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CONFLUÊNCIA ISSN 1415-7403

Per multiplum ad unum

“As armas e padrões portugueses


postos em África, e em Ásia, e em
tantas mil ilhas fora da repartiçam
das três partes da terra, materiaes
sam, e pode-as o tempo gastar: peró
nã gastará doutrina, costumes,
linguagem, que os portugueses
nestas terras leixarem.”

(JOÃO DE BARROS, Diálogo em Louvor


da Nossa Linguagem)

N.o 31 – 1.º semestre de 2006 – Rio de Janeiro


LICEU LITERÁRIO PORTUGUÊS

CORPO DIRETIVO – 2005/2006

DIRETORIA
Presidente: Francisco Gomes da Costa
Vice-presidente: Henrique Loureiro Monteiro
1.º Secretário: Arnaldo de Figueiredo Guimarães
2.º Secretário: Francisco José Magalhães Ferreira
1.º Tesoureiro: Manuel Lopes da Costa
2.º Tesoureiro: Jorge Manuel Mendes Reis Costa
1.º Procurador: Carlos Eurico Soares Félix
2.º Procurador: Manuel José Vieira
Diretor Bibliotecário: Maximiano de Carvalho e Silva
Diretor Cultural: Carlos Alberto Soares dos Reis Martins
Diretor Escolar: Evanildo Cavalcante Bechara
Diretor de Divulgação: João Manuel Marcos Rodrigues Reino

CONSELHO DELIBERATIVO
Presidente: Manuel Paulino
1.º Secretário: Maria Lêda de Moraes Chini
2.º Secretário: Bernardino Alves dos Reis

CONSELHO FISCAL
Membros Efetivos: Albano da Rocha Ferreira
Ronaldo Rainho da Silva Carneiro
Antonio da Silva Correia

Suplentes: José Gomes da Silva


Paulo Valente da Silva
Carlos Jorge Airosa Branco

DIRETOR DO INSTITUTO DE ESTUDOS PORTUGUESES AFRÂNIO PEIXOTO


Acadêmica Rachel de Queiroz (in memoriam)

DIRETOR DO INSTITUTO DE LÍNGUA PORTUGUESA


Prof. Evanildo Bechara

DIRETOR DO INSTITUTO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA


Prof. Arno Wehling

DIRETOR DA REVISTA CONFLUÊNCIA


Prof. Evanildo Bechara

SUPERINTENDENTE
Albino Melo da Costa
CONFLUÊNCIA
REVISTA
DO
INSTITUTO DE LÍNGUA PORTUGUESA

LICEU LITERÁRIO PORTUGUÊS


Presidente: Francisco Gomes da Costa

CENTRO DE ESTUDOS LUSO-BRASILEIROS


Diretor: Antônio Gomes da Costa

DIRETORIA DO I.L.P. CONSELHO CONSULTIVO


Francisco Gomes da Costa (Presidente) Adriano da Gama Kury
Evanildo Bechara (Diretor Geral) Amaury de Sá e Albuquerque
Maximiano de Carvalho e Silva (Diretor Executivo) Carlos Eduardo Falcão Uchôa
Antônio Basílio Rodrigues Fernando Ozório Rodrigues
Horácio Rolim de Freitas Jayr Calhau
Rosalvo do Valle José Pereira de Andrade
Ricardo Cavaliere
CONFLUÊNCIA Walmírio Macedo
Diretor: Evanildo Bechara
Comissão de Redação:
Antônio Basílio Rodrigues
Horácio Rolim de Freitas
Rosalvo do Valle

Produção Gráfica
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Cx. Postal 32054
CEP 21933-970 – Rio de Janeiro – RJ
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Si chiede lo scambio
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Endereço para correspondência:


Liceu Literário Português
Rua Senador Dantas, 118 – Centro
CEP 20031-201 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Tel.: (021) 2220-5495 / 2220-5445 – Fax: (021) 2533-3044
E-mail: liceu@liceuliterario.org.br – Internet: www.liceuliterario.org.br

A matéria da colaboração assinada é da responsabilidade dos autores.


Confluência 31 5

SUMÁRIO
Pág.

Editorial (A. GOMES DA COSTA) ........................................................................ 7


Professor Ernesto de Faria Júnior
(ROSALVO DO VALLE) ................................................................................. 11
O Prof. Ernesto Faria e sua importância para os estudos de latim
HORÁCIO ROLIM DE FREITAS ........................................................................ 49
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina
(LUIZ M. M. DE BARROS / TEREZINHA BITTENCOURT) .................................. 59
Uma obra preciosa ao romanista: a Lateinische Umgangssprache
de Johann Baptist Hofmann
(EVANILDO BECHARA) ................................................................................. 83

ARTIGOS
Sobre o gerúndio e “gerundismo”:
uma análise de um assunto emotivo e polêmico
(JOHN ROBERT SCHMITZ) ............................................................................ 87
Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica
(BARBARA SPAGGIARI)................................................................................ 111
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio. Breve
percurso por textos dos séculos XIII a XVI – usos, sentidos e valores
(CARLA ABREU VAZ) ................................................................................ 127
Afinal, quem é a mulher de verdade? – um estudo lexical, antes do mais
(MARIA EMÍLIA BARCELLOS DA SILVA) ........................................................ 167
A saudade na Língua Portuguesa
(NELLY CARVALHO) .................................................................................. 183
Câmara e Câmera
(RICARDO CAVALIERE)............................................................................... 193
Aspectos lexicais do português do Brasil no século XIX
(CASTELAR DE CARVALHO) ........................................................................ 203
6

RESENHA CRÍTICA
SILVA, Amós Coêlho da & MONTAGNER, Airto Ceolin.
Dicionário latino-português.
(MARIZA MENCALHA DE SOUZA) ................................................................ 223

COLABORADORES DESTE NÚMERO ........................................... 227


Confluência 31 7

EDITORIAL

O LIVRO PORTUGUÊS NO BRASIL


Dr. Antônio Gomes da Costa

Há poucos dias, no Real Gabinete Português de Leitura, estiveram reuni-


dos professores universitários brasileiros e portugueses a discutir o problema
do livro nas relações culturais entre os países lusófonos e, de modo especial,
entre o Brasil e Portugal.
O tema é complexo e não tem sido fácil encontrar soluções, por maior que
seja o empenho de todas as partes envolvidas – autores, casas editoras, livrarias
e os próprios governos. Os impasses vêm de longe, desde o tempo das edições
“piratas’ que já irritavam o Eça de Queiroz e o Ramalho Ortigão, na altura em
que publicavam “As Farpas”, até à controvérsia criada em torno das traduções
de obras estrangeiras que, em muitos casos, são negociadas, em caráter de
exclusividade, ora para o espaço português, ora para o espaço brasileiro.
Apesar das diversas vicissitudes do “senhor mercado”, houve época, lá
pelos meados do século XX, em que o livro brasileiro era vendido regularmente
em Portugal – as obras de Jorge Amado, de Érico Veríssimo, de Gilberto Freyre,
de Manoel Bandeira, de Josué Montello, de João do Rio, de Álvaro Moreira e
de muitos outros estavam nas prateleiras não apenas das livrarias da “baixa”
lisboeta, mas também nas de qualquer loja da província. Da mesma forma que
o livro português chegava ao Brasil com pontualidade, vindo nos navios da Cia.
Nacional de Navegação ou da “Mala Real” inglesa, sobretudo ao Rio de Janei-
ro e a São Paulo, destinado às livrarias especializadas em autores portugueses,
como era o caso da “Livros de Portugal”, dirigida por Antonio Pedro Martins
Rodrigues, da “Morais” ou da “Acadêmica”, tendo a elas se juntado, numa fase
seguinte, a Livraria Camões, extensão da “Casa da Moeda” de Lisboa, que
primava pelas edições excelentes de autores clássicos. Esse foi um período em
que tivemos de um lado e do outro do Atlântico uma geração de intelectuais e de
mestres universitários, de escritores e de jornalistas, de acadêmicos e de Ho-
mens de pensamento, que em sintonia com políticos influentes, procurou enri-
quecer e dar corpo a uma comunidade de raiz lusíada em todos os domínios. E
8

o livro, nessa arquitetura, era uma lançadeira importante. Nas pautas de impor-
tação e exportação, ainda que medíocres no volume e centradas em meia-dúzia
de artigos de sobremesa, ou da saudade, o intercâmbio do livro, revistas e jor-
nais ocupava um dos lugares cimeiros, juntamente com os vinhos e os azeites.
Nas últimas décadas do século passado, entretanto, tivemos reflexos mui-
to negativos que afetaram esse comércio, sobretudo a importação do livro por-
tuguês. Primeiro, vieram as razões de natureza econômica: era impossível fixar
um preço razoável para a venda do livro importado com as desvalorizações de
um câmbio descontroladamente variável e o empate de capital a juros exorbi-
tantes. Depois, as profundas mudanças políticas, culturais, sociais e no ensino
ocorridas nos dois países (no Brasil chegou-se a acabar com os cursos de
Literatura Portuguesa numa altura em que bons especialistas implicavam com
eles) cortaram o fascínio recíproco que existia antes pelos autores de um e de
outro país e não se chegaram a conhecer os escritores mais novos salvo raras
exceções.
Coincidiram com essa fase os espasmos das crises econômicas, os pe-
quenos investimentos dos governos para criar focos de difusão da cultura na-
cional no estrangeiro, o desprezo dos currículos na apreciação dos conteúdos
gerados no outro país, as perdas no hábito da leitura e assim por diante.
O resultado de tudo isso fez com que nos últimos anos a solução para o
problema do livro português no Brasil e do livro brasileiro em Portugal passasse
a ser uma só: a edição no Brasil de autores portugueses e a edição em Portugal
de autores brasileiros. Estão aí os casos bem sucedidos de José Saramago ou
de Miguel Sousa Tavares, deste lado do Atlântico, ou de Paulo Coelho e Nélida
Piñon do lado de lá.
É claro que esta solução é facilitada quando se trata de autores conheci-
dos em que o risco das editoras é pequeno, ou nulo. No entanto, quando estão
em causa obras de escritores pouco conhecidos, ou mesmo de outros que ape-
sar do prestígio interno, resistem à edição, tudo se paralisa de novo. E nem o
apoio que vem sendo dado pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas a
algumas editoras brasileiras tem sido suficiente para estimular o lançamento
dos novos valores literários. É só ir ao Real Gabinete Português de Leitura e
verificar como há autores de sucesso em Portugal que são completamente
ignorados no Brasil.
A verdade é que sem o livro, como instrumento difusor, e sem os progra-
mas de ensino nas escolas e nas universidades, com grelhas de matérias em
que apareça transversalmente a produção de conhecimento do outro país, bra-
sileiros e portugueses cada vez mais terão modos diferentes de entender e
apreciar as próprias raízes.
Confluência 31 9

NÚMERO EM HOMENAGEM A
ERNESTO FARIA

ERNESTO FARIA
(1906 – 1962)
PROFESSOR ERNESTO DE FARIA JÚNIOR
Rosalvo do Valle
UFF-ABF-LLP

1. Introdução

Na historiografia lingüística brasileira, o nome do Professor Ernesto de


Faria Júnior (1906-1962) está indissociavelmente ligado ao movimento de reno-
vação dos estudos clássicos, de modo especial dos estudos latinos. Sempre em
dia com a bibliografia lingüístico-filológica do seu tempo, e afinado com idéias
pedagógicas renovadoras, deixou nas duas áreas uma contribuição marcante,
até hoje de leitura indispensável. Com referência à língua latina, obras sobre o
léxico e sobre a gramática, vista na perspectiva histórica ou diacrônica de sua
formação. Na área pedagógica, obras autorais ou traduções sobre a atualidade
dos estudos clássicos e sobre novas diretrizes para o ensino do latim.
Nos livros didáticos destinados ao ensino médio da época – as décadas de
40 a 60, anos dourados desta nova fase dos estudos clássicos no Brasil –, é
notável a preocupação constante com a divulgação da cultura clássica, seja
através de leituras específicas, seja através de comentários de textos, transcri-
tos sempre das melhores edições. No ensino superior, além de valiosa produ-
ção científica, é preciso considerar seu empenho no aperfeiçoamento do pro-
fessor. Com esse objetivo, promoveu, num saudável intercâmbio cultural com
universidades estrangeiras, a vinda de renomados mestres europeus, entre os
quais Jacques Perret, André Piganiol e o sábio e luminoso latinista Jules
Marouzeau, de quem se considera discípulo.
O reconhecimento da valiosa contribuição de Ernesto Faria para os estu-
dos clássicos e humanísticos, relacionados com a latinidade, motivaram seus
ex-alunos, leitores e estudiosos, como ele, amantissimi latinitatis, para as ho-
menagens que vêm sendo prestadas ao ilustre e aguerrido defensor da cultura
clássica, sem dúvida o corifeu do movimento de renovação do ensino do latim
no Brasil, no sentido de adequá-lo às novas orientações lingüísticas e metodoló-
gicas já de algum tempo firmadas em países estrangeiros, sobretudo europeus.
12 Rosalvo do Valle

Foi assim no Colóquio Ernesto Faria Comemorativo do Centenário


de Nascimento, realizado no Instituto de Letras da Universidade Federal Flu-
minense, de 24 a 28 de abril de 2006, promovido pelo Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da UFF e pelo Programa de Pós-Graduação em Letras
da UFRJ, com o apoio de inúmeras instituições particulares e oficiais, livrarias
e instituições financeiras. O autor destas linhas mereceu a honra de encerrar o
Colóquio, com a conferência “Ernesto Faria e a renovação dos estudos clássi-
cos”. Assim foi na Academia Brasileira de Filologia, de que Ernesto Faria era
membro efetivo, na sessão especial de 20 de maio, em que este ex-aluno falou
sobre sua obra.
O Instituto de Língua Portuguesa do Liceu Literário Português, onde le-
cionam e lecionaram muitos ex-alunos e colegas do ilustre latinista, associa-se,
summo gaudio, a essas homenagens, e dedica este número de Confluência
ao mestre que ostentava, com justificadas razões, o orgulho de ter alguns de
seus livros adotados também em universidades portuguesas. Aliás, a obra de
Ernesto Faria é sempre lembrada nos cursos que o Liceu Literário Português,
há alguns anos, vem oferecendo sobre latinidade clássica e medieval, e sobre o
humanismo em Portugal e no Brasil.

2. Dados biográficos
Ernesto de Faria Júnior, nasceu no dia 23 de maio de 1906 no Rio de
Janeiro, então Distrito Federal, na Rua Baltasar Lisboa, nº 62, hoje Bairro da
Tijuca, filho único de Ernesto de Faria, funcionário público, e Aurora Barbosa
de Faria, professora de ensino primário. Órfão aos três anos e pouco, fez os
primeiros estudos na escola em que sua mãe lecionava, e continuou-os no ex-
tinto Colégio Ateneu Brasileiro, ambos próximos de sua residência. Em 1918
estudou no internato do Colégio Salesiano de Santa Rosa, Niterói, RJ, transfe-
rindo-se em 1919 para o Colégio Anchieta, internato jesuítico de Nova Fribur-
go, RJ, onde estudou até 1921. Concluiu o curso secundário pelo regime então
vigente de exames parcelados.
Esse ano de 1921 é marcante na vida de Ernesto Faria. Aos quinze anos,
conheceu o grande mestre de sua carreira – e mestre pela vida fora –, o pro-
fessor Antenor Nascentes, cujas aulas de português no Curso de Rui Maurício
de Lima e Silva, passou a freqüentar, “naturalmente cativado pelo fascínio do
mestre e vencido pelo irresistível de sua própria vocação para estudos lingüís-
ticos”, como diz a professora Aída Costa, acrescentando que Antenor Nascen-
Professor Ernesto de Faria Júnior 13

tes, em pronunciamento na Academia Brasileira de Filologia, em abril de 1962,


relembrou “com profunda emoção o menino de quinze anos, “de olhar vivo e
sorriso indefinido”, cuja imagem, nítida, lhe ficara na retina” (1).
Pelos anos 22 ou 23, Nascentes passou a dar aulas particulares de fran-
cês a D. Aurora, aulas a que o jovem assistia com vivo interesse, e que lhe
aproveitaram tanto, que aos dezessete anos o mestre o incentivou a viajar para
a Europa a fim de aperfeiçoar-se naquela língua. Por essa época, também,
Ernesto Faria iniciava seu magistério, dando aulas particulares. Falou mais alto,
porém, o amor filial, e o jovem não se afastou da mãe extremosa, que assumira
desde muito cedo todas as responsabilidades na criação do filho, que, agora,
podia ajudar na manutenção da casa. Foi também o momento decisivo da car-
reira do futuro catedrático de Língua e Literatura Latina, marcado, mais uma
vez, pela presença providencial de Antenor Nascentes, que o orientou no estu-
do do latim e lhe pôs nas mãos a obra pioneira de Vicente de Sousa, Restitui-
ção da pronúncia latina, de 1902, o mesmo tema de que, trinta anos depois,
Ernesto Faria tratou na tese de concurso para o Colégio Pedro II – A pronún-
cia do latim. Novas diretrizes ao estudo do latim – expressivamente dedica-
da a seu mestre: “Ao insigne e sábio mestre Dr. Antenor Nascentes, a quem
devo minha iniciação nos estudos filológicos”. Na edição, revista, de 1938,
com o título de Manual de pronúncia do latim, a obra tem outra expressiva
dedicatória, a marcar a posição renovadora que Ernesto Faria assumiu definiti-
vamente: “À memória de Vicente de Sousa – que foi o primeiro no Brasil a
pugnar pela restituição da pronúncia clássica do latim estabelecendo, em
suas aulas no Colégio Pedro II, o critério filológico”.
A vocação de professor leva-o irresistivelmente ao magistério, abando-
nando o curso de Direito, que iniciara na Faculdade de Direito de Niterói, con-
trariando a vontade da mãe que o queria advogado, na época – e durante muito
tempo – a profissão de maior prestígio na área de estudos humanísticos, a
preferida de certa elite de nossa história cultural. E foi-se firmando como pro-
fessor a partir de 1925, ano em que se inicia como professor de latim, no Curso
Andrews.
Casou-se em 1928 com D. Nair Pereira de Faria, que faleceu em 1948,
deixando-lhe quatro filhos: Dulce, Paulo, Roberto e Augusto Celso. Em 1950,
em segundas núpcias, casou-se com D. Ruth Junqueira, também professora de
latim e tiveram igualmente quatro filhos: Maria Dulce, Maria Helena, Regina
Lúcia e Francisco Eduardo. Dos oito, não estão mais entre nós os dois primei-
ros. D. Ruth Junqueira de Faria, extraordinária como esposa e mãe, infatigável
colaboradora, morreu em 28 de agosto de 1993.
14 Rosalvo do Valle

Nesses quase quarenta anos de magistério, Ernesto Faria trabalhou no


ensino particular e no ensino público de nível médio e de nível superior. A voca-
ção de educador levou-o mesmo a fundar o Colégio Ernesto Faria na Rua Anita
Garibaldi, nº 33, Copacabana, que, contudo, só conseguiu manter por dois anos
(1930-1932). No ensino superior exerceu também as funções administrativas
pertinentes a quem se dedica à vida universitária. E ele viveu-a intensamente,
desde a criação da Universidade do Distrito Federal, por volta de 1935, até seu
último dia na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, 14 de
março de 1962.

3. Atividades docentes

Vita breuis, já tínhamos aprendido com o velho Horácio. No caso de Er-


nesto Faria a brevidade da vida (morreu com cinqüenta e seis anos incomple-
tos) não o impediu de nos deixar um exemplo de quanto se pode realizar, apesar
dos obstáculos que teve de superar. Viveu intensamente sua vida pessoal e sua
vida profissional. As perdas, às vezes sem remédio, na família, o insucesso do
primeiro concurso no Colégio Pedro II, a morte de amigos queridos, os desen-
contros profissionais nem sempre fáceis de contornar – a tudo se sobrepôs sua
índole combativa. Só não resistiu à derrocada do latim e ao esvaziamento pro-
gramado da cultura clássica de que foi sempre o aguerrido defensor.
Em 1925, recebeu a primeira nomeação para examinador de latim, portu-
guês e francês em comissões oficiais de ensino médio. No ano seguinte ingres-
sou no Colégio Pedro II como professor suplementar, e em 1927 já fazia parte
de comissões examinadoras. Em 1929, como professor de latim no Lycée
Français, recebeu uma honrosa referência especial de um dos maiores historia-
dores da cultura romana, Jérôme Carcopino, professor da Sorbonne, que, visi-
tando o colégio, assistiu a uma aula de Ernesto Faria e fez elogios à competên-
cia e ao desempenho pedagógico do jovem professor. Em 1930, tendo sido
classificado em concurso de provas para a seção de português, latim e literatu-
ra do ensino técnico-secundário do Distrito Federal, foi designado para a Esco-
la de Comércio Amaro Cavalcanti, onde foi professor de Antônio Houaiss, que
evoca esse encontro no belo texto reproduzido adiante. Com a adoção do siste-
ma federal de ensino nas escolas técnicas municipais, Ernesto Faria foi trans-
ferido para latim, “por conveniência do ensino e à vista dos títulos apresenta-
dos”. Continuou a ensinar latim na rede oficial, estando em exercício no Instituto
de Educação no final de sua carreira.
Professor Ernesto de Faria Júnior 15

No ensino superior o nome de Ernesto Faria começa a tornar-se conhecido


a partir da implantação da Universidade do Distrito Federal. Em 1936, Jacques
Perret, professor titular de língua e literatura latina da Universidade de Montpellier,
aqui esteve ministrando cursos e convidou-o para dar morfologia histórica do
latim, atribuição de que ele se desincubiu com elogios do grande latinista francês.
Uma grata lembrança da estada de Jacques Perret entre nós é a publicação de
três conferências, uma na Universidade do Distrito Federal e duas na Associação
Brasileira de Educação, publicadas com o título de A atualidade dos estudos
greco-latinos. Ernesto Faria traduziu a primeira, que dá título à obra, e encarre-
gou-se da publicação. O autor registra no prefácio seu agradecimento ao “Prof.
Ernesto Faria que teve a fineza de acompanhar de perto a impressão de
todo o trabalho”. As duas outras, A mensagem de Platão e A formação de
uma cultura nacional, foram traduzidas respectivamente por Gustavo Lessa e
Juraci Silveira (2). No texto de Sousa da Silveira, reproduzido adiante, o eminente
filólogo faz referência à atividade docente de Ernesto Faria na Universidade do
Distrito Federal, em 1937, também em lingüística.
Em 1938, é nomeado professor adjunto da segunda seção didática, e logo
depois, por decisão administrativa, torna-se catedrático de latim da Universida-
de do Distrito Federal. Extinta a UDF e criada a Universidade do Brasil, é
nomeado, em 14 de julho de 1939, professor catedrático de Língua e Literatura
Latina da Faculdade Nacional de Filosofia. Em 1º de dezembro, o Ministro da
Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em nome do Presidente da República,
Getúlio Vargas, apostilando o decreto de nomeação, declara que “o menciona-
do Professor passaria a exercer, interinamente, aquele cargo” (Diário Oficial
de 7/12/1939).
Em 1946 deixa a condição de interinidade e torna-se efetivamente profes-
sor catedrático, em decorrência de sua aprovação no concurso de provas e
títulos a que se submeteu perante a banca examinadora integrada pelos profes-
sores Clóvis Monteiro, Urbano Canuto Soares, Antônio dos Santos Jacinto
Guedes, Ismael de Lima Coutinho e Serafim da Silva Neto. Tomou posse no dia
4 de abril de 1946 em solenidade presidida pelo Reitor Inácio de Azevedo Amaral,
presente o Diretor Antônio Carneiro Leão. Saudaram o novo catedrático os
professores Faria Góis Sobrinho, em nome da Congregação, Sousa da Silveira,
como catedrático de Língua Portuguesa; Jorge Henrique Agostinho Padberg
Drenkpol, catedrático aposentado de Língua e Literatura Grega, e Pe. José
Joaquim Lucas, em nome dos assistentes de Língua e Literatura Latina. Pelo
corpo discente falou Baltasar Xavier de Andrade e Silva, do quarto ano de
Letras Clássicas.
16 Rosalvo do Valle

Publicamos pela primeira vez os discursos dos representantes do corpo


docente e do corpo discente por motivos que nos parecem óbvios, e o leitor
entenderá sem dificuldades. Esses e outros textos não poderiam ficar inéditos
nos manuscritos originais. Os estudiosos de nossa historiografia filológico-lin-
güística – promissora área de pesquisa – saberão valorizá-los.
O Boletim de Filologia assim registrou essa aprovação:

“Depois de brilhante concurso de títulos e provas, o Prof. Ernesto Faria tomou


posse, no dia 18 de junho (sic), no cargo de Professor Catedrático de Língua e
Literatura Latina, da Faculdade Nacional de Filosofia”.

A imprensa carioca não ficou indiferente a esse grande momento da vida


universitária do Rio de Janeiro. A solenidade de posse do jovem catedrático
está registrada no dia 3/4/46, nos jornais Correio da Manhã, A Noite e Jornal
do Brasil; e no dia 4 em Brasil-Portugal e novamente no Jornal do Brasil.
Assim, aos quarenta anos de idade, Ernesto Faria atingia, gloriosamente, o
ponto mais alto da carreira universitária. Pena que nesse momento glorioso não
tivesse mais a presença de D. Aurora Barbosa de Faria, a mãe extremosa,
lembrada afetuosamente na dedicatória da tese:

À memória de minha adorada Mãe, a cuja desvelada dedicação de todos os mo-


mentos devi com a minha própria vida, toda a minha formação cultural.

4. Participação na vida universitária


A participação plena na vida universitária leva o professor, muitas vezes
com prejuízo de sua produção científica, ao exercício de funções administrati-
vas, e de outras que envolvem o ensino, a pesquisa e a extensão. Ernesto Faria
foi membro do Conselho Técnico-Administrativo da Faculdade Nacional de
Filosofia, Chefe do Departamento de Letras, Vice-Diretor e Diretor.
Integrou várias comissões examinadoras de concurso para cátedra (Lín-
gua e Literatura Grega, Língua e Literatura Francesa, Língua e Literatura Ita-
liana, Literatura Brasileira), ou para doutorado e livre-docência (Língua Portu-
guesa, Filologia Românica). E não só no Rio de Janeiro. Também na Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (Filologia Româ-
nica), Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais (Literatura La-
tina). No ensino médio examinou o concurso para professor de latim da Prefei-
tura do Distrito Federal (1955) e para a cadeira de latim do Colégio Pedro II
Professor Ernesto de Faria Júnior 17

(1961) – em que Sílvio Elia obteve o primeiro lugar –, além de ter integrado
outras comissões de concursos de ensino médio oficial.
Participou de congressos nacionais como representante da Faculdade
Nacional de Filosofia: Congresso de Dialectologia e Etnografia (Rio Grande do
Sul, 1958), Congresso Internacional de Crítica Literária (Recife, 1960), II Con-
gresso de Língua Falada no Teatro (Salvador 1956).
Fora do país, Ernesto Faria também teve o reconhecimento da dimensão
universitária de sua obra. Em 1948, a convite do Adido Cultural da França,
participou dos trabalhos iniciais do ano letivo da Faculdade de Letras da Uni-
versidade de Paris; em 1951 fez na Sorbonne uma conferência sobre Pérsio; a
convite do governo português, na Universidade de Coimbra falou sobre “Lucílio
e as origens da sátira latina”, conferência publicada, “com alguns acrescentos
e notas” na Revista Filológica. Em outubro de 1953 foi autorizado pelo Presi-
dente da República a se afastar do país por seis meses “a fim de realizar, na
Europa, estudos relacionados com os programas de assistência técnica presta-
da por organizações internacionais aos países subdesenvolvidos”; e em 1954
vemo-lo representante oficial do Brasil no II Congresso Internacional de Estu-
dos Clássicos, realizado em Copenhague.
Em 1959 é mais intensa sua atividade na Europa: delegado oficial do Bra-
sil e representante da Associação de Estudos Clássicos no III Congresso de
Estudos Clássicos, em Londres; estágio na Faculdade de Letras da Universida-
de de Paris; visita a várias faculdades portuguesas, como convidado oficial do
governo; participação em Congresso de Filologia, na Rumênia, também como
convidado oficial; recepção na Société des Études Latines, de Paris, sendo
saudado por Jules Marouzeau, Jacques Perret e Marcel Durry; participação
em sessão especial, a convite do Groupe Romand de la Société des Études
Latines, para falar sobre os estudos clássicos no Brasil.

5. Outros títulos

Constam ainda do curriculum vitae outros títulos muito expressivos de


seu renome no Brasil e na Europa: membro da Société des Études Latines, de
Paris, a convite de Jules Marouzeau (1932); fundador da Sociedade Brasileira
de Estudos Latinos, sendo eleito seu administrador perpétuo (1939); presidente
do Departamento de Lingüística da Sociedade Brasileira de Antropologia e
Etnologia (1943); membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia (1944);
membro correspondente da Sociedade de Estudos Filológicos de São Paulo;
membro perpétuo da Société des Études Latines (1947); membro fundador da
18 Rosalvo do Valle

Association Guillaume Budé (1947); conselheiro da Associação de Estudos


Clássicos do Brasil (1959), eleito seu presidente em 1960; Medalha Anchieta
conferida pelo Governo do Estado da Guanabara (1960).

6. Ernesto Faria acadêmico


Com relação à Academia Brasileira de Filologia, cabe uma referência
especial por se tratar, a nosso ver, de um título às vezes apenas referido, mas de
grande importância para avaliar a intensa participação de Ernesto Faria no
contexto cultural de seu tempo, além das atividades docentes.
Ernesto Faria foi eleito em 18 de novembro de 1944, três meses depois da
fundação da Academia (26/8/44), em sessão presidida por Sousa da Silveira e
secretariada por Modesto de Abreu e Serafim da Silva Neto. Concorreram
vinte candidatos para preenchimento das dez vagas restantes de membros efe-
tivos para completar-se o número de quarenta previsto nos Estatutos. Informa-
nos, ainda mais, A. J. Chediak, na preciosa e paciente pesquisa sobre a história
da Academia, que votaram vinte e seis acadêmicos:

“Fizeram-se três escrutínios, dos quais resultou ficarem desde logo eleitos, pelo
quorum de dois terços da Academia, de acordo com as disposições dos Estatu-
tos, cinco dentre os concorrentes. Foram estes os Srs. Professores Afrânio Peixoto,
Basílio de Magalhães, Ernesto Faria Júnior, Saul Borges Carneiro e Sílvio Elia”. (3)

Nesse precioso texto, ainda inédito, há registros de sua participação como


acadêmico, tais como: a) na sessão de 21 de setembro de 1947, seu pronuncia-
mento com louvor sobre o valor filológico da conferência de Padberg Drenkpol
intitulada “A origem da expressão riso sardônico”, mesma manifestação de
Mattoso Câmara e de Júlio Nogueira; b) seu comparecimento ao enterro do
mesmo Padberg Drenkpol, em Petrópolis, como representante oficial da Aca-
demia e da Faculdade Nacional de Filosofia, de que era Diretor eventual. Pro-
feriu a oração de despedida ao sábio acadêmico, também seu colega de magis-
tério naquela Faculdade e por quem fora saudado, em latim, na sua posse como
catedrático. Deu notícia dessa missão oficial na sessão de 24 de agosto de
1948; c) integrante da Comissão de Línguas Neolatinas, com Antenor Nascen-
tes e Clóvis Monteiro.
Ernesto Faria foi o primeiro ocupante da cadeira nº 4, cujo patrono é o
maranhense Francisco Sotero dos reis, seguro latinista e gramático respeitável,
sobre o qual escreveu na Revista Filológica, cumprindo a praxe acadêmica de
se preservar a memória do patrono.
Professor Ernesto de Faria Júnior 19

7. Ernesto Faria no contexto lingüístico-filológico brasileiro

As referências à participação de Ernesto Faria na Academia Brasileira de


Filologia, bem como suas publicações na Revista Filológica, na Revista Bra-
sileira de Filologia e no Boletim de Filologia, relacionadas na bibliografia,
parecem-me importantes para contextualizar o autor e a obra na historiografia
lingüístico-filológica brasileira.
Sílvio Elia fez magistralmente esse estudo crítico nos Ensaios de Filolo-
gia e Lingüística, em duas páginas repassadas de saber lingüístico e da indis-
pensável sabedoria do coração.
No capítulo intitulado “Os estudos filológicos no Brasil” situa Ernesto Fa-
ria, Ismael de Lima Coutinho, Cândido Jucá (filho) e Joaquim Mattoso Câmara
Jr., como figuras intermediárias na transição da geração de 1920-1940 para a
terceira geração (1940-1960), em que ele próprio se inclui.
Os quatros autores convivem com a geração de Sílvio Elia, Serafim da
Silva Neto, Celso Cunha, Gládstone Chaves de Melo, Jesus Belo Galvão, Carlos
Henrique da Rocha Lima, Renato Mendonça, Albino de Bem Veiga.
Entende Sílvio Elia que essa geração:

“Representa a transição do autodidatismo das gerações anteriores para a forma-


ção universitária, ainda incipiente e deficiente, da maioria de nossas Faculdades
de Filosofia. Lecionam praticamente todos em tais institutos de ensino superior,
embora nem sempre tenham cursado uma Faculdade de Letras. Constituem, pois,
uma transição, pois... já eram professores registrados quando (1940) a Faculdade
Nacional de Filosofia iniciou as suas atividades”. (4)

Esse o momento cultural em que iria atuar o Professor Ernesto Faria.


Compreende-se, então, seu extraordinário papel como renovador na área dos
estudos clássicos, papel que Sílvio Elia apreende lucidamente:

“A sua luta triunfante, principalmente depois que se criaram no país as cadeiras


de Língua Latina nas Faculdades de Filosofia, foi no sentido de retirar o ensino do
velho idioma do Lácio da estagnação em que se achava. Retemperar os estudos
clássicos com os ensinamentos de um Niedermann, um Ernout, um Marouzeau,
ensinamentos que, na Europa, já se encontravam tranqüilamente reduzidos a com-
pêndios, foi-lhe motivo de pregação constante e quiçá tempestuosa. Mas agora
são poucos e cada vez menos os recalcitrantes e os inconformados com o pro-
gresso da Filologia Clássica”. (4)

Os especialistas me desculpem as longas transcrições, mas nunca me


esqueço de que escrevo para graduados em Letras que – não por sua culpa,
20 Rosalvo do Valle

reconheçamo-lo – desconhecem quase totalmente fundamentos de latinidade,


de romanística, de história da língua, de nossa historiografia lingüístico-filológi-
ca. Vivemos, a partir dos anos sessenta, um outro corte epistemológico, em que
a orientação lingüística hegemônica privilegia a descrição lingüística de nature-
za sincrônica, com quase total abandono do latim e de enfoques histórico-dia-
crônicos.
A dimensão universitária da obra de Ernesto Faria, que o tornou digno de
renome internacional e lhe assegurou referência obrigatória na nossa historio-
grafia lingüística, foi reconhecida por autores brasileiros e estrangeiros em ar-
tigos e em resenhas de revistas especializadas. Entre nós, será mais fácil agora
reunir bom número dessas recensões, graças à paciente e utilíssima pesquisa
de Eduardo Tuffani, recém-publicada, Repertório Brasileiro de Língua e Li-
teratura Latina (5). No estrangeiro, ocorre-me de pronto a Révue des Études
Latines. Aliás, o próprio Ernesto Faria transcreveu em algumas obras trechos
desses juízos críticos.
Quero, porém, destacar as referências de Eugênio Coseriu, sempre lumi-
noso lingüista, no estudo Panorama da lingüística ibero-americana (1940-
1965), publicado em Tradição e Novidade na Ciência da Linguagem (6).
Nesse longo capítulo, Ernesto Faria é citado em diferentes tópicos da aborda-
gem coseriana: a) como um dos nomes da “geração vencedora da batalha pela
lingüística científica”; b) como um “dos lingüistas de relevo” do Rio de Janeiro,
então, “o centro maior da lingüística no Brasil”, cuja contribuição na área de
estudos latinos é posta ao lado da de Mattoso Câmara em lingüística geral, de
Serafim da Silva Neto em lingüística românica, do mesmo Serafim em história
da lingüística, e de Mattoso Câmara em lingüística indígena; c) em didática das
línguas, como autor de uma de “duas obras importantes sobre o ensino do la-
tim”: O latim e a cultura contemporânea (Coseriu considera a Introdução à
didática do latim uma 2ª edição, bastante ampliada, da anterior) e O ensino
do latim. Doutrina e métodos, de Sílvio Elia; d) no tópico línguas clássicas,
como autor de duas obras de bom nível científico, a Fonética histórica do
latim e a Gramática superior da língua latina); e) finalmente, ao referir-se
ao enorme interesse pela lingüística nas universidades brasileiras e à “notável
difusão de certas obras lingüísticas”, Eugênio Coseriu volta a citar a Fonética
histórica do latim.
O destaque parece-me sublinhar aquele viés da obra fariana que Sílvio
Elia também apreciou com a dupla visão de latinista e de lingüista: reorientação
do estudo e do ensino do latim com as novas contribuições da lingüística e da
pedagogia, como o líder, nos estudos latinos, daquela “geração vencedora da
Professor Ernesto de Faria Júnior 21

batalha pela lingüística científica”. Entende-se, pois, a profunda repercussão de


suas obras no ensino médio e no superior, vale dizer, na educação brasileira.

8. Ernesto Faria catedrático


Foi assim que este ex-aluno o conheceu, ao iniciar o curso de Letras
Clássicas em 1946, na “nossa Faculdade”, com ele dizia afetuosamente: o lati-
nista consagrado, aqui e no exterior, que renovou o ensino do latim, tanto na
doutrina quanto na metodologia, divulgando as idéias lingüísticas que se firmam
a partir do final do século XIX com as conquistas do método histórico-compa-
rativo, que a filologia clássica incorporou definitivamente.
Como catedrático de Língua e Literatura Latina, Ernesto Faria consolidou
essa nova orientação, distribuindo o conteúdo programático do curso de Letras
Clássicas, no antigo regime anual (1946-1949), de forma que Língua Latina se
estudava em quatro anos: 1º ano – Fonética histórica; 2º ano – Morfologia
histórica; 3º ano – Sintaxe; 4º ano – Estilística. Literatura Latina seguia a perio-
dização geralmente apresentada nos bons compêndios, passando-se depois à
leitura de alguns autores do período arcaico, do clássico e do pós-clássico.
Para cumprir a programação dos currículos de Letras Clássicas, Línguas
Neolatinas e Línguas Anglo-Germânicas, o Professor Faria contava com a as-
sistência do Pe. José Joaquim Lucas, de Maria Amélia Pontes Vieira e de
Sieglinde Monteiro Autran. A seu cargo ficou Língua Latina, e foi com sua
orientação que lemos a Phonétique Historique du Latin, de Niedermann; a
Morphologie Historique du Latin, de Ernout; a Syntaxe Latine, de Riemann;
e o Traité de Stylistique Latine, de Marouzeau – os compêndios oficiais de
cada ano letivo. De Literatura Latina encarregou-se a Profª. Maria Amélia
Pontes Vieira (hoje Alcofra), a inesquecível Professora Amelinha, admirável
motivadora da leitura dos textos, que nos deixou a gratíssima lembrança das
aulas de Ilustração Literária, que nos despertaram o gosto de ler os autores
latinos. Impossível reler Plauto e Terêncio sem relembrar aquelas aulas magis-
trais!...
A orientação do mestre estendeu-se, no âmbito da Universidade do Brasil,
ao Colégio de Aplicação, onde, com a professora regente de prática de Ensino,
Clarice Lourdes das Neves – sua ex-aluna no Colégio Paulo de Frontin e na
Faculdade Nacional de Filosofia –, os alunos e ex-alunos continuaram suas
diretrizes. Estendeu-se à Faculdade Fluminense de Filosofia, de Niterói, funda-
da em 1947, onde se adotou durante algum tempo o mesmo currículo de Letras.
22 Rosalvo do Valle

O regente da cadeira, Ismael de Lima Coutinho, seu confrade na Academia


Brasileira de Filologia, em linhas gerais seguiu as mesmas diretrizes teóricas.
Além disso, constituiu o corpo docente da Faculdade Fluminense de Filosofia
grande número de formados pela Faculdade Nacional. Um deles, o já referido
Baltasar Xavier de Andrade e Silva, regente de Língua e Literatura Grega,
durante algum tempo respondeu também pela cadeira de Língua e Literatura
Latina, nos impedimentos de Ismael Coutinho, enquanto Secretário de Educa-
ção do Estado do Rio de Janeiro. A partir de março de 1949, o autor deste texto,
que por dois anos fora auxiliar de ensino do Prof. Faria, convidado para assis-
tente de seu querido mestre Ismael Coutinho, também continuou a orientação
que recebera.

9. Vida e morte na “nossa faculdade”

Ernesto Faria exerceu a cátedra até seu último momento, naquela tarde
trágica de 14 de março de 1962. Construiu sua obra sem se afastar das estimu-
lantes atividades de professor, em contato com os alunos, com os colegas, uma
saudável troca de idéias; mas também não se poupou do exercício de funções
administrativas, a um tempo traiçoeiramente sedutoras e profundamente
desgastantes. Sua correspondência particular registra a preocupação de ami-
gos com problemas de saúde dele, sobrecarregado com a direção da Faculda-
de. Com todos os tropeços Ernesto Faria não descuidou da obra, e nos legou
uma apreciável bibliografia.
Às questões de saúde, porém, somou-se uma outra, por certo bem mais
grave: o duro golpe que os estudos clássicos sofreram com a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (Lei nº 4024, de 24/12/61), que, ao revogar a
Reforma Capanema é, realmente, um divisor de águas na história da educação
brasileira. Ficou-nos, além do mais, esse marco de triste memória: a morte
trágica de Ernesto Faria em plena Congregação da Faculdade Nacional de
Filosofia, na sessão de 14 de março de 1962, iniciada às 15 horas, e assim
tragicamente interrompida.
Ao discutir a nova legislação, não resistiu ao tratamento que dá ao latim. E
o protesto violento, que começara a escrever de manhã, em casa, ficou em
pouco mais de uma página. O grande defensor dos estudos clássicos e da
formação humanística morreu com o latim. (7)
Ernesto Faria já pressentira com lucidez a acentuada tendência anti-hu-
manística de projetos que desde 1948 viriam a formalizar-se na LDBEN. Na
Introdução à Didática do Latim (1959), ao examinar a educação brasileira,
Professor Ernesto de Faria Júnior 23

faz brilhante defesa da “persistente tendência humanística de nossa tradição


pedagógica”, um texto antológico em que se aliam admiravelmente o latinista e
o educador. Convido o leitor a reler especialmente o trecho de páginas 90 a 97.
Sobre o assunto, aliás, merece registro o pronunciamento da Academia
Brasileira de Filologia, sob a presidência de Sousa da Silveira, na sessão de 30
de outubro de 1948, de que Ernesto Faria participou, sobre o alerta de Sílvio
Elia focalizando “o artigo em que é proposta a supressão do estudo do latim do
currícullo ginasial e sua inclusão nas séries do 2º ciclo, porém em caráter facul-
tativo”. Eis o texto: “A Academia Brasileira de Filologia, tendo tomado
conhecimento pelos jornais da Exposição de Motivos do Exmº. Sr. Minis-
tro da Educação ao encaminhar o anteprojeto das Bases e Diretrizes da
Educação Nacional, louva os propósitos, aí manifestados com a civiliza-
ção greco-latina, de que provimos, mas, ao mesmo tempo lamenta que
tenha sido afastado, com a supressão do ensino obrigatório do latim, o
único meio de, na realidade, atingir esses dois objetivos”. (3)
Esta foi a causa por que Ernesto Faria sempre lutou... até a morte.
Morte que repercutiu profundamente. Na Faculdade, na Academia, nos
centros e associações culturais de que participava, aqui e na Europa – todos
ainda mal refeitos de outra perda imensa, dois anos antes, em 23 de setembro
de 1960: a de Serafim da Silva Neto, este gigante da romanística e da história
da língua portuguesa, amigo fraterno de Ernesto Faria.
Entre seus assistentes e alunos a presença do mestre levou, muitas vezes,
a evocações repassadas de afetuosa saudade, como a da Profª. Amelinha, um
lindo texto, datado de 23/5/1962, dia em que se comemorariam os 56 anos do
mestre inesquecível – um testemunho de amizade e de reconhecimento que
não poderia ficar inédito. Como também não pode ficar perdido nos jornais do
tempo o artigo de Tristão de Ataíde – o querido Prof. Alceu Amoroso Lima que
este ex-aluno tem sempre presente em suas saudades, breve, porém denso
artigo em que o mestre de nossa melhor crítica literária evoca o saudoso amigo
e humanista desaparecido tão prematuramente.
No Brasil e no Exterior foram muitas as manifestações de pesar, algumas
das quais, cedidas gentilmente por D. Ruth, foram divulgadas pela Profª. Aída
Costa no texto já referido. Aqui reproduzimos a notícia de Jules Marouzeau,
publicada na Révue des Études Latines.

10. VXOR OPTIMA


Não poderia concluir esta homenagem sem uma referência especial àquela
a quem Ernesto Faria dedica a Fonética Histórica do Latim, com a carinhosa
24 Rosalvo do Valle

epígrafe VXORI OPTIMAE, a Profª. Ruth Junqueira de Faria, a esposa incan-


sável, a colaboradora competente e solícita. Para nós, a colega admirável, sem-
pre solidária.
Conheci-a em 1949, último ano do curso de Letras Clássicas, quando D.
Ruth assistiu às aulas de Estilística Latina que o Prof. Faria nos ministrava,
com a leitura indispensável do Traité de Stylistique Latine, de Jules Marouzeau.
Soubemos que era uma professora de latim do Instituto de Educação, colega do
mestre, a futura uxor optima.
Voltei a encontrá-la muitos anos depois, já professora da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, onde fez o mestrado, concluído com a dissertação
Aspectos lexicais e estilísticos do bucolismo vergiliano (1974). Acompa-
nhei de longe sua atividade docente e sua constante presença na revista Calíope,
da Faculdade de Letras da UFERJ. Nunca se valeu das glórias do ex-catedrá-
tico. Fez seu cursus honorum honrando-lhe a memória: doutrina segura, parti-
cipação efetiva na vida universitária, na sala de aula, nas publicações, nos eventos.
Em abril de 1976 fizemos o concurso de provas e títulos para a livre-
docência em Língua Latina, no Instituto de Letras da Universidade Federal
Fluminense, disciplina de que eu era titular. Ela defendeu a tese Lívio Andronico:
a obra, a língua, a métrica, que dedicou a Ernesto Faria. (8) Eu, a tese
Considerações sobre a “Peregrinatio Aetheriae”, que dediquei a Ismael de
Lima Coutinho. (9)
Foi o momento em que passei a admirar ainda mais a grande figura de
mulher e de profissional: seu comportamento em todas as etapas do concurso
foi exemplar.
Morreu no dia 28 de agosto de 1993 na Faculdade de Letras da UFRJ,
participando de uma banca examinadora de doutorado, Como o marido, morreu
no local de trabalho, no exercício do cargo que ela também ocupou com digni-
dade; até a morte.

11. Bibliografia
Reproduzimos a bibliografia do Dicionário Escolar Latino-Português,
6ª edição, revisão de Ruth Junqueira de Faria, com prefácio de Walmírio Macedo
e a homenagem (que transcrevemos adiante) de Antônio Houaiss – ex-alunos
do autor. Acrescentamos as teses de concurso e as publicações que consegui-
mos localizar em revistas especializadas.
Nota do original: “Em alguns casos, não foi possível ter em mão as edi-
ções subseqüentes, daí a sua não inclusão nesta relação”.
Professor Ernesto de Faria Júnior 25

1934 – 1) FARIA, Ernesto. Síntese de gramática latina (redigida especialmente para


servir ao ensino de latim). Rio de Janeiro, F. Briguiet, 1934. 151 p., il.
1.1 ______. Síntese de gramática latina. 2a ed. Rio de Janeiro, F. Briguiet, 1940.
150 p., il.
1934 – 2) ______. O latim e a cultura moderna (conferência realizada na Associação
Brasileira de Educação, Departamento do Rio de Janeiro, e publicada no “Jornal
do Commércio”). Rio de Janeiro, 1934.
1935 – 3) ______. O latim pelos textos (trechos escolhidos, anotados e graduados
para o estudo do latim). Rio de Janeiro, F. Briguiet, 1935. 400 p., il.
3.1 ______. 3a ed. Rio de Janeiro, F. Briguiet, 1941. 408 p., il.
3.2 ______. 4a ed. Rio de Janeiro, F. Briguiet, 1942, 408 p., il.
3.3 ______. (trechos escolhidos, graduados e anotados segundo os atuais pro-
gramas). 1ª e 2ª séries ginasiais, 5a ed. Rio de Janeiro, F. Briguiet, 1944, 331 p., il.
1937 – 4) ______. Les études latines dans le monde – Au Brésil. Révue des Études
Latines, Paris, 1937.
1938 – 5) ______. Manual de pronúncia do latim ( exposição teórico-prática da
pronúncia clássica do latim). Rio de Janeiro, F. Briguiet, 1938
6) ______. Sulpícia, a poetisa do “Corpus Tibullianum”. In: MISCELÂNEA
(em honra de Manuel Said Ali). Rio de Janeiro, 1938.
1940 – 7) ______. Panorama lingüístico da Itália romana. In: MISCELÂNEA (em
honra de Antenor Nascentes). Rio de Janeiro, 1940.
1941 – 8) ______. O latim e a cultura contemporânea (I. A questão do latim. II, As
modernas diretrizes do ensino do latim). Rio de Janeiro, F. Briguiet, 1941, 258 p.
1943 – 9) ______. Gramática elementar da língua latina ( com textos de aplicação,
selecionados dos autores indicados no programa atual, e exercícios). São Paulo,
Cia. Ed. Nacional, 1943, 263 p.
9.1 ______. 1ª e 2ª séries, 3a ed. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1944, 275 p.
1943 – 10) ______. Vocabulário latino-português (significação e história das pala-
vras, agrupadas por famílias, segundo os programas atuais). Rio de Janeiro, F.
Briguiet, 1943, 534 p.
1945 – 11) ______. Curso de Latim. 3ª e 4ª séries dos cursos ginasiais (gramática,
textos e exercícios rigorosamente de acordo com os programas vigentes). São
Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1945. 467 p.
1945 – 12) ______. A renovação atual dos estudos latinos... (Aula inaugural proferida
na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, para início dos
cursos do ano letivo de 1943). Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1945. 41 p.
1955 – 13) ______. Fonética histórica do latim. Rio de Janeiro, Liv. Acadêmica – 1955.
268 p. (Biblioteca Brasileira de Filologia, 9)
13. 1______. 2a ed. rev. e aum. Rio de Janeiro, Liv. Acadêmica, 1957. 302 p.
(Biblioteca Brasileira de Filologia, 9)
26 Rosalvo do Valle

1955 – 14) ______ & FARIA, Ruth. Novo curso de latim. 1ª e 2ª séries do curso gina-
sial. Gramática, textos e exercícios... [por] Ruth Faria e Ernesto Faria. Rio de
Janeiro, Ed. da Organização Simões, 1955, 218 p.
1955 – 15) ______. Dicionário escolar latino-português. Org. por Ernesto Faria [ com
a colaboração de Maria Amélia Pontes Vieira e outros 2ª ed. Rio de Janeiro, MEC,
Campanha Nacional de Material de Ensino, 1955. 1045 p. ]
15.1 ______. [Colab. de Maria Amélia Pontes Vieira e outros] 4ª ed. Rio de
Janeiro, MEC, Campanha Nacional de Material de Ensino, 1967. 1081 p.
15.2 ______. [Colab. de Maria Amélia Pontes Vieira e outros] Rev. de Ruth
Junqueira de Faria. 5a ed. Rio de Janeiro, MEC, FENAME, 1975, 1088 p.
1958 – 16) ______. Gramática superior da língua latina. Rio de Janeiro, Liv. Acadêmi-
ca 1958. 524 p. (Biblioteca Brasileira de Filologia, 14).
1959 – 17) ______. Introdução à didática do latim. Rio de Janeiro, Universidade do
Brasil, Faculdade Nacional de Filosofia, 1959. 374 p.

Teses
FARIA JÚNIOR, Ernesto de. A pronúncia do latim. Novas diretrizes ao estudo do
latim. (Tese de concurso para o provimento das cadeiras de Latim do Colégio
Pedro II). Rio de Janeiro, 1933, 131p.
FARIA JÚNIOR, Ernesto de. Pérsio: estudo literário e lexicográfico. (Tese de concur-
so para o provimento da cadeira de Língua e Literatura Latina da Faculdade
Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil). Rio de Janeiro, 1945, 166 p.

Artigos, Recensões, Notas


Revista Filológica (10)

FARIA JÚNIOR, Ernesto. ‘Galeria dos patronos.’ (Notícia biográfica de Francisco


Sotero dos Reis, patrono da cadeira nº 4 da A.B.F.) Revista Filológica – Ano I,
nº 4, ago. – set. 1955 – Nova fase, p. 73-74
FARIA, Ernesto. ‘A pronuncia reconstituída do latim I.’ (Resposta a Cândido Jucá
(filho), reunindo exemplos, argumentos e bibliografia recente em favor daquela
pronúncia.) Revista Filológica – Ano III, nº 18. 1942, p. 159-164.
FARIA, Ernesto. ‘A pronuncia reconstituída do latim II.’ (Conclusão da tréplica às
objeções de Cândido Jucá (filho), iniciada no nº 19 da RF.) Revista Filológica –
Ano III, nº 20, jul. 1942, p. 333-338.
FARIA, Ernesto. ‘Lucílio e as origens da sátira latina.’ (Longo ensaio sobre os poetas
satíricos latinos – em especial Lucílio – e o legado dos predecessores helênicos.)
Revista Filológica – Ano II, nº 5, 1º semestre de 1956. Nova fase, p. 21-42.
Professor Ernesto de Faria Júnior 27

FARIA, Ernesto. ‘Complemento ao estudo da sintaxe dos casos.’ (Explicação didática


do assunto com vista aos alunos da antiga 4ª série ginasial.) Revista Filológica
– Ano II, nº 6, 2º sem. 1956 – Nova fase – p. 27-35.

Revista Brasileira de Filologia

FARIA, Ernesto. A. ERNOUT et A. MEILLET. Dictionnaire Étymologique de la Langue


Latine. Revista Brasileira de Filologia, vol. I, tomo 2 – Dezembro, 1955, p. 223-
226.
______, ______ A. WALDE, Lateinisches Etymologisches Wörterbuch. Dritte
neubearbeitete von J.B. Hofmann, Revista Brasileira de Filologia, vol. I, tomo 2,
Dezembro, 1955, p. 226-228.

Boletim de Filologia

FARIA, Ernesto. L. LAURAND (1873-1941). Boletim de Filologia, Ano I, Setembro 1946


– Fasc. III, p. 153-160
______, ______ JEAN COUSIN, Les Études Latines Boletim de Filologia, Ano II –
Março 1947 – Fasc. V, p. 52-54.
______, ______ J. MAROUZEAU, Introduction au Latin. Boletim de Filologia. Ano II
– Junho 1947 – Fasc. VI, p. 101-106.
______, ______ J. MAROUZEAU, Récréations latines, Boletim de Filologia, Ano II –
Junho 1947 – Fasc. VI, p. 106-108.
______, ______ J. MAROUZEAU, La Prononciation du Latin. Boletim de Filologia,
Ano II – Junho 1947 – Fasc. VI, p. 109-110.
______, ______ Mémorial des Études Latines. Boletim de Filologia. Ano II, Setembro
1947 – Fasc. VII, p. 157-168.

Humanitas

FARIA, Ernesto. A formação da personalidade de Pérsio. Humanitas, Vol. II, Faculda-


de de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, Coim-
bra, 1948 – 1949, p. 55-65.

Boletim de Estudos Clássicos

FARIA, Ernesto. O Ensino e a crise atual da cultura. Boletim de Estudos Clássicos,


vol. II, 1958, S. Paulo, p. 37-59. Publicação sob os auspícios da Associação de
Estudos Clássicos do Brasil.
28 Rosalvo do Valle

12. A glória que fica

1. Solenidade de Posse

1.1 Saudação ao Prof. Ernesto de Faria

Sr. Prof. Ernesto de Faria:

É, para mim, sumo prazer dirigir a V.Ex.ª. palavras de saudação e apreço


no momento em que V.Ex.ª. acaba de tomar posse da sua cadeira de Língua e
Literatura Latina na Faculdade Nacional de Filosofia, e receber o grau de Dou-
tor em Letras, cargo e distinção que V.Ex.ª. alcançou pela agudeza da sua
inteligência e o esforço do seu trabalho, tudo, está claro, favorecido pela graça
de Deus, sem a qual nenhuma diligência humana logra resultado satisfatório.
Comecei a conhecer de mais perto a V.Ex.ª. quando fui designado para
ter exercício como professor de português na escola técnica secundária Paulo
de Frontin, da Prefeitura do Distrito Federal. Isto foi em 1934; mais tarde, creio
que em 1937, voltei a conviver com V.Ex.ª. na Universidade do Distrito Fede-
ral, onde V.Ex.ª. tomou a seu cargo um curso de Lingüística, e, pouco tempo
depois, a cadeira de Latim, que ia melhor com as preferências intelectuais de
V.Ex.ª.
Em 1939, quando começou a funcionar a Faculdade Nacional de Filosofia,
de novo nos encontramos como colegas, V.Ex.ª. na cadeira, que hoje lhe per-
tence, de Língua e Literatura Latina, e eu, na de Língua Portuguesa.
De 1934 até hoje tenho acompanhado, pois, um tanto de perto o seu de-
senvolvimento e a sua expansão de intelectual e de professor. Fui vendo cres-
cer a sua bibliografia, que já é bastante vasta; fui notando a sua dedicação à
especialidade que abraçou.
Sendo V.Ex.ª. uma pessoa afável, de trato delicado e fino, surpreende-
ram-me os ecos que chegavam até mim, e que, não sendo eu surdo, ouvia
perfeitamente, de uma campanha sistemática que se movia contra o ensino de
V.Ex.ª. e contra os seus trabalhos escritos. Não levei muito tempo para perce-
ber que se tratava de, a todo o custo, impugnar a nova orientação trazida por
V.Ex.ª. aos estudos de Latim. V.Ex.ª. fazia entrar, em dose apreciável, no seu
ensino a lingüística do Latim. Nisto estava, sobretudo, a novidade. Não faltou
logo quem, exagerando para o lado mau, apregoasse que V.Ex.ª. fazia todo o
seu ensino consistir no estudo da reconstituição da pronúncia clássica do La-
tim. E choveram as críticas em grande abundância. Mas estas, desprovidas de
espírito científico e todas, ou quase todas, envenenadas por visível sentimento
de hostilidade, não tinham, em geral, valor apreciável.
Professor Ernesto de Faria Júnior 29

Enquanto isto se passava, V.Ex.ª. trabalhava e estudava.


Quando se estava esgotando o prazo de cinco anos concedidos pela lei ao
Governo para nomear interinamente os professores da Faculdade Nacional de
Filosofia, e se começava a cogitar de preencher efetivamente os cargos de
catedráticos, lembro-me nitidamente de que V.Ex.ª. não se atemorizava ante a
perspectiva do concurso e que, ao contrário, o queria e desejava.
Sou a favor do concurso; não, porém, sem que se realizem modificações
na maneira, atualmente adotada, de o executar.
No concurso, feito como costuma ser, pode-se, a meu ver, apurar a ciên-
cia do candidato, a sua faculdade de falar e exprimir-se com facilidade, a viva-
cidade das suas respostas. Mas não se podem verificar devidamente as suas
qualidades didáticas, o seu gosto de ensinar, a sua dedicação ao magistério, o
seu amor aos alunos.
A vida do verdadeiro professor não é um regalo: é uma vida de sacrifício,
é uma vida de apóstolo. Acho que se pode dizer dela, com a indispensável
redução de proporções, o que um crítico notou a respeito da vida de S. Paulo: a
vida era, para S. Paulo, uma vítima oferecida em benefício de todos. A vida do
verdadeiro professor será uma vítima oferecida em benefício do ensino.
Mas os concursos da Faculdade Nacional de Filosofia haviam de realizar-
se de acordo com o molde tradicional. E alguns já se realizaram.
O de V.Ex.ª., que eu acompanhei muito interessadamente em todas as
provas públicas, veio mostrar-me que, mesmo dentro da rotina da chamada
prova de aula, sem estar presente uma turma de estudantes e sem estar a aula
realmente ligada, como um elo, no encadeamento de um curso, é possível ao
professor habilitado ministrá-la com perfeito equilíbrio didático, como sei que a
aula de V.Ex.ª. foi julgada por um dos nossos grandes entendidos em Didática.
A defesa de tese de V.Ex.ª. não foi unicamente brilhante: foi, também,
sólida. E todo o concurso de V.Ex.ª. constituiu uma resposta esmagadora aos
adversários de V.Ex.ª, e foi ocasião de nobre e elevado prazer para todos aque-
les que apreciam ver premiado o merecimento.
Sr. Prof. Ernesto de Faria: V.Ex.ª. já é uma forte realidade em nosso meio
intelectual; mas ainda é moço, e tem diante de si a esperança de um largo
futuro. O professor, por mais velho e experimentado que seja, tem, sempre, que
estudar e aprender. Felicito a V.Ex.ª. pelo que já realizou, e pelo que, se Deus
quiser, ainda há-de realizar em benefício da cultura nacional.

Rio, 4/4/1946.
Sousa da Silveira.
30 Rosalvo do Valle

1.2. Saudação do Prof. Jorge Henrique Agostinho Padberg Drenkpol

Carissime et Clarissime Dne. Erneste Faria, eximii collegae, dilecti discipuli


atque discipulae:

Doctor Latinus Latine videtur salutandus; en, cur aliqua verba Latina dicam,
clare lenteque eloquenda, Farianum in modum pronuntianda, ut omnes hic
praesentes me intellegere possint. Liceat igitur mihi, professori egredienti,
ingredientem salvere iubere, atque, ut Persiano versu tibi Dne. Faria, notissimo
incipiam, sic exordior:

Hunc, Erneste, diem numera meliore lapillo!

Hic enim est dies, quo sollemniter Doctor Latinus agnosceris, quo in sacrum
Magistrorum gremium reciperis, quo augustam hanc Musarum sedem coronatus
ingrederis. Sed quid te dico ingredientem? Nonne iam multis ex annis hic te
vidimus operantem, erudientem, docentem? Nonne iampridem Magister es
egregius? – Sane id quidem; sed Magistri se habent – venia sit comparationi –
ut boni Christiani, qui, non tantum baptizati, verum etiam confirmati esse debent.
Post baptismum receptum Christianus adhuc indiget confirmatione, sancto
christimatis sacramento, ad fidem firmandam atque roborandam.
Ita amicus Faria, ut bonus Christianus, idem iam erat bonus Magister,
baptizatus in undis laborum magistralium. At – felicius quam ego numquam
talem gratiam adeptus – Dnus. Faria nunc rite est confirmatus sollemni concursu,
quem vocant, ut Doctor linguae Latinae! Atque, quoniam in confirmatione opus
est patrino aliquo, velut chrismatis patrono, nescio an non videatur temerarium
vel insolens offerre me tamquam talem patrinum, qui manum benevolam
beneficamque nunc tibi imponat dicens: Doctor Faria, esto fortis atque robustus,
utpote munitus ac firmatus in magisterio. En, commissa est tibi ista iuventus
Brasiliana literarum cupida: erudi eam, doce eam linguam literasque Latinas,
hoc sapientiae sacrarium, matrem hanc linguarum Romanicarum omnium
nostraeque Lusitanae. Nobilissima est lingua Latina, prima omnium linguarum
toto orbe terrarum quandocumque inventarum, lingua est Sanctae Matris
Ecclesiae lingua est omnium scientiarum universalis!
Ac vobis, cari discipuli discipulaque, dico: estote dociles assiduique in studiis,
applicantes ad Latinum illud Horatii de Graeco dictum: ... vos (monumenta
Latina) / Nocturna versate manu, versate diurna! Tam insigni Magistro usi
Professor Ernesto de Faria Júnior 31

discite legere Latine, Ioqui Latine, scribere Latine! Sane difficile illud quidern
est, atque, ut ait idem Horatius:

Qui vult optatam cursu contingere metam,


Multa tulit fecitque puer, sudavit et alsit

Sed en, astat vobis victor laureatus, Doctor Faria: eius aemulamini
exemplum, eius utimini auxilio!
Omnia denique ut versibus nostro amico dicatis complectar, disticha aliqua
a me composita pro fine afferre iuvabit:

Sermonis Latii Doctor nunc rite probatus


Es iure ac merito: grator, amice, tibi!

Gratulor ex animo tibi, care et clare Magister,


Doctor perpetuus nunc stabiliris enim

Suumque Magister sis stabilis, stabilis tibi fiat


Haec tibi corde precor – vita salusque diu,

Augeat et vires tibi maximus ille Magister,


Ipsius in laudem sisque Magister amans!

Sitque tibi curae semper refovere iuventam


Doctrina solida moribus atque bonis

Atque ita per multos servet Deus optimus annos


Te sophiae columen Brasiliaeque decus!

Gratulabundus cecini
Georgius Henricus Augustinus Padberg Drenkpol

1.3 Saudação do Professor Assistente, Pe. José Joaquim Lucas

Prof. Ernesto Faria

Quis a nímia bondade de meus colegas, vossos assistentes e vossos ex-


alunos, fosse eu, na solenidade augusta desta hora, o intérprete do júbilo intenso
32 Rosalvo do Valle

que lhes exulta a alma, neste momento de verdadeira glorificação de vossos


méritos, neste dia de justa consagração de uma vida inteiramente voltada ao
estudo e toda dedicada às rudes lides do magistério.
Se há quem possa avaliar com precisão objetiva este vosso merecido triun-
fo, ninguém o poderá melhor do que aqueles que vêm pari passu seguindo a
vossa trajetória, partilhando com mão diurna e noturna dos vossos labores, aus-
cultando os vossos anhelos, comparticipando de vossas lutas e vitórias: os vos-
sos assistentes.
Ninguém poderá ajuizar mais de perto dos vossos méritos, do que os vos-
sos ex-alunos, que convivendo tantos anos convosco, receberam vossas luzes e
se beneficiaram de vossos conhecimentos.
Todos nós sabemos o que representa esta vitória, que hoje definitivamente
se consolida.
Todos nós bem conhecemos a significação dos louros que vos aureolam a
fronte.
Todos nós compreendemos a justeza do prêmio que hoje vos galardoa a
perseverança, pois não desconhecemos as dificuldades que tivestes de enfren-
tar e acompanhamos com admiração e entusiasmo o dinamismo de vossas
atividades e o ideal magnifico, que sempre norteou vossas atitudes de verdadei-
ro mestre apaixonado pela matéria, que lecionais.
Não ignoramos os ataques de que fostes vítima da parte daqueles que não
compreenderam vossos esforços no intuito de valorizar e aprimorar sempre
mais os estudos clássicos de nossa mocidade.
Um dia, imitando a modéstia do máximo orador de Roma, gravastes na
página de rosto de um trabalho vosso os seguintes dizeres: quo minus ingenio
possum, subsidio mihi diligentiam comparaui Até há pouco, vossa admirá-
vel dedicação ao magistério demonstrou cabalmente que tivestes diligência igual
à do orador romano.
Hoje, porém, as provas brilhantes de vosso concurso patentearam além
de vossa diligência, o indiscutível valor de vosso engenho, de vossa cultura. A
conclusão magnífica de vossas provas universitárias, como as de vossos cole-
gas, vêm desfazer fragorosamente a versão maldosa de que a Faculdade de
Filosofia era um recesso, onde se acoitavam valores hipotéticos receosos de
uma comprovação pública e oficial de suas reais possibilidades.
Nós que sentimos o orgulho de ter sido alunos desta Faculdade e alguns a
honra de ser vossos assistentes, não poderíamos deixar de nos sentir ufanos ao
vermos que vós e outros antigos mestres nossos fizeram merecidamente jus à
gloria de integrar esta Congregação, como expoentes da cultura universitária
no Brasil. Hoje podeis com ufania parafrasear o poeta venusino:
Professor Ernesto de Faria Júnior 33

“Sublimi feriam sidera uertice”

Fostes, porém, bem mais feliz do que o célebre cantor da Apúlia.


Aquele, apesar de seu incontestável valor, não teria logrado a glória que
conquistou, se não conquistasse as boas graças de Mecenas.
Vós, porém, sem os bafejos de uma proteção palaciana, merecestes esta
consagração, que ora se realiza graças exclusivamente ao vosso valor e cultura
pessoais.
Por tudo isso, prezado Mestre, rejubilam-se convosco vossos assistentes
e vossos ex-alunos e calorosamente vos felicitam nesta hora solene, partilhan-
do assim do alvoroço e do júblio legítimo de toda nossa Faculdade.

Pe. José Joaquim Lucas

1.4 Saudação do representante do corpo discente, Baltasar Xavier.

Prof. Ernesto Faria

Recebi o grato encargo de saudar-vos neste momento, em nome do corpo


discente da casa, principalmente os alunos de Letras.
Um jogo de contrastes faz com que, assim, o menos moço dos discípulos
se dirija, sem maiores embaraços, ao mais jovem dos catedráticos.
Da minha parte ( modesto autodidata insatisfeito que bateu às portas da
Faculdade de Filosofia não só por um escrúpulo de adimplemento de formalida-
des legais – tal o rábula provisionado que atravessasse, um dia, o limiar dos
cursos jurídicos – mas também, e sobretudo, por desejar reajustar a sua forma-
ção científica e literária no convívio universitário, entre mestres esclarecidos,
através de bibliografia fresca e vívida e por meio de pesquisas e discussões
oportunas), da minha parte, dizia, já o vosso nome e a vossa obra, mesmo longe,
não eram estranhos. Melhor: não eram indiferentes. Mais ainda: despertavam
o estudo e as indagações, semelhantes, quiçá, a essas pedrinhas que se jogam
à superfície plácida dos lagos e desenvolvem um sem-número de ondas e
encrespações...
Soube, desde logo, e com agrado, que éreis apenas professor-professor. E
não professor-dentista ou professor-farmacêutico ou professor-qualquer-cousa-
mais, classe de que se queixava, nos centros universitários platinos, em escrito
34 Rosalvo do Valle

recente, Mestre Amado Alonso e à qual, nos seus empirismos, nas suas dissipa-
ções ou nas suas suffisances (digamos assim), atribui ele grande parte do
malogro das técnicas ou dos melhores empenhos científicos.
Quando, pois, há três anos, transpus o vestíbulo da casa, com todos os
ônus que isso me acarretou, naturalmente passei a observar de perto o homem
e a obra que já me chamara a curiosidade. Senti – e ainda agora este sentimen-
to me permite estes reparos – senti que não tínheis muito jeito para medalhão-
pendurado-na-glória ou mesmo para catedrático-enfaixado-nas-becas-boloren-
tas. Tanto melhor. Agitava-se ou perpassava, entretanto, nas suas inquietações
ou na sua vocação apostolar, um autêntico estudioso e pesquisador, para o qual
a sua disciplina, o latim, também não obrigava a espirros e rapés, nem oferecia
engrolações retóricas e pomposas, para engano d’almas ingênuas e embeleco
das rodinhas de botica, entre o gamão e o tabuleiro de damas. Vi que não
possuíeis o Chernowitz nem líeis horóscopos para a freguesia.
Foi sempre – e é ainda – a minha observação. E não há decepção nenhu-
ma nisso. Pelo contrário.
Como quer que seja, escusamo-nos os vossos alunos – meros aprendizes
que somos – de fazer julgamentos sobre os vossos invulgares méritos culturais
e profissionais, pois os vossos livros são do conhecimento dos doutos, vossa
carreira funcional manteve constante impulso ascendente e, mais do que tudo,
penso eu, vosso recente concurso público documenta suficientemente; esse
concurso em virtude do qual vos é agora conferida a dignidade de Catedrático
efetivo da Universidade e, em conseqüência, a de Doutor em Letras Clássicas.
Está presente aqui, neste momento, a maioria dos vossos severos e sapientíssimos
examinadores, juizes e, agora, testemunhas mais do que fidedignas da vossa
vitória inconcussa e galharda.
Por falar nesse concurso: assisti a todos os atos públicos dele e, franca-
mente, vale a pena comprar caro uma cadeira de primeira fila, como fiz eu
(como fez, por exemplo, Mestre Sousa da Silveira), para assistir a justas gentis
e renhidas como essa de que saístes armado cavaleiro da vossa dama, isto é, da
vossa cátedra e da vossa disciplina querida. Soubestes, vós e os vossos temí-
veis contraditores da banca examinadora – às vezes verdadeiros advogados-
do-diabo – evitar o choro e o ranger de dentes desses prélios infernais a que se
dá o nome de concursos públicos de magistério. Vimos todos, por exemplos,
como nem se queimaram hereges em efígie ou, sequer, a reputação de ninguém
saiu ferida com uma flor de retórica ao menos, nem mesmo com um mau
pensamento ou alusão longínqua. Alunos, trouxemos essa lição de nobreza, que
valeu.
Professor Ernesto de Faria Júnior 35

Agora, recebei o prêmio da vossa sinceridade de propósitos, da vossa


honestidade intelectual, de vossas próprias fadigas físicas e, por ventura, dos
vossos dissabores morais, resultantes, vez por outra, de qualquer golpe proibido
de outras refregas menos felizes.
O vosso poeta, aquele jovem poeta da virtude (como diz Vincenzo Monti),
começa a sua primeira sátira com este verso desalentado:

O curas hominum! O quantum est in rebus inane!

“Ó preocupações humanas! Quanto vazio existe em tudo!”

Tal não é, de forma alguma, a vossa situação. Lutas, canseiras, aflições,


pragas ou doestos, já não há que valham. Ganhastes a batalha e recebeis agora
a vossa panóplia e, mesmo, os vossos troféus.
Não há vazio nenhum hoje. Esta é uma hora plena e este é um dia cheio.
Podeis mesmo, neste esplendente show de amigos, discípulos e admirado-
res, usar da vaidade ingênua do vosso Aulo Pérsio, no verso 28 da mesma
primeira sátira:

At pulchrum est digíto monstrari, et dicier: hic est!

“Mas como é bonito ser apontado com o dedo e ouvir dizerem de si: ele é este!”

Pois não, meus senhores: hic est!

Baltasar Xavier
2. Um Humanista.
Tristão de Athayde

Escreveu Garrett que Camões morreu com a pátria. Teria o nosso Ernes-
to Faria Júnior morrido com... o latim?
É provável, pelo menos, que a morte do latim, em nosso ensino secundá-
rio, poucos dias antes de sua própria morte, tão inesperada e prematura, tenha
apressado o seu fim. Pois se pode dizer que viveu para o latim e para o seu
ensino. Desde os tempos da Universidade do Distrito Federal – quando Capa-
nema colocara o latim no centro da formação ginasial – dedicara-se Ernesto de
Faria de corpo e alma à grande língua, fonte da nossa e veículo de tanta e tão
36 Rosalvo do Valle

perene sabedoria. A princípio, de modo hesitante e canhestro. E, por toda a sua


devotada carreira de mestre, sem dar ao ensino aquele calor de transmissão
que convence os alunos e é capaz de dar vida a uma língua morta.
Pois bem, à custa de um ingente esforço de dedicação e de estudo, conse-
guiu vencer todos os obstáculos e pouco a pouco se tornar um autêntico mestre
no seu ramo científico. Publicou obras didáticas valiosas. Participou de con-
gressos internacionais de filologia, onde deixou uma sólida reputação. Criou
todo um grupo de discípulos, assistentes e auxiliares de ensino, aos quais comu-
nicara a sua paixão pelo venerável tronco de nossa linguagem. Contava, com
esse incansável trabalho, corrigir o principal obstáculo que encontrara, no cam-
po do ensino, à drástica introdução do latim, como matéria básica de formação
humanista: a falta de professores. Não basta fazer de uma matéria, por mais
fundamental que seja, a coluna mestra da formação educativa. É mister que
haja professores em número e qualidade suficientes, para que a reforma não
seja apenas de caráter nominal. Foi o que ocorreu com o latim. Não havendo
mestres em número suficiente e tendo a matéria sido introduzida nos progra-
mas, em caráter maciço e inesperado, o resultado foi, até certo ponto, contra-
producente. Criou-se, tanto nos professores como nos alunos, tanto nas dire-
ções dos estabelecimentos como na opinião pública, o sentimento de que
realmente era o latim um ensino acadêmico, anacrônico, ornamental, que deve-
ria ser substituído, como acabou sendo, num passe de mágica, por uma dose
maciça de ciências. Passou-se, como sempre, de um extremo a outro. Ou o
latim no centro do ensino secundário. Ou o latim como simples matéria optativa.
E, para substituir o excesso de latim, o pragmatismo utilitarista introduziu o
excesso de ciências... E como não há, tampouco, professores de ciências em
condições de ensinar como deve ser, vai suceder com as ciências o que ocor-
reu com o latim: ao cepticismo latinístico o cepticismo científico...
Enquanto isso, o nosso apóstolo dos estudos clássicos desaparece em ple-
na maturidade de espírito, quando estava justamente dando os frutos de sua
extrema dedicação ao estudo da nossa língua tronco. Não sou fanático do en-
sino do latim, no currículo secundário. Maritain o substitui, mesmo, em seu
plano pedagógico, pelo da lingüística geral. E considero que o latim mal ensina-
do, como desde a nossa geração vinha ocorrendo, dá armas aos adversários da
cultura humanística e concorre para espalhar o cepticismo pedagógico, que a
indigestão de ciência tampouco há de curar.
Seja como for, o nosso grande latinista teve a sua morte precipitada, sem
dúvida, pelo grande desgosto com que a passagem do latim para matéria mar-
ginal lhe ensombrou os últimos dias de vida. De uma vida de tal amor à causa
Professor Ernesto de Faria Júnior 37

do ensino e de tão alta dedicação à nobre matéria a que se dedicou, sem reser-
vas, que seu nome ficará para sempre ligado à história do nosso incipiente e
mal-aventurado humanismo. Mas, como a gloriosa língua do Lácio, insuperável
instrumento não apenas de ilustração, mas de cultura, sobreviverá a todas as
mortes e ressurreições parciais a que as reformas de ensino a tem submetido,
o nome do nosso saudoso mestre e amigo também sobreviverá ao seu prema-
turo e inesperado desaparecimento.

Jornal do Brasil, 6/4/1962.


3. Dois Textos da Professora Amelinha.

23 de maio de 1962

Nosso querido Mestre – Prof. Faria – emudeceu. O coração humano


deixou de pulsar, mas persiste a irradiação de sua bondade que nos vai envol-
vendo pela vida afora, para converter a “ausência” dolorosa em uma “presen-
ça” de pensamento, de espírito, de vida verdadeira.
Seus livros, que compõem obra douta e esclarecida, ficaram-nos a jorrar
doutrina e autenticidade. Professores ilustres respeitaram-na e louvaram-na,
no Brasil e no estrangeiro. Graças a ela, non omnis morietur, “ele não morrerá
de todo”. Assim conforta-nos o poeta Horácio, quando a saudade convida-nos
a rememorar virtudes do Mestre que se despediu, no apogeu de sua carreira,
com um entusiasmo e um fervor que eram riqueza de sua personalidade. Bem
posso estender à sua vida aquelas reflexões que Coelho Neto dirigia, fraternal-
mente, ao Dr. Carlos de Laet (também professor):

“Felizes os que chegam à tarde da vida com a mesma alegria, com a mesma saúde
espiritual e a mesma fôrça de ânimo com que nela amanheceram. Quantos logram
tal ventura? Raros e esses são os privilegiados de Deus”.

Tarde privilegiada de emoção e carinho seja esta em que homenageamos


um “privilegiado de Deus”: modelar chefe de família, educador estudioso, após-
tolo fiel de sua doutrina, intelectualmente apaixonado pela tradição humanísti-
ca, homem tenaz nos seus propósitos. Desalentos, incompreensões, às vêzes
mágoas d’alma, não alcançaram arrefecer o impulso do Ideal que abraçara.
Sempre na brandura de sua amizade todos o haviam de encontrar pronto para
servir e ajudar – atento, delicado, de uma simplicidade cativante.
38 Rosalvo do Valle

Amava esta Faculdade, apegou-se a ela afeiçoadamente. Seus problemas


ocupavam-lhe as melhores horas de trabalho; sonhava para ela a projeção mais
alta no cenário universitário e, à semelhança de um Pai vigilante, pressentia os
anseios adultos ou pueris dos nossos alunos.
Tudo aquilo que atingisse o saber, a inteligência, o conhecimento, era uma
festa para o Prof. Faria. Seu legado emoldura-lhe a lembrança – tão amiga! –
e há-de florescer: um nome honrado, um exemplo de vida consagrada à causa
do ensino. Super omnia e super omnes a sua atuação nesta Casa foi brilhante,
sem ostentação. Semeou renovação e esperanças:
Tive abençoados anos de convivência com o Prof. Faria, desde que, pela
1ª vez, ainda ginasiana, fui-lhe apresentada por um seu colega e meu antigo
professor de inglês – Dr. Carlos Ramos. Recebi, então, lições para ingressar na
Universidade do Distrito Federal. De lá até o triste dia de sua morte, nunca
empalideceu a amizade e o reconhecimento que lhe devo.
Hesitei em falar, hoje. A perda do amigo generoso repassa-me a alma de
saudades, sombras do que se foi... mas, sendo o dia de seu aniversário, e à
custa de recordar como, nesta data, o víamos mais alegre do que sempre, sinto-
me feliz porque, no silêncio de Deus, eu acredito que êle nos está ouvindo,
nessa harmonia misteriosa que une as criaturas ao Criador.

Maria Amélia Pontes Vieira

22 de março de 1963.

Nesta sessão de abertura da 3ª Semana da Grécia, quando deveríamos


ouvir o nosso pranteado chefe e amigo – Prof. Ernesto Faria – discorrer sôbre
“os estudos clássicos no Brasil” – não poderia a cadeira da qual era digno e
sábio catedrático deixar de se expressar, comovida e humildemente, homena-
geando, assim, aquêle que hoje continua e continuará presente e vivo em nossa
lembrança. Presente nas salas de aula desta Faculdade que êle tanto estimava,
presente pela moderna orientação que imprimia a seus cursos, presente pela
bondade com que pacificava difíceis situações.
Sua alegria, bom humor e otimismo davam um colorido característico à
sua personalidade. Alegre se sentia se podia ajudar alguém. A alunos abria,
generosamente, sua casa, e a acolhida que lhes dava era tôda especial.
No trato diário sua simplicidade a todos cativava. Sabia ser enérgico sem
intransigência, divergia sem ferir e era de uma habilidade sem par para fazer
amigos.
Professor Ernesto de Faria Júnior 39

Dos 37 anos que dedicou ao magistério ininterrupto do latim, 22 êle os


consagrou a esta Faculdade. Lutou, sem tréguas, para o engrandecimento des-
ta Casa que honrou e serviu até o fim de sua vida.
O aprimoramento da cultura e uma larga visão da realidade foram sempre
o seu norte nos cursos que ministrou.
A obra esclarecida e douta que imortalizará, sem dúvida, é um testemu-
nho vivo do seu devotamento à causa do ensino.
Evoquemos, para finalizar, uma página do saudoso ausente que bem refle-
te o respeito que tributava às tradições humanísticas de nossa educação e que
êle, na paz de Deus, a recolha como sentida homenagem de seus auxiliares,
enlutados com sua tão inesperada partida:

“Assim, tudo nos leva a persistir em dar à nossa educação nacional uma orienta-
ção nítida e preponderantemente humanística, no sentido mais amplo do têrmo,
isto é, de forma a dar aos nossos adolescentes uma cultura geral harmônica e
equilibrada. Esta cultura evidentemente compreenderá em si a prática da experi-
mentação científica e sua técnica de observação, elementos essenciais da cultura
contemporânea. Mas também não deixará de dar os elementos, tão indispensá-
veis quanto aquêles, para que o nosso adolescente possa por si mesmo com-
preender que a sua civilização e a sua língua, o que dela faz parte e a integra,
tiveram um passado que lhe cumpre conhecer para que o possa amar, que acima
das contingências materiais há grandes princípios e nobres ideais que devem
nortear a sua vida no sentido da solidariedade humana, da confraternização uni-
versal, da justiça, do bem e da paz. É esta superior hierarquia de valores que
nossos estudos de humanidades sempre procuraram alcançar, constituindo o
melhor de nossas tradições culturais”.

Professora Maria Amélia Pontes Vieira

4. Carta da Associação de Estudos Clássicos do Brasil.

São Paulo, 23 de março de 1962.

Excelentíssima Senhora Dna. Ruth Faria

A Secção de São Paulo da Associação de Estudos Clássicos não pode


deixar de comparecer, verdadeiramente enlutada, perante Vossa Excelência, a
fim de exprimir-lhe o mais profundo pesar pelo falecimento do seu ilustre esposo,
40 Rosalvo do Valle

Senhor ERNESTO FARIA JÚNIOR, possuidor dos mais preciosos dotes de


espírito e de caráter. Com êle perdeu Vossa Excelência o companheiro amante
e dedicado, e a Associação de Estudos Clássicos o grande Presidente que tanto
batalhou pela sua causa e pelo triunfo dos seus ideais.
A Secção de São Paulo, em reunião de 17 do corrente, por proposta do
Senhor Desembargador JUAREZ TOLEDO BEZERRA DE MENEZES, una-
nimemente aprovada, fez consignar em ata a expressão daquele pesar. Usou
da palavra o Professor Dr. ARMANDO TONIOLI, que prestou à memória do
seu saudosissimo confrade e Presidente Geral as sentidas homenagens de to-
dos. Por proposta da Professora Dra. AÍDA COSTA ficou decidido celebrar-
se uma missa em sufrágio da alma do querido Amigo, no dia 7 de abril, às 9
horas, na Igreja da Consolação, nesta cidade.
Também o Prof. Dr. ROBERT HENRI AUBRETON deu conta da parti-
cipação que tivera em nome da Associação de Estudos Clássicos do Brasil, da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, do
Departamento de Letras e em seu próprio nome, nos funerais realizados, como
afetuoso amigo do Professor ERNESTO FARIA JÚNIOR. O Professor
AUBRETON acrescentou o testemunho de sua tristeza que era a de todos os
presentes.
Queira, Excelentíssima Senhora, aceitar o testemunho da elevada consi-
deração com que, pela Secção de São Paulo da Associação de Estudos Clássi-
cos, tenho a honra de subscrever-me.

De Vossa Excelência respeitoso servidor,


Mauro W.Q. de Almeida
Secretário da A. E.C.B
Secção de São Paulo

5. Texto de Antonio Houaiss

Homenagem

Ernesto de Faria Júnior – autoralmente Ernesto Faria – nasceu na cidade


do Rio de janeiro, em 1906 e nela morreu em 1962. São passados, assim, vinte
anos de sua ausência – e, no ensejo em que se reedita uma obra sua de refe-
rência e permanentemente útil, é justo que um dos seus alunos – que dele fui
desde 1930 – aqui diga umas palavras a seu respeito.
Professor Ernesto de Faria Júnior 41

Discípulo que fora (e que – repetia-o – continuou toda a vida) de Antenor


Nascentes nos bancos escolares secundários, Ernesto Faria ao mestre se ligou
por devota amizade, que despertou cedo nele a vocação do magistério – por-
que, noutros tempos, antes de ser duro meio de vida, o magistério era vocação
e duro meio de vida. Mas, se o mestre – rico de helenidades, latinidades, roma-
nicidades, hispanidades, lusitanidades, brasileiridades – preferira enveredar,
depois de incursão no ensino do espanhol, pelo senhorio e ensino do português,
a ele, Ernesto Faria se impunha responder ao seu chamamento mais íntimo: iria
ser professor de latim, iria ser latinista. Na verdade, Antenor Nascentes e Er-
nesto Faria buscaram a mesma coisa, a cultura linguageira, mas cultura lingua-
geira que, em lugar de formar potenciais mundanos cosmopolitas hedonísticos
ou também e concomitantemente burocratas e empreseirios, formasse sobre-
tudo homens de inteligência e sensibilidade abertas a mudanças e à necessida-
de de mudanças em que a compreensão profunda das diferenças fosse a con-
dição para uma justa vivência e participação de um mundo só, tragicamente
dilacerado embora.
A entrada de Ernesto Faria no magistério oficial se fez por concurso de
provas para a seção de português, latim e literatura do ensino técnico-secundá-
rio da Prefeitura do Distrito Federal: na Escola de Comércio Amaro Cavalcanti,
fazia pouco inaugurada (onde eu entrara logo para o seu curso propedêutico,
após o que teria os meus anos de perito-contador, que os tive), nessa escola, em
1930, eu estava na turma a que ele deu sua primeira aula oficial de português,
com uma técnica didática aliciante que desenvolvera no seu exercício de pro-
fessor de escolas particulares. Terminada a aula, tive consciência de que ao
meu destino se acenavam horizontes novos: iria eu também dedicar-me à mi-
nha língua vida em fora (já que ainda ignorava que, para ele, o objetivo principal
era outro, era o latim). A escola – sob a inspiração de Anísio Teixeira – recebia
logo uma impressionante galeria de professores notáveis: além de Ernesto Fa-
ria, fomos – os do meu tempo – alunos de Joaquim Mattoso Câmara Júnior,
Pascoal Leme, Adelino Magalhães, Maria Junqueira Schmidt e tantos mais,
cuja importância o tempo veio a confirmar.
Em pouco, comecei a freqüentar vorazmente a biblioteca de Ernesto Fa-
ria – que me indicou naquele então tudo que estivesse à altura de minorar
minha incultura e deserudição quanto a literatura – brasileira, portuguesa, espa-
nhola, francesa, latina – quanto a filologia, quanto a lingüística. Quando faltas-
se, na biblioteca de mestre Nascentes se ia, respeitosamente, buscar. E nelas
nem me faltaram leituras politizantes.
42 Rosalvo do Valle

Vi-o, a Ernesto Faria, após as canseiras das aulas diárias, lutar contra o
tempo, no preparo sôfrego de sua tese de concurso para a cátedra de latim do
Colégio Pedro II, A pronúncia do latim, novas diretrizes no ensino do latim:
era o ano de 1933. Escusa dizer que, com 27 anos de idade, era muita petulân-
cia sua querer dar diretrizes ao ensino de uma língua que, com raízes numa
tradição multissecular, fora também a primeira língua de cultura ensinada no
país sob diretrizes mais que sabidas e consabidas. Quem era aquele magro
professorzinho para propor “nova” didática, mais que isso, novas diretrizes,
novas idéias-forças para o ensino, o aprendizado, o uso moderno do latim? E –
a haver uso – que uso?
Qualquer síntese que se tente fazer da luta docente de Ernesto Faria fica
sem sentido, se não se buscar resumir seu pensamento sobre o ensino, o estudo
e o uso do latim na contemporaneidade – sobretudo porque seu pensamento se
tornava maduro a esse respeito exatamente quando a “crise do latim” chegava
ao auge no Brasil.
Ernesto Faria estava, já então, convencido de que eram profundamente
negativas as seguintes posturas em face do latim: 1) ensiná-lo a reboque da
tradição – eu diria mais rigorosamente – a reboque da inércia com que se
amolecera dentro da Cúria romana e da docência nos seminários católicos
mundo em fora; 2) ensiná-lo como língua viva e, por conseguinte, como coisa
que tivesse em si mesma seu fim, já que duma língua viva o que se deve querer
é o seu manejo, oral e escrito (se língua viva de cultura) para as situações
sociais concretas em que os interlocutores (ou interscribentes) necessitam dela
para se comunicarem. Ao invés disso, Ernesto Faria postulava: 1) não se bus-
cará “falar” nem se buscará “escrever” o que já não se fala nem se escreve –
e “onde” se fala e se escreve o latim é um reduto que quase nada mais tem do
latim, a Igreja e certas universidades que pediam teses em latim: no mínimo, aí
havia – ressalvadas as mensagens universalistas papais para povos de todas
as línguas – um exibicionismo aristocrático e elitista classificatório, sem possí-
vel proveito senão para os iniciados, muito reduzidos num mundo em democra-
tização do saber; 2) era a insistência em querer fazer “falar” e “escrever” latim
que transformava esse ensino em algo irracional à sensibilidade e inteligência
dos estudantes, violentados por essa total gratuidade – já que, como “exercí-
cio” mental, dizia-se, o xadrez, a lógica, as matemáticas dariam (e davam)
mais; 3) entretanto, o latim era, efetivamente, a chave para uma aquisição
constelar da língua portuguesa de cultura e, com ela, das línguas românicas de
cultura e, com elas, das línguas de cultura, sem falar da abertura cultural que
havia em saber ver as sementes do presente no passado, em abundância no
Professor Ernesto de Faria Júnior 43

passado clássico (que explicava também a Antiguidade oriental), sem o qual a


Idade Média seria (mas não era) um interregno de sombras, o Renascimento,
um capricho, e a modernidade, um acaso.
Creio que – embora sintetizadíssimas, linhas acima – fui fiel à pregação
de Ernesto Faria, quanto à conveniência, à oportunidade, à vantagem, à neces-
sidade do estudo do latim no mundo de hoje: o problema era, pois, acima de tudo
o de uma nova visão do presente, para melhor querer do passado, do passado
potencialmente presente.
De todos os modos, pareceu ao seu tempo algo deslocado que quem pos-
tulava o reconhecimento do latim como língua que não devia ser ensinada para
ser falada apresentasse como tese de concurso algo sobre a pronúncia do que
não se destinava a ser falado.
Era, é óbvio, o sofisma. Ernesto Faria, em sua obra, mais de uma vez
tratou do trabalho pioneiro, nesse respeito, de Vicente de Sousa – Vicente Fer-
reira de Sousa (1852-1909) –, que fora professor do Colégio Pedro II e que
buscara divulgar entre nós a pronúncia reconstituída ou restaurada – a pronún-
cia clássica – do latim. A questão não se propunha como bizantinice ou chinesice
ou trivialidade da erudição: todos os sistemas fonológicos românicos – e seriam,
“nacionais”, muitos; regionais, dezenas; dialetais, centenas ou milhares – só se
compreendiam se enlaçados ao românico ou ao (dito) latim vulgar, já de si regio-
nalmente diferenciado, e repropunham ou retropropunham aquela pronúncia do
latim. Ora, se o latim passasse a ser estudado sobretudo como “fonte” – histó-
rica, cultural, literária, lingüística, lexicológica, fonológica, sintáctica, semântica
– das línguas românicas e das línguas modernas de cultura, era evidente que a
questão da sua pronúncia se alçava à categoria de questão necessária – fácil,
aliás, de provar e dominar, por quem não estivesse imbuído de preconceitos.
Compreende-se, assim, que Ernesto Faria malograsse no seu intento de
conquistar a cátedra de latim do Colégio Pedro II. E – pelo que se viu subse-
qüentemente – perdeu-se, com isso, o único batalhador capaz, através do pres-
tígio então ainda vivo daquele estabelecimento de ensino, de lutar por uma
causa que se degradou pela interferência do equívoco quanto aos fins e do
desconhecimento quanto aos meios de quantos quiseram entrar na querela do
latim ou não-latim no nosso ensino e nosso meio.
Em verdade, uma das grandes motivações para Ernesto Faria como autor
– ao lado do sempre professor – foi produzir livros em três frentes da mesma
batalha: livros escolares de nível secundário ou superior, que apoiassem o ensi-
no do latim segundo sua visão, nas diretrizes que deviam inspirar o estudo do
latim no mundo moderno como esforço do adolescente de fazer-se mais apto
44 Rosalvo do Valle

ante o mundo; livros didáticos de alto nível que orientassem os professores no


seu trabalho de ensino do latim, e livros de cultura que, abertos a leitores menos
especializados ou habilitados, os tornassem capazes de opinar sobre a impor-
tância do latim e da cultura clássica no mundo de hoje.
Desse modo, a docência e a autoria foram atividades paralelas e comple-
mentares – que poucos conseguem realizar de forma tão harmônica quanto o
fez Ernesto Faria.
O lado mais humano de sua vida é aqui omitido, mas não esquecido: lem-
bremos que, órfão de pai muito cedo, teve consigo sempre sua mãe, ela tam-
bém professora nos seus tempos de trabalho; que, quando do seu primeiro
casamento, sofreu a perda trágica de sua primogênita num brutal acidente de
tráfego urbano, que o marcou para sempre, pois foi a causa de sua – à maneira
de Alceu Amoroso Lima – reconversão ao catolicismo; que cedo enviuvou; que
reviveu sua vida conjugal abençoando-se com novos filhos; que cumpriu sua
vida estigmatizado pela presciência do que teria, como seu pai, vida curta – o
que, em certo sentido, foi assim, pois a morte lhe veio, pela feição não esperada
de mal cardíaco fulminante, quando apenas tinha cinqüenta e seis anos de vida
e todo um horizonte de projetos de trabalho pela frente. Morte que, sem piegui-
ces, foi uma resposta emocional à degradação que sancionava contra o ensino
e estudo do latim.
Seu trânsito para o ensino superior se deu como professor assistente de
língua latina na Universidade do Distrito Federal em 1936, universidade que
iria, breve, ser ingloriamente absorvida com a criação da Faculdade Nacional
de Filosofia, integrada na Universidade do Brasil; em 1939, Ernesto Faria era
catedrático de língua latina dessa faculdade; em 1946 era nela chefe do depar-
tamento de letras e em 1952 seu vice-diretor: dez anos depois, no seu gabinete
de trabalho na faculdade, foi visitado pela Parca.
De 1933 a 1962, em vinte e nove anos de labor sem vagares, Ernesto
Faria produziu dezessete títulos, pelo menos (sem contar conferências e artigos
cujos textos não foram ainda recolhidos). Quem compulse seus livros, observa-
rá a presença quase constante de agradecimentos dirigidos a amigos, em ver-
dade ex-alunos seus ou ainda então alunos seus. É que poucos mestres terão
tido, mais que Ernesto Faria, o desejo e o sentimento de fazer escola, de criar,
em suma, um grupo de continuadores que no magistério e fora dele, se dessem
à causa que abraçara. O utilitarismo de visão estreita, o engurgitamento curri-
cular, a massificação – por oposição à democratização – dos quadros docentes
e discentes foram progressivamente reduzindo o latim a tão pouco, que a mui-
tos pareceu melhor extingui-lo.
Professor Ernesto de Faria Júnior 45

Não citarei nomes dos que se fizeram seus discípulos, numa linha que vem
de Antenor Nascentes – e, antes, de Fausto Barreto – e é por ele continuada.
Temo omitir. Mas estou certo de que a muitos deles que lerem esta nota lhes
ocorrerão traços inconfundíveis do mestre e amigo que foi Ernesto Faria, tão
atento à formação cultural de cada um e ao mesmo tempo tão solidário com a
vida material, espiritual e sentimental de cada um.
A bibliografia de Ernesto Faria, aqui estampada, não busca ser exaustiva,
tanto é fato que o primeiro título, acima referido, dela não consta – a sua tese
de concurso.
Nessa bibliografia ver-se-ão as três vertentes do seu trabalho autoral. O
que não se verá, porém, é a adequação de cada texto ao projeto que o animava
– fazer do latim e sua cultura um instrumental cultural que situe o estudioso e o
homem no universo da cultura contemporânea sempre que esta vise a um tipo
de universalidade humanística que não busque uma tecnificação que tangencia
a pulverização dos homens em cada homem.
Os livros – os livrinhos, disse o fabulista – têm seu destino. Alguns mor-
rem, mas foram ou não foram fecundos. Há, no acervo autoral de Ernesto
Faria, alguns que pulsam de vitalidade e que continuam vivos para quantos
queiram não apenas estudar o latim e sua cultura, mas também buscar suas
conexões com o português e as línguas de cultura e o mundo moderno. A ree-
dição do seu Dicionário escolar latino-português, é assim, relevante e aus-
piciosa para quantos, muito além e muito aquém do escolar, se interessem por
aqueles fatos de cultura.

Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 1982.


Antônio Houaiss
(da Academia Brasileira de Letras)

6. In Memoriam

Ernesto de Faria (1906-1962)


Avec Ernesto de Faria la latinité perd un de ses répondants les plus sûrs et
L’Amérique latine um des représentants les plus éminents de la science
mondiale.
Dès sa vingtième année, Ernesto de Faria inaugurait sa carrière
d’enseignement au Collège Pedro II de Rio de Janeiro, et peu après entrait au
Lycée Français comme professeur de latin. Ses premiers cours le désignèrent
46 Rosalvo do Valle

à l’attention de nos compartriotes Jérôme Carcopino et Jacques Perret, envoyés


à Rio em mission, et em 1939 il était investi de la chaire de langue et littérature
latine de L’Université du Brésil. Vice-dirécteur de la Faculté Nationale de
Philosophie en 1946, il accédait au directoriat en 1957, pour être réélu em 1960,
em même temps qu’appelé à présider l’Association des Études Classiques du
Brésil.
Quand je fus appelé em mission à Rio, je trouvai le professeur De Faria
investi d’une sorte de mission tacite de promoteur et organisateur des études
latines au Brésil: la cohorte de ses élèves, l’essaim de ses assistants et jeunes
collègues l’entouraient d’une atmosphère d’affection respectueuse et de quasi-
dévotion, qu’ont pu apprécier au cours de missions suscitées par lui nos collègues
Piganiol et Durry. Quant aux latinistes de chez nous, ils ont eu l’occasion de lui
manisfester leur estime et leur sympathie au cours de voyages qu’il accomplit
en qualité de délégué du gouvernement brésilien en France et au Portugal ou de
congressiste à Londres et Copenhague: notre Société et son Groupe romand
l’ont accueilli et acclamé comme le promoteur et le représentant éminent des
études latines dans un pays où avant lui la place leur était encore mesurée.
Ses ouvrages sont nombreux, inspirés par la nécessité de procurer les
manuels nécessaires à tous les degrés de l’enseignement, et de doter les
nouveaux venus au latin des instruments de travail et des ouvrages d’initiation
qui leur manquaient encore. II a été à cet égard un prospecteur et um promoteur.
Mais le mérite essentiel de Faria et le titre de gloire qui restera attaché à
son nom, c’est la valeur humaine de son enseignement: accueillant à tous,
serviable à ses collègues, ami surtout des jeunes, auxquels l’attachait une
familiarité fraternelle, il a su, pendant sa trop courte carrière, conférer aux
études classiques un lustre et un rayonnement qui devraient être garants de leur
essor dans pays en devenir.

J. Marouzeau
(Société des Études Latines)

13. Agradecimento

Não posso deixar sem registro um agradecimento muito especial a Maria


Dulce de Faria, a filha que me franqueou a leitura da preciosa documentação,
relicário da família, de que muito me vali.
Professor Ernesto de Faria Júnior 47

Notas e Referências
(1) COSTA, Aída. A vida e a obra de Ernesto Faria, in: Boletim de Estudos Clássicos,
nº VI – 1967, S.Paulo, . 29-41.
(2) PERRET, Jacques. A Atualidade dos Estudos greco-latinos, F. Briguiet & Cia, Edi-
tores, Rio de Janeiro, 1937.
(3) CHEDIAK, Antônio José. Síntese Histórica da Academia Brasileira de Filologia
(1944-1949). Primeira parte, inédito, Rio de Janeiro, 1999.
(4) ELIA, Sílvio. Ensaios de Filologia e Lingüística, 2ª edição, refundida e aumenta-
da, Grifo/MEC, Rio de Janeiro, 1975.
(5) TUFFANI, Eduardo. Repertório Brasileiro de Língua e Literatura Latina (1830-
1996). Íbis, Cotia, SP, 2006,
(6) COSERIU, Eugênio. Tradição e Novidade na Ciência da Linguagem. Estudos de
História da Lingüística, tradução de Carlos Alberto da Fonseca e Mário Ferreira,
Presença/Editora da USP, Rio de Janeiro, 1980.
(7) VALLE, Rosalvo do. Os estudos clássicos na Universidade, Cadernos de Letras da
UFF, nº 1, Niterói, RJ, 1990.
(8) FARIA, Ruth Junqueira de. Lívio Andronico: a obra, a língua, a métrica. Tese de
Livre-Docência, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 1975.
(9) VALLE, Rosalvo do. Considerações sobre a “Peregrinatio Aetheriae”. Tese de
Livre-Docência, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 1975.
(10) In: ARAÚJO, Antônio Martins de. Índices da Revista Filológica. (Arquivo de
Estudos de Filologia, História, Etnografia, Folclore e Língua Literária). ANPOL –
GT – Historiografia da Lingüística Brasileira – Indexação das Revistas Filológicas
Brasileiras do Fascículo XX.
(11) Sobre Jorge Henrique Agostinho Padberg Drenkpol (1877-1948) e sua espantosa
erudição, ver “Elogio de Padberg – Drenkpol” no discurso de posse de Gládstone
Chaves de Melo como seu sucessor na Academia Brasileira de Filologia – In:
MELO, Gládstone Chaves de – e SILVA NETO, Serafim da. Conceito e Método da
Filologia, edição da “Organização Simões”, Rio, 1951, p. 59-85.

Não se veja malícia ou descortesia na saudação em latim (e lida na pro-


núncia reconstituída que Ernesto Faria defendia e propagou: verba latina...
Farianum in modum pronuntianda) – o que destoa frontalmente da nova
orientação de que Ernesto Faria é o líder entre nós. Trata-se, na verdade, de
um encontro cordial, por ventura uma despedida, da orientação tradicional, que
sai, (do professor egrediens) com a nova orientação, que chega (do professor
ingrediens). Padberg Drenkpol foi fiel à sua sólida formação humanística eu-
ropéia tradicional, revista pelas novas orientações lingüísticas e metodológicas,
48 Rosalvo do Valle

que têm em Marouzeau e em Faria duas figuras emblemáticas. Porém, naquela


saudação cândida está patente o apreço do velho mestre, que se aposenta
como catedrático de Língua e Literatura Grega, ao jovem catedrático de Lín-
gua e Literatura Latina – seu colega na Universidade e seu confrade na Aca-
demia Brasileira de Filologia.

Foto da Solenidade de posse quando, de pé, falava o novo catedrático.


Da esquerda para a direita: 1. Dr. Heitor Silva Correia, Secretário da F.N.F., 2. Prof. Faria Goes
Sobrinho, Representante da Congregação, 3. Prof. Antonio Carneiro Leão, Diretor, 4. Reitor
Inácio de Azevedo Amaral, 5. Prof. Ernesto Faria, 6. Prof. Sousa da Silveira.
No auditório, na 1ª fila, o Prof. Padberg Drenkepol.
O PROF. ERNESTO FARIA E SUA IMPORTÂNCIA
PARA OS ESTUDOS DE LATIM

Horácio Rolim de Freitas


UERJ – ABF – LLP

O Prof. Ernesto Faria foi um grande divulgador dos estudos latinos, tanto
no magistério, como por meio de suas obras, e deixou-nos irrefutáveis argu-
mentos sobre a importância do Latim para o domínio da língua portuguesa e
enriquecimento de nossa cultura.
Particularmente, defendemos a tese de que um professor de nosso idio-
ma, sem o conhecimento do Latim, apresentará, em geral, embasamento defi-
ciente, insegurança na descrição dos fatos lingüísticos, principalmente nos cam-
pos da morfologia e da sintaxe. É claro que não se trata do domínio exclusivo
do Latim literário, formal, erudito ou clássico, mas também do Latim corrente,
fundamental para uma visão ampla da estruturação das línguas românicas.
Na bibliografia dos estudos latinos destaca-se o trabalho do Prof. Ernesto
Faria por abrir novos horizontes no ensino secundário e no universitário, uma
vez que hauriu as idéias da lingüística moderna de renomados mestres, como
Meillet, Marouzeau, Bourciez, Meyer-Lübke, Havet, Jespersen, Väänänen,
Serafim da Silva Neto, C. Bally para só citar alguns.
Em 1933, publica A Pronúncia do Latim, obra refundida e publicada em
1938, sob o título Manual de Pronúncia do Latim. Aí, compara a pronúncia no
passado e no presente. A pronúncia chamada tradicional, adaptada ao siste-
ma fônico das línguas: francês, inglês, italiano, português etc., e a pronúncia
com base nos estudos da ciência da linguagem denominada reconstituída ou
restaurada. Mereceu palavras elogiosas do lingüista francês Marouzeau.
Em 1941, dá-nos uma obra de valor pedagógico e didático inestimável: O
Latim e a Cultura Contemporânea. Além de apresentar aspectos da prepara-
ção do professor de Latim, explicita as finalidades do seu ensino por meio dos
objetivos pragmático, disciplinar e cultural.
Contudo, a sua grande contribuição aos estudos latinos viria em 1955 com
a Fonética Histórica do Latim. Nessa obra o Prof. Ernesto Faria demonstra
domínio do assunto, segurança na exposição e riqueza bibliográfica. De início,
50 Horácio Rolim de Freitas

faz um retrospecto da história da língua latina: parte do indo-europeu, fonte dos


ramos lingüísticos, dentre os quais se acha o ítalo-céltico, destacando-se o itá-
lico, grupo a que pertenceram, principalmente, o latim, o osco e o umbro. Des-
creve os diversos idiomas e dialetos da Itália romana, ressaltando a civilização
etrusca e, particularmente, a brilhante civilização helênica, cuja influência na
literatura e língua latinas viria a ser notória. A seguir, passa ao estudo descritivo
do alfabeto latino. Explica-lhe a origem e a história, comentando a procedência
das letras. Trata da pronúncia com farta fundamentação, quer de gramáticos
latinos, quer de especialistas no campo da lingüística românica. Estuda o acen-
to, o vocalismo, as alterações fônicas, como apofonia, síncope, apócope, metá-
tese; o consonantismo e os grupos consonantais. Destaque-se a riqueza das
citações textuais comprobatórias dos exemplos apresentados. Pode-se afirmar
que, em língua portuguesa, não há trabalho que se ombreie a esta obra do Prof.
Ernesto Faria.
Além da homenagem ao incansável defensor dos estudos latinos no ma-
gistério fundamental e universitário, é oportuno relembrar as divergências que
marcaram época sobre a pronúncia do Latim. Qual a correta a ser usada por
alunos e professores: a pronúncia tradicional, com base no sistema fônico de
cada língua, ou a pronúncia reconstituída pelos princípios advindos da ciência
da linguagem? Não faltaram adeptos de uma e de outra, gerando daí várias
polêmicas entre eminentes nomes da nossa cultura lingüística.
Não é nosso propósito opinar sobre qual a mais correta.
Os adeptos da pronúncia restaurada, como o Prof. Ernesto Faria e Serafim
da Silva Neto arrolaram argumentos com base no desenvolvimento da ciência
da linguagem, no século XIX, com a descoberta do sânscrito, com os estudos
da gramática comparada e com o surgimento da fonética instrumental.A apli-
cação desses modernos estudos à língua latina produziu obras fundamentais,
como: La Prononciation du Latin (1931), de Marouzeau; Phonéthique Latine
(1929), de Juret; Manual de Pronúncia do Latim (1938), de Ernesto Faria.
Foi também de grande importância entre nós, no desenvolvimento dos
modernos estudos da linguagem, a presença, na Faculdade de Filosofia e Le-
tras do Distrito Federal, de George Millardet, da Sorbonne, de Jacques Perret e
de Jean Bourciez, da Universidade de Montpellier.
Os fundamentos norteadores da pronúncia restaurada podem ser assim
sintetizados:
1o. A pronúncia do Latim deve representar a do período clássico de Cíce-
ro e de César, conforme a reconstituição feita por meio dos princípios advindos
da lingüística moderna.
O Prof. Ernesto Faria e sua importância para os estudos de latim 51

2o. 1As vogais eram distinguidas pelo traço pertinente de altura (quantidade)2
a#, a(, e#, e(, i #, i (, o#, o(, u#, u(
O Prof. Ernesto Faria3 cita Quintiliano: “Longa esse duorum temporum,
breuem unius etiam pueri sciunt.” (A longa ter a duração de dois tempos e a
breve a de um até as crianças o sabem).
3o. Os ditongos eram: /au/ aurum; /ae/ caelum; /oe/ poena; /eu/ Orpheus
e, raríssimo /ui/ cui.
4o. Quanto às consoantes, há de observar-se: a letra c representava o
fonema /k/ (oclusivo surdo) mesmo diante de /e/ ou /i/; a letra g o fonema
oclusivo sonoro mesmo diante de /e/ ou de /i/.
5o. O h não constituía um fonema, era um sinal de aspiração em Roma
para representar o espírito forte da língua grega, usado pela elite culta, como,
por exemplo, na palavra ‘ωρα, escrita hora, com aspiração da vogal inicial.
Era denominado, em latim, ah (com h aspirado). Na baixa latinidade pro-
nunciou-se como um /k/, daí a escrita em certas palavras, como nichil por nihil.
O nome da letra é representado, assim, em várias línguas ach (ak) e hacca: no
italiano acca, no francês hache, no espanhol hache e, por imitação da pronún-
cia aspirada, agá, no português.
6o. O /m/ inicial e medial era uma oclusiva labial nasal, sendo, no final da
palavra, um fonema tênue, mas consonantal, como demonstra a métrica latina,
seguindo-se-lhe uma consoante.
O /n/ era um fonema labiodental articulado, inclusive, no final da palavra.
7o. O /r/ era um fonema pré-palatal cuja vibração levou os romanos a
denominarem-no “canina littera”.
8o. O /s/, inicial, medial, intervocálico ou final, representava um fonema
linguodental sibilante surdo. Sabe-se que, desde o séc. IV a.C. , o /s/ intervocá-
lico, depois de sonorizar-se, sofreu rotacismo (cf. amase > amare). Ainda no
período clássico esse fonema era representado tanto pela grafia –s- como por
–ss-: caussa, causa; cassus, casus. Comprova-se esse fonema surdo também
pela transcrição de palavras latinas no grego: Sulpicius em grego Σουλπιvκιος;
Caesar, grego: Καιvσαρ.

1
Niedermann – Précis de Phonétique Historique du Latin, Paris, Librairie Klincksieck, 1906, p.7.
2
Herman, Joseph – Le Latin Vulgaire, Paris, Presses Universitaires de France, 1970, p. 36.
3
Faria, Ernesto – Fonética Histórica do Latim, p. 51.
Obs. Transcrevemos a citação da obra do Prof. Ernesto Faria. Contudo, a lição de Quintiliano
é: “Longam esse duorum temporum, brevem unius etiam pueri sciunt.”
52 Horácio Rolim de Freitas

9o. O fonema /t/ era pronunciado como oclusiva linguodental surda, mes-
mo no grupo ti diante de vogal: Iustitia.
10o. O /u/ , grafado V, era “emitido com a boca apertada e os lábios pouco
esticados para a frente”4
Os gramáticos latinos comparam a sua pronúncia ao ditongo grego –ou-
como na transcrição do Latim para essa língua: Epicuros = grego Eπιvκουρος.
Representa um fonema consonantal fricativo labiovelar5, como em Valerius,
grego Ουαλεvριος.
A cultura helênica introduziu entre os intelectuais a aspiração das con-
soantes gregas:χ , representada por –ch-, ψ, representada por -ph-, θ, repre-
sentado por –th-, como nas palavras sepulchrum, sulphur, thesaurus.
Por outro lado, houve os que combateram a chamada pronúncia restaura-
da, defendendo o uso da pronúncia tradicional. Entre esses opositores destaca-
mos dois eminentes mestres: Nélson Romero e Cândido Jucá Filho.
Cândido Jucá6 não considera o traço de intensidade distintivo no Latim,
como apregoaram lingüistas, a saber: Lindsay, Laurand, Brugmann, Seelmann.
Considera pertinente o acento de altura, lembrando, por exemplo, passagem de
carta de Cícero em que esta cita a confusão de pronúncia entre a palavra latina
bini e a grega bivnei, concluindo ser o acento latino-grego melódico, ou de altura.
É evidente a pertinência do traço de altura, diferenciador de palavras,
como: ve(nit / ve#nit (presente / perfeito), ma(lum (o mal) / ma#lum (maçã), ro(sa
(nominativo) / ro#sa (ablativo); po(pulus (povo) / po#pulus (choupo, tipo de árvo-
re). Essa explicação sobre a pronúncia na época clássica nos dá J. Herman:
“La durée était un trait phonologiquement pertinent...”7. Mais adiante, nas pá-
ginas 44 e 45, Herman afirma: “Não resta dúvida de que o acento latino, depois
do período clássico, sofreu modificações, sendo o traço de altura, no curso da
evolução, substituído pelo acento de intensidade”.
Sobre o exemplo geralmente apresentado da palavra Cícero, transcrita
em grego Κικεvρον, com capa em lugar de sigma, explica o Prof. Jucá que se
trata de transliteração, não de igualdade de pronúncia. Acresce o exemplo de
palavras latinas escritas com /f/ e transcritas em grego por (ϕ), o que não
significa que soavam igualmente. Como abonação, cita passagem de Meillet:

4
Faria, Ernesto. Fonética Histórica do Latim, p. 57.
5
Väänänenn. Introducción al Latin Vulgar, p. 92
6
Jucá Filho, Cândido. A Pronúncia Reconstituída do Latim
7
Herman, Joseph. Le Latin Vulgaire, p. 37.
O Prof. Ernesto Faria e sua importância para os estudos de latim 53

“Les oclusives non aspirées, soit sourdes (pi, tau, capa), soit sonores (beta,
delta, gama) du grec ne devaient pas répondre exactement a P, T, C et B, D, G
du latin”.8
São bem fundamentados os argumentos do mestre Cândido Jucá Filho,
grande conhecedor da cultura e língua latinas e gregas.
Aproveito o ensejo para fazer um reparo, a bem da justiça, a uma afirma-
ção feita pelo Prof. Jucá desairosa a Serafim da Silva Neto, na página 46.9 Ali
critica a Serafim por ter arrolado entre os nomes masculinos em –us, a palavra
vinus, sabendo-se que pertence ao gênero neutro: vinum. Realmente, no Ma-
nual de Gramática Histórica Portuguesa, de 1942, na p. 18, encontramos a
seguinte lição: “Esse latim corrente lusitânico caracterizava-se pela simplicida-
de: nele não havia preocupação literária pois era uma linguagem usual. O voca-
bulário não contava palavras de cunho literário, mas apenas designativas de
objetos e cousas cotidianas.” Aí, entre os vários exemplos, está a palavra vinus,
forma masculina.
A citação de Serafim é fidelíssima; refere-se ao latim corrente, o sermo
usualis em que a tendência ao desaparecimento do gênero neutro já se confi-
gurava. Os nomes neutros no singular passavam para o masculino, enquanto,
no plural, terminados em –a, para o feminino. É antiga a lição de Grandgent:
“En latín popular y tardio esta tendencia (neutros que pasaron a ser masculi-
nos) era muy marcada”10; e cita balneus, caelus, fatus, lactem, vasus, vinus etc.
Encontramos em Petrônio farta exemplificação do gênero neutro substi-
tuído pelo masculino, na obra Satiricon.11 Eis alguns: caelus hic; totus caelus;
Vix me balneus calfecit; Vasus fictilis.
A pronúncia reconstituída não leva em conta os aspectos diatópicos e
diastráticos. A aspiração do h, a pronúncia das consoantes aspiradas do grego:
ϕ (ph), χ (ch), θ (th), por exemplo, só eram enunciadas na linguagem culta dos
homens de letras e, assim mesmo, nos centros de erudição.
Diz-nos Serafim da Silva Neto que “o h não soava desde o tempo de
Cícero. Escrevia-se mas não se pronunciava”.12
Muitas palavras tinham pronúncia e forma diferentes, como nas seguintes
situações fônicas:
8
Meillet, A. Esquisse d’une Histoire de la Langue Latine, Paris, Librairie Hachette, 1928, p. 92.
9
Op. cit.
10
Grandgent. Introducción al Latín Vulgar, p. 216.
11
Petrônio. Satiricon, p. 90, 96, 130.
12
Silva Neto, Serafim da. Fontes do Latim Vulgar, p. 87
54 Horácio Rolim de Freitas

1. vogal longa e consoante simples: bu#ca, pu#pa, bru#tu, stu#pa;


2. vogal breve e consoante dupla: bu(cca, pu(ppa, bru(ttu, stu(ppa.
Comprova-se a diferença de fonemas, por exemplo, na evolução para o
português: bruto não proveio de bru#tu, mas de bru(ttu.13
Se a pronúncia do Latim reconstituída representa a língua de Cícero,
César, Vergílio, Horácio, como seria a leitura de obras de Plauto, Terêncio,
Sêneca, Tácito e outros?
É fato que o conhecimento da pronúncia real da maioria dos fonemas
latinos, distanciados em séculos, sem a tecnologia hoje existente, torna-se difí-
cil, ilusória e deficiente.
Daí a conclusão de Nélson Romero: “Ora, pronúncia reconstituída sem
quantidade e sem acento não é pronúncia reconstituída.”14
Que a linguagem das pessoas cultas nos ambientes adequados, como, por
exemplo, no Senado, apresentavam certo artificialismo no uso do sermo eruditus
divergente do sermo usualis não há dúvida.
O próprio Cícero no ambiente familiar afastava-se da linguagem culta, o
que se comprova pela leitura de suas cartas à esposa Terência. Como exemplo,
citamos passagem da carta dirigida ao irmão Quinto, onde usa a forma popular
oricula por aurícula: “Oricula infima molliorem”15 (Mais brando que o lóbu-
lo da orelha). E, em outra ocasião, explica: “Causas agimus subtilius, ornatius;
epistulas vero cotidianis verbis texere solemus” (Nos discursos aprimoro
mais; nas cartas, porém, construo as frases com expressões cotidianas).
É oportuno lembrar que o fonema /u/ , em certa época representado pelo
grafema V era pronunciado como fricativo labiovelar.16 A partir do século I d.
C., o fonema passa a fricativo bilabial : Nerva = Nerba, em grego Νεvρβα;
Vervex = Berbex; Víbio, em grego Βειvβιω.
Diz-nos Väänänen que, a partir dessa época, se confundem /v/ e /b/: valeat
= baleat; verus = berus.
Outro estudioso que teceu inúmeros argumentos contra a pronúncia res-
taurada foi Nélson Romero.17 Considera irreconstituível a pronúncia do tempo
de Cícero e César, pois se trata da pronúncia de um momento da língua que se

13
Silva Neto, Serafim. op. cit., p. 122.
14
Romero, Nélson. Pronúncia do Latim, p. 56.
15
Silva Neto, Serafim. História da Língua Portuguesa, 1a. ed., p. 197.
16
Grandgent. op. cit. p. 203.
17
Romero, Nélson. A Pronúncia do Latim, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1942.
O Prof. Ernesto Faria e sua importância para os estudos de latim 55

extinguiu. Não se pode recuar no tempo. Aliás, lembra Romero, já os gramáti-


cos romanos declaravam que seus contemporâneos pronunciavam diversos
fonemas de maneira diferente do período da idade áurea.18 Explica, também,
que mais tarde as pessoas cultas usaram o Latim como língua de cultura, sendo
Cícero o modelo da linguagem exemplar, mas sem pretenderem reviver a pro-
núncia daquela época. Defende a pronúncia tradicional por não ser ela criada
teoricamente nos gabinetes, mas por representar a pronúncia geral, comum, do
Latim que chegou até nós. A rigor, não aceita a expressão pronúncia clássica,
uma vez que classicismo traduz um gênero da palavra artística, literária, não
prosódica. Apóia-se, aí, na definição de Jean Bayet: “Le classicisme est un
équilibre, de pensée, de sensibilité et de forme, qui assure à l’oeuvre d’art un
intérêt humain et une diffusion universelle”.19
Romero afirma que muitos confundem teoria com realidade. Não se tem
noção perfeita da quantidade das vogais e das sílabas na pronúncia daquele
período áureo. Aduz as palavras de Rebelo Gonçalves: “Na prática (a ciência)
não conseguiu fazer dessa leitura uma chapa integral, porque é certo que não
sabemos ler o Latim com rigor absoluto”.
A grande polêmica sobre a pronúncia do Latim, no campo didático, será
útil aos discentes, tanto no ensino escolar como no ensino universitário? – per-
gunta Sílvio Romero.
Para responder a essa pergunta, traz a público lição de A. Meillet: “Dans
l’enseignement secondaire, la prononciation traditionnelle a sans doute plus
d’avantages que d’inconvénients... En matière de prononciation, il n’y a jamais
de tradition continue d’un état ancien, mais, d’une part, évolution dans le parler
courant, de l’autre, restauration discontinue dans la langue savante... Un Français
ne peut, sans un dressage qui serait long et difficile, prononcer vraiment le latin
à l’antique”.20
Constatamos, assim, que a preferência por uma e por outra pronúncia do
Latim mereceu a defesa de renomados estudiosos nacionais e estrangeiros.
Entre nós, destacamos, a favor da pronúncia restaurada, Serafim da Silva Neto,
Ernesto Faria et alii. A favor da pronúncia tradicional firmou-se Nélson Romero
e, contra a restaurada, posicionou-se Cândido Jucá Filho. Não nos cabe tomar
posição.

18
Idem, op. cit. p. 68.
19
Idem, op. cit. p. 77.
20
Idem, ib. p. 29.
56 Horácio Rolim de Freitas

Se coubesse um árbitro da questão, sem dúvida, pela cultura humanística


e profundo conhecimento dos estudos clássicos, seria merecedor dessa prima-
zia o Pe. Augusto Magne.
Permito-me terminar este artigo com as palavras do sábio mestre, que
sempre induzem a reflexão: “... para nós o que interessa no Latim é a sua
literatura, sua virtude formadora do espírito. O Latim é uma língua escrita que
acabou de ser pronunciada. Desviar o estudo do latim para questiúnculas de
pronúncia reconstituída é desvirtuar aquela disciplina e tirar-lhe seu poder for-
mador. É bom não esquecer, aliás, que nossa pronúncia tradicional do latim,
desde que se emendem uns tantos senões, tem seus fundamentos numa autên-
tica pronúncia do latim – a do período imperial, isto é, da época da expressão
maior daquele idioma. A preferência dada ao período clássico, mais afastado
das origens românicas, é arbitrária e, sobre arbitrária, perturbadora.”21
Ao Pe. Magne se pode aplicar o pensamento latino:
Quod eruditus loquitur omnes consilium putant.

Bibliografia

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1955.
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NIEDERMANN, Max. Précis de Phonétique Historique du Latin, Paris,
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21
In: Graeca et Latina, n° 6/7, p. 34.
O Prof. Ernesto Faria e sua importância para os estudos de latim 57

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ROMERO, Nelson. Pronúncia do Latim, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional,
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PARTES ORATIONIS: NOTAS SOBRE A TRADIÇÃO GRECO-LATINA
Luiz M. M. de Barros
Terezinha Bittencourt

A apreensão da linguagem como atividade vocal impregnada de semanti-


cidade (phone semantike; uox significatiua)1 suscitou, entre os antigos gre-
gos e romanos, uma série de questões concernentes, precipuamente, aos se-
guintes pontos:
a) as funções ou finalidades da atividade verbal;
b) a relação entre conhecimento, linguagem e realidade;
c) a distinção entre sonus significativo e não-significativo;
d) a depreensão das unidades lingüísticas (mere lexeos e mere logous).

1. As funções da linguagem: onomazein, legein e dialegesthai


É fato notório que Platão aprendeu com Sócrates que não são as sensa-
ções do real, sempre múltiplas e multifárias, que se imprimem como significa-
dos nos significantes sonoros da linguagem. Também é inegável que ensinou a
Aristóteles que as palavras carregam um valor semântico unitário e meramen-
te inteligível. De fato, ambos acreditavam que as formas lingüísticas represen-
tam certo conteúdo de consciência que não se identifica com impressões sen-
síveis nem com imagens (phantasmata) delas derivadas. Para eles, a matéria
fônica dos nomes é sinal de uma entidade genérica, essencial e imutável, que se
abstrai das coisas (Aristóteles) ou que nelas se projeta (Platão). Trata-se, pois,
de entidade que em si mesma só se manifesta no mundo das intelecções: é algo
meta-fisico e ante rem, do ponto de vista platônico, ou um ens rationis cum
fundamento in re, do ponto de vista aristotélico.
No Crátilo (387a – 388c) e no Sofista (262a – 263e), Platão afirma que
as palavras têm por função nomear (onomazein) e dizer (legein) as coisas.
Assim como a lançadeira é instrumento de tecelagem que serve para separar

1
Por simplificação, não se empregam neste texto os diacríticos costumeiramente utilizados nas
transcrições do grego em caracteres latinos.
60 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt

os fios da teia, as palavras, pelo seu poder de nomear, também podem ser
consideradas uma espécie de instrumento (organon) que serve para desemba-
ralhar ou destrinçar as substâncias (diacriticon tes ousias), impondo certa
organização ao mundo supra-sensível das Idéias. Uma vez separados, os seres
que se nomeiam podem ser diversamente entrelaçados no espaço do dizer ou
enunciar (legein), o que permite a construção do raciocínio, a busca da verda-
de e a instauração do processo interlocutivo com o propósito de instruir ou
informar. Pelo ato de dizer, o indivíduo sempre denomina as coisas para si
mesmo ou para outrem. Deste modo, instaura-se o processo dialógico entre
diferentes sujeitos ou o “diálogo da alma consigo mesma”. Para Platão, o
dialogismo é princípio fundador da linguagem e meio fundamental para a ação
do filósofo: falar, pensar e filosofar são, por excelência, formas de dialegesthai.
Para compreender o ponto de vista de Platão sobre a linguagem, é neces-
sário pinçar e confrontar informações que se encontram dispersas em vários
dos seus textos. Também é necessário relembrar que a “segunda navegação”,
mais árdua e difícil, proposta por ele no Fédon, deve conduzir o sujeito
cognoscente ao mundo das formas puras ou Idéias2, que existem per se (to
auto) e são realidades anteriores às coisas do universo sensível. Originárias de
uma dimensão metafísica, que no Fedro (247c-e) corresponde a um “lugar
supraceleste” (huperouranios topos), as Idéias se apresentam como algo
(ousia) unitário e indestrutível; algo desprovido de qualquer materialidade; algo
que mantém com os objetos do mundo físico apenas uma série de relações que
se imbricam ou se complementam: precedência e causalidade; modelo e imita-
ção; presença, participação e comunhão. Assim, a Idéia é vista como princípio
e causa das coisas sensíveis, a sua ratio essendi ou seu pressuposto de inteli-
gibilidade. O mundo da empeiria apenas mimetiza modelos preexistentes, for-
mas arquetípicas. A participação, por sua vez, é pensada como a presença da
unidade na variedade: trata-se do reflexo de uma Idéia que impõe determinada
ordem ao caos de nossas incessantes experiências; é um ponto comum (limite)
por que se identificam diversos seres apreensíveis pelos sentidos em um
continuum aberto e interminável, que se perde na liberdade do Infinito.
Na Sétima Carta (342a-b), Platão apresenta relevante síntese das suas
várias e variadas reflexões sobre a relação entre o ser, o saber e a linguagem.

2
Como bem se sabe, Platão atribui ao inteligível unitário, “per se existente, o nome neutro Eidos
ou o seu equivalente feminino Idea (Forma, Idéia). De modo geral, eidos corresponde, em
latim, ao termo species.
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 61

Segundo ele, no processo de conhecimento de tudo o que existe, é preciso


distinguir:
a) a coisa na sua singular e mutável concretitude empírica (v.g., determinado
objeto com formato circular que tenho diante dos olhos);
b) a Forma ou essência das coisas (v.g., a idéia CÍRCULO, considerada
como algo de um mundo supra-sensível);
c) a representação verbal (onoma e logos) das coisas (v.g., a palavra “cír-
culo” ou uma frase que define ou descreve os objetos circulares, como
“círculo é aquilo cujos pontos extremos estão em qualquer parte igual-
mente distantes do centro”);
d) a representação não-verbal (eidolon) das coisas (v.g., o desenho, a pintura
ou outra projeção qualquer da circularidade sobre uma superfície);
e) o tipo de saber que se tem a respeito das coisas: o saber reflexivo ou
científico (episteme), o saber intuitivo (nous) e a opinião verdadeira (alethes
tes doxa).

No entendimento de Platão, as Ideas, em sua plena nudez, só se manifes-


tam perante um olhar divino. Ao simples mortal, resta apenas o consolo de vê-
las fantasmagoricamente projetadas no dorso das coisas sensíveis (como nos
sons lingüísticos ou nos pontilhados pictóricos) ou o assombro de vislumbrá-las
sob o véu, mais fino ou mais espesso, da fantasia epistêmica, doxástica ou
noética.
Divergindo de Platão, Aristóteles considera o inteligível (noeton) como
algo que a racionalidade humana abstrai do que chega pelos sentidos. Este
“algo”, elaborado pela razão, é o que há de uno, permanente, necessário e
comum em diversos objetos, reais ou virtuais; é o que permite ao sujeito
cognoscente identificar, na res extensa, uma multiplicidade de indivíduos como
membros de um mesmo gênero ou classe; é a “forma” (morphe), correspon-
dente à essência ou quidditas das entidades existentes e mutáveis do mundo
sensível; é certo modo de “ser”, forjado pelo intelecto a partir de coisas expe-
rimentadas, ao qual se subsumem e pelo qual se identificam, no ato cognitivo,
outros ou novos “entes”. Em resumo, o inteligível é uma simples apreensão e
construção do espírito: é “o que é concebido” (conceptus) pela inteligência
como modo universal e possível de ser. Consoante as lições aristotélicas (v.
Peri Psuches), não são as sensações nem as imagens da pedra em que trope-
ço, toco ou vejo que se encontram no reino das minhas intelecções. É simples-
mente o conceptus PEDRA, que se assinala por determinada voz (lithos, pe-
dra, pietra, stone, Stein, etc). Assim, pelo conteúdo que o segmento fonético
62 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt

[‘pedra] representa, são reduzidos à unicidade e apreendidos como sendo o


“mesmo” elementos concretamente distintos e infinitamente variáveis na sua
singularidade: o objeto áspero e irregular que me fere os pés descalços ou com
que me deparo nel mezzo del cammin; o fragmento sólido que Davi arremes-
sou na fronte de Golias; a lasca pontiaguda e polida usada pelos primitivos
como cunha de instrumento de corte; o cristalizado reluzente e multifacetado
que se engasta num aro de ouro; frações de dura matéria que por divertimento
se atira no lago, quebrando-lhe o silêncio e encrespando círculos concêntricos
em sua superfície; etc. Segue-se, pois, que subjacente a múltiplas possibilida-
des de designação há sempre, em determinado recorte sincrônico, um valor
funcional constante e bem determinado (invariante semântica) para toda palavra.
Transportadas para os tempos atuais, as idéias de Aristóteles sobre a sig-
nificação conflitam com o pensamento de partidários da Semântica prototípica,
que atribuem aos conteúdos das unidades lexicais contornos vagos ou difusos.
Sucede, porém, que a vaguidade não está nos significados das palavras. A rigor,
ela decorre de indecisões que os falantes podem ter na inclusão de determina-
do objeto da realidade numa classe a que se aplica o signo A ou numa classe a
que se aplica o signo B. (Devo chamar o objeto x de A ou devo chamá-lo de
B?). Decorre, ainda, de diferentes possibilidades de fixação ou interpretação
de limites entre os próprios objetos na amplitude do real. Assim, o momento
entre o dia e a noite, em que a luz solar se esvai na linha do horizonte, espetá-
culo do mundo cotidianamente oferecido à humana contemplação, pode rece-
ber o nome de entardecer, se considerado como “ponto de passagem do dia
para a tarde” ou de anoitecer, se interpretado como “ponto de passagem da
tarde para a noite”.
Em Categorias, Aristóteles retoma, refaz e refina várias idéias de Platão
contidas no Crátilo e, sobretudo, no Sofista. Considerando que todo nomear
implica um dizer, Aristóteles substitui a dicotomia onomazein/legein pela dis-
tinção entre “o que se diz” (to legomenon / ta legomena) “por meio de uma
combinação” (kata sumploken) e “sem combinação” (aneu sumplokes). No
primeiro caso, temos enunciados do tipo “Sócrates corre”; no segundo, mera
enunciação de palavras isoladas, como “Sócrates”, “homem”, “criança”, etc.
Enquanto dizer em que há composição, a linguagem adquire novas feições e
funcionalidades: deixa de ser simples phone semantike ou logos semantikos
(phasia) e se transforma, em termos gerais, em logos theoretikos, logos
pragmatikos ou logos poietikos. Pode, portanto, ocorrer como discurso de
ciência, discurso utilitário, discurso lúdico ou discurso técnico. Pode referir-se
ao real circundante, desfiando o cosmológico; pode referir-se a um mundo fa-
buloso ou sobrenatural, entretecendo o mítico, o místico, o mágico.
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 63

Em consonância com o pensamento platônico, Aristóteles também des-


cortina, com toda clareza, as dimensões objetiva (referencialidade) e intersub-
jetiva (alteridade) da linguagem. Conforme ele afirma na Retórica (I, 1358b), o
discurso pressupõe obrigatoriamente três seres ou “pessoas”: o ser que fala (1ª
pessoa), o ser a que se fala (2ª pessoa) e o ser de que se fala (3ª pessoa).
Trata-se, pois, de uma tricotomia que tem fundamento justamente no princípio,
antes abordado por Platão (Crátilo, 388b), de que as palavras essencialmente
existem para estabelecer relações entre os sujeitos falantes, e destes com o
mundo dos objetos. Em outro texto (Peri Psuches, 420b e 435b), Aristóteles
igualmente afirma que a capacidade de expressão verbal serve para significar
alguma coisa para outrem, acrescentando que o seu exercício tem por finalida-
de última a procura do Bem, o que significa a busca do aperfeiçoamento do
indivíduo, a realização, em sua plenitude, da humana condição nesta transitória
existência na Terra.

2. Semainon, semainomenon e pragma (uox, conceptus e res)

Das investigações vinculadas aos tópicos (b) e (c), inicialmente indicados,


decorreram não só as diferenças estabelecidas entre sinal (signo) natural e
convencional, mas também o paulatino desvelamento de três elementos que
participam do processo semiológico: significante, significado e referente.
Por volta do séc. V a.C., os filósofos gregos já indagavam se as formas
verbais mantinham com o mundo dos objetos um vínculo natural (phusei) ou
convencional (nomo, kata suntheken, thesei)3. Os naturalistas defendiam a
idéia da existência de uma relação real e necessária entre as palavras e as
coisas designadas. Os convencionalistas alegavam, por sua vez, não haver um
liame naturalmente obrigatório entre a estrutura sonora das palavras e aquilo
que nomeiam. Para eles, trata-se de um relacionamento imposto ou instituído
3
A polêmica phusis / thesis, aqui ligeiramente abordada, assumiu, na evolução do pensamento
grego, variadas feições e diferentes graus de complexidade. O debate podia, por exemplo, girar
em torno de uma questão ontológica (relação entre os sons das palavras e a essência das
coisas), semiológica (função dos signos lingüísticos) ou glotogônica (origem das palavras e da
própria linguagem). Acrescente-se que o termo phusis foi usado não só para indiciar como
“natural” a relação que se instaura entre diferentes pares (palavra / realidade; significante /
realidade; significante / significado; significado / referente ), mas também para designar a
própria “natureza” dos objetos cognoscíveis ou dos sujeitos cognoscentes (falantes). Obser-
ve-se, ainda, que no âmbito do medievalismo escolástico o conceptus foi freqüentemente
interpretado como signum naturalis das coisas (res).
64 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt

pela vontade humana. Conforme diz Aristóteles (Peri Hermeneias, 16a), os


sons emitidos pelos animais, ainda que tenham valor referencial, não podem ser
tomados como espécies de palavra (onoma), porque não trazem em si caracte-
rísticas de convencionalidade, isto é, não são resultado de um pacto social his-
toricamente estabelecido.
Heráclito (536 – 470 a.C.), o primeiro grande filósofo da Grécia a formu-
lar e discutir o problema da relação entre o ser, o conhecer e a palavra, é tido
como partidário da phusis. Demócrito, que viveu entre 460 e 375 a.C, foi par-
tidário da thesis, apresentando os seguintes argumentos: a) uma palavra pode
sofrer mudanças ou se referir a coisas distintas; b) algumas coisas possuem
mais de um nome; c) muitos objetos carecem ou careciam de denominação4. É
no Crátilo, porém, o já mencionado diálogo de Platão, que a antinomia phusis
/ thesis ganha relevo e pormenorizado desdobramento, embora o debate a pro-
pósito do referido tema, já analisado e comentado ad nauseam, sirva apenas
de pano de fundo para uma reflexão sobre outra questão, de interesse episte-
mológico, que se prolonga e melhor se resolve no Sofista: o dizer justo (verda-
deiro) ou injusto (falso). Conforme afirma Platão, sempre falamos de alguma
coisa; por conseguinte, falar com justeza (de modo verdadeiro) consiste pura e
simplesmente em dizer as coisas tais como elas são: ta onta hos estin legein5.
A controvérsia phusis – thesis teve larga duração e desempenhou impor-
tante papel na evolução da doutrina gramatical, visto que chamou a atenção
para a forma, estrutura e função das palavras. Tal controvérsia não só deu
origem a estudos etimológicos, mas também provocou debates sobre regulari-
dades e irregularidades idiomáticas (disputa entre analogistas e anomalistas),
suscitando variadas observações de cunho morfossemântico. É relevante notar
que Protágoras, famoso sofista que nasceu em 480 e morreu em 411 a.C.,
teceu alguns comentários sobre a categoria gramatical de gênero, fato a que
Aristóteles, cerca de 100 anos depois, faz explícita referência em duas de suas
obras: a Retórica, livro III, cap. 5, e os Elencos Sofísticos, cap. 14.
Até o séc. IV a.C., era comum entre os gregos, particularmente entre os
sofistas, a visão da linguagem sob o prisma de certo dualismo semiótico: o
conteúdo semântico das palavras era identificado com o mero conhecimento
sensível ou confundido com o próprio objeto designado. Assim, a forma sonora

4
Consoante a argumentação de Demócrito, se as palavras fossem uma cópia do real, não deveria
haver diferentes nomes para o mesmo objeto, nem a designação de diferentes seres pelo
mesmo nome.
5
Cf. Crátilo, 387 b; Sofista, 263 b.
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 65

dos nomes era com freqüência considerada uma espécie de sinete que se apli-
cava diretamente aos corpos singulares e sempre cambiáveis das coisas apre-
endidas pelos sentidos6. Tal relação dicotômica atribuída ao processo lingüísti-
co, que supõe uma espécie de “realismo direto”, foi veementemente criticada
por Platão e por Aristóteles, pois desqualificava a linguagem como meio de
encontrar e manifestar a verdade. Conforme acima explicado, para os dois
filósofos as vozes das palavras representam de imediato algo unitário ou inva-
riável, que, por sua vez, remete aos variados e infinitamente variáveis estados
de coisas da realidade. Surgem, desse modo, os lineamentos de uma teoria
semiológica de base triangular, cuja síntese se pode expressar pelo princípio
medieval de que uoces significant res mediantibus conceptibus7.

3. Phone semantike: lexis e logos


No desenvolvimento das idéias gramaticais, que vai de Platão e Aristóte-
les até os estóicos e a escola de Alexandria, os termos lexis e logos, sem se
despirem da sua densa polissemia, foram assumindo funções bastante diferen-
tes. Em Platão e em Aristóteles (séc. IV a.C.), há claros indícios de que lexis
tem um sentido que se pode traduzir por “emissão vocal”, “enunciação”, “ação
de dizer”, “elocução” ou “expressão”. Trata-se, portanto, de termo que se apli-
ca à face sensível (fônica) da atividade verbal, ao discurso na condição de
“significante sonoro” ou, ainda, à linguagem considerada a partir de sua mate-
rialidade morfológica e fonética. À forma vocal timbrada de impressões psíqui-
cas (phone semantike; uox significatiua), vale dizer, a qualquer manifesta-
ção de linguagem, em que inconsutilmente se combinam conteúdo e expressão
ou ratio e oratio, é que se atribuem os termos logos (oração, frase, discurso)
e meros logou (palavra simples ou composta enquanto parte da oração). Res-
paldam esta diferença terminológica o que Platão assinala na República (III,
392) e o que Aristóteles afirma na Retórica (III, 1403b) e também na Poética

6
Reminiscências da ingênua suposição de aderência da forma sonora da palavra a certo objeto
do mundo real sobrevivem no emprego encantatório da linguagem, na crença de que a simples
emissão do vocábulo faz as coisas acontecerem. Conforme o dito popular, “é só falar no diabo
que ele aparece”.
7
Comentando as Categorias de Aristóteles, Simplício, filósofo neoplatônico do séc. VI, já
afirma que o objetivo da referida obra é justamente discorrer sobre “vozes simples que signi-
ficam coisas simples, por intermédio de conceitos simples”: peri haplon phonon semainouson
hapla pragmata dia meson haplon noematon. (In Cat., p.12, 9)
66 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt

(1450b e 1456b), onde ele precisamente arrola oito “partes da expressão” (mere
lexeos ), entre as quais aparecem os stoicheia (fonema / letra) e a sílaba.
É interessante observar que em Commentarium in librum aristotelis
perihermeneias, Boécio (fins do séc. V), traduz o termo lexis por locutio, a
que confere a definição de uox articulata, entendendo por uox uma espécie
de sonus que é peculiar aos seres animados e suscetível de carrear alguma
significação. Interpretando com acerto o texto aristotélico, Boécio reconhece
que algumas partes locutionis (mere lexeos) não são portadoras de valor se-
mântico: “Locutio namque non in solis significatiuis uocibus constat sed
supergrediens significationes uocum ad articulatos sonos usque consistit”.
Com os pensadores estóicos que viveram entre os séculos III a.C. e I a.C,
os termos lexis e logos ganharam novos empregos na descrição da linguagem.
Segundo informações colhidas em Sexto Empírico (séc. II d.C.) e em Diógenes
Laércio (séc. III d.C.), os estóicos empregavam logos para indicar uma “voz
significativa” (phone semantike), ao passo que lexis indicava apenas uma
“voz articulada” (phone enarthros)8, que podia ser significativa, como hemera
[dia] ou “não-significativa” (asemantos), como blitri (espécie de onomatopéia).
Ao valor semântico associado à lexis, os estóicos costumavam dar o nome de
lekton. Nesta linha de entendimento, logos sempre corresponde, como sucede
com o signo saussuriano, a uma entidade de duas faces, uma sensível (lexis) e
outra inteligível (lekton)9. Enquanto componentes do logos, a face sensível ou
corpórea é um significante (semainon); a face inteligível ou incorpórea é um
significado (semainomenon). Em conjunto, representam alguma coisa do mun-
do extralingüístico (tuchanon, pragma). Em resumo, temos:
phone não-articulada
phone articulada ......................... (lexis)
lexis sem lekton
lexis com lekton........................... (logos)
É interessante comparar a classificação acima com outra anterior, que se
pode inferir do pensamento aristotélico. Na opinião de Aristóteles (Peri Psuches,
II, 420b; Peri Hermeneias, II, 16a), alguns dos sons produzidos pelos seres
animados, (psophos empsuchou) podem ser usados com valor de sinal
8
A “voz articulada” era sempre vista como phone engrammatos, quer dizer, como emissão
sonora suscetível de ser reproduzida ou representada por letras.
9
Os termos logos, lexis e lekton ressurgem nos textos de Santo Agostinho (séc. IV d.C.) sob as
formas de uerbum, dictio e dicibile, respectivamente. A distinção agostiniana entre uerbum
mentis (cordis) e uox uerbis também parece ter as suas raízes na oposição estóica entre logos
endiathetos e logos prophorikos.
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 67

(semeion)10. Há, todavia, que se distinguir sons inarticulados (psophoi


agrammatoi) que naturalmente manifestam alguma coisa, como sucede com
gritos de animais, e a voz propriamente humana (phone), emissão sonora arti-
culada que se emprega como sinal convencional (sumbolon) das “impressões
psíquicas” (pathemata tes psuches). Estas, por sua vez, são similitudes noéticas
dos seres e aconteceres da realidade (pragmata). Em síntese, pode-se traçar
o seguinte quadro:
I. Sons dos seres animados em geral
a) sons que significam e sons que não significam
b) sons articulados e sons não-articulados
II. Sons que significam
a) não-articulados.......................... sinal natural
b) articulados..................................sinal convencional (símbolo)11

As observações aristotélicas sobre a uox significatiua sugerem, confor-


me já dissemos, a existência de uma relação semiológica triádica, que se pode
reduzir ao seguinte esquema:
significado (pathemata tes psuches, semainomenon)12

significante (semeion, semainon) ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ realidade (pragma)

10
Para Aristóteles, o sinal (semeion) é algo que mantém com aquilo que é sinalizado (semeioton)
uma relação implicativa. Conforme se infere do que ele diz nos Primeiros Analíticos (II, 27,
70a ), a coisa que faz supor a existência de outra , seja anterior ou posterior, é, desta outra, um
sinal. Por conseguinte, o sinal é sempre uma coisa que leva ao conhecimento de alguma outra.
Como preferiam dizer os estóicos, o semeion serve para revelar o semeioton. Assim, a fumaça
funciona como sinal de fogo; uma cicatriz, como sinal de um antigo ferimento. É fato conhecido
que a doutrina estóica a respeito dos sinais (inclusive exemplos) reaparece na obra de Santo
Agostinho.
11
Vale lembrar que a definição aristotélica de sumbolon, embora distante da interpretação
saussuriana, encontrou plena guarida nos trabalhos semióticos de Charles S. Peirce.
12
Em Aristóteles, o termo semainomenon aparece, por exemplo, na seguinte passagem da Retó-
rica (III, 1405b): kallos de onomatos to men, hosper Likumnios legei, en tois psophois e toi
semainomenoi... [ como diz Licínio, a beleza de uma palavra pode estar nos seus sons ou no
seu significado...]. Também nos textos aristotélicos é comum o emprego de semainon para
indicar “o que significa” (significante).
68 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt

As classificações estóica e aristotélica, acima esquematizadas, de certo


modo se fundem e se complementam na que se encontra nas Summulae
Logicales de Petrus Hispanus (séc. XIII) e que se repete nas Summulae de
Dialectica, de Joannes Buridanus, (séc. XIV). Neste último, pode-se ler o
seguinte:

Vocum alia significatiua, alia non significatiua. Vox significatiua est illa quae aliquid
auditui repraesentat, ut ‘homo’ ‘hominem’, uel gemitus infirmorum dolorem aut
latratus canum iram uel gaudium. Vox non significatiua est illa quae auditui nihil
repraesentat, ut ‘bu’, ‘ba’.

Vocum significatiuarum alia significatiua naturaliter, alia ad placitum. Naturaliter


significat illa uox quae apud omnes idem repraesentat, ut gemitus infirmorum,
latratus canum. Vox significatiua ad placitum est illa quae ad uoluntatem instituentis
aliquid repraesentat, ut ‘homo’, ‘hominem’.

Vocum significatiuarum ad placitum alia complexa, alia incomplexa; complexa ut


oratio, incomplexa ut nomen uel uerbum.

No âmbito da escola de Alexandria (fundada no séc. III a.C.), o termo


logos, apesar de conservar a sua polivalência, foi corriqueiramente usado pe-
los gramáticos para designar o que hoje chamamos de frase ou oração, definida
como combinação de palavras que exprime um pensamento completo. Já o
termo lexis, alternando-se com meros logou, passou a designar, sobretudo, o
que denominamos palavra. Na Techne atribuída a Dionísio Trácio, define-se
lexis justamente como a menor parte da frase.

4. Meros lexeos e meros logou: dos gregos aos gramáticos latinos

Entre os gregos antigos, os sons elementares da fala (stoicheia), a sílaba,


a palavra e a oração foram tomados como unidades fundamentais da análise
lingüística. Referências a estas unidades se encontram em diversos diálogos de
Platão, (Crátilo, Teeteto, Sofista, Político), o que indicia já serem, no séc. IV
a.C., costumeiras e bem assentadas distinções metalingüísticas.
Considerada como “parte da oração” (meros logou) semanticamente in-
divisível, conforme se afirma no Crátilo (385c), a palavra sempre ocupou lugar
central nas discussões sobre a linguagem. Foi objeto de pesquisas etimológicas,
examinada quanto aos seus acidentes gramaticais e submetida a variados crité-
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 69

rios de classificação. Apesar da riqueza morfológica dos idiomas clássicos, a


palavra, e não o morfema, é que sempre foi tratada como forma primária e
unitária de significação13. Como diz o alexandrino Apolônio Díscolo (séc. II
d.C.), em sua admirável Peri Suntaxeos (I, 37), o termo anthropoi [homens]
não perde a sua unicidade, embora carregue, conjuntamente com o seu valor
básico, a idéia de plural. Na verdade, em toda a Antigüidade ocidental não se
chegou a configurar uma teoria dos morfemas como signos mínimos de uma
língua.
4.1 Platão, Aristóteles, estóicos e alexandrinos
Comentários de Platão sobre a frase e seus constituintes podem ser en-
contrados, principalmente, nos diálogos Crátilo, Sofista e Teeteto. De acordo
com o pensamento platônico, a frase (logos) compreende dois componentes
fundamentais: onoma e rhema. A distinção de tais componentes tornou-se ponto
obrigatório de referência, servindo de base à analise sintática e à classificação
de palavras das descrições lingüísticas que se fizeram posteriormente.
Numa passagem do Sofista (262a), o estrangeiro de Eléia e Teeteto dia-
logam sobre onoma e rhema nos seguintes termos:

Estrangeiro: – Possuímos, na verdade, para exprimir vocalmente o ser dois


gêneros de sinais.
Teeteto: – Quais?
Estrangeiro: – Os nomes e os verbos, como os chamamos.
Teeteto: – Explica tua distinção.
Estrangeiro: – O que exprime as ações, nós chamamos verbo.
Teeteto: – Sim.
Estrangeiro: – Quanto aos sujeitos que executam essas ações, o sinal vocal
que a eles se aplica é um nome.

Como Platão admite que toda frase resulta da combinação de onoma e


rhema, pode-se inferir que o primeiro vocábulo designa o que atualmente se
chama nome e sujeito da oração; o segundo subsume as noções de verbo e
de predicado. A princípio, portanto, onoma e rhema designavam funções sin-
táticas comumente exercidas por determinadas espécies de unidades lexicais.

13
Entre os primeiros gramáticos latinos, a definição da palavra (uerbum), como a menor unidade
significativa, aparece com todas as letras em Varrão: Verbum dico orationis uocalis partem,
quae sit indiuisa et minima. (De lingua Latina, X)
70 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt

As idéias de Platão foram aproveitadas e reelaboradas por Aristóteles. As


reflexões do sábio Estagirita sobre a linguagem, em geral, e sobre as partes do
discurso, em particular, espalham-se por diversas das suas obras, dentre elas a
Retórica, a Poética e o conjunto de textos reunidos sob o título genérico de
Organon (logikon). Compõem este último, como bem se sabe, trabalhos so-
bre Lógica que foram editados no séc. I a.C. por Andrônico de Rodes na se-
guinte ordem: 1) Categorias; 2) Da Interpretação14; 3) Analíticos Primei-
ros; 4) Analíticos Posteriores; 5) Tópicos; 6) Elencos Sofísticos.
Ao discorrer sobre os termos da proposição no segundo livro do Organon,
Aristóteles retoma e redefine a dicotomia onoma / rhema previamente discu-
tida por Platão. Na Retórica (III, 1407a), reconhece a existência de uma ter-
ceira classe de componentes sintáticos, denominada sundesmos, que compreen-
dia palavras diferentes de onoma e rhema (preposições, conjunções, etc.). No
capítulo 20 da Poética, Aristóteles arrola os seguintes constituintes da enuncia-
ção ou expressão:
1. Som elementar da fala ou fonema (stoicheion);
2. Sílaba (syllabe);
3. Conectivo (sundesmos);
4. Artigo (arthron);
5. Nome (onoma);
6. Verbo (rhema);
7. Caso (ptosis);
8. Oração, frase, texto (logos).

Advirta-se, porém, que diversos exegetas afirmam que o citado capítulo


da Poética sofreu sérias mutilações. Muitos chegam até a colocar em dúvida a
sua autenticidade. Talvez por este motivo alguns lingüistas não atribuam a Aris-
tóteles a distinção entre sundesmos (conectivo) e arthron (artigo)15. Advirta-
se, ainda, que na Poética o termo arthron, que literalmente significa “articula-

14
A tradicional tradução de Peri Hermeneias por Da Interpretação (lat. De Interpretatione; ing.
On Interpretation ) tem recebido algumas críticas. Muitos hoje preferem traduzir o referido
título por Da Expressão, o que não só corresponde a um dos sentidos do termo grego, mas
também parece estar em mais fina sintonia com os propósitos da obra aristotélica.
15
Releva notar que Quintiliano, autor de séc. I d.C., atribui a Aristóteles apenas a distinção entre
onoma, rhema e sundesmos ( Inst. Orat., I, 4). O mesmo já antes fizera Dionísio de Halicarnasso
(séc. I a.C.), que categoricamente afirma, em seu tratado sobre a combinação das formas
verbais, que Aristóteles e alguns seus contemporâneos, como Teodeto, só distinguiram as três
referidas classes de palavras.
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 71

ção” ou “juntura”, designa certos vocábulos relacionais ou anafóricos do grego,


e não propriamente o que se conhece na atualidade pelo nome de artigo.
Após assinalar as oitos partes da expressão (mere tes lexeos), Aristó-
teles define cada uma delas, estabelecendo de certa forma uma distinção bási-
ca entre unidades fônicas (fonema e sílaba) e unidades significativas.
Das unidades pertencentes ao plano fônico da língua (plano da 2ª articula-
ção, conforme costumam dizer os lingüistas), o fonema (stoicheion) é definido
como segmento sonoro indivisível, de que se distinguem três espécies, corres-
pondentes, grosso modo, ao que hoje se denomina vogal, consoante contí-
nua e consoante oclusiva. A sílaba, por sua vez, é definida como um segmen-
to sonoro constituído por stoicheia e desprovido de significação.
No que concerne às unidades significativas, cumpre de início acentuar
que Aristóteles atribui ao termo onoma um sentido amplo e outro restrito. Em
sentido amplo, onoma equivale a palavra16, definida como parte da oração
(meros logou) que tem significado próprio e que não pode ser dividida em
outras unidades significativas. Em sentido restrito, onoma designa toda palavra
de natureza nominal, identificada nos seguintes termos:

O nome é um segmento sonoro convencionalmente significativo, que não indica


tempo e cujas partes nada significam quando tomadas isoladamente. (Peri
Hermeneias, 2, 16a)

Em oposição a onoma, Aristóteles definiu rhema como uma unidade sig-


nificativa com marca temporal e como constituinte nuclear do predicado. Esta
segunda parte da definição permitiu-lhe colocar na classe dos rhemata, con-
forme já fizera Platão, certos adjetivos que em grego assumem freqüentemen-
te a função de predicado, como leukos, “branco”, e dikaios, “justo” (cf. leukos
ho hippos, “o cavalo é branco”). Considerando que neste caso o verbo ser na
terceira pessoa do presente está subentendido e é sempre suscetível de inserção,
pode-se dizer que tais adjetivos também são portadores de referência temporal.
Aristóteles emprega o termo ptosis para indicar variações gramaticais a
partir de certas formas da palavra tomadas como básicas ou primitivas. Na

16
O duplo sentido de onoma, entre os gregos, também se encontra em uerbum, entre os gramá-
ticos latinos. Conforme explica Quintiliano (Inst. Orat., I, 5), toma-se uerbum ora em sentido
genérico, ora em sentido específico. Genericamente, designa qualquer palavra, equivalendo a
uox, locutio ou dictio; especificamente, aplica-se a determinada “parte da oração”, como lego
ou scribo.
72 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt

prática aristotélica, são consideradas como formas básicas o nome no caso


nominativo e o verbo no tempo presente. Por conseguinte, são ptoseis os casos
oblíquos e as flexões verbais que exprimem tempo passado ou futuro. Também
são tratadas como ptoseis as variações do adjetivo para expressar as noções
de grau comparativo e superlativo.
A escola estóica, fundada em Atenas por volta do ano 300 a.C., atribuiu
particular atenção ao estudo da linguagem e elaborou uma teoria da significa-
ção em que sobressai a agudeza das observações acerca da relação entre o
signo lingüístico e a realidade. Sabe-se que os primeiros estóicos (Zenão,
Cleantes, Crisipo, Diógenes de Babilônia) escreveram numerosos livros sobre
temas lingüísticos, os quais, todavia, não chegaram até os nossos dias. Na ver-
dade, quase tudo do que hoje se conhece a respeito desses filósofos foi colhido
de segunda mão, em referências e comentários feitos por autores que viveram
em épocas posteriores.
Submetendo o discurso a novo tipo de análise, os estóicos aperfeiçoaram
a terminologia lingüística e melhor delimitaram as categorias gramaticais que
se exprimem através dos nomes e dos verbos. Para estabelecer e descrever as
classes de palavras, valeram-se basicamente de dois critérios: a) a presença ou
ausência de variação gramatical; b) presença ou ausência da flexão de caso.
Com isto configuraram um quadro classificatório que se pode apresentar do
seguinte modo:

A) Palavras variáveis, com flexão de caso:


Onoma = nome (substantivo e adjetivo)
Arhtron = pronome e artigo
B) Palavras variáveis, sem flexão de caso:
Rhema = verbo
C) Palavras invariáveis:
Sundesmos = preposição e conjunção

A classe dos nomes foi subdividida em nome próprio (onoma prosegorikon


ou prosegoria), como “Sócrates”, e nome comum (onoma kurion ou simples-
mente onoma), como “homem”. Com isto, chega-se a um total de cinco dife-
rentes partes do discurso. De acordo, porém, com Diógenes Laércio (Vitae
Philosophorum, VII), Antipater de Tarso, sucessor de Diógenes de Babilônia
à frente da escola estóica (circa 150 a.C.), teria isolado uma outra classe de
palavras, denominada mesotes, que mais tarde se chamará epirrhema mesotetos
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 73

(correspondente ao que hoje se denomina advérbio de modo derivado de um


adjetivo, como sopho# s “sabiamente”). Tomado em sentido literal, o termo
mesotes significa “o que está no meio” ou “situado entre dois extremos”. A sua
escolha parece ter sido motivada pelo fato de as palavras a que se aplica esta-
rem ligadas aos nomes adjetivos, do ponto de vista morfológico, e aos verbos,
do ponto de vista sintático.
As idéias dos estóicos foram largamente exploradas pelos sábios e erudi-
tos de Alexandria, cidade do Egito que a partir de séc. III a.C se tornou, dentro
da área de domínio helênico, importante centro de pesquisas lingüísticas e
filológicas. É justamente ao alexandrino Dionísio Trácio (séc. II a.C.), discípulo
de Aristarco, que se atribui a elaboração de uma Techne grammatike conside-
rada a mais antiga descrição sistemática do grego até hoje conhecida e matriz
das pesquisas propriamente gramaticais realizadas no âmbito do mundo oci-
dental. Todavia, vários estudiosos têm levantado dúvidas sobre a autoria e cro-
nologia da referida obra. Para Di Benedetto (1959: 118), a Techne que sobre-
viveu aos tempos não passa de um modesto manual composto, provavelmente,
no séc. IV da nossa era. Para outros pesquisadores, trata-se de compêndio
posterior ao séc. II d.C., que apenas reproduz, de modo parcial, o texto origina-
riamente escrito por Dionísio, a que, no séc. II d.C., Sexto Empírico (Adv.
gramm., I, 57) faz explícita referência, atribuindo-lhe o nome de parangelmata
(“prescrições”, “orientações”, “preceitos”).
Não obstante as controvérsias, a Techne apresenta uma divisão de pala-
vras em oito classes, que constituem a base de uma longa tradição nos domí-
nios da morfologia e lexicologia. As partes do discurso apresentadas, com as
suas respectivas propriedades, são as seguintes:
1. Onoma17 (nome): parte do discurso que possui flexão de caso e que de-
signa coisas corpóreas ou estados de coisas.
2. Rhema (verbo): palavra sem flexão de caso, mas flexionada em tempo,
pessoa e número, que significa processo executado ou experimentado.
3. Metoche (particípio): palavra que compartilha das características do ver-
bo e do nome, exceto as noções de pessoa e modo.
4. Arthron (artigo): parte do discurso que possui flexão de caso e que vem
antes ou depois dos nomes.

17
Na Techne, o adjetivo (epitheton) é visto como uma espécie de nome (onoma) que se junta a
outro nome. Tal interpretação, que implica a adoção de uma perspectiva sintática, está ligada
à distinção medieval entre nomen substantivum (que significa per modum per se stantis) e
nomen adiectivum (que significa per modum adiacentis).
74 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt

5. Antonumia (pronome): palavra que se emprega em lugar do nome e que


indica determinada pessoa.
6. Prothesis (preposição): palavra que se coloca diante de outras palavras,
no domínio da composição ou da sintaxe.
7. Epirrhema (advérbio): parte do discurso que não possui flexão e que
modifica ou acompanha o verbo.
8. Sundesmos (conjunção): palavra que interliga as idéias, ordenando-as, e
que deixa manifestos vínculos implícitos em uma expressão.
4.2 Os gramáticos latinos: Varrão, Donato e Prisciano
Considerado um dos primeiros e mais importantes gramáticos latinos, Varrão
(116 – 27 a.C.) foi um polígrafo e homem de vasto saber. A ele são atribuídas
mais de 70 obras18 sobre variados assuntos, quase todas perdidas nos desvãos
do tempo. Do que escreveu sobre a linguagem, apenas temos uma cópia do
séc. XI de uma parte de seu trabalho intitulado De Lingua Latina, originaria-
mente constituído de 25 livros, dos quais chegaram quase na íntegra até os
nossos dias os de nº V, VI, VII, VIII, IX e X; de alguns outros, existem apenas
fragmentos.
Partindo do geral para o particular, Varrão submeteu os vocábulos a dife-
rentes e sucessivas classificações, adotando, para cada uma delas determinado
critério. A rigor, são delineados no texto varroniano dois distintos esquemas
classificatórios, que inevitavelmente se entrecruzam em diversos pontos. Em
um dos esquemas prevalece a perspectiva morfológica (morfo-gramatical); no
outro, a perspectiva semântica.
Influenciado pelo pensamento estóico, Varrão estabeleceu inicialmente
para o latim dois genera uerborum: palavras indeclináveis (estéreis, invariá-
veis) e palavras declináveis (fecundas, variáveis). Em seguida distinguiu a
declinatio uoluntaria (processo de derivação), da declinatio naturalis (pro-
cesso de flexão). Considerando este último processo, propôs, com fundamentum
nas categorias gramaticais de caso e de tempo, a seguinte esquematização:

a) palavras com flexão de caso e sem flexão de tempo ex: docilis


b) palavras com flexão de tempo e sem flexão de caso ex: doceo
18
Sobre Varrão, diz Santo Agostinho (De Ciuitate Dei, VI, 2), reiterando opinião de Terenciano
Mauro (séc. II d.C.): “leu tanto, que não se sabe como teve tempo para escrever; escreveu
tanto, que é difícil acreditar que alguém possa ler toda a sua obra”. Conforme já evidenciado
por várias pesquisas, Santo Agostinho não se limitou a reconhecer e admirar o talento de
Varrão; também tirou largo proveito das suas idéias.
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 75

c) palavras com flexão de caso e tempo ex: docens


d) palavras sem flexão de caso e sem flexão de tempo ex: docte

Lançando mão do critério semântico, as palavras pertencentes a estes


quatro grupos foram identificadas como vozes que têm a função de nomear
(appellandi), declarar (dicendi), reunir (iungendi) ou auxiliar (adminiculandi).
As formas appellandi foram subdivididas em nominatus e articulus, com
valor definido (nomen / pronomen) ou indefinido (uocabulum / prouocabulum).
Com isto, chega-se ao seguinte sistema:

A) Palavras appellandi (nominatus e articulus)


1. nominatus
– nomen (definido) ex: Romulus
– uocabulum (indefinido) ex: mensa
2. articulus
– pronomen (definido) ex: ego
– prouocabulum (indefinido) ex: quis?
B) Palavras dicendi (uerbum )
C) Palavras iungendi (coniunctio)

Utilizando um critério que hoje se costuma chamar de funcional ou se-


mântico-sintático, Varrão admite que as palavras, ao se combinarem, podem
assumir o papel de termo primário (nome substantivo e verbo) ou secundário
(nome adjetivo e advérbio), como sucede nos seguintes exemplos: homo doctus;
scribit docte.
Sobre as divisões acima apresentadas, vejam-se os seguintes comentários
do próprio autor:

Quod ad partis singulas orationis, deinceps dicam. Quoius quoniam sunt diuisiones
plures, nunc ponam potissimum eam qua diuiditur oratio secundum naturam in
quattuor partis: in eam quae habet casus et quae habet tempora et quae habet
neutrum et in qua est utrumque. Has uocant quidam appellandi, dicendi,
adminiculandi, iungendi. Appellandi ut homo et Nestor, dicendi ut scribo et lego,
iungendi ut que19, adminiculandi ut docte et commode.

19
Algumas edições do texto varroniano trazem, em lugar de “iungendi ut que”, a construção
“iungendi ut scribens et legens”. Embora scribens e legens se enquadrem na classe das palavras
com flexão de caso e tempo, anteriormente mencionada, não faz sentido considerá-las como
formas iungendi.
76 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt

Appellandi partes sunt quattuor, e quis dicta a quibusdam prouocabula quae sunt
ut quis, quae; uocabula ut scutum, gladium; nomina ut Romulus, Remus;
pronomina ut hic,haec. Duo media dicuntur nominatus; prima et extrema articuli.
Primum genus est infinitum, secundum ut infinitum, tertium ut finitum, quartum
finitum.
(De lingua Latina, 8. 23)

Afastando-se do paradigma estóico de classificação de palavras adotado


por Varrão, Donato (séc. IV d.C.) e Prisciano (séc. V e VI d.C.), prestigiados
autores de gramáticas latinas, preferiram seguir de perto as pegadas de Dionísio
Trácio e de outros alexandrinos. Os textos de Donato e de Prisciano alcança-
ram larga aceitação e exerceram forte influência sobre os trabalhos de ensino
e descrição do latim durante a Idade Média. Evidenciam a popularidade de
Prisciano os mais de mil manuscritos que já foram encontrados das suas
Institutiones grammaticae. Quanto ao prestígio de Donato, basta dizer que os
seus trabalhos, Ars grammatica (Ars maior) e Ars minor, elaborados com um
propósito claramente pedagógico, ainda são fonte de consulta e referência cer-
ca de onze séculos após o seu aparecimento. É o que testemunha o texto didá-
tico escrito por Mathias Ringmann em 1509 com o sugestivo título de Gramma-
tica figurata – octo partes orationis secundum Donati.
Na trilha de Dionísio Trácio, Donato e Prisciano também distinguem oito
classes fundamentais de palavras. Introduzem, todavia, no processo classifica-
tório de Dionísio algumas modificações, dentre elas a substituição da classe
denominada arthron pela interjeição, tendo em vista não existir no latim clássi-
co o artigo definido. Deste modo, a interiectio passou à condição de classe
autônoma, deixando de ser considerada, conforme ocorria entre os gramáticos
gregos, como simples subdivisão dos advérbios.
Para melhor aquilatar a influência do pensamento alexandrino sobre os
gramáticos latinos, comparem-se as classes e definições estabelecidas por
Dionísio (supra) com as que se encontram em Donato (De partibus orationis
ars minor):

Nomen: Pars orationis cum casu corpus aut rem proprie communiterue
significans.
Pronomen: Pars orationis, quae pro nomine posita tantundem paene significat
personamque interdum recipit.
Verbum: Pars orationis cum tempore et persona sine casu aut agere aliquid
aut pati aut neutrum significans.
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 77

Aduerbium: Pars orationis, quae adiecta uerbo significationem eius explanat


atque inplet.
Participium: Pars orationis partem capiens nominis, partem uerbi; nominis genera
et casus, uerbi tempora et significationes, utriusque numerum et
figuram.
Coniunctio: Pars orationis adnectens ordinansque sententiam.
Praepositio: Pars orationis quae praeposita aliis partibus orationis significationem
earum aut conplet aut mutat aut minuit.
Interiectio: Pars orationis significans mentis affectum uoce incondita.

5. Conseqüências e conclusão

Observados da situação privilegiada do presente, não é difícil apontar equí-


vocos e lacunas nos trabalhos sobre a linguagem realizados pelos antigos gre-
gos e romanos. Desde os fins do séc. XIX, muitos foram os que assumiram
uma atitude questionadora em relação ao quadro tradicional de classificação de
palavras. Como lembra Colombat (1988:5), o resultado dessa atitude, “depuis
longtemps critique, a été de considérer l’approche du langage em termes de
parties du discours comme dépassé, car celui que s’y engage paraît s’enfermer
dans une problematique définitivement obsolète”. Todavia, gerativistas, estru-
turalistas ou funcionalistas, de diferentes orientações, continuam a falar em
nome, verbo, conjunção, etc., o que evidencia que a doutrina e a terminologia
gramaticais paulatinamente forjadas pelos antigos continuam a alimentar as
modernas teorizações e as atuais descrições das línguas espalhadas pelo mun-
do. Ademais, não se deve ignorar que as palavras são objetos classificáveis.
Trata-se de uma possibilidade teórica que não se pode desprezar pela simples
constatação de deficiências ou insuficiências dos critérios classificatórios usa-
dos no passado: há que se buscar novos critérios ou melhor avaliar e aproveitar
os previamente adotados.
Resgatando, por exemplo, a tricotomia onoma, rhema e sundesmos, esta-
belecida por Aristóteles, e retomando sugestões que se encontram em Minerva,
obra do séc. XVI, escrita por Sanctius (Sánchez de las Brozas), pode-se mol-
dar um sistema em que as palavras são classificadas não apenas enquanto
signos, entidades com significante e significado, mas também como objetos
contáveis. No primeiro caso toma-se como critério de classificação esta ou
aquela qualitas da palavra (determinada propriedade semântica, morfológica
ou morfossemântica); no segundo, leva-se justamente em conta a noção de
quantitas.
78 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt

Para ser adequada, toda classificação deve atender a três requisitos lógi-
cos: a) apoiar-se em critério homogêneo e relevante; b) ser exaustiva; c) ob-
servar o princípio da irredutibilidade. Enquanto modi significandi, as palavras
carregam em si um conteúdo genérico e irredutível (valor categórico) associa-
do a outros traços semânticos particulares (valor específico). Pelo modo gené-
rico de significar, as palavras põem em relevo a essência, a existência ou as
relações dos seres pertencentes ao espaço infinito do real e do imaginário, que
elas reticulam e representam. Assim, com amparo no seu valor categórico, é
possível distribuir primariamente as palavras em três classes:
1. Apelativo (Palavra que apenas desvela a essência dos seres, isto é,
o quê permanente e imutável das coisas.)
2. Verbo (Palavra que indicia certo modo de existência dos seres,
que os concebe como evento, como algo suscetível de
ocorrência e mudança na linha do tempo.)
3. Conectivo (Palavra que exprime relação entre os seres.)

Associando-se à classificação acima o critério da quantificação, pode-se


dicotomicamente agrupar as palavras em um inventário aberto (palavras
“lexicais”) e em um inventário fechado (palavras “gramaticais”). Ao primeiro
grupo pertencem os verbos; ao segundo, os conectivos. Os apelativos entram
nos dois grupos, repartindo-se em nomes (unidades “lexicais”) e pronomes
(unidades “gramaticais”). Cabe ressaltar que o nome e o pronome, a par da
diferença quantitativa, obviamente diferem entre si no que diz respeito ao modo
específico de significar: a estes, ao contrário do que sucede com aqueles, nor-
malmente se atrelam a noção de pessoa do discurso, a função vicária e o valor
dêitico/anafórico.
À vista do exposto, é possível configurar o seguinte quadro:

INVENTÁRIO ABERTO INVENTÁRIO FECHADO


Nome Pronome
Verbo Conectivo

Confrontando a divisão de palavras acima sugerida, a que por mera con-


venção se dará o nome de “classificação básica”, com a divisão proposta pela
NGB – amplamente empregada nas descrições tradicionais do Português –
pode-se estabelecer entre ambas (excluindo, por ora, a interjeição) as seguin-
tes correlações:
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 79

Classificação Básica Classificação da NGB


Substantivo
Nome Adjetivo
Numeral
Pronome
Pronome Artigo
Advérbio
Verbo Verbo
Conectivo Preposição
Conjunção

É de notar que alguns componentes da coluna direita do quadro, que não


aparecem na coluna esquerda, podem ser aproveitados para rotular subdivi-
sões resultantes da aplicação de outros procedimentos classificatórios. Mattoso
Camara (1964:149-60), por exemplo, admite que os nomes e pronomes são
suscetíveis de funcionar como substantivo, adjetivo ou advérbio, tendo em vista
a distinção entre termo determinado e termo determinante de primeiro e segun-
do grau. Todavia, qualquer subdivisão que se faça não pode perder de vista o
preceito medieval de que entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem.
No que diz respeito à classe das interjeições, cumpre de início salientar
que no seu domínio é costume colocar duas coisas bem diferentes: a) unidades
do tipo “Ah!”, “Oh!”, “Psit!”, etc; b) unidades do tipo “Viva!”, “Salve!”, etc. O
primeiro subconjunto é constituído de elementos paralingüísticos: formas de
expressão que podem ocorrer no processo enunciativo, mas que não perten-
cem ao sistema da língua. Por conseguinte, não se trata propriamente de pala-
vras. No segundo subconjunto, as expressões arroladas não se apresentam
nem funcionam apenas como palavras: são, a rigor, frases exclamativas (o que
se evidencia na escrita pela pontuação), equiparáveis a outras que igualmente
têm um só vocábulo, como “Fogo!”, “Socorro!”, etc.
À guisa de conclusão, vale relembrar que os filósofos pré-socráticos, Platão
e Aristóteles construíram os alicerces de uma teoria lingüística que se desen-
volveu com os estóicos, consolidou-se com os alexandrinos, passou ao Império
Romano, dominou na Idade Média, manteve-se influente após o Renascimento
e ainda permanece como fonte de indispensáveis subsídios para as pesquisas
lingüísticas realizadas na atualidade. Ao longo de mais de dois mil anos, suces-
sivas gerações de estudiosos assimilaram, repetiram, criticaram, debateram e
80 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt

aplicaram à descrição de diversos idiomas o pensamento gramatical que os


antigos gregos gradativamente sedimentaram. Tal estado de coisas constitui
inequívoco testemunho da relevância e fecundidade desse milenar legado para
o equacionamento e resolução de múltiplas questões sobre a linguagem, conti-
nuamente suscitadas por força e virtude da insaciável curiosidade humana.

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UMA OBRA PRECIOSA AO ROMANISTA: A LATEINISCHE
UMGANGSSPRACHE DE JOHANN BAPTIST HOFMANN
Evanildo Bechara

Entre os modernos representantes da Filologia Clássica e da Lingüística


Indo-européia que interessam ao âmbito da Romanística sem favor ocupa lugar
de relevo especial Johann Baptist Hofmann. Pondo de lado importantíssimos
artigos, das obras de Hofmann que mais de perto manuseia o romanista, mere-
cem atenção a sua extraordinária participação nos seguintes trabalhos:
No Thesaurus Linguae Latinae (começado em 1900, mas que teve como
repositório preparativo os artigos inseridos nos 15 volumes do substancial Ar-
chiv für lateinische Lexikographie und Grammatik, 1884-1908); na revisão
e enriquecimento da parte de Sintaxe da 5ª edição da conhecida Lateinische
Grammatik (1928), de Stolz-Schmalz, que figura na monumental coleção de
Iwan von Müller Handbuch der klassischen Wörterbuch Altertumswissen-
schaft, iniciada em 1885; na fecunda colaboração da 3ª ed. do Lateinisches
etymologisches Wörterbuch, de Alois Walde e na elaboração de um livro de
rara fortuna, que aprofunda raízes na língua de uso dos romanos, a Lateinische
Umganssprache (1ª ed. de 1926), que Joan Corominas, em sua tradução para
o espanhol (Madrid, 1958), intitulou El latín familial, e que Licinia Ricottilli, na
tradução italiana, com excelente introdução e fartamente anotada (Bologna,
1980), denominou La lingua d’uso latina. Lingua d’uso, entre especialistas
italianos, equivale a língua de conversação, de colorido familiar, como assinala
o familiar, no título da tradução de Corominas.
Uma boa exposição deste conceito entre os lingüistas italianos se pode
ver em Migliorini no livro Lingua e Cultura (“lingua litteraria e lingua dell’uso”,
págs. 47-60).
Hofmann nasceu em Neukenroth, na Alta Francônia, aos 11 de fevereiro
de 1886 e morreu na sua querida e esfuziante Munique, aos 27 de julho de
1954. Em 1904 encontramo-lo inscrito na Universidade de Munique, no curso
de Filologia Clássica ministrado por Fr. Vollmer e no de Lingüística Comparada,
a cargo de W. Streitberg. Depois de oito semestres de estudos, em 1909, a
dissertação De verbis quae in prisca latinitate extant deponentibus, elabo-
84 Evanildo Bechara

rada sob a orientação de Vollmer, superando brilhantemente o Staatsexamen e


o Doktorexamen. Seu orientador de estudos, que foi também um de seus mes-
tres diletos, em janeiro de 1909 convida-o para integrar a equipe de redação do
Thesaurus Linguae Latinae, já que, como tudo indicaria, lhe seria difícil, a
Hofmann, fazer a carreira do magistério secundário e superior, depois do agra-
vamento de uma doença de ouvido, manifestada ainda nos anos de universida-
de e que viria, com o tempo, privá-lo quase completamente da audição.
Na equipe de Thesaurus aprendeu com mais profundidade a técnica da
pesquisa dos fatos de língua, lexicais e gramaticais, técnica detidamente expli-
citada por outro notável conhecedor da língua latina, Eduard Wölfflin, no prefá-
cio programático do volume primeiro do citado Archiv, voltado, como dissemos,
a reunir material com vista à redução do Thesaurus, este iniciado em 1900 e
até hoje em plena vitalidade de elaboração.
Neste convívio, Hofmann revelou-se com tal competência e aptidão, que
logo se tornou um dos mais conspícuos alicerces da gigantesca obra de lexico-
grafia latina, em que trabalhou de 1909 até os últimos anos de sua vida. Só um
exemplo patenteia a sua intimidade com os meandros e sutilezas do latim na
confecção de verbetes: o lema dedicado à conjunção et arrola cem mil citações!
Dono de sólida informação de lingüística teórica posta a serviço da reda-
ção do Thesaurus, beneficiou-se Hofmann desta circunstância para a conse-
cução de seus preciosos estudos sobre latim e línguas itálicas, refletidos na
remodelação e melhoramentos introduzidos na 3ª edição do Lateinische
etymologisches Wörterbuch de Alois Walde, publicado entre 1938 e 1954,
confirmando-o como o melhor instrumento de trabalho da lingüística latina, pela
comparação do léxico do latim com as outras línguas indo-européias e pela
riquíssima informação bibliográfica.
Não foi menor o remanejamento feito na 5ª edição (1928) da parte de
Sintaxe inicialmente devida a Schmalz da extensa Lateinische Grammatik de
Friedrich Stolz e Joseph Hermann Schmalz, renovação não apenas na parte
relativa ao latim, mas ainda nas constantes aproximações do idioma do Lácio
às línguas germânicas, mormente, como seria natural, ao alemão, e às línguas
românicas, tornando, assim, a obra um precioso instrumento de informação ao
romanista. Ainda na preparação da sexta edição desta citada obra, sob a super-
visão de Anton Szantyr e saída em 1965, beneficiou-se o novo editor de várias
notas e observações que Hofmann apusera ao seu Handexemplar, confirma
Szantyr no prefácio (p. vi).
O seu extraordinário conhecimento do latim levou-o a escrever uma obra
de importância fundamental a que já antes fizemos referência: a Lateinische
Uma obra preciosa ao romanista 85

Umgangssprache. Trata-se de uma obra estimulante, de difícil confecção, já


se vê, no rastreamento daqueles fatos que, registrados em obras escritas, de-
nunciam traços da língua de uso, da língua de conversação. Seu objetivo é
distinto do que motivou a obra de um compatriota seu, Fr. Oskar Weise saída
em 1ª edição em 1891, sob o título Charakteristik der lateinischen Sprache,
que alcançou, segundo parece três reedições (1905). Trabalho que reúne ob-
servações finais, ao lado de outras impressionistas, entre fatos de língua e re-
flexo da mentalidade do povo, obra que teve larga divulgação no mundo dos
especialistas.
Todavia não foram os livros como o de Weise que serviram de inspiração
à obra de Hofmann; explicitamente nosso autor aponta como inspiradores os
trabalhos de Hermann Wunderlich (Unsere Umgangssprache, Nossa língua
coloquial, Weimar e Berlim, 1894), em que estuda a língua da conversação em
alemão, de Leo Spitzer (Italienische Umgangssprache, Língua coloquial
italiana, Bonn, 1922), sobre o italiano coloquial, e de Charles Bally (Traité de
stylistique française, Heidelberg, 1909), além, naturalmente, dos trabalhos
predecessores relativos à língua coloquial latina, como, entre outros, o de O.
Rebling (Versuch einer Charakteristik des römischen Umgangssprache,
Ensaio de uma característica da língua coloquial dos romanos, Kiel, 1873).
Para Hofmann, essa Umgangssprache se caracteriza, em primeiro pla-
no, como língua afetiva; e é nessa linha que procura rastrear, nos documentos
escritos, essa variedade diafásica, estilística.
Bem mais difícil do que a tarefa de Wunderlich e Spitzer, que pesquisa-
vam a língua viva, possível de ser quase fotografada, Hofmann lidou com tex-
tos escritos de épocas distintas, o que representa corpora variados no tempo,
nos gêneros e nos estilos de época. Daí certos cuidados de resenhadores da
obra em aceitar alguns dos resultados a que chegou o nosso latinista, embora
todos reconheçam os méritos do trabalho como um todo. Como diz Pasquali, a
consideração histórico-lingüística não se separa impunemente da história-lite-
rária (Pagine stravaganti, 2, 333).
Hofmann teve de enfrentar problemas de ordem teórica: citem-se o con-
ceito de Umgangssprache, a relação entre línguas escrita e língua falada e,
não menos complexo, os pontos de contato e de distância entre o latim da
conversação e o chamado latim vulgar. Neste último caso, Hofmann nega,
com muita razão, que esse latim vulgar possa estar inserido num conceito
único, quer no tempo, quer no espaço.
Apesar das dificuladades inerentes a uma obra dessa natureza, o profun-
do conhecimento do latim, especialmente de sintaxe, tão profundo que parece
86 Evanildo Bechara

instintivo – como assinala Heinz Haffer, em conferência lembrada por Licinia


Ricottilli, faz da Lateinische Umgangssprache um livro precioso.
Infelizmente, em língua portuguesa, especialmente entre brasileiros, o ex-
celente livro de Hoffman passou quase despercebido, embora suas lúcidas ob-
servações possam ainda trazer subsídios à análise e à interpretação dos que
fazem hoje estudos sobre o português falado. Faz exceção o Prof. Said Ali que,
já em época próxima à saída da 1ª ed. da obra (1926), a utilizara em artigo
sobre interjeições, depois inserido nos Meios de Expressão e Alterações Se-
mânticas (Rio de Janeiro, 1930).
SOBRE O GERÚNDIO E “GERUNDISMO”: UMA ANÁLISE
DE UM ASSUNTO EMOTIVO E POLÊMICO1

John Robert Schmitz


UNICAMP

“Precisava desenferrujar gerúndios, gerundivos,


e sobretudo, meus verbos irregulares” , Issais
Pissoti, Aqueles cães malditos de Arquelau. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

É surpreendente o clima emocional e hostil em torno da presença no por-


tuguês brasileiro falado e escrito de estruturas que contêm ir+ estar+
V____NDO como nas frases: “Vou estar transferindo R $ 3.000,00 de sua
conta bancária” e “Ele vai estar dormindo”. O uso do gerúndio nas referidas
frases é chamado de “gerundismo”. Os formadores de opinião rotulam tais
construções de “terrível praga”, “vício”, “maldito gerúndio”, “modismo”,
“gerúndio bastardo”, “gerúndio desproposital”, “patinho feio do estilo”, “samba
do gerúndio doido” e “o gerúndio assassino”. Com respeito a este último, cabe
a pergunta: o que exatamente o gerúndio estaria assassinando?
O discurso antigerundista2 constrói um quadro no qual a própria saúde do
idioma nacional é questionada. O emprego das metáforas sugere um idioma
“doente” e usuários “infectados”, que lembra uma verdadeira “epidemia”, fora

1
Quero agradecer a leitura crítica dos seguintes colegas: Gladis Massini-Cagliari, Marli Qua-
dros Leite, Renato Miguel Basso e Sumiko N. Ikeda. As falhas são da minha responsabilidade.
2
A polêmica em torno do gerúndio trouxe vários neologismos para o português: gerundismo,
gerundizar e antigerundista. É bom lembrar que existe o termo gerundivo que se refere ao
“particípio do futuro passivo latino” (Aurélio de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1986, p. 685. Alguns exemplos em portu-
guês são: doutorando, graduando, formando. Existem em português os adjetivos “fervente” e
“corrente”, antigos particípios latinos, relacionados com o gerúndio V___NDO. O adjetivo
“gerundial” está arraigado no idioma. O enunciado “chovendo, não sairei” é, segundo a análise
de Bechara (2000: 155) uma oração subordinada adverbial condicional reduzida de gerúndio
ou reduzida gerundial.
88 John Robert Schmitz

de controle que assola a nação e “contamina” o idioma nacional. Essa seria,


então, mais uma crise construída para acompanhar as outras crises de ordem
política, econômica e social, bem mais sérias que realmente comprometem a
“saúde” da nação!
Surge no discurso uma metáfora militar, pois os antigerundistas falam da
necessidade de “combater” a estrutura, defender e proteger a língua portugue-
sa do Brasil da “invasão” do gerúndio infeliz. As armas utilizadas para extirpar
a referida forma indesejada são os portais existentes na rede de computadores
que têm por nome: “Manifesto antigerundista”, “Odeio o gerúndio” e “Campa-
nha contra o gerúndio”. Existe também devidamente marcado no calendário –
“O dia contra o gerúndio”. Um dos resultados negativos de tais movimentos é
que eles tendem a semear certa insegurança lingüística entre os falantes de
português.3
Um grande desserviço ao público é a regra gramatical sugerida pelo “Ma-
nifesto Antigerundista” que adverte categoricamente: “O gerúndio NUNCA
vem depois de um verbo no infinitivo.” Basta observar que alguns exemplos
perfeitamente de acordo com a norma da língua portuguesa desmentem a re-
gra proposta: “Enquanto você arruma a cozinha, vou estar passando o aspira-
dor.”/ “Enquanto você resolve seus assuntos, eu vou ficar esperando aqui”.4 O
gerúndio passando vem depois do verbo auxiliar (estar) no infinitivo.
Com o objetivo de apresentar alguns argumentos com a finalidade de pro-
porcionar uma outra reflexão a respeito do gerúndio em português, divido o
trabalho em oito partes. Na primeira, argumento que o gerúndio é parte integral
do sistema verbal da língua portuguesa. Na segunda parte, refiro-me ao
gerundismo e pergunto se o fenômeno é lingüístico ou extralingüístico. Na ter-
ceira parte do artigo, pergunto se a construção V +estar+ V____NDO é um
fenômeno novo. Na quarta parte, comento as noções de duração e pontualida-
de (finalidade) com respeito ao gerúndio. Na quinta parte do trabalho comento
as considerações de Possenti (2005) e Ribeiro (2000) sobre o gerúndio. Na

3
Certa insegurança se observa também no texto do articulista, ensaísta e autor de telenovelas,
Walcyr Carrasco. Cf. Walcyr Carrasco, “Certo ou errado”, Veja, São Paulo, 16 de fevereiro de
2005. Carrasco escreve nestes termos: “A Língua Portuguesa está mudando. Se é um processo
bom ou ruim, tenho minhas dúvidas” (p. 138).
4
É plenamente possível em português empregar o presente do indicativo: “Enquanto você
arruma a cozinha, vou passar o aspirador”/ “Enquanto você resolve seus assuntos, vou espe-
rar/ vou ficar aqui”. O problema é que alguns gramáticos dizem que a forma com o gerúndio é
prolixa e, portanto, desnecessária. Eles recomendam o uso da forma “simples” argumentando
que é mais “enxuta”.
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 89

sexta seção, especulo se o uso gerúndio deve ser considerado um erro e per-
gunto o que é um erro realmente. Na sétima, teço comentários sobre a crença
por parte de muitos usuários de que a ocorrência do gerúndio se deve à influên-
cia da língua inglesa em contato com o português. Na última parte do trabalho,
apresento algumas conclusões que decorrem da análise.

1. O gerúndio é parte integral do sistema gramatical do português:


“o gênio da nossa língua” (Bechara, 2000:232).

Os gramáticos tradicionais preferem em geral prestigiar, nas suas descri-


ções tradicionais, bastante detalhadas, os tempos simples e os compostos, to-
dos acompanhados de diferentes quadros com as respectivas conjugações nos
modos indicativo, subjuntivo e imperativo Cunha (1970:182-187). Muito menos
atenção, todavia, é dada à ocorrência dos verbos auxiliares estar, ir, vir e andar.
O gramático mostra exemplos desses auxiliares, que precedem verbos princi-
pais em –NDO, mas limita sua apresentação à ocorrência dos mesmos no
presente do indicativo e no pretérito imperfeito, sem informar a possibilidade de
ocorrência em outros tempos. Alguns exemplos retirados de Cunha (1970:182-183):

“Venho tratando desse assunto.”


“Estou estudando.”
“O navio ia encostando no cais (pouco a pouco).”
“Vinha rompendo a madrugada”
“Andava procurando um livro”

Cunha explica, com toda propriedade, que as estruturas com os referidos


auxiliares seguidos de verbos principais em –NDO indicam “ação durativa”, “ação
que se desenvolve gradualmente” e “ação que se realiza progressivamente”.5
Quem apresenta uma descrição bem mais completa do gerúndio e o fenô-
meno da perífrase verbal é Mattoso Câmara (1972:146-147) que observa que
em português o auxiliar ocorre numa variedade de tempos e modos:
5
Cunha (1970:183) observa que “na língua moderna de Portugal predomina a construção de
sentido idêntico, formada de estar (ou andar+ preposição a + infinitivo). A afirmação está
correta, mas pode levar usuários incautos a pensar que o gerúndio com V+ estar+____NDO
não ocorre no português de Portugal. Não é verdade. Seria interessante examinar porque
Saramago usa, em certos momentos, estar+ a e em outros, construções “plenas”com V+
estar___NDO. “Sara ouve o que lhe está dizendo a doutora Maria Sara”, José Saramago,
História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 167.
90 John Robert Schmitz

“Estou espalhando”, “Estava espalhando”, “Estive espalhando”, “Estivera espa-


lhando”, “Estarei espalhando”, “Estaria espalhando”, “esteja espalhando”, “esti-
vesse espalhando”, “estiver espalhando”, “estando espalhado”,6 “estar espa-
lhando”.

Castilho (1961;113) resume sucintamente o papel o quadro de aspecto


verbal em língua portuguesa nestes termos:

... observemos ainda que no setor das perífrases a noção que apresenta maior
riqueza de possibilidades de expressão é a de duração, e que de todas a mais
versátil é a perífrase com estar (a) + infinitivo/gerúndio/particípio passado, indi-
cando ação inceptiva cursiva propriamente dita e cursiva progressiva, resultativa
e cessativa.

A reflexão acima apresentada mostra que o português é rico em gerúndios.7


Nem sempre os dados de Mattoso são aproveitados pelos gramáticos.
Um resultado sério dessa omissão é o fato de que alguns falantes de português
acreditam que o sistema verbal do português se restringe aos tempos presente
(louvo), pretérito imperfeito (louvava), pretérito perfeito (louvei) e limitadamente
no futuro simples (louvarei).
Com base nos trabalhos de Coseriu8 e de Jakobson, Bechara (2000:212 se
refere a “certas espécies de ação e arrola diferentes visões ou fases” de ver-
bos em português:
(i) “o verbo ir+ gerúndio: venho fazendo é uma ação progressiva e apre-
senta uma visão retrospectiva.”
(ii) “o verbo continuar+ gerúndio: continuo (sigo) fazendo combina a visão
retrospectiva e a prospectiva.”
Bechara observa com muita lucidez a própria especificidade da língua, o
que diz por meio da expressão “o gênio de nossa língua” ao escrever:
6
Entre os exemplos arrolados por Mattoso Câmara, “Estando espalhado” é verdade que o
verbo principal não está no gerúndio. Mesmo assim, o gerúndio em si em português é muito
produtivo em comparação com o francês, holandês ou alemão. Devo a observação a Renato
Miguel Basso.
7
Existem gerúndios perifrásticos no português contemporâneo como: Maria está/esteve/esta-
rá/estaria trabalhando e o não perifrástico que têm a forma composta: Não tendo conseguido
dormir, fui escaldar um chá na cozinha e dei de cara com a Rosa e a Idalina. (Otto Lara
Resende) e a forma simples: “Cai a chuva estrepitando.”(F. Varela). Para mais dados, ver Celso
Cunha, Gramática Moderna. Belo Horizonte:Editora Bernardo Alves, 1970, pgs. 182-183.
8
Um dos livros citados por Bechara de autoria de Coseriu é El Sistema Verbal Románico.
México:Siglo Veiteuno, 1996.
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 91

Está mais de acordo com o gênio da língua portuguesa (ênfase minha) o uso do
gerúndio com auxiliar estar ou infinitivo com a para traduzir atos que se realizam
paulatinamente, em vez do uso de forma simples do verbo, como faz o francês
(Jeanne nous regarde / Joana está-nos olhando ou a nos olhar (p. 232)).

Cabe observar que o gerúndio é de longa data usado no português e muito


freqüente nas Cantigas de Santa Maria de Alfonso X (Mettmann: 1986). Um
exemplo:

“Chorando de coraçon
foi-sse correndo
a casa, e viu enton
estar fazendo
os bischocos e obrar
na touca a perfia,
e começou a chorar
con mui grand’alegria.”
(Cantigas de Santa Maria, 18)

(a) O gerúndio em português e em outras línguas.

O português se diferencia de outros idiomas do mundo devido à falta de


gerúndios perifrásticos como em línguas tais como o alemão, o holandês, o
francês e o russo.9
Os referidos idiomas, em vez de utilizar verbos auxiliares e um afixo nos
moldes de –NDO ao verbo principal, recorrem ao presente do indicativo e
dependem muito mais da presença de adjuntos adverbiais de tempo (neste
momento) e advérbios (agora, freqüentemente) do que o português para ex-
pressar duração e continuidade.
O sistema verbal do português apresenta várias formas de expressar
futuridade: (i) encaminharei o relatório amanhã”, (ii) “vou encaminhar o relató-
rio amanhã”, (iii) estarei encaminhando o relatório amanhã”, (iv) vou estar
encaminhando o relatório amanhã”. Cabe observar que em outros idiomas – o
francês e o alemão são bons exemplos – não existe uma construção perifrásti-
ca estar+ndo que tem a finalidade de exprimir continuidade ou “progressividade”.

9
O francês tem o “gerondif”: Ils vont chantant e En attendent le plaisir de vous rencontrer...,
mas não uma forma perifrástica como être (estar)+ gerúndio.
92 John Robert Schmitz

O francês tem equivalentes para as sentenças (i) e (ii) acima, mas não para (iii)
e (iv). O italiano, por sua vez, apresenta “traduções” para (i) e (ii) respectiva-
mente “invierò la relazione domani” e “ínvio la relazione domani”; no sistema
verbal italiano não existem equivalentes para (iii) e (iv).
À guisa de exemplo, o falante do português pode dizer “Maria canta” e
também “Maria está cantando”. Existe em francês uma única possibilidade
“Marie chante”, oração essa que comunica o que Marie sabe fazer e também
o que ela está fazendo num determinado momento da fala. Para transmitir
continuidade, a língua francesa depende exclusivamente de advérbios ou ex-
pressões adverbiais: “maintenant”, “dans ce moment” ou “être en train de+
infinitivo”. Obviamente, uma oração isolada (fora de contexto) é ambígua.
Quanto ao português brasileiro, cabe observar que o próprio verbo estar
(com ou sem ser+NDO) precede adjetivos dinâmicos tais como: “Ele está (sendo)
curioso, barulhento, intransigente, exibido, oferecido, fingido” Esses mesmos
adjetivos também seguem o verbo de ligação ser: “Ele é curioso, barulhento,
intransigente, exibido, oferecido, fingido etc.” Daí se pode concluir que o portu-
guês de acordo com a figura abaixo possui um quadro verbal “diferenciado”
em contraste com o inglês ou com o francês.

está sendo
Mário está curioso.
é

Mario is (being) curious.

Mario est curieux.

Ao comparar os três idiomas, usei o adjetivo “diferenciado” para caracte-


rizar o português com respeito a estar (sendo) e ser. O português brasileiro,
neste caso, é diferente. Afirmar que ele é “mais expressivo” ou “rico” do que o
inglês e o francês é um argumento tão subjetivo como alegar que a construção
(ir)+estar+V____NDO não seja plenamente vernácula.” A língua portuguesa
se distingue dos outros idiomas do mundo e eis aqui a sua originalidade, pois ela
é um dos poucos idiomas do mundo que admite o uso do gerúndio como impera-
tivo.10

10
O português é diferente de outras línguas do mundo em utilizar o gerúndio em enunciados
como: Só rindo, Só vendo, só perguntando, Foi sem querer, querendo.
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 93

Cunha (1970: 282) observa que no português popular “... o gerúndio subs-
titui por vezes a forma imperativa”. Eis alguns exemplos retirados do livro de
Cunha:

“Andando! = vá andando! Ande!”

Apresento dos meus registros outras estruturas em –NDO que funcio-


nam como ordens ou mandatos:

Gente, vão se acomodando!


Tudo mundo votando!
Vai entrando, Zeca!
Vá falando, rapaz!
Pode ir esquecendo! Não haverá aumento!
“Vai saindo, vai saindo, ordenei fazendo com que voltasse pelo mesmo caminho.”
Lygia Fagundes Telles, “Suicídio na Granja”, Invenção e Memória. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000, p. 18.

Os idiomas sem formas perifrásticas semelhantes ao auxiliar +


V____NDO (freqüente em português) não atestam construções desse tipo na
voz passiva:

“Ele (= projeto de lei do deputado Aldo Rebelo) teria que estar sendo mais discu-
tido.” [ Luis Fernando Veríssimo, Agência O Globo,Gazeta do Povo (Curitiba), 25
de janeiro de 2001.
“Toda vez que eu ligo a TV ou ele está sendo preso ou está sendo solto!” (José
Simão, Folha de S. Paulo, 20 de abril de 2004, p. E 7)
“Os carnês estão sendo enviados.”
“Os impostos estão sendo cobrados.”

Do mesmo modo, idiomas desprovidos de formas perifrásticas com verbo


auxiliar seguido de particípio não apresentam a referida forma no modo subjun-
tivo (quando esses idiomas tiverem subjuntivo): “Duvido que ele esteja dizendo
a verdade o tempo todo neste inquérito.”, “Duvido que ele vá estar dizendo a
verdade no decorrer do inquérito.”
(b) Uma hipótese a respeito do gerúndio e
o sistema verbal do português:
A respeito do gerúndio no sistema verbal, apresento a seguinte hipótese.
Se o quadro verbal do português brasileiro não tivesse a variedade de formas
perifrásticas (com a presença do gerúndio) que tem, os usuários não teriam
94 John Robert Schmitz

condições de chegar a produzir construções tais como ir + estar + V___ndo,


dever + estar + V___ndo e poder + estar + V____ndo. Observem-se as
diferentes perífrases existentes no idioma que possibilitam o desenvolvimento
de ainda outras perífrases no sistema.

está
anda
vive
Ele fica pesquisando a vida dos dinossauros.
vai
vem
segue
continua
vai
deve
pode
espera
tem vontade de estar pesquisando a vida dos dinossauros.
Ele admite
pretende
reconhece
pensa
planeja
julga

2. O gerundismo: um problema lingüístico ou extralingüístico?

Cabe observar que o próprio termo “gerundismo” não está registrado no


momento presente no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) ou
o Novo Aurélio Século XXI: O Dicionário da Língua Portuguesa (1999).
Sem dúvida, a referida palavra virá a ser dicionarizado no futuro próximo. Como
seria definida pelos lexicógrafos? Afianço que possíveis acepções seriam: (i)
“o uso exagerado de gerúndios” ou (ii) “o emprego do gerúndio em orações
iniciadas com o verbo ir seguido do auxiliar estar + V___NDO como em vou
estar enviando, vou estar transferindo, vou estar entrando”.11
11
Enunciados como “Ele deve estar chegando na parte da tarde” ou “Boa coisa não há de estar
fazendo” (Cf.A Cilada de autoria de Otto Lara Resende, (In:Ênio Silveira, org. Os Sete Pecados
Capitais. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964) nem sempre são alvos de crítica,
vistos como “pragas”ou “vícios”como no caso de enunciados que começam com o verbo ir
(ir+ estar+ V___NDO).
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 95

Não me parecem procedentes as definições propostas. Em primeiro lu-


gar, a noção de exagero na linguagem é um assunto pessoal e depende do estilo
oral (e escrito) dos usuários. Exagerar ou não é um direito e da responsabilida-
de do usuário. Alguns falantes “exageram” no uso de gíria, outros no emprego
de palavrões e ainda outros no “excesso” de marcadores conversacionais como
“tá?”, “né?”, “viu?”, “sabe?” e “entende?”. Ainda outros exageram no uso de
vocábulos de origem estrangeira que têm equivalentes em português. Os que
condenam o uso de estruturas V+ estar + V___NDO recorrem igualmente ao
exagero como uma estratégia para censurar o emprego da referida constru-
ção. Eis um exemplo de texto confeccionado para ridicularizar o uso excessivo
do gerúndio.

Este artigo foi feito especialmente para que você possa estar recortando, estar
imprimindo e estar fazendo diversas cópias, para estar deixando discretamente
sobre a mesa de alguém que não consiga estar falando sem estar espalhando essa
praga terrível que parece estar se disseminando na comunicação moderna, o
gerundismo. (Manifesto antigerundista).

Para combater o exagero cometido por parte de um número reduzido de


falantes, os “adversários” montam propositalmente textos artificiais que não
ocorrem naturalmente na linguagem, com a finalidade de persuadir os usuários
a evitar a referida estrutura. A mesma estratégia tem sido usada também para
ridicularizar o uso de gíria, o emprego de estrangeirismos e, até, o dialeto caipi-
ra, é triste dizer.
Nem mesmo os indivíduos que trabalham no telemarketing, que recebem
críticas por “abusar” do gerúndio, usam tantas formas no gerúndio nas suas
interações com o público. É fácil para autores construírem textos para desqua-
lificar uma determinada prática lingüística, mas eles não apresentam um argu-
mento realmente acadêmico para rejeitar determinadas ocorrências do gerúndio.
É verdade que alguns falantes podem chegar a empregar freqüentemente
a forma em tela nas suas interações. Os que trabalham na área de telemarketing
têm sido alvo de crítica, pois alguns receptores das mensagens telefônicas in-
terpretam estruturas como vou estar transferindo, vamos estar enviando
como falta de boa vontade, insinceridade ou mera protelação. Uma falante
confessa a sua impaciência com estar transferindo: “Confesso que de saco
cheio de ouvir “vou estar passando sua ligação para o outro setor.” Mas, a
mesma falante defende o uso de “vou estar enviando o meu trabalho na próxi-
ma semana” por uma determinada usuária porque “... é possível que ela não
96 John Robert Schmitz

saiba exatamente quando, no decorrer da próxima semana, que ela vai poder
enviar.”12 O referido enunciado não ocorreu num ambiente de telemarketing
mas num ambiente universitário. Daí se vê que “vou estar+V____NDO” pode
ser recebido diferentemente por dois ou mais usuários. Generalizar com base
em uma opinião é sempre perigoso. A linguagem é plural e não é propriedade
de um indivíduo só.
Vou estar pode ser recebido por parte de um determinado ouvinte como
exemplo de má-vontade em realizar a ação logo. A causa da irritação pode ser
muito mais a própria situação em que a linguagem é usada. Teclar no telefone
número 1 para “alhos” e 2 para “bugalhos” e assim número 8 !! para finalmente
ouvir uma gravação que diz: “Obrigado, você vai estar recebendo um telefone-
ma de um de nossos representantes”, contribuiria, sem dúvida, para a perda de
paciência por parte de uma pessoa até bem equilibrada. O problema é nem
sempre lingüístico. Em uma situação em que o lapso de tempo necessário para
que uma ação de enviar ou transferir algo, um documento por fax, por exem-
plo, depende da própria eficiência do serviço prestado: as linhas telefônicas são
lentas? A rede vive fora do ar ou está lenta? É provável que alguns usuários que
trabalhem diretamente com a Internet e aparelhos de fax estejam acostumados
às demoras nas tentativas de “enviar” e “transferir” devido ao tamanho dos
arquivos, mas outros ficam irritados e impacientes com a demora.. Os que de-
pendem de serviços de entrega em domicílio estão cientes da morosidade do
tráfego nas ruas e avenidas congestionadas: o enviar e o transmitir se tornam
(para eles) ações de duração e não atividades pontuais. Ainda, outras situações:
o funcionário ou a funcionária está dando conta do grande número de chama-
das? A fila não anda? Os funcionários estão revoltados devido a problemas
trabalhistas ou de ordem pessoal? A língua e a linguagem são fenômenos sociais
e os acontecimentos no dia-a-dia dos seres humanos afetam a linguagem que eles
utilizam. Cabe lembrar que mesmo sem usar nenhum gerúndio, um(a) telefonis-
ta pode ocasionar irritação quando deixar um indivíduo esperando muito tempo
para ser atendido. O problema pode ficar em certas instâncias fora da própria
linguagem, pois filas intermináveis em repartições ou em bancos também irri-
tam mesmo quando não ocorrerem gerúndios na interação entre indivíduos.
É importante também não adotar uma postura preconceituosa contra gru-
pos de pessoas que trabalham no campo de telemarketing que atribuem à

12
Os meus agradecimentos a todos os colegas e também aos informantes “leigos” que debateram
comigo a respeito do gerúndio. Não menciono nomes específicos, pois a consulta por minha
parte foi realizada informalmente por correio eletrônico. Julgo que não seria ético indicar
nomes, pois muitos dos consultados disseram que gostariam de refletir mais sobre o assunto.
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 97

estrutura perifrástica ir + estar + V___NDO uma forma de mostrar interesse


e preocupação para com o público.13

3. V+ estar+V____NDO: um fenômeno novo?


Certos falantes acreditam que a estrutura em tela é de origem recente.14
Alguns gramáticos e alguns jornalistas tentam legitimar essa visão. Uma con-
sulta a fontes escritas, mesmo parciais, desmente a crença. Os exemplos reti-
rados do romance Os Ratos de Dyonélio Machado, publicado pela primeira vez
em 1935 e republicado em 2004 mostra que a referida estrutura não é recente:
(i) “Agora mesmo, toda essa manhã perdida em busca de uma e outra pes-
soa, quando podia estar agenciando, cavando... (p. 44)
(ii) “O datilógrafo há de estar lendo o livro metido na gaveta” (p. 46)
(iii) “Todo o bangalô parece estar vibrando – enorme caixa de música.” (p. 58)

A estrutura também pode ser encontrada em autores mais recentes. Na


coletânea de contos Invenção e Memória de autoria de Lygia Fagundes Telles
há as seguintes ocorrências:

13
Numa das páginas na Internet que ataca o uso do gerúndio, os autores do site consideram o
grupo de indivíduos que trabalham no campo de telemarketing como sendo um “gueto”.
Lamentável é o uso da referida palavras que lembra a exclusão social de milhares de judeus na
Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial.
Considerando que um bom número de pessoas que trabalham na área de telemarketing são
mulheres, pergunto se não poderia haver certa dose de discriminação contra elas. Recentemen-
te, na programação de uma novela televisa, uma alta executiva de uma empresa humilhou uma
secretária por ela ter usado ir+estar+V___NDO. Mais um exemplo do uso da língua (e a
linguagem) como instrumento de poder e autoridade. Existe uma dose de “terrorismo” em
certas atitudes sobre a linguagem,
14
Infelizmente, afirmei em trabalho anterior (Schmitz, 2004) que a construção ir (poder, dever,
ficar) é recente no idioma. Com base nos exemplos encontrados nas obras de D. Machado,
Telles e Resende, retiro a afirmação. Os enunciados retirados de D. Machado mostram que a
construção em tela data de 1935, mais de 70 anos atrás. Cabe observar que não encontrei
enunciados com ir+estar+V___NDO nos referidos textos. É possível que essa forma seja
realmente mais recente e restrita a textos orais informais. Seria interessante saber exatamente
quando ingressaram no idioma pela primeira vez construções como poder+estar+V___NDO,
dever+estar+V___NDO, e haver de+estar+V____NDO. Não encontrei exemplos de ir (po-
der, dever, haver de+ V___NDO no corpus das obras de Maria Helena de Moura Neves,
Gramáticos de Usos do Português. São Paulo: Editora Unesp, 2000 e também de Odette
Gonçalves Luiza Altmann de Souza Campos. O Gerúndio em Português. Rio de Janeiro:
Presença, 1980.
98 John Robert Schmitz

(iv) “Quis dizer-lhe como esse encontro me deixou desanuviado, mas ele de-
via estar sabendo, eu não precisava mais falar” ( p. 93) Lygia Fagundes
Telles, Invenção e Memória. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

No conto “A Cilada” de autoria de Otto Lara Resende (In:Ênio Silveira,


org. Os Sete Pecados Capitais. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1964) há dois exemplos:
(v) “Boa coisa não há de estar fazendo”, (p. 71)
(vi) “O negro deve estar dormindo”, (p. 77)

Observa-se que todos os enunciados respectivamente retirados dos tex-


tos de Machado, Telles e Resende têm o auxiliar estar posicionado entre o
verbo inicial (à esquerda) poder (i), haver de (ii), (v), parecer (iii) , dever (iv),
(vi) e (à direita) os respectivos verbos principais em –NDO: agenciando, cavan-
do (i), lendo (ii), vibrando (iii), sabendo (iv), fazendo (v) e dormindo (vi).
Possenti (2005: 21), em vez de considerar orações “vou estar morando
em S. Paulo” exemplos de gerundismo, prefere rotular as mesmas como casos
de “estarismo”. Exemplos retirados dos três autores acima citados (i) a (vi)
também seriam exemplos. O sistema verbal do português é muito rico e bas-
tante complexo. No corpus consultado há exemplos de outros auxiliares que
ocorrem entre o verbo inicial e o verbo principal com o sufixo em –NDO:
(vii) “Pode ir tirando o cavalo da chuva”. (p. 53), “A Cilada”, Otto Lara Resende.
(In: Ênio Silveira, org. Os Sete Pecados Capitais. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 1964)
(viii) “Enfim, até quando eu teria que ficar justificando o que escrevi”, (p.77),
Lygia Fagundes Telles. “Que número faz favor?” Invenção e Memória.
Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 73.

Existem também exemplos de “estarismo” fora da área de literatura. Eis


alguns exemplos de textos jornalísticos:

“Mas deve estar sendo comemorado pelos responsáveis...” Editorial, Folha de S.


Paulo, “Objetivo Duvidoso”, 27 de outubro de 2004, p. A2.
“...uma vez a sempre preferível estratégia de auto-regulamento parece estar fa-
lhando”, Editorial, Folha de S. Paulo, 06 de junho de 2005, p. 2.
“Muitos devem estar pensando que esse é uma questão de Estado e de política
pública”, Milú Villela, “O Tsunami Nosso de Cada Dia”, Folha de S. Paulo, 03 de
fevereiro de 2005, “Tendências e Debates”, p. A 3.
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 99

4. Duração (Continuidade), Pontualidade (Finalidade):


Incompatibilidade: Próprio dos Verbos ou do Mundo Real?
O problema maior com respeito à análise de ir+estar +V____NDO é o
fato de que os exemplos apresentados na literatura especializada e também nos
textos publicados na imprensa carecerem de contextualização, pois os enuncia-
dos não estão inseridos em discursos reais. Com respeito aos enunciados “vou
estar enviando”, “vou estar providenciando”, “vou estar enviando” e “vou estar
transferindo $ R 3.000, 00 de sua conta” realmente não existem pistas para um
julgamento lingüístico mais cuidadoso por parte de diferentes usuários com vis-
tas à aceitação ou não dos mesmos.
O último exemplo “vou estar transferindo $ 200,00 ...” não fornece con-
texto suficiente para processamento por parte de usuários do idioma. Talvez
por este motivo, alguns usuários rejeitem o enunciado. Todavia, se o referido
enunciado for “melhorado” com a presença de mais informação para possível
processamento, parece-me que os mesmos falantes seriam levados a aceitar a
nova versão: “vou estar transferindo mensalmente da minha conta quantias de
$ R 3.000.00 para a minha poupança”. Trata-se da transferência de várias
parcelas mensalmente ao longo de um espaço tempo prolongado que indica
ação durativa que vai além do momento atual. Um dado que me leva a argu-
mentar que o julgamento gramatical de determinados enunciados é bastante
complexo advém do fato de que Garcia (2002), mesmo rejeitando “Vou estar
transferindo de sua conta $ R 3.000,00...” está plenamente consciente de que
existe outra leitura para o enunciado por ele rejeitado. As palavras do comen-
tarista são reveladoras:

Se você ficar transferindo 3 mil reais da minha conta corrente durante o dia 23. Vai
zerar a conta. Só transfira uma vez, não fique transferindo.

Possenti (2005: 11) afirma que o verbo enviar não é durativo e portanto
incompatível com o verbo auxiliar estar que tem sentido durativo. Com base
nesta consideração, o autor afirma que o enunciado “vou estar enviando o seu
cartão” é “estranho” ao passo que o enunciado “vou estar morando em S.
Paulo” está bem formado devido ao fato de estar e o verbo principal em -NDO
serem durativos. Posso contra-argumentar que a noção de duração não é um
traço inerente dos verbos. Somente quando eles são empregados em eventuais
tempos verbais seria possível cientificar se um determinado verbo for durativo
ou não.
100 John Robert Schmitz

Pormenorizando, o verbo enviar, por um lado, aporta o sentido não durativo,


pontual, não-contínuo quando utilizado no tempo pretérito perfeito como se ob-
serva em: “Enviei o telegrama ontem.” Por outro lado, o mesmo verbo usado
no tempo pretérito imperfeito como no exemplo: “Sempre enviávamos ao longo
dos anos fotografias dos netos a nossos avós” indica que a ação de enviar
acarreta continuidade e atividade habitual ou repetida por um determinado es-
paço de tempo. O enviar das fotografias tem certa duração.
Do mesmo modo, o sentido de continuidade é também transmitido quando
o referido verbo enviar ocorrer no tempo presente na forma perifrástica: “Ca-
ros avós: estamos enviando, por correio registrado, as fotografias dos netos.
Avise-nos quando chegarem”.
Com base nesses dados, afirmo que a presença da noção de duração e de
não duração somente pode ser verificada quando os verbos ocorrerem em
determinados textos verbais conforme acima apresentados.
A noção de duração é bastante relativa, pois um intervalo de cinco minu-
tos pode ser uma eternidade para alguns; para outros, cinco horas dedicadas à
revisão de um artigo pode passar num instante. Para evitar conflitos sobre o
que é duração, é preciso fornecer dados lingüísticos suficientes sobre os refe-
ridos enunciados para que seja possível aos eventuais usuários refletir sobre o
assunto e, assim, possam aceitar ou rejeitar o uso do gerúndio em certos con-
textos. Quando se contrapõem duas ações simultâneas, os enunciados resul-
tantes tendem a se tornar processáveis para os informantes. Um exemplo des-
te tipo de enunciado é: “Vou estar providenciando a documentação na repartição
lá no vigésimo nono andar enquanto você fica na fila aqui embaixo.” Da mes-
ma forma, quando os enunciados com o gerúndio tiverem informação que per-
mita determinar a existência de um espaço de tempo para a realização da ação,
os mesmos se tornam interpretáveis para os usuários consultados: “Ele vai
estar resolvendo o problema dele nas próximas semanas” e “Ele vai estar en-
viando os relatórios logo que tiveram os dados em mãos”.
Há, todavia, certas restrições ligadas mais ao funcionamento do mundo
real do que a restrições lingüísticas. Cipro Neto (1998a) tem razão ao questio-
nar a aceitabilidade de comparecer no enunciado: “Não pude estar compare-
cendo”. A atividade de comparecer é, de fato, difícil de repetir ou de ser repe-
tido. Os verbos sumir e desaparecer são outros exemplos. Todavia, o usuário
pode pensar nas várias ocasiões em que participa de diversos eventos e consi-
dera o verbo comparecer um sinônimo de participar. Diria que ninguém re-
clamaria dos enunciados em que comparecer e desaparecer acarretam a noção
de duração ou continuidade. Dois exemplos: “Os artistas estão comparecendo
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 101

regularmente às festas de aniversário e de casamento sem mencionar as fre-


qüentes baladas que têm por aí.”; “Os sabiás já estão desaparecendo das nos-
sas florestas”.

5. Umas reflexões interessantes sobre o gerundismo:


falta de comprometimento? Atenuação de assertividade?
Determinação histórica? Concisão?

a) Escala de comprometimento?

Possenti (2005:21) afirma que entre os enunciados que os falantes de


português podem escolher para comunicar as suas intenções existe uma escala
de compromissos que vai de um comprometimento máximo até um comprome-
timento mínimo. Para o autor, “vou estar resolvendo” implica um compromisso
mínimo, “vou resolver seu problema” implica um comprometimento relativo ,
“resolverei seu problema” , “compromisso forte, mas não tanto” e “hei de re-
solver o seu problema” um compromisso máximo. A tese é interessante mas é
difícil afirmar que há graus de compromisso inerentemente alojados nas referi-
das orações. Um problema com a proposta é que nem todos os falantes usam
o futuro “resolverei seu problema”, preferindo “vou resolver o seu problema”.
O exemplo de grau máximo de compromisso “Hei de resolver o seu problema”
é restrito a usuários mais letrados e nem sempre ocorre na língua falada infor-
mal. Ausente da escala de comprometimento de Possenti (2005) é o enunciado
“estamos resolvendo o seu problema”. Onde ficaria na referida escala? Os
quatro enunciados citados podem ser utilizados por uma miríade de usuários.
Quem poderia adivinhar o que todos esses usuários pensam no momento de
falar? Quais são as intenções de todos eles? Se um determinado falante optar
por dizer, “vou pagar” ou “pagarei”, nada garante que o indivíduo cumpra com
a palavra. Daí se vê que mesmo não fazendo uso do gerúndio, o falante pode
falhar e não pagar. Não se pode afirmar que quem diz “vou estar resolvendo”,
é necessariamente um caso de compromisso mínimo. Pode ser que o falante
precise de certo tempo para cumprir. Não se sabem as verdadeiras intenções
de todos os falantes que poderiam lançar mão da referida frase. Existe, em
muitos casos, uma grande diferença entre o que é dito por um determinado
usuário e o que ele faz na realidade. Com respeito aos indivíduos que dizem
“hei de resolver o seu problema”, o exemplo mais alto de comprometimento na
escala proposta por Possenti, realmente não temos nenhuma garantia a respei-
102 John Robert Schmitz

to da sinceridade dos eventuais enunciadores. Um determinado falante pode


escolher, em diferentes instâncias, os quatro enunciados da escala na suas inte-
rações com quatro diferentes ouvintes e mentir para todos sem ter nenhuma
intenção de resolver nada. Para Searle e Vanderveker (1998:22-23), todos os
atos de fala que envolvem “... uma mentira ou uma promessa insincera” são
atos ilocucionários defeituosos.
A tese de que o uso do gerúndio “vou estar resolvendo” espelha uma falta
de compromisso reinante na sociedade brasileira é questionável quando se le-
var em consideração que outros idiomas também têm um sistema de aspectos
verbais repleto de gerúndios (como o inglês e o espanhol, por exemplo), mas
ninguém concluiria que nas várias sociedades onde o inglês e o espanhol são
respectivamente falados que, existe uma “crise” de comprometimento. Pode
existir, sim, falta de comprometimento e de ética nas diferentes sociedades,
mas a “culpa” desse estado de coisas não é do gerúndio.

b) Atenuação de assertividade?

Alguns usuários consideram que a presença do verbo “estar” em vou


estar recebendo torna o enunciado prolixo e o certo seria “vou receber”. Além
disso, o verbo “estar”, de acordo com este ponto de vista, contribui para desfi-
gurar a assertividade do mesmo. Mas, tanto “vou estar recebendo” como “vou
receber” são asserções; é impossível afirmar qual enunciado teria um grau
maior de assertividade. No meu entender, toda oração realmente assevera:
“Prometo cuidar de você”, “Vou cuidar de você”, “Vou estar cuidando de você”
e “cuidarei de você”. Um usuário consultado opina nestes termos: “Eu, pes-
soalmente, não acho uma construção errada no português do Brasil. Penso
ainda que é uma construção que carrega um certo valor de atenuação, isto é,
parece-me que os falantes preferem essa construção como uma forma de po-
lidez. Dizer “vou estar enviando” parece ser mais “polido” do que “enviarei”
que soa mais direto. Isso são elucubrações, mas me parece que isso aconte-
ce.” Não há nada inerente no enunciado “vou estar atendendo” em contraste
com “vou atender” que determine que o primeiro é mais polido do que o segun-
do. Cada usuário recebe o idioma de forma diferente; alguns atribuem um grau
de polidez a uma oração e outros usuários não.
Há, todavia, outras opiniões. Costa (2005) afirma que o gerúndio “... si-
mula a formalidade e evita compromissos com a palavra e joga luz sobre o
artificialismo nas relações sociais. O jornalista é categórico ao dizer que a refe-
rida construção é um vício. Seria um vício, pergunto, se uma pessoa empregar
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 103

um único gerúndio (do tipo que mais inquieta os críticos, ir+estar+V____NDO)


numa palestra de duas horas de duração? As relações sociais podem, na verda-
de, ser artificiais, pois a naturalidade ou a artificialidade no relacionamento
humano nada tem a ver com a sintaxe ou a semântica de um determinado
idioma. A artificialidade nas relações humanas pode ocorrer em qualquer gru-
po, comunidade, sociedade ou país.

c) Determinação histórica

Fora da área dos estudos da linguagem e especificamente na de história


existe outra análise do gerúndio que julgo pertinente para comentário nesta
reflexão. O filósofo Renato Janine Ribeiro (2000) apresenta uma tese enge-
nhosa a respeito do surgimento do que ele chama o “gerúndio despropositado”.
Ele argumenta que os brasileiros nunca ajustaram “... contas com o escravidão,
com a colônia, com a iniqüidade” (p. 97) e descartam “o passado inteiro”.
Segundo o filósofo, o brasileiro vive a ilusão de eterno recomeço. Por este
motivo, eles precisam “... do presente contínuo a torto e a direito: porque faltam
passado e futuro” (p. 98). Afirmar que o sistema verbal do português brasileiro
espelha os diferentes acontecimentos históricos e que o uso lingüístico dos fa-
lantes reflete o passado histórico é uma postura determinista sem apoio na
disciplina de lingüística. Como disse acima, o inglês e também o espanhol têm
nos respectivos sistemas verbais uma pletora de construções perifrásticas com
o gerúndio, mas as suas respectivas histórias são completamente diferentes.
Os acontecimentos políticos-históricos-sociais de determinados países nada têm
a ver com a presença ou ausência de fenômenos lingüísticos como a voz passi-
va, presença ou ausência do subjuntivo ou dois verbos de ligação: ser e estar.

d) Concisão
Não somente a construção com gerúndio ir+estar+ V____NDO “Ama-
nhã, vou estar conversando com ele” mas também a construção “Amanhã,
estarei conversando com ele” são considerados “pouco econômicas à expres-
são do sentido pretendido” por parte de Camargo (2000). A autora recomenda
“Amanhã conversarei (vou conversar) com ele”. Qual será o “sentido preten-
dido” a que se refere a autora? O perigo com a recomendação é que eventuais
vestibulandos podem inferir que o futuro perifrástico “Estarei conversando”
não é exemplo de português correto. Pior ainda é condenar “conversarei” na
crença de que o futuro não é usado em português do Brasil como afirma Cipro
104 John Robert Schmitz

Neto (1998b):”Não temos o hábito de dizer “faremos”, dizemos mesmo “Va-


mos fazer”. Uma usuária questionada a respeito do gerúndio reclama nestes
termos: “Ficamos cansados de ouvir tantas construções com o gerúndio que,
em verdade, pouco acrescentam àquilo que efetivamente as pessoas querem
dizer”. Os comentários por parte da usuária mostram certa irritação com o
exagero e a repetição. Mas, em se tratando de tantos falantes e tantos inter-
câmbios entre diversas pessoas, pergunto se em todas as instâncias pensadas
pela usuária ocorreram malentendidos como se fosse caso de duas línguas
estrangeiras diferentes.
O desejo de buscar concisão pode, em certos casos, ter resultados trági-
cos. Por exemplo, num folheto de orientação de trânsito, a Secretaria de Trans-
portes da Cidade de São Paulo informa: “Cuidado: mesmo que os automóveis
estejam parados, os ônibus, motos e táxis podem estar andando na faixa exclu-
siva. Se o “estar andando” for substituído por “podem andar”, o significado
seria outro e diferente da intenção da Secretaria de Transportes.15

6. O uso do gerúndio é um erro?

As línguas mudam ao longo do tempo e cada geração deixa a sua marca


mesmo pequena no idioma. O português escrito e falado da época de José de
Alencar ou Aluísio de Azevedo é diferente da língua produzida pelos usuários
hoje em dia. Estigmatizar determinadas construções e expressões não presta
um bom serviço ao idioma. Não incluiria (ir)+estar+ V____NDO entre várias
“impropriedades” cometidas por alguns usuários tais como (i) grafar “tampou-
co” quando a intenção é dizer “tão pouco”, (ii) escrever “a par” quando o
contexto pede outra forma como no caso: “As ações do Petrobrás estão ao
par” (e não “a par”), (iii) escrever “ir de encontro a” quando a situação pede “ir
ao encontro de”. Essas produções de fato são problemáticas, pois desviam a
atenção do ouvinte/ leitor e dificultam a comunicação. O que falta na análise
gramatical, a meu ver, é uma discussão sobre a gravidade dos erros. Seria
importante pensar numa hierarquia de “erros” começando com os que interfe-
rem na compreensão e indo até as “infrações” que não dificultam a recepção
da mensagem, mas esse assunto seria tema para outro trabalho. Devido à polêmi-

15
Os que argumentam que o gerúndio é prolixo nem sempre sabem que, em certos casos, o
presente indicativo e a forma perifrástica estar+NDO funcionam como variantes estilísticos,
pois os usuários de português podem escolher: “Envio neste momento um e-mail com dois
anexos”/ “Estou enviando neste momento um e-mail com dois anexos”.
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 105

ca com respeito ao gerúndio, muitos indivíduos se confundem. Existe perigo de


corrigir uma construção onde não há nenhum problema. O cronista Millôr Fer-
nandes (2006) ironiza a corrente dos antigerundistas com seu característico
bom humor: “Devem continuar procurando (a procurar corrijo), aceitando o
atual lingüisticamente correto, que odeia o gerúndio”.
Dizer categoricamente que a forma ir+ estar+ V___NDO é um erro
reflete uma postura simplista com respeito ao idioma, pois critérios diferentes
são arrolados e misturados para identificar o que supostamente está errado.
Para Sanchotene (2006) a frase “Vou estar transmitindo sua queixa ao gerente”
deve ser substituída por “Vou transmitir sua queixa ao gerente” devido ao fato
de que a primeira expressa “possível submissão, respeito à hierarquia” ao passo
que segunda é por ele considerada “forma aceitável, mesmo quando o interlo-
cutor não tem poder de decisão.” Estar em posição de superioridade numa
hierarquia decisória nada tem a ver com a escolha de “vou estar transmitindo”
ou “vou transmitir”. É também subjetivo considerar uma forma ou outra mais
polida. Para medir o grau de polidez, é preciso conhecer o contexto inteiro,
identificar o papel dos interlocutores e o tom de voz de cada um dos participantes.
Um “erro” como no caso da forma verbal “se eu depor” em vez do certo
“se eu depuser” (Cipro Neto, 2000) é um caso muito diferente do que ocorre
com o gerúndio “ir+estar+V___NDO”. O primeiro exemplo no uso do verbo
depor indica falta de leitura e estudo. O segundo exemplo reflete o pleno fun-
cionamento do idioma. Um problema com respeito a noção de erro é a existên-
cia de uma postura de discriminação contra indivíduos que não tiveram a opor-
tunidade de estudar. Humilhar pessoas e considerá-las “ignorantes” por não
conhecerem determinadas formas de português pode esconder outros precon-
ceitos de ordem de classe social, raça e etnia. No entanto, cumpre perguntar
onde pára o preconceito lingüístico com respeito a indivíduos que nunca tive-
ram ensino formal e começa uma verdadeira impaciência com um certo desca-
so com o idioma. Não se trata de preconceito lingüístico16 por parte de Lima
Barreto autor da crônica “Quase Doutor” (1915), ao relatar o caso de um
estudante, que mesmo em vias de concluir os seus estudos, continua falando
uma variedade de português popular. Barreto comenta: “Caí das nuvens. Este
homem já tinha passado tantos exames e falava daquela forma e tinha tão
firmes conhecimentos!” (p. 141).

16
Um estudo pormenorizado, muito sério e comovente sobre o preconceito lingüístico é o livro
de autoria de Maria Marta Pereira Schere, Doa-se lindos filhotes de poodle. São Paulo, Pará-
bola, 2005.
106 John Robert Schmitz

7. O gerúndio: influência do inglês?

Alguns críticos alegam que a referida construção verbal seria resultado


do contato ou da interferência com a língua inglesa por parte dos falantes brasi-
leiros. Não estou convencido de que orações como “Vamos estar aplicando
ainda outra vacina amanhã” [atribuída ao Sr. José Serra, Ex-Ministro da Saú-
de], “Vou estar pensando o tempo todo na minha namorada durante a minha
viagem à França”, “O plantonista vai estar atendendo amanhã na parte da
tarde” e “Você vai estar chegando de viagem quando a gente começa a abrir
inscrições” sejam frutos da interferência por parte de aprendizes brasileiros de
língua inglesa. Acredito que nem todos os falantes que produziram essas ora-
ções falam a referida língua. É bem provável também que alguns desses falan-
tes nunca tenham estudado a língua inglesa. É mero acidente ou coincidência
que o inglês e o português recorram à mesma construção: V+estar+V
____NDO/ V+ be+V____ING. É verdade que o português compartilha com o
inglês, em certos casos, orações como “Vou estar enviando um fax esta ma-
nhã/ Estarei enviando um fax esta manhã” e “I am going to be sending you a
fax this morning/ I will be sending you a fax this morning”. A existência das
referidas construções respectivamente nas duas línguas se deve a um desen-
volvimento diacrônico independente.
Quem conhece a literatura especializada sobre a aquisição de inglês por
parte de brasileiros sabe que os desvios ou “erros” realmente produzidos pelos
aprendizes são outros. A direção da interferência não é do inglês para portu-
guês, mas do próprio português para o inglês. Os que lidam com o ensino de
inglês a brasileiros sabem que o aprendiz brasileiro precisa ser alertado que o
uso de estar+V____ndo é, em certos casos, mais “livre” do que em inglês. Em
português, “Maria está sabendo as respostas” e “Mário está gostando das au-
las de morfologia” são bem formadas, ao passo que as orações equivalentes
em inglês nem sempre satisfazem: *“Mary is knowing the answers” e *“Mario
is liking morphology”, pois, para certos falantes de inglês, a presença de locu-
ções adverbiais de freqüência e de tempo contribui para a plena gramaticalidade:
“Mary is knowing more and more the answers to the questions as the semester
goes by” e “Mario is liking morphology more and more every day thanks to his
inspired teacher”. Existe a possibilidade de o aluno brasileiro generalizar de-
mais ao tentar se expressar em inglês e o resultado seriam enunciados nem
sempre muito felizes: *“I am not liking this food” e *“It is wanting to rain”.
Há também casos em que o português emprega um gerúndio e o inglês
não. Os equivalentes de “Não estou entendendo, delegado”, “Não estou vendo
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 107

a sua bengala” e “Ficarão sabendo em julho” em inglês são respectivamente: “I


don’t understand, inspector”, “I don’t see your cane” e “You will find out in
July”. 17

8. Concluindo
a) Neste trabalho tentei mostrar que o português é uma das línguas do
mundo que apresenta uma variedade de construções perifrásticas com a pre-
sença do verbo auxiliar estar (e vários outros): “Ele está, vem, vai, anda, vive
estudando”. Bechara (2001:219-220) resume com propriedade a complexidade
do sistema verbal do português: “É o que ocorre com estive fazendo, que
expressa, além do nível do tempo e da perspectiva primária, também a visão.
Tenho estado fazendo expressa nível temporal, perspectiva primária, pers-
pectiva secundária e visão. Já tenho estado vindo fazendo, tinha-se estado
pondo a fazer embora teoricamente possíveis, não são correntes.”
b) Comentei no decorrer do artigo que os próprios usuários do idioma
empregam a referida construção perifrástica com criatividade nos textos escri-
tos e também orais. Alguns exemplos:

“Deu o que deu. Ou está dando no que está dando”, Eliane Cantanhêde, “Dor no
coração”, Folha de S. Paulo, 29 de fevereiro de 2004, p. A2.

“Falando de futebol estava, falando de futebol continuava”, Eliane Cantanhêde,


“Hermanos”, Folha de S. Paulo. 05 de maio de 2005, p. A 2.

c) Argumentei nesta apresentação que dada a produtividade da constru-


ção estar+ V___NDO, é possível os usuários expressarem sutis diferenças de
tempo e de aspecto. Por exemplo, a construção com estar+V____NDO pode
se referir à ação costumeira: “Ele sempre está andando na praia” ou no mo-
mento exato de falar: “Ele está andando na praia neste instante”, ou a ação que
acontece no futuro: “Ele está viajando para França no próximo sábado” .
d) Com base nesses comentários e, em particular, levando a proposta de
Castilho (1967) que “a perífrase com estar é a mais versátil”, argumento que

17
A polêmica sobre o gerúndio infelizmente traz críticas à figura do tradutor. Alguns anti-
gerundistas culpam ao tradutor brasileiro de língua inglesa pela presença do gerúndio em
português. É injusto generalizar e afirmar que todos os tradutores são incompetentes e que não
respeitam a sua própria língua. Existe muita seriedade e profissionalismo por parte dos
tradutores e intérpretes brasileiros.
108 John Robert Schmitz

as construções com gerúndio precedido de ir + estar são reflexão de um de-


senvolvimento natural no idioma. Se a língua portuguesa não possuísse o gerúndio
perifrástico, em primeiro lugar, os falantes não poderiam, em segundo lugar,
chegar a produzir a gama de construções que ocorrem no idioma e bastante
arraigados de longa data no português (cf., D. Machado, 1935 (2005). Na rea-
lidade a presença de gerúndio perifrástica serve como “ponte” para a ocorrên-
cia de novas formas (ir+estar+V____NDO) e novos usos no sistema de as-
pecto verbal da língua. Não deve ser uma surpresa atestar as referidas formas
em português devido à presença das formas perifrásticas numa variedade de
tempos. Comentei no item (c) desta oitava parte que o gerúndio incorpora, em
certos casos, o papel de futuro: cf. “Ele está viajando para França no próximo
sábado”. O português se destaca de outros idiomas do mundo, como argumen-
tei acima (seção 1 (a), em apresentar várias formas de expressar o futuro: (i)
“encaminhei o relatório amanhã”, (iii) “vou encaminhar o relatório amanhã”,
(iii) “estarei encaminhando o relatório amanhã”. Baseando-me nas observa-
ções de Castilho (1967) a respeito da versatilidade da perífrase com estar e
também nas de Possenti (2005) a respeito de “estarismo” no português, aven-
turo-me a propor que as construções em ir+estar + V____NDO funcionam,
em certos casos, como um (novo) futuro no português do Brasil: (iv) “vou estar
encaminhado o relatório amanhã”. Outra evidência que me leva a propor que a
construção ir+ estar+ V___NDO expressa futuridade é a sua compatibilidade
com locuções adverbiais de tempo (voltadas ao futuro). Comparem, por exem-
plo, os enunciados no tempo presente com os que, de acordo com a minha
argumentação, focalizam o futuro

Carlos está morando em São José do Rio Preto desde 1985.


Carlos vai estar morando em São José do Rio Preto nas próximas semanas.
Eles já estão resolvendo aos trancos e barrancos os problemas deles.
Eles vão estar resolvendo os problemas deles ao longo do próximo semestre.

Os enunciados com as construções “estar morando” e “estar morando”


onde se têm “estarismo” (Possenti, 2005) e V____NDO funcionam como re-
curso para descrever continuidade no futuro que ainda não foi iniciada.
A “expansão” ir +V___ NDO ’‡ir+ estar+V___NDO no português bra-
sileiro contemporâneo também poderia ser considerada uma marca deixada
pelos falantes mais novos, pois cada geração contribui para a mudança do
idioma.
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 109

e) Tentei argumentar que é preciso repensar a noção de erro em portu-


guês porque as construções com gerúndio são, na verdade, sintática e seman-
ticamente bem formadas. A polêmica em torno do gerúndio e “gerundismo”
mostra que faltam entre nós, debates respeitosos e tranqüilos entre gramáticos,
lingüísticas, professores de português, jornalistas, publicitários e advogados com
o público em geral com respeito a uma atualização ou “aggiornamento” da
norma padrão. Tal debate é necessário para eliminar a defasagem entre o que
é apregoado com base na “Tradição” e o que é realmente usado no dia-a-dia
pelos diferentes usuários do idioma, independentemente de sua classe social e
grau de instrução.
f) Argumentei também que a presença do gerúndio em português não é
resultado da interferência de aprendizes brasileiros de língua inglesa e a pre-
sença de gerúndio na língua portuguesa nada tem a ver com problemas de
tradução.18
Ciente de que o tema escolhido para a minha reflexão é polêmico, agrade-
ço a atenção dos meus leitores e aguardo comentários, sugestões e críticas.

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18
Cabe observar que em inglês “reading”em “John is reading” ( João está lendo) é um “participle”
(particípio). Um “gerund” é “reading”em “Reading develops the mind” (A leitura desenvolve
a mente).
110 John Robert Schmitz

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FILOSOFIA DA LINGUAGEM E TERMINOLOGIA ECDÓTICA
Barbara Spaggiari

Na tradição filológica brasileira, a inovação terminológica, introduzida por


Emmanuel Pereira Filho, relativamente às chamadas variantes ‘internas’ e ‘ex-
ternas’, não deixa de estranhar todo especialista formado em outras escolas
filológicas, européias ou norte-americanas, pela sua falta aparente de motivação.
Durante a preparação do manual de ecdótica, recém-publicado pela Edi-
tora Lucerna,1 essa peculiaridade terminológica acabou por ressaltar de forma
ainda mais gritante, em comparação com as propostas formuladas, para indicar
o mesmo fenômeno, pelos filólogos europeus ou norte-americanos, e isso a partir
do último quartel do séc.XIX, como se pode apreender pela tábula a seguir:

‘fond’ vs. ‘forme’ (Gaston Paris e escola francesa)


substância forma (escola italiana e ibérica)
‘substantive’ ‘accident(al)s’ (escola anglo-saxônica)
variante interna variante externa (escola brasileira)

De fato, as demais tradições ecdóticas, como aparece pela lista acima


fornecida, têm escolhido definições de molde claramente filosófico, nomeada-
mente aristotélico (forma, substância, acidente). Qual será, então, a origem
do par adjetival interna/externa, escolhido por Emmanuel Pereira Filho?
Começamos por lembrar os termos da questão, antes de aprofundar o
problema terminológico.
Como é sabido, uma das marcas que diversificam a filologia aplicada aos
textos vernáculos, com respeito à filologia clássica (grega e latina), reside na
existência de uma diferente tipologia de variantes. Nos textos clássicos, de
fato, tudo o que toca à (orto)grafia se encontra estabelecido por normas já
seculares, bem arraizadas e, em princípio, rigorosamente respeitadas pelos co-
pistas. Noutros termos, uma palavra latina não suporta qualquer alteração for-

1
Cf. Barbara SPAGGIARI-Maurizio PERUGI, Fundamentos da Crítica Textual, Rio de Janeiro,
Editora Lucerna, 2004.
112 Barbara Spaggiari

mal, e pode ser grafada duma só maneira, sob pena de não ser entendida pelo
leitor, ou então, de introduzir um erro patente no texto.
Nas línguas clássicas existia, portanto, um sistema não apenas gramatical,
mas também (orto)gráfico, que não admitia oscilações, ou mudanças, graças à
estandardização suportada, tanto pela língua grega como pela latina, em sua
expressão literária, ou culta.
A situação muda radicalmente com o advento das línguas vernáculas, que,
em seu secular processo de afastamento da matriz comum latina, atravessam
várias etapas evolutivas, chegando só em época assaz recente a uma norma
estandardizada, oficial, ‘ne varietur’ (o que, nem sempre, mas freqüentemente,
coincide com a afirmação de uma estrutura estadual, ou de qualquer modo
centralizada, capaz de impor uma norma lingüística unitária).
A distinção entre ‘crítica das lições’ e ‘crítica das formas’, introduzida por
Gaston Paris na sua edição da Vie de Saint Alexis (1872),2 constitui, portanto,
uma pedra angular na história da ecdótica moderna. Com isso, o fundador da
filologia românica toma em conta o fato de que a mesma palavra pode ser
grafada, numa língua neolatina antiga, com diferenças formais, que não inci-
dem sobre a substância, isto é, sobre a identidade e o significado da palavra. Na
sua introdução metodológica à Vie de Saint Alexis, Gaston Paris retoma várias
vezes o mesmo conceito, articulando sempre a oposição entre o que ele chama
‘fond’ (“altérations apportées au fond”, “refonte du fond”, p.10) e o que ele
define como ‘forme’ (“altérations apportées à la forme”, “refonte de la forme”,
ibid.), até ele chegar à definição da tarefa do editor crítico, como sendo consti-
tuída por duas operações distintas, mesmo que complementares: se ao editor
cabe, por um lado, “la constitution du texte en ce qui concerne les leçons”, ele
deve também, por outro lado, “déterminer les formes du langage et d’écriture
qu’il faut adopter” (p.27).
Dentro da ‘varia lectio’ será preciso, então, distinguir entre lições diver-
gentes quanto à ‘substância’, que terão que ser levadas em conta aos fins
estemáticos, e lições que apenas divergem quanto à ‘forma’, isto é, do ponto de
vista gráfico ou fonético. Sendo definida a oposição entre ‘fond’ e ‘forme’,
como acabamos de ver, por Gaston Paris, ficou essa terminologia própria dos
filólogos franceses, ou francófonos, que falam, portanto, de ‘variantes de fond’
e de ‘variantes de forme’.

2
Cf. La Vie de Saint Alexis. Poème du XIe siècle (...), publ. par Gaston PARIS et Léopold
PANNIER, Paris, Franck, 1872.
Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica 113

No entanto, em outros países europeus de língua neolatina, preferiu-se a


definição de ‘variante substancial’ (ou ‘substantiva’) vs. ‘variante formal’, e
isso tanto na edição de obras vernáculas, como na de textos medio-latinos, que
apresentam uma fenomenologia de transmissão largamente análoga.
A meados do século passado, quase oitenta anos depois da formulação de
Gaston Paris, e ignorando aparentemente a obra do filólogo francês, W.W.Greg
(1950-51) formulou por sua vez a distinção “entre as variantes substantivas e
os ‘accidentals’ relativos aos fatos de grafia, pontuação, divisão de palavras,
emprego das maiúsculas” (Fundamentos da Crítica Textual, o.c., p.60). A
partir desta data, que se considera como o começo da chamada ‘Bibliography’
anglo-saxônica, na área anglófona e, sobretudo, na filologia elisabetana, a ‘split-
authority’ entre os dois tipos de variantes recebeu definições algo divergentes,
dando, porém, lugar a uma terminologia bastante unívoca: substantives contra
accidents ou accidentals. Em 1975, vinte cinco anos depois de Greg, outro
filólogo americano, Fredson Bowers, introduz a distinção deste modo:
“Substantives are the words of a text as meaningful units. The accidents of a
text – or its accidental – are the spelling, capitalizations, punctuation, word-
division, contractions, and emphases in which these substantives are clothed”.
A terminologia anglo-saxônica foi retomada, recentemente, pelos filólogos
portugueses (Rodrigues 1982, Castro 1990),3 enquanto no Brasil, por meados
do século passado, e, aí também, independentemente dos predecessores fran-
ceses, ingleses ou norte-americanos, a distinção entre ‘substância’ e ‘forma’
foi redescoberta por Emmanuel Pereira Filho.

‘Variantes internas’ e ‘variantes externas’ em


Emmanuel Pereira Filho (1924-1968)

Na sua tese de docência livre,4 que não chegou a defender pelo seu pre-
maturo falecimento, Emmanuel Pereira Filho edita o poema camoniano Tão
suave, tão fresca & tão fermosa (RH, f.45), demonstrando, além do mais,
que se trata de uma Canção, e não de uma Ode, como pretendem a tradição
manuscrita e a impressa.
3
Cf. Graça Almeida RODRIGUES, “Edições críticas, textologia, normas para a transcrição de
textos do século XVI ”, in Arquivos do Centro Cultural Português, 17 (1982), p.637-660; Ivo
CASTRO, Editar Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990.
4
Cf. Emmanuel PEREIRA FILHO, Uma Forma Provençalesca na Lírica de Camões, Rio de
Janeiro, Gernasa, 1974.
114 Barbara Spaggiari

Antes, porém, de começar a edição crítica propriamente dita, Emmanuel


Pereira Filho enfrenta o problema metodológico das variantes, introduzindo uma
nova terminologia:

Para sistematizar a análise que devemos fazer (...) e mesmo para maior comodidade
na explanação dos problemas, vamos desde logo classificar todas estas variantes
em dois grupos genéricos, segundo um critério que não tem pretensões maiores
que a sua finalidade estritamente prática.
Para isso, partimos da conhecida dicotomia saussureana entre significante e sig-
nificado. Chamamos então variantes externas àquelas que não ultrapassam de
muito o âmbito da estrutura significante, atingindo no máximo certos aspectos
conotativos do signo, falado ou escrito ; e reservamos a designação de variantes
internas para aquelas em que haja, ou em que pelo menos seja lícito presumir,
qualquer divergência de significado. (...) Cada variante, seja ela do tipo que for, no
momento em que tivermos de considerar o seu valor ecdótico, terá de ser sempre
apreciada em si e independentemente de quaisquer classificações. Além do que, o
que se revela na prática corrente é que as variantes que chamamos externas são,
na maioria dos casos, de importânca secundária para a formulação de conclusões
estemáticas, o que fica reservado quase sempre às que chamamos internas, evi-
denciando-se, portanto, como de grande comodidade o separá-las para efeito de
estudo. Por outro lado, no entanto, o certo é que a sua visão de conjunto (...)
quase sempre proporciona uma série de conlusões que consolidam ou pelo me-
nos aclaram as hipóteses que as internas levam a formular. E só isso seria o
bastante para justificar a utilidade da classificação (Uma Forma Provençalesca,
o.c., p.35-36).

É muito significativo o fato de que só à altura de 1968, ano de seu faleci-


mento, Emmanuel Pereira Filho chega a essa sistematização teórica e propõe a
correspondente definição terminológica. Antes, ele emprega termos diferentes,
por vezes algo aproximativos (p.ex., “características individualizadoras”). Em
1961, fala de ‘variantes relevantes’ (“Só aludimos àquelas cujo teor reflete a
vontade deliberada de mudar. De divergências ortográficas, erros de leitura,
saltos etc., não cogitamos, porque quase sempre se devem à ação exclusiva de
copistas ou tipógrafos”).5 Uma vez apenas, aparece a definição de ‘variantes
substanciais’ num artigo de 1963, consagrado à Ode ao Conde do Redondo
(“A Ode está agora marcada por mais de 30 variantes substanciais...”).6

5
Cf. Emmanuel PEREIRA FILHO, Estudos de Crítica Textual, Rio de Janeiro, Gernasa, 1972, que
reúne os dispersos de 1954 a 1967: a citação na nota 36, p.215.
6
Veja-se “No quarto centenário da primeira publicação de Camões”, in Estudos, o.c., p.32-36 (a p.34).
Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica 115

É ainda mais significativa a referência à dicotomia saussuriana entre ‘sig-


nificante’ e ‘significado’, para explicar a diferença entre os dois tipos de va-
riantes, isto é, o recurso à dimensão lingüística junto com a aceitação dos fun-
damentos teóricos do estruturalismo como premissa da prática ecdótica. Nisso
Emmanuel Pereira Filho distingue-se dos predecessores europeus e norte-ame-
ricanos, entre os quais ninguém operou com igual clareza com base na dicoto-
mia do signo lingüístico. De fato, a teoria saussuriana do signo lingüístico, histo-
ricamente posterior à formulação de Gaston Paris, mas largamente disponível
para os representantes da Nova Filologia italiana, bem como para os da ‘Biblio-
graphy’ anglo-saxónica, era a única capaz de racionalizar, em termos científi-
cos, a engenhosa intuição de Gaston Paris. Ora bem, só Emmanuel Pereira
Filho chegou a impostar a questão das variantes substantivas e formais apoian-
do-se nas teorias lingüísticas próprias do chamado estruturalismo.
Nem saussuriana, nem estruturalista, é, porém, a terminologia por ele
empregada no momento em que apronta a sua tese de docência livre, em 1968:
o par adjetival interna/externa, não apenas é totalmente inédito na terminolo-
gia ecdótica, para definir a distinção entre as variantes dos textos vernáculos,
mas é também desconhecido às teorias lingüísticas de Saussure e de seus dis-
cípulos.

Merece, talvez, abrir um parêntese sobre o emprego do par adjetival ‘externo’ e


‘interno’ dentro do manual preparatório aos estudos históricos, publicado no
final do séc. XIX por Ch.V. Langlois.7
Sendo a filologia (Sprachkunde) por ele colocada dentro das ciências auxiliárias,
conforme este manual, a metodologia histórica propriamente dita é constituída
por duas séries de operações, respectivamente analíticas e sintéticas. A análise
articula-se em ‘crítica externa’8 e ‘crítica interna’,9 constituindo a premisssa das

7
Cf. Ch.V. LANGLOIS et de Ch. SEIGNOBOS, Introduction aux études historiques, Paris,
Hachette,1898.
8
A critique externe, ou critique d’érudition, abrange, na verdade, várias etapas e, diríamos hoje,
várias metodologias, a saber : 1. a critique de restitution, ou critique des textes, que é, nada mais
nada menos, o estabelecimento do texto segundo critérios científicos, isto é, a edição crítica do
documento a analisar ; 2. a critique de provenance, ou critique des sources, que prevê a
investigação sobre o lugar de proveniência do documento, a sua datação e a identificação do
nome do autor, bem como a recolha e a classificação das fontes que nos transmitiram o
documento.
9
Quanto à critique interne, que é logicamente e cronologicamente posterior à precedente, essa
prevê, por seu lado, a critique d’interprétation, ou herméneutique, e outras categorias, algo
ultrapassadas, como a “ critique interne negative de sincérité et d’exactitude ”.
116 Barbara Spaggiari

operações ‘superiores’, chamadas sintéticas, a que o especialista de história pode,


enfim, passar para a elaboração dos dados, que aquele documento, antes analizado,
lhe fornece.
Como se pode facilmente comprovar por este breve resumo, o emprego de ‘exter-
no’ e ‘interno’ nesse campo da metodologia histórica nada há que ver com as
variantes dos textos vulgares, nem com a ecdótica em geral.

Ora bem, temos finalmente encontrado a origem desta peculiar terminolo-


gia empregada por Emmanuel Pereira Filho e, na sua esteira, pelos filólogos
brasileiros. Aqui também o molde revela-se, em fim das contas, filosófico; mas,
em lugar das doctrinas aristotélicas, que estão no pano de fundo dos tecnicismos
franceses ou anglo-saxónicos, no caso de Pereira Filho o ‘background’ é, an-
tes, constituído pela filosofia da linguagem e o referente próximo é, sem qual-
quer dúvida, o grande linguista alemão Wilhelm von Humboldt.

A teoria lingüística de Wilhelm von Humboldt (1767-1899)

Em seus escritos lingüísticos, Humboldt atribui ao som uma função orga-


nizativa primária, porque é, principalmente, graças ao som, que a língua se
torna “o orgão construtivo do pensamento” [G.S. VII:53]. Segundo a opinião de
Humboldt, de fato, a língua é composta de duas entidades distintas, a saber, o
som (Laut) e o pensamento (Denken), que correspondem, respectivamente,
às duas categorias de ‘forma externa’ e ‘forma interna’ da língua: a ‘forma
lingüística’ (Sprachform) resulta, precisamente, da síntese da ‘forma externa’
com a ‘forma interna’10.
A ‘forma externa’ (äussere Form), ou ‘forma fônica’ (Lautform), coinci-
de com a articulação fônica, que se realiza de maneira diferente nas diferentes
línguas. A ‘forma interna’ (innere Form) não é, por sua vez, senão a organiza-
ção gramatical e semântica, que também se realiza de maneira diferente de
uma língua para outra.
A matéria fônica vem a ser, portanto, organizada (“gestaltet”), ou modela-
da (“geformt”), através da língua, tornando-se assim a ‘forma externa’; mas,

10
Como se pode ver, Humboldt confere, deste modo, à língua uma função intermediária entre o
espiritual e o sensível, numa espécie de equilíbrio, em que a língua nem coincide com um, nem
com outro, precisamente porque ela brota da síntese dialógica (e não dialética, no sentido
hegeliano do termo) dum com outro. Não se trata, contudo, de uma separação ontológica, mas
sim de uma distinção meramente conceitual.
Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica 117

ao mesmo tempo, ela constitui também a matéria da língua, porque o som é


“der wirkliche Stoff der Sprache”.

É, propriamente, neste aspecto que Humboldt determina o caráter peculiar da


síntese lingüística. O ato de síntese humboldtiano é, portanto, um procedimento
analítico, baseado na possibilidade de distinguir entre o sensível e o espiritual:
neste procedimento, o som desempenha o papel mais importante, sendo até a
própria condição do ato.
Será, talvez, preciso melhor explicarmos esta passagem fundamental da teoria
humboldtiana. No ato da síntese, o som, enquanto elemento sensível, resulta
especialmente adequado à atividade criativa da língua. A este propósito, fazendo
referência ao som, Humboldt fala explicitamente da sua “conformidade com o
pensamento”. Com isso, ele entende não apenas a “cortante incisividade do som
lingüístico”, mediante a qual, a partir da pluralidade das impressões, é possível
extrair as porções de pensamento (“Portionen”). Humboldt tem em mente, tam-
bém, o efeito icônico que, além do resultado final do pensamento, o som vai
exercer sobre o próprio ato de pensar, dando-lhe, deste jeito, a garantia duma
continuidade indispensável. Isto é, construir o pensamento, significa articular o
pensamento através do som.

A distinção entre ‘forma interna’ e ‘forma externa’ da língua, bem como a


sua complementaridade (ou melhor, síntese, conforme a terminologia humboldtia-
na), constituem sem dúvida uma das inovações maiores no pensamento filosó-
fico e linguístico do século XIX.
Num ensaio primoroso, recém-publicado, uma discípula de Tullio de Mauro,
Donatella Di Cesare, enfoca a questão da síntese entre ‘forma interna’ e ‘for-
ma externa’ da língua, aprofundando quer a doutrina original de Humboldt, quer
a revisão que dela fez Steinthal, assim influindo sobre a recepção do pensa-
mento humboldtiano.11

Humboldt através da interpretação de Heymann Steinthal (1823-1899)

Segundo as conclusões de Donatella Di Cesare, cujo ensaio mereceria


ser conhecido na sua integralidade, Heymann Steinthal, enquanto discípulo e
editor de Humboldt, deu-se a árdua missão de interpretar os escritos
humboldtianos, notoriamente obscuros e herméticos, lendo, comentando e in-

11
Cf. Donatella Di Cesare, “‘Innere Form der Sprache’: Humboldts Grenzbegriff Steinthals
Begriffsgrenze”, in Historiographia Linguistica, 1996, p.321-346.
118 Barbara Spaggiari

terrogando os textos dele, durante cerca de quatorze anos. A atividade herme-


nêutica de Steinthal começa, de fato, com a dissertação em latim De pronomine
relativo (1847), até acabar com a monumental edição dos escritos humboldtianos
sobre a filosofia da linguagem (Wilhelm von Humboldt, Sprachphilosophische
Werke, 1884).
É através desta incansável atividade de interpretação, que a teoria lingüís-
tica de Humboldt conseguiu sobreviver, apesar da revisão crítica do séc.XIX,
dominado pelas correntes da lingüística histórica e comparatista. De fato, a
Steinthal cabe o mérito de ter divulgado as doutrinas humboldtianas, num meio
cultural alheio, senão propriamente hostil, desenvolvendo ao mesmo tempo a
própria peculiar visão da língua que, afinal, não coincide com a de Humboldt.
Não admira, portanto, que essas divergências do discípulo ao encontro do mes-
tre, possam ter causado algum desvio na divulgação do verdadeiro pensamento
de Humboldt, nomeadamente no que diz respeito à filosofia da linguagem.
Mais detidamente, Steinthal censura a incapacidade, em Humboldt, de
conciliar a invenção especulativa (“Erfindung”) com a descoberta empírica
(“Entdeckung”). A síntese dialética de Hegel constitui, aos olhos de Steinthal, a
síntese por antonomásia; por conseguinte, a unidade entre filosofia e ciência
deságua numa doutrina científica que, através de procedimenos dialéticos, ob-
tém os seus objetos a partir do empirismo. Steinthal pretende, por isso, explicar
as teorias lingüísticas de Humboldt, baseando-se nestes processos de deduções
empíricas e operações dialéticas12.
A partir destas bases teóricas, Steinthal distingue, na língua, entre
‘Physiologie’ e ‘Psychologie’, com isso aludindo, respetivamente, à esfera do
som e à do significado. À diferença de Humboldt, porém, Steinthal privilegia o
segundo, isto é, o significado, como elemento fundamental da língua. A ativida-
de ‘interna’ do Espírito, que ele identifica diretamente com a atividade lingüísti-
ca, resulta de maior importância com respeito aos ‘instrumentos de expressão’
orgânicos e fônicos, isto é, à atividade ‘externa’.
Enquanto, na teoria humboldtiana, a língua é órgão do Espírito, ou seja, o
meio dele se exprimir, numa efetiva identidade de língua e Espírito, na interpre-
tação de Steinthal existe na língua um dualismo entre forma ‘externa’ e ‘inter-
na’, entre o espiritual e o sensível. Devido a esse dualismo, as duas entidades,
em Steinthal, aparecem como ontologicamente separadas, e, nesta separação,
o que predomina é o espiritual, a forma interna.
12
Trata-se, na realidade, de um tipo de psicologismo dialético, em que muito se percebe a
influência da psicologia de Herbart, matizada, porém, mediante o conceito hegeliano de
superindividual (“Überindividuelles”).
Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica 119

Invertendo, deste jeito, a relação entre as duas entidades, tal como era
concebida por Humboldt, Steinthal afirma a primazia da forma interna, enquan-
to princípio que modela a língua. Isto acaba por significar que o som é algo de
exterior (“ein Äusseres”), mesmo que derive do interior (“aus dem Innern
stammt”), assim representando apenas o sinal (“Zeichen”) dum conteúdo já
preexistente na consciência (“Gedanken-Element”).
Colocando, desta maneira, em bases meramente psicológicas, quer a filo-
sofia da linguagem, quer a pesquisa lingüística empírica, o afastamento de
Steinthal com respeito às teorias de Humboldt torna-se numa distância irrecu-
perável.
O núcleo desta distância, que separa irremediavelmente Steinthal de Hum-
boldt, é o próprio conceito de ‘forma lingüística interna’. O objeto específico da
lingüística, na opinião de Steinthal, é a forma interna concebida como causa
lingüisticamente independente da própria língua, à medida que o som se reduz
apenas a um puro sinal exterior. Em lugar de, como escreve Humboldt, brotar
de um ato de síntese do sensível com o espiritual, da esfera interna com a
externa, na doctrina de Steinthal a língua dissolve-se no Espírito, ficando o som
lingüístico apenas como instrumento externo.
A língua, ou melhor, as diferentes línguas, deixam de ser um ‘órgão criati-
vo’ no sentido humboldtiano, para se reduzir a simples meio da ‘forma interna’,
que tende para a expressão.
Esse exame pormenorizado das diferenças teóricas entre o mestre e o
discípulo pertence, porém, aos estudos mais recentes e aprofundados no âmbi-
to da filosofia da linguagem. Na primeira metade do século passado, a situação
era bem diferente. Divulgada e, de certo modo, simplificada pela obra editorial
de Steinthal, a teoria humboldtiana lançou raízes e se consolidou não apenas no
estruturalismo européu, como premissa e corolário da arbitraridade do signo
saussuriano,13 mas também, entre 1920 e 1940, na escola americana e, nomea-
damente, na antropologia lingüística de Edward Sapir (1884-1939) e Benjamin
Whorf (1897-1941).
A chamada ‘hipótese Sapir-Wolf’ e, com ela, o relativismo linguístico, ba-
seiam-se, como é sabido, na observação empírica de que a língua não reflete
13
“Philosophes et linguistes se sont toujours accordés à reconnaître que, sans le secours des
signes, nous serions incapables de distinguer deux idées d’une façon claire et constante. Prise
en elle-même, la pensée est comme une nébulose où rien n’est nécessairement délimité. Il n’y
a pas d’idées préétablies, et rien n’est distinct avant l’apparition de la langue” (cf. Ferdinand
de Saussure, Cours de Linguistique Générale, publié par Charles Bally et Albert Sechehaye.
Éd. critique par Tullio De Mauro, Payot, Paris, 1972, p. 155).
120 Barbara Spaggiari

mecanicamente uma realidade preexistente, nem descreve essa realidade de


forma objetiva ; bem pelo contrário, cada língua, de maneira diferente das ou-
tras, analisa e reinventa a realidade, segmentando e canalizando os dados do
fluxo sensorial dentro de categorias que lhe são próprias.
O princípio da relatividade linguística, assim elaborado pela escola ameri-
cana, acaba então por retomar o conceito humboldtiano da função criativa da
língua, enquanto ‘visão do mundo’ (Weltansicht),14 em que a forma externa
determina e condiciona a forma interna.

O papel intermediário de Joaquim Mattoso Câmara Jr. (1904-1970)

Durante a sua formação no estrangeiro, e nomeadamente nos Estados


Unidos (1943-44), Mattoso Câmara apreendeu tudo o que pôde apreender so-
bre a moderna lingüística, não apenas freqüentando cursos nas Universidades
de Colúmbia e Yale, mas desenvolvendo também um rígido plano de estudo, e
um pormenorizado programa de leituras.
Esta bagagem de noções e conhecimentos, tão sólida e rigorosa, permitiu-
lhe, regressando ao Brasil, dar início ao ensino regular da Lingüística em nível
universitário. Da sua pioneira atividade de ensino, mesmo que não obtivesse o
reconhecimento oficial do meio acadêmico, puderam aproveitar, a partir de
1948, várias gerações de discípulos, que nele reconheceram uma das figuras
marcantes da sua época. Nas palavras de um deles, lembra-se a capacidade,
que Mattoso Câmara tinha, de “motivar suas aulas, mesmo as de assuntos mais
áridos”, bem como a sua fluência de expressão e, sobretudo, a clareza com que
conseguia transmitir até os conceitos mais sutis.15 Desta última qualidade, te-
mos uma prova indiscutível nas poucas, mas importantíssimas, páginas que ele
escreveu sobre a teoria lingüística de Wilhelm von Humboldt.
Com efeito, um dos principais centros de interesse, que se destaca na
riquíssima atividade de Mattoso Câmara, é a sua preocupação assídua pela
teoria lingüística. Não admira, portanto, que ele tenha enfrentado um aspecto
tão fundamental, como o da definição da linguagem humana, “na sua essência
imanente”, ou melhor, a questão da própria “origem da linguagem”. O assunto
é por ele enfocado num breve ensaio, A linguagem da ciência, a ciência da

14
Não confundi-la com Weltanschaaung.
15
Cf. Joaquim Mattoso Câmara Jr, Dispersos. Nova edição revista e ampliada. Organizado por
Carlos Eduardo Falcão Uchôa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2004, p.19.
Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica 121

linguagem, que foi apresentado como Aula Inaugural na Universidade Católi-


ca de Petrópolis, a 6 de março de 1965. Mattoso Câmara tinha, naquela altura,
mais de 60 anos, e uma longa vida de estudos e reflexões por trás dele.
Mattoso começa por notar que não é possível “conceber o homem sem
linguagem” (‘homo sapiens’ – diz ele – pressupõe ‘homo loquens’). Igualmente
impossível é “pensar sem linguagem”, na opinião concorde de todos aqueles
que se têm preocupado com o problema da conexão entre a linguagem e o
pensamento. As experiências dos psicólogos e psicolingüistas têm demonstra-
do que a aprendizagem da língua materna é o primeiro instrumento cognitivo do
homem, e, nas palavras de Leo Weisgerber, o próprio ponto de partida para “a
construção da nossa cultura” (cf. Dispersos, o.c., p.76).
Essa formulação de Weisberger inspira-se, claramente, nas idéias de Hum-
boldt, que se contrapunham às correntes lingüísticas predominantes do séc.XIX.
Com efeito, foi a lingüística histórica e comparativa, inaugurada por Franz Bopp,
que acabou por prevalecer, numa época em que se buscavam as raízes comuns
da cultura européia, bem como uma origem única para o sistema das falas
(com respeito às relações genealógicas da grande família indo-européia).
Não será inútil lembrarmos que o impulso a ocupar-se da linguagem veio,
para Humboldt, no momento em que ele descobriu a existência do basco, isto é,
duma língua pré-indo-européia irreduzível aos modelos gramaticais normalmente
utilizados. Este encontro casual com o basco abriu-lhe um universo lingüístico
totalmente desconhecido, o universo das línguas não-européias, ou extra-euro-
péias, às quais Humboldt dedicou o resto da sua vida, chegando a estudar deze-
nas de idiomas ameríndios, oceânicos e asiáticos (e, em medida menor, africa-
nos). Daí, a primeira intuição humboldtiana sobre a ‘diversidade’ (Verschiedenheit)
das línguas: uma diversidade tipológica, que enriquece o homem, precisamente
porque cada língua organiza o mundo, e o pensamento, duma maneira específi-
ca e particular, sendo cada uma capaz de exprimir-se com meios diferentes,
conforme a sua própria ‘visão do mundo’, como acima já acenamos.16

16
Ainda recentemente, foi descrita mais uma língua até hoje desconhecida, a duma tribo amazô-
nica, os Piraha, que não possuem palavras para exprimir números, quantidades ou côres. Essa
variedade lingüística emprega apenas sete consoantes e três vogais, não conhece forma alguma
de escritura, nem qualquer sistema de signos. Os antropólogos americanos da Columbia
University, que descobriram a sua existência, tentaram, sem sucesso, ensinar a contar aos
adultos dessa tribo, mas eles são incapaces de distinguir os números, depois de meses de
tentativas (cf. Holden, “ How Language Shapes Math ”, in Science, 2004: 1, 19 August 2004).
Na ‘visão do mundo’ dos Piraha, cuja memória coletiva não ultrapassa as duas gerações, não se
precisa, evidentemente, contar, nem catalogar as cores, ou avaliar as quantidades das cousas.
122 Barbara Spaggiari

A segunda intuição concerne ao conceito de ‘estrutura’ da língua (Bau,


em alemão; mas, também, ‘structure’ e ‘charpente’ nos escritos em francês).
Abandonando a simples comparação lexical, Humboldt privilegia o estudo com-
parado (Vergleichung) da(s) estrutura(s) da(s) língua(s) a partir da morfologia
e da sintaxe, pois é a sintaxe que determina a colocação e disposição do sentido
próprio de cada língua [G.S. IV, 28-29]. Este princípio de estruturalismo com-
parativo abrange, na prática humboldtiana, quer a dimensão diacrônica, quer a
sincrônica. A possibilidade de classificar as línguas do ponto de vista tipológico,
isto é, com base nos processos de coordenação (aglutinação, flexão, incorpora-
ção, isolação), deriva precisamente da comparação das ‘estruturas orgânicas’
das línguas.
Associada ao conceito de estrutura, aparece pela primeira vez a afirma-
ção de que não pode existir nada isolado numa língua, pois cada um dos ele-
mentos que a constituem é apenas a parte de um tudo [G.S. IV 14-15]. Igual-
mente muito próxima das futuras teorias do estruturalismo, que Humboldt
antecipa e justifica no plano filosófico, é a primazia acordada à ‘articulação’ da
linguagem, que consente uma segmentação fácil e certa do contínuo da fala,
pressupondo, ao mesmo tempo, a existência de elementos simples e não ulte-
riormente divisíveis [G.S. IV 17-18]. Finalmente, Humboldt chega até a afirmar
que a língua é, simultaneamente, ‘imagem’ e ‘signo’ (Abbild und Zeichen)
[G.S. IV 29].
Desta complexa e não unívoca teoria humboldtiana, na ocasião da Aula
Inaugural de que falamos, Mattoso Câmara destaca apenas um aspecto, o que
ele considera como o mais representativo do contributo do humanista alemão à
questão da língua:

“Ao comparatismo, ou gramática comparativa, (...) a que por muito tempo se


restringiu a Lingüística, opunha Humboldt o conceito de “forma interna” das
línguas, por meio do qual se ordena e estrutura o conhecimento e o pensamento
do homem, de uma sociedade para outra. (...) Em que consiste, porém, essa “forma
interna”, que Humboldt contrapõe à forma sensorialmente percebida, à mera “for-
ma externa” dos sons vocais e suas concatenações? É, nada mais, nada menos,
que todo o mundo ideativo ali imanente” (Dispersos, o.c., p.77).

Como claramente se pode perceber, com respeito ao que antes foi dito
sobre as idéias de Humboldt e a interpretação de Steinthal, o resumo que Mattoso
Câmara aqui oferece, relativamente à definição de “forma interna” e “forma
externa”, sofre, por um lado, de simplificação excessiva, enquanto, por outro
Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica 123

lado, disponibiliza uma identificação imediata com a definição de signo lingüís-


tico em Ferdinand de Saussure. De fato, Mattoso Câmara introduz, logo a se-
guir, o nome do lingüista suíço:

“Daí, uma integração entre o som e o sentido, tão completa e essencial, que na
língua – como estabeleceu outro grande teorista, Ferdinand de Saussure – o som
vocal é sempre ‘o significante’ e a idéia sempre ‘o significado’” (ibid.).

A co-presença, dentro de poucas linhas, do par humboldtiano ‘forma in-


terna’ / ‘forma externa’, logo antes do par saussuriano ‘significante’/ ‘signifi-
cado’, constitui um estímulo, não apenas visivo, mas também conceitual, que
procurou, como vimos, consequências inesperadas noutro teórico, brasileiro, de
crítica textual: Emmanuel Pereira Filho.
Diante desses dados, parece não apenas provável, mas provado, que a
escolha feita por Emmanuel Pereira Filho da terminologia de variante interna
e variante externa, por volta de 1968, resulta, em linha direta, da teoria lingüís-
tica humboldtiana, isto é, da definição, acima relatada, de forma interna e
forma externa, enquanto elementos inscindíveis do signo lingüístico.

Essa breve reflexão acaba por nos confirmar dois aspectos fundamentais
da cultura brasileira do séc.XX. Primeiro, o papel primordial desempenhado
por Mattoso Câmara Jr. na (alta) divulgação das teorias lingüísticas modernas,
e, nomeadamente, das de Wilhelm von Humboldt, nos anos 1965-67, a partir da
resenha sobre a edição dos Schriften zur Sprachphilosophie,17 até à comu-
nicação Wilhelm von Humboldt e Edward Sapir, apresentada num congresso
internacional em Bucurest. A reflexão sobre as idéias de Humboldt, apesar de
ser, em Mattoso Câmara, bastante tardia, encontra, como vimos, seu lugar nas
discussões contemporâneas sobre o ‘relativismo lingüístico’ de Sapir e Whorf.
O segundo aspecto, que ressalta da nossa pesquisa, é a incontornável
vertente lingüística que, desde as origens, sempre caracterizou a filologia brasi-
leira, constituindo assim um marco no panorama internacional da crítica tex-
tual. De fato, nos fins do séc.XX, a ecdótica européia, se, por um lado, em-
preendeu a revisão do chamado método lachmanniano, por outro, acabou por
progressivamente se afastar da lingüística e de seus métodos. No Brasil, pelo
contrário, as discussões teóricas elaboradas em torno do eixo Bédier-Lachmann
quase não encontraram eco, enquanto a ecdótica propriamente dita “nunca

17
Linguistics, 33, 1967, p.101-103.
124 Barbara Spaggiari

interrompeu as suas ligações com uma robusta tradição lingüística, o que foi
sobretudo possível em virtude da relação, desde logo estabelecida, entre a iden-
tidade lingüística do país, e o conflito de mais a mais evidente com a norma
lingüística portuguesa. No tocante à crítica textual, esta tensão teve, aliás, conse-
qüências sumamente benéficas” (Fundamentos da Crítica Textual, o.c., p.55).

Referências bibliográficas

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Steinthals Begriffsgrenze”, in Historiographia Linguistica, 1996, pp.321-
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Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica 125

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Benjamin Lee WHORF, Language, Thought, and Reality. Ed. John B. Carroll,
Cambridge Mass., Press of MIT, 1956.
GRAMATICALIZAÇÃO DAS FORMAS ESTAR, SER, ANDAR,
IR, VIR + GERÚNDIO. BREVE PERCURSO POR TEXTOS DOS
SÉCULOS XIII A XVI – USOS, SENTIDOS E VALORES

Carla Abreu Vaz

Pretendemos, no presente estudo, compreender de que modo as formas


estar, ser, andar, ir, vir seguidas de gerúndio sofreram um processo de gra-
maticalização1 que as terá feito evoluir de um sentido primevo para um outro
distinto já desse sentido primordial. Deste modo, o objectivo primaz da nossa
análise será o de averiguar, com base em textos medievais2, a ocorrência ou
não da gramaticalização de formas que, por ora, para simplificarmos, denomi-
naremos V [x] + Ger. (uma forma verbal frequentemente com determinação
de pessoa/tempo/… seguida de uma forma verbal em -ndo, o chamado
gerúndio) 3.
Intentaremos apurar quando e em que contextos um verbo com sentido
pleno, como é, por exemplo, o caso de andar (“eu ando”: dou passos, caminho,
movo-me, percorro, etc.), terá perdido a sua significação própria (a de cami-
nhar) e, pela proximidade com outras formas como “lendo” em “ando lendo”
(V [andar] + Ger.), deixa de ter o sentido que referimos mais o sentido que é

1
Sobre este tema, consultem-se as seguintes referências: Paul J. HOPPER, Elizabeth Closs
TRAUGOTT, Grammaticalization, Cambridge, Cambridge University Press, 1993; Ekkehard
KÖNIG, Elizabeth Closs TRAUGOTT, “The Semantics-Pragmatics of Grammaticalization
Revisited”, em Elizabeth Closs T RAUGOTT , Bernd H EINE (eds.), Approaches to
Grammaticalization, Amsterdam, Jonh Benjamins, 1991, vol. I, p. 189-218; Elizabeth Closs
TRAUGOTT, “From Propositional to Textual and Expressive Meanings: Some Semantic-
Pragmatic Aspects of Grammaticalization”, em Winfred P. LEHMANN, Yakov MALKIEL (eds.),
Perspectives on Historical Linguistics, Amsterdam, John Benjamins, 1982, p. 245-271; Elizabeth
Closs TRAUGOTT, “Subjectification in Grammaticalisation”, em Dieter STEIN, Susan WRIGHT
(eds.), Subjectivity and Subjectivisation, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p.
37-54.
2
Reunimos uma selecção de textos, em registo escrito, dos séculos XIII a XVI, passando pelo
século XX.
3
Mais adiante, aprofundaremos a análise particular destas formas e tentaremos a adopção de
uma terminologia acurada e apropriada aos nossos propósitos e ao nosso pensar.
128 Carla Abreu Vaz

acrescentado pelo verbo ler e adquire um sentido de conjunto que não é


parafraseável por “leio enquanto ando” ou por “ando enquanto leio”. O que
ocorre é que o verbo andar serve, agora, de auxiliador4 do verbo ler para
aportar um sentido de actualidade e reforçar o sentido de continuidade que a
forma de gerúndio, em “lendo”, acarreta de per si.
Existindo já estudos consideráveis acerca do gerúndio, seus usos e sen-
tidos, e acerca das perífrases verbais com gerúndio (V [x] + Ger.) – que
surgem, frequentemente a par e em contraposição com as perífrases verbais
com infinitivo (V [x] + prep., mais usualmente a + Inf.) –, parece-nos haver
ainda poucos trabalhos, perspectivados diacronicamente, que visem a análise
específica e a averiguação da ocorrência de processos de gramaticalização no
português, tomando como objecto de estudo as chamadas perífrases verbais
com gerúndio5, no sentido de averiguar quais as formas que mais facilmente
teriam sofrido a gramaticalização; quais as formas mais resistentes; quais aquelas
que sofreram a gramaticalização plena; quais os cambiantes de sentido; o que
se ganha em informação ou não com o uso da perífrase em oposição ao uso da
forma simples, etc. Estas são questões que consideramos importantes e que
tentaremos equacionar ao longo da análise que nos propomos realizar.
Para a materialização do presente estudo, construiremos um corpus de
análise, tendo como base o “Corpus Informatizado do Português Medieval”6,

4
Abordaremos a temática da auxiliaridade mais à frente neste estudo.
5
Surgem alguns trabalhos no âmbito do estudo do gerúndio, dos seus sentidos e valores, do seu
lugar no sistema verbal do português ou de outras línguas românicas, nomeadamente, no
castelhano, embora não de forma sistematizada e aprofundada, mas como exemplo de mais um
possível uso do gerúndio. Arrolamos, assim, alguns trabalhos que consideramos dignos de
nota, mas que, quer por tratarem de aspectos não directamente relacionados com o nosso tema
quer por não terem como objecto de estudo, exclusivamente, a língua portuguesa, não incidem
directa e particularmente sobre o propósito do nosso estudo: Henrique BARROSO, O aspecto
verbal perifrástico em português contemporâneo – visão funcional/sincrónica, Porto, Porto
Editora, 1994; José Luís MUÑÍO VALVERDE, El gerundio en el español medieval (S. XII-XIV),
Málaga, Ágora, 1995; Mário SQUARTINI, Verbal Periphrases in Romance, Aspect, Actionality,
and Grammaticalization, Berlim, New York, Mouton de Gruyter, 1998; Alicia YLLERA,
Sintaxis histórica del verbo español: las perífrasis medievales, Zaragoza, Departamento
Filologia Francesa, Universidad de Zaragoza, 1980.
6
Doravante CIPM. Este será, maioritariamente, o nosso corpus de eleição e o suporte para o
presente estudo pelo facto de ser diversificado e de se encontrar em versão electrónica,
permitindo, deste modo, uma procura mais rápida, mais eficaz e mais produtiva. O CIPM está
disponível em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/. O CIPM é um corpus que, não obstante se
encontrar em construção, possui já um número considerável de textos disponíveis on-line para
consulta dos estudiosos. Tem como base textos editados, publicados até à data, de vários tipos
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 129

obtendo, deste modo, um rol de textos localizados cronologicamente entre os


séculos XIII e XVI. Os procedimentos levados a cabo para a consecução das
finalidades a que nos propusemos foram, em linhas gerais, os que explanare-
mos seguidamente. Pesquisámos na base de dados do CIPM de modo a encon-
trar todas as formas terminadas em -ndo presentes em cada texto. Depois
desta pesquisa, fizemos uma triagem, preferencialmente, das formas que ocor-
rem grosso modo em vizinhança com outras formas verbais (ex.: “Andam
ant’el chorando mil vegadas”7 / “como se queixou nom se queixar’andando
pela rua”8 / “E se se p(er)der no~ a leuando nen a carregando mays do q(ue)
posera”9 / “E despois foron desaviindo(s) ambos”10). De entre as formas se-
leccionadas surgiram formas duvidosas (“E despois foron desaviindos ambos”11)
que foram analisadas com precaução e, posteriormente, excluídas do corpus
de estudo, de modo a não interferirem numa análise isenta e o mais fidedigna
possível. Após todo este processo, obtivemos um corpus que incluirá formas
de gerúndio que surgem independentes de outras formas verbais (“vencendo
muytas lides e combatendo muytas villas e castellos”12) e formas de gerúndio
que surgem em vizinhança ou em contiguidade com outras formas verbais (“An-

e géneros até ao século XVI. Esses textos encontram-se tratados informaticamente, datados,
anotados, normalizados de acordo com critérios estabelecidos e bem especificados. Para um
conhecimento mais alargado dos estudos em Linguística de Corpora e, em particular, deste
corpus, leiam-se os seguintes artigos que esclarecem possíveis dúvidas quanto aos seus con-
teúdos e quanto à sua utilização, propriedades e potencialidades, e consulte-se a bibliografia
neles recomendada: M. Francisca XAVIER, M. Lourdes CRISPIM, M. Graça VICENTE, “Por-
tuguês Antigo. Construção e Disponibilização de Recursos em Suporte Informático”, em
Actas do XVIII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa, APL,
2003, p. 859-867; Maria Francisca XAVIER, “Corpora e Estudos Linguísticos”, ibidem, p.
869-883; Maria Fernanda Bacelar do NASCIMENTO, “O lugar do corpus na investigação
linguística”, ibidem, p.601-605; Maria Francisca XAVIER, Maria de Lourdes CRISPIM, “Das
edições impressas às versões digitalizadas de textos medievais: o caso do CIPM”, em Ivo de
CASTRO, Inês DUARTE, (Org.), Razões e Emoção. Miscelânea de estudos em homenagem a
Maria Helena Mira Mateus, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003, p. 437-448.
7
Vide, em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/, Cantigas de Escárnio e Maldizer, D. Dinis/ B 1533
(doc. CEM416).
8
Vide, em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/, Cantigas de Escárnio e Maldizer, D. Dinis/ B 1537
(doc. CEM420).
9
Vide, em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/, Foro Real, livro 3/título 17/fólio 123r.
10
Vide, em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/, Crónica Geral de Espanha, capítulo 12/fólio 10a.
11
Note-se que esta não é uma forma de gerúndio, mas uma forma participial.
12
Vide, em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/, Crónica Geral de Espanha, capítulo 51/fólio 19c.
130 Carla Abreu Vaz

dam ant’el chorando mil vegadas” / “foronsse chegando ataa que se viron as
hostes”13).
É este o corpus que servirá de alicerce ao estudo no qual tentaremos
percepcionar a gramaticalização das formas já mencionadas; será a partir des-
te que tentaremos perscrutar quais os graus, pois pensamos ser possível esta-
belecer diferentes níveis, de gramaticalização dessas formas e a sua progressi-
va evolução. Numa fase final, pensamos poder estabelecer algumas conexões
com o português moderno, embora este estudo se centre, preferencialmente,
no período compreendido entre os séculos XIII e XVI, como já referenciámos.
Direccionando o escopo concretamente para o nosso corpus, vejamos
algumas questões, de ordem prática, que nos parece ser necessário esclarecer.
Elaborámos, já o dissemos, tendo como base o CIPM, o nosso próprio corpus
de estudo. Recorreremos aos excertos que considerarmos pertinentes para
corroboração das propostas de análise e para o descortinar dos possíveis sen-
tidos das perífrases verbais em observação. Cada excerto seleccionado está
devidamente identificado, de forma a facilitar o seu reconhecimento14.
As considerações que ora serão protagonistas da nossa reflexão e preo-
cupação linguísticas prender-se-ão, antes de mais, com questões terminológi-
cas de pendor formal e teórico. Deste modo, vejamos quais os conceitos que
será necessário explanar no contexto do nosso estudo. Ao falarmos de formas
verbais do tipo V [x] + Ger., estamos a afirmar que estas são formas compos-
tas e não formas simples. Estas são conhecidas, vulgarmente, por perífrases
verbais ou por locuções verbais. A ideia subjacente a tal rotulagem parece-nos
advir da forma que tais estruturas apresentam e do valor que veiculam. Este
tipo de construção apresenta uma estrutura complexa, composta, geralmente,
por dois ou mais elementos que, quer do ponto de vista formal quer do ponto de
vista semântico, funcionam como uma construção una e indivisível, veiculando,
assim, um sentido de conjunto que não é igual à soma das várias partes, mas é,
em si, uma unidade coesa com uma significação e sentidos próprios. Esta ideia

13
Vide, em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/, Crónica Geral de Espanha, capítulo 61/fólio 23a.
14
Elaborámos um pequeno índice de abreviaturas que acompanhará o corpus (transcrevemo-lo
por ordem de ocorrência): FR: Foro Real; v: verso; r: rosto; CEM: Cantigas de Escárnio e de
Maldizer; VS: Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense; CGE: Crónica Geral de
Espanha; OE: Orto do Esposo; MC: Memorial do Convento [As referências da 1a edição desta
obra são: José SARAMAGO, Memorial do Convento, Lisboa, Caminho, 1982. Este texto foi
digitalizado e, posteriormente, tratado por nós; as referências que indicamos dizem respeito à
edição, em suporte de papel, que usámos: José SARAMAGO, Memorial do Convento, Lisboa,
RBA (Editores Reunidos Lda), 1994]; p.: página(s).
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 131

leva-nos à explicitação de duas outras noções, a de gramaticalização e a de


sintema, que consideramos importantes e que se relacionarão com a noção de
perífrase verbal. A primeira é, segundo o pensamento de Elizabeth Traugott, na
esteira de Lehmann entre outros estudiosos, o conjunto de mudanças linguísti-
cas, pelas quais um item lexical, usado em contextos discursivos específicos, se
gramaticaliza ou pelas quais um item gramatical se torna mais gramatical; o
fenómeno da gramaticalização é gerado, precisamente, através do uso de itens
lexicais, de construções ou de morfemas, em contextos discursivos específicos,
altamente localizados15. A segunda, tomando as palavras de Jorge Morais Bar-
bosa, diz respeito a um complexo constituído por dois ou mais monemas cujo
comportamento sintáctico se identifica com o de um monema único, isto é, tem
as mesmas compatibilidades deste, pelo que, uma vez constituído o sintema,
nenhum dos monemas que o compõem pode ser individualmente determina-
do16. Tomamos, desta sorte, uma definição que cremos esclarecedora daquilo
que pode entender-se por perífrase verbal:

“[...] uma construção que reúne, quase sempre, duas formas verbais: uma flexionada
(morfemas de tempo, modo, voz, pessoa e número) e outra não flexionada (infini-
tivo, gerúndio ou particípio), constituindo um verdadeiro sintagma verbal, se-
mântica, paradigmática e sintagmaticamente delimitado, e uma unidade constante
aos níveis da “norma” e do “sistema” e que tem por função expressar uma moda-
lidade, ou seja, um valor sistemático de natureza ou modal ou temporal, ou aspectual
ou diatéctica”17 .

A arquitectura das perífrases verbais é, usualmente, definida da seguinte


forma: V (aux.) + V (principal). Deste modo, os sintagmas verbais que nos
ocuparão neste estudo são, de acordo com alguns autores18, compostos por um

15
Veja-se Elizabeth TRAUGOTT, “Grammaticalization and Lexicalization”, em R. E. ASHER
(Editor-in-chief), J. M. Y. SIMPSON (Coordinating Editor), The Encyclopedia of Language and
Linguistics, Oxford et alii, Pergamon Press, 1994, vol. III, p. 1483.
16
Cf. Jorge Morais BARBOSA, “Sintemas Verbais Portugueses: Ir + ‘Infinitivo’ e Haver de +
‘Infinitivo’”, em Revista Portuguesa de Filologia, Vol. XXI, Coimbra, Instituto de Língua e
Literatura Portuguesas, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1996-1997, p. 229-239.
17
Vide Henrique BARROSO, O aspecto verbal perifrástico em português contemporâneo – visão
funcional/sincrónica, Porto, Porto Editora, 1994, p. 71.
18
Entre outros, distinguimos Henrique BARROSO, ob. cit.; Maria Helena Mira MATEUS et alii,
Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003; Anabela GONÇALVES, “Aspectos
da sintaxe dos verbos auxiliares do português europeu”, em Matilde MIGUEL, Telmo MÓIA,
Quatro estudos em sintaxe do português, Lisboa, Edições Colibri, 1995, p. 7-50.
132 Carla Abreu Vaz

verbo auxiliar conjugado, veiculando as ideias de tempo, modo, pessoa e núme-


ro, e um verbo principal numa das suas formas nominais (particípio, gerúndio,
infinitivo). Desta sorte, enquanto o primeiro grupo constituirá um conjunto
finito, o segundo será um conjunto, conjecturalmente, infinito19.
Para a investigação, concretamente, interessam as estruturas verbais com-
plexas compostas, designadamente, por V [estar, ser, andar, ir, vir] + Ger.
[-ndo]. Estes verbos são comumente designados de auxiliares. Contudo, não
parece haver unanimidade relativamente à análise deste tipo de construção,
mormente no que concerne à definição e resultante identificação dos chamados
verbos auxiliares20. Dado que os ditos verbos auxiliares são elementos funda-
mentais na configuração das estruturas que tencionamos estudar, será pertinen-
te considerarmos alguns dos critérios, variáveis segundo os autores e as pers-
pectivas teóricas, para a definição de verbo auxiliar. Por conseguinte, será
necessário ter em conta o maior ou menor grau de gramaticalização sofrido
pelo verbo auxiliar, pois este perde alguns dos traços sémicos que o distinguem
enquanto verbo de “significação plena”21; será, também, relevante, como já
referimos, a noção de que o complexo V (auxiliar) + V (principal) apresenta-
rá uma significação de conjunto, sendo mais do que a simples fusão do significa-
do do V (auxiliar) + o significado do V (principal)22; não é de descurar, ainda,
no tipo de construção que nos ocupa, a existência de um sujeito único, pois,

19
Cf. Henrique BARROSO, ob. cit., p. 65. Esta ideia é já defendida por Bernard POTTIER no
estudo sobre a auxiliaridade no castelhano. Veja-se, deste autor, Lingüística moderna y filología
hispánica, Madrid, Editorial Gredos, 1976, em especial o capítulo XVIII, “Sobre el concepto
de verbo auxiliar”, p. 194-202. Cf., ainda, Rosa Virgínia Mattos e SILVA, Estruturas trecentistas,
elementos para uma gramática do português arcaico, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1989, p. 437-471, onde a autora, relativamente ao mesmo assunto, faz referência a um
inventário restrito e a um inventário aberto de verbos que ocuparão determinado lugar nas
estruturas em causa.
20
Não é objectivo máximo desta análise discutir em profundidade teórica o conceito de verbo
auxiliar; no entanto, julgamos pertinente lançar algumas linhas de reflexão sobre esta temática
na medida em que as estruturas que pretendemos analisar são constituídas, inevitavelmente,
por verbos que serão considerados auxiliares por determinados autores e por outros verbos
que, certamente, não serão contemplados nesse rol.
21
Ex.: – Gosto muito de Woody Allen. Tenho visto todos os seus filmes. / – Gosto muito de Woody
Allen. Tenho todos os seus filmes. