A Reforma Papal (1050-1150) - Leandro Duarte Rust PDF
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SG Studi Gregoriani
11
Sumário
Prefácio......................................................................................................................... 15
Introdução.................................................................................................................... 19
Parte I
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública....... 23
Parte II
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade......... 55
Parte III
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade......................................... 83
Parte IV
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade..................................... 115
Parte V
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo.......................... 147
Parte VI
O sentimento político: sobre linguagem e poder................................................ 177
Posfácio....................................................................................................................... 205
Referências................................................................................................................. 213
13
Prefácio
Brasília, 20 de outubro
de 2013.
18
Introdução
19
pertinência da ideia de Reforma Papal. Para isso, compusemos seis capítulos
que podem ser repartidos em dois conjuntos. Os dois primeiros, intitulados
“A história como reforma” e “A história como revolução”, compõem o primeiro
grupo. Por meio desses textos, buscamos apresentar as duas correntes que
disputam pela definição da ideia de Reforma Papal: o prisma da Reforma
Gregoriana e o da Revolução Papal. Frequentemente, ao usar a expressão que
dá título a este livro, os historiadores aderem a uma dessas duas perspectivas.
Entretanto, ambas partilham de uma mesma característica: a escrita da história
é conduzida por uma reflexão política orientada para a Modernidade. A ênfase
sobre o passado como uma via reformadora e o olhar que o considera um
processo revolucionário têm isto em comum: ambos fazem da historiografia um
exercício de elaboração de uma teoria política. Cada perspectiva formula uma
compreensão sobre quem exerce o poder, como o faz e quais as razões para tal
conduta. Observar as trajetórias seguidas pela Reforma Papal por aqueles dois
caminhos conceituais ajuda-nos a expor esse sentido eminentemente político da
reflexão histórica sobre a Idade Média.
Os quatro capítulos seguintes são exercícios de crítica acerca de
preceitos básicos da Reforma Papal. O primeiro a ser abordado é a sacralidade
atribuída ao Papado reformador. Com base na espiritualidade, os integrantes do
poder pontifício teriam formulado um bem articulado “projeto ou programa
reformador”. Sua experiência religiosa teria sido dominada pela função de
ordenar o convívio social, por uma notável articulação coletiva e um expressivo
consenso entre os integrantes e os colaboradores da suposta monarquia papal.
Tais são os temas debatidos no capítulo 3, “As pegadas do sagrado”.
Outro ponto basilar da Reforma Papal – sustentado pelas correntes
interpretativas estudadas nos primeiros capítulos – é o do suposto surgimento
de uma nova cultura jurídica na segunda metade do século XI. Para implantar o
arrojado “programa de reformas”, os papas teriam investido na criação de novos
recursos institucionais capazes de traduzir suas decisões em intervenções sobre
o cotidiano cristão. Entre esses recursos, estaria o inédito predomínio da norma
escrita sobre as práticas de oralidade e os costumes senhoriais. A Reforma trouxe
consigo um novo direito. Problematizar essa drástica mudança é o objetivo que
define o capítulo 4, “A excomunhão do rei”.
A nítida separação entre os reformadores romanos e aqueles
caracterizados como seus inversos, os “antirreformadores”, é abordada no
capítulo 5, “A maldição do antipapa”. Nesse caso, as páginas foram reservadas
para problematizar como a divisão dos medievais em grupos opostos atende
a exigências do nacionalismo moderno. A argumentação gira em torno do
20
tratamento historiográfico oferecido a um personagem singular, o “antipapa”
Maurício Burdino.
A obra encerra-se com o estudo da linguagem mobilizada por dois
“reformadores” para caracterizar o sentimento de “desejo”. A maneira como
Pedro Damião e Bernardo de Claraval, notórios por seu engajamento no exercício
do poder papal, qualificavam aquele aspecto da natureza humana proporciona
ao historiador uma profícua oportunidade para analisar a complexidade da
linguagem acionada pelos partidários do Papado. Sobretudo, para problematizar
sua recorrente caracterização como discurso moralizador em sentido estrito.
Mesmo nos momentos em que envolvia questões estritamente morais ou
teológicas, os movimentos linguísticos eram orientados por exigências de uma
consciência política. Eis o argumento central do capítulo 6, “O sentimento
político”.
Todos esses textos estão unidos pelo mesmo propósito: auxiliar o leitor
perante os desafios de familiarizar-se com as trajetórias e os limites da ideia de
Reforma Papal.
21
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública
Parte I
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública
essa sugestão, Fliche acreditava ser capaz de ver além das opiniões contraditórias
que povoavam a Sé romana no século XI. A diversidade de julgamento e as
constantes polêmicas que volta e meia surgiam no interior do clero pontifício
eram superficiais, não passavam de ocorrências momentâneas, pontuais. Pois
todas emanavam de uma unidade essencial, da devoção àquele ideal de extinguir
os delitos, reformar os costumes e endireitar as regras morais cristãs. Professado
por todos os integrantes do Papado, esse desejo reformador teria evoluído em
Roma. Lá, uma intensa produção de coleções canônicas e textos doutrinários
o racionalizou, até fazer dele a força que movia uma renovada consciência a
respeito da liderança e dos deveres do clero perante o mundo. Aprimorada ao
longo de anos, essa consciência cresceu pelas mãos de Gregório VII e tornou-
se um ousado programa de correção e aperfeiçoamento da vida em sociedade.
Após a morte do papa, tal programa teria sido adotado como a doutrina político-
religiosa oficial dos homens que se sentavam no trono de São Pedro.
O autor não teve dúvidas: reconhecer a centralidade da Reforma na
experiência dos medievais significava entender “em que medida os eventos
provocaram a formação das teorias e as teorias agiram sobre a marcha dos
eventos.” (FLICHE, 1924, p. vii). Uma nova história era possível e Fliche lançou-
se a escrevê-la. Assim nasceu a obra La Réforme Grégorienne.
26
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública
2 Esse era o nome reservado para um modo de tratar os bens eclesiásticos. Associa-se à figura de
Simão Mago, descrito nos Atos dos Apóstolos (8: 9-24) oferecendo dinheiro a Pedro em troca
de dons espirituais. A tradição cristã designava “simonia” a corrupção moral do clero, não só
por meio de dinheiro, mas também, segundo a formulação do papa Gregório Magno (540-604),
quando a ordenação de um prelado envolvia a concessão de presentes, o pagamento por serviços
prestados ou, simplesmente, favores ou acordos.
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
que isso queria dizer: apenas quando reconhecessem os padres como seus juízes
morais, os laicos respeitariam a exclusividade eclesiástica sobre os ofícios e os
bens que integravam o sacerdócio. Somente desse modo, a fronteira entre os dois
grupos seria restabelecida e a ordem, restaurada.
A Cúria romana deveria assumir as rédeas da autoridade e viabilizar
os meios para uma unidade de ação que alcançasse todos os clérigos e monges e
fosse capaz de submeter todas as igrejas e mosteiros ao governo papal, apartando-
os da tirania das nobrezas. Para emancipar o clero e resgatar o convívio cristão
da anarquia feudal, era preciso centralizar os poderes eclesiásticos e enfrentar
qualquer laico, ainda que se tratasse do imperador em pessoa. A Reforma exigia
um Estado.
3 Período em que as diferenças entre Papado e Império agravaram-se por meio de excomunhões,
declarações mútuas de deposição, expedições militares e conflitos ao longo da Península Italiana
até culminar na tomada de Roma por Henrique IV, seguida pelo exílio e morte de Gregório VII
em 1085.
33
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
5 Escrito por volta do ano 1057 pelo cardeal Humberto de Silva Cândida (1015?-1061), O
Libri tres Adversus Simoniacos é comumente considerado a obra que modelou, em termos
doutrinários, o radicalismo gregoriano perante a investidura de bispos pelos poderes laicos. O
Adversus costuma figurar ainda como uma das fontes formadoras do pensamento e do chamado
“programa reformador” de Gregório VII.
6 O Tractatus pro Clericorum Connubio é usualmente classificado como uma obra “antigregoriana”.
36
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública
uma batalha pela ciência histórica, evocando uma “nova concepção de história,
muito diferente daquela do século passado que não pôde se elevar acima do
horizonte dos fatos.” (FLICHE, 1950, p. 370).
Em segundo lugar, estavam certas lições de método. Desde os
primeiros trabalhos (1915; 1916a; 1916b; 1916c; 1917; 1920), Fliche endossava
a premissa da existência de uma história religiosa como um campo autônomo
de investigações. Mas a irredutibilidade dos fenômenos religiosos – o que
justificava a especificidade daquele domínio de estudos – impunha certas
exigências que La Réforme Grégorienne tornou um pouco mais explícitas. Para
apreender o passado, era preciso articular diferentes tipologias documentais. O
usual recorte monográfico, pelo qual o pesquisador debruçava-se sobre uma
fonte e empreendia a exegese minuciosa do texto ali abrigado, era insuficiente.
O historiador completo era mais que um erudito de manuscritos. Ele deveria
ser capaz de sincronizar os sentidos contidos em fontes diversas, porém coevas.
Por mais que variassem ou divergissem, cartas, tratados, crônicas, diplomas e
penitenciais eram fragmentos desproporcionais de um pensamento em comum.
No entanto, o aspecto sistêmico que os unia não era autoevidente. O historiador
deveria intervir sobre a documentação, manipulá-la por dentro, para, em
seguida, recompor a unidade religiosa que a atravessava como essência interior.
Embora se declarasse em favor da renovação da história eclesiástica – como fez
no artigo Où en est l’histoire ecclésiastique médiévale, orientations et méthodes –,
Fliche contribuiu para colocá-la em transição rumo a um paradigma maior, o da
história religiosa (DURAND, 2009, p. 44).
Ao perceber essas características, talvez possamos compreender melhor
por que La Réforme Grégorienne foi a obra que projetou Augustin Fliche. Antes
dela, seu autor era reconhecido como um dos muitos ex-alunos de Émile Mâle
e Ferdinand Lot, cujo ingresso na universidade de Montpellier em 1919 lhe
rendera artigos bem acolhidos, mas carentes de repercussões duradouras. Depois
de publicar os primeiros volumes da trilogia, laureado com o Prêmio Saintour, o
nome Fliche passou a ser uma referência sem a qual a história religiosa dos séculos
X, XI e XII parecia simplesmente lacunar. Antes de ser concluída, La Réforme
Grégorienne atraiu a atenção de Gustave Glotz, que confiou ao autor daquela
obra a responsabilidade sobre um volume da já célebre coleção editada por ele
sobre história geral. Assim surgiu L’Europe Occidentale de 888 à 1125 (FLICHE,
1930), cuja resenha foi assinada pelo historiador belga François-Louis Ganshof
(1933, p. 1174-1178), autor do volume anterior – Les Destinées de l’Empire en
Occident de 395 à 888. Daqui em diante, a ascensão. Tendo acumulado prestígio,
Fliche diversificou sua pauta de interesses: escreveu sobre história regional,
galicanismo, cruzadas, Inocêncio III, concílios (VIROLLEAUD, 1951).
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A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública
8 Na obra de Knowles e Obolensky, cuja primeira edição data de 1968, encontramos uma avaliação
que retrata o significado assumido pela perspectiva sugerida por Fliche: “O grande movimento
de reforma que se verificou na Igreja ocidental e se estendeu pelo espaço de cem anos, é muitas
vezes deturpado pelos historiadores, e mal compreendido por seus leitores [...]. No passado a
atenção era com frequência dirigida quase exclusivamente para o conflito entre o papado e o
Império, e mais particularmente para um ponto do conflito, a luta das investiduras leigas. Só nos
últimos cinquenta anos é que esta grande polêmica [...] passou a ser encarada mais corretamente
como um dos aspectos de um amplo movimento de reforma moral, disciplinar e administrativa,
que atingiu toda a sociedade, e não apenas o papado e o clero” (KNOWLES; OBOLENSKY,
1972, p. 179).
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
A réplica
“Tampouco podemos superestimá-la.” Concluíam os leitores que
chegavam à linha final de Libertas. Kirche und Weltordnung im Zeitalter des
Investiturstreits, livro escrito por Gerd Tellenbach em 1936. Afinal, ali estava uma
refutação das teses flichianas. Não que a crítica da Reforma Gregoriana tenha
sido o motivo criador daquelas páginas. Porém, mesmo à sombra de outras
prioridades, a réplica era mordaz. Especialmente, porque vinha sob o embalo
da insatisfação inclemente de Erich Gaspar, o erudito alemão que, entre 1920
e 1923, concluiu a primeira edição moderna das epístolas de Gregório VII e a
incorporou à prestigiada coleção Monumenta Germaniae Historica.
Cioso quanto aos olhares acadêmicos lançados sobre o papa, cujas
cartas em latim havia editado, Gaspar (1924, p. 28) acompanhava de perto
seu colega francês: “Augustin Fliche tem publicado uma série de artigos sobre
Gregorio VII durante a [Primeira] Guerra, [...] sua biografia de Gregório VII na
coleção ‘Les Saints’ ainda não está disponível na Alemanha”. Mas não gostava do
que lia. Além de apologético, o autor coroado pela Académie des Inscriptions et
Belles-Lettres pecava pela soberba cega que caracteriza quem se apaixona pelas
próprias ideias. Curta, proclamada em um breve anexo, a sentença de Gaspar
era fulminante: Fliche simplesmente não teria enxergado a luta historicamente
travada entre dois antigos sistemas eclesiásticos, o modelo feudal de igrejas
próprias (Eigenkirche) e o episcopal de igrejas autônomas, pois “ele olhava através
dos olhos de reformador da igreja” (GASPAR, 1924, p. 28). Se não caíssem nas
armadilhas criadas pela familiaridade católica dos argumentos, os historiadores
reconheceriam que o francês buscava um novo polimento para ideias já
enferrujadas: “assim é sua ‘nova’ concepção sobre Gregório VII, [...] [porém]
esse ponto de vista ‘novo’ é basicamente o mesmo e pode ser encontrado no
velho Gfrörer, Fliche aparentemente não sabe.” (GASPAR, 1924, p. 28).
Gaspar, provavelmente, referia-se aos densos volumes de Papst Gregorius
VII und seiner Zeitalter, publicados pelo professor e bibliotecário em Stuttgart,
August Friedrich Gfrörer, entre 1855 e 1861. Se a relação estiver correta, a
opinião fazia mais que contestar o caráter inédito do pensamento flichiano.
Ela o marcava como artigo de antiquário, como produto de uma erudição
conservadora, desbotada em termos políticos e acadêmicos. Esse raciocínio
ganha força quando ouvimos as ressalvas metodológicas de Gaspar (1924, p.
28): “Fliche faz a tentativa de demonstrar [suas ideias] em termos concretos,
compreensíveis em evidências literárias. Mas ele cita exemplos esparsos a partir
das cartas de Gregório VII.” O francês teria escrito uma história conveniente à
Igreja, sacrificando os rigores da ciência histórica.
40
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública
of Reform: its Impact on Christian Thought and Action in the Age of the Fathers,
em 1959.
Para legitimar seu inédito poder, os gregorianos foram levados a
tentar assumir o controle sobre a produção dessa consciência cristã. A ruptura
vivida por Gregório VII foi uma disputa pela memória social. Pressionados,
os reformadores romanos impuseram certa triagem ao registro do passado,
reinventando-o retrospectivamente. Suas narrativas sobre o curso de eventos que
os levaram àquela nova posição política manipularam a forma como o passado e
o presente eram lembrados. Era preciso separar sua trajetória em um “antes” que
exigisse suas drásticas ações e um “depois” que testemunhasse os benefícios de
tal iniciativa. Para isso, o passado assumiu uma reputação denegrida, rebaixado
como período de delitos e mazelas de toda sorte, uma época inadmissível para a
fé cristã. Os reformadores romanos converteram o tempo que os antecedeu em
um passado sombrio que justificava e enaltecia sua polêmica ascensão política.
Os gregorianos manipularam a maneira de lembrar aquilo que havia ocorrido.
