Um Teatro em Nome Da Liberdade PDF
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Meu Deus, vem olhar, vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade até o dia clarear
Ai que vida boa, ô lerê,
ai que vida boa, ô lará
O estandarte do sanatório geral vai passar
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 08
REFERÊNCIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 256
ANEXOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 264
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque
e suas relações midiáticas
RESUMO
O objeto deste trabalho é o teatro de Chico Buarque, especialmente suas peças
criadas como frutos de um processo de adaptação. São elas: Calabar, o elogio da traição,
Gota D`Água, e Ópera do Malandro. Como objetivos da análise buscamos respostas às
questões relacionadas aos processos midiáticos envolvidos na criação, produção, divulgação e
crítica desses produtos culturais e a compreensão da poética do artista no momento político
em que as obras se realizaram, o período da ditadura militar brasileira. É condição primordial
de análise o contexto histórico, político e cultural em que as peças foram escritas e tiveram
suas primeiras encenações. O entendimento das mesmas envolve a análise do discurso
dramatúrgico e os processos midiáticos decorrentes da criação, produção e divulgação das
obras: autoria, adaptação, montagem de peça teatral, reportagens, críticas jornalísticas e
materiais de divulgação.
PALAVRAS-CHAVE
Teatro de Chico Buarque; Cultura Brasileira; Cultura Midiática, Ditadura Militar
Brasileira; Calabar - o elogio da traição; Gota D’Água; Ópera do Malandro.
A THEATER IN THE NAME OF FREEDOM
A research about Chico Buarque's dramaturgy
and its media development
SUMMARY
The subject of this work it is the theatre of Chico Buarque, specially the plays he
created through a process of adaptation. The plays are: Calabar, o elogio da traição, Gota
D'Água, and Ópera do Malandro. Through the analysis, we look for answers regarding the
mediatic processes involved in the creation, production, publishing and criticism of these
cultural products, as well as the comprehension of the artist's poetry line, based on the
political moment these plays were performed, the Brazilian military dictatorship´. It is a main
condition of analysis the historical, political and cultural context in which these plays were
written and first produced on stage. Their acknowledgment also involves an analysis of the
dramaturgic speech and the mediatic processes that follow creation, production and
publishing of these artistic products: authorship, adaptation, the making of the play, news,
journalistic critics and publishing material
KEYWORDS
Theatre of Chico Buarque; Brazilian Culture, Midia Culture, Brazilian Military
Dictatorship; Calabar - o elogio da traição; Gota D'Água; Ópera do Malandro.
UN TEATRO EN EL NOMBRE DE LA LIBERTAD
Un estudio sobre la dramaturgia de Chico Buarque
y sus relaciones con los medios
RESUMEN
El objeto de este estudio es el teatro de Chico Buarque, en especial sus obras
creadas como fruto de un proceso de adaptación. Son ellas: Calabar, en alabanza a la
traición, Gota D' Água y Ópera do Malandro. Como objetivos de esa analisis, buscamos
respuestas a preguntas relacionadas a los procesos que interviene en los medios de
creación, producción, difusión y critica de los productos culturales y la compreension de la
poetica del artista, en el momento politico en lo cual las obras se llevaron a cabo, el periodo
de la dictadura militar en Brasil. Es una condición esencial para el analisis el panorama
historico, politico y cultural en que las obras fueron escritas y tuvieron sus primeras
presentaciones. La comprension de ellas acapara la analisis del discurso dramaturgico y los
procesos de los medios de comunicación que surgen de la creación, producción y difusión de
las obras: la autoria, la adaptacion, el montaje de la obra teatral, reportajes,
criticas periodistica y materiales de difusión.
PALABRAS-CLAVE
Teatro de Chico Buarque; la cultura brasileña; la cultura de los medios de
comunicación; la dictadura militar brasileña; Calabar - o elogio da traição; Gota D'Água;
Ópera do Malandro.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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INTRODUÇÃO
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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Os caminhos de uma mesma história: exemplos de alguns produtos culturais (capas de livros, discos e DVDs,
telas, ilustrações e cartazes de peças teatrais e filmes) de diversas épocas e países, resultantes de Ópera do
Mendigo de John Gay (1728) e suas adaptações: Ópera dos Três Vinténs de Bertold Brecht e Kurt Weil (1928) e
Ópera do Malandro de Chico Buarque (1978).
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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INTRODUÇÃO
A
pesquisa que apresentamos se refere às peças teatrais de autoria de
Chico Buarque, frutos de um processo de adaptação e aos produtos
culturais e midiáticos resultantes dessas obras: livros, discos, filmes,
anúncios e reportagens. Compreender a dramaturgia buarqueana e suas implicações midiáticas
foi o objetivo norteador desse estudo em que as obras analisadas foram as seguintes:
Calabar, o elogio da traição: escrita em 1973, em parceria com o cineasta Ruy
Guerra. A primeira montagem desse drama histórico dirigido por Fernando Peixoto foi
censurada na estréia. A peça discute a posição de Domingos Fernandes Calabar no episódio
da história brasileira denominado Guerra Brasílica, em que tomou partido em favor dos
holandeses contra a coroa portuguesa, então incorporada à monarquia hispânica.
Gota D’Água: grande sucesso do teatro brasileiro, inspirado em Medeia, de
Eurípedes e em sua versão televisiva de Oduvaldo Vianna Filho. A tragédia carioca de Chico
Buarque e Paulo Pontes foi encenada, primeiramente, em 1975 com direção geral de Gianni
Ratto e direção musical de Dori Caymmi. Seu texto, lançado em livro tornou-se um Best-
seller da indústria editorial brasileira.
Ópera do Malandro: a comédia musical, enredada no Brasil do período Getulista,
estreou em 1978, com direção de Luís Antônio Martinez Corrêa. É baseada em Ópera do
Mendigo (1728), de John Gay e na Ópera dos Três Vinténs (1928), de Bertold Brecht e Kurt
Weil. Recebeu adaptação para o cinema e teve sua trilha musical transformada em disco em
que várias canções conquistaram grande popularidade e grande repercussão por meio do
rádio.
Durante a realização dessa análise também serão merecedoras de considerações as
outras obras dramatúrgicas da autoria de Chico Buarque. São elas:
Roda Viva: texto de estréia de Chico Buarque como dramaturgo. Criada no final
de 1967 e levada à cena em 1968 sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, o espetáculo
se tornaria emblemático na história do teatro brasileiro como um marco da violência e do
patrulhamento cultural e ideológico imposto pela ditadura militar. O Teatro Galpão, sala de
espetáculos paulistana em que a peça era encenada foi invadido pelo grupo de extrema direita
CCC - Comando de Caças aos Comunistas, resultando na destruição do espetáculo e
espancamento de seu elenco.
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Segue ainda sua trajetória a consagrada obra shakespeariana inspirando outras artes e outros
produtos culturais e midiáticos, como a ópera homônima de Ambroise Thomas, como a
animação infantil cinematográfica O Rei Leão da Walt Disney Productions, como o ensaio
crítico Hamlet Poema Ilimitado de Harold Bloom ou ainda, simplesmente em leituras
imagéticas, através das telas de Eugène Delacroix, Edwin Austin Abbey, entre outros.
No Brasil o recontar histórias ocorre, por exemplo, na obra de Ariano Suassuna, O
Santo e a Porca, comédia que vem sido recontada a milhares de anos dentro da própria forma
dramatúrgica teatral, como Manuel Bandeira sintetiza com extrema simplicidade e clareza de
grande escritor na abertura do livro O Santo e a Porca e o Casamento Suspeitoso:
Não me lembro em que circunstâncias, reli há muitos anos Senhora dos Afogados e, de
repente, saltou para mim o seu vínculo com Mourning Becomes Electra (O Luto Assenta
a Electra ou Electra e os Fantasmas, título do volume português, ou ainda Electra
Enlutada, nome da tradução brasileira), a bela trilogia de Eugene O’Neill. Encontrei-me
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logo depois com Nelson Rodrigues e quis saber por que ele não revelara ter feito uma
paráfrase da obra norte-americana. Nelson achou muita graça e disse do seu espanto ao
passar despercebida a semelhança quando das primeiras leituras dos amigos e na estréia
do espetáculo, no Teatro Municipal do Rio, em 1º de junho de 1954. Observar tão
proposital evidência, segundo o dramaturgo, era tarefa do crítico, e não dele.
(RODRIGUES, 1981, p.37)
Magaldi conclui que a admiração de Nelson Rodrigues por O’Neill serviu apenas
como um estímulo inicial à criação da peça já que, ao contrário da peça norte-americana, o
texto de Nelson partiu para uma realização livre ao que se refere ao mito grego original,
estando sua obra contaminada por outros valores, próprios do mundo rodriguiano.
Seja no formato de “imitação” como propõe Ariano Suassuna para sua obra em
relação à de Plauto ou pelo simples estímulo de criação como observa Sábato Magaldi na
relação das citadas obras de Eugene O`Neill e Nelson Rodrigues, as adaptações sempre
marcaram as artes cênicas resultando em algumas grandes criações artísticas, obras de
referência da literatura, do cinema, da televisão e do teatro.
As adaptações, também denominadas de transposição, transmutação, ou ainda
transcodificações (nesse último caso, o termo é aplicado quando envolve a mudança das
mídias no processo – de um livro para um filme, por exemplo) têm por principal objetivo a
manutenção de conteúdos, ideias, personagens ou narrativas em maiores ou menores graus de
fidelidade à obra original e, geralmente, com profundas mudanças na estrutura do discurso:
inteiramente o texto considerado como simples matéria. Esta prática teatral levou a se tomar
consciência da importância do dramaturgo para a elaboração do espetáculo”;
Ainda em um terceiro sentido, o termo é empregado como tradução, processo em
que se adapta o texto original de língua estrangeira a um novo contexto de recepção, em que
são feitas supressões e inclusões julgadas necessárias aos fatores culturais e lingüísticos do
idioma receptor.
É notável que a maioria das traduções se intitule, hoje, adaptações, o que leva a tender a
reconhecer o fato de que toda intervenção, desde a tradução até o trabalho de reescritura
dramática, é uma recriação, que a transferência das formas de um gênero para outro
nunca é inocente, e sim que ela implica a produção do sentido. (PAVIS, op. cit., p.11)
Chico Buarque, na versão brasileira; livros de textos teatrais como na Ópera do Malandro,
adaptada de duas peças: Ópera dos Três Vinténs de Bertold Brecht e músicas de Kurt Weil e
Ópera do Mendigo de John Gay, na qual Brecht se baseia e, ainda, como ocorreu em Gota
D’Água, cuja inspiração nasce da tragédia grega Medeia de Eurípedes e ainda de sua versão
televisiva criada por Oduvaldo Vianna Filho.
Embora as adaptações teatrais tenham sempre ocorrido nos processos das
adaptações, as questões relacionadas à qualidade do produto final adaptado pouco foram
exploradas no sentido crítico, como produtos comunicacionais. Diferentemente do que ocorre
com as obras literárias adaptadas para o cinema e para a TV, os estudos de comunicação
focados nas análises decorrentes das relações intermidiáticas pouco observaram esse processo
em relação aos meios, livro VS. teatro.
Ainda que nos estudos midiáticos da atualidade o teatro não receba uma
abordagem típica de meio de comunicação de massa é historicamente inegável que o teatro foi
o primeiro e, durante alguns séculos, o único meio de comunicação com características
próximas as que no mundo contemporâneo tipificam um meio massivo. Essa abrangência do
meio teatral pode ser observada, por exemplo, na Grécia, no seu período clássico, em que as
cidades-estado tinham uma população em torno dos 100 mil habitantes e onde o Teatro de
Dioniso em Atenas, tinha capacidade para uma audiência de 17 mil pessoas por espetáculo, já
em Tomaros, o Teatro de Dodona comportava 18 mil pessoas. Nas palavras de Margot
Bertold (2001, p. 103), na obra História Mundial do Teatro “o teatro é uma obra social e
comunal: nunca isso foi mais verdadeiro do que na Grécia antiga. (...) A multidão reunida no
Theatron não era meramente espectadora, mas participante, no sentido mais literal.” Esse
mesmo sucesso popular também pode ser observado na história do teatro romano, ou em
Londres, no período áureo do teatro elisabetano, ou ainda em Veneza, no século 17, em que a
cidade possuía 14 grandes teatros funcionando regularmente.
Ao contrário dessas suas características populares do passado, o teatro, em seu
formato original, hoje é tido como meio de resistência aos padrões da cultura de massa.
Veículo de cultura e entretenimento, uma das formas mais vivas e completas da comunicação
e da arte. No mundo globalizado da comunicação de massa, o teatro se destaca por sua
comunicação pessoal e direta, característica presente apenas nas obras de arte, como teorizado
por Walter Benjamin (1973), através do conceito de Aura, em que o autor aponta a
importância da autenticidade, unicidade e originalidade (hic et nunc), que com a
reprodutibilidade técnica é danificada.
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A peça [em referência à Lisístrata] de Aristófanes foi uma tentativa real de acabar com
uma guerra de verdade; (KURY, 1998, p. 9)
Esta comédia [em referência à Praxágora] é uma sátira às teorias de certos filósofos da
época, principalmente os sofistas, que mais tarde se cristalizaram na República de Platão.
(KURY, op.cit., p. 50)
O teatro, cujo papel foi de grande relevo na Revolução Francesa, reencontrou durante a
Revolução Bolchevista a sua eficácia como propaganda. Sketches ligeiros, adaptados aos
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expressão artística, reunia uma capacidade maior de influência sobre o público, sendo no
período em questão, portanto, mais adequado que os outros meios de comunicação na
propagação de ideias libertárias contrárias ao regime ditatorial vigente.
Na realização do trabalho, a metodologia empregada foi a Pesquisa Qualitativa
fundamentada nas técnicas da Pesquisa Descritiva, a partir do levantamento, observação e
registro de materiais potencialmente relevantes para o estabelecimento das possíveis relações
entre o contexto político e cultural do país e a criação das obras dramatúrgicas realizadas.
Ressalte-se aqui a importância da natureza descritiva desse trabalho como uma forma de
objetividade e controle, uma tentativa de não manipulação na busca de comprovações
hipotéticas.
Realizou-se a seguir uma interpretação das informações levantadas em
cruzamento com os conteúdos ideológicos presente nas peças. Nessa fase do trabalho foram
empregadas técnicas da Análise de Discurso. Foram realizados estudos específicos para cada
uma das peças, resultando em três unidades de análise. Posteriormente, para uma análise final,
essas unidades são observadas como um conjunto.
Os procedimentos básicos abordados foram os seguintes:
1. Identificação das obras e fatos que atuaram como fonte inicial para a criação da
peça e as razões dessas escolhas, a partir da declaração do próprio autor e de
outras fontes documentais relevantes;
2. Resgate, em linhas gerais, sobre a trajetória artística do autor e o momento
histórico das obras ou fatos que atuaram como geradores do processo de
adaptação das peças em questão;
3. Análise das peças em que se destacaram os seguintes aspectos: a busca de
elementos de propagação ideológica ou de defesa de valores contrários ao regime
político vigente e a busca do entendimento dos motivos de manutenção das
principais similitudes e da introdução de diferenciais entre as peças teatrais
analisadas e as obras originais ou fatos geradores do processo de adaptação;
4. Levantamento dos produtos culturais decorrentes das montagens das referidas
peças – livros e discos e materiais de divulgação das peças e análise, do ponto de
vista das funções estéticas e mercadológicas, desses materiais;
5. Verificação sobre a repercussão da montagem das peças no âmbito do
jornalismo cultural da época de suas estréias. Para isso foram selecionadas as
principais revistas nacionais e os jornais paulistas e cariocas do período. A seleção
se caracteriza como Amostragem Não Probabilística, nos preceitos da estratégia
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A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da
gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra
discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de
movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o
estudo do discurso observa-se o homem falando.
Na análise de discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto
trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua
história.
Logo o discurso foi aqui observado não em seu sentido lingüístico estrutural, mas
sim do ponto de vista semântico, privilegiando os aspectos presentes no desenvolvimento
completo das idéias, buscando a significação dos enunciados transmitidos na obra teatral cujas
principais características comunicacionais são o desenvolvimento de um enredo, colocado em
cena através da oralidade e das ações dramáticas, num determinado momento histórico para
um determinado público.
Para a realização das análises, consideramos que ao produzir seu discurso, um
indivíduo estará sempre marcado por interferências advindas de um conjunto de discursos
anteriores. Estímulos interiorizados a que todos estamos submetidos e que constituirão as
nossas representações discursivas, formadas da experiência de vida, conforme relatado nos
estudos de Pêcheux, como afirma Maria do Rosário Valencise Gregolin (2003, p.27):
O sujeito não é considerado como um ser individual, que produz discursos com liberdade:
ele tem a ilusão de ser o dono de seu discurso, mas é apenas um efeito do ajustamento
ideológico. [...] um pré-construído (um já-lá), que remete ao que todos sabem, aos
conteúdos já colocados para o sujeito universal, aos conteúdos estabelecidos para a
memória discursiva.
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A análise sobre as relações entre o sujeito discursivo, sua história de vida, o tempo
e contexto social em que o discurso foi realizado parece ser um ponto de convergência entre
os principais pesquisadores do método. Em suas considerações conceituais Eni Orlandi
também nos apresenta a importância do encontro entre os estudos da língua com os fatores
sociais e nos aponta que na análise de discurso devem estar articulados, particularmente, os
conhecimentos das ciências sociais com os domínios lingüísticos e que essa articulação tem
por objetivo uma transformação das práticas das ciências sociais e dos estudos da linguagem,
definimos como as funções de emissor e receptor. O papel do sujeito discursivo ou, no caso, o
emissor, é a criação de uma estratégia de discurso adequada ao entendimento da recepção,
sendo, então, uma forma de agir sobre o receptor, num ato de persuasão. Essa ação persuasiva
do discurso, no entanto, está sujeita às interferências causadas, que Maingueneau descreve
como princípio do dialogismo, em que aborda as relações entre sujeito discursivo e
interlocutor, entre discursos concordantes e discordantes que podem ser integrados a um
determinado discurso e, ainda, do discurso como parte de uma rede interdiscursiva em que
diversas posições ideológicas interagem.
Sobre a relação entre ideologia e discurso, procuramos o entendimento proposto
por Helena H. Nagamine Brandão (2009, p.46): “O discurso é uma das instâncias em que a
materialidade ideológica se concretiza, isto é, é um dos aspectos materiais da ‘existência
material’ das ideologias.”
Finalmente, destacamos ainda que nos estudos discursivos forma e conteúdo
caminham juntos. Procuramos compreender a língua além se sua forma estrutural, mas,
sobretudo, como um acontecimento criado por um sujeito discursivo afetado pela sua história
de vida e pelo contexto psicossocial em que se insere. Assim, em uma análise de discurso:
uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica, psicológica
ou linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a uma
interpretação coerente. (...) saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da história
sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação estética que assimilou a
dimensão social como fator de arte. (2008, p.7)
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É comum afirmar-se, segundo a orientação dada por Ferdinand de Saussure, que todo
signo possui dupla face: o significante e o significado. O significante é o aspecto concreto
do signo, é a sua realidade material, ou imagem acústica, O que constitui o significante é
o conjunto sonoro, fônico, que toma o signo audível ou legível. O significado é o aspecto
imaterial, conceitual e que nos remete a determinada representação mental evocada pelo
significante. (CITELLI, 2005, p.24)
uma poética é eficaz somente se adere à espiritualidade do artista e traduz seu gosto em
termos normativos e operativos, o que explica como uma poética está ligada ao seu
tempo, pois somente nele se realiza aquela aderência e, por isso, se opera aquela eficácia.
A definição de um conceito de poética é muito útil ao crítico, antes de tudo porque
esclarecer a poética de um artista, isto é, colher sua espiritualidade no ato de individuar-se
num gosto de arte, colher este gosto no ato de manifestar-se na sua eficácia normativa e
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Como homem de teatro, poucos foram capazes, como ele, de fundir harmoniosamente a
maestria artística e a consciência social, completando um perfil de cidadão serenamente
destemido e participante, sempre na linha da melhor orientação política. (FERNANDES,
et al , 2004, p.19)
necessidade, ainda atual, de que sejam estudados aspectos particulares e quase desconhecidos
do nosso palco, para que possa ser elaborada a história que o teatro nacional merece.
As questões multimidiáticas que particularizam este estudo também se
apresentaram como uma justificativa para a realização do mesmo. O caminho percorrido pelas
peças de Buarque é riquíssimo, do ponto de vista da análise dos processos comunicacionais,
pois observamos a interação de diversos outros meios, como os livros, filmes e discos
originados a partir da realização das peças e ainda as matérias jornalísticas de caráter cultural
resultantes das suas montagens.
Outra questão que justificou a investigação proposta refere-se ao discurso
ideológico. As pesquisas sobre a interpretação de obras da dramaturgia sob a ótica da
comunicação persuasiva pouco têm sido exploradas em estudos de caso. Nesse sentido
observar o processo da comunicação persuasiva na obra de um grande artista brasileiro,
referência quando se trata de dramaturgia de caráter social transformador, nos pareceu
relevante.
Finalmente, pela abordagem histórica em que esse estudo é contextualizado: a
Ditadura Militar, período crítico na vida do povo brasileiro, como tão bem nos aponta os
trechos da crônica In Memorian de Paulo Roberto Angel (2008):
NASCE UM ÍDOLO
O
início da carreira profissional de Chico foi um caso de sucesso como
formação de opinião pública. Quase que uma unanimidade nacional se
forma, unindo em convergência de opiniões o público do festival, a
massa de telespectadores e a intelectualidade brasileira, após a comoção que causa a exibição
de sua música A Banda, primeira colocada no II Festival da Música Popular Brasileira da TV
Record em 10 de outubro de 1966.
A canção apresentada pela já renomada cantora Nara Leão e pelo autor, até então
desconhecido do público nacional, envolve o país todo e, definitivamente, coloca Chico
Buarque entre os grandes nomes do cenário artístico brasileiro. A imagem de bom moço
construída pelos seus próprios atributos pessoais: jovem, bonito, educado, de boa família e
com uma poética capaz de emocionar Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues,
Rubem Braga, entre outros, fez de Buarque um novo ídolo nas mídias: TV, rádio, revistas,
jornais e discos encontraram um novo padrão. A recente indústria cultural brasileira, então em
pleno processo de expansão e consolidação, não perdeu tempo. Chico era o novo astro. Um
novo astro de um país que vivia novos tempos. Menos de dois anos antes do sucesso de A
Banda, o Brasil havia entrado em um dos mais conturbados períodos da nossa história: a
Ditadura Militar Brasileira.
Em 1966 o Brasil vivia seus primeiros anos de Regime Militar. Fato dominante
em qualquer análise que se faça sobre o Brasil desse período, o processo social em que se
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inserem os vinte anos da Ditadura Militar brasileira (1964-1984), nos leva a reportar a Nova
Ordem Mundial que se estabeleceu a partir de Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O
Brasil no início da Segunda Guerra procurou manter a neutralidade, mas sofreu uma enorme
pressão norte-americana que pretendia marcar presença nos portos e aeroportos do Nordeste e
assim, no final de 1942, o Brasil declarou guerra contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão).
Dessa forma, aliou-se aos países liderados pelos Estados Unidos, fato que marca
definitivamente a política do nosso país. Essas ações imperialistas norte-americanas
denominadas de “política de boa vizinhança” nos são assim apresentadas por Gerson Moura
(1984, p.63):
Durante a Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945, as nações do Terceiro Mundo foram
pressionadas a optar por uma facção ou outra do conflito. De um lado, o Eixo, formado
por Alemanha, Itália e Japão. No outro extremo, os Aliados, liderados por Grã Bretanha,
França e União Soviética; e, a partir de 1941, pelos Estados Unidos. Nestes seis anos de
conflito, destacou-se a ‘política da boa vizinhança’, visando a aproximar os países da
América Latina da cultura e ideologia estadunidense. O objetivo era único: que o Brasil
passasse a defender os interesses dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, o que ocorreu
em 1942.
O ano de 1966 pode ser considerado o momento que divide a história do movimento
militar que rompeu a ordem constitucional brasileira com o golpe de 1964. Há razões para
afirmar que se inicia naquele ano um processo gradativo de isolamento do Estado
autoritário que se instalou com a queda de João Goulart, processo esse marcado por três
níveis de conflito que esvaziam o amplo espectro civil que se mobilizou na crise
institucional que levou ao afastamento de Jango.
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Entretanto, para surpresa de todos, a presença cultural da esquerda não foi liquidada
naquela data, e mais, de lá para cá não parou de crescer, A sua produção é de qualidade
notável nalguns campos, e é dominante Apesar da ditadura de direita há relativa
hegemonia cultural da esquerda no pais. Pode ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio,
cheias de marxismo, nas estréias teatrais, incrivelmente festivas e febris, às vezes
ameaçadas de invasão policial, na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero
avançado. Em suma, nos santuários da cultura burguesa a esquerda dá o tom. Esta
anomalia — que agora periclita, quando a ditadura decretou penas pesadíssimas para a
propaganda do socialismo - é o traço mais visível do panorama cultural brasileiro entre 64
e 69, Assinala, além de luta, um compromisso. (2000, p.62)
Esse “tom de esquerda” relatado por Schwatz como principal marco da vida
cultura brasileira nos princípios do regime militar também mereceu a abordagem de Heloisa
Buarque de Hollanda que em sua tese Impressões de Viagem, em que estuda a cultura
brasileira nos anos 60, especifica a temática desse movimento cultural:
[...] a produção cultural, largamente controlada pela esquerda, estará nesse período pré e
pós-64 marcada pelos temas do debate político. Seja ao nível da produção em traços
populistas, seja em relação às vanguardas, os temas da modernização, da democratização,
o nacionalismo e a “fé no povo”, estarão no centro das discussões, informando e
delineando a necessidade de uma arte participante, forjando o mito do alcance
revolucionário da palavra poética. (1980, p.19)
Ainda na construção de seu panorama sobre a arte engajada dos anos 60, a autora
descreve o importante papel da canção popular e sua transformação como veículo de uma
nova poesia com uma nova perspectiva. As letras das canções adquirem status de uma alta
qualidade que, naquele momento contrastava com a inexpressividade da poética literária de
então.
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grande parte de sua programação era transmitida ao vivo com fortes tonalidades locais. A
partir de 64 a televisão começa a se expandir por todo o território nacional, mas o
surgimento das gravações em videoteipe engendrou uma concentração da produção nas
grandes capitais. (REIMÃO, 2000, p.31)
Os cerca de 700 ingressos para assistir à final, nos estúdios da Record na rua da
Consolação, haviam se esgotado rapidamente e se tornaram peça cobiçada nas mãos de
cambistas. Cinemas e teatros cancelaram as sessões daquele dia porque acreditavam que
não haveria público interessado. Até mesmo o ex-governador Carvalho Pinto foi assistir à
decisão ao vivo. (HOMEM DE MELLO, 2003)
Todo mundo tinha um palpite: taxistas, imprensa, estudantes e até mesmo os funcionários
da Record faziam "bolões" para apostar quem ganharia a tão esperada decisão. O clima
era de final de campeonato de futebol, as famílias e vizinhos se reuniam na frente dos
poucos televisores da época para assistir às eliminatórias e discutir quais eram as
melhores. (HOMEM DE MELLO, op.cit..)
Entre aquelas canções que se destacavam entre as favoritas do festival estava uma
simples marchinha que reportava nostalgicamente, em letra e música, a uma brasilidade
antiga, singela e distante, cada vez mais, da modernidade cultural e da dura realidade política
que o país atravessava: A Banda, interpretada pela cantora Nara Leão e assinada por um
jovem compositor anônimo, Chico Buarque de Holanda.
Chico Buarque. Como amostra, selecionamos para a realização dessa análise, os seguintes
veículos:
1. Revista Manchete: uma revista semanal que teve sua primeira edição em 1952,
empregando uma concepção editorial de inspiração na ilustrada revista francesa
Paris Match utilizando o fotojornalismo como grande diferencial. Ao lado da
rival, revista O Cruzeiro, representavam os principais veículos de comunicação do
meio, sendo ambas historicamente consagradas como as de maior influência e
maior penetração da imprensa brasileira da década de 60.
2. Revista Intervalo: revista com linguagem popular e típica dos veículos
dedicados às matérias sobre os astros do rádio, disco e TV. Intervalo era a
principal publicação brasileira especializada no gênero e, segundo informações do
IBOPE – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística, divulgadas nas
próprias páginas dessa revista, em sua edição 196, de 2 de outubro de 1966, era a
revista semanal mais lida do país.
3. Revista Realidade: lançada em abril de 1966, esse veículo de circulação mensal
constituiu-se num grande marco editorial brasileiro, pela qualidade e estilo de suas
reportagens que ofereciam um maior aprofundamento sobre os temas tratados.
Atingiu já em sua primeira edição a marca dos 250 mil exemplares e se destacava
na imprensa da época como veículo formador de opinião, por atingir um segmento
de mercado formado por um público de classe média alta, com elevado grau de
instrução.
O período de cobertura dessa amostragem selecionada para análise restringiu-se
ao período compreendido entre a última semana de setembro de 1966 (época em que se inicia
o festival) até a última edição do ano, na última semana de dezembro de 1966. Com a
observação desse período, acreditamos ser possível uma análise completa, no sentido
temporal, já que como veremos nas próprias páginas das revistas, anexadas a este estudo,
pouco tempo após o encerramento do festival Chico Buarque já havia se transformado em
símbolo nacional.
Todas as reportagens selecionadas neste levantamento foram fotografadas e estão
incluídas nos anexos do presente trabalho juntamente com as suas tabelas analíticas.
Da análise das matérias publicadas concluímos que o meio “revista” também
representou um papel importantíssimo na construção da imagem pública de Chico Buarque.
Nesse sentido, o papel desempenhado pela revista Intervalo é o mais destacado, contribuindo
em todo o período do festival na criação de uma imagem muito favorável a Chico Buarque.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
42
Cabe aqui a lembrança de que Intervalo era um dos patrocinadores do II Festival de Música
Brasileira e, obviamente, tinha o maior interesse em dar uma grande cobertura ao evento.
Nas revistas Manchete e Realidade fica claro o interesse por Chico Buarque
somente a partir do momento que esse já se torna uma figura de renome no cenário artístico
brasileiro, após sua vitória no festival. Este fato, de certa forma, nos indica que a imagem de
ídolo nasce, fundamentalmente, pela exposição televisiva de Chico Buarque e da sua música
durante as apresentações no festival. As revistas cumpriram o papel de reforço de imagem,
alimentando o público com informações complementares e sempre muito positivas sobre o
novo ídolo.
Já o meio televisivo é, sem dúvida, o principal fator interveniente na
transformação de Chico Buarque em ídolo nacional. O II Festival da Música Popular
Brasileira foi uma iniciativa da TV Record de São Paulo e retransmitido pela TV Paulista e
TV Globo do Rio de Janeiro, mesmo não sendo então, por razões comerciais, prestigiado por
outras emissoras não afiliadas às referidas emissoras e suas retransmissoras. Cabe aqui o
destaque de que o festival teve transmissões diretas para quase todo o país, o que garantiu que
ao evento uma repercussão de âmbito nacional.
Durante o período de realização do festival, entre 27 de setembro e 10 de outubro
de 1966, Chico Buarque contou apenas com a seguinte exposição no meio televisivo:
participação em uma das 3 fases eliminatórias realizada em 1º de outubro de 1966 (na fase
anterior, primeira apresentação da música, esta só foi interpretada por Nara Leão); a seguir, a
canção com a interpretação de Chico Buarque tem participação na grande final. Embora
pequena em termos de tempo de exposição televisiva, a participação Chico Buarque como
intérprete da canção A Banda se tornou um fato decisivo para o grande reconhecimento
popular decorrente.
Com relação aos públicos atingidos nesse primeiro momento de recepção: plateia
do festival, audiência do rádio e TV e leitores das revistas especializadas, o sucesso imediato
de Chico em todas as camadas da população por todo o Brasil, nos leva às conceituações
sobre o status de líder de opinião. Conforme descrito por Elihu Katz sobre as pessoas
chamadas “líderes de opinião” verifica-se que
Sabemos que no Brasil de 1966 não tínhamos tão altos índices de audiência ou
leitura para provocar por si só uma resposta cognitiva que causasse imediatamente uma
opinião favorável a Chico Buarque por uma parte tão grande da população. Nesse sentido, nos
parece evidente, o conceito apresentado por Katz, que identifica o líder de opinião com a
característica de ser a parte da população mais bem-informada. Aqui neste estudo, trata-se,
provavelmente, do público exposto às mensagens sobre o festival. Também nos parece
esclarecedoras aqui, as considerações sobre a tendência comportamental da maioria, da forma
que John e Matilde Riley nos apresentam:
foto em close-up do artista: “Chico Galã. É impressionante o número de meninas bonitas que
vão assistir ao espetáculo Meu Refrão numa boate carioca. É que Chico Buarque de Holanda,
o astro do show, já foi comparado aos melhores galãs da nouvelle-vouge francesa.”
Já na edição 199, após a final do festival a revista, em reportagem de página-dupla
com 3 fotos que novamente estampavam o rosto de Chico, tinha um título que fazia alusão
aos seus olhos verdes e à sua timidez enquanto o texto em seu início determinava “As
meninas o acham um pão.” Ao longo de outras edições e de outras revistas da época, a beleza
de Chico Buarque será tema recorrente. Além de sua beleza física em que os olhos, umas
vezes ditos verdes outras azuis, são sempre realçados e de sua suposta timidez, essas e outras
reportagens com freqüência também irão trazer informações biográficas do artista, em que as
principais referências abordadas serão as seguintes:
1- A condição de estudante universitário; Chico é sempre apresentado como
estudante de arquitetura da USP- Universidade de São Paulo, que parou de estudar para se
dedicar à nova carreira artística. Da mesma forma, também é apresentado o gosto literário e
musical de Chico Buarque que mostra um grau de cultura típico das elites intelectuais e pouco
comum à média da população.
2- A sua ascendência familiar; o nome da família Buarque de Hollanda (ora
grafada com 2, outras com apenas 1 “L”) representava um importante sobrenome na alta
sociedade brasileira. Seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, renomado professor universitário e
autor de obras importantes como Raízes do Brasil é frequentemente citado. Outros nomes da
família por vezes são citados, como seu cunhado, o cantor João Gilberto, grande ídolo da
bossa-nova ou mesmo, por engano jornalístico, um suposto parentesco, na verdade
inexistente, com o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda.
3- A jovialidade contrastante ao grande talento; com apenas 22 anos de idade,
Chico Buarque é apresentado como “herdeiro de Noel Rosa”, unindo em sua figura o
tradicional e o moderno. Nas reportagens será sempre mostrado como extremamente
talentoso, tendo apesar da pouca idade, uma grande produção musical, além de já ter em seu
currículo uma importante vitória com as músicas compostas para a peça do grande escritor
João Cabral de Melo Neto, Morte Vida Severina, espetáculo do Grupo de Teatro
Universitário da PUC, premiado na França no 4º Festival Mundial de Teatro Universitário.
Outra característica que realça seu talento artístico são as citações de nomes consagrados da
música e da literatura brasileira, que viam em Buarque um talento sem precedentes: “Tom
Jobim diz que ele é a única coisa que há de bom no panorama musical brasileiro. Vinicius
confessa seu complexo diante das letras que ele faz” (Revista Intervalo, 1966, ed. 199).
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
45
É nesse sentido mítico que podemos entender o que a música de Chico Buarque
conseguiu representar. As próprias reportagens da época nos dão indícios desse significado
emocional que a canção despertou. A revista Manchete, em sua edição 758, de 1966,
publicada em 22 de outubro, duas semanas após o encerramento do festival, nos dá uma
mostra concreta desse fato e resume as prováveis considerações:
Criou-se então, primeiro no Rio e São Paulo, em seguida pelo Brasil inteiro, a obsessão
de A Banda. Nunca na história do disco se registrou um sucesso tão fulminante, a ponto
de apresentar característica de psicose coletiva. Por quê?
Fizemos esta pergunta a numerosas personalidades da literatura, do teatro, da música
popular. As respostas foram confrontadas, e através delas obtivemos diversas explicações,
todas de certo modo válidas.
A Banda é boa porque é o Brasil. Estava no inconsciente coletivo do povo brasileiro, e
emergiu agora, graças a Chico Buarque de Holanda. Todos nós, quando crianças, vimos e
ouvimos a banda passar. Ela é, portanto, um pedaço da infância devolvido a todos nós.
A letra simples, quase pungente na sua extraordinária pureza lírica, e uma melodia
ingênua, a comporem uma atmosfera docemente provinciana. Isto explica tudo.
Seu êxito se prende, basicamente, à sua extraordinária ‘assobiabilidade’. Trata-se de uma
melodia que o público aprende a cantarolar depois de ouvi-la apenas uma vez. O
importante, mesmo, é que A Banda não terá o destino de tantas e outras músicas,
nacionais e estrangeiras que bateram recordes de audiência de vendas: passada a moda,
caíram no esquecimento. A qualidade de sua melodia e o sentimento universal de seus
versos lhe garantirão uma permanente posição de destaque.
O Brasil estava tão triste que todo mundo só esperava uma banda passar para esquecer a
tristeza... (Opinião da Esquerda Festiva).
Seja como for, o fato é que o Brasil parou pra ver a banda passar.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
47
Místico, espetáculo musical que mistura balé, circo, música e teatro, criado em 1983 para o
Balé Teatro Guaíra, adaptado da obra A Túnica Inconsútil de Jorge de Lima; nesses casos,
Chico Buarque, em parceria com Edu Lobo, é autor somente das músicas dos espetáculos, não
tendo participação efetiva em seus roteiros. A realização de trilhas musicais para teatro
também marcou o início da carreira teatral de Chico Buarque que em 1965 musica alguns
poemas da obra Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto e participa ativamente
como músico na montagem desse espetáculo histórico.
Através dos trechos transcritos abaixo da entrevista, parte integrante do DVD
Bastidores, sexto volume da série Retrospectiva da obra de Chico Buarque, poderemos
acompanhar melhor a síntese dessa sua participação em Morte e Vida Severina:
Quando o Roberto Freire me convidou. Roberto Freire era o diretor do TUCA que é o
Teatro da Universidade Católica. Quando ele me convidou para esse trabalho em fim de
64, começo de 65... ela queria trabalhar, é claro, o teatro da universidade católica,
universitários, não era com profissionais, e me chamou um pouco porque ele tinha ouvido
uma música minha no festival e tal, um pouco porque ele era amigo da minha irmã,
Miucha, e um pouco porque eu era universitário também. Eu era estudante de arquitetura.
Eu fazia minhas músicas... eu tinha começado fazer as minhas músicas, a gravar, eu
gravei meu primeiro compacto, mas eu era um amador, então era um grupo todo de
amadores. Foi meu primeiro contato com teatro, foi um atrevimento, aliás, porque
musicar João Cabral de Melo Neto, hoje eu não teria coragem, naquele tempo eu não
tinha consciência, mas eu topei, o engraçado é que eu fiquei sabendo mais tarde que o
espetáculo todo foi montado à revelia de João Cabral; pediram autorização para fazer a
montagem, a adaptação musical de Morte e Vida Severina. João Cabral detestava música.
Ela dizia isso: “pra mim música é barulho. Eu prefiro barulho” Então ele não autorizou.
Isso eu fiquei sabendo mais tarde. E foi feito assim mesmo. Foi um trabalho assim... de
pesquisa, foi minha primeira experiência também de trabalho coletivo que me ajudou
muito, né, porque mais tarde trabalhei com teatro, muito com cinema e é isso... precisa
ouvir os seus parceiros, precisa fazer o que é adequado pro trabalho dos outros, precisa
ouvir muito e ter espírito de grupo, né, espírito de equipe, porque não é fácil, porque a
tendência nossa, do músico é um trabalho solitário, o nosso caminho tende a ser mais
individualista e é, mas quando a gente tá trabalhando com teatro você tem que ouvir, tem
que atender ao texto do autor, tem que atender a exigência do diretor, tem que estar
dialogando o tempo todo. (...)
A peça Morte e Vida Severina já vinha tendo bastante sucesso em São Paulo quando o
grupo foi convidado para participar do festival universitário de Nancy, que na época era o
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
50
entretenimento, suicida-se, sendo substituído como astro popular pela própria esposa, que se
torna uma estrela fabricada nos mesmos moldes.
A peça Roda Viva historicamente destaca-se muito mais pelos conturbados e
violentos acontecimentos políticos ligados à invasão do teatro Ruth Escobar por parte dos
membros do CCC - Comando de Caça aos Comunistas e pela concepção polêmica do
espetáculo assinada por José Celso Martinez Correa do que pelas suas qualidades
dramatúrgicas. Após 38 anos da estreia do espetáculo, em 2005, na já referida entrevista
transcrita do DVD Bastidores, Chico Buarque assim falou sobre Roda Viva:
O espetáculo Roda Viva era o diabo. Aquilo era muito bom. Em Porto Alegre
seqüestraram atores, foi uma coisa doida e ai a peça finalmente foi proibida, tiraram de
cartaz e foi proibida em todo o território nacional em nome da moral e dos bons
costumes. Imagina? Eu não lembro qual era a alegação porque ela era violenta nesse
sentido. Não era uma peça... não posso nem dizer que fosse uma peça de esquerda, uma
peça política, não era.
[...] Roda Viva era uma peça parodística. Era uma paródia do que acontecia ali nos
bastidores e mesmo no palco do teatro Record que a gente freqüentava e nos nossos
shows e tal. Eu... na verdade eu era... eu não me sentia ainda um artista do show businnes.
Eu não me sentia porque aquilo foi acontecendo muito por acaso e muito rapidamente,
então eu ficava um pouco espantado com aquela coisa dos fãs, das fãs, de correr atrás, de
pedir autógrafo, de não sei o que mais e tal. Aquilo me deixava um pouco, bastante
incomodado e escrevi a peça, um pouco até pra desanuviar a questão porque... enfim, eu
me sentia bastante desconfortável enquanto artista popular, pop star, eu não tinha nada a
ver com aquilo, e tinha, né. Eu tinha impressão de que era uma coisa fora de mim, uma
coisa que não me dizia respeito, então me vi no meio daquela roda viva e quis escrever
sobre isso, a idéia é essa.
[...] A peça não tinha nada diretamente político, o que havia era uma montagem muito
forte, era provocativa mesmo e aqueles tempos eram duros, porque era... o AI-5, o Ato
Institucional número 5, estava pra estourar a qualquer hora... estava em 68 e grupos de
extrema direita, paramilitares, já estavam se preparando pra partir pro pau e ai entraram lá
no teatro em São Paulo, bateram em alguns atores, Marília Pêra et cetera e tal. Depois em
Porto Alegre houve, de novo, invasão do teatro, mas eu tenho a impressão de que
aconteceu com Roda Viva como poderia ter acontecido com qualquer outra peça, uma
peça, vamos dizer, de esquerda...
Me contaram até, eu não sei se é verdade, de que na verdade a peça era no teatro Ruth
Escobar, tinha um espetáculo num andar debaixo chamado Feira Paulista de Opinião, que
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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era uma peça francamente política, de esquerda e tal, e no outro nível estava o espetáculo
Roda Viva. Me contam, eu não sei se é verdade, que o pessoal chegou pra bater (risos) no
pessoal da Feira de Opinião, desse espetáculo politizado mas já tinha terminado mais
cedo, então pra não perder a viagem, eles foram lá pro teatro onde estava o Roda Viva.
Pode ser verdade, pode não ser. Eu sei é que meses mais tarde, depois do AI5, uma vez
que eu fui interrogado por um general. O general perguntou, ele perguntou o seguinte:
mas vem cá... eu falava: Roda Viva é uma peça sobre arte, sobre o mundo do espetáculo e
tal, ela não tem nada de política. Mas você não é comunista? Não, não tem nada de
comunista a peça e tal. Mas a peça não é subversiva? Não tinha nada contra os militares?
Eu falei: não, não tem nada contra os militares, era contra o sistema do show businnes e
tal. Ele falou: então porque tinha uma hora um ator defecando no seu... (risos enquanto
explica a cena) o soldado, o soldado tirava seu chapéu e sentava e defecava... ai eu pensei
comigo: Caceta! Essa peça em São Paulo, eles acrescentaram muita coisa (risos). Eu não
podia falar nada. Eu não podia dizer: isso não é coisa minha. Isso é coisa lá do Zé Celso
[referência a José Celso Martinez Corrêa, diretor de Roda Viva] do ator... eu fiquei na
minha, né. Depois eu soube que essa cena aconteceu na outra peça, nesse outro
espetáculo. (informação verbal)
fases separadas e estanques, como pretendem alguns, que tomam a peça Roda Viva – ano
de 1968 – como um divisor de águas entre o lirismo ingênuo das canções dos primeiros
discos e o amargor e desencanto posteriores, encaminhando-se para uma aguda crítica
social.
Roda Viva, como foi visto, criticava justamente as relações comerciais entre a arte
e a indústria cultural. A relação entre a temática da peça e a vida artística de Chico Buarque,
transformado em ídolo de uma hora para outra, nos parece bastante evidente e talvez motivo
de conflito para o próprio artista que, anterior ao estrondoso sucesso midiático de A Banda, já
estava profundamente ligado aos movimentos teatral e universitário, onde se inseriram as
primeiras ações e manifestações de crítica e resistência ao regime militar. Sobre a postura de
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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Chico Buarque como autor de Roda Viva, destacamos ainda a análise de Diógenes André
Vieira Maciel:
Não é nenhuma novidade dizer que Chico brinca com a sua própria imagem de ídolo
nacional, àquela altura “vendida” ao grande público (ele já tinha se tornado estrela a partir
da participação em programas de televisão, nos Festivais de Música Popular). Em Roda
viva não se manifesta mais o ‘romantismo revolucionário’ ou a ‘busca pelo autêntico
homem nacional’ como ocorria nas peças do Arena. Esse texto, contudo, se irmana às
discussões sobre um projeto cultural encurralado pelo golpe de 1964 e carregado pra lá.
(FERNANDES, et al, 2004, p.232)
Na trilha dos festivais, Chico acabou empurrado para o papel de bom-moço fiel às
tradições, enquanto Caetano Veloso e Gilberto Gil, via tropicalismo agressivo e
vanguardista, a partir de 1967 afrontavam - em forma e conteúdo - as instituições. Não
faltaram acusações de conservadorismo, revogadas na anárquica montagem de sua peça
Roda viva, do diretor Zé Celso Martinez Correa. (SOUZA, 12/06/2004)
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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Cartaz de Roda Viva (montagem carioca) e capa da 1 ª edição da peça em livro publicada pela Editora Sabiá:
1968. Acervo digital: discograficasbrasil.blogspot.com.br
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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CAPÍTULO II – CALABAR
A liberdade de escolher
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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A
revista Veja, grande sucesso editorial do meio jornalístico desde a
década de 70, em sua edição de 10 de janeiro de 1973 publicava uma
matéria sobre o personagem Domingos Fernandes Calabar. Sob o
título O Herói Calabar era relatado que esse alagoano nascido em 1609, morto aos 26 anos,
passou para a história pátria como o pior dos traidores por haver renegado o sentimento cívico
dos luso-brasileiros. Apesar de em diversas ocasiões arriscar heroicamente sua vida na defesa
do nordeste brasileiro contra as tentativas de invasão dos holandeses, Calabar transferiu-se,
posteriormente, para o lado inimigo e por isso, conforme o texto da reportagem, “tem sido
insultado na maioria dos livros escolares”. Esclarecia-se ainda que por iniciativa da população
de Porto Calvo, sua cidade natal, inconformada com a pecha de “terra de traidor”, iniciou-se
uma série de atos legislativos para contestar a fama pública de traição atribuída a Calabar,
segundo alguns, um grande herói, injustiçado pela história oficial.
Na seqüência da reportagem era apresentada parte de uma polêmica carta escrita
por Calabar, que muitos historiadores consideravam como apócrifa: “depois de ter derramado
meu sangue pela causa da escravidão (...) passo para esse campo, não como um traidor, mas
como um patriota, por que vejo que os holandeses procuram implantar a liberdade no Brasil.”
Poucos meses depois, com a censura arbitrária da peça de Chico Buarque e Ruy
Guerra, às vésperas de sua estréia, uma matéria como a descrita acima não poderia jamais ser
publicada em revistas ou jornais brasileiros, pois até mesmo a simples menção do nome
“Calabar” estava proibida, no melhor estilo de um autoritarismo radical, típico desse período.
Em dez anos de vigência, o AI-5 já tivera tempo de punir 1.607 cidadãos, dos quais 321
cassados: seis senadores, 110 deputados federais e 161 estaduais, 22 prefeitos, 22
vereadores - mais de seis milhões de votos anulados. Além da cassação, todos os
senadores e 100 deputados federais tiveram seus direitos políticos suspensos por 10 anos.
Entre as punições a funcionários públicos, estavam o afastamento de três ministros do
Supremo Tribunal Federal - Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Vítor Nunes Leal - e
de professores universitários como Caio Prado Júnior - condenado a quatro anos e meio
de prisão por uma entrevista a um jornal estudantil - Florestan Fernandes, Fernando
Henrique Cardoso, Mário Schemberg, Vilanova Artigas, Hélio Lourenço de Oliveira e
uma dezena de pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, entre outros, muitos outros.
Paralelamente a essa caçada aos criadores, o AI-5 desenvolveu um implacável expurgo
nas obras criadas. Em dez anos, cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros,
dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de
capítulos e sinopses de telenovela foram censurados. Só Plínio Marcos teve 18 peças
vetadas. O índex reunia um elenco variado, que ia de Chico Buarque, um dos artistas
mais censurados e perseguidos da época, a Dercy Gonçalves e Clóvis Bornay.
A violência, que o marechal Costa e Silva confessou ter sentido ao editar o AI-5, ia deixar
de ser uma figura de retórica. A partir do dia 13 de dezembro de 1968, ela se abateria de
fato sobre a alma e a carne de toda uma geração. (VENTURA, 1988, pp. 284-285)
Essa canção tornar-se-ia um hino popular contra a ditadura, posteriormente censurada pelo
governo militar, que considerou seu conteúdo subversivo e cuja autoria viria a se tornar o
principal motivo do exílio imposto a Vandré. Tempos de questionamentos e de lutas por
libertações fossem essas morais, políticas ou estéticas. Em comum, todos esses movimentos
representavam sempre uma luta de jovens inconformados, na busca por mudanças, quando
mais politizados, ou simplesmente demonstrando o seu desagrado com a ordem estabelecida,
quando menos ativistas.
A atmosfera revolucionária que marcou mundialmente o comportamento da
juventude do final dos anos 60, em nosso país, tinha então mais um componente agravante: a
luta contra a ditadura militar. Nessa luta, somaram-se aos universitários brasileiros uma boa
parte da nossa classe artística, política e operária, além, é claro, da militância esquerdista em
luta permanente contra o regime desde o início do golpe. Esse descontentamento social
resultou num maior controle e patrulhamento ideológico dos poderes militares. No final de
1969, com o início do governo de Emílio Garrastazu Médici, o estado de violência aos
poderes civis imposto pelo AI-5 ganhou um relevo ainda mais substancial:
Conforme apresentado por Sandra Reimão (1997), no início dos anos 70 embora
outros setores da Indústria Cultural tenham tido importante crescimento como, por exemplo, a
Editora Abril e a Editora Bloch, coube à televisão brasileira e mais especificamente à TV
Globo viver seu período de consolidação. A ditadura militar teve um importante papel nesse
crescimento, na medida em que investiu na eletrificação do país, na implantação de um
sistema de transmissão de microondas e, posteriormente, no sistema de transmissão via
satélite. Os governos militares facilitaram na importação de equipamentos para as emissoras
de TV, na implantação de indústrias de eletrodomésticos e no crédito popular para compra de
aparelhos televisores. As emissoras de TV favorecidas pelo regime militar e comprometidas
com sua propaganda já se destacavam como a mídia de maior influência junto à população e
através de suas telas e pelo silêncio imposto à imprensa na divulgação de informações
contrárias. Vivia-se uma grande ilusão
Mais livre no estilo e mais político no cantar. Canções como Agora falando sério, Gente
Humilde e Rosa dos Ventos não deixaram dúvidas:
Agora falando sério / Eu queria não cantar /A cantiga bonita / Que se acredita /Que o mal
espanta / Dou um chute no lirismo / Um pega no cachorro / E um tiro no sabiá / Dou um
fora no violino / Faço a mala e corro / Pra não ver banda passar.
Agora falando sério / Eu queria não mentir / Não queria enganar / Driblar, iludir / Tanto
desencanto / E você que está me ouvindo / Quer saber o que está havendo / Com as flores
do meu quintal? / O amor-perfeito, traindo / A sempre-viva, morrendo / E a rosa,
cheirando mal.
(Trecho da canção Agora falando sério – Chico Buarque, 1970)
Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão / A minha gente hoje
anda / Falando de lado / E olhando pro chão, viu / Você que inventou esse estado / E
inventou de inventar / Toda a escuridão / Você que inventou o pecado / Esqueceu-se de
inventar / O perdão.
Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia / Eu pergunto a você / Onde vai se
esconder / Da enorme euforia / Como vai proibir / Quando o galo insistir / Em cantar /
Água nova brotando / E a gente se amando / Sem parar.
Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros, juro / Todo
esse amor reprimido / Esse grito contido / Este samba no escuro / Você que inventou a
tristeza / Ora, tenha a fineza / De desinventar / Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima
rolada / Nesse meu penar. (Trecho da canção Apesar de Você – Chico Buarque, 1970)
gravadora Philips fechada. O disco, porém, já se tornara um sucesso, havia vendido quase 100
mil cópias. Surgia assim na história do país um novo hino popular de resistência.
industriais nunca antes vividos pela Phillips. A demanda de 10 000 discos por dia, nas
primeiras semanas, levou a fábrica a contratar duas gravadoras concorrentes para prensá-
los, obrigou o pessoal a trabalhar em turnos de 24 horas por dia e o futebol de sábado,
rotina de vários anos dos empregados e artistas, ficou suspenso durante quase dois meses.
Também, nunca antes a Philips tinha vendido tantos elepês em tão pouco tempo (140 000
nas primeiras quatro semanas).
[...] Mais do que um marco na carreira de Chico (a venda será igual aproximadamente a
três vezes a média dos seus discos anteriores). "Construção" vem sendo apontada como
um marco na música brasileira. O crítico de música Walter Silva, de São Paulo, não se dá
pessoalmente com Chico Buarque. Mas diz: "Construção" é o melhor disco feito nos
últimos vinte anos no Brasil. Um desses que se houvesse por ano, em toda a música
brasileira, e eu me daria por feliz.
Além do grande sucesso dos discos, nesse período, o artista realiza diversos shows
pelo país e também participa do circuito universitário promovido pelos diretórios e centros
acadêmicos, aumentando ainda mais a vigia dos órgãos censores, conforme nos aponta a
pesquisa de Marcos Napolitano (2004):
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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Sonhar / Mais um sonho impossível / Lutar / Quando é fácil ceder / Vencer / O inimigo
invencível / Negar / Quando a regra é vender / Sofrer / A tortura implacável / Romper / A
incabível prisão / Voar / Num limite improvável / Tocar / O inacessível chão / É minha
lei, é minha questão [...]
(Trecho da canção Sonho Impossível – Chico Buarque e Ruy Guerra, 1972)
fez da cultura a via da revolta contra o colonialismo e o racismo. [...] Foi assim parte de
uma geração que, nos anos 60, queria mudar o mundo, por sua ideologia mas também –
alguns deles e Ruy entre esses – por sua prática de vida. Para ele a estética é sempre
política, pois traz necessariamente embutida uma visão de mundo, ancorando-se em
valores que apresenta, defende ou condena. Ser apresentado como cineasta político,
orgulha-se de ser esta sua marca maior. Nunca foi ligado a partido, mas acredita que ser
político é estar envolvido com as problemáticas de sua época: “Tenho um olhar político
sobre a realidade, de um ponto de vista cultural”.
disse que há uma espécie de obsessão pelas áreas de poder e os mecanismos repressivos, seja
no ambiente familiar, nas estruturas sociais ou no governo.” Provavelmente a ligação artística
entre Chico Buarque e Ruy Guerra no momento de criação de Calabar tenha tido nessa
poética ligada à crítica ao poder e aos mecanismos de repressão, presente na obra de ambos, a
sua maior empatia e motivação criativa.
A opção teatral pela história do herói-traidor Calabar nos parece, em várias
medidas, uma ponte de identificação a ligar um personagem histórico com as histórias de vida
desses artístas. Calabar a seu tempo era um ídolo, como Chico; Calabar nasce numa colônia
portuguesa, como Ruy; Calabar busca uma pátria livre, como Chico, um jovem artísta
brasileiro oprimido pela ditadura militar, e como Ruy, um artísta moçambicano oprimido em
sua juventude pela ditadura de Salazar. Como Ruy, Calabar luta contra o racismo. Como
Chico, Calabar se torna um porta-voz dos anseios de seu povo. E como ambos, Calabar tem
sua vida pública extremamente marcada por suas escolhas políticas. Provavelmente essas
identificações não ocorreram de forma consciente. A preocupação central dos autores era
proporcionar uma discussão sobre o momento político vivido no Brasil dos anos de chumbo,
o que pode ser confirmado nas seguintes declarações:
Era uma peça mais politizada e pegou um episódio da história do Brasil durante as
invasões holandesas e foi a história de Calabar, a condenação de Calabar como traidor e
tal e pretendíamos discutir, a partir desse tema, Calabar, o que era traição, o que seria a
traição. Calabar era traidor ou não era traidor, no tempo da invasão holandesa?
O que tinha ligações, não é, na discussão da época, anos 70, o que seria um traidor...
enfim, a nossa intenção era menos discutir a história do Brasil e mais discutir a
atualidade, anos 70, na medida do possível. (BUARQUE, 2005 - informação verbal)
Eu acho que a traição é um negócio que está patente no mundo moderno: o conceito de
traição, o conceito de fidelidade. [...] É difícil, portanto, de ver a gênese da coisa: se a
gente buscou Calabar para debater a traição, ou se o Calabar justamente nos
proporcionou o debate. Não é, pois, uma idéia primeira a partir da qual você desenvolve.
É um conjunto de coisas. O que se debate também em Calabar, não explicitamente, mas
obrigatoriamente, é o conceito de Pátria. Porque é coisa fundamental da época.
(GUERRA, 1973)
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
73
guerrilha, era ou não um traidor. Havia um paralelo evidente. O interesse era esse na
época. Mais tarde a peça foi encenada mas não tinha mais graça. (FERNANDES, 2004,
p.37)
Nassau investiu em obras urbanas e estimulou a vida cultural nos domínios holandeses no
Brasil.
A cidade do Recife foi beneficiada com a construção de casas, pontes e obras sanitárias.
(...) Nesse período Pernambuco recebeu artistas, médicos, astrônomos e naturalistas
holandeses. (...) Maurício de Nassau ganhou prestígio como administrador, mas surgiram
desentendimentos entre ele e a Companhia das Índias Ocidentais. Os líderes da
Companhia chegaram a acusá-lo de furtar dinheiro e quiseram limitar seus poderes.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
76
Nassau, por sua vez, acusava a direção da Companhia de não entender os problemas
locais e de agir com excessiva ganância. (COTRIN, 2003, p. 229)
A opção de Chico Buarque e Ruy Guerra por transmitir na peça a ideia de que
uma colonização holandesa talvez tivesse sido o melhor caminho para o Brasil, acreditamos,
encontra outras razões além de todas as históricas ligações: Brasil e Portugal viviam sob o
domínio de ditaduras opressoras, Ruy havia nascido e crescido em uma colônia portuguesa
que lutava por sua independência e, por fim, o subdesenvolvimento do país, sobre o qual
Chico se manifestava criticamente, sendo, em certa medida, resultado de um país colonizado
por Portugal.
É sabido que no processo de criação do texto os autores muito se dedicaram à
pesquisa histórica e nesse ponto, embora havendo uma grande divergência de opiniões,
diversos são os historiadores que defendem o governo holandês no Brasil como sendo mais
liberal e mais progressista que o português. O próprio pai de Chico, Sergio Buarque de
Holanda na respeitadíssima obra da historiografia moderna brasileira, Raizes do Brasil, assim
se posiciona:
Esse progresso urbano era ocorrência nova na vida brasileira, e ocorrência que ajuda a
melhor distinguir, um do outro, os processos colonizadores “flamengos” e portugueses.
Ao passo que em todo o resto do Brasil as cidades continuavam simples e pobres
dependências dos domínios rurais, a metrópole pernambucana “vivia por si”.
Ostentavam-se nela palácios monumentais como o de Schoonzich e o de Vrijburg. Seus
parques opulentos abrigavam exemplares mais variados da flora e da fauna indígenas.
Neles é que os sábios Piso e Marcgrave iam encontrar à mão o material de que
precisavam para a sua Historia naturalis brasiliae e onde Franz Post se exercia em
transpor para a tela as cores magníficas da natureza tropical. Institutos científicos e
culturais, obras de assistência de toda ordem e importantes organismos políticos e
administrativos (basta dizer-se que em 1640 se reunia em Recife o primeiro Parlamento
que a notícia no hemisfério ocidental) davam à sede do governo da Nova Holanda um
esplendor que a destacava singularmente no meio da miséria americana. (1989, p. 63)
tempo muito de sua magia teatral se desfaz, não só na sua encenação como em relação à sua
escritura. Para Fernando Peixoto, diretor da montagem censurada de 1973 e da primeira
montagem levada à cena em 1980: “Quanto ao novo Calabar, de 80, eu acho que a peça
perdeu alguma coisa, não sei o quê, sei lá, perdeu a oportunidade, não agüentou o tempo.”
(1989, p.69).
Do jornalismo cultural realizado em 1973, como vimos, pouco se encontra sobre
Calabar, já que o espetáculo não chegou a ser encenado. Pouco antes da estreia prevista e não
realizada, o diário carioca Jornal do Brasil em 29 de outubro de 1973 publicava na página 4
de seu caderno cultural, o Caderno B, um grande reportagem de Fernando Sabino sobre Chico
Buarque e que também comentava sobre sua nova peça. Na reportagem intitulada Chico ou o
elogio da criação, podemos acompanhar a espectativa que existia sobre a grande estreia bem
como alguns aspectos sobre a produção do espetáculo e sua criação dramaturgica que foram
destacados abaixo:
[...] A nova peça de Chico Buarque dc Holanda, de parceria com Ruy Guerra, que breve
será levada a cena no Teatro João Caetano. - Não se trata de elogiar a traição como o
título parece sugerir [...] Nem de reabilititar Calabar, longe disso. Todos os estudos e
pesquisas que o Ruy e eu fizemos sobre ele não nos levaram a conclusão nenhuma. Se ele
traiu por dinheiro, por acreditar que a colonização holandesa seria melhor para o Brasil,
ou por represalia contra os maus tratos dos portugueses
Os estudos e pesquisas receberam o endosso do grande historiador que acontece ser seu
pai — Sérgio Buarque de Holanda ai está para não deixá-lo mentir. Mas por que diabo o
Chico e o Ruy haveriam de escolher Calabar como tema de uma peça musical? A
explicação é simples: andaram traduzindo e adaptando juntos O Homem de la Mancha e a
idéia lhes ocorreu, se uma peça musical é isso, podemos partir para uma que seja nossa
mesmo, e com motivo brasileiro. Pensaram em adaptar um conto de Machado de Assis,
depois recorreram à nossa História e acabaram na lnvasão holandesa da qual o Príncipe
de Nassau e Calabar foram os personagens principais. O que nos fascinou foi justamente
a idéia de um espetáculo movimentado e feérico que o episódio sugeria, com a presença
de portugueses, índios, mestiços, holandeses, como elementos de grande riqueza cênica
na composição de um musical. E partiram para a aventura de jogar no palco mais de 60
figurantes, numa produção de Fernando Torres que andará para a cifra de 600 mil
cruzeiros, nela já estando empenhados cerca de 250 mil.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
79
de Frei Manoel apresenta de maneira utópica e ufanista o Brasil de antes da chegada dos
holandeses intercalado com o discurso de Mathias que escreve uma carta em que tenta
persuadir Calabar com promessas de perdão e devolução de honras e bens para que esse
retorne ao lado português, uma proposta de fidelidade trocada por benefícios. Nas falas de
Mathias se destaca ainda a descrição do aspecto físico e das qualidades de guerreiro de
Calabar entre interjeições de lamentos pela opção holandesa do guerreiro.
