui um fiapo de
coloração ao meu redor. Sinto meu coração bater ainda mais depressa,
causando uma respiração desenfreada que se adequa ao tremor que alcança
a porta da cabana e a ventania extrema que vem de fora.
Então eu entendo.
A tempestade.
A tempestade acaba de me deixar na porra de uma cabana com
Jason sem o menor sinal de claridade.
— Merda. — Suspiro, recuando alguns passos até que as minhas
costas batam contra a parede mais próxima.
É mais seguro aqui, onde eu posso vê-lo exatamente de onde estou,
garantindo que continue distante.
— Se havia alguém nos perseguindo pela floresta, será demolido
pela tempestade e seu corpo nunca será encontrado em meio a tanta neve.
Provavelmente morrerá de hipotermia e vai nos poupar de um esforço
desnecessário, então a falta de energia agora é o menor de nossos
problemas. — Ouço o ranger de sua cadeira velha, indicando o erguer de
seu corpo. Vejo a silhueta de sua mão alcançar o cigarro e atirá-lo ao chão,
antes de ouvi-lo o esmagar com a sola de sua bota, apagando o último fiapo
de luz que denunciava a sua posição.
Ele julga ser o menor dos problemas quando, na realidade, estar em
sua presença nesta cabana atrai mais perigo do que meros homens que eu
poderia matar sem o mínimo remorso. Mas aqui… Aqui as coisas são
diferentes.
Aqui há remorso.
Recosto-me contra a parede e o silêncio me perturba. O vento
balança as janelas e a porta, tão caótico quando o ambiente silencioso e
enigmático entre estas paredes de madeira.
Não ouço um ruído sequer, e a ideia de que ele possa estar me
rondando e brincando comigo sem que possa vê-lo, tão sorrateiro, me deixa
em completa agonia. Porque não importa quão bom tenha sido o meu
treinamento e o quanto eu seja boa em captar coisas que passariam
despercebidas por pessoas comuns, ele ainda é mais ardiloso do que eu
conseguiria ser em toda a minha vida. Um aluno nunca consegue ser melhor
do que o seu professor, a menos que ele queira.
— Ligue a lanterna do seu telefone. Não me sinto confortável no
escuro com você. — Minha voz treme, e aperto os punhos para acalmar os
nervos.
Silêncio.
Jason se cala e é exatamente isto que me dá medo. Seu silêncio é
sinônimo de caos e desordem, uma vez que sua voz é quem o determina.
Mas quando não o faz, é o que lhe faz perceber que a diversão da vez é
arruinar sem que um aviso seja dado.
— Não vou pedir de novo, Jason. Eu não confio em você e…
Me calo.
Engulo as palavras quando finalmente, após minutos de completa
calmaria, finalmente sinto a sua presença. Porque ele permite que eu sinta.
Sorrateiro e perverso, é isso o que ele é. Sinto seu peito estufado bater
contra o meu, que sobe e desce em uma respiração desordenada, e o baque
de seu braço repousando acima da minha cabeça é o que me faz prendê-la.
— Eu também não confio em mim, Baker, principalmente quando se
trata de você. — Sua voz é um sussurro em agonia, que sai arrastado ao
passo em que sinto a ponta de seu nariz escorregar por minha face, em
minha bochecha que agora parece pegar fogo.
Espremo o meu corpo contra a parede, forçando os meus punhos a
se fecharem, acreditando que a força depositada ali possa sobressair a de
uma tensão a qual pensei estar morta. Mantenho os meus olhos abertos,
encarando a silhueta forte e grande diante de mim, que desliza a ponta de
seu nariz por minha mandíbula até encontrar a pele sensível do meu
pescoço. Contenho a respiração e sinto a sua língua deslizar na lateral do
meu pescoço, especificamente em meu pulso, onde o latejar denuncia o meu
nervosismo. Ele, mais uma vez, parece satisfeito com o efeito que causa em
mim quando sinto sua mão possessiva e grosseira, tomar um lado da minha
cintura com agressividade, como se estivesse se contendo. Se segurando.
— Então se afaste. — Reúno forças para dizer.
— Eu disse que não confio em mim quando se trata de você e
quando digo isso, quero dizer que não importa o quanto eu odeie ceder, se
eu não o fizer, vou perder a cabeça. — Soa como uma confissão. — Você
não odeia esse momento tanto quanto eu, mas sei que o deseja quase na
mesma proporção. Então vamos acabar logo com isso.
Arfo ao sentir os seus dedos ásperos pressionarem a minha cintura e
me puxar de encontro a si, colando os nossos peitos enquanto a sua língua
desliza pela pele do meu pescoço como se fosse a coisa mais saborosa que
já colocou a boca. Por reflexo, fecho os olhos e sua mão livre afasta os fios
úmidos do meu cabelo para trás, dando-lhe ainda mais acesso a minha pele.
— Não vou ser a sua válvula de escape. — Arfo, minha voz treme e
minhas pernas parecem perder a sua força, mas não importa o que eu faça,
não consigo me afastar.
Não consigo impedi-lo.
Não sei nem se quero impedir.
Quero afastá-lo, quero puni-lo por colocar as suas mãos podres em
mim, mas ao mesmo tempo, uma parte minha deseja que ele vá mais além,
que faça de uma vez. Que sane a minha vontade.
Fico em um impasse, entre agarrar a corda que me puxa para a
claridade ou cortá-la ao meio, escolhendo ficar no abismo fundo, onde é o
meu lugar. É um momento no qual sempre soube qual seria a minha reação,
mas as coisas são diferentes na prática. Na prática, não há racionalidade
alguma que o faça escolher pelo lado da salvação. Às vezes, a perdição soa
mais tentadora. Posso dizer que este é o caso deste momento, porque
quando sinto a sua mão repousada em minha cintura apertar a minha carne e
seu corpo empurrar o meu contra a parede, pressionando-me enquanto sua
palma invade a minha blusa e se infiltra por baixo dela, com os dedos
calejados massacrando-me por completo, perco qualquer capacidade de
raciocinar.
— Você não é. — Afirma. — Amanhã nós podemos fingir que isso
não aconteceu. Posso voltar a ser o bastardo desprezível e você pode voltar
a me desejar apodrecendo em um caixão. Mas agora, eu quero que me
deseje dos pés à cabeça, assim como eu a desejo. Me beije e me toque,
porque se não o fizer vou perder a porra da cabeça.
Seu rosnado é o suficiente para que erga as minhas mãos trêmulas e
as leve até cada lado de seu rosto com uma impetuosidade tão grande que o
vejo suspirar pelo contato. Ergo a minha cabeça e trago a sua até estar
diante de mim, sinto sua respiração em meu rosto e só quando tenho
absoluta certeza de que ele está com os olhos em mim, solto as seguintes
palavras:
— Isso não muda nada. — Afirmo. — Não muda o meu ódio e o
meu desprezo. Não muda quem você é.
— Isso não muda nada. — Concorda. — Ao nascer do sol, você e eu
ainda seremos a ruína um do outro. Estou contente com a posição que
ocupo na sua vida, e é melhor que seja assim.
Respiro fundo, sentindo uma fagulha incômoda em meu estômago,
mas procuro me recompor antes que ele perceba o meu desconforto. Não é
momento para sentir, tampouco para me mostrar frágil e desconcertada.
Está sendo uma escolha e terei que arcar com as consequências.
— Eu te odeio. — Rosno com tanta força, que sinto meu toque pesar
em sua pele. Ele sequer parece incomodado.
— Que bom. — É tudo o que diz ao levar ambas as mãos até os
meus punhos e segurá-los contra a sua face, contendo a minha
agressividade.
Meu corpo inteiro ferve e minha alma parece ter se perdido em
algum lugar, meus sentidos também, porque não há outra razão para que
esteja me rendendo a ele. Ao que causa em mim, ao que deveríamos ter
sido. Queria que ele pudesse sentir a minha dor por estar aqui, queria que
entendesse que meu mundo foi destruído e que sou tão fodida que me atraio
pela destruição e que é por isso que continuo aos seus pés. A vida nunca foi
bondosa comigo, a bondade me parece inexistente. O que me resta é me
apegar às sombras da única coisa que conheço: terror absoluto.
Isso talvez explique porque estou prestes a transar com o homem
que destruiu a minha vida, após prometê-lo uma vida desprovida de paz.
É a única razão.
Os dedos de Jason largam os meus punhos e os afastam de sua pele,
como se meu toque o queimasse. Ele me larga, vejo sua silhueta se mover e
ouço o ruído de tecido. Busco compreender o que acontece, mas a minha
dúvida é sanada quando novamente ele está diante de mim, pressionando-
me contra a parede e ao tocá-lo, sinto a pele de seu abdômen nua. Não
tenho tempo para contestá-lo, porque Jason se aproxima e afasta as minhas
pernas de uma forma habilidosa, com um dos joelhos. Ergo a cabeça para
respirar, no entanto, sou impedida de fazê-lo quando o choque de sua boca
contra a minha de maneira possessiva e desesperada, me tira do eixo.
Por reflexo, levo ambas as mãos à sua nuca, deslizando por sua
cabeça raspada enquanto a outra trata de arranhar a pele onde
provavelmente há traços de uma tatuagem. Sinto o seu piercing gélido em
meus lábios, provocando-me uma sensação tão boa que o resto do mundo
parece ter desaparecido. Seus lábios esmagam os meus e eu gosto, gosto da
maneira como sua língua pede passagem e de como cedo, gosto de como
ela transita por cada canto, de como seus dentes mordem os meus lábios,
tão forte que um gemido me escapa.
Tenho certeza de que haverá sangue se eu o tocar.
Sinto-o esmagar a minha cintura e uma de suas pernas roça o meio
das minhas, provocando-me sensações tão arrebatadoras que sequer tenho
tempo para me arrepender. Sua outra mão afunda em minha nuca e agarra
um punhado de meu cabelo entre o seu punho, afastando a minha cabeça
para trás até que bata contra a parede. Eu arfo, desnorteada, mas basta que
seus lábios raspem os meus novamente para que perca o resto de
consciência que me resta.
— Não entendo como você ainda acredita que eu destruí a sua vida,
quando é você quem destrói a minha todos os dias. — Rosna, prendendo os
meus cabelos entre seus dedos como se me odiasse. Como se não suportasse
o que faz. — Porra, você poderia acabar com ela e eu sequer tentaria
impedir. Sempre foi assim, sempre foi você quem me teve na palma de suas
mãos, não o contrário.
Procuro entender o enigma entre as suas palavras, procuro encontrar
as entrelinhas em sua frase que me façam compreendê-lo, mas sei que seria
em vão. Não muda nada, de qualquer forma.
— De costas. — Ordena, e sua agressividade me pega desprevenida,
mas não o questiono. Apenas obedeço.
Me quebre como só você sabe fazer.
Me amaldiçoe para todo o sempre.
É irrevogavelmente impossível que possa existir uma sensação tão
arrebatadora quanto o cheiro do homem agarrado às minhas costas, que
lambe o lóbulo da minha orelha de uma maneira pecaminosa. É
irrevogavelmente impossível que eu possa dormir a noite sem me lembrar
de como é tê-lo agarrado a mim como nos velhos tempos. Seu toque é
agressivo, desesperado e possessivo. Jason me toma em suas mãos como se
pudesse me partir ao meio a qualquer minuto, e entendo que ele poderia
muito bem fazê-lo se quisesse, por nossa diferença enorme de estatura. Mas
não só isso.
Eu o sinto pressionar o peito contra as minhas costas, sinto alcançar
a barra da minha blusa e deslizar os dedos pelo tecido de uma maneira
impaciente. Então quase arrebento os glóbulos oculares quando o ouço se
partir, assim como sinto a minha pele arder.
Liberto um grande suspiro ao notar que ele acaba de rasgar a minha
blusa com as próprias mãos, mas nem que eu me importasse conseguiria
abrir a boca para contestá-lo. Fecho os olhos ao sentir as duas mãos
trabalharem em descer a calça jeans que cobre a parte de baixo, seus dedos
deslizam pelo botão e o abrem, mas só quando ele faz menção de abri-la, eu
afasto as suas mãos e tomo o seu lugar, fazendo por ele.
— Faça logo. — Ordeno, sentindo o tremor denunciar o meu
desespero.
Ele não responde, sequer há necessidade.
Ouço o ruído de seu zíper. Ouço o som do cinto batendo contra o
chão. Ouço sua respiração em meu pescoço outra vez, e é neste segundo
que fecho os meus olhos e decido ignorar toda a racionalidade. Que se dane.
Jason é o perigo, é a personificação da destruição, ainda assim, é por ele
que meu coração bate com tanta força que sequer posso imaginar um
momento da minha vida que não o tenha desejado.
É um erro. É a porra de um crime que não há perdão existente na
face da terra, mas nunca o desejei, de qualquer maneira.
Seus dedos deslizam pelo tecido da minha calcinha e não demora
muito para senti-la deslizar por entre as minhas pernas. Sinto o interior de
minhas coxas encharcado, minha boceta pulsa com tanta força que quase
grito para que ele a toque. Exatamente no lugar onde ela implora, onde o
inchaço implora por um alívio.
Mas, como se ouvisse os meus pensamentos, Jason ri rouco em meu
pescoço conforme seus lábios chupam a pele nua abaixo da orelha.
— Peça.
Nego.
— Jason. — Repreendo. — Não me provoque, inferno.
Ele sequer se abala.
— Quero ouvir as palavras, Baker.
Desgraçado.
Ele sabe que meu orgulho sempre será maior do que qualquer
desejo, quer me ver implorar para que me foda, que me destrua, porque seu
prazer é onde se encontra a minha dor.
— Foda a minha boceta agora ou eu a darei para alguém que a
queira sem grandes burocracias. — Opto por provocá-lo, mesmo que seja
um tópico doloroso.
Sei que apesar de demonstrar a sua grande insatisfação comigo, por
me afastar e por me colocar sempre como o elo mais fraco, ele jamais
gostaria de me ver com um outro alguém. E, como imaginei, foi tudo o que
precisei dizer para que ele perdesse o resto de sanidade que tinha.
Jason empunha boa parte do meu cabelo e puxa a minha cabeça para
trás com rapidez, fazendo-a recostar contra o seu ombro e o bico dos meus
seios raspam de forma dolorosa contra a madeira da parede. Gemo contra o
seu pescoço, abrindo a boca o suficiente para chupar a sua pele e sentir seu
gosto nela, como se tê-lo prestes a se enfiar dentro de mim fosse
insuficiente.
— Não se atreva a falar uma coisa como essa outra vez, porque eu
poderia exterminar cada homem na Terra antes que você possa ser tocada
por qualquer um deles. — Rosna, com raiva, cego pelo desejo. — Tenho
certeza que em seu coração há o meu nome tatuado, e vou me certificar de
que sua boceta também tenha. Não importa o quanto fuja, inferno, você
ainda continua sendo minha. Você nasceu para isso.
Há um tom furioso emanando de cada palavra, e basta que ele
recoste a altura de sua virilha contra a minha bunda, para que eu entenda a
proporção de cada uma. Fecho os meus olhos e me apoio na parede com as
duas mãos, afastando minhas pernas minimamente, desejando o seu toque,
desejando-o infindavelmente.
Sinto o seu pau deslizar entre as minhas dobras, é grande, tão grande
que temo ser quebrada em dois pedaços neste exato momento. Meu interior
pulsa, meu âmago implora para que ele nos una e que, mesmo por um curto
período de tempo, possa sentir como é ser tocada por quem realmente
desejo.
— Vou destruir você, Jason. Vou quebrá-lo por tudo o que me faz
sentir. — Sopro, entre um gemido ou outro quando sinto sua mão livre
posicionar-se no meio das minhas pernas e afastá-las mais um pouco, seus
dedos deslizam por minha excitação por um momento e quase perco o
equilíbrio.
— Chegou tarde. Não há mais nada para ser quebrado.
Então eu sinto a cabeça do seu pau ser pressionada contra o meu
clitóris.
Gemo.
Inferno. Inferno. Inferno.
Por que isso é tão bom?
Ele arfa contra o meu rosto.
Não há penetração, tudo o que ele faz é deslizar a ponta por minha
extensão, deslizando-a para cima e para baixo e demorando-se no clitóris
como se o meu desespero o excitasse. Seu pau está tão duro que posso
sentir meu ponto sensível inchar ainda mais quando é pressionado ali, mas
nada, nada se compara a sensação de seu gemido rouco quando o pau
escorrega e é pressionado em minha entrada.
— Caralho! — Rosna, completamente rendido ao tesão.
Sei que somos movidos por isto, pelo errado, pelo proibido, e que é
exatamente isso o que nos mantém respirando. Então dou isso a ele. Eu me
curvo contra a sua virilha e posiciono a minha bunda contra o seu pau de
uma maneira bruta que, inevitavelmente, faz com que deslize para dentro
devido à excitação que já escorre por toda a sua extensão. Sequer imagino
como esteja seu interior.
Apoio-me na parede e me curvo ainda mais, empurrando-o para o
fundo sem que este seja um movimento seu.
Seu gemido me desconcerta.
O puxão em meu cabelo quase me leva a colar os nossos corpos
novamente, mas concentro-me em manter o meu apoio e deixar a minha
bunda na devida posição.
Ele faz o primeiro movimento, empurrando tão fundo que vejo
estrelas.
— Nossa. — Arfo. — Nossa, nossa, nossa.
Ele não para.
Sinto as suas bolas baterem contra a minha bunda e seu puxão em
meu cabelo é tão agressivo que tenho a certeza de que grande parte dele
ficará preso entre seus dedos mesmo que me liberte. Nossos gemidos
entram em sincronia e já não me importo com a vida lá fora, não me
importo com meus objetivos e com a tempestade que poderia destruir esta
cabana conosco dentro. Nada importa senão as estocadas violentas que
fazem a minha consciência desaparecer.
Sua mão que não está em meu cabelo segura um lado de minha
bunda, possibilitando que haja mais espaço para que ele possa se enfiar. Eu
o sinto tão fundo que minha intimidade dói, sua grossura deixará uma
ardência que levará tempo para ser superada, ainda assim é a melhor
sensação que tenho o prazer de sentir há anos.
Mesmo que doa saber disso quando acordar.
Admitir é duro, mas este é um fato que ninguém nunca saberá senão
eu.
— Pare de me apertar dessa forma ou eu vou jorrar dentro de você,
caralho. — Avisa.
Não entendo o que ele diz, posiciono as mãos na parede novamente
e quando sinto sua mão largar a minha bunda e se infiltrar entre os meus
grandes lábios, alcançando o clitóris e pressionando-o entre os dedos, eu
fecho as pernas com toda a força e grito alto. Neste segundo, entendo o que
ele disse.
Meu clitóris pulsa com força e minha entrada também. Eu a sinto
esmagar o seu pau.
— Caralho, Baker! Eu mandei você… — Arfa, empurrando com
mais força. Me desequilibro e meu rosto vai de encontro à parede. Demoro
a entender a minha posição, mas quando as estocadas se tornam impiedosas,
percebo que ele está em seu limite. — PORRA!
Sinto o pé da minha barriga ferver e o clitóris formigar, a penetração
continua agressiva e forte, mas quando sinto um tapa estourar na pele da
minha bunda, o grito sai quase automático. Então explodo, explodo entre os
seus braços enquanto ele desfere outro e mais outro tapa, empurrando forte
e diversas vezes até que sinto meu interior ser preenchido por seu líquido.
Sigo ali, escorada contra a parede enquanto meu interior arde, meus
seios estão doloridos e a minha bunda queima. Todo lugar onde ele esteve
com as mãos está dormente, mas ainda assim nunca me senti tão esgotada.
O silêncio se instala outra vez, sem o som profano de suas
estocadas. Há apenas nossas respirações e o barulho das janelas batendo
devido à forte força do vento.
Ele ainda está dentro de mim quando larga o meu cabelo e desliza a
sua palma por minha bunda, como se quisesse acalmar a ardência ali, então
alcança a minha nuca e me puxa de encontro a ele novamente, até que
minhas costas estão contra o seu peito.
— Agora eu tenho mais certeza de que você nunca poderá me
desprezar com tanto afinco. Assim como sei que nunca conseguirei me
esquecer do som dos seus gemidos e da sua boceta encharcada engolindo
meu pau. — Ele lambe o meu rosto, como um cão. — Estamos
amaldiçoados.
NEW YORK - 2019
ANTES
Linda.
A primeira pessoa que me chamou de linda foi minha mãe. Ainda
me lembro das vezes que ela passava a escova de cabelo raquete lilás que
mantinha sobre a sua penteadeira entre os meus fios loiros enquanto cantava
uma de suas músicas favoritas.
Acho que aquele era o único momento em que realmente se
permitia ser ela mesma. Os momentos que tínhamos a sós antes que
Sebastian chegasse do seu encontro casual com compradores, eram únicos.
Neles eu podia conhecê-la melhor.
Passei anos ao seu lado e uma dor infinitamente dolorosa parece
tomar o meu peito quando me lembro de que eu nunca a conheci de
verdade.
Tudo que eu sei é que ela nos amava mais do que a si mesma.
Josh era o seu tudo, apesar de não ter tido muito tempo ao seu lado, e eu por
muito tempo, fui a sua salvação. Ela costumava dizer que eu era o seu anjo,
porque eu traria a libertação que ela precisava.
Nunca descobri o que ela quis dizer com isso.
Sei que nunca vou descobrir. E, tampouco ouvirei dizer o quanto
os meus fios loiros lembram os seus, porque eu os destruí. Sou covarde
demais para lidar com a dor da saudade.
São como facas rompendo todas as camadas de pele e afundando-
se no meu coração como um baque mortal. Não poderei sobreviver a isso,
tampouco à maneira como Jason me olha como Eleanor me olhava. O
brilho nos olhos ao dizer o quanto eu estou bonita transparece na escuridão
de suas esferas, e realmente pensei que não podia odiá-lo mais, mas estava
perdidamente errada.
— Não me venha com essa! — Afasto a sua mão com um tapa
grosseiro em seu dorso. — Devo lembrar a você todas as palavras cruéis
que disse há algumas horas? Não sou tão carente para ouvir um único
elogio e mágicamente me esquecer de todas as suas merdas. Diga o que
quer de uma vez.
Eu ainda estou magoada por tudo que ele havia me dito, mas
estou ainda mais abalada por tudo que eu disse para todos aqueles bêbados
há poucos minutos. Quão humilhado o álcool pode nos deixar?
— Você também disse coisas, Baker — Ele suspira, seu tom é
rígido, apesar do semblante sereno. — Posso ter sido um cuzão, mas não
estou sozinho nessa.
Afasto o meu corpo do armário, avançando alguns passos breves
para fechar o zíper da jaqueta.
— Você é pior do que eu, de qualquer maneira. — Digo quando
estico o tecido contra o meu peito, finalmente olhando para ele por cima do
ombro. — Você é uma bomba-relógio, Jason, e não vou permitir que
exploda perto de mim outra vez.
Eu gostaria de descobrir a fórmula para me esquecer de todos os
sentimentos que tive por ele, só assim eu poderia seguir em frente. Jason
ainda mexe comigo, e toda vez que estou cara a cara com ele, sinto que
mais um pedaço do meu coraçã.o se perde no seu abismo profundo.
— Bomba-relógio? — Ele ri, apático. — Sério?
Balanço os ombros com indiferença. Eu tremo de frio, apesar do
meu organismo queimar pela quantidade de álcool que há no meu sistema.
Sinto os meus lábios racharem, a onda congelante que cresce na
ponta dos meus pés por dentro da bota desconfortável traz um choque de
calafrios por todo o meu corpo.
— Você destrói tudo o que toca. Você não consegue sobreviver
sem arrastar alguém para o buraco junto com você. — Giro sobre os
calcanhares, me sentindo cruel por destilar o veneno mais mortal em sua
direção. — Isso foi o que levou nós dois à ruína. Então não, eu não sou a
causa da sua ruína. Você quem causou a minha.
Aponto o dedo em sua direção como um padre julgador. Julgo os
seus pecados como se eu não tivesse os meus próprios para cuidar, um deles
é estar culpando-o por me destruir quando nem mesmo eu sou capaz de
odiá-lo por isso.
Jason pisca cerca de três vezes consecutivas, ele não parece
minimamente abalado com o que acaba de ouvir, e é exatamente isso que
me preocupa. O gelo em seu olhar, o modo como todas as suas linhas de
expressão desaparecem de seu rosto quando fecho a boca. A forma como
esconde o seu sorriso amargo e endireita a postura, como se nada pudesse
doer mais do que aquelas palavras. Ele não transparece, no entanto.
— Quanto você bebeu? — Pergunta de repente, ignorando a
minha alfinetada.
— Não sei, não fiquei contando shot por shot. O que sei é que não
bebi o suficiente para me esquecer de tudo que acabei de falar.
Jason abana a cabeça.
— Ótimo. Nós temos uma missão hoje e preciso que você mais
ajude do que atrapalhe. Depois disso nós voltaremos para WonderFall e
você pode voltar para a sua vida infeliz. É o que você quer, não é? — Ele
não parece minimamente emotivo, mas a forma como as palavras
indiferentes saem de seus lábios, me incomoda.
— Como? — Arqueio a sobrancelha, acompanhando os seus
passos com o olhar.
Jason passa por mim com rapidez, deixando o rastro de seu
perfume doce pelo ar.
— Nós temos uma missão, Baker, foi por isso que eu vim. Você
pode decidir bancar a adulta responsável e vir comigo ou pode continuar
fazendo birra como uma criancinha. Pode escolher, não vou interferir na sua
decisão. — Quando alcança a porta, uma de suas mãos agarra a maçaneta
entre a palma. Ele não se vira quando com todo o seu ar indiferente, diz: —
Quando ela acabar, eu direi toda a verdade para você, quer você queira, ou
não. E, honestamente, espero que ela doa.
Fecho os olhos com força quando o banheiro fica vazio outra vez
sem a sua presença. O baque da porta sendo fechada abruptamente balança
os meus sentidos e faz com que a dor fininha da culpa alfinete o meu peito.
O som do rock que toca sem parar pelos alto-falantes do bar fica
mais alto, o som de risadas grossas e adultas ainda são ouvidas, mesmo pela
distância.
Meu coração bate alucinadamente pela sensação tão
desconfortável de tê-lo magoado. Eu peguei pesado, reconheço o peso de
minhas palavras, mas precisei partir o seu coração para que ele tivesse
alguma reação.
O preço da verdade é alto.
Quão longe irei por ela?
Só há um jeito de descobrir.
Jason está aqui e, irritado ou não, ele fez uma proposta. Eu não
deveria recusá-la, porque tudo que pode direcionar o meu destino, é o
passado. As coisas que aconteceram há anos, que nunca sequer descobri. A
história da minha mãe, a razão para que ela tenha se casado com Sebastian,
o motivo de sua morte tão horrenda, as inúmeras vezes que me perguntei a
razão para que ele tenha feito o que fez, tudo está prestes a ser respondido.
Seguir a minha vida sem a sua sombra perseguindo todos os meus
passos.
Quão louca estou por essa libertação?
Eu ainda quero isto?
Se a resposta é sim, por que o sentimento da perda assombra o
meu estômago como uma maldita borboleta perdendo as suas asas?
Jason incendeia todos os meus sentidos, e tenho dúvidas se o meu
corpo realmente é formado por água, ou gasolina. Eu sempre cedo. Queimo
por ele.
Sou tão ridícula.
Instantaneamente, balanço a cabeça e relaxo os meus músculos,
soltando um longo suspiro conforme tento organizar os meus pensamentos e
colocar os meus objetivos em primeiro lugar.
Foda-se as borboletas.
Quando decido abrir a porta e sair do banheiro, não penso muito
ao apagar a luz no interruptor e arrasto a ponta dos dedos pelo batente ao
atravessar o corredor.
Caminho rapidamente pelo chão de madeira, fazendo os meus
passos longos ecoarem pela madeira rústica que parece estar ali há anos.
Elas estão velhas e surradas, o papel de parede quadriculado também é o
charme das paredes, entrando em oposição com as inúmeras decorações de
cabeças de urso, veado e touro, penduradas nas paredes. É bizarro e
assustador.
O lugar parece ter sido construído no século passado, os vitrais e
todas as lâmpadas penduradas ao teto parecem ter sido projetadas à mão.
Não é um lugar luxuoso e confortável, mas aparentemente, é uma válvula
de escape para várias pessoas como foi para mim, também.
Passando pelo corredor sombrio, volto para o bar em passos
lentos, encarando o chão de madeira conforme as minhas botas criam um
ruído sonoro oco no chão.
— Ei, menina! — Levanto a cabeça de supetão quando reconheço
a voz de Welsh.
Estou a poucos passos da porta de saída, meu subconsciente tão
aéreo que demoro para notar que ele chama por mim. Welsh ainda está atrás
do balcão, seus olhos fundos estão mirados em minha direção, e só quando
escorrego o olhar para o seu nariz ensanguentado, permito que os meus pés
me guiem até ele.
— Welsh, o que aconteceu? — Pergunto, olhando para o sangue
seco que mancha a pele abaixo do nariz. — Você está sangrando.
Quando levanto o olhar até o seu, noto quando os seus olhos
analisam o topo da minha cabeça e baixam novamente para os meus. Ele
tem um semblante calmo e sereno, apesar de estar machucado.
— Gostei do cabelo. — Ele elogia, gesticulando um aceno com a
cabeça. — Quanto a isso, parece que o seu namorado é mesmo osso duro de
roer. — Welsh usa a ponta dos dedos para secar o buço, espalhando sangue
por suas bochechas coradas.
Eu levanto uma sobrancelha.
— Ele quem fez isso?
Welsh acena.
— Parece que ele é um pouco esquentado. Mas não se preocupe,
eu o mereci.
— Por quê?
— Ameacei chamar a polícia se ele não a deixasse em paz — O
homem bufa um riso, secando os dedos ensanguentados no pano sobre o
ombro. — Ele não curtiu muito a ideia, como você pode notar.
Eu cruzo os meus braços, varrendo os olhos pelo bar ao perceber
que muitos olhares ali estão direcionados diretamente para mim. Os caras
que antes bebiam de seus copos totalmente aéreos, desta vez, fixam seus
olhares em nós, quase como se descobrir o que está acontecendo fosse mais
interessante.
— Eu sinto muito, Welsh — Coço o meu couro cabeludo, fazendo
gotas ásperas de água escorregarem pelo meu pescoço. — Eu não deveria
ter envolvido você.
Ele sorri fraco, leva o pano até o seu nariz e estanca o
sangramento.
— Você vai ficar bem? — Pergunta. — Se ele for mesmo um
psicótico, eu posso inventar que você foi dar uma volta.
Bufo um riso, achando graça da forma como ele acredita
fielmente que seria tão fácil escapar de Jason.
— Vou ficar bem — Garanto, abanando a cabeça. — Obrigada
por me ouvir, estou me sentindo mais leve.
Arrastando as botas pela madeira fosca do chão, recuo alguns
passos em direção à porta enquanto aceno para o restante dos caras que
estavam envolvidos em minha conversa quando cheguei até aqui.
— Cuide-se. — Welsh faz uma careta quando força o pano contra
o nariz, mas usa a outra mão para acenar um "adeus".
Sorrindo fraco, giro sobre os calcanhares e caminho até a saída do
bar.
É estranho como me senti livre para ser quem eu realmente sou
com pessoas que nunca havia visto em toda a minha vida. Eles me ouviram,
não julgaram as minhas escolhas mesmo que eu tenha citado mil motivos
para que o fizessem. Mas não. Eles foram como amigos, me acolheram
quando eu mais precisava de um espaço para liberar tudo o que estava me
engasgando.
Nunca os verei novamente, mas estou emanando gratidão por
terem proporcionado a mim, um momento tão simples que nunca tive a
honra de conseguir.
Foi bom me sentir como uma pessoa comum dentre tantas
perturbações, mas quando passo pela porta e encaro a brisa fria que vem do
céu e as gotas congelantes de neve batem contra o meu rosto, umedecendo-
o, é literalmente como um balde de água fria. A verdade é uma só.
A realidade é outra.
E é hora de encará-la.
HORAS ATUAIS
— Olhos nela, Hyuk — Ordeno rapidamente. — Nas duas. O tempo
todo.
Tudo que ele faz é abanar a cabeça e seguir em direção oposta,
misturando-se no meio de todos os caras que circulam na retirada do salão.
Eu fiz exatamente o mesmo após o fim daquela reunião estúpida.
Não sou um completo santo. Sei que apesar das boas intenções, fui
um canalha por me apaixonar pela única pessoa que deveria estar longe das
minhas mãos, porque se algum dia eu a tocasse, ela estaria correndo um
perigo irreversível. Mesmo assim, eu o fiz.
A Revolução está no nosso pé, Victor Mercier em breve saberá que
sua única filha foi alvo de infinitos abusos psicológicos e físicos, assim
como foi a principal atração da Luxury por anos e anos, servindo aos mais
renomados empresários da cidade por simplesmente ser a mais bela mulher
que já puseram os seus olhos. A notícia de que sua filha deu à luz aos seus
netos também irá impactar e desestabilizar todas as estruturas do cara rígido
que sempre aparentou ser.
Afinal, o líder da organização anônima mais temida de nossas
redondezas, também deve possuir um coração. Embora ele não tenha dado
as caras em todos estes anos.
Uma guerra foi travada quando aqueles documentos foram postos
em suas mãos, e a única forma de tirar o meu pescoço da forca, é abrindo a
boca quanto a tudo que eu sei sobre Eleanor e seus filhos. Começando pela
parte em que usando de toda a minha curiosidade aflorada, busquei pela
garota a qual meu pai desejava com tanto entusiasmo.
Eu jamais poderia saber que a minha curiosidade faria de mim o
único capaz de compreender a história de Eleanor Mercier. O único capaz
de proteger Sofia Clarke.
Está chovendo.
As gotas ásperas de água fria como a Antártica batem contra a
minha testa e sinto os cachos do meu cabelo se desfazerem acima da minha
cabeça.
Para me aquecer, eu enfio as mãos nos bolsos do moletom vermelho
velho que encontrei no fundo do meu armário. É inverno e ainda assim, as
únicas roupas que poderiam me aquecer foram presentes de Marta. Ela não
veio para o trabalho hoje, e o meu pai tampouco se importa comigo o
suficiente para evitar que eu morra de hipotermia durante a noite.
É... Tudo bem. Ele não é muito de se importar mesmo.
A cortina do meu quarto balança por consequência do vento forte
que acompanha toda a tempestade. Meus pés escorregam contra o material
do telhado do lado de fora da janela, e mesmo que os raios estejam
brilhando sob o céu e os relâmpagos façam o meu corpo estremecer, eu não
consigo me mover.
A chuva é boa.
É bom sentir alguma coisa além da infinita solidão que é estar todo
dia trancafiado dentro daquele quarto esperando até que minha comida
seja entregue todos os dias às sete da manhã, às três da tarde e às oito da
noite. É frustrante.
Meu pai não sabe que descobri essa pouca liberdade que possuo. O
telhado é escorregadio e a altura de nossa casa faz com que eu pense em
fugir, provavelmente não o faria sem quebrar alguma parte do corpo no
processo. Sendo assim, não acho que ele tenha considerado essa
possibilidade, pois se tivesse, grades já estariam sendo instaladas para
evitar o meu atrevimento, como ele chamaria.
É uma merda.
Sequer sei porque ele me odeia tanto. Talvez seja porque não sou
tão parecido com ele.
Ainda assim, nada parece justificável o suficiente para que eu
entenda porque ele me mantém nessa porcaria de quarto o tempo todo,
como um verdadeiro prisioneiro.
Já o ouvi falar várias vezes sobre mulheres. Dezenas delas. Todas
são endeusadas e desejadas com tanta devoção, que realmente me sinto
curioso para descobrir a razão para que não tenha uma. Onde está a
minha mãe? Casamentos costumam durar para toda a vida, se eu nasci em
um, onde ela está?
Por que ela não faz nada para impedir este comportamento de seu
marido?
Por que permite que me trate com tanto desprezo?
Respiro fundo.
Não importa.
Se ela realmente tivesse algum interesse em estar ao meu lado, ela o
faria. Mas me deixou aqui, abandonado com o homem que me trata como
se eu fosse algum tipo de animal. Como se eu fosse um monstro.
Outro raio explode no céu escuro e as gotas de chuva tornam-se
mais agressivas.
Não me mexo.
A sensação é boa.
É o mais humano que me sinto em muito tempo.
— Me larga! — Ouço um grito abafado não muito longe de onde
estou.
Não posso deduzir se trata-se de homem ou mulher, devido ao som
alarmante da chuva.
— Largar você?! — Este é um homem, não há dúvidas. — Você está
tentando me foder, mulher?
Mulher.
Viro a cabeça, usando a manga encharcada do moletom para secar
as gotas de chuva em meus cílios para tentar enxergar com mais clareza.
No entanto, quanto mais me esforço, mais forte as gotas caem.
Nós não moramos em um bairro muito acessível. Ao que pude
enxergar, as casas são sempre muito arquitetadas e bem decoradas, os
carros - aparentemente classe alta -, estão estacionados à frente de suas
casas com zero preocupação pela possibilidade de serem roubados. Os
portões das casas são automáticos, todos eles têm travas eletrônicas que
pedem por algum tipo de digital ou senha ao ser acionada.
Nossa casa está em um bairro distante e recheado de
engomadinhos, quanto a isso eu não tenho dúvidas. Sei que o meu pai é
rico, apenas não consigo entender qual é o seu trabalho. Ele nunca fala
sobre.
Não fala sobre nada, na realidade.
— Claro que não, Sebastian! — A mulher berra. — Eu te dei tudo o
que você queria, o que mais você quer de mim?!
O som de sua voz parece mais audível.
Ela parece tremer.
Viro a cabeça novamente, procurando pelo local de onde vem toda
aquela discussão.
Nunca tive muito acesso ao lado de fora, não sei se estas discussões
costumam ser frequentes ou se está acontecendo justamente quando posso
ouvi-la. O que está acontecendo, afinal?
Seco o rosto da maneira que posso com o único moletom que eu
tenho - agora encharcado -, mas não importa. Olho para as casas ao lado
da nossa, ao lado direito, a casa amarela não tem nenhum sinal de que
aquela discussão possa vir de lá. As luzes estão todas apagadas, as janelas
sequer estão abertas para que a voz deles esteja tão audível.
Então é quando viro a cabeça para a esquerda, especificamente
para a casa cor de avelã com uma varanda espaçosa e aparentemente
confortável à frente da minha casa, que noto a luz amarelada vindo
diretamente do que parece ser um quarto. A casa é bonita e muito bem
decorada, mas o que me chama a atenção, é notar a mulher alta de cabelos
longos e loiros que se encontra de pé, de frente para a janela da varanda
com a mão repousada contra a sua barriga grande. Grande demais.
Ela olha fixamente para algum ponto específico dentro do quarto,
ou para alguém. Seus olhos parecem assustados, ou apavorados... Eu não
consigo definir muito bem, por conta da chuva e da distância.
— Você disse que era uma menina! — A voz grossa do homem soa
agressiva. — Você tem noção do quão fodido eu estou?
Mesmo em toda aquela distância, ainda consigo vê-la acariciar a
sua barriga enquanto a sua outra mão é erguida até a sua boca, onde ela a
tapa ao conter o que parece ser um choro quase engasgado e sufocante.
— Você está fodido porque não pode usar os meus filhos para
sustentar a sua bunda por mais alguns anos? — Ela engasga. — Que bom
que é um menino, então!
É quando ela fecha a boca, que sinto meus pés escorregarem contra
o telhado quando assisto a mão grande e áspera bater com força contra o
rosto da mulher, fazendo-a cambalear para trás e tropeçar nos próprios
pés, no entanto, consegue se equilibrar o suficiente para não ir de encontro
ao chão.
Eu engulo em seco, a saliva desce como uma faca afiada, rasgando
a minha garganta ao testemunhar tamanha crueldade.
Ela faz uma careta, como se estivesse sentindo uma dor
insuportável enquanto não deixa de proteger a sua barriga com a ajuda de
seus braços. É como se ela não se importasse com o que acontece a ela,
desde que ele não toque em sua barriga.
Franzo o cenho, sentindo o meu coração acelerar enquanto assisto
a cena perturbadora com toda a atenção que não deveria. Ele está
agredindo uma mulher? Isso não é considerado um crime?
Ele está...
Meu Deus.
Ele a agrediu.
— Você entrou na minha casa para me foder, você veio até mim
para me prejudicar, sua puta! E vá por mim, você só está viva porque eu
quero que esteja. — O homem se aproxima, e é quando ele se coloca à sua
frente, que eu o vejo sussurrar algo baixo o suficiente para que eu não
possa ouvir.
Ele passa a mão em seus cabelos grisalhos, e quando inclina a
cabeça o suficiente para que eu o veja, reconheço-o de imediato. O
smoking casual que ele possui em seu corpo não é muito diferente daqueles
que o meu pai usa em seu dia a dia para negociar com os seus amigos, mas
aquele em específico, aquele homem... Eu já o vi antes.
Há algumas semanas.
Ele estava conversando sobre a sua mulher estar esperando um
filho...
E que esperava que fosse uma menina.
É ela...
Pisco algumas vezes, apoiando ambas as mãos nas telhas
escorregadias para equilibrar o meu corpo. Meu coração bate
descompassado contra o meu peito, nunca tinha visto uma cena tão
apavorante.
— Se depender de mim, os meus filhos nunca vão ser responsáveis
por encher o seu bolso. Nem que eu morra para evitar... — A mulher chora
desesperada, ela parece em um estado irreversível de tristeza profunda.
À sua frente, o homem endireita a sua postura e alisa o seu smoking,
resvalando a mão contra o tecido enquanto uma risada rouca lhe escapa.
Ele não parece minimamente abalado com o que acabara de fazer à uma
mulher.
Que tipo de pessoa ele é?
— Um deles já me dá muita grana, querida. São estas as vantagens
de traçar um futuro antes que aconteça. — Ele responde. — E você vai ficar
de bico bem fechado e guardar o meu segredinho como a boa menina que o
seu pai te criou para ser, porque se não... Você sabe o que acontece.
E então ele dá as costas para ela.
E se vai.
A deixa ali, sozinha, chorando como uma mulher desesperada. Sua
barriga é grande, seus soluços são ouvidos com tanta facilidade que sequer
havia notado que a chuva diminuiu. Ela está grávida, e mesmo que eu
queira entender como isso funciona... Está longe do meu entendimento.
Mas tudo está tão confuso.
Porque eu não sei qual é o envolvimento do meu pai com aquele
homem, não sei por que aquela mulher aceita ser tratada daquela maneira
e por que o meu pai se envolve com caras desse tipo. Não sei de nada.
E eu quero saber. Porque se souber, entenderei mais da vida que ele
tenta manter escondida de mim. Das coisas que ele tenta ocultar, e talvez eu
seja finalmente reconhecido como uma pessoa normal, e não como um
monstro.
Eu não sou um.
Embora eu esteja com medo e o meu coração disparado em uma
proporção imensa, meu corpo parece congelado contra aquelas telhas,
assim como as minhas mãos. Apesar de querer fugir e me esconder, eu fico.
Fico aqui encarando aquela mulher frustrada e acabada, chorando em
desespero enquanto seus olhos se fixam no teto. Ela parece estar pedindo
por algum socorro divino, como se estivesse realmente acreditando que
Deus enviaria alguém para livrá-la, ou protegê-la.
Engulo em seco com o incômodo de assistir toda a cena.
Quero sair e me enfiar no quarto, fingir que nunca vi aquilo ou que
nada aconteceu. Talvez a minha punição seja menor.
Apesar de querer muito ser útil.
Mas quando vejo o suspiro sair de sua boca e a sua cabeça girar,
seus olhos buscando algum ponto como se ela sentisse que está sendo
observada, soube que seria descoberto e que provavelmente, essa noite
mudaria toda a minha vida, para sempre.
Tic, Tac...
Respiro fundo.
Tic, Tac...
Pisco os olhos e uno as sobrancelhas até que se tornem apenas uma.
Tic, Tac...
O fogo enche a sala. As chamas parecem fatais.
Cambaleio para trás, tropeçando em meus próprios pés enquanto
minha cabeça tenta compreender o que acabo de ouvir. Não é real. Não
pode ser real.
— Meu Deus... — Sopro, finalmente conectando o meu olhar ao
dele sem acreditar que mais uma vez, eu havia permitido que ele me
tocasse. Que arrancasse mais do que sobrou de minha sanidade.
Sinto os olhos dele examinando cada um dos meus movimentos, ele
me encara com o mesmo olhar dominador e possessivo de sempre. Como se
eu o pertencesse. Como se pudesse fazer exatamente tudo o que quisesse
comigo.
Jason Turner está bem aqui, em toda a sua postura habitual, em todo
o seu poder interno e externo, à frente das chamas alarmantes que crescem
às suas costas. Ele parece intocável. Parece a porra de um rei.
— O tempo passa e você continua com essa ideia maluca de que
sempre pode me manipular... — Estou mais decepcionada comigo do que
com ele, já que sou eu quem sempre reajo aos seus encantos. — E eu
sempre caio como uma burra!
Levanto os braços, usando-os para tapar o meu rosto enquanto sinto
as lágrimas escorrendo como se fossem sangue dos meus olhos. Dói
respirar e dói saber que mesmo que Jason sempre voltasse a me manipular,
eu cairia. De novo e de novo. Em um looping. Porque mesmo que ele me
fira e me destrua como um ferimento mortal, eu ainda estarei aqui sentindo
coisas por ele. Respirando por ele.
Meu corpo começa a esquentar, meu rosto queima em brasa viva, o
suor já escorre por minhas têmporas devido ao ambiente caótico e
incendiado em que nos encontramos.
— Não dessa vez, Jason! — Minha garganta dói ao forçá-la ao falar.