Falar em Reforma Gregoriana significava, na imensa maioria dos
casos, reproduzir esse corte memorialista. Afinal, a expressão não nos fala de
“uma” reforma: ela destaca “a” Reforma por excelência. Assim, tal como muitos
medievais, somos convencidos de que o aparecimento de Gregório VII foi
um divisor de águas, um novo começo que alterou todo o estado vigente de
organização da Igreja cristã. Em suma, a perspectiva flichiana costuma fazer
os historiadores assumirem, de modo acrítico, o ponto de vista criado pelos
ocupantes da cúpula papal em fins do século XI para justificar suas atitudes
como o “novo começo” de tudo (HOWE, 2005, p. 21-35).
A explicação da dramática ascensão do Papado durante as décadas de
1050 e 1080 estava longe de ser esgotada. Havia muito a ser descoberto. Apesar
de toda tinta vertida em páginas e mais páginas de monografias e teses, os
historiadores ainda tateavam os diversos fatores da vida política daquele tempo
que se amalgamaram para formar o momento crítico em que governou Gregório
VII. Era preciso reabrir a história.
O outono de um conceito
Embora aquartelada nas historiografias francesa e ibérica, a Reforma
Gregoriana passou a ser alvo de intenso revisionismo. A perspectiva de Fliche
ganhava popularidade, alcançando um público cada vez maior de historiadores,
teólogos, filósofos, religiosos. O sucesso, entretanto, atraía olhares para o
conceito e, com eles, mais críticas. Reposicionado no cenário acadêmico, o
“momento gregoriano” despertou novos interesses, multiplicando as pesquisas
44
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública
por perguntar por que este epitheton ornans não é concedido aos
imperadores imediatamente anteriores a este período. Este ponto
de vista, que vê o Papado como um mero “Papado Reformador”,
restringiria seus objetivos à remoção de certos males e abusos: o
Papado da segunda metade do século XI realmente não almejava
nada mais alto do que um fim estéril e negativo?
VII teria sido o reformador completo, e qualquer atuação pelas causas da Igreja
cristã entre 1050 e 1150 deveria ser medida e avaliada à luz do que ele havia feito
e pensado. Longe de ser mera semântica ou uma simples escolha de palavras, o
emprego do adjetivo “gregoriana” implicava juízos de valor e tornava a mente
dos historiadores receptiva a comparações anacrônicas. Isso acarretava sérias
consequências para a explicação histórica: a biografia papal predefinia as formas
de periodização, encorajava leituras teleológicas, quando não determinava a
ordem das causalidades.
Com a figura do papa removida do centro da história, as dimensões
da Reforma, até então ofuscadas pelo protagonismo de Gregório, revelaram seus
contornos. O esforço para “religar a história da instituição eclesial à história
geral das formas e estruturas de poder no interior da Cristandade dos séculos
XI e XII” (TOUBERT, 2002, p. 1434) rendia frutos. Ficava cada vez mais nítido
que a visada dos historiadores em relação aos movimentos de reforma concebia
as formas institucionalizadas de ação como os fatores historicamente centrais.
Entretanto, advertiu Giles Constable (1996, p. 86-87), seria mais próximo das
realidades da vida medieval pensar segundo um modelo diferente, que fosse
capaz de captar a vasta variedade de experiências religiosas e a legítima aceitação
social de uma diversidade de condutas e normas.
O Papado não foi um “foco” reformador, como algum ponto de
origem a partir do qual uma nova religiosidade era propagada para o restante
da cristandade. Aquilo que nos habituamos a nomear como “reforma” era um
descentrado processo histórico, coextensivo a todo o tecido social: “antes de existir
um centro, havia a reforma, embora local, popular, confusa, frequentemente
desorganizada e sujeita a uma variedade de usos por diferentes facções e grupos.”
(HOWE, 1997, p. 160).
Ambientados ao novo modo de pensar o passado, os historiadores
investiram contra outro símbolo da Reforma Gregoriana: o “partido reformador
romano”. Não era possível continuar admitindo sua existência como um grupo
político-religioso singular. Aquilo que era atribuído aos gregorianos como
marca distintiva de sua identidade institucional podia facilmente ser encontrado
noutros círculos eclesiásticos, inclusive entre os que se aliaram às campanhas
antigregorianas de Henrique IV. Se o combate à simonia definia a lealdade a
Gregório VII, como explicar que o arcebispo Gilberto de Ravena, intransigente
perante qualquer acusação de simonia, não tenha assumido a causa gregoriana?
Se a intransigência com o casamento eclesiástico era um dos aspectos que
mantinha unido o clero papal, por que os cardeais Hugo Cândido e Beno
desertaram da Cúria papal, já que partilhavam da mesma repulsa? Os grupos
formados ao redor de Gregório e Henrique não eram blocos separados por
48
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública
54
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade
Parte II
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade
10 O autor, por sinal, possuía uma clara definição para o termo revolução: “Uma revolução,
portanto, é o mais importante fato para a compreensão, porque ela retira nossas mentes dos
trilhos. Por definição, uma revolução munda o processo mental do homem.” (Rosenstock-
Huessy, 2001, p. 17).
57
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
Desterrados do tempo
11 Como vimos no capítulo anterior, embora La Réforme Grégorienne tenha sido um ponto de
culminância de perspectivas oitocentistas, resumindo um legado historiográfico deixado pelo
século XIX, sua abordagem caracterizava-se por características cada vez mais valorizadas
na primeira metade do século XX como traços distintivos de uma “Nova História”: a longa
duração processual e a síntese histórica. A nosso ver, a proeminência de tais características
permitiu a incorporação do conceito a concepções de história que proclamavam a ruptura com
a historiografia do Oitocentos, caso dos Annales.
59
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
64
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade
A sina da crise
13 Conf. ainda os estudos de Arnold (1991, p. 67-72), Freedman (1999, p. 178-180) e Reuter (1979,
p. 295-305).
14 Mediada pelo peso das ações militares, a relação entre a ascensão de grupos “não livres” e
a produção da literatura polemista ocorre de forma direta no pensamento de Karl Leyser:
“A sociedade mudou ao se tornar maior e mais diversificada. O ‘laboratores’, as fileiras mais
baixas da sociedade rural, foram classificados de maneira complexa. Livres e não-livres se
fundiram ou, ao menos, eram muitas vezes difíceis de distinguir. Os dependentes agrários
ingressaram nos horizontes do pensamento de seus senhores como nunca antes. [...] Mesmo
os ‘milites’ deviam frequentemente ser recrutados desta reserva de potencial humano. Em
uma emergência, príncipes e nobres não podiam se permitir ser muito exigentes sobre as
origens sociais de seus guerreiros. [...] De mãos dadas com as operações militares, durante os
anos 1080, ocorria um grande diálogo de escritos em potencial; igualmente revolucionário
em sua densidade.” (LEYSER, 1994, p. 13-14).
67
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
15 Tendo em vista o vocabulário incorporado por Moore na confecção do próprio texto, bem
como as citações e referências recorrentes, destacamos – além da importância seminal de
Georges Duby – os seguintes autores como influência do medievalismo francês sobre sua obra:
Fossier (1982), Bonnassie (1975), Toubert (1973), Poly e Bournazel (1980).
70
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade
por parte dos grupos rurais. A distinção de papéis entre os exploradores fez-se
urgente para as comunidades agrárias: separar os senhores de castelos em clérigos
e laicos, marcá-los em funções diferenciadas, era crucial para clarear a ordem da
vida, normalizá-la impondo limites aos apetites de exploração – especialmente
daqueles que deveriam viver para os bens espirituais, desapegados das riquezas
deste mundo. Com isso, as multidões da economia rural passaram a reconhecer
direitos de posse, propriedade e cobrança quando exercidos mediante a adesão a
certos códigos de conduta e de moral sexual (MOORE, 1998, p. 179-208; 1992,
p. 308-326).
Embora lideradas por uma instituição, como o Papado, as reformas
religiosas eram linguagens da veloz ascensão social do populus fidelis. Afinal,
“nada mais expressa claramente o caráter revolucionário do pontificado de
Gregório VII que sua disposição para invocar a opinião e a pressão populares
contra a hierarquia sobre a qual ele mesmo presidia” (MOORE, 2000, p. 14).16
Sitiadas pelo clamor que ecoava em campo aberto, as instituições clericais –
entre as quais estava a Sé romana – passaram a renegociar as formas de viver o
sagrado. A Revolução Feudal produziu um Papado revolucionário.
Pelos olhos de Moore, as reformas do século XI não apenas deixavam
de eclodir de pontos específicos – para se tornarem um espectro de fenômenos
sociais –, como não mais poderiam caber na moldura de “assuntos clericais”. Cada
ação gregoriana era movida por forças subterrâneas e coletivas. A condenação
do casamento clerical por Nicolau II (1010-1061) encontrava eco na expectativa
socialmente difusa de que o celibato fosse uma referência particularmente
eficaz para clarear e fortalecer os laços de parentesco nas comunidades cristãs
(MOORE, 2000, p. 15, 88).
Quando cruzou montanhas para dedicar igrejas aos santos por meio
de liturgias espetaculares, Leão IX fez mais do que consagrar o patrimônio
eclesiástico e declará-lo inviolável como se o vestisse com couraças celestiais. Suas
viagens atraíam uma crescente expectativa social em relação ao sagrado, tentando
saciá-la em fontes específicas: os ritos, os altares e as relíquias autorizados pelo
clero (MOORE, 1997; 2000, p. 14, 124). Ao pregar a primeira cruzada no vale
16 O esclarecimento da frase por Moore (2000, p. 14-15) é crucial e não deve ser deixado de
lado: “Estas frases não implicam, em si mesmas, que Gregório VII chamou as massas à revolta.
Quando se dirigia ‘ao povo’ de uma diocese ele tinha em mente a aristocracia local, e ‘fideles’ no
contexto destas cartas é geralmente tomado em um sentido secular para significar detentores
de terras, que representavam a sociedade respeitável mais do que a população como um todo.
Todavia, é suficientemente claro que tais apelos possam ter levado a isso, e que os Patarinos
também se denominassem ‘fideles’ implica ao menos um grau de descuido por parte de Gregório
[...]”
72
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade
17 Ver ainda Moore (1984a, p. 47-68; 1997, p. 16-25, p. 19, 23, 64).
73
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
20 Ver capítulo 4.
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A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade
de revelar imbricação onde antes via-se a dicotomia entre clérigos e laicos são
algumas das contribuições de autores como Moore. Mas, no que diz respeito à
Revolução Papal, a força interna do conceito persistia a mesma, magnetizando
nossa compreensão com a certeza da incompatibilidade sociológica entre o
predomínio aristocrático e o dinamismo político ocidental. A multidão entrou
em cena para atuar como a protagonista que as elites feudais, a priori, eram
incapazes de ser.
das entranhas do arcaico corpo de poderes feudais, era caracterizado ainda por
um novo sentido de tempo histórico, “incluindo os conceitos de modernidade
e progresso” (BERMAN, 1983, p. 107). O texto apresenta uma frase capaz de
resumir toda a argumentação com a feroz clareza de uma revelação: “a auto-
consciência corporativa do clero poderia ser chamada de ‘consciência de classe’
nos dias de hoje” (BERMAN, 1983, p. 107).
Energizado pela Revolução, calejado pelo enfrentamento com o
status quo dos reis e dos nobres, esse senso de unidade corporativa cresceu sem
cessar. Em poucos anos, atingiu a magnitude de uma certeza inegociável, um
reto princípio que passou a pulsar no espírito gregoriano como missão de vida:
cabia aos clérigos garantir que seu entendimento sobre os assuntos terrenos
fosse reconhecido como a verdade a respeito dos homens e do mundo. A
consciência de classe engendrou sua ideologia, o pensamento reformador. Eis
o repertório de ideias que unificou o clero pontifício. Os projetos da Reforma
abafaram suas rivalidades internas ao convencê-los de que ali, entre eles, estavam
os defensores dos únicos valores universalmente válidos (MARX; ENGELS,
2007, p. 50), os guardiães dos interesses verdadeiramente comuns aos cristãos.
Quem desconhecia sua palavra vivia em desordem e erro. Quem a desobedecia
desgraçava sua existência em pecados, à sombra da perdição.
Por isso, os gregorianos elaboraram um instrumento capaz de instruir
todos os fiéis, educando-os na verdadeira gramática de sua vida terrena: a lei
canônica. Positivada como texto, ela passou a fundar a existência coletiva.
Reconhecida como uma espécie de arca da verdade, proclamada como enunciado
autoexplicativo, a lei sancionada pelos sucessores do “primeiro apóstolo” foi
convertida no principal meio de “regulação das relações sociais” e estabelecimento
de “formas deliberadas e programáticas de justiça e paz” (BERMAN, 1983, p.
107, 118). Celebrada no altar de magníficos concílios, compilada como sagrada
doutrina em volumosas coleções, a lei canônica ritualizou o espírito de mudança,
como se canonizasse a certeza de que o convívio cristão era mutável e que, de
tempos em tempos, devia ser ajustado. A religião assentou a consciência do
tempo no cerne dos sistemas legais ocidentais (BERMAN, 1993).
O direito canônico temporalizou os gregorianos. Graças a ele, ganhou
vida um novo entendimento sobre a sociedade, no seio do qual a veneração pela
imobilidade da tradição passou a ser balanceada pela “preocupação com o futuro
das instituições” então existentes. O convívio cristão passou a ser considerado
algo dinâmico, desafiando a visão vigente, “relativamente estática” (BERMAN,
1983, p. 112). Por certo, as cartas ditadas pelos líderes da Revolução Papal não
revelam o desejo de inaugurar o novo ou algo radicalmente outro, mas o intuito
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
de restaurar a sociedade: “Gregório VII, assim como Cromwell, alegava que não
estava inovando, mas restaurando antigas liberdades” (BERMAN, 1983, p. 112).
Contudo, adverte Berman, não devemos deixar-nos levar pela ênfase
ideológica, a qual oculta a realidade que a fundamenta precisamente quando
revela verdades com obstinação. Afinal, a mesma tradição exaltada pela
linguagem reformadora só poderia ser estabelecida por meio da superação do
passado imediato, que permanece atado ao horizonte do vivido como “costume”.
Exaltando remotas origens patrísticas, os gregorianos condenavam os costumes
feudais e a memória dos últimos mortos. Por essa razão, eles se opuseram ao
único passado vivenciado pela esmagadora maioria de seus contemporâneos. Em
uma sociedade tradicional – em que a lei prevalecente é aquela que se reconhece
como habitual –, a ruptura drástica surge quando se semeia a discórdia entre a
autoridade e o costume, como fez o papa Gregório VII, para quem “Cristo disse
‘Eu sou a verdade’. Ele não disse ‘Eu sou o costume’” (BERMAN, 1983, p. 112-
113).
Da liturgia à propriedade episcopal, dos sacramentos aos
procedimentos de justiça, a religiosidade gregoriana deslocou o modo de vida das
comunidades cristãs, desencaixou-o de sua antiga estabilidade. A fé reformadora
deixou os tradicionais padrões de conduta desnudos de legitimidade. Para
restaurar a ordem, os integrantes do Papado tentaram vestir a sociedade com
a extensa e sofisticada cultura das normas que cerziam na corte dos papas,
nas escolas catedrais, nas audiências públicas. A lei escrita tornou-se o ponto
de equilíbrio para as divergências sociais provocadas pelo clero em busca de
autonomia. A Revolução deixou um legado de tensões entre os valores seculares
e espirituais. Contudo, foi dela que a sociedade medieval herdou as instituições
legais e governamentais capazes de solucionar tais tensões e balancear as duas
esferas – a eclesiástica e a laica – no interior de um mesmo sistema de poder
(BERMAN, 1983, p. 115). Passo a passo, as ideias de Harold Berman (1983, p.
113) caminharam para um desfecho inevitável: “a Revolução Papal deu à luz o
moderno Estado ocidental – do qual o primeiro exemplo foi, paradoxalmente,
a própria igreja”.