Discursos narrativos que procuram situar o público em relação ao tempo histórico
da peça, à existência de uma guerra, à presença da fé católica, à política dominante,
representada por Mathias e sua preocupação com um agente transgressor, Calabar. Em
background os gemidos de um torturado. Nessa composição encontramos amplas
possibilidades de identificação com a atualidade do país em 1973.
Ele sabe dos caminhos dessa minha terra / No meu corpo se escondeu, minhas matas
percorreu / Os meus rios, os meus braços / Ele é o meu guerreiro nos colchões de terra /
Nas bandeiras, bons lençóis / Nas trincheiras, quantos ais, ai / Cala a boca - olha o fogo! /
Cala a boca - olha a relva! / Cala a boca, Bárbara / Cala a boca, Bárbara / Cala a boca,
Bárbara / Cala a boca, Bárbara. (trecho da canção Cala a boca, Bárbara)
Cena 4: Com um corte de luz a cena volta-se para o negro Henrique Diais, o
português Sebastião de Souto e o índio Felipe Camarão que cantam a Canção dos heróis. No
fundo da cena o Frei Manoel e o governador português Mathias de Albuquerque. Após a
apresentação musical os personagens terão um breve diálogo sobre a situação das conquistas
holandesas e sobre o papel de Calabar na guerra. No final Mathias de Albuquerque apresenta
a canção Fado Tropical.
O destaque da cena é a apresentação dos três personagens que representam as três
raças fundamentais na formação do povo brasileiro. O aspecto da ironia será a tônica da
Canção dos heróis pois, como será mostrado na sequência do enredo, todos são grandes
traidores. O “heroi” português vende seus serviços de delator ao governo holandês. O “heroi”
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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índio, convertido ao catolicismo, sacrifica seu povo, conduzindo-os para a morte certa nas
ações estratégicas das batalhas. O “heroi” negro ignora a condição do seu povo escravizado
por ser um homem livre. A ironia de grande acidez também está presente nos diálogos. Frases
como:
FREI – este sim é um herói. Negro na cor porém branco nas obras e no esforço. Inclusive,
V. Exª já notou como ele está ficando um pouco mais claro?
Fado Tropical
Oh, musa do meu fado / Oh, minha mãe gentil / Te deixo consternado / No primeiro abril
/ Mas não sê tão ingrata / Não esquece quem te amou / E em tua densa mata / Se perdeu e
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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se encontrou / Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal / Ainda vai tornar-se um imenso
Portugal
Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa
dosagem de lirismo...(além da sífilis, é claro). Mesmo quando as minhas mãos estão
ocupadas em torturar, esganar, trucidar. Meu coração fecha os olhos e, sinceramente,
chora...
momento da batalha em que a vitória está do lado português. Na cena é tratada a rendição das
tropas holandesas em Porto Calvo. Mathias exige que lhe seja entregue o traidor Calabar
como condição prioritária do tratado. Nessa conversa dos líderes evidencia-se parte da política
internacional a que a Guerra Brasílica estava sujeita: de um lado, os colonizadores
portugueses sob o poder da coroa espanhola; do outro lado, a coroa holandesa a serviço dos
interesses da alta burguesia do país, representada pela Companhia das Índias Ocidentais.
Qualquer que fosse o lado vitorioso, não teríamos uma vitória popular mas apenas uma antiga
ou uma nova elite dominante.
Nesse encontro das grandes autoridades, a cena criada procura realçar, em
exagero, a baixeza e a indiginidade dos mesmos de forma bastante agressiva e repulsiva. A
conversa em que se tomam grandes decisões, desenvolve-se com os dois líderes, lado a lado,
defecando até a exaustão. Além do grotesco cênico temos ainda o grotesco verbal; falam
animada, orgulhosa e detalhadamente de suas lombrigas e das doenças infecciosas de suas
tropas. No final, outra metáfora cênica com a entrada de Frei Manoel, o líder religioso,
trazendo folhas de bananeiras para que ambos se limpem, agora cerimoniosamente. A cena
termina com uma fala de Frei Manoel, sem muito sentido no contexto dos diálogos realizados
mas carregada de intenções autorais: “Morram as tiranias e viva a liberdade!”
No final da cena, talvez como forma de se valorizar ainda mais a falta dos valores
éticos profundos dos governantes, Mathias de Albuquerque, o representante do poder e Anna,
a prostituta, se autodescrevem em ações e frases conjuntas. Um encontro de um “homem
público” e de uma “mulher pública”, juntos a elite e a ralé da sociedade, num contraste
irônico em que são colocados num mesmo patamar e numa mesma circuntância.
BÁRBARA: Certo. Certo. / Não tem culpa arraia-miúda / Não tem culpa arraia-miúda /
Arraia-miúda não muda, / Arraia-miúda está muda, [...] Certo, certo, certo, / A culpa de
tudo é de Calabar. / A culpa de todos é de Calabar. / É bom, é cômodo, é fácil / Trazer um
traidor dentro da manga.
Cena 9: Uma retomada da cena 7, cortada pela ladainha dos moradores e pelos
versos de Bárbara. Retornam Frei Manoel e Mathias de Albuquerque terminando a conversa
sobre traição. O destaque desse momento da peça é a profunda incongruência proposta por
Chico Buarque e Ruy Guerra a partir de uma injustificada confissão de Mathias que pede
perdão por ser um patriota acima dos interesses do poder político. De novo, nos é apresentada
no palco uma alegoria que nos reporta à relação dos autores com o regime militar. Nas falas
do personagem Mathias, o humor e a ironia dos autores falando, provavelmente, de si mesmos
e de suas posições políticas:
MATHIAS: Frei Manoel, amanhã já não estarei mais aqui. É provável que nunca mais
nos vejamos nestas terras. Portanto, antes de partir quero lhe fazer uma confissão
(ajoelha-se). Eu, Mathias, de sangue e nome português, mas brasileiro por nascimento e
afeição, às vezes tenho pensado neste meu país...
MATHIAS: Sim, padre, tenho sofrido esta tentação. Às vezes tenho hesitado em deixar o
meu país à sua sorte, o que não é sorte sua. Padre, às vezes, peco em pensamento, e as
palavras quase me traem. E eu quase me surpreendo a contestar as ordens que me
chegam não sei de onde ou em nome de quem...
MATHIAS: Oh, pecado infame, a infame traição de colocar o amor à terra em que nasci
acima dos interesses do rei!
MATHIAS: Sim, padre, suplico a Deus que me perdoe a desgraça de ter sido fraco e ter
hesitado, ainda que por instantes, em seguir as regras do jogo. Pois Deus sabe que...
FREI E MATHIAS: O que é bom para Portugal é bom para o Brasil. (Grifos nossos)
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
87
Nessa última frase encontramos mais uma comparação presente na peça entre a
ditadura Salazarista e a ditadura militar brasileira. Uma última ironia da cena, essa não mais
representando a opinião pessoal dos autores, mas como um deboche ao estado autoritário
dominante nos dois países. A cena termina com Mathias dando a ordem ao oficial para a
execução de Calabar “sem a presença do povo, na calada da noite, para que não diga coisas
que não devem ser escutadas.”
Cena 10: Bárbara, sozinha em cena, canta Tatuagem. O canto de Bárbara precede
a cena da execução de Calabar. É o canto triste e apaixonado de uma mulher que sabe que
será separada de seu grande amor. Há de se destacar a sensibilidade na abordagem do
universo feminino, além da beleza da canção construída no melhor estilo da poesia
buarqueana.
Quero ficar no teu corpo feito tatuagem / Que é prá te dar coragem / Prá seguir viagem /
Quando a noite vem.../ E também prá me perpetuar / Em tua escrava / Que você pega,
esfrega, nega / mas não lava. (trecho da canção Tatuagem)
Não tenho nada com isso, / Sou vassalo do vassalo, / Eu trato do meu serviço/ Eu cuido
do meu cavalo . / Não tenho nada com isso, Estou cansado e com pressa, / A guerra é meu
compromisso, / E nada mais me interessa.
Após a canção temos, finalmente, a morte de Calabar com a indicação dos autores
para que os três antigos amigos de Calabar se posicionem cenicamente como a famosa estátua
dos três macaquinhos de marfim: não vejo, não ouço e não falo. Constroi-se assim na imagem
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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As duas estão abraçadas, de joelhos, como um corpo só, ligadas pelo sangue de Calabar.
Cena 13, Cena 14 e Cena 15: Dedicadas ao governo holandês que Maurício de
Nassau realiza em Pernambuco. Em uma abordagem que vai desde sua chegada até sua
atuação política como governador-geral, as cenas nos mostram o Conde de Nassau como
alguém de orientação democrática e com capacidade para realizar grandes obras. Chico
Buarque e Ruy Guerra, ao que parece, estavam convencidos das virtudes do modelo de
colonização do Brasil holandês proposto por Nassau. O fato fica evidente, por exemplo,
acompanhando a seguinte rubrica dos autores que determina a cena da canção Não existe
pecado no sul do equador, o primeiro momento de alegria em todo o texto:
Cena 16: Bárbara encontra Sebastião de Souto no Recife. Aqui Bárbara será alvo
de nova sedução, agora por parte de Sebastião de Souto. Nos diálogos entre os personagens
será retomada a história de Calabar e os questionamentos sobre sua traição. A viúva de
Calabar faz diversas comparações entre seu antigo marido e Sebastião. Embora Bárbara
procure mostrar sempre a superioridade de caráter de Calabar em relação a Sebastião de
Souto, o fato não os impedem de manterem um relacionamento amoroso. Uma estranha
relação que coloca em evidência outra discussão importante na pauta cultural do país, a
submissão feminina apresentada, talvez, como uma provocação antifeminista na frase de
Souto: “Que sabem as mulheres dos ideais... Mulher segue o homem pelo cheiro e não pelo
ideal” e confirmada nos versos desse personagem na canção que precede o ato de amor:
Você vai me seguir / Aonde quer que eu vá / Você vai me servir, / Você vai se agachar, /
Você vai resistir, / Mas vai se acostumar. (trecho da canção Você vai me seguir)
Ele era mil, / Tu és nenhum. / Na guerra és vil, / Na cama és mocho. / Tira as mãos de
mim, / Põe as mãos em mim, / E vê se fogo dele, / Guardado aqui, / Te incendeia um
pouco. (trecho da canção Tira as mãos de mim)
Cena 17: Na cronologia histórica, a cena faz referência ao ano de 1640 que marca
o final do domínio da Espanha sobre o trono português, restaurado por D. João IV. Na cena
estão Frei Manoel, Maurício de Nassau, moradores do Recife e oficiais do governo holandês.
Na cena que se inicia no final de missa de Frei Manoel, interrompida pela presença de Nassau
serão tratadas as novas relações entre Portugal e Holanda que, sem a interferência espanhola
conseguem negociar uma trégua.
Nos diálogos fica novamente esclarecida a política civilizatória baseada na
tolerância e no respeito à vontade popular praticada por Nassau sem o apoio do governo
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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holandês. O grande destaque da cena será a apresentação bastante alegórica da música Boi
voador não pode, como observaremos no trecho transcrito a seguir:
Súbito a orquestra ataca a marchinha Boi voador não pode. Surge um imenso boi
sobrevoando o palco e a platéia. Os moradores e os holandeses, espantados e
maravilhados ao mesmo tempo, correm, pulam, riem, bebem, dançam e cantam.
NASSAU E CORO (cantando) - Quem foi que foi, / Que falou no boi voador / Manda
prender esse boi, / Seja esse boi o que for. (bis) / O boi ainda dá bode. / Qualhé a do boi
que revoa? / Boi realmente não pode / Voar à toa. / É fora, é fora, é fora, / É fora da lei, /
É fora do ar, / É fora, é fora, é fora. / Segura esse boi. / Proibido voar.
BÁRBARA: [...] Misturei Sebastião do Souto e Calabar, traí um pelo outro, misturei as
traições, misturei os corpos, misturei tudo, fiz de tudo uma paçoca e mergulhei com
prazer nessa pasta toda. .. De um certo modo eu estava feliz e me sentia mesmo vaidosa
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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de estar traindo Calabar e a sua traição, como mulher, de todo jeito, de estar dentro da
traição, de viver dentro da traição e de amar dentro, se tudo o que me davam era traição.
BÁRBARA: [...] Tudo isso aqui em volta, tudo continua a rodar sem eles. Tudo isso que
fez Calabar trair. Sebastião enlouquecer. . . Não valia a pena morrer por isso. Holandeses,
portugueses, não valia a pena ter morrido por nada disso.
Cena 19 e Cena 20: Conforme a indicação dos autores, as duas cenas são
simultâneas, uma se imobiliza dando lugar à outra e vice-versa. Na primeira das cenas
teremos um encontro entre Frei Manoel e Bárbara que ironicamente questiona a postura do
Frei, que está sempre ao lado de quem estiver no poder. Na outra cena, estará Maurício de
Nassau e seu consultor que foi encarregado de anunciar oficialmente ao governador que a
Companhia das Índias Ocidentais exigia sua renúncia, já que em sua gestão não se
respeitaram as previsões orçamentais e ainda porque Nassau estava sendo acusado de desviar
parte do tesouro do Estado.
Provavelmente pela aproximação do final da peça, como na cena anterior, aqui os
autores se dedicaram também à construção de discursos conclusivos, entre os quais, um
bastante significativo para essa análise, em função de seu aspecto ideológico:
Nesse momento Bárbara não é mais um personagem a protagonizar uma peça que
fala sobre o passado histórico colonial brasileiro. Muito mais do que isso, representa as vozes
dos autores que se dirigem às plateias do Brasil da ditadura militar. Uma mensagem que
continha as esperanças de se viver num país livre, que pregava a necessidade de que muitos
ainda precisariam se engajar contra o regime opressor e que avisava que os mecanismos de
repressão e tortura não seriam suficientes para impedir o crescimento das lutas pela liberdade
democrática e direitos civis.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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Cena Final: Festa de adeus à Nassau. A ambientação indicada nas rubricas sugere
a influência positiva do governo de Nassau sobre a vida colonial: “Faixas de saudações dos
comerciantes locais, judeus etc. Mulheres vistosas, papagaios, negros com boinas e telas de
pintor renascentista, índios especulando em volta de um luneta.”
Além de todo elenco de figuração, na cena estão Bárbara, Maurício de Nassau,
Frei Manoel e membros do governo holandês identificados pelos cargos: Escrivão e
Consultor. A característica dos discursos conclusivos das últimas cenas continua a prevalecer.
Merecem ainda destaque para esta análise:
As falas de Nassau criticando os escalões do poder: “é porque atrás de um homem
de visão há sempre no mesmo reino podre dez generais e mil burocratas. Um grande império e
estreita mentalidade são maus companheiros.”
O último discurso de Bárbara, que instiga um ato de reflexão e cria uma relação
de cumplicidade entre palco e plateia: “A história é uma colcha de retalhos. Em lugar de
epílogo, quero vos oferecer uma sentença: odeio o ouvinte de memória fiel demais. Por isso,
sede sãos, aplaudi, vivei, bebei, traí, ó celebérrimos iniciados nos mistérios da traição.”
O comentário de Frei Manoel no momento da despedida de Nassau: “Tenham fé,
irmãos. O que é bom para a Holanda é bom pro Brasil!” e que marcará a canção cantada por
todo elenco ao final do espetáculo, após o último discurso de Bárbara, é um deboche dos
autores à frase do general Juracy Magalhães “O que é bom para os Estados Unidos é bom para
o Brasil”, dita a um repórter em 1964 quando o general assumiu o posto de embaixador
brasileiro em Washington e que, fora de seu contexto original, foi amplamente utilizada pela
esquerda durante a ditadura como uma pecha ilustrativa da submissão dos governos militares
frente à política imperialista norte-americana. Chico Buarque e Ruy Guerra vão ainda mais
fundo na ironia e na canção que encerra o espetáculo elevam ainda mais esse grau de
submissão:
O elogio da traição
O que é bom pra Holanda é bom pro Brasil /O que é bom pra Luanda é bom pro Brasil /O
que é bom pra Espanha é bom pro Brasil / O que é bom pra Alemanha é bom pro Brasil/
O que é bom pro Japão é bom pro Brasil / O que é bom pro Gabão é bom pro Brasil
O que é bom pro galego é bom pro Brasil / O que é bom pro grego é bom pro Brasil / O
que é bom pra troiano é bom pro Brasil / O que é bom pra baiano é bom pro Brasil / O
que é bom pra inglês é bom pro Brasil / O que é bom pra vocês é bom pro Brasil / O que é
bom pra mamãe é bom pro Brasil / O que é bom pra neném é bom pro Brasil / O que é
bom pra fulano é bom pro Brasil / O que é bom pra (.......) é bom pro Brasil / O que é bom
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
93
pra (.......) é bom pro Brasil / O que é bom pra (.......) é bom pro Brasil / O que é bom pra
(.......) é bom pro Brasil
Até baixar o pano.
[...] existia uma censura, mandamos a peça pra censura e a peça foi aprovada, então
vamos montar o espetáculo. Ai, aquela história, montamos o espetáculo e a censura que
teria que aprovar a montagem não foi aprovar e levou os produtores a falência, né. Nós
produtores falimos porque eles não podiam nem alegar que tinham proibido o espetáculo
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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porque nós tínhamos os papéis liberando a peça. Aquilo ficou muito esquisito porque ai
os jornais eram proibidos de noticiar a proibição e as pessoas chegavam na bilheteria e
não entendiam porque o espetáculo já estava anunciado e não estreava nunca e a
bilheteria estava fechada. Perguntavam e ninguém sabia informar coisa nenhuma. E o
disco, ai já tinham os cartazes preparados: leia o livro, assista a peça e compre o disco
Calabar. O livro foi liberado porque pra literatura não havia essa censura toda. Então saiu
o livro chamado Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, pela Civilização Brasileira, o
espetáculo simplesmente deixou de existir. (BUARQUE, 2005. Informação verbal)
Sonoplastia: M. S. 2001
Elenco principal: Tete Medina, Betty Faria, Hélio Ari, Antônio Ganzaroili, Lutero Luís,
Flávio São-Tiago, Perfeito Fortuna, Dioceses Gouvêa e Odilon Wagner
Elenco de apoio: Ana Mana Vianna, Angelo de Marcus, Antônio Pompeu, Anselmo di
Vasconcelos, Belara Guidi, Carlos Alberto Santana, Dirce Morais, Dulcilene Morais,
Imara dos Réis Ferreira, Ivens Godinho, José Roberto Mendes, Katia D’Angelo, Liucoin
dos Santos, Márcio Augusto, Maria Alves, Maria do Carmo, Nilton Brandão, Nina de
Pádua, Octávio César, Paschoal Viliaboim, Paulo Afonso Gregório, Paulo de Tarso,
Paulo Teira, Suzanne Motta Jacob, Taíse Costa, Thelmo Marques, Viliam e Wladiniir
Gonçalves.
Músicos: Danilo Caymmi, Dori Caymmi, João Palma, Maurício Mendonça e Tenório Jr.
(BUARQUE; GUERRA. 1973, p.5)
Os dados quantitativos gerais sobre censura a livros calculados a partir dos documentos
disponíveis no acervo preservado do DCDP listados anteriormente indicam que a
atividade censória, nesse setor, foi mais rígida entre 1975 e 1980, período em que mais de
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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50% dos livros submetidos foram vetados, enquanto entre 1970 e 1973 o percentual
ficava muito abaixo desse número.
A censura a livros durante a ditadura militar, portanto, teve uma atuação mais forte não
nos chamados Anos de Chumbo (1968-1972), mas durante o governo Geisel (março de
1974 a março de 1979), e especialmente no final desse governo — que, apesar dos
momentos de retrocesso, foi aquele em que se iniciou o processo de abertura política lenta
e gradativa. A censura a livros por parte do Departamento de Censura de Diversões
Públicas aumentou quando a maioria dos jornais e revistas estava sendo liberada da
presença da censura prévia nas redações.
Lançado então sem problemas de censura pela editora Civilização Brasileira com
o título da peça reduzido apenas para “Calabar” o livro recebeu diversas edições em seus
primeiros anos de publicação. A revista Veja em sua edição 331 de 8 de janeiro de 1975, na
página 85, publicando a lista dos Best-sellers de 1974 apontava Calabar na quarta colocação
entre os títulos nacionais.
Na mesma revista Veja, na edição 272 de 21 de novembro de 1973, portanto, logo
após a data da estréia prevista do espetáculo e antes da decisão da censura sobre a proibição
da peça, o lançamento do livro recebia destaque especial ocupando quase que a totalidade da
página de literatura da revista.
A reportagem de Geraldo Mayrink intitulada Canções da Colônia apresentava
uma sinopse da peça entre elogiosas críticas ao texto classificado como “a linguagem mais
límpida e instigante da atual poesia em língua brasileira.” Duas edições posteriores da revista,
Calabar já começava a frequentar a lista dos livros nacionais mais vendidos e assim
permaneceria durante todo o ano de 1974.
Merece destaque o fato de que na composição do livro, na página de abertura foi
colocada a ficha técnica do espetáculo censurado. Dessa forma chegava aos leitores a
informação de que havia existido a montagem do espetáculo e os leitores mais esclarecidos
poderiam concluir que se essa montagem não tinha sido levada à cena é porque havia sido
censurada.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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Teatro Castro Alves em Salvador na Bahia. A gravação desse espetáculo resultou no disco
Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo, lançado no mesmo ano.
Em 1973, a canção Tatuagem foi gravada por Maria Bethânia no disco Drama 3º
Ato e era apresentada no show homônimo ao disco realizado pela cantora. Maria Bethânia
retorna ao repertório da peça, no ano seguinte no show e no disco A Cena Muda onde
interpretava Cala a Boca Bárbara e Tire as mãos de mim. Ainda em 1973, Chico Buarque
grava o disco Chico canta Calabar com as músicas da peça em outro caso se que tornou
emblemático como abuso da atividade censora. A capa do disco destacava a palavra Calabar
sugerindo uma pichação de muro. Os censores viram aí um significado subversivo. Muros
com pichações do tipo “Abaixo a ditadura” eram freqüentes nas grandes áreas urbanas do
país, como um grito de denúncia contra o silêncio imposto pelo regime militar. A relação
entre os fatos era, por demais, evidente.
A primeira capa do disco Chico canta Calabar – LP de 1973 e foto histórica ilustrativa do movimento estudantil
durante o período da ditadura militar.
A reação de Chico Buarque veio com o lançamento do mesmo disco com uma
capa totalmente branca e sem nenhum título. Para, provavelmente, denunciar mais uma vez a
ação da censura, foi mantida a ficha técnica da capa anterior em que constavam os nomes dos
três fotógrafos que trabalharam na composição da capa o que, obviamente, despertava a
curiosidade do público mais atento já que no disco branco não havia foto alguma. O álbum de
capa branca acabou por ser também recolhido, não por decisão dos censores, mas sim por
razões comerciais. Como as vendas do disco estavam muito baixas o departamento comercial
da gravadora Philips concluiu que a capa branca seria a razão da má vendagem e em algumas
semanas relançou o disco com uma nova capa com uma foto de Chico e com o título Chico
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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[...] Algumas músicas foram proibidas completamente, ai foram gravadas apenas a parte
instrumental, foram gravadas com se fossem músicas instrumentais, outras foram
proibidas em parte, tinhas palavras proibidas:
Sou Anna de (recordando e cantarolando a canção Anna de Amsterdã) Sou Anna...
sacana... “Sacana”, não podia. Claro, na época “sacana” não podia. Então “sacana” era
cortado. A Bárbara [em referência ao título da canção] era uma outra que era uma história
de amor entre duas mulheres... (recordando e cantarolando a canção Bárbara) Bárbara,
Bárbara, nunca é tarde ...não sei que... e aí quando falava “nós duas”... “dus”... sumia.
[exemplificando o corte do termo duas na gravação da canção].
[...] tinham várias músicas que eram meio proibidas, com palavras proibidas, o Fado
Tropical [em referência ao título da canção] tinha palavras proibidas. Palavra “sífilis”
não podia e tal. Essa foi a época mais... foi o período mais duro da censura, era tempo do
Médici, não estava pra brincadeira, ninguém estava pra brincadeira ali não.
[...] o disco que se chamava “Chico canta Calabar”, com a capa parecida ou idêntica a
capa do livro, “Calabar” foi proibida. A palavra foi proibida. O nome Calabar foi
proibido. Então o disco saiu com a capa branca invés da capa prevista que era um muro
pichado com o nome “Calabar” e ficou sendo “Chico canta”. Era um disco chamado
(risos) “Chico canta” e as pessoas não entendiam por que: “Chico canta”, sim, Chico
canta, é um disco, ele é cantor. (risos). (BUARQUE, 2005 - informação verbal)
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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A segunda e a terceira capa produzidas para o disco Chico canta Calabar após a censura da
primeira capa.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
101
E
nquanto Chico Buarque e Rui Guerra, em sua primeira parceria artística,
realizavam as versões para a trilha sonora de O Homem de La Mancha,
se iniciava o processo artístico que resultaria em mais um texto teatral
de Chico Buarque. Nesse ano, 1972, a Rede Globo, que já consolidara sua hegemonia como a
maior rede de TV brasileira, consagrava em sua programação a série intitulada Caso Especial.
Levada ao ar pela primeira vez em setembro de 1971 a série se tornou um exemplo de alto
padrão de qualidade na linha dos programas dramatúrgicos da rede. A Globo conquistava,
desde então, suas maiores audiências justamente através da realização de telenovelas e, por
isso mesmo, destacava-se das demais emissoras nacionais na produção de programas do
gênero da teledramaturgia.
Os episódios do Caso Especial eram elaborados a partir de originais ou
adaptações de autores nacionais ou estrangeiros e, diferente das telenovelas, resultavam em
histórias completas, não seriadas com aproximadamente uma hora de duração. Levados ao ar
às 20h30, no dito horário nobre, os Casos Especiais refaziam assim o prestígio de um gênero
já bastante consagrado nos primórdios da TV em nosso país: o teleteatro.
Como observa Sandra Reimão encontramos esse gênero, híbrido de teatro e TV,
como um antigo destaque de qualidade de programação na história da TV brasileira:
programação de apelo de maior popularidade como a produção de telenovelas fez com que a
produção dos teleteatros sofresse uma redução em seu sentido quantitativo.
Porém, o prestígio desse gênero como sinônimo de programação de alta qualidade
continuava presente e, portanto, a Rede Globo vivendo um processo de implantação de uma
nova estratégia de programação, o Padrão Globo de Qualidade, decide investir na produção
dos teleteatros. Tratados como eventos especiais merecedores de um refinamento da produção
e uma sofisticação no trato das questões estéticas e artísticas, tão prestigiados eram os Casos
Especiais que foi justamente um de seus episódios, Meu Primeiro Baile, adaptação de Janete
Clair da obra francesa Carnet de Bal, o primeiro programa nacional gravado e exibido em
cores na TV brasileira – 31 de março de 1972, data em que se “comemoravam” os oitos anos
da instauração da ditadura militar e, por isso mesmo, data da inauguração oficial da TV a
cores no Brasil, que já contava com mais de 6 milhões de aparelhos de TV em seus lares.
Nesse mesmo dia, um feriado de sexta-feira santa, no período da tarde, após o
pronunciamento do Ministro das Comunicações, Hygino Corsetti, inaugurava-se ainda o
sistema de transmissão em cadeia nacional com a exibição de uma produção cinematográfica
do Vaticano, a Paixão de Cristo.
Entre os Casos Especiais levados ao ar nesse ano de implantação da TV a cores e
da cadeia nacional de transmissão estava Medeia, a tragédia clássica grega de Eurípedes numa
adaptação realizada por Oduvaldo Vianna Filho. O mito de Medeia refeito na atualidade de
um subúrbio carioca se tornou a fonte primária de inspiração para a realização de Gota
D’Água, cuja informação pode ser confirmada em diversas declarações de Chico Buarque,
como por exemplo, no trecho da entrevista realizada em 1984 por Lisa Oliveira-Joué, presente
nos arquivos virtuais da Fundação Tom Jobim:
A idéia original é de Oduvaldo Vianna Filho, que fizera um seriado para televisão
chamado Medeia, uma transposição da tragédia grega para o subúrbio carioca.
Depois ele procurou o Paulo Pontes e a sua idéia era escrever uma peça de teatro
desenvolvendo esse mesmo tema. O Vianninha morreu, e o Paulo Pontes que herdou o
projeto chamou-me.
Paulo Pontes pensou em mim sobretudo para pôr tudo isso em versos, já que para ele era
a forma que mais se prestava à peça. Eu peguei “o bonde andando”. Na verdade, a gênese
mesmo da peça não me diz respeito. Claro que, quando começamos a trabalhar, fizêmo-lo
a partir da “capa”, a partir da “Medeia”, mas já havia essa realização do Vianninha para a
rede Globo, se bem que a nossa peça não se baseie nela.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
106
Pelo lado das forças da ditadura, os militares que se apresentavam ao país como um fator
de civilização e progresso, encarnaram os valores e os métodos das volantes de caçadores
de quilombolas e de cangaceiros. A vida dos inimigos tornara-se uma irrelevância diante
de um objetivo maior: o extermínio da subversão comunista.
Pelo lado da liderança do PC do B, que se apresentava como vanguarda de uma guerra
popular, ruiria sua conexão com a realidade. Operacionalmente, ela se desligou do que
acontecia no Araguaia, tanto em relação aos meios (que eram poucos) como em relação à
responsabilidade que lhe cabia. Substituiu o massacre de seus quadros pela propaganda da
iniciativa. O extermínio tornara-se uma irrelevância diante do objetivo maior: a
autoglorificação do partido.
eleição indireta e certa, realizada pelo Congresso Nacional. Com uma dita predisposição para
a realização de uma abertura democrática “gradual, lenta e segura” o quarto presidente
empossado no regime militar inicia sua tímida ação democratizante diminuindo aos poucos a
severidade das ações censórias sobre os meios de comunicação de massa. Ainda em 1974
garante a realização de eleições livres para senadores, deputados e vereadores, no entanto, a
vitória expressiva dos candidatos do MDB – Movimento Democrático Brasileiro, o único
partido oposicionista legitimado pela ditadura, provoca temerosas preocupações entre os
comandos militares da chamada “linha dura”, pelas posições mais radicais contra a abertura
democrática e que continuaram a agir com a mesma violência e arbitrariedade costumeiras. O
exemplo maior dessa postura criminosa resultaria da morte do jornalista Vladimir Herzog
(1975), preso e brutalmente assassinado nas dependências do II Exército na capital paulista.