Arde. — Não posso acreditar em você. Não irei! Você passa anos mentindo
pra mim e pensa que é só negar que eu vou acreditar em você, mas não
adianta. Eu vi! Vi todas as fotos!
O choro entalado na minha garganta é tão fatal e devastador, que eu
poderia libertá-lo e toda uma Nação ouviria os meus soluços. Tamanha é a
dor e o sofrimento, é demais para mim.
— Olhe para mim. — Ele ordena.
Nego.
— Você é doente! Um lunático! — Engasgo um soluço.
— Olhe para mim. — Sua voz é rígida e autoritária.
Ele não pode acreditar que o seu plano de fingir que eu não o odeio
e que nada aconteceu, iria mesmo funcionar. Essa é a primeira vez que ele
me diz alguma coisa ou me contraria, porque em todas as vezes em que lhe
implorei por alguma verdade, ele não o fez. Ele se calou. Omitiu, negou a
verdade. Como ele pode pensar que desta vez eu acreditaria em uma única
palavra?
Não, porra, eu não vou cair em toda a sua manipulação outra vez.
Lembro-me de ter criado milhares de cenários que iriam contra tudo
que eu vi naquelas fotografias, quando estava sendo mantida naquele
quarto. Eu realmente pensei que ele poderia ter uma explicação que
mudaria tudo, que faria com que o meu peito não explodisse e a minha alma
se perdesse em algum lugar, exatamente como aconteceu.
Mas não.
Não aconteceu nada disso.
— Estou mandando você olhar para mim, Baker.
Solto um riso tão sarcástico que realmente parece que eu estou
vendo alguma graça em toda aquela palhaçada. Eu não sinto a força das
minhas pernas, tampouco me importo com as chamas intensa que rodeiam o
nosso corpo nessa sala quadricular.
— Quem você acha que é? — Abano os braços, finalmente
erguendo o meu olhar e conectando-o ao seu. — Você se acha poderoso?
Noto o seu pomo-de-adão mover-se em sua garganta em uma
velocidade lenta, a saliva parece descer dolorosamente. Seu maxilar se
contrai, entretanto, seus olhos não abandonam os meus.
Jason sequer se importa com todo aquele fogo que está à um fio de
atingi-lo e fazê-lo queimar.
A sala se parece com o inferno. Nós somos os protagonistas de toda
a devassidão de sua aparência.
— Você acha que eu acredito no que você diz?! — Um sorriso
melancólico cresce na minha boca em meio às lágrimas. Seu olhar é
tempestuoso e sombrio, é como me jogar em um buraco negro. — Eu estou
cansada! Toda vez que você vem, eu deixo você entrar, deixo você partir o
meu coração todas as malditas vezes! Deixo você se enfiar dentro de mim,
deixo você me tocar e me sujar mais do que qualquer outro homem
conseguiria! Por que você faz isso? Me responda, apenas me responda.
— Olhe nos meus olhos e você saberá se eu estou mentindo. — Sua
voz é rouca e extremamente rígida.
— Eu estou olhando! — Grito, impaciente. — E ainda assim não
consigo acreditar em uma única palavra que você diz.
— Olhe para mim, Baker! — O suor escorre por seu rosto, também.
Que merda ele quer que eu faça?
Estou olhando para ele, sequer posso enxergar as suas pupilas
devido a imensidão negra que ocupam os seus olhos e fazem dele ainda
mais sombrio e misterioso. Perigoso e tempestuoso. Entretanto, eu não vejo
nada. Não há nada para ver.
— Eu estou...
— Você está olhando para o Jason, olhe para mim! O meu eu,
aquele que você conheceu. Olhe para quem verdadeiramente amou você e
diga se parece que eu estou mentindo, mas diga com sinceridade e
convicção.
Eu sempre o enxerguei. Sempre vi além do que ele permitia que
outras pessoas enxergassem sobre si. Costumava compreender todos os seus
olhares vagos, todas as encaradas possessivas e a forma como ele contraía a
mandíbula quando estava em uma situação desconfortável, ou nervoso. Ou
então quando ele sentia a necessidade de me tocar sempre que precisava me
sentir para que eu entendesse por seu toque, mais do que ele expressava por
palavras.
Seu olhar nunca foi difícil de desvendar. Jason nunca foi um
mistério para mim.
É exatamente por isso que eu evito olhar diretamente para o seu
interior e a sua vasta imensidão, porque mesmo que o meu sangue borbulhe
de raiva e meu coração doa por ser tamanha a dor da traição, eu tenho
medo. Medo de deixá-lo me convencer de que realmente não o havia feito,
porque grande são as chances de eu acreditar em suas palavras.
Por mais que eu queira estar livre de seus encantos e do imenso
poder que ele tem sobre mim, não adianta ir contra a força da natureza. Ela
sempre vence.
A ilusão é mais libertadora do que a verdade, e eu não quero sentir
mais dor. Estou tão exausta...
Fecho os olhos com força quando as lágrimas se acumulam na
minha linha d'água e pela força que eu os pressiono, despencam por meu
rosto e acumulam-se em meu queixo.
E que são enxugadas pelos dedos de Jason Turner, que agora
acariciam a minha pele com todo o cuidado, como se, se não o fizesse, meu
corpo fosse virar cinzas.
— Abra os seus olhos e olhe para mim — Ele pede, é uma súplica
tão honesta que não resisto.
E eu faço.
Tudo porque uma parte minha, bem lá no fundo, submerso e
escondido entre as minhas entranhas e mais profundos sentimentos, quer
acreditar no que ele diz. A Sofia que eu enterrei está louca para dar as caras
novamente e foder com tudo o que tenho reconstruído graças à sua
ingenuidade.
— O que você quer que eu enxergue? — Meu olhar busca o seu, um
soluço sobe pela minha garganta e escapa por entre os lábios entreabertos.
— Não há nada para ver em você. Não há verdade alguma.
Eu realmente quero me convencer.
— Eu menti para você. — Diz com convicção. — Eu não sou um
monstro perverso, Baker, eu não matei a sua mãe e não acho que deveria ter
levado isso tão adiante.
Alterno o olhar entre as suas orbes, tentando, veemente, encontrar
algum resquício de brincadeira que poderia vir de sua parte. Qualquer coisa
que responda os meus diversos questionamentos. Por que Jason faz isso
comigo? Por que é tão divertido brincar com o meu coração e com os
resquícios do que restou da minha alma?
As prateleiras de madeira presas rente à parede despencam contra o
chão devido à força do fogo que as queima, mas nós sequer demos alguma
atenção para o caos ao nosso redor. Nós somos o verdadeiro caos.
— Eu não vejo verdade alguma em você, caramba! — Esbravejo,
tremendo contra o seu toque. — Não vejo nada além de manipulação,
omissão e mais mentiras, porque foi a única coisa que você me ofereceu
desde que me conheceu.
Jason parece durão e insensível na maioria das vezes, mas nesse
segundo, seu olhar transmite o mais puro e límpido arrependimento. Ele
parece estar destruído.
Eu fervo em agonia e tensão. Quero chorar. Quero matá-lo. Quero
arrancar a verdade ou acreditar em suas palavras. Quero todas as coisas.
Sou um misto de emoções.
— Eu te ofereci mais do que isso. Você sabe que sim. — Ele rebate
com rigidez e sem hesitar.
— Você me ofereceu o quê? — Quase rio, mas a mágoa está presa
em minha garganta. Sabia que não iria durar muito até que eu extravasasse.
— Nem o seu coração me foi oferecido, porque você sequer tem um.
Ele inspira fortemente.
— Eu tenho um coração, você o tem em suas mãos. — Minha boca
seca. — E a cada maldita vez que me obriga a carregar a culpa, você
esmaga cada parte dele.
Suspiro.
— Você esmagou o meu primeiro.
— Eu cuidei de você.
— Você me arruinou!
— Eu te amei!
Meu rosto ferve.
— Você me destruiu!
— E ainda estou tentando recolher os pedaços e reconstruir você,
porra.
O soluço escapa forte e intensamente, fazendo as lágrimas
fervorosas escorrerem pela pele do meu rosto e trilharem um caminho
eterno e flamejante até o meu queixo. Deus, isso dói. Está doendo muito.
— Pare de mentir para mim, Jason... — Cambaleio para trás,
sentindo o chão desaparecer conforme realmente cogito a possibilidade de
ser uma verdade. — Tanto faz! Só pare! Pare, porque está doendo muito!
Tropeço em meus próprios pés, minhas lágrimas já não podem ser
controladas e os meus instintos desaparecem por completo, fazendo-me
desequilibrar-me e despencar em direção ao chão. Perco completamente as
forças, não sei no que acreditar, e se algum dia, alguém já foi sincero
comigo.
No entanto, antes que eu possa sentir o meu corpo despencar contra
o chão duro, sinto as mãos grandes de Jason rodearem a minha cintura,
puxando-me para si. Ele segura o meu corpo com facilidade, sua respiração
pesada é enviada em contato com o meu pescoço.
Tento empurrá-lo, chuto as suas pernas como posso e me rendo ao
choro desesperado.
Meu mundo está despencando. E Jason me segura como se eu fosse
o seu. Como se ele estivesse tentando evitar que tudo desmoronasse.
— Me larga!
E ele o faz.
Sabe que eu faria o possível para afastá-lo de mim e sabe que
preciso de um minuto. De tempo para compreender tudo o que está
acontecendo...
Mas ele só o faz quando me arrasta para fora daquela sala e fecha a
porta, deixando que tudo vire cinzas do lado de dentro. Tudo que eu faço é
encostar contra a parede e chorar. Choro forte. De soluçar. O choro mais
sincero e doloroso que já havia escapado de mim em todos estes anos.
— Sua mãe foi enviada para a cidade à procura de pistas. — Jason
diz enquanto encosto a minha cabeça contra a parede e fecho os olhos.
Arrasto os pés no chão, trazendo os meus joelhos para mim e
encolhendo o corpo.
— Cale a boca! Eu não acredito em você! — Não posso acreditar.
Não irei.
— Quieta. Escute. — Autoritário, ele ajoelha-se à minha frente para
estar à minha altura. — A sua mãe trabalhava para a Revolução. Ela
recolhia pistas e levava à matriz, era especialista no que fazia e o líder
confiava nela. Ele sabia que ela faria um bom trabalho, não importando o
que custasse.
Fecho os olhos enquanto suspiros são soltos pelos meus pulmões.
Estou com dificuldade para respirar, tudo dói e tudo é fatal.
— Por que caralhos eu confiaria em você? — Sugo o nariz. — Por
que eu acreditaria nas palavras de quem testemunhou a morte dela? De
quem esteve perante o seu corpo?!
Eu o vi. Ele estava lá.
Perante o corpo de quem verdadeiramente poderia renascer a
vontade de viver que há tanto tempo não existe dentro de mim. A única que
verdadeiramente me amou. Jason estava com a porra de uma arma na mão,
ele esteve sujo com o sangue dela. Ele a carregou para a droga do seu carro
e sabe Deus onde ele a colocou. Onde ele a enterrou. Ela sequer teve um
funeral!
— Porque eu estou falando a verdade. A Revolução tem inimigos
perigosos por todo o mundo, e Eleanor era um alvo fácil.
As lágrimas fizeram cócegas em meu rosto.
— Por que ela seria um alvo fácil?
Ele fica em silêncio por alguns segundos.
Sua respiração é pesada.
As lágrimas não param de jorrar de meus olhos, meu peito dói em
uma intensidade maior do que algum dia já pude sentir.
— Porque ela era a herdeira. — Responde. — Herdeira de toda A
Revolução. Herdeira da maior empresa da França. Herdeira da maior
ameaça para todas as redes de tráfico de mulheres em todo o mundo,
incluindo a Luxury.
Meu peito infla.
Minha garganta seca.
Eu não sei de onde tiro tamanha força, mas com tamanha habilidade
e rapidez, me desvencilho dos braços fortes e grandes de Jason e ergo a
cabeça. Preciso olhar para os seus olhos, preciso ter certeza do que acabo de
ouvir.
— O quê?
Jason recua um passo.
Ele me analisa por completo, seus olhos percorrem cada mínimo
canto do meu rosto, inclusive a lágrima solitária, pesada e dolorosa que
escorre do meu olho direito e desce com toda a lentidão. Esse é o tipo de
lágrima mais doloroso. O mais fatal.
— Sua mãe não era sozinha no mundo, Baker. Ela tinha família,
especificamente um pai que lidera todas as unidades da academia. — Não.
Não. Não. — A sua mãe era uma assassina. Uma espiã e uma profissional
no que fazia. Não era uma mulher metida a camponesa, como você pensou.
Expiro com raiva, secando o meu rosto com o dorso da minha mão.
Encaro-o com sangue no olhar, meu corpo está incendiando, meu cérebro já
está frito, e eu nunca me senti tão zangada. E triste. E irritada. E enganada.
E destruída.
— Você está mentindo! — Rosno. — A minha mãe era uma boa
mulher e sozinha neste mundo! Nós éramos a única família dela, nós
éramos tudo que ela tinha!
— Não estou contradizendo você.
O fogo combina comigo agora. Eu estou queimando.
— Você só diz mentiras! — Espalmo as mãos em seu peitoral duro
como uma rocha, porém, ele sequer sai do lugar. — Mentiras, mentiras e
mais mentiras! — Continuo empurrando-o.
— Eleanor foi morta como parte de um acordo, Baker. Pessoas
como Marcus Floyd e Sebastian Hazel, não sentem piedade, não sentem
remorso e não hesitam. Você foi gerada com um único intuito: ter a sua
herança roubada e o império conquistado, então, eventualmente, eles não
teriam a quem temer.
Tudo parece vermelho. Tudo é sangue. Caos. Rompimento e
destroços.
Ouço o restante do que sobrou do meu coração partindo-se dentro de
mim. Ouço as rachaduras. Os pedaços partindo-se.
— Você. Está. Mentindo! — Grito, berrando como uma louca
esgotada. Como uma mulher destruída.
Ele intensifica o nosso olhar, não se mostra minimamente abalado.
— Eu não estava lá para matá-la, estava lá para salvá-la. — Por fim,
ele sana a minha dúvida. — E você precisa saber que é um alvo agora,
Baker, porque você é a primogênita da primogênita. Você é a próxima
herdeira quando for a única sobrevivente da família.
Estreito o olhar, minha cabeça está confusa e as lágrimas que
despencam sem autorização, não permitem que eu compreenda as coisas
com clareza. Eu cheguei ao limite.
— E você precisa saber, desta vez, eu não vou hesitar. — Ele diz
áspero. — Não vou parar para pensar na quantidade de vidas que eu vou
tirar para conseguir manter você segura. Não me importo com nenhuma
delas. Porque é isso que eu sou. Egoísta e sádico. Nada, nem ninguém, vai
tirar você de mim outra vez. E eu estou disposto a explodir o mundo para te
provar isso.
Doí.
Dói como o inferno. Dói como se alguém tivesse perfurado o meu
peito com a força de sua mão e arrancado o meu coração para fora. Dói
como se tivessem o pisoteado e o atirado para que os lobos se alimentassem
do meu sofrimento. Dói como se eu a tivesse perdido de novo, outra vez e
outra vez, como um looping.
Não tem fim.
Quando um grito engasgado escapa de minha garganta como forma
de libertar o caos que corrompe o meu interior e faz os meus órgãos
explodirem junto a todo aquele choro desesperado, ouço o som da lâmpada
da sala explodir e os cacos de vidro caírem sobre o chão. O ruído do fogo
espalhando-se é mais alto, a fumaça tóxica vaza por baixo da porta.
— Não pode ser real... — Suspiro, meus olhos doem muito
enquanto as lágrimas não param de jorrar. É uma dor fatal.
Estremeço o meu corpo quando sinto a dor profunda do luto. Como
se eu finalmente estivesse enterrando tudo o que sobrou da minha essência.
Conforme o encaro com os olhos minimamente abertos, sinto-me
destruída, como se não houvesse outra saída além do fim. Eu quero que
todo aquele caos me domine, quero ser levada para algum lugar onde há
paz. Quero me tornar cinzas, talvez assim, a dor não possa me alcançar.
— Baker, olhe para mim. — Jason ergue o meu queixo com
brutalidade, sua voz é abafada. Tudo que posso ouvir é o som das chamas
aproximando-se de nós na velocidade da luz e das batidas lentas, quase
inexistentes, do meu pobre coração. — OLHE PARA MIM!
Soluço.
Tento respirar fundo, mas tudo que eu posso inalar é a fumaça tóxica
de toda aquela porcaria queimada. Meu pulmão tem dificuldades para
extrair oxigênio.
Meus olhos seguem os seus em uma completa lentidão, porque tudo
que consigo fazer é desejar o meu fim e chorar. E cair. E desmoronar.
Jason abre e fecha a boca, ele parece estar falando alguma coisa,
mas não o ouço. Não posso ouvir.
Houve uma época onde eu iria confiar fielmente em suas palavras,
mesmo que estivessem longe de qualquer realidade. Eu faria isso porque o
amava, porque por mais absurda que fossem as suas suposições, eu confiava
que Jason jamais mentiria para mim. Ele jamais diria qualquer coisa com o
intuito de me machucar. De acabar comigo.
Mas tudo mudou.
Hoje as coisas são diferentes. Eu sei do que ele é capaz e sei que é
horrendo e impiedoso e insensível, sei que ele seria capaz de matar pessoas
por motivos fúteis que jamais seriam levados em conta.
Mas eu também sei que minha vida sempre será uma caixinha de
surpresas, sejam elas boas, ou ruins. Sei que a minha mãe guardava
segredos, sei que ela mantinha diversas coisas para si mesma só para que
nós estivéssemos à salvo. Josh e eu.
Ela não parecia uma assassina.
Ela sequer parecia ter noção de como segurar uma arma, imagina
usá-la para matar pessoas?
Eu me recuso a acreditar nisso, me recuso acreditar que a minha
mãe, aquela mulher sorridente e gentil, doce e carinhosa, fazia parte de todo
esse caos que arruinou a nossa vida. Me recuso a acreditar que nós podemos
ter algum vínculo familiar e que, em todos esses anos, eu me enfiei em
bares e em lixões, e em lugares duvidosos e em casas abandonadas para
sobreviver quando sequer estava sozinha na vida.
Que porra de familiares permitiriam que alguém passasse por tais
provações?
Que tipo de pessoa olharia nos meus olhos e diria com todas as
letras que gostaria de me arruinar, quando sempre tenta impedir que eu seja
destruída?
Um soluço rasga a minha garganta junto a um gemido de dor.
As muralhas estão caindo.
Eu estou caindo.
— Você pediu pela verdade, por que não consegue suportá-la? —
Ele acaricia o meu queixo, erguendo-o para encará-lo.
Abro os olhos com lentidão.
Porque a verdade dói.
Olho para Jason em meio às lágrimas e aos soluços, observo a
imensidão de seus olhos e quero me jogar no abismo que possui. Quero
fazê-lo cair por ter sido tão cruel, por ter destruído a minha vida, por mentir,
por me matar por dentro.
Em minha mente, lembranças do sorriso de minha mãe vibram no
meu interior. As imagens quase apagadas de seus olhos tão azuis quanto o
oceano, o doce som de sua voz, as figuras de sua imagem cuidando de
Josh... Não há como ser verdade. Ela era pura e gentil, jamais faria parte
dessa bagunça...
Ela teria me dito. Nós éramos próximas.
Ela teria me dito alguma coisa...
— Porque não pode ser verdade. — Sopro, exausta.
Eu tirarei esta história a limpo. Farei o que puder para desmentir
todas as porcarias que saíram pela boca do homem que partiu o meu
coração e o arruinarei, assim como ele fez comigo.
Há alguém que não mentiria para mim.
Levanto-me do chão com dificuldade, arrastando os pés no chão ao
erguer o meu corpo. Empurro Jason para longe enquanto corro entre os
corredores com rapidez, olhando para todos os lados à procura de Lexie.
Meus pés vacilam, minhas pernas não sentem a mínima vontade de
obedecer aos comandos, entretanto, mesmo em meio a tanta fraqueza e
hesitação, continuo a correr pelos corredores. Meu pescoço soa e minhas
mãos tremem. Nada disso vai passar enquanto eu não ouvir da boca dela.
Da única que não pode mentir para mim.
Nós éramos sozinhos. Não tenho família. Não há chances de ser
verdade.
Porque família não abandona família. A família teria evitado que eu
fosse quebrada...
Ouço o som da voz de Jason chamando por mim. Ouço o seu
suspiro e o seu xingamento, mas não me viro. Não me dou ao trabalho de
olhar para trás para verificar se ele está me seguindo, porque não é
necessário. Jason sempre me seguiria.
— Lexie! — Chamo por ela, arrastando os dedos pelas paredes.
A fumaça que vem da sala em que Jason ateou fogo já circula por
todos os cômodos da cabana. O cheiro de papel queimado e de madeira
velha adentra os meus pulmões e me faz ter dificuldade para respirar.
— Lexie! — A minha voz treme, meu coração martela contra o meu
peito.
O som de uma porta se abrindo é o que envia um fio de esperança
para o meu peito.
— Aspen? — Ouço a sua voz carregada de preocupação. — O que
está acontecendo? Onde você está?
Cesso o passo, olhando ao meu redor enquanto os meus olhos ardem
pela fumaça que os abraça.
— Lexie... — Minha voz mal sai. Tudo em mim dói. — Lexie, eu
preciso de você.
As paredes são escuras, adornadas por papéis de parede que já dão
sinais de que derreterão em breve. Continuo correndo pelos corredores até
sentir que se trata de onde ecoou a sua voz.
— Estou aqui! — Ela grita.
Viro a cabeça para a direita, virando o corredor e encontrando a sua
figura recostada a uma das portas que devem levar a algum tipo de quarto.
Ela vasculha o lugar com os olhos, parecendo procurar por algo. Mas
quando fecha a porta e seus olhos encontram os meus, Lexie larga tudo o
que está fazendo e vem ao meu encontro.
Quando as suas mãos me tocam, eu me jogo em seus braços.
— Ei, o que foi? — Lexie massageia o meu couro cabeludo
enquanto mais soluços escapam da minha garganta.
Balanço a cabeça.
— Lexie, por favor... — Levanto a cabeça. — Preciso que você seja
sincera comigo.
Seus olhos me analisam por completo antes de desviarem até algum
ponto atrás de mim e congelarem por alguns segundos. Ela engole em seco,
e não é preciso ser um gênio para saber que ele está bem atrás de nós.
Ela fica em silêncio, talvez por já ter uma ideia sobre o que se trata a
minha petição.
— Foi Jason quem a matou? — Pergunto. — Foi ele quem a
assassinou, Lexie?
Observo os seus olhos escuros analisarem os meus, ela parece
minimamente tentada a mentir para mim. Mas quando eu a vejo olhar para
ele de novo, sei que não haverá outra resposta.
— Ele nunca faria isso. — Suspira.
Expiro com força.
— A minha mãe...
— Ela foi assassinada por pessoas que realmente são os seus
inimigos, As. — Ela me interrompe com gentileza. — Pessoas estas que
estão procurando por você neste exato momento, porque você é...
