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Santo Agostinho
VOLUMEI
(Livro I a VIII)
s. aEdição
A MANEIRA DE PREFACIO
NOTA BIOGRAFICA SOBRE SANTO AGOSTINHO
TRANSCRIÇÕES
À MANEIRA DE PREFÁCIO
Para fugir ao tédio resultante da inação pus-me há tempos a
ler o De Civitate Dei de Santo Agostinho. Cómecei por curiosi-
dade, continuei com alegria e prazer- e à medida que ía avançando
na leitura, de mim se ia apoderando tal deslumbramento pela beleza
da foima, pelo vigor da expressão, pela variedade e profundidade
dos assuntos na obra tratados, que me decidi a traduzi-la, tanto
mais que não há, que eu saiba, versão portuguesa do livro.
julgo que se pode afirmar sem exagero que se trata de uma
das criações mais representativas do génio humano. Impõem-na à
admirafão geral o seu estila sern igual e ó ittteresst humat~a das
múltiplas matérias tratadas com a profundidade de que só os génios
são capazes. Domina-nos e prende-nos a sua linguagem viva,
directa, por vezes acutilante, em que o sarcasmo tantas vezes cáus-
tico e, tantas outras vezes, a ironia que não desiste mas nunca é
agressiva, se casam (o que só aparentemente é contraditório) com
uma infinita compreensão humana que se não encontra nos impes-
soais autores latinos, twmeadamente tWs clássicos.
Pelo estilo se vê o autor. Estamos em presença de um homem
bem vivo, bem concreto, bem ele próprio, apaixonado. O que tem
por e~emplo, S. Tomás de Aquino, de impessoal, diria de Otmt-
pico, desapaixonado, só cérebro, em que o eu nunca aparece porque
só a verdade interessa- tem Santo Agostinho de paixão, de si
próprio, em que a verdade é esta verdade, a real, a que tWS toca.
Mas tW De Civitate Dei o estilo não é tudo nem mesma o
que mais importa. Embora o Autor se proponha a fazer aquilo a
que hoje chamamos uma filosofia da História (prefiro chamar-lhe
antes uma teologia da História), não se limita a ser um amante da
[3]
sab~::doria, um filósofo, mas .tem Sf?!t!pre presentes as suas preocu-
pações pastorais, nunca se esquecendo do seu «oficio» de bispo. Por
isso, a propósito de filosofta ou teologia da História e por imperativo
pastoral, trata na obra dos mais variados e complexos assuntos,
daqueles assuntos sempre. tratados e sempre retomados porque sem-
pre apaixonaram e torturam o espírito do homem: da origem e subs-
tancialidade do bem e do mal; do pecado, da culpa e da morte; do
direito, das leis e das penas; do tempo e do espaço; da contingência e
da necessidade; da Providência, da acção humana e do fatum no
desenvolvimento da História; do ser, do conhecer e do agir; do
homem, de Deus, da natureza e do espírito; da temporalidade, do
eterno, da perenidade e dos ciclos cósmicos; da profecia e do mistério
como argumento apologético; da pessoa; da cidade e da comunidade
humana.
Se, pelo exposto, se pode tÜzer com Papini que o De Civi-
tate· Dei é uma «floresta», também é certo que, nesta imensa varie-
dade, os assuntos são tratados tão seriamente, tão honestamente, tão
profundamente e com tal vida que, com Bardy, também poderemos
dizer que Santo Agostinho «nunca é banal», nunca cansa, mesmo
quando, contra os hábitos mentais e a disciplina intelectual do
homem dos nossos tempos, não se dá ao cuidado de represar, de
dominar e de disciplinar o ímpeto Jas águas muitas do seu imenso
caudal de pensamento.
Daqui vêm já as primeiras dificuldades para uma boa tradu-
ção. Mas as dificuldades com que esta depara não resultam apenas
da qualidade de est.i/o, da densidade do pensamento, da abundância
e complexidade dos temas; a isto acresce a modelação da frase que já
não obedece aos "Cânones gramaticais dos clássicos; e também o
repetido uso do trocadilho e o jogo de consonância, sem correspon-
dência, evidentemente, no português, dificultam a tradução que
resulta mais débil, mais frouxa, menos precisa e menos graciosa. As
dificuldades tornam-se porém quase insuperáveis perante períodos
extremamente longos, ligados (ou separados) nas suas partes consti-
tutivas por um sem número de vírgulas, pontos e vírgulas, dois
pontos, ou por conjunções a que se dá um valor explicativo (tais
como ramen, verum, etiam, ut) tudo num grande emaranhado
retórico. (Não esqueçamos qu.e Santo Agostinho foi professor de
[4]
retórica e admirador de Ocero). De 11m período temos que formar
vários, num desdobramento sempre subjectivo e que pode quebrar a
unidade de directriz e o rigor do pensamento original; ou então, para
mantermos a unidade e o rigor do pensamento, temos que imprimir-
lhe, na sua e::ipressão gráfica, a aparência de períodos e até de
parágrafos separados por simples virgulas, pontos e virgulas ou dois
pontos, na ânsia de tomar visível a unidade do pensamento na
multiplicidade das suas expressões. No primeiro caso- o de desdo-
bramento em períodos e parágrafos- sujeitame>-nos a cair no perigo
da dispersão e imprecisão em que tantas vezes caem os tradutores
para línguas analíticas, mais pobres de rigor conceituai do que as
línguas sintéticas em que as terminações, nomeadamente os «casos»,
evidenciam a função; tzo segundo caso - o da aparência gráfua de
períodos e parágrafos- espreita-nos o perigo da confusão que pre-
tendíamos evitar.
Concebi este trabalho na alegria, com prazer e com entu-
siasmo; gestei-o na dúvida, no cansaço, tantas vezes tentado a
abandoná-lo- o que só não aa>nteceu mercê do amparo, incita-
mento e ajudJ de tantos e tão bons amigos. É a estes que o dedico
com gratidão a que não falta uma grande dose de remorso.
Se valeu a perta, os leitores o dirão.
De tantos amigos, que só não nomearei a todos para não
alongar ainda tnais este I volume, julgo que é meu dever referir: o
Senhor Arcebispo de Évora, Dom Maurílio de Gouveia, pelo entu-
. siasmo com que recebeu a notícia da gestação desre trabalho de
tradução e por ter posto à minha disposi{ão alguns livros da sua
biblioteca, nomeadamente a Vita Augustini de Possídio, sem os
quais não me seria possível Levar a cabo esta tarefa, e, em especial a
nota biográfica sobre Santo Agostinho; o meu ilustre e exce-
lente amigo Conselheiro Dr. Manso Preto, ao tempo Presidente do
Tribunal da Refilção de E.vora, pois nas muitas horas em que o
cansaço e o desânimo me batiam à porta, como que adivinhando
essas horas más sempre me estendeu a mão amiga e preparou efi-
cazmente o caminho para que a obra chegasse a ver a luz do dia;
e -last but not least- os fllleridos amigos de velluJ data, desde
os tempos de Coimbra, Prof. Doutores Renato Pereira Coelho e
[5)
Henrique Bamlaro Ruas sem os quais a publicação des~ trabalho
não passaria duma vaga aspiração pois a eles devo, não só a cui-
dada, minuciosa e inteligente revisão da tradução- sugerindo
emendas, correcções, aclaramentos- mas também o impulso inicial
e decisivo para a publicação deste que já Santo Agostinho apelidava·
de m.agnum et arduum opus.
JOÃO DIAS PEREIRA
[6]
NOTA BIOGRÁFICA
SOBRE SANTO AGOSTINHO
INFÂNCIA E JUVENTUDE DE AGOSTINHO
1. TERRA NATAL
-:fagasta, a actual Sukh. Ahras 1, na Argélia, perto da
fronteira tunisina, a uns oitenta quilómetros da costa
mediterrânica, é hoje, como já era nos tempos de Agosti-
nho, uma cidadezinha de ruelas estreitas marginadas de
pequenas e alvas casas a brilharem sob o céu limpiqo e o
sol radioso daquela Nwtúdia onde, nos tempos de Mário,
reinou Jugurta e, em tempos mais recuados, imperou, até
à Hispânia, a púnica Cartago.
Contrastando com as suas vizinhas da orla marítima,
como Hipona, a actual Bona, Tagasta- pela verdura dos
seus prados, pela frequência dos seus arroios de cristalinas
águas, pela abundante vegetação, principalmente de carva-
lhos e pinheiros, pela fertilidade dos seus campos cobertos
de douradas searas de trigo, pelas cinzentas chapadas dos
seus olivais interrompidos pelo rubro outoniço dos seus
vinhedos, pela riqueza da sua fauna que fazia as delícias
dos caçadores do javali, da lebre, da perdiz e codorniz,
pela extensão das suas pastagens que alimentavam mansas
manadas de bovfdeos - cohstituía como que um oãsis de
abundância e de frescura.
Foi aí qu~, a 13 de Novembro- itbbus PU!vembribus- 2
do ano de Cristo de 354, nasceu de Patrício e de Mónica
(9)
um menino a quem foi posto o nome de Aurelius Augus-
tinus que viria a passar à posteridade com o nome de
Santo Agostinho.
2. PAIS DE AGOSTINHO
[lO]
Quanto a Mónica, donzela educada severamente por
pais cristãos que se mantiveram católicos durante a tem-
pestade donatista, é possível que tenha sido levada ao
casamento por seus pais e pelos de Patrício, segundo os
costumes da ~poca e da região. Teria ele então cerca de
quarenta anos de idade e ela dezassete ou dezoito.
Deste casamento nasceram Navígio, Agostinho e
uma menina que, quando mulher, veio a presidir a uma
comunidade de religiosas mas de quem nem sequer o
nome conhecemos. ·
Mónica, de coração ardente a contrastar com a sua
compostura austera, era dotada de uma fé inabalável e
duma notável integridade moral que ficou a dever, em
grande parte, talvez mais do que aos próprios pais, à sua
dada 2, velha escrava que já tinha criado seus pais e lhe
contava as mais belas e edificantes histórias quando, em
pequenina, a acompanhava na visita aos Confessores que,
nos cárceres, aguardavam o martírio. Outra extraordinária
mulher de quem também: não conhecemos o nome sequer,
esta modeladora de uma santa. Mónica obedecia-lhe com
amor e veneração, apesar dos rigores excessivos para com
a sua menina, à qual nem sequer deixava beber água fora
das refeições e chegou a alcunhar de bêbeda só porque,
uma vez, à socapa, na adega de seus pais, ela quis provar,
apenas provar, um tudo-nada de vinho.
2-2 Dada (leia-se dàdá), termo carinhoso com que eram tratadas
as escravas incumbidas de vigiar as crianças fslhas dos seus senhores.
[11]
em Constantina, a velha Cirta desses tempos, Ul)S escassos
quilómetros a nascente de Tagasta. Terres de Selei! et de
Sommeil- «terras de sol», de ardências violentas, de pai-
xão; «terras de sono>t de indolência, de expedientes e de
desolação-lhes chamará wn dia Emest Psichary. Terras
onde a lasávia do démon du Miih encontrará ambiente para
se derramar; mas terras também onde o silêncio da alma e
o torpor dos sentidos, a transparência dos céus, a amplidão
das terras e a própria desolação puderam levar este neto
de Renan à presença do Único.
Agostinho não foi logo baptizado. Aliás, era esse o
costume desses tempos. Nwn cálculo nada cristão, os cris-
tãos de então diferiam a recepção do Sacramento, se pos-
sível fosse, para a hora da morte. Gozavam assim, pensa-
vam eles, de dupla vantagem: podiam divertir-se à vontade
~té ao fun e, chegado este, tinham assegu'rada a salvação
pelo baptismo que todos os pecados e suas sequelas apagava
-vida livre, sem peias, sem penitências, sem refrea-
mento, com a bem-aventurança garantida ...
Todavia, Patrício, apesar de pagão - talvez não
muito convencido mas apenas porque se mantinha pagã a
velha aristocracia romana daqueles tempos de Juliano- ,
mandou desde logo inscrever Agostinho no Catecume-
nato, sujeitando-o assim aos ritos de iniciação cristã: na
fronte do menino traçaram o sinal da Cruz e nos lábios
puseram-lhe o simbólico sal da incorruptibilidade. Não
foram porém mais longe; e a Agostinho faltou assim
aquele indelével selo de pureza da alma que o baptismo
imprime e a que o mencionado Ernest Psichary ,. baptizado
em criança por sua avó ortodoxa contra o parecer do avô
Emest Renan e do pai, o sorboniano Jean Psichary, atribui
o regresso «à fé dos avós contra a descrença dos pais».
Todavia, esteve quase a ser baptizado quando, ainda
criança, inesperadamente caiu tão gravemente doente que
se julgou que ia morrer. Ele próprio, que ainda não tinha
idade para os cálculos acima referidos, foi quem pediu que
lhe não diferissem o baptismo. Mas, se na sua alma de
[12)
criança,- na qual, como na de todas as crianças, o pri-
meiro sentimento que claramente se manifesta é, com o da
justiça, o çla religiosidade- , não havia ainda lugar para
cálculos, já o mesmo não acontecia com Patócio, para
quem a ocasião se afigurava para isso a pior: os pagãos,
seguros do apoio e protecção do imperador Juliano,
tornaram-se, apesar da sua manifesta minoria, agressivos e
pretendiam a todo o custo renovar o culto dos deuses,
reabrir os seus templos, recomeçar com as hecatombes dos
sacriflcios. Por sua vez, os Donatistas, que constituíam a
maioria na maior parte das cidades númidas, eram prote-
gidos pelos pagãos, aos quais convinha a discórdia entre os
Cristãos, e formavam tenúveis bandos de fanáticos- os
circumcelliones, «assaltantes de celeiros», como lhes chama-
vam os católicos-, que assaltavam os católicos, e lhes
saqueavam e incendiavam os campos e as vilas, na fúria de
rebaptizarem os que não tinham sido baptizados pelos da
sua seita. Convinha pois não estar de mal com eles. E
assim, à cautela, o baptismo de Agostinho foi protelado;
para quando?
4. PRIMEIRAS LETRAS
[13)
se lhe reconhecer já então uma inteligência muito acima do
comum, esteve longe de ser um aluno excepcional; por
vezes foi mesmo mau aluno, embora muitas outras vezes,
quas~ sempre, em muitas matérias, fosse o primeiro.
Acabados em Tagasta os estudos a que hoje chama-
ríamos primários, ou pouco mais, porque já neles se
aprendia o. grego, que ele aliás detestava, mandaram-no
para Madaura, uns cinquenta· quilómetros mais ao sul. De
maio~ categoria embora, não tinha porém a beleza e a
frescura verdejante de Tagasta esta Madaura perdida na
aridez da planura, a cegar com a luminosidade reflectida
do seu casario branco. Mas tinha o seu encanto esta ardente
terra africana onde Agostinho veio admirar; entre muitas
outras coisas, a estátua levantada em honra de um dos seus
mais ilustres ftlhos- Apuleio 2, o autor do ainda hoje
[14]
apreciado Asno de oiro, o mago que chegou a ser proces-
sado por feitiçaria.
Vivendo agora nwna terra de maioria pagã (sobre-
tudo a aristocracia era pagã), em permanente carnaval
pagão, entregue a wna família pagã amiga de Patrício, e
agora na primeira curva perigosa da vida que é a
adolescência, - não admira que o cristianismo de Agosti-
nho se fosse diluindo na sua alma sequiosa de prazer,
embora nas profundezas do seu coração continuasse bem
gravado wn nome que sempre venerou, o de Cristo.
S. FÉRIAS DE UM ADOLESCENTE
[15)
6. MELHORES TEMPOS. CONVERSÃO DE PATRfCIO ·
[16)
7. EM CARTAGO-O DESLUMBRAMENTO!
[18)
na Numídia. Audazes e pouco escrupulosos, roubavam as
basílicas aos católicos, assaltavam-lhes as casas, incen-
diavam-lhes os haveres. Na mesma cidade, ao lado do
bispo católico, levantava-se, arrogante, o bispo donatista,
dizendo-se mais católico do que o católico.
Por fim o cúmUlo dos males, a seita dos Maniqueus,
que do Cristianismo apenas conservava algumas aparências,
ia estendendo por toda a Africa os seus tentáculos. E o seu
dualismo tornou-se uma constante na História da Eurásia,
onde se infiltrou subtilmente e perdura sob vários nomes
ou sem nome como um vírus latente.
[2ú]
tinho influência benéfica na medida em que lhe chamou a
atenção para assuntos tão sérios e que de tão perto tocam
a ·essência e destino do homem como a imortalidade da
alma. Cícero, que como filósofo, está longe de ser de pri-
meira plana- philosophaster, «filósofo amadon> lhe chamou
ele- tocou-o bem fundo, não só pelo assunto de que
andava distraído, mas talvez também porque a disposição
de espírito com que o leu era então mais propícia.
A leitura do Hortênsio te-lo pensar, avivou-lhe a sau-
dade de wn Cristianismo que se conservava latente no mais
recôndito da sua alma c despertou-lhe o desejo de ler as
Escrituras. Não estava porém espiritualmente preparado
para isso, nem o estilo bíblico directo e despido de ornatos
tão queridos ao retórico era de molde a prendê~lo.
Sem pé em terreno firme, sentindo-se afundar nas
águas revoltas de mil ideia.s inconsistentes, apareceram no
seu caminho os Maniqueus, atribuindo-se, na busca da
verdade, urna posição racionalista que muito era do agrado
de um espírito em busca de certezas como o d~ Agostinho.
E aí o temos pegado a uma doutrina obscura e a urna
prática grosseira, tão distantes da sua lúnpida constituição
espiritual.
[22]
Ao ver o jovem, pediu-lhe que com ela ocupasse o lugar
em que se encontrava.
· Este sonho decidiu-a a chamar o filho que pressuroso
voltou a casa.
Não tardou porém a apoderar-se dele o tédio. A
pequenez de Tagasta, as seduções de Cartago, a mulher
que lá deixara e continuava a amar- tudo isto o afastava
da terra onde nascera.
E uma vez mais apareceu Romaniano a arcar com as
despesas de deslocação para Cartago.
(26]
NO CORAÇÃO DO IMPÉRIO
1. ROMA AURATA 1
11
' Roma áourada.
{2?]
ao convívio de todos depois de totalmente desinfectados
em estufas apropriadas.
Também Agostinho adoeceu gravemente pouco
depois de ter chegado a Roina. Teve porém a sorte de ser
recolhido pela ahna compadecida de wn irmão maniqueu,
que o não abandonou na doença.
[29)
ouvia respeitosamente. Era homem que, apesar da sua
delicadeza e modéstia, não receava Súnaco, a quem levou
de vencida em algumas decisões de Estado. Este prestígio
de Ambrósio, a atmosfera de disciplina e ordem católica
de Milão, onde não havia donatistas nem Maniqueus, nem
drcumcelliones, nem dmwlitores, causaram grata impressão a
Agostinho. Todavia, o seu primeiro encontro com
Ambrósio decepcionou-o. É de crer que a severa delica-
deza de Ambrósio tenha ferido a vaidade do retórico, que
esperava talvez uma recepção mais efusiva, de igual para
igual.
Todavia, ficou a admirá-lo. Não deixava de ir ouvir
as suas homilias. Apreciava o método claro e ordenado da
exposição, bem como o estilo castigado deste Ciceroniano
que com mestria decalcou, até no título, uma das suas
obras sobre o De Officiis 1 de Ocero. Passou depois a sabo-
rear o conteúdo das homilias, a admirar a sublime simpli-
cidade e racionalidade do Cristianismo, tanto quanto lhe
ia repugnando a confusão, inconsistência e arbitrariedade
do Maniqueísmo, e a amar a largueza e compreensão do
Catolicismo, tão distante da tacanhez e fanatismo puritano
dos Donatistas. A admiração acabou por se transformar
em amor a Ambrósio, a quem mais tarde consideraria e
trataria por «meu pai».
Além da exposição serena e da palavra convincente,
Agostinho admirava ainda em Ambrósio o poeta que
enriqueceu a Igreja de magnificas e numerosos hinos ainda
hoje recitados no «<ficio divino» e comovia-se ao ouvir
na basílica milanesa o canto ambrosiano, que tamanha paz
imprimia na sua alma torturada e inquieta.
[30]
.4. A VIDA EM MILAO
(32]
Além destes passos em falso, também o indolente
epicurismo lhe não enchia a ahna, tão vazia de bem e tão
cheia de tédio. Sentia-se infeliz. Chegou a invejar a alegria
descuidada de um pobre bêbado que uma vez encontrou
no seu caminho a cantarolar a barata felicidade conquistada
com umas goladas de álcool.
>-- 1 Vitorino {Gaio Mário) foi insigne escritor latino do séc. IV.
Quase todas as suas obras sobre gramática, retórica e filosofia se per-
[33)
trinta e dois anos, desferiu o primeiro golpe certeiro no
Maniqueísmo de Agostinho. Platão deu-lhe a conhecer wn
Deus sem limites, sem limitações, wn Deus in.finito e
inextenso. Só Ele, só wn ser assim, será o prinápio e a
razão de ser de tudo. Um prinápio substancial do mal, o
Mal Substancial, é wna contradição nos termos, pois equi-
valeria a afirmar a realidade substancial do não-existente,
do que não possui realidade nem substancialidade.
Será que o Deus dâ Bíblia, o Deus de Mónica e de
Ambrósio se identificará com este Deus de Platão?
Para o verificar começou a ler as epístolas de S.
Paulo. O Deus de Paulo era, também Ele, wn Deus de
beleza e bondade infmitas, não limitado nem constituído
por partes extensas. E, mais que no Déus de Platão, era
pessoal esta bondade, esta beleza infinita do Deus de Paulo,
a arder de amor pelos homens que criou bons e belos. Mas
estes, mal usando do bem da sua liberdade, d 'Ele se afasta-
ram e O repudiaram, e a amá-lO e a contactá-lO só
poderão voltar desde que repudiem por sua vez o seu
repúdio e afastamento pela penitência e humilde reconhe-
cimento da sua contingência.
Trava-se então na sua alma uma renhida luta entre
as forças que o aproximavam de Deus e as que d'Ele o
[34]
afastavam, entre o ideal cristão e o seu temperamento
ardentemente sensual. Se o comoviam até às lágrimas as
homilias de Ambrósio, a doçura e majestade do canto
ambrosiano, a confiança filial do cristão que a Deus cha-
mava meu como se, pertencenckrlhe ele, Deus lhe ficasse a
pertencer- enchiam de revolta, tristeza e amargura este
africano romanizado até na alma, ver as províncias explo-
radas por bárbaros, o exército nas mãos de bárbaros (eram
os Godos que mantinham a ordem e sustinham outros bár-
baros nas fronteiras). Como poderia aderir à catolicidade,
à universalidade de uma fé ameaçada por fora pelo aria-
nismo dos bárbaros e por dentro pela violência dos dona-
tistas e a dissolução dos Maniqueus? Que desolação a desta
sociedade governada por eunucos!
Estes factos, mais do que o frio de Milão, que lhe
oprinúa o peito e lhe apertava a garganta como um gar-
rote, deixanckrlhe sair um ténue fio de voz, que já era
objecto de troça pelo sotaque africano, minavam-lhe a
saúde, a saúde mesmo da própria alma.
E porque não havia este ho~em, que toda a vida se
amfessou, porque não havia de procurar Simplicio, aquele
velho presbítero que já fora director espiritual de Ambró-
sio nos seus tempos de juventude? Agostinho sentia já a
necessidade de purificação pela confissão, como, mais
tarde, havia de reconhecer:
Ad lume confessionem, Jratres carissimi, festinandum
est, quae non labiis tamum, sed corde et operibus impleatur.
Neminem vulnus suum pigeat confiteri, quia notl potest sine
confessione sanari. 2
Agostinho abriu-lhe a alma. Com toda a simplicidade,
fazendo jus ao seu nome, Simplicio não entrou em digres-
sões de ordem filosófica e teológica. Falou-lhe apenas do
(35)
exemplo Je Vitorino, o célebre orador que tinha uma
estátua no Forwn de Roma, da sua conversão, do entu-
siasmo da multidão que, transportada de alegria, gritava
Vitorinc! Vitorinc!, quando este, catecúmeno ainda, do alto
do estrado levantado na basílica, acabou de pronunciar a
sua profissão de fé imediatamente antes de sobre ele ser
derramada a água do sacramento da purificação.
Foi profunda a impressão em Agostinho causada pelo
caso Vitorino.
Ora acontecéu que, passados alguns dias apenas,
quando em sua casa conversava com Alípio, lhes apareceu
Ponticiano, wn dos altos funcionários do Palácio, que, a
propósito da conversa que estavam travando e das epísto-
las de Paulo que ali via sobre uma mesa, lhes falou de
Antão e seus companheiros eremitas do deserto no Egípto,
das suas penitências, da santidade da sua vida, da renúncia
a tudo o que lhes oferecia tão precariamente o hnpério
que tão precariamente estava aguentando a pressão dos
bárbaros. Não se falava então noutra coisa.
Contou-lhes ainda Ponticiano que, uns tempos antes,
quando a Corte se encontrava em Tréveris, ele e mais três
amigos foram dar um passeio pelos arredores da cidade.
Em dada altura, dois dos quatro afastaram-se e, por acaso,
foram dar com uma cabana de eremitas. Entraram e
começaram a ler a Vida de Antão que lá 'encontraram. A
impressão que lhes causou a vida dos eremitas foi tal, que
tudo deixaram, inclusive as noivas, pois estavam para
casar, e já não voltaram ao Palácio, juntando-se aos
eremitas.
~1 Caminhc nos, túfo nas orgúu t nnbriaguês, túfo nas alawas t nas impu-
diárias, não nn TÍX4S t tm invtjas, mas revtsli-IIOS do Smlwr jtsUS Cristo e não
tenhais cuidado com a ~ mas sim nn dela desarraigardes os apetitts.
S. Paulo; .Ep. ad. Rom., 11-14.
[37]
NA CASA DO PAI
1. CASSICIACO
[39]
a partir foram Trigésio e Licêncio. Em compensação, veio
juntar-se-lhes Evódio de Tagasta, também este baptizado
desde há pouco tempo, que, de agente de negócios do
[40]
imperador, vtna a tornar-se, tempos depois, bispo de
Uzale. Talvez Evódio, falando-lhe da comunidade reli-
giosa que Ambrósio fundara às portas de Milão, tenha
[41]
provocado em Agostinho a ideia de também ele fUndar
wn dia wna comunidade religiosa: para isso até poderiam
servir a casa e os bens que deixara em Africa. O certo é
[42]
que decidiram partir para Óstia, onde tomariam o barco
para Africa. Chegados a Óstia, tiveram porém que aguar-
dar transporte por algum tempo. ·
[45]
fllhos- Agostinho e Navígio-, bem -como Evódio e os ·
dois primos de Tagasta- Rústico e Lactidiano-, que
piedosament~ recolhem as suas últimas palavras.
-«É aqui que sepultareis a vossa mãe», disse ela
para Navígio e Agostinho.
Navígio obtemperou-lhe que havia de morrer na sua
amada terra africana. Mas a sua decisão estava tomada:
voltando-se para Agostinho, diz:
-«Estás a ouvi-lo?», e continuou:
-«Não vos preocupeis com este corpo; enterrai-o
em qualquer parte. Apenas vos peço que, onde quer que
estejais, vos lembreis de mim no altar do Senhon>.
«Enfim, no nono dia da sua doença, aos cinquenta e
seis anos de idade, quando eu tinha trinta e três anos», diz
Agostinho, «aquela alma piedosa e santa libertou-se do seu
corpo» 3•
«Fechei-lhe os olhos. Invadiu-me a alma uma tristeza
imensa, que se desfazia em torrentes de lágrimas. Mas, ao
mesmo tempo, os meus olhos, sob o império violento da
vontade, absorviam essa fonte até a estancarem» 4 .
«Quando ela exalou o último suspiro, meu filho
Adeodato rebentou em pranto, mas, instado por todos nós,
calou-se». «Deste modo a sua voz juvenil, voz do coração,
também reprimiu e calou em mim esta espécie de expansão
juvenil que se manifestava no choro».
«Então Evódio, pegando num saltério, começou a
cantar um salmo a que todos nós respondíamos: «A vossa
misericórdia e justiça cantaremos, Senhon>.
Agostinho continuou a reprimir as lágrimas. Nem
quando a amortalhavam numa sala ao lado, nem na igreja
«enquanto era oferecido o sacrificio da nossa redenção
pela defunta», nem ao ser enterrada e ao rezarem-se por
ela as últimas orações, desprendeu um gemido, derramou
[46]
uma lágrima. E todavia estalava de dor ao recordar que,
pouco antes, ela lhe chamara «bom filho» e se lembrava de
que ele <<nunca contra ela proferira uma só palavra dura
ou mJunosa».
Esgotado por tão profundas emoções, tomou banho e
deitou-se. Ao acordar, na manhã seguinte, lembrou-se dos
versos «tão verdadeiros» de Ambrósio:
Deus creator omnium
Polique rector vestiens
Diem decoro lumine
Noctem soporis gratia
Artus solutos ut quies
Reddat laboris usui
Mentes que fessas allevet
Luctusque solvat anxios. 5
E então, continua Agostinho, «as lágrimas que eu
reprimia soltei-as para que corressem à vontade, esten-
dendo-as sob o meu coração como se um leito de repouso
fossem».
3. REGRESSO A AFRICA.
VIDA COMUNITARIA. MORRE ADEODATO
[47]
nessa época de equinócio tinha os seus perigos pois, a par-
tir de Outubro, não permitia a navegação. A acrescentar a
estas contrariedades havia ainda a guerra que então se ia
desenrolando, tanto em terra como no mar, entre as forças
de Máximo e as de Teodósio. Aproveitou por isso esta
demora para colher melhores informações acerca das dou-
trinas e costumes dos Maniqueus, que, segundo começava
a constar, cada vez mais insistentemente, eram escandalo-
sos; e como tinha em mente fundar uma comunidade reli-
giosa com os seus companheiros e amigos, aproveitou
também o tempo para se informar acerca dos mosteiros de
Roma, para o que se dirigiu .à Urbe. Em Agosto ou
Setembro de 388, regressou a Óstia, donde logo partiu
para Cartago.
Ao chegar a Cartago teve a alegria de encontrar o
retórico Elógio, seu antigo disápulo, que fora avisado em
sonho da chegada de Agostinho. Sinal de que a Providência
olhava para ele e seus amigos, fora também a inesperada
cura de Inocêncio, advogado de Cartago, em cuja casa se
tinham hospedado. Mas não se demorou em Cartago. Em
breve partia para a sua cidade de Tagasta, onde, pouco
depois de lá ter chegado, vendeu umas courelitas- paud
age/lu/i- e a casa que lá possuía. O produto distribuiu-o
pelos pobres, mantendo apenas o usufruto da casa.
Foi nesta casa que instituiu o seu mosteiro e passou a
viver em comunidade com Adeodato, Alípio, Evódio,
Severo, que viria mais tarde a ser bispo de Milevo, além
de outros.
A paz e solidão do novo mosteiro eram-lhe propícias
para o estudo e a oração. Dedicou-se então a comentar as
Escrituras e completou os seus trabalhos sobre a gramá-
tica, a dialéctica, a retórica, a geometria, a aritmética, a
filosofia e a música. Ao tema da música tinha Agostinho
tim grande apego porque entendia, nos seus laivos de
pitagorismo, que «é pelo som que melhor se compreende o
poder dos números em toda a espécie de movimentos» até
à sabedoria divina ...
[48]
Teve tempo ainda para escrever cartas a Nebrídio,
Romaniano e Paulino de Nola·, e de defender um oú outro
que lhe solicitava o patrocínio nos tribunais.
Não tardaria porém que a paz e a alegria de Agosti-
nho no seu retiro de Tagasta fossem toldadas por um facto
doloroso- a morte de Adeodato em plena adolescência.
Agostinho reprime as lágrimas; as suas palavras são as de
quem está seguro de que, na Cidade de Deus, há mais um
cidadão; mas a dor pela perda daquele adolescente cuja
precocidade e candura o espantavam, ele a confessa em
termos . tais que, de quão profunda e atroz tenha sido ela,
nenhum pai pode duvidar.
4. O PRESBÍTERO AGOSTiNHO
[50]
dia de Ascensão. O povo costumava celebrar no .dia
seguinte o «regozijo público», comendo e bebendo para
além da justa medida e no local menos apropriado. Nesse
dia de Ascensão, véspera do tal «regozijo>>, Agostinho pre-
gou contra esse abuso. Os assistentes interromperam-no
gritando que sempre assim tinham procedido e continua-
riam a proceder, que Roma fazia o mesmo na basilica de
Pedro, que em Cartago se dançava em volta do túmulo do
mártir Cipriano ao som das flautas e do rufar dos tambo-
res, todos cantando, batendo palmas e fazendo momices.
Agostinho não desanima, insiste, a sua voz débil toma
acentos de paixão que comovem os amotinados. Estes, em
lágrimas, acabam por concordar, submetendo-se. Todavia;
quando, chegada a hora, Agostinho se dirigia de novo,
com o seu bispo Valério, para a basilica, para a celebração
dos oficios religiosos, o povo, o mesmo povo que poucas
horas antes se conformara com Agostinho, ao ouvir agora
os Donatistas que se banqueteavam na sua igreja ao lado,
não resiste e, tumultuosamente, volta a manifestar o seu
desejo de fazer o mesmo. Foi preciso que Agostinho
ameaçasse essa gente de que se demitiria, para todos se
acalmarem.
S. AS DIFICULDADES AMONTOAM-SE
[52)
6. AGOSTINHO, BISPO
[53]
JORNADAS FINAIS
1. NOVAS TAREFAS
3. CATEQUJ;.SE
[58]
cansado de o ouvir. de pé, bocejava de .enfado e sem-
-cerimoniosamente se sentava no chão; a linguagem que
usava para com o mercador não era a que usava para com
o camponês, o artesão ou o marinheiro.
Todos o consultavam, todos lhe pediam conse.lhos,
todos queriam uma palavra escrita sua, pois sentiam-se
honrados por possuirem, como os actuais caçadores de
autógrafos, · umas linhas de quem se vinha tomando uma
celebridade. Os seus inimigos donatistas já o punham a
ridículo, atirando-lhe à cara as palavras da Escritura
Vae multum loquentibus! 1 ·
aos quais retorquia com estoutras
Vae tacentibus de te! 2
A todos respondia, a todos agradecia os cumprimentos
hiperbólicos que começavam a estar em moda no Império
orientalizado: a este aconselhava que fosse mais moderado
no comer e no .\:>eber; àquele, que fosse continente e res-
peitasse o vaso da alma e o templo de Deus que é o corpo
de cada um; a estoutro, pois que suportasse com paciência
o que não podia evitar; às virgens consagradas que não se
orgulhassem da sua virtude, pois assim deixaria de ser vir-
tude para apenas orgulho ser, nem julgassem como menos
dignas as que seguiam a vocação do matrimónio dando ao
mundo filhos de Deus e seus adoradorés; repreendia os
que se acolhiam aos mosteiros apenas para garantirem o
seu sustento e fugirem à disciplina de um patrão, etc.
Tanto escrevia a potentados como Olímpo, chefe da Casa
do Imperador; tanto a amigos e confrades como Paulino
de Nola; tanto a ilustres matronas, como Albina, Máxima,
Proba e Juliana, como escrevia à pequenita Sápida de Car-
tago, que lhe ofereceu a túnica que bordara para seu
irmão, que a não usou porque o pobrezinho morreu. Quem
poderá ler esta carta sem se comover? «Aceito a tua
[59]
túnica, minha filha>>, responde Agostinho. «Minha ft.lha»,
continua ele, «Deus, que recebeu a alma do teu irmãoz.i-
nho, há-de restituí-la ao corpo de que a tiroU». E termina:
«.Aos que choram os seus mortos não devemos nós censurar».
Devotamente foram guardadas estas cartas, que for-
mam hoje volumosa obra de pedagogia, psicologia, reli-
gião e são principalmente, a revelação de imensa caridade
-esta caridade, e,sta paciência sem limites tantas vezes
demonstrada e exercida para com tantos, mesmo para com
seus irmãos na .fé e no sacerdócio, como o agreste S.
Jerónimo.
4. O TERROR DONATISTA
[60]
ao neófito quando o administrador do Sacramento se lhe
dirigia com estas palavras: .
Accipe vestem candidam, quam immacuiAtam perferas
ante tribunal Domini Nostri ]esu Christi, ut habeas vitam
aeternam 2•
Durante os oito dias seguintes, o neófito envergaria
essa veste branca.
O desplante do homem que se pavoneava pelas ruas
de Hipona com tal traje, causou a indignação de toda a
gente. O próprio Agostinho perguntou a Proculeà.no, o
bispo donatista da cidade:
-«Como é que um homem, manchado de sangue de
um assassinato, ousa passear-se durante oito dias pela
cidade com uma veste branca que é o símbolo da inocência
e da pureza»?
Desta vez, nem o próprio Proculeano respondeu.
As violências destes energúmenos repetiam-se todos
os dias. Os bandos de circumcelliones- continuavam a
espancar os colonos católicos, a saquear e a incendiar-lhes
as vilas, a talar-lhes os campos, a destruir-lhes as árvores, a
queimar-lhes as searas, a saquear-lhes os celeiros e as ade-
gas, a trucidar-lhes os gados aos gritos de Deo laudes-
«louvores a DeUS»- e, quando chegava à noite, eles e elas,
que a si próprios se apelidavam de «atletas de Cristo»,
juntavam-se em indescritíveis orgias.
Ninguém vivia em paz. O medo paralisava as pessoas.
A audácia destes violentos dissidentes crescia de dia para
dia. Era preciso pôr cobro ao desbragamento destas feras à
solta.
Mas quem era esta gente de quem tantas vezes vimos
falando? Como apareceu?
Quando se desencadeou a perseguição de Diocleciano,
o comportamento dos Cristãos do Norte de Africa perdera
(61)
muito da sua primitiva austeridade e pureza. A fé já não
era caracterizada pelo intrépido fervor de caridade que
causava a admiração dos pagãos que, estupefactos perante
o seu calmo e hwnilde heroísmo, exclamavam: ((Vejam
como eles se amam»!
Os costumes tinham-se relaxado quase até ao nível
dos pagãos. Por isso, a capacidade de resistência à adversi-
dade era bastante débil e muitos, mesmo entre os clérigos,
fraquejaram. Presbíteros e até bispos houve que, para
sobreviverem, entregaram aos pagãos os objectos do culto,
as Escrituras Sagradas e os arquivos em que se consignavam
os factos relevantes da vida eclesial. A cobardia do clero
não deixou de chocar o povo númida- povo tão irre-
quieto e turbulento como apaixonado e sensível. Assim, o
ambiente entre os fiéis e entre estes e os dirigentes católicos
sobreviventes já não era de disciplinada união.
O rastilho para a explosão surgiu quando, já na paz
constantiniana, se pretendeu conferir a sagração, para bispo
de Cartago; ao diácono Ceciliano. Dizia-se que também
ele entregara às autoridades pagãs as Sagradas Escrituras
para serem lançadas ao fogo. Receosos e pouco prudentes,
os seus partidários precipitaram os acontecúnentos, ele-
gendo Ceciliano e levando três bispos das redondezas a
sagrá-fo sem demora.
Ceciliano era repudiado por nwneroso grupo chefiado
pela espanhola Lucila, rica e fanática devota que se tomou
na sua mais acirrada inimiga desde o dia em que ele lhe
exprobou como supersticioso e exibicionista o hábito que
ela tinha de, quando se aproximava da Comunhão, repe-
tida e ostensivamente beijar wn osso que sempre trazia
consigo e dizia ser a relíquia de wn mártir. Além disso, o
sagrante bispo Félix, era tido por wn traditor. A sagração
estava pois ferida de nulidade, diziam os inimigos de Ceci-
liano, porque fora conferida a wn indigno por wn indigno.
Para decidir a nulidade ou validade da sagração se
reuniu wn concílio em que os bispos, pressionados e cor-
rompidos pelas dádivas de Lucila, depuseram Ceciliano e,
(62]
em vez dele, elegeram Majorino. Todavia, também este
não tardou a ser substituído por um homem activo, esperto,
hábil e voluntarioso- Donato - , que logo amalgamou,
organizou e entusiasmou os descontentes, enquadrando-os
numa seita de activistas fortemente disciplinada, a que não
faltava um certo irredentismo nacionalista. A nova seita,
além de quebrar a unidade da Igreja e de logo se tomar
num bando de fanáticos violentos, cedo se mostrou eivada
de heresia ao pretender que a çficácia dos sacramentos
dependia da virtude de quem os administrava- contra os
africanos moderados, contra o Papa de Roma e o Impera-
dor que reconheciam como bem eleito Ceciliano, que aliás
se defendeu de todas as ·acusaÇões contra si formuladas.
No inquérito ordenado pelas autoridades civis também
ficou bem claro que Félix nunca fora um traditor.
Vencidos mas não se submetendo, os partidários de
Donato apelaram sucessivamente para Constantino, pois
tudo isto se passava no seu tempo, e para o Concílio
reunido primeiro em Roma e depois em Arles. Foram
sel_llpre condenados e no último proclamou-se como dogma
de fé que a validade dos sacramentos, tais como o baptismo
e a ordem, não depende das boas ou más qualidades
morais de quem o administra: são eficazes ex opere operato,
como ora se diz em te"ologia sacramental, ou seja, operam
pelo simples fac~o de serem administrados.
Também desta vez os Donatistas se não submeteram
nem ao Imperador nem aos Concílios e continuaram a
ocupar as basílicas; arrogantemente recusavam, como
Primiano, primaz donatista de Cartago, todos os convites
para se sentarem com os católicos à mesma mesa para
conferenciare.m porque, diziam, «os descendentes dos már-
tire~ não se podem confundir com os. traidores~ (traditores).
Alcunhavam de heresia a doutrina de Arles e recusavam-se
a ouvir ou ler os sermões, cartas e tratados em que Agos-
tinho lhes gritava até à saturação que «O que dá eficácia ao
baptismo é o sacriScio de Cristo e não a virtude do sacer-
[63]
dote>>: .«a não· ser assim para que seiVl.a a redenção?»
perguntava-lhes Agostinho.
Porque os Donatistas proibiam que os seus sequazes
lessem os seus trabalhos, Agostinho, na defesa da Igreja
que, dizia, «Como católica deve abarcar o mundo inteiro»,
mandava afixar nas paredes da Basílica da Paz as respostas
às objecções dos dissidentes.
Os bandos de circumcel/Wnes multiplicavam-se: foi
como que um vento de maldição que ia queimando, dia a
dia, aquela Africa torturada desde Constantino até aos
tempos de Teodósio e Agostinho.
A insegurança de todos perante as ameaças de morte,
o próprio assassinato organizado, as emboscadas, esperas e
ciladas tomavam o ambiente insuportável. Respirava-se
medo como se de medo fosse constituída a atmosfera. Ao
próprio Agostinho, que antes fora ameaçado de morte,
armaram uma emboscada para o matarem. Escapou ape-
nas porque, tendo-se enganado no caminho, não passou
por onde o esperavam. A mes~ sorte não teve Possídio,
bispo de Guelma, o nosso já conhecido discípulo e bió-
grafo de Agostinho a cuja morte viria a assistir.
Encontrava-se ele em casa de Crispino, bispo donatista,
quando o atacaram. Defendeu-se valentemente e não con-
seguiram desalojá-lo. Puseram então fogo à casa, para o
obrigarem a sair. Nestes apertos teve mesmo de sair, para
não morrer queimado. Imediatamente se atiraram todos a
ele e 5P não o mataram porque, receoso das consequências
de um assassinato, o próprio Crispino correu em seu auxí-
lio. Não o mataram mas os assaltantes, depois de matarem
os cavalos e jumentos que se encontravam nas cavalariças,
partiram o altar da Igreja e com os seus fragmentos feriram
brutalmente Possidio, só o deixando quando já não dava
sinais de vida. Foram-se então afastando e quando parecia
que nada mais queriam dele, alguns católicos, que impo-
tentes tinham assistido à cena, levantaram o corpo inani-
mado de Possidio; mas os donatistas, logo que disto se
aperceberam, voltaram à carga, arrancam-lhes Possidio
[64]
das mãos, levam-no para o alto de uma torre e daí o atiram
para baixo. Por sorte o maltratado bispo caiu numa
estrumeira fofa (e mais qualquer coisa ... ) que lhe amorte-
ceu a queda.
. Os Donatistas tornaram-se numa seita anti-social. Já
se não tratava de dissidentes religiosos, mas de bandos
organizados para o crime, de que a sociedade tinha que se
defender para sobreviver. De acordo com Aurélio, primaz
de Cartago, Agostinho e os demais bispos católicos decidi-
ram pedir a intervenção do Imperador. Mas, antes disso,
ainda tentaram a conciliação. Reuruda para tal uma confe-
rência, os bispos católicos propuseram, para bem da paz e
para unidade da Igreja, que os bispos donatistas, aliás em
maioria, se se convertessem à urudade católica, conserva-
riam as suas sés; onde houvesse dois- um católico e outro
donatista- , o que constituía a regra, ambos governariam
a diocese alternadamente; e, se nem assim se entendessem,
o bispo católico demitir-se-ia a favor do confrade donatista.
Os Donatistas tudo recusavam. Reuniu-se então nova con-
ferência em Junho de 4n, sob a presidência do tribuno
Marcelino, sendo os Donatistas então condenados por
Honório, que, por decreto, os considerou herejes, não lhes
permitiu mais as reuruões e proibiu-os de rebaptizarem, sob
pena de, aos recalcitrantes, ser aplicada pesada multa ou
mesmo o confisco e ainda, pa&a os colonos e servos, a
deportação.
Nem assim a paz voltou àquela conturbada Africa.
Os circumcelliones tomaram-se ainda mais audaciosos e
cruéis. Aos católicos que lhes caíam nas mãos torturavam-
-nos, mutilavam-nos, punham-lhes cal nos olhos e depois
limpavam-nos com vinagre. Tendo apanhado nos arredores
de Hipona o presbítero Restituto, mataram-no; e a um
bispo da região cortaram a língua e as mãos, inutilizando-o
assim para o seu múnus.
Apesar de tudo isto, nunca da boca de Agostinho saiu
uma palavra que não fosse de caridade para com os dissi-
dentes, sempre pronto à concórdia, sempre pedindo aos
[65]
juízes cristãos que, ao julgarem os Donatistas, cumprissem
«O dever de pai e nunca se esquecessem, ao fazerem jus-
tiça, das leis da humanidade».
5. CONRJSÃO MANIQUEfSTA
6. PELAGIANOS
~>- I Vtio até 11ós dos c011jins tÚl Espanha, isto é, tÚls praias áo Octano,
í11jlamaáo pelo aráor tÚls Santas Escrituras.
(69]
cartas suas. Nessas cartas, remetidas por volta de 415,
Agostinho não regateia elogios a Orósio:
Ecce venit ad me religiosus juvenis, catholica pace fra-
ter, aetate Jilius, honore compresbyter noster Orosius, vigil
ingenio, promptus eloquio, jlagrans studio, utile vas in domo
Dominí esse desiderans, ad refellendas falsas pmúciosasque
doctrinas, quae animas Hispanorum multo infelicius quam
corpora barbaricus gladius trucidarunt 2 •
Defendiam os Pelagianos a doutrina da total capaci-
dade moral do livre arbítrio. Para querer e praticar o
bem, o homem não precisa de qualquer ajuda da graça.
Pode querê-lo e praticá-lo só, por si mesmo e sempre.
Admitem que a graça actual actua sim, mas apenas como
instrução, como exemplo, como iluminação, exterior-
mente, sem qualquer influxo interno na vontade.
Defendiam ainda a doutrina de que o pecado origi-
nal, o pecado . de Adão, é meramente pessoal, não se
transmite. Para os seus descendentes ele constitui apenas
um mau exemplo. Sendo assim, o baptismo não é, por-
tanto, necessário para a vida eterna. Deve ser recebido, é
certo, mas apenas para, como sinal de opção divina, se
entrar no Reino de Deus, integrar-se na Igreja, comungar
com Cristo e para cancelar os pecados actuais.
A redenção, por sua vez, não é uma regeneração,
não é uma passagem da morte à vida- mas apenas cha-
mamento a uma vida mais alta de adopção divina, em
virtude da influência, meramente exterior, de Cristo.
Perante as suspeitas que a doutrina de Pelágio e seus
discípulos ia levantando, reuniram-se em 415 dois sínodos
2
(>- Eis que veio ter comigo um jovem religioso, meu innão na paz católica
mas que pela idade poderia ser meu filho, meu companheiro nas honras de presbí-
tero este nosso Orósio, viJ?O de engenho, de palavra fácil, apaixonada pelo estudo,
desejoso de ser um vaso útil na casa do Senhor para repelir as perniciosas e falsas
doutrinas que, mais do cp1e a espada do bárbaro, tem, desgraçadamente, trucidado
as almas dos hispanos.
[70]
-em Jerusalém e em Dióspolis. Em nenhwn deles os
Padres sinodais tiveram a coragem de a condenar.
A fraqueza dos Padres dos dois sínodos não esmore-
ceu mas antes mais afirmou a determinação de Agostinho,
por cuja iniciativa se reuniram, logo no ano seguinte, em
416, os sínodos de Cartago e Milevo. Desta vez os Padres
sinodais denunciaram abertamente os Pelagianos ao Papa
Inocêncio I, que, em 417, os condenou. «Roma falou, a
causa está encerrada», disse Agostinho ao tomar conheci-
mento da decisão do bispo de Roma. Os Pelagianos é que
não deram a causa por encerrada. Efectivamente, Celéstio
apressou-se a entregar pessoalmente ao Papa, que na oca-
sião já era Zózimo, wn libellus fidei. Este libellus, hábil por
equívoco, levou o Papa a exigir dos teólogos africanos que
justificassem a condenação de Pelágio. Logo em 417 se
reuniu em Cartago wn Concílio, que, antes de conhecer
das questões que aos Padres conciliares eram postas, pediu
ao Papa prorrogação do prazo pois era mui curto o con-
cedido, e, obtida a prorrogação, reuniu-se em 418 wn
Concílio Geral que, em nove cânones, condena Pelágio e
as suas doutrinas. Zózimo não teve dúvida em condenar
Pelágio e Celéstio, dando a conhecer a sua decisão a todo
o mundo cristão pela sua Epístola Tractoria.
71
• ó Roma, dtusa tÚis tmas t dos povos,
À qutJ nada t igual, nada ~ lk as.stmtiha.
Marcial, Epigramas XII, 8, 1-2. Trad. de H. J. Isaac,
Paris, Les belles lettres, 3 vol., 1961.
7•2 Vergílio, Entida, I, 37.