Tendo o regime militar nesse momento um controle quase absoluto dos mais
tradicionais jornais e revistas brasileiros, através da presença de censores nas redações desses
veículos de comunicação, cabia à chamada “imprensa nanica” e aos semanários da imprensa
alternativa O Pasquim ou Opinião, veículos de resistência ao regime e importantes
formadores de opinião com grandes tiragens, alguma divulgação contrária às determinações
do governo militar. No plano cultural a grande marca do período é o domínio exercido pela
TV, mais especialmente a Rede Globo, a grande líder de audiência do país que, afinada com o
regime político vigente, colaborava com o conteúdo de seus programas jornalísticos para a
criação da pauta dos temas nacionais de interesse do governo e proporcionava através de uma
competente produção o entretenimento típico da cultura de massa com sua linha de shows,
humorísticos e telenovelas levados ao ar no horário de maior audiência, o horário noturno,
distanciado a nova e crescente classe média brasileira dos grandes problemas nacionais.
Ainda mais alienante era a produção cinematográfica brasileira, salvo o esforço de
alguns poucos, sob o domínio comercial das pornochanchadas, um gênero de comédia de
apelo sensual e popularesco. O teatro, quase que completamente amordaçado pela censura,
lutava para simplesmente sobreviver e, de certa forma, renascer através de grupos de teatro
alternativos surgidos principalmente nas periferias paulistanas. A música popular, tão vigiada
pelos mecanismos censores quanto o teatro, embora renovada pela presença de novos
compositores do alto quilate de João Bosco e Aldir Blanc, de novas vozes e novas linguagens
como Ney Matogrosso à frente do grupo Secos & Molhados e, renovada ainda, pelo retorno
do exílio de artistas de relevada importância como Caetano Veloso e Gilberto Gil, estava
dominada nos meios de divulgação e nas paradas de sucesso pelas canções presentes na linha
de novelas e shows da Rede Globo.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
109
São Paulo. Opinião foi saudado pela imprensa como o acontecimento cultural mais
importante do teatro brasileiro naquele ano. Uma verdadeira catarse. O espetáculo se
constituiria em divisor de águas, como detonador da resistência cultural ao regime de
exceção. Em seguida, o grupo montaria Liberdade, liberdade (1965), de Millôr Fernandes
e Flávio Rangel, tendo à frente do elenco Paulo Autran, Teresa Rachel e Vianninha.
Conforme já citado nos dois primeiros capítulos dessa pesquisa, através das obras
de Roberto Schwarz (2000) e Marcelo Ridenti (2000), durante o regime militar a presença
produtiva na indústria cultural de intelectuais e artistas de esquerda refratários ao regime foi
sempre observada constatando-se mesmo certa adesão por parte de alguns desses nomes ou no
mínimo um caminho possível de convivência pacífica com a ordem estabelecida. Vianninha
fazia parte desse grupo e estava entre aqueles que acreditavam na comunicação de massa
como uma ocupação estratégica, como mais uma possibilidade da prática de suas convicções
ideológicas.
Desde o início dos anos 70, apesar de suas convicções políticas, Vianninha era
contratado da Rede Globo, onde escrevia especiais e seriados. Um deles, de 1973, em co-
autoria com Armando Costa, nos moldes dos sitcoms norte-americanos, A Grande Família era
o grande sucesso da época e, até hoje, sua nova versão adaptada constitui-se num dos grandes
líderes de audiência da mesma Rede Globo. Entre seus casos especiais de sucesso, a
adaptação de Medeia de Eurípedes, que posteriormente pretendia transformar em peça teatral,
projeto interrompido por seu falecimento e para o qual havia convidado Paulo Pontes como
coautor. Sobre o parceiro Vianninha declararia Paulo Pontes no artigo Vianna in Memoriam,
publicado na revista Ele & Ela, em sua edição de abril de 1976:
[...] toda a vastíssima produção cultural saída desse período particularmente feliz da
cultura brasileira, quando a melhor energia criadora do país se unia aos interesses sociais
mais legítimos do povo, recebeu, de alguma forma, o sopro da inteligência criadora de
Oduvaldo Vianna Filho. Eram dezenas de peças, peças curtas, filmes, espetáculos de rua,
shows, debates e conferências nascidos da perspectiva de que o intelectual do país
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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subdesenvolvido tem que refletir e criar sobre as condições reais da existência do povo.
E, sem dúvida, Vianna foi o grande arquiteto dessa perspectiva, em sua geração,
pensando e criando, discutindo e organizando, prevendo e estimulando.
Chico Buarque jamais teve o propósito de efetuar uma pesquisa de vanguarda no âmbito
da música brasileira, tal como ocorreu no caso de Gilberto Gil, Caetano Veloso ou
Egberto Gismonti. Nem tampouco foi o autor comprometido do modo de Geraldo Vandré
ou Sérgio Ricardo. E se hoje Chico Buarque é, no Brasil, o autor mais importante de
músicas de protesto, isto se deve, em grande parte, à radicalização acelerada de sua
posição ideológica motivada pelas pressões que sobre ele exerceram os organismos
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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Acorda amor / Eu tive um pesadelo agora / Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no
portão, que aflição / Era a dura, numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura /
Chame, chame, chame lá / Chame, chame o ladrão, chame o ladrão.
Acorda amor / Não é mais pesadelo nada / Tem gente já no vão de escada / Fazendo
confusão, que aflição / São os homens / E eu aqui parado de pijama / Eu não gosto de
passar vexame / Chame, chame, chame / Chame o ladrão, chame o ladrão.
Se eu demorar uns meses / Convém, às vezes, você sofrer / Mas depois de um ano eu não
vindo / Ponha a roupa de domingo / E pode me esquecer.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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Acorda amor / Que o bicho é brabo e não sossega / Se você corre o bicho pega / Se fica
não sei não /Atenção / Não demora / Dia desses chega a sua hora / Não discuta à toa não
reclame / Clame, chame lá, chame, chame / Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o
ladrão. (Não esqueça a escova, o sabonete e o violão).
Mesmo na linha de frente desta guerra, Chico não transformou a obra em panfleto.
Manteve o sarcasmo, como no samba rock Jorge Maravilha (''você não gosta de mim/
mas sua filha gosta'') dirigido ao general seguinte, Geisel, cuja filha apreciava sua música.
Nunca afrouxou o laço do apuro estético. (SOUZA, 12/06/2004)
Em Fazenda modelo, "novela pecuária" Chico Buarque tece uma alegoria sobre a
sociedade dos homens - falando, no entanto, exclusivamente de bois e vacas. Trata-se de
uma parábola sobre o poder, a respeito das formas de dominação social sobre o rebanho
humano. E a forma de dominação mais radical é usurpar do indivíduo - sempre em nome
dos mais santos princípios - qualquer possibilidade de assumir seu próprio destino
pessoal. A Fazenda modelo é uma comunidade bovina que começa a crescer e que se vê -
através da liderança mansa do boi Juvenal, o bom - submetida a um processo radical de
transformação, de "progresso": em que tudo que era natural é considerado "atrasado" ou
"pecado" e passa a ser cientificamente regulado.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
114
As atitudes artísticas de Chico Buarque cada vez mais o colocavam à frente como
um símbolo de resistência e luta contra o regime. Completamente comprometido com a luta
democrática e assumindo francamente uma posição contrária à ditadura, Chico Buarque,
entretanto, nunca aceitou a imagem heróica que as esquerdas e a intelectualidade queriam lhe
atribuir e realizava sua trajetória artística de forma independente, uma personalidade avessa
aos rótulos de líder da luta democrática e desprovida de compromissos partidários. Outra de
suas declarações a Eric Nepomuceno (1973, op. cit), abaixo citada, confirma essa postura:
Eu sou um compositor, não um político. Faço música e não política. Mas, a partir do
exato momento em que a política ou a situação do país me impedem de trabalhar, me vejo
obrigado a transformar-me em político e a manifestar-me e defender-me.
A mim não vão amordaçar. A única coisa que me assusta é chegar a um ponto em que a
autocensura me impeça de trabalhar. Atualmente, quando escrevo uma letra, já não sei se
vão aprová-la ou não. Divido minhas músicas entre as que, na minha opinião, vão ser
qualificadas com um "não" e as que podem receber um "talvez".
Porém, da mesma forma, me equivoco constantemente. Letras que pra mim estavam entre
as que tinham possibilidades de serem autorizadas, terminaram recebendo um "não" por
parte da censura.
Tento jogar respeitando as regras, procuro escrever de tal forma que possa burlar a
censura. Mas ocorre que ela, lentamente vai aguçando seu olfato. Às vezes se chega a ter
a impressão que age com alguma inteligência, e isso, claro, vai me obrigar, da mesma
forma que a todos os meus colegas, a afinar ainda mais meu repertório de truques.
Em meu caso, o problema da censura é algo habitual. Porém eu me pergunto o que vai ser
dos novos compositores, de todos os que ainda não são conhecidos, quando se virem
obrigados a enfrentar a máquina da opressão e da repressão.
Tenho medo de que morram antes de terem nascido, e é um temor fundado. Minha
geração - nascida em 66 - foi a última conhecida dentro da Música Popular Brasileira.
Depois de Milton Nascimento, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gil, e Egberto Gismonti e
alguns outros, não surgiu mais ninguém e isso não ocorre somente na música. Ocorre nos
campos onde a criação e a expressão são um ponto de partida.
Não vou falar da situação política de meu país. Não sou um teórico. Porém, posso falar
com conhecimento, da Censura. É o único instrumento de que dispõe o regime para calar
os que desejam dizer algo que possa incitar a pensar. Algo que, principalmente, pode
encontrar eco entre os universitários, entre a juventude.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
115
Houve momentos em que tive vontade de renunciar a tudo. Agora não. Agora quero lutar.
Quero devolver uma por uma as bofetadas que me dão. Sei que minha resposta não
poderá representar nada contra a força do sistema, mas não pretendo ficar calado.
Hoje me interessa, mais do que nunca, ser conhecido. Ser conhecido, em meu caso, a algo
que opera como um mecanismo defensivo: não vão poder me eliminar quando queiram.
Se desapareço, haverá muita gente que vai tentar averiguar o que aconteceu comigo.
Ninguém mais pode ficar em um canto observando o que ocorre. É necessário assumir
uma posição definida. Eu escolhi a minha. Optei pela denúncia. Não sei o que vai suceder
mas continuarei lutando.
Paulo começou sua carreira teatral no Teatro de Estudante da Paraíba, mas foi no
rádio em que seu trabalho ganhou notoriedade, escrevendo, produzindo e apresentando seus
programas radiofônicos. Em 1962, na Rádio Tabajara de João Pessoa, um de seus
humorísticos, grande líder de audiência que retratava o cotidiano de uma humilde família
brasileira, impressionou Oduvaldo Vianna Filho, que estava na capital paraibana numa turnê
do grupo Teatro de Arena. Vianninha propôs a Paulo Pontes que se mudasse para o Rio de
Janeiro para escrever para teatro. Desde então, tornaram-se grande amigos e companheiros em
suas trajetórias profissionais.
Talvez mais do que como dramaturgo, Paulo destacava-se como um dos mais
hábeis articuladores da cena cultural do final dos anos 60, tendo participado, por exemplo, do
argumento básico de Se Correr o bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come de Oduvaldo Vianna
Filho e de Ferreira Gullar e A Saída, Onde Fica a Saída? de Antônio Carlos Fontoura,
Ferreira Gullar e Armando Costa.
Autodidata e profundamente dedicado à criação de uma dramaturgia nacional que
falasse do povo brasileiro e que atingisse às camadas populares, Paulo Pontes, que viveu os
últimos 8 anos de sua vida com a grande dama do teatro nacional, Bibi Ferreira, era
reconhecido como uma das personalidades mais cultas e influentes dos palcos brasileiros,
tendo desempenhado um papel importantíssimo no nosso teatro pelo seu posicionamento
crítico e por sua capacidade de unir a classe teatral em torno de ideias e projetos. “Um
conscientizador” assim, o jornalista e crítico teatral Yan Michalski (1976) definiu o papel
especial que Paulo Pontes desempenhou no teatro nacional:
Antes de mais nada, ele foi uma das mais lúcidas cabeças que pensaram e atuaram em
nosso meio no decorrer dessas últimas décadas. Em numerosas entrevistas, artigos,
ensaios, conferências e debates ele deixou registrada uma reflexão obstinada, corajosa,
equilibrada e brilhantemente formulada sobre os caminhos que o fenômeno teatral vem
percorrendo no Brasil e outros que ele poderia e deveria empenhar-se em conquistar.
Pontes foi merecedor. Na noite de sua morte, uma homenagem em cena aberta lhe seria
prestada em todas as casas de espetáculo do Rio de Janeiro com a leitura do seguinte texto
antes do início das apresentações:
Senhoras e senhores, boa noite. Nós somos artistas de teatro, e ao longo do tempo temos
nos acostumado a representar diante de quaisquer condições. Mas hoje é um dia
particularmente triste para nós e para todo o teatro brasileiro, porque é o dia que marca o
sepultamento de um dos mais expressivos nomes de nossa arte.
Paulo Pontes – que os senhores certamente conhecerão como um dos autores de Gota
D’água – era, além de um dramaturgo talentoso, uma das pessoas que melhor pensaram o
fenômeno cultural brasileiro. Sua influência se espalhou por todos nós, já que exercia
uma liderança natural, graças a sua poderosa inteligência e rara lucidez.
Como autor, moveu-se, com a mesma categoria, da tragédia ao musical, do drama à
comédia, do texto de televisão ao sketch de revista – e em todas essas atividades, além de
ensaísta e conferencista, expressou sempre a preocupação de colocar o povo brasileiro no
centro dos acontecimentos – pois Paulinho amava o teatro e amava o povo, que sonhou
livre no exercício de suas potencialidades.
Lutou pela liberdade de expressão, por uma cultura nacional e popular, pela
regulamentação de nossa profissão, e foi incansável em todas essas atividades, onde
ocupou, sempre, um lugar de destaque. Também lutou para que os teatros permanecessem
sempre abertos, acima de quaisquer pressões ou dificuldades; e por isso não cancelaremos
o espetáculo desta noite.
Mas pedimos que essa platéia represente agora todo aquele imenso público que sempre
prestigiou os espetáculos pelos quais Paulo espalhou seu talento e que se una à nossa dor,
dedicando conosco um instante de silêncio em homenagem à memória de nosso
companheiro.
Esse ensaio que apresenta Gota D’Água embora escrito por Paulo Pontes,
conforme declarado por Chico Buarque na entrevista realizada por Lisa Oliveira-Joué,
anteriormente citada, a nosso ver, mostrou-se como um documento de extrema importância,
não só no estudo sobre Gota D’Água, mas para a compreensão da poética presente em toda
dramaturgia buarqueana que procuramos entender.
Talvez esse afinamento das concepções ideológicas do teatro de Paulo Pontes com
o teatro de Chico Buarque tenha sido a razão principal da adesão de Chico ao projeto de pôr
em cena a Medeia carioca.
A preocupação com a criação de uma manifestação cultural de apelo e
fundamentação populares contida nesse texto de abertura do livro de Gota D’Água é um tema
constante na obra dramática de Chico Buarque e, portanto, mostra de forma bastante clara
mais uma das intenções libertárias que pretendia realizar através de sua obra teatral.
Por esse aspecto revelador de mais essa importante característica de seu teatro,
destacamos a seguir mais um importante trecho desse ensaio onde são mostradas as questões
relativas ao problema de um distanciamento entre a produção cultural e um conteúdo voltado
a uma brasilidade legítima e popular:
Estão aí propostas preocupações artísticas que, muito além da criação de uma obra
dramatúrgica comercial ou intimista, são comprometidas com mudanças de fundo social: a
consciência sobre um passado histórico de política elitista e espoliadora do país, a retomada
de um projeto de fomento de uma legítima cultura nacional, o chamado à responsabilidade da
intelectualidade e da classe média brasileira sobre um papel a ser cumprido em nome da nação
e do povo brasileiro e o retorno a um governo democrático como o caminho modificador da
sociedade brasileira.
Ainda uma terceira preocupação seria tratada nesse artigo de apresentação. Essa
de teor estético e formal, fundamentada no resgate do valor da palavra. A palavra na sua
forma mais lírica, o verso, se constituiria no plano central da ação dramática de Gota D’Água.
Após o advento do AI-5 e os excessos e desmandos censórios que esse provocou, a crise
expressiva vivida no teatro brasileiro transformara a palavra cênica em ato sufocado e
controlado, o que obviamente se refletia em perdas na força e na qualidade da fala dramática
restando então às direções de espetáculo o deslocamento da prioridade das montagens teatrais
na valorização de outros elementos artísticos potenciais como o gesto e a expressão corporal,
ou ainda, elementos cênicos de expressão técnica como iluminação, cenografia etc.
Na análise dos autores de Gota D’Água, a cultura brasileira daquele momento
refletia a crise do pensamento crítico imposta pela ditadura e que se acumulava no interior da
sociedade, provocando transformações que resultaram numa superficialidade do pensamento
político e intelectual sobre a vida brasileira.
No plano teatral esta crise resultou na incapacidade de percepção sobre a realidade
nacional e ainda na incapacidade de formulação de propostas acerca dessa realidade. Daí a
necessidade de um retorno à priorização do discurso e, conseqüentemente, à força da palavra
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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[...] quatro tarefas, que, diga-se logo, nenhum mortal pudesse sequer iniciar a não ser que
a grande faísca de eternidade, o amor, que transmuta impossíveis em possíveis,
aparecesse! As provas impossíveis para qualquer ser humano eram as seguintes: pôr o
jugo em dois touros bravios, presentes de Efestos a Eestes, touros de pés e cornos de
bronze, que lançavam chamas pelas narinas e atrelavam a uma charrua de diamante;
lavrar com eles uma vasta área e nela semear os dentes do dragão morto por Cadmo na
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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Beósia, presentes de Atená ao rei; matar os gigantes que nasceriam desses dentes;
eliminar o dragão que montava guarda ao Velocino, no bosque sagrado do deus Ares.
Perplexo face às tarefas impostas, que teriam que ser realizadas num só dia, de sol a sol, o
herói estava pronto para retornar à Iolco, quando surgiu Medeia, mágica consumada, que,
apaixonada por ele, talvez por artimanhas da deusa Hera, comprometeu-se a ajudá-lo a
vencer todas as provas. Sob juramento solene de casamento e de levá-la para a Grécia,
repetindo-se desse modo o episódio de Ariadne e Teseu, Jasão recebeu de Medeia todos
os recursos necessários para uma vitória completa. (BRANDÃO, 1987, p.187)
Jasão e Medeia, expulsos de Iolco viviam em paz em Corinto, quando o rei Creonte
concebeu a idéia de casar a sua filha Glauce ou Creúza com o herói dos argonautas.
Jasão, sem tergiversar, aceitou o enlace real e repudiou Medeia, que foi banida de Corinto
pelo próprio soberano. Implorando-lhe o prazo de só um dia, sob o pretexto de se
despedir dos filhos, a feiticeira da Cólquida teve tempo suficiente para preparar a mortal
represália. Enlouquecida pelo ódio, pela dor e pela ingratidão do esposo resolveu vingar-
se tragicamente, enviando à noiva de Jasão, por intermédio de seus filhos Feris e
Mérmero, um sinistro presente de núpcias. Tratava-se de um manto ou de um e véu e de
uma coroa de ouro impregnados de poções mágicas e fatais.
[...] Vaidosa, Glauce, sem hesitar, não apenas aceitou, mas igualmente se ataviou com o
lindíssimo véu e a coroa de ouro, prenúncio da coroa real, que, em breve, luziria sob sua
fronte, jovem e bela. A princesa, todavia, teve apenas tempo de se ornamentar. De
imediato, um fogo misterioso começou a devorar-lhe as carnes e os ossos. O rei, que
correra em socorro da filha, foi envolvido também por este incêndio inextinguível, que os
transformou rapidamente em um monte de cinzas.
Não parou aí a vindita louca da filha de Eetes, também os filhos morrerão pelas mãos da
própria mãe, para que Jasão sofra uma solidão mais aterradora do que aquela que lhe
desejara.
[...] Mortos Creonte e Creúza e incendiado o palácio real, Medeia assassinou os próprios
filhos no templo de Hera e num carro alado, presente de seu avô Hélio, o sol, puxado por
dois dragões ou duas serpentes monstruosas fugiu para Atenas.
humana é demoníaca esta Medeia, que é transformada por Eurípedes em assassina dos
próprios filhos.” (1976, p. 171)
Esclarece ainda sobre a possível influência na versão dada por Eurípedes à lenda
de Medeia do mito de Procne, que mata seu filho ainda criança para se vingar do marido
Tereu. Independente das razões de Eurípedes sobre a versão da lenda que escolheu
dramatizar, fato é que a partir de sua Medeia, terceira colocada nas Grandes Dionisíacas de
431 a.C., a versão de uma mulher abandonada de atitude tão passional a ponto de sacrificar os
próprios filhos para fazer sofrer o marido foi definitivamente incorporada a essa lenda. Fato
também é que a visão trágica de Eurípedes marcou o início na história da dramaturgia
ocidental do que chamamos Teatro Psicológico.
Margot Bertold (2001, p. 110) nos aponta que o teatro euripidiano apresentou um
nível inteiramente novo para o conflito das tragédias. Em suas obras, o homem e não mais o
divino será a medida das coisas. Eurípedes inovou o gênero trágico em seu conteúdo,
impregnando suas obras com seu ceticismo oponente à existência de uma verdade absoluta.
Destacava com seu teatro as contradições e ambigüidades do homem, a essência da decepção
e o relativismo das questões éticas. Na análise de outro dos grandes poetas trágicos, Sófocles,
enquanto suas peças representavam o homem como esse deveria ser, Eurípedes, com seu
teatro, representava os homens como eles são e talvez aí esteja sua maior contribuição ao
gênero trágico.
Como um conceito consagrado, trataremos a tragédia como o gênero do drama em
que a representação consiste em ações que após a apresentação de grandes questões e
conflitos humanos, resultarão em morte e, na maior parte das vezes, dos próprios
protagonistas da trama. Aristóteles através de sua obra Poética apresentou uma conceituação
do gênero que se tornou definitiva na história do teatro, dada a profundidade de sua
abordagem e que exerceu uma influência decisiva sobre todos os autores e teatrólogos desse
gênero dramático.
O grande filósofo define tragédia como a imitação de caráter elevado e completo
realizada por personagens em ações cujo resultado cênico provoca a piedade e o temor e,
assim, opera em seu público uma purgação de semelhantes emoções. O estudo de Aristóteles
também apresentou os elementos fundamentais de composição da obra trágica, sintetizados e
caracterizados a seguir por Patrice Pavis (1996, p.416):
[...] a catharsis ou purgação das paixões pela produção do terror e da piedade; a hamartia
ou ato do herói que põe em movimento o processo que o conduzirá à perda; a hybris,
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
125
orgulho e teimosia do herói que persevera apesar das advertências e recusa a esquivar-se;
o pathos, sofrimento do herói que a tragédia comunica ao público. A sequência
tipicamente trágica teria por “fórmula mínima”: o mythos é a mimese da práxis através do
pathos até a anagnoris. O que significa, dito de maneira clara: a história trágica imita as
ações humanas colocadas sob o signo do sofrimento das personagens e da piedade até o
momento do reconhecimento das personagens entre si ou da conscientização do mal.
Em sua breve definição, Pavis aponta que na história do gênero trágico temos três
períodos em que o florescimento das tragédias foi particularmente importante: a Grécia
clássica do século V, a Inglaterra do período elisabetano e a França entre 1640 e 1660.
Alguns estudiosos acreditaram numa impossibilidade da permanência do gênero
trágico a partir do domínio do cristianismo sobre a cultura ocidental, já que a visão espiritual
da Grécia antiga associada a uma predestinação ou uma fatalidade de ordem divina
determinando o destino trágico do herói seria extremamente oposta à visão cristã sobre o
pecado e possível arrependimento das faltas cometidas como efeitos do livre arbítrio do
homem, com a possibilidade do perdão ou punição divina no pós-morte. No entanto, o trágico
sobreviveu, reinterpretado nas novas concepções morais e espirituais e, julgamos ainda
importante destacar, as influências desse gênero teatral também não se limitaram aos palcos,
pois por ser também um princípio cuja natureza está profundamente ligada à própria
existência humana, encontramos o elemento trágico presente em várias outras formas da arte,
tornando-se, ainda, uma questão filosófica tratada, além de Aristóteles, por diversos e
importantes do pensamento filosófico como Hegel, Schopenhauer e Nietzsche, entre outros.
Todos os matizes que o gênero recebeu ao longo da história através das diversas
interpretações artísticas, culturais e estéticas a que esteve submetido, torna a tentativa de uma
definição mais completa do trágico uma tarefa que não nos compete aqui realizar. O fato é
que a tragédia sempre esteve presente como uma forma de tratamento de relações extremas,
em que o personagem trágico tem como função o enfrentamento de grandes conflitos
humanos. As ações desses personagens representam uma heróica reação ao que se apresenta
caótico e determinam uma profunda mudança sobre seu destino. Assim se realizou com
Medeia na versão de Eurípedes e, da mesma forma, com sua versão brasileira, a Joana de
Chico Buarque e Paulo Pontes.
Na Grécia antiga, uma princesa e poderosa feiticeira de linhagem nobre e divina,
que envolvida por uma grande paixão, transforma em vitória a aventura de Jasão. Na periferia
do Rio de Janeiro, uma dona de casa de origem incerta, cujos dons de feiticeira não vão além
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
126
da prática dos populares ritos de raízes afro-brasileiras, mas que, de posse de grande sabedoria
popular, transforma o seu amor, o jovem ingênuo e inseguro Jasão, num homem talentoso,
experiente e bem sucedido. Ambas traídas e abandonadas pelos homens a quem dedicaram
suas vidas e vencidas pelo poder e pelas circunstâncias impostas no meio social a que estão
sujeitas. Medeia, uma exilada vivendo ainda na condição de nobre no Reino do Corinto, sob a
proteção do rei Creonte. Joana, uma humilde habitante de um conjunto habitacional popular, a
Vila do Meio-Dia e que, como todos seus vizinhos, é uma devedora de Creonte, o empresário
construtor e dono do conjunto habitacional que, como o homônimo personagem dos mitos
gregos, exerce também uma espécie de poder monárquico.
Creonte, em Gota D’Água representa uma típica liderança dos subúrbios e morros
cariocas, regiões carentes de obras sociais ou benefícios governamentais, que eram dominadas
por uma elite marginal de contraventores, cuja origem da riqueza e do poder advinha de
negócios ilegais, como o então tradicional jogo-do-bicho. No comando das máfias surgidas
na pobreza carioca, esses chefes populares exerciam um poder econômico e político paralelo
ao poder do estado, numa forma que refazia ainda nos anos 70 o antigo modelo opressor das
práticas coronelistas da Primeira República. Muitas vezes toleradas e até beneficiadas pelo
poder oficial por suas influências corruptoras, essas lideranças marginais controlavam
amplamente os caminhos da vida social em suas regiões.
Em oposição a Creonte, outra espécie de liderança popular será apresentada na
peça através do personagem mestre Egeu. Presente também no original de Eurípedes o
personagem Egeu, pai do herói Teseu e um dos reis míticos de Atenas, tradicionalmente
sempre esteve ligado à história de Medeia como seu grande amigo. Além do amigo
interlocutor dos protagonistas, em Gota D’Água o mestre Egeu tem uma importante função no
plano narrativo e no entendimento do espetáculo, conforme tão bem observa Fernando
Peixoto:
[...] todo o comportamento, e suas conseqüências no plano social, de Egeu, homem que
está ao lado da justiça e da verdade, que possui uma clara compreensão do tipo de
submissão e de mistificação em que vivem os manipulados moradores do conjunto
residencial do subúrbio no Rio de hoje. Egeu, há alguns anos atrás, seria o protagonista da
peça. Seria o herói, o personagem que traz a verdade, que atira com êxito à frente dos
demais. Hoje ele continua a “representar” a verdade, mas é um personagem secundário.
Ou aparentemente secundário. Este deslocamento é significativo. Ainda que sua presença,
na peça ou na vida social de hoje, seja o aspecto fundamental da possível transformação.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
127
Ele fala, os outros não compreendem ou negam. Sua reivindicação é incômoda ou quase
solitária. Assim, Egeu explica tudo à personagem Joana (Medeia), uma mulher radical (e
perdida no radicalismo que conduz apenas ao suicídio e ao ato final). E explica também
ao público, didaticamente, o tipo de relações sociais que os poderosos estabelecem para
os subalternos. (1989, p. 277-278)
Da mesma forma como o guerreiro grego Jasão foi seduzido pelo poder do trono
de Creonte, abandonando Medeia para se casar com a filha do rei, o Jasão brasileiro, um
compositor de samba em início de uma carreira de sucesso popular e midiático através da
canção Gota D’Água, será seduzido pelas influências e pelo poder de Creonte, vendo no
casamento com sua filha Alma a grande oportunidade de ascensão no padrão social e na
carreira artística.
O coro grego na tragédia de Eurípedes era constituído pelas mulheres de Corinto,
interlocutoras das agonias de mulher abandonada vividas por Medeia, em Gota d’Água a
função será exercida pelos habitantes da Vila do Meio-Dia apresentados como tipos
característicos da vida popular carioca, havendo em suas leituras sobre o conflito vivido por
Jasão e Joana uma distinção clara de gênero entre os personagens femininos que apresentam
uma posição solidária à Joana, absolutamente diferente da visão machista realizada pelo coro
masculino.
Em Gota D’Água o coro extrapola a função interlocutora e, por vezes, transfigura-
se em cenas narrativas voltadas a apresentação do conflito dramático da trama que se
manifesta, através das preocupações, mexericos e fofocas desses vizinhos. Assim, além de
servir ao diálogo com os protagonistas, Chico Buarque e Paulo Pontes utilizam o coro de
vizinhos para abordar outras questões importantes em sua tragédia formando cenas que se
revelam como quadros críticos do cotidiano da vida brasileira no âmbito das classes baixas
das grandes metrópoles.
O uso da transposição de um coro grego personificado na forma de moradores
vizinhos dos protagonistas de uma história não se constituía uma ideia inédita na dramaturgia
brasileira. Antes de Chico Buarque e Paulo Pontes utilizarem esse recurso na tragédia carioca
de Joana e Jasão, Nelson Rodrigues, o grande autor do teatro brasileiro, já o havia empregado
com sua habitual genialidade em 1947 na realização cênica de Senhora dos Afogados, em que
transpôs o mito incestuoso de Electra para o teatro e para a realidade nacional. Em Gota
D’Água, no entanto, recebe o coro dos vizinhos a importância da realização do palco narrativo
de inspiração brechtiana, tema já abordado no capítulo anterior. Novamente a influência do
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
128
Teatro Épico pode ser observada na obra teatral de Chico Buarque que mantém em sua
terceira autoria teatral o compromisso ideológico de apresentar uma história em que
claramente observaremos o sistema econômico como o principal elemento provocador da
opressão humana.
É o estado de pobreza que mantém os moradores da Vila do Meio-Dia em sua
condição de submissão aos mandos e desmandos de Creonte, personagem que representa uma
elite econômica cuja riqueza e poder advêm da espoliação dos mais pobres. O herói grego
Jasão, aqui transformado em um novo artista de sucesso da indústria cultural, em troca das
vantagens proporcionadas por Creonte abandona sua mulher, seus filhos e, talvez, seus
princípios e, mesmo assim, é tratado por seus antigos vizinhos como um grande vitorioso por
ter encontrado um meio de ascensão social, numa postura que faz clara referência à crítica ao
comportamento conformista da classe média brasileira, comportamento este, como vimos
acima, julgado por Chico Buarque e Paulo Pontes como uma das principais razões para a
manutenção do estado opressor.
Para completar o quadro social apresentado, como um símbolo maior de todas as
misérias retratadas, a passional Joana é derrotada em todas suas lutas e apartada de sua única
riqueza, a relação amorosa com Jasão. A Medeia brasileira se torna então vingativa, assassina
e suicida, num sacrifício que representa uma extremada atitude de liberdade diante dos
poderes que a oprimem. Assim, em Gota D’Água a tragédia é apresentada não como um fruto
da paixão humana que retira do homem suas medidas, mas sim como um fruto da miséria
social imposta aos excluídos pelos sistemas cultural, político e econômico durante a ditadura
militar brasileira.
intensões estéticas propostas por Chico Buarque e Paulo Pontes, que buscaram no uso
eloquente da palavra o centro do fenômeno dramático que Gota D’Água deveria revelar.
A peça é marcada pela proposta do emprego de vários espaços cênicos
delimitados pela iluminação do espetáculo, apresentados pelos autores sob a denominação de
Set. O recurso da utilização dos sets permite uma maior agilidade na encenação, já que
descompromete o espetáculo com a elaboração de diversos cenários e com a troca dos
mesmos na realização das cenas. Outra possibilidade que se apresenta a partir dessa proposta
cenográfica é a realização de cenas concomitantes, no que se refere à questão temporal.
Assim, o espectador pode acompanhar as ações que se desenrolam num mesmo momento nos
diferentes locais em que se desenvolve a trama.
Como no capítulo anterior, para um melhor emprego da análise do discurso,
utilizaremos uma divisão cênica formal das etapas de subdivisão das ações da peça não
apresentada pelos autores, mas percebida na sequência temporal proposta para o
desenvolvimento do enredo e que será exposta a seguir:
PRIMEIRO ATO
Cena 1: A cena, desenvolvida simultaneamente em vários sets, é dedicada a
apresentação de dois dos principais conflitos da peça: a separação de Jasão e Joana e o
problema enfrentado pela maioria dos moradores do conjunto habitacional Vila do Meio-Dia
em função da falta de dinheiro para o pagamento das prestações dos imóveis. Em cena são
abordados dois níveis do abandono e da miséria: no drama pessoal dos protagonistas e no
problema social enfrentado por milhares de brasileiros da classe pobre na realidade do país
com o fracasso do milagre econômico ali representados pelos personagens coadjuvantes.
No set das vizinhas, as personagens Corina (nome que faz clara alusão ao coro
grego), Zaíra, Estela, Maria e Nenê lavam roupas e comentam o desespero de Joana causado
pela traição de Jasão, a consequente situação de abandono vivida pelos filhos do casal e o
problema da diferença de idade entre Jasão e Joana, muito mais velha que seu ex-
companheiro, como uma das causas da separação.
Já nas primeiras falas dos personagens podemos acompanhar a força e a
qualidade dos versos de apelo popular criados por Chico Buarque para a composição de
climas e retratos dramáticos que, conforme a já citada intensão dos autores, em Gota D’Água
caberia a palavra a função de realçar:
CORINA: Minha filha, só vendo / Tem resto de comida / Nas paredes fedendo / a bosta,
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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tem bebida / com talco, vaselina, / barata, escova, pente, / sem dente. E ali, menina, /
brincando calmamente / co’os cacos dos espelhos, estão os dois fedelhos... /
É ver sobra de feira, / ramo de arruda, espada/ de São Jorge, bandeira / do Flamengo,
rasgada / por cima da cadeira / E ali, se lambuzando, / não entendendo nada, / um pouco
se espantando / co’ o espanto dos vizinhos, / estão os dois anjinhos... /
É ver um terremoto / que só deixa aprumado / no lugar certo a foto / daquele descraçado /
posando pro futuro / e pra posteridade / E ali, num canto escuro, / na foto da verdade, /
brincando nos esgotos, / estão os dois garotos... / Os dois abortos...
dos imóveis. O destaque desse fragmento da cena é sua identificação direta com a situação
financeira enfrentada naquele momento do regime militar em que a cruel política econômica
praticada favorecia à classe dominante e empobrecia, cada vez mais, a classe baixa brasileira:
XULÉ: Falhei de novo a prestação da casa... / Mas, pela minha contabilidade, / pagando
ou não, a gente sempre atrasa / Veja: o preço do cafofo era três / Três milhas já paguei,
quer que comprove? / Olha os recibos: cem contos por mês / E agora inda me faltam
pagar nove / Com nove fora, juros, dividendo, / mais correção, taxa e ziriguidum, / se eu
pago os nove que inda estou devendo, / vou acabar devendo oitenta e um... / Que
matemática filha-da-puta.
EGEU: Todo mundo está igual a você.
XULÉ: Não dá. É todo mês a mesma luta / Tem que falar pro homem resolver / baixar um
pouco essa mensalidade, / senão vou morar debaixo da ponte. / Não é fácil, mestre Egeu...
EGEU: É verdade
XULÉ: Alguém tem que falar com seu Creonte. / A gente vive nessa divisão. /Se subtrai,
se multiplica, soma, / no fim, ou come ou paga a prestação. / O que posso fazer, mestre
Egeu?...
EGEU: Coma
XULÉ: Como...
Ao final dos fragmentos cênicos, os personagens dos sets se unem para cantar e
dançar alegremente uma embolada que encerra a cena inicial da peça.
Cena 2: A cena se passa no set de Creonte. Por meio da rubrica dos autores é
indicado que no centro desse espaço deverá haver como adereço cênico obrigatório uma
imponente e muito trabalhada cadeira, numa alusão a um trono. Em cena estarão Jasão,
deitado no colo de sua noiva Alma, a filha de Creonte. A cena se inicia em clima romântico,
mas conforme caminham os diálogos fica evidente a intensão de Alma de persuadir seu noivo
para se esquecer e se afastar de Joana e dos filhos. Nesse jogo de sedução realizado por Alma,
o elemento persuasivo mais forte é sua proposta de um futuro repleto de bens materiais:
ALMA: [...] Viveu co’a desgraça, gostou, não está a fim / de melhorar. Essa mulher é
uma raiz / pregada nos seus pés...
JASÃO: Alma, não fala assim.
ALMA: Tá bom. Então diz que não gosta dela, sim? / E que gosta de mim...
JASÃO: Eu gosto de você.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
132
ALMA: Sabe, hoje estive lá no nosso apartamento / Você precisa ver, já estão no
acabamento / Já colocaram todos os vidros fumê / nas esquadrias de alumínio. E a
fachada / do prédio ficou bem moderna, liberty, / colonial e clássica. Puseram lambri / de
madeira com mármore no hall de entrada / O elevador todo forrado de veludo / ficou uma
graça, apesar de esquentar um pouco / Mas entrando em casa é que você fica louco / co’o
espaço das peças, a claridade, tudo / O chão está brilhando de sinteco, amor / Você está
me ouvindo?...
JASÃO: Sei...
ALMA: Sala de jantar, / living e a nossa suíte dão vista pro mar / Dos outros quartos dá
pra ver o Redentor / Mas Jasão, você inda não sabe da maior / surpresa que papai me
aprontou. Adivinha / quando eu abri a porta, sabe o que é que tinha? / Tudo que é eletro-
doméstico: gravador / e aspirador, e enceradeira, e geladeira, / televisão a cores, ar
condicionado, / você precisa ver, tudo isso já comprado, / tudo isso já instalado pela casa
inteira...
De súbito Creonte entra em cena e pede para que Alma se retire, pois quer
conversar com Jasão. Nesse próximo diálogo o jogo de sedução iniciado por Alma será
continuado por Creonte, que prepara Jasão como a um herdeiro de seu poder, já que se
casando com Alma, esse futuramente irá ocupar o seu lugar. Nos diálogos transcorridos na
cena após informar que pagou propina aos meios de comunicação para que o samba de Jasão
se tornasse um sucesso, Creonte também informa o preço moral que seria inicialmente
cobrado de seu futuro genro pela proteção e pelos favores realizados: convencer mestre Egeu
a não prosseguir com o movimento em prol do não pagamento das prestações e renegociação
da dívida dos apartamentos.
Como personagem representante das ideias e práticas da política ditatorial,
Creonte expõe suas convicções e sua forma de agir: o enganar o povo através de propaganda,
o clientelismo e o paternalismo com os mais pobres, e ainda, o corromper como forma de se
atingir os objetivos.
Chico Buarque e Paulo Pontes realizarão na peça suas críticas mais severas à
sociedade brasileira do período através dessa relação entre Creonte, como personificação da
elite brasileira e Jasão, como a parcela da sociedade que aderindo ao poder militar e, dessa
forma, mantendo o regime da ditadura, traíram os interesses legítimos na nação. O sonho de
consumo da burgesia brasileira era assim satirizado e ficava evidenciado e exposto o preço
que havia sido pago pela alienação, conivência e adesão de grande parte de nossa classe
média alta para com o regime ditatorial.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
133
[...] Bibi sugere ter reunido todas as suas reservas para oferecê-las nesse desempenho
tenso, uno, sem fissuras. Da máscara trágica à voz poderosa, Bibi vive sempre o climax,
sem desfalecimento. Uma identificação total à personagem, que explode com um vigor de
fera enjaulada. (MAGALDI, 1977)
Ela [a peça] era muito atual. Falava de problemas gravíssimos daquele momento
que eram abafados pela versão oficial. Então as pessoas iam lá e tinha uma função
também catártica porque aquilo era violento. A Bibi Ferreira pegava aquele
negócio e cantava e dizia aquilo com um furor, era uma coisa assim muito forte.
Era um espetáculo da Bibi, né. Paulo Pontes, aliás, era casado com a Bibi. Tem
muito isso, ele fez pra ela. Fez pra ela brilhar e ela brilhava [...] A Bibi era dona
daquilo... (2005. Informação verbal).
Sobre os filhos:
JOANA: Que filhos? Filhos... / Eles também vão virar dois gatilhos / apontando para
mim. Quer apostar? (Entra percussão; ritmo frenético; as cinco vizinhas em coro
começam a entoar o refrão)
VIZINHAS: Comadre Joana / Recolhe essa dor
JOANA: (Falando com ritmo no fundo) / Ah, os falsos inocentes! / Ajudaram a traição /
São dois brotos das sementes / traiçoeiras de Jasão / E me encheram, e me incharam, / e
me abriram, me mamaram, / me torceram, me estragaram, / me partiram, me secaram, /
me deixaram pele e osso / Jasão não, a cada dia parecia estar mais moço, / enquanto eu
me consumia [...] Vão me murchar, me doer, / me esticar e me espremer, / me torturar,
me perder, / me curvar, me envelhecer / E quando o tempo chegar, / vão fazer como Jasão
/ A primeira que passar, / eles me deixam na mão
Sobre a vingança:
JOANA: Pra não ser trapo nem lixo, / nem sombra, objeto, nada, / eu prefiro ser um
bicho, / ser esta besta danada / Me arrasto, berro, me xingo, / me mordo, babo, me bato, /
me mato, mato e me vingo, / me vingo, me mato e mato
VIZINHAS: (Com força) Comadre Joana / Bota panos quentes
CORINA: Comadre, fala mais nada! (Breque na percussão)
JOANA: Me mato, mato e me vingo, / me vingo, me mato e mato
(Joana está caída no chão)
No final, Joana é tomada por uma crise nervosa e sai da cena carregada pelas
vizinhas enquanto Corina acompanha lhe dando um passe de umbanda.
Cena 4: No set da oficina de Egeu. Sem parar seu trabalho Egeu recebe a visita de
Jasão. Claramente percebemos que mestre Egeu é uma figura de valor paternal para Jasão que
mostra pelo velho amigo respeito, gratidão e admiração. Jasão tenta convencer Egeu a não
liderar o movimento contra o pagamento das prestações dos apartamentos do empreendimento
de Creonte. Da mesma forma, Egeu tenta alertar Jasão sobre a efemeridade de seu sucesso
musical. Durante os diálogos, as opiniões antagônicas dos personagens dão origem a uma
tensa discussão ideológica. Egeu se ofende com a postura pró-Creonte adotada por Jasão e
também lhe acusa pelo abandono dos filhos, que estão sendo sustentados pela caridade de
Egeu. Jasão, por sua vez, fica magoado com as acusações e com a teimosia do amigo em
aceitar seus argumentos e seus pontos de vista.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
136
O primeiro plano da cena é deslocado para o set das vizinhas em que Joana, após
sua crise de nervos, é confortada pelas amigas e recebe de uma delas a notícia da presença de
Jasão na vila do Meio-Dia. Retorno ao set de mestre Egeu que procura convencer Jasão a
visitar os filhos. Flash no set do botequim, de onde se ouvem gargalhadas acompanhadas da
cena em mímica dos vizinhos se divertindo no bar. Retorno ao set de mestre Egeu ainda
tentando convencer Jasão a abandonar suas novas posturas. Jasão se mostra indeciso e
inseguro.
No encontro de Egeu e Jasão se evidencia, mais uma vez, na obra teatral de Chico
Buarque a linha de inspiração no Teatro Épico, nesse momento da peça, através do emprego
da Diégese, o recurso cênico narrativo, a descrição de um acontecimento que ocorreu fora de
cena. Também comumente empregado nas tragédias gregas para relatar acontecimentos de
difícil encenação, em Gota d’Água a diégese é empregada como referência a fatos reais e
ocorre, principalmente, nas falas de Egeu. O discurso de mestre Egeu se dedica a novamente
pautar a situação social enfrentada no final do chamado Milagre Econômico Brasileiro em que
o modelo político-econômico adotado pela ditadura militar é um fator opressivo na vida dos
mais pobres e, portanto, os argumentos narrados pelo personagem propõem uma atitude
reflexiva da plateia:
JASÃO: É você, não é, mestre? Que tá / mandando essa gente não pagar... / Te conheço...
EGEU: Conhece, pois é, / conhece todos neste lugar / Zazueira, Cazuza, Xulé, / Amorim
e Dé. Toda essa gente, / você mesmo, ainda tá lembrado? / Todos dando duro no batente /
a fim de ganhar um ordenado / mirradinho, contado, pingado... / Nisso aparece um cara
sabido / com um plano meio complicado / pra confundir o pobre fodido: / casa própria
pela bagatela / de dez milhões, certo? Dez milhões / aos poucos, parcela por parcela, /
umas cento e tantas prestações / Bem, o trouxa fica fascinado... / Passa a contar tostão por
tostão, / se vira pra tudo quanto é lado, / que ter casa própria é uma ambição / decente.
Então ele pega, sua, / deixa até de comer... Livra cem, / e, vamos dizer, dorme na rua, /
larga a cachaça e não vê mais nem / futebol. No fim do mês tá dando / pra juntar as cem
pratas sagradas / Muito bem. O tempo vai passando / e lá vêm as taxas, caralhadas / de
juros, correção monetária / e não sei mais lá quanto por cento... / Tudo aumenta, menos a
diária... / Um ano depois, quando o jumento / juntou cem contos pra prestação / vai ver
que, com todos os aumentos, / os cem cruzeirinhos já não dão: / a prestação subiu pra
trezentos... / Passam seis meses e vai além, / sobe pra quatrocentos e tanto... / Mas como,
se o cara ficou sem / comer pra sobrar cem? E no entanto / o jumento é teimoso, ele bate /
co’a cabeça pra ver se a titica / do salário aumenta, faz biscate, / come vidro, se aperta, se
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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estica, / se contorce, morde o pé, se esfola, / se mata, põe a mulher na vida, / rouba, dá a
bunda, pede esmola / e vai pagando a cota exigida... / Quando ele vê, conseguiu somar /
cinco milhões redondos, portanto / metade do total a pagar / Mas aí, pra seu tremendo
espanto, / descobre que então passa a dever / dezoito milhões e novecentos / O jumento
diz: não pode ser! / Já fiz metade dos pagamentos / Paguei cinco, devo cinco. Vê / aí, faz
as contas, vê se pode, / inventa outra lógica, você... / Pois pode, amigo, o cara se fode /
morrendo um bocadinho por mês... / Quem ia ficar pagando até / mil novecentos e oitenta
e seis / só pára no ano dois mil, isto é, / se parar. Enfim, o desgraçado, / depois de tanta
batalha inglória, / o corpo já cheio de pecado, / inda leva nota promissória / pro juízo
final...
A gente faz hora, faz fila / Na Vila do Meio-Dia / — pra ver Maria / A gente almoça e só
se coça / E se roça e só se vicia / A porta dela não tem tramela / A janela é sem gelosia /
— nem desconfia / Ai, a primeira festa / A primeira fresta / O primeiro amor / Na hora
certa, a casa aberta / O pijama aberto, a braguilha / — a armadilha
de Creonte. Flash no set das vizinhas que ainda animam Joana sobre a possível volta de Jasão.
Rapidamente os flashes continuam a se alternar nos sets do botequim a das vizinhas. No
último flash da cena vemos Egeu no set das vizinhas convencendo Joana a receber a visita de
Jasão.
O clima de tensão criado pela intensa e rápida mudança dos flashes ganha ainda
uma maior dramaticidade conforme Joana se encaminha para seu set onde finalmente se dará
o grande encontro entre os protagonistas de Gota D’Água. Joana segue cantando a canção
Bem-querer, apesar das mágoas e da ira que demonstrou nas cenas anteriores, a canção nos
revela uma mulher apaixonada e repleta de esperanças no retorno de seu amor:
Quando o meu bem-querer me vir / Estou certa que há de vir atrás / Há de me seguir por
todos / Todos, todos, todos os umbrais
E quando o seu bem-querer mentir / Que não vai haver adeus jamais / Há de responder
com juras / Juras, juras, juras imorais
E quando o meu bem-querer sentir / Que o amor é coisa tão fugaz / Há de me abraçar co’a
garra / A garra, a garra, a garra dos mortais
E quando o seu bem-querer pedir / Pra você ficar um pouco mais / Há que me afagar co’a
calma / A calma, a calma, a calma dos casais
E quando o meu bem-querer ouvir / O meu coração bater demais / Há de me rasgar co’a
fúria / A fúria, a fúria, a fúria assim dos animais
E quando o seu bem-querer dormir / Tome conta que ele sonhe em paz / Como alguém
que lhe apagasse a luz, / Vedasse a porta e abrisse o gás
JASÃO: (Gritando) Deixa eu falar, pô... É que, se quisesse, você inda tinha muito pra
dar...
JOANA: Se tivesse o que dar, Jasão, você não ia perder a ocasião de me sugar até o
bagaço
JASÃO: Ai, meu saco, cacete, pô... Presta atenção ao que diz! Não me venha com
provocação
JOANA: Eu sei muito bem o que você é, e faço questão de dizer e repetir.
JASÃO: Ô, mulher, não fala assim, não admito, porra.
JOANA: O que?
JASÃO. Respeita a minha condição...
JOANA: Pois bem, você / vai escutar as contas que eu vou lhe fazer: / te conheci
moleque, frouxo, perna bamba, / barba rala, calça larga, bolso sem fundo / Não sabia nada
de mulher nem de samba / e tinha um puto dum medo de olhar pro mundo / As marcas do
homem, uma a uma, Jasão, / tu tirou todas de mim. O primeiro prato, / o primeiro
aplauso, a primeira inspiração, / a primeira gravata, o primeiro sapato / de duas cores,
lembra? O primeiro cigarro, / a primeira bebedeira, o primeiro filho, / o primeiro violão, o
primeiro sarro, / o primeiro refrão e o primeiro estribilho / Te dei cada sinal do teu
temperamento / Te dei matéria-prima para o teu tutano / E mesmo essa ambição que,
neste momento / se volta contra mim, eu te dei, por engano / Fui eu, Jasão, você não se
encontrou na rua / Você andava tonto quando eu te encontrei / Fabriquei energia que não
era tua / pra iluminar urna estrada que eu te apontei / E foi assim, enfim, que eu vi nascer
do nada / uma alma ansiosa, faminta, buliçosa, / uma alma de homem. Enquanto eu,
enciumada / dessa explosão, ao mesmo tempo, eu, vaidosa, / orgulhosa de ti, Jasão, era
feliz, / eu era feliz, Jasão, feliz e iludida, / porque o que eu não imaginava, quando fiz /
dos meus dez anos a mais uma sobre-vida / pra completar a vida que você não tinha, / é
que estava desperdiçando o meu alento, / estava vestindo um boneco de farinha / Assim
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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que bateu o primeiro pé-de-vento, / assim que despontou um segundo horizonte, / lá se foi
meu homem-orgulho, minha obra / completa, lá se foi pro acervo de Creonte... / Certo, o
que eu não tenho, Creonte tem de sobra / Prestígio, posição... Teu samba vai tocar em
tudo quanto é programa. Tenho certeza / que a gota d’água não vai parar de pingar / de
boca em boca... Em troca pela gentileza / vais engolir a filha, aquela mosca morta / como
engoliu meus dez anos. Esse é o teu preço, / dez anos. Até que apareça uma outra porta /
que te leve direto pro inferno. Conheço / a vida, rapaz. Só de ambição, sem amor, / tua
alma vai ficar torta, desgrenhada, / aleijada, pestilenta... Aproveitador! / Aproveitador!...
JASÃO: Chega, né. Fica calada...
JOANA: Digo e repito: aproveitador!...
JASÃO: Mulher, pára...
JOANA: Digo porque é verdade...
JASÃO: Não fala besteira...
JOANA: Seu aproveitador!...
JASÃO: Eu lhe quebro essa cara!
JOANA: O quê? Quebra não!...
JASÃO: Eu lhe quebro a cara inteira, / porra...
JOANA: Pra mim, Cacetão, que ao menos não nega. / tem muito mais valor...
JASÃO: Não diz isso de mim, / mulher...
JOANA: Não digo? Digo sim: gigolô!...
JASÃO: Chega!
JOANA: Gigolô!...
(Jasão dá um murro em Joana que cai)
JASÃO: Você é merda... Você é fim / de noite, é cu, é molambo, é coisa largada... /
Venho aqui, fico te ouvindo, porra, me humilho, / pra que? Já disse que de ti não quero
nada / Mas todo pai tem direito de ver seu filho...
(Joana, de um salto, levanta-se e coloca-se de guarda em frente à porta imaginária do
quarto dos seus filhos)
JOANA: Meus filhos! Eles não são filhos de Jasão! / Não têm pai, sobrenome, não têm
importância / Filhos do vento, filhos de masturbação / de pobre, da imprevidência e da
ignorância / São filhos dum meio-fio dum beco escuro / São filhos dum subúrbio imundo
do país / São filhos da miséria, filhos do monturo / que se acumulou no ventre duma
infeliz... / São filhos-da-puta mas não são filhos teus, / seu gigolô!...
(Jasão agarra Joana pela cabeça e bate contra a parede)
JASÃO: Sua puta, merda, pereba! / Agora você vai me ouvir, juro por Deus, / sarna,
coceira, cancro, solitária, ameba, / bosta, balaio, eu te deixei sabe por que? / Doença,
estupor, vaca chupada, castigo, / eu te deixei porque não gosto de você / Não gosto, porra,
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e não quero viver contigo / Não tem idade nem ambição, mãe do cão, / só isso, não quero,
não gosto mais de ti
(Jasão solta Joana que cai; Jasão sai)
JOANA: Não vai, Jasão. Fica mais um pouco, Jasão / Não vai. Pelo amor de Deus, Jasão,
volta aqui, / Gigolô, quero dizer mais, não vai embora, / sacaninha, aproveitador, volta
Jasão! / Não, Jasão, por favor, Jasão, não vai agora /
(Falou isso chorosa; de repente, pára e retoma o controle)
Mas vou me vingar, isso não fica assim, não...
SEGUNDO ATO
Cena 1: No set das vizinhas. Entra em cena Boca Pequena, um personagem do
coro masculino, e se dirige as vizinhas falando sobre a grande festa que será dada no
casamento de Jasão com Alma. Corina repreende Boca Pequena pelas intrigas que faz e as
vizinhas por darem atenção a esses boatos. Saem todos menos Corina que sozinha se
encaminha para o set de Joana. Nos diálogos de Corina e Joana os comentários são ainda
sobre a pompa e a riqueza que envolve a festa de casamento de Jasão. Joana fala sobre suas
intenções de vingança e faz sua comadre lhe prometer que ficaria com a guarda de seus filhos,
caso seja necessário. No final da cena, Joana comenta com a amiga sobre sua intenção de
realizar um ritual de magia negra.
Cena 2: Introduzido pelos sons da orquestra, o coro das vizinhas inicia uma
cerimônia nos moldes dos cultos populares afro-brasileiros, na peça intitulado Paó para
Djagum de Oxalá. Paralelamente, sobe um foco de luz no set de mestre Egeu que conversa
com a esposa enquanto o canto e a dança das vizinhas continuam ao fundo. Egeu se
compromete com Corina a cuidar e hospedar os filhos de Joana e Jasão. Apagado o foco do
set de mestre Egeu, crescem os sons e os ritmos da cerimônia, agora acrescido pelas presenças
de Corina e Joana que retornam para o palco.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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O destaque na cena fica por conta das palavras de Joana que cumprem, mais uma
vez, a pretensão de Buarque e Pontes com a criação de uma dramaturgia que desse relevância
aos elementos da cultura popular da nação. Através das rezas e conjurações de Joana os
autores apresentam um traço importante na formação do povo brasileiro, o sincrestimo
cultural. Nas falas que conduzem o ritual vemos a fusão de elementos culturais diferentes
através da mistura de termos eruditos com termos populares e da invocação de ídolos do
candomblé, da umbanda, do cristianismo e, ironicamente, da mitologia grega, talvez para não
se perder de vista que Joana é Medeia, a princesa mítica trágica transposta para a realidade de
uma pobre mulher brasileira:
JOANA: O pai e a filha vão colher a tempestade / A ira dos centauros e de pomba-gira /
levará seus corpos a crepitar na pira / e suas almas a vagar na eternidade / Os dois vão
pagar o resgate dos meus ais / Para tanto invoco o testemunho de Deus, / a justiça de
Têmis e a bênção dos céus, / os cavalos de São Jorge e seus marechais, / Hécate, feiticeira
das encruzilhadas, / padroeira da magia, deusa-demônia, / falange de Ogum, sintagmas da
Macedônia, / suas duzentas e cinquenta e seis espadas, / mago negro das trevas, flecha
incendiária, / Lambrego, Canheta, Tinhoso, Nunca-visto, / fazei desta fiel serva de Jesus
Cristo / de todas as criaturas a mais sanguinária / Você, Salamandra, vai chegar sua vez /
Oxumaré de acordo com mãe Afrodite / vão preparar um filtro que lhe dá cistite, /
corrimento, sífilis, cancro e frigidez / Eu quero ver sua vida passada a limpo, / Creonte.
Conto co’a Virgem e o Padre Eterno, / todos os santos, anjos do céu e do inferno, / eu
conto com todos os orixás do Olimpo! /(Encerra-se a ventania e retorna a melodia do
Paó) Saravá!
Após externar suas opiniões, Creonte faz uma comparação entre o comportamento
popular e a postura de maus pagadores de seus mutuários da Vila do Meio-Dia e, entre eles,
focaliza suas atenções no comportamento de Joana, que além de ser estar em atraso com as
prestações de seu imóvel também fica lhe maldizendo entre os moradores da vila e, por tudo
isso, pretende despejá-la do conjunto habitacional. A luz se acende no set da oficina de
mestre Egeu onde se inicia uma conversa entre Egeu e Boca Pequena que lhe conta sobre as
falas que Joana vem realizando contra Creonte. Pelo jogo de luzes proposto a cena será
algumas vezes alternada entre os dois sets, possibilitando que a plateia acompanhe novamente
as ações que ocorrem num mesmo espaço temporal, porém em locais diferentes. No final da
cena Jasão tenta convencer Creonte a realizar melhorias no conjunto habitacional como forma
de combater as ideias libertárias de mestre Egeu à frente do movimento dos não-pagadores
das dívidas de juros abusivos. Nesse momento, mais uma vez, os autores se utilizam dos
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discursos dos personagens para provocar reflexões que extrapolam o enredo e fazem
analogias com aspectos da realidade política implantados durante a ditadura militar, como
veremos nos trechos destacados:
JASÃO: Não fique pensando que o povo é nada, / carneiro, boiada, débil mental, / pra lhe
entregar tudo de mão beijada / Quer o que? Tirar doce de criança? / Não. Tem que
produzir uma esperança / de vez em quando pra a coisa acalmar / e poder começar tudo
de novo / Então, é como planta, o povo, / pra poder colher, tem que semear, / Chegou a
hora de regar um pouco / Ele já não lhe deu tanto? Em ações, / prédios, garagens, carros,
caminhões, / até usinas, negócios de louco... / Pois então? Precisa saber dosar os limites
exatos da energia / Porque sem amanhã, sem alegria, / um dia a pimenteira vai secar / Em
vez de defrontar Egeu no peito, baixe os lucros um pouco e vá com jeito, / bote um
telefone, arrume uns espaços / pras crianças poderem tomar sol / Construa um estádio de
futebol, / pinte o prédio, está caindo aos pedaços / Não fique esperando que o desgraçado
/ que chega morto em casa do trabalho, / morto, sim, vá ficar preocupado / em fazer
benfeitoria, caralho! / Com seus ganhos, o senhor é que tem / que separar uma parte e
fazer / melhorias. Não precisa também / ser o Palácio da Alvorada, ser / páreo pr’uma das
sete maravilhas / do mundo. Encha a fachada de pastilhas / que eles já acham bom. Ao
terminar, / reúna com todos, sem exceção / e diga: ninguém tem mais prestação / atrasada.
Vamos arredondar / as contas e começar a contar / só a partir de agora...
CREONTE: Enlouqueceu!
JASÃO: Ninguém...
CREONTE: Não dá...
JASÃO: Como não dá? Já deu! / Ninguém... Ninguém... precisa me pagar / os atrasos...
É bonificação / Mas... Mas... Atenção pro que eu vou falar... / Aí o senhor pode vociferar
/ pra ninguém mais atrasar prestação. / Está com receio de mestre Egeu? / Que já fez
política, se meteu / em greve no passado e tal? Isola! / Prestação em dia, prédio limpinho,
/ Egeu vai ficar falando sozinho / enquanto o povo está jogando bola! (Creonte faz um
ruído com a boca, debochando de Jasão)
[...] CREONTE: Pr’onde é que ia a ordem social / se eu fosse tratar burro a pão-de-ló? /
Quer trabalhar direito, tá legal / Agitação pra cima de mim, ó! / Liberalismo, Jasão,
acabou /
Pensa se eu largo os negócios e vou / ficar por aí fazendo política, / fazendo trama,
conchavo, aliança... / Ó, Jasão, você não é mais criança / pra confundir agitação com
crítica / construtiva... Egeus e Joanas? Eu, não! / Botou a cabeça pra fora? Pau! / Conheço
muito bem, sei o que são...
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Enquanto Jasão se retira e Creonte termina suas falas se inicia a próxima cena
com Egeu, trazendo pelas mãos duas crianças, se dirige ao set de Joana.
Na oficina
EGEU (Grita): Cala a boca! Todo mundo calado! / Fofoca é que eu não quero escutar
mais / E se você, seu Boca, é leva-e-traz, / vá dizer pra quem for interessado / que a
comadre tá quieta no seu lado / e é melhor deixar a comadre em paz
(Sai à rua gritando; todos dão um passo fora dos seus sets, como se estivessem ouvindo
Egeu) Atenção! Vou dizer uma vez mais: / saibam que o lugar de Joana é sagrado!
Todos os que estão em cena param petrificados porque surge, de repente, a figura de
Jasão que, calmamente, olhando pra chão, se aproxima do set de Joana; todos vão se
dispersando; apaga a luz dos sets; Jasão está no set de Joana
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Da mesma maneira como havia sido empregado no final do primeiro ato, todo o
jogo cênico aumenta a tensão e cria um clima emocional intenso, apropriado ao novo encontro
de Joana e Jasão.
Cena 7: Jasão procura Joana com a proposta de que ela se mude da Vila do Meio-
Dia, já que por estar em atraso com as prestações de seu apartamento, o proprietário, Creonte,
tem direito de despejá-la. Oferece ajuda financeira para que Joana procure um imóvel melhor
desde que fora do condomínio. Joana se sente ultrajada com a proposta e nega os favores de
Jasão. Nesse novo encontro, em razão das diferenças de opiniões e das mágoas de Joana,
mais uma vez predomina o clima de polêmica.
Com grande habilidade, os autores transformam os diálogos de Joana e Jasão
numa discussão que transcende os limites de uma briga de casal e vai de encontro aos temas
sociais que Gota D’Água se propunha a denunciar e que Joana, uma mulher do povo,
humilhada e oprimida será a porta-voz, como vemos apresentado nos trechos abaixo:
que essa camada social também representava o público que tradicionalmente freqüentava as
salas de espetáculo nos teatros brasileiros:
JOANA: Muito bem, Jasão, você é poeta / É perigoso porque de repente / está dando às
palavras a intenção / que interessa a você...
[...] Mas, Jasão, já lhe digo o que vai acontecer: / tem u’a coisa que você vai perder, / é a
ligação que você tem com sua / gente, o cheiro dela, o cheiro da rua, / você pode dar
banquetes, Jasão, / mas samba é que você não / faz mais não, não faz e aí é que você se
atocha / Porque vai tentar e sai samba brocha, / samba escroto, essa é a minha maldição /
“Gota d’água”, nunca mais, seu Jasão / Samba, aqui, ó...
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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Cena 8: Cena que marca a vitória de Creonte. Em cena, é exposto mais um retrato
simbólico da política brasileira dos tempos da ditadura militar. Chico Buarque e Paulo Pontes,
de forma bastante clara denunciam o comportamento adesista e colocam em evidência a
fragilidade das reivindicações e movimentos sociais quando parte da sociedade se rende à
capitulação.
No set de Creonte este junto com Jasão recebe a comitiva dos moradores da Vila
do Meio-Dia liderados por mestre Egeu. Extremamente hábil Creonte desmancha o
movimento na medida em que perdoa as dívidas em atraso e anuncia uma série de benfeitorias
que realizará no condomínio, conforme Jasão já havia lhe sugerido (Segundo ato: cena 3).
As ofertas colocam todos os vizinhos numa atitude favorável a Creonte e, assim
sendo, enfraquece os discursos e a mobilização comandada por mestre Egeu que mesmo sem
força reivindicatória tentará tratar das questões do final das prestações futuras e da
permanência de Joana na Vila. Espertamente, Creonte coloca um fim nas pretensões de Egeu,
pois se aproveita da presença do futuro genro na reunião para convidar a todos para a grande
festa da cerimônia do casamento de Alma e Jasão. Ainda como uma última arma de persuasão
o empresário oferece trabalho nos preparativos da festa para todas as mulheres presentes.
Creonte se retira sobre aplausos enquanto o coro de mulheres se espalha pelo palco e entoa
um canto que marca a passagem do tempo.
Cena 9: Mestre Egeu procura Joana e lhe coloca a par dos resultados da reunião
com Creonte. Decepcionados Joana e Egeu permanecem calados e cabisbaixos. Sobe a luz no
set das vizinhas, onde essas estão reunidas e no set do botequim, onde se encontra o coro
masculino. Várias vezes os diálogos serão alternados entre estes dois sets. Nos diálogos são
colocadas diversas desculpas e dissimulações para o posicionamento favorável de todos às
condições impostas por Creonte e o consequente abandono de Joana à sua própria sorte,
ficando assim exposto o comportamento individualista e oportunista da maioria. Apenas o
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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casal Corina e Egeu se mostra indignado com o rumo dos acontecimentos. No final da cena,
numa alusão irônica ao relativismo da moralidade e da ética, os autores escolhem justamente
o personagem que representa a marginalidade, o gigolô Cacetão, como o único ainda solidário
a Joana entre os vizinhos:
[...] garrafa na mão, todo sujo e roto, caminha trôpego, do botequim para o set de Joana
CACETÃO: (Cantando) Quem pode pode, quem não pode se sacode, quem não / se
sacode amarra um bode e everybody se fode / na Vila do Meio-Dia / Que porcaria /
(Chega em frente à casa de Joana) Ô, Joana... Joana... Princesa... Rainha... / Todos eles
têm vida pra cuidar... / Têm lar, mulher, filhos, copa e cozinha. / Por isso pensam que vão
te deixar só. / Mas não vão. Você tem toda a minha / solidariedade. Eu não tenho lar, /
nem filho, nem cozinha. Mas sozinha / é que você não fica. Vou contar: / pra ser gigolô é
preciso ter / caráter, ouviu? Você vai casar / comigo, Joana. Quero agradecer / a quem
acaba de te encurralar / pra mim, os sacanas. Você vai ser / minha. Vai ser minha filha,
meu lar, / minha cozinha, ser minha mulher / Rainha, sai na janela. Desponta. / estrela.
Faz dez anos que eu te espero... / Dez anos que eu bebo por tua conta... / Você sabe... Cê
sabe que eu te quero /
(Canta) Carlos amava Dora que amava Léa que amava Lia que / amava Paulo que amava
Juca que amava Dora que amava... / Carlos amava Dora que amava Rita que amava Dito /
que amava Rita que amava / Dito que amava Rita que amava... / Carlos amava Dora que
amava tanto que amava Pedro que / amava a filha que amava Carlos que amava Dora que
/ amava toda a quadrilha... / amava toda a quadrilha... / amava toda a quadrilha...
Cena 10: Uma estridente sirene de polícia encobre a canção de Cacetão. Sob o
comando de Creonte, policiais entram no palco, empurram Cacetão para fora de cena, forçam
a entrada e invadem o set de Joana. Creonte de forma coerciva informa a Joana que está sendo
despejada de seu apartamento. Joana apavorada tenta argumentar, mas é sempre ameaçada
com grande truculência pela ação da polícia.
A cena apresenta o auge da repressão e da injustiça tratadas no enredo de Gota
D’Água. De um lado a força do establishment, representada pela presença policial a serviço
do poder econômico do tirânico Creonte, um empresário cujo sucesso financeiro se baseia na
corrupção, na ilegalidade e na espoliação dos menos favorecidos. Do outro lado, toda a
fragilidade de uma mulher pobre e abandonada, cuja situação que permite seu despejo, do
ponto de vista legal, não é diferente dos outros moradores que tiveram as dívidas em atraso
perdoadas e que foram ainda recompensados com as benfeitorias prometidas por Creonte.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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A única diferença em relação aos demais é que Joana não se calou diante do que
lhe foi imposto e, mais do que isso, com as armas que possuía, procurou denunciar as
injustiças e lutar na busca de seus direitos e interesses. Justificadamente fora de cena, o
silêncio e a passividade dos que não virão na defesa de Joana, pois na medida em que
cederam aos interesses do poderoso Creonte tornaram-se passivos e coniventes com a prática
repressiva, como no caso dos vizinhos e mais notadamente, no caso de Jasão, o grande
ausente da cena.
Nesse momento do enredo, Chico Buarque e Paulo Pontes desenham, talvez, a
mais simbólica cena de Gota D’Água, no sentido de sua representação metafórica sobre os
acontecimentos da realidade política do país: os interesses econômicos abusivos, o poder de
elite, os mecanismos de repressão, a violência policial, a legalidade ilegítima, a vida miserável
dos mais pobres, a negação dos direitos civis, a resistência e luta pela liberdade, enfim, o set
de Joana é transformado num microcosmo do regime militar.
No final da cena, Creonte, em atendimento às súplicas de Joana, lhe concede mais
um dia para que possa preparar melhor sua saída. Joana vê nessa concessão de Creonte a
última oportunidade para tramar a sua vingança.
Embora marcada pela violenta tensão provocada pelas ações opressivas, a cena
trás também as marcas do lirismo e da beleza poética, provocadas pelo canto final entoado por
Joana, a canção Basta um Dia.
JOANA: Um dia...
CREONTE: Nem devia levar / em consideração, porque tenho certeza / de estar fazendo
besteira quando te atendo... / Certeza que, sendo humano, saio perdendo / Agora, eu vou
lhe falar com toda a clareza: / se amanhã à noite você inda estiver / aqui, eu acabo de vez
co’essa novela / Não vai sobrar cama, nem porta, nem janela, / sabe? Eu quebro esta
merda. Eu quebro tudo, ouviu?
(Sai com a Polícia)
JOANA: Ouvi sim, Creonte, um dia. Um dia, preciso / mais do que isso? Por que? Pra
que? Quem te pariu / só precisou de um dia. O que se construiu / em séculos se destrói
num dia. O Juízo / Final vai caber inteirinho num só dia / Quando me deu um dia, você se
traiu, / Creonte, você não passa de um imbecil, / porque hoje me deu muito mais do que
devia
(A orquestra ataca; ela canta)
Pra mim / Basta um dia / Não mais que um dia / Um meio dia / Me dá / Só um dia / E eu
faço desatar / A minha fantasia / Só um / Belo dia / Pois se jura, se esconjura / Se ama e
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Mais do que uma expressão de revolta ou vingança, o canto de Joana nos revela
um profundo sentimento de esperança, propondo que mesmo quando tudo se mostra
aparentemente perdido, ainda assim será possível uma atitude de resistência e de luta. Mais
um momento no teatro de Chico Buarque em que a mensagem transmitida se constitui numa
lição de liberdade, exposta de forma evidente.
Cena 11: Jasão vem ao set de Joana. Diferente do que ocorreu durante a peça, a
cena desse novo encontro terá diálogos amáveis, pois Joana dissimula estar conformada com
o despejo, com a separação e com o casamento de Jasão.
Durante a ação, Jasão se dirige ao quarto (fora de cena) visitar os filhos. Sozinha
Joana, aterrorizada, percebe que é através das crianças que tem a única forma possível para
executar sua vingança contra Jasão:
JOANA: (Para si) Você gosta / deles, né Jasão? E eles te admiram, / né, Jasão? Porque
eles nunca te viram / como eu te vejo. Deixou eles na bosta / mas gosta. Eles te dão a
sensação / que você se interessa por alguém... [...] Não fale mais nada, / não, Jasão, não
me deixe alucinada / Você sabe como eu te odeio, Jasão / Mas contra você todas as
vinganças / seriam vãs, seu corpo está fechado / Você só tem, pra ser apunhalado, / duas
metades de alma: essas crianças / É só assim que eu posso te ferir, / Jasão? É essa dor que
você não / suportaria? Que é isso, Jasão? Me aponta outro caminho...
Com o retorno de Jasão à cena, Joana tenta convencê-lo a ficar com os filhos
durante um curto período que ela precisaria para se estabelecer em outro lugar. Jasão não se
mostra favorável ao pedido da ex-mulher. Joana então sugere que, como forma de declaração
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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de paz, enviará seus filhos para a festa de casamento com um presente. Termina a cena num
abraço do antigo casal e, logo a seguir, Joana interpretando Gota D’Água:
(Os dois se abraçam; lentamente ele vai tirando o seu corpo do dela e sai; nasce a
orquestra, Joana canta)
Já lhe dei meu corpo, não me servia / Já estanquei meu sangue, quando fervia / Olha a
voz que me resta / Olha a veia que salta / Olha a gota que falta / Pro desfecho da festa /
Por favor / Deixa em paz meu coração / Que ele é um pote até aqui de mágoa / E qualquer
desatenção / - Faça não / Pode ser a gota d’água
Nesse momento do espetáculo a cena musical assume uma importância que vai
muito além daquelas relatadas nos estudos sobre as funções da música no teatro. Muito mais
do que ilustrar ou narrar um acontecimento, estruturar ou dar continuidade a fragmentos
cênicos, criar contrapontos ou atmosferas que fazem correspondência a uma situação
dramática, a canção Gota D’Água na interpretação de Joana ganha uma nova dimensão com a
capacidade de sintetizar todo sentimento que a escritura dramática pretendia apresentar como
conflito desencadeador da tragédia da Medeia carioca.
Os poucos versos da canção percorrem as fortes emoções vivenciadas por Joana
do decorrer da trama, na medida em que pontuam sua dedicação apaixonada na relação
amorosa, sua tentativa de vencer a amargura e a ira que a traição de Jasão lhe causou, seu
estado de derrota, sua gana de vingança e, finalmente, seu último pedido na ânsia de se evitar
o desfecho passional e trágico que se anuncia.
Cena 13: Em cena Joana veste os filhos para a festa enquanto lhes ensina como
devem proceder com o presente para os noivos, na verdade, bolinhos de carne enfeitiçados
com um veneno mortal. Completando o plano de vingança Joana declara que, posteriormente,
os bolinhos envenenados também seriam comidos por ela e pelos filhos:
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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JOANA: [...] Meus filhos, vocês vão lá na solenidade, / digam à moça que a mamãe está
contente / tanto assim que lhe preparou este presente / pra que ela prove como prova de
amizade / Beijem seu pai, lhe desejem felicidade / co’a moça e voltem correndo, que eu e
vocês / também vamos comemorar, sós, só nós três, / vamos mastigar um naco de
eternidade
Corina vem para levar as crianças para a festa. Sozinha em cena, Joana, diferente
do que ocorreu com as premeditações da Medeia de Eurípedes, hesita na conclusão seu plano
de vingança:
JOANA: (Só vendo os filhos saindo) Não, eles não. Por que, meu Deus? Que atrocidade /
Eles não têm nada co’isso. Vou esconder / os dois com mestre Egeu e depois vou correr /
Conheço todos os covis desta cidade
Cena 14: Cena da festa do casamento. Entra Corina com os filhos de Joana e
Jasão que entregam o presente à noiva. Creonte percebe que algo poderia estar errado com os
bolinhos e não permite que Alma aceite o presente e ordena que as crianças sejam retiradas da
festa levando de volta o presente de Joana. Jasão se mostra magoado com a atitude grosseira
da expulsão de seus filhos, porém reage de maneira passiva e não interfere sobre a decisão de
Creonte.
Cenas Finais: No set de Joana, Corina chega de volta com as crianças e conta o
ocorrido na festa. Joana, atordoada com os fatos narrados, pega o pacote com os bolinhos e
pede para que Corina se retire. Sozinha e absolutamente derrotada Joana se dirige ao seu deus
e questiona o porquê de tantas injustiças:
JOANA: [...] É possível que o Pai quis proteger / Jasão, que larga os filhos nas esquinas /
e que se entrega ao canto das ondinas? / Quis defender Creonte, esse ladrão / de rosto
humano e cauda de escorpião? / É justo conservar esse homem vivo? E a filha, que
mantém Jasão cativo? / transformando em porcos os seus amigos? Xangô, meu Pai,
salvou meus inimigos / por que motivo? De que serve a vida / deles? Eu tenho que sair
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ferida, / abandonada, doida, sem abrigo / Não, não pode fazer isso comigo / meu Ganga.
Não, não pode ser. Você / quer eles vivos para que? Por que? [...]
Aterrorizada Joana percebe na morte dos filhos e na sua própria morte a grande
forma de punição que ainda poderia impingir aos seus inimigos e a última e extrema atitude
de livre arbítrio que ainda era capaz de realizar:
JOANA: [...] (Grita) Não, Senhor... É isso? Afasta / de mim essa idéia, meu Pai... Mas
não, / meu Ganga, é pior... Pior, tem razão / Esse é o caminho que me aponta / Ai em
cima você toma conta / das crianças? ... (Grita) Não... /
(Com o grito as crianças aparecem)
Vêm, meus / filhos, vêm...
(Os filhos chegam perto; ela abraça os dois)
JOANA: [...] (Dá um bolinho e põe guaraná na boca dos filhos)
A Creonte, a filha, a Jasão e companhia / vou deixar esse presente de casamento / Eu
transfiro pra vocês a nossa agonia / porque, meu Pai, eu compreendi que o sofrimento / de
conviver com a tragédia todo dia / é pior que a morte por envenenamento
Joana come um bolo; agarra-se aos filhos; cai com eles no chão; a luz desce em seu set;
sobem, brilhantes, luz e orquestra da festa onde estão todos, com a maior alegria,
cantam “gota d’água”; vai subindo a intensidade até o clímax, quando se ouve um grito
lancinante... É Corina que grita, ao mesmo tempo Creonte bate palmas e a música pára.
ELENCO
[...] mesmo sendo a rigor uma adaptação Gota D’Água não deixa de ser uma obra
intensamente pessoal e original, cuja ambientação, caracterização dos personagens e
empostação geral do tom nada devem ao modelo temático no qual Chico e Paulo se
inspiraram.
[...] É necessário, aliás, apontar a admirável síntese que foi aqui obtida entre um
vocabulário eminantemente coloquial, no qual não faltam inclusive numerosos palavrões,
e a linguagem altamente nobre, não realista e estilizada que resultou da passagem desse
vocabulário pelo filtro de uma privilegiada sensibilidade poética. Nesse sentido, não
conheço em toda a dramaturgia nacional qualquer precedente de uma linguagem como
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
157
esta, que combine a musicalidade, a beleza e dignidade da poesia dramática clássica com
um clima verbal de indiscutível contemporaniedade.
[...] Qual o segredo da excepcional comunicação de Gota d'água, numa platéia que se
assemelha a um suadouro? Provavelmente a façanha de terem os autores escrito "uma
tragédia da vida brasileira". A solidariedade com a oprimida Joana-, contra a opressão de
Creonte, símbolo do poder, e o fraco Jasão, que o serve. A introdução do mecanismo
social numa trama que, sem descurar o ímpeto do sentimento desencadeado, não se esgota
nele. O achado poético de tantos versos e de tantos diálogos. Essas virtudes sobrepujam
os defeitos e levam o público a explodir, no final, numa das mais calorosas ovações já
registradas nos palcos brasileiros.
e Paulo Pontes como “o maior momento do teatro brasileiro” na categoria de texto dramático
versificado:
Gota d’água apanha o tema clássico para colocá-lo a serviço de uma reflexão mais ampla.
Assim o choque entre a ascensão social de Jasão e a violência cega e sofrida de Joana,
diante dos poderosos, Creonte e sua filha Alma, são sem dúvida alguns dos conflitos
básicos da peça. Mas esta não se resume nisto. Vai mais além. Mergulha com mais
decisão num tipo de estudo ainda embrionário e talvez limitado, mas vigoroso.
A tragédia maior é outra: é preciso encontrá-la na inter-relação dos personagens. No
momento em que o teatro brasileiro se debate em quase agonia, Gota d’água inunda o
palco com a postura crítica que procura revelar a realidade em suas contradições básicas,
elucidando-as assumindo um ponto de vista popular e nacional entregando ao teatro do
país seu maior momento como texto dramático em versos.
Mas diante do Gota d’água será necessário não nos limites a um reconhecimento, sem
dúvida justo, do trabalho literário e teatral rigoroso e sensível de dois autores possuidores
de extremo talento para a literatura e o teatro.
É preciso sobretudo recolocar em debate a realidade e seus laços, suas armadilhas, suas
nuances. O choque ideológico que o texto evidencia e a postura de discussão que
revitaliza, fazem de Gota d’água mais que um simples texto teatral de qualidade. Esta
tragédia nacional-popular é um depoimento político e um incentivo ao debate
democrático.
[...] Entre suor, risos e lágrimas o público ocupa todas as noites os 600 lugares do forno
em que se transformou o teatro nessas noites quentes de verão e aplaude até a exaustão o
que acabou de ver.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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Revista Veja - Capa da edição 384 – cópia extraída do acervo digital Veja
Ainda nessa mesma edição de Veja, em sua página dedicada à literatura, em que
tradicionalmente se publicava a lista dos 10 livros mais vendidos da semana, pela primeira
vez encontramos a publicação de Gota D’Água ocupando o sétimo lugar na lista dos mais
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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Capa do disco gravado por Bibi Ferreira em 1976 com o registro dos melhores momentos da peça
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
164
Cópia da capa do programa original da primeira montagem da peça – 1975 – acervo Memorial Norma Suely
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
166
Obs. Todas as imagens do programa da peça apresentado foram extraídas do acervo do Memorial Norma Suely.
A página 10 do programa não consta nos arquivos do referido acervo.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
180
Capa da revista Ópera do Malandro - edição carioca - 1978; Acervo digital Fundação Tom Jobim
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
182
D
urante o período do sucesso gigantesco vivido nas primeiras
temporadas da montagem de Gota D’Água, a obra teatral de Chico
Buarque entrou numa fase de grande produtividade, com a criação de
duas novas peças: a fábula para teatro infantil Os Saltimbancos e a comédia musical Ópera do
Malandro, ambas, frutos de um processo de adaptação, concebidas num curto período, entre
1977 e 1978.
Não apenas a carreira no teatro como também a trajetória musical de Chico
encontravam-se num momento de intensa produção. Embora com o término da longa
temporada carioca do show que realizou com Maria Bethânia em 1975, na boate Canecão,
Chico tenha se afastado dos palcos durante nove anos, participando apenas esporadicamente
de eventos especiais de caráter político associados à redemocratização do país, como os shows
do Dia do Trabalho, sua criação musical nesta época foi marcante.
Situa-se nesse período, entre as escrituras de Gota D’Água e de Ópera do
Malandro, a realização de importantes composições para o cinema, como as canções O que
será (À Flor da terra), O que será (À Flor da pele) e O que será (Abertura) realizadas para o
filme de Bruno Barreto, Dona Flor e seus dois maridos, (1976) roteiro adaptado do romance
homônimo de Jorge Amado que se tornou durante três décadas o recordista de público entre
os filmes brasileiros, ou como as canções A noiva da Cidade, Quadrilha e Passaredo, feitas
em parceria com Francis Hime, para o filme A noiva da cidade (1976) de Alex Viani, ou
ainda como Feijoada Completa para a comédia Se segura, malandro de Hugo Carvana, em
1977.
Como um exemplo dos novos tempos de abertura política que o país começava a
viver, este período também marcaria na carreira de Buarque o início de uma nova relação com
a censura, com o retorno de suas canções à programação da poderosa empresa líder da
comunicação de massa no Brasil, a Rede Globo de Televisão, que desde o início dos anos 70,
por sua própria decisão política, censurava as canções e a participação de Chico em sua
programação.
A repressão imposta durante a ditadura militar, além das imposições da censura
oficial, havia provocado outros mecanismos censores, como a censura não oficial advinda do
poder econômico, que não prestigiando com verbas publicitárias os veículos de comunicação
que se excediam aos ditames do regime, criavam dificuldades econômicas para a
sobrevivência comercial desses veículos. Por essa razão, ou por temor às represálias ou
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
183
mesmo por simples adesão à política autoritária dos militares, o fato é que vários veículos de
comunicação instituíram a prática da autocensura. Nesse sentido, nas pesquisas de Carlos
Fico (2002, p.10) encontramos o seguinte esclarecimento:
A direção de um jornal que recebia a lista de temas que não poderiam ser abordados e os
transmitia à redação, acatando a censura, estava colaborando com ela? Certamente pode-
se falar em uma capitulação, e a alternativa seria a censura prévia ou o fechamento do
jornal. Esse tipo de acatamento, porém, não é a mesma coisa que colaboracionismo ou
apoio político, do gênero do praticado pela Folha da Tarde, nos anos 1970, ou pelo O
Globo durante todo o período. Tampouco é idêntico ao estabelecimento de um rol próprio
de temas proibidos, nos moldes da limitação empresarial, [...] circunstância em que,
talvez, se possa falar propriamente em “autocensura”. Esta prática não foi comum na
imprensa escrita, na qual prevaleceu o acatamento às proibições. Em menor escala, houve
a censura prévia e, de maneira diversificada, muito colaboracionismo ou apoio político
(corriqueiro em jornais do interior, por exemplo).
obras de artistas como Chico Buarque, de grande representatividade popular, tidos como
fortemente engajados na luta democrática.
As relações de Chico Buarque com a televisão nesse período podem ser melhor
compreendidas acompanhando-se o trecho da entrevista do artista para o Coojornal, em julho
de 1977, um órgão alternativo editado por uma cooperativa de jornalistas gaúchos, distribuído
nacionalmente entre 1976 e 1983:
Há cinco anos ele não conseguia por na rua um disco inteiramente seu. E há quatro pelo
menos não aparecia na tevê. Mas o público continua cada vez mais fiel a Chico. Seu
especial feito pela TV Bandeirantes faz enorme sucesso e o disco Meus Caros Amigos já
vendeu 300 mil cópias.
Coojornal - Você faz parte do grupo de músicos e compositores projetados no início da
carreira pela TV, pelos festivais da Record de 65/66. Quase todos estão hoje afastados da
televisão e você há quase três quatro anos não aparecia nos vídeos. Agora você voltou
com programa especial feito pela Bandeirantes de São Paulo e que está passando em todo
país com uma acolhida muito boa. Como foi sua volta?
Chico Buarque - Não foi assim uma volta programada. Eles me fizeram um convite que
achei razoável. Eu já havia feito um programa em 73 com o Roberto de Oliveira, que
dirigiu este agora. Foi tudo muito livre, muito à vontade. Gravaram 17 horas de bate-
papo, de besteira para tirar uma hora e pouco de programa. Eu gostei muito, achei muito
bom.
Coojornal - Significa que você fez as pazes com a TV?
Chico Buarque - Nunca estive brigado com a televisão, nunca disse que não transava TV.
Não concordo com o monopólio, com o tipo de censura que a Globo andou fazendo, por
exemplo. O que houve foi isso: estive cortado da televisão, em parte pela censura oficial
em parte pela censura da Globo.
Coojornal - Mas agora, se a Globo convidar para um especial você topa?
Chico Buarque - Agora sou eu que não quero. Acho inadmissível uma censura, como a
Globo andou exercendo por aí, principalmente numa época em que a censura oficial era
braba.
A discografia de Chico Buarque nesse mesmo período, além dos já citados discos
Meus caros Amigos e Gota D’Água, apresenta os seguintes produtos fonográficos: o
compacto simples Milton & Chico (1977), o infantil Os saltimbancos (1977) e ainda, o long
play Chico Buarque (1978) em que encontramos já algumas canções da Ópera do Malandro
entre algumas antigas canções – Cálice, Tanto Mar e Apesar de Você, antes censuradas e
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
186
nesse momento, já liberadas para a execução pública. Um fato marcante, do ponto de vista da
análise das relações do artista com a situação política do período, como nos esclarece o
próprio Chico Buarque em entrevista a Geraldo Leite, na Rádio Eldorado, em 27 de setembro
de 1979:
Se a gente continuar dividindo o trabalho, você vai ter, desde Construção até Meus caros
amigos, toda uma criação condicionada ao país em que eu vivi. Tem referências a isso o
tempo todo. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto... eu nem acho
que eu faça música de protesto... mas existem músicas aqui que se referem imediatamente
à realidade que eu estava vivendo, à realidade política do país.
Até o disco da samambaia [referência à capa do disco Chico Buarque de 1978], que já é
o disco que respira, o disco onde as músicas censuradas aparecem de novo. Não havia
mais a luta contra a censura. [...] Disco por disco, você vai ver isso. Fica bastante claro
que a partir de 78 minha música está respirando melhor.
Do início da distensão, durante o governo Geisel, até 1976, somente foram controlados
alguns aspectos mais gritantes da censura; a partir de 1976, data em que se afirma, o
governo Geisel controlou a linha dura, houve uma clara diminuição de suas atividades
sem que, não obstante, os seus instrumentos fossem eliminados: o ditador não abriu mão
deste instrumento ditatorial. Foi somente no final do governo Geisel e início do governo
Figueiredo que a liberdade de imprensa foi restaurada no Brasil. (SOARES, 1989, p.22)
a articulação da sociedade civil, contudo, não pode ser vista de forma linear. Há uma
clara distinção entre movimentos sociais de base, que indicam a emergência fragmentária
de classes populares ao longo da década de 70 e cujo eixo gira em torno das deformações
provocadas pelo crescimento econômico em contradição com o atrofiamento da vida
política representativa e movimentos sociais ilustrados, de características orgânicas mais
definidas e com ideário vinculado a questões institucionais de intensa penetração entre as
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
189
classes médias urbanas. [...] os movimentos sociais ilustrados, pela natureza de suas
reivindicações — a maioria das quais em contraposição direta à ordem autoritária —
ganham penetração entre os grupos mais politizados das camadas urbanas. Temas como
“direitos humanos”, “anistia”, “censura”, “eleições diretas” e “constituinte” no âmbito das
tímidas medidas de liberalização tomadas pelo governo, tenderam à proliferação à
galvanização de amplos setores da opinião pública, com um efeito de divulgação que
rompia o clima de medo institucionalizado pelo regime militar. (1992, p.24-25)
divulgação para os grandes hits internacionais da Disco Music, da Pop Music e do Rock and
roll.
Paradoxal é que a nova ordem da ditadura – uma vez devidamente punidos com prisões,
mortes, torturas e exílio os que ousaram se insurgir abertamente contra ela – soube dar
lugar aos intelectuais e artistas de oposição, especialmente a partir do período da chamada
“abertura” do regime, promovida durante o governo do general Geisel (1974-1978). [...]
As grandes redes de TV, em especial a Globo, surgiam com programação em âmbito
nacional, estimuladas pela criação da Empresa Brasileira de Telecomunicações
(Embratel), do Ministério das Comunicações e de outros investimentos governamentais
em telecomunicações que buscavam a integração e segurança do território brasileiro.
Ganhavam vulto diversas instituições estatais de incremento à cultura, como a Empresa
Brasileira de Cinema (Embrafilme), o Instituto Nacional do Livro, o Serviço Nacional de
Teatro, a Fundação Nacional de Arte (Funarte) e o Conselho Federal de Cultura. À
sombra de apoios do Estado, floresceu também a iniciativa privada: criou-se uma
indústria cultural, não só televisiva, mas também fonográfica, editorial (de livros,
revistas, jornais, fascículos e outros produtos comercializáveis em bancas de jornal), de
agências de publicidade etc. (2012, p. 4)
Além do já citado Dona Flor e seus dois maridos, encontram-se nesse rol, outros
filmes de destaque na história cinematográfica do país, como Xica da Silva (1976) de Cacá
Diegues, Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977) de Hector Babenco, Tenda dos
Milagres (1977) de Nelson Pereira dos Santos, A Dama da Lotação (1978) de Neville de
Almeida, Lição de Amor (1978) de Eduardo Escorel, Doramundo (1978) de João Batista de
Andrade, juntos a algumas dezenas de outros filmes, a maioria, na linha popularesca de
comédias e de pornochanchadas. Em referência à Embrafilme e ao ano de 1976 para o cinema
nacional, a pesquisa de André Piero Gatti (2008, p.39) destaca que:
A censura a livros durante a ditadura militar, portanto, teve uma atuação mais forte não
nos chamados Anos de Chumbo (1968-1972), mas durante o governo Geisel (março de
1974 a março de 1979), e especialmente no final desse governo.
[...] A censura a livros por parte do Departamento de Censura de Diversões Públicas
aumentou quando a maioria dos jornais e revistas estava sendo liberada da presença da
censura prévia nas redações.
Pode-se dizer que a censura a livros durante a ditadura militar apresenta uma dinâmica
similar à de outros setores das diversões públicas. (REIMÃO. 2011, p.56)
velhos problemas dos abusos e interferências dos censores, que proibiam ou provocavam
cortes nos textos ou nas montagens que julgassem inconvenientes aos interesses morais,
estéticos ou ideológicos da ditadura.
Mais empobrecido ainda se encontrava o movimento teatral em função do exílio
de grandes nomes do teatro nacional, como Augusto Boal e José Celso Martinez Corrêa e das
mortes prematuras de dois de seus melhores representantes: Oduvaldo Vianna Filho e Paulo
Pontes.
Há algum tempo, grande parte dos atores e escritores da cena brasileira havia sido
absorvida pelo crescente mercado de dramaturgia televisiva, dificultando ainda mais a
situação dos nossos palcos, já bastante esvaziados em conseqüência do embate causado pelo
crescimento efervescente da indústria cultural do país e de seus resultados alienantes.
Contudo, como típico meio de formação cultural e de resistência,
(músicas). A peça foi concebida originalmente na língua italiana, uma adaptação teatral de
Bardotti e Enriquez para uma antiga fábula dos irmãos Grimm.
Jacob e Willian Grimm, dicionaristas, gramáticos e escritores alemães, nascidos
no final do século dezoito, notabilizaram-se na história da literatura mundial pela extensa obra
de pesquisa e registro de antigas lendas e contos do folclore europeu, a maior parte dedicada à
literatura infanto-juvenil, em que se destaca uma antologia de histórias alemãs intitulada
Hausmaerchen (Contos Caseiros) que inclui a fábula Die Bremen Stadtmusikanten (Os
Músicos da Cidade de Bremen) que conta a aventura de quatro animais domésticos que fogem
de uma vida de submissão aos seus senhores e, unidos, encontram a força que não tinham
enquanto separados para conquistar a liberdade de uma vida independente como músicos.
Provavelmente são essas lições de união e de luta contra o elemento opressor que
estimularam Chico Buarque para numa primeira vez, dedicar sua mensagem artística ao
público infantil. A história dos músicos de Bremen, na medida em que põe em discussão
aspectos da relação entre opressores versus oprimidos e aspectos da organização das forças
dos oprimidos em prol de sua libertação, apresenta elementos provocadores de reflexões e
mudanças na esfera política e social.
Por isso mesmo, apesar da abordagem e linguagem típicas dos textos infantis,
encontramos nessa fábula um pressuposto para a sua observação na linha do Teatro Épico.
Conceituando os pressupostos para a realização de uma obra no gênero do Teatro Épico, Iná
Camargo Costa (2005) nos esclarece que:
O meu interesse em relação à arte para as crianças surgiu a partir de minha experiência
pessoal com os meus filhos. Notei que as crianças não têm o que ler, fora o que e lhes é
empurrado pela televisão, não existe absolutamente nada. Inclusive há uma grande
desconfiança por parte de todos os meios de produção em relação a coisas para criança.
[...] Estou vendo que as crianças começam desde cedo a assistir todas as novelas. Às 7
horas junta-se a família toda em torno da televisão, janta só diante da televisão, em suma,
ingerem a televisão.
[...] Aí apareceu o Bardotti com os Saltimbancos e eu me interessei em adaptar para o
Brasil, inclusive como uma opção para elas não cantarem só músicas da novela, que não
tem nada a ver com o mundo delas.
Uma gata, o que é que tem? / - As unhas. / E a galinha, o que é que tem? / - O bico. / Dito
assim, parece até ridículo / um bichinho se assanhar. / E o jumento, o que é que tem? / -
As patas. / E o cachorro, o que é que tem? / - Os dentes. / Ponha tudo junto e de repente /
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
198
vamos ver o que é que dá. / Junte um bico com dez unhas, / quatro patas, trinta dentes / e
o valente dos valentes / ainda vai te respeitar. / Esperteza, Paciência / Lealdade, Teimosia
/ E mais dia menos dia / A lei da selva vai mudar / Todos juntos somos fortes / Somos
flecha e somos arco / Todos nós no mesmo barco / Não há nada pra temer / - Ao meu lado
há um amigo / Que é preciso proteger / Todos juntos somos fortes / Não há nada pra
temer. (trecho da canção Todos Juntos)
O pão, a farinha, o feijão, carne / seca, / limão, mexerica, mamão, melancia, / a areia, o
cimento, o tijolo, a / pedreira, / quem é que carrega? Hi-ho. / Jumento não é, / jumento
não é, / o grande malandro da praça. / Trabalha, trabalha de graça. [trecho da canção O
Jumento]
Corre, cão de raça, / corre, cão de caça, / corre, cão chacal. / Sim, senhor. / Cão policial, /
sempre estou / às ordens, sim, senhor. / Bobby, Lulu, / Lulu, Bobby, / Snoopy, Rocky, /
Rex, Rintintin. / Lealdade eterna-na, / não fazer baderna-na, / entrar na caserna-na, / o
rabo entre as pernas-nas. [...] Fidelidade / à minha farda, / sempre na guarda / do seu
portão. / Fidelidade / à minha fome, / sempre mordomo e / cada vez mais cão. [trechos da
canção Um Dia de Cão]
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
200
A escassa produção / alarma o patrão. / As galinhas sérias / jamais tiram férias. / "Estás
velha, te perdôo, / tu ficas na granja / em forma de canja." / Ah!!! / É esse o meu troco /
por anos de choco. [trecho da canção A Galinha]
De manhã eu voltei pra casa, / fui barrada na portaria, / sem filé e sem almofada, / por
causa da cantoria. / Mas agora o meu dia-a-dia / é no meio da gataria / pela rua virando
lata / eu sou mais eu, mais gata, / numa louca serenata, / que de noite sai cantando assim:/
Nós, gatos, já nascemos pobres, / porém, já nascemos livres. / Senhor, senhora, senhorio, /
felino, não reconhecerás. [trecho da canção A História de uma Gata]
Trata-se de uma encenação toda contada, cantada e "brincada", com músicas alegres e
"assobiáveis" de Enrique Martinez e letras — ah, as letras: - do texto magistral do nosso
Chico Buarque, em versos irresistivelmente engraçados, espirituosos e "sábios", que
funcionam até mesmo sem a música, pois possuem a sua musicalidade própria.
(BUARQUE, 2007)
Magro do quarteto MPB4. O grande sucesso da obra no teatro e no disco se refez também
como um produto literário. Desde então, a versão da peça em livro recebeu sucessivas e
renovadas edições.
O prolongado êxito das montagens teatrais e das vendas do disco e do livro
provocou a ida de Os saltimbancos para as telas dos cinemas. Em 1981 a peça e as músicas do
espetáculo são adaptadas para o roteiro cinematográfico, sob a direção de J.B. Tanko. O filme
foi encenado e produzido pela trupe de comediantes Renato Aragão, Dedé Santana, Mussum e
Zacarias, nacionalmente conhecidos como Os Trapalhões, um grande sucesso popular do
gênero humorístico tanto na TV como no cinema brasileiros. O filme contou com a
participação ativa de Chico Buarque que compôs canções inéditas para a versão
cinematográfica. O longa-metragem intitulado Os Saltimbancos Trapalhões atingiu a marca
de 5,2 milhões de espectadores e tornou-se uma das 15 maiores audiências na história do
cinema nacional.
Como havia ocorrido com Gota D’ Água, o espetáculo infantil de Buarque
também se tornaria um acontecimento histórico no teatro e na cultura nacional. A história e,
principalmente, as canções de Os Saltimbancos venceram o tempo e até hoje repercutem
através dos discos e dos livros da peça que passaram a ser frequentemente incorporados no
acervo das bibliotecas e discotecas das escolas de educação infantil do país. As lições de
liberdade transmitidas na peça ficariam enraizadas na formação das novas gerações de
brasileiros, talvez, muito além do que Chico poderia ter imaginado.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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Produtos culturais que popularizaram a peça Os Saltimbancos: livro, partitura musical, cartaz da adaptação
cinematográfica e discos.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
203
Nós, os brasileiros, desde há algum tempo temos cultivado paixão pelo moderno e uma
persistente adesão à ideologia do progresso. [...] Os efeitos bizarros da justaposição do
moderno ao tradicional, e sobretudo de uma forma singular de modernização que aparenta
ser produzida em nome do passado e para sua perpetuação.
A velocidade, a simultaneidade, a valorização de um ritmo de vida intenso, os novos
espaços urbanos — aqui, o americanismo tem sido também uma estética. Largas
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
204
Até o Brecht tomou suas cautelas e localizou sua ópera no início do século. O John Gay
ainda colocou no palco o ministro da Justiça de sua época, 1728. Mas hoje isso não é
possível. Fatalmente seriam identificados os policiais corruptos com os que todos
conhecem. Os problemas que surgiriam não deixaram a peça ser encenada. Com a
localização na Lapa, no Rio, a peça ganhou muito. Em compensação, conseguidos fazer
uma passagem no tempo que compara acontecimentos do Estado Novo. A peça fala do
Estado Novo começando a facilitar. Os pontos de contato entre as duas épocas são a crise
do autoritarismo. A gente vê de repente não só operários mas também médicos em greve
e os empresários pedindo abertura, dentro dessa unânime insatisfação com o regime.
(Revista Veja, 02 de agosto de 1978)
Ainda segundo outras declarações suas, em entrevista para Maria Amélia Mello
publicada na revista Isto é de 2 de agosto de 1978, Buarque não tinha conhecimento de Ópera
do Mendigo de John Gay, mas tinha um antigo projeto em parceria com Ruy Guerra de
realizar uma versão da peça de Bertold Brecht, texto com o qual estava bastante familiarizado,
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
205
quando Luís Antônio Martinez Corrêa lhe apresentou o texto de Gay, no qual Brecht havia se
inspirado para a criação da Ópera dos Três Vinténs.
A partir desse fato um grupo de artistas e intelectuais reuniu-se para uma série de
estudos que subsidiaram a escritura do texto e a montagem do espetáculo conforme a nota de
abertura na edição da peça em livro, datada de julho de 1978:
O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez
Correa e que contou com a colaboração de Maurício Setie, Marieta Severo, Rita
Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A equipe também
cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa
do trabalho, muito nos valeram os filmes “Ópera dos Três Vinténs”, de Pabst, e “Getúlio
Vargas”, de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort (“O Teatro e sua Realidade”), as
memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo.
Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma
melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três “óperas”.
E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras.
deram o passo final na consolidação da derrota política sofrida pelos artistas de 1964:
introduziram na esfera da circulação capitalista – e de maneira mais produtiva do que já
fizera o Grupo Opinião, porque agora são empresários explorando dramaturgo, diretor,
elenco etc. – as conquistas brasileiras no campo da dramaturgia moderna. Ao mesmo
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
206
tempo que consolidou a vertente vanguardista, Roda Viva fechou a porta do moderno
teatro político no Brasil. Também entre nós o teatro épico se transformou em simples
artigo de consumo. (1996, p.187).
Eu já perdi a ilusão de levar o teatro ao povo. Teatro popular no Brasil é novela. Porque
não dá certo. Popular no Brasil é novela. Porque não há teatro popular que resista a um
sistema adverso, econômico e politicamente. [...] Sei que "Gota D' Água" não era um
teatro para o povo, mas era pelo povo, tenho certeza disso. Como fazer um teatro para o
povo se existem todos os obstáculos? Então, se a gente vive abaixo desse negócio, vamos
trabalhar dentro das condições existentes. Isso não nos impede de denunciar. E vamos
denunciar para a classe média mesmo, que pode pagar o preço do ingresso. Porque não é
natural tentarmos levar essa peça para os operários. É forçado, dentro do sistema em que
vivemos. (Revista Veja, 02 de agosto de 1978)
Conforme nos apresenta Patrice Pavis (1999, p.110), antes dos estudos de Brecht,
há muito encontramos os elementos do drama épico na história da dramaturgia, tratavam-se
sempre, porém, de aspectos técnicos ou formais, mas que não atingiam o âmbito global das
peças ou não destacavam o papel do teatro como transformador social. De forma inversa,
Brecht via na forma épica uma nova possibilidade de análise da sociedade.
Para Anatol Rosenfeld (2002), as teorias fundamentadas por Brecht que
aprofundaram o chamado Drama Épico (ou Teatro Épico ou Teatro Político) foram estudadas,
comentadas, revistas e reformuladas pelo teatrólogo alemão durante os quase trinta anos de
sua carreira e, portanto, um resumo sobre as mesmas torna-se uma tarefa bastante complicada.
No entanto, algumas das características mais determinantes podem ser apontadas.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
207
são apenas relativas e, como tais, fugazes e não “enviadas por Deus”. Isso é o início da
crítica, Para empreender é preciso compreender. (ROSENFELD, 2002, p.151)
Então eu tenho um outro lado que compensa um pouquinho, que é o lado mais ligado à
letra, às palavras mesmo, né? Que pode ser fazer letra de música, ou poder ser escrever
um negócio, ou escrever para teatro. Até mesmo teatro o que me interessa mesmo é a
parte literária dele.
[...] Eu prefiro ler. Eu entendo mais se eu ler do que seu for lá assistir. E eu tenho um
negócio que renega mais uma vez a minha tentativa de fazer Arquitetura: uma falha na
minha sensibilidade, eu não entendo nada do que é visual. Não sei se a peça está bem, se
o cenário está bonito se não está, entende? Essa coisa assim, se a montagem está assim ou
assada, foge à minha capacidade de percepção.
paródia que, provavelmente, tinha como observação crítica as diversas encenações das óperas
apresentadas na capital inglesa naquela época.
O enredo nos conta a história de MacHeath, um bandido sedutor e chefe de uma
quadrilha de ladrões, envolvido num triângulo amoroso. MacHeath está casado em segredo
com Polly, filha de um explorador de mendigos, Peachum, e também com Lucy, filha de
Lockit, o chefe policial. A trama desenvolve-se com a descoberta de Peachum sobre o
casamento secreto de sua filha com MacHeath. Para separá-los o agenciador de mendigos
persuade o carcereiro e chefe de polícia Lockit, com quem mantinha negócios escusos, a
realizar uma emboscada para prender o indesejável genro e condená-lo à morte. Quando é
finalmente preso, MacHeath será libertado pela interferência de sua outra esposa, filha do
chefe da guarda policial, emergindo no conflito a situação de bigamia vivida pelo ladrão
sedutor com as filhas de seus algozes. Em fuga, MacHeath esconde-se entre os ladrões e
prostitutas de seu convívio marginal e uma nova emboscada tramada por Lockit e Peachum
lhe colocarão novamente na condição de prisioneiro condenado à morte.
No final do enredo rocambolesco, pouco antes da execução surgem mais quatro
mulheres de MacHeath que, no entanto, será salvo por um reprieve, um decreto concedido por
uma graça real, que suspendia a pena imposta aos prisioneiros, o que leva a história para um
final festivo, com MacHeath dançando com Polly, a esposa, entre todas, escolhida como
legítima.
Além da sátira ao gênero operístico e da modernidade dramatúrgica em relação à
estrutura textual e desenvolvimento das cenas, o enredo criado por John Gay apresentava uma
crítica a alguns políticos, personalidades e policiais ingleses denunciando a prática da
ilegalidade de uma parcela da elite londrina mantida por uma rede de corrupção, pela troca de
favores e conivência com atividades marginais como a prostituição, mendicância e
organizações criminosas.
O alvo seriam algumas figuras notórias da sociedade inglesa, representadas e
caricaturizadas pelos personagens centrais: Lockit, MacHeath e Peachum. Conforme nos
apresenta Caetano Waldrigues Galindo no posfácio da tradução brasileira, a peça de John Gay
tinha alvos personalizados como veremos nos trechos em destaque:
a Grã-Bretanha era sua curiosa atividade de dois gumes. Ele enriqueceu contratando e
organizando ladrões e assaltantes e, posteriormente, prendendo e entregando ex-
funcionários ou inimigos em momentos mais convenientes. Ele chegava mesmo a
organizar o roubo de uma casa e depois reclamar a recompensa oferecida por certos bens
perdidos. Mesmo os cartazes satíricos que se anunciavam como convites a sua execução,
anos mais tarde, se refeririam a ele pelo cínico apelido que ostentava de havia muito:
thieftaker general of Great Britain (apreendedor geral de ladrões da Grã-Bretanha.)
(GAY, 2007, p.118)
Por outro lado, a cômica posição de Peachum, movendo uma virtuosa cruzada contra os
facínoras enquanto silenciosamente lucrava rios de dinheiro com o que lhe provinha
dessas mesmas atividades não podia deixar de evocar as atividades muito mais que
polêmicas de sir Robert Walpole (1676-1745), tradicionalmente considerado o primeiro
primeiro-ministro britânico; alguém que, antes mesmo de chegar ao cargo que o torna
famoso, já havia sido expulso do parlamento sob alegações de corrupção. (GAY, 2007,
p.119)
Bertold Brecht realiza a Ópera dos Três Vinténs com grande fidelidade ao texto
original mantendo o enredo e os personagens bastante semelhantes à peça de Gay, em relação
ao status, perfil psicológico e nome de seus protagonistas, como também em relação à
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
212
ambientação, local e época em que ocorre a trama, o mesmo submundo da capital inglesa do
início do século 18.
Porém, diferentemente do ataque quase que pessoal a alguns aristocratas ingleses
realizado por John Gay na Ópera do Mendigo, em Brecht a história do bandido MacHeath, ali
também chamado pelo codinome de Mac Navalha, irá se desenvolver como uma crítica
comportamental. Se John Gay buscava apenas satirizar algumas personalidades e fatos ilegais
de uma sociedade marcada pelo nascimento do modelo capitalista, Bertold Brecht buscava
caricaturizar as relações humanas denunciando a decadência social advinda desse sistema.
Toda a história será tratada como um pano de fundo narrativo para uma apresentação irônica
de questões que evidenciam valores incorretos e desumanos praticados no modelo social
burguês e uma reflexão sobre a relatividade da moral e das leis como distorções éticas
provocadas por este modelo.
A proposição épica brechtiana de realizar um teatro anti-ilusionista é um dos
elementos mais marcantes nas cenas de Ópera dos Três Vinténs, em que a conduta dos
personagens se apresenta submetida à conquista financeira. A crueldade nos relacionamentos
gerada pela busca, a qualquer preço, do dinheiro será então revelada como uma condição
presente não apenas na cena teatral, mas principalmente como um retrato da realidade social
vivida na Berlim do período pré-nazista em que a peça estreou.
Os duzentos anos de avanços das técnicas de encenação e do desenvolvimento
dramatúrgico que separam o texto original de John Gay de seu produto adaptado por Brecht,
obviamente, resultaram em que o texto de Brecht fosse melhor resolvido em sua estruturação
orgânica se comparado ao original. A carpintaria teatral proposta para a Ópera dos Três
Vinténs é abundante nas intenções autorais e nas indicações de recursos cênicos tanto para a
montagem técnica e para a direção do espetáculo, como também para os trabalhos de
representação dos atores. A construção das cenas possibilita um encadeamento mais coerente
do enredo e as canções cumprem com sedutor brilhantismo os papéis de resumo narrativo e de
reforço das ideias apresentadas.
Em Ópera do Malandro, Chico Buarque buscou a difícil missão de reunir, de
alguma forma, os virtuosismos destes dois importantes clássicos teatrais. Nas declarações
sobre a concepção do espetáculo realizadas por Luís Antônio Martinez Corrêa, o diretor da
peça, evidencia-se a preocupação de extrair-se o melhor de Brecht e John Gay a partir da
adaptação da história para um cenário mais condizente com a realidade nacional:
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
213
Em termos de texto, nos baseamos mais no de John Gay. Já na hora, da construção das
cenas, seguimos Brecht mais de perto, separamos a ação dramática da ação musical, mas
a força do espetáculo está mesmo no texto. Aproveitamos os clichês da década de 40,
assimilamos o que há de mais consumido, mais kitsch. A crise, a falência, a decadência
estão presentes. É uma caricatura, um retrato da burguesia brasileira. Utilizamos a lente
de aumento, um exagero, uma ampliação para se ver melhor, encontrar outros detalhes da
foto. A palavra de ordem que dei aos atores não é representar, é demonstrar, colocar bem
claro essas regras falidas, o jogo do capitalismo, a corrupção e a ganância pelo dinheiro.
(Revista Isto É, 2 de agosto de 1978)
Poucas fases da história do Brasil produziram um legado tão extenso e duradouro como o
Estado Novo. Em função das transformações ocorridas no país, o período tornou-se
referência obrigatória quando se trata de refletir sobre estruturas, atores e instituições
presentes no Brasil de hoje. Na realidade, durante o Estado Novo — o regime autoritário
implantado com o golpe de novembro de 1937 —, Getúlio Vargas consolidou propostas
em pauta desde outubro de 1930, quando, pelas armas, assumiu a presidência da
República. [...] Com a implantação do Estado Novo, Vargas cercou-se de poderes
excepcionais. As liberdades civis foram suspensas, o Parlamento dissolvido, os partidos
políticos extintos. O comunismo transformou-se no inimigo público número um do
regime, e a repressão policial instalou-se por toda parte. Mas, ao lado da violenta
repressão, o regime adotou uma série de medidas que iriam provocar modificações
substantivas no país. O Brasil, até então, basicamente agrário e exportador, foi-se
transformando numa nação urbana e industrial. Promotor da industrialização e interventor
nas diversas esferas da vida social, o Estado voltou-se para a consolidação de uma
indústria de base e passou a ser o agente fundamental da modernização econômica. O
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
214
musical percorridos por ambos em suas referidas óperas representassem, talvez, a razão da
escolha dessas duas obras para mais uma adaptação teatral buarqueana, forma de arte que
após os sucessos conquistados com Gota D’Água e Os Saltimbancos, não havia mais dúvida,
Chico Buarque tão bem sabia manejar.
Na transposição da história ambientada na boca-do-lixo londrina do início de
século 18 para a Lapa, antiga região do Rio de Janeiro que se desenvolveu no entorno da
Igreja Nossa Senhora do Carmo da Lapa do Desterro, área central da cidade
arquitetonicamente marcada por um aqueduto construído no século 18, os famosos Arcos da
Carioca, a Lapa é o cenário carioca mais simbólico na representação do submundo dos anos
finais do Estado Novo pelo aspecto histórico e pela forte presença da vida noturna animada
por meretrícios e inúmeros bares e cabarés. Nesse ambiente, Chico Buarque mantém o mesmo
enredo e os mesmos personagens protagonistas com suas características psicológicas mais
determinantes, porém cria para os mesmos novas condições. Assim, na versão brasileira,
MacHeath, o chefe dos ladrões, transforma-se em Max Overseas, um malandro contrabandista
e também chefe de uma quadrilha de marginais. Peachum, o explorador de mendigos, será um
próspero dono de bordéis da Lapa e agenciador de prostitutas, o senhor Duran, casado com
Vitória, a companheira com quem divide a administração dos “negócios”. A filha de Duran e
Vitória, com quem Max Overseas se casará em segredo, chama-se Teresinha de Jesus, antes
denominada Polly Peachum nas obras de Gay e de Brecht.
Lockit, o chefe policial corrupto e sua filha Lucy terão na versão buarqueana
condições semelhantes aos originais, com a pequena diferença que a filha do chefe de polícia
não é mais uma esposa e sim uma amante de Max que está grávida, caracterizando-se desta
outra forma a antiga condição de bigamia causadora de importante conflito nas histórias dos
textos adaptados. Em relação aos nomes destes personagens Chico Buarque apenas nos
1
propõe a tradução possível: Lucy será Lúcia enquanto o chefe de polícia Lockit continuará
mantendo em sua denominação brasileira a função de aprisionar com o sugestivo nome de
Chaves.
Conforme nos apresenta Gaetano Gracindo Galindo (GAY, 2007), John Gay
gracejava na criação dos nomes dos personagens fazendo alusões a lugares, adjetivos e ações
verbais. Com o mesmo espírito, Chico Buarque se utilizará de alguns nomes de personagens
explorando de forma satírica os seus significados.
__________________________________________________________________________________________
1 - No idioma inglês o termo Lock significa: na forma verbal: trancar; na forma de substantivo: cadeado, tranca,
fechadura.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
216
Malandro as canções “não são apenas rupturas críticas ou interlúdios com uma função
meramente teatral. Na verdade, elas circundam as cenas dramáticas aprofundando seu
significado”.
Para uma melhor observação da composição textual e de seus conteúdos
discursivos, abaixo apresentamos o desenvolvimento do enredo na ordem cênica em que esse
foi estruturado:
PRIMEIRO ATO
Introdução: Com as cortinas ainda fechadas, um foco de luz ilumina o Produtor,
um personagem que faz uma abertura formal da peça. Durante essa apresentação, introduz na
cena o “inédito autor” do espetáculo, João Alegre, que surge vestido como um típico
malandro carioca dos anos 40 e logo em seguida convida um dos personagens da história,
Vitória Fernandes Duran, apresentada como atriz da peça e como presidente da Morada da
Mãe Solteira, instituição de caridade que, segundo o Produtor, receberia os direitos autorais
do espetáculo dos quais João Alegre teria aberto mão.
Uma cena de Metateatro realizada dentro da concepção brechtiana, pois é marcada
por um enfoque anti-ilusionista em que as ações do Produtor “desmistificam” o espetáculo e
suas falas, sugestivamente, convidam o público a um ato de reflexão, como pode ser
percebido no trecho destacado abaixo:
PRODUTOR: [...] Acredito que é tempo de abrirmos os olhos para a realidade que nos
cerca, que nos toca tão de perto e que às vezes relutamos em reconhecer. E a nossa
companhia chegou à conclusão que é chegada a hora e a vez do autor nacional, esse
profissional sempre às voltas com intrincados problemas que o impedem de se comunicar
mais amiúde com seus conterrâneos e, não raro, de viver dignamente do ofício que um dia
resolveu abraçar.
Assim, logo nas primeiras frases do espetáculo, o texto já nos fala sobre o
reconhecimento da realidade e sobre a censura, tornando clara a intensão de Chico em
relacionar o espetáculo com os acontecimentos da vida real do país.
Malandro é uma versão de Chico Buarque para Die Moriat Von Mackie Messer, canção de
abertura da Ópera dos Três Vinténs, composta pelo compositor judeu-alemão Kurt Weill,
com letra de Berthold Brecht. Indo muito além das fronteiras do teatro a canção tornou-se um
sucesso popular e mundialmente conhecida por suas versões em diversos idiomas, mas
principalmente, pelas versões que recebeu em língua inglesa, Mack the Knife ou ainda Ballad
of Mack the Kniffe, imortalizadas ao longo do século 20 em gravações de discos de
importantes artistas, entre os quais Louis Armstrong (1956), Ella Fitzgerald (1960), Frank
Sinatra (1984) e Bobby Darin (1959) com quem a canção atingiu os primeiros lugares nas
paradas de sucesso norte-americanas.
Ao contrário da letra original alemã que apenas enaltece as façanhas criminosas
de MacHeath (Mac Navalha, nas traduções para o português), Chico Buarque narra o lado
irônico de uma reação em cadeia provocada por um pequeno golpe dado por um malandro em
um garçom – não pagar a conta de um copo de cachaça:
O MALANDRO
O malandro / Na dureza / Senta à mesa / Do café / Bebe um gole / De cachaça / Acha
graça / E dá no pé.
O garçom / No prejuízo / Sem sorriso / Sem freguês / De passagem / Pela caixa / Dá uma
baixa / No português.
O galego /Acha estranho / Que o seu ganho / Tá um horror / Pega o lápis / Soma os canos
/ Passa os danos / Pro distribuidor.
Mas o frete / Vê que ao todo / Há engodo / Nos papéis / E pra cima / Do alambique /Dá
um trambique / De cem mil réis.
O usineiro / Nessa luta / Grita puta / Que o pariu / Não é idiota / Trunca a nota / Lesa o
Banco / Do Brasil.
Nosso banco / Tá cotado / No mercado / Exterior / Então taxa /A cachaça / A um preço /
Assustador.
Mas os ianques / Com seus tanques / Têm bem mais o / Que fazer / E proíbem / Os
soldados / Aliados / De beber.
A cachaça / Tá parada / Rejeitada / No barril / O alambique / Tem chilique / Contra o
Banco / Do Brasil.
O usineiro / Faz barulho / Com orgulho / De produtor / Mas a sua / Raiva cega
Descarrega / No carregador.
Este chega / Pro galego / Nega arrego / Cobra mais / A cachaça / Tá de graça / Mas o
frete / Como é que faz?
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
219
O galego / Tá apertado / Pro seu lado / Não tá bom / Então deixa / Congelada / A mesada
/ Do garçom.
O garçom vê / Um malandro / Sai gritando / Pega ladrão / E o malandro / Autuado / É
julgado e condenado culpado / Pela situação.
DURAN: Teresinha é o nosso maior investimento, Vitória! Ninguém aqui criou essa
menina pra mulher de malandro não! O que a gente aplicou nela, é pra futura mulher de
ministro de Estado, pelo menos. E quando ela arrumar um ministro de estado, que o traga
pela porta da frente e me apresente a ele, entendido?
Geni, um dos elemento do bando de Max Overseas, vem procurar Vitória para lhe
vender cosméticos e perfumes contrabandeados. Nos diálogos referentes essa ação veremos o
desprezo extremo de Duran e Vitória por Max, o chefe dos bandidos. Geni comenta sobre os
exageros ocorridos na festa de despedida de solteiro de Max Overseas realizada na noite
anterior e que resultaram na depredação de um dos bordéis do casal, aumentando ainda mais a
ira de Duram por Max. Avançando nos comentários sobre a despedida de solteiro, o casal
Duran é surpreendido pela triste notícia que justamente sua filha Teresinha havia se casado as
escondidas com aquele a quem tanto detestavam.
Ele faz o noivo correto / E ela faz que quase desmaia / Vão viver sob o mesmo teto /Até
que a casa caia / Até que a casa caia
Ele é o empregado discreto / Ela engoma o seu colarinho / Vão viver sob o mesmo teto
Até explodir o ninho / Até explodir o ninho
Ele faz o macho irrequieto / E ela faz crianças de monte / Vão viver sob o mesmo teto
Até secar a fonte / Até secar a fonte
Ele é o funcionário completo / E ela aprende a fazer suspiros / Vão viver sob o mesmo
teto / Até trocarem tiros / Até trocarem tiros
Ele tem um caso secreto / Ela diz que não sai dos trilhos / Vão viver sob o mesmo teto
Até casarem os filhos / Até casarem os filhos
Ele fala de cianureto / E ela sonha com formicida / Vão viver sob o mesmo teto /Até que
alguém decida /Até que alguém decida
Ele tem um velho projeto / Ela tem um monte de estrias / Vão viver sob o mesmo teto /
Até o fim dos dias / Até o fim dos dias
Ele as vezes cede um afeto / Ela só se despe no escuro / Vão viver sob o mesmo teto / Até
um breve futuro / Até um breve futuro
Ela esquenta a papa do neto / E ele quase que fez fortuna / Vão viver sob o mesmo teto
Até que a morte os una / Até que a morte os una
Cena 3: Cena que marca o final do primeiro ato. Teresinha vai até a casa dos pais
onde terá um atrito com o casal Duran. No início da cena vemos Fernandes de Duran ao
telefone tentando encontrar o inspetor Chaves com a intenção de convencê-lo a eliminar Max
Overseas enquanto sua esposa Vitória caminha de um lado para o outro inconformada por
nunca ser convidada para os grandes eventos da alta sociedade. Chico Buarque vale-se do
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
223
inconformismo da personagem Vitória para, através de suas falas, apresentar de forma jocosa
um retrato crítico da elite nacional, formada por oportunistas e criminosos e marcada por um
passado condenável e por raízes incertas:
VITÓRIA - O que é que eles pensam que são? Aristocracia brasileira? Faz-me rir, ha ha
ha. Os Monteiro da Fonseca têm um pé na cozinha, já reparou nas fotografias? O tio dos
Castro Meio enriqueceu com a febre amarela. O pai dos Vasconcelos roubava cavalo em
Araraquara. Os Santo Espírito vieram corridos de Portugal.
Teresinha recusa a proposta dos pais e procura demonstrar que o plano não dará
certo já que Max e o inspetor Chaves são grandes e velhos amigos, tanto que Chaves foi
padrinho de seu casamento. Duran, ao saber da amizade que une Max e Chaves, resolve
alterar seus planos e chantagear Chaves com a ameaça de denunciar publicamente as relações
de corrupção entre o chefe da polícia e o bandido, aproveitando-se do desfile do Dia do
Trabalhador que ocorrerá dali a dois dias. Para isso Duran pretende utilizar-se das prostitutas
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
224
que chefia organizando a participação dessas no desfile do 1º de Maio portando cartazes com
as denúncias.