Balanço a cabeça.
— Não me venha com essa história de que eu sou herdeira! —
Exclamo, irritada. — A minha mãe está morta e o meu pai nunca deixaria
nada além de completo sofrimento para mim, ele me desprezava!
— Não estou falando do seu pai. — Lexie diz. — E sim do seu avô.
Reúno as sobrancelhas.
— Meu avô? — Um riso amargo me escapa. — Para com isso,
Lexie, para de brincadeira. Eu não tenho família!
— As...
Sou rápida em interrompê-la quando a minha mão se levanta e com
o ódio que eu tenho acumulado em meu interior, golpeio o seu rosto.
O seu rosto é jogado para o lado com tamanha intensidade do golpe,
Lexie leva uma das mãos com rapidez até o local atingido para acariciá-lo.
Seus olhos se fecham e um arquejo lhe escapa por tamanha surpresa.
Não me dou ao trabalho de me importar. Ninguém aqui se importa
comigo, então por que eu deveria?
— Vá se foder — Sou rude no xingamento. — Você é como ele.
Mentirosa, ardilosa e cruel, Lexie, porque em todas as vezes em que eu te
pedia por uma resposta, você a negava para mim. Você me machucou
também. Eu te odeio por isso e odeio ter confiado em você por cada
segundo da minha vida! — Grito.
Não lhe dou oportunidade de resposta.
Viro o meu corpo para trás, olhando diretamente para o par de olhos
obscuros que falta me engolir de volta. Não há problemas, o sentimento é
totalmente recíproco, eu o desprezo ainda mais.
Por todas as mentiras.
— Eu vou atrás da verdade. Vou procurar todos os meios de saber se
o que você me disse é verdade, Jason, e quando eu descobrir, você vai se
arrepender por ter entrado na droga do meu caminho e ter feito com que eu
me apaixonasse pela pessoa desprezível que você é. — A lágrima que
escorre é suja. Cruel. Faz de mim um monstro insensível. — Se você
pensou que abrir a boca faria com que eu te odiasse menos, você está
enganado. Eu te odeio mais do que se tivesse mantido a porra da boca
trancada a sete chaves!
Então eu me viro.
Seco aquelas infinitas lágrimas que escorrem do meu rosto com o
dorso da minha mão e saio pela única porta que daria para o lado de fora da
cabana.
Os deixo ali parados, refletindo sobre a grande merda que fizeram
em minha vida. A grande destruição que tinham feito com a garota pura que
eu costumava ser antes de conhecê-los. Os deixo observar a minha retirada,
porque a próxima vez que eu retornar, será para destruir eles.
Por matar a minha mãe.
Por matar a minha sanidade.
Por matar o meu coração.
Por matar a mim.
É uma vingança particular, porque mesmo que me esforce para me
esquecer de todas as vezes que abracei o culpado da minha ruína, quando
lembro, eu morro mais um pouco por dentro. Todas as vezes que me lembro
de como beijá-lo trazia esperança e felicidade para o meu coração, é como
esfaquear o meu peito. Todas as vezes que me lembro de como confiei a
minha alegria a ele, é como ter a certeza de que ele nunca será capaz de
realmente cumprir com as expectativas, porque ele é o oposto disso. Jason é
o caos, a destruição, a desolação e a desesperança.
Ele acabou de matar o que havia restado do meu coração. Agora eu
sou como ele, um completo caos.
E não há como voltar atrás.
Só paro de andar quando chego até a floresta e caio contra a neve,
de joelhos, suplicando por ar. Suplicando por força e por coragem.
Ergo a cabeça e encaro o céu estrelado com dificuldade devido às
lágrimas.
Lembro-me de quando eu ia para a janela do quarto de Jason olhar
para as estrelas e conversar com a minha mãe. Ela era brilhante e iluminada,
assim como uma estrela. Sei que ela estava me olhando naquele tempo, e
sei que está me olhando agora.
Sei que ela tem os seus olhos em mim e sei que não vai me
decepcionar e me destroçar assim como todos aqueles que se aproximam.
O choro vem com força. O grito também. A súplica por um socorro
divino, por qualquer coisa que possa fazer de tudo isso um completo
pesadelo.
Nada vem, no entanto. Nada me socorre, nada me ajuda a preencher
esse buraco imenso dentro do meu peito.
Nada consegue me salvar desse completo pesadelo.
A minha mente está confusa. Eu não sei no que acreditar porque,
mesmo que eu não confie em uma palavra do que Jason havia dito, não
posso apagar a possibilidade de ser real. Isso significaria que eu o odiei por
motivos inexistentes, significaria que eu odiei a pessoa errada por três
malditos anos. Significaria que ele mentiu para mim simplesmente porque
achava engraçado a forma como eu me apegava a ele mesmo existindo uma
chance dele ter tirado de mim, a única pessoa que verdadeiramente me
amou.
Me sinto patética e manipulada. E enganada. Destruída.
Não me abala a possibilidade da minha mãe ter sido uma espiã. Ela
era esperta e confiante, apesar de sempre parecer abrir mão de suas garras
quando Sebastian aproximava-se de Josh e eu. Ela sempre nos protegia, isto
estava acima de tudo. Sei que tudo o que ela fez teve uma razão, porém, eu
realmente acreditei que seria incluída em sua história. Em sua vida.
Tudo em mim está desconstruído. As paredes caíram e mais uma
vez, eu não tenho nada.
— Sabe, eu realmente pensei que ele demoraria mais algum tempo
para te dizer a verdade — Uma voz ecoa ao meu lado, o ruído vindo junto a
ventania. — Mas a julgar pelo seu choro insuportável, temo que ele foi mais
rápido do que eu pensei.
Levanto a cabeça com dificuldade, meus olhos ardem e minhas
pálpebras parecem pesar toneladas.
Essa voz...
Eu a conheço.
Meus joelhos tremem e levo ambas as mãos para o chão coberto de
neve, sentindo a frieza entrar em contato com a minha pele de imediato.
— Chegou a hora de acertarmos as contas, menina insolente.
Sequer tenho tempo para processar o que está acontecendo ou erguer
o meu corpo, porque minha boca imediatamente é tapada com o que parece
ser um pano. Não está seco. Nele há algum produto amargo e
desconcertante, minhas narinas ardem e meus olhos não conseguem manter-
se abertos.
Minha visão escurece.
Então eu sei que minha fraqueza é a minha maior inimiga. Ela é a
minha ruína. As pessoas que a causam, também.
Porque são todos eles que destroem quem eu deveria ter sido.
O som do que parece ser madeiras sendo atiradas contra o chão faz-
me abrir os olhos. Minha cabeça dói muito, meus músculos estão doloridos
e pesados, como se eu tivesse ingerido milhares de relaxantes musculares.
Eu não me movo, tudo ainda está completamente embaçado para
mim. Meus olhos não funcionam corretamente.
Tudo dói.
— Bu! — Ele ri ao ver o espasmo que causa em meu corpo pelo
susto.
Um par de sapatos escuros são postos em meu campo de visão, só
então percebo que a minha cabeça está baixa. E a minha bunda sentada em
uma cadeira desconfortável para caramba.
Com dificuldade, eu levanto a cabeça.
Um baita de um erro do cacete, porque quando olho para os olhos
escuros, quero enrolar as minhas mãos em seu pescoço e matá-lo asfixiado.
Talvez até fosse pouco quanto ao que ele realmente merece.
— Filho da... — Fungo, completamente extasiada pela fúria que me
corrói.
Ele sorri ardiloso, suas rugas abaixo do nariz curvam-se pela largura
de seus lábios.
— Puta...? — Ele completa. — A pirralha agora xinga?
Então as lembranças retornam com força.
Minha mente clareia como a porra de um flash intenso. Com ela,
vem todas as lembranças do que aconteceu dentro daquela droga de cabana,
e tudo após a minha saída.
Até ser apagada pela porra do maior dos cuzões.
— Eu vou matar você — Salivo, usando toda a minha força para
cuspir diretamente na sua cara. — Xingar é a única mudança que você não
deveria se preocupar agora, seu cuzão.
Balanço o meu corpo e cerro os dentes quando sinto as minhas mãos
livres ao lado do meu corpo.
Arqueio a sobrancelha.
Que tipo de piada é essa?
— Para que tanto alarde? — Sua voz grave ecoa. — Você não está
presa, então vamos... Me mate.
Meu corpo não responde com sabedoria àquela afronta, tudo ainda
está mole e enfraquecido. Eu quero partir para cima dele e acabar com toda
essa confiança que tem para me deixar solta quando tudo que eu quero é
matá-lo. Quão corajoso ele é?
A julgar pelo sorriso completamente amargo e convencido que
cresce em seu rosto, percebo que ele sabe exatamente que eu não farei nada.
— Foi o que eu pensei. — Sebastian Hazel Clarke levanta-se do
chão enquanto usa uma flanela para secar o seu rosto.
Eu nunca senti tamanha raiva e repulsa em toda a minha vida. Estar
cara a cara com Sebastian é como estar de frente para o diabo. Um passo
em falso e ele poderia me destruir, mas tudo que não sabe é que eu já estou
destruída. Não há o que roubar de mim, porque ele tirou tudo.
— Que merda você usou em mim? — Pergunto, sentindo-me
enfraquecida.
Ele age como se eu fosse a coisa mais importante para a sua vida
quando torna a me encarar com todo aquele ar de preocupação que ambos
sabemos ser inexistente.
— Clorofórmio. Não se preocupe, o efeito dura menos de vinte e
quatro horas, em poucas horas você vai poder voltar a choramingar e se
portar como uma selvagem.
Expiro com força, recuperando um ar que não chega aos meus
pulmões.
— Você me drogou?!
Ele nega.
— Você chora muito alto. Estava me incomodando. — Zomba. — E
presumo que você não aceitaria dar uma volta com o seu velho por livre e
espontânea vontade.
Levanto a cabeça, desviando das sombras de seu olhar sombrio por
poucos segundos a fim de examinar o lugar onde estamos.
Semelhante a um porão, as paredes são adornadas por concreto
velho e a lâmpada amarela brilha bem acima da minha cabeça enquanto um
fio suave de vento balança o lustre de plástico à sua volta. O chão é sujo e
frio, o lugar parece se com uma sala de torturas, a julgar pela mesa de metal
que é o único enfeite no centro da sala, como se o meu cadáver fosse estar
perante o alumínio frio dela em poucos minutos.
Ele vive aqui?
— O que você quer de mim? — Erguendo o olhar, eu o encaro por
baixo dos cílios enquanto meu cabelo úmido roça em minha bochecha
quente. — Sua casa costumava ser menos parecida com um lixão, naquela
época em que você tinha alguém para encher o seu bolso. — Ironizo,
arrancando-lhe uma risada.
— Tem razão — Ele afirma. — Eu quero a minha vida de volta, e
você vai me ajudar a tê-la.
É a minha vez de rir.
— E por que eu faria isso?
— Porque eu tenho as respostas que você procura. — Ele é certeiro
e objetivo. — É uma troca justa, não acha, Sofia?
Pisco algumas vezes. Meu corpo dói como se eu tivesse sido
esmagada por rochas imensas, tudo em mim está frágil e exausto. Mas
ainda assim, eu não consigo parar de juntar forças para reagir a este
encontro fatídico.
Analiso a sua estatura com curiosidade, Sebastian está diferente. Ele
agora usa roupas casuais, em sua cabeça, um boné azul-marinho cobre os
seus cabelos grisalhos e o deixa com a aparência acabada. Sua barba por
fazer deixa claro que ele é uma pessoa completamente diferente do que
quando eu o vi pela última vez.
Ele está fodido. Completamente patético.
— O que te faz pensar que eu quero alguma coisa de você?! —
Apoio às minhas mãos na beira da cadeira de alumínio ao reunir forças para
me colocar de pé. — Por mim, você pode ir para o inferno e levar as
respostas junto com você. O que eu quero e preciso saber, descobrirei
sozinha.
Sebastian movimenta-se pela sala, o som de seus sapatos colidindo
contra aquele chão imundo acelera as batidas do meu coração. Meu peito
ferve e minha cabeça lateja por tanta informação a ser processada.
Entretanto, acima de tudo, eu queria ter forças para matá-lo.
Queria ter forças para acabar com a memória de merda que guardo
referente a este homem.
Queria ter forças para vingar a minha mãe.
Afinal, estou diante do causador de sua ruína.
De nosso sofrimento.
— Você é capaz? — Ele instiga a minha insanidade. — Eu confesso,
subestimei você. Acreditei que você seria uma pedra no meu sapato, mas
você cresceu. É movida pela raiva, pelo sabor da vingança.
Sebastian alcança uma prateleira que eu sequer havia notado
naquela sala quadricular, suas mãos agarram uma caixa de bugigangas e
erguem o que parece ser uma pasta de arquivos.
— Neste envelope há todas as informações sobre a sua mãe. — Ele
me encara por cima dos ombros, seu olhar é carregado de escuridão e
perdição. — Nós as coletamos quando descobrimos de seu envolvimento
com A Revolução. Ela tentou nos enviar para uma emboscada, mas
esqueceu que nós sempre fomos mais inteligentes. — Um sorriso cresce em
seus lábios. — Mas você parece mais inteligente. É fria. Cruel e objetiva.
Respiro fundo. Meus olhos queimam em brasas vivas enquanto eu
desvio o meu olhar entre sua encarada mortal e o objeto preso em sua mão.
— Até mesmo uma barata soa mais convincente do que você. — Eu
não quero acreditar que ele poderia falar alguma verdade. — Está blefando.
Ele ri.
— Eu não blefo. — Garante, voltando a caminhar em minha
direção. Acompanho todos os seus movimentos enquanto ele se coloca à
minha frente e então estende a pasta avermelhada em minha direção. —
Quer descobrir quem é a vadiazinha que a sua mãe era? Então pegue.
Engulo em seco, tentada a acabar com essa tortura.
— Vamos lá, Sofia, você sabe que quer abrir.
Levanto a cabeça, consequentemente conectando os nossos olhares
tempestuosos. As rugas ao lado de seus olhos são finas e aparentes, sua
aparência sombria e duvidosa, no entanto. Sebastian descobrirá que eu
posso ser tão sádica quanto ele.
— Não. Não quero. — Afirmo, batendo com a palma da minha mão
em sua pasta e fazendo-a voar pelo ar até cair contra o chão em uma
distância considerável. — Eu sei quem ela era, porque eu a conhecia. O que
realmente quero saber, é como você tem coragem de estar cara a cara
comigo depois de todos esses anos, porque eu juro, tudo o que eu mais
quero é arrancar o seu coração do peito, seu imbecil! — Ameaço, olhando
diretamente para o fundo de seus olhos sombrios.
Sebastian torce os lábios e olha para o seu relógio de pulso por
alguns segundos, então empurra o meu corpo fortemente para trás,
causando a minha queda diretamente onde eu estava quando despertei. A
minha bunda dói pelo impacto forte contra a cadeira, porém, não tenho
tempo para resistir ao seu avanço, porque quando meu corpo resolve
obedecer alguma porra de comando meu, os meus pulsos já estão cobertos
por suas mãos enquanto ele os prende para trás do meu corpo.
Luto contra os seus apertos, balanço o meu corpo enquanto um
rosnado feroz escapa da minha garganta.
Meu Deus, eu quero matá-lo.
Toda a imensidão dos sentimentos devastadores que dominam o
meu peito enquanto eu estava naquela cabana, presa no olhar tempestuoso e
devasso de Jason, não é comparada com o sentimento de repulsa e da
infinita fúria que acabara de me preencher a partir do momento que
Sebastian sustenta o seu corpo sobre uma das pernas contra o chão e coloca-
se à minha altura.
Levanto a minha perna e chuto o seu peito com força, soltando
xingamentos involuntários para que ele não se aproxime de mim.
O que ele faz, no entanto, é o oposto.
Sebastian contém os meus movimentos ao segurar ambas as minhas
pernas e conter qualquer outro ataque instintivo que eu poderia lhe causar.
— Que porra você quer de mim, inferno?! — Sopro os cabelos que
despencam para os meus olhos com toda a bagunça. — Me diz! Você já me
tirou tudo, o que mais você quer?
Eu quero chorar.
Não porque estou diante do maior dos meus pesadelos, não porque
estou cansada ou desolada. Mas sim porque eu já não aguento tanto caos e
desgraças em minha vida, não aguento mais não ser nada além de uma peça
usada por todos. Sem exceção.
Todos se aproximam de mim porque desejam algo, porque querem
algo que eu possa tornar mais acessível a eles.
Mas e quanto a mim?
E quanto a mim, porra?
Ninguém sequer pode entender que eu estou quebrada por dentro e
cansada de ser apenas um peão no meio de tanto poder. Eu sequer me
importo com isso, não me importo com a droga da herança de minha mãe,
não me importo com a fome que ela poderia ter evitado para nós. Não me
importo com a vida confortável que ela poderia conceder a nós, nós a
merecíamos.
Não me importo com Sebastian e com toda a sua ganância
exorbitante ou a sua arrogância vasta.
Não me importo com o quanto Jason diz me amar, porque o amor
não destrói. O amor não desola e não é devastador.
Não me importo com o que minha mãe fez antes de sua vida ser
tirada, afinal, nada disso vai trazê-la de volta.
Não me importo com nada.
Porque nada das coisas que eu deveria me importar, apagarão os
últimos anos e trarão de volta uma vida digna, feliz e próspera, na qual eu
realmente deveria ter sido agraciada. Ninguém deveria ser tão infeliz.
Ninguém deveria ser tão quebrado.
Então, o que caralhos a importância me trará?
Nada.
É o fim da linha, porque tudo isso é como lutar contra a maré. É
inútil.
— O que eu quero é uma troca de favores. — Sebastian diz ao
prender os meus pulsos com o que parece ser uma corda.
Meu corpo ferve e o suor escorre pelas minhas costas.
— Você é patético — Um riso amargo me escapa. — Nem morta eu
te faria algum favor, seu escroto.
Os seus pés circulam o meu corpo até colocar-se à minha frente.
Ergo a cabeça, levantando o queixo para encará-lo com confiança.
Olho no olho, nós nos encaramos como se estivessem travando uma
batalha.
— Nem mesmo se eu te oferecer o sabor da vingança? — Ele
provoca e arqueio a sobrancelha. — Te dou a vida de Jason Turner, para que
você decida o que fazer com ela.
Uma risada se arrasta para fora da minha boca.
— O que te faz pensar que ele não te mataria antes de você pensar
em colocar as suas mãos nele?
Sebastian sorri.
— Não se pode fazer mal a quem não pode ver.
Minha garganta queima pela necessidade de ingerir algum líquido.
— Você se tornou invisível?
O sarcasmo me serve como uma arma, mas Sebastian mal parece
notar quando parece se orgulhar de seu plano maligno.
Seu sorriso cresce deliberadamente.
— Há mais gente envolvida nisso do que você imagina.
Um riso me escapa por tamanha descrença, eu sequer acredito que
Sebastian Hazel Clarke, o homem que me abandonou em um colégio como
um animal para fugir de suas responsabilidades, está me propondo um
acordo doentio para sair da vida miserável em que ele mesmo se enfiou.
Me impressiona o fato dele realmente acreditar que ter a sua cabeça
não seria prazeroso para mim, também.
Os dois são culpados pela minha dor. Por tanto caos devido às suas
mentiras e manipulações.
Eu não mudei o meu desejo de vê-lo morto apenas porque ele
resolveu abrir a boca sobre alguma coisa. Ninguém pode me garantir que
Jason falou a verdade, que não é mais uma de suas manipulações para me
manter por perto, para então, me destruir novamente.
Uma vez foi o bastante. Aprendi a minha lição.
Fazer uma aliança com Sebastian não é uma completa burrice, assim
como ele disse, eu não sou uma idiota.
Descobrir a verdade sobre o que a minha mãe era, sobre a verdade
por trás de sua morte, é o meu objetivo no momento.
Não me importo com quantas pessoas destruirei no caminho, porque
ninguém se importou com esta covardia quando foi a minha vez.
Estou cansada de chorar. Cansada de buscar pela verdade naqueles
que nunca foram sinceros comigo.
Eu descobrirei a verdade e quando souber de tudo, eu terei dois
alvos na minha mão. Eu saberei como me livrar deles para sempre, então
talvez, eu consiga me libertar. Viver uma vida de verdade.
Ou tentar.
Usando o seu plano como meu, usando a sua ganância e egoísmo
contra ele mesmo, não hesito quando olho para o fundo de seus olhos
esperançosos. Os olhos que anseiam pela resposta que ele precisa, pela
nossa união, aquela que no fim não lhe traria nada além da sua ruína. Da
sua morte.
— O que você quer que eu faça?
Sebastian levanta-se do chão, batendo as suas palmas ao livrar-se da
sujeira que vem do chão em que ele se encontra. Seu sorriso cresce e seus
pés o levam para as minhas costas onde ele desata as cordas com agilidade,
libertando o meu corpo de suas amarras.
Ele não faz ideia do que está fazendo.
— Sabia que você faria a escolha certa.
Ele não faz mesmo ideia.
WONDERFALL, CALIFÓRNIA - 2022
AGORA
Não consigo ficar no mesmo ambiente que Jason e não sentir o meu
sangue borbulhando, minhas pálpebras pesando e o meu coração adotando
um ritmo absurdamente fora do comum. Está indiscutivelmente fora de
cogitação que eu lhe dê o mérito de estar certo quando diz que não
conseguiria matá-lo.
Eu posso fazer isso.
Posso acabar com a tortura.
Por que ele duvida de minha capacidade? Por que acredita que eu
não o faria?
Quando eu lhe dei o poder de desvendar-me tão facilmente?
Pior, quando foi que decidi que matá-lo não ocupa o topo da lista de
meus principais objetivos?
Quando foi que passei a suportar estar no mesmo ambiente que ele?
É inadmissível que Jason tenha tanto poder sobre mim, e é
inadmissível que seja eu a dar este direito para ele.
Estou frustrada.
Tão frustrada que sequer compreendo o misto de emoções que me
invadem e fazem duvidar da minha capacidade, da minha história, da minha
força e da minha competência. Dos meus princípios.
Sequer imagino o quão pisoteada eu seria se ela estivesse aqui.
Sinto falta de sentir o seu carinho, ser agraciada com os seus beijos cheios
do gosto da salvação, do cheiro de casa, da sensação de finalmente baixar a
guarda e permitir-se ser amparada.
Não me lembro se existiu uma última vez em que eu tenha sido
acolhida. Se existiu um tempo em que a vida era apenas recheada de
problemas comuns, não aqueles em que sou obrigada a me tornar um
monstro para sobreviver. Para não ser engolida.
Sequer me lembro de um momento no qual eu tenha sido protegida.
Por Deus, quando foi que me tornei tão insignificante e vazia?
Caminhando sem rumo pelos corredores inertes, ao sentir um aperto
agudo e sufocante em meu peito, paro de andar e levo uma das mãos ao
centro, massageando a minha carne enquanto puxo por um ar que parece
não ser o suficiente para sanar as necessidades necessárias.
Quando foi que eu me tornei tão… Vulnerável?
Não sei por qual razão em específico, se testemunhar a vida
daquelas crianças sendo arruinadas como a minha um dia foi, se
testemunhar o homem que partiu meu coração travar uma guerra para
impedir que eu seja mais quebrada, quando tudo o que eu quero é quebrá-lo,
ou se foi o encontro com meu pai que me deixou tão atordoada. Mas
acontece.
Minhas placas defensivas parecem ter se cansado de fazer todo o
trabalho sozinhas, porque em um segundo estou certa de que sou o pior ser
humano do mundo, traiçoeira e desumana. Mas no outro, estou recostada na
parede com os olhos fechados e uma dificuldade alarmante para respirar,
confirmando o óbvio.
Eu nunca fui desprovida de um coração.
E talvez seja essa a razão para que eu sofra tanto.
Quando foi que voltei a ser tão fraca, inferno?
— Baker. — Sinto duas mãos tocarem meus ombros, mãos grandes
e temerosas. — Olhe para mim.
Quando foi que ele passou a farejar minha dor?
—Não preciso de ajuda. — Sussurro, embora eu saiba que é tudo o
que desejo.
— Eu sei que não.
Não sei como acontece, ou o que exatamente sinto em meu corpo,
mas há uma tonelada de peso sobre minhas costas que me obriga a baixar a
minha guarda e simplesmente desistir de lutar contra a força de minha dor.
Respiro fundo enquanto meu coração martela contra o peito e o suor desliza
por minha face, então um sopro gélido alcança o meu rosto e junto dele vem
o cheiro tão familiar da nicotina.
Seus braços tomando o meu corpo para si é a última coisa que sinto
antes do meu subconsciente decidir que precisa descansar.
Abro os meus olhos, mesmo que a claridade tremenda lhes cause um
incômodo. Pisco algumas vezes, tentando me lembrar em que momento
adormeci ou onde exatamente estou, mas o incômodo em minha visão é tão
extremo que não tenho outra alternativa senão levar as mãos aos olhos e
libertar um longo suspiro.
Minhas pálpebras pesam, e sei que não durmo bem há semanas,
talvez seja esta a razão para que minha cabeça doa tanto e sequer consiga
raciocinar sem desejar apagar profundamente outra vez.
Entretanto, ao ouvir um longo ruído semelhante ao som de uma
respiração ao meu lado, posiciono-me onde quer que esteja recostada e me
levanto, sentindo-me imediatamente um pouco tonta, mas pronta para me
proteger caso seja necessário. Levo as mãos até a cintura, buscando pelo
metal da arma que sempre carrego ali, no entanto, é ao notar a sua ausência
que meu coração adota um ritmo conturbado.
— Procurando por isso?
Ouvir a sua voz envia um arrepio gélido por meu corpo, pois junto
dele, acompanham as lembranças do que aconteceu antes que eu
simplesmente apagasse em seus braços. O que eu diria? Como agiria?
Ninguém dorme nos braços de alguém que despreza.
Movo os meus olhos até a sua figura, encontrando o par de olhos
negros e intensos mirados em mim, enquanto uma de suas mãos está
segurando a minha arma entre os dedos, colocando-a em meu campo de
visão.
— Por que você está com a minha arma? — Busco por palavras,
mesmo que estar sob a mira de seu olhar as apague de meu vocabulário.
Jason não diz nada, parece perdido em seus próprios pensamentos,
como se não quisesse responder a minha pergunta porque em sua mente
também existem várias delas.
— É a primeira coisa que você procura quando abre os olhos. —
Não é uma pergunta, ele parece afirmar mais para si mesmo do que a mim.
— Por quê?
Balanço a cabeça em negativo, um tanto quanto confusa.
Por que ele está fazendo essa pergunta? Por que ele está aqui ao meu
lado, primeiramente?
— É o que acontece quando você acorda de um sono e percebe que
não é nele que mora o verdadeiro pesadelo.
Minha resposta parece virar uma chave dentro dele, pois capto o
exato momento em que seu peito coberto pela camiseta escura limita o
movimento que expõe a sua respiração. Ele sobe e desce em uma
velocidade lenta, mas os seus olhos não desviam dos meus em momento
algum.
Eles brilham com um tipo de emoção que não consigo identificar,
mas não se trata da ira, da mágoa ou da frustração, é quase como se ele
lamentasse.
Sequer desvio os nossos olhares, pois há algo encoberto ali que
desperta a minha curiosidade. E eu quero entendê-lo, identificar quais são
os seus verdadeiros sentimentos, tendo a total ciência que ele jamais me
diria.
Jason pisca e é o primeiro a quebrar o contato visual, direcionando-o
para algum lugar à nossa volta no segundo em que respira fundo,
entregando-me a pistola como se ouvir a minha resposta fosse o suficiente
para acabar com sua dúvida inicial.
Sigo calada, observando-o repousar o objeto em meu colo como se
eu não pudesse usá-la contra ele.
Sequer aparenta se importar.
Está completamente concentrado em olhar para fora, um tanto
quanto inquieto.
Sigo seu olhar, pela primeira vez, permitindo-me olhar ao nosso
redor para identificar onde estou. A primeira coisa que encontro é o vidro
fumê de seu Mustang, além do meu corpo coberto por uma jaqueta escura
que possui o seu cheiro.
Movo as minhas mãos, finalmente tateando-as ao meu redor até que
entenda que tudo isso não se trata de um sonho. Eu realmente estou aqui,
dentro do carro de Jason, com meu corpo coberto por sua jaqueta durante o
tempo em que dormia.
Por quanto tempo eu dormi?
Onde estamos? E por que ele me carregou para fora do prédio ao seu
lado sem que eu tenha concordado?
— Onde nós estamos? — Questiono. — Por que você me…
— Você já vai descobrir. — Sua voz é um sopro, ele sequer se dá ao
trabalho de incomodar-se com o meu tom, parece exausto.
Me calo.
É estranho vê-lo tão inquieto.
Não sinto coisa alguma, mas há algo sobrevoando a atmosfera que
não me permite compreendê-lo com facilidade.
— Quanto tempo fiquei apagada?
— Duas horas. — Ele não me direciona o olhar. — Você desmaiou.
Engulo o bolo preso na garganta. Não é uma novidade, já era de se
esperar que o meu corpo simplesmente desistisse de suportar a carga que
nunca foi destinada a ele.
— E você me carregou até o seu carro?
Jason finalmente direciona os seus olhos até mim, tão profundos e
enigmáticos que sua aura soa caótica por inteira. Os raios solares
atravessam o vidro e refletem em sua pele, fazendo-me enxergar suas
pupilas dilatadas.
— Carreguei.
Reúno as sobrancelhas.
Acredito nunca tê-lo testemunhado agindo de uma maneira tão fria,
desprovida de sentimentos e sarcasmos que sempre pareceram fazer parte
de quem é. Não que me importe, mas o que raios pode ter acontecido para
que esteja agindo como se eu fosse… Indiferente?
—Você…
— Saia do carro. — Ordena.
Há algo muito estranho aqui.
Há algo acontecendo.
— Não vou sair do carro, eu nem sei onde estou.
Jason abre a porta e salta para fora com uma rapidez imensurável.
Observo quando ele bate a porta com força, dá a volta no carro e alcança a
maçaneta da porta do passageiro, abrindo-a para que eu saia.
Sua expressão é dura como pedra, não há como identificar o que
raios ele transmite pois há barreiras impedindo-me de decidir se devo, ou
não, obedecê-lo.
— Não tenho forças para discutir com você agora, então, por favor,
desça do carro e venha comigo. — Pede com tranquilidade, observando-me
a todo tempo.
Sinto-me em um impasse, não sei o que aconteceu no tempo em que
estive apagada, mas sei que nada pode me garantir que não há perigo algum
do lado de fora. Ainda assim, a segunda certeza que possuo é que Jason
jamais ousaria colocar a minha vida em perigo.
Não quando me olha dessa forma, como se quisesse recolher os
meus cacos para si e juntar cada um deles.
É besteira, eu sei.
Mas também sei que só há uma forma de descobrir o que deseja me
mostrar.
Então deixo para trás sua jaqueta e capturo a minha arma,
colocando-a na cintura por baixo da blusa. Ele acompanha o movimento
sem dizer absolutamente nada, sabe que eu jamais sairia sem garantir que
tenho como me defender caso seja necessário, mesmo que seja dele.
Jason dá um passo para trás quando salto do carro apenas para que
nossos corpos não se esbarrem, então observo sua face e aprofundo nossos
olhares, acompanhando o movimento de sua mandíbula sendo travada.
— Espero que valha a pena seja lá o que você tenha planejado, e que
nada disso me faça odiá-lo ainda mais. — Meu tom é áspero, apenas para
que ele saiba sua posição.
— Vai na frente. — Meneia a cabeça ao lado direito, enfiando
ambas as mãos nos bolsos do jeans.
Reúno as sobrancelhas, seguindo o seu olhar.
É quando o faço que o mundo inteiro parece pesar toneladas, os
raios solares ofuscam os meus olhos e me fazem cobrir o topo deles com
uma das mãos em formato de concha, apenas para que possa enxergar com
ainda mais clareza a entrada do que parece ser um cemitério.
Confusa, eu engulo a saliva e avanço alguns passos, observando o
caminho envolto por um arco onde o nome do lugar envolto por folhas
secas lhe trazem o ar amargo da perda, atraindo infinitas sensações
dilacerantes.
Meu peito infla e minhas mãos suam ao lado de meu corpo.
Memórias me trazem a sensação do luto que há tanto tempo tem
atormentado a minha alma. Flashes dos poucos momentos ao lado de uma
pessoa que sempre me deu forças necessárias para continuar viva, aceleram
os meus batimentos cardíacos e trazem uma queimação ao fundo dos meus
olhos.
Um misto de emoções me partem o coração no mesmo instante.
Um gatilho.
Estar aqui é um gatilho.
Por que Jason me traria a um cemitério?
Por que ele me colocaria nessa posição extrema de vulnerabilidade?
Será este mais um de seus jogos?
Olhando mais adiante, observo uma sequência de lápides e grama
verde como aquelas do jardim que mamãe costumava cuidar. Aqui há
infinitas histórias, todas perdidas e destinadas a este fim dilacerante para
quem fica, mas reconfortante para quem parte.
Terei eu a coragem de entrar?
Posso suportar a dor do luto mais uma vez?
Neste momento, não há ira, rancor, mágoa ou receio que seja forte o
bastante para sobressair a dor do luto. Sequer penso sobre o fato de Jason se
aproximar e colocar-se ao meu lado, também não penso racionalmente
quando seus dedos tocam o meu braço e, em uma carícia lenta, desliza até
que a ponta deles raspe contra os meus, em um ato reconfortante.
Congelada no mesmo lugar, sinto meus olhos arderem e lágrimas
nublarem a minha visão.
— É a última vez que vou te causar dor. — Anuncia, sua voz faz
com que uma única lágrima deslize em minha face.
A última.
Por que ele faz isso comigo?
Por que me quebra dessa maneira?
— Há um jazigo neste cemitério feito para a sua família. — Ele diz
de forma serena, quase como se pisasse em ovos. — Estamos onde eu
enviei o corpo da sua mãe para ser velado e enterrado de forma digna.
O encaro por cima do ombro, e é ao ver a hesitação em seu olhar, a
rigidez desaparecendo de sua feição, que mais lágrimas despencam de meus
olhos.
Eu não fui ao velório da minha própria mãe.
Não pude dar um último adeus antes que fôssemos separadas de
forma definitiva.
Sequer tive acesso ao paradeiro de seu corpo, sempre pensei que
jamais teria a oportunidade de visitá-la e permitir-me sentir a dor do luto
como uma pessoa normal.
Mas olha só onde nós estamos.
Ela está bem aqui.
Tão perto, caramba.
— Ela está enterrada aqui? — Balbucio, minha voz embargada
quase não pode ser ouvida.
— Não apenas ela.
Confusa, eu o encaro com o par de sobrancelhas franzidos.
De quem mais ele fala?
Sebastian não está morto. Josh não está morto. Não há outro familiar
que possa estar enterrado ao seu lado, então, de quem raios ele fala?
— Vem. — Jason estende a sua mão, convidando-me a acompanhá-
lo.
Outra lágrima desliza pelo meu rosto.
Observo suas esferas fixas nas minhas, a intensidade de nossa troca
de olhares é tão grande que não há outra resposta existente que não seja o
toque de minha mão ao redor da sua.
Pode ser um erro, posso estar pulando no abismo de uma vez ou
posso estar indo direto para a saída, é um risco que só saberei o resultado se
decidir passar por ele. É o que eu escolho ao ser arrastada para dentro do
cemitério, é o que escolho ao observar as suas costas enquanto
caminhamos, enquanto tento decidir o que exatamente sinto em relação a
ele neste exato momento.
Dúvida, hesitação, medo ou gratidão?
Ninguém nunca conseguirá compreender a proporção do que sinto
quando existe a menor possibilidade de descobrir onde está o corpo de
alguém que se foi, mas sempre foi a sua salvação. Minha mãe sempre será a
minha âncora, aquela que aparece quando as coisas estão ruins e me
conforta, me protege e diz que tudo ficará bem, mesmo que seja apenas a
minha cabeça que dê voz aos meus próprios desejos.
Há anos, sua morte é o que mais possui o poder para me destroçar.
Eu posso lidar com a dor de ser como um prêmio nobel para os homens,
posso lidar com o fato de todos eles desejarem sugar a minha alma até que
não sobre nada para se reerguer e posso lidar com a dor de ter perdido o
único homem que pensei ter me amado.
Mas nunca, nunca serei capaz de lidar com a sua morte.
Meu girassol.
Ela sempre foi o girassol da minha vida enquanto eu me tornava
uma rosa com espinhos.
— É aqui. — Jason indica o jazigo familiar coberto por folhas secas
e galhos verdes.
Paro de caminhar, por reflexo, nossas mãos são separadas e ambos
direcionamos nossos olhares para a grade do portão que possui um cadeado
mantendo-o inacessível.
A ansiedade me corrói, embora esteja apavorada para descobrir o
que me aguarda do lado de dentro. Penso em perguntá-lo como entraremos,
mas quando olho para ele, o vejo retirar uma chave de seu bolso,
caminhando até o portão para liberar nossa passagem.
Me calo.
Ele tem a chave do jazigo.
Observo-o destravar o cadeado e olhar ao nosso redor para garantir
que estamos sozinhos, e eu faço o mesmo. O vento sopra um ar gélido
direto para o meu rosto, balança as árvores que rodeiam o cemitério e afasta
as folhas pela grama.
Há pessoas longe de nós ajoelhadas sobre alguns túmulos, mas
sequer parecem notar a nossa presença. E garantir isto é o suficiente para
que fiquemos em paz.
Sem esperar por um convite, caminho em sua direção e respiro
fundo, olhando para o céu azul por um curto período de tempo antes de
arrastar o meu corpo para dentro do jazigo.
Jason vem logo atrás.
Ele fecha o portão atrás de si e ouço os seus passos lentos atrás de
mim, no entanto, sequer dou importância a eles quando meus olhos
encontram as dezenas de buquês de flores espalhadas pelo jazigo, onde duas
lápides prateadas brilham em perfeito polimento.
Levo uma das mãos à boca, a tapando quando avanço alguns passos
e sinto o cheiro fresco das flores. Elas não estão aqui há muito tempo, sei
que são fresquinhas e do exato gosto de minha mãe, pois são idênticas
àquelas que ela plantava em seu jardim.
— Eu a visito sempre que posso. — Ouço a voz de Jason às minhas
costas. — E quando não podia, sabia que alguém vinha reabastecer o
estoque floral. — Sei que talvez ele se refira ao tempo em que esteve preso.
Eu o encaro, completamente atordoada enquanto lágrimas escorrem
sem permissão alguma de meus olhos.
Meu Deus.
Como ele…?
— São as flores que ela gostava. — Reprimo um soluço. — Hibisco,
girassóis e violetas.
Todas espalhadas por todo o jazigo.
Não há nenhum lugar que tenha flores murchas ou secas, todas estão
completamente vivas e lhe dando o devido conforto que sempre mereceu.
— Estamos na cidade ao lado onde ninguém buscará por pistas. É
uma cidade comum e livre de turistas, sei que é onde você gostaria que ela
estivesse. — Diz ele. — Eu sequer sei porque a trouxe até aqui, eu deveria
afastá-la e fazê-la desprezar a minha existência.
Me viro.
Lágrimas escorrem sem permissão alguma.
Por quê?
— Você já faz isso. — Afirmo. — Você me quebra, me destrói, me
confunde e me amaldiçoa para todo o sempre, Jason, porque é impossível
ser digna de salvação quando eu ainda vejo verdade em você.
Não há nada que possa impedir as minhas barreiras de caírem por
terra, e acabo de desistir da tentativa.
— Quero acreditar em você. Quero acreditar que não a matou. —
Confesso. — Mas eu passei três anos da minha vida acreditando nisso, por
que você assume a culpa do que não fez? Por que você veria prazer em me
destruir?
Desabo.
Choro, soluço e observo seus olhos frios ainda em contato com os
meus. Jason não se move, ele parece enxergar a minha alma, parece
observar a olho nu cada uma de minhas feridas e parece sentir a
necessidade de curá-las. Mas há algo ali, há algo que o impede.
— Olhe para trás. — Pede com serenidade, meneando sua cabeça
para a direção.
Eu o faço.
Me viro atordoada, em meio a lágrimas, soluços e sentindo as
minhas pernas ameaçarem partir-se ao meio, mas tudo parece ficar ainda
mais confuso quando dou de cara com as lápides prateadas contra a parede
onde a caligrafia dos nomes em perfeito estado a enfeitam.
O nome de minha mãe brilha sob o mármore de pedra, sinto vontade
de deslizar os meus dedos por cada letra como se estivesse tocando o seu
rosto outra vez, como se ela pudesse preencher o vazio que sinto.
Eu preciso tanto.
Mas novamente, meus olhos são destinados à caligrafia ao seu lado,
vivendo nas sombras de suas asas por todo este tempo. Há surpresa em meu
olhar, há algo que impede o meu coração de bater em um ritmo saudável
porque o mundo inteiro parece possuir uma quantidade de ar que não é
suficiente para manter o meu corpo vivo.
Recuo um passo, tapando a minha boca ao abafar um soluço.
Meu mundo parece prestes a desabar e desta vez sequer tenho forças
para segurá-lo.
Não quando cada traço daquela caligrafia forma as letras do meu
nome.
— O que é isso…? — Sopro, sentindo minha cabeça latejar por
imensa dor. — Por que meu nome está naquela lápide?
Sinto seu corpo próximo ao meu, mas em nenhum momento ele me
toca. E eu agradeço por isso, pois sequer sei identificar qual será o
sentimento que me dominará se o fizer.
— Sinto muito por ter arruinado a sua vida. — Seu sopro em meu
ouvido me fere a alma. É arrastado. Dolorido. — Seu nome está naquela
lápide pois precisei forjar a sua morte porque não era capaz de deixá-la ir.
Fui ordenado a enviá-la para sua família na França, mas optei por me tornar
um traidor a abrir mão de você.
De costas para ele, tapo a boca com força e choro baixo. Liberto as
lágrimas presas há anos, toda a mágoa sobre as minhas costas são liberadas
em lágrimas pesadas que me corroem a alma. Fecho os meus olhos e sinto
sua respiração pesada bater contra a pele exposta de minha nuca.
Dói, dói.
Meu Deus, como dói.
Ouço os pedaços do meu coração se partindo ainda mais, ouço
minhas entranhas se remoerem em agonia dentro de mim e um mal-estar me
anestesiar de uma forma a qual respirar sequer é uma opção cogitada.
Saber que ele pode estar dizendo a verdade é o que parte o meu
coração, pois isto seria a chave para quase todos os mistérios que envolvem
o meu passado. A minha família, de fato, se interessou por cuidar de mim,
por evitar uma catástrofe. Tantas coisas teriam sido diferentes.
Merda, tudo seria tão diferente, inferno.
Se ele estiver certo, se Jason finalmente está me dizendo uma
verdade neste momento, significa que eu poderia nunca ter ido parar nas
mãos de Marcus Floyd, nunca teria sido quebrada pelos seus homens e não
teria ido parar numa porra de site pornográfico. Eu não teria tido
dificuldades para cuidar de Josh, eu não teria o meu coração partido, eu não
seria alvo de todo um esquema da máfia, eu não teria passado fome, não
teria visto Josh em um estado tão mórbido.
Se ele estiver certo, porra, tudo o que vivi até o momento foi em
vão.
Tudo porque ele não conseguiu pensar no meu bem estar, somente
no seu.
Quão egoísta ele é?
Quão doente?
Possessa, me viro, sequer dando importância aos soluços que
escapam de minha garganta ao encará-lo assim, face a face. Quando
conecto nossos olhares e sei que ele pode enxergar a ira presente em meus
olhos, sua mandíbula é enrijecida com força no mesmo segundo em que
desliza os olhos para a lápide às minhas costas.
Eu poderia rir, inferno.
Olhe para mim.
Veja o quanto você me destruiu.
— Você esperava que… Me trazendo até o túmulo da minha mãe, eu
poderia perdoá-lo por ser egoísta o suficiente para optar por me ver
definhar, desde que não fosse longe de você? — Rio amarga. — Foi um
golpe tão baixo, caramba! — Explodo, gritando contra o seu rosto.
Ele não se mexe.
Não faz absolutamente nada, mas no canto de seus olhos, uma
lágrima desliza entre o vão de seu nariz. Apenas uma.
— Você pode não tê-la matado, Jason, mas olhe para mim, veja tudo
o que fez comigo. E me trazer aqui, me falar isso no túmulo que eu
acreditava ser inexistente, é tão… Imperdoável!
Com a ausência de resposta, eu ergo o meu punho e soco o seu
peito.
Por Deus, quando isso vai acabar? Quando vai parar de doer?
— É o que você tanto quer, não é? Você quer que eu te odeie? —
Indago, furiosa. — Ótimo, eu já te odeio!
Soco seu peito uma, duas, três vezes.
Libero todo o ódio acumulado pela frustração em meus golpes,
deixo que tudo o machuque assim como machuca a mim. Deixo que ele lide
com a dor sozinho, assim como tenho feito há anos.
Há a dor de ter confiado cegamente no garoto puro de cachinhos,
extremamente super-protetor e cuidadoso, agressivo com todos, explosivo
com o resto do mundo, menos comigo. Aquele que acendeu a chama da
esperança dentro de mim e me deu motivos para me reerguer e encontrar
um novo sentido na vida. Deus, eu o amei, o abracei, o beijei, o entreguei
meu coração de olhos fechados, tudo porque confiava plenamente que ele
cuidaria dele como se não fosse apenas um órgão.
Há a dor de esperar por ele mesmo quando existiam chances dele ter
sido o culpado por tudo o que passei, porque eu ainda acreditava que ele
poderia ter alguma explicação que me fizesse voltar a amá-lo como se
qualquer possibilidade de ser verdade, fosse nula.
Há a dor de existir, até hoje, as chances de ouvi-lo e acreditar que
talvez ele tenha uma boa razão além de seu egoísmo, mas quando se recebe
silêncio diante de um questionamento, a resposta a seguir sempre será a que
menos espera.
E quando ela não vem, a dor é ainda mais mortal.
— Dói muito. — Caio de joelhos, cedendo à insuportável dor. —
Por que você fez isso comigo? Por que você gosta tanto de ver o meu
sofrimento?
Não levanto o meu olhar até ele, não deduzo onde ele está pois o seu
cheiro inebriante infiltrando-se em minhas narinas não torna possível
qualquer outra alternativa. Ele está bem diante de mim, sei que pode me
observar nesta posição inferior, sofrendo e expondo a minha dor como
jamais o fiz.
Saber que sim, que um dia existiu a possibilidade de hoje a minha
vida ser totalmente diferente, rouba o ar de meus pulmões em um nível tão
grande que sequer posso puxá-lo sem que minha consciência ameace partir.
A atmosfera adotou uma aparência caótica, trazendo ao meu peito um
desconforto onde tudo o que desejo é abrir os olhos e ver que tudo se tratou
de um sonho. Uma falsa realidade.
Sempre soube que Jason é do tipo egoísta, o tipo que não aceita
abrir mão do que acredita pertencer somente a ele, mesmo que haja uma
guerra em todo o mundo por conta de suas escolhas. Ele não se importa.
Não lhe dói.
Não lhe causa nada.
Enquanto a mim, não me restou nada.
— Eu nunca entrei na sua vida para ser o seu herói, Baker. — Ouço
sua voz, rígida e entrecortada. — Eu tenho o dever de ser o vilão da sua
história, até que seu ódio por mim seja tão grande que sequer consiga
respirar, e eu o aceitarei de bom grado, porque te machucar para mantê-la
longe é um ato protetor maior do que qualquer herói seria capaz de possuir.
Abro os meus olhos, desnorteada o bastante para que um soluço
escape de meus lábios. Um vilão. Parece que ele realmente está cumprindo
com o seu papel.
Minha alma está despedaçada, porque finalmente existe uma razão
completamente comprovada para que eu o odeie tanto. É o que ele quer, é o
que precisa fazer. Ele está satisfeito em ser o vilão aqui, quando um dia eu
pensei que ele seria o meu herói.
Sou tão estúpida que mesmo com o coração rasgando o meu peito e
me roubando a alma, enviando-a para um abismo ainda mais fundo do que
aquele que estive por todos estes anos, mesmo que eu esteja diante do maior
causador de minha ruína, ainda estou ajoelhada, caída aos seus pés
enquanto o mundo parece desabar em minhas costas.
O peso é demais para suportar.
Sinto que serei esmagada pela sua força voraz.
Perdida em meus próprios pensamentos, levo alguns minutos para
notar o toque plácido e sereno contra a minha pele, tão leve e cuidadoso que
não me dou ao trabalho de impedir. Seus dedos impulsionam o meu queixo
a erguer-se, até que meus olhos nublados encontrem os seus.
Levo um tempo para interpretar o seu olhar, mas quando o faço,
vejo nele a hesitação e a sensação de dever cumprido brilharem ao redor de
sua íris, embora não haja um único fio de satisfação incluído no pacote.
Balanço a cabeça em um menear descrente, sentindo as minhas
paredes internas finalmente destroçadas dentro de mim, abrindo uma
barreira que demorei anos para construir. Desta vez, eu estou
completamente vulnerável. Os cacos se perderam na imensidão do abismo
que acabo de me afundar, eu jamais poderei consertá-los outra vez.
Eu sinto o meu sangue ferver enquanto jorro lágrimas dos meus
olhos. Eu não consigo contê-las, não mais.
— A troco de que? Porque eu me lembro de uma época que você
jurou me proteger. — Indago, jorrando as verdades que há tanto tempo
mantenho presas no meu peito. — Você me ensinou coisas. Eu era só uma
estranha, e de repente, não era tão estranha assim. Então viramos amigos,
você me ensinou como ser uma garota forte e determinada. Então eu me
apaixonei pela forma como você me enxergava além do que os outros
poderiam alcançar, me apaixonei por você da maneira que você sempre foi.
Não olhei para os seus defeitos, não temi o dia seguinte porque você estava
ali para me ajudar, para me proteger. Mas sabe, você me ensinou a como me
proteger de caras como o seu pai, só talvez tenha se esquecido de me
ensinar a como me proteger de caras como você.
Ele me encara quieto, absorvendo todas as palavras enquanto o seu
pomo-de-adão revela o quanto minhas palavras o abalam, de maneira que
ele não é capaz de demonstrar.
As lágrimas escorrem dos meus olhos, acumulando uma quantidade
dolorosa na ponta do meu queixo onde os seus dedos as capturam.
Espero até que diga alguma coisa, embora eu saiba que nada que
saia de seus lábios será suficiente para curar o rasgo incurável que partiu-
me ao meio. Observo o seu olhar perdido, tão vazio de qualquer emoção
que chego a duvidar que ele realmente possua um coração em seu peito.
Me enfurece que ele tenha tanta facilidade em me tirar do eixo, me
desestabilizar e me colocar em uma posição onde não me faltam motivos
para apagá-lo, mas sim, a coragem para isto.
Afinal, a arma em minha cintura poderia resolver o problema. Eu
finalmente estaria livre de uma vez por todas.
Mas, porra, por que tudo parece tão difícil quando deveria ser fácil?
— Você já sabe como se defender de mim, apenas não deseja fazê-
lo. — Sussurra, em um tom tão confiante que não ouso lhe dar o gosto de
me desafiar.
Dou um tapa em sua mão na tentativa de afastar o seu toque de
minha pele, assim como me esforço para reunir forças suficientes para me
colocar de pé. No entanto, ao firmar um dos pés no chão, Jason interrompe
o meu movimento ao segurar o meu pulso com uma brutalidade tão grande
que um grunhido escapa de mim.
Não tenho tempo para pensar no que acontece, pois em um minuto
eu estou prestes a sacar minha arma e lhe provar que não sou mesmo a
covarde que acredita que eu sou, que posso sim reunir coragem o bastante
para me livrar do destino amaldiçoado que possuo enquanto seu coração
ainda estiver funcionando.
Porém não posso, e não porque seu aperto em meu pulso é bruto
demais para que eu possa me mover, mas sim porque quando fito os seus
olhos e os encontro repletos de uma confusão imensurável, no mesmo
instante eu perco o controle das batidas do meu coração.
Jason parece ter percebido o quanto seu aperto em meu pulso foi
doloroso, e ao erguer a mão para afastar o seu toque, bastou apenas que a
manga de minha blusa subisse um único centímetro para que o pano da gaze
deslizasse pelo dorso da minha mão, e junto dele, os resquícios de meu
sangue por conta dos ferimentos são igualmente expostos.
Imediatamente recolho a minha mão, desequilibrando-me pelo
movimento brusco. Jason move as suas esferas até a minha direção com
uma tempestuosidade e velocidade que até então era inexistente, então eu
me afasto e vou ao chão, rastejando para trás enquanto respiro fundo
diversas vezes para que consiga manter a calma.
Penso que ele está procurando maneiras de ignorar o meu olhar,
porque não é capaz de lidar com o monstro que ele mesmo criou, mas
quando sigo o seu olhar e noto qual é o local exato para onde ele olha, meu
corpo congela. Minha boca seca e a garganta arde com a necessidade
sufocante de gritar alto o suficiente para despertar um universo inteiro.
Meu corpo vacila por inteiro quando Jason avança alguns passos em
minha direção.
Cometo a burrice de encará-lo de baixo para cima enquanto me
rastejo para manter uma certa distância, no entanto, Jason precisa apenas
avançar um único passo largo para me alcançar. Seus olhos, desta vez,
possuem um tipo diferente de brilho. Um ao qual nunca o vi esbanjar com
tanta nitidez.
Ele se agacha sobre um dos joelhos à minha frente.
Respiro fundo.
Tudo bem, tudo bem.
Só respire fundo.
— Me dê o seu braço. — Jason ordena.
A resposta negativa vem automática, em um balançar de cabeça que
parece incomodá-lo profundamente, pois sequer me concede a oportunidade
de responder com o uso de palavras.
— Quem machucou você? — Ele pergunta, analisando minha face
com cautela. — Me dê nomes, Baker. Me diga quem arrancou sangue seu.
Nego novamente ao passo que uma lágrima desliza por minha face.
Ele a segue com o olhar, capturando o deslizar em uma lentidão que
parece hipnotizá-lo, torturando cada um de seus miolos.
— Me diga um nome. — É quase uma súplica, embora sua voz seja
sempre rouca e rígida. — Me diga a porra de um nome!
Soluço.
Porra.
Quando foi que eu imaginei que chegaríamos até aqui?
Quando foi que eu imaginei que um dia estaria sendo prensada de
uma maneira que o maior dos meus segredos estivesse prestes a ser exposto
a ele?
Independente de qual seja a resposta, sei que não sairei daqui até
que ele tenha a resposta que tanto procura. Este é um daqueles momentos
em que eu só tenho duas opções: expor as minhas feridas ou deixar que
sejam expostas obrigatoriamente.
É pensando nisso que eu reúno coragem o bastante para questioná-lo
indiretamente.
Feliz?
— Não foi ninguém. — Afirmo, mirando os meus olhos nos seus.
— Só há duas pessoas neste mundo que podem me machucar tão
profundamente que eu tenha vergonha de expor para o mundo. Então, a
menos que você tenha cortado os meus pulsos, a única culpada aqui sou eu.
Aspen Baker é quem você procura. E agora, bonitão, vai me machucar por
eu ter tocado no que apenas você possui o direito de destruir?
E é neste momento que ele avança, sem pudor ou gentileza alguma.
Jason inclina o seu corpo sobre o meu até que eu caia sentada no
chão, tento afastá-lo e impedi-lo de alcançar o seu objetivo, no entanto,
quando ele alcança ambos os meus braços com uma força imensurável que
não pode ser igualada à minha para que eu lute contra, eu solto um suspiro
frustrado. É duro sentir-se tão prepotente.
Ele toma ambos os meus braços em suas mãos e as leva para a
frente de meu corpo, poupando qualquer fio de gentileza ao puxar ambas as
mangas para cima antes que eu tenha a chance de impedir.
Arfo, soprando os meus cabelos para longe do meu rosto.
Então acontece.
Ele congela, toda sua ansiedade é substituída pela falta de reação.
Seus olhos se concentram nas linhas finas de meus pulsos, e apesar de seu
toque ser bruto, há uma mansidão que o torna diferente do segundo anterior.
Então desisto de lutar.
Era o que você queria, não era?
— E agora? Está feliz? — Minha voz embarga, e junto dela eu sinto
um choro entalado em minha garganta.
Posso ver o seu peito subir e descer em uma respiração elevada, sua
mandíbula está travada e ele parece prestes a explodir, apesar do toque em
minha pele se tratar de uma mistura confusa de sentimentos.
— Eu... — Ele analisa os meus braços, parece perder as palavras. —
Você... Porra, o que você fez, Baker? — Seu olhar busca o meu, Jason
parece completamente perturbado, como se estivesse lutando para controlar
a sua vulnerabilidade tanto quanto eu.
Sigo o seu olhar, olhando para os diversos cortes ainda em processo
de cicatrização em ambos os pulsos. Eu deveria ter retirado as gazes para
evitar levantar suspeitas. Nós estávamos em uma montanha, casacos sempre
esconderiam os meus braços o suficiente para não precisar de um pedaço de
gaze que certamente levantaria questões a serem questionadas.
Mas cá estamos nós, e o maior alvo das minhas crises sufocantes
está sob as mãos de quem partiu o meu coração. Será que ele pode enxergar
a profundeza da minha dor? Será que pode compreendê-la? Será que se
importa?
— Não, não, não — Jason fecha os olhos, repetindo as palavras para
si mesmo. Ele está fora de si. — Quando isso começou? Quando você
começou a ferir a si mesma, Baker?
Mais lágrimas despencam dos meus olhos quando Jason aperta o
meu braço ao redor de sua palma firme, pressionando-me para lhe dar uma
resposta.
Engulo em seco, reprimindo um soluço.
— Não importa quando isso começou, o que importa é que
encontrei refúgio nas lâminas. O refúgio que eu precisava naquele
momento. — Eu digo a ele, minha voz falhando no processo.
Jason suspira, a ponta de seus dedos acaricia a minha pele como se
pudesse arrancar dali toda a dor que sufoca. Ele faz tudo parecer mais
doloroso quando uma única lágrima completamente solitária despenca de
seus olhos enquanto me encara, parecendo procurar compreender toda a
bagunça que apenas cresce aqui dentro.
O gesto foi tão rápido e discreto que não o notaria se por algum
acaso, não estivesse olhando fixamente para a sua expressão tão abalada.
Sua mudança expressiva é notória há quilômetros de distância.
— Eu deveria ser o seu refúgio. Deveria estar lá para você. — O seu
tom de voz é desesperado, suas palavras saem dos seus lábios com um
tremor abatido. — Me desculpa, porra. Me desculpa, me desculpa, por
favor. — Jason fecha os olhos, outra lágrima sua despenca.
Meu coração dói.
Eu não entendo todos os motivos para que esteja tão abalado, não
consigo compreender porque ele gosta tanto de confundir o meu coração.
Ele faz isso com uma frequência que ultrapassa os meus limites, uma hora
ele brinca comigo, demonstra ser o monstro insensível que quebrou o meu
coração, então de repente, ele é um homem emocionalmente quebrado,
tratando as minhas feridas como se fossem suas. Como se pudesse pegar
para si toda a dor que algum dia destruiu toda a minha essência.
Era fácil compreendê-lo. Era fácil olhar para os seus olhos escuros e
decifrar os seus sentimentos, porque éramos transparentes um com o outro,
éramos como um só.
Mas agora, neste jazigo, eu não consigo interpretar absolutamente
nada. É como se eu não o conhecesse, como se as nossas vidas fossem tão
intensas que abalam a intensidade da nossa conexão. Ela não existe mais.
Meus olhos enchem d'água quando Jason ergue ambos os meus
braços à altura do rosto, ele inclina o seu corpo levemente para a frente e
abraça a minha pele, mantendo-a próxima de si. Ele acaricia a extensão do
meu antebraço, desenhando os cortes com a ponta do polegar. Seus lábios
tremem, o pulso em seu pescoço pulsa com intensidade, mas Jason não
desvia os seus olhos dos meus cortes por um segundo sequer.
— O que você está fazendo? — A dúvida me alcança quando ele
aproxima o rosto das minhas feridas.
Ele não diz absolutamente nada.
Observo as suas carícias finas e macias contra as minhas feridas,
contornando a base avermelhada que as cercam. As casquinhas começam a
nascer, mas Jason não se importa com isso quando aproxima os lábios das
minhas feridas e deposita um beijo suave e demorado no local, seus olhos
fechando-se no processo.
O contato frio que vem diretamente do seu piercing para as feridas
quentes do meu pulso, envia uma corrente de arrepio avassaladora para todo
o meu corpo.
Eu vacilo.
Meu corpo parece ter virado uma quantidade significativa de
gelatina conforme ele deposita beijos frios por cada um dos cortes, como se
estivesse adorando-os. Ou talvez, como se pudesse curá-los de alguma
maneira intelectual.
— Sinto muito por não estar com você quando precisou de mim —
Sussurra em meio à uma pausa breve entre um beijo e outro. Seus olhos não
encontram os meus, mas sinto quando uma gota quente despenca de seus
olhos contra o meu pulso, escorregando entre as feridas. — Sinto muito por
ser um desgraçado. Eu juro que faria tudo diferente se pudesse, eu estaria ao
seu lado, eu jamais cometeria um erro imbecil que poderia afastá-la de
mim. Eu sinto tanto, Baker, por favor... Você consegue me perdoar?
Balanço a cabeça, sugando o nariz.
— Nunca.
Ele ergue a cabeça, revelando o seu rosto completamente
encharcado de lágrimas tão dolorosas quanto as minhas. Sua mandíbula
trava, seus olhos piscam para afastar as gotas de sua linha d'água, mas eles
se abrem ao tentar encontrar palavras corretas para responder à minha
negação.
As veias de seu pescoço pulsam, Jason parece prestes a desmoronar
bem na minha frente.
— Sim, você pode.
— Não, Jason. Eu nunca vou conseguir perdoar você.
Um soluço sobe pela minha garganta e preenche o espaço apertado
em que estamos, no mesmo instante em que um grunhido baixo e quase
imperceptível escapa de Jason.
Somos uma eterna sincronia de demonstrações dolorosas. Não existe
nada além de dor e sofrimento, somos apenas eu e ele, desmoronando na
frente um do outro.
De repente, eu volto para o início de tudo ao perceber que a nossa
sincronia não desapareceria completamente, mesmo que o odeie
eternamente. No fim, seríamos eu e ele, ambos lutando para sobreviver a
um inferno tão doloroso quanto as raízes de nosso passado incompreendido.
Ambos carregamos cicatrizes em nossas peles que dizem muito
sobre quem somos. Sobre ao que sobrevivemos. Mesmo que por razões
distintas. É por isso que eu jamais poderei perdoá-lo, pois enquanto tento
superar um passado quebrado, ele tenta se curar de um que ele mesmo
quebrou.
Essa é a nossa grande diferença.
— Naquela noite... — Ele sussurra, respirando fundo para
normalizar a sua respiração.
— Não. — Eu o interrompo. — Não fale sobre aquela noite.
O rancor está aqui, apesar de todas as nossas dores em comum. Eu
não quero me lembrar de sua traição, a maior delas.
— Eu nunca quis machucar você. Eu te amei mais do que consigo
suportar, Baker, você é a porra do meu mundo. Só, por favor... Não
machuque o meu coração dessa forma, deixe-me lutar para consertar as
coisas.
— Você não me machucou, você me destruiu! — Retruco, na
tentativa de puxar os meus braços de seu agarre.
Ele reforça o aperto de forma gentil, sem aprovar o meu esforço
para afastá-lo.
— Só preciso de uma chance. Deixe-me esclarecer as coisas. — Ele
implora, seus olhos nunca deixando os meus.
Balanço a cabeça em meio a lágrimas, ignorando todos os meus
instintos traidores implorando para que eu pule diretamente nos seus braços,
de onde o meu eu antigo desejaria jamais ter saído.
— Você teve uma chance. Você poderia ter tido várias delas, porque
mesmo que eu odiasse você naquela época, não suportaria lutar contra todos
os sentimentos que supria por você. Nada nunca foi mais intenso do que o
que senti por você, exceto a raiva por ter destruído tudo ao meu redor. —
Digo a ele, aprofundando nossos olhares da maneira mais intensa que
posso. — Eu lidaria com as vozes na minha cabeça gritando sobre o quão
ordinária eu sou, sobre o quanto minha mãe estaria decepcionada comigo
por amar um imbecil. Por ter cometido o mesmo erro patético que ela. Mas
eu conseguiria lidar com isso se você estivesse lá para mim, se você tivesse
impedido que...
O fim da frase morre na minha garganta quando Jason me puxa
pelos braços e com eles circula a sua cintura ao colar os nossos corpos em
um abraço fervente. Minha cabeça vai direto ao seu peitoral, uma de suas
mãos afunda nos meus fios de cabelo enquanto a outra abraça os meus
ombros para manter o meu corpo exatamente onde está.
Sinto quando ele aperta o meu corpo contra si, quase como se
pudesse fundir os nossos corpos dessa maneira. Sinto quando o seu queixo
toca o topo da minha cabeça, sinto quando os seus lábios roçam os meus
cabelos e depositam beijos demorados em cada extremidade.
Fecho os olhos, relaxando minha cabeça contra o seu peitoral rígido.
Molho a sua camiseta com as minhas lágrimas, abafo soluços contra o seu
coração, enviando para ele a corrente elétrica que as nossas dores possuem
em comum.
Em outro momento, eu poderia desejar viver neste momento falso
por mais alguns minutos, mesmo que seja um erro que apenas servirá para
alimentar a fome do pecado que há dentro de mim. Ter o seu carinho
sempre foi o que eu mais desejei nos dois primeiros anos de sua ausência,
embora existissem motivos de sobra para não fazê-lo.
Tê-lo aqui agora poderia aquecer o meu coração, poderia ser uma
parcela de soluções que tenho buscado há anos.
Mas nada disso muda os fatos que o apontam como o maior traidor
existente em minha vida. Suas mentiras nos levou a esta ruína, e mesmo que
eu adore me enganar e acreditar que sou digna de um pouco de felicidade,
sei que nunca cabe a mim tê-la.
Não há como fugir de seu próprio destino.
Desvencilho-me de seus braços de maneira fria, como se o fervor de
seus membros não causasse absolutamente nada em mim. Nenhum tipo de
emoção.
Jason não luta para nos manter unidos, e quando seco o rosto com as
mãos e afasto os fios de cabelo que grudam em minha face úmida, eu
desvio os nossos olhares até que encontrem a lápide com as caligrafias em
perfeito estado.
Quase sorrio ao encarar o nome de minha mãe, assim como a
mensagem abaixo dele.
“Somente as flores desprovidas de zelo partem cedo.
Que o paraíso seja gentil com sua alma, adorável e querida mãe”
Eu gostaria de me sentar à frente de sua lápide e lhe contar histórias
que há tempo desejo dizer. Eu gostaria de conversar com ela assim como
costumava fazer encarando as estrelas brilhantes no céu.
Mas eu jamais o faria em sua frente.
Não quando já testemunhou boa parte de minha verdadeira essência
no dia de hoje.
Engulo a dor da mágoa, tentando focar em finalizar este momento
antes que eu não possa me reerguer.
Então deslizo o meu olhar para a caligrafia de meu nome, antes de
soltar um riso frouxo ao notar a ausência de qualquer frase poética que
possa afirmar que o caixão não está vazio. Não que eu me importe. Sofia
Clarke não merece nada além de uma completa e pura pena.
— Foi bom você ter me trazido até aqui, no fim das contas —
Suspiro, finalmente encontrando o seu olhar atordoado mirado em minha
direção. — Você me enterrou, e hoje nós fizemos oficialmente um funeral
para a pessoa que você conheceu.
Intensificamos o nosso olhar, ambos conectados pela intensidade da
atmosfera que parece unir as nossas almas, embora a minha esteja fugindo
de seu agarre.
— Não há uma parte sequer dentro de mim que nutra algum tipo de
sentimento por você senão o ódio. Quem você amou, é a mesma pessoa que
você preferiu jogar para os lobos. — Digo, indiferença escorre de meus
lábios. — Temos um acordo, Jason, depois disso você sabe bem o que
acontece. Nunca mais apareça na minha frente, porque se o fizer, não vou
hesitar em matá-lo.
Ele se cala.
E eu caminho até a saída, certa de que não há razões para estender
este momento que para sempre seguirá preso em minha memória. Jamais
me esquecerei de seus beijos em minhas feridas ou de como menti ao dizer
que não sinto nada por ele, embora ele não tenha a necessidade de saber.
Dói agir com tamanha indiferença quando tudo o que sinto é o
oposto. Então, como é que ele consegue?
Seguro a barra do portão de ferro com uma das mãos, prestes a
saltar para fora e partir para fora do jazigo. No entanto, ainda de costas para
ele, eu encaro o céu azul e seco uma lágrima que escorre no canto de meus
olhos antes que ela caia em definitivo.
Não é tão difícil assim.
— Quero a chave deste jazigo em minhas mãos. E se você ousar
dizer a alguém sobre o que viu hoje, nosso acordo estará oficialmente
acabado.
Então eu o deixo sozinho, certa de que meus dias jamais serão iguais
outra vez.
EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
— O seu cabelo é tão macio — Sei que Kelly sorri enquanto resvala
a escova entre os meus fios. — Nunca passe a tesoura nele, isso é uma
ordem.
Rio de seu tom mandão enquanto faço carinho na cabeça de Jonah
deitada em meu colo. Estamos os três confortavelmente na minha cama,
Kelly e eu andamos mais próximas ultimamente. Jonah gosta dela e eu
também. É bizarro como nos sentimos conectados a ela em tão pouco
tempo. Nós formamos um belo trio.
— Por quê? — A fito.
A ponta dos dedos mergulha em meu couro cabeludo, iniciando um
cafuné extremamente relaxante. Quase me permito cair sobre o corpo de
Jonah e dormir profundamente.
— Ah... Ele deixa você tão delicada. Faz você se parecer como
realmente é. — Responde docemente.
Sorrio meio constrangida.
— E com que eu me pareço?
— Luz. Você se parece com a luz. — Kelly se levanta da cama e
deixa a escova lilás apoiada em minha escrivaninha. — Acho que você é a
pessoa mais doce que já conheci.
Uma risada baixinha escapa da minha garganta ao mesmo tempo que
sinto as minhas bochechas queimarem pela timidez. Ninguém nunca tinha
dito nada parecido para mim senão a minha mãe. Ela sempre gostou de me
lembrar o quanto eu era uma doce garota aos seus olhos.
Lembro-me de seu sorriso, de seus olhos azuis repuxando em meio
ao curvar de seus lábios enquanto ela me fazia carinho e me comparava
com girassóis.
Mamãe amava girassóis. Ela gostava de assemelhá-los a nós, porque
assim como girassóis são considerados felicidade, ela dizia que éramos o
símbolo de seu significado. Certo dia, ela me contou sobre a sua lenda.
Estávamos sentadas no jardim de nossa casa onde ela plantava
inúmeros girassóis e cuidava de suas plantas quando o meu pai permitia que
ela o fizesse. Era uma tarde ensolarada, o céu estava tão azul quanto os seus
olhos, poucas nuvens se espalharam por sua extensão enquanto uma brisa
leve atingia o nosso rosto e balançava os nossos cabelos.
Então, olhando em meus olhos enquanto acariciava o meu cabelo
exatamente como Kelly o faz agora, ela me contou cada detalhe da lenda.
Viajei cerca de doze horas para estar bem aqui, diante da lápide de
Eleanor em uma cidade situada na Califórnia. Seu nome brilha na perfeita
caligrafia, ao lado da nova lápide que ordenei que fosse instalada no tempo
em que estive aqui.
Sofia Clarke.
Forjar a morte de alguém deveria ser fácil, basta apenas uma lápide
como esta e uma certidão informando o óbito. Qualquer um acreditaria. No
entanto, embora tenhamos bastante recursos para tornar possível, nada pode
apagar esta sensação de luto enraizada em minha alma.
Observo as lápides uma ao lado da outra. Uma com o corpo velado e
descansando eternamente debaixo da terra enquanto no outro não há nada
mais do que um caixão vazio.
Não foi fácil tomar essa decisão.
Não mesmo.
Sei que serei odiado quando Clarke se tornar uma mulher, sei que
ela irá me desprezar com todas as suas forças porque não há probabilidades
de ser diferente. Mas de alguma forma eu sinto que é o certo a se fazer,
sinto que ninguém nunca vai cuidar dela como eu, que ninguém nunca vai
quebrar o ciclo como eu estou fadado a fazer.
Estou pronto para quebrar o meu juramento.
Estou pronto para ser o alvo da Revolução.
Estou pronto para ser uma decepção para as pessoas que estive
trabalhando por anos e anos.
Mas não estou pronto para deixá-la sair de meus braços.
Tampouco algum dia estarei.
Me aproximo da lápide, sabendo que esta será a última vez que
provavelmente estarei diante dela. Observo as flores espalhadas pelo jazigo
e inalo o frescor como se fosse o meu último sopro de vida são.
Os homens receberam ordens para reabastecer as flores sempre que
estiverem prestes a murchar e morrer. Sei que este jazigo nunca adotará
uma aparência medonha, embora estejamos em um ambiente cheio de dor.
Não é o que eu quero para ela.
Além disso, precisamos ser convincentes se quisermos fazê-los
acreditar que realmente há um corpo enterrado aqui.
Então estará feito.
Fugirei com ela e iremos desaparecer deste mundo antes que possam
pousar os seus olhos sobre nós.
— Quebrar o ciclo, não é? — Observo a lápide de Eleanor,
compreendendo tudo o que ela me preparou para enxergar. — Você nunca
quis essa vida para ela, a cheia de um fardo que você suportou por tantos
anos. Agora eu entendo. — Rio sem humor, ligando os meus próprios
pontos. — Você prefere que ela viva uma vida simples a herdar um império
que pretende destruir a essência que você moldou a ela.
Nunca entendi por que Eleanor nunca recorreu ao pai, por que nunca
pediu por socorro ou por que sempre pareceu confortável em lidar com os
próprios problemas. Mas talvez a verdade tenha estado na minha cara por
todo este tempo, pois a Revolução é moldada por décadas a seguir um ciclo
vicioso. Eles são perigosos, são o alvo para todas as máfias espalhadas pelo
mundo.
Os alvos no momento estão sob a cabeça de Victor Mercier, assim
como um dia já estiveram sob a cabeça de Eleanor.
Mas quando nenhum deles são os responsáveis por plantar ameaças
ao que deveria ser extinto do universo, os alvos pingarão sob a cabeça da
única que restar.
E não irão hesitar em destruí-la.
Não até terem a certeza de que não haverá ameaça alguma
impedindo-os de prosseguir com a comercialização ilegal.
É por isso que meu pai a quer tanto.
É por isso que eu fui criado sob sua maneira incoerente. Marcus
esperava que eu fosse o seu aliado, tão frio quanto ele. Tão cruel e
impiedoso. Ele me moldou para isto, me quebrou, me espancou, me deu
sofrimento para que eu pudesse me tornar um homem forte para suportar a
carga que o seu império colocaria sobre as minhas costas.
Pois ele esperava que eu a tivesse em minhas mãos.
Que eu me juntasse a ela.
Que eu lhe roubasse a sua herança e destruísse de uma vez por todas
a maior ameaça que tem o barrado.
Fui criado para isto.
Ela foi criada para isto.
Um acordo entre amigos que resultou em uma vida infeliz de pobres
almas que lutam para sobreviver.
Sebastian não faz ideia de que criou alguém para me dar forças para
lutar contra um esquema arquitetado por anos.
Marcus não faz ideia de que eu morrerei no processo, se for preciso,
mas jamais permitirei que ele toque em um único fio de cabelo do que
pertence a mim.
Não a ele.
Não a Luxury.
Não a Revolução.
A mim!
— Sua morte não foi em vão. — Por fim, prometo, engolindo a
saliva que rasga a minha garganta e me força a fechar os punhos ao lado do
corpo. — Eu vou quebrar o maldito ciclo.
(…)
— Está feito.
Dois dias se passaram.
Dois dias tentando encontrar forças para encarar Williams e contar
tudo o que tenho planejado. Seu olhar temeroso e repleto de mágoa não me
dá outra alternativa senão acreditar que ele sente dor. Afinal, a partir do
momento em que eu pisar fora deste prédio, posso ser morto a qualquer
instante.
— Você tem certeza disso? — Seu olhar recai ao chão antes dele se
levantar da mesa e dar a volta por ela a fim de me encontrar. — E quanto ao
Hyuk? E quanto a Kelly?
Respiro fundo, meu peito enchendo-se de uma dor com a qual
preciso aprender a lidar.
Dor ou dor.
— Não posso ser egoísta a ponto de levá-los comigo. Ambos estarão
seguros aqui, com você. — Ergo o olhar, encontrando com a figura do
homem que me tirou do fundo do poço. — Eu já estou fadado a isto,
Williams. Você sabe que eu nunca vou conseguir viver em paz.
— Somos sua família. — Sinto sua mão repousar sobre meu ombro
em uma carícia confortante. — E por isso eu não vou te julgar. Eu te amo,
mas meu amor nunca vai ser maior do que o que você sente por ela. Faça o
que deve ser feito. A proteja, se proteja, e quando ela tiver maturidade para
entender tudo o que você fez, nós também estaremos aqui para apoiá-lo.
Só… Por favor, não morra. — Williams ri, e quando ergo o olhar para
acompanhá-lo, vejo uma única lágrima escorrendo por sua face.
Não tenho palavras o suficiente para agradecê-lo pelo voto de
confiança. Pela força. Pelo apoio.
Mas sei que ele sabe o quanto importa para mim.
Sei que sabe o quanto darei a minha vida para me manter vivo. Para
mantê-la viva. Para sobreviver.
— Obrigado. — Agradeço, erguendo-me para lhe dar um abraço
com gosto de adeus.
Me despedi de todos.
Renuncio ao meu juramento.
Kelly chorou como uma criança, implorou para que eu lhe desse
notícias o tempo todo. Implorou para que eu me cuidasse.
Hyuk me abraçou como nunca, apertou a minha mão e olhou nos
meus olhos sem a necessidade de abrir a boca para falar absolutamente
nada. Sei que ele sabe o que se passa dentro de mim, sei que ele entende a
minha decisão e jamais iria contra.
Sentirei falta de todos eles.
Mas deveres são para serem cumpridos.
Eu nunca abriria mão do meu.
Por isto estou prestes a caminhar pelos corredores e partir para o
quarto de Clarke, encaixando as malditas frases que poderão fazer com que
ela aceite vir comigo.
Só preciso dizer que não me importo com o meu cargo.
Que não me importo com nada do que não a inclui.
Que tudo o que quero é moldá-la para a verdade, para que não me
odeie, para que compreenda todos os meus motivos sem que tenha que
testemunhar a escuridão nos seus olhos. Eles são tão lindos para adoecerem.
E eu jamais conseguiria lidar com a dor de seu desprezo.
Só é preciso calma.
Paciência.
Maturidade.
Não é tão difícil.
Eu consigo.
Encaro o relógio, me dando conta de que a noite caiu rápido demais
e que não há mais tempo para adiar essa conversa. Amanhã precisamos
estar longe.
Ela só precisa confiar em mim.
Suspiro, encarando o meu reflexo no espelho antes de dar as costas
para o meu quarto e partir em direção ao corredor. Subo as escadas com
rapidez, ignorando toda a movimentação que nos próximos dias já serão
alvos de minha saudade.
Ao chegar ao salão principal, avisto Marta recolhendo alguns copos
espalhados. Imediatamente me aproximo, certo de que preciso me despedir
dela também.
— Hey, Marta.
Seus olhos encontram os meus e o sorriso que vem em seguida é
praticamente automático.
Nem se eu quisesse conseguiria impedir que o meu brotasse em
minha face.
— Querido! Como você está? — Ela me abraça com força,
arrancando-me um suspiro relaxado. — Não te vejo há dias.
— Estive em uma viagem importante. — Me afasto, tranquilizando-
a. — Estou aqui para me despedir.
Suas sobrancelhas se reúnem, vejo a confusão abraçar a face de
Marta como uma manta.
— Despedir?
Afirmo.
Por que é tão difícil fazer essa merda?
Odeio despedidas.
Marta acompanhou todo meu crescimento. A vida de bosta que
suportei ao lado de Marcus, cuidou de mim, das minhas feridas, não me
deixou desamparado.
Acredito que uma despedida agora será como uma adaga cravada em
seu coração. Afinal, criamos laços em nossas vidas para que sejamos
humanos. É natural. Mas despedidas… Elas nos partem ao meio.
— Renuncio ao meu juramento. Não faço mais parte da academia.
Os lábios de Marta são abertos em completo choque, e a bandeja
sobre suas mãos repleta de copos chega a balançar diante da revelação.
— Você desistiu? Desistiu de tudo?
— Há outras prioridades no momento. — Revelo, engolindo em
seco. — Mas você ainda estará segura aqui. Prometo voltar quando puder.
Antes que eu possa sentir qualquer outra coisa, Marta apoia a
bandeja em algum balcão próximo de nós e me abraça. Por um minuto, fico
imóvel, tentando compreender o que se passa. No outro, estou rodeando seu
corpo com um dos braços enquanto a aperto contra mim.
Não há como ser mais grato.
Por tudo.
Marta também foi responsável por salvar a minha vida, nunca
conseguirei encontrar palavras para agradecê-la.
— É por ela, não é? — Ela sussurra contra o meu ouvido, ainda
abraçando-me. — Ela encontrou o caminho até o seu coração e não sabe a
sorte que tem. Prove ao mundo que seu pai nunca vai conseguir arruinar
você, Jason. Eu sempre acreditei nisso.
Então ela se afasta, sorrindo minimamente ao acariciar o meu
ombro.
— Te vejo em breve? — Ela sorri, e eu a acompanho.
Afirmo na mesma hora.
— Em breve.
Marta sorri e se volta à sua bandeja, desaparecendo pelos corredores
e deixando-me plantado no mesmo lugar com a cabeça a mil. Me sinto
liberto, como se estivesse indo pelo caminho certo.
Me sinto malditamente bem.
Cumprindo o meu dever.
A minha promessa.
Estou prestes a dar meia volta quando erguendo o olhar, vejo Cassie
recostada a uma parede observando-me de longe. Ela me encara curiosa,
parece esperar que eu vá até ela.
Seu olhar é escuro, e a esta altura do campeonato eu sei que a notícia
já está correndo solta pelo prédio sobre a minha renúncia. Sei que nossa
promessa deve estar rodeando a sua mente, mas este agora é um assunto da
academia.
Williams está a par do que deve ser feito.
E com o coração em paz, me viro e parto em direção a ala dos
quartos.
Subo as escadas e sinto meu coração martelando meu peito com
pancadas agressivas. Meu nervosismo é tanto que quando ouço gritos
vindos do salão de treinamentos, sequer dou importância.
Parece que meu cérebro está no mudo.
Mas o silêncio dura pouco.
Dura até o momento em que ouço o meu nome ser chamado em um
grito desesperado.
— Jason! — Alguém grita. — Chamem o Jason!
Imediatamente meu corpo parece sofrer uma descarga elétrica, pois
sequer consigo controlar os meus movimentos ao pular os degraus tão
rápido que por um milagre não me quebro na escadaria.
Minha respiração está descontrolada.
Eu não sei como, com que forças o faço, mas quando invado o salão
e vejo aquelas infinitas armas apontadas direto para a cabeça de Kelly e
outros soldados que deveriam estar em treinamento, meus pés congelam no
chão.
Não me movo.
Não faço besteiras.
Porque agora algo valioso está em jogo.
E se aquele filho da puta não tirar aquela maldita arma da testa de
minha irmã, eu não vou responder por mim.
— Cadê ela? — Um deles rosna em minha direção. — Traga a
garota Mercier agora ou eu vou estourar os miolos dessa inútil!
Os olhos de Kelly estão imersos em água, vermelhos como sangue
assim como o filete de sangue que escorre por seu pescoço, como prova de
que foi ferida antes que eu chegasse até aqui.
Meu sangue ferve, a arma em minha cintura parece queimar pela
ânsia de estourar a testa deste desgraçado. Me sinto impotente novamente,
de mãos atadas. E tudo piora quando o meu silêncio parece irritá-lo ainda
mais para que ele dê um sinal a um outro infeliz que não perde tempo ao
apertar o gatilho e derrubar um dos soldados que se encontrava ao lado
direito de Kelly.
Ela pula, assustada, engasgada em seu próprio choro.
Quanto a mim, só sinto minhas pálpebras tremerem em completa
fúria indomável.
— Não estou para brincadeiras, caralho! A garota, agora! — Ele
grita, forçando-me a apertar os punhos ao lado do corpo com tanta força
que temo quebrar os meus ossos.
— Solte-a. — Ordeno, embora saiba que não estou em posição.
Ele ri, apertando a boca da arma contra sua face propositalmente
para me provocar.
— Acha que tem poder algum? — Debocha, deslizando o objeto
destravado pela bochecha de minha irmã. — Você não é tão importante
assim. Posso matá-lo agora mesmo e o seu pai encontrará outro alguém para
fazer o papel que você estava destinado a fazer. Não é difícil. Acha que
consegue lidar com a morte enquanto tem a ciência de que estamos
estragando tudo o que tentou manter longe de nós? — Ri, amargo. —
Quanta inocência, Floyd.
Rosno, empunhando a minha arma na mesma hora ao apontá-la
diretamente para a sua testa.
— O que é? Vai me matar? — Outra gargalhada. — Não temo a
morte. Se o fizer, amanhã aparecerá outro como eu para roubá-la. Depois
outro, então outro, então outro… É insignificante!
Um ciclo vicioso.
A porra de um ciclo.
Ele não está errado. Sou só uma marionete controlada desde que
nasceu, meu querer nunca é uma opção e minha vida não é apenas minha.
Talvez seja isto que me deixa mais irritado a ponto de apontar a minha arma
em direção a um dos seus companheiros que mantém os soldados
exatamente onde estão.
Então eu aperto o gatilho sem hesitar, com uma fúria eminente
cegando os meus olhos e arrancando qualquer fio de racionalidade que
possa haver em mim.
A bala é certeira em seu peito.
— Eu mato ele. Mato você. Mato o outro, e o outro e quantos forem
necessários — Grito, observando seus olhos sarcásticos seguirem o rastro
de sangue que se espalha ao redor do cadáver, então torna a me encarar com
um sorriso tosco na cara. — Mas se você acha que pode tocar nela, então
realmente terá de me matar. Pois você somente o fará se eu não estiver vivo
para esfolar cada pedaço da sua carne!
Kelly se debulha em lágrimas, como se realmente acreditasse que eu
permitiria que tirassem a sua vida bem na porra da minha frente.
Não.
Não. Não.
— Solte-a. — Rosno, meus olhos queimando como se fossem entrar
em combustão.
Ele me encara em completo desafio, sabe que eu posso ser tão
inteligente quanto ele, mas o que ele não sabe e eu jamais deixaria tão
exposto, é o terror que assola o meu peito e não permite que eu respire
corretamente.
Sinto medo.
Sinto desespero.
Pois fomos pegos desprevenidos.
Outra porra de vez!
Desta vez eu não sei como reagir, pois me sinto tão indefeso que não
consigo pensar. Meu cérebro não quer funcionar e meu peito está tão
inchado que tudo o que desejo é arrancar meu coração para que eu não sinta
absolutamente nada.
As emoções estão me matando.
Estão me dilacerando.
Eu preciso pensar.
Preciso pensar!
Os soldados estão com suas mãos erguidas em rendição, nenhum
deles está com suas armas empunhadas. Talvez seja pelo treinamento no
salão ou simplesmente não quiseram colocar a vida de Kelly em risco, mas
tanto faz, pois meu mundo acaba de ser derrubado quando ouço passos
acelerados subirem as escadas.
Não parecem pertencer a apenas um alguém.
E é exatamente isto que causa um escorrer de suor em minha
têmpora.
Lento e agonizante.
— Puta que pariu! — Ouço Hyuk xingar às minhas costas, então o
ruído de sua arma sendo empunhada soa no segundo seguinte.
Outros passos, mais armas sendo empunhadas, mais xingamentos, e
então subitamente estou rodeado por soldados prontos para iniciar uma
guerra.
Tudo acontece em câmera lenta.
Minha cabeça está uma confusão, e me encontro em um impasse
entre razão e emoção. A qual delas devo conceder o controle? Qual delas
devo permitir que comande as minhas ações?
— Um passo a mais e eu estouro a cabeça dela. — O filho da puta
grita. — Eu quero a…
Ele não consegue terminar a frase.
Minha mente parece girar tantas vezes que perco a capacidade de
raciocinar quando o som de gritos tão familiares alcançam os meus ouvidos
como uma canção de terror.
Imediatamente me viro, alternando o meu olhar entre minha irmã e a
cena que me arranca o fôlego.
Clarke está sendo arrastada pelos braços aos prantos por dois
homens. Dois homens que não possuem uniforme e tampouco são
familiares.
Ela chora tão desesperada que meu controle vai para a casa do
caralho.
Foda-se a razão.
A emoção me parece ser a melhor opção.
— Filho da puta miserável! — Xingo, tentando correr em sua
direção na mesma hora. — Clarke! Eu estou aqui, olhe para mim!
E ela olha.
Seus olhos tão vividos agora são o reflexo de um horror sem
tamanho. Há tanta dor envolvida em suas íris que por um milésimo de
segundo eu cogito a possibilidade de terem a machucado.
Tento ir até ela.
Tento tirá-la das mãos daqueles miseráveis.
É tudo o que quero.
Mas são as mãos de Williams que envolvem o meu braço e me
impedem de obter sucesso em minha missão.
— Não, porra! Calma! — Ele grita, sacudindo o meu corpo como se
soubesse exatamente do estado anestésico em que me encontro.
Mas eu não o ouço.
Invadiram a minha casa.
Invadiram meu território.
Tocaram no que é meu.
Apontaram uma arma para a cabeça da minha irmã.
Colocaram as mãos em Clarke bem na porra da minha frente.
Não penso.
Não há a necessidade de pensar.
Só ajo.
Minha arma empunhada parece ser controlada por seres divinos,
pois mesmo em um estado indomável, ainda sou capaz de mirar o revólver
na direção do homem que tem as mãos agarradas ao corpo de Kelly, e em
um único disparo, seu corpo cai no chão como se já esperasse o seu fim.
Kelly grita, correndo em nossa direção ao buscar amparo.
Então tudo acontece.
Tiros são disparados para todos os lados e eu me movo rápido o
bastante para agarrar a mão de minha irmã e entregá-la a Hyuk. Ela chora
engasgada em seus próprios soluços, e tudo o que consigo fazer é colar os
lábios a sua testa em um beijo rápido antes de dar as costas e procurar por
Clarke.
A confusão se instalou como um vírus.
Todos gritam, atiram, socam e lutam.
O salão se tornou um campo de batalha.
Há sangue por todo o lado, meus pés escorregam em poças e chego a
tropeçar, mas forço meu corpo a se levantar e ultrapassar todos para
encontrá-la.
Meu mundo está prestes a cair.
Estávamos tão perto de estar livre deste pesadelo…
Tão perto!
Corro, uso a minha arma para apagar um ou dois caras que entram
no meu caminho e quando ouço o seu grito chamando por mim, finalmente
consigo sentir o ar voltar aos meus pulmões.
— Jay! — Grita, sua voz me arrasta para o paraíso.
Eu a sigo.
Afasto todos que entram em meu caminho e sigo o som de sua voz,
deixando que os soldados eliminem todos os homens do meu pai para que
eu possa ir até ela. Embora eu queira enfiar uma bala na cabeça de todos
eles por conta própria.
Escorrego outra vez em uma poça de sangue.
E novamente, me levanto já sem forças nos joelhos. Sem fôlego de
vida, sem esperança.
Quando ergo o olhar abatido em sua procura, desta vez eu a
encontro. A vejo sentada no chão, no canto mais afastado do salão
abraçando as suas próprias pernas enquanto esconde o rosto entre as mãos.
Ela chora de um jeito jamais visto, chora como se a dor fosse tanta
que não possa suportar. Chora como se essa vida fosse tudo o que ela não
deseja para si, como se não pertencesse a este lugar.
Então eu entendo.
Não importa o quanto eu tente e o quanto me engane, Clarke não
está segura comigo. Tentei mesmo acreditar que eu sou capaz de mantê-la a
salvo, de ajudá-la a criar memórias reais, a sorrir verdadeiramente, a curar
os seus traumas… Mas quem sou eu para tal função quando nem mesmo
posso fazer o mesmo por mim?
O caos anda lado a lado comigo.
Cresci envolvido por chamas ardentes que nunca serão compatíveis
com o oceano de seus olhos.
Clarke é luz. É vida. É felicidade. Esperança.
Eu sou escuridão, destruição, horror e maldição.
Somos incompatíveis.
Agora eu entendo.
Não posso acreditar que posso protegê-la sozinho quando nem
mesmo consigo fazer isto rodeado de soldados altamente treinados. Quem
seremos nós do lado de fora? Quem eu serei? Quem ela será? Quanto tempo
sobreviveremos?
Não, porra.
Eu tentei.
Tentei mesmo acreditar que era possível.
Mas Clarke pertence a um mundo que não me cabe, e embora eu
queira participar mesmo que como um intruso, terei que me contentar com a
distância.
Ao menos ela estará bem.
E embora eu esteja despedaçado por vê-la partir, reunirei os pedaços
para que ela os coloque em seu devido lugar quando este for o seu desejo.
A amo tanto que dói.
E é por isso que preciso deixá-la partir.
Por isso, quando o salão finalmente se torna um cemitério sangrento,
ela finalmente consegue reunir coragem para erguer os seus olhos e deslizá-
los por cada canto do salão até esbarrar sobre mim.
Vejo felicidade em seus olhos.
Um alívio imensurável.
Então ela se levanta e corre em minha direção.
Seus braços rodeiam a minha cintura com força, manchando minhas
roupas com suas lágrimas dolorosas.
Eu recebo seu abraço, pois sei que esta é uma despedida.
Mesmo que ela não saiba.
A abraço por alguns segundos.
Permito-me respirar por alguns segundos.
Só por alguns segundos.
Mas eles duram pouco, pois no milésimo seguinte, o grito alarmante
me obriga a acender o meu consciente em estado de vulnerabilidade.
— Não!
Acontece rápido.
Nossos corpos se separam rapidamente.
Perco a capacidade de respirar quando abro os meus olhos abatidos e
vejo o corpo de Kelly passar à minha frente como um vulto, colocando-se à
nossa frente como um escudo ao mesmo tempo em que dois disparos
explodem no salão e estremecem a minha carne.
Só consigo compreender o que acontece quando os respingos de
sangue voam para o meu corpo, e atordoado, observo o salão apenas para
perceber que um dos homens havia se arrastado até uma das armas jogadas
ao chão e disparou em nossa direção.
Kelly colocou-se à nossa frente.
Especificamente, à frente de Clarke.
Alguém imediatamente dispara contra o infeliz, apagando-o de vez
enquanto eu em completo terror e paralisação, ajoelho-me diante do corpo
de Kelly e tateio sua pele, encharcando minhas mãos com o seu sangue
apenas para me dar conta de que é real.
Ela foi atingida.
Na minha frente.
O desgraçado sabia que eu me colocaria à frente de Clarke, sabia
que eu sou inteligente o suficiente para prever o seu ataque. Ele contava
com isso.
Contava que fosse o meu corpo caído contra o chão.
Mas o que ele não contava, é com minha vulnerabilidade que
substitui a minha inteligência e reflexo.
Kelly foi mais rápida do que eu.
Malditamente rápida!
— Não, não, não, não… — Pressiono o ferimento, observando a sua
face inexpressiva fitando-me de volta. — Porra!!!!!!!
Ouço passos.
Vejo a multidão aparecer ao nosso redor.
Vejo Hyuk ajoelhar-se ao meu lado.
Vejo Williams ao meu lado, tentando erguer-me pelos braços e ouço
pedidos de socorro direcionados a enfermaria.
Mas não vejo mais nada.
Só sinto dor.
Só sinto culpa.
Caos.
É tudo o que atraio.
Não posso proteger nada.
Não posso proteger ninguém.
E agora eu entendo a maldição que carrego junto a mim, pois onde
eu estiver não haverá uma única alma digna de salvação.
Tampouco a minha.
— Kelly… — Clarke chora, caindo de joelhos ao meu lado. —
Kelly, e-ela…
Seus olhos estão em mim.
Ela tenta me entender. Tenta entender a minha dor, o que estou
pensando.
Mas eu a proíbo.
Sou um mar de decepção ao chorar diante do corpo de Kelly
banhado em sangue, só sei chorar por uma culpa imensurável, uma dor
inconsolável…
Nenhuma palavra sai da minha boca.
Nenhum som.
Nenhum ruído.
Não ouço quando Hyuk grita em direção aos enfermeiros que
invadem o salão, não ouço quando Williams gesticula em direção aos
soldados ao berrar, não ouço quando Clarke parece falar comigo ao meu
lado.
Sequer reajo quando o corpo de Kelly é levado para fora do salão.
Sigo de joelhos, sem reação, com tanta dor que sequer posso
colocar-me de pé.
Decepção.
É o que eu sou.
Para tudo e para todos.
No fim das contas é horrível saber que Marcus sempre esteve certo.
Nunca serei merecedor de nada.
Só da desgraça.
E não importa o quanto doa, o quanto eu me culpe por isto no futuro,
o quanto eu queira voltar atrás e ter feito as coisas de uma forma diferente,
nada vai apagar o que sinto neste exato momento. A sensação da
impotência junto da dor é um mix de sentimentos capaz de matar qualquer
fio de vida dentro de um ser humano, pois tudo o que você quer é conseguir
fazer as coisas da forma correta, mas sabe que ela será dolorosa.
Ainda assim, é uma garantia de que obterá sucesso em sua missão.
Vai doer pra caralho abrir mão do que lutei por anos.
Vai doer pra caralho lidar com seu desprezo ao vê-la crescer
acreditando que eu a abandonei.
Mas que outra opção eu tenho?
É minha única garantia de que ela ficará bem.
Então eu irei embora, para longe daqui. Todos ficarão melhores sem
mim.
Um trágico fim.
Assim como eu sempre mereci.
Me levanto, ignorando-a ao meu lado e agindo como se não me
importasse com a sua dor. Caminho até Williams que massageia a sua
têmpora em um estado perturbado enquanto os soldados parecem tão aflitos
quanto nós, afinal, desta vez conseguiram bagunçar tudo o que construímos
com uma facilidade de impressionar.
Parabéns, Marcus, seu grande filho da puta.
— Williams. — Chamo por ele, observando-o com dificuldade
devido aos olhos nublados pelas lágrimas.
Ele ergue o olhar, chorando assim como eu.
Destruído.
Está de coração partido, esperando que Kelly sobreviva, assim como
eu conto com todas as minhas forças que ela suporte mais esta barra.
Só mais uma.
Sei que vai.
Ela é forte.
Tem que ser.
— Ordene que alguns soldados levem Clarke e o irmão em
segurança para a França agora mesmo. — Digo a ele, enxergando o pavor
em seu olhar diante de minhas palavras. — Não posso protegê-la. Não
posso proteger ninguém.
Lágrimas escorrem de meu rosto sem permissão, e vejo no olhar de
Williams o quanto ele sente muito que eu tenha chegado a esta conclusão.
Não é surpresa alguma.
Estava tão óbvio.
— Tem certeza disso? — Pergunta, confortando-me com uma carícia
no ombro.
Pisco algumas vezes, derramando outras lágrimas no processo.
— Só faça.
E é exatamente o que ele faz ao tomar a mão para si e me deixar
sozinho novamente, esperando pela cena que irá me atormentar pelos
próximos anos.
Ando amargurado.
Buscando por um objetivo na vida que não seja me tornar um
assassino para caçar meu próprio pai pelo mundo.
Estou há meses aqui.
Ainda tento compreender as palavras de Eleanor, ainda tento
compreender o meu propósito de vida e qual o ciclo que preciso quebrar.
Ela é uma incógnita.
Eu me levanto todos os dias, me reúno com os caras e treino horas e
horas, criando músculos onde sempre existiram os ossos aparentes. Estou
me tornando um homem, tudo está cooperando para que eu consiga sentir
que sou um ser humano.
Um ser humano que se alimenta, que caminha com as próprias
pernas, que tem livre arbítrio, que pode sorrir, que pode falar e fazer
perguntas sem temer a surra que viria em seguida.
É libertador, embora eu me sinta como um peixe fora d’água. Como
se me faltasse alguma coisa.
Temo que eu tenha me habituado com a vida infeliz ao lado de meu
pai, assim como me habituei as surras e as punições. Agora eu sinto como
se quando ela aparecer novamente, a dor será ainda mais dilacerante do
que qualquer outra vez.
É assim que funciona.
Ele me educou para isto. Para esperar pela dor e me preparar para
senti-la.
O silêncio me incomoda tanto que cansado de esperar por uma
solução para a minha amargura, me levanto e caminho pelos corredores do
prédio em busca de uma mínima distração que pode me tirar desta solidão.
Caminho por entre os salões, observo os caras treinando em
conjunto uma espécie de luta livre. Eles comemoram e parecem se divertir
tanto quanto eu o fiz na última vez que pratiquei.
Foi bom.
Me senti forte, me senti capaz de ignorar a angústia que me
preenche todas as vezes que volto para o meu quarto e observo o teto sem
cor, esperando por algum objetivo de vida.
A vida aqui é libertadora, não posso negar. Os caras são receptivos,
embora ajam como se eu fosse um iniciante.
Não é a minha primeira vez extravasando em lutas.
Este hobbie já faz parte de quem eu sou desde que aprendi que a
dor de um soco causado por um desconhecido nunca será mais doloroso do
que um causado por meu pai.
Eu tiro de letra.
Não é nenhuma novidade.
Observando uma ou outra luta, movo meu olhar até a entrada no
salão quando avisto Williams, o líder, invadir o lugar e cumprimentar
alguns caras amigavelmente.
Ainda não sei o que pensar a seu respeito. Tudo o que sei é que ele é
bom em reparar em mim.
Pois mesmo que ele fale com os demais integrantes, seu olhar está
repousado sobre mim. Parece investigar a minha expressão.
Fico parado, esperando até que ele venha até mim.
Não vai demorar muito.
Pessoas como ele curtem fazer perguntas quando não conseguem
desvendar um olhar.
Encosto em uma das paredes, sentindo a minha cabeça doer por
tanta informação que me traz um desconforto sem igual. Preocupação é a
principal delas.
Quando fugi de casa com a ajuda de Eleanor jamais pensei que meu
pai fosse aceitar isto de bom grado, já que eu sempre fui aquele ao qual ele
conta com a cooperação. É compreensível que eu esteja tão aflito, pois
conheço aquele que me colocou no mundo.
Ele nunca aceita a derrota.
Um dia a cobrança vem, e sei que independente de quando venha,
será igualmente dolorosa.
— Está pensativo. — Ouço a voz de Williams ao meu lado e me viro
de imediato, estranhando o fato de não ter notado a sua aproximação. Ele
sorri com a minha surpresa. — O que se passa na sua cabeça para que
baixe a guarda desta maneira?
Franzo a testa, odiando estar decifrável.
Odeio sair da minha zona de conforto.
— Nada. — Sou direto. — Eleanor não aparece há dias. — Constato
o óbvio, esclarecendo que tudo que desejo são respostas.
Ela não aparece desde a nossa última conversa sobre a quebra de
um ciclo. Me deixou aqui, confuso, querendo saber o que tenho que fazer
para finalmente me sentir útil.
No entanto, até o momento, tudo que sinto é que sou unicamente
inútil.
Williams cruza os seus braços, suspirando ao meu lado.
— Não sei dizer se ela volta.
Sua resposta me faz encará-lo de imediato.
Todas as pessoas podem considerar estúpido o quanto me apeguei a
uma pessoa que mal conheço pelo simples fato de ter me resgatado.
Mas é exatamente isto que aconteceu.
Eleanor e sua bondade ganharam um espaço único em meu peito,
pois ela foi a primeira a oferecer este tipo de demonstração a mim.
A oportunidade de viver, não sobreviver.
Acreditar que não a verei novamente esmaga meu peito de uma
forma angustiante, pois eu realmente criei uma afinidade com a mulher que
desconhecia até três meses atrás.
— Como assim? — Pergunto, minha voz falha no processo. — Onde
ela está?
Williams observa a luta que tinha a minha atenção a alguns
segundos, mas vejo o movimento de sua garganta ao engolir em seco.
Parece tão incômodo quanto eu.
Embora sua expressão seja sempre tão rígida.
— Em uma missão para matar o seu pai. — Seus olhos encontram
os meus como flechas incendiadas. — Isso fere você?
Me impressiono com a rapidez com a qual balanço a cabeça em
negativo.
— Ela está sozinha? — Há terror em minha voz. — Meu pai pode
ser traiçoeiro quando quer, ela estar sozinha para matá-lo é um erro. Ele
vai destruí-la.
Meu pai vai matá-la.
Sem remorso.
Sem hesitar.
Pois é este o seu plano, destruir as vidas de qualquer um que ouse ir
contra as suas vontades.
Pensar na hipótese de receber a notícia de sua morte me apavora de
uma forma tão agressiva que sinto o ar fugir de meus pulmões. Nunca me
senti tão decidido a ajudar alguém a matar o homem que deseja me
destruir.
Mas não por esta razão.
E sim pela possibilidade dele arrancar uma das únicas pessoas a
enxergarem a minha alma nua e crua.
— Ela é treinada para isso. Há soldados com ela, mas ainda assim
não posso intervir. Estou em posição de receber ordens, não de decretá-las.
Me viro.
— Me diga onde ela está. — Peço, sentindo-me tão apavorado que
meus olhos ardem. — Por favor, me diga.
— Não posso. — Afirma. — Mas não se preocupe, ela ficará bem.
Assim como você.
Ele se vira e me deixa exatamente onde estou, com o coração
doendo de pavor enquanto os pensamentos me levam ao paradeiro de seus
filhos. Da dor que eles sentirão se ela for morta para eliminar um homem
como meu pai.
Ela não merece esse fim.
Seus filhos não merecem sofrer pela ausência da mãe que tanto os
protege.
Meu pai me feriu por toda a minha vida, ele me machucou de tantas
formas que até hoje não consigo encontrar os restos dilacerados que me
foram arrancados. Se alguém tem motivos o suficiente para matá-lo, sou
eu. E embora eu tema falhar no processo, ainda sim estarei lá por Eleanor
assim como ela esteve lá para mim quando eu acreditei ter perdido as
esperanças.
Não importa o que eu faça, vou encontrá-la.
Vou impedir que ela destrua a sua vida.
Não importa o quanto eu seja fraco para bater de frente com meu
pai, eu vou tentar ser forte até o fim.
Por ela.
— Porra!
As lágrimas caem de meus olhos como água de um riacho. Sem
controle. Nunca me senti tão impotente em toda a minha vida, tão inútil e
pequeno, frágil e indefeso.
Choro mesmo. Sem remorso.
Até soluçar.
Estou sozinho no jazigo, caído no chão como um saco de bosta
chorando como uma criança, sem coragem o bastante para me colocar de pé
e correr atrás dela.
Para impedir que fuja.
Que saia.
Que me deixe.
Sou um imbecil do caralho, afinal, quando foi que existiu algum
espaço para os meus desejos?
Eles são inúteis.
Não importam.
Mas agora, a manta que cobria os meus olhos finalmente parece cair
por terra. Agora eu vejo. Eu vejo o quanto a machuquei, o quanto a
destrocei quando acreditava que estava protegendo-a.
Já me senti um grande bosta muitas outras vezes, incapaz e fraco,
mas nada, nada pode se comparar com a dor que atravessa meu peito e me
impede de respirar. É como se eu estivesse me afogando, me matando
sozinho por um ar que eu não quero inalar.
Não quero sentir.
Não quero acreditar que eu causei tudo isto.
Não quero acreditar que eu fui burro o bastante para deixar que meu
pai controlasse minhas ações.
As marcas em seus pulsos…
Porra.
Ela estava ferindo a si mesma por todo este tempo enquanto eu me
feria ao mantê-la afastada.
Tudo porque acreditava que a estava protegendo.
Mas ela está tão ferida, inferno. Tão destroçada de uma maneira que
nunca a vi, está quebrada de tantas formas que duvido da minha capacidade
de consertá-la.
Eu serei capaz?
Serei capaz de curar as feridas que eu causei?
Não me lembro de uma vez na qual eu tenha me sentido tão
quebrado. Nem mesmo quando estava na cela, fantasiando com a vida real
que já não cabia a mim, desejando-a por perto, desejando o seu perdão,
desejando o seu amor capaz de me curar…
Eu não me senti tão inútil.
Porque antes eu tentei.
Eu tentei tê-la comigo. Eu tentei lutar para que pudéssemos quebrar
o ciclo de nossos destinos, tentei desviar da maldição e tentei vencer. Tentei
mesmo.
E eu falhei.
Tudo o que eu pensei quando fui liberto, era que eu deveria mantê-la
afastada pois a maldição de seu futuro está em mim. No homem que ela
confiou a sua vida e seu coração, e eu precisei arrancar o meu do peito para
manter o seu funcionando.
Isso até eu descobrir que não há um no meu peito, tampouco no
dela.
Quebrados.
Esmagados.
Dilacerados.
Manipulados.
— Sinto muito. — Ergo o olhar, observando a lápide de Eleanor
com os olhos nublados e o rosto encharcado. — Sinto muito por quebrar
minha promessa.
O soluço me rasga a alma.
— Não sei mais o que fazer. — De joelhos, eu fito a caligrafia de
seu nome como se ela pudesse me enviar o seu socorro. — Eu te prometi
que manteria ela à salvo, e eu fiz isso por todos esses anos. Mantive ela
longe de mim.
Me sinto sufocado.
Sem ar.
Sem oxigênio.
Sem propósito de vida.
Só sei chorar e desabar como nunca o fiz.
— Mas hoje eu tive a certeza de que minha ausência a quebrou mais
do que minha presença. — Engasgo com um soluço. — E eu nunca vou me
perdoar por isso. Nunca vou me perdoar por partir o coração que manteve o
meu funcionando mesmo quando eu queria arrancá-lo do peito.
Levo as mãos aos olhos, a cabeça, ao rosto, arrastando a palma por
todos os cantos como se pudesse amenizar o buraco incurável que sinto em
meu peito. A sensação de morte é presente, pois é como se todos os meus
órgãos tivessem desistido de lutar para me manter vivo.
— Eu a amo tanto. — Soluço, enquanto as lágrimas seguem
jorrando de meus olhos. — Tanto, tanto, tanto, tanto…
Meu pai me estragou tanto.
Ele me amaldiçoou.
Me jurou a infelicidade.
E agora eu entendo a dimensão de seu desejo, pois eu nunca estive
tão arruinado. Sem controle de minhas emoções, eu só sou um pedaço de
carne no prato de todos aqueles que lutaram para me ver definhar.
É o que eu sou.
Um ninguém.
— Espero algum dia poder dizer isso a ela sem temor. — Suspiro,
consciente de que nunca poderei fazê-lo ao mirar seus olhos cobertos por
um ódio ao qual sou merecedor.
CONTINUA…
Eu diria que Survivors é um desabafo.
Mas há diversos sentidos que podem ser interpretados de forma
totalmente errada à que eu realmente desejo. Então eu vou dizer que
Survivors é o meu refúgio.
Survivors apareceu na minha mente enquanto eu passava por uma
fase muito difícil da minha vida na qual pessoas próximas a mim saberão do
que estou falando.
É um livro cheio de camadas, de sentimento, de emoção, de amor,
de um transbordar imenso de infinitas emoções reunidas em um só lugar.
Foi assim que eu me senti quando comecei a escrever.
É por isso que, primeiramente, quero agradecer a mim, Roxie, por
tanta iniciativa. Eu nunca fui de expor o que sentia, nunca fui de falar ou
demonstrar o que muita das vezes me sufocava. Mas aqui, em Jason, em
Aspen e em suas cicatrizes, eu encontrei uma casa na qual eu precisava me
refugiar para sobreviver à minha própria mente.
E eu consegui.
Eles me ensinaram muitas coisas.
Eles me amadureceram.
E eu amo cada pessoa que se refugiou em nossa casa e encontrou
paz junto a nós.
Quero fazer um segundo agradecimento mais que especial à minha
mãe.
Você é para sempre a minha inspiração. Guerreira, batalhadora,
amorosa e, sem dúvidas, o meu girassol. Obrigada por sempre trazer luz à
sua estrelinha e fazer com que ela brilhe sempre que o desânimo tenta
apagá-la.
Obrigada, Bia Chagas, por ser uma das melhores amigas que o meu
trabalho me trouxe. Obrigada por me ouvir, por me incentivar, por me
orientar quando algo está errado, por levantar a minha cabeça e
principalmente, por demonstrar tanto afeto por eles tanto quanto eu. Você
tem um lugarzão aqui dentro. Te amo, amiga.
Obrigada, Kelly. M, por me ajudar quando nem mesmo eu
acreditava em meu potencial. Obrigada por ser amiga, companheira,
simpática e amorosa. Você é foda e eu nunca vou cansar de dizer isso pra
você. TE AMO MUITO. Nunca me esquecerei do quanto você me apoiou lá
no comecinho, quando eu sequer pensava em publicar o meu livro.
Obrigada, Talibah Casillas, por ter sido uma grande força em todo o
meu lançamento. Por ter me dado a sua mão e se desvirado junto a mim
para que o lançamento fosse perfeito, assim como eu sonhava. Você foi
caprichosa em cada detalhe, obrigada por ser incrível.
Obrigada, Ana Santos, Joh, Bily e Luana (com seus conselhos
maravilhosos). Vocês foram presente de Deus.
E obrigada, leitores, por estarem aqui.
Sem vocês eu não seria nada, tampouco teria a chance de colocar a
história de Jason e Aspen no mundo.
Amo vocês de todo o meu coração.
E espero ter conquistado o de vocês.
Até breve com a parte II.
OBRIGADA POR TUDO.
Roxie.