[72)
a Siália, a Sardenha e a Córsega e até para a Africa; e os
que ficaram queriam ver-se livres do bárbaro por qualquer
preço. Por isso o Senado aceitou as condições de Alarico
para se afastar, entregando-lhe avultada quantia.
Em 409, voltou, agora mais audacioso. Desta vez,
exigia que Roma aceitasse o imperador que ele escolhesse.
Este lhe concederia então o tão cobiçado título de Senhor
das Milicías.
Em 410 foi o assalto definitivo. Após um longo assé-
dio de cerco de cinco meses, Alarico entrou ·na cidade
pela porta Salária, aberta por traição na noite de 24 de
Agosto desse ano. Seguiram-se três dias e três noites de
pilhagens, incêndios, destf4Íções, ·violações, torturas, car-
nificinas. Depois, abarrotados com os despojos, os exércitos
de Alarico retiraram. Como sempre acontece em époc~s
de impunidade por carência de poder, muitos mostraram o
bandido· de que eram portadores: todos eles pilhavam,
todos eles assaltavam, todos roubavam - e não só o Godo.
Todos, até o mais «honestO>> cidadão, até o mais alto
funcionário - e não apenas o bárbaro. E não só em Roma,
mas em toda a parte onde se acolhiam refugiados. Em
Africa, para onde o terror a muitos atirou, precisamente
aos mais abastados que têm sempre possibilidades de fuga,
o próprio governador militar, o conde Heracliano, deu o
mais triste exemplo do salteador: às mais ricas patrícias
esperava-as no desembarque, prendia-as e só as restituía à
liberdade depois de pagarem o resgate que lhes impunha.
As que não podiam pagá-lo, vendia-as como escravas a
mercadores de terras distantes.
Criou-se no espírito de todos a convicção de que
Roma, a Roma eterna, era sagrada, intocável, jamais rui-
ria. Daí, perante a catástrofe, o espanto de todos. Os
pagãos tiravam partido da desgraça, alegando que Roma
era feliz e poderosa, alargara os seus limites e se manteve
enquanto os Romanos sacrificaram aos deuses e só caiu nas
mãos do bárbaro quando os sacrillcios foram proibidos.
Era chegado o momento da desforra. Em Sufetula! junto
[73]
Je Cartago, os pagãos assassinaram sessenta cristãos; em
Guelma, provocaram graves motins, queimaram os bens
da Igreja e mataram o presbítero. Tinha chegado o tempo,
dizia-se por toda a parte, de, conforme o anunciado por
um oráculo dos deuses, o Cristianismo ser vencido após
305 anos de vida.
Agostinho sentiu a necessidade de fazer calar estas
vozes dos pagãos como tinha feito calar as dos herejes e
cismáticos. Os próprios cristãos mais conscientes o pres-
sionavam para isso. E foi assim que, a pedido do tribuno
Marcelino já nosso conhecido, encetou essa imensa e tra-
balhadosa obra- magnt4m et arduum opus- , que só daria
por acabada ao fim de treze anos, quando estava prestes a
completar setenta e dois anos de vida: a Cidade de Deus.
[74]
Mas, se então era jovem, hoje sinto-me velho e cansado.
Sei que, quando um bispo morre, a paz é perturbada por
rivalidades e ambições. Quanto em meu poder estiver, é
meu dever evitar que tais contrariedades recaiam na nossa
cidade. É por isso que vos venho declarar qual é a minha
vontade, que também é, creio eu, a de Deus: a de que o
presbítero Heraclio seja o meu sucesson>.
-Aqueles irrequietos africanos, não. aguentando por
mais tempo o solene silêncio que o momento impunha,
. irromperam, como costumava acontecer em idênticas cir-
cunstâncias,. em intermináveis exclamações:
-«Cristo, ouve-nos! Conserva-nos Agostinho»!
Referem as actas que este grito de prece se repetiu
por dezasseis vezes.
Houve um quase imperceptível momento de silêncio
e logo outra exclamação, esta de saudade, se repetiu por
oito vezes:
-«Sê o nosso pai! Sê o nosso bispo»!
Quando o silêncio voltou, Agostinho prosseguiu:
- «Não é preciso que vos elogie Heraclio. Assim
como é justo que reconheça a sua sabedoria, também é
meu dever que não ofenda a sua modéstia. Estais a ver
que os estenógrafos (nocan'i) escrevem tudo o que eu digo e
tudo o que dizeis vós. Tanto as minhas palavras como as
vossas aclamações não çaem no deserto.
Quero portanto que fique bem patente nas actas que
seja confirmado o que declaro».
A assembleia não se fez rogada, logo exclamando:
- «Deo gratias! Laudes Christo!» 2
-«Sê nosso pai! Pois que Heraclio seja o nosso
bispo»!
[75]
Acalmados que foram todos, Agostinho lembrou-lhes
que não convinha que se repetisse o que aconteceu consigo
e Valério:
-«Fui sagrado bispo quando o velhinho Valério de
bem-aventurada memória, meu pai e meu bispo, ainda era
vivo e com ele, contra as proibições do Concílio de
Niceia, que tanto ele como eu ignorávamos, ocupei a
«Cátedra» episcopal. O que então me censuraram não
quero que censurem a meu filho Heraclio».
Para assim significar a sua concordância, o povo
exclamou então por treze vezes:
- «Deo gratias! Laudes Christol>> 2
-«Por isso», prosseguiu Agostinho logo que as
exclamações cessaram, «ele continuará apenas como pres-
bítero até ao momento em que a Deus aprouver que seja
sagrado bispo».
Lembrou-lhes depois o que em tempos tinha combi-
nado e se não chegou a cumprir: que o libertassem dos
cuidados materiais da Igreja de Hipona e lhe deixassem
disponíveis cinco dias por semana para se dedicar ao estudo
das Escrituras Sagradas, e prosseguiu:
- <<Peço-vos pois pelo ainor de Cristo vos suplico
que permitais que eu encarregue de todos esses cuidados o
jovem presbítero Heraclio, a quem designo para meu
sucessor no episcopado».
Para que ficass bem compreendido que o seu assen-
timento era total, o povo exclamou, agora vinte e seis
vezes:
-«ficamos-te agradecidos pela escolha que fizeste»!
A terminar, Agostinho agradeceu, esclareceu-<>s de
que, dai em diante se deviam entender com Heraclio em
todos os assuntos por que, até então, o procurava.m, pediu
que todos os que pudessem assinassem as actas e que, com
toda a clareza, lhe di sessem que estavam de acordo:
-«Assim seja! Assim seja!», foi a resposta de todos.
- «Bem! Agora, ponde de parte os vossos assuntos e
cuidados, vamos todos prestar as nossas homenagens a
[76]
Deus e, neste momento de súplica, vamos ofere.c er, à
vossa caridade o peço, o Sacrificio e pedir ao Senhor por
esta Igreja, por mim e pelo presbítero Heraclio».
IG-I Quando 110 local nao houvtr povo tk Cristo ao qwJ Sl! tltvatn prestar
os StrVÍfOS do S«ndott ou t:SstS saviços possan1 m prtst4Jos por l{lltm niJo tmha
n«tSSidadt Jt fugir.
Possidio, Vila Augustini, :n-21.
ll-.2 Quando ao povo faltar qutm llrt adminisrrt todos os dias o Corpo do
Smhor;
Possídio, Vil4 Augustini, »-23.
• Aos qut solicitam o baptismo, aos qut pedtm o Saaamtr~lo da C<mei·
11 3
[80]
De facto,
<<Si ministri desint, quantum exitium sequitur eos qui
de isto saeculo vel non regenerati ~eunt vel ligati» 4•
«Si autem ministri adsint, pro viribus, quas eis Domi-
nus subministrai, omnibus subvenitur: alii baptizantur, alii
recotUiliantur, nulli dominici corporis communione fraudantur,
omnes consolantur, aedifo:antur, exhortantur ut Deum rogent,
qui potens est omrúa quae timentur evertere... » 5
«Quicumque igitur isto modo fugit, ut ecclesiae necessa-
rium ministerium i/lo fugiente non desit, facit quod Dominus
praecepit sive permisit. Qui autem sic Jugit ut gregi Christi
ea, quibus spiritaliter vivit, alimenta subtrahantur, mercenarius
ille est, qui videt lupus venientem et Jugit, quoniam non est ei
cura de ovibus» 6•
não falte o neussário miràsthW, - faz o que o Senhor ordtncu ou permitiu; mas
o que, com q sua fuga, tira à grei dt Cristo o alimmto da sua vido espiritual, esse
t o mercenário que, à visl4 Jo lobo, foge porque não quer saber tias suas ovelhas.
Possídio, Vil4 Augustini, 30-50.
(81]
Uma vez reconciliado, Bonifácio exige aos Vândalos
que se retirem. Já era tarde para se pedir, muito menos
para se exigir tanto. Genserico, em vez de lhe obedecer,
dá-lhe combate, vence-o e obriga-o a recolher-se à pro-
tecção das muralhas de Hipona, com todos os mercenários
godos que constituíam as suas tropas.
Estamos em Maio de 430. Hipona está inteiramente
cercada por terra e por mar. Mesmo agora, Agostinho
não esmorece. Continua a dar alento a todos pela palavra
e por escrito, quer ao clero que o rodeava, quer a Bonifá-
cio e outros encarregados da defesa. Mas, ao terceiro mês
de cerco, Agostinho adoece. Mesmo assim, todos o procu-
ram, todos pedem a sua intercessão perante Deus. Pedem-
-lhe que cure uns infelizes possessos. Agostinho compadece-
-se, comove-se, chora. Pede a Deus que liberte os pobres
dementes e Deus ouve-o. Pois se fez este, outros milagres
poderá fazer, dizem. E Agostinho, que nunca fez do mila-
gre actual grande finca-pé como argumento apologético,
responde a quem lhe pede a cura de um doente:
- «Meu ftlho, se eu tivesse algum poder sobre a
doença, começaria por me curar a mim próprio».
Mas o homem insiste. Conta a Agostinho que em
sonho lhe foi dada a certeza da cura. O milagre é fruto da
caridade. Agostinho, que, como Cristo, podia dizer que
amou os seus até ao fun, num gesto de amor impôs as mãos
ao doente e este ficou curado. Foi o seu único milagre,
este milagre de misericórdia.
Dez dias antes de morrer, quis que afixassem nas
paredes do quarto os salmos penitenciais, para, mesmo do
leito, os poder ir recitando.
Como relata Possídio
Testamentum nullum fecit, quia umk faceret pauper
Dei non habuit 1•
l2.-l O pobrt át Dtus não fa tal4mmto, por~ não possuía bms a átix.ar.
Possídio, Vua Augustini, 31-ó.
[82]
Não teve agonia. Manteve-se consciente até ao fim- os
a
sentidos conservaram-se despertos, vista clara, o ouvido
apurado- e assim, na presença de todos, a 28 de Agosto
de 430, carregado de anos e de méritos, Agostinho
dormivit cum patribus suis 2•
1
~1 Adormtuu com StU.S pais.
Possidio, Vrta Augustini, 31-5.
[83]
TRANSCRIÇÕES
TRANSCRIÇOES
DE
1- Um extracto do livro ll das Revisões
2- e de uma carta de Santo Agostinho ao
presbitero Firmo acerca do conteúdo
e do plano da obra A Cidade de Deus.
[89]
2. CARTA A FIRMO 1
1
Firmo, presbltero de Cartago, foi ao tempo como que o agente
literário de Santo Agostinho, seu livreiro e editor em Cartago. Foi a ele
que Agostinho concedeu, para revisão geral, o manuscrito do fà Cilli-
ratt Dti.
Al~m destas funções, exercia tam~m as de administrador e gestor
do bens e negócios da famllia de Santa Paula, ao serviço de quem
trabalhou como seu procurador, se nos ~ licito usar, para o caso, a
linguagem actual do mundo do Direito.
Estas variadas funções levaram-no, em muitas.e variadas viagens,
à Palestina, à Africa e à Itália, servindo de mensageiro e intermediário,
como portador da correspondência, trocada entre Santo Agostinho e
S. Jerónimo, Allpio, Possídio e o presbitero romano que depois foi
papa com o nome de Sixto.
Atrav~s dessa correspondência se podem seguir muitos dos seu
passos e quase se poderia escrever dele uma pequena biografia. Assim,
sabe-se, por esta via, que em 405 passou da Africa à Palestina; em 418,
foi portador, de Itália para Hipona, de uma carta do mencionado Sixto
para Agostinho e Allpio; entre 418 e 419, recebeu e ficou depositário
dos livros I a XIII inclusive do fà Cilliratt Dti; depois de 427, tinha em
seu poder toda esta obra para uma segunda edição revista; em 415, é
portador de uma carta de S. Jerónimo para Agostinho e de outra deste
para aquele, cartas essas que se perderam.
Sobre o assunto, v., além da Patrologia Latina de Migne (P. L.
41) ou do Corpus Christianorum, série latina (CCL-47-48), H.l. Marrou:
Travaux concmw~r la Prosopograph~ Ju &s-nnpirt in ActN Ju tkuxibnt Con-
grts Inr~ional J'Epigraphit Grtcqut tt LatiM, 1952, p. 33; H.l. Marrou:
La Ttcniqw lk l'~dirion à l'ipoqw parristiqw, in Vigil~ Christian«, III
(1949), p. 21S-224.
[90]
São vinte e dois· os cadernos. Pô-los num só volume
seria demais. Se quisere~ podes dispô-los em dois tomos,
devendo ser divididos de maneira que um tenha dez e o
outro doze livros. Naqueles dez são refutadas as fatuidades
dos ímpios e nos restantes é exposta e defendida a nossa
religião, embora isto também se faça nos primeiros e
aquilo nestes, quando for mais oportuno.
Se preferires que sejam mais de dois volumes, con-
virá então que sejam cinco tomos. O primeiro deles con-
terá os cinco primeiros livros; nos quais se responde aos
que pretendem que o culto, não digo dos deuses mas dos
demónios, nos é útil para a felicidade da vida. O segundo
conterá os cinco seguintes, contra os que sustentam que se
deve prestar culto em actos religiosos e com sacri6cios a
estes deuses ou a quaísquer outros, com vista à vida que
virá depois da morte. Os outros três tomos que se seguem
devem ter quatro livros cada um. C<?m efeito repartimos a
matéria em secções iguais, assim: quatro expõem a prigem
daquela cidade; outros tantos o seu processo ou desenvol-
vimento, se preferirmos este segundo nome; e os quatro
últimos, o seu merecido desenlace.
Se fores tão diligente para leres estes livros como o
foste para os obteres, verificarás, mais por tua própria
experiência do que por promessas minhas, quão úteis
poderão eles ser. Peço-te que os entregues de bom grado e
com ~enerosidade, para que os copiem os nossos irmãos
daí de Cartago que ainda não tenham conhecimento desta
obra da Cidade. de Deus.
I
Não os entregarás a muitos mas
apenas a um ou dois- e estes os passarão a outros. Mas
aos teus amigos ou ao povo cristão que desejarem instruir-
-se, ou mesmo aos que se vêem envolvidos em qualquer
superstição e te pareça que com a graça de Deus, se
podem dela libertar com a leitura desta obra- tu mesmo
verás como presenteá-los.
Se Deus quiser, frequentemente procurarei saber,
por carta, quanto pro~rides na leitura desta obra.
(91] .
Não é segredo para ti, homem culto, quanto a repe-
tição da leitura serve de ajuda para a compreensão do que
se lê. A dificuldade na compreensão é com certeza
nenhuma ou muito pequena quando há facilidade em ler e
esta facilidade vai aumentando à medida que a leitura se
vai repetindo: é como ·se a repetição amadurecesse aquilo
que urna certa ligeireza ~a leitura deixara imaturo (a).
Querido fllho Firmo, excelente Senhor, digno de
merecida honra: Quanto aos livros que escrevi acerca dos
«Acadbnicon pouco depois da nossa conversão- já que me
disseste na tua anterior carta que eles eram conhecidos de
tua excelente pessoa, quero que me digas na tua resposta
como é que pudeste consegui-los.
O índice junto mostrar-te-á tudo o que se contém
nos vinte e dois livros.
(a) ~É como .se a repetição amadurecesse aquilo que
urna certa ligeireza na leitura deixara imaturo»- pareceu-
-me ser esta a melhor tradução da frase que vem truncada
no texto, assim: ut assi duitate... Juerat imaturum. Os editores
costumam preencher a lacuna existente entre assiduitate e
Juerat com as palavras maturescat quod indiligmtia.
(92]
SEGUNDA PARTE
A CIDADE DE DEUS
LIVROS I A VIII
Para esta tradução foi utilizado o texto latino da
quarta edição de B. Dombart e A. KaJb, col. Bibliotheca
Teubneriana, Leipzig, 1928-1929, reproduzida em Oeuvres
de Saint Augustin, edic. bilingue de Desclée de Brouwer,
Paris, 1959, confrontado porém, pari passu com o texto
latino dos beneditinos de S. Mauro utilizado por Migne
na Patrologia Latina XLI e reproduzido pela BAC
(Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1977) em
Obras de San Augustin, XVI-XVIII- La Ciudad de
Dios.
LIVRO I
- Cemura os pagãos que responsabilizam pelas calamidades
mundiais, em especial a da recente dcvastaç~o de Roma pelos
Godos, a religilio crist~. por ter provocado a supressao do
culto dos deu.-;es.
-Trata dos bens e dos male que, como ~ co tume acontecer,
nessa ocasião foram comuns a bons e maus.
-Repele energicamente a insolência do. que apresentam a
objecção de ter sido ofendido pelo soldados o pudor das
mulheres cristãs.
[95]
PREFACIO
1
Acerca de Marcelino.
A ajuizar pelo que dde diz Ceciliano numa carta dirigida a Agc>S-
tinho, em que relatôl comovidamente a morte de Marcelino. este era
dotado de qualidades que dele faziam um:~ personalidade encantadora:
cQue rectidão de comportllmento! Que fiddidade na amiudo!
cQue zelo pela cultura, que inceridade no sentimento. religi~
sos! Que medida nos seus julzo , que paciência para com os inimigo ,
que afabilid:~de para com os amigos, que humildade para com o . an-
tos, que caridade para com todos! Que e tirn2 pelo bem! Que arrepen-
dimento nas faltas!• (P.L. 33-ó49 - Epist. 151 ,6).
Pois este Marcelino, que era de uma família ari. tocr4tica, desde
muito jovem entrou na politic:~, em que exerceu altos cargo na chan-
cela ri:~ imperial, como o indicam os seus dtulos de Tribunu.s, notarius,
cognitor. Nesta última qualidade de cognitor Ouiz) foi em 411 enviado a
Cartago para assistir ~ conferência dos bispos católicos e donatis'tas
com o fim de pôr termo ao cisma destes.
Conheceu en~o e tomou-se amigo do bispo de Hipona.
Mercê das referidas fUnções e altos cargos e da amizade que o
ligava a Ago rioho, em breve se tomou como que o elo de liga~o
[97]
Empreendi-a· a teu pedido, para me desobrigar da
promessa que te fizera de defender esta Cidade contra os
que ao seu fundador preferem seus próprios deuses.
Grande e árduo trabalho! Mas Deus será a nossa ajuda!
Sei de que forças tenho necessidade para demonstrar
aos soberbos quão poderosa é a virtude da humildade, pois
que, para lá de todas as grandezas passageiras e efémeras
da Terra, ela atinge uma altura que não é uma usurpação
do orgulho humano, mas um dom da graça divina. De
facto, o rei e fundador desta Cidade, de que resolvemos
falar, revelou nas Escrituras do seu povo o dito da lei
divina Deus resiste aos soberbos e concede a sua grtiÇ4 aos humil-
des 2• Mas deste privilégio exclusivo de Deus, a alma
intumecida de orgulho tenta apropriar-se c;lele e gosta de
ouvir dizer em seu louvor poupar os vencidos e domar os
soberbos 3.
Também é preciso falar da Cidade da Terra, na sua
ânsia de domínio, que, embora os povos se lhe submetam,
se torna escrava da sua própria ambição de domínio. Dela
tratarei, nada calando conforme o exige o plano desta obra
e o permitir a minha capacidade.
(98)
CAPITULO I
libri stptmr, C. VIl, 39) refere que foi o próprio Alarico quem ordenou
aos seus soldados que poupassem os templos crist~os, nomeadamente as
basilicas dos apóstolos Pedro e Paulo, respeitassem quem neles procu-
rasse refúgio e não deitassem m~o dos objectos de culto. Mais refere
que .Alarico assim procedeu, por. embora ariano, considerar Roma
como sede da Cristandade.
Porque nos toca de perto este presbitero de Braga, não será talvez
inútil acrescentar que P. Orósio, amigo e disdpulo de Santo Agostinho,
[99]
guava o encarniçado inimigo; aí findava o seu furor de
externumo; para ali conduziam os invasores tocados de
compaixão, aos que, fora daqueles lugares, tinham pou-
[100]
pado a vida, pondo-os a salvo das mãos dos que não
tinham igual compaixão. Aqueles mesmos que, noutros
sítios, como inimigos que eram, realizavam crudelissimas
chacinas,- quando se aproximavam destes lugares em
que lhes estava vedado o que, por direito de guerra, se
pennite noutras partes, refreavam a sua sanha bélica e
renunciavam ao desejo de fazer cativos.
Foi assim que escaparam muitos dos que agora desa-
creditam o Cristianismo e imputam a Cristo as desgraças
que ~ cidade teve que suportar. Não atribuem porém ao
nosso Cristo mas ao destino, o beneficio de se lhes ter
poupado a vida por amor de Cristo. Deveriam antes, se o
avaliassem judiciosamente, atribuir os sofrimentos e dure-
zas que os inimigos lhes infligiram à divina Providência
que costuma, com guerras, purificar e castigar os costumes
corrompidos dos homens. É a divina Providência que põe
à prova a vida justa e louvável dos mortais com tais afli-
[102]
CAPfTULO II
[103]
E todavia o que segue não é exacto:
Desde aquele momento, a esperança dos Gregos
começou a afrouxar e a desvanecer-se 3•
Na verdade, foi depois disto que ficaram vitoriosos;
foi depois disto que destruíram Tróia a ferro e fogo; foi
depois disto que degolaram Priamo, refugiado junto dos
altares. Tróia não caiu, portanto, por ter perdido
Minerva. E a própria Minerva, que é que ela tinha per-
dido para perecer? Teriam sido por acaso os seus guar-
diãos? Sim, isto é verdade: de facto, só pôde ser roubada
depois de estes terem sido degolados. O certo é que o
ídolo era defendido pelos guardiãos, em vez de serem eles
defendidos pelo ídolo. Como é possível que se preste culto,
- para que guardasse a pátria e os cidadãos- , àquela
que não fora capaz de guardar os seus guardas?
3
Ex illo fluert ac rttro sublapsa rtftrri
Spes Danaum, ...
Vcrgílio, Entida, II, 169-170.
[104]
CAPfTULO III
1
Quo smtd tst imbut4 recens scvabit odorem
TtstJJ diu.
Horácio, Epist. I, 2, 69-70.
2
Cms inimial mihi Tyrrhtnum navigoJ oequor,
Ilium in Ita/iam porr.ans vi.ctosque penates.
Vergílio, Eneida, I, 67-óa.
(105]
Foi a estes Penates vencidos que homens prudentes
tiveram que recomendar Roma para que não fo se vencida?
Juno falava assim como um irada mulher que não sabe o
que diz. E que diz Eneias, tantas vezes chamado piedoso?
Não será ele quem conta como
Panro, fillw de Otrtu, sacerdote da ddatkla de Febo,
levando de rastos nas suas mãos os objectos sagrados, os deu-
ses vettdáos e o seu nttito, vem em louc~ correria até aos
meus umbrais? 3
Não mostta que tais deuses- que não duvida de chamar
vencidos- a ele foram confiados em vez de ser ele a eles
confiado, quando diz
Tróia amfuz-te os stus objectos sagrados e os seus
penates? 4
Se pois Vergílio considera e tes deuses vencidos e até con-
fiado a um homem para conseguirem a fuga -não será
uma loucura pensar que Roma foi acertadamente confiada
a tais protectores, e que só poderia ser assolada e os per-
desse? Mais ainda - prestar culto a uns deuse vencidos
como esses guia e defensores que mais será senão ter, não
divindad propicias, mas maus pagadores? 5
Que é mais razoável: acreditar que Roma teria evi-
tado essa c I midade se os deuses não tives em perecido
(106]
antes dela, ou que eles teriam perecido de há muito se ela
não tivesse feito o impossível por os conservar? De facto,
quem é que se não apercebe à pr-imeira vista de quão
louca foi a sua presunção de se julgar invencível sob a
protecção de defensores vencidos e de atribuir a sua ruína
à perda dos seus deuses protectores, quando a sua perdição
pode muito bem ter resultado de ter escolhido protectores
perecíveis? Não, não era o prazer de mentir que impedia
os poetas a escreverem e a cantarem aquilo acerca dos
deuses vencidos: era a verdade que os obrigava a confessá-
-lo como homens de boa fé.
Estas questões tratá-las-ei noutro lugar, mais opor-
tuna, diligente e pormenorizadamente. Por agora, vou tra-
tar rapidamente conforme o plano traçado e as minhas
possibilidades, dos ingratos que, blasfemando, imputam a
Cristo os males de que estão padecendo como resultado da
corrupção da sua vida. Até eles foram poupados por amor
a Cristo, e nem sequer prestam atenção a esse facto. Com
sacrílega e perversa desenvoltura, servem-se contra este
nome das mesmas línguas de que hipocritamente se servi-
ram para salvarem a vida- essas linguas que, cheios de
medo, refrearam nos lugares sagrados, para ficarem a
salvo e sem perigo, mas uma vez respeitados pelos inimigos
por amor a Cristo, logo vomitam maldições contra Ele.
[107]
CAPITULO IV
.. )uMnis asylo
Custodes lecri, Phoenix et ilirus Ulyxes,
Praedam adservabant; luu undique Troia gaza
Iru:ensis erepta adytis, mensaeque deorum
Crateresque auro solidi captivaque vestis
Congeritur. Pueri et pavidae longo ordine matres
Stant circum.
Vergilio, Eneida, II, 761-767.
[109]
multa dos deuses, mas da própria irmã e esposa de Júpiter,
rainha de todos os deuses- , compara-o com os lugares
dedicados aos nossos Apóstolos. Daquele, levavam-se os
despojos roubados aos deuses e aos templos incendiados,
não para os oferecerem aos vencidos mas para os reparti-
rem ·pelos vencedores'- para aqui, bem ao contrário,
trazia-se com honra e até com um sagrado respeito o que
fosse encontrado em outra parte pertencente a estes luga-
res; ali, perdia-se a liberdade - aqui, ficava ela assegu-
rada; ali, assegurava-se o cativeiro- aqui, proibia-se; ali,
eram encerrados como presa da ambição dos inimigos-
para aqui os traziam os· inimigos, movidos de compaixão,
para lhes concederem a liberdade. Enfim, àquele te'mplo
da deusa Juno, tinha-o escolhido o orgulho e a avareza dos
frívolos gregos - ao passo que estas basílicas de Cristo
foram escolhidas pela humildade e a co~paixão mesmo de
bárbaros desumanos. A menos que os Gregos, naquela sua
vitória, poupassem os templos dos deuses comuns e não
tivessem ousado ferir ou reduzir ao cativeiro os infelizes e
vencidos Troianos lá refugiados; nesse caso, Vergílio teria
mentido ao jeito dos poetas. Mas é ele mesmo quem nos
descreve o costume dos ininúgos quando saqueiam cidades.
(110]
CAPITULO V
(111]
CAPITULO VI
1
Parem subjectis et dtbtllart superbos.
Vergilio, Endda, VI, 853.
2 O texto de Salústio ! do teor seguinte:
in pau vm, quod btntf!Ccis magis quam mttu imptrium agitabant,
ti acupta injuria ignoscm quam ~qui mokbant.
(Dt Conj. Cat., IX, 5, p. 39)-«m4S na paz, porqut o:trdam a sua
autoridadt mais com btntjíâos áo qut com o mtdo, t prtferiam esqutur a vingar
as inj(trias rtubidas».
[113]
de Siracusa, chorou antes de a arruinar e que, antes do
sangue dela, correram as lágrimas dele. Tem até o cui-
dado de respeitar o pudor que, mesmo num irurnigo, se
devia respeitar. De facto, antes de, como vencedor, orde-
nar o assalto da cidade, publicou um edito proibindo que
se exercesse violência corporal sobre quem quer que fosse
livre. Porém, a cidade foi arrasada, como acontece nas
guerras, e em parte nenhuma lemos qualquer decreto em
que este general tão casto e clemente tenha ordenado que
-deixassem ileso todo aquele que tivesse procurado refúgio
neste ou naquele templo. Não se iria -silenciar este facto,
caso ele tivesse ocorrido, quando se não esconderam as
suas lágrimas ou a ordem de em nada se ofender a
pudidcia.
Fábio, que destruiu Tarento, foi louvado por se ter
abstido de pilhar os ídolos. O seu secretário consultou-o
para saber o que devia fazer de tantas imagens capturadas
· dos deuses- e ele temperou até a sua clemência com um
gracejo. Perguntou como eram as imagens, - e tendo-se-
-lhe respondido que eram muitas e de grande tamanho e
que até estavam armadas, ele replicou: «deixemos aos
T-.rentinos os seus irados deuses». Se pois os historiadores
romanos não puderam deixar no silêncio nem o pranto de
um nem o riso do outro, nem a casta piedade do primeiro
nem a jovial moderação do último,- como é que iriam
então deixar de consignar que eles pouparam fosse quem
fosse por amor fosse de que deuses fosse, chegando a pro-
ibir que fossem atacados ou reduzidos ao cativeiro os
refugiados nos templos?
[114]
CAPfTULO VII
[115]
CAPITULO VIII
[117]
Contudo, a paciência de Deus chama os maus à peni-
tência e o açoite de Deus aos bons ensina a paciência. Da
mesma forma, a misericórdia de Deus rodeia os bons para
os animar, e a sua severidade castiga os maus para os cor-
rigir. Aprouve à divina Providência dispor para a outra
vida, para os bons, de bens de que os pecadores não goza-
rão, e para os ímpios, de males que não atormentarão os
justos. Quis porém que estes bens e males temporais fossem
comuns a todos, para que nem sejam procurados ansiosa-
mente os bens que vemos também na posse dos maus, nem
sejam evitados, como qualquer coisa de vergonhoso, os
males de que também padecem frequentemente os bons.
O que agora mais interessa é saber qual o uso que
fazemos, quer das situações prósperas, quer das adversas.
Efectivamente, o homem bom nem se envaidece com os
bens temporais, nem se deixa abater com os males. Pelo
contrário, o homem mau sofre na infelicidade, porque se
corrompe na felicidade. Mas é na distribuição de bens e de
males que Deus mais vezes patenteia a sua intervenção.
De facto, se ele desde já castigasse qualquer pecado com
penas manifestas, julgar-se-ia que nada reserva para o
último juízo. E, pelo contrário, se desde já deixasse impu-
nes todos os pecados, julgar-se-ia que a Providência divina
não existe. O mesmo se passa com as coisas prósperas: se .
Deus não as concedesse com toda a largueza a quem lhas
pede, diríamos que tal não está no seu poder; e, se as
concedesse a todos os que lhas pedem, julgaríamos que só
se deve servir, na mira de tais recompensas, e servir assim,
em vez de nos tomar santos, tomar-nos-ia mais ambicio-
sos, mais avaros.
Lá porque é assim - que os bons e màus sofrem as
mesmas provas- nem por isso vamos negar a distinção
entre uns e outros porque distinto não é o que uns e outros
sofrem. Mantém-se, na realidade, a diferença dos que
sofrem, mesmo na semelhança dos sofrimentos. Ainda que
estejam a sofrer do mesmo tormento, a virtude e o vício
não se identificam. Assim, sob um só fogo, o ouro rebrilha
[118]
e a palha fumega; sob o mesmo trilho, a palha tritura-se e
o grão limpa-se; assim como a água ruça não se confunde
com o azeite embora saiam espremidos da mesma prensa,
-o único e mesmo golpe, caindo sobre os bons, põe-nos
à prova, purifica-os, afina-os e condena, arrasa, extermina
os maus. Daí que, na mesma aflição: -os maus abominam
a Deus e blasfemam, e os bons dirigem-Lhe as suas súpli-
cas e louvam-No. O que mais interessa não é o que se
sofre, mas como o sofre cada um. Agitados com o mesmo
movimento- a imundícia exala um fedor insuportável, e
o unguento, um suave perfume 5•
[119]
conversão sem eles. Se porém fossem concedidos só aos bons, julgar-se-
-ia que só por eles se tomariam bons. Se fossem concedidos só aos
maus, os bons não se converteriam, porque receariam perder o que
afinal não deixa de ser um bem.
Se não fossem ret.irados senão aos bons- os débeis não se con-
verteriam aos bens mais altos, com receio de perder os bens da Terra;
se não fossem retirados senão aos maus, julgar-se-ia que nisso e só nisso
consistiria toda a sua pena. Sobre o assunto, v. R. Jolivet, Lt probL du
mal ckz S. Augustin (in Arch. tk Phü. VII, 2, 1930); G. Philips, lA rai.sort
d'~trt du mal, d'aprà Saint Augustin, Louvain, 1927.
(lW]
CAPÍTULO IX
[123]
Para isso há sentinelas, isto é, responsáveis pelos povos,
colocadas como chefes das Igrejas, para que se não poupem
a repreender o pecado 2• Mas também não está totalmente
isento de culpa quem, embora não constituido chefe de
igreja, conhece, naqueles a que está ligado pelas necessi-
dades desta vida, muitas coisas que deve admoestar ou
condenar, mas é negligente e evita indispor-se com eles,
para tratar dos interesses de que nesta vida pode fazer um
uso legítimo mas com que se deleita mais do que convém.
· Os bons têm ainda outra razão para sofrerem os
males temporais. É a mesma de Job: que o homem submeta
o seu próprio espírito à prova e comprove e conheça com
que grau de piedade e com que desinteresse aina a Deus.
2
~ deste teor o texto latino de que este pcriodo é a tradut?o:
Aá hoc mim sptculatcwts, hoc tst popufqrum prtJtpOSiti, constituti
sunt in takriis, ut non porcant objurganáo pt«4l4.
Traduzi sptculatorts por .sentinelas» tendo em mente a raiz sp«
(observar). Como em Grego a raiz é crtto'lt-6ç (com invers3o da
ordem das con.coantes x •c e 1r • p. v. Micbel Bréal et Anatole Bailly
in 4ons tk mou- Dict. Etym. Lat, p. 360) poderia ter traduzido por
imaxo'ltoç (episcopus .. bispo). Que é e te o sentido que Santo Agos-
tinho pretendia dar à palavra sptculatewtS, resulta da frase populcwum prae-
positi (responsáveis pelos povos) e constítuti in tcdtsiis (chefes das igrejas).
(124]
CAPITULO X
1
Scimus quia Jj}jgentibus Deum omnia cooperanhn' in bcmum.
Rom. Vill, 28.
2 Est enim quaestus magnus pietas cum sujfidentia. Nihil enim intulimus
in hunc munáum sed nec auferre aliquid possumus: habentes autem victum et
tegumentum, his contenti sumus. Nam que 110/unt divites fim, incidunt in
temptationem et laqueum et desideria muha stult4 et noxia, quae mergunt homines
[125]
Portanto aqueles que na dita devastação perderam ~s
riquezas terrenas, se as possuíssem como o ouviram àquele
que fora pobre por fora e rico por dentro, isto é, se fizes-
sem uso do mundo como se dele não fossem utentes, bem
poderiam dizer o mesmo que ele, tão gravemente tentado
mas nunca vencido:
Nu sai do ventre de minha mãe, nu voltarei à terra. O
Senhor mo deu, o Senhor mo tirou. Aconteceu como ao
Senhor aprouve. Seja bendito o nome do Senhor 3•
Como bom servo tinha por grande riqueza a vontade do
Senhor; seguindp-0 passo a passo, tornava-se rico em
espírito e não se contristava ao abandonar em vida o que
depressa deixaria ao morrer.
Mas os outros, mais fracos, que, sem anteporem os
bens terrenos a Cristo, a eles estavam ligados com um
certo apego, quando os perdem é que se apercebem até
que ponto, amando-os, pecaram. E doem-se tanto mais
quanto mais se meteram na.s dores, como acima recordei
pela boca do Apóstolo. Era necessária uma lição da expe-
riência para aqueles que, durante tanto tempo, despreza-
ram a liÇão das palavras- pois o Apóstolo ao dizer:
Caem em tentaç4ó os que pretendem ser ricos •
o que sem dúvida reprova nas riquezas é a cupidez e não a
posse. E noutro lugar ordena:
Aos ricos deste mundo aconselha a que não sejam
soberbos, não ponham a sua confiança na riqueza incerta, mas
sim no Deus vivo que tudo nos concede com abundância para
dedit, Dominus abstulit; sicut Domino placuit, it4 factum est: sit nomtn Domini
btnediaum.
Job I, 21.
4
Qui volunt divitts fieri, inciáunl in tmtpl4tiorrtm, tU.
Tim., VI, 6.
(126]
que o disfrutemos. Que façam o bem, que sejam ricos em
boas obras, generosos, dêem sem dificuldade, com espfrito de
comunh3o, adquiram um tesouro bem alicerçado para o futuro
para que consigam a vida eterna 5• ·
Os que assim usavam das suas riquezas foram com-
pensados das suas ligeiras perdas com grandes lucros. A
alegria que experimentaram por terem colocado a bom
recato os bens que gostosamente distribuíram foi maior do
que o desgosto sofrido com a perda alegre dos bens que
possuíam sem apego. Pode bem perder-se na Terra o que,
com pesar, dela se não pode levar. De facto, os que ouvi-
ram esta recomendação do Senhor
Não queirais amontoar tesouros na Terra, onde a traça
e a ferrugem os corroem e onde os ladrões cavam e os furtam;
mas entesourai tesouros no Céu, onde o ladrão não chega nem
a traça os rói: é que onde está o teu tesouro aí estará também
o teu coração 6
-esses puderam experimentar no tempo da tribulação
quão rectamente procederam por não terem desprezado os
ensinamentos do mais verdadeiro dos mestres e do mais leal
e invencível guardião do tesouro. Se muitos se alegraram
por terem colocado as suas riquezas onde de facto o ini-
migo não chegou- com quanta maior certeza e segurança
poderão alegrar-se os que seguiram o aviso de Deus e as
levaram para onde jamais o inimigo poderá ter acesso!
O nosso Paulino, bispo de Nola, que voluntariamente
passou de muito rico para muito pobre e eminentemente
. (127]
santo, quando os bárbaros devastaram Nola e por eles foi
aprisionado, rezava assim no seu coração como posterior-
mente dele soubemos:
Senlwr, que eu não seja torturado por causa do ouro ou
da prata. Tu sabes bem onde estão todas as minhas coisas 1.
7
Domint, non txCTUCin propter aurum ti argmtum; ubi ttrim sint omnia
mea tu SO:S{a).
(a) Em parte nenhuma da correspondência trocada
entre Santo Agostinho e S. Paulino de Nola se encontra
referido este caso, provavelmente porque essa correspon-
dência se perdeu.
Nasceu Paulino em Bordéus no ano de 353 e morreu
em Nola em 431, de fanúlia patrícia romana. Exerceu
cargos públicos em Itãlia, onde viveu durante muito tempo.
Viveu depois em Espanha, donde era a mulher com quem
casou e onde foi ordenado presbítero. Voltou a Itália,
onde foi sagrado bispo de Nola.
Trocou correspondência com Santo Ambrósio, Santo
Agostinho e S. Jerónimo. Embora nunca, que se saiba, se
tenha encontrado com Agostinho, a correspondência entre
ambos trocada revela que os unia uma profunda amizade.
Por volta de 395, servindo Alípio de intermediário,
Santo Agostinho enviou-lhe algumas das suas obras que
Paulino, ainda por intermédio de Santo Alípio, agradeceu
vivamente (Ep. 4- Agost. Ep. 25- P.L. XXXIII, 101,
103). Por não ter obtido resposta imediata a esta carta e
receando que ela se tivesse extraviado, Paulino voltou a
escrever a Agostinho (Ep. 6 de Ag. , ep. 30- P.L.
XXXIII, 120-122). Agostinho, que já tinha respondido à
primeira (Ep. 27- P.L. XXXIII , 107-111 ), respondeu
igualmente à segunda (Ep. 31- P.L. XXXIII, 121-125)
pouco depois de ter recebido das mãos de V alério a sagra-
ção episcopal.
Da maior parte da correspondência trocada entre os
dois, só nos restam fragmentos.
[128]
Ele tinha de facto todas as suas coisas onde lho tinha
indicado Aquele que predissera que haviam de vir ao
mundo todos estes males. Por isso é que, quando da inva-
são dos bárbaros, nem sequer as suas riquezas terrenas
[131]
CAPITULO XJ
(133]
para que morram, mas antes para onde terão de ir irre-
mediavelmente depois da morte. Os cristãos sabem que foi
muito melhor a morte do pobre piedoso entre os cães que
o lambiam, do que a do impio rico entre púrpuras e
linhos. Em que podem então prejudicar aos que viveram
sem mácula as formas horríveis de morrer?
[134)
CAPITULO XII
1 Nolite tinJere eos qui corpus occidum, animam autem 11011 posswuiXCidere:
Mlt., X, 28.
2 Qr1i C«pUS IXCidunt et postea non hahent quod ftJÓanl.
Luc., XII, 4.
[135]
dade. Diz-se que eles realmente algum dano causam
quando matam, pois que o corpo tem sensações ao mor-
rer. Depois, já nada há a fazer, porque já não há sensibili-
dade no corpo morto. Na verdade, a terra não cobriu
muitos corpos cristãos; mas o que não conseguiram foi
expolsar ninguém dos espaços do Céu e da Terra, cheios
como estão da presença d'Aquele que sabe onde fará surgir,
pela ressurreição, o que Ele mesmo criou. Diz realmente
o salmo:
Deixaram os caáávtm dos ttu.s servos em pasto às aves
do du t a carne dos teus santos às feras da tma. Dmammam
o seu sangue como água à volta de Jerusalém t não havia
quem os sepultasse 3•
Mas estas palavras são mais para vincarem a crueldade dos
que tal fizeram do que o infortúnio dos que tal sofreram.
Embora estas coisas pareçam efectivamente duras e cruéis
aos olhos dos homens, todavia
predosa é aos o/Jws de Deus a morte dos stu.s santos 4 •
Portanto, tudo isto, ou seja: os cuidados fúnebres, a
qualidade da sepultura ou a solenidade das exéquias, cons-
tituem mais uma CO.!l.solação dos vivos do que um alívio
dos defuntos. Se ao ímpio serve de proveito uma sepultura
de alto preço, ao piedoso tai'lto faz uma ordinária ou
mesmo nenhuma. Brilhantes funerais, aos olhos humanos,
prestou a multidão dos seus servidores ao famoso rico
purpurado. Mas muito mais brilhantes perante o Senhor
ofereceu ao pobre coberto de úlceras o exército dos anjos
que não lhe erigiram um túmulo de mármore mas o colo-
caram no seio de Abraão.
3
Posutrunt morta/ia st~WTUm tucrum escam volatilibus C«Ü, camtS
sanaorum tuorum bestiis rmoe; tffuáenmt sanguintm eorum sicur aq1lam in
circuiJu Hitnwlnn, tt tum eraJ. qui stptliret.
Salmo LXXVllJ, 2-3.
• Prltiosa in COtiSp«tll Domini mm soaorum tjus.
Salmo cxv. 15.
[136)
Disto se nrao aqueles contra os quais decidimos
defender a Cidade de Deus. Todavia, também os seus ftló-
sófos têm mostrado desprezo pelo cuidado com a sua
sepultura. E até exércitos inteiros, ao morrerem pela
pátria terrena, se não preocuparam com o lugar onde
viriam a jazer nem de que feras seriam alimento. A este
propósito puderam dizer os poetas com aplauso dos seus
leitores:
Quem não tem urna é coberto pelo céu 5•
De forma nenhuma devem insultar os cristãos por
causa dos corpos insepultos. A eles foi prometida a
reforma da própria carne e de todos os membros, não
somente à custa da terra mas ainda do seio mais secreto
dos outros elementos em q·ue se tenham convertido os
cadáveres ao se desintegrarem. Num instante voltarão à
sua integridade.
[137]
CAPITULO XIII
[141]
CAPITULO XV
(145]
CAPITULO XVI
[147]
CAPITULO XVII
[149)
CAPITULO XVIII
(151)
Nem o corpo é santo pelo facto de os seus membros
se manterem íntegros ou pelo facto de não terem sido
objecto de qualquer contacto, pois, por diversas razões,
podem sofrer lesões e violências. Os mé.dicos por vezes
praticam, por razões de saúde, actos que repugnam à vista.
A parteira, ao verificar com a mão a integridade de uma
donzela, pode destruir essa integridade por maldade, por
imperícia ou acidentalmente. Julgo que não haverá nin-
guém tão estulto que pense que a santidade da donzela,
inclusive a corporal, se rebaixou devido a essa falta de
integridade. Quando o espírito se mantém firme, no pro-
pósito que lhe mereceu a santidade, mesmo corporal, não
se arranca essa santidade pela violência da concupiscência
alheia. A perseverança da sua continência mantém-lhe a
santidade.
Se porém uma mulher de coração corrompido viola
a promessa feita a Deus e procura um sedutor para se
entregar à paixão viciosa -diremos que, enquanto vai a
caminho, conserva a santidade corporal depois de ter per-
dido e destruído a do espírito, que tomava santo o corpo?
Longe de nós tal erro. Tiremos do exposto antes a lição
~eguinte: a santidade do corpo, mesmo em caso de violên-
cia, não se perde se permanecer a santidade do espírito;
mas perde-se, mesmo que o corpo se mantenha intacto, se
se perder a santidade do espírito. Por isso é que não há
qualquer razão para se castigar a si mesma com a morte
espontânea a mulher violentamente profanada e vítima de
pecado alheio. Muito menos, antes que isso aconteça. Por-
que havemos de consentir um homiódio certo, quando a
própria torpeza, ainda por cima alheia, é incerta?
[152)
CAPITULO XIX
[153)
a casosstma vontade da outra. Atende, não à união dos
corpos mas à separação das almas, quando diz:
Foram dois e só um cometeu adultério 2 •
Mas que é isso? Será que a vingança vai recair com
mais rigor sobre quem não cometeu adultério? Na ver-
dade, Tarquínio foi expulso da pátria com seu pai; mas
Lucrécia foi imolada com o supremo castigo. Se não há
impudiócia na vítima violentada,- também não há justiça
quando quem sofre o castigo é a mulher casta. Apelo para
vós, leis e juízes romanos! Depois de se cometer um
crime, nunca tendes permitido que o réu seja impunemente
executado sem que antes haja decisão judicial. Se alguém
apresentasse este crime perante o vosso tribunal e ficasse
provado, não só que sem prévia decisão foi a sassinada
uma mulher, mas ainda que o foi uma mulher casta e
inocente- não aplicaríeis rigorosamente a quem o come-
teu a pena adequada? Foi o que fez Lucrécia. E1 , a tão
exaltada Lucrécia, ela sim, é que matou uma Lucrécia
inocente, casta e, para mais, vítima de violência. Proferi a
sentença! Se não o podeis fazer porque já se não pode
apresentar quem poderíeis punir- porque louvais, com
tanta exaltação, a homicida duma inocente e casta?
Certamente que não tereis argwnentos para a defender
perante os juizes dos infernos, mesmo que estes sejam
como os cantam os vo sos poetas nos seus poemas. Com
certeza que ela se encontrará entre aqueles
que, sendo ÍtU>Cetltes, com suas próprias mãos se
mataram e exaltaram suas vidas renegando a luz 3
e, quando pretenda voltar à terra,
(154)
os fados obstam a isso'e o charco odioso retém-na presa
nas suas repugnantes águas 4 •
Será que talvez ela se não encontre lá por ter acabado
com a sua vida, não inocente mas consciente da sua malí-
cia? Será que (só ela o poderá saber), depois de violentada
pelo tal jovem, ela mesma, arrastada pelo próprio prazer,
consentiu- e foi tão grande a sua dor que decidiu expiar
esse prazer em si mesma com a morte? .tyiesmo assim não
devia suicidar-se, se é que havia possibilidade de fazer
perante os seus falsos deuses uma frutuosa penitência. Em
tal caso, é falso aquele dito: «houve dois e só um cometeu
adultério>t. Convém antes dizer que ambos foram adúlteros
-um com a sua evidente violência, a outra com a sua
latente adesão. Não se suicidou sendo inocente e não
podem por isso dizer os literatos que a defendem que não
está nas moradas infernais entre os
que1 sendo inocentes1 com suas próprias mãos se
mataram ·.
Mas assim, este caso sofre de defeito por dois lados: se se
atenua o homicídio -reforça-se o adultério; se se desculpa
o adultério- agrava-se o homicídio. Não há saída possível
quando se diz: se é adúltera, porque é que se exalta? Se é
casta, porque é que se suicida?
A nós porém,- para se confundirem os que, alheios
a considerações de santidade, insultam as mulheres cristãs
violadas durante o cativeiro- , basta-nos, no exemplo tão
nobre desta mulher, o que, como um dos maiores louvo-
res, foi dito:
Foram dois e só um cometeu adultério .
Tinham Lucrécia em tal conta que a julgaram incapaz de
se macular com um consentimento adulterino.
· O facto de se ter suicidado por ser vítima de um
adúltero sem ser adúltera não constitui amor à castidade,
4
Fas obstai, tristisque palus inamabilis undae
Adligat
Id. lb. 439.
. [155]
mas debilidade da vergonha. Efectivamente, envergonhou-
-se da torpeza alheia cometida em seu corpo embora sem
cumplicidade da sua parte. Como romana que era, dema-
siado ávida de glória, teve receio de que a violência
sofrida durante a sua vida, a interpretasse o público como
consentida se continuasse a viver . .E por isso que ela julgou
que devia apr:esentar aos olhos dos homens aquele castigo
como testemunho da sua intenção, já que não podia
mostrar-lhes a sua consciência. Encheu-a de vergonha a
ideia de poder ser julgada cúmplice do que outrem torpe-
mente nela realizara sem o seu consentimento interiqr.
Não procederam assim as mulheres cristãs que, ape.-
sar de terem suportado situações semelhantes, continuam a
viver. Não vingaram em si um crime alheio, para não
acrescentarem o seu aos crimes dos outros. O facto de
inimigos terem cometido, por concupiscência, uma viola-
ção, não as levou a cometerem, por vergonha, um homi-
cidio contra si próprias. No seu íntimo, mantêm com cer-
teza a glória da castidade e o testemunho da sua consciên-
cia. Mantêm-na também perante o seu Deus e de nada
mais precisam. Isto lhes basta para procederem com
rectidão- não aconteça que, para evitarem a ferida da
suspeita humana, se desviem da autoridade da lei divina.
[156]
CAPITULO XX
(157]
que não é licito ao homem acabar com a própria vida, já
que no texto non occides 1 sem mais acrescentamentos, nin-
guém se pode consider: r exceptuado, nem mesmo aquele
a quem é dirigido o preceito.
Daí que alguns pretendam estender este preceito aos
animais selvagens e domésticos, e por ele lhes seja vedado
matá-los. E porque não também às plantas e tudo o que
por raízes se fixar ao solo e dele se alimenta? Efectiva-
mente, as coisas deste género, embora não sintam, diz-se
que vivem e por isso podem morrer e até se podem matar
se se usar de violência. A propósito, diz o Apóstolo falando
das sementes das plantas:
O que semeias não se vivif~eará se não morrer 4 •
E no salmo está escrito:
Matou-lhes as vinhas com granizo 5•
Quer dizer que, em virtude do preceito non occides 1,
devemos considerar ilicito arrancar abrolhos, e adoptar
estultamente o erro dos maniqueus? Arredemos pois estes
devaneios e quando lermos non ocddes 1 não incluamos
nesta proibição as plantas que carecem de sensibilidade,
nem os animais irracionais, tais como as aves, os peixes, os
quadrúpedes, os répteis, diferentes de nós na razão pois
que a eles não foi concedido participar dela connosco. Por
justa disposição do Criador, a sua vida e a sua morte estão
ao nosso serviço. S6 nos resta concluir que temos de apli-
car apenas ao homem as palavras não matarás 1 -nem a
outro nem a ti próprio matarás pois quem a si próprio se
mata, mata um homem 6.
4
Tu quod stminas non vivifiCQlur, nisi moriatur.
I Cor., XV, 36.
5 Occidit viús torUm in grandint.
Salmo LXXVll, 47.
6 Questão do suiédio.
[159]
CAPITULO XXI
[161]
geral por uma Jei justa, quer de um modo particular pela .
própria fonte da justiça que é Deus- o que matar um
homem, quer se trate de si mesmo, quer se trate de qual-
quer outro, é arguido do crime de horniódio.
[162)
CAPITULO XXII
(164]
CAPITULO XXIII
[166]
CAPITULO XXIV
(168]
CAPITULO XXV
[170]
CAPfTULO XXVI
1
• N1!17W scit quiJ agatur in homw nisi spiritus hominis, qui in ipso est.
Cor., ll, 11.
[172)
CAPITULO XXVII
Deve-se desejar a morte voluntária
para evitar o pecado?
Resta uma razão, de que jã tinha começado a falar,
egundo a qual pareceria útil o suióclio, ou seja, para que
se não caia em pecado quer sob as caricias da voluptuosi-
dade quer sob o aguilhão da dor. Se quiséssemos admitir
esta razão, pouco a pouco ela nos levaria a aconselharmo
os homens a preferirem matar-se no momento em que,
purificados pela água santa da regeneração, receberam a
remissão de todos os pecado . Na verdade, a ocasião de e
evitarem os pecados futuros é aquela em que são apagados
todos os pecados pas ados. Se é lícito obter este resultado
pela morte voluntária, porque não a causar nesse momento?
Porque é que todos os baptizados se poupam? Porque
é que de novo oferecem a cabeça, já livre, a tantos perigos
de ta vida, tendo à mão uma solução tão fácil de os evitar
entregando-se à morte? Não está escrito:
Qt1em ama o perigo cairá nele 1?
Porque se amam, poi , tantos e tão grandes perigos ou,
pelo menos, ainda que e não amem, as pessoa a eles se
expõem, permanecendo na vida quem dela pode licita-
mente ausentar-se?
Mas como é qu uma tão estúpid perversão pode
transformar-nos o coração e desviá-lo da contemplação da
verdade até ao ponto de julgarmos que temos o dever de
no matarmos para não cairmos em pecado sob a pressão
de um prepotente, e, ainda, que somo obrigado a viver
para suportarmos até ao fim éste mundo, a toda a hora
cheio de tentaçõe - não só as que rece mos do prepotente
1
Qui amai periculrtm i11ddit i11 ii/um .
Ecle. 3,27
[173]
mas também as outras, tantas e tão grandes, que resultam
da vida que temos de suportar?
Para quê então perder tempo com sermões cheios de
zelo para inflamar os baptizados em desejos de integridade
virginal ou de continência na viuvez., ou de fidelidade con-
jugal, quando dispomos de um método muito mais prático
e livre do perigo de pecar: -aconselhar a todos cujos
pecados acabam de ser perdqados que abracem imediata-
mente a morte, provocando-a, para os enviarmos ao
Senhor mais sãos e mais puros?
Mas se alguém julga que se deve tentá-lo ou aconselhá-
-lo- não lhe digo: «perdeste a consciência» - mas sim:
«perdeste o juízo,.. Com que cara se poderá dizer a um
homem- «mata-te, não aconteça que enquanto vives sob
o poder de um senhor sem vergonha, de bárbaros costu-
mes, acrescentes aos teus pecados leves um grave»? S6 o
maior celerado poderá dizer: «Mata-te, agora que todos os
teus pecados estão perdoados, não aconteça que voltes a
cometê-los de novo ou ainda piores enquanto viveres num
mundo lisonjeiro, com tantos prazeres impuros, enlouque-
cido por tantas crueldades nefandas, inimigo com tantos
erros e terrores». Pois se é um crime falar assim, indubita-
velmente que é um crime alguém suicidar-se. Se pode
haver uma justa razão para que alguém voluntariamente
se dê a morte, sem dúvida que mais justas do que estas se
não podem apresentar. Mas, se realmente estas não são
justas, então nenhuma o é.
[174)
CAPITULO XXVIII
1
ne malilia mutarn inrtleawn rorum.
Sap. Salom., IV, 11.
[176]
tal dos inimigos, - a nenhumas se lhes arrebatou a casti-
dade mas antes se lhe fortaleceu a humildade. Das primei-
ras se curou· a vaidade latente; às segundas se evitou uma
vaidade iminente.
Há ainda outro ponto que se não deve deixar em
silêncio: a algtJmas que sofreram estas coisas pode parecer
que o bem da continência se deve considerar como um dos
bens corporais e que se conserva se o corpo continuar livre
de todo o contacto libidinoso com outro, em vez de residir
apenas na fortaleza da vontade ajudada por Deus, santifi-
cando assim não só o espírito mas também o corpo. Este
bem não é tal que não possa ser arrebatado mesmo sem
consentimento. Deste erro foram talvez.libertadas:
- quando pensam com que sinceridade serviram a
Deus;
-quando com fé inabalável estão convencidas de
que, às que assim o servem e lhe suplicam, Deus de
maneira nenhuma pode votá-las ao abandono;
-quando tudo isto nelas está arraigado- concluem
claramente: Deus jamais poderia permitir que estas coisas
acontecessem aos seus santos, se deste modo pudesse pere-
cer a santidade que lhes confiou e que neles ama.
(177]
CAPITULO XXIX
1
Ubi tst Dtus tuus?
Salmo XLI, 4.
(179]
tados, tem-me reservada uma recompensa eterna. Mas
vós, quem sois vós para merecerdes que convosco se fale
seq~er dos vossos deuses e muito menos do meu Deus, que
é mais terrível que todos os deuses, pois os deuses dos
gentios são os demónios, M passo que o Senhor fez os Ceus 2•
2 Terribilis est super omnes deos: quoniam dii gentium Jaemcnia, Dominus
autem Caelos fecit.
Salmo XCV; 4-5.
[180]
CAPITULO XXX
[182)
CAPITULO XXXI
[183]
convencê-lo a não consentir na infiltração da lasóvia grega
nos costumes varonis da pátria e a nã_o tolerar a ruína e a
morte da virtude romana por causa da depravação estran-
geira. Foi tal o poder das suas palavras que o Senado
mudou de disposição; proibiu que se colocassem assentos
de que, à hora ap.razada, os cidadãos se começavam a ser-
vir para os espectáculos.
Com que cuidado não teria este homem retirado de
Roma os próprios jogos cénicos se tivesse ousado resistir à
autoridade dos que ele considerava como deuses! Não se
apercebia de que eram nocivos demónios, ou, se o sabia.
pensava que era melhor aplacá-los do que desprezá-los.
Ainda não tinha sido anunciada aos povos aquela suprema
doutrina que, limp~do o coração pela fé, poderia mudar
as aspirações ho.manas e tenderia para os bens celestes e
supracelestes com humilde espírito religioso liberto da
tirania de soberbos demónios.
[184]
CAPITULO XXXII
[185]
trevas e tomou-os tão clisformes, que agora (a posteridade
talvez não acreclite se lhe chegar ao ouvido), desvastada
que foi Roma, os contagiados desta peste que na fuga con-
seguiram chegar a Cartago, todos os clias e à porfia e
encontram no teatros enlouquecidos pelos histriões.
(186]
CAPITULO XXXIII
[187]
CAPITULO XXXIV
[189]
CAPITULO XXXV
(191]
Para glória da cidade de Deus, que brilhará com
mais claridade em contraste com os seus opostos, - vou
expor a minha opinião acerca da sua origem, do seu
d_esenvolvimento e dos fins respectivos, conforme a ajuda
que receber de Deus.
[192]
CAPITULO XXXVI
[194)
LIVRO II
No qual se discutem os males que, antes d~ Cristo,
quando vigorava o culto dos falsos deuses, os
Romanos sofreram;- e se demonstra:
-primeiro- que se acumularam, com a colaboração
dos falsos deuses, os maus costumes e os vícios da
alma, únicos, ou pelo menos, os mais graves males
dignos de consideração;
-segundo- que os Romanos não foram destes males
libertados por esses falsos deuses.
[195)
CAPITULO I
[198)
CAPITULO LI
[200]
CAPITULO III
[201]
CAPITULO IV
1
Ftrculum (pi. Jtrcu/4), é um derivado do verbo ftro (transportm),
pelo que o seu significado próprio é co que serve para transportan.
Daí o significado ora de cliuira, em que são transportadas pessoas, ora
de «pratO», bandeja, em que são transportadas comidas, iguarias; e,
finalmente , como no caso presente, tomando-se o conteúdo pelo con-
tinente, o de «iguarias». V. M. Bréal et An. Bailly in .Ltfons tk Mots-
Dict. Etym. l.At. , Paris, p. 90 Cfr. Ho.rácio in Sat. 11, 6, 104. V. ainda
Emout-Meillet, Dict. Etym, tk la lan~ lat~. p. 346.
[204]
CAPfTULO V
1
Segundo o filósofo grego Evémero, os deuses mais não são que
poderoso reis que o seus súbditos divinizaram após a morte por
lisonja ou por reconhecimento para com o seus méritos.
É possível que S:)nto Agostinho tenha tomado conhecimento do
Evemeri mo através de Ocero que aceita esta explicação hi toricista
do fenómeno nútico pelo menos em relação a Hércules, Ca tor, Pallu.~
e liber (v. ~natura tkornm, 11, 24).
Embora esta explicação não encontrasse aceitação entre os gregos
(Calimaco, Eratóstenes, Estrabão, Plutarco), foi porém defendida pelos
romanos (Énio, EviJtmtn1s, sivt Sacra Historia) c pelos apologistas judeus
(Uvro da Sabtdaria XIV, 15 scgs.) e cristãos (Lactânio Div. Insr. XI, 45-48
e 63-65. Santo Agostinho. ~ Ci~. ~. IV, V; VIII, 26; XVIII, 5, 14,
19). V. A. Mandouze, Saint Augusrin ti la religion romaint in Rech.
Aug~min. J. Paris, 1958, p. 157 e segs; G. Nemety, Evhtmtri rtliquiae,
Budap., 1889.
[205)
para sua mãe a maior das felicidades possíveis. Mas se em
seguida lhe perguntassem se queria que entre as honras
divinas se celebrassem aquelas torpezas, - não clamaria
ele que preferia ver sua mãe prostrada sem sentidos,
morta, a vê-la viva para, como deusa, ter de ouvir com-
placentemente tais coisas? Longe vá o pensamento de que
um senador do Povo Romano dotado de uma mentalidade
tal que proibiu a construção de um teatro nesta cidade de
varões fortes , quisesse para sua mãe um culto em que ela
aceitaria benevolamente, como deusa, sacri6cios cujos
ritos a ofenderiam como matrona. De maneira nenhuma
ele acreditaria que a divinização transfoàt}aria em seu
contrário o pudor de uma mulher digna de louvor a ponto
de os seus adoradores a invocarem com honras quejandas.
Porque, para as não ouvir quando proferidas não interessa
contra quem, no tempo em que ela vivia entre os homens,
teria tapado os ouvidos e pôr-se-ia em fuga sob pena de
fazer corar com vergonha dela os seus vizinhos, o seu
marido e os seus filhos.
E, assim, tal mãe dos deuses, a quem o homem mais
perverso teria vergonha de ter por mãe, escolheu o
melhor varão, não para o ajudar e aconselhar mas para o
enganar com disfarces à maneira da mulher da qual está
escrito «Mas a mulher apodera-se das predosas almas dos
homens 2 ; o que ela quis foi que aquela alma de tão elevado
carácter, arrastada por um pretenso testemunho divino, e
na verdade a si mesma se considerando como a melhor,
não procurasse a piedade e a religião verdadeiras sem as
quais a soberba esvazia e dt;rruba todo o génio, mesmo o
mais digno de louvor. Como pois escolheria essa deusa tão
bom varão senão insidiosamente, quando procurava para
os seus ritos sagrados obscenidades tais que os melhores
homens evitavam que fossem mostradas aos seus convi-
dados?
2
Mulier autem viTorum pwiosas animas cavtat.
Prov. , VI, 26.
[206]
CAPITULO VI
1
Fr~golia era o nome que se dava à festas comemorativa. da
expulsão do reis, a seguir 1ts Tcrminalia, ambas em Fevereiro. O
nome dcriV2 na realidade do verbo fugio, com o significado de fugir, de
raiz comum com o verbo grego ·~CÚ"'(<O · e o subst. ~uyi) (fuga).
[207]
-onde escão os lugares destinados a ouvir o precei-
tos dos seus deuses para reprimirem a avareza, destruirem
a ambição;
-onde os povos ouçam o que os deuses preceituam
acerca da repressão da avareza, da destruição da ambição,
do refreamento da luxúria;
-onde os desgraçados aprendam o que se deve
saber como cão estrondosamente o proclamou o vos o Pér-
sio ao dizec
Aprendei ó místros, e tomai conhecimento das causas
Jas coisas:
Que somos nós? nascemos para ter que vitÚJ?
Que lugar nos é concedido? e por que suave viragem
dobramos?
Destk que ponto e por omk o nosso caminho dobrará
suavemente o marco tÚJ meta?
Que medida impor ao dinheiro? que é lícito desejar?
Qual a utilidatk da motda acabada tk faztr?
Quanto se deve dar à pátrio e aos amados parentes?
Que homem tt ordena Deus que sejas? Qual o ttlf
lugar na humanitÚJtÚ 2?
Digam em que locai costumavam os deuse ensinar
esses preceitos e por que povos seus adoradores eram habi-
tualmente ouvidos- tal qual como nós, que mostramos as
igreja para isso construídas por onde quer que se difunda
a religião cristã.
(208]
CAPITULO VII
[210)
CAPITULO VIII
(212]
CAPITULO IX
1
Nunquam comotdi« nisi c.onsuttuclo vit« paltrttur, probart sua thtatris
plagitia potuisstnl.
Cic., Dt rtpublica, VI, 11-12.
2
Quml illtz non aJtigit? Vtl potíus qutm non wxavit? cui ptptrcit? Esto,
popularrs hcmints inprobas, in rt public4 ~Jttiosos, Ckontm, Ckophontmr
Hypnbolum lotsiz.
Id. Ib.
[213]
Continua:
-Embora ddadãos deste jaez devam ser postos· a
descoberto pelo censor de preferência a sê-lo pelo poeta - supor-
temo-lo. Mas a um Péricles que governou· a sua própria ddade
durante anos, com a maior autoridade, na paz e na guerra,
vê-lo ultrajado em versos representados em cena não desagrada
menos do que se o nosso Plauto ou Névio quisessem maldizer
a Públio e a Gneu Cipião, ou Ceá~io a Marco Catão 3 .
' Patiamur ttsi ejus modi âves a censort ~lius est quam a poeta notari. ·
Sd Peridem, cum jam suat âvitati maxima autoritJJtt plurimos anncs domi et
bel/i praefuisset, violari versibus; et tos agi in scatna, non plus decuit quam si
Plaucus noster voluisset, aut Ntvius Publio et Gneo Scipioni aut Caeâlius Marco
Catoni maltdiare.
ld.lb.
4 Nostrae contra duodedm tabulae cum perpaucas rtS capite sanxissent, in
. [214]
trando como aos antigos Romanos desagradava enaltecer
ou ultrajar em cena um homem ainda em vida. Mas, como
disse, os Gregos preferiram permiti-lo, porque lhes pare-
ceu mais conveniente embora mais impudente; viam que
os deuses aceitavam c lhes agradavam as intamias não só
dos homens mas também as dos próprios deuses, compos-
tas para o teatro, fossem elas ficções dos poetas ou autên-
ticas perversidades representadas no palco. E oxalá elas
provocassem apenas o riso no seus adoradores e não tam-
bém a imitação. Teria sido orgulho demais respeitar a
reputação das autoridades do Estado e dos cidadãos quando
nem os deuses quiseram que a sua fama fosse poupada.
[215)
CAPITULO X
(217]
grandes ultrages no teatro, de forma nenhuma deviam ser
os homens poupados pelos poetas: procediam assim porque
pretendiam assemelhar-se aos seus deuses e porque recea-
vam provocar a cólera destes se eles próprios, simples
homens, gozassem de melhor reputação e, por isso, lhes
passassem à frente.
(218]
CAPITULO XI
1
Acerca deste misterioso Labdo (houve um M. Antistius Labeo
jurisconsulto, contemporineo de Augusto; um Comelius Labeo, citado
por M2cr6bio, Sénio e Lido, autor de ~ oraaJo Apollinis Clarii e de Dt
Jiis animalibus que parece ser o autor citado por ~anto Agostinho). V. S.
Muelleneisen, ~ G. lAbconis ftagmmris, srudüs,. asstaatoribus, M2rburgo,
1889; Gabarron. Amobt, son Mtvrt, Paris, 1921; George E. Me Cracken,
Amobiu.s of Sicca, Tk case against Tk pagans, Wesaninster, 1949, t. I, p
39 e segs e 259 e segs; Boehm, Dt Corntlii Labtonis at14U, KOnigsberg,
1913; Niggetiet, ~ Comtlio IAbtrmt, Münster, 1~; Fesrugiere, lA
DoctriM tks «Viri Novi» sur /'origine tt sur la vit tks ãmts J'aprts Amobt, em
MtmeMI JíJgrange, Paris, 1940, pp 97- 131.
1
úctistmúum (pl.-a) era um banquete ritual em honra dos deuses.
Colocavam-se as estátua dos deuses em leitos (lectum, pl.-a) em
frente da mesa com iguarias como se eles fossem os comensais.
CAPITULO XII
[222]
CAPfTULO XIII
1
Cum tlltem ludiaam scomamque totam in probo duarmt, gmus id
hominum non modo horwrt dvium reliquorum carert, ud etiam tribu moveri
notatione censoria volununt.
acero, Dt rtpublica, IV, 10.
(224]
devem ser venerados, também tais homens devem ser com
certeza honrados. Contestam os Romanos: mas a tais
homens de forma nenhuma se devem conceder tais honras.
Concluem os Cristãos: portanto, de nenhum modo devem
tais deuses ser venerados.
[225]
CAPITULO XIV
[227]
grados e solenemente celebrados. A quem deveria então a
cidade prestar mais dignamente honras divinas, a Plaúo
que proibiu essas nefastas. indecências, ou aos demónios,
que se comprazem em assim enganarem o homens que
aquele não conseguiu trazer à verdade?
Labeão foi de parecer que Platão devia ser colocado
entre os semideuses como Hércules e Rómulo. Punha
porém os semideuses acima dos heróis, contando a uns e
outro entre as divindades. Mas eu não tenho dúvidas em
pôr estes semideuses acima dos heróis e até dos próprios
deuses. As leis dos Romano aproximam-se dos pontos de
vi ta de Plaúo:
- este condena todas as ficções poéticas; -aqueles
por sua vez tiram aos poetas a liberdade de pelo menos
maldizerem os homens;
-este impede os poetas de habitarem na sua própria
cidade; - aqueles pelo menos afastam os actores de fábulas
poéticas do convívio da cidade. E, se rives em a ousadia
de, em alguma coisa, se oporem aos deuses (que suspiram
por jogos cénicos) talvez fossem de toda a parte repelidos.
De forma nenhuma podem, portanto, o Romanos
esperar ou receber dos seu deuses leis que formem bons
costumes ou corrijam os maus. Os Romanos é que, com a
suas leis, vencem e convencem o deuses:
-estes pedem jogos Génicos em sua honra- e são
os Romanos que excluem de todo os cargos honoríficos
os homen de teatro;
-os deu es ordenam que, em sua honra, se repre-
sentem as vilania divinas em ficções poéticas- e são os
Romanos que proíbem a impudência dos poetas de atentar
contra a dignidade dos homens.
Mas Plaúo, aquele semideus, não só se opôs à lasd-
via de tais deuses, como ~mbém mostrou o que se devia
aperfeiçoar na índole dos Romanos. Ele é que de forma
nenhuma consentiu que, numa . cidade bem organizada,
vivessem os poetas quér como inventores sem peias de
mentiras, quer como expositoré dos péssimo feitos do
[228]
deuses que deveriam ser imitados pelos desgraçados dos
homens. Não é que reconheçamos Platão como um deus
ou um semideus, nem o comparemos sequer com nenhum
santo anjo de Deus Altíssimo, nem com um verdadeiro
profeta, nem com qualquer apóstolo ou mártir de Cristo,
nem mesmo com qualquer homem cristão. Se Deus nos
ajudar, na altura própria apresentaremos a razão deste
nosso parecer. Mas, já que quiseram fazer de Platão um
semideus, julgamos que deve ser posto à frente, se não de
um Rómulo e de um Hércules (embora este último, a
acréditar nos ditos dos historiadores ou nas ficções dos
poetas, não tenha morto seu irmão nem cometido infàmia
alguma), pelo menos de um Priapo ou de qualquer Cino-
céfalo ou, por fim, de uma Febre- divindades que os
Romanos em parte importaram do estrangeiro e em parte
eles mesmos constituíram como seus próprios deuses.
Como é que, pois, semelhantes deuses seriam capazes
de prevenir com os seus preceitos e as suas leis tão graves
males do espírito e dos costumes?-Ou, se já estavam
arraigados, como é que os iam extirpar, ele que tiveram
o cuidado de semear e de desenvolver' os seus vergonhosos
gérmenes? Porque quiseram dar aos seus crimes, reais ou
fictícios, a solene publicidade do teatro, para que, graças à
ua autoridade divina, se atiçasse o fogo, já tão maléfico,
das paixões humanas? Foi bem em vão que Cícero,
quando falava dos poetas, exclamou.
«Quando lhes chegam o clamor e os aplausos do povo,
como se de um grande e sapiente mestre se tratasse- que
trevas se espargem! que terror que inspiram! que pajxões que
ateiam!» 1•
tJ sapientis magistri, qllllS if/i obduamJ tmmas, quos invthunt TMUS, quas
injlammant e~~pidicaus!
Cícero, De Rtpublica, IV, 9.
[229)
CAPITULO XV
(231]
CAPITULO XVI
[233]
CAPITULO XVII
1
ps bonum~ apuJ eos non kgibu.s magis quam MIUra valeba1.
Salústio, Gnilina, IX, 1.
[235]
mente levar as rapariga que injustamente lhes tinham sido
negadas. Mas raptar em tempo de paz as que não lhes
tinham sido concedidas é contra todo o direito, gerando
assim uma guerra injusta contra seus pais justamente
indignados. Isto teve resultados mais úteis e mais felizes:
embora se tenha mantido, sob a forma de espectáculo de
circo, a recordação desta fraude o exemplo desta má
acção não conseguiu o ·agrado naquela cidade imperial. O
erro dos Romanos está mais em terem consagrado Rómulo
como deus depois daquela iniquidade, do que permitirem,
por qualquer costume ou lei, à sua imitação o rapto de
mulheres. Foi em virtude deste sentido de direito e do
bem que, depois de, com seus filhos, ter sido expulso o rei
Tarquínio, cujo filho violentara Lucrécia, o cônsul Júnio
Bruno obrigou Lúcio Tarquinio Colatino, marido da refe-
rida Lucrécia e seu colega, varão bom e inocente, a aban-
donar a magistratura por causa do nome e do parentesco
dos Tarquínios, e nem sequer lhe permitiu que continuasse
a viver na cidade. Colatino como também o próprio
Bruto, tinha recebido o consulado do povo que favoreceu
ou permitiu essa iniquidade.
Foi em virtude ainda desse «sentido do direito e do
bem», que Marco Camilo, (varão ilustre daquele tempo,
que com toda a facilidade derrotou os Veientes, perigosis-
simos inimigos do Povo Romano, depois de uma guerra de
dez anos em que o exército romano, combatendo mal,
ofreu várias vezes érios revezes a ponto de a própria
Roma tremer e duvidar da sua salvação) tomou a opulen-
tís ima urbe deles- ma a inveja dos caluniadores do seu
valor e a insolência do tribunos da plebe, declararam-no
réu. Sentiu que aquela cidade que libertara era tão ingrata
que, ceróssimo da condenação, espontaneamente se reti-
rou para o exílio. Já us nte, foi condenado ainda em dez
mil moedas de cobre, ele que, em breve, de novo salvaria
dos Gauleses a sua ingrata pátria.
Já me repugna relembrar tantos factos vergonha os e
injustos por que era sacudida aquela cidade, quando os
[236)
poderosos procuravam sujeitar a plebe e esta se recusava a
sujeitar-se-lhes, trabalhando os defensores de uma e outra
facção, mais pelo desejo de vencer do que por algo de
honrado e bom.
(237]
CAPITULO XVIII
2
At discordia, et avaritia, atque ambitio,· et cetera, secundis rebus oriri suet4
mala, post Carthaginis excidium maxime amct4 sunt.
Salústio, Hist., fragm. I, 11.
3
Nam injuriae validicrum, et ob eas discessw plebis a patribus, aliaeque
disstntiones domi fuere jam inde a principio, neque amplius quam ttgibus exactis,
dum metu.s a Tarquínio et be/JUm grave cum Etruria positum est, aequo et
modesto jure agitatum.
Id. Ib .. ·
[240]
no Monte Sagrado e no Aventino- o que desde logo lhes
valeu passarem a ter tribunos da plebe e outros direitos. Mas a
segunda guerra Púnica pôs termo, de parte a parte, a estas
discórdias e lutas 4 •
Aperceber-te-ás desde quando, isto é, desde pouco
depois da expulsão dos reis, eram desta qualidade os
Romanos. Foi deles que diria:
Entre eles o direito, tal como o bem, tirava o seu valor
mais da natureza do que das leis 1•
. Mas se se consideram assim aqueles tempos, dos quais
se diz terem sido os melhores e os mais belos da República
Romana, - que é que se dirá do período seguinte ou que
é que se há-de pensar, para usar das próprias palavras do
historiador, quando
pouco a pouco se foi transformando da mais bela e da
mais virtuosa (República) na pior e na mais corrompida 5,
depois da destruição de Cartago, como ele já notara? O
que o próprio Salústio um tanto resumidamente recorda e
escreve desses tempos pode .ler-se na sua História: quão
grave decadência dos costumes nasceu da prosperidade e
acabou na guerra civil.
Como ele diz:
Desde essa época os costumes dos antepassados foram-se ·
precipitando, não pouco a pouco, como outrora, mas como
uma torrente. A juventude estava de tal forma corrompida
4 Deitl servi/i imperio patres J?lebem exercere, de vita arque rergo regio more
conslllere, agro pellere et ceteris expertibus soli in imperio agere. Quibus saevitiis er
tnaxime faenore oppressa plebs cum assiduis bellis rribuwm er mi/iriam simul
rolerarer, am~ara motllem Sacmm arque Avenlinum insedir: rumque tribunos plebis
er alia jura sibi paravir. Discordiarum et certaminis urrimque finis fuir secundum
bel/um Punicum.
Id. Ib . .
5 Cum paulatim tnlllata ex pulcherritt~a atque oprima, pessima ac
jlagiotiosissima facra esl.
Salústio, Carilina, V, 9.
[241]
pelo fausto e pela cobiça que com razão se podia dizer: surgiu
uma geração que não é capaz de possuir património próprio
nem permite que outros o possuam 6•
Muito mais diz Salústio em seguida acerca dos vícios
de Sula e das outras imundícias da República. Outros
escritores são. nisto concordes, embora muito inferiores no
estilo.
Apercebes-te talvez, julgo eu, - e qualquer um que
esteja atento facilmente notará- em que lodaçal de
imundícias morais tinha caído aquela cidade antes da vinda
do nosso Rei Supremo. ·
Reahnente, estas coisas aconteceram não apenas antes
que Cristo, presente em carne, começasse ·a enslna.r, ·mas
até antes de ter nascido da Virgem.
Não se atrevem a imputar aos deuses tantos e tão
grandes males daqueles tempos quer os, a principio, tole-
ráveis, quer os que, depois da destruição de Cartago, se
tomaram intoleráveis e horríveis. Foram eles porém que,
com astúcia maligna inculcaram nas mentes humanas as
opiniões donde tais vícios surgiriam como uma floresta.
Então, porque é que imputam os males. presentes a Cristo
que com a sua doutrina salvadora proíbe o culto dos deu-
ses falsos e falazes, detesta e condena, com divina autori-
dade, estas nocivas e escandalosas paixões dos homens,
subtrai pouco a pouco em toda a parte, deste mundo que
cambaleia e cai nesses males, a fanúlia com que fundará
uma cidade eterna, a mais gloriosa, pão pelos aplausos de
vãs superficialidades, mas pelo autêntico valor da verdade?
[242)
CAPfTULO XIX
[244]
CAPITULO XX
1
Segundo a tradução de Cícero, o epitáfio estaria assim redigido:
Haec habeo quae edi, quaeque exatllrata libido hausit;
et illa jacent multa et praeclara relida (Eu possuo o que comi e
o que recebi da voracidade das minhas paixões; porém des-
perdiçaram-se muitos outros e excelentes bens).
Cícero- Tusculanae,V, 35, 101.
[247)
CAP[TULO XXI
1
ui in fidibus ac tibüs at ~ canlu ipso ac IIOCibus concttllus tsl quiclom
ttnmdus tx distinlis sonis, qunn inmulalum aul discrtpanttm aurts tn~ditat fmt
non poSSII.nl; isqut conctnlus tx dissimilarum vacum modtrationt concors lamtn
efficilur ti congrums: 5Ü tx summis ti infimis ti mtdiis inltrjtais ordinibus, ui
sonis, modtrala raliont civitaltm consmsu dissimilliorum wncintrt; tt quat ~
nia a muncis dici1ur in contu, tam ts~ in civitalt concordiam; artissimum at~
otpimun omni in rt p,ublica vinculum incolumitalis, tam~ sint juslitia nui1o paaõ
esst poSSt.
Qcero, Dt Rtpublica, II, 42-43.
2 nihil ts~, quod aJhuc dt rt publica diaum putartnl ti quo poSStnl longius
progrrdi, nisi ts~l confirmatum non modo falsum ts~ illuJ, sint injuria non pos~
~J hoc vtrissimum esst, sint summa ju.slitia mn publicam rtgi non posSt.
ld. Ib. II, 44.
[250]
entender que ele próprio não pensava assim. E com todo o
empenho começou a defender a injustiça contra a justiça,
dando a impressão de que na realidade pretendia mostrar
com exemplos e razõe verosímeis que aquela era útil e
esta inútil para o Estado. Então Lélio, a pedido de todos,
saiu a defender a justiça. Quanto lhe foi possível, assegu-
rou que nada é tão nefasto ao Estado como a injustiça e
que o Estado de forma nenhuma poderá ser governado ou
mantido senão com toda a justiça.
Esgotada, como parecia, esta questão, Cipião voltou
ao seu interrompido di cur o, recorda e realça a sua breve
definição de República ( =Estado): é uma «empresa do
povo:t, tinha ele dito- e concretiza que «povo» não é
qualquer cpnjunto de individuas mas cuma associação de
pessoas baseada na aceitação do direito e na comunhão de
interesses». Seguidamente en ina quão gra.nde é a utilidade
da defmiç3o numa controvérsia e acaba por concluir
daquelas suas defmições que só há República. ( =Estado)
isto é «empresa do povo», quando é governada no bem e
na justiça P<?r um rei, por poucos aristocratas ou por todo
o povo. Mas quando o rei é' injusto chama-se-lhe, à
maneira grega, «tirano»; quando são injustos os aristocrata
detentores do poder, chama-se-lhes «facção»; e, quando o
próprio povo é injusto, a ele próprio se chama tirano na
falta de outro nome em uso. Já não se trata da república
«depravada», como se tinha discutido no dia anterior. É
que, segundo a conclusão tirada das definições, já não se
trata da república- porque já não se trata de «empresa
do povo» quando é tomada pelo tirano ou pela facção e o
próprio povo já não é povo e é injusto, pois já não será
cuma as ociação de pessoas ba eada na aceitação do direito
e na comunhão de interes es», conforme a definição de
«povo».
Quando pois a República Romana tinha as caracterís-
tica com que a descreve Salústio, - tornara-se não ape-
nas «corrompida e depravada», como ele diz, mas total-
mente nula, como o patenteiam as razões da discussão
[251]
havida acerca do estado ( =república) entre os maiores
personagens de então. Como também o próprio Túlio,
não já com palavras de Cipião ou de outro qualquer, mas
falando por si próprio, depois de primeiro ter recordado
aquele verso do poeta Énio
É devido aos costumes e heróis antigos que Roma se
mantem de pé 3,
afirma no prinópio do quinto livro:
Este verso pela sua concisão e exactidão parece-me como
que emanado de um oráculo. De facto nem os homens, .se a
cidade não tivesse tais costumes, nem os costumes, se tais
homens não tivessem governado a cida~, teriam podido fundar
ou manter durante tanto tempo uma república tão grande e
dum poder tão vasto e tão extenso. É por isso que, em
tempos passados, a própria conduw dos cidadãos proporcionava
homens de prestígio e estes excelentes varões mantinham os
costumes antigos e as tradições dos antepassados. A nossa
época, porém, recebeu o estado como se fosse uma preciosa
pintura mas um wnto desbowda pela antiguida.de. E não só se
descuidou de a restaurar nas suas cores originais, como nem
sequer se preocupou em conservar-lhe os contornos externos.
Que .resta daqueles velhos costumes que mantinham em J>é,
como diz o poeta, o estado romano? Vemo-los tão enterrados
no esquecimento que não só se não põem em prática mas até
se ignoram. E que direi dos homens? De facto os próprios
costumes pereceram· à falta de homens- desgraça wmanha
esw de que teremos de prestar contas- e até de que teremos
de certo modo de nos defendermos em juízo como réus de
pena capital. Pelos nossos vícios e não por qtUJlquer acaso
mantemos ainda a república como uma palavra, mas perdemo-
-la desde há muito como uma realidade 4 •
3
Moribus antiquis res stat Romana virisque cit. por Cícero in De
RepublictJ, V, 1.
4
quem quitltm illt vemun, vel brevilatt vtl veritau tamquam tx oraculo
mihi quoáam tsst e.ffatus vitktur. Nam neque viri, nisi ita morata dvitas fuism,
neque mores, nisi hi viri priVfois.stnr, aur funáarr aut ram diu tenere potuis.stnt
[252]
Isto confessava Cícero, é verdade, muito depois da
morte do Africano que pôs nos seus livros a discutir
acerca da República ( = Estado), todavia muito antes da
vinda de Cristo. Se isto se tivesse experimentado e
relatad? quando a religião cristã já se tinha difundido e
prevalecia, qual pagão não teria pensado que tal devia ser
imputado ao cristianismo? Nesse caso porque é que os seus
deuses não trataram de evitar que se perdesse ou perecesse
essa República de que Cícero, muito antes que Cristo
viesse em carne, tão lugubremente deplora a perda?
Vejam os seus admiradores se, na época dos antigos heróis
e velhos costumes, vigorou então a verdadeira justiça ou
se por acaso nem então foi viva nos seus costumes mas
antes se pintalgou com as suas cores. O próprio Cícero,
sem disso se aperceber, o expressou quando a exaltou.
Mas é assunto que consideraremos à parte, se Deus quiser.
Esforçar-me-ei noutro lugar por mostrar que nunca
Roma foi um estado (República) porque nunca nela exis-
tiu uma verdadeira justiça- isto conforme as definições
do próprio Cícero segundo as quais, com brevidade, e pela
boca de Cipião, fico!l assente o que é o Estado e o que é o
povo (apoiando-me também ·em muitas outras afirmações
suas e dos demais interlocutores do diálogo). Porém, con-
tantam et tam juste lateque imperantem rem publicam. Itaque ante rwstram ltlt'nU>-
riam et mos ipse patrit1s praestantes viros adhibebat, et veterem morem ac majomm
instituta reti11tbant excelentes viri. Nostra vero aetas cum rem publicam siCIIt
picwram accepisset egregiam, sed evanescmtetn vewstare, non modo eam coloribtls
eisdem quibus fi1erar rer1ovare r~eglexir, sed ne id quidern wravir, 111 formam salren1
tjus er extrema tamquam liniamenra servaret. Qtlid mim llllllltl ex anriquis mori-
bus, quilms ille dixit rem srare Ro1nanam, quos ira oblivio11t obsoletos videmus, 111
non modo non colanwr, sed jam ignorelllur? Nam de viris quid dicam? Mores
mim ipsi inrerienmr viromm penuria, wjus lallli ma/i non modo reddenda rario
nobis, sed eriam tamquam reis capiris quodam modo dicmda causa esr. Nostris
mim vitiis, non casu aliq110, rem publicam verbo rerinemus, re ipsa vero jàm
pridem amisimus».
Cícero, De Republica, V, 1.
(253)
forme as mais autorizadas definições, de ·certo modo
houve uma república, e melhor governada pelos antigos
romanos do que pelos mais recentes. É que a verdadeira
justiça só existe naquela república, cujo fundador e gover-
nador é Cristo- se é que convém chamar-lhe república,
porque não podemos negar que ela é «empresa do povo».
Mas se este nome, que noutros lugares se divulgou com
outro se~tido, se afastou talvez do uso da nossa
conversação- o certo é que existe uma verdadeira justiça
naquela cidade da qual diz a Santa Escritura
Coisas gúmosas foram ditas de ti, Cidade de Deus 1•
(254]
CAPITULO XXII
[255)
qualquer tem repulsa? Quem se atreve a dizer que a
República não tinha já então morrido?
Será que, perante tais costumes dos cidadãos, terão a
ousadja de, em defesa dos seus deuses, nos ofertarem,
como costumam, a frase virgiliana:
Retiraram-se todos, abandonando altares e santuários,
Estes deuses graças aos quais este império se mantivera de pé? 1
Em primeiro lugar, se assim aconteceu, não têm que se
queixar da religião cristã, de que os seus deuses, ofendidos
por ela, os abandonaram- pois que os seus maiores, com
os seus maus costumes, já há muito tempo tinham afugen-
tado dos altares da urbe, como se moscas fossem, a multi-
dão dos minúsculos deuses. Todavia, esta turbamulta de
divindades onde estava quando, muito antes de se corrom-
perem os antigos costumes, Roma foi tomada e incendiada
pelos Gauleses? A estarem presentes, acaso dormiam?
Toda a Urbe caiu então em poder dos inimigos. Só a
colina do Capitólio se manteve. E esta me ma seria
tomada se os gansos não vigiassem enquanto os deuses
dormiam . Por isso Roma esteve quase a cair na superstição
dos Egípcios que prestam culto aos animais terrestres e às
aves, pois celebravam uma festa solene em honra do ganso.
Mas, daqueles males acidentai , mais do corpo que da
alma, causados pelos inimigos ou por outra calamidade,
não quero tratar por enquanto. Por agora tratarei da que-
bra nos costumes que, primeiro começaram a perder a cor
pouco a pouco e depois se precipitaram como uma tor-
rente, provocando na república uma tal ruína que, embora
as casas e as muralhas se mantivessem intactas, os seus
maiores escritores não tiveram dúvidas em dizer que a
república sucumbia então. Com toda a razão «todos os
deuses se teriam afastado e abandonado os seus santuários
1
Discessert omnts, adytis arisque relictis
Di, quibus imptrium lwc sttttrat?
Vergílio, EntiJa, II, 351-352.
(256]
e os seus altares», até deixarem a república em absoluto
desamparo, se a sociedade tivesse desprezado os seus pre-
ceitos acerca da vida virtuosa e da justiça. Agora pergunto
eu- que deuses foram esses que não quiseram viver com
o povo que os venerava e ao qual, quando levava má vida,
não ensinaram a viver bem?
[257]
CAPITULO XXIII
(261)
CAPITULO XXIV
As façanhas de Sola
foram abertamente favorecidas pelos demónios.
[265)
CAPITULO XXV
1
Disussert otmlt.S adytis oris ~ reliais
Di.
Vergílio, Eneida, II, 351-352.
[269]
CAPITt:JLO XXVI
[273]
CAPITULO XXVII
[Z75)
e irritar tais deuse com a temperança não fosse preferi-
vel a aplacá-los com a luxúria, e provocar a sua inimizade
com a honradez não· foss preferivel a amansá-los com
tamanha dissolução! Na realidade esses homens por causa
do quais se aplacavam o deuses, por muito atroz que
fosse a sua ferocidade, não seriam mai .nocivos do que os
próprios deuses ao erem apaziguados com vícios tão
repugnantes. Efectivamente, par desviarem o perigo com
que o inimigo ameaçava o corpos, conciliavam-se o deu-
e por meios que arruinavam a virtude nas alma . Não se
prestavam a ser defensore das muralhas contra o al-
tantes senão depois de s terem tornado destruidores dos
bons costumes.
Esta é a apaziguação de tais numes- a mais petu-
lante, a mais impura, a mai impudente a mais iníqua, a
mais imunda; a louvável e instintiva virtude romana privou
os seus actores de toda a dignidade, expulsou-os d tribo,
declarou-o desonrado e taxou-os de infame . Esta é,
repitQ, a impudica ap ziguação de tais numes,- despre-
zível abominável, vergonha da verdadeira religião. E tas
são as sedutoras fábulas ultrajantes para os deuse . Este
são o ignomi'nio o actos dos deuses- criminosa e vergo-
nho amente cometidos ou mais crimino a e vergonho a-
mente inventado . Era i to que toda a cidade aprendia
publicamente pelos olho e pelos ouvidos. Vendo que o
deuse se compraziam com tais crimes, julgava que era
preciso não só exibi-lo mas também imitá-los. Não sei o
que de bom e de honesto se ensinava (se é que se ensinava)
a tão poucos, e tão ocult mente que mais se temia que
fosse conhecido do que infringido.
[Z76]
CAPITULO XXVIII
(2n]
CAPITULO XXIX
[279)
teus filhos degenerados que caluniam Cristo e os cristãos,
pretendendo responsabilizá-los por estes tempos de des-
graça, e que buscam o tempo de gozar não uma vida
tranquila mas ames o vício em segurança. Jamais te satisfi-
zeram esses tempos, nem mesmo para a tua pátria terrena.
Apodera-te agora já da pátria celeste. Por ela pouco traba-
lharás- e nela reinarás na verdade e para sempre. Aí não
terás o fogo de Vesta nem a pedra do Capitólio, mas o
único e verdadeiro Deus que
não porá limites nem ao teu espaço nem à tua duração.
E dar-te-á .um império sem fim 2 •
Não procures os deuses falsos e enganosos. Rejeita-os
e despreza-os. Atira-te para a verdadeira liberdade. Não
são deuses. São espíritos perversos para quem a tua felici-
dade eterna é a sua pena. Parece que Juno não invejou
tanto aos Troianos {de quem tiras a origem carnal) as for-
talezas romanas, como estes demónios (que até agora con-
sideras deuses) _invejam a todo o ser humano as moradas
eternas. Tu própria formaste, em parte não pequena, um
jwzo de tais espíritos, quando os aplacaste com jogos mas
quiseste que fossem considerados infames os histriões que
os representassem. Reclama a tua liberdade contra os espí-
ritos imundos que põem sobre os teus ombros a carga de
consagrar festas às suas ignomínias. Afastaste dos cargos
honoóficos os actores dos crimes divinos: suplica ao ver-
dadeiro Deus que afaste de ti estes deuses que se deleitam
com os seus próprios crimes, quer verdadeiros- o que é o
máximo da ignomínia - quer falsos- o que é o máximo
da perversidade. Muito bem por espontaneamente teres
recusado o acesso à sociedade civil aos histriões e aos céni-
cos! Acorda a valer! De modo nenhum a majestade divina
se aplaca com artes que maculam a dignidade humana.
2
••• nec metas rerum nec tem pore ponit:
lmperiwn sine fme dabit ...
Vergílio, Eneida, I, ZlS-Zl9.
[280)
Como podes entre as Santas Potestades celestes colocar
deuses que se deleitam. com tais honras, ao mesmo tempo
que aos homens encarregados de lhes oferecerem essas
homenagens os consideras como não devendo ser contados
no número dos cidadãos romanos de qualquer classe?
Incomparavelmente mais gloriosa é a cidade do Alto,
onde a vitória é a verdade, onde a dignid~de é a santidade,
onde a paz é a felicidade, onde a vida é a eternidade. Se te
envergonhas de teres tais homens na tua sociedade, muito
menos terá ela tais deuses na sua. Se portanto desejas che-
gar à cidade bem-aventurada, evita a sociedade dos demó-
nios. É indigno que sejam venerados por gente honesta
aqueles que são aplacados por gente desprezivel. Sejam
pois afastados da tua piedade pela purificação cristã, tal
qual como os afastou das tuas dignidades a nota do ceruor.
Quanto aos bens carnais, únicos de que os maus que-
rem gozar, e quanto aos males carnais, únicos que · não
querem suportar- os demónios não têm sobre eles o
poder que se lhes atribui. (E, mesmo que o tivessem, seria
preferível desprezar esses bens a, por causa deles, prestar-
-lhes culto e, prestando-lhes culto, pormo-nos na impossi-
bilidade de chegar aos bens que eles nos invejam). Mas
eles não têm nos bens de cá o poder que lhes atribuem
aqueles que sustentam que é preciso venerá-los no inte-
resse desses bens. Vê-lo-emos mais tarde. Por agora,
ponho termo a este livro.
[281]
LIVRO III
Tal como no livro anterior acerca dos males dos costu-
mes e do espírito, também neste, acerca dos males exteriores e
do corpo, Agostinho mostra que os Romanos, desde a funda-
ção. de Roma, foram por eles ininterruptamente atormentados
sem qué os falsos deuses, que livremente adoravam antes da
vinda de Cristo, nada fizessem para afastar tal género de
males.
[283]
CAPITULO I
[286]
CAPITULO II
[287]
porque não fica bem que desconheça o futuro o próprio
Neptuno, seu tio, irmão de Júpiter e rei do mar. Efecti-
vamente, Homero que, diz-se, viveu antes da fundação de
Roma, apresenta este Deus a fazer uma profecia impor-
tante acerca da estirpe de Eneias, por cujos descendentes
Roma foi fundada, e diz-nos até que cobriu' Eneias com
uma nuvem para que não fosse morto por Aquiles. Isto
mesmo é confessado em V ergílio:
. (Neptuno) desejava destruir pela raiz as muralhas da
perjura Tróia construídas por suas próprias mãos 2 •
Assim tão grandes deuses - Neptuno e Apolo- ,
ignorando que Laomedonte lhes recusaria a recompensa,
tomaram-se, para os ingratos, em construtores gratuitos
da muralha de Tróia. Vejam se não será ma'is grave acre-
ditar em tais deuses do que ·a tais deuses prestar falso
juramento. O próprio Homero- que nos apresenta Nep-
tuno a combater contra os Troianos e Apolo a ~eu favor
quando, segundo narra a fábula, ambos foram ofendidos
pelo dito perjúrio- não acredita facilmente nisso. Se
acreditam em fábulas não ponham como pretexto os per-
júrios de Tróia ou então não se admirem de que os deuses
tenham castigado os perjúrios de Tróia e tenham amado
os de Roma. Efectivamente, como é que a conjura de
Catilina encontrou, numa cidade tão grande e tão cor-
rompida, tantos partidários que viviam da sua mão e da
sua eloquência, isto é: do perjúrio e do sangue dos cidadãos?
E os senadores, tantas vezes corrompidos nos pleitos, e o
povo tantas vezes comprado nos corrúcios e nos pleitos
debatidos em assembleias- que mais fizeram senão come-
ter o pecado do perjúrio? Porque em tão corrompidos cos-
tumes ainda se conservou o antigo costume do jurar, não
para impedir os crimes pelo temor religioso, mas para jun-
tar aos outros crimes o de perjúrio .
[288]
CAPITULO III
1 urbtm Romam, sicuti ego acupi, cqnJjJert tr luzbutre initio Trojani, qui
Aenea duce projitgi sedibus inartis vagava11tur.
Salústio, Catilina, VI, 1.
[289]
cometeu com A~quises vindo daí a nascer Eneias? será
porque aquele facto causou a indignação de Menelau e
aquele outro foi com a aquiescência de Vulcano? De
resto, julgo eu, os deuses não têm ciúmes de suas esposas
pois até consideram conveniente tê-las em comum com os
homens. Talvez se pense que zombo das fábulas e que não
trato a sério questão de tanta monta. Não acreditemos,
por favor, que Eneias seja filho de Vénus! Concedo-o con-
tanto que· Rómulo tam~m não seja ftlho de Marte. Mas
se admitimos um, porque é que não admitimos o outro?
Será que é lícito aos deuses unirem-se às mulheres e ilícito
aos homens unirem-se às deusas? Dura, ou antes incrível,
condição esta- que seja permitido a Marte o coito, à
custa dum direito de Vénus, e não o seja a Vénus, no
exerdcio do seu próprio direito. Mas ambos os casos são
confirmados pela autoridade romana. Mais perto de nós
César não teve por menos certo que Vénus fosse sua
avoenga do que o antigo Rómulo tivesse Marte por pai.
(290]
CAPITULO IV
[291)
CAPITULO V
[295]
um pai. Efectivamente ranro um como o outro foram seu
fundador, embora um tenha ido impedido de reinar por
ter sido suprimido criminosamente. Não se vê, parece-me,
o que Tróia fez de mal para merecer que os deuses a
abandonassem e permitissem a sua destruição- e o que é
que Roma fez de bom para os deuses habitarem nela e
permitirem o seu progresso. A não ser que tenha sido por-
que, tendo fugido vencidos de Tróia, buscaram entre os
Romanos refúgio para os enganarem de ma.neira idêntica.
Pior ainda: mantiveram-se lá (em Tróia) para enganarem,
como era seu hábito, os que iam agora habitar as mesmas
terras- e cá (em Roma) ·exercendo ainda melhor os
mesmos arti6cios da sua arteirice, re_colheram as maiores
honrarias.
[296]
CÀPfTULO VIl
[299]
CAPITULO IX
[302]
CAPITULO X
1
Igimr initio rtgts.
2 divmi pars ingtnium, a/ii corp11S t:xtrubam; ttiam tlim vita lzominum
sint cupiditatt agitabawr, SilO cuiqut sa1is plactbanr.
Salústio, Catilina, VI, :>-5.
[303)
Será que, para dilatar tanto o Império, era preciso
que acontecesse o que Vergílio lamenta quando diz:
Pouco a pouco uma época pior e descolorida foi chegando,
e chegou a fúria das guerras e a paixão da posse 3.
Claro que os Romanos têm uma boa defesa por
terem empreendido e conduzido tão grandes guerras:
eram obrigados, pois que inimigos sobre eles injustamente
irrompiam, a resistir, não por avidez da conquista de glória
humana, mas por necessid_ade de defesa da vida e da liber-
dade. Pois seja a~sim. De facto o próprio Salústio escreve.
Quando o estado se desenvolveu sob o ponto de vista
da legislação, dos costumes, do território, e pareceu ·bastante
próspero e·florescente- a sua opulência, como acontece às
coisas humanas, provocou a inveja. Por isso os reis e povos
vizinhos começaram com guerras; poucos dos seus amigos
foram em seu auxílio porque os outros, atingidos pelo medo,
afastaram-se do perigo. Mas os Romanos, sempre atentos,
tanto ~ paz como na guerra, movem-se rapidamente,
· preparam-se, animam-se uns aos outros, correm ao encontro do
inimigo, protegem com as armas a libet:dade, a pátria e a
família. Uma vez afastado corajosamente o perigo, correm em
auxílio dos seus aliados é amigos e celebram alianças, mais
prestando do que recebendo beneficios 4 • .
Roma com estes métodos cresceu com dignidade.
Mas, quando reinava Numa, para que tão longa paz hou-
[305]
CAPITULO XI
(308]
CAPITULO XII
[310]
CAPITULO XIII
... Fovtbat
Romanos mum domines gerrrtm~ togatam.
Vergilio, &lida, I, 280-281.
2 Assim como aos descendentes de Luso se chama Lusíadas,
[313]
CAPITULO XIV
1
Tulks in arma viros ajam dtsutt4 triwmplris
Agmina.
Vergílio, EntiJa, Vl, 81+815.
(316)
Foi apenas este vício que perpetuou o tão grande crime de
uma guerra entre associados e parentes. Foi a este enorme
vício que Salústio de passagem se referiu, quando, depois
de recordar, com fugidíos louvores, os velhos. tempos em
que o homem vivia tranquilo, sem ambições, cada um
.satisfeito com o que tinha, acresce~ta :
Mas, desde que começaram a submeter cidades e
nações, - Ciro, na Asia, os LacedenWnios e os Atenienses,
na Grécia-, declarava-se a guerra apenas por um motivo: a
paixão do domínio, julgando-se que o máximo da glória
estava no máximo do poder 2
e o resto que se propunha dizer. A mim basta-me ter
citado estas palav-ras. Esta paixão de donúnio é que agita e
esmaga o género humano com grandes males. Vencida
então por esta paixão, Roma orgulhava-se por ter vencido
Alba e dava ao seu crime o nome de glória. Diz a nossa
Escritura:
O pecador.é louvado pelos desejos da sua alma e o que
pratica a iniquidade recebe benfãos 3 •
Arranquemos pois aos factos as coberturas enganosas
e o brilho ilusório para os vermos num exame sincero.
Ninguém me venha dizer: este ou aquele é grande porque
combateu e venceu este ou aquele. Também os gladiado-
res lutam, também eles são vencedores, também essa
crueldade tem o seu prémio de louvor. Mas julgo que é
preferivel ser punido por qualquer omissão, a buscar a
glória daqueles combates. E todavia se na arena, um con-
tra o outro, avançassem, para combaterem gladiadores,
um dos quais fosse o pai e o outro o Hlho- quem supor-
taria tal espectáculo? Quem é que o não faria parar?
btnedidtur.
Salmo X, 3. ·
(317)
Como é que então pode ser glorioso este conflito armado
entre uma cidade mãe e uma cidade filha? Estará a dife-
rença em que não havia arena mas largos campos, não
com dois gladiadores mas cheios de cadáveres de numero-
sos filhos de dois povos? Ou estará em que esta luta se não
desenrolou no recinto de um anfiteatro mas no mundo
inteiro e fornecendo um espectáculo ímpio aos vivos e aos
vindouros em qualquer parte onde chegue a notícia do
facto?
Todavia esses deuses protectores do Império
Romano, contemplando estas lutas como espectadores de
teatro, até ao momento em que a irmã dos Horácios foi
atingida pelo ferro fraterno, sofriam contrariedade em
seus desejos- porque, para três Curiácios mortos, era
preciso, do lado dos Romanos, uma terceira vítima que se
juntasse aos dois irmãos, para que Roma não contasse com
menos mortos apesar de ter vencido. Seguidamente e
como fruto da vitória, Alba foi destruída. Aí, depois de
flion, destruída pelos Gregos, depois de Lavínio, onde
Eneias estabeleceu um reino de estrangeiros e de fugitivos,
aí vieram habitar em terceiro lugar as divindades troianas.
Mas talvez, segundo o seu costume, tenham já emigrado
também de Alba- por isso, esta foi destruída. Tinham-se
todos ido embora com certeza,
abandonando altares e santuários, estes deuses 4
que mantinham de pé o Império! Já se tinham ido embora
por três vezes para que, à quarta vez, Roma se
encomendasse à sua grande providência! Na verdade,
desagradava-lhes Alba, onde Amúlio reinava, depois de
expulso o irmão; agradava-lhes Roma, onde Rómulo
reinava, depois do assassínio do irmão. Dirão: mas antes
que Alba fosse destruíqa, o seu povo foi tranSferido para
Roma, para que de uma e outra se fizesse uma só cidade.
[319]
CAPITULO XV
[322]
Pelo menos desta vez não teve o menor receio de
falar da morte do homem, sendo então mais crítico do que
panegirista.
E os restantes reis do Povo Romano, excepto Numa
Pompílio e Anco Márcio, que morreram de doença, que ·
horríveis fins tiveram! Tulo Hosôlio, vencedor e destrui-
dor de Alba, morreu queimado, como disse, por um raio,
com toda a sua casa. Tarquínio Prisco foi assassinado pelo
filhos do seu predecessor. Sérvio Túüo morreu devido a
nefando crime de seu genro Tarquínio o Soberbo que lhe
sucedeu n trono. E nem perante este parriódio cometido
contra melhor rei daquele povo
depois de abandonados altares e santtw-ios, se afastaram
esses deuses 4
que, indignados com o adultério de Páris, abandonaram,
diz-se, a nú era Tróia para permitirem ao Grego que a
de truí sem e a queimassem. Mai ainda: Tarquínio, depois
de ter a a sinado o sogro, sucedeu-lhe. E e es deuse
viram e te criminoso parricida reinar graças ao assassínio
do sogro, gabar-se das ua numerosas guerras e vitórias,
construir o Capitólio com os despojos dos vencidos, e não
partiram; ficaram a ver Júpiter seu rei naquele altíssimo
templo, i to é, na obra do parricida; e suportaram que
Tarquínio os chefiasse e sobre eles reina e! E não foi
como homem inocente, ainda, que ele construiu Capitó-
lio, n m como um homem que só mais tarde seria expulso
da Urb pelos seus crim s. Foi devido ao cometimento do
mai mon truoso dos crime que chegou ao trono e cons-
truiu o Capitólio. Todavia, quando, po teriormente, os
Romano o destronaram e o expulsaram para fora dos
muros da cidade, não foi por ter sido ele mas eu filho
quem violara Lucrécia na sua ausência e sem eu conheci-
mento. Nessa altura, sitiava ele a cidade de Ardea e con-
(323)
duzia a guerra pelo Povo Romano. Não sabemos o que ele
faria se o crime de seu filho fosse levado ao seu conheci-
mento. E contudo, sem conhecer o seu juízo, sem o
aguardar, o povo tirou-lhe o poder, e quando o exército
voltou, ordenou-lhe que o abandonasse, fechou-lhe as por-
tas e proibiu-lhe a entrada. Seguiu-se uma guerra terrível
em que ele, graças aos vizinhos que sublevou, esmagou os
Romanos. Foi porém abandonado por aqueles com o con-
curso dos quais contava e não pôde reconquistar o poder.
Retirou-se, segundo se conta, para Túsculo, perto de Roma,
e aí viveu tranquilamente durante catorze anos, como
simples cidadão, e lã envelheceu com sua mulher e teve
uma morte sem dúvida mais invejãvel do que a do sogro
que ele, seu genro, assassinou com a ~mplicidade, conta-
-se, de sua filha. Todavia, os Romanos não chamaram a
este Tarquínio «o crueh>, ou «o celerado», mas «O soberbo»,
talvez porque a sua própria soberba não suportava a
arrogância real. De facto, tiveram em tão pouca conta o
homiádio por ele cometido contra o seu sogro- que
tinham por um óptimo rei- , que dele fizeram seu rei.
Fico assombrado ao pensar se recompensar um tão grande
crime com tamanha honra não serã crime maior ainda. E
os deuses ainda desta vez não «abandonaram os seus
santuários e os seus altares». A não ser que se alegue, em
defesa destes deuses, que, se eles ficaram em Roma, foi
mais para poderem punir cqm Sl,lplícios os Romanos do
que para os socorrerem com bene6cios, seduzindo-os com
vãs vitórias e esmagando-os com terríveis guerras.
Foi esta a vida dos Romanos sob os reis, nos gloriosos
tempos daquela república, até à expulsão de Tarquínio o
Soberbo, durante cerca de duzentos e _q uarenta e três anos.
Todas as vitórias foram alcançadas pelo preço de muito
sangue e de grandes calamidades! E todavia com ela ape-
nas se alargou o Império em vinte milhas à volta da Urbe
-território que não se compara com o que boje têm até
algumas cidades da Getúlia.
[324)
CAPITULO XVI
[325]
exclama logo a seguir:
Desgraçado! seja qual for o juízo que os vindouros fize-
rem destes factos 2,
quer dizer, quaisquer que sejam, acerca destes factos, os
juízos de admiração e de louvor dos pósteros, desgraçado é o
pai que mata os ftlhos. E, como que para consolar este
desgraçado pai, acrescenta:
Quem triunfa é o amor da pátria e uma imensa ambi-
ção ·de glória 3.
Não parece que neste. Bruto,- que matou os filhos
e não pôde sobreviver ao seu inimigo, o filho de Tarquí-
nio, que ele matou e de quem foi vítima,- não parece
que nele foi vingada a inocência do seu colega Colatino,
esse bom cidadão que, após a expulsão de Tarqtúnio,
sofreu a mesma sorte do próprio tirano? O próprio Bruto
era tarribém, .segundo consta, do sangue de Tarquínio.
Pelos vistos, o que perdeu Colatino foi a semelhança de
nome, pois também se chamava Tarquínio. Pois que o
obriga~sem a mudar de nome e não de pátria! Bastava que
de seu nome desaparecesse a palavra Ta'rquínio, chamando-
-se-lhe apenas Colatino. Não perdeu o ~orne, o que sem
detrimento poderia ter perdido, para ser obrigado, como
primeiro cônsul, a perder o cargo, e como bom cidadão, a
perder a pátria. A detestável iniquidade de Júnio Bruto-
aliás totalmente inútil à Repúbica- será ela motivo de
glória? Será que para a cometer também quem triunfa é o
amor da pátria e uma imensa ambição de glória? 3 • De
qualquer· maneira L. Tarquínio Colatino, marido de Lucré-
cia, foi nomeado cônsul com Bruto, já depois de ter sido
expulso o tirano Tarquínio. Quão justamente atendeu o
povo, no cidadão, não ao nome mas aos costumes! Quão
impiamente privou Bruto de pátria e de cargos um colega
2
lnfelix, utcumque ferenl ea Jacta minores.
Id. Ib. VI, 822.
3
Vincit amor patriae laudumque inmensa cupido.
Id. Ib. VI, 823.
[326]
da nova e primeira dignidade, quando podia privá-lo ape-
nas do nome, se é que este o incomodava!
Todos estes males se cometeram, todas estas calami-
dades aconteceram quando na República vigorava um
«direito justo e bem administrado». Também Lucrécio,
que fora nomeado para o lugar de Bruto, foi consumido
por doença antes de esse ano ter terminado. Assim, foram
P. Valério, que sucedeu a Colatino, e M. Horácio, que
substituiu o falecido Lucrécio, que acabaram esse ano
fúnebre e infernal que teve cinco cônsules e em que a
República Romana inaugurou a nova dignidade e o novo
poder do consulado.
(327)
CAPITuLO XVII
t Dtin stn~ili imperio palres pkbem exercere, de vira arque tergo regio more
consukre, agro pellere et uteris expertibus soli in imperio agere. Quibus saeviliis et
maxime jaenore oppressa plebe, cum assiduis bel/is tributum et militiam simul
tokraret, armara montem sacrum arque Avmtínum insetlit, tumque tribunos plebis
et alia jura sibi paravit. Discordiarum et certaminis utrimque finis fuit secundum
bel/um Punicum.
Salústio, Hist.l, fragan . 11.
(329]
Para que perder tanto tempo a escrever e fazê-lo
perder aos leitores? Quão núsera fora essa República no
decurso de tão longo período de tantos anos até à Segunda
Guerra Púnica: no exterior, guerras incessantes e no inte-
rior discórdias, sedições civis a perturbá-la, é o que em
poucas palavras nos é exposto por Salústio. Portanto,
aquelas vitórias não constituíram a sólida alegria de felizes
mas a vã consolação dos núseros e um acicate estimulante
de espíritos inquietos, para suportarem sofrimentos cada
vez mais estéreis.
Não se assanhem contra nós os bons romanos por isto
dizermos. É absolutamente cer.:to, aliás, que não se indig-
narão e, acerca disto, nada tenho a pedir nem a admoes-
tar. Porque não dizemos nada mais duro nem o dizemos
com mais dureza do que os seus escritores a par dos quais
não estamos nem no estilo nem nos vagares. De resto tra-
balharam para saber isto e obrigam os seus filhos a
aprendê-lo. Mas os que se assanham, como é que me
suportarão se eu lhes disser o que Salústio já disse?
Muitas perturbações, sedições e, por fim, Guerras Civis
surgiram. Entretanto um reduzido número de potentados,
cuja jnfluência tinha ganhado a maioria, aspirava ao dominio
sob o pretexto, aliás louvável, de servirem os patrícios e a
plebe. Os maus cidadãos eram tidos por bons, não pelo bem
ou mal que faziam ao Estado- pois todos estavam igual-
mente corrompidos-, mas pelas suas riquezas ou pelo poder
de malfazer: cada um era considerado bom quando defendUJ a
sua presente situação 2 •
[.3~]
Se, portanto, estes historiadores pensaram que o que
caracteriza wna honesta liberdade é não esconder as maze-
las da sua própria pátria, (que de resto noutras ocasiões
não deixaram de exaltar com altos encómios), quando não
tinham outra melhor razão para imortalizar os seus
cidadãos- que nos convém a nós fazer (a nós de quem
quanto maior e mais certa é a esperança em Deus, tanto
maior deve ser a liberdade), quando eles imputam ao
nosso Cristo os males presentes para alienarem os espíritos
mais débeis e menos esclarecidos desta cidade, única na
qual devemos viver para sempre em felicidade? Nós não
dizemos contra os seus deuses coisas mais horríveis do que
os seus autores cuja obra eles lêem e elogiam. Deles é que
colhemos os factos que relatamos- apenas não somos
capazes de os relatar nem tão bem nem tão comple-
tamente.
- Onde estavam então esses deuses, aos quais se
julga que se deve prestar culto tendo em atenção a curta e
falaz felicidade deste mundo, quando os Romanos,- a
quem eles mendigavam o culto com tanta astúcia e
mentira-, sofriam tamanhas calamidades?
- Onde estavam eles quando o cônsul Valério mor-
reu a defender o Capitólio incendiado pelos exilados e os
escravos? Como é que a ele lhe foi mais fácil socorrer a
mansão de Júpiter do que receber a ajuda daquela turba-
multa de deuses com o seu tão grande e tão bom rei à
frente, cujo templo aquele tinha salvado?
-Onde estavam eles quando a cidade, esgotada por
tantas e incessantes sedições, nwn momento de calma
esperava os legados que enviara a Atenas para esta lhe
fornecer leis, foi desvastada por grave fome e pela peste?
-Onde estavam eles quando o povo de novo ata-
cado pela fome criou pela primeira vez o prefeito dos
abastecimetos e, tendo-se a fome agravado, Espúrio
Mélio, que distribuiu trigo à multidão esfomeada, incorreu
na acusação de aspirar à realeza e a instâncias deste pre-
feito, às ordens do ditador L. Quíncio enfraquecido pela
(331)
idade, foi assassinado por Quinto Servilio, mestre de cava-
laria, no meio do mais violento e perigoso tumulto da
cidade?
-Onde estavam eles quando surgiu a maior das
pestes, e o povo, tão duradoura e gravemente fatigado,
achou por bem oferecer a esses inúteis deuses lectístemias, o
que nunca antes fizera? Armaram leitos em sua honra: daí
esse nome sagrado, ou melhor, sacrílego.
- Onde estavam eles quando o exército romano,
depois de dez anos de ininterruptas e desgraçados comba-
tes junto aos muros de Veios, só foi salvo graças a Fúrio
Camilo, a quem, depois, a ingrata cidade condenou?
-Onde estavam eles quando os Gauleses tomaram
Roma, a saquearam, incendiaram e encheram de cadáveres?
- Onde estavam eles quando uma famosa peste fez
tão ingentes estragos e nela morreu o próprio Fúrio
Camilo, que, depois de ter defendido dos Veientes a sua
ingrata República, a livrou em seguida dos Gauleses? Foi
durante esta peste que se introduziram os jogos cénicos-
uma nova peste, perigosa, não para os corpos dos Roma-
nos mas, o que é muito mais pernicioso, para os seus
costumes.
-Onde estavam eles quando uma outra violenta
p ste ocorreu, crê-se que devida a peçonhas de numerosas
e nobres matronas cujos costumes, além da fidelidade, se
revelaram mais virulentos que toda a peste?
-Onde estavam quando, nas Caudinas, os dois côn-
sules com o exército, cercados pelos Samnitas, foram
obrigados a assinarem um pacto vergonhoso, a entregarem
como reféns seiscentos cavaleiros romanos, e os outros,
depostas as armas, despojados do seu equipamento e do
seu uniforme, a passarem seminus por debaixo do jugo dos
inimigos?
-Onde estavam quando uma grave peste atingiu
muita gente e no exército muitos caíram fulminados por
um raio? Ou quando no decurso de outra intolerável peste,
se viu Roma ·obrigada a chamar Esculápio de Epidauro
(332]
como deus médico e a utilizar-se dos seus serviços, porque
decerto Júpiter, rei de todos os deuses, entronizado desde
há muito no Capitólio, não tinha tido tempo, por causa
das suas muitas aventuras imorais de juventude, para
aprender medicina?
---:- Onde estavam quando os inimigos de Roma-
Lucanos, Brúcios, Samnitas, Etruscos, Gauleses, Senones-
se congregavam e primeiro massacraram os seus embaixa-
dores e, depois, esmagaram o seu exército num combate
em que morreram, além do pretor, sete tribunos e treze
mil soldados?
-Onde estavam quando em Roma, após demoradas
e graves sedições, a plebe, abrindo as hostilidades, acabou
por se retirar para o Jarúculo, tendo sido tão funesta esta
calamidade que se resolveu (o que só em perigo extremo
se fazia) nomear Hortênsio ditador? Este convocou a plebe
e morreu no decurso da sua magistratura- o que a
nenhum ditador acontecera antes e constituiu urna falta
grave contra os deuses, presente como estava já Esculápio.
De resto as guerras multiplicavam-se então por toda
a parte a tal ponto que, por falta de soldados, se recruta-
vam os proletários (assim chamados porque tinham por
missão única gerar prole para o Estado, uma vez que,
devido à sua pobreza, não podiam fazer parte do exér-
cito). Chamado pelos Farentinos, Pirro, rei da Grécia,
então no esplendor da glória, tornou-se inimigo dos
Romanos. Consultou ele Apolo acerca do resultado futuro
dos acontecimentos, e este, com muita urbanidade,
respondeu-lhe com um oráculo tão ambíguo que, aconte-
cesse o que acontecesse, num ou noutro sentido, passaria
sempre por um bom adivinho. De facto, disse:
Dico te, Pyrrhe, vincere posse Romanos 3•
3A frase pode ter dois sentidos:
«Digcrte, Pirro, tu poderás vencer os Romanos» c
«Digcrte, Pirro, os Romanos poderão vetuer-te».
A ambiguidade resulta de, nas orações infinitivas, tanto o sujeito
como o complemente directo estarem no acusativo.
[333]
E, assim, quer os Romanos vencessem Pirro quer
Pirro vencesse os Romanos-o adivinho podia .estar
seguro, qualquer que fosse o resultado. Que horrenda car-
nificina houve então nos dois exércitos! Todavia Pirro
saiu vencedor. Desta forma poderia desde então procla-
mar que Apolo vaticinara a seu favor se pouco depois
num outro combate, os Romanos não saíssem vencedores.
Durante estas tão sangrentas guerras, eclodiu entre as
mulheres uma grave doença. Morriam grávidas antes do
parto. Em tal situação Esculãpio escusava-se alegando,
julgo eu, que era médico chefe e não parteira (obstetrix).
Também os animais morriam da mesma maneira, a ponto
de se pensar que a sua espécie se extinguiria. E que mais?
Aquele inesquecível inverno, de incrível rigor, pois a neve
atingiu alturas perigosas durante quarenta dias, mesmo no
Forum, e fez do Tibre um bloco de gelo! Se isso aconte-
cesse nos nossos tempos- o que não diriam! E que mais?
Aquele ingente flagelo, enquanto durou, quantos não cei-
fou! Como se alongou por mais um ano com violência
sempre crescente, apesar da presença de Esculápio, houve
que recorrer aos Livros Sibilinos. Neste género de orácu-
los, como no-lo recorda Cícero nos seus livros sobre De
Divinatione 4 , costuma-se a gente fiar nos intérpretes que
fazem conjecturas duvidosas como podem ou como que-
rem. Proclamou-se então que a causa da peste era que
muita gente detinha e ocupava numerosos edificios sagra-
dos para seu uso privado. Desta forma se livrou entretanto
Esculápio da grave acusação de imperícia ou de negligên-
cia. Mas porque é que esses ed.ificios foram ocupados, sem
oposição de ninguém, por tantos, a não ser porque à tur-
bamulta dos deuses ai se fizeram preces em vão durante
muito tempo e por isso pouco a pouco tais lugares foram
abandonados pelos seus adoradores e, desabitados como
(334]
ficaram, puderam, sem ofensa de ninguém, ser reivindica-
dos para, pelo menos, servirem aos homens? Sob o pretexto
de se apaziguar a peste, foram então esses edillcios recu-
perados e reparados com cuidado. Posteriormente, porém,
novamente abandonados e usurpados como dantes, caíram
no esquecimento. Por isso, deve-se à grande erudição de
Varrão, ao escrever sobre os edi.ôcios sagrados,ter reme-
morado tantos santuários ignorados. Mas então o que
habilmente se pretendeu foi desculpar os deuses e não
debelar a peste!
(335]
CAPITuLO XVIII
[339)
CAPfTUWXIX
(341)
categoria), que jazia sem anel, mais se podia conjecturar
do que precisar. Seguiu-se uma tal carência de soldados,
que os Romanos recrutavam réus de crimes propondo-lhes
a impunidade, escravos concedendo-lhes a liberdade e,
com estes elementos, conseguiram alistar (mas não restau-
rar) um vergonhoso exército. A estes escravos- não os
ofendamos- a estes Íibertos, que iriam combater pela
República Romana, faltaram as armas. Arrancaram-nas
dos templos, como se os Romanos dissessem aos deuses:
entregai as armas que em vão ~onservastes durante tanto
tempo; talvez que os nossos escravos delas possam tirar o
proveito que vós, divindades nossas, não soubestes tirar. E
como o erário não bastava para pagar os soldos, lançou-se
mão das riquezas privadas para ajudar as despesas públicas.
Cada um contribuiu com o que tinha, a ponto que, excep-
tuando os anéis e as bulas (núseras insígnias da nobreza),
ninguém ficou com ouro algum, nem mesmo o Senado,
muito menos as restantes ordens e as tribos. Quem supor-
taria os pagãos, se, em nossos tempos, fossem obrigados a
tal penúria? Apenas os podemos suportar quando, por um
prazer supérfluo, entregam mais aos histriões do que às
legiões para lhes salvarem a vida em último transe.
[342]
CAPITuLO XX
[345]
CAPfTULO XXI
(347]
rico, pior que todo o inimigo, se introduziu em Roma.
Efectivamente foi então que apareceram os leitos de
bronze, os tapetes preciosos; foi então que nos banquetes
se introduziram as tangedoras de citara e outras licenciosas
perversidades. Mas, por agora, propus-me falar dos males
que os homens suportam contra vontade e não dos que
eles gostosamente criam. É por isso que o caso que referi
de Cipião, vítima dos seus inimigos e morrendo longe da
pátria por ele liberta, mais interessa à presente discussão,
porque as divindades romanas, de cujos templos ele afastou
Aniôal, e que se veneram unicamente com vista à felici-
dade terrena, não lhe retribuíram essa paga. Mas, porque
Salústio disse que os costumes desse tempo eram óptimos,
julguei conveniente lembrar. a invasão do · luxo asiático
para fazer compreender que Salústio louva essa época em,
comparação com outros tempos em que os costumes
foram os piores no meio de gravíssimas discórdias.
Foi então, isto é, entre a segunda e a terceira guerra
púnicas, que foi promulgada a Lei Vorónia proibindo que
se instiruísse herdeira a mulher mesmo que fosse filha única.
Ignoro o que se poderá dizer ou pensar de mais iníquo que
esta lei. Todavia, durante todo o intervalo das duas guerras
púnicas, a desgraça de Roma foi mais tolerável. Apenas no
exterior o exército era castigado por guerras, mas era
compensado pelas vitórias; no interior nc;nhumas discórdias
grassavam como há pouco. Mas, durante a última guerra
púnica-em que, num s6 ataque do segundo Cipião, que
por isso também recebeu o cognome de Mricano, a rival
do Império Romano foi destruída de raiz- a República
Romana foi esmagada por tal cúmulo de males que,
devido à demasiada corrupção dos costumes resultante da
prosperidade e segurança, Cartago fez-lhe então mais mal
com a sua rápida queda do que antes com a sua longa
hostilidade.
Durante todo este tempo até César Augusto- que
parece ter tirado por completo a liberdade aos Romanos
(liberdade essa que eles próprios já não oonsideravam glo-
(348]
riosa mas facciosa, funesta, debilitada, lânguida) para con-
centrar tudo no arbítrio próprio de um rei e restaurar,
regenerar a República Romana debilitada por doença e
por velhice- durante todo este tempo omitirei os repeti-
dos desastres militares devido ora a uma ora a outra causa
e o tratado maculado de repulsiva ignomínia concluído
com Numância. Os frangos tinham voado da gaiola- o
que constituiu um mau pressági~ para o cônsul Mancino,
dizem; como se, durante tantos anos em que esta pequena
cidade esteve sitiada, mantendo sob ameaça o exército
romano e começando já a ser o terror da República, a
tivessem atacado os outros generais sob aug6rios diferentes!
(349]
CAPfTULO XXll
(353]
CAPÍTULO XXIV
(355]
CAPITULO XXV
[358]
CAPÍTULO XXVI
[360]
CAPfTULO XXVII
lumina civitatis extitura su111. Ultus tst hujus victoriat aucklitattm postea Sulla,
llt dici quidtm opus tst quanta dtminutiont civium tt quama calamitatt rti
publicoe.
Cicero, ln Caril., III, 10.
2 Exassit mtdtcina modum nimiumque sell4ta tst,
Qua rnarbi duxm manuin. Ptritre nocmtts;
Std = jam soli possml suptrem nocmtts.
Lucano, Faná/ia, II, 142-144(a).
(a) Migne acrescenta o seguinte:
Tune data libertas odiis, resoluta que ltgum funis ira ruir,
continuando pois a tradução nos termos seguintes:
"Foi então dada liberdack aos 6dios e, liberto do freio .das leis, o
.
rancor atrrou-se 1'.-..tt".
para apçn
Lucano, FarsáUa, li, 142-146.
(361]
Nesta guerra de Mário e Sula, sem contar com os
que morreram em combate, também, na própria· Urbe
romana, as ruas, as praças, o Forum, os teatros, os templos
ficaram juncados de cadáveres. Era dillcil dizer quando é
que os vencedores fizeram mais vítimas: ~ antes, para
vencerem, ou. se depois, por terem vencido. Quando da
primeira vitória de Mário, quando, regressado do exílio,
se recompõe - sem falar dos massacres cometidos por
toda a parte, a cabeça do cônsul Octávio foi exposta nos
rostros 3; os Césares foram trucidados nas suas casas por
Fímbria; os dois Crassos, pai e filho, foram assassinados à
vista wn do outro: Bébio e Numitório, arrastados por um
gancho, pereceram com as entranhas derramadas; Catulo
subraiu-se às mãos dos inimigos tomando veneno; Mérula,
flâmine Dial 4 , abriu as veias e ofereceu a Júpiter o pró-
prio sangue em libação; à vista de Mário em pessoa mata-
ram sem delongas cidadãos ·aos quais ele não queria esten-
der a mão quando o saudavam.
[362]
CAPfTULO XXVlll
Vitória de Sula,
vingadora da crueldade de Mário.
[364]
CAP[TULO XXIX
[366]
CAP[TULO XXX
[368]
CAPITuLo XXXI
[371]
LIVRO IV
Prova-se que a amplidão e a duração do lmpé'rio
Romano não se devem nem a Júpiter nem aos deuses dos
pagãos. Os poderes destes deuses estavam restringidos a parti-
culares e ínfunos cometimentos. É obra apenas do verdadeiro
Deus, autor da felicidade, por cujo poder e decisão se consti-
tuem e se conservam os reinos da Terra.
(373]
CAPiTULO I
[376]
CAPfTULO II
[378]
acerca da nociva falácia dos demónios que eles adoram
como deuses, já se disse, e não pouco, principalmente no
livro segundo, quantos males introduziram nos seus cos-
tumes. No decurso dos três livros fmdos, assinalámos,
quando nos pareceu oportuno, quantas consolações,
mesmo nas desgraças da guerra, graças ao nome de Cristo,
a quem os bárbaros testemunharam tanta honra, ao con-
trário dos costumes de guerra, Deus carreou para os bons
e para os maus,
Ele que foz nascer o sol sobre os bons e sobre os maus e
chover sobre os justos e os injust~s 2•
2 qui facit solem su11m oriri super bonos et maios et pluit super justos et
injustos.
Mat., V, 45.
[379]
CAPITuLO III
Se a dilatação do .Império, que só por guenas
se consegUiu, se dev;e considerar um dos bens
dos sábios e dos felizes.
[382]
CAPÍTULO IV
[383]
CAPÍTULO V
[386]
CAP[TUWVI
fastigium hujus majtstatis non ambitio popularis, sed spectada int~ boncs modtratio
provehebat. Populi nullis legibus t~bantur, fines imperii tutri mogis quam profme
mos ~aJ, intra SUflnJ cuiqut potriom regna finidxmtur. Primus omnium Ninus rtx
Assyriorum vet~tm t1 quasi avitum gentibus morem nova imptrii cupiditate
tnutavit. Hic primus intulit bel/a fmitimis ti rudes adhuc ad rtsistendum popu/os
ad tmninos usque Ubyae perdomuit.
[387]
Depois acrescenta:
Nino consolidou por uma posse duradoura o vasto
império que tinha conquistado. Vencidos que foram os seus
vizinhos, azda vez mais forte com o aumento das suas tropas,
marchou contra os outros povos, servindo azda vitória de ins-
trumento para a segunda, e assim submeteu os povos de todo
o Oriente 2.
Qualquer que seja a fidelidade aos factos referidos
por es~e ou por Trogo (efectivamente, outros escritores
mais fiéis evidenciam alguns dos seus erros), consta porém
·nos demais escritores que Nino estendeu e alargou o reino
dos Assirios. Sua duração foi até superior à que o Império
Romano. até agora atingiu. Na verdade, como escreveram
os que continuaram a história cronológica, manteve-se
este reino durante mil duzentos e quarenta anos desde o
primeiro ano em que Nino começou a reinar até passar
para os Medos. .
Levàr a guerra aos vizinhos, avançar depois para
novas conquistas, esmagar e submeter por pura ambição
de donúnio povos paáficos- que outro nome merece isto
senão o de imensa quadrilha de ladrões?
2
Ninus nragr1itudinm~ quaesitae dominationis continua possessione fimravit.
Demitis igitur proximis cum accessione virium forrior ad alios transiret et proxima
quaeque viaoria instnm~mtum stquenris esser, totius Orientis populos subegit (a).
· (a) Trogo Pompeio, wn historiador romano de origem gaulesa,
contemporâneo de Augusto, com o título de Historiae Philipicae escreveu
uma história em quarenta e quatro livros, em continuação de Tito
Lívio. Era a descrição da história de várias povos, excepto os Roma-
nos, a partir da Macedónia, reino de Filipe. Toda a obra se perdeu e é
actualmente conhecida apenas pelo resumo que dela fez no Séc. H
Juniano Justino.
[388]
CAPtrul.O VII
[390]
CAPÍTULO VIII
1
Lascfvia.
(391]
para se conservar em segurança (tuta). A quem é que não
pareceria suficiente aquela Segetia a todo o desenvolvi-
mento da messe desde que nasce até que a espiga amadu-
reça? Tal não bastou porém a homens amantes de uma
multidão de deuses- e assim prostituíram a sua mísera
alma à turba de derpónios, desprezando o casto abraço do
único Deus verdadeiro. Puseram por isso Prosérpina a pre-
sidir à germinação do trigo, o deus Nóduto aos gomos e
nós (nodus) dos caules, a deusa Volutina ao involtório das
folhas; a deusa Patelana à abertura dos folículos para que a
espiga passe; a deusa Hostilina, quando as espigas vão
igualando suas barbas, pois os antigos para «igualar»
(aequare) usavam o verbo hostire; a deusa Flora à floração
do trigo; o deus Lactumus quando está leitoso; a deusa
Matuta à maturação; a deusa Runcina quando se arrancam
(runcare), isto é, quando o levam da terra. E não enumero a
todos porque me aborrece o que a eles não causa vergonha.
O pouco que disse é para que se compreenda que os
Românos de. nenhuma forma ousavam atribuir o estabele-
cimento do Império Romano, a sua dilatâção, a sua manu-
tenção a divindades que estavam de tal modo especializa-
das, cada uma em seu oficio, que a nenhuma foi confiado
um .emprego global. Como é que, portanto, Segetia teria
tomado a seu cuidado o Império, ela a quem não era per-
mitido ocupar-se ao mesmo tempo das searas e das árvo-
res? Como é que Cunina poderia pensar nas a~as, ela a
quem não era pennitido deixar o berço das crianças?
Como é que Nóduto poderia prestar ajuda na guerra, ele
que nem ao invólucro da espiga mas apenas aos nós dos
caules estava vinculado? Cada um põe em sua casa apenas
um porteiro e embora seja um só homem, basta perfeita-
mente; mas eles colocaram três deuses - Fórculo nas por-
tas {fores), Cárdea nos gonsos (cardo), Limentit;lo à soleira
limen). E assim Fórculo não podia guardar ao mesmo
tempo os gonzos e a soleira.
[392]
CAPÍTULO IX
1
jovis omnia plena.
Vergílio, Bucólúos, 111, 60.
[393]
CAPfTULOX
(395]
ser senão terra, por muito diferente que seja? E eis que
com estes quatro ou três elementos já o conjunto dp
mundo corpóreo está completo. Onde ficará Minerva?
Que ocupará ela? Que é que preencherá? Encontrou um
lugar no Capitólio ao mesmo tempo que eles, embora não
seja 6lha de ambos. Se, como dizem. Minerva ocupa a
parte superior do éter- e por essa razão os poetas fingem
que ela nasceu da cabeça de Júpiter- porque não a consi-
deram então como rainha dos deuses, mesmo acima de
Júpiter? Porque seria indecoroso colocar a filha acima do
pai? Porque é que não se observou a mesma justiça a pro-
pósito do próprio Júpiter para com Saturno? Porque este
foi vencido? Então, combateram? Longe disso, dizem;
palavrório de fábulas é que isso é! Vá- não ac~editemos
em fábulas e façamos dos deuses melhor juízo. Porque é
que então não foi ~do ao pai de Júpiter uma morada, se
não mais sublime pelo menos de igual categoria? Porque,
dizem, Saturno é a duração do tempo. Portanto prestar
culto a Saturno é prestar culto ao tempo e supor que Júpi-
ter, rei dos deuses, nasceu do tempo. Que há de indigno
em dizer-se que Júpiter e Juno nasceram do tempo-se
aquele é o céu e esta a terra- sendo certo que o céu e a
terra foram criados? De facto também os seus doutores e
sábios consignaram isto nos seus livros. Não foi segundo as
ficções dos poetas mas segundo os livros dos 6lósofos que
Vergílio escreveu:
Então, o Pai Omnipotente, o Éter, desceu tm forma de
chuva feamda, ao seio da sua ditosa esposa 2,
isto é, no seio de Telure, a Terra. Porque ainda aqui que-
rem que haja diferenças. Julgam que na própria terra uma
coisa é a Terra, outra Telure outra Telumão e que cada
um destes deuses tem os seus próprios nomes, distingue-se
pelas suas funções e é venerado em altares e com ritos
próprios.
2 Tum paur omnipotms fttUnJis imbribus «tber
Conjugis in grmriwn l«tae Jesa,Jit.
Vergílio, Gtórgicas, D, 325.
[396]
A esta mesma Terra chamam também a mãe dos
deuses, e assim já as ficções dos poetas se tomam mais
toleráveis, pois não é nos seus poemas mas nos livros
sagrados que é chamada não só a «irmã e esposa» mas
também a mãe de Júpiter. Querem ainda que a mesma
Terra seja Ceres e também Vesta. Mas é frequente apre-
sentarem V esta como o fogo dos lares, sem o qual a
cidade não po;deria existir. E por isso eram virgens que
costumavam consagrar ao seu serviço, porque, assim como
nada nasce do fogo, também nada nasce de uma virgem.
Todas estas frivolidades deviam com certeza vir a ser abo-
lidas e extintas por quem nasceu duma virgem. Efectiva-
mente, quem suportará qu.e os que tributam tão grande
honra (e até como que castidade) ao fogo, não se enver-
gonhem de chaniar Vénus a V esta, desvanecendo assim a
louvável virgindade das suas servidoras? É que, se Vesta é
Vénus, como é que virgens podem correctamente servi-la,
aostendo-se das obras de Vénus? Haverá duas Vénus-
uma virgem e outra senhora (mu/ier)? Ou antes três-uma
das virgens, que é também Vesta, outra das casadas e
outra das meretrizes? Era a esta que os Fenícios davam de
presente a prostituição das fUhas antes de as vincularem
aos maridos. Qual delas é a mulher de Vulcano? Com
certeza que não é a virgem, pois tem um marido. Que seja
a meretriz- nem pensar nisso: não vá parecer que se pre-
tende fazer injúrias ao filho· de Juno, ao colaborador de
Minerva. Portanto, tem que se concluir que se trata da
gue respeita às casadas. Mas não queremos que a imitem
~o que ela fez com Marte. Lá voltas de novo às fábulas,
dirão! Que justiça é essa que se inflama contra nós por isto
afirmarmos dos seus deuses e não inflama contra si próprios
os que no teatro assistem gostosamente a .estes crimes dos
seus deuses? E (o que não seria de acreditar se não se
provasse sem contestação) estas representações teatrais dos
crimes dos deuses foram instituídas em louvor desses
mesmos deuses.
[397] .
CAP{TULO XL
(399]
- é Neptuno nos mares e Salácia nas regiões inferio-
res do mar;
- é na terra Plutão, e Prosérpina nas regiões inferio-
res da terra;
- é Vesta nos lares domésticos e Vuicano na forna-
lha dos ferreiros;
-nos astros é o Sol, a Lua e as estrelas, e nos adivi-
nhos é Apolo;
-no comércio é Mercúrio, Jano no começo das coi-
sas, Saturno no tempo, Marte e Belona nas gu~rras, Uder
nas vinhas, Ceres nas searas, Diana nas florestas, Minerva
nas artes;
- está, finalmente, na multidão dos .deuses, a bem
dizer plebeus;
- é quem preside, com o nome de Ubero, à enússão
seminal dos homens e, com o nome de Ubera, à das
mulheres;
- é Diespáter, que leva a seu termo o parto;
- é a deusa Mena, que preside às regras das
mulheres;
- é Lucina, invocada pelas parturientes;
- é quem, com o nome de Ópi~, presta socorro a9s
recem-nascidos, recebendo-os do seio da terra;
- é quem, com o nome do deus Vaticano, lhes abre
a boca para os vagidos;
-com o nome da deusa Levana, os ergue da terra;
-com o nome da deusa Cunina, vigia os berços;
- é ele e não outro quem, com o nome das deusas
Carmentes, narra os destinos dos recem-nascidos;
-quem, com o nome de Fortuna, preside aos acon-
tecimentos fortuitos;
-com o da deusa Rumina, munge a mama para o
pequenino- por isso é que os antigos chan1aram ruma à
mama;
-com o da deusa Potina, lhes administra a bebida;
- COIJ? o da deusa Edura, lhes fornece a comida;
(400]
-quem do pavor das crianças tira o nome de
Pavência, o de Venilia da esperança que vem, o de Volú-
pia da voluptuosidade, o de Agenória do esforço.
- ·Dos estímulos com que o homem é impelido para
o excesso de actividade, vem-lhe o nome de Stímula, e de
Strénia da energia (strenuus) para a acção;
__:.a que ensina a contar (numerare) é Numeria e a que
ensina a cantar (canere) é Canena; .
-é ainda o deus Consus porque aconselha, a deusa
Sência porque inspira os pensamentos (sentencia), a deusa
Juventas. que, chegada ~ idade de envergar a toga pre-
texta, apadrinha a entrada na idade juvenil;
- é a Fortuna barbuda que reveste de barba os ado-
lescentes (a estes os quiseram honrar, considerando esta
curiosa divindade pelo menos como wn deus masculino,
quer chamando-lhe Barbado, por causa da barba, como se
chamou Nodato, por causa dos nós (nodus), quer
chamando-lhe Fortúnio em vez de FOrtuna ainda por
causa das barbas);
- como deus Jugatino ele une os esposos;
-com o nom~ da deusa Virginiense é invocado
quando se desaperta a cinta da noiva;
- ele é mesmo Mutuno ou Tutuno, ou seja, entre os
gregos, Priapo.
Se ele não se envergonha de ser nido o que disse e
até o que não disse (pois não tenciono dizer tudo), isto é,
que Júpiter sozinho seja todos os deuses e todas as deusas,
quer sejam estas, como pretendem uns, partes dele ou
potências dele, como parece a outros, a quem apraz ver
nele a alma do mundo, o que constitui a opinião de muitos
dos seus grandes doutores.
Se assim é (e qual seja não o indago por ora)-que
perderiam, se adorassem, numa síntese mais sensata, um
Deus apenas? Que poderiam «dele desprezar, adorando-o
a ele próprio»? Se deviam evitar que se irassem algumas
das partes que eram esquecidas ou postas de lado- então
não é ele Oúpit~r), como pretendem, a vida total do único
(401)
animador que em si contém todos os· deuses como potên-
cias suas, como membros seus, como partes ·suas; mas cada
uma das suas partes tem vida própria, separada das outras,
uma vez que uma pode irar-se com a exclusão de outra e
que uma se amansa quando a outra se indigna. Se se disser
que o próprio Júpiter todo inteiro se ofende, isto é, todas
as suas partes ao mesmo tempo, no caso de não serem
veneradas todas elas, uma a uma- diz-se uma tolice. Na
verdade, uma parte não seria posta de parte quando fosse
venerado o próprio Uno que a todas contém. Mas omito
outras questões, que muitas são. Quando afirmam que
todos os astros são partes de Júpiter, que todos vivem e
têm alma racional, que, portanto, são indiscutivelmente
deuses- não reparam quantos não veneram, a quantos
não constroem templos nem levantam altares, pois enten-
deram que não os deviam levantar senão a muito poucos
astros, aos quais deviam ser oferecidos sacriflcios em espe-
cial. Se pois se enfurecem os que não são venerados em
especial, não haverá que recear, dado o pequeno número
dos satisfeitos, viver na cólera de todo o céu?
Mas, se se veneram todos os astros honr~do Júpiter
que a todos contém, poderiam então elevar-lhes súplicas a
todos os compreendidos em Júpiter (desta forma, nenhum
teria que se encolerizar, já que, neste único, nenhum esta-
ria posto de parte). Séria melhor do que reservar o culto
para uns tantos, dando lugar a que injustificadamente se
indignem os que- decerto muitos mais- tivessem sido
preteridos, sobretudo quando do alto do céu onde brilham,
vêem preferir-se-lhes um Priapo exibindo-se na sua obs-
cena nudez.
[402]
CAPÍTULO XII
[403]
CAPfTULO Xlll
[405]
CAPÍTULO XIV
[407]
CAPITULO XV
1
re:c rtglll1l d Jominus dominantium:
Apocalipse. XIX, 16.
[410].
CAP[TULO XVI
animabus Vtstris.
Math., XI, '19.
[411]
CAPÍTULO XVII
[413]
CAPITuLO XVIII
[416]
CAPÍTULO XIX
A Fortuna feminina.
(417]
CAPfTULOXX
1
juscus ex fide vivir.
Habacuc, II, 4.
[419]
às quais podiam, de forma semelhante, dedicar templos e
altares? Porque é que a temperança não mereceu ser con-
siderada como deusa, já que foi em nome dela que muitos
romanos de alta categoria conseguiram uma não pequena
glória? Finalmente, porque não é uma deusa a fortaleza-
ela que assistiu a Múcio quando expôs a mãó às chamas,
ela que assistiu a Cúrcio quando se atirou, pela pátria, a
um precipício, ela que assistiu aos Décios, pais e filhos,
quando a favor do exército fizeram voto de si mesmos?
Se, porém, em todos eles era de verdadeira fortaleza que
se tratava, não é isso que está agora em causa.
Porque é que a prudência, porque é que a sabedoria
nenhum dos lugares dos deuses mereceram? Será porque
são todas veneradas sob o nome genérico da própria Vir-
rude? Nesse caso, bem podia ser adorado um só Deus, do
qual julgam que todos os outros são partes. Mas a Fé e a
Pudicícia estão incluídas numa única virtude e todavia
mereceram altares à parte em templos próprios.
(4W]
CAPfTULO XXI
[423]
CAPITULO XXll
[425]
CAP[TULO XXlll
(430]
CAPfTuLO XXIV
(431]
CAPITULO XXV
[434]
CAPÍTULO XXVI
Mas, diz Túlio «tudo isto são ficções de Homero que trans-
feria para os deuses as fraquezas humanas. Eu teria preferido que
ele transferisse para nós as virtudes tÜvinas» 1. Com razão desa-
gradava a wn homem sério este poeta inventor dos crimes
dos deuses. Porque é que, então, os jogos cénicos, em que
estas coisas são repetidamente contadas, cantadas, repre-
sentadas, exibidas em honra dos deuses, foram inscritos
pelos mais doutos no número das coisas divinas? Clame
aqui Cícero, não contra as ficções dos poetas, mas contra
as instituições dos antepassados- não suceda que sejam
eles a clamar «Que é que nós fizemos? Foram os próprios
deuses que reclamaram a exibição dos jogos em sua honra,
foram eles que os impuseram ameaçadoramente, foram
.eles que anunciaram calamida:des se lhes fossem recusados,
foram eles que castigaram severissimamente os que os
negligenciaram, foram eles que, depois da reparação, se
declararam aplacados». Vou relatar o que se conta de
entre os factos extraordinários do seu poder: a Tito
Latino, camponês romano, pai de fanúlia, foi ordenado em
sonho que informasse o Senado de que se tornava necessá-
[435]
rio recomeçar os jogos romanos, e que no primeiro dia da
sua celebração se ordenasse a execução de um criminoso
perante todo o povo- triste ordem que teria desagradado
aos deuses que nestes jogos só procuravam evidentemente
o folguedo. Como aquele que em sonho fora avisado não
se atreveu a cumprir a ordem no dia seguinte, o mesmo
lhe foi ordenado de novo e mais severame~te na noite
seguinte; porque o não fez, perdeu um filho. Na terceira
noite, foi dito ao homem que recairia sobre ele castigo
mais grave se não cumprisse. Como nem assim se
atreveu- caiu numa dolorosa e horrível doença. Então, a
conselho de amigos, expôs o caso aos magistrados e foi
transportado numa liteira ao Senado- e logo que contou
o sonho recuperou imediatame.nte a saúde e regressou são,
por seu pé. Estupefacto com tamanho prodígio, o Senado
quadruplicou
. o dinheiro. e determinou que recomeçassem
OS JOgos.
Quem, dotado de são juízo, não verá que os homens
sujeitos aos maus demónios- sujeição de que só a graça
de Deus por Jcius Cristo Nosso Senhor os poderá libertar
- foram forçados a oferecer a tais deuses o que, em recto
conselho, se pode considerar vergonhoso? Com certeza,
naqueles jogos instaurados por ordem do Senado sob pre -
são dos deuses, o que foi celebrado foram os crimes dos
deuses contados pelos poetas. Nesses jogos, os mais torpes
histriões cantavam, imitavam e deleitavam a Júpiter, o
corruptor da pudicícia. Se aquilo era fingido- ele deveria
indignar-se; mas, se se deleitava com os seus crimes, fingi-
dos embora, como venerá-lo sem servir ao Diabo? Será
este Júpiter quem fundou, dilatou e conservou o Império
Romano- ele que é mais abjecto do que qualquer
homem a quem tais actos causariam repulsa? ~ este
deus, - a quem se presta um tão infeliz culto e que, se tal
culto lhe não é prestado, mais infelizmente ainda se
enfurece - , é este quem concede a felicidade?
(4.36]
CAPITuLo XXVll
(439]
CAPfTUW XXIX
1
Strvientts creaturae potius quam crtaJori, qui est bmtJictus in saecula.
Rom., I, 25.
[443]
CAPITULO XXX
[445)
como até sustentaram guerras suas propnas (por exemplo,
contra os Titãs e os Gigantes). Não só se conta mas também
se crê insensatamente nestas coisas, plenas de frivolidades e de
suma ligeireza 2 .
Vede entretanto o que confessam os que defendem os
deuses dos gentios. Depois de ter afirmado que estas cren-
ças se ligam à superstição, declara CíCero que a sua dou-
trina pessoal, inspirada nos estóicos, ao que parece, se liga
à religião:
Não foram apenas os filósofos mas também os nossos
antepassados que separaram a superstição da religião. Efecti-
vamente, os que passavam os dias inteiros a orar e a imolar
para que os seus filhos lhes sobrevivessem (essent superstites)
foram alcunhados de supersticiosos 3•
Quem não compreende os esforços que ele faz, com
medo de ferir as tradições da cidade, para louvar a reli-
gião dos antepassados e separá-la da superstição, sem
todavia encontrar a forma como fazê-lo? Porque, se os
antepassados chamavam supersticiosos àqueles que
passavam os dias inteirqs a orar e a imolar 4
não serão também os que inventaram (o que ele reprova)
essas estátuas dos deuses de diversas idades, de vestuário
2 Vi~ ig!tur, ut a physiás rtbu.s btne tt atque utilittr invtnili ratio sit
tracta ad commentidos tt fiaos tkos? Quat rts gmuit falsas opiniones moresque
twbultmos tt srtpetstitionts ~ aniles. El format mim nobis ckomm tt attatts
tt llt$lÍt{IS ornatusqtlt noti sunt, gtNra pr«Ura, amjugúl, ~~ omniaqut
traduaa ad simi&udinmr imh«ilüuztis humanae. Nam tt ptrturbatis animis indu-
cuntur; acapimus mim tkorum apiJiJates atgrillldints iraamdias. Nec vtro, ur
fabul« jtrUnt, dii bdlis ~lüsque azrummt; nec solum, ut apud Homtnm~, cum
drlOs exercitus contmrios alii dii ex parte túfondmmt, ud ttiam (ut ams TII4nis
aut alm Gigantibus) sua propria btlla gesstrunJ. Haec tt dicuntur tt aeduntur
stultissimt tt pkna sunt vanitatis summatqut ltvitatis. ·
Crctro, Dt nalllra Jeonun, ll, 28.
3
Non mim philosophi solum verum ttiam majores nostri svpmtiliontm a
rdigiont uparavtrUnt; nam qui totos &s precabantur tt immolabant, ut sihi Slá
libtri supmtites esunt, supmtitiosi sunt appJ/ali.
Id., Ib., II, 28.
4
totos &s precabantur tt immoiabant».
Id:, Ib, II, 28.
[446]
diferente, essas genealogias e casamentos e pàre~tescos dos
deuses? Na ve!I'dade, quando se inculpa tudo isto de supers-
tição, esta culpa abrange os antepassados que instituíram e
venera~am ídolos e abrange-o a ele também, que, apesar
de toda a eloquência que emprega para se libertar dos
ídolos, pregava todavia que era necessário venerá-los.
Nem ousaria murmurar na assembleia do povo o que com
retumbância proferia no seu eloquente discurso.
Por isso demos nós, cristãos, graças ao Senhor nosso
Deus-não ao Céu e à Terra, como disserta este escritor,
mas Àquele que criou o Céu e a Terra e que, pela pro-
funda humildade de Cristo, pela pregação dos apóstolos,
pela fé dos mártires que morreram pela verdade e vivem
na verdade- a essas superstições que Balbo dificihnente,
como que a balbuciar, repreende, não só as arrancou dos
corações religiosos mas até dos templos supersticiosos, pela
livre submissão dos seus.
[447]
CAPÍTULO XXXI
1
Quod si adhuc mansisset, castius dii observarentur.
2
qui primi simúlacra deorum populis posuerunt, eos civitatibus suis et
metum dempsisse et errorem addidisse.
[450]
julgando sensatamente que os deuses podiam facilmente
ser desprezados sob a aparência estúpida de ídolos. Na
verdade não diz:
Introduziram o erro 3 ,
mas sun
aumentaram 4 .
Quis assim, com cer_teza, dar a entender que, mesmo
sem ídolos, o erro já existia. Por isso, quando declara que
só compreendem o que seja Deus os que o têm por wna
alma que governa o universo e considera mais puro que se
observe a religião sem ídolos, quem não verá quanto ele
está próximo da verdade? Se ele algwna coisa pudesse
éontra a antiguidade de tão grande erró, sem dúvida que
teria acreditado nwn Deus único que governa o mundo e
teria pensado que Aquele se deve adorar sem ídolos.
Encontrando-se tão perto da verdade, poderia talvez
reconhecer facihnente a mutabilidade da alma e isso tê-lo-
-ia levado a conceber que o verdadeiro Deus é, por natu-
reta, imutável e, consequentemente, criador da própria
alma.
Porq~e assim é, todos esses motivos de escárnio res-
peitantes à multidão dos deuses que tais homens compila-
ram nos seus livros, foram eles obrigados por uma secreta
vontade de Deus mais a confessá-los do que a tentarem
convencer-nos deles. Se daqui tiramos alguns testemunhos
-fazemo-lo para refutar os que se não querem aperceber
de quão grande e quão maligno é o poder dos demónios
de que nos libertarão o sacrificio único de tão santo san-
gue derramado e o dom do Espírito que nos foi concedido.
3 trTOrtm tradiderunt.
4 Aàdidtnmt.
[451]
CAPtruLO XXXD
[453)
CAPfTULO XXXlll
[455)
CAPITULO XXXIV
[457]
seu Deus; tiveram searas sem Segetia, bois sem Bubona, mel
sem Melona, fruta sem J?omona; numa palavra- todos
estes bens pelos quais os Romanos julgavam que deviam
invocar uma tão grande multidão ·de falsos deuses,
receberam-nos eles de uma forma mais feliz do único
Deus verdadeiro.
E, se contra Ele não tivessem pecado por uma curio-
sidade ímpia, se d'Ele afastados por pretensas artes mági-
cas, não deslizassem para os deuses estrangeiros e os ído-
los, e se, por flm, não tivessem dado a morte a Cristo
-manter-se-iam. no mesmo reino, embora não mais espa-
çoso, todavia mais feliz. E agora o facto de se apresenta-
rem dispersos por quase todas as terras e nações, constitui
uma decisão providencial daquele único e verdadeiro
Deus. E assim a destruição das imagens, dos altares, dos
bosques sagrados e dos templos dos falsos deuses, e a pro-
ibição dos sacrifkios, que se vão verificando por toda a
parte, pode provar-se pelos livros deles como tudo de há
muito estava profetizado, para que, quando se lerem estas
previsões nos nossos livros, se não possa pensar que as
inventãmos.
Deixemos para o próximo livro a continuação destas
considerações e ponhamos termo aqui a esta longa expO-
sição.
[458]
LIVRO V
Começa por procurar extirpar a crença no destino para que se
não mantenham seguros os que a ele atribuem o poderio e o
incremento romano, já que, como se demonstrou no livro pre-
cedente, não é possivel atribui-lo aos falsos deuses. Dai a
digressão até à questão da presciência de Deus, ficando pro-
vado que ela não nos priva do livre arbitrio da nossa vontade.
Depois trata dos costumes dos antigos romanos e de como o
verdadeiro Deus, que eles não adoravam, os ajudou a engran-
decer o Império, quer por seus méritos quer por decisão
divina. Por fim dá parecer a.cerca da verdadeira felicidade dos
imperadores cristãos.
(459)
PREFACIO
(461]
CAPÍTULO I
[465]
CAP[TULO II
[467]
tamento e no destino, puderam ser concebidos e nascer no
mesmo instante, no mesmo país e sob o mesmo céu,-
constitui isso qualquer coisa de insólito que eu não sei
qualificar.
· O que é certo, porém, ê que nós conhecemos gémeos
que não só exerceram diferentes actividades e fizeram
diferentes viagens mas também padeceram de doenças
diferentes. A meu ver, Hipócrates poderá dar deste caso
uma explicação faólima: uma diferença de alimentação e
de exerdcios, que resulta não da constituição do corpo
mas do poder· da vontade, pode provocar diferenças de
sàúde.
Todavia seria maravilhoso se Posid6nio ou qualquer
outro defensor da fatalidade astral pudesse achar para este
caso uma explicação, se é que não quer troçar dos que
destas questões nada sabem. Tentam pôr em relevo o
exíguo intervalo de tempo entre ·o nascimento de um e
outro gémeo e, portanto, a partícula do céu onde está
marcada a hora do nascimento e.a que chamam horóscopo.
Mas então, ou esse intervalo não tem tanta influência para
explicar nos gémeos a sua diferença de vontades, de actos,
de comportamentos e de sucessos; ou então tem-na demais
para a identidade, quer da humildade quer da nobreza da
sua origem, já que pretendem que tão grande diferença de
condição depende apenas da hora em que cada um nasce.
Se nascem um depois do outro em tão curto intervalo que
o seu horóscopo tem que ser o mesmo, então reclamo para
eles igualdade plena, o que em nenhuns gémeos poderão
jamais encontrar; se, porém, a demora do segundo a nas-
cer muda o horóscopo, então reclamo pais diferentes, o
que não podem ter os gémeos.
[468]
CAP[TULOill
(470]
CAPÍTULO IV
[475]
CAP[TULOVI
[478]
CAPfTuLo VII
[481)
CAPÍTULO VIII
[484)
CAP[TUWIX
[485]
De natura deorum 2 , de sustentar a discussão acerca desta
matéria contra os estóicos; mas antes quis pôr-se do lado
de Lucílio Balbo, a quem tinha confiado a defesa das opi-
niões dos estóicos, do que do lado de Cota que nega que
haja qualquer natureza divina. Mas nos livros De divina-
tione 3 , é em seu próprio nome que abertamente ataca a
presciência do futuro. P~rece que Cícero fez tudo isto
para que, admitindo-se o destino, se não negue a vontade
livre. Pensa ele que, uma vez admitida a ciência do futuro,
o destino se toma uma consequência necessária e inegável.
Mas aonde quer que levem tão tortuosas controvérsias e as
discussões dos filósofos, o que nós confessamos é que há
tim Deus Supremo e verdadeiro, tal como confessamos a
sua vontade, o seu poder supremo e a sua presciência; nem
temos medo de poder fazer sem vontade o que volunta-
riamente fazemos, lá porque prevê o que havemos de
fazer Aquele cuja presciência se não pode enganar. Foi
este receio que levou Cícero a impugnar a presciência e os
estóicos a dizerem que nem tudo acontece necessaria-
mente, .embora sustentem que tudo acontece fatalmente.
Que é pois que Cícero receou na presciência do
futuro, para procurar abalá-la c9m uma argumentação
detestável? Isto: se os acontecimentos futuros são todos
previstos, cumprir-se-ão pela mesma ordem por que foram
previstos. Se vierem por essa ordem, então a ordem das
coisas está determinada pela presciência de Deus; se a
ordem dos acontecimen,tos está determinada, determinada
está também a ordem das causas, pois nada pode acontecer
que não seja precedido de uma catisa eficiente. Se, por-
tanto, a ordem das coisas, pela qual acontece tudo o que
2
«Actrca da naluTeZa dos tkusm.
Cicero, De Mtureza deorum, XIII.
3 «Actrca da adivinhação-..
Trata-se antes do De Fato (O destine) e não do Dt Jivinctiont que
Santo Agostinho não utilizou no De Civitate Dd.
[486]
acontece, está detemúnada, fatalmente acontece, diz ele,
tudo o que acontece. Mas, se assim é, nada está no nosso
poder, e nenhwn arbítrio da vontade existe. Mas, se tal
admitirmos, acrescenta ele, toda a vida hwnana se sub-
verte, em vão se proferem leis, em vão recorremos às
censuras ou aos louvores, às críticas ou às exortações, nem
haverá mais justiça como prémio para os bons, nem casti-
gos instituídos para os maus.
É pois para evitar à hwnanidade estas consequências
indignas, absurdas e perniciosas que ele nega a presciência
do fi.ituro. Encerra a alma religiosa no angustioso dilema
de escolher de duas wna -ou a nossa vontade tem algwn
poder, ou existe wna presciência do futuro. Porque, assim
pensa, wna e outra não podem coexistir: se admitirmos
wna, negamos a outra; se escolhermos a presciência do
futuro, suprimimos o arbítrio da vontade; se escolhermos
o arbítrio da vontade, suprimimos a presciência do futuro.
E assim ele, grande e douto varão, tantas vezes e com tal
mestria defensor da vida hwnana, das duas coisas escolheu
o livre arbítrio da vontade; mas, para o consolidar, negou
a presciência do futuro e assim, querendo fazer os homens
livres, fê-los sacrílegos.
Mas a alma religiosa escolhe wna e outra, confessa
uma e outra e fundamenta uma e outra na fé religiosa.
Como? Pergunta. Porque, se há uma presciência do
futuro, seguem-se todos aqueles acontecimentos que são
conexos até se chegar ao ponto em que na nossa vontade
já nada há. Mas, se, pelo contrário, algwna coisa depende
da nossa vontade, os mesmos argwnentos virados do
avesso, nos levam a demonstrar que não há presciência do
futuro. Eis como se viram do avesso todas essas questões:
se há um arbítrio da vontade- nem tudo acontece fatal-
mente; se nem tudo acontece fatalmente, a ordem das cau-
sas não está determinada; se a ordem das causas não está
determinada, também não está determinada na presciência
de Deus a ordem dos acontecimentos, porque eles não se
podem realizar sem causas que os precedam e os produzam;
[487]
se a ordem dos acontecimentos não estã determinada pela
presciência divina eles não acontecem todos como r;>eus
previu que aconteceriam: e portanto em Deus, diz ele,
não há presciência de todos os futuros.
É contra· estas audácias ímpias e sacrílegas que nós
afirmamos, não só que Deus conhece todos os aconteci-
mentos antes que eles se verifiquem, mas também que
fazemos voluntariamente tudo o que sabemos e temos
consciência de que o fazemos apenas porque o queremos.
Não dizemos que tudo acontece fatalmente; dizemos
antes que nada acontece fatalmente; porque a palavra fatal
ou destino, no sentido que é costume dar~se-lhe, isto é,
designando a posição dos astros no momento em que cada
um é concebido ou nasce, demonstramos que nada vale,
porque é uma expressão sem sentido. Mas a ordem das
causas em que a vontade de Deus muito pode, nem a
negamos nem a designamos com o nome de destino salvo,
talvez, no sentido que se lhe dá ao derivar fatum (destino)
de fari (falar). Não podemos, na verdade, negar o que foi
escrito nas Sagradas Escrituras:
Deus falou uma véz e eu ouvi" duas coisas: o poder
pertence a Deus e a ti, Senhor, a misericórdia, a ti que
recompensas cada um conforme as suas obras 4 •
Estas palavràs semel úxutus est s significam: ele proferiu
uma «palavra imóvel» isto é, «irrevogável», tal como
conhece irrevogavelmente tudo o que virá a acontecer e
tudo o que Ele mesmo terá a fazer.
Com este sentido poderíamos fazer derivar fatum (des-
tino) de fari (falar) se não fosse costume entender-se por esta
palavra uma outra coisa para a qual não queremos que o
4
&mt1 locutus tst Dtus, duo haec auJivi, quia pottstas Dti est, et tibi,
Domint, mistricoráia, qui rtJáis unú:uifF stcundum opc'Q tjus.
~ LXl, 12-13.
s «falou uma vez>~.
ut supra.
(488]
coração dos homens se incline. Mas pelo facto de a ordem
das causas estar detenninada para Deus, não se conclui
que nada depende do arbítrio da nossa vontade. É que as
nossas próprias vontades pertencem à ordem causal, certa
para Deus e contida na sua presciência. As vontades
humanas são efectivamente as causas das acções humanas,
e por conseguinte aquele que previu todas as causas das
coisas não pôde ~gnorar, entre as causas, as nossas próprias
vontades, pois que previu as causas das nossas acções.
Mas mesmo o que Cícero conçede- que nada acon-
tece sem ser precedido de uma causa eficiente- é bas-
tante para o refutar nesta questão. Para que lhe serve,
efectivamente, afirmar que nada acontece sem causa mas
que nem toda a causa é fatal, pois que há causas fortuitas,
· causas naturais, causas voluntárias? Basta que reconheça
que nada acontece senão em virtude de uma causa ante-
rior. As causas que se chamam fortuitas, donde fortuna
tirou o nome, não dizemos que não existem. Dizemos
antes que estão escondidas. E atribuímo-las à vontade do
verdadeiro Deus ou de qualquer outro ·espírito. E as pró-
prias causas naturais de forma nenhuma as separamos da
vontade d'Aquele que é o autor e o criador de toda a
natureza. Até mesmo as causas vo1untárias provêm ou de
Deus ou dos anjos, ou dos homens ou de ãlguns animais, se
é que se podem chamar vontades a esses movimentos das
almas privadas de razão, que as levam a agir conforme a
sua natureza quando sentem algwn desejo ou aversão. Mas
por vontade dos anjos entendo, quer a dos bons, a que
chamamos anjos de Deus, quer a dos maus, a que chama-
mos anjos do Diabo ou ainda demónios. Da mesma forma
a dos homens, quer dos bons quer dos maus.
Daqui se colhe que não há causas eficientes de tudo o
que acontece que não sejam voluntárias, isto é, proceden-
tes dessa natureza que é sopro (spiritus) de vida. É que
também se chama sopro (spiritus) ao ar ou ao vento. Mas
este, porque é um corpo, não é sopro (spiritus) da vida.
Porém o sopro (spiritus) de vida que tudo vivifica e é cria'-
[489]
dor de todo o corpo e de todo o espírito (spiritus) criados, é
o próprio espírito (spiritu.S) inteiramente incriado. Na sua
vontade está o poder supremo que ajuda as vontades boas
dos espíritos criados, julga as vontades más e a todas
ordena, dando poderes a umas e recusando-os a outras. De
facto, assim como é o criador de todas as naturezas, assim
é também o dispensador de todos os poderes, mas não de
todos os quereres. Realmente, as vontades más não proce-
dem d 'Ele porque são contrárias à natureza, que, essa sim,
provém d'Ele. Por isso os corpos estão subm~tidos às
vontades- uns às nossas, isto é, de todos os seres viventes
mortais e, aliás, mais os dos homens do que os dos ani-
mais; outros às dos anjos; mas todos estão submetidos
principalmente à vontade de Deus, de quem dependem
também todos os quereres, porque eles não têm outros
poderes que não sejam os que Ele lhes concede.
Tainbém a causa das coisas, que faz mas não é feita,
é Deus. Mas há as outras causas que fazem e são feitas:
como são todos os espíritos cria4os, principalmente os
racionais. Mas as causas corporais que são mais actuadas
do que actuantes, nem sequer entre as causas eficientes
devem ser enumeradas, porque o que elas podem realizar
é apenas o que as vontades dos espíritos produzem, delas
se servindo.
Como é, então, que a ordem das causas que está
determinada (certa) na presciência de Deus faz com que
nada dependa da nossa vontade quando nessa mesma
ordem de causas as nossas vontades ocupam lugar impor-
tante? Pois lá se avenha Cícero com aqueles que afirmam
ser fatal esta ordem de causas ou, melhor dizendo, dão o
nome de destino a essa ordem - o que nos causa repulsa
principalmente porque com tal palavra é costume nada se
entender na realidade. Mas, quando Cícero nega que a
ordem de todas as causas está totalmente determinada (cer-
tissima) e perfeitamente conhecida (notissima) da presciência
de Deus, mais do que os estóicos detestamos nós essa opi-
nião. Efectivamente, ou ele nega a existência de Deus,
(490]
como tentou fazê-lo por interposta pessoa nos livros De
natura deorum 6 , ou então confessa a sua existência mas nega
a sua presciência do futuro, e nesse caso nada mais faz do
que repetir o que disse o insensato em seu coração: Não há
Deus 7 • Efectivamente, quem não tem a presciência de
todos os acontecimentos futuros certamente que não é
Deus. Aí está porque é que mesmo as nossas vontades ·
apenas podem o que Deus quis e previu que pudessem.
Portanto, o que elas podem, podem-no com certeza,
e serão elas próprias que hão-de fazer o que devem fazer
- porque o que elas poderão e terão a fazer, isso mesmo
foi previsto por Aquele cuja presciência não se pode
enganar.
Por isso, se me agradasse aplicar o nome de «destino»
a qualquer coisa, preferia dizer: «O destino aplica-se ao
inferior, e ao superior aplica-se a vontade que o mantém
submetido ao seu poder», a retirar à vontade o arbítrio na
ordem de causas a que os estóicos costumam apelidar, sem
repugnância, de destino.
[491)
CAPÍTULO X
(495)
CAPÍTULO XI
[497)
que não deixou de conceder, não somente ao céu e à
terra. não somente ao anjo e ao homem, mas também aos
ôrgãos do mais pequenino e do mais desprezível dos ani-
mais. à mais pequena das penas da ave, à tlor dos campos,
à tolha da árvore, a ham1onia das suas partes e como que
uma certa paz- seria de todo inconcebível que Ele qui-
sesse deixar o reino dos homens, as suas dominações e as
ruas sujeições tora das leis da sua Providência.
[498)
CAPÍTULO XII
[499]
Esta foi a sua paixão mais ardente. Por ela queriam viver.
Por ela não hesitavam em morrer. Por esta desmesurada
paixãp, abafaram todas as outras paixões. Finalmente,
porque consideravam vergonha para a sua pátria servir e
uma glória dominar e imperar, desejaram com todo o
empenho, antes de tudo, que ela fosse livre e depois que
fosse soberana.
É por isso que, não suportando o domínio da realeza,
criaram uma autoridade renovável todos os anos e partilhavam-
-na por dois chefes cha.mados cônsules, palavra derivada de
consulere (aconselhar), em vez de lhes chamarem reis. (reges)
ou senhores (domini), palavras que derivam de regnare (reinar)
e de dominare (dominar) 2•
E isto embora se pudesse usar muito bem a palavra
reges (reis) que deriva do verbo regere (dirigir, governar), tal
como regnum (reine, poder) deriva de reges, e reges, como
acima disse, de regere.
Pareceu-lhes, porém, que o fausto régio não era pró-
prio da vida disciplinada de um dirigente ném da benevcr- .
lência de um conselheiro, mas da soberba de um tirano.
Por isso, depois da expulsão do rei Tarquínio e da
instituição dos cônsules, seguiu-se o ql!e o citado autor
descreve assim no seu elogio dos Romanos:
Conquistada que foi a liberdade, a cidade-facto
incrível na história-, desenvolveu-se com extrema rapidez,
tão grande era a paixão da glória que a animava 3•
Foram pois esta avidez do louvor e esta paixão da glória
que realizaram tantas maravilhas, dignas por certo de lou-
vores e de glória segundo o juízo dos homens.
2
annua imptria binos~ imperatores sibi feare, qui amsults apptlali sunt a
consulenJo, non reg~ aut clomini a rtgnatulo ai~ dominando.
Salúsrio, Caril., VIl, 6.
3
Civitas incredibile mmwratu ~~ adepta libtttatt quantum brtvi creverit,
tanta Olpido gloriae incesserat.
Salústio, Ozti/., vn. 3.
[SOO]
O mesmo Salústio elogia dois grandes e ilustres varões
da sua época: Marco Catão e Caio César. Diz ele que
durante muito tempo · não teve a república ninguém de
alta virtude, mas que, no seu tempo, estes dois, aliás de
carácter diferente, foram Cie elevado valor. Elogia César
porque muito desejava um grande comando militar, um
exército e uma nova guerra onde o seu talento pudesse
brilhar. Assim, acontecia que nas intenções destes homens
grandes pela corag m estava Belona a excitar à guerra
núseros povos e a atiçá-los com o seu sangrento azorra-
gue, para lhes dar ocasião de que brilhasse o ~u talento.
Era a isto que conduzia, sem dúvida, a avidez do louvor e
a paixão da glória.
Foi, pois, primeiro por amor da liberdade, depois
pelo amor do domínio e pela paixão dos louvores e da
glória que eles realizaram tantaS façanhas. Das duas coisas
dá testemunho o seu insign poeta. Efectivamente, diz:
Porsena ordenava que recebessem o banido Tarquinio e
mantinha a cidade sob a pressão de um temível cerco; mas os
descendentes de Eneias, por amor à Liberdade, voavam ao
combate 4 •
Para eles, nesse tempo, a grandeza consistia em morrerem
corajosamente ou livremente viverem. Mas, quando a
liberdade foi conquistada, surgiu neles tamanha paixão de
glória, que já a liberdade só lhes parecia de pouca monta
e se não lhe acrescesse a ânsia de domínio. Para ele , era
rido em grande conta o que o mesmo poeta diz, pondo-o
na boca de Júpiter:
Mais ainda: a i11lratável Juno, ·que agora manrém pelo
medo o mar e a terra e o céu, mudará para melhor os seus
propósitos e comigo favorecerá o povo togado, os Romanos
[501)
senhores do mundo. Assim me aprouve. Virá um tempo em
que, com o passar dos lustros, a casa de Assáraco oprimirá
pela escravidão Ftia e a ilustre Micenas e dominará sobre
Argos vencida 5 •
Na verdade, o que Vergílio põe na boca de Júpiter predi-
zendo o futuro, eram factos que ele próprio recordava e
que discernia perfeitamente como se fossem presentes.
Mas eu quis recordá-los para mostrar que os Romanos,
depois da liberdade, tinham em tal conta a vontade de
donúnio, q_ue desta fizeram o objecto dos seus maiores
louvores. E por isso qúe o mesmo poeta põe acima das
artes dos outros povos as artes próprias dos Romanos- de
reinar e de comandar, de subjugar e de conquistar pelas
armas os povos. Diz ele:
Outros forjarão com habilidade o bronze, até lhe darem
alento, concedo; e arrancarão ao mármore rostos com vida,
Defenderão causas com mais eloquência,
Traçarão com o compasso l)S caminhos do céu,
E falarão do nascimento dos astros:
Mas tu, Romano, atenta em governar os povos com o teu
dominio,
Estas serão as tuas artes: impor as normas da paz,
Perdoar aos vencidos e domar os soberbos 6•
.... quin asptra Juno
Qu« mart nunc tmasqut mttu cotlumqut fatigat,
Consilia in mtlius rtftrtt mtam~qut fovebit
Romanos rtrUm dominos gtnlmlqut togaram.
Sic placitum. Vtnitt lu.stris labmtibus anas,
Cum domus Assarad Phlhiam clarasqut Myanas
&rvitio prtmlt ac victis dominabitur Argis.
Vergilio., EMcla I, Z79-285.
6 Excudmt alii spiranria mol/ius oera,
udo equitkm, vivos duant de mar7nort vultus,
Orabunt causas mtlüus e«<iqut mtatus
Describmt radio tt surgtnria sidera dicmt:
Tu rtgtrt imptrio populos, Romant, memmto
(Hot tibi trUnt artes) pociqut impontre mores,
Parct:rt subj«ris tt tkbt1lare suptrbos.
Vergílio, EMcla, I, 847-853.
[502]
Estas artes exerciam-nas os Romanos com canta
maior mestria quanto menor era a sua entrega à volúpia,
ao enervamento da alma e do corpo peia ânsia de adquirir
e de aumentar riquezas, por estas corrompendo os costu-
mes, espoliando os cidadãos pobres e presenteando torpes
h.istriões.
Aliás, esses que, quando isto narrava Salústio e Ver-
gílio cantava, já ultrapassavam os antigos pela corrupção
dos costumes e mergulhavam na abundância, já não era
pelas ditas artes mas por fraudes e mentiras que procura-
vam as honras e as glórias. Por isso é que o mesmo histo-
riador diz:
Primitivamente, a cupidez trabalhava menos o coração
dos homens do que.a ambição - vício aliás mais próximo da
virtude. Na verdade, tanto o homem bom como o indolente
anseiam igualmente pela glória, pelas honras e pelo poder.
Mas aquele tenta-o pelo verdadeiro caminho, ao passo que o
segundo, desprt>vido de meios honestos, procura lá chegar pela
astúcia e pela mentira 7•
Estas é que são as boas artes: era por meio da virtude
e não por meio de uma astuta ambição que se chegava às
honras, à glória, ao poder- que tanto o bom como o
fraco, sem restrição desejam para si; mas aquele, ou seja o
bom, esforça-se por seguir pelo verdadeiro caminho. A
virtude é o caminho pelo qual se avança para atingir o seu
fun, ou seja, a glória, a honra, o poder.
Que os Romanos tinham isto bem arreigado no seu
íntimo, indicam-no os templos dos deuses levantados
muito perto um do outro à Virtude e à Honra, tomando
por deuses os dons de Deus. Donde se pode deduzir que
fim queriam eles que fosse o da virtude e para onde a
7 &d primo mogis ambitio quam avaritia animos hominum exerctbat, quod
tamtrJ vitium proprius virtutem erat. Nam gloriam Jwnorem, imperium lxmus ti
ignavus aequt sibi exoptant; sed ii/e vera via nititur, huic quia bónae artts dtsunt,
do/is atqut fallacii.s contendit.
Salústio, Catil., XI, 1 e segs.
[503]
orientavam os que eram boru, ou seja: para a honra; por-
q~e os maus nem sequer a possuíam, embora desejassem
possuir honras que se esforçavam por adquirir, mas por
malas artes, isto é, pela manha e pela mentira.
Melhor do que César foi Catão elogiado por Salús-
tio. Com efeito, diz dele:
Quanto merws desejava a glória, mais ela o seguia 8.
Efectivamente a glória, pela qual ardem de desejo, é wn
juízo de homens que têm de outros homens wna alta opi-
nião. E por isso é melhor !i virtude que não se satisfaz com
o testemunho hwnano mas com o da sua consciência.·Daí o
que diz o Apóstolo:
Para nós, a nossa glória é o testemunho da nossa
consciência 9•
e noutra passagem:
Examine cada um a sua obra- e então em si mesmo
somente e não em outrem terá a glória 10 •
Portanto, a glória, a honra e o poder que os Romanos
para si tanto desejavam e a que os bons se esforçam por
chegar por meios honestos- não é a virtude que os deve
seguir, mas eles à virtude. É que não é verdadeira virtude
senão aquela que tende para wn flDl onde se encontre o
bem do homem, melhor do que o qual nada há. Por isso
Catão não devia pedir as honras que pediu, a cidade é que
lhas devia conceder em atenção à sua virtude sem ele as
pedir.
Mas, se César e Catão são dois romanos desse tempo
grandes pela virtude, a virtude de Catão parece muito
mais próxima da verdade do que a de César. Que é que a
8
Quo minus, petebat gloriam, eo illum magis sequdlatur.
: . Salústio, Catil., LIV, 6.
9
Nam gloria nostra h«c est: testimonium conscitntiat nostr~.
II Cor., I, 12.
10
Opus autem suum probet unusquisque, et tunc in semetipso tantum
gloriam hahebit et non in altero.
Gál., VI, 4.
[504]
cidade valia nessa época e que é que ela valia antes,
vejamo-lo segundo o parecer de Catão. Diz ele:
Livrai-vos de julgar que os nossos antepassados de um
pequeno fizeram um grande estado pela força das armas. Se
assim fosse, tê-lo-íamos hoje muito mais belo. De facto, dis-
pomos de maior cópia de aliados e de ddadãos e também de
mais armas e cavalos do que eles. Mas foram outros os meios
que os tornaram grandes e que nós não temos: na pátria,
dedicação ao trabalho, no exterior, uma autoridade justa; nas
deliberações, ânimo livre, não culpado de crime ou de paixão.
·Em vez destes, temos a luxúria e a avareza, no Estado a
miséria, entre os particulares a opulência. Louvamos as rique-
zas e adoptamos a preguiça; nenhuma distinção entre os bons
e os maus; a ambição possui todos os prémios da virtude.
Nem admira: quando cada um de vós toma as decisões por
sua conta. Em cada casa sois escravos do prazer e, em
público, do dinheiro e do favor, dépois do que todos se atiram
ao Estado como se fosse coisa abandonada 11 •
Quem ouvir estas palavras de Catão (ou de Salústio)
lauda~órias dos velhos Romanos, julgará que todos ou a
maioria deles mereciam tais elogios. Mas não é assim. De
outro modo não seria verdadeiro o que ele mesmo escre-
veu e eu citei no segundo livro desta obra. Relata ele lá
que, desde .o princípio, as injustiças dos mais fortes ocasio-
naram a separação da plebe e dos patrícios;
que no interior houve outras dissenções;
fecisse. Si ita esset, multo pulchenimam eam nos haberemus. Quippt sodorum
atq11e dvirmr, praeterea amwrum et equorum majm' copia nobis quam i/Jis est. &d
alia J~e quae illos magnos feart, quae nobis nu/la sunt: domi industria, foris
justum imperium, animus in consulendo liber, neque delicro neque libidini obno-
xius. Pro his nos habemus luxuriam atque avaritiam, publice egestatem, privatim
opulentiam; laudamus divitias, sequimur inertiam; lnur bonos et maios discrimm
nullum; omnia virtutis praemia ambitio possidet. Neque mirum: ubi vos separatim
sibi quisque consilium capitis, ubi domi voluptatibus, hic pecuniae aut gratiae
servitis eo fit ut impetÚs frat in vacuam rem publicam.
Salústio, Catil., Lll, 19-24. .
[505]
que se não viveu sob um direito justo e bem aplicado
senão depois da expulsão dos reis, enq~to se manteve o
medo a Tarquínio e até que acabasse a pesada guerra que
se teve de sustentar, por causa dele, com a Etrúria;
que posteriormente, porém, os patrícios sujeitaram a
plebe a um poder escravizante, açoitaram-na à maneira
dos reis, expulsaram-na de suas terras, e, arredados os
outros, exerceram o poder sozinhos;
qué o fim de tais discórdias (em que eles pretendiam
dominar e a plebe se recusava a servir) s6 se · verificou
com a Segunda Guerra Púnica, porque de novo um
grande medo começou a pesar sobre os Romanos, a desviar
estas almas inquietas das suas agitações devido a um cui-
dado maior, e a reconduzi-los à concórdia cívica. Mas por
intermédio de algtm$ poucos, bons à sua maneira, começa-
ram as grandes causas a ser administradas- e foi.graças à
previdência destes poucos bons que, suportadas e domina-
das as provações, a república começou a desenvolver-se.
O mesmo historiador diz que, ao ouvir e ao ler mui-
tas destas narrativas sobre os magníficos empreendimentos
do povo romano em paz e na guerra, em terra e no mar,
se comprouve em investigar o que é que tinha principal-
mente permitido aguentar o peso de tamanhas empresas.
Sabia que muitas vezes com um punhado de homens os
Romanos tinham enfrentado grandes legiões de inimigos, e
tinha conhecimento de que haviam conduzido a guerra
com poucas tropas contra reis opulentos. Depois de muitas
reflexões disse que chegara à convicção de que tudo isto
se devia à egrégia virtude de uns poucos cidadãos e que
assim a pobreza vencera a opulência e um grupo reduzido
vencera a multidão. E prossegue:
Mas desde que a ddade se corrompeu pelo luxo e pela
ociosidade, foi a vez de a república sustentar pela sua magna-
nimidade os vícWs dos seus generais e dos seus magistrados 12 •
12 &J postquam luxu at~ tksidia civitas corrupta esr, ~ respublica
(506]
Foi, pois, a virtude de uns poucos que se esforçaram
por chegar pelo verdadeiro canúnho à glória, à honra, ao
poder, isto é, pela própria virtude, que foi louvada por
Catão. Daí que, dentro da pátria, houvesse essa dedicação
ao trabalho que Catão recorda, de forma que o erário
fosse opulento e os negócios privados moderados. Mas o
vício, depois de corrompidos os costumes, pôs as coisas do
avesso: no Estado, a pobreza,- entre os particulares, a
opulência.
(507]
CAP[TUW Xlli
[510]
CAPITULO XlV
[512)
Mas para que, compreendendo mal estas palavras, eles não
receassem agradar aos homens e se não tornassem menos
úteis éscondendo-se, mostrou-lhes até que ponto deviam
mostrar que eram bons, dizendo:
Brilhem as vossas obras diante dos lwmens, para que
vejam as vossas boas acções e glorifiquem vosso Pai que 'está
6
tWS Céus •
Não diz «para .que sejais vistos por eles», isto é, com a
intenção de os verdes voltarem-se para vós, porque vós
por vós próprios nada sois, ·mas diz:.
Para que glorifiquem vosso Pai que está nos Céus 7 ,
e, voltados para Ele, se tomem como vós sois.
A estes (aos apóstolos) seguiram-se os mártires que
ultrapassaram pela sua inúmera multidão, os Cévolas, os
Cúrcios, os Décios, não por se infligirem a si mesmos tor-
turas mas por suportarem com verdadeira fortaleza e com
verdadeira piedade religiosa, as que lhes infligiam.
Mas porque eram cidadãos da Cidade Terrena, e
tinham proposto, como ftm de todas as suas obrigações,
mantê-la a salvo e vê-la reinar não no· céu mas na terra,
não na vida eterna mas no lugar de partida dos que mor-
rem e no lugar de chegada dos que hão-de morrer- que
outra coisa poderiam amar senão a glória pela qual pre-
tendiam viver, mesmo depois da morte, na boca dos que
os louvam?
(513]
CAPITULO XV
[515]
-impuseram as leis do seu império a muitos povos;
-em quase todos os povos são hoje glorificados nas
letras e na história. Não têm que se queixar da justiça de
Deus verdadeiro e supremo----: receberam a SU4 recompensa 2.
[516]
CAPfTULO XVI
(517)
CAPÍTULO XVII
[5~]
CAPÍTULO XVIII
[522]
injustamente uma grave desonra e não se passa para os
inimigos dela nem funda contra ela uma nova seita, mas
antes, tanto quanto pode, a defende da violenta perversi-
dade dos herejes, pois que não há outra em que se possa
não ser glorificado pelos homens, mas adquirir a vida
eterna?
- Se Múrcio, para celebrar a paz com o rei Porsena
que apoquentava os Romanos com uma pesad.íssima
guerra, e para se castigar por não ter morto este rei e, por
erro, ter abatido outro em seu lugar, estendeu à sua vista a
mão direita sobre o braseiro de um altar, dizendo-lhe que
muitos outros como o que ele estava a ver tinham jurado
a sua morte, e se Porsena, temendo a coragem e a conjura
de tais homens, sem hesitar fez a paz e se absteve daquela
guerra- quem fará dos seus méritos um título do reino
dos céus se, para obter um reino, ele entrega às chamas,
não espontaneamente mas constrangido por um .persegui-
dor, não digb uma só mão mas o corpo todo?
- Se Cúrcio, vestido das suas armas, com o seu
fogoso cavalo se precipitou na goela de um abismo para
obedecer aos oráculos dos seus deuses que tinham orde-
nado que para lá mandassem o que os Romanos tinham de
melhor, e estes não podendo compreender que algo hou- ·
vesse de melhor que os guerreiros e as armas, julgaram-se
obrigados a mandar para a morte, por ordem dos deuses,
um soldado todo armado·- porque é que se julga que
cometeram uma façanha pela Pátria celeste aqueles que,
sob os golpes de um inimigo da sua fé, não se atiram
espontaneamen.te à morte mas para ela são enviados pelo
inimigo, sendo certo que receberam do seu Senhor, Rei da
sua Pátria, um oráculo mais certo:
Não temais .os que matam o corpo mas não podem
matar a alma 3?
l
olitt timm tos qui corpus oaidunt, animam auttm non possunt oaidtre?
Mat., X, 28.
(523]
- Se os Décios, entendendo que deveriam consa-
grar-se em obediência a alguns oráculos, ofereceram as
suas vidas em sacrifício para que salvassem o exército
romano - será que se irão de algum modo orgulhar os
nossos santos mártires, 'como se tivessem feito alguma
coisa de grande para merecerem a participação nesta·
pátria onde reina a verdadeira e eterna felicidade, quando,
fiéis ao preceito, amaram, até derramarem o seu sangue,
não apenas os irmãos por quem o derramaram mas tam-
bém os inimigos por quem ele foi derramado, lutando
com a re da caridade e com a caridade da re?
- Se Marco Pulvilo, que dedicav.il um templo a
Júpiter, Juno e Minerva, quando lhe foi anunciada por
invejosos a falsa notícia da morte de seu ft.lho, para que,
perturbado com esta mensagem, se retirasse e deixasse ao
seu colega a glória da dedicação, se incomodou tão pouco
com isso que até deu ordem pax:a abandonarem o cadáver
sem sepultura (triunfando no seu coração o desejo de gló-
ria sobre a dor desta perda) será a declarar que fez uma
grande coisa pela pregação do Santo Evangelho, pela qual
são libertados de muitos erros e congregados os cidadãos
da pátria celeste, aquele a quem o Senhor diz, quando ele
se preocupava com a sepultura de seu pai:
Segue-me e deixa que os mortos sepultem os seus
mortos 4 ?
- Se M. Régulo, para não quebrar a fé jurada a
crudelíssimos inimigos, voltou de Roma para junto deles
respondendo, conforme consta, aos Romanos que preten-
diam retê-lo, que, depois de ter sido escravo dos Africa-
nos, não podia conservar .lá a dignidade de um honesto
cidadão; e se os Cartagineses o sujeitaram com gravíssimos
suplicias à morte porque ele contra eles procedeu no
Senado Romano - que suplicias se não devem desprezar
4
&quere me et sine mortuos septlirt mortucs sues?
Mat., Vlll, 22.
(524]
para guardar a fé naquela pátria a cuja felicidade a .mesma
fé nos conduz? Ou
que retribuirá ao Senhor pelDs bens que dele recebeu 5,
o hómem que, pela fé que lhe é devida, sofrer tormentos
semelhantes aos que sofreu Régulo pela fé que devia a
ferozes inimigos?
- Como é que um cristão se atreverá a gabar-se da
sua pobreza voluntária, abraçada para caminhar cá, mais à
vontade, na peregrinação que conduz à Pátria em que
Deus é a verdadeira riqueza- quando ouve ou lê que
Lúcio V alério, falecido aurante .o seu consulado, era tão
pobre que foi preciso pedir ao povo ofertas para assegurar
a sua sepultura? Ou quando ouve ou lê que Quíncio Cin-
cinato, dono de quatro geiras, que cultivava com as suas
próprias mãos, foi afastado do arado para ser feito ditador,
dignidade superior ao consulado, e que, depois de ter
alcançado vitória ·sobre os inimigos, permaneceu na
mesma pobreza?
- Será que ele virá a gabar-se de ter feito algum:\
coisa de grande por não se deixar separar por nenhuma
recompensa terrestre da sua comunhão com a pátria eterna
- quando aprendeu que Fabricio não pôde ser retirado à
Cidade Romana pelos enormes presentes oferecidos por
Pirro, rei do Epiro, nem mesmo pela promessa de lhe dar
a quarta parte do seu reino, e preferiu continuar pobre e
simples cidadão na sua pátria?
Com efeito, enquanto a república (res publica), isto é,
a empresa do povo (res populi), a empresa da pátria (res
patriae), a empresa comum (res communis), era opulentissima,
eram eles em suas casas de tal modo pobres que um deles,
depois de ter sido duas vezes cônsul, foi expulso daquele
senado de pobres sob a acusação censória de que lhe
tinham sido encontradas dez libras de prata nuns vasos;
[525]
eles próprios eram pobre~, mas os seus triunfos enrique-
ciam o erário público; todos os cristãos que, num designio
ainda mais elevado, põem as suas riquezas cm comum,
conforme o que está escrito nos Actos dos Apóstolos - «que
se distribua a cada um conforme as .suas necessidades e que
ninguém diga que alguma coisa lhe pertence, mas que
tudo lhes seja comWll»- será que não compreendem que
não devem dar-se ares arrogantes ao praticarem esse pre-
ceito para obterem a sociedade dos Anjos quando aqueles
homens fizeram quase outro tanto . para conservarem a
glória dos Romanos?
Estes factos e outros que tais que se podem achar na
sua literatura, teriam adquirido semelhante notoriedade,
seriam celebrados com tal renome, se o Império Romano,
que se estendeu em todas as direcções, não se tivesse
desenvolvido devido a sucessos magníficos? Desta forma
esse império, tão vasto, tão duradouro, célebre e glorioso
pelas virtudes de tão grandes homens, foi para eles a
recompensa a que aspiravam os seus esforços e oferece-nos
a nós uma tão exemplar e necessária lição que sentiremos
o espinho da vergonha se não praticarmos pela gloriosís-
sima Cidade de Deus as virtudes que eles praticaram, de
forma um tanto semelhante, pela glória da cidade terres-
tre; ~. se as praticarmos, não nos empertiguemos de
soberba porque, como diz o Apóstolo,
os sofrimentos do tempo presente são de tuida compara-
dos com a glória futura que em nós será revelada 6•
Mas para alcançar a glória humana, no tempo pre-
sente, considera-se bastante digna a vida deles.
Daí que, à luz do Novo Testamento, oculto no véu
do Antigo (que nos sugere a adoração do único verdadeiro
Deus, não para obtermos beneflcios temporais e· terrenos,
(526]
concedidos pela divina Providência ao mesmo tempo a
bons e a maus, mas sim para a vida eterna, para as recom.,.
pensas perpétuas e _para vivermos associados à Cidade
Celeste), - à luz, repito, do Novo Testamento, os Judeus,
que mataram Cristo, com toda a justiça foram submetidos
para glória dos Romanos. Era justo, na verdade, que aque-
les que procuraram e conseguiram a glória terrena pelas
suas virtudes, sejam elas quais foréin~ triunfassem dos que
pelos seus grandes vícios rejeitaram e mataram o dador da
verdadeira glória e da cidade eterna.
(527]
CAPfTIJLO XIX
[529]
alguns suspeitosos seja isso tomado como maneira de pro-
curar louvores, isto é, uma glória maior- sem poder
mostrar-lhes que é diferente do que dele suspeitam. Mas o
que despreza o juízo dos que o louvam, despreza também
os juízos temerários dos que suspeitam; mas, se é verdadei-'
ramente bom, não ~ desinteressa da salvação deles. É que,
na realidade, é tão grande a justiça daquele cujas virtudes
são um dom do Espírito de Deus, que ele até aos seus
inimigos ama e ama-os de tal forma que chega a querer
para os que o odeiam e o caluniam a sua emenda e a sua
companhia, não na pátria terrestre mas na suprema.
Quanto aos aduladores, embora não faça caso dos seus
elogios, nem por isso despreza a sua afeição, nem quer
enganar os que o louvam, não vá decepcionar os que lhe
querem bem. Por isso é que faz ardentes esforços por que
seja antes louvado Aquele que concede ao homem tudo o
que nele merece ser louvado.
Mas o que, desprezando embora a glória, é ávido de
domínio, supera as bestas, quer pela crueldade quer pela
luxúria. Tais foram certos Romanos. Tendo deixado de se
preocupar com a reputação, não lhes faltou a paixão de
domínio. A história nos refere que muitos disso foram
exemplo. Mas foi Nero o primeiro César que atingiu o
cume e como que o cúmulo deste vício: tamanha foi a sua
luxúria, que dele parece nada havia de viril a recear- e
tamanha foi a sua crueldade, que, se não fosse conhecido,
pareceria que nada tinha de efeminado. Mas mesmo a tais
homens o poder do mundo não é dado senão pela provi-
dência de Deus Supremo quando julga que as empresas
humanas são dignas de tais senhores. É claramente acerca
desta questão que a voz divina se faz ouvir pela voz da
Sabedorià de Deus:
Por mim reinam os reis, por mim dominam a Terra os
tiranos 2•
[530]
Mas não se julgue que tiranos foram reis perversos e dés-
potas, mas homens poderoso~, conforme o antigo signifi-
cado. Daí o que diz Vergílio:
Será para mim um penhor de paz ter apertado a mão
direita do tirano 3.
E noutra passagem se diz claramente de Deus:
Por causa da perversidade do povo é que ele faz reinar
o homem hipócrita 4 •
Expliquei suficientemente, tanto quanto me foi pos-
sível, quais foram as razões por que Deus uno, verdadeiro
e justo ajudou os Romanos, que eram bons à manejra da
cidade terrestre, a obterem a glória dun'l tão grande impé-
rio. Talvez haja também uma outra razão mais secreta-a
dos méritos diversos do género humano, melhor conheci-
dos de Deus do que de nós. De facto, entre ·as pessoas
verdadeiramente religiosas é ponto assente que sem a ver-
dadeira piedade, isto é, sem o vérdadeiro culto do verda-
deiro Deus, ninguém poderá possuir a verdadeira virtude ·
e que a virtude não é verdadeira quando se põe_ao serviço
da glória humana- todavia os que não são cidadãos da
Cidade Eterna, chamada pelas Sagradas Escrituras a
Cidade de Deus, são mais úteis à cidade da Terra, quando
possuem mesmo uma tal virtude, do que quando nem essa
possuem.
Mas aqueles que, dotados de verdadeira pieda~e,
levam uma vida impoluta, se possuem a ciência de gover-
nar os povos,- nada .há de mais feliz para as empresas
humanas do que se por misericórdia divina detêm o poder.
Mas tais homens, por maiores que sejam as virtudes que
possam ter nesta vida, atribuem-nas unicamente. à graça
de Deus que as concedeu aos seus desejos, à sua fé, às suas
(531]
orações- e ao mesmo tempo, compreendem quanto lhes
falta para chegarem à perfeição da justiça, tal como ela é
na sociedade dos santo~ Anjos na qual se esforçam por
entrar. E, por muito que louve e apregoe a virtude que,
privada da verdadeira piedade, se põe ao serviço da glória
hwnana, de forma nenhwna ela se poderá comparar aos
débeis começos dos santos, cuja esperança está ftimada na
graça e na Ipiseriq)rdia do verdadeiro Deus.
[532]
CAPfllJLO XX
(534]
CAPITULO XXI
[536]
CAPfTULO XXII
[538]
CAPÍTULO XXIII
[540]
CAP[TULO XXIV
A verdadeira felicidade
dos imperadores cristãos.
[542]
ÇAPfTULO XXV
[544)
CAPÍTULO XXVI
[546)
trário deplorou que elas surgissem e quis, wna vez termi-
nadas, que elas a ninguém prejudicassem.
No meio destes acontecimentos e desde o princípio
do seu reinado, não deixou de ajudar com as mais justas e
benignas leis contra os impios nas suas provações a Igreja
que o herético V alente, favorável aos arianos, tinha vio-
lentamente perseguido. Gostava mais de ser wn membro
da Igreja do que dominar toda a Terra. Ordenou que por
toda a parte derrubassem os ídolos gentilicos, compreen-
dendo bem que nem os próprios favores terrestres depen-
dem dos demónios, mas do verdadeiro Deus.
Que é que há de mais admirável do que a sua piedosa
humildade quando do gravíssimo crime dos Tessalonicen-
ses? Por intercessão dos bispos, já tinha prome~do indul-
gências para com esse crime. Mas, pressionado por wn
tumulto de uns tantos, viu-se obrigado a puni-lo. Casti-
gado depois pela disciplina eclesiástica, fez tal penitência,
que o povo, por ele orando, chorou mais ao ver prostrada
a majestade imperial do que a tinha temido irada pelo seu
pecado. Estas e outras que tais bOas obras, que seria longo
recordar, levou Teodósio consigo ao sair desta fumarada
temporal que envolve as cwnieiras, por muito altas que
sejam, da grandeza hwnana. A recompensa dessas obras é
a felicidade eterna, que Deus apenas às almas verdadeira-
mente piedosas concede.
Porém os outros bens desta vida, honras ou riquezas,
tanto aos bons como aos maus as concede Deus, como lhes
concede o próprio mundo, a luz e o ar, a terra e as águas
e os frutos, a alma e o corpo do homem, os sentidos, a
inteligência e a vida; entre esses bens se encontra o poder,
por maior que ele seja, que ele dispensa conforme o
governo de cada tempo.
Vejo agora que convém responder também aos que,
refutados e convencidos de erro por provas evidentes que
demonstram a inutilidade da -multidão dos falsos deuses
para obterem os bens temporais, únicos que os tolos ambi-
cionam, se esforçam por estabelecer que é necessário ado-
[547]
rar os deuses, não já por causa dos interesses da vida pre-
sente ~as por causa dos qu~ virã<? depois da morte.
Julgo que nestes cinco livros já respondi suficiente-
mente aos que pretendem adorar vãos ídolos por amor a
este mundo e se queixam de lhes serem vedados estes
infantis caprichos. Quando os três primeiros foram publi-
cados e começaram a estar em muitas mãos, ouvi dizer
que alguns preparavam contra eles não sei que resposta
por escrito. Depois, chegou até mim que já a tinham
escrita e esperavam a ocasião em que a poderiam publicar
sem perigo. Advirto-os de que não optem pelo que lhes
não convém. É fácil crer que se deu uma resposta quando
na rea~idade o que se quis foi não estar calado. Que é que
há--de mais palavroso do que a vacuidade? E lá por que ela
pode, se quiser, gritar mais alto do que a verdade-nem
por isso terá mais poder que a verdade. Mas considerem
atentamente todas as questões e, se por acaso, num exame
sem preconceitos, repararem que, mais do que replicar, o
que podem é ·importunar com a sua impudentíssima garru-
lice e com a ligeireza satírica ou cómica, deixem-se de
ninharias e decidam-se antes pela correcção dos prudentes
do que pela adulação dos impudentes. Porque, se esperam
a ocasião, não para dizerem livremente a verdade, mas
para terem licença para maldizer, oxalá que sofram a sorte
daquele de que fala Túlio e que devia à sua licença para
fazer o mal o apelido de feliz: 6 desgraçado, a quem era
pemJitido o ma/ 2. Portanto, qualquer que se sinta feliz pelo
facto de ter licença para maldizer, será mais feliz se per-
der por completo essa licença. Pode, uma vez que ponha
de parte a sua vã jactância, pôr já .todas as objecções que
quiser com a intenção de se informar e daqueles a quem
ele consultar ouvirá, numa amigável discussão, uma res-
posta, tanto quanto possível, oportuna, honesta, séria e
smcera.
2
O miserum, cui peccare liabat!
Ocero, Tuscul., V, 19.
(548]
LIVRO VI
Até aqui, Agostinho escreveu contra os que julgam que aos
deuses deve ser prestado culto no interesse desta vida tempo-
ral. Agora enfrenta os que pretendem que se lhes preste culto
tendo em vista a vida eterna. A estes refutará Agostinho nos
cinco livros que se seguem; e, em primeiro lugar, põe em
evidência o baixo conceito em que tinha os deuses wn escritor
tão apreciado na teologia gentílica como foi Varrão. Alega
que, segundo Varrão, existem três categorias de teologia; a
fabulosa, a natural e a civil; e, tratando da fabulosa e da civil,
demonstra que em nada podem estaS categorias contribuir
para a felicidade da vida futura .
[549)
PREFACIO
(552]
CAPÍTULO I
1 Beatus cujus est Dominus Deus spes ipsius et non respexit in vanitates et
insaneas mendaces .
. Salmo XXXIX, S.
[553]
em tratar da seguinte questão: será necessário, tendo em
Vista a vída que há-de vir depois da morte, adorar, não o
Deus único, criador de todo o ser corporal e espiritual,
mas antes uma multidão de deuses que aquele Deus único
teria criado e elevado·à categoria suprema, como pensaram
alguns desses ftlósofos, célebres e, entre· todos, eminentes?
Além disso, quem ~erá suportar a pretensão de
que tais deuses- a alguns dos quais já me referi no livro
quarto e a cada um dos quais é distribtúda a mais insignifi-
cante tarefa-podem conceder a vida eterna a alguém?
Há homens dos mais sapientes e perspicazes, que se gabam,
como de um grande serviço, de terem precisado nos seus
escritos o motivo por que é necessário suplicar a cada deus
o favor que a cada um deles se deve pedir, se não se quiser
incorrer no vergonhoso absurdo (como costuma jocosa-
mente acontecer na comédia) de se pedir água a Libero e
vinho às Ninfas: Que é que estes autores aconselhariam a
um qualquer que invocasse os deuses imortais e que,
depois de ter pedido vinho às Ninfas, tivesse recebido esta
resposta: «nós o que temos é água; para o v:inho, ~.irige-te
a Líbero»? Poderiam esses autores, na verdade, aconselhar
esse qualquer a responder: «se não tendes vinho, ao menos
concedei-me a vida eteiJla.»? Será que essas deusas, ordina-
riamente de riso fácil, não rirão às gargalhadas? E-
supondo que elas não procuram enganar esse suplicante,
como verdadeiros demónios que são- não responderiam:
«Ó homem, julgas que está na nossa mão dar a vida
quando, tu bem o sabes, nem sequer a própria vida está na
nossa mão»?
É portanto o cúnlulo da estupidez impudente pedir a
tais deuses e deles esperar a vida eterna, pois que, para o
que respeita a esta vida tão curta e miserável, em q1:1e, na
hipótese de que deles pudesse vir algum auxílio e sustento,
o domínio assinalado ·à _sua tutela é tão dividido que, ao
pedir a um os favores que pertencem à função e ao poder
de um outro, comete-se tal inépcia, tal absurdo, que
parece mesmo uma chacota de có,micos. Está certo que
[554]
estas parvoíces façam rir as pessoas no teatro, quando são
propositadamente recitadas pelos pantomimas; mais certo
porém será que, quando inconscientemente proferidas
pelos tolos, deles .se riam no mundo. ·
A que deus ou deusa e por que motivo convém dirigir
preces, no que respeita aos deuses que as cidades instituíram,
..:_ é assunto habilmente fixado e transmitido à posteridade
pelos sábios: o que, por exemplo, se pode pedir a Líbero,
ou às Ninfas ou a Vulcano ou aos outros que, em parte, já
referi no livro quarto e em parte deixei em silêncio. É
evidente que, se pedir vinho a Ceres, pão a Líbero, água a
Vulcano, fogo às Ninfas, é um erro, muito maior loucura
será suplic~r a qualquer deles a vida eterna!
Por isso, quando, a propósito do domínio terrestre,
procurámos quais desses deuses. ou deusas podíamos julgar
capazes de o conferir aos homens, demonstrámos, depois
de tudo . bem ponderado, que admitir o estabelecimento,
mesmo só dos reinos da Terra, por qualquer destas nume- ·
rosas e falsas divindades, era uma opinião totalmente
errada. Sendo assim, não constituirá ~a suprema loucura
e impiedade (pois sem hesitação e sem comparação, se
deve colocar a vida eterna acima dos reinos terrestres)
pensar que tal vida pode ser concedida a qualquer hoinem
por qualquer desses falsos deuses? O que nos leva a concluir
que tais deuses nem sequer poderão dar o reino da Terra
tão baixo e abjecto que não se dignam ocupar-se dele na
sua tão elevada sublimidade; mas, bem ao contrário, por
muito que se desprezem justiftcadamente os cumes perecí-
veis ~o reino terrestre, tão indignos se apresentam esses
deuses que nem se lhes pode solicitar a dávida ou a con-
servação desses reinos.
Por tal razão, se (como se tratou e estabeleceu nos
dois livros precedentes) nenhum de entre essa turbamulta
de d~uses, sejam eles, passe a palavra, plebeus ou nobres, é
capaz de dar aos mortais os reinos mortais- muito menos
será capaz de tomar imortais os mortais!
(555]
A isto acresce o seguinte: se atendermos à opinião
daqueles que defendem que é necessário honrar os deuses,
não por causa da vida presente, mas por causa da vida que
há-de vir depois da morte- também não é por causa des-
ses bens (atribuídos a tais deuses não por razões sérias mas
por vã opinião, como um domínio que eles recebéram em
partilha) que se lhes deve prestar culto. É, aliás, a opinião
dos que julgam este culto indispensável aos interesses desta
vida mortal; quanto me foi possível, já os refUtei nos cinco
livros precedentes. Mesmo que assim fosse - se os adora-
dores da deusa Juventas gozassem de uma'juventude mais
florescente e se, pelo contrário, os seus desdenhadores
morressem nos anos da sua juventude ou languescessem
como se estivessem sujeitos ao frio da velhice; se a For-
tuna barbada ornasse a cara dos seus devotos de uma
forma mais gracio'sa e alegre e se víssemos os que a des-
prezam privados de barba ou mal barbados- mesmo em
tal caso teríamos o direito de afirmar que o poder de cada
uma destas deusas se limita de certo modo às suas fUnções
e que, por isso, não se deve pedir a vida eterna a Juventas,
incapaz mesmo de fazer despontar a barba nem, depois
desta vida, esperar qualquer bem da Fortuna barbada,
absolutamente incapaz de conceder, nesta vida, ao menos
a idade em que a barba floresce.
Na verdade, o culto destas deusas não é necessário
para se obterem estes favores que se atribuem ~ sua
alçada. Muitos adoradores de Juventas tiveram uma juven-
tude enfermiça, ao passo que outros que nunça se lhe
devotaram gozam de vigorosa juventude. Semelhante-
mente, muitos que veneram a Fortuna barbada não logra-
ram barba alguma ou têm-na disforme; e os que a vene-
ram para a obter são objecto de galhofa por parte dos que
a têm. Será então o coração humano tão insensato que
chegue a acreditar que lhe poderá ser proveitoso para a
vida- eterna um culto que sabemos ser inútil e ilusório
mesmo na ordem dos tão efémeros bens temporais, à dis-
tribuição dos quais se julga que presidem os deuses, cada
(556]
wn no seu dorrúnio? Não ousaram·afirmar que esses deuses
podem conceder a vida eterna nem sequer os que, para
recomendarem o seu culto aos povos ignorantes e, pen-
sando que eram deuses de mais, distribuíram minuciosa-
mente mesmo as tarefas temporais para que nenhwn deles
ficasse ocioso.
[557]
CAPÍTULO II
(559]
em todas as questões e, ao pleitear a favor da dúvida aca-
démica, apenas em relação a Varrão se esquece de que é
wn académico. No primeiro livro, ao elogiar as obras lite-
rárias de Varrão, diz:
Quando deambulávamos errantes na nossa própria ddade
como estrangeiros, foram os teus livros que, de certo modo,
nos levaram a casa e nos· permitiram finalmen~ reconhecer
quem éramos e onde estávamos. Foste tu quem nos deu a
conhecer a idade da pátria, a distribuição dos tempos, os direi-
tos da religião e os do sacerdódo; as regras da vida privada e
as da vida pública; a situação das regiões e dos lugares; os
nomes, as espédes, as funções e as causas de todas as coisas
divinas e humanas 2 •
Ora este varão de tão insigne e excelente saber e de quem
Terenciano disse, em verso tão elegante como conciso:
Va"ão, o mais sabedor seja do quefor 3,
este varão que tanto leu que pasmamos que tenha tido
vagar para escrever; e que tanto escreveu que dificilmente
acreditamos que haja alguém capaz de tudo ler- este
varão, digo eu, de tamanho talento e saber, se tives§e sido
o adversário e o destruidor das coisas a que se dá o nome
de divinas e as quisesse apresentar não como respeitantes à
religião mas antes à superstição, não sei se conseguiria
amontoar tanta coisa digna de troça, desprezo e abomina-
ção como o que escreveu. Todavia, ele venerava esses
mesmos deuses e considerava o seu culto imprescindível, a
ponto de declarar na sua obra que receava vê-los perecer,
não devido a ataques dos inimigos, mas devido antes à
quasi donmta reduxenmt, 111 possnnus aliquando qui n ubi essemus agnosurt. Tu
ottatem patriat, 111 descriptiones ttnlporum, tu iacromm jura, tu saurdotum, tu
domesticam, tu Jmblic.am disciplinam tu sedem regionum locorum, lU omnium
divinarum humatiDIUIIU[IIt rtTUm nomina, gnzera, offrcia, causas aperuisti.
Ocero, Ac.adem., I, 3, 9.
3 Vir doctissiJnus utulec.umque Vcmo.
[560]
indiferença dos cidadãos. É desta núna que ele pretende
salvá-los, evocando-os nos seus livros e gravando-os na
memória dos homens; crê ser-lhes assim mais útil do que
Metelo o foi ao salvar do incêndio a estátua de Vesta ou
do que Eneias ao salvar os seus penates da destruição de
Tróia. E, não obstante, transmitiu à posteridade, para lei-
tura, coisas que tanto sábios como ignorantes julgam dignas
de rejeição e totalmente contrárias à verdadeira religião.
Que devemos pensar, então, senão que um homem tão
sagaz e tão hábil, mas ainda não libertado pelo Espírito
Santo, estava subjugado pelos costumes e leis da sua
cidade, e todavia se recusava a esconder o que o pertur-
bava sob o pretexto de enaltecer a religião?
[561]
CAPfTULO III
(564]
CAPITULO IV
1
Sicut prior est pictor quam tabula freta, prior faber quam aedifrcium: ita
priores sunt civitates quam ea quae a civitadhus institulll sunt.
2
Si de omni natura Jeorum tt hominum scriberemus, prius divina absolvis-
semus, quam humana adtingissemus. ·
(566]
deve pelo menos antecipar-se às coisas romanas uma vez
que escreveu os livros sobre as coisas humanas enquanto
respeitam, não a todo o universo, mas apenas a Roma; e,
todavia, quando ele decl;ua tê-las posto nos seus livros
antes das divinas, como se antepõe o pintor à pintura e o
construtor ao edificio, confessa claramente que, à maneira
da pintura e da arquitectura, as coisas divinas são de insti-
tuição hwnana.
Conclui-se que. ele, afmal, não escreve~ acerca de
nenhuma natureza divina, mas que também não o quis
dizer claramente, mas apenas dá-lo a entender aos mais
inteligentes. Efectivamente, quando se diz «nem toda»,
usualmente quer-se assim dizer «alguma»; mas também se
pode entender que se quis dizer menhuma», pois que
«nenhÜ.ma» exclui tanto «todas» como «alguma». Como ele
próprio diz, se tivesse escrito acerca de toda a natureza
dos deuses, deveria tê-la posto, conforme a ordem da sua
obra, antes das coisas humanas. Mas, embora o não diga, a
verdade clama que ele deveria tê-la colocado, pelo menos
antes das coisas romanas, ainda que se tratasse, não de
toda mas de uma parte. Mas coloca-a justamente depois: é
porque então de nenhuma se trata. Assim, ele não quis
colocar as coisas humanas acima das divinas; mas recusou-
se a pôr as coisas falsas acima das verdadeiras. Porque, no
que escreveu acerca das coisas humanas, apoia-se na histó-
ria do passado; mas quando trata das que apelida de divi-
nas, em que é que se apoia senão em opiniões quiméricas?
Eis, sem dúvida, o que ele pretendeu subtilmente indicar,
não somente concedendo às primeiras superioridade sobre
as segundas, mas também expondo as razões por que assim
procedera. Se ele nada tivesse dito, outros sem dúvida
teriam encontrado outras razões para o justificarem. Mas,
·pelo simples facto de ter alegado esta razão, a ninguém
deixou a liberdade de formular outras hipóteses: está sufi-
cientemente feita a prova de que ele pôs os homens antes
das instituições e não a natureza divina antes da natureza
humana.
[567]
Assim, como ele próprio confessa, os seus livros
acerca das coisas divinas tratam, não da verdade que
resulta da natureza, mas da falsidade que resulta do erro.
Confessa-o ainda mais claramente, como recordei no
quarto livro, ao dizer que, se tivesse de fundar uma cidade
nova, escreveria inspirando-se na lei da natureza; mas
como encontrou uma já antiga, mats não pôde que
conformar-se com as suas tradições.
[568]
CAPÍTULO V
sophi; dvile, quo popu/i. Primum quoJ dixi, in to sunt multa contra dignitatem et
naturam immortalium f~eta. ln hoc enim es~, ut deus alius ex capite, alius ex
femore sit, alius ex guttiS sanguinis natus; in hoc, u1 Jii furali sint, ui aJultera-
(569]
Aqui declarou, sem sombra de ambiguidade, que se come-
tia com fábulas mentirosas uma grande injúria contra a
natureza dos deuses, porque podia fazê-lo, e ousava fazê-
lo, porque se sentia impune. Não falava, porém, da teolo-
gia natural nem da teologia civil, mas sim da fabulosa;
julgava que podia livremente incriminar esta.
Vejamos o que ele diz da segunda:
A segunda classe de teologia, para que chamei a atenção,
é aquela acerca da qual os filósofos nos deixaram muitos livros
em que se questiona: os deuses---:- que são eles? onde resi-
dem? qual a sua origem? quais as suas qualidades? existem
desde determinada época, ~ são eternos? provêm do fogo,
corno crê Heráclito? provêm dos números, corno afirma Pitá-
goras, ou dos átomos corno pretende Epicuro? e outras questões
que se podem ouvir mais facilmente dentro das paredes de
uma escola do que cá fora, no forum 3•
Varrão nada encontra de censurável nesta chamada
teologia natural, que é a especialidade dos filósofos;
contenta-se em recordar as controvérsias entre eles havi-
das e que deram origem à multidão de seitas dissidentes.
Tirou esta filosofia da rua, isto é, do vulgo, e fechou-a
dentro dos muros da escola; não retirou, porém, das cida-
vmnc: ut stntieritlllwmini; tftnique in hoc omnia diis adtribuurnur, quat non modo
in hominm~, sed etiam quat in conttmptissimum hominm~ catkre possunt (a).
M. Schanz, Tomo I, 1909 § 187, p. 434.
• Em Migue vem, mais correctamente, adulteraverint.
(a) Cfr. Jean Pepin- La «tkologie tripartitt» tk Vamm, Essai tk
recanstitution et recherche des sources, in Mémorial Bmdy (Rev. des Et. august,
II, 1956, pp. 265-294);
-E. Schwarz-De M. Terentii Varronis apud Sonetos Patres vestigiis
in «]ahrbacher for da.ss. Philologit». Supplement 10 (1888) p. 405-499;
- P. CourceUe-LAjig11re e /'opera deTeretlZio V&rrone Reatino nel
cDe Civitate Dei» di Agostino (Napoli, 1969).
3
Secundum genus est, quod dmumstravi, tk quo muitos libros philosophi
reliqummt; in quibus est, dii qui sint, ubi, quod genus, quale est: a quodam
tempore an a Sempiterno foerinr dii: ex igni sint, ut credit Herachitus, an ex
nufn!ris, ut Pythagoras, an ex alOmi.s ut ait Epianus. Sic alia, quat facilius intra
parietes in schola quam extra in foro fme possunt aures.
Cfr. nota 2
(570]
des a primeira classe, de todas a mais mentirosa e a mais
obscena. 6 ouvidos pios dos povos, incluindo o romano!
Não podem suportar as discussões dos ftlósofos acerca dos
deuses imortais; mas os cantos dos poetas, as representa-
ções dos histriões, as ficções atentatórias da dignidade e da.
natureza dos imortais e que nem ao mais vil dos homens
se podem aplicar,- isso podein suportar, isso podem
ouvir, e até com prazer, esses ouvidos! Mais ainda: tem-se
como certo que isso agradà aos deuses e consegue aplacá- .
-los.
Alguém dirá: distingamos essas duas classes de teolo-
gia, a nútica e a Ssica, isto é, a fabulosa e a natural, da
teologia civil de que se trata agora, como o próprio Varrão
as distinguiu; e, para já, vejamos as suas explicações acerca
da teologia civil. Claro que bem vejo porque é que ela se
deve distinguir da fabulosa: é que esta é falsa, vergonhosa,
infame. Mas querer separar a teologia natural da civil que
mais é do que confessar que até mesmo a civil é mentirosa?
Porque, se aquela é verdadeiramente natural- que tem
ela de repreensível para ser excluída? E se esta, a chamada
civil, não é natural- que mérito tem ela para ser admi-
tida? Efectivamente, Varrão trata primeiro das coisas
humanas e depois das divinas, apenas por esta razão: é que
nas coisas divinas não se conformou com a sua natureza
mas sim com as instituições dos homens.
Examinemos agora a teologia civil. Diz Varrão:
A terceira espécie é a que, nas ddades, os ddadãos e
principalmente os sacerdotes devem conhecer.e praticar. É nela
que se vê- quais os deuses que cada um deve oficialmente
venerar, com que ritos e com que sacriftcios 4 .
~ Tmium gmus est quod in urbibus cives, maximt sacerdotes, nosse atqut
admi11istrare dtl~nt. ln quo est quos dlos publia sacra ~~ saaificia cokr~ tt facer~
qutmqut par sit.
Cfr. notas 2 e 3.
(571]
Atendamos ainda ao que se segue:
A primeira é a teologia que melhor se acomoda ao tea-
tro, a segunda ao mundo, a terceira à ddade 5 •
Quem é que não vê a quem concede ele a palma? À
segunda, evidentemente, à dos illósofos, como ele acima
lhe chamou, pois, na sua opinião, é ela que se acomoda ao
mundo ao qual nada se iguala em excelência, como eles
dizem.. Quanto às outras duas teologias, a primeira e a
terceira, ou seja., a do teatro e a da cidade, distinguiu-as ele
ou juntou-as? Vemos, de facto, que nem sempre o que é
próprio da cidade se pode referir também ao mundo,
embora vejamos que as cidades estão no mundo. Pode
bem acontecer que, por influência de falsas opiniões, se
preste crédito e culto na cidade a divindades cuja natureza
nem no mundo nem fora dele existe. Quanto ao teatro-
onde se encontra ele senão na cidade? Quem instituiu o
teatro senão a cidade? Porque o instituiu a cidade senão
com vista aos jogos cénicos? Onde se encontram os jogos
cénicos senão entre as coisas divinas de que tratam com
tanta sagacidade os livros de Varrão?
(572)
CAPfTULOVI
sim mm pauca. Quart qu« ttulll communia cum pottis, una cum civilibus scri-
btmus; e~ mt9<>r socit1JJS dtbtt es.st nobis cum philoscphis quam cum pottis. (a)
(a) Migne, que neste passo seguimos, traz pottis. Mas a edição
que utilizamos (de B. Dombart e A. Kalb) traz propriis. Neste caso 'a
tradução seria: para os pontos comuns.
Cfr. notas 2 e 3 do Cap. V.
(575]
Varrão não exclui toda a relação com os poetas.
Todavia, noutra passagem, observa, a propósito das genea-
logias divinas, que os povos se sentem mais inclinados para
os poetas do que para os Ssícos 2 • Aqui diz o que se deve
fazer e além o que se faz, pois os fisicos escreveram para
serem úteis e os poetas para deleitarem. Assim, pois, os
povos não devem imitar o que os poetas camam, ou seja
os crimes dos deuses, embora estes tanto deleitem os povos
como os deuses; efectivamente, como Varrão diz, os poe-
tas escrevem. não para serem úteis, mas para serem agra-
dáveis. Escrevem, todavia, o que os deuses ped.em e os
povos representam.
[576]
CAPiTULO VII
(577]
triões e não estátuas dos templos? 2 Porque é que Forculus,
que preside às portas, e Limentinus, que preside aos
umbrais, são deuses masculinos, ao passo que Cárdea, a
guardiã dos gonzos (cardines), que se encontra no meio
deles, é fêmea? Não se encontram nos livros referentes às
coisas divinas pormenores considerados pelos poetas sérios
COII:lO indignos dos seus versos? Não é verdade que a Diana
do teatro é portadora de armas e a da cidade se apresenta
como wna simples donzela? Será que o Apolo que em
cena é tocador de citara, deixa de o ser em Delfos? Estes
pormenores são ainda muito honestos em comparação
com outros bem torpes. Que ideia fizeram de Júpiter os
que colocaram a sua ama no C~pitólio? Não vêm eles
assim confirmar a teoria de Evémero, que, com a verbor-
reia dwn mitólogo mas com a precisão de um historiador,
escreveu que todos estes deuses tinham sido homens, sim-
ples mortais? E que mais quiseram senão transformar em
galhofa as cerimónias sagradas os que sentaram os Epu-
lões, deuses parasitas de Júpiter, à mesa deste? Com efeito,
se wn farsante anunciasse que alguns parasitas foram con-
vidados para o banquete de Júpiter, é evidente que se
julgaria que o que ele pretendia era fazer rir. Foi Varrão
quem o disse, e disse-o, não para fazer troça dos deuses,
mas para lhes prestar homenagem. E são os livros que
tratam dos assuntos divinos, e não os que tratam dos
humanos, que o testemunham; e este testemunho encontra-
-se, não nas passagens .em que escreveu acerca dos jogos
cénicos, mas naquelas em que expõe os direitos capitolinos!
Varrão vê-se fmalmente forçado por todos estes factos a
2
Como resulta do contexto, o termo efebo (em grego ecp~) é
aqui apresentado por Santo Agostinho para, em contraste com o velho
Saturno, significar cjovenu, adolescente-e não efebo no sentido com
que os gregos queriam significar a inscrição do jovem de 18 anos,
como cidadão, no registo do seu demo (8ij!Loç). V. fustel de Coulan-
ges in La Cit.é Antiqut).
[578]
confessar que julgaram os deuses sensíveis aos prazeres
humanos precisamente porque os tihham representado
com feições humanas.
Aliás, os espíritos malignos não puseram de parte as
suas tarefas para confirmarem, zombando das inteligências
humanas, estas nocivas ideias. Um exemplo: o guarda de
um templo de Hércules, encontrando-se uma vez de folga,
em dia de feriado, começou a jogar aos dados consigo
mesmo; as suas mãos lançavam alternadamente os dados,
uma por :rJércules, a. outra por si próprio; e o combinado
era que, se ganhasse, a si próprio ofereceria uma boa ceia
e pagaria a uma amânte com os dinheiros do templo- e
se a vitória fosse de Hércules, este do seu próprio dinheiro
se serviria para os seus prazeres. Mas, uma vez vencido
por si próprio, como se o tivesse sido por Hércules,
obsequiou-o com a ceia devida à famosa meretriz Laren-
tina. Esta adormeceu no templo e viu-se em sonhos nos
braços de Hércules, que lhe disse que o primeiro jovem
que encontrasse ao sair do templo lhe daria a recompensa,
que devia considerar como se de HércUles fosse recebida.
Ao sair; o primeiro com quem se encontrou foi o riquís-
simo jovem Tarúcio. Este manteve-a consigo, durante
muito tempo, como amante e, por sua morte, instituiu-a
sua herdeira. Posta assim na posse de uma avultadíssima
fortuna, para não parecer ingrata ao favor divino, declarou
o povo romano seu universal herdeiro, julgando que assim
praticava uma obra altamente grata aos deuses. Quando
ela desapareceu, descobriram o seu testamento, o que,
segundo se d.i.z, lhe valeu mesmo as honras divinas.
Se os poetas imaginassem, se os farsantes representas-
sem tais histórias, dir-se-ia, sem dúvida, que elas respeitam
à teologia fabulosa e julgar-se-ia preciso eliminá-las da
teologia civil por contrárias à sua dignidade. Mas, quando
wn tão grande mestre atribui estas torpezas, não aos poetas
mas aos povos, não aos comediantes mas aos ritos sagra-
dos, não aos teatros mas aos templos, isto é, não à teologia
fabulosa mas à teologia civil- têm os histriões ~esculpa
(579]
quando representam nas suas comédias tamanhas desones-
tidades dos deuses; mas os sacerdotes é que não têm a
menor desculpa quando, nas cerimónias pretensamente
sagradas, procuram reconhecer aos deuses uma honesti-
dade de que não são dotados.
Juno tem os seus ritos próprios, que se celebram em
Samos, ilha da sua predilecção, onde ela foi dada em
casamento a Júpiter; Ceres tem os seus ritos próprios,
através dos quais se tenta encontrar Prosérpina raptada
por Plutão; também Vénus tem os seus e neles se chora
Adónis, seu jovem e formosíssimo amante, mortO à den-
tada por um javali; a mãe dos deuses tem ritos próprios
em que Atis, o belo adolescente que ela amava e que, por
ciúme feminino, ela castrou, é chorado pelos desgraçados
da mesma forma mutilados, a que chamam ((galos». Se
estes ritos são mais disformes que as torpezas cénicas-
para quê tantos esforços em separar as ficções dos poetas
acerca dos deuses (ficções próprias, claro está, do teatro)
da teologia civil instituída, conforme se diz, para a cidade,
como se separa o ignóbU e o obsceno do honesto e do
decente? O que se deve antes é dar graças aos histriões
por pouparem os olhares dos espectadores e por não
porem a descoberto nas suas representações todas as
ignonúnias que se escondem por detrás dos muros dos
templos.
Poderá pensar-se algo de bom acerca dos mistérios
que se cobrem de trevas, quando os que se desenvolvem
em plena luz são já tão abomináveis? Que ritos se praticam
na sombra por intermédio desses castrados e invertidos,
(nwlles) é lá com eles! Mas o que não puderam foi manter
ocultos esses homens, desgraçada e vergonhosamente efe-
minados e corrompidos. Vejam se conseguem convencer
seja quem for de que, pelo ministério de tais homens, rea-
lizam algo de santo, já que não podem negar que tais
práticas se encontram entre as suas coisas santas. Ignoramos
o que lá se faz, mas sabemos quem o faz. Conhecemos o
[580)
que se passa em cena, onde nunca apareceu, nem mesmo
no coro de meretrizes, um castrado ou um invertido.
Todavia, são homens torpes e infames que representam
nesses espectáculos- porque pessoas honestas não o pode-
riam fazer. Que ritos são esses em que a piedade escolhe
para ministros seres que até a obscenidade do teatro
(thyme/ica) se recusa a admitir no seu seio?
[581]
CAPITULO VIII
(585]
CAPITULO IX
[589]
visse que se tratava de um deus masculino, que se chamaria
então Pertundo, o marido, para salvar a honra da mulher,
contra ele chamaria por mais socorros do que a partu-
riente contra Silvano. Mas que estava para aqui a dizer, se
há um outro bem macho- Priapo- sobre cujo enomús-
simo e tão repugnante membro obrigam os recém-casados
a sentarem-se, conforme é costume honestíssimo e religio-
síssimo das matronas?
Que tentem ainda, com toda a subtileza de que são
capazes, distinguir a teologia civil da teologia fabulosa, as
cidades do teatro, os templos da cena:, os ritos dos pontífi-
ces dos cantos dos poetas, como se distingue o honesto do
torpe, o verdadeiro do falso, o grave do frívolo, o sério do
jocoso, o apeteável do desprezível! Compreendemos como
se comportam: sabem que a teologia do teatro e da fábula
provém da teologia civil e que esta se reflecte nos cantos
dos pOetas como num espelho. Por isso, depois da exposi-
ção desta, que não se atrevem a condenar, censuram e
recriminam a sua imagem com mais liberdade para que os
leitores mais esclarecidos desprezem, ao mesmo tempo,
o rosto e a imagem. Todavia, os próprios deuses, vendo-se
nesta imagem como se se vissem num espelho, amam-se
de tal forma que é no espelho e na imagem que melhor se
vê quem são e o que são eles. Por isso obrigam também os
seus adoradores, com ordens terríveis, a dedi<::arem-lhes as
imundícias da teologia fabulosa, a concederem-lhes um
lugar nas solenidades e a terem-nos por coisas divinas. E
assim se declaram, com maior evidência, como os mais
imundos dos espí#tos; e fizeram com que esta teologia do
teatro, abjecta e reprovada, se tomasse parte constitutiva
da selecta e recomendável teologia urbana. Desta forma,
todo este conjunto é torpe e enganoso, cheio de deuses
imaginários, achando-se uma das suas partes nos livros dos
sacerdot.es e a outra no canto dos poetas. Se contém ainda
outras partes, isso é outra questão. Por agora, parece-me
que deixei suficientemente demonStrado que, seguindo a
divisão de Varrão, a teologia da cidade e a do teatro se
(590]
redilzem à mesma teologia civil. Consequentemente,
como ambas rivalizam em vilania, absurdo, indignidade,
falsidade -longe esteja do homem religioso esperar a
vida eterna quer dwna quer doutra.
Finalmente, o próprio Varrão começa a sua recensão
e enumeração dos deuses a partir da concepção do
homem, pondo Jano à frente da série; prossegue a série até
à morte do homem decrépito; e fecha a lista dos deuses,
afectos ao homem, com a deusa Nénia, que se canta nas
exéquias dos velhos.
Começa depois a mostrar os outros deuses, afectos, já
não ao homem mas às coisas que este utiliza, tais como o
alimento, o vestuário e tudo o que a esta vida é necessário,
acabando por revelar qual é a tarefa de cada um e o que é
que a cada um se pode pedir. Em toda esta diligente enu-
meração, não apresentou nem nomeou deus algum a quem
se possa pedir a vida eterna, única por causa da qual somos
cristãos.
Quem será tão tacanho, que não compreenda que, -
expondo e explicando com tanto cuidado a teologia civil,
mostrando a sua semelhança com a indigna e infame teo-
logia fabulosa, ensinando com bastante clareza que esta
teologia fabulosa mais não é que uma parte da outra,-
este homem se propôs infutrar nos espíritos humanos ape-
nas a teologia natural que diz provir dos filósofos? Com
tal subtileza reprova a teologia fabulosa, sem se atrever a
criticar a civil, embora esta se mostre repreensível com a
sua simples apresentação, e afasta, desta maneira, duma e
doutra, o juízo dos ~tilados, que não resta senão a escolha
da natural.
Disto tratarei mais demoradamente, na ocasião opor-
nina, com a ajuda de Deus.
[591]
CAPITuLO X
2 Hoc loco Jidt aliquis: crtdam ~ codum tt ttrram Jeos tsSt tt supra
/unam alios, infra alios? ~. ftram aul Platonma aut Ptripattticum SITatontm
quorum ahtr ftcit t1tum sint CllrpOft, alur sint atúmo?
3 Quid trgo lilndem vtriora tibi videnmr T. Tatii aut Romuli aut Tu/ü
(594]
bros das suas vitimas, mas a ninguém ordenaram que despe-
daçassem os deles pr6prios. A{guns desgraçados foram castra-
dos para satisfazerem a vergonhosa lasávia dos rds, mas
ninguém se mutilou com as suas próprias mios às ordens do
seu smhor para deixar de ser homem. Golpeiam-se nos tem-
plos, oferecem em súplica as St«JS feridas e o seu sangue. Se a
alguém fosse dada a oportunjdade de observar os que assim
procedem e sofrem, veria coisas tão repugnantes para as pes-
soas decentes, tão indignas dos homens livres, tão lcmge dos
sãos espíritos, que ning.lhn duvidaria de estar 110 meio de
loucos se fossem poucos. No caso, a multidão dos insensatos
toma-se garantia da sua sanidade mental 4•
Quanto ao que se passa no próprio Capitólio, que ele
menciona a seguir e reprova (com que coragem!)- quem
poderia acreditar que essas cenas não são realizadas senão
por farsantes ou por loucos? Primc;iro, põe a ridículo os
mistérios do Egipto, as lágrimas que derramam sobre Osíris
perdido e a grande alegria que manifestam, logo a seguir,
ao encontrarem- no- quando, afinal, tanto a sua perda
como o seu encontro são puras ficções; todavia exprimem
uma dor e uma alegria sincera da parte daqueles que nada
perderam nem acharam. Depois, observa:
Porém esta loucura tem uma duraç3o limitada. Ser
louco uma vez por ano suporla-se. Mas sobt ao Capitó/W:
corarás de vergonha ao veres a generalizada demência que o
4
11/e viriks sibi pam.s ampuliiJ, i/k ID«rtos S«tlJ. Ubi iratDs Jtos timml qui
sic propilios mtrmlwd Dii auum nuiJo Jebenl coli gtnt:re, si ltoc IIObmt. T anhls
tSt ptrrurbat« mtntis lt ~- Ms pu1s« foror, Ul sic JjJ p/4c.mha, qwmt aJ
modwn nt quitkm homint:s satVisml tatftJTimi tt in fabu14s tntditat audtlitmis.
Tyrani 14aravtnmt aliquqrvm mmrbra, rltmintm sua laarare jussmmt. ln tpgi«
libidinis vo/wptaum wtrati sunt quitlam; seJ 11m10 sibi, nt vir tsstt, jubmu
domino manus aJaJit. & opsi in tmrplis conttucidant, vulntribws Sllis ac sanguine
swppliamt. Si cui intutri IIOCtt, quae fadunl quaequt ~ inllmiet tam
indecoro ltontnis, tam indigna libtris, tam Jissimilia SilnÚ, Ul ntmO }úmt clubiu:tu-
rus fortrt eos, si cum paucioribus fiuermti mmc sani1atis patrocinium est insanim-
tium rutba..
(595)
frenesi toma como um dever. u~ apresenta nomes aJúpit~
outro anuncia-lhe as horas; um é o seu massagista (litor),
outro é o seu perfumista que com o ridículo movimento de
braços imita a acção do perfumista. Há as que arranjam os .
cabelos de Juno e de Minerva (mamendo-se de pé, afastadas
do templo e do ídolo, mexem os dedos como os cabeleireiros).
Há as que seguram no espelho. Há as que pedem o patroánio
dos deuses nos seus pleitos e há os que lhes apresentam
memoriais escritos e os informam das suas causas. Um hábil
chefe de histriões, velho já decrépito, representa todos os dias
uma farsa no Capitólio, como se os deuses sentissem prazer
em contemplarem um actar a quem os homens já não ligam
importância. Ali cai toda a casta de artifices para trabalharem
para os deuses imortais 5•
E um pouco mais à frente acrescenta:
Todavia, estes (serviços prestados a um deus), .por
muito inúteis que sejàm, não são vergonhosos nem infames.
Algumas, que se julgam amadas por Júpiter, instalam•se no
Capitó/W- mas não frcam amedrontadas nem mesmo com o
olhar de Juno o qual, a crer nos poetas, é irritadissimo 6•
Esta liberdade não a teve Varrão; apenas Se atreveu a
criticar a teologia poética; na teologia civil- que Séneca
demoliu-, nem ousou tocar. Mas, verdade se diga, os
5 Huic camtn furori c.trtum tmJpUs tst. Tolerabile tst stmtl anno insanUe.
ln Capitolium ptrvtni, pudtbit publicat4e cltmentioe, quod sibi lfl2nUS foror adtribuil
afficio. Aliu.s nomina dto subicit, alius horas Jovi nuntiat: alius litcr tst, aliu.s
unctor, qui vano moru braahiorum imit.atur unguentem. . Sunt quae ]unoni ac
Minervae capillos disponant (longe a templo, non tantum a simulacro sl4ntes
digitos movent onrantium modo), sunt quae speculum tentant, s,Jnt qui vadimonia
sua dtos advocent, sunt qui lihtllos offttant tt i/los causam suam doct.ant. Doctus
archimimus, sma jam deaepirus, cotidie in Capitolio mimum ogd1at, quosi dü
libmúr sp«Uttmt, quam i/li homints dtsitrant. ()rrw i/Jic artificium gmus optra-
rum düs inmortalibus dtsidtt.
6
Hi camtn etiamsi suptr vacuum usum, non rurpem nec infamem 'dto
promittunl. Sedtnt quaedam in Capitolio, quae se a]ove amari pu14nt: ne ]unonis
quidem si aedert pottis vtlis, iracundissimae, rtsp«tu terrentur.
[596)
templos, onde estes factos se passam, são piores do que os
teatros, onde eles se simulam. Por isso, nas cerimónias da
teologia civil, a parte que Séneca reserva ao sábio não é a
adesão dum coração sinceramente religioso, mas a cele-
bração exterior. Efectivamente, diz ele:
O sábio tudo isto observará como coisa ordenada pela lei
e não como coisa grata aos deuses 7 •
E, um pouco à frente, acrescenta:
Que signifu:am esses casamentos que celebramos entre
os deuses e até, com desprezo da religião, entre irmãos e
irmãs? Juntamos Pelona a Marte, Vénus a Vulcano, Salácia
a Neptuno. Toda.via deixamos algumas solteiras, como se
lhes faltasse algum requesito; apesar de haver algumas viúvas
como Papulónia ou Fúlgora e a deusa Rumina. Não me
admiro de que para elas tenha faltado pretendente. Toda esta
obscura turbamulta de deuses que uma longa superstiçiio foi
engrossdndo no decurso de tão longos séculos, adoramo-la nós,
lembrando-nos, porém, de que este culto assenta mais no cos-
tume do que na verdade 8•
Por conseguinte, nem as leis nem os costumes estabe-
leceram na teologia civil o que é que seria agradável aos
deuses ou interessaria a este assunto. Todavia, este Séneca, ·
libertado pela ftlosofia 9 , como convinha a um ilustre
7
Qitae amnia sapiens strVabit t4nquatn legibus jussa, non tanquam diis
grata.
8
Quid quod et maJrimonia dtorum jungimus, et tre pie quidem, fratrum et
sororum! Btllonam Marti colocamus, Vulcano Venerem, Neptuno Salatiam.
Quosdam tamem catlibus relinquimus, quasi condicio JefeariJ, prat!Sertim cum
quaedam viduae sint, ut Populonia vel Fulgora et diva Rumina; quibus non miror
pditorum tkjuim. Omnem istam ignobilem deorum turbam, quam longo atVo
longa superstitio congessit, sic adorabimus, ut meminerimus cu/tum ejus tnagis ad
morem quam ad rem~-
9 Traduzi por «<ibertado pela ftlosofia» a frase quem philosophi quasi
liberum focerum, por assim melhor se lhe captar o sentido. Em Migne,
em vez desta, vem a frase quem philosophia quasi liberum focerat- ~a quem
a filosofia como que libertoU». ·
[597]
senador do Povo Romano, honrava o que censurava, pra-
ticava o que reprovava, adorava o que condenava. Quer
dizer, a filosofia tinha-lhe ensinado alguma coisa de
grande: não ser supersticioso no mundo; mas as leis da
cidade e as tradições humanas obrigaram-no, sem descer
ao papel de histrião representando ficções no palco, a imi-
tar esse papel no templo- pelo que é tanto mais digno de
censura quanto mais, praticando esses ritos sem sinceri-
dade, assim procedia para que o povo pensasse que era
com sinceridade que procedia; o próprio comediante, ao
representar, pretende divertir e não enganar com as suas
mentiras.
(598)
CAPITULO XI
[599]
Mas estes ritos sagrados- porque e em que medida
foram instituídos pela autoridade divina, como é que pos-
teriormente esta mesma autoridade divina os retirou, em
ocasião oportuna, ao povo de Deus, ao qual foi revelado o
mistério da vida eterna, -já o expusemos em outra parte,
sobretudo nos tratados contra os maniqueus, e é assunto de
que voltaremos a tratar, em momento mais oportuno,
nesta obra.
[600]
CAPITuLo XII ·
[602]
LIVRO VII
Principais deuses da teologia civil: Jano, Júpiter, Saturno e
outros por cujo culto se não alcança a felicidade da vida
eterna.
[603]
PREFACIO
(605)
CAPfTULO I
1
.Si Jij eliguntur ut bulbi, uti~ attri rqwobi judicanJur.
Tertuliano, AJ nationes, U, 9.
[607]
Não digo isso. Vejo que mesmo entre os escolhidos há
outra escolha de alguns para desempenharem funções mais
altas e mais importantes. Assim, no exército, depois de
uma escolha entre os recrutas, opera-se wna selecção no
mesmo . grupo, .com vista a um mais árduo trabalho das
armas; também na Igreja, quando se escolhem homens
para a dirigirem, nem por isso os outros fiéis passam a ser
rebotalho, porque todos os verdadeiros crentes são justa-
mente considerados eleitos; da mesma forma nos edi.Bcios
se escolhem as pedras angulares sem que com isso se rejei-
tem as outras que são destinadas ~ outras partes do edi.B-
cio; assim, escolhem-se uvas para comer, sem se conside-
rarem refugo as que ficam para a bebida. Não há
necessidade de insistirmos: isto é bem claro. Por isso, s6
porque se escolheram certos deuses dentre muitos, não
merecem desprezo nem quem acerca deles escreveu, nem
os seus adoradores, nem os próprios deuses. Deve-se antes
averiguar quais são esses deuses e para que 6.m parece que
foram escolhidos.
(608]
CAPITULO II
[610]
CAPITuLO III
1
q®s fama obscura rec~dit.
Vergí)io, Eneida, V, 302.
[611]
com razão acima dos que não vivem nem sentem. Conse-
quentemente, Vitumno, o dispenseiro da vida, e Sentino, o
dispenseiro da sensibilidade, mereceriam ocupar um lugar
entre os deuses escolhidos mais do que Jano, o introdutor
do sémen, mais do que Saturno que o concede e difunde,
mais do que Líbero e do que Líbera, que o movimentam e
emitem- sémen que, aliás, não merece ser considerado se
não atinge a vida e a sensibilidade. E não são estes dois
dons de eleição que provêm dos 4euses escolhidos mas de
certos deuses ignorados e, perante a grandeza dos outros,
desprezados.
Haverá quem responda: Jano tem poder sobre todos
os começos e é por isso que está certo que lhe atribuem os
preliminares da concepção; Saturno dispõe de todos os
sémenes e por isso também a inseminação do homem não
pode passar sem o seu concurso; Líbero e Líbera presidem
a todas as emissões seminais, razão por que dirigem todos
os actos concernentes à reprodução do homem; Juno pre-
side a todas as purificações e a todos os partos, e por isso
não deixa de assistir às purificações das mulheres e aos
nascimentos dos homens. Mas, nesse caso, respondam, pois
é isso que se pretende, acerca de Vitumno e de Sentino:
têm eles também poder sobre todo o ser vivo e ~nsível?
Se concordam que assim é, reparem a que alto posto
devem ser guindados. Reahnente, nascer duma semente, é
nascer na terra e da terra, ao passo· que viver e sentir
pertence também, na sua opinião, aos deu5es siderais. Mas,
se disserem que a Vitumno e a Sentino pertencem apenas
os atributos que se desenvolvem na carne e se apoiam nos
sentidos- porque é que o Deus, mercê do qual tudo vive
e sente, não há-de ser ele quem dispensa à carne a vida e a
sensibilidade e quem, pela sua acção Úniversal, concede
também este dom aos recém-nascidos? Que necessidade há
de Vitumno e de Sentino?
Será que aquele que preside a toda a vida e a toda a
sensibilidade lhes confiou, como que a criados, estes domí-
nios da carne tidos por muito distantes e muito baixos?
[612]
Têm estes deuses escolhidos tanta falta de criadagem que
nem têm a quem confiar estes cuidados mas são constran-
gidos, apesar de toda a sua nobreza que lhes valeu o serem
escolhidos, a trabalharem na companhia de deuses obscu-
ros? Assim, Juno, deusa escolhida, a rainha, «a esposa e
innã de Júpiten, tem ela própria que ser lnterduca para as
crianças, e cumpre o seu serviço com duas das mais obscu-
ras das deusas - Abeona e Adeona. Junta-se-lhes a deusa
Mente, encarregada de incutir nas crianças um espírito
recto- e não a colocam entre os deuses escolhidos, como
se o homem pudesse receber alguma coisa de maior
importância! Mas Juno é lá admitida na qualidade de
Interduca e de Domiduca, como se fosse grande coisa
«andar no caminho» e «dirigir-se para casa» sem espírito
recto- beneficio que depende de uma deusa que, os que
presidiram à escolha, não pensaram em colocar entre as
divindades escolhidas.
Seria, porém, melhor tê-la preferido a Minerva, a
quem, entre outras funções menores, se atribui a memória
das crianças. Quem é que, de facto, poderá duvidar de que
um espírito recto é muito superior à mais prodigiosa
memória? Ninguém será mau por ter um espírito recto,
mas há ge·nte péssima que tem uma admirável memória e
é tanto pior quanto menos capaz for de esquecer seus
maus propósitos. E, todavia, Minerva figura entre os deu-
ses escolhidos, ao passo que a deusa Mente se perde na
multidão dos sem categoria. E que direi da Virtude e da
Felicidade, de que tanto falámos já no livro quarto?
Admitem-nas como deusas mas não lhes concedem lugar
entre os deuses escolhidos; concederam-no, porém, a
Marte e a Orco, encarregados, o primeiro de ocasionar as
mortes violentas, o segundo de acolher em si os defuntos!
Nestes insignificantes trabalhos, minuciosamente
repartidos por uma caterva de deuses, vemos que os deuses
escolhidos trabalham como trabalha o Senado com a
plebe, e encontramos funções, mais importantes e melho-
res que as dos chamados deuses escolhidos, desempenhadas
[613]
por certos deuses que não foram considerados dignos de
qualquer escolha. Resta concluir que, se eles se encontram
entre os deuses principais e escolhidos, tal não resulta dos
cargos mais elevados que desempenham no mundo, mas
apenas da sorte de serem mais conhecidos do povo. Aí está
porque o próprio Varrão afirma que a certos deuses-pais e
a certas deusas-mães aconteceu como acontece aos
homens- cairem na obscuridade. Se, portanto, não se
devia meter a Felicidade na categoria dos deuses escolhi-
dos, porque não há dúvida de que esta honra se deve, não
ao mérito mas à sorte,- dever-se-ía então colocar a For-
tuna, pelo menos entre esres deuses ou até acima deles,
pois que, segundo se diz, ela dispensa os seus favores a
cada um, não segundo a ordem da razão, mas segundo o
capricho da sorte. Ela é que deveria, entre os deuses esco-
lhidos, ocupar o primeiro lugar, pois que é principalmente
entre estes que ela mostra o seu poder. Constatámos que
não é devido às suas eminentes virtudes nem por causa de
uma felicidade merecida que eles foram postos à parte,
mas, conforme o sentimento dos seus próprios adoradores,
pelo poder arbitrário da fortuna. Também o eloquente
Salústio pensava, com certeza, nestes deuses quando dizia:
Com certeza que a fortuna é senhora soberana; é ela
que, mais conforme o seu capricho do que conforme ajustiça,
assegura a todos os seres a notoriedade ou a obscuridade 2•
Efectivamente, não é possível encontrar razões para se
enaltecer Vénus e rebaixar a Virtude, quando ambas são
colocadas na categoria das deusas sem que se possam com-
parar os seus méritos.
Mas, se se julga mais digno de honra 'o que é mais
procurado pela maioria, -porque é que a deusa Minerva
é tão celebrada e a deusa Pecúnia mantida na obscuridade?
1
Std profecro fortuna in omni rt Jominarur; ta res amaas ex libidW magis
quam ex 11m1 altbrat obscurllltF·
Salústio, Ortiliana, Vlll, 1.
[614]
É que, reahnente, entre os homens, são mais os aliciados
pela avareza que os seduiidos pela ciência; e entre os pró-
prios artistas, raras vezes se encontra um que, no seu oS-
cio, não tenha em vista ganhar dinheiro, e cada um apre-
cia sempre mais o fim que se propõe do que o que apenas
é um meio para o conseguir. Se foi, portanto, o juízo de
uma multidão estulta que presidiu a esta distinção, porque
é que a deusa Pecúnia não obteve a preferência sobre
Minerva, já que a maioria dos artistas trabalha na mira do
dinheiro (pecunia)? Se, porém, esta distinção se deve a um
reduzido número de sábios, porque é que a Virtude não
foi preferida a Vénus, já que a razão a coloca tão acima
destas? Pelo menos, como já disse, a Fortuna, soberana
universal na opinião dos que lhe atribuem maior influên-
cia, tUdo pode tornar glorioso ou obscuro, mais conforme
ao capricho do que à verdade. E se, mesmo entre os deu-
ses, ela tem uma importância que pode tornar glorioso ou
obscuro quem ela quiser, deveria ocupar o primeiro lugar
entre os deuses escolhidos, já que sobre os deuses é tão
grande o seu poder. Será que a Fortuna não conseguiu essa
honra porque ela própria (é caso para pensar) sofreu uma
fortuna adversa? Nesse caso, ela, que nobilita os outros
mas a si não pode nobilitar, é de si própria adversária!
(615]
CAPITULO IV
(618]
CAPfTULOV
[621]
CAPITuLO VI
[624]
CAPITuLO VII
[626]
CAPfTULO VIII
1
Ego sum janua.
João, X, 9.
[628]
CAP[TULOIX
[629)
ou se começou a fazer. Realmente, quem faz é sempre
anterior àquilo que é feito. Por isso, se os começos dos
factos pertencem a Jano, eles não podem ser antepostos às
causas eficientes atribuídas a Júpiter. É que nada se faz nem
começa a fazer-se sem ser precedido pela causa que o faz.
Se este é o deus em cujo poder estão as causas de
todas as nàturezas produzidas e de todas as coisas naturais,
se é a este deus que os povos dão o nome de Júpiter mas
honram com tamanhas ofensas e tão depravadas acusações,
não há dúvida que esses povos se tomam r:éus de um sacri-
légio mais horrível do que se não reconhecessem absolu-
tamente nenhum deus.
Melhor seria que eles dessem o nome de Júpiter a
outro, esse digno de odiosas e vergonhosas honras, substi-
tuindo este por um vão simulacro de que poderiam blas-
femar (como a pedra oferecida a Saturno, diz-se, para que
a devorasse como se fosse um filho), do que representarem
Júpiter simultaneamente tonante e adúltero, que governa
o mundo inteiro e chafurda em tanta impudiácia, que tem
nas suas mãos as causas supremas de todas as naturezas e
de todos os seres da natureza e não tem em boa ordem os
seus próprios assuntos.
Agora é a minha vez de perguntar que lugar conce-
dem a Júpiter entre os deuses, se Jano é o mundo. Varrão ·
definiu os verdadeiros deuses como almas do mundo e par-
tes deste. E assim, o que não existe não é, dizem, verda-
deiro deus. Dirão eles que Júpiter é a alma do mundo, de
tal maneira que Jano será o seu corpo ou, noutros termos,
o mundo visível? Se é isto que d.izem, não podem afumar
que Jano é um deus, porque não é o corpo do mundo que
é deus, segundo eles próprios afirmam, mas a alma do
mundo e suas partes. Daí · declarar Varrão, com toda a
clareza, que lhe parece que a alma do mundo é um deus e
que o próprio mundo é deus; mas, assim como o homem
sábio, composto de corpo e alma, se diz sábio por causa da
rua alma, assim também o mundo se chama deus por causa
da sua alma, embora formado de corpo e alma. De modo
[630]
que o corpo do mundo só, não é deus·- 111as apenas a
alma ou o corpo e a alma juntos. Se, portanto, Jano é o
mundo e ]ano é deus- para Júpiter poder ser deus,
atrever-se-ão a afirmar que ele é uma parte de Jano? Não
será antes a Júpiter que costumam atribuir o ser do uni-
verso, e daí o dito:
Tudo está cheio de Júpiter 2•
Portanto, se querem que Júpiter seja deus e sobre-
tudo rei dos deuses, têm que o conceber como mundo, e
assim poderá, como eles pretendem, reinar sobre os outros
deuses como partes suas. É ainda ·neste sentido que Var-
rão, num outro livro que escreveu acerca do culto dos
deuses, cita estes versos de Valério Sorano.
Júpiter omnipotente, progenitor e progenitora dos reis,
das coisas e dos deuses, progenitor e progenitora dos deuses,
deus único e, ele só, todos eles 3 •
Explicam-se assim no livro estes versos: chamam-lhe
varão porqpe insemina e·mulher porque é inseminada; diz
que Júpiter é o mundo que de si emite e em si recebe
todas as sementes. É por isso, acrescenta Varrão, que
Sorano escreve: Júpiter progenitor e progenitora. É .também por
isso que ele é, ao mesmo tempo, um e tudo, porque o
mundo é uno e em si tudo contém.
[631)
CAPÍTULO X
(633)
CAPfTULOXI
(635]
se deviam fazer dois deuses: um só Júpiter se chamou Tigil-
lus para a primeira e Ruminus para a segunda.
Abstenho-me de dizer que, para dar mama aos seres
animados, Juno estaria mais apta do que Jove, tanto mais
que havia a deusa Rúmina que podia ajudá-la na prestação
destes serviços. É certo que poderão responder-me, julgo
eu, que a própria Juno mais não é que o próprio Jove,
conforme os versos de V alério Sorano:
Júpiter omnipotente, progenitor e progerntora dos reis e
das coisas e dos deuses, progerntor e progenitora dos deuses,
deus único e, ele só, todos estes 2 •
Mas para que lhe chamaram Ruminus se, com um pouco
de atenção, se descobre que ele mais não é que a deusa
Rúmina? Realmente, se parecia indigno da majestade dos
deuses que para uma só espiga, um fosse encarregado dos
nós da haste, outro dos folículos que envolvem os grãos,
quanto mais indigno não será que uma só operação ínfima,
ou seja a do aleitamento dos animais, exija o cuidado de
duas divindades, uma das quais seria Júpiter, o próprio rei
de todos os deuses, e o faria, não com sua esposa mas não
sei com que obscur~ Rúmina- a não ser que ele seja esta
mesma Rúmina; ou talvez Ruminus quando são maçhos os
que mamam e Rúmina quando são as fêmeas. Diria que
recusaram a Jove um nome feminino se ele não fosse alcu-
nhado, nesses versos, de «pai e mãe» ou se .eu não lesse
entre todos os seus outros apelidos o de Pecúnia, 1.1p1a dessas
deusas minúsculas mencionadas no livro quarto. Mas, se
homens e mulheres têm dinheiro (peamia), porque é que a
Júpiter se não chamou Pecúnia e Pecúnio como Rúmina e
Rúmino? Eles lá sabem!
2
jupittr omnipotens regum rerumque dtumque
Progmitqr gennrix deum, deus unus et cmines.
V. nota (3) do Cap. IX.
[636]
CAPÍTULO Xll
1
quatn nm10 sapims G011CUpiVÍI.
Salústio, Catilina, Xl, 3.
(638]
CAPfTULO Xlll
1
jupiter profpfitor gtnttrixqut?
V. nota 3 ao Cap. IX.
[639]
alma, e que Deus é a alma racional do mundo, conduz-nos
ao mesmo ponto, isto é, a pensarmos que a própria alma
do mundo é, cqmo o Génio, universal. E é a este que se
chama Júpiter. Porque, se todo o Génio é deus e se a alma
de cada um é Génio, segue-se que a alma de todo e qual-
quer homem é deus. Se a sua absurdidade os obriga a
rejeitar esta consequência, só falta chamar Génio e, evi-
dentemente, deus ao Génio a que chamam espírito do
Mundo, e, portanto, a Júpiter.
[640]
CAPÍTULO XIV
r6421
CAPÍTULO XV
~ttosque os~osd~~
com o nom e de deuses.
(644)
CAPITULO XVI
[646]
CAP[TVLO XVTI
1
Cum in hoc libtllo dubias de Jiis opiniOtllS posuero, reprthmdi twn debeo.
Qui mim pucabit judicmi oporttre e1 pos.st, cum audicit, }adn ip~. Ego citius
perduci posswn, UI in primo /ibro f{UDt dixi in JubitJUionem rtvOCml, qua111 in Jwc
1{11« pratSCTibam omnia ut ad aliquam dirigam Stunmam.
[647]
pela verdade dos factos, era antes embaraçado pda auto-
ridade dos antepassados, diz:
Vou tratar, neste livro, dos deuses públicos do Povo
Romano, aos quais se dedicaram templos e.que assinalaram,
honrando-<>s com estátuas. M~, como XenójtVIes de Cólofon
direi o que pmso, mas tzâo () que aprovo. E.que i próprio do
homem emitir opiniões, mas o saber apenas a DetiS pertence 2•
Por isso, ao tentar dar-nos a conhecer as instituições cria-
das pelo homem, promete-nos, titubeando, uma exposi-
ção, não de questões bem deftn.idas e firmemente assentes,
mas de simples opiniões e de pontos de vista duvidosos.
Ele abia muito bem que há um mundo, que há um Céu e
uma Terra, um Céu cintilante de estrelas, uma Terra útil
de sementes e outras coisas semelhantes. Acreditava de
ânimo firme e seguro que este vasto conjunto e toda esta
Natureza são dirigidas e governadas por uma certa força
invisível e superiormente pod rosa. Mas não podia afir-
mar, com o mesmo conhecimento e crença, que Jano é o
mundo, nem podia descobrir como é que Saturno, sendo
pai de Júpiter, se tornou seu súbdito; e outras coisas que
tais.
2
Dt diis populi RDtrwu ptlhlids quibus oetks dedicavmmt tosqut pluribus
signis ornatos IWtavtnmt, in hoc libro saibam, seJ ut Xmophtws Colophonios
saipsit, quid putml, non quid conunam, penam. Hominis est mim hoec opinari,
dei scirt.
[648]
CAPÍTULO XVIII
(649]
CAPÍTULO XIX
[652]
-se isto, e outras coisas mais, de Saturno e tudo se refere à
semente. Mas, pelo menos Saturno, com semelhante poder
deveria bastar às sementes. Porque se requisitam então
a~da outros deuses, nomeadamente Líbero e Líbera, ou
·seja Ceres? A propósito destes deuses e da semente, repete
Varrão muitas coisas, como se nada tivesse já dito acerca
de Saturno.
[653)
CAPÍTULO XX
[655)
CAPÍTULO XXI
[658]
CAP[TULO XXII
[660]
CAPITULO XXIn
Acerca da Terra-que Varrão almna
ser wna deusa porque a alma do Mundo,
que, na·sua opinião, é deus, penetra também
esta parte inferior do seu corpo e lhe comunica
uma força divina.
(663)
CAPITULO XXIV
1
Eandem dicunt Matrem Magnam; qucà ry,npanum habtat, significari
esse orbem ttrrae; qucd hmis in capite, oppida; qucd setkns fingatur, drca eam
cwm omnia·moveantur, ipsam non movtri. Quod gallos (a) huic deae ut smiirent
fecerunt, significat, qui semint indigeant, ttrram sequi op<Wte; in t4 quippe amnia
reperiri. Quod se apud eam jactant, praedpitur, qui ttrram colunt, ne sedeant;
semper. ~ esse qucd agant. Cymha/orum sonitus ferrameniorum jactanJorum ac
manuum et ejus rei crepitum in ioltndo agro aui fit significant; ideo aere, qucd eam
antiqui cokbant «re, antequam ferrum esset inventui!J. Leonem adjungunt sclutum
ac mansuttum, ut ostendant nullum genus esse terrae tam remotum ac vehementer
ferum, qucd non subigi colique conveniat.
(a) Galos (gal/i) eram eunucos que a si mesmo se im~ à
castração ritual para poderem dedicar-se ao culto de certas divindades.
2
Tellurem putant esse Opem, quod opere fiat melior; Matrem, qucd plu-
rima pariat; Magnam, qucd cibum pari4t; Proserpinam, qucd ex t4 proserpant
fruges; Vestam, qucd vestiatur berbis: sialt ãlias deas non absurde ad hanc
revocant.
[666]
e, como de ~. ;leva-o a titubear. Efecúvamcmrc, acres-
centa:
Com.i$ não briga a opinii1o dos anJL:passa4os acerca
destes tleuses_ !lf1ia pluralidade a~ 3•
Como é que não kiga? Ter vários nomes não é nmito
diferente de ser várias deusas?
Mas potk JI(Jmtecer que uma e a mesma coisa conte-
nh4m em si várias ansas 4 '
r~ponde ele. Concordo qu!! num s6 homem haja várias
CQÍJas: segue-se daí que há nele vários homens? Concordo
também que numa s6 deusa haja várias coisas: segue-se daí
que nela há várias deusas? Pois então, não se privem de
dividir, combinar, multiplicar, dobrar, complicar, como
quiserem!
São estes os sublimes mistérios de Telure e da
Grande-Mãe de quem procede tudo o que se refere às
sementes pereclveis e à prática da agricultura! Será possí-
vel que, acbptados a estes mistérios e empregados para
este fim, o tambor, as torres, Ol! galos, a doentia agitação
dos membros, o ruído dos ámbalos, os leões imaginários, a
alguém prometam a vida eterna? Será possível que os galos
castrados sirvam esta Grande Deusa para significarem aos .
homens carentes de sémen a obrigação de cultivarem a
terra, já que precisamente <;> seu serviço acarreta a priva-
ção do sémen? Adquire-se, pelo a~go a esta deusa, o
sémen que se não tem- ou pelo contrário, pelo apego a
esta deusa, perde-se o sémen que se tem? Isto é dar inter-
pretações, ou mostrar execràções? Não se repara como
subiu a malícia dos demónios, que, não se atrevendo a
prometer aos homens grandes bens por estes ritos sagra-
dos, conseguiram, todavia, exigir deles tão cruéis sacri6-
3 Cum quibus opinio majcrum de his dt4bus, qucd plum txzS putatunt esse,
non pugnat.
4 Std pottst fJtri ut eadtm res tt una sit, tt in ea quaedam res sint plures.
[667]
cios. Se a Terra não fosse uma deusa, os homens poriam
nela as mãos, trabalhando para obterem sementes, em vez
de, ferind~se por causa dela perderem o sémen. Se não
fosse deusa, tornar-se-ia fecunda graças a mãos alheias,
sem que para isso se obrigasse um homem a tomar-se
estéril por suas próprias niãos. Que, quando das festas de
Líbero, wna honesta matrona tenha de coroar as regiões
pudendas çlo homem sob os olhares de wna multidão onde
talvez se encontre também o seu marido com rubor e suor
na fronte, se ê- que os homens são susceptíveis de pudor;
que, na celebração das suas bodas, uma jovem noiv:a seja
constrangida a sentar-se sobre o membro viril de Príapo:
- são torpezas muito menos detestáveis e muito menos
graves do que a cruel inf"anúa ou a crueldade infame da
mutilação dos galos. Porque, nesses actos; os ritos demonía-
cos ferem o pudor dos dois sexos sem que nem um nem
outro sejam por tal ferida destruídos. Num caso, receia-se
a maldição lançada sobre os campos; noutro caso, não se
receia a amputação dos membros; num caso, profana-se o
pudor duma noiva, sem, todavia, se lhe tirar nem a fecun-
didade nem a virgindade; noutro caso, amputa-se a virili-
dade, sem que a vítima se possa tomar mulher ou perma-
necer varão.
[668]
CAPÍTULO XXV
(669]
CAPtruw XXVI
[672)
gião, não adore o mundo como seu deus, mas o ~dmire
como obra de Deus e por causa de Deus; uma alma que,
purificada da imundícia do mundo, chegue sem nada de
imundo ao Deus criador do Mundo.
(673]
CAPfTULO XXVII
[675]
natureza corporal que, apesar de invisível, nem por isso é
menos mutável e, por conseguinte, de maneira nenhuma
poderia ser o verdadeiro Deus. Se ao menos elas se
exprinússem em simbolismos conformes com o sentido
religioso, certamente que se lamentaria que eles não
tenham servido para anunciar e glorificar o verdadeiro
Deus, mas seriam de certo modo suportáveis pelo simples
facto de não obrigarem nem prescreverem qualquer rito
imundo e torpe.
· Mas, uma vez que não é lícito adorar, ~m lugar do
verdadeiro Deus- único que pode tornar feliz a alma em
que habita- quer um corpo quer uma alma, quanto mais
ilícito não será adorá-los duma forma que não assegura ao
corpo e à alma do adorador nem a salvação nem a h9nra
humana.
Por isso, se, com templos, sacerdotes e sacrillcios
(que só ao verdadeiro Deus são devidos), se venera algum
elemento do mundo ou algum espírito criado (mesmo que
não seja imundo nem mau)- não é com certeza mau
porque sejam más essas honras, mas porque elas são de tal
natureza que só devem ser empregadas no culto daquele a
quem se deve todo o culto e serviço.
Por outro lado, se se pretende que ridículas e mons-
truosas estátuas, .sacrillcios homicidas, coroas depostas
sobre os órgãos viris, o cÓméréio da prostituição, o corte
dos membros, as mutilações vergonhosas~ as consagrações
de invertidos, a celebração de jogos impuros e obscenos, .
contribuem para honrar o verdadeiro Deus, isto é, o
Criador de todas as almas e de todos os corpos, peca-se,
não porque se adore um ser que não devia ser adorado,
mas porque se não adora como deve ser o Deus que se
deve adorar. ·
Mas recorrer a tais meios, isto é, a torpezas e infâ-
mias, para adorar, não o verdadeiro Deus, criador da alma
e do corpo, mas uma criatura, mesmo inocente, seja ela
alma ou corpo, seja conjuntamente alma e corpo, é pecar
duas vezes contra Deus, adorando em seu lugar um ser
[676]
dele diferente, adorando-o de wna forma indigna não só
dele mas de qualquer outro.
De que modo os pagãos adoram, isto é, quão torpe e
perversamente adoram- está bem à vista! Que objecto
ou que seres adoram eles- é assunto que ficaria por
esclarecer se a sua história não atestasse que tal culto, cuja
hediondez e ignoininia confessam, se dirige a divindades
que o exigem com terríveis ameaças. Fica pois dissipado
todo o equívoco: são horríveis demónios, espíritos im\mdos
que toda esta teologia civil convida a se mostrarem nessas
estúpidas imagens, para possuí.rem, por intermédio delas, o
coração dos insensatos.
[677]
CAPITuLO XXVlll
A teologia de Va.aão
está em total desacordo consigo própriL
I Quqniam, Ul primo /ibro Jixj tk locis, Juo sint prinàpitJ ckmwn anJmaJ.
IIO'Sa tk e«<o et tlml, a quo Jii partim tlicuntur cat.lt.sus, partim tmtsttt:s: UI in
S'llpt1ioribus inirium fecimus a e«<o, cum Jiximus Jt ]ano, qutm alii C«lum, a/ii
dixtnmt ~ munJum, sie Jt feminis saibmJi facimus initium a Ttllurt.
[679]
Dai que, no livro precedente, também assim tenha
interpretado os famosos mistérios de Samotrácia e pro-
meta, com tuna seriedade quase religiosa, expor por
escrito e enviar aos seus, coisas que lhes são desconhecidas.
Diz ele que de muitos indícios tirou a conclusão de que,
entre as estátuas, uma representa o Céu, outra a Terra e
outra os modelos das coisas a que Platão chama ideias.
Quer que em Júpiter se veja o Céu, em Juno a Terra, em
Minerva as ideias: o Céu pelo qual tudo é feito, a Terra
de que tudo é feito, o modelo segundo o qual tudo se faz.
Abstenho-me de referir aqui que Platão concede a essas
ideias um tal poder que o Céu, longe de fazer seja o que
for em conformidade com elas, ele próprio é que seria
feito à sua semelhança. Direi apenas que, no seu livro
acerca dos deuses escolhidos, (Varrão) perdeu de vista o
alcance desses três deuses, com os quais abarcava a bem
dizer a totalidade das coisas. Realmente, ele atribui ao
Céu as c.Uvindades masculinas, à Terra as femininas e entre
estas últimas colocou Minerva, que um pouco antes tinha
posto acima do próprio Céu. Além disso, wn deus
masculino-Neptuno-está no mar, que pertence mais à
Terra do ·que ao Céu. E por 6m Dísparter (Dis Pater), cha-
mado em grego nÃoÓ'r(.o)v (Plutão), também deus mascu-
lino e irmão dos outros dois, apresenta-se como um deus
da Terra, e dela ocupa a parte superior, ocupando Prosér-
pina, sua esposa, a parte inferior. Como é que pretendem,
então, referir os deuses ao Céu e as deusas à Terra? Que é
que há de sólido, de coerente, de sensato, de preciso, nesta
exposição?
Telure é de facto o principio das deusas, a Grande-
-Mãe em volta da qual os invertidos e mutilados, castrados
e contorcionistas exibem a sua ruidosa e louca torpeza.
Para que, então, chamar a Jano a cabeça dos deuses, e a
Telure a cabeça das deusas? Nem o erro pode do primeiro
fazer uma cabeça sequer, nem a loucura pode curar a da
segunda. Porque é que tentam, em vão, referir tudo isto
ao Mundo? Mesmo que isso fosse possivel, nenhum espi-
[680]
rito religioso adoraria o Mundo em vez do verdadeiro
Deus. E todavia, que isso não é possível, demonstra-o a
evidência da verdade. Atribuam tudo isto a homens que já
morreram, a demónios detestáveis- e não haverá mais difi-
culdades. .
[681)
CAPÍTULO XXIX
[683]
CAPfTULO XXX
[686]
os seus próprios movimentos. E, ainda que nada possam
sem ele, com ele não se confundem. Realiza também mui-
tas coisas por intermédio dos anjos, ~as só nele é que está
a origem da fehcidade dos anjos. Mesmo quando, por cer-
tas causas, ele envia anjos aos homens, não é todavia pelos
anjos mas por si próprio que toma felizes os homens, tal
qual como torna felizes os anjos.
É deste único Deus verdadeiro que esperamos a vida
eterna.
[687]
CAPfTULO XXXJ
(689]
CAP[TULO XXXl1
(691]
CAPfTULO XXXIII
[694]
CAPITULO XXXIV
sepulcrum Numae Pompilii traicens aratrum eruisset ex terra libros ejus, ubi sacro-
rum institutorum scriptae erant causae, in Urbem pertulit ad praetorem. At ille
[695]
Pense cada wn o que quiser.. Mais ainda: diga qualquer
ilustre defensor de tamanha impiedade o que lhe sugerir a
sua extravagante teimosia. Quanto a ~. basta-me cons-
tatar que as explicações religiosas escritas pela mão do rei
Pompílio, fundador da Religião Romana, tiveram de se
conservar escondidas do povo, do Senado, dos próprios
sacerdotes. Foi este rei em pessoa quem, impelido por uma
curiosidade culpável, se iniciou nos segredos dos demónios
e os reduziu a escrito para os recordar quando os lesse.
Mas, embora, por ser rei, nada tivesse a ~emer, não se
atreveu nem a comunicá-los nem a perdê-los, destruindo-os
de qualquer maneira. Assim, como não queria que ninguém
conhecesse coisas tão abomináveis, e como, por outro
lado, receava profaná-los, com o que atrairia a ira dos
deuses, enterrou-os num sitio que julgou seguro- não
peOS;ando que um arado poderia passar tão perto da sua
sepultura. Quanto ao Senado, teve receio de ter de conde-
nar a religião dos antepassados e viu-se consequentemente
constrangido a concordar com Numa. · Todavia, julgou
estes livros tão perniciosos que se recusou a enterrá-los de
novo, para evitar que a curiosidade humana procurasse,
com mais ardor, wna coisa já tornada pública- e mandou
destruir pelo fogo tão nefandos documentos. E assim, por-
que se julgou necessária a manutenção desse culto,- a
ilusão sustentada pela ignorância das .causas pareceu prefe-
rível às perturbações que o seu conhecimento suscitaria na
cidade.
cum inspaisset principia, rtm tantam tktulil ad Stnatum. Ubi cum primores
quasdam causas legissem, cur quid~ in saais fumt institutum Numat mortuo
Smatus adsensus tst, eos~ libros 14nquatn religíosi patres conscripti, (a) praetor
ut cornbureret, censununt.
Tito Lívio, Hist. XL, 29.
(a) Padres conscritos, nome por que eram tratados os patrícios
(palres) recrutados (conscripti) para constituírem o Senado desde que este
fora criado por P. Valério depois da expulsão dos reis.
(696]
CAPÍTULO :XXXV
[699]
LIVRO VIII
Aborda o terceiro género de Teologia, chamada natural, e
trata da questão dos deuses a essa teologia ligados- isto é, se
o culto desses deuses tem interesse para se conseguir a vida
bem-aventurada que surgirá depois da morte. A discussão
travar-se-á com os platónicos porque estes estão muito acima
dos outros Hlósofos e estão mais próximos da verdade da fé ·
cristã. Antes de tudo, refutam-se aqui Apuleio e todos os que
pretendem que se deve prestar culto aos demónios como
mediadores e intérpretes entre os deuses e os homens;
demonstra-se que esses demónios estão sujeitos aos vícios e
introduziram o que os homens honrados e prudentes reprovam
e condenam, ou seja: as sacrílegas ficções dos poetas, os ludi-
brios teatrais, os maleflcios e os crimes das artes mágicas.
Averiguado que eles favorecem e se comprazem com tudo
isto, conclue-se que de modo nenhum se podem conciliar os
home~ com os deuses bons. ·
[701)
CAP(TULO I
[704]
CAPITuLo II
[706)
CAPITULO lli
Doutrina de Sócrates.
(708]
CAPITuLO IV
[711)
CAPÍTULO V
[716]
CAPfTULO VI
Pensamento de Platão
acerca da chamada filosofia 6sica.
(719]
CAPITULO VII
(iv~oú;H), tais como Bem, Justo, Belo, têm a sua origem nos sentidos
e não em origem diferente dos sentidos. Resultam tais noções de racio-
cínios espontâneos a partir da percepção das coisas concretas. Assim a
noção de Bem resulta da comparação, feita pela razão, das coisas per-
cebidas imediatamente como boas.
v. Cícero, De Finitibus, III, X, 33. Cfr. E. Bréhie_r Hist. de la philos.
t. I, p. 303.
(721]
Costumo admirar-me muito sempre que os ouço
afirmar que só os sábios são belos. Com que sentidos do
corpo terão visto essa beleza? Mas aqueles que merecida-
mente colocamos acima dos outros, distinguiram o que o
espírito contempla daquilo que ·as sentidos atingem, sem
nada tirarem aos sentidos das suas aptidões, sem nada lhes
concederem além delas. A luz dos espíritos, para todo o
conhecimento a adquirir, é, disseram eles, este mesmo
Deus por quem todas as coisas foram feitas.
[722]
CAPfTULO Vlll
[725)
CAPfTULOX
1
Cavtte ne quis vos dedpiat per phi/osophiam tt inanem seductionem
seaJmlum ekmenta muncli.
. Col., II, 8.
2 Quia quod notum est Dei, manifestum est in ilüs; Dtus enim i/Jis mani-
festavit. Invisibi/ia enim tjus a constituticne muncli per ta, quase Jacta sunt,
intellecta conspiciuntur, sempitmla queque virtus tjus tt clivinitas.
Rom .• I, 19 e segs . .
[727]
Dirigindo-se aos atenienses, depois de ter dito de
Deus aquela extraordinária palavra que por bem poucos
pode ser compreendida,
. é nele ·que vivemos, r~?S movemos e somos 3,
acrescenta:
Como o disseram alguns dos vossos 4 •
Com certeza que o cristão também sabe qu~ deles se deve
acautelar em assuntos em que se enganam. Efectivamente,
onde está referido que ·
Por meio das coisas criadas Deus revelou as suas perfei-
ções invisíveis, acessíveis à inteligência 5,
também está referido que não prestaram ao próprio Deus
o seu legítimo culto, rendendo a outros seres que não o
mereciam as honras divinas que só a Ele são devidas:
· Realmente, embora tenham conhecido Deus, não o glo-
rifrcaram como D~ e não lhe deram graças, mas perderam-se
nos seus ~tos e o seu coraçlo insensato se obnubilou.
Apelidando-se a si próprios de sáhios tornaram-se loucos e
substituíram a glória de Deus incomptível por imagens de
homens corruptíveis, aves, quadrúpedes e répteis.
Alude neste passo aos romanos, gregos e egípcios que se
gloriam co~ o nome de sábios: Mais tarde com eles des-
cutiremos acerca deste assunto. Más se se trata do Deus
[728)
único, autor desta universalidade, d'Aquele que, pela sua
incorporeidade não só está acima de todos os corpos, mas
também, pela sua incorruptibilidade, está acima de todas
as almas- ele, nosso princípio, nossa luz, nosso bem, -na
medida em que connosco estão de acordo sobre estes pon-
tos preferimo-los aos demais.
Um cristão pode desconhecer as obras literárias des-
ses ftlósofos; pode não saber usar, nas suas discussões, de
termos que não aprendeu; pode não saber chamar: natural
com os latinos, ou fisica, com os gregos, a esta parte da
ftlosofia que trata do estudo da natureza; racional ou lógica à
outra em que se procura a maneira de atingir a verdade;
moral ou ética àquela em que se trata dos costumes, dos fms
bons a atingir, dos fms maus a evitar. Mas o que este
Cristão não ignora é que é do único, verdadeiro e perfeito
Deus que recebemos a natureza, pela qual fomos feitos à
sua imagem; doutrina, pela qual o conhecemos a Ele e nos
conhecemos a nós; e a graça, pela qual nos tomamos feli-
zes, unindo-nos a Ele.
É esta a razão pela qual os preferimos aos demais -
porque, ao passo que os outros gastaram o. seu talento e os
seus esforços na busca das causas das coisas, dos métodos
do conhecimento e das regras da vida, estes, uma vez
conhecido Deus, ficaram a saber onde encontrar a causa
realizadora do universo, a luz para descobrir a verdade, a
fonte onde se bebe a verdade. Os que estão de acordo
connosco são os que têm semelhante concepção de Deus,
quer eles sejam platónicos, quer eles sejam quaisquer
outros ftlósofos de qualquer nação. Mas pareceu-nos pre-
ferível tratar destas questões com os platónicos porque as
suas obras são mais conhecidas. Realmente os gregos, cuja
língua sobressai entre os povos, fizeram delas os maiores
encómios, e os latinos, movidos pela sua excelência e glória,
aprenderam-nas mais gostosamente e traduziram-nas para
a nossa língua, assegurando-lhes assim maior brilho e fama.
(729]
CAP[TULOXI
4
Ego sum qui sum, (( dias filiis Isratl:
Qui est misit me ad vos.
~xodo, III, 14.
s Ego sum qui mm, et dias eis:
Qui est misit me ad vos.
Ibidem.
[733]
CAPITuLo ·xn
1 Quod notum est in Dd manifestum esr in illis; DtuS mim illis manifes-
tJJvir; invisibilia mim ejiiS a consrituriotli! mundi fJD" ta, quat facra sunt, inrtlkctJJ
conspiciuntur, smrpittma quoqut virtus ejus tt divinitas.
Rom., I, 19 e segs..
(735]
rior no estilo {mas quão superior a tantos putros) fundou a
escala dos peripatéticos, assim denominados porque ele
tinha o hábito de discutir passeando. _Destacando-se pelo
brilho da sua fama, conquistou, ainda em vida do seu mes-
tre, muitos discípulos para as suas doutrinas. Mas depois
da morte de Platão, Espeusipo, fllho de sua irmã, e Xenó-
crates, seu discípulo predilecto, sucederam-lhe na chefia
da escola, que se chamou Academia, e por isso é que a
eles e a seus sucessores chamaram académicos. Todavia, os
mais célebres fllósofos deste tempo que preferiram seguir
Platão, não quiseram que os apelidassem de peripatéticos
nem de académicos, mas sim de platónicos. Os mais céle-
bres dentre eles são os gregos Plotino, Jâmblico, Porfirio
e, nas duas línguas, grega e latina, um platónico notável, o
africano Apuleio. Mas todos estes fllósofos, outros simila-
res e o próprio Platão acharam · que se devia oferecer
sacriflcios aos deuses.
[736]
CAPíTULO XIII
(738]
CAP[TULO XIV
(741]
CAPÍTULO XV
(746]
CAPfTULO XVII
[747]
feita sabedoria, fonte da felicidade que nos é para o fim
prometida, quando estivermos libertos desta condição
mortal. Quanto aos deuses, eles são, diz-se, isentos destas
perturbações: são, não apenas eternos, mas também bem-
-aventurados. Diz-se que realmente também eles são .
dotados de alma racional mas absolutamente limpos de
mancha e de contágio. Se, portanto, os deuses não estão
sujeitos a perturbações porque são viventes felizes e não
miseráveis; se os animais não se perturbam porque são
viventes que não podem ser nem felizes nem _miseráveis-
só há que concluir que os demónios, tal como os homens,
estão sujeitos às perturbações porque são viventes hão feli-
zes mas miseráveis.
Que insensatez, ou melhor, que demência pode
submeter-nos, por qualquer motivo religioso, aos demó-
nios, quando pela verdadeira religião nos libertamos da
perversidade que nos torna semelhantes a eles? Ao passo
que, na verdade, os demónios estão sujeitos à cólera (e
Apuleio confessa-o apesar de tão indulgente para com eles
a ponto de os julgar dignos das honras divinas), a verda-
deira religião prescreve-nos que não cedamos à cólera
mas, pelo contrário, que lhe resistamos;
ao passo que os demónios se deixam subornar com
presentes -a verdadeira religião impõe-nos que a nin-
guém favoreçamos em paga dos presentes recebidos;
ao passo que os demónios ficam lisongeados com as
honras- a verdadeira religião preceitua que de modo
nenhum nos deixemos mover;
ao passo que os demónios odeiam certos homens e
amam outros, não por um juízo reflectido e sereno mas,
segundo o dito de Apuleio, por um movimento apaixonado
da alma- a verdadeira religião ordena-nos que amemos
os próprios inimigos;
em suma- todos estes movimentos do coração, todas
estas agitações do espírito, todas estas turbulentas tempes-
tades da alma que, segundo Apuleio inflamam e arrastam
[748]
os demónios- a verdadeira religião impõe-nos que as
dominemos. Que razão tens tu então Apuleio, a não ser a
insensatez e o erro núserãvel, para te humilhares respeito-
samente perante um ser ao qual não desejas ser semelhante
na tua vida, para renderes um culto religioso a um ser que
não quererás inútar, uma vez que inútar o que se adora
constitui toda a religião?
(749)
CAPfTULO XVlll
[753)
mente, o próprio Apuleio, acaso foi perante júízes cristãos
que ele foi aq.xsado de magia? Com certeza que se ele
considerasse divinas, piedosas, conformes às obras dos
poderes divinos, estas práticas de que o acusavam, ele
deveria não só confessá-las mas até delas se gabar e, pelo
contrário, incriminar essas leis que, em vez de as conside-
rarem dignas de admiração e veneração, as proscreviam e
as consideravam condenáveis..
Desta maneira- ou teria feito com que os juízes
partilhassem da sua opinião, ou, no caso de eles continua-
rem demasiado apegados a leis injustas e o condenassem à
morte por pregar e exaltar tais doutrinas, os demónios
outorgar-lhe-iam uma recompensa digna da sua alma, já
que não receara dar a própria vida pela divulgação das
divinas obras. Foi assim que os nossos mártires, quando
lhes imputavam, a título de crime, a religião cristã, na
qual sabiart:l que encontrariam a salvação e a glória eterna,
em vez de,' renegando-a, preferirem escapar às penas tem-
porais, preferiam antes confessá-la, proclamá-la e pregá-
la, tudo suportando por ela com valentia e fidelidade e,
por ela morrendo com piedosa ~erenidade, tomaram ver-
gonhosas as leis que a proscreviam e fizeram com que as
mudassem.
Aliás, resta-nos deste Hlósofo platónico, Apuleio, ~a
copiosíssima e eloquente dissertação em que ele repele,
como sendo-lhe estranhõ, o crime de magia e procura
mostrar-se inocente, negando actos que um inocente não
pode cometer. Mas todos os prodígios dos mágicos que ele
justificadamente considera condenáveis, só ao ensino e à
actividade dos demónios são devidos. Ele que veja, por-
tanto, porque é que acha que se devem honrar estes
demónios ao afirmar que são indispensáveis para levarem
as nossas preces até aos deuses, quando, a6nal, o que
devemos é evitar as suas obras se quisermos que as nossas
orações cheguem até ao verdadeiro Deus.
Pergunto ainda: Que orações dos homens devem os
demónios apresentar aos deuses- as mágicas ou as lícitas?
[754)
Se são as mágicas, eles não as aceitam; se são as lícitas, eles
recusam tais intermediários. E se um pecador arrependido
faz oração, sobretudo porque se entregou à magia- pode
receber o perdão por intercessão daqueles por cuja insti-
gação ou. favor foi levado a cometer a culpa que deplora?
Ou serão os demónios que, para obterem o perdão dos
arrependidos, serão os primeiros a fazer penitência por os
terem enganado? Ninguém jamais disse uma coisa destas
dos demónios! Se assim fosse de modo nenhum se atreve-
riam a solicitar para si honras divinas os que desejam pela
penitência chegar à graça do perdão: o primeiro caso (o
de solicitarem honras divinas) seria detestável soberba; e o
segundo (o de desejarem pela penitência o perdão) seria
hwnildade digna de lástima.
[755)
CAPÍTULO XX
[758]
CAPÍTULO XXI
[761]
CAPÍTULO XXII
[764]
CAPfTULO XXIII
[766)
que parecerá que os egípcios em vão conservarão os seus deu-
ses com espírito piedoso e religioso escrúpulo, e em que toda a
sua santa veneração fteará inutilmente frustrada 4 (a).
Depois Hermes prossegue longamente nesta questão
e parece aí predizer a época em que a religião cristã der-
rubará os ídolos falaciosos com tanta maior força e liber-
dade quanto ela é mais verdadeira e mais santa, para que a
graça do Salvador autêntico li~rte o homem dos deuses
que o homem fez e·o submeta a Deus que fez o homem.
Mas, ao predizer isto, Hermes fala com simpatia· das misti.,.
ficações dos demónios, sem exprimir claramente o nome
cristão; mas como, assim, seria suprimido tudo aquilo em
que o Egipto se assemelha ao Céu (conforme nos garantia
a observação) o testemunho que Trismegisto nos dá do
futuro toma um tom doloroso. Ele é, de facto, daqueles de
quem o Apóstolo diz:
Ao descobrirem Deus, não o gloriftearam como Deus
nem lhe prestaram graças; mas tornaram-se vãos nos seus
pensamentos e o seu coração insensato se obnubilou. Dizendo-
-se sábios, tornaram-se loucos, substituindo à majestade de
Deus incorruptível imagens feitas à imagem do homem
corruptível 5 ,
e o mais que seria longo recordar.
(767]
Realmente, a respeito do único e verdadeiro Deus
construtor do mundo, muitas coisas diz que correspondem
à verdade; e não compreendo como ~ que tal cegueira do
coração o leva a afirmar que os homens estão sujeitos aos
deuses que (é ele que o confessa) pelos homens foram fei-
tos, e a deplorar a supressão futura desta sujeição - como
se houvesse alguma coisa mais deplorável para o homem
do que ser dominado pelas suas próprias ficções. Porque a
verdade é que é mais fácil a um homem deixar de ser
homem, adorando como deuses as obras das suas mãos, do
que às suas obras tomarem-se deuses pelo culto que um
homem lhes presta. Realmente, a um homem de tão ele-.
vada dignidade, se não é inteligente é mais fácil descer à
categoria dos brutos do que a obra do homem ser prefe-
rida à obra de Deus feita à sua semelhança, isto é, ao
próprio homem. É precisamente por isso que o homem se
afasta daquele que o fez quando acima dele coloca o que
ele próprio fez.
Estas eram as vacuidades enganosas, perniciosas,
sacrílegas que o egípcio Hermes lamentava por saber que
chegaria o tempo da sua abolição. No seu lamento,
porém, havia tanto de impudência como na sua ciência
havia de imprudência. Efectivamente, não fora o· Espírito
Santo quem lho revelara, como aos santos profetas que,
conhecendo antecipadamente estes factos, exultavam de
alegria:
Se o homem faz deuses então é porque não são
deuses 6,
std evanummt in cogitatiotlibus suis, tt obscuratum est insipiens cor eorum; dicen-
res enim se esse sapientes stulti su11r et i11mutavenmt gloriam incorrnpti Dei i11
similitudi~~em imaginis corruptibilis Jwmmis.
· Rom., I, 21-22.
6 Si faciet homo deos, tt ecu ipsi 110t1 SUIIt dii.
Jerem., XVI, 20.
(7()8]
e noutra passagem:
Dia virá1 diz o Senhor1 em que extermjnarei da face da
Terra o nome dos ídolos e será abolida a sua memória 1.
Quanto ao próprio Egipto- e isto respeita à pre-
sente questão- o santo Elias profetiza assim:
E (os deuses) do Egipto1 feitos pelas mãos dos homens1
serão atirados para longe da sua face e o coração (dos egípcios)
será vencido dentro deles 8•
Da mesma estirpe eram aqueles que se regozijavam
por ter chegado Aquele que sabiam que havia de vir: tal
era Simião, ta1 era Ana que reconheceu Jesus acabado de
nascer· tal era Isabel que, por graça do Espírito, o reco-
nheceu apesar de apenas concebido; tal era Pedro ao
exclamar, por revelação do Pai:
Tu és Cristo1 filho de Deus vivo 9•
Mas, ao contrãrio, os espíritos que a este egípcio tinham
indicado o momento da sua futura perda, eram precisa-
mente os que, a tremer, viriam a dizer ao Senhor ainda
presente na sua carne:
Porque vieste perder-nos antes do tempo 10?
quer porque fora demasiado úbito o acontecimento que
de facto esperavam mas para mais tarde, quer porque eles
chamavam «a sua perda» ao facto de serem desprezados
porque reconhecidos. E esta desgraça chegava-lhes antes
do tempo (ante tempus), i to é, antes do tempo do juizo em
(770]
CAPÍTULO XXIV
1
&d jam tk ralibus sinr satis dieta ta/ia. ltemm ad hominmr ratiotrtmque
redeamus, ex quo divino dono lromo animal dictum est rationale. Minus tttim
mirando etsi mirando sint, qtlllt de lwmine dieta ssmt. Omnium mim mirabilium
vicit adtnirationem qstod lwmo divinam pott1it invtnire naturam tatnque 4frare.
Quoniam ergo proavi 1wstri multum errabam circa deomm rationtm ÍIICTtdttli tt
110n animadvtrtentts ad cu/tum religio1rtmque divinanr, i11vnzmmt artmr, qua effi-
ctrmt deos. Cui inventae ad.ftmxem~t virtutttn tk mundi naJura canvmitntem,
[771)
Não sei se os demónios, evocados para o testemunha-
rem, fariam confissões semelhantes àquelas, diz ele:
Como os nossos antepassados, devido à sua increduli-
dade e à sua indiferença a respeito do culto e da religião
divina, cometiam um grave erro acerca da noção dos deuses,
inventaram a arte de fabricar deuses 2 .
Será que ao menos ele disse sem artillcios que eles erra-
ram ao descobrirem a arte de fazerem deuses- ou
contentou-se em dizer «cometiam um erro» (errabant), sem
acrescentar «CCmetiam um grave erro» (Multum errahant)? Foi
portanto este erro «grave», esta incredulidade dos que des-
prezavam o culto e a religião divina que descobriu a arte
de fazer deuses. E todavia é esta arte inventada, por grave
erro, pela incredulidade e aversão para com o culto e a
religião divina, é esta arte de fabricar deuses- é isto que
o homem sábio deplora como ruína, que a seu tempo virá,
como se duma religião divina se tratasse. Repara que é
devido a uma força divina que ele revela os velhos erros
dos seus antepassados e é devido a uma força diabólica que
ele é obrigado a lamentar o futuro castigo dos demónios.
Se, na verdade, os seus antepassados encontraram a arte de
fabricar deuses em consequência de um «grave erro»
acerca da noção dos deuses, por causa da sua incredulidade
e da sua aversão para com o culto e a religião divina,-
que admira se todas as coisas que" esta detestável arte
fabricou contrárias à religião divina, forem pela religião
divina destr:ufdas, pois é a verdade que emenda o erro, é a
eamqut miscenres, quotliam animas faure non poteranJ, tvOUli'IUs animas tlaenur
num velangdorum tas inJidmm imaginibus sanctis divinisqut mysttriis, per quas
iáola ~ beN faciendi et mak vires habere potuissent.
Asclepius, XXXVII, ed. Fesrugi~re-Nock, p. 347.
2
Qwmiam proavi nostri multum errabant draz Jeorum rationem, increduli
et non animadvertentes ad cu/tum relígionemque divinam, invenerunt artem qua
e.{fiarent deos.
Id. Ib ..
fé que refuta a incredulidade, é a conversão que corrige a
aversão?
Se Hermes, sem referir as causas, tivesse dito que os
seus antepassados descobriram a arte de fabricar deuses, a
nós caberia, por muito fraco que fosse o nosso sentido de
justiça e de religião, observarmos e da.rmo-nos conta de
que nup.ca eles teriam chegado à ane de fabricar deuses se
não estivessem longe da verdade, se tivessem de Deus wna
crença digna dele, se tivessem orientado o seu espírito
para o culto e a religião divina. E, todavia, se fôssemos
nós a dizer que esta arte procede de. wn grave erro dos
homens, da sua incredulidade, da aversão da sua alma des-
viada e infiel à religião divina, a impudência.dos que resis-
tem à verdade seria de certo modo suportável. Mas quando
é o próprio Hermes quem admira no homem o poder
desta arte sobre as coisas, pelo qual se lhe permite fabricar
deuses, e ao mesmo tempo se lamenta _por chegar o tempo
em que até as próprias leis ordenarão a supressão de todas
estas ficções de deuses instituídos pelos homens;
quando é ele que não deixa de confessar e de precisar
as causas que levaram a esta fabricação, ou seja o grave
erro dos antepassados, a sua incredulidade, a aversão da
sua alma pelo culto e a religião divina,
-que devemos nós dizer, ou melhor, que devemos
nós fazer senão render as maiores acções de graças ao
Senhor nosso Deus que suprinúu os ídolos por razões con-
trárias às da sua instituição? Realmente, o que a multidão
dos erros estabeleceu- o canúnho da verdade o aboliu;
o que a incredulidade instituiu- a fé o suprimiu;
o que a aversão ao culto da religião divina construiu
- a conversão ao santo, verdadeiro e único Deus o
destruiu.
Isto não aconteceu só no Egipto, onde apenas pela
voz de Hermes o deplora o espirita dos demónios: é toda a
terra que canta ao Senhor um cântico novo, como o havia
[773]
predito a escritura verdadeiramente santa, verdadeiramente
profética, onde está escrito:
. Cantai ao Senhor um cântico novo; cante ao Senhor a
Terra inteira 3.
O título deste salmo é o seguinte:
Quando se edifuava a casa depois do cativeiro 4 •
E de facto ela edifica-se no mundo inteiro para o Senhor,
esta casa, a Cidade de Deus, isto é, a Santa Igreja;
ela se edifica com os homens que, depois de mantidos
em cativeiro ~los demónios, se tomaram como que as
suas pedras vivas pela fé de Deus. Porque o homem, lá
porque fabricava deuses, nem por isso deixava de ser deles
possuído: realmente, embora autor deles, ao adorá-los pas-
sava para a sua sociedade- sociedade, digo eu, não de
ídolos estúpidos mas de astuciosos demónios. Na verdade,
que é que são os ídolo~ senão o que a Escritura deles
refere:
Têm olhos mas não verão 5?
E q!Je é que poderá dizer dos objectos materiais, por mui
habilmente trabalhados que estejam, se lhes falta vida e
sensibilidade? Mas os espíritos imundos, vinculados por
essa arte ímpia às imagens, agregando-as à sua sociedade,
tinham cativado miseravelmente as almas dos seus adora-
dores. Daí o que diz o Apóstolo:
Sabemos que um ídolo nada é,· mas quando os gentios
sacrificam, é aos demónios que sacrificam e não a Deus. Não
quero que vos tomeis associados dos demónios 6.
3
Cantak Domino canricum novum, cantllk Domino omnis tma.
Salmo XCV, 1.
4
Quando domus aedifiCabatuir post captivitatem.
Salmo XCV.
s Oculos haberu, et non viJebunt.
Salmo xcrv, s.
6
Scimu.s quia nihil tst ido/um; sed qu« ÍlnmQ/am gmus, daemoniis irnmo-
lam, et non Dto; no/o vos sodos fim daemoniorum.
I Corint., X, 20.
[774]
Depois deste cativeiro em que os demónios astuciosos
mantinham os homens é que, portanto, foi edificada em
toda a Terra a Casa de Deus. Dai é que recebeu o título
aquele salmo em que se diz:
Cantai ao Senhor um. cântico novo; cante ao Senhor a Tma
inteira.
Cantai ao Senhor1 bendizei o seu nome e anunciai dia após
dia a sua sabedoria.
Narrai a sua glória tt1tre os gemws e as st«JS maravilhas entre
os povos.
Porque grande é o Senlwr e digno de todo o louvor; terrível
acima de todos os deuses;
porque todos os deuses dos gentios são demónios- mas foi o
Senhor quem fez os Céus 7 •
Quem. portanto, lamenta a próxima chegada do tempo
em que serão suprimidos o culto dos ídolos e o domínio
dos demónios sobre aqueles que os adoram, desejaria, por
instigação do espírito do mal, que para sempre ubsistisse
o cativeiro cujo fim fez cantar ao Salmista a edificação de
uma casa em toda a Terra. Era isso que Hermes vaticinava
com desgosto; era isso que o profeta previa com alegria. E
como aquele que cantava este triunfo pela boca dos santos
profetas era o Espírito vencedor, o próprio Hermes foi
miraculosamente obrigado a confessar que os idolos, cuja
destruição ele não suportava e deplorava, tinham sido ins-
tituídos por homens nem sábios, nem crentes, nem religio-
sos, mas por homens perdidos no erro, incrédulos e hostis
ao culto da religião divina. Embora lhes chame deuses,
todavia, ao dizer que foram fabricados por tais homens,
ao q~ai de modo nenhum nos devemos assemelhar, mos-
7
Catrtate Domüw a~utia1m twvr1m, Cantate Domitw omt1is terra,
Cantate Domitro, bePredidte tron m tjtiS, bene rumtiate diem ex die sal11tme tjus.
A dmuWalt i1t gelltilms gloriam tjus, in omnibus popu/is mirabilia tjus; quoniam
mogtiUS DomimiS d lauJobilis nimis, ttrribilis tst supc- Ol7l1U!S tkos.
Quia 01111'U'S dü gmliwn dotmonia, Dorninus auttm caelos f«iJ.
Salmo XCV, 1-5. .
rns]
tra, queira ou ~ão, que não devem ser adorados por quem
não é igual aos seus fabricadores, ou seja, por pessoas
sábias, crentes e religiosas. E mostra, ao mesmo tempo,
que os seus fabricantes a si próprios outorgaram deuses
que não eram deuses. Porque continua verdadeira a frase
do profeta:
Se o homem faz deuses) então é porque não são
deuses 8.
A tais deuses é que Hermes chama deuses de tais
hómens, fabricados habilmente por tais artistas, isto é, os
demónios fixados aos ídolos, não sei dizer por que arte,
pelas cadeias das suas paixões. Mas, chamando-lhes deuses
fabricados por homens, não lhes concede o mesmo que
lhes concede o platónico Apuleio (cuja doutrina e absurda
incongruência já expusemos e demonstrámos) ou seja o
privilégio de serem intérpretes e intercessores entre os
deuses que' Deus fez e os homens criados pelo mesmo
Deus, levando as preces dos homens e trazendo os favores
dos deuses. É, na verdade, demasiado absurdo crer que
deuses fabricados por homens tenham mais crédito junto
dos deuses feitos por Deus do que os próprios homens
feitos pelo mesmo Deus. Realmente o demónio fixado a
um ídolo por un'la arte ímpia foi certamente feito deus por
um homem- mas para esse homem apenas e não para
todo o homem.
Mas que deus será esse então que só um homem per-
dido no erro, incrédulo e desviado do verdadeiro Deus
pode fabricar? Na verdade:
se os demónios venerados nos templos e introduzidos,
não sei por que arte, nos ídolos, isto é, nas estátu~ visí-
veis, por homens que, usando dessa arte, fizeram deles
deuses, perdendo eles próprios o rumo e afastando-se do
culto e da religião divina;
' T une terra is ta, satiCtissima sedes delubromm at qtte templomm, sepulcrcr
mm erit ttwrtuo~tmque pletlissiiiW.
Asclepius, XXV IV,' ed. Festugihe-Nock, p. 37:7 ·
[781]
adoravam os deuses nos templos. A cegueira dos ímpios é
tão grande que, a bem dizer, chegam a chocar contra as
montanhas, recusando-se a ver o que salta aos olhos. Não
reparam que em todos os escritos pagãos não se encon-
tram, ou dificilmente se encontram, deuses que não
tenham sido homens que, uma ve7; falecidos, se tornaram
objecto de honras divinas. Ponho de parte a afirmação de
Varrão, ou seja: que todos os m9rtos são por eles conside-
rados deuses -os deuses manes. Prova-o com os ritos
sagrados oferecidos a quase todos os mortos, nomeada-
mente com os jogos fúnebres, sinal máximo, para ele, da
sua divindade, pois estes jogos são ordinariamente reser-
vados aos deuses.
O próprio Hermes, de quem agora se trata, no
mesmo livro em que parece prever o futuro, exclama
pesaroso:
Então esta terra, santissima de santuários e de templos,
ficará toda cheia de sept4lcros e de mortos 1,
testemunhando assim que os deuses do Egipto mais não
são que homens mortos. Com efeito, depois de ter decla-
rado que os seus antepassados cometeram graves erros
acerca da noção dos deuses e, incrédulos, sem consideração
pelo culto e pela religião divina, inventaram a arte de
fabricar deuses, acrescenta:
A esta inventada arte juntaram uma virtude apropriada
tirada da natureza do mundo; misturaram-na com aquela
mas, como não podiam fazer almas, evocaram almas de
demónios ou de anjos, infundindo-as nas imagens santas e nos
mistérios divinos para que, mercê dessas almas, os ídolos
tivessem o poder de praticar o bem e o ~[2.
miscemes, qtloniam animas facere non poteranc, evocantes animas doemonum vel
angelorum eas indiderum imaginibus saneeis divinisque mysteriis, per quas ido/a ec
benefaciendi et male, vires habere potllissent.
!cllb., XXXVll, p. 348.
[782]
Continua a seguir, como que a querer provar
isto com exemplos:
Teu avô1 ó Asc/épio1 foi o primeiro inventor da
medicina.
Dedicaram-lhe um templo no monte da Líbia1 perto da Praia
dos Crocodilos. É lá que repousa o homem que ele foi1 isto é1
o seu corpo.
Porém ·q. resto dele1 ou antes ele todo- se é que o homem
todo está no sentimento da vida- 1 voltou ao Céu numa
condição melhor} e agora1 com a sua divindade1 presta aos
homens enfermos os socorros que costumava prestar com a
arte da medicina 3.
Ei-lo pois a afirmar que um morto é adorado como um
deus no próprio lugar onde tinha a sua sepultura. Mas
engana-se e engana-nos ao dizer que ele voltou ao Céu.
Acrescenta ainda o seguinte:
Hermes1 o avô de quem eu tenho o nome1 não assiste e
não cura1 na cidade em que habita (a) e que traz o seu nome1
todos os mortais que de toda a parte até ele acorrem 4 •
Realmente Hermes «O antigo», ou seja Mercúrio, que ele
afirma ser seu avô, reside, ao que se diz, em Hermópolis,
cidade que dele tirou o nome. Aí estão pois dois deuses
- Escul~pio e Mercúrio- que, na sua opinião, foram
homens. Acerca de Esculápio, gregos e latinos pensam o
mesmo. Quanto a Mercúrio muitos pensam que ele não
cotrsecralum esl in monte Libyae áreA lilus crocoáilorum in quo ejus jacet mutráa-
tiUS homo, id est corpus; reliqrms etrim, vel polius lolus, si esl homo lotus in SetiSU
vilae, melior rettreavit in Caelum, omnia etiam nunc hominibus adjumtt~la praes-
tans infinnis numine nunc suo, quae soleba1 n~decitrae arte praebere.
Id. Ib., XXXVII, p. 34?.
4
Hermes, cujus avilum milri nolllttl esl, nonne in sibi cognomine patria (a)
consisti!IIS omnes mortales umlique vmientes adjuvai et conservai.
Id. Ib., XXXVIII, p. 347-348.
(a) A cidade a que se refere"é, com certeza, uma das Hermópolis
do Egipto, mas não se sabe qual.
[783]
foi um mortal, embora o.nosso Hermes afirme que ele foi
seu avô. Mas na realidade este é um e aquele é outro,
embora tenham o mesmo nome. Não insisto se um é dis-
tinto do outro. O certo é que este; como Esculápio, de
homem se tomou deus, segundo o testemunho de seu neto
Trismegisto, varão de tão grande autoridade entre os seus.
Acrescenta ainda:
Quanto a Ísis, esposa de Osíris, sabemos quanto de
bem ela faz se está propícia, e quanto pode prejudicar se está
irada 5•
Depois, para mostrar que são deste género os deuses feitos
pelos homens com a dita arte (dá assim a entender que os
demónios, na sua opinião, provêm de almas de mortos que
foram encerradas em estátuas, mercê da dita arte inven-
tada por homens presos a graves erros, incrédulos e
irreligiosos -pois esses que tais deuses faziam, almas é
que não podiam fazer), depois de ter dito acerca de fsis o
que já referi:
Quanto ela pode prejudicar se está irada 6 ,
acrescenta logo a seguir:
Na-verdad; os deuses da terra e do mundo facilmente
se irritam, pois são formados e compostos pelos homens de
uma dupla natureza 7•
Diz ele ex utraque natura (duma dupla natureza), ou seja de
alma e corpo, sendo a alma o demónio, e o corpo o ídolo.
E prossegue: .
Daí resulta que os ídolos são chamados pelos egípcios
«santos animais» e que as diversas cidades honram as almas
s Isin vero Osiris quam multa bona praestare propitiam, quantis obesse
scimus iratam.
Id. Ib., XXVII, p. 348.
0
Quantis obesse sdmus iratam.
Cfr. nota (5).
7
Terrenis etmim diis ac mundanis facile est irasd, utpote qui sint ab homi-
nibus ex 11traque !UJfura facti atque compositi.
Asclepius. XXXVII, ed. cit. p. 348.
[784]
daqueles que foram divinizados em vida) chegando a viver
sob as suas leis e a tomar o seu nome 8•
Onde estão as fúnebres lamentações de Hermes pela
terra do Egipto, sede santissima de santuários e de templos
que um dia ficará toda cheia de sepulcros e de mortos?
Realmente, o espírito falacioso, que a Hermes inspirava
estas lamentações, foi obrigado a confessar, por seu inter-
médio, que esta terra estava já repleta de sepulcros e de
mortos adorados pelos egípcios como deuses. Mas, por seu
intermédio, era a <lor dos demónios que se expressava:
lamentavam estes a eminência das suas penas junto das
«memórias» dos santos mártires. E que será em muitos
destes sítios que eles sofrerão torturas, farão confissões e
serão expulsos dos corpos dos possessos.
[785]
CAP[TULO XXVII
1
As coroas e as palmas eram e são os símbolos da vitória.
[787]
Todas as bomen gens trazidas pelos fiéis aos túmulos
dos mártires são, portanto, testemunhos prestados sua
memória- não são ritos nem sacrillcios oferecido aos
mortos como se deuses fossem.
Alguns· transportam para lã mesmo alimentos- o
que não fazem os melhores cristãos e, na maior parte das
terras não há esse costwne. Aliás, os que o fazem, depois
de colocarem os alimentos sobre o túmulo e de recitarem
as suas orações, levam-nos para os comerem ou mesmo
para os distribuírem pelos indigentes, desejando apenas
santificã-los pelos méritos dos mártires em nome do Senhor
dos mártires. Mas quem conhece o único sacri6cio dos
cristãos que também lá é oferecido, sabe que não se trata
d acrillcios oferecidos aos mártires.
Nós não veneramos os nossos mártires nem com
honras divinas nem com crimes humanos como fazem os
pagãos com os se~ deuses. Nós não lhes oferecemos sacri-
6cios nem transformamos as torpezas em cerimónias
sagradas. Pelo contrário, acerca de Ísis, esposa de Osíris,
deusa do Egipto, e acerca dos seus antepassados que,
segundo consta das suas escrituras, foram todos reis {esta
fsis quando oferecia um sacri6cio aos seus ant p ssados
encontrou um feixe de cev da e apresentou as espigas ao
rei, seu marido, e a Mercúrio, conselheiro deste rei-
donde pretenderem que ela e Ceres são a mesma), acerca
de f is e dos seus antepassados leiam os que quiserem e
puderem, e nisso meditem os que já leram, quantas e
quão grandes são as maldades destes (contadas não por
poetas, mas constantes dos seus livros religiosos) que Ale-
xandre relatou por escrito a sua mãe Olimpíada de acordo
com as revelações do sacerdote Leão- e verão a favor de
que homens, depois de mortos, e de que factos foi insti-
tuído culto como se deuses fossem!
Não ousem comparar, seja no que for, tais deuses,
mesmo que os tomem por deu es, aos nossos santos márti-
res que, mesmo assim, não tomamos por deuses. Nós não
instituímos sacerdotes em sua honra, nós não lhes ofere-
[788]
cemos sacrificios - o que seria inconveniente, abusivo, ilí-
cito, pois só a Deus estão· reservados. Nem nos divertimos
com os seus crimes nem com esses jogos torpes com que
celebram as inf'amias dos seus deuses- quer eles as tenham
cometido quando eram homens, quer as tenham inven-
tado, se as não cometeram, para agra~o dos maléficos
demónios. Não foi a um demónio deste género que Sócra-
tes teve como Deus, se é que algum teve! Mas com cer-
teza, querendo sobressair nessa art<:!, .foram eles que pro-
porcionaram um deus semelhante a um homem inocente e
alheio àqu~la arte de fabricar deuses.
Para quê mais? Ninguém duvida, por muito pouco
esperto que seja, de · que estes espíritos não devem ser
venerados, tendo em mira a vida bem-aventurada que virá
depois da morte. Mas dirão talvez: todos os deuses são
bons, mas, quanto aos demónios, uns são bons outros são
maus. Aos considerados bons é que se deve prestar culto
para se chegar à vida eternamente feliz.
No próximo livro veremos quanto vale esta opinião.
[789]
ÍNDICE DOS CAPÍTULOS
VOLUMEI
PRIMEIRA PARTE
A MÀNEIRA DE PREFACIO 1
NOTA BIOGRAFICA SOBRE SANTO AGOSTINHO 7
1- Terra Natal. 9
2- Pais de Agostinho. 10
3- Infància livre e descuidada. 11
4- Primeiras letras. 13
5- Férias de um adolescente. 15
6- Melhores tempos. Conversão de Patrício. 16
7- Em Cartago- o deslumbramento! 17
8- Morte de Patrício. Os amigos de Agostinho. 19
9- Leitura de "Hortênsio" e maniqueísmo. 20
10- De regresso a Ta gasta, Agostinho, incompati-
bili"za-se com a mã.e. 21
11 -De novo em Cartago. Nasce Adeodato çres-
cem as dificuldades. 23
1 - Roma aurata. 27
2- Protecção dos Maniqueus. 28
3- Encontro com Ambrósio. 29
(791]
4- A vida em Milão. 31
5- Problema do mal. Encontros com Simplício e
·Ponticiano. 33
6- A graça bate à porta. 37
1 - Cassicíaco. 38
2-Êxtase de Óstia. Morte de Mónica. 45
3 - Regresso à Africa. Vida comunitária. Morre
Adeodato. 47
4- O presbítero Agostinho. 49
5- As dificuldades amontoam-se. 51
6- Ago,stinho, bispo. 53
TRANSCRIÇOES 85
[792]
SEGUNDA PARTE
A CIDADE DE DEUS
LIVRO I
- Censura os pa~os gue responsabilizam pelas calamidades
mundiais, em especial a da recente devastação de Roma pelos
Godos, a · religião cristã, por ter provocado a supressão do
culto dos deuses.
-Trata dos bens e dos males que, como é costume acontecer,
nessa ocasião foram comuns a bons e maus.
- Repele energicamente a insolência dos que apresentam a
objecção de ter sido ofendido pelos soldados o pudor das
mulheres.cristãs.
PREFACIO:
Motivo e argumento da presente obra. 97
CAPITULO I
Acer:ca dos inimigos do nome de Cristo que, por
causa de Cristo, os bárbaros pouparam durante
a devastação de Roma. 99
CAPITULO 11
Nunca numa guerra, os vencedores pouparam os ven-
cidos por amor aos seus deuses. 103
CAPITULO III
Quão imprudentemente os Romanos acreditaram que
os deuses Penates impotentes para guardarem
Tróia, os haviam de proteger. 105
CAPITULO IV
O asilo de Juno em Tróia a ninguém salvou das mãos
dos Gregos. Pelo contrário, as basilicas dos após-
apóstolos livraram todos os que a elas se acolhe-
ram, do furor dos bárbaros. 109
[793]
CAPITULO VI
Nem os próprios Romanos vez alguma pouparam os
vencidos que se refugiavam nos templos das
cidades conquistadas. 113
CAPITULO VII
As crueldades cometidas na destruição de Roma. são
o resultado dos hábitos de guerra; ao passo que
a clemência, então verificada, resulta do poder
do nome de Cristo. 115
CAPITULO VIII
Quase sempre as graças e as desgraças são comuns a
bons e maus. 117
CAPITULO IX
Causa dos castigos que asingem tanto os bons como
os maus. 121
CAPITULO X
Os santos nada perdem quando perdem as co1sas
temporais. 125
CAPITULO XI
Fim da vida temporal-longa ou breve. 13,3
CAPITULO XII
Mesmo que tenha sido negada sepultura aos corpos
hu~nos- com isso de nada são privados os
cristãos. 135
CAPITULO XIII
Porque se devem sepultar os corpos dos Santos. 139
CAPITULO XIV c
No·seu cativeiro nunca aos santos faltaram as conso-
lações divinas. 141
CAPITULO XV
Régulo, que deu urri exemplo ao suportar o cativeiro
espontaneamente por motivos religiosos, nunca
· foi socorrido pelos deuses que adorava. 143
CAPITULO XVI
Se a violação das virgens santas, suportada sem con-
sentimento da sua vontade durante o cativeiro,
poderá manchar a virtude de espírito. 147
CAPITULO XVÚ
A morte voluntária por medo à dor ou à desonra. 149
[794]
CAP(TULO XVIII
Violência e paixão carnal alheias, sofridas no corpo
da vitima contra sua vontade. 151
CAPITULO XIX
Lucr~cia, que se .matou devido à violência nela per-
petrada. 153
CAPITULO XX
Não há autoridade que permita aos. cristãos, seja
por que razão for, que voluntariamente acabem
com a própria vida. 157
CAP(TULO XXI
Caso em que a execução do homem não constitui
o crime de homiádio. 161
CAPITULO XXII
A morte voluntária jamais pode constituir uma prova
de fortaleza de ânimo. 163
CAPITULO XXIII
Valor do exemplo de Catão, que se suicidou por não
poder suportar a vitória de César. 165
CAPITULO XXfV
Régulo foi mais corajoso do que Catão, mas os cris-
tãos são-no muito mais. 167
CAPITULO XXV
Não se deve evitar um pecado com outro pecado. 169
CAP(TULO XXVI
Quando é cometido pelos santos aquilo que não é
permitido- deve-se indagar porque é que foi
cometido. 171
CAPITULO XXVII
Deve-se desejar a morte voluntária para evitar o pe-
cado? 173
CAPITULO XXVIII
Razão por que Deus permitiu que a lasávia do ini-
migo se satisfizesse nos corpos das pessoa con-
tinentes. 175
CAPITULO XXIX
Que devem responder o servidores de Cristo aos in-
fiéis quando estes os exprobram por não os ter
livrado do furor dos inimigos. 179
(795]
CAPITULO XXX
Os que se queixam dos tempos cristãos pretendem
encher-se de vergonhosas prosperidades. 181
CAPITULO XXXI
Através de que graus foi aumentando entre os Roma-
nos a a,nbição do poder. 183
CAPITULO XXXII
Instituição dos jogos cénicos. 185
CAPITULO XXXIIl
Nem a destruição da pátria conseguiu corrigir os vi-
cios dos Romanos. 187
CAPITULO XXXIV
A clemência de Deus mitigou a ruína da Urbe. 189
CAPITULO XXXV
Escondidos entre os ímpios há filhos da Igreja e na
Igreja há falsos cristãos. 191
CAPITULO XXXVI
Assuntos a tratar na· sequência desta obra. 193
LIVRO II
No qual se discutem os males que, ames de Cristo, quando
vigorava o culto dos falsos deuses, os Romanos sofreram;- e
se demonstra:
-primeiro- que se acumularam, com a colaboração dos falsos
deuses, os maus costumes e os vícios da alma, únicos, ou pelo
menos, os mais graves males dignos de consideração;
- segundo- que os Romanos não foram destes males libertados
por esses falsos deuses.
CAPITULO 1
Método à ser aplicado por necessidade da discussão. 197
CAPITULO II
Do que foi exposto no livro primeiro. 199
CAPITULO Ill
Necessidade de recorrer à história para d~monstrar
que rnale~ acont~~ram aos Romanos ~uando,
antes da propagação da religião cristã, prestavam
culto aos deuses. 201
[796]
CAP[TULO IV
Os devotos dos deuses nenhum preceito de vida hon-
rada receberam deles e até nos seus actos de
culto praticavam torpezas. 203
CAPITULO V
Obscenidades com que os seus adoradores honravam
a mãe dos deuses. 205
CAP[TULO VI
Os deuses pagãos nunca estabeleceréim normas de
conduta. 207
CAP[TULO Vll
Sem a autoridade divina, são inúteis as descobertas
ftlosóficas: o que os deuses fazem arrasta muito
mais facilmente os homens ao vício do que o
que os homens discutem. 209
CAPITULO VIII
Jogos cénicos pelos quais os deuses se aplacam em
vez de se ofenderem com as representações das
suas torpezas. 211
CAPITULO IX
O que pensavam os antigos romanos dps desmandos
poéticos que os Gregos, seguindo o parecer dos
deuses, quiseram que fossem livres. 213
CAPITULO X
Com que arte de ca~ dano pretendem os demónios
que sejam narrados os seus falsos ou verdadeiros
crimes. 217
CAPITULO XI
Entre os Gregos, os actores eram admitidos à admi-
nistração pública, porque seria injusto que fos-
sem desprezados pelos homens os que aplaca-
vam os deuses. 219
CAPITULO XII
Os Romanos, cirando aos poetas a liberdade em rela-
ção aos humanos e concedendo-a em relação
aos deuses, pensaram melhor de si do que dos
deuses. 221
CAPITULO XIÍI
Os Romanos deviam ter compreendido que eram in-
dignos de honras divinas aqueles seus deuses que
desejavam ser venerados com diversões torpes. 223
(797]
CAPITULO XIV
Platão, que nunia cidade morigerada não deixou lu-
gar para os poetas, foi melhor do que aqueles
que desejaram que fossem os deuses venerados
com representações cé.nicas. 'lZl
CAPITULO XV
Não foi a razão mas a adulação que levou os Roma-
nos a criarem para si alguns deuses. 231
CAPITULO XVI
Se aos deuses interessasse para alguma coisa a justiça,
seria deles que os Romanos teriam· recebido as
normas de conduta em vez de pedirem leis a
outros homens. 233
CAPITULO XVII
O rapto das SabiDas e outras iniquidades que, noutros
tempos, vigoravam e até eram louvadas na ci-
dade romana. 235
CAPITULO XVIU
O que a História de Salústio comprova acerca dos
costumes dos Romanos refreados pelo medo ou
relaxados pela confiança. 239
CAPITULO XIX
Corrupção do Estado Romano ·antes de Cristo ter
feito desaparecer o culto dos deuses. 24~
CAPITULO XX
A felicidade de que queriam gozar e o género de
vida que queriam levar os que acusam os tempos
da religião cristã. 245
CAPITULO XXI
Opinião de Ccero acerca do Estado Romano. 249
CAPITULO XXII
Nenhuma preocupação tiveram os deuses dos Roma-
nos em que a República não se arruinasse em
consequência·dos maus costumes. 255
CAPITULO XXUI
As alterações nas empresas temporais não dependem
do favor ou da hostilidade dos demónios, mas
da decisão do verdadeiro Deus. 259
(798]
CAPITULO XXIV
As façanhas de SuJa foram abertamente favorecidas
pelos demónios. 263
CAPITULO XXV
Os espiritos malignos incitam os homens ao crime e,
para que o cometam, apresentam-lhes a autori-
dade divina do seu exemplo. 267
CAPITULO XXVI
Conselhos secretos dos deuses relativos aos bons cos-
tumes, ao mesmo tempo que, em público, se
ensinava toda a casta de maldades nos actos de
culto. 271
CAPITULO XXVll
Sob o pretexto de apaziguarem os deuses, os Roma-
nos, ao sacralizarem os jogos obscenos, destrui-
raro a disciplina pública. 275
CAPITULO XXVlll
Carácter salvífico da religião cristã. 277
CAPITULO XXIX
Exortação aos Romanos para que abandonem o culto
dos deuses. · 279
LIVRO III
Tal como no livro anterior acerca dos males dos costumes e
do espirita, também neste, acerca dos males exteriores e do
corpo, Agostinho mostra que os Romanos, desde a fimcbç:lo
de Roma, foram por eles ininterruptamente a.tormentados sem
que os falsos ~euses, que livremente adoravam antes da vinda
de Cristo, nada fizessem para afastar tal ~nero de males.
CAPITULO I
Únicos males de que os maus têm medo e de que o
mundo sempre padeceu quando prestava culto
aos deuses. · 285
CAPITULO 11
Tiveram os deuses, que eram adorados igualmente
por Romanos e Gregos, motivos para permiti-
rem a destruição de Tróia? 287
(799]
CAPITULO III
Os deuses não podiam ser ofendidos pelo adultério
de Páris, pois que, conta-se, entre eles o adulté-
rio era frequente. 289
CAPITULO IV
Opinião de Varrão, segundo a qual é útil que os ho-
mens se digam, embora mentindo, ftlhos de
deuses. 291
CAPITULO V
Não está provado que os deuses tenham punido o
adultério de Páris, pois não se vingaram do da
mãe de Rómulo. 293
CAPITULO VI
Os d~uses não se vingaram do fratriódio de Rómulo. 295
CAPITULO VIl
Destruição de Tróia, consumada por Fímbria, gene-
ral de Mário. 297
CAPITULO VIII
Deveria Roma confiar nos deuses de Ilion? m
CAPITULO IX
Deverá considerar-se cómo um dom dos deuses a
paz que se verificou durante o reinado de
Numa? 301
CAPITULO X
Seria de desejar q_ue o Império Romano crescesse à
custa de tantas guerras, quando poderia manter-
-se em paz e segurança com o mesmo zelo que
tinha havido no reino de Numa? 303
CAPITULO XI
As lápas da estátua de Apolo Cumano revelaram,
julgou-se, a derrota dos Gregos a quem ele não
pôde prestar ajuda. 307
CAPITULO XII
Quantos deuses acrescentaram os Romanos contra a
Constituição de Numa, cuja multidão em nada
os ajudou. 309
CAPITULO XUI
Com que direito, por que tratado obtiveram os Ro-
manos as primeiras mulheres em casamento. 311
(800]
CAPITULO XIV.
Guerra impiedosa dos Romanos ~ontra ~s Albanos,
e vitória alcançada pela paixão de donúnio. 315
CAPITULO XV
O que foram a vida e a morte dos reis romanos. 321
CAPITULO XVI
Primeiros cônsules romanos: cada um deles expulsa
o 911tro da pátria e, logo depois, ele próprio
morre, após o mais atroz dos parriódios come-
tidos em Roma, ferido por um inimigo ferido. 325
. CAPITULO XVII
Males com que foi afectada a República Romana
após os começos do governo consular, sem que
a ajudassem os deuses que ela venerava. · 329
CAPITULO XVlll
Que enormes desgraças afligiram os Romanos durante
as Guerras Púnicas, apesar do pedido de socorro
em vão dirigido aps deuses. 337
CAPITULO XIX
Aflições da Segunda Guerra Púnica em que se con-
sumiram as energias de ambas as partes. 341
CAPITULO XX
Destruição dos Sanguntinos aos quais, quando esta-
vam a morrer por amizade aos Romanos, os
deuses nenhum auxílio prestaram. 343
CAPITULO XXI
Quão ingrata foi a cidade de Roma para com Cipião,
seu libertador! Cos.tumes que ela praticava no
tempo em que Salústio a descrevia como a me-
lhor. 347
CAPITULO XXIl
Edito de Mitrídates ordenando que se matassem todos
os cidadãos romanos que se encontrassem na
Asia. 351
CAPITULO XXlll
Males internos que agitaram a República Romana
depois de terem.sido precedidos de um prodígio;
a raiva de que foram atacados todos os animais
domésticos. · 353
. (801)
CAPITULO XXIV
Conflitos civis provocados pelas sedições dos Gracos. 355
CAPITULO XXV .
O templo da Concórdia erigido por um senatus- ·
· -consulto no sítio em que tiveram lugar as sedi-
ções e as matanças. 357
CAPITULO XXVI
Diversos géneros de guerra que seguiram depois da
dedicação de um templo à Concórdia. 359
·CAPITULO XXVII
As guerras civis de Mário e de Sula. 361
CAPITULO XXVIU
Vitória .de Sula, v?-ngadora da crueldade de Mário. 363
CAPITULO XXIX
Comp,aração da invasão dos Godos, com as calami-
dades que os Romanos suportaram da parte dos
Gauleses ou dos autores das guerras civis. · 365
CAPITULO XXX
Sequência de guerras que, em grande número e gra-
vidade, precederam a vinda de Cristo. 367
CAPITULO XXXI
Quão impudentemente imputam a Cristo os males
actQais aqueles a quem não é consentido o culto
dos deuses, quando tamanhas desgraças aconte-
ceram no tempo em que eram adorados. 369
LIVRO IV
Prova-se que a amplidão e a duração do Império Romano não
se devem nem a Júpiter nem aos deuses dos pagãos. Os pode-
res destes deuses ~tavam restringidos a particulares e ínfimos
cometimentos. ~ obra apenas do verdadeiro Deus, autor da
felicidade. por cujo poder e decisão se constituem e se conser-
vam os reinos da .Terra.
CAPITULO I
O que foi discutido no livro primeiro. 375
CAPITULO li
Assuntos contidos nos livros segundo e terceiro. 3n
(802]
CAPITULO III
Se a dilatação do Império, que só por guerras se con-
seguiu, se deve considerar um dos bens dos sábios.
e dos felizes. 381
CAPITULO IV
Os remos sem justiça assemelham-~ a uma quadr~ha
de ladrões. 383
CAPITULO V
Os gladiadores fugitivos cujo poderio se assemelhou
à dignidade régia. 385
CAPITULO VI
Ambição do rei Nino, que, para estender os seus do-
míilios, começou por declarar a guerra aos seus
vizinhós. · 387
CAPITULO VII
Serão os reinos da Terra ajudados ou abandonados
pelos deuses nq decurso do seu progresso ou do
seu retrocesso? 389
CAPITULO VIII
Com o patrocínio de que deuses julgam os Romanos
que o Império se dilatou e manteve, uma vez
que se convenceram de que a protecção de cada
coisa devia ser confiada a cada deus em parti-
cular. 391
CAPITULO IX
Se a extensão e a duraç~o do Império Romano se
devem atribuir a Júpiter, que os seus adoradores
consideram como o maior dos deuses. 393
CAPITULO X
Opiniões seguidas por aqueles que propuseram deuses
diferentes para diferentes partes do Mundo. 395
CAPITULO XI
Os doutores dos pagãos defendem a opinião de que
os diversos deuses mais não são que um e o mes-
mo Júpiter. 399
CAPITULO XII
Opinião dos que consideram Deus como a alma do
Mundo e o Mundo o corpo de Deus. 403
[803]
CAPITULO XIII
Segundo alguns, só os seres animados e racionais
constituem partes de um só Deus. 405
CAPITULO XIV
Atribui-se, sem razão, a dilatação dos reinos a Júpi-
ter: bastaria para isso Vitória, se elã é, como
dizem, uma deusa. 407
CAPITULO XV
Convém aos bons quererem estender a sua domina-
~? ~
CAPITULO XVI
Porque é que os Romanos, que assinalam um deus
para cada acontecimento e para cada movimento
· quiseram que o ~emplo da Quietude ( Quies)
ficasse fora de portas. 411
CAPITULO XVII
Se o poder de Júpiter é soberano, deverá Vitória ser
ainda c9nsiderada como deusa? 413
CAPITULQ XVIII
Como é que distinguem a Felicidade da Fortuna os
que as consideram como deusas? · 415
CAPITULO XIX
A Fortuna feminina. 417
CAPITULO XX
A Virtude e á Fé que os pagãos. louvaram com tem-
plos e culto, deixando0 de lado outros bens que
da mesma forma deviam ser venerados, se é
que está certo que lhes atribuam a divindade. 419
CAPITULO XXI
Os que não compreendem que haja um só Deus deve-
riam contentar-se pelo menos com a Virtude e
a Felicidade. 421
CAPITULO XXII
Culto dos deuses. Varrão gaba-se de ter trazido aos
Romanos esta ciência. 425
CAPÍTULO XXIII
A Felicidade, à qual os Romanos, ador~dores de mui-
tos deuses, durante muito tempo não prestaram
honras divinas, bastaria ela sozinha com exclu-
são de todos os demais. 427
[804]
CAPITULO XXIV
Com que argumentos defendem. os pagãos que se
devem adorar os dons clivinos tal como os pró-
prios- deuses. 431
CAPITULO XXV
Deve-se adorar um s6 Deus de quem, embora se
ignore o nome, todavia se tem o sentimento de
que é Ele o dispensador da felicidade . 433
CAPITI.)LO XXVI
Jogos c~nicos. Os deuses exigiram dos seus adorado-
res que os celebrassem em sua homenagem. 435
CAPITULO XXVII
As três categorias de deuses acerca das quais cliscor-
reu o pontífice Cévola. 437
CAPITULO XXVIII
O culto dos· deuses serviu aos Romanos para obterem
e dilatarem o seu Império? 439
CAPITULO XXIX
Falsidade do auspício que pareceu inclicar aos Roma-
nos a fortaleza e a estabelidade do Império. 441
CAPITULO XXX
Que é que confessam pensar dos deuses gentios os
seus próprios adoradores. . 445
CAPITULO XXXI
Opinião de Varrão, que reprova as crenças populares
e, embora não tenha chegado à crença do ver-
dadeiro Deus, pensa que se deve adorar a um
só Deus. 449
CAPITULO XXXII
Sob que pretexto de utilidade os chefes das nações
quiseram que as falsas religiões se mantivessem
entre os povos que lhes estavam submetidos. 453
CAPITULO XXXIII
É pelo juizo e pelo poder do verdadeiro Deus que
os tempos de todos os reis e de todos os impérios
são ordenados. 455
CAPITULO XXXIV
O reino dos Judeus foi insrituido e conservado pelo
único e verdadeiro Deus enquanto eles se man-
tiveram na verdadeira religião. 457
[805)
LIVRO V
Começa por procurar extirpar a crença no destino para que se
não mantenham seguros os que a ele atribuem·o poderio e o
incremento romano, já que, como se demonstrou no livro pre-
cedente, não é possível atribuí-lo' aos falsos deuses. Daí a
digre.ssão até à questão da presciência de Deus, ficando pro-
vado que ela não nos priva do livre arbítrio da nossa vontade.
Depois trata dos costumes dos antigos romanos e de como o
verdadeiro Deus, que eles não adoravam, os ajudou a engran-
decer o Império, quer por seus méritos, quer por decisão
di'vina. Por fim dá parecer acerca da verdadeira felicidade dos
imperadores cristãos.
CAPITULO I
A origem do Império Romano bem como a de todos
os reinos não foi fortuita nem resultou da posi-
ção das estrelas. 463
CAPITULO II
A saúde dos gémeos- ora parecida, ora diferente. 467
. CAPITULO III
Argumento da roda do oleiro utilizado pelo astrólogo
Nigídio na questão dos gémeos. 469
CAPITULO IV
Os gÚneos Isaú e Jacob foram muito diferentes na
qualidade .do seu comportamento e das suas
acções. 471
CAPITULQ V
Como é ·que os astrólogos foram leva.dos a professar
· uma ciência vã. · 473
CAPITULO VI
Os gémeos de sexo diferente. 477
CAPITULO VII
EscoUla do dia em que se casa, em que se planta al-
guma coisa no campo, em.que se semeia. 479
C~PlTULO VIII . .
·Os que dão o nome de--d·çstino, não .à posição dos
astros mas à conexão · das causas que depende
da vontade de Deus. 483
CAPITULO IX
A pres-ciência de Deus e a livre vontade do homem,
contra a defmição de acero. 485
CAPITULO X
Se alguma forma de necessidade domina a vontade
humana. 493
CAPITULO XI
A Providência universal de Deus a cujas leis tudo
está submetido. 497
CAPITULO XII
Por que costumes os antigos Romanos mereceram
que o verdadeiro Deus, embora ainda o não
adorassem, dilatasse o seu Império. 499
CAPITULO XIII
O amor da glória, embora seja um vício, é conside-
rad.o como uma virtude porque impede vícios
matores. 509
CAPITULO XIV
É preciso reprimir o amor do louvor humano porqqe
toda a glória dos justos está em Deus. 511
CAPITULO V
Recompensa temporal que Deus concedeu aos bons
costumes dos Romanos. 515
CAPITULO XVI
Recompensa dos santos cidadãos da Cidade eterna
aos quais são úteis os exemplos das virtudes dos
Romanos. 517
CAPITULO XVII
Que frutos colheram os Romanos das guerras e que
aproveitaram estas aos vencidos. 519
CAPITULO XVIII
Quão alheios se devem manter os cristãos da jactân-
cia se algo tiverem feito por amor à pátria eter-
na, quando os Romanos tamanhas proezas reali-
zaram por amor da glória e da Cidade terrena. 521
CAPITULO XIX
Diferem entre si a paixão da glória e a paixão do
donúnio. 529
[807]
CAPITULO XX
Pôr as virtudes a.o serviço da glória humana ~ tão
vergonhoso como pô-las a.o serviço da paixão
corporal. 533
CAPITULO XXI
O lm~rio Romano foi disposto pelo verdadeiro Deus
de quem provém todo .o poder e por cuja pro-
vidência tudo é governado. 535
CAPITULO XXII
É do juizo de Deus que dependem a duração e .o
desenlace das guerras. 5'57
CAPITULO XXJII
A guerra em que foi vencido, num só dia, com as
suas imensas tropas, Radagaiso, rei dos godos e
adorador dos demónios. 539
CAPITULO XXIV
A verdadeira felicidade dos imperadores cristãos. 541
CAPITULO XXV
Prosperidade que Deus concedeu ao imperador cris-
tão Constantino. 543
CAPITULO XXVI
A fé e a piedade de Teodósio Augusto. 545
LIVRO VI
At~ aqui, Agostinho escreveu CO!ltra os que julgam que aos
deuses deve ser prestado culto no interesse desta viela tempo-
~ . Agora enfrenta os que pretendem que se lhes preste culto
tendo em vista a viela eterna. A estes refutará Agostinho nos
cinco livros que se seguem; e, em primeiro lugar, põe em
evidência o abaixo conceito em que tinha os deuses um escritor
tão apreciado p.a. te.ologia gentflica como foi Varrio. Alega
que, segundo Varrão, existem três categorias de teologia: a
fabulosa, a natural e a civil; e, tratando da fabulosa e ela civil,
demonstra que em na~ podem estas categorias contribuir
para a fdicidacle da vida futura.
CA.PITI,JLO I
Dos que dizem q~ adoram os deuses tendo em vista,
não a vida presente, mas sim a vida eterna. 553
[808]
CAPITULO 11
Opinião de Vamo acerca do culto e es~cies de
deuses dos gentios. Teria sido mais reverente
se se cala5se em vez de revelar o que revelou. 559
CAPITULO lli
Plano dos livro de Varrão acerca das Antiguidades
das coisas humanas e divinas. 563
CAPITULO IV
Resulta da dissertação de Varrão que os adoradores
dos deuses consideram as instituições humanas
anteriores ~ instituições divinas. 565
CAPITULO V
Dos três géneros de teologia, segundo Varrão: o
fabuloso, o natur.U e o civil. 569
CAPITULO VI
Da teologia mftica ou fabulosa e da teologia civil,
contra Varrão. 573
CAPITUW VIl
Semelhança e concordância entre a teologia mftica e
a teologia civil. sn
CAPITULO VIU
interpretações naturais que os doutores pa~os pre-
tendem dar acerca dos seus deuses. 583
CAPITULO IX
Atribuições de cada um dos deuses. 587
CAPITULO X
Da liberdade de esplrito de Séneca, que cntlCQ a
teologia civil com mais veemência do que Var-
rão criticou a teologia fabulosa. 593
CAPITULO Xl
O que Séneca pensava dos Judeus. 599
CAPITULO XII
Verificada a inutilidade dos deuses gená.lico , que
nem à vida temporal conseguem prestar ajuda,
é indubitivel que eles a ninguém slo capaze; de
conceder a vida eterna. 601
(809]
LIVRO VI!
Principais deuses da teologia civil: Jano, Júpiter, Saturno e
outros por cujo culto se não alcança a felicidade da vida eterna.
CAPITULO I
Não se encontra, com demonstrámos, a característica
de deitúuk na teologia civil. Será que a podere-
mos achar nos deuses selectos? . W7
CAPITULO .11
Quais são os deuses escolhidos e se estes se devem con-
siderar libertos das funções dos deuses infttWres. fU}
CAPITULO III
Não há qualquer motivo assinalável na escolha dos
deuses, pois que muitos deuses inferiores exer-
cem funções mais elevadas do que as dos esco-
lhidos. · 611
CAPITULO IV
Está-se melhor com os deuses inferiores, que de ne-
nhuma infâmia estão manchados, do que com
os escolhidos, cujas torpezas são· tão celebradas. 617
CAPITULO V
Doutrina mais secreta dos pagãos e interpretações
6sicas. 619
CAPITULO VI
Na opinião de Varrão, Deus é a alma do Mundo,
embora nas suas partes possua numerosas almas
de natureza divina. 623
CAPITULO VIl
Será racional fazer de Jano e de Término duas divin-
dades distintas? 625
CAPITULO VIII
Porque é que os adoradores de Jano, que o represen-
tam com duas caras, pretendem também apre-
sentá-lo com quatro faces. 6Z7
CAPITULO IX
Poder de Júpiter. Comparação deste com Jano. 6'19
CAPITULO X
Justifica-se a distinção de Jano e Júpiter? 633
[810]
CAPITULO XI
Apelidos de Júpiter que se referem não a muitos mas
a um e mesmo deus. 635
CAPITULO Xll
Júpiter também se chama Pecúnia. 637
CAPITULO XJll
Da explicação do que t Saturno e Génio, resulta que
os dois e Júpiter ão um só. 639
CAPITULO XIV
Funções de Mercúrio e de Marte. 641
CAPITULO XV
Astros que os pagãos designaram com o nome de
deuses. 643
CAPITULO XVI
Acerca de Apolo e de Diana e de outros deuses esco-
lhidos, que pretenderam identificar com as par-
tes do Mundo. 645
CAPITULO XVII
O próprio Varrilo apresenta como duvidosas as suas
opiniões acerca dos deuses. 647
CAPITULO XVIU
Qual a causa mais verosimil da propagação do erros
do paganismo? 649
CAPITULO XlX
Interpretações acerca do culto prestado a aturno. 651
CAPITULO XX
Os misttrios de Ceres Eleusina. 655
CAPITULO XXI
Torpeza dos mistério de Líbero. 657
CAPITULO XXII
Neptuno, Salãcia e Verúlia. 659
CAPITULO XXXll
Acerca da Terra-que Varrão afuma ser uma deusa
porque a alma do Mundo, que, na sua opinião,
é deus, pe~ctra também esta parte inferior do
seu corpo e lhe comunica uma força divina. 661
CAPITULO XXIV
Os apelido de Telure e sua explicação: designam
sem dúvida várias virtudes, mas não podem jus-
tificar a crença em vários deuses. 665
(811]
CAPITULO XXV
Interpretação dos sábios da Grécia acerca da mutila-
ção de Atis. 669
CAPITULO XXVI
A torpeza dos mistérios da Grande-Mãe. 671
CAPITULO XXVII
Explicações flsicas imaginadas por alguns que não
honram a verdadeira divindade e cujo culto não
é o que convém à verdadeira divindade. 675
CAPITULO XXVIU
A teologia de Varrão está em total desacordo consi-
go própria. 679
CAPITULO XXIX
Tudo o que os fisiólogos atribuem ao Mundo e às
suas partes deve ser atribuído ao único Deus
verdadeiro. 683
CAPITULO XXX
Por que faculdade-sentimeato religioso ( qua pitta~}
distinguimos o Criador das criaturas de modo a
não adorarmos, em vez de um só, tantos deu.ses
quantas as obras de um só autor. 685
CAPITULO XXXI
BeneBcios que, além do gerais, Deus concede aos
que seguem a verdade. 689
CAPITULO XXXII
O sacramento da Redenção de Cristo nunca faltou
nos tempos passados e mpre foi anunciado por
diversos sinais. 691
CAPITULO XXXIII
Só a religião cristã pôde descubrir o engano dos c: pi-
rito malignos que se alegram com os erros do
homens. 693
CAPITULO XXXIV
Dos livros de Numa Pompilio que o Senado mandou
queimar para se não divuJgarem as causas das
instituições religiosas tal qual como neles vinham
expostas. 695
CAPITULO XXXV
Da hidromancia, na qual Numa foi mistificado por
certas imagens dos demónio . 697
(812]
LIVRO Vlli
Aborda o terceiro género de Teologia, ch.amada natural, e trata
da ques~o dos deuses a essa teologia ligados- isto ~. se o
culto desses deuses tem interesse para se conseguir a vida bem-
-aventurada que surgir~ depois da morte. A discws3o travar-
-se-~ com os platónicos porque estes estio muito acima dos
outros ft.lósofos e estio mais próximos da verdade da f~ cris~.
Antes de tudo, refutam-se aqui Apuleio e todos os que preten-
dem que se deve prestar culto aos demónios como mediadores
e in~rpretes entre os deuses e os homens; demonstra-se que
esses demónios estJo sujeitos aos vícios e in.troduz.iram o que
os homens honrados e prudenteS reprovam e condenam, ou
seja: as sacrilegas ficções dos poetas, os ludíbrios teatrais, os
maleScios e os crimes das artes m~gicas. Averiguado que eles
favorecem e se comprazem com tudo isto, conclue-se que de
modo nenhum se podem conciliar os homens com os deuses
bons.
CAPITULO I
~ com os filósofos que professam a mais elevada
doutrina que se deve discutir a questão da teO-
logia natural. 703
CAPITULO 11
As duas escolas ftlosóficas- a itálica e a jónica- e
o seus fundadores. 705
CAPITULO llJ
Doutrina de Sócrates. 7(]7
CA PITULO IV
Platão, que foi o principal disápulo de Sócrates, di-
vidiu a ftlosofia em três panes. 7f'fi
CAPITULO V
Em matéria de teologia é de preferência com os
platónico que se deve discutir, pois as suas opi-
niões são melhores do que as dos outro filósofos. 713
CAPITULO VI
Pensamento de Platão acerca da chamada filosofia
6sica. 717
(813]
CAPITULO VIl
Os platónicos devem ser considerados muito superio-
res aos outros filósofos em lógica ou fllosofta
racional. 721
CAPITULO Vlll
Também na fllosofia moral os platónicos têm a pri-
mazia. 7'1:3
CAPITULO IX
Da filosofia que mais se aproxima da verdade da fé
cristã. 72!5
CAPITULO X-
Excelência da religião Cristã entre as disciplinas reli-
giosas. 7Zl
CAPITULO XI
Onde terá Platão adquirido uma compreensão que
tanto se aproximou da doutrina cristã? 731
CAPITULO Xll
Mesmo os platónicos, apesar da sua justa ideia de um
único Deus verdadeiro, acharam que era neces-
sário o culto a vários deuses. 735
CAPITULO Xlll
Parecer de Platão que definiu os deuses como seres
necessariamente bons e amigos dos homens. 737
CAPITULO XIV
Opinião dos que admitem três géneros de almas ra-
cionais: a dos deuses celestes, a dos demónios
aéreo e a dos homens terrestres. 7?1)
CAPITULO XV
Os demórúos não são superiores aos homens nem
pelos corpos aéreos nem pela altitude dos luga-
res em que habitam. 743
C APITULO XVI
O que pensa o platónico Apuleio dos costumes e
acções dos demónios. 745
CAPIT ULO XVII
Convirá ao homem adorar espíritos de cujos vicias
se deve libertar? 747
(814)
CAPfTULO XVIII
Que religião é essa que ensina aos homens que devem
recorrer aos demónios para se recomendarem
aos deuses bons? 751
CAPITULO XIX
A magia, que se apoia na protecção dos espíritos
malignos, é uma arte impia. 753
CAPITULO XX
. Será de crer que os deuses bons preferem comunicar
com os demónios a fazê-lo com os homens? 757
CAPITULO XXI
Será que os deuses se utilizam dos demónios como
mensageiros e intérpretes? Será que não sabem
que são enganados? Ou querem sê-los? 759
CAPITULO XXII
Contra a opinião de Apuleio, impõe-se a rejeição do
culto dos demónios. 763
CAPITULO XXIU
O que pensava Hermes Trismegisto da. idolatria e
como pôde ele saber que seriam abolidas as su-
perstições do Egipto. 765
CAPITULO XXIV
Hermes reconhece o erro dos seus antepassados mas
lamenta que ele venha a ser destruido. 771
CAPITULO XXV
O que pode haver de comum nos santos anjos e nos
homens. · 779
CAPITULO XXVI
Toda a religião dos pagãos se reduz ao culto dos
homens mortos. 781
CAPITULO XXVII
Maneira de os cristãos honrarem os mártires. 787
(815]
Esta 5 3 edição de A CIDADE DE D EUS, VoL. I,
de Santo Agostinho,
foi impressa e encadem ada para
a Fundação Calouste Gulbenkian,
na Gráfica ACD Print, S.A.
www.acdprint.pt
Fevereiro de 20 16