Teresinha retira-se sem dar maior atenção as ameaças do pai. Concomitantemente
entram em cena Dorinha, Shirley, Mimi e Doris, personagens que representam algumas das
prostitutas agenciadas por Duran. As prostitutas vem ao escritório de Duran para tratar dos
prejuízos sofridos no bordéu do patrão na festa de despedida de solteiro de Max. Duran
apresenta um contrato assinado pelas prostitutas mostrando-lhes que cabe a elas arcarem com
todos os prejuízos e, ardilmente, convence as mesmas da necessidade de organizarem um
sindicato, como forma de defesa dos problemas que enfrentam na prostituição. Obviamente,
com a organização do sindicato o casal Duran pretendia levar em frente seu plano de
chantagear Chaves e se utilizaria das prostitutas como massa de manobra:
DURAN - Sabe o que é que vocês precisam? É dum sindicato. Um veículo legal para as
suas reivindicações. Se as rei vindicações são justas, serão atendidas. Taí, gostei. Vou
organizar um sindicato pra vocês. [...] Por exemplo, vocês tiveram um probleminha
ontem à noite, envolvendo maus elementos e maus policiais, certo? É claro que o
incidente acarretou prejuízo a vocês todas, certo? Como poderia ter prejudicado outras
colegas suas, né? E então? Então é aí que fica caracterizado um problema de classe. E eu,
Fernandes Duran, estou solidário com a vossa classe. Vocês têm que levar esse problema
às autoridades competentes...
VITÓRIA - E por falar em autoridade, Duran, depois de amanhã é dia do trabalhador. Dia
de desfile, estádio repleto, chefe da nação e tudo. Quer melhor oportunidade para nossas
funcionárias saírem numa passeata ordeira, pacífica e legítima?
SEGUNDO ATO
2º Prólogo: Repetindo o mesmo formato em que a peça se iniciou, no prólogo do
segundo ato, à frente da cortina fechada, encontra-se João Alegre que batucando na caixinha
de fósforos apresenta o samba Homenagem ao Malandro acompanhado pela orquestra:
TERESINHA - Certo. Mas depois a gente precisa ter uma conversinha sobre o teu futuro.
Max, enquanto você continuar com esses negócios escusos, tá sujeito a viver fugindo da
justiça.
MAX - Ah, assim não. Eu não me casei contigo pra você se meter na minha vida
profissional. Eu vou continuar trabalhando no que sempre me orgulhei de trabalhar.
TERESINHA - Mas é claro, querido, é claro. Ninguém tá pedindo pra você mudar de
atividade. Só o que precisa é dar um nome legal à tua organização. Põe um “esse-a” ou
um «ele-tê-dê-a” atrás do nome e pronto, constituiu a firma. Firma de importações, por
exemplo. E tão digno quanto contrabando e não oferece perigo. Você passa a ser pessoa
jurídica, igualzinho ao papai. Pessoa jurídica não vai presa. Pessoa jurídica não apanha da
polícia... Acho até que é imortal, pessoa jurídica.
MAX - Teresinha, eu não quero que você fique nervosa por minha causa. E melhor eu
cair fora logo. Deixa eu falar com o pessoal.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
227
TERESINHA - Sobre esse pessoal a gente também precisa conversar. Em primeiro lugar,
é um absurdo você dar participação nos lucros da nossa empresa a essa gente. Isso aí
tinha que ser assalariado.
[...] E eu te farei as vontades. / Direi meias verdades / Sempre à meia luz. / E te farei,
vaidoso, supor / Que és o maior e que me possuis.
Mas na manhã seguinte / Não conte até vinte: / Te afasta de mim, / Pois já não vales nada,
/ És página virada, / Descartada do meu folhetim. (trecho da canção Folhetin)
Ao final da canção, entram Max e Geni, o que faz com que as prostitutas
procurem esconder os cartazes prontos, as tintas, os panos etc.
Apesar de saber que as mensagens dos cartazes poderiam lhe prejudicar, Max
demonstra não se incomodar com o ocorrido, como também não lhe preocupa o fato de não
ter fugido para fora da cidade, como era o recomendado. No entanto, ao invés da fuga, Max
preferiu apenas ficar escondido num bordel em companhia das prostitutas.
Um novo número musical marcará a divertida estadia de Max no bordel. Em ritmo
de foxtrote é apresentada a canção Ai se eles me pegam agora, cantada pelas prostitutas e
acompanhada de performance dançante de Max. Ao final do número, o bordel é invadido por
Vitória e Chaves acompanhados por policiais, que vieram para capturar Max que se entrega
calmamente. Antes de ser levado à prisão, Max é ainda surpreendido pela entrada de seus
campangas que carregam novos cartazes pois também irão participar da passeata. Max recebe
então a notícia de que a traição de seus antigos aliados ocorreu pelo fato de Teresinha tê-los
despedido e que, desde então, trabalham para Duran.
Max é retirado preso pelos policiais acompanhados por Vitória e Chaves. As
prostitutas e os bandidos comentam sobre traição e sobre a ingratidão nas relações entre
patrões e empregados. Como como fez Brecht em sua Ópera dos Três Vinténs, Chico Buarque
evidencia nesses diálogos uma crítica comportamental sobre os valores morais e éticos
subordinados ao poder econômico:
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
228
FICHINHA - [...] Mas, no fundo no fundo, patrão, feitor e domador de circo é tudo a
mesma coisa.
GENERAL - Tudo a mesma coisa. Duran, Max e o escambau, no fim eles acabam se
entendendo. E nós, ó!
JOHNNY - Feito a mulher do Max. Deu emprego e ajuda de custo prum monte de
pessoal, o tal do sangue novo. E pra gente aqui do sangue estragado, sabe o que ela disse?
BEN - Disse que a gente tava sem know-how.
JUSSARA - Te digo mais. Eu mesma, numa outra encarnação, no dia em que eu for
patrão, ah... Sai de baixo!
[...] Ai, eu te tratava / Como uma escrava / Aí, eu não te dava perdão / Te rasgava a
roupa, morena / Se eu fosse o teu patrão
Eu te encarcerava / Te acorrentava / Te atava ao pé do fogão / Não te dava sopa, morena /
Se eu fosse o teu patrão
Eu te encurralava / Te dominava / Te violava no chão / Te deixava rota, morena / Se eu
fosse o teu patrão
Quando tu quebrava / E tu desmontava / E tu não prestava mais não / Eu comprava outra,
morena / Se eu fosse o teu patrão
TERESINHA: O meu amor / Tem um jeito manso que é só seu / E que me deixa louca /
Quando me beija a boca / A minha pele toda fica arrepiada / E me beija com calma e
fundo / Até minh'alma se sentir beijada
LÚCIA: O meu amor / Tem um jeito manso que é só seu / Que rouba os meus sentidos /
Viola os meus ouvidos / Com tantos segredos / Lindos e indecentes / Depois brinca
comigo / Ri do meu umbigo / E me crava os dentes
AS DUAS: Eu sou sua menina, viu? / E ele é o meu rapaz / Meu corpo é testemunha / Do
bem que ele me faz (trecho da canção O Meu Amor)
já que não pretendem autorizar a participação no evento que foi utilizado somente para
chantagear o chefe de polícia. Chaves entra em cena e comunica que não conseguiu prender
Max novamente. Diante de sua dificuldade em cumprir seu compromisso, o chefe de polícia
procura intimidar Duran, mas este mostra-se mais forte em seus argumentos quando
demonstra seu grande poder forjado na mobilização popular:
CHAVES: [...] Eu não posso permitir que uma minoria insignificante perturbe a ordem
pública dessa maneira! Os senhores façam o favor de conter essa manifestação
imediatamente!
DURAN: Mas quem sou eu, Chaves? A polícia é você!
CHAVES: Tu não quer solução pacífica? Tá bem. Eu prendo essas putas todas!
DURAN: Prende mesmo, é fácil. Isso aí é realmente uma minoria insignificante. É tudo
gente aprumada na vida, gente asseada, assalariada, umas proletárias de luxo. Mas se
você prestar atenção à janela, vai notar que vem ai outro tipo de gente. Quem vai
protestar na rua são os milhares de desempregados desta cidade, esses sim, com toleladas
de motivos. Sem falar nos subempregados, nos engraxates, nos lambe-botas, nos
vendedores de bugigangas. Vagabundo então, não pode ver aglomerado que vai logo se
enfiando no meio. E se tanta gente imunda e miserável vai pra rua, por que não hão de
sair os aleijados? Ah, esses não vão perder a chance de exibir seus tocos à luz do dia.
Junta os leprosos, os bêbados, os toxicômanos, e só ai a tua minoria já foi à merda. Mais
os tuberculosos, os maleitosos, os sifilíticos, os epiléticos, os débeis mentais, os menores
abandonados, os velhinhos desamparados, as bichas, os pretos e os curiosos, e se prepare
para prender noventa por cento da população do Rio de Janeiro.
Nos diálogos, Chico Buarque denunciava um triste retrato de toda uma população
de excluídos que transcendia ao contexto social do Estado Novo pelo quanto se assemelhava a
realidade social da miséria silenciosa e passiva vivida no período da ditadura militar e, como
já havia feito anteriormente em Os Saltimbancos, apresentava a união das forças populares
como a estratégia possível no caminho das lutas e reivindicações sociais da grande maioria
pobre da nação brasileira. Uma mensagem que, de forma subliminar, apoiava e reforçava os
movimentos sociais de redemocratização e as ações grevistas contrárias ao sistema, que
naquele momento retornavam à cena política e multiplicavam-se pelo país afrontando os
ditames ditatoriais.
Em diálogo subsequente um novo paralelo entre ficção e realidade nacional é
subliminarmente proposto através da exploração de fatos históricos relacionados à queda do
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
231
DURAN: Mas você é um casca-grossa mesmo. Continua fazendo uma confusão grosseira
entre a filosofia integralista e a delinquência de alguns sádicos nazistas. Olha Chaves,
outro dia houve um levante no gueto de Varsóvia. Logo outros guetos vão-se levantar e,
mais dia menos dia, todos os perseguidos nesta guerra vão exigir justiça. Os nazistas vão
pagar caro pelos seus crimes. Haverá tribunais populares em todos os cantos do mundo. E
o que é que te faz pensar que aqui no Brasil os criminosos vão ficar impunes? Hein?
como é que o Hitlerzinho da Lapa vai-se safar desta, hein? Calcule a indignação da
opinião pública quando forem denunciadas as atrocidades cometidas por um certo
inspetor Chaves, mais conhecido por Tigrão, o facínora...
Cena 5: O cenário volta a ser a cadeia, em que Max encontra-se novamente preso
numa cela. Também em cena, Barrabás, como carcereiro. Max procura novamente comprar
sua liberdade através da corrupção. No momento em que Barrabás aceita a proposta de Max
entra em cena Teresinha. Max pede à esposa que providencie o valor acertado para a sua fuga
mas recebe dessa a informação de que não mais possui aquela quantia financeira. Ao
contrário, Max é informado por Teresinha que todas suas economias foram utilizadas na
legalização de seus negócios e que para isso, a esposa ainda tinha contraído uma grande
dívida junto aos bancos. Barrabás sai de cena, mas antes desfaz o compromisso de auxiliar na
fuga.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
232
TERESINHA: Bom, não é pra te consolar, mas quem hoje te condena à morte tá
condenado pra depois de amanhã. Papai, inspetor Chaves, a Lapa, as falcatruas, todo esse
mundo tá morto e caído aos pedaços.
MAX: É, isso não me consola muito não. Tô com medo.
TERESINHA: Eles também tão com medo, Max. Precisava ver a cara da mamãe. Tá
ouvindo a multidão aí embaixo? Coitada da mãe, mas essa gente tá certa, tem mesmo que
desabafar. Ninguém agüenta mais esse clima, esse sufoco! Tá todo mundo precisando
duma coisa nova, mais aberta, mais limpa e arejada. Tá na cara que tem que mudar tudo e
já! Tem que abrir avenidas largas, tem que levantar muitos arranha-céus, tem que inventar
anúncios luminosos, e a MAXTERTEX faz parte do grande projeto. Você devia se
orgulhar, Max, porque nisso tudo tem um pedaço do teu nome e um pouquinho do teu
espírito [...] Sangue novo! A nova civilização! [...] E vai ter um lugar ao sol pra quem
quiser lutar e souber vencer na vida. É dai que vem o progresso, Max, do trabalho dessa
gente e da nossa imaginação. Daqui a uns anos, você vai ver só. Em cada sinal de trânsito,
em cada farol de carro, em cada nova sirene de fábrica vai ter um dedo de nossa firma.
[...] E vai demorar meio século pra essa gente se juntar de novo e levantar a voz. Porque a
multidão não vai estar abafada, nem encurralada, nem tiranizada, nem nada. Sabe o quê?
A multidão vai estar é seduzida. Você devia se orgulhar.
tocando. Aos poucos, o som da orquestra é substituído pelas vozes e ruídos da multidão em
passeata.
felizes, Chico Buarque vale-se de um grandioso número musical com todo o elenco em que
são cantados trechos famosos de óperas importantes e consagradas como Rigoletto, Aída e La
Traviatta de Verdi, Carmen de Biset e Tannhauser de Wagner, cujas letras foram adaptadas
ao enredo da peça e que, mais do que simplismente apresentarem um final feliz para Max,
apresentam um cômico final feliz para todos os personagens.
Toda a felicidade cantada nos trechos das óperas será ironicamente proporcionada
pela completa adesão dos personagens ao modelo burguês capitalista norte-americano: através
da sociedade com uma empresa norte-americana Max e Teresinha recebem a concessão para a
comercialização do náilon, montam uma fábrica em São Paulo e exportam fio de náilon para o
Japão; decidem ainda ramificar os negócios e passam a ser parceiros de outras importantes
empresas internacionais como Shell, Coca-cola e RCA e, em seguida, fundam um banco em
Minas Gerais; os antigos bandidos, capangas de Max, serão trabalhadores honestos dos novos
empreendimentos; Max retoma a antiga amizade com Chaves e o contrata para novos serviços
de proteção policial; Barrabás também será contratado para o mesmo fim e se casa com Lúcia
ainda grávida e assume a paternidade do filho que esta está esperando; Vitória realiza seu
sonho de ver a filha casada numa cerimônia religiosa, com total consentimento de Max que
assume a prática religiosa e, por tudo isso, é aceito por Vitória como um genro querido. Duran
pede perdão a filha Teresinha e concilia-se com Max que lhe promete auxiliar na
administração de seus negócios impondo um padrão "moderno, cristão e ocidental"; por fim,
como um último deboche de Chico Buarque criado para dar um final feliz a todos os
personagens, as prostitutas abandonarão os antigos métodos de trabalho e cantam
emocionadas:
PUTAS: Vamos participar / Dessa evolução / Vamos todas entrar / Na linha de produção /
Vamos abandonar / O sexo artesanal / Vamos todas amar / Em escala industrial.
TODOS: O sol nasceu / No mar de Copacabana / Pra quem viveu / Só de café e banana.
TODOS: Tem gilete, Kibon / Lanchonete, Neon / Petróleo / Cinemascope, sapólio / Ban-
lon / Shampoo, tevê / Cigarros longos e finos / Blindex fumê / Já tem Napalm e Kolinos /
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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Tem cassete e ray-ban / Camionete e sedan / Que sonho / Corcel, Brasília, plutônio /
Shazam.
TODOS: Que orgia / Que magia / Reina a paz / No meu país / Ai, meu Deus do céu / Me
sinto tão feliz.
Black-out; fecha a cortina; orquestra continua.
ELENCO :
Duran / O Produtor: Ary Fontoura
Vitória / A Patronesse: Maria Alice Vergueiro
Teresinha: Marieta Severo
Max Overseas: Otávio Augusto
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Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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Desde sua estreia a peça recebeu por parte do jornalismo cultural uma especial
cobertura, poucas vezes observada para as montagens teatrais.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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O caminho que Chico Buarque escolheu para desenhar o painel desse Brasil em fricção,
prestes a redefinir posições, foi o da música, lembrando que Gay e Brecht também já o
tinham experimentado. Mas a grande originalidade desse Malandro é que Chico serviu-se
de sua indiscutível habilidade de manipular a palavra para desenvolver uma exposição
lúcida sobre como certos fatos ocorrem, jogando à platéia a consciência do processo
social que tem envolvido a sua vida. Nesse sentido, Ópera do Malandro não desmerece
as argutas teorias brechtianas sobre a função transformada do teatro.
A peça foi toda vetada aqui no Rio, mas um pouco por circunstância, porque assumiu um
censor novo. Na verdade, ele lavou as mãos. Em Brasília o texto foi bastante mutilado. Aí
nós recorremos e houve uma série de negociações. O que eu faço, normalmente, é
entregar o caso aos advogados da gravadora Phonogram. Desta vez aconteceu algo
inesperado. Através de amigos comuns, o Humberto Barreto disse que estava interessado
no texto e eu entreguei o texto a ele. E, no fim, a peça foi liberada com poucos cortes.
Agora, até onde funcionou a influência, o pistolão, ou o advogado que estava lá, eu não
sei nem quero saber.
Para os que apenas tiveram Chico Buarque como café da manhã, a peça é ótima e não tem
papo. Mas para os que já almoçaram e jantaram Brecht e tiveram John Gay como tira-
gosto, a adaptação de Chico da Ópera dos Três Vinténs, via Ópera do Mendigo, é tímida,
quase literal, embora outros achem que Chico se perde é quando deixa Brecht na praia e
tenta nadar sozinho. [...] Simples adaptação, up-to-dating das situações e localização dos
personagens? Parece. Mas os brechtianos ortodoxos não têm o que reclamar, porque essa
adaptação é competente no geral e até brilhante nos diálogos e canções. Os personagens
Duran (Ary Fontoura), Vitória (Maria Alice Vergueiro) e Max (Otávio Augusto)
conseguem compor todo aquele tiroteio de contradições que Brecht entendia como
didáticas.
trabalho musical de Chico Buarque seria unanimemente elogiado. Sobre o fazer dramatúrgico
de Buarque, a inevitável comparação com o texto de Gay e, principalmente, com o texto de
Brecht, seria a tônica mais frequente das análises e, nesse sentido, boa parte da crítica
colocava-se francamente desfavorável ao texto de Chico Buarque.
Este aspecto será facilmente exemplificado, simplesmente diante dos títulos das
matérias extraídos da crítica teatral dos jornais paulistanos, na época de realização da
temporada do espetáculo no Teatro São Pedro, na capital paulista, conforme o exposto a
seguir:
Chico Buarque: Compositor, sim. Dramaturgo, não. (Clóvis Garcia, O Estado de S.
Paulo, 31 de outubro de 1979)
Chico Buarque frustra uma esperança. (Sábato Magaldi, Jornal da Tarde, 31 de outubro
de 1979)
Chico Buarque desafina, na Ópera do Malandro. (Jefferson del Rios, Folha de S. Paulo,
2 de novembro de 1979)
Alguns poucos, como Cláudio Pucci, no artigo Explode coração em outro lugar,
publicado na Folha de S. Paulo em 5 de novembro de 1979, apresentavam sua análise em
caminho contrário da maioria dos críticos teatrais:
Chico Buarque seria ainda agraciado como o "Melhor Autor Teatral de 1978" na entrega do
Prêmio Moliére, naquele momento, a mais importante premiação do teatro nacional.
Além do sucesso de público da montagem teatral, os outros produtos culturais
ligados a realização de Ópera do Malandro também cumpririam uma jornada comercial de
grande sucesso popular.
Publicada em livro, a peça atingiria o padrão de vendas dos Best-sellers do
período. O mesmo raro sucesso de vendagem de peças teatrais em livros, já ocorrido com a
publicação de Gota D`Água, seria repetido com esta última peça de Buarque. Encontramos o
livro Ópera do Malandro na lista das 10 obras de ficção mais vendidas no país desde a última
semana do mês de setembro de 1978 até a primeira semana de maio de 1979, na pesquisa
publicada semanalmente pela revista Veja, cuja fonte eram as vendas das principais livrarias
das capitais brasileiras das regiões sul, sudeste e nordeste. Totalizando-se assim a
permanência do livro entre os mais vendidos durante 32 semanas consecutivas.
A trilha musical da peça também se tornaria um êxito de vendas e execução nas
rádios através do lançamento de um Álbum Duplo no formato Long Play com o selo da
gravadora Polygram/Philips.
Lançado como mais um disco da carreira de Chico Buarque, as gravações foram,
no entanto, realizadas por diversos artistas de renome: Alcione, Elba Ramalho, Francis Hime,
João Nogueira, Gal Costa, Marieta Severo, Marlene, Moreira da Silva, Nara Leão, Zizi Possi
e os grupos musicais A Cor do Som, As Frenéticas e MPB-4. Para interpretar as versões de
Chico baseadas nos trechos das grandes óperas criadas para o "Epílogo Ditoso", o disco
contou com a participação dos cantores líricos Alexandre Trick, Diva Pierante, Glória
Queiróz e Paulo Fortes.
Anteriormente à estreia do espetáculo, à publicação do livro e ao lançamento do
disco da peça, ainda em 1978, algumas canções da peça já haviam sido gravadas no LP Chico
Buarque: Homenagem ao Malandro, na voz de Chico Buarque; Pedaço de Mim, com vocais
de Chico Buarque e Zizi Possi; e O Meu Amor, cantada, como no espetáculo, por Marieta
Severo e Elba Ramalho. De forma individual, várias canções de Ópera do Malandro seriam
incluídas nos repertórios de shows e discos de diversos outros artistas da MPB.
Em 1986 Ópera do Malandro seria transcodificada para a linguagem do cinema,
num roteiro adaptado por Chico Buarque, Orlando Senna e Ruy Guerra, que também assinaria
a direção do musical.
Para a adaptação cinematográfica, Chico Buarque comporia novas canções como
A volta do malandro, Las muchachas de Copacabana, Hino da repressão, Aquela mulher,
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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Assim, mais do que apresentar à plateia a obra teatral que iriam assistir (ou que
haviam assistido), através das revistas, cumpriam-se outras duas importantes funções.
Primeiramente, o aspecto educativo ligado à formação cultural. Na medida em que a peça
tornava-se um fato gerador e motivador de novos interesses, oferecia-se aos leitores um
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Essa é a Ópera. Não possui heróis, nem heroínas. É a nossa casa vista a partir da lata de
lixo. Essa gente não nos ameaça, mas nos denuncia. Rasga a nossa fantasia. Subverte os
nossos conceitos cartesianamente arrumados. E derruba os estreitos limites de nossa
moral farisaica.
Enquanto houver um só ser humano oprimido, marginalizado, a obra libertadora não
estará completa. A libertação não é só uma questão de modelo político. É sobretudo, uma
questão de qualidade da vida humana - que cada pessoa para viver, em sua existência, a
sua própria essência. Traga o seu binóculo, pois a sua visão talvez já tenha sido encurtada
pela idéia de que, afinal, o malandro é um caso de polícia. E abra os ouvidos e ouça esta
Ópera, o canto de uma parcela do povo, a mais espoliada, que soa uma sirene de alarme
dentro da noite em que vivemos.
Desta forma, estes artigos provocavam uma leitura mais crítica e reflexiva do
espetáculo e, provavelmente, reforçavam as mensagens de libertação que Ópera do Malandro,
última peça teatral de Chico Buarque, procurava despertar.
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Capa da revista Ópera do Malandro - edição paulistana - 1979; Acervo digital Fundação Tom Jobim
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Chico Buarque na histórica Passeata dos 100 Mil – Rio de Janeiro – 1968.
In: http://www.comunistas.spruz.com/blog.htm?b=&tagged=golpe&cachecommand=bypass&pageindex=4
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A
escritura de Ópera do Malandro em 1978 encerra o ciclo de obras
teatrais de Chico Buarque (até o momento da conclusão desta tese, em
setembro de 2012). Como vimos, sua imersão artística como teatrólogo
resumiu-se à criação de apenas cinco peças teatrais, todas criadas durante o obscuro período
da ditadura militar, mais propriamente entre 1967 e 1978, a fase mais radical do regime em
relação aos excessos ditatoriais que mancharam a história do Brasil com violentos e
opressivos anos de imposições, crimes, mentiras e misérias cujos resultados desastrosos ainda
persistem fortemente enraizados na cultura política e social do país.
Chico Buarque abandona o discurso teatral como instrumento de sua manifestação
artística justamente no ano que marcaria oficialmente na história política do país o início do
processo de retomada da vida democrática. Na forma da lei a reconquista das liberdades e dos
direitos civis seria instituída através da Emenda Constitucional nº 11 de 17 de outubro de
1978 que revogou o Ato Institucional nº 5 (AI-5) e os demais atos institucionais que haviam
garantido durante mais de uma década a legalidade para os arbítrios, controles e abusos
ditatoriais.
Derrotado pelas próprias incompetências e pelas fortes pressões sociais que
exigiam a abertura política do país, o regime militar, em meio às crises provocadas por uma
profunda recessão econômica, arrastar-se-ia até 15 de março de 1985 quando finalmente o
último ditador do período, João Baptista de Oliveira Figueiredo, entregaria o desfacelado
poder político a um presidente civil, eleito num traumático, paternalista e democraticamente
pouco legítimo processo de eleição indireta.
A partir de então, o país reaprenderia aos poucos e a duras penas o retorno à vida
democrática como a legítima forma condutora dos destinos da nação.
Longe aqui de alguma pretensa conclusão sobre todas as motivações geradoras da
criação artística, o fato é que na obra buarqueana o teatro representou o meio de comunicação
que ofereceu ao artista a real possibilidade de criação e transmissão de mensagens com os
elementos mais característicos de sua poética voltada à conscientização e ao engajamento
social na luta por uma sociedade livre.
Num tempo em que a soma entre censura, repressão e adesismo resultou no
silêncio quase que absoluto das grandes mídias, o teatro de Chico Buarque destacou-se como
uma das mais importantes manifestações culturais realizadas em busca da liberdade do povo
brasileiro.
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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SCHWARZ, Roberto. O Pai de Família e Outros Estudos. Rio de Janeiro, Paz & Terra, 2000. 2 ed.
SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez, 1996.
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SUASSUNA, Ariano. O Santo e a Porca e o Casamento Suspeitoso. Rio de Janeiro: Ed. José
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TÁVOLA, Artur da. Comunicação é mito – televisão em leitura crítica. Rio de Janeiro: Nova
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VENTURA, Zuenir Carlos. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
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http://www.culturabrasil.pro.br/ditadura.htm. Acesso em: 01/11/2010
http://www.diariosdaditadura.com.br/. Acesso em: 20/07/2010
http://www.gedm.ifcs.ufrj.br/ Acesso em: 08/02/2010
http://especiais.globonews.globo.com/68/ Acesso em: 07/06/2010
http://www.jobim.org/acervo/acervodigital.html. Acesso em: 13/04/2010
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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ANEXOS
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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TABELAS-RESUMO
195 AQUI AS MÚSICAS Apresentação das letras das músicas que serão Nenhuma 6 Páginas
DE VIVA E O apresentadas no II Festival da MPB. Chico
FESTIVAL Buarque aparece apenas como autor de A
BANDA.
197 DISPARADA E Informações sobre as músicas classificadas 1 Foto 2 Páginas
BANDA AS para a final do festival; Destaque de A Banda grande
FAVORITAS. Jair e como uma das favoritas do público.
Chico foram os
grandes do Festival
197 CHICO GALÃ Beleza de Chico Buarque. 1 Foto Nota
pequena
198 Bacana no festival foi Resultado do Festival; Conduta de Chico 1 Foto 2 Páginas
o coleguismo. CHICO Buarque. grande
QUERIA
DISPARADA EM
PRIMEIRO.
198 BANDA Informa que o disco com A Banda já está 1 Foto Nota
AGRADANDO sendo vendido; pequena
199 POR TRÁS DOS Enaltece as qualidades musicais de Chico, 3 fotos: 1 2 Páginas
OLHOS VERDES UM citando os elogios que esse recebeu de Tom pequena e 2
MONTE DE Jobim e Vinícius de Moraes; Valoriza os dotes grandes
TIMIDEZ pessoais, mostra características de seu
temperamento.
200 O DONO DA BANDA Chico Buarque assina contrato com a TV; 1 Foto Nota
pequena
200 Sem título: Sessão Carta de leitora solicitando à revista uma Capa 1 Foto Nota
Intervalo para e uma reportagem sobre Chico; A revista pequena
Conversa argumenta que já fez reportagem e que breve
ele será capa;
201 CHICO, O O grande sucesso de Chico Buarque. Alguns Foto de Capa e 3
HERDEIRO DE dados biográficos de Chico; Enaltece seu Capa e 2 páginas
NOEL. Este rapaz é talento e os olhos azuis; É apresentado como fotos
um estouro. herdeiro musical de Noel Rosa. Informações grandes
sobre pessoas importantes da família de
Chico.
204 CHICO É ÍDOLO. Homenagem dos políticos do Paraná e do 1 Foto 1 página
Arquiteto do Samba povo de Curitiba, recebido na cidade como um média
em Curitiba. grande ídolo.
207 PAPAI NOEL NÃO Matéria que pergunta aos ídolos como 1 Foto 3 páginas
ESQUECE OS pretendem passar o natal de 1966. pequena
ÍDOLOS
REVISTA INTERVALO: ANO – 1966. EDIÇÕES: 195 a 207. PERÍODO: 25/09/66 a 31/12/66
Total de edições do período: 14 / Total de edições do período com matérias sobre Chico Buarque: 8
Total de matérias sobre Chico Buarque publicadas no período: 11
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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757 CHICO BUARQUE O Apresenta Chico como um novo ídolo. 1 Foto 2 Páginas
NOVO POETA DO Informações biográficas, análise sobre sua grande
POVO música e suas inspirações. Entrevista com o
artista.
758 CHICO BUARQUE O Constata o grande sucesso da música A 1 Foto 2 Páginas
GENERAL DA BANDA e levanta opiniões sobre esse sucesso grande
BANDA (com fulminante, até então desconhecido na música
chamada na capa) brasileira.
759 SOU APENAS O PAI Entrevista com Sérgio Buarque de Holanda, 1 Foto 2 Página
DE CHICO notória personalidade nos meios intelectuais e pequena
acadêmicos brasileiros. Apresenta dados
biográficos de Chico Buarque.
763 PARA VER CHICO Reportagem comenta o “sucesso fulminante” 1 Foto 3 Páginas
PASSAR de Chico Buarque e dá informações sobre sua grande
presença em Curitiba.
Milhares de
curitibanos encheram
as ruas
764 A FRENTE AMPLA Chico Buarque, Roberto Carlos e Geraldo 2 Fotos:1 3 páginas
DA JOVEM Vandré se entrevistando. O assunto em pauta é foto grande
GUARDA a postura de cada um sobre a música popular e e 1 foto
a carreira. pequena
REVISTA MANCHETE ANO – 1966 EDIÇÕES: 753 a 767 PERÍODO: 24/09/66 A 31/12/66
Total de edições do período: 14 / Total de edições do período com matérias sobre Chico Buarque: 5
Total de matérias sobre Chico Buarque publicadas no período: 5
8 A NOVA ESCOLA DO Grande reportagem de capa sobre os novos Foto de capa 8 páginas
SAMBA músicos da MPB com destaque para Chico e 1 Foto
Buarque, entre outros. grande
9 CHICO DÁ SAMBA Grande reportagem com entrevista. Aborda 5 fotos: 2 7 páginas
os principais aspectos da vida e da pequenas e
personalidade de Chico: biografia, a carreira, 3 grandes
o processo criativo etc.
REVISTA INTERVALO
Matérias sobre Chico Buarque publicadas
no período de 25/09/66 A 31/12/66
Edição 195
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Edição 197
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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Edição 198
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Edição 199
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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Edição 200
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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Edição 201
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Edição 204
Edição 207
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Edição 208
Edição 209
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REVISTA MANCHETE
Matérias sobre Chico Buarque publicadas
no período de 24/09/66 A 31/12/66
Edição 757
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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Edição 758
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
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Edição 759
UM TEATRO EM NOME DA LIBERDADE
Um estudo sobre a dramaturgia de Chico Buarque e suas relações midiáticas
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Edição763
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Edição 764
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REVISTA REALIDADE
Matérias sobre Chico Buarque publicadas
no período de setembro a dezembro de 1966
26-10-1966 autor: Nelson de Almeida. O cantor e compositor Chico Buarque posa com um boneco 'Mug'. Negativo 44985.
Fotograma snº. Formato 6x6 cm..jpg
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