Profundamente influenciado pela famosa “biografia do homem
ocidental” escrita por Eugen Rosenstock-Huessy (1993) em 1939, Harold Berman
fez da Revolução Papal um episódio capaz de unificar a história. Características
que marcariam a organização social de um gigantesco leque de nações,
esparramadas pelas mais diferentes regiões da Modernidade capitalista, estavam
contidas na política protagonizada pelos papas do século XI: o predomínio
da lei escrita na racionalização da interação social, a centralização do poder,
80
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade
82
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
Parte III
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
As pegadas do sagrado:
o político como religiosidade
trágica do pecado e uma fé triunfante teria sido capaz de capturar tudo, dos
gestos às coisas, e integrá-los conforme uma ordem religiosa já conhecida.
Nessa espiritualidade superordenadora, nada teria havido de precário. Nenhum
desencontro duradouro ou desencaixe ruidoso teria persistido em seu interior.
Partilhada dentro do Papado medieval, ela simplesmente parece não ter ficado
face a face com o risco da refutação empírica ou de cair em uma situação
marginal. Os historiadores discordavam sobre o processo que havia levado a sua
vitória sobre o mundo social, mas ninguém ousou duvidar de seu triunfo.
O sagrado teria proporcionado aos integrantes da Sé romana uma visão
estruturante sobre as identidades e as relações coletivas. Com olhos elevados
para as coisas santas, os partidários de Leão IX ou de Gregório VII teriam
pensado e agido sempre com a finalidade intrínseca de separar os vivos por
meio da oposição entre o profano e o sagrado. Eles teriam vivido a religião como
portadora de uma lógica separatista, orientada para distinguir os laicos, que se
dedicavam a atividades pecaminosas, manchadas pelo profano, dos clérigos, os
únicos verdadeiramente autorizados a manejar os rituais e as fórmulas capazes
de apagar aquelas máculas. A religião tornou-se o filtro do conjunto social.
Totalizar e separar para então mediar. Essa teria sido a lógica
fundamental para a união dos gregorianos. O que os levava a destacar pessoas,
lugares e objetos como sagrados não era uma intenção de isolá-los, como se os
desejassem inacessíveis, distantes do toque dos demais. A cúpula papal protegia o
sagrado para assegurar que ele chegasse ao profano sem ser corrompido. Somente
os sacerdotes, instruídos no domínio ritual e na exegese oficial da sacra escritura,
auxiliares escolhidos por Cristo, poderiam manejar aquela energia terrível e
avassaladora, dosando sua presença no interior das comunidades. Atentos à
vida secular, os reformadores teriam desejado santificar a existência comum
subordinando-a à liderança clerical. A insubstituível mediação sacramental
teria sido o fundamento da superioridade eclesiástica sobre os demais poderes e
instâncias sociais. Estaríamos diante, portanto, de uma tentativa de monopolizar
a gestão do sagrado.
Reformador ou revolucionário, o discurso do poder pontifício
teria sido constituído, a partir de 1050, por essas características essenciais: a
capacidade totalizadora de converter a sociedade em seu campo de atuação; a
eficácia simbólica para integrar as ocorrências do mundo aos preceitos religiosos;
a orientação para uma dicotomia mediada entre clérigos e laicos. Lancemos um
olhar um pouco mais detido sobre o tema.
86
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
O labirinto do sagrado
21 Além de ter frequentado Roma entre 1078 e 1085, Bernoldo conhecia o Liber Ad Amicum
escrito por Bonizo, bispo de Sutri que, meses antes do cerco aqui relatado, fora capturado pelas
tropas de Henrique IV, permanecendo em cativeiro por quatro anos, experiência que marcou
profundamente sua versão dos fatos. Sobre a prisão de Bonizo ver ainda: Benzo de Alba. Ad
Heinricum IV imperatorem libri VII. MGH SS 11: 664; Bernoldo de Constance. Chronicon. MGH
SS 5: 437. Conf. também: Robinson (2004a, p. 59), Weinfurter (1999, p. 131-158), Eads (2003,
p. 355-388).
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
89
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
23 “Interea Dominus Magnum miraculum in Regis et omnium oculis fecit: quo cognito, multi eum
reliquerunt. Nam post excommunicationis diem, Paschalis dici solemnitate, cum regio apparatus
et comitatu pompaticae multitudinis, ad Ecclesiam, divinitus sibi clausam, venire nequaquam
abhorruit. Jussu itaque Regis quidam Episcopus si fas est, imo haereticus et Simoniacus, ad Missae
se praeparavit officium. Tandem perlecto Evangelio ex more facturus popularem sermonem
Pontifex idem, pulpitum conscendit. Parum autem de tractatu locutus Evangelico, statim se ad
blasphemiam Papae Gregorii caeco corde menteque vesana prorupit, quae pro nimio sui horrore
silentio praeterire complacuit. Difficile est enim ut bene sibi conscientium probitatem, obtrectantium
lingua non mordeat, et iniquorum evadat opprobria, cui est amica justitia. Verumtamen eadem
blasphemia qualis in oculis Domini fuerit, continuo sequens ultio, si perpendatur, innotescit.
Nam Paschalis diei gaudio nondum finito, subito coelum fragore intonuit, in quo ignis descendere
coelitus visus est; qui omnem illam ecclesiam, omneque domos regali receptui praeparatas,
repente consumpsit, et laetitiam profanorum in moerorem commutavit: Episcopum vero illum
blasphemum, subito percussum, divina ultio interemit. Se aatequam vitam penitur exhaleret,
ministros suo exitio praeparatos, quales essent, compulsus est dicere: Video me, inquit, igneis
loris astrictum, tetris trahentibus imaginibus ex hac vita convelli: sed tamen ite, et dicite Regi ut
flagitium, quod in Deum, et B. Petru, ejusdem Vicarium commisit, emendet; ne me praeeuntem ad
inferi loca sequatur; et haec dicens, exspiravit. Hoc exemplo commoniti, hortamur et obsecramos
omnem hominem linguis, si mavult consortium habere cum Gregorio in ressurrectione vitae, quam
cum detrahentibus supplicium subire.” (PAULO DE BERNRIED. S. Gregorii VII papae vita. PL,
v. 148, col. 76B-77A).
24 “Apud Traiectum tex pascha egit, collectis undecumque illuc non parvis suae rebelionis et
inoboedientiae complicibus. Ibi tunc aecclesia, quam episcopus jam diu maximis inpensis et studii
construxerat, a Deo et Sanco Petro despecta, igne ultore mirabiliter conflagravit.” (BERTHOLDO.
Annales. MGH SS 5, p. 283).
90
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
25 “Studio partim regis multa in iniuriam Romani pontificis omnibus pene diebus solemnibus
inter missarum solemnia rabido ore declarabat [...] adulterum et pseudoapostolum appelans
[...] sanctissimo et apostolicarum virtutum viro, graves contumelias, sciens et prudens innocenti,
irrogasset.” (LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH SS 5, p. 244).
26 “Percursus est enim a Deo plaga insanabili, ita ut cum horrore et stupore mirabili clamaret: ardeo,
ardeo quia corpus vivificat, incendium illi poenamque pariebat, quo exarserat in eo sicut ignis in
spinis, ut manifesta in eo fieret ultio Domini [...]. Miseram vitam miserabili morte finivit.” (HUGO
DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8, p. 458-459). Hugo de Flavigny data o sínodo de Utrecht
em 1080.
91
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
27 “Illa quoque visio non indigna commemoratione videtur, qua dilectus Deo et hominis, benedictae
memoriae Adalbertus monachus, et ipse contumelias et terrores ab adversariis Gregorii nostri
propter obedientiam decretorum ejus passus, eamdem Herlucam vidisse referebat de quodam
Nicolaita, qui carnalibus desideriis inserviens ecclesiam illam contaminaverat, quae est in loco
qui dicitur Rota. In illa namque confinia, hoc est in confinio Noricorum et Alamannorum quos
Lycus fluvius disterminat, non procul destinabat mansiones ejusdem venerandi senis et beatae
Virginis, multumque se invicem in Christo diligebant, quia excellentem Dei gratiam in se mutuo
recognoscebant. Ita ergo dilectus dedilecta narrabat. Beata Herluca inter socias virgines et viduas
quadam die ex more sedebat, et operi manuum juxta consuetudinem suam diligenter incumbebat;
cum ecce subito per fenestram prospiciens, miserabiliter lamentari coepit et vociferari dicens: Vae,
vae! Melius homini illi erat, si natus non fuisset. Cumque nimis attonita quaedam illustris femina,
nomine Hadewiga, interrogasset eam quidam vidisset, unde tantum commota fuisset? Mortuus
est, inquit, infelix Presbyter illud de Rota, et anima ejus ab angelis Sathanae sublata portatur ad
inferna: vidi enim eos praetereuntes cum insultatione, et animam comitantem cum ejulatione. Illa
optante hoc verum non esse, Mittatur, inquit, qui veritatem inquirat. Missus nuntius familiam
lugentem invenit; et eadem hora comperit mortuum, qua beata Virgo spiritum ejus viderat a
malignis spiritibus asportatum.” (PAULO DE BERNRIED. S. Gregorii VII papae vita. PL, v. 148,
col. 78B/C).
92
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
espirituais – celestiais para uns, infernais para outros. Séculos depois, por
exemplo, nas distantes décadas de 1550 e 1560, protestantes como John Foxe
(1517-1587) e Matthias Flacius (1520-1575) redigiram relatos sobre como o
líder medieval era capaz de lançar labaredas pelas mangas das roupas e abrigar
uma hoste inteira de demônios na biblioteca. Por volta de “fins do século
XVI, a imagem de Gregório como mago e necromante havia se tornado bem
estabelecida em histórias evangélicas sobre o Papado” (PARISH, 2005, p. 137).
Provavelmente, o “papa diabólico” imaginado pelos quinhentistas foi inspirado
em registros do século XI, uma vez que conhecemos as acusações de homicídio e
de necromancia disseminadas por Guido de Osnabrück, no Liber de Controversia
de Hildebrandi et Heinrici (1085), e pelo episcopado imperial reunido no sínodo
de Brixen, em junho de 1080.28
A Santa Sé não deixou por menos. Por decisão de Gregório XIII (1502-
1583), toda a cristandade deveria aceitar seu predecessor homônimo como
santo. Pois a santidade era a única explicação para o corpo do papa exilado
por Henrique IV continuar intacto. Era uma iniciativa marcante. O fim de um
silêncio incomum para a Igreja católica: durante 65 anos, entre 1523 e 1588,
ninguém foi elevado à santidade pela Cúria. A declaração da santidade papal
faria parte da ofensiva romana pela reconquista do sagrado. Em 1588, Diego
de Alcalá foi proclamado santo; Jacinto de Odrovaz, em 1594; em 1606, foi a
vez de Raimundo de Peñaforte ser inscrito no rol celestial; em1606, Gregório.
Um século depois, a definição do dia 25 de maio como data universal da “Festa
de São Gregório VII”, obra de Bento XIII em 1728, consagraria a identidade do
pontífice medieval mais venerado entre os católicos (CHADWICK, 1981, p. 294).
A santificação papal repercutiria na historiografia moderna: as principais fontes
documentais empregadas pela Cúria para embasar o processo de canonização
seriam consagradas pelos historiadores como os registros escritos mais valiosos
da época, caso do Liber ad Amicum de Bonizo de Sutri (1045?-1091?).
Os apelos gregorianos ao sagrado formam um espectro de referências
documentais de notável complexidade. Outro bom exemplo pode ser encontrado
entre os registros do Concílio romano de 1078. Durante as deliberações, o papa
solicitou que fossem examinadas as notícias de milagres ocorridos nos túmulos
de Cêncio (?-1077?) e Erlembaldo (?-1075). Ambos eram laicos. Segundo muitos
historiadores, essa era uma condição social incomum para um santo no século
XI. Ser laico bloqueava o caminho que levava à santidade, pois assim eram
identificados os supostos inimigos da liberdade da igreja (VAUCHEZ, 1991;
2009; STRICKLAND, 2007; WEINSTEIN; BELL, 1982).
O primeiro era um aristocrata local, quer havia herdado do pai,
João Tionísio, o disputado título de prefeito de Roma. Nos últimos dez anos, a
linhagem de Cêncio tinha se revelado uma aliada insubstituível da autoridade
romana. Não só pela lealdade, mas, principalmente, por manter o governo
citadino longe das mãos dos Stephani, proeminente família local declaradamente
hostil à Cúria. Em 1073, quando rumores espalharam pelas vielas de Roma que
o prefeito pensava em renunciar ao mundo e ingressar em um monastério,
Gregório reagiu com veemência: a vida contemplativa permaneceria um
propósito fora de lugar para Cêncio enquanto suas ações fossem necessárias no
comando da cidade (COWDREY, 1998, p. 326-328). Tendo desistido da ideia,
o aristocrata apoiou o papa incansavelmente, até o verão de 1077, quando seus
rivais emboscaram-no. O destino do Stephani que o matou foi trágico. Acabou
arrastado para fora da fortaleza da família e linchado pelos romanos. Cêncio,
por sua vez, foi sepultado em mármore no interior da basílica de São Pedro. Aos
prelados reunidos no concílio, Gregório afirmou que seu antigo prefeito havia
sido coroado com o martírio por Cristo, que “notabilizou seu sepulcro com vinte
milagres enumerados e aprovados” 29 pela assembleia clerical.
O segundo a ter sua santidade examinada era uma figura ainda mais
controversa. Erlembaldo era cavaleiro e herdou do irmão, Landulfo, a liderança
dos patarinos – grupo de milaneses condenados como hereges e excomungados
pelo episcopado da Lombardia em 1057.30 Desde então, muito havia acontecido.
Enquanto as relações entre o Papado e o bispo de Milão tinham se deteriorado
em compasso acelerado, Erlembaldo manteve a postura de advogado da
subordinação do clero ambrosiano ao primado apostólico. Na batalha travada
entre Roma e Milão pela sujeição hierárquica desta última, o cavaleiro milanês
declarou-se a favor da superioridade romana. As provas de lealdade renderam-
lhe a guarda do “estandarte de São de Pedro” e a honra de defensor de todo
o patrimônio papal, símbolos da estreita aliança mantida com Alexandre II
(1015?-1073).
29 “Dominus noster Jesus Christus martyrio coronavit, eiusque sepulchrum continuo viginti
miraculis, in Synodo numeratis et probatis, illustravit.” (PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii
VII papae. PL 148, p. 83B).
32 Para as condenações de Berengário nos concílios de Roma (1050), Vercelli (1051) e novamente
Roma (1059 e 1079), consultar Vita Leonis IX Papae. PL 143, p. 490-495; Gregório vii. Das
Register. MGH Epp. Sel. 6, p. 425-429; Hugo de Flavigny. Chronico. MGH SS 8, p. 443; Mansi 19,
p. 759- 770, 773-774, 900; MANSI 20, p. 516-526.
95
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
para a consternação de todos, quem aí era batizado não recebia a bênção com
o crisma, pois o óleo da unção era impuro, já que havia sido consagrado por
Mezzabarba. Ao agir assim, os vallombrosianos demonstravam que a ordenação
do bispo era nula: ele era incapaz de transmitir a graça divina àquilo que
consagrava (D’ACUNTO, 1993, p. 290-301).
A questão passou a causar grande comoção nos citadinos. Os monges
evocavam os laicos, rogando-lhes que também vigiassem o cumprimento
sacerdotal dos preceitos de uma vida apostólica. Cada vez mais inflamadas, as
pregações não cessavam. Nem mesmo quando chegou de Roma uma ordem
expressa que proibia os beneditinos de deixar a clausura para proclamar a palavra
em meio aos fiéis (JL 4552). A verve monástica não cedeu sequer com a chegada
do cardeal Pedro Damião (1007-1072?). Investido da missão de pôr um fim à
luta, Damião acolheu as denúncias, porém com visível antipatia pela escolha
dos beneditinos de invocar o “povo florentino” (populus florentinus) como juiz
da moralidade clerical. Mezzabarba, por sua vez, retaliava. Enviou homens
armados à abadia para capturar João Gualberto, o fundador de Vallombrosa.
O rapto falhou. Apesar da destruição levada à casa dos religiosos, os cavaleiros
retornaram sem o líder monástico. O bispo, então, foi mais longe e empenhou
a própria fortuna para consolidar a fundação de um monastério que rivalizasse
com o prestígio espiritual de seus acusadores (DAMERON, 1991; JESTICE,
1997, p. 233-243; CORNELL; ZORZI, 2000).
Tendo obtido entre os laicos e uma boa parte do clero de Florença a
aprovação para que o impasse fosse julgado em Roma, os monges viajaram ao
Lácio, onde se ofereceram para provar a justiça de suas acusações por meio de um
ordálio do fogo. No entanto, não encontraram os aliados esperados. Alexandre
II proibiu a prova corporal.35 Diante do parecer desfavorável do pontífice, a
situação dos monges complicou-se. A Cúria não via com bons olhos aquela
flagrante desobediência hierárquica e considerava a conduta dos beneditinos
um exemplo inaceitável de desacato à autoridade episcopal. Além disso, era
impossível julgar a questão sem levar em conta o interesse demonstrado por duas
figuras: Rainaldo (?-1075?), bispo de Como, e Godofredo (997?-1069), duque
da Lorena. O primeiro compareceu ao concílio e descarregou a indignação
do episcopado lombardo perante o extremismo daqueles monges. Quanto ao
segundo, basta isso: Godofredo sustentava o bispo florentino e Alexandre devia-
lhe seu pontificado (D’ACUNTO, 1993, p. 288-303).
Os vallombrosianos chegaram às colinas romanas como defensores
da fé cristã e estavam prestes a deixá-las como transgressores da boa ordem da
Igreja. Seu temor deve ter crescido quando Pedro Damião tomou a palavra. O
cardeal foi implacável:
Agora me dirijo aos meus irmãos monges, com quem, acredito,
esta disputa começou. Eles dizem que bispos como estes são
incapazes de abençoar o crisma, dedicar igrejas, conferir ordens
clericais ou celebrar missas em qualquer momento. [...] É o bispo,
por suas palavras, que conclama o Senhor sobre um homem, mas
é o Senhor que realiza a eficácia da bênção. Portanto, o efeito da
bênção não depende dos méritos do bispo [...]. A Santidade é
odiosa se ela recai em heresia [...]. A pureza excessiva [...] arrasta
para a contaminação na imundície herética. [...] Pois declarar algo
como ilícito, quando ele é permitido, e, ao fazê-lo, vangloriar-se
de serem os defensores da justiça, os levará a serem julgados como
inimigos da Igreja. Podemos adequadamente comparar este tipo
de homem a sapos ou gafanhotos, pois ele agora devasta a Igreja
assim como anteriormente esses animais foram pragas no Egito.36
38 “Cum itaque pene omnes furerent contra monachos et dignos morte iudicarent eos, qui temerarie
contra prelatos ecclesiae armari auderent [...]. Interea suxerrit in concilio quidam vir egregius ex
excellentissimus alter Gamaliel, scilicet Ildebrandus monachus et archidiaconus ecclesiae Romanae,
qui non pedetemptim ratiocinando, sede aperte atque fortissime defendit monachos contra omnium
opinionem.” (ANÔNIMO. Vita Sancti lohannis Gualberti. MGH SS 30/2, p. 1107).
40 A epístola enviada pelos florentinos ao papa, bem como uma detalhada narrativa
de todo o conflito, pode ser encontrada em: André de Strumi. Vita sancti lohannis
Gualberti. MGH SS 30/2, p. 1096-1100. Ver ainda: Annales Altahensis Maiores. MGH
SS rer. Germ. 2, p. 74. Para referência geral ao concílio: Hefele e Leclercq (1912,
4:2, p. 1266); Capitani (1966); Mann (1925, 6, p. 302).
42 Virum religiosissimum. BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1, p. 612; Referência
ainda em: PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii VII papae. PL 148, p. 58.
43 “Ita nimirum a synodo, cui vestrae sanctitatis auctoritas praefuit, contritus nuper et arefactus
abscessi, ut mens mea tot oppressa negociis, more silicis obdurata, nec per imbrem se cumpunctionis
emolliat, nec se quantumlibet super se gratia intimae contemplationis attollat. [...] Quapropter haec
apud me diffinita sententia est, quia de caetero, nisi me necessitas inevitanda compellat, donec
advixero Romanis me conciliis funditus absentabo.” (PEDRO DAMIÃO. Briefe 164. MGH Epp.
4, p. 166-167). Para uma crítica da relação entre Pedro Damião e a Reforma Cristã, ver Bovo
(2012).
100
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
Um pouco de teoria
102
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
103
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
face das tensões e dos riscos impostos pela vida em sociedade. O raciocínio que
se desenha é este: existindo no tempo, a realidade social muda sem cessar; as
mudanças trazem novos riscos e tensões; inéditas, as instabilidades exigem do
sagrado outras respostas.
O acionamento do sagrado é um fenômeno histórico, pois decorre de
combinações mutáveis – porque finitas – entre pressões sociais e possibilidades
simbólicas. Ele é, como frisou Roger Caillois, a resposta eficaz que o devir social
torna reversível, movente. Como propriedade de objetos, seres, lugares ou
períodos, alcança a estabilidade sem escapar à exigência de transformação: “nada
há que não possa tornar-se sua sede e revestir-se assim aos olhos do indivíduo
ou da coletividade de um prestígio sem igual. Nada há, igualmente, que não
possa ver-se desapossado dele. É uma qualidade que as coisas não possuem por
si mesmas.” (CAILLOIS, 1988, p. 20).
Insistamos no argumento: aquilo que é vivido como consagrado
estimula a conduta humana de maneira drástica, como se a eletrificasse. Por meio
da busca ou do temor da eficácia última, o sagrado é experimentado como força
decisiva, uma descarga de pavor e veneração: “é do sagrado, com efeito, que o
crente espera todo o socorro e todo o êxito. Sob a sua forma elementar, o sagrado
representa, acima de tudo, uma energia perigosa, incompreensível, arduamente
manejável, eminentemente eficaz.” (CAILLOIS, 1988, p. 23). Se buscarmos
outra via de conceituação, como a que foi delineada por Rudolf Otto (2007),
reencontraremos o aspecto essencial: o sagrado – que o autor preferiu designar
de numinoso – é o despertar do estado psíquico para a presença da ação eficaz.
A formação luterana levou Otto a ver nessa experiência a origem do sentimento
de criatura. Isto é, a nascente desse assombro que é para o homem a sensação de
estar cercado por uma realidade misteriosa e absoluta. O numinoso repercute a
emoção implacável de perceber-se inferior por inteiro, dependente até a medula
de algo maior, supremo, majestático. Porém, Otto (2007, p. 55) também ressalta
que consagrar é sentir o contato com uma “energia, simbolicamente expressada
na vivacidade, paixão, vontade, força, comoção, excitação, atividade, gana.
Trata-se daquele aspecto que, ao ser experimentado, aciona a psique da pessoa,
nela desperta o zelo”. Parece razoável dizer que o teólogo luterano descreveu
um estado psicológico provocado pela experiência de travar contato com algo
capaz de cortar e separar a linha da vida de uma vez por todas: uma ação que os
homens acreditam – e vivem como – eficaz em termos de vida e morte.
Sacralizar não pressupõe, obrigatoriamente, crer em uma divindade
ou na alma. É um processo que pode ocorrer em desacordo com os limites do
religioso – conforme sustentou Franco Ferrarotti (1983) no instigante Il paradosso
104
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
O sagrado gregoriano
106
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
ressoar uma hegemonia social. Brilha na escrita para ofuscar as marcas da derrota:
sua função é a de reluzir para negar o fracasso. A combatividade gregoriana surge
dominada por um cenário mais fragmentado que o de uma “ideologia da ordem
clerical”, perpassada de ponta a ponta por enfrentamentos imediatos: as batalhas
que a constituem possuem um feitio de rivalidades internas às elites. Sua lógica
está repleta de tensões internobiliárquicas, talvez mesmo intranobiliárquicas, e
apenas secundariamente interclassistas. As histórias que lhe dão vida dramatizam
o universo de uma elite eclesiástica dividida por antagonismos: tal é o caso da
visão atribuída à santa Hérluca, cujo tema é a desobediência do clero diocesano às
decisões do papa. Quando alargamos o escopo de observação, constatamos que
os registros documentais vão além e apresentam cisões em âmbito ainda menor,
a própria cúpula papal. As divergências entre Pedro Damião e Hildebrando a
respeito dos vallombrosianos retratam uma esfera eclesial em que a produção do
consenso esbarrava em graves dificuldades.
Antes de delinear um empenho coletivo para defender a unidade
da Igreja contra as pressões de grupos externos, as narrativas do sagrado
gregoriano testemunham a duradoura realidade de um bispado trespassado por
muitas rivalidades domésticas e pressionado pela concorrência entre facções.
A combatividade resultava de uma política descentrada, em que o poder de
decisão era orientado para interesses locais. As punições divinas relatadas na
documentação expressam o desejo dos gregorianos de encontrar uma solução
eficaz para as desgastantes divergências e hostilidades presentes no interior da
própria elite clerical. Lembrar que a justiça divina nunca falhou em redimir os
homens leais a Gregório e em corrigir seus opositores, por vezes cobrando-lhes
a própria vida, significava preservar uma memória capaz de orientar a adesão
política. As narrativas demonstravam que Deus recompensava quem lutava e
resistia pelo papa.
Esses registros não eram únicos, tampouco excepcionais. Vários
aspectos narrativos que os compunham vinham de séculos antes e podem ser
encontrados numa constelação de relatos espalhados pela imensa geografia do
Ocidente cristão. Não se trata, portanto, de insinuar uma ruptura histórica como
o “nascimento” de uma nova espécie de sensibilidade religiosa. O que propomos
é outra ideia. Os gregorianos distinguiram seu olhar a respeito do sagrado porque
a fragilizada posição da Igreja romana pesou sobre suas experiências, refratando
o modo como vivenciavam as tradições cristãs. Os milagres punitivos, como o
relatado a respeito do bispo de Utrecht, não eram uma novidade do século XI.
Porém, o sentido que lhes foi atribuído era singular: relembrar desfechos que
dessem por encerradas as disputas aristocráticas provocadas pelo poder papal.
107
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
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As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
45 BONIZO DE SUTRI. Liber ad Amicum, MGH SS 9, p. 630- 638. No verão de 1083, Henrique
IV firmou o pacto secreto com uma expressiva parcela da aristocracia romana pelo qual se
comprometia a ser coroado por Gregório ou por outro papa escolhido com seu conselho.
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
Por fim, esse sagrado gregoriano era utópico. Seus relatos projetavam
inversões de estados de força desfavoráveis ao exercício do poder pontifício.
As histórias prodigiosas contadas por Bernoldo de Constance e por Paulo de
Bernried combinavam as duas atitudes de uma razão utópica: a negação do
momento vivido e a promessa de sua superação. Não se tratava de mera fantasia,
de imaginar uma situação irrealizável, a respeito da qual só se poderia especular.
Utópico, aqui, não significa escapismo ou evasão do real. Utilizamos o termo para
dizer precisamente o contrário: a formulação de um desejo aplicado de mudar
as relações coletivas. As narrativas recorriam ao passado para reposicionar
simbolicamente o presente vivenciado pelos autores. Uma vez assegurada a
memória de que as derrotas não foram definitivas, o envolvimento político dos
contemporâneos poderia ser resgatado para novos rumos.
Insistamos: o adjetivo “utópico” não deve remeter, aqui, a uma leitura
presa a sua raiz etimológica, a ideia grega de “não lugar”. Pois designa, acima
de tudo, o empenho simbólico de escritos para reinstalar a Igreja de Roma em
um novo lugar político, no qual a certeza de que as decisões e ações do papa
haviam sido eficazes encorajaria a aceitação e a obediência. Sacamos essa palavra
para destacar como os relatos apresentavam um Papado capaz de ultrapassar
sua condição material: a escassez de recursos, a sufocante resistência senhorial,
os trágicos desastres militares. O profundo sentido existencial que carregava
as histórias de visões e milagres era capaz de persuadir leitores e ouvintes,
convencendo-os a vislumbrar uma realidade vitoriosa por trás da fragilidade
política. Assim, os gregorianos encontraram no sagrado um poderoso estímulo
de mobilização, um recurso privilegiado para angariar o apoio de um bispado
continuamente encurralado por severas restrições de meios de ação. Por meio
daquelas histórias, era possível contestar com eficácia as amargas derrotas
sofridas pela cúpula eclesiástica que defendiam, pois, a seus olhos, a realidade
era outra.
O discurso gregoriano não era soberano. Repleto de apelos por
uma certeza maior que o declínio, quase se pode ouvi-lo ressoar como toque
de recolher para recompor. Sua narrativa é atravessada pela tensão da espera.
Espera pela superação daqueles desfechos trágicos. Espera alimentada pela
certeza dos autores de que a justa autoridade – a pontifícia –, redimida pelos céus,
ressurgiria içada muito acima das pretensões de seus inimigos. As narrativas
visam reverter certas posições, mais que reforçá-las. Desse modo, é preciso
redobrar os cuidados quando se pretende ler esses registros documentais como
uma “ideologia religiosa”. Tal seria o caso, por exemplo, se conduzíssemos seu
exame segundo as coordenadas teóricas de um autor como Maurice Godelier.
111
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
Vejamos.
Segundo o antropólogo francês, “o sagrado é certo tipo de relação
dos homens com a origem das coisas tal que, nessa relação, os homens reais
desaparecem e em seu lugar aparecem seus duplos, os homens imaginários”
(GODELIER, 2001, p. 259). Com base nesse enunciado, o pensamento de
Godelier ramifica-se em muitas direções, gerando uma grande variedade de
desdobramentos e implicações. Porém, tudo depende desta ideia fundamental:
o sagrado é um mecanismo cultural de inversão das relações dos homens com
o mundo. Ao consagrar objetos, seres ou lugares, os sujeitos sociais encobrem o
funcionamento real do que passam a venerar. A produção da crença envolve as
relações sociais de opacidade.
Admirando ou temendo, os homens convertem-se em estrangeiros
da própria humanidade. Pois separam-se de sua própria participação no
aparecimento das coisas e dos fenômenos que consideram divinos, especiais ou
só incomumente poderosos. Do ponto de vista do autor d’O enigma do dom,
sacralizar é recalcar para além da consciência o papel ativo dos homens nas
origens da sociedade: “o sagrado rouba à consciência coletiva e individual algo
do conteúdo das relações sociais.” (GODELIER, 2001, p. 261). O homem deixa
de reconhecer-se como coautor da vida coletiva.
A fórmula é requintada, mas não é nova. O sagrado aliena aquele que
crê ao apagar a presença humana na origem das transformações sociais. Aplicada
às relações de poder, a conclusão remete aos argumentos de Marx e Engels em A
ideologia alemã (2007): como repertório de “falsas impressões” sobre o mundo,
o sagrado desmobiliza, imobiliza. Sua finalidade, por conseguinte, é conservar as
posições sociais, mantendo a desigualdade existente entre elas. Já que “deixa nas
sombras, recalcada em pontos cegos toda uma parte da realidade” (GODELIER,
2001, p. 268-269), o sagrado legitima correlações de forças já estabelecidas.
Assegura o consentimento de quem sofre, mas não desvenda a realidade.
É aí que a conceituação parece não calhar. Os relatos prodigiosos dos
gregorianos não parecem “roubar algo do conteúdo da sociedade”: eles acentuam-
no, potencializam-no precisamente por reabrir as disputas pela legitimidade,
pelo consenso e pela persuasão. O seu caso não era o de homens que “podiam se
reencontrar no sagrado, mas não podiam mais nele reconhecer-se, reconhecer-
se como autor, fabricante, em suma, origem” (GODELIER, 2001, p. 269).46 Sem
dúvida, em suas narrativas, as origens da mudança passavam a ser de outra
ordem, divina ou infernal. Mas o desaparecimento do elemento humano dessa
origem não significava, necessariamente, a diminuição de sua presença ativa no
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A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade
Parte IV
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade
A excomunhão do rei:
o direito canônico e a oralidade
47 “Quod nullum capitulum nullusque liber canonicus habeatur absque illius auctoritate.”
(GREGÓRIO VII. Reg. 2: 55a. MGH. Epp. sel. 1: 205).
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A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade
48 “Reverendae inquam memoriae Gregorium Papam imposuit qui sub decem suis antecessoribus,
a puero Rome nutritus & eruditus, omnes Apostolicas traditiones diligentissime investigavit
investigatas studiosissime in actum referre curavit.” (BERNOLDO DE CONSTANCE. Micrologus
De Ecclesiasticis Observationibus, cap. 14, p. 37).
49 “Hoc tu suptiliter, ut et alia multa perpendens, frequenter a me karitate, quae superat omnia,
postulasti, ut Romanorum pontificum decreta vel gesta percurrens quicquid apostolicae sedis
auctoritati spetialiter competere videretur, hinc inde curiosus excerperem, atque in parvi voluminis
unionem nova compilationis arte conflarem.” PEDRO DAMIÃO. Die Briefe 65. MGH Briefe d. dt.
Kaiserzeit 4:2, p. 229.
119
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
50 “[...] precipue seculares clericos qui per pecuniam ordinati fuerant, durissima severitate
corripiebat, et eos, nisi ordinem sponte desererent, omnino damnabiles et hereticos
asserebat. Qui novam rem audientes, occidere illum moliti sunt. Per totam namque
illam monarchiam usque ad Romualdi tempora, vulgata consuetudine, vix quisquam
noverat symoniacam heresem esse peccatum. Qui dixit eis: ‘Canonum mihi libros afferte,
et utrum vera sint quę dico, vestris attestantibus paginis comprobate’. Quibus itaque
diligenter inspectis, et crimen agnoscunt et errata deplangunt.” (PEDRO DAMIÃO. Vita
beati Romualdi, p. 75).
52 “Synodus Romae [...] a papa Gregorius summo conatu colligitur, ob sedandas quomodolibet tot sine
numero sanctae matris aecclesiae scandalorum presumptuosas inmanitates, (...) rememorandas
observabiles canonicasque sanctorum patrum constitutiones”. (BERTHOLDO. Annales. MGH SS
5: 277).
53 “Sententia anathematis data est in omnes simoniacos et nocolaitas haereticos, qui in erroris sui
secta indurati, synodalibus Sanctorum Patrum definitionibus et decretalibus eorum statuis scienter
inobedientes [...].” PAULO DE BERNRIED. S. Gregorii VII papae vita. PL, vol. 148, p. 55.
120
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade
54 “[...] ob eadem causam speciales litteras cudere bulla nostra impressas collibuit, quarum fultus
auctoritate tutius animosiusque preceptis nostris obtemperares [...].” (GREGÓRIO VII. Epistolas
Vagantes, p. 18-22).
58 “Hec est enim vera penitentia, ut post commissum alicuius gravioris criminis, utpote meditate
homicidii et sponte commissi seu perjurii pro cupiditate honoris aut pecunie facti vel aliorum his
similium, ita se unusquisque ad Deum convertat, ur relictis omnibus iniquitatibus suis deinde
in fructibus bone operationis permaneat. Sic enim Dominus per prophetam docet: “‘si conversus
fuerit impius ab omnibus iniquitatibus suis et custodierit universa mandata mea, vita vivet et non
morietur”. ’. [...] Unde inter omnia vos hortamur atque monemus [...], in quibus nec religiosa vita
nec est consulendi scientia, qui animas hominum magis ad interitum quam ad salutem ducunt
teste Veritate que ait: “‘Si cecus cecum ducat, ambo in foveam cadunt’, sed ad eos, qui religionem
et scripturarum doctrina instructi viam veritatis et salutis vobis ostendere.” (GREGÓRIO VII.
Epístola 14a. Das Register. MGH Epp. Sel., 7, p. 481-482; MANSI, 20, p. 533).
122
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade
59 “Quod praeceptum canonicalis auctoritas & beati Gregorii decreta corroborant”. (MANSI 20, p.
397).
rei Henrique, que não havia recusado o chamado para agir severamente contra
“Hildebrando e seus discípulos, corruptores dos escritos”.61
Os ataques de Beno realçavam ainda mais que o Papado havia assumido
a dianteira na produção e ampliação das fontes textuais do direito canônico. A
Cúria romana ocupou lugar de destaque na sistematização dos procedimentos
jurídicos necessários, sobretudo, ao exercício da função episcopal. É o que
demonstram ainda as compilações realizadas pelos cardeais Atto (Breviarium)
e Deusdedit (Collectio Canonum), além da coleção Diversorum Patrum
Sententiae, conhecida como os “Setenta e quatro títulos” (ASCHERI, 2013, p.
55-69; MELVE, 2007, p. 25-27; ROBINSON, 1978a, p. 39-49). Quando não
abrigava novas obras canônicas, a cúpula papal tornava-se o modelo para sua
elaboração, como no caso da Collection Canonum, a coletânea elaborada pelo
bispo Anselmo de Lucca (1036-1086). A conclusão de Kathleen Cushing (1998,
p. 143) sobre o significado histórico dessa atividade legisladora permanece atual.
Segundo a autora, tais coleções eram obras de cunho político – não simplesmente
“jurídicas”. Integravam exercícios abertos de compreensão dos conflitos sociais;
eram práticas de legitimação de relações sempre cambiantes entre clérigos e
laicos. Por meio delas, eram formulados e repensados ideais sobre a sociedade
cristã e a Igreja.
Porque eram mais complexas que meros conjuntos de prescrições e
regulamentos, tais coleções canônicas proporcionavam fundamentos ideológicos
para as decisões papais. Especialmente aquelas promulgadas em plenários. Um
exemplo são as medidas declaradas em outubro de 1106 pelo concílio de Guastalla,
presidido por Pascoal II (1070-1118). Dos sete cânones então aprovados, um foi
inteiramente dedicado a impedir que os laicos se apoderassem dos bens da Igreja.
Para reforçar a medida, os padres conciliares lembraram que a proibição não era
nova: desde os tempos dos mártires romanos, sabia-se que os laicos não têm
qualquer competência eclesiástica, quer sobre a função sacerdotal, quer sobre
os patrimônios a ela vinculados. Assim atestavam os “escritos do papa mártir
Estevão”.62 Estevão, pontífice morto em 257, era mencionado por Deusdedit
em duas passagens da Collectio: precisamente para fundamentar as noções de
62 “Nullus laicorum ecclesias vel ecclesiarum bona occupet vel disponat. Sicut enim beatus Stephanus
papa martir scribit [...].” (BLUMENTHAL, 1978, p. 69).
124
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade
64 “Si quis clericus, abbas vel monachus per laicos ecclesias obtinuerit, secundum sanctorum
apostolorum canones et Antiocenii concilii capitulum excommunicationi subjaceat.”
(BLUMENTHAL, 1978, p. 69).
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
ter sido obra de Paul Fournier (1917), que identificou na obra reformadora
a inauguração da “idade clássica”, na qual a lei criada no interior da Igreja foi
progressivamente racionalizada e sistematizada até atingir a forma madura de
uma ordem jurídica canônica com o surgimento do ilustre Decreto (Concordia
discordantium canonum) de Graciano, por volta do ano 1140. Daí em diante,
essa ordem expande-se por toda a cristandade mediante a multiplicação das
cortes legais, das escolas citadinas, das magistraturas, até culminar, por volta de
1200, em uma judicialização da vida cotidiana.
Essa periodização mantém-se firme até os dias de hoje. Basta ler
as páginas escritas por um dos principais especialistas em história do direito,
Peter Landau. Segundo o jurista alemão, antes da época gregoriana, a lei era,
principalmente, uma matéria de tradição oral, sem nenhuma forma escrita
permanente. Menos de cem anos depois, já no século XII, as regras eclesiásticas,
em particular, e também a lei secular, dependiam de normas escritas fixas. Essas
leis, segundo Landau (2004, p. 143-144), distinguiram e remodelaram campos
da vida social “que, anteriormente, possuíam uma existência legal rudimentar”.
A conclusão a que chega o autor lembra Harold Berman: “o período entre os
pontificados de Gregório VII e Inocêncio III viu a profissionalização de uma
Europa judiciária”. É essa dicotomia, que estabelece as lógicas jurídicas orais e
as formas legais escritas em campos jurídicos opostos e rivais, que pretendemos
colocar em dúvida a seguir.
67 “Postremo nisi excommunicatos a sua participatione divideret nos nichil aliud de eo iudicare aut
decernere posse nisi quod, separatus ab ecclesia, in excommunicatorum consortio foret cum quibus
ipse potius quam cum Christo partem habere delegeret.” GREGÓRIO VII. Epistolae Vagantes, p.
38.
69 “[...] papam quase simoniacum communi consenso damnaret, eoque deposito [...]”. . HENRIQUE
IV. Epístola a Gregório. MGH Const. 1: 109. BRUNO DE MERSEBURG. De Bello Saxonico.
MGH SS 5: 351.
71 “Beate Petre apostolorum princeps, inclina, quesumus, pias aures tuas nobis et audi me servum
tuum, quem ab infantia nutristi et usque ad hunc diem de manu iniquorum liberasti, qui me
pro tua fidelitate oderunt et odiunt. Tu michi testis es et domina mea mater Dei et beatus Paulus
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A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade
frater tuus inter omnes sanctos, quod tua sancta Romana ecclesia me invitum ad sua gubernacula
traxit et ego non rapina arbitratus sum ad sedem tuam ascendere potiusque volui vitam meam in
peregrinatione finire quam locum tuum pro gloria mundi seculari ingenio arripere. Et ideo ex tua
gratia, non ex meis operibus credo, quod tibi placuit et placet, ut populus christianus tibi specialiter
commissus mihi oboediat specialiter pro vice tua michi commissa. Et michi tua gratia est potestas a
Deo data ligandi atque solvendi in celo et in terra. Hac itaque fiducia fretus pro ecclesie tue honore
et defensione ex parte omnipotentis Dei Patris et Filii et Spiritus sancti per tuam potestatem et
auctoritatem Henirico regi, filio Heinrici imperatoris, qui contra tuam ecclesiam inaudita superbia
insurrexit, totius regni Teutonicorum et Italie gubernacula contradico et omnes christianos a
vinculo iuramenti, quod sibi fecerunt vel facient, absolvo et, ut nullus ei sicut regi serviat, interdico.
Dignum est enim, ut, qui studet honorem ecclesie tue imminuere, ipse honorem amittat, quem
videtur habere. Et quia sicut christianus contempsit oboedire nec ad Deum rediit, quem dimisit
participando excommunicatis meaque monita, que pro sua salute misi, te teste, spernendo seque
ab ecclesia tua temptans eam scindere separando, vinculo eum anathematis vice tua alligo et sic
eum ex fiducia tua alligo et sic eum ex fiducia tua alligo, ut sciant gentes et comprobent, quia tu es
Petrus et super tuam petram filius Dei vivi edificavit ecclesiam suam et porte inferi non prevalebunt
adversus eam.” GREGÓRIO VII. Reg. 3: 10a. MGH Epp. sel. 1: 270-271; MANSI, 20: 467-469.
Como se pode notar, as oscilações de concordância verbal constam do texto latino.
129
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
73 “Legant itaque, quid beatus Petrus in ordinatione sancti Clementis populo christiano preceperit
de eo, quem scirent non habere gratiam pontificis. [...] Considerent, cur Zacharias papa regem
Francorum deposuerit et omnes Francigenas a vinculo iuramenti, quod sibi fecerant, absolverit.
In registro beati Gregorii addiscant, quia in privilegiis, que quibusdam ecclesiis fecit, reges et duces
contra sua dicta venientes non solum excommunicavit sed etiam, ut dignitate careant iudicavit.
Nec pretermittant, quod beatus Ambrosius non solum regem, sed etiam re vera imperatorem
Theodosium moribus et potestate non tantum excommunicavit, sed etiam, ne presumeret in loco
sacerdotum in ecclesia manere, interdixit.” (GREGÓRIO VII. Epístola 02. MGH Epp. sel. 4:294).
75 “[...] quod divina auctoritas doceat, quod decernat, quod consona sanctorum patrum voce iudicet
[...].” (GREGÓRIO VII. Epistolae Vagantes, p. 40).
76 “Quamquam etsi nos, quod Deus auertat, non satis de gravi causa aut minus ordinate eum
huiusmodi vinculo ligaverimus, sicut sanctis patres asserunt, non idcirco spernenda esset sententia,
sed absolutio cum omni humilitate querenda.” (GREGÓRIO VII. Epistolae Vagantes, p. 40).
ao primeiro plano dos assuntos romanos. Porém, cada carta trocada parecia
plantar a semente de um novo desentendimento. A crise avolumava-se. Da
chancelaria romana partiam longos sermões sobre a “língua transitória neste
mundo e as argumentações humanas da nova presunção e inacreditável audácia
da repreensão sobre a celebração da paixão do Senhor com o ázimo”. Os latinos
acreditavam ser preciso opor-se com pulso firme às opiniões que chegavam das
“partes orientais, ou dos próprios gregos, onde diversos erros emergiram ao
longo do tempo para corromper a virgindade da Igreja católica”,78 de acordo com
a epístola a Miguel, patriarca de Constantinopla, compilada por Will (1861, p.
65-85). Por sua vez, os gregos não recuaram um palmo no terreno teológico e
rebateram aquelas tentativas sorrateiras de associá-los à heresia e ao Anticristo.
O studium de Niceia, símbolo inaugural do credo cristão, reagiu à maneira dos
veneráveis padres da época de Constantino I (272-337): publicou um extenso
libelo contra os latinos, revisando seus erros a respeito da Eucaristia.79
Com as discordâncias multiplicadas, Leão despachou um grupo de
legados para o Bósforo. Era janeiro de 1054.80 Entre os homens pessoalmente
encarregados de convencer o imperador da arrogância de Cerulário, estavam o
próprio Humberto; Frederico de Liège, chanceler romano; e Pedro, arcebispo
de Amalfi (?-1063). A amistosa recepção oferecida por Constantino IX por
pouco não foi esquecida. A passagem dos legados seria lembrada pelos debates
insolúveis entre argumentos entrincheirados. Nesse ínterim, o papa faleceu, em
abril. Sem se deixar abater, os enviados de Roma tomaram a medida extrema. Em
16 de julho, no momento em que o clero preparava a basílica de Santa Sofia para
a liturgia do sábado, os legados entraram na igreja. Atraindo todos os olhares,
Humberto atravessou o majestoso átrio e depositou no altar principal a bula de
excomunhão do patriarca e de seus partidários. Eis um trecho:
Que os gloriosos imperadores, clero, senado e povo desta cidade
de Constantinopla, assim como toda a Igreja católica, saibam que
78 O primeiro trecho citado contém pequenas adaptações de: “[...] nova praesumptione, atque
incredibili audacia, nec auditam nec convictam palam damnasse, pro eo máxime quod de azymis
audeat commemorationem Dominicae passionais celebrare [...]. O segundo trecho está contido
em: “Praeterimus nominatum replicare nonaginta et eo amplius haereses ab Orientis partibus,
vel ab ipsis Graecis, diverso tempore ex diverso errore ad corrumpendam virginitatem catholicae
ecclesiae”.
79 O “Libelo contra os latinos dos presbíteros e monges de Niceia” também pode ser consultado
no volume editado por Will (1861, p. 127-136).
81 “Quamobrem cognoscant ante omnia gloriosi imperatores, clerus, senatus et populus hujus
Constantinopolitanæ urbis, et omnis Ecclesia catholica nos hic persensisse magnum unde
vehementer in Domino Gaudemus bonum, et maximum unde miserabiliter contristamur, malum
Nam quantum ad collumnas imperii et honoratos ejus cives sapientes Christianissima et orthodoxa
est civitas. Quantum autem ad Michaelem abusive dictum patriarcham, et ejus stultitiæ fautores,
nimia zizania hæreseon quotidie seminantur in medio ejus. uia sicut Simoniaci donum Dei
vendunt; sicut Valesii hospites suos castrant, et non solum ad clericatum, sed insuper ad episcopatum
promovent; sicut Ariani rebaptizant in nomine sanctæ Trinitatis baptizatos, et maxime Latinos;
sicut Donatistæ affirmant, excerpta Græcorum Ecclesia, Ecclesiam Christi et verum sacrificium
atque baptismum ex toto mundo periisse; sicut Nicolaitæ carnales nuptias concedunt et defendunt
sacri altaris ministris; sicut Severiani maledictam dicunt legem Moysis; sicut Pneumatomachi, vel
Theumachi absciderunt a symbolo Spiritus Sancti processionem a Filio; Sicut Manichæi inter alia,
quodlibet fermentatum fatentur animatum esse; sicut Nazareni carnalem Judæorum munditiam
adeo servant, ut parvulos morientes ante octavum a nativitate diem baptizari contradicant, et
134
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade
mulieres in menstruo vel in partu periclitantes communicari, vel si paganæ baptizari contradicant,
et capilos capitis ac barbæ nutrientes eos, qui comam tondent, et secundum institutionem Romanæ
Ecclesiæ barbas radunt, in communione non recipiant. [...] Unde nos quidem sanctæ primæ
apostolicæ sedis inauditam contumeliam et injuriam non ferentes, catholicamque fidem subrui
multis modis attendentes, auctoritate sanctæ et individuæ Trinitatis atque apostolicæ sedis, cujus
legatione fungimur; et cunctorum orthodoxorum Patrum ex conciliis septem atque totius Ecclesiæ
catholicæ anathemati, quod noster reverendissimus papa itidem Michaeli et suis sequacibus, nisi
resipiscerent, denuntiavit, ita subcribimus.” BULA DE EXCOMUNHÃO CONTRA MIGUEL
CERULÁRIO E SEUS SECTÁRIOS. (WILL, 1861, p. 153-154).
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
desde a infância e até aquele dia o havia livrado das mãos dos iníquos”. Para
expulsar o rei da unidade cristã, Gregório precisou falar e sentir-se ouvido.
Para sentenciar o patriarca da “Nova Roma”, os legados de Leão IX tornaram-se
guardiões e cumpridores da verdade contida em páginas ancestrais. Ao contrário
do que afirmou Walter Ullmann (2003a, p. 148-160) no conhecidíssimo livro A
short history of the papacy in the Middle Ages, a lei canônica não era o único
fundamento para a reivindicação gregoriana de uma jurisdição sobre os assuntos
de toda a Igreja. Para Gregório VII, bastava o poder da voz.
A oralidade textual
83 “[...] generalem conventum omnium regni primatum ipsis supplicantibus habui.” (HENRIQUE
IV. Epístola a Hildebrando. MGH Const. 1, p. 109; BRUNO DE MERSEBURG. De Bello
Saxonico. MGH SS 5, p. 351-352; MANSI 20, p. 471-472).
85 “Quorum sententiae, quia iusta et probabilis coram Deo hominibusque videbatur, ego quoque
assentiens, omne tibi papatus ius, quod habere visus es, abrenuntio, atque ut a sede Urbis [...].”
(HENRIQUE IV. Epístola a Hildebrando. MGH Const. 1, p. 109; BRUNO DE MERSEBURG. De
Bello Saxonico. MGH SS 5, p. 351-352; MANSI 20, p. 471-472).
136
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade
86 “Congregata nanque hoc in anno apud sedem apostolicam synodo, cui nos superna dispensatio
presidere voluit, cui etiam nonnulli tuoroum interfuere fidelium, videntes ordinem Christiane
religione multis iam labefactatum temporibus [...].” (GREGORIO VII. Epístola 10. MGH Epp.
sel. 1:266)
87 “[...] omnibus tamen fidelibus [...] dolendum foret et gemendum [...] cogitandum vobis est, quantum
nunc de irrogata sibi iniuria dolere debeatis. [...] socii passionum efficiamini.” GREGÓRIO VII.
Bula Audistis. MGH Epp. sel, liber III, p. 254-255; Cf. Hugo de Flavigny. Chronicon. MGH SS, t.
VIII, p. 442.
137
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
[...] vós sabeis que não desejava ingressar nas ordens sagradas
e que parti relutante através das montanhas com o senhor
papa Gregório [VI]; contudo, mais relutante retornei com meu
senhor Leão [IX] para sua igreja especial; [...] extremamente
relutante, com grande sofrimento, gemido e pranto, eu, embora
inteiramente indigno, fui colocado em vosso trono.89
88 “Beate Petre princeps apostolorum et tu beate Paule doctor gentium, dignamini, queso, aures vestras
ad me inclinare neque clementer exaudire. Quia veritatis estis discipluli et amatores, adiuvaret,
ut veritatem vobis dicam omni remota falsitate, quam omnino detestamini, ut fratres mei melius
michi adquiescant et sciant et intellegant, quia ex vestra fiducia post Deum et matrem eius semper
virginem Mariam pravis et iniquis resisto, vestris autem fidelibus auxilium presto.” (GREGÓRIO
VII. Registros sinodais. MGH Epp. sel. 7, p. 483-487; HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH
SS 8, p. 451-453; MANSI 20, p. 534-536).
89 “Vos enim scitis, quia non libenter ad sacrum ordinem accessi; et iavitus ultra montes cum domino
papa Gregorio abii, sed magis invitus cum domino meo papa Leone ad vestram specialem ecclesiam
redii, in qua utcunque vobis deservivi; deinde valde invitus cum multo dolore et gemitu ac planctu
in throno vestro valde indignus sum collocatus.” (GREGÓRIO VII. Registros sinodais. MGH Epp.
sel. 7, p. 483-487; HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8, p. 451-453; MANSI 20, p.
534-536).
138
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade
90 ZUMTHOR, 2005.
92 “Ecclesias quippe, ad quas cum rebus suis conservandis terrae inquilini confungerant, miserabiliter
sacrilegi et praesumptuosi incederant, depraedati, sunt; sacerdotes sacris vestibus indutos, seminudos
et miserrime vapulatos proculcaverant; altaria sactorum reliquiis inde ablatis destruxerant; super
ea, quod a paganis inauditum est, cacaverant, carnibus praedae in frusta dilaniatis superinpositis
ea cruentaverant, mulieres quas in aecclesiis ceperant, inpudenter illic velut in prostibulo
constupraverant; stabulum equis et animalibus suis, nec non latrinas in eis erexerant. Mulieres
item ad usque mortem constuprando nonnullas oppresserant; plerasque viriliter tonsuratas ac
vestitas, captivas abduxerant: ligneam Christi crucifixi imaginem apud Altorf, et alibi etiam, capite
manibus et pedibus detruncaverant abscisis.” (BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5, p. 313).
94 Ver também: Leyser (1994, p. 69-70), Cowdrey (1998, p. 182-183) e Robinson (2003, p. 181-
183). O principal relato da batalha é: BRUNO DE MERSEBURG. De Bello Saxonico. MGH SS
5, p. 353.
95 “Tandem, aspirante Deo sicut credo, statui in eadem synodo: in partibus ultramontanis fieri
colloquium, ut illic aut pax statueretur aut, cui amplius justitia faveret, cognosceretur. Ego enim,
sicut vos mihi testes estis patres et domini, usque hodie nullam partem disposui adjuvare nisi
140
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade
eam, cui plus justitia faveret. Et quia putabam, quod injustior pars colloquium nollet fieri, ubi
justitia suum locum servaret, excommunieavi et anathemate alligavi omnes personas sive regis sive
ducis aut episcopi seu alicujus hominis, qui colloquium aliquo ingenio impediret, ut non fieret.”
(GREGÓRIO VII. Registros sinodais. MGH Epp. sel. 7, p. 483-487; HUGO DE FLAVIGNY.
Chronicon. MGH SS 8, p. 451-453; MANSI 20, p. 534-536).
96 “[...] concussi periculo et manifesta perditione Dominici gregis ad sanctorum patrum decreta
doctrinamque recurrimus [...].” (GREGÓRIO. Epístola 10. MGH Epp. sel. 1, p. 266).
palavras escritas no século V pelo papa Leão I (400-461).99 Dias depois, uma
citação do mesmo papa surgiu na carta que recomendava aos bispos toscanos a
restauração do bispo de Siena, injustamente associado a Henrique IV.100
Nada de semelhante há nas excomunhões do rei Henrique. Redigidas
como atos de fala, elas reportam apenas a passagens bíblicas, provavelmente
ditadas de cor. O que não quer dizer que a forma de proceder adotada por
Gregório fosse exceção. Pelo contrário. Ele reproduziu um modo de acionamento
da autoridade que acreditamos ter sido partilhado por diversos integrantes do
Papado. Seu contato com esse modelo de ativação da autoridade era antigo e
remontava à memória do homem que um dia ele chamou de “meu senhor” e
serviu fielmente quando era um modesto capelão romano: o papa Gregório VI
(1000?-1047). Vejamos.
Em 1044, o Papado foi atingido por grave crise. As rivalidades entre
Tusculanos e Crescenzii – duas famílias aristocráticas de imprecisas ramificações
parentais que lutavam pelo controle de Roma – acirraram-se. O conflito provocou
a fuga do pontífice reinante, Bento IX (1012?-1085). Com a Sé romana vaga, um
rival foi aclamado como Silvestre III (1000-1050?). Porém, antes de fugir, Bento
entregou sua dignidade a outro, um presbítero que assumiu o nome apostólico
de Gregório VI. Em poucos meses, o trono de Pedro era reclamado por três
papas. A disputa, todavia, não durou muito, pois todos foram removidos pelo rei
Henrique III pouco antes do Natal de 1046.
Precisamente nesse ponto, a documentação bifurca-se. Uma parcela
das fontes atesta que os três eclesiásticos receberam o mesmo tratamento: foram
depostos como invasores da Igreja romana, os dois últimos no sínodo presidido
por Henrique em Sutri, e o primeiro em um concílio realizado em Roma. Essa
versão é endossada pela Gesta Hamburgensis Ecclesiae Pontificum, pela Chronica
do Analista de Saxo, pelos Annales de Lamberto de Hersfeld, pelo conhecido
De Ordinando Pontifice, entre outros.101 Um segundo conjunto de documentos
insiste que, diferentemente de seus rivais, Gregório VI não teria sido deposto,
mas abdicado. Sua destituição aparece como renúncia voluntária no Liber ad
101 ADÃO DE BREMEN. Gesta Hamburgensis Ecclesiae Pontificum. MGH SS rer. Germ. 2: 148;
ANNALES AUGUSTANI. MGH SS 3, p. 126; ANNALES CORBEIENSES. MGH SS 3, p. 6;
ANNALES ROMANI. MGH SS 5, p. 468-469; ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6, p. 687; DE
ORDINANDO PONTIFICE. MGH Ldl 1, p. 8-14; HERMANO DE REICHENAU. Chronicon.
MGH SS 5, p. 126; LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH SS 5, p. 154. Ver ainda:
GREGOROVIUS, p. 47-57; MANN, 5, p. 238-269; POOLE, 1917, p. 1-30.
142
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade
102 “Ego Gregorius episcopus, servus servorum Dei, propter trupissimam venalitatem symoniace
hereseos, que antiqui hostis versutia mee electioni irrepsit, a Romano episcopatu iudico me
submovendum’. Et adiecit: ‘Placet vobis hoc?’ Et responderunt: ‘Quod tibi placet et nos firmamus’.
” (BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl. 1, p. 586). Outras fontes para a versão
da abdicação: BERNOLDO DE CONSTANCE. Chronicon. MGH SS 5, p. 423; CHRONICA
MONASTERII CASINENSIS. MGH SS 7, p. 682; VÍTOR III. Dialogi. PL 149, p. 1003-1005.
104 “Cui illi respondentes dixerunt: ‘Tu in sinu tuo collige causam tuam, tu proprio ore te iudica’.”
(BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl. 1, p. 585-586).
144
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade
145
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo
Parte V
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo
A maldição do antipapa:
sobre historiografia e nacionalismo
150
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo
105 Na perspectiva então predominante entre os estudos medievais, a Concordata não apenas
assinalava uma mudança política capital, como costumava ser enaltecida como uma das grandes
vitórias da diplomacia papal medieval. Tal era a posição assumida por Hugues (1935, v. 2, p. 292)
e Tellenbach (1959, p. 122-124). Exceção seja feita a Cecka (1934).
151
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
arcebispo ou um líder religioso, mas por ser uma figura conveniente, cooptada
pela nobreza romana para seu jogo de interesses junto ao Império (ERDMANN,
1996, p. 43-66). Ao estudioso, portanto, restaria apenas atribuir o engajamento
do arcebispo de Braga a certos traços de personalidade – ou deveríamos dizer
“falhas de caráter”?
Com isso, a explicação histórica recai na perspectiva insistentemente
cultivada pela própria historiografia eclesiástica desde 1580, quando o cardeal
Cesare Baronio publicou os Annales Ecclesiastici: a deflagração daquela disputa
pela dignidade papal era, acima de tudo, uma corrosão espiritual, um rompante
pecaminoso de ambição, a vã glória provocada por vícios de fé (BARONIO,
1869, t. XVII-XVIII).107
Diante do caso de Burdino, os medievalistas invocam argumentos
proclamados pela memória católica: um falso pontífice é, antes de tudo, um falso
cristão. Talvez isso ajude a compreender a sensação de familiaridade que percorre
a leitura de algo como o Agiologio lusitano dos sanctos e varoens illustres em
virtude do reino de Portugal. Nessas páginas de uma ortodoxia jesuítica, datadas
entre 1647 e 1669, o padre Jorge Cardoso atribuiu o “antipapado” do bracarense à
corrupção da índole espiritual e da obediência hierárquica: “desvanecido com o
favor e graças do imperador Henrique, ele se levantou contra Pascoal II e Gelásio
II, verdadeiros pontífices, [...] aqui teve origem aquele célebre prolóquio entre
os nossos: Bachara voluit esse Romam [Braga deseja ser Roma]” (CARDOSO,
1666, t. III, p. 37). Razões que o secularizado mundo burguês converteria em
falhas pessoais, em um desastrado cálculo de individualismo político. Essa
versão, por sua vez, é encontrada na Storia degli antipapi concluída em 1859 pelo
Monsenhor Daniello Zigarelli, camareiro de Pio IX; bem como na Historia da
Egreja Catholica em Portugal que o presbítero José de Sousa Amado publicou
em 1871.
A presença dessa interpretação nessas obras é o sinal da intercessão
mantida entre a memória clerical católica e a consciência histórica oitocentista:
vinculação maior do que admitiam as “escolas historiográficas científicas”. Mais
de uma década depois, Erdmann desposou novamente tal perspectiva, por meio
da publicação do livro intitulado Maurício Burdino (Gregório VIII), um dos raros
estudos inteiramente dedicados ao antipapa. Sua conclusão é de uma clareza
meridiana:
A vida de Maurício Burdino careceu de humana grandeza e
de idéias diretrizes. Uma situação desagradável que ele, como
107 Ver igualmente: Labbe e Cossart (1671-1672); Hardouin (1714-1715); Anastasio (1754);
Mansi (1758-1798); Rust (2011b, p. 266-292).
158
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo
esse perímetro “local”, eles simplesmente parecem não mais lhes dizer
respeito. Deixam de ser assunto seu. Mas isso porque o raio geográfico dessa
regionalidade aparentemente determina o próprio alcance histórico de ações
sociais e simbólicas vividas por homens e mulheres daqueles séculos. Dito de
outra maneira: essa noção de “regional” funciona como uma verdadeira divisão
sociológica do mundo medieval. Ela aparentemente delimita não apenas uma
espacialização da identidade, mas até onde poderiam chegar as motivações, as
finalidades, enfim, a própria racionalidade dos agentes históricos.
Essa separação surge mantida pela vinculação de uma alegada
unidade territorial a certos polos de autoridade, vislumbrados como autores e
mantenedores da “região”. Trata-se de um jogo de espelho entre o feiticeiro e
seu feitiço: um centro de poder como Braga é vislumbrado como o realizador
histórico de uma regionalidade europeia, mas essa mesma identidade local
que ele constrói delimita a dimensão e a eficácia de suas relações. Com isso,
o postulado de Carl Erdmann pode ser preservado. Afinal, não requer muito
esforço o exercício de demonstrar como tal referência revela-se harmonizada
com suas conclusões. Basta pensar com os termos propostos pelo historiador
germânico: quando tomou parte de questões da autoridade imperial e decidiu
permanecer na Península Itálica, Burdino teria aderido a outro centro de poder
e, por conseguinte, a outra identidade regionalizada. Ele teria cruzado aquela
divisão sociológica, deixando para trás todo seu passado português, local.
Aderindo a uma nova autoridade, o arcebispo fincou raízes numa nova região e,
com ela, numa nova política.
109 Conforme o filósofo: “O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade
que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si para si: esta
unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel.” (HEGEL, 1997, p. 217).
164
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo
da República, à pergunta “o que vem a ser uma nação?”: “vontade coletiva, una
e indivisível do consenso de sua existência coletiva e coexistência orgânica de
todas as suas sinergias”, amalgamadas “em uma consciência de continuidade
histórica, e mesmo de uma missão” (CATROGA, 2010, p. 100).
Quanto ao fato de essa “consciência coletiva” ter sido galvanizada
por uma liderança clerical nos primórdios de sua formação, não havia motivo
para embaraços. Tal aspecto era algo facilmente assimilável a uma concepção
positivista de história. Afinal, ressoando pela cultura jurídica e sociológica
portuguesa das primeiras décadas do século XX, as teorias de Auguste Comte
forneciam o modelo científico de um “plano geral do desenvolvimento histórico”.
Nele, as sociedades partiam de primórdios dominados por aspectos teológicos
e sacerdotais, mas subiam nos ombros do tempo, evoluindo para estágios
superiores, estatais e secularizados (CATROGA, 1977). Se as contestações a tal
“lei do progresso histórico” não eram incomuns, nem por isso eram suficientes
para minar sua influência no ambiente acadêmico – como demonstra a atuação
do círculo historiográfico sediado na Universidade de Coimbra entre as décadas
de 1890 e 1940.
O nacionalismo intelectual lusitano era um ambiente propício ao
florescimento das ideias de Erdmann e do tom hegeliano dado ao papel da
Igreja de Braga na constituição do nascente reino português. Reino que surgia
concebido como Estado no qual a comunidade eclesiástica teria desempenhado
o mais exemplar papel político já concebido pela filosofia de Hegel (1997, p. 236-
243):
Nisto reside uma relação entre o Estado e a comunidade
eclesiástica, que é simples de determinar. Parece pertencer à
natureza das coisas constituir um dever do Estado, assegurar à
comunidade todas as garantias e proteção para que ela realize os
seus fins religiosos. Mais do que isso: sendo a religião o elemento
que melhor assegura a integridade do Estado na profundidade
da consciência, poderá ele reclamar de todos os cidadãos que se
liguem a uma comunidade religiosa, embora não importe qual
[...]. Se a comunidade eclesiástica possui uma propriedade, se
efetua os atos culturais e tem para isso indivíduos a seu serviço,
logo transita do domínio da interioridade para o do mundo e,
portanto, para o do Estado [...]. O cisma das Igrejas não é e nem
foi uma infelicidade para o Estado, que, muito ao contrário, por
intermédio dele pôde vir a ser o que era o seu destino: a razão e a
moralidades conscientes de si mesmas.
165
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
112 “É a liberdade do vazio. Pode ela manifestar-se como uma figura real, e torna-se uma paixão.
Caso se mantenha, então, simplesmente teórica, temos o fanatismo da pura contemplação
hindu; caso de volta para a ação, teremos, tanto em política como em religião, o fanatismo
de destruição de toda a ordem social existente, a excomunhão de todo indivíduo suspeito de
querer uma ordem, o aniquilamento de tudo o que se apresente como uma organização. Só na
destruição esta vontade negativa encontra o sentimento da sua existência. Pensa que quer um
estado positivo, o estado, por exemplo, da igualdade universal ou da vida religiosa universal,
mas não pode querer efetivamente a realidade positiva pois esta sempre introduz uma ordem
qualquer, uma determinação singular das instituições e dos indivíduos, e é, precisamente,
negando esta especificação e determinação objetiva que a liberdade negativa se torna consciente
de si. O que julga querer talvez não seja mais do que uma representação abstrata, a realização
do que julga querer talvez não seja mais do que uma fúria destruidora.” (HEGEL, 1997, p.14).
168
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo
113 O fragmento supracitado parece ser uma ilustração histórica de várias passagens dos princípios
hegelianos da Filosofia do Direito, como esta: “Se o Estado é o espírito objetivo, então só como
membro é que o indivíduo tem objetividade, verdade e moralidade. A associação como tal é o
verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, e o destino dos indivíduos está em participarem numa
vida coletiva; quaisquer outras satisfações, atividades e modalidades têm o seu ponto de partida
e o seu resultado neste ato substancial e universal. Considerada abstratamente, a racionalidade
consiste essencialmente na íntima unidade do universal e do indivíduo e, quanto ao conteúdo no
caso concreto de que aqui se trata, na unidade entre a liberdade objetiva, isto é, entre a vontade
substancial e a liberdade objetiva como consciência individual, e a vontade que procura realizar
os seus fins particulares; quanto à forma, constitui ela, por conseguinte, um comportamento que
se determina segundo as leis e os princípios pensados, isto é, universais.” (HEGEL, 1997, p. 217).
170
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo
Afirma a muita estima que lhe tem e declara não acreditar que
o destinatário fosse anteriormente de opinião adversa. Depois
de o exortar a velar pela igreja de Coimbra, oferece-lhe os seus
bons serviços de papa: se precisar de alguma coisa, que venha
imediatamente a Roma. Que diferença dos manifestos belicosos e
certos da vitória, de Gelásio!
115 “Nós reiteramos, portanto, que a vinculação que nossa experiência de mundo mantém com
a linguagem não significa nenhum perspectivismo excludente; quando conseguimos superar
os preconceitos e as barreiras de nossa experiência atual de mundo e penetrar em universos
de línguas estranhas, isso não significa, de modo algum, que abandonamos ou negamos nosso
próprio mundo. Como viajantes, sempre voltados para casa com novas experiências. Como
andarilhos, que jamais retornam, jamais mergulharemos num total esquecimento. Mesmo
que, na qualidade de mestres de história, tenhamos clareza sobre o condicionamento histórico
de todo nosso pensamento humano sobre o mundo, e portanto também sobre nosso próprio
caráter condicionado, ainda assim não alcançamos uma posição incondicional. Em particular,
a pretensão de essa admissão ser absoluta e incondicionada não refuta a admissão desse
condicionamento fundamental, portanto, não pode ser aplicada a si mesma sem entrar em
contradição. A consciência do condicionamento de modo algum cancela o condicionamento.
[...] Não se trata de relações de juízo que devem ser mantidas livres de contradição, mas de
relações de vida. A constituição de nossas experiências de mundo estruturada na linguagem
está em condições de abarcar as mais diversas relações de vida.” (GADAMER, 2005, p. 578-579).
175
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
e opiniões que são “minhas”. Sem perceber o próprio ser efetivo partilhado
na interpretação histórica, o pesquisador enfrentará muitas dificuldades
para discernir o aparecimento do ser efetivo da história. Como ocorreu com
a historiografia aqui debatida. Sem interrogar a tradição nacionalista que
regia suas antecipações acerca da Idade Média, os historiadores reduziram
radicalmente o estudo das relações entre o Papado e os poderes peninsulares
a fórmulas teleológicas e abstratas de legitimação da ordem estatal moderna,
como os corolários da fundamentação religiosa da unidade nacional e das ações
políticas como realizações de certo conceito de liberdade.
Ao não dimensionar as exigências hermenêuticas impostas por seus
preconceitos, os historiadores simplesmente privaram de historicidade sua
própria ideia de uma civilização medieval cada vez mais repartida por divisas
nacionais. Essa história sempre idêntica a sua existência patriótica moderna
silenciou a possibilidade de diferenças mais profundas. Calou a chance de a
política medieval ter sido mantida por laços estranhos a nossas opiniões correntes,
como certas solidariedades impensadas (por nós), imprevistas, simultaneamente
senhoriais e eclesiásticas, implicadas na reprodução das mesmas estruturas de
dominação social.
Solidariedades que Pierre David talvez tenha vislumbrado por – entre
outras tantas razões possíveis – ter vivido a superação das divisões nacionalistas.
Afinal, sua história era a de um religioso francês, radicado em Cracóvia, onde
se dedicou à história medieval da Polônia. Desterrado em 1940 pelo nazismo,
encontrou refúgio da Segunda Guerra em Portugal. Seu olhar em relação à
Idade Média ganhou forma assim, observando o passado europeu de regiões
que margeavam as potências imperialistas na passagem do século XIX ao XX.
Sua percepção do mundo carregava a experiência de vislumbrar os “centros
ocidentais” a partir das “margens”. O que provavelmente permitiu-lhe acalentar
a inclinação para reconhecer as possibilidades históricas de mobilidade e
integração que superam as bordas territoriais conhecidas como “fronteiras
nacionais”.
Os desafios declarados por historiadores como Pierre David lembram-
nos da vida da própria consciência histórica, de sua contingência, de seu não-
mais-ser, de seus limites e cerceamentos. O “Enigma de Burdino” é, acima de
tudo, um enigma da autorreflexão do historiador.
176
O sentimento político: sobre linguagem e poder
Parte VI
O sentimento político: sobre linguagem e poder
O sentimento político:
sobre linguagem e poder
116 “[...] universalis ecclesia tanquam loetale virus evomuit, ut revera putridum membrum de
propriis visceribus amputavit, in geennalis baratri profunda demersit, et quasi stercus hominum
intra latrine obrutum obstruxit.” (PEDRO DAMIÃO. Die Briefe. MGH Epp. Kaiserzeit, Briefe 4,
p. 68).
117 (PEDRO DAMIÃO. Die Briefe. MGH Epp. Kaiserzeit, Briefe 4, p. 68). Ver estudos de Cenci
(1923; 1924), Cavallari (1965), Capitani (1966, p. 62-139) e Miller (2000, p. 86-121; 1993, p.
73-77).
179
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
118 ANNALES ALTAHENSIS MAIORES. MGH SS rer. Germ. 2, p. 61-62; BENZO DE ALBA.
Ad Heinricum IV imperatorem libri VII. MGH SS 9, p. 618-622; BERTHOLDO. Annales. MGH
SS 5, p. 272; CHRONICA MONASTERII CASINENSIS. MGH. SS 7, p. 711-712; LAMBERTO
DE HERSFELD. Annales. MGH SS 5, p. 154; Liber Pontificalis 2, p. 281; PEDRO DAMIÃO.
Disceptatio Synodalis Inter Regis Advocatum et Romanae Ecclesiae Defensorem. PL 145, p. 67-87.
180
O sentimento político: sobre linguagem e poder
120 Ver ainda: Bynum (1975), Muessig (1998, p. 19-73, 295-350) e Sommerfeldt (2004).
181
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
A espiritualidade do desejo
121 “Nam cum sponte me propriis manibus ante conspectum Domini verbero, devocionis ingenuae
desiderium, si carnifex adsaeviret, ostendo. Quia si pro amore Christi tam dulcis est mihi poena,
cum deest, quam prompto susciperetur animo, si persecutor offerret? Vellem pro Christo subire
martyrium, non habeo cessante stadio facultatem, ipse me verberibus atterens ostendo saltim
ferventis animi voluntatem.” (PEDRO DAMIÃO. Die Briefe. MGH Epp. Kaiserzeit 2, p. 157).
182
O sentimento político: sobre linguagem e poder
122 “[…] mens per estuantis desiderii machinam suspendatur in celum.” (PEDRO DAMIÃO. Die
Briefe. MGH Epp. Kaiserzeit 4, p. 56-57).
123 “[…]... nempe qui idcirco recedit ut avidus requiratur, quonam modo, si abesse nescitur,
quiritur?” (BERNARDO DE CLARAVAL. Sermones in Cantica Canticorum. PL 183: 855).
183
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
dignifica a visitar a alma que o almeja, mas que o almeja com todo o ardor de
seu desejo e amor”.124
Para os destinos da alma, o imprescindível passava pelo desejo, “pois,
conforme os desejos da alma variam, varia igualmente o gosto da presença
divina, e a doçura celeste apetece o paladar da alma segundo as diferentes coisas
que ela deseja”125 (grifo nosso). Os Sermones registram a crença no desejo como
um eco do paraíso que ressoa no íntimo de cada ser. Tomando emprestada uma
expressão de Martha Newman (1996, p. 67-94), podemos dizer que alimentar
o desejo era algo encorajado pela espiritualidade do “cultivo cisterciense da
alma”. Orientado para Deus, sublimado como parte de um exercício espiritual
diferenciado das experiências sensíveis, o desejo adquiriu nova face. Tornou-se
santo:
Deus não é procurado através dos passos dos pés, mas pelo desejo.
E a feliz descoberta [do que é desejado] não cessa o santo desejo,
mas o prolonga. Acaso a consumação das alegrias consome o
desejo? Ela é antes o óleo ainda mais derramado sobre as chamas.
Isto ela é. A alegria será cumprida, mas não haverá fim para o
desejo e, assim, nenhum fim para a busca. (grifo nosso).126
124 “[...] est divina inspectio, eo differentior ab his quo interior, cum per se ipsum dignatur invisere
Deus animam quaerentem se, quae tamen ad quaerendum toto se desiderio et amore devovit.”
(BERNARDO DE CLARAVAL. Sermones in Cantica Canticorum, PL 183, p. 942).
125 “[...] oportet namque pro variis animae desideriis divinae gustum praesentiae variari, et infusum
saporem supernae dulcedinis diversa appetentis animi aliter atque aliter oblectare palatum.”
(Idem, p. 943).
126 “Non pedum passibus, sed desideriis queritur Deus. Et utique non extundit desiderium sanctum
felix inventio, sed extendit. Nunquid consummation gaudii, desiderii consumption est? Oleum
magis est illi: nam ipsum flamma. Sic est. Adimplebitur laetitia; sed desiderii non erit finis, Ac per
hoc nec quaerendi.” (BERNARDO DE CLARAVAL. Sermones in Cantica Canticorum. PL 183, p.
1185). Ver ainda: Casey (1988) e Miquel (1989, p. 137).
184
O sentimento político: sobre linguagem e poder
127 “[...] desiderando, absentia concupiscit. Desiderium ergo quid est, nisi rerum absentium
concupiscentia.” (AGOSTINHO DE HIPONA. Enarrationes in Psalmos. CCSL 39, p. 1688).
128 “Erga peccatum est, factum vel dictum vel concupitum aliquid contra aeternam legem.”
(AGOSTINHO DE HIPONA. Contra Faustum. PL, v. 42, cap. 27, col. 418). Eis outra ilustre
passagem do pensamento agostiniano acerca da definição de pecado: “Donde se segue que
muito bem se pode dizer que todo pecado é mentira, porque o pecado não se comete senão
pela vontade com que queremos que as coisas nos corram bem ou com que não queremos
que nos corram mal” (Unde non frustra dici potest, omne peccatum esse mendacium. Non enim
fit peccatum, nisi ea voluntate, qua volumus ut bene sit nobis, vel nolumus ut male sit nobis)
(AGOSTINHO DE HIPONA. De Civitate Dei. PL 41, p. 407).
186
O sentimento político: sobre linguagem e poder
129 “[...] et quaesivi quid esset iniquitas, et non inveni substantiam, sed a summa substantia, te
Deo, detortae in infima voluntatis perversitatem, projicientis intima sua tumescentis foras.”
(AGOSTINHO DE HIPONA. Confessionum Libri Tredecim. PL 32, p. 744).
130 “[...] umbra tua caro fuit quae nostrarum aestus refrigeravit cupiditatium, quae restrinxit ignes
libidinum, quae avaritiae diversarumque passionum incendia temperavit.” (AMBRÓSIO DE
MILÃO. In Psalmum CXVIII expositio. PL 15 : 1470).
187
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
austero, o texto proclamou como parte vital das ações que reconduzem a Deus
“não satisfazer os desejos da carne, odiar a própria vontade”.131
Podemos dizer que a espiritualidade beneditina inicia-se por uma
ascese do desejo, o qual ela coloca em conflito com as virtudes da obediência
e da humildade. A busca por preencher o mosteiro com um resoluto espírito
de sacrifício, fortalecido pela vida comum, pela constante devoção hierárquica,
pelo silêncio e pela lectio divina (a meditação sobre as Sagradas Escrituras),
transformou as manifestações da vontade – e com elas o desejo – em inimigas
da harmonia e da ordem (DEMOUSTIER, 1989, p. 439-443).
A primeira e última atitude de um monge seria renunciar a si;
desobrigar-se quanto a atender às aptidões pessoais, desinteressar-se pela própria
voz interior. Em uma palavra: morrer para o mundo. Nos termos mais sucintos
utilizados por Jean Leclercq (1982, p. 19): “a ‘intimidade’ do monge é presumida
como uma ‘conversão’ similar à de São Bento, a qual implica uma total renúncia
com a intenção de agradar somente a Deus”. Essa palavra de ordem espiritual
foi conservada pelo monasticismo ocidental, no qual Damião e Bernardo foram
formados.132
É possível identificar na heterogênea tradição letrada cristã sentidos
confluentes. A diversidade de formas latinas empregadas para referir-se ao desejo
– desiderium, cupiditas, libido, appetitus, voluntas – estava frequentemente unida
por uma intercessão semântica: remeter a um movimento interior humano
gerado para preencher uma falta. Eis a ideia de “desejo”.133 Pedro Damião e
Bernardo de Claraval conheciam os ensinamentos que faziam dessa ideia a
referência a um traço humano lamentável.
Porém, seus escritos contribuíram para constituir um universo ético
que transpôs os limites da culpabilização do desejo. Como representantes do
que Evelyn Underhill (2002, p. 458) chamou de “primeira grande corrente do
misticismo medieval”, ambos estimaram-no como a energia vital do ascetismo,
como a força interior que purificava e preparava a alma para a contemplação
da graça divina. Redimindo o ser humano como um “ser de desejo”, Damião e
131 “[...] si propriam quis non amans voluntatem desideria sua non delectetur implere, sed vocem
illam Domini factis imitetur dicentis: Non veni facere voluntatem meam, sed eius qui me misit. /
desideria carnis non efficere, voluntatem propriam odire.”(KARDONG, 1996, p. 130, 80).
133 O argumento – controverso, sem dúvida – mereceria uma consistente análise que ultrapassa os
propósitos deste breve capítulo. Mas essa premissa de que havia, na tradição letrada eclesiástica
medieval, um duradouro núcleo semântico que pode ser designado por “ideia de desejo”
ampara-se ainda nas contribuições oferecidas por Berry e Hayton (2005) e Lombardi (2007).
188
O sentimento político: sobre linguagem e poder
134 “[…] non quod appetitum commodi, si temperatus sit dicam esse culpabilem, aut copiam rerum
sufficientem, aut laetitiam mentis, aut naturalem libertatis amorem, aut eminendi meritum ducam
in crimine: sed nihil istorum quod pollicetur affert. / omnia bona sunt, si eis docente gratia, recte
filius adversus carnem luctans et sanguinem [...], utatur, et eisdem quasi florido, frugifero, et
jucundo induitur vestimento.”. (JOÃO DE SALISBURY. Policraticus sive de nugis curialum et de
vestigiis philosophorum. GILES, 1848, p. 306).
190
O sentimento político: sobre linguagem e poder
135 “Meminisse etiam debet fraternitas tua, quia maior potestas exorciste conceditur, cum spiritualis
imperator ad abiciendos demones constituitur, quam alicui laicorum causa secularis dominationis
tribui possit. Omnibus nempe regibus et principibus terre, qui religiose non vivunt et in actibus suis
Deum ut oportet non metuunt, demones, heu pro dolor, dominantur et misera servitute confunfunt.
Tales enim non divino ducti amore sicut religiosi sacerdotes ad honorem Dei et utilitatem animarum
preesse cupiunt, sed ut intolerabilem superbiam suam ostentent animique libidinem expleant,
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
ceteris dominari affectant. De quibus beatus Augustinus in libro primo de doctrina christiana dicit:
Cum vero etiam eis, qui sibi naturaliter pares sunt, hoc est hominibus, quilibet dominari affectat,
intolerabilis omnino superbia est.” (GREGÓRIO VII. Epístola 21. MGH Epp. sel. 8, p. 555-556).
136 GREGÓRIO MAGNO. Moralium Libri sive Expositio in Librum Beati Job. PL 76, p. 620-621.
192
O sentimento político: sobre linguagem e poder
aos grandes infratores da história da salvação: como Lúcifer, e até mesmo Adão,
o monarca foi apresentado como alguém que vacilou perante um anseio interior
e transgrediu princípios, cedendo a um ímpeto para insubordinar-se contra as
regras estabelecidas por Deus.
A carta papal expressava a imagem de um governante espiritualmente
cego para a verdade fundamental: em muitas ocasiões, tudo o que cabia aos
cristãos era resignar-se a não decidir, a não tomar a iniciativa. Henrique – assim
pensava Gregório – não deveria ter erguido a voz contra o papa. Afinal, um
verdadeiro governante cristão saberia que, após ter sido condenado pelo vigário
de Pedro na terra, toda decisão ficava suspensa, irrealizável. Quando se era alvo
de uma punição anunciada por Roma, simplesmente não havia escolhas ou
opções possíveis. Havia apenas um caminho a ser tomado: acatar a sentença e
justificar-se adequadamente.
Não foi esse o caso protagonizado pelo filho de Henrique III. Ao
contrário, ele agiu de “maneira maligna”, violou a passividade esperada, optou
quando devia resignar-se. Ao invés de obedecer e recuar, ele se conduziu sem
peia, escolheu pela própria vontade, deu ouvidos apenas aos “chamados de seu
desejo”. Aos olhos do pontífice, estava dada a lição: desejando, Henrique IV
tornou-se um embusteiro, inimigo de limites, adversário da correta ordem, um
diabolus. A Corte imperial arrastava toda a Germânia para as trevas ao destilar o
espírito da desobediência (FORSYTH, 1989, p. 4-30).
Memorialistas de Gregório VII expressariam essa mesma opinião por
meio de uma história miraculosa. Em relatos retrospectivos, Donizo, monge de
Canossa, e Paulo, cônego regular de Bernried – biógrafo papal – contam que,
em fevereiro de 1076, após a primeira proclamação do aviso de deposição do rei
chegar à Corte imperial, o papa recebeu a visita de Rolando, bispo de Treviso. O
prelado, que vinha em nome de Henrique, chegou a Roma durante a Quaresma e
encontrou a Igreja local reunida em concílio. Rolando interrompeu o andamento
da tradicional assembleia e comunicou aos presentes os dizeres que carregava
em forma de carta. À medida que sua voz propagava-se pelo interior da basílica,
Gregório ia descobrindo que, reagindo à advertência papal de excomunhão,
Henrique “lhe interditou o exercício do ofício papal e ordenou-lhe que descesse
da Sé [de Roma]”.137
Um clima de consternação trovejou pelo ar, inflamando o ânimo
geral. Segundo a Vita Mathildis e a Vita papae Gregorii VII, no momento em
que essa agitação espalhou-se perigosamente, um estranho ovo de galinha
137 “[...] pontificale ei interdixit officium eique precepit, ut de sede descenderet. (BONIZO DE
SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1, p. 606-607).
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
(gallinae sculptum/gallina ovum) foi levado ao plenário. De sua casca grossa, que
se assemelhava a um escudo excessivamente horrível e sombrio (scuti similitudo
nimio horroe tenebrosa), saiu uma serpente (serpens/colubrum). Movendo-se
com rapidez, ela estendeu-se para o alto após envolver o ovo com três voltas
inteiras. Porém, no instante em que estava prestes a enlaçar-se por completo,
a cobra, como se abatida por um golpe, pendeu a cabeça, dobrando-a sobre o
próprio ventre, reduzida à impotência.138
A serpente é um símbolo ambíguo nas Escrituras cristãs: ora a
encontramos como o resultado da transformação milagrosa do cajado de Moisés
(Ex. 7: 9-15), ora como imagem da punição decorrida do pecado (Mq. 7:17).
Porém, em nossa opinião, a que é mencionada nesse relato evoca um conjunto
de referências bíblicas específicas e coesas. O Livro do Gênesis, a Segunda
Epístola aos Coríntios, o Livro do Apocalipse apresentam a serpente como um
Satã, um adversário (Gn. 3: 1-14; 2Cor. 11:3; Ap. 12: 9-15). Ela nos faz ver um
ser astucioso, que obstruiu e testou Eva no caminho da retidão, convencendo-a
de que Deus mentia a respeito das consequências de comer os frutos da Árvore
do Conhecimento. Ela aparece como um ser ameaçador, maldito mais que toda
fera e mais que todos os animais do campo, estreitamente associado aos pecados
induzidos pela argúcia e insídia.
Nesse conjunto de referências, a serpente é o adversário que se satifaz
em testar as criaturas para apartá-las do Criador. Ela é um diabolus cujo propósito
é sempre ludibriar a humanidade e subjugá-la à morte. No Livro do Apocalipse,
a “antiga serpente” é a imagem daquele que se interpôs no caminho de Cristo e
da salvação, tentando-o por 40 dias no deserto. Ela é o rosto de todo aquele que
cultiva a astúcia sedutora e engana por meio da tentação: foi essa caracterização
que as fontes papistas – a Vita Mathildis e a Vita Gregorii VII – associaram ao rei.
A serpente simbolizava Henrique IV.
Paulo de Bernried, o biógrafo de Gregório, faz a cena que se passou
no concílio de 1076 profetizar eventos da vida do sucessor imperial. Como era
de conhecimento do autor quando redigiu a Vita Gregorii – provavelmente a
partir de meados da década de 1120 –, a excomunhão decretada pelo papa e
aprovada por aquele mesmo concílio fez cambalear a legitimidade de Henrique,
desastrosamente abalada pela revolta da nobreza saxônica. A rebelião encurralou
o monarca precisamente no momento em que ele teria realizado algo que, aos
olhos dos partidários papais, estava “muito acima de suas atribuições”: decretar
a deposição do pontífice. A impotência que se abateu sobre o rei tornou-se
138 DONIZO. Vita Mathildis. MGH SS 12, p. 377-378; PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii VII
papae. PL 148, p. 70. Entre parênteses, estão dispostas as variações de vocábulo das duas versões.
194
O sentimento político: sobre linguagem e poder
139 “[...] foedo ambitu omnia, turbabant et supra ipsa sanctorum corpora civilem libabant sanguinem
dum non possent satiare pecuniarum libidinem.” (GUILHERME DE MALMESBURY. Gesta
Regum Anglorum. In: HARDY, 1840, p. 544-545).
196
O sentimento político: sobre linguagem e poder
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O sentimento político: sobre linguagem e poder
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O sentimento político: sobre linguagem e poder
por sua existência estão crispadas na superfície documental como inflexões que
muitos de nós classificaríamos como teológicas: não como enunciados que nos
lembrem de alguma “teoria política”.
Os pesquisadores que se debruçam sobre o Papado e a Igreja
medievais precisam revisitar uma tradição intelectual taxada de monumentalista
e antiquada: o pensamento de raízes historicistas (HAMILTON, 2002; IGGERS,
1968). Constituído pela intercessão de postulados presentes nos escritos de
Carl Schmitt (2006), Eric Voegelin (2010), Ernst H. Kantorowicz (1998), Karl
Löwith (1967), entre outros, esse descentrado prisma teórico tem sido o anfitrião
de longa data do conceito de teologia política. Embora comporte diversas –
e polêmicas – modalidades de aplicação, tal conceito deposita inegável ênfase
sobre as possibilidades históricas de percepção e atuação políticas em sociedades
dominadas por discursividades teológicas.
A incorporação dessa ideia-chave fornece ferramentas metodológicas
mais eficazes para dimensionar as especificidades da política medieval do que
as indicações fornecidas por autores formados nos quadros da ilustre história
constitucional inglesa, como Robert e Alexander Carlyle (1921), Walter
Ullmann (1949, 2003b), Stanley Chodorow (1972) ou ainda Cary J. Nederman
e Kate Forhan (1993). A influência exercida por essa vertente historiográfica
frequentemente leva o investigador a justapor às percepções medievais do poder
diversas exigências teórico-metodológicas condizentes apenas com referências
atuais.
Referimo-nos, por exemplo, à atitude tácita de pressionar a
documentação para que ela dê provas da existência de uma “teoria política
medieval”, concebida como discurso particularizado em termos morfológicos e
sintáticos, como se o poder fosse pensado como algo em si, realidade autônoma.
Agindo assim, saímos à caça documental de singularidades de uma linguagem
condizente exclusivamente com certos padrões lógicos do pensamento
contemporâneo secularizado. Com isso, passamos a cobrar que os documentos
medievais demonstrem a existência de uma teoria política sistemática,
categorizada. Na escrita dos papistas de 1050-1150, o “poder”, a “autoridade” e
outras relações políticas fundamentais dificilmente figuram como categorias em
si, como conceitos específicos, autorreferenciais.
No que tange ao Papado da Idade Média, a política fazia-se teológica,
a linguagem não se fazia política. São muitas as lições metodológicas a serem
extraídas dessa realidade em que variações de significado emergiam entre
indistinções enunciativas e morfológicas. O pensamento político camufla-se
de epístolas pastorais, opúsculos morais, enredado em páginas sacramentais,
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
enroscado em textos místicos. Irradiado por diversas fontes, ele pode cintilar com
vivacidade, reluzindo complexidade; todavia, por meio de um brilho linguístico
emprestado, deixando o mundo político do Papado medieval transmutado para
os olhos do historiador. O que, todavia, não significa pressupor que a história
política cabe no interior de “semiologias religiosas” que reduzem o poder e a
dominação a efeitos do sagrado (LE GOFF, 1994).
Recusar a premissa da existência de uma teoria política medieval para
o caso aqui analisado não implica admitir que as tramas das ações de poder
pudessem ser contidas nos campos da imagem e das imbricações simbólicas,
como enfatizam os autores (BUCC, 2001, p. 843-883; KELLY; KAPLAN, 1990,
p. 119-150) que, na esteira de Jacques Le Goff, ajustam suas lentes conceituais
para obedecer aos limites das aparelhagens mentais e dos imaginários. Não
devemos tomar o núcleo simbólico das formas de compreensão do mundo como
autorreferenciais. Nos casos aqui discutidos, as fontes falam-nos de “desejo”,
mas significando algo que extrapola o foro da espiritualidade: a luta social pela
autonomia decisória. As relações políticas eram transfiguradas como sagrado,
mas conservavam certas propriedades históricas irredutíveis aos imaginários da
vida coletiva.
Podemos, finalmente, oferecer nova leitura à percepção do “desejo”
exemplificada com os textos de Pedro Damião e Bernardo de Claraval logo nas
primeiras páginas deste texto. Em casos como aqueles, nos quais a linguagem
eclesiástica tradicional era acionada para expressar uma compreensão política,
os agentes históricos não falavam propriamente de sentimentos, de afetos.
Eles antes recorriam a um vocábulo familiar para dar sentido à falta, ao vazio
da autoridade, como aquele que teria sido provocado no interior da Igreja de
Roma por Cádalo de Parma – segundo Damião – ou no claustro por quem se
comportava como mercenário moral e, assim, erguia obstáculos à autoridade do
abade ou prior – como censurou Bernardo.
A utilização da ideia de desejo como algo essencialmente depreciativo
não era uma súbita incoerência ou mesmo um revés que se alojava na crescente
atmosfera intelectual de valorização da ação de desejar. Era o resultado de
uma tensão hermenêutica: da condição de dispor da linguagem eclesiástica
tradicional para conferir sentido a relações políticas novas e desafiadoras. No
bojo dessa tensão, as contradições de poder assumiam a forma de matérias
morais, interiores, sentimentais. E dessa alquimia histórica, muitos protagonistas
da senda política saíam transformados. De tal forma que um prestigiado líder
podia acabar seus dias como o anticristo em pessoa, como amargamente coube
a Cádalo, o velho bispo de Parma.
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
Os textos que integram este livro são inéditos, com exceção de dois, que
constituem a obra como versões revisadas e ampliadas de publicações
anteriores:
Parte III
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
Parte VI
O sentimento político: sobre linguagem e poder
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Sobre o Livro
Capa 32,5 x 22,5cm
Miolo 15,5 x 22,5cm
Tipologia Utilizada Minio Pro
Capa Papel Suprema 250g
Miolo Papel Sulfite 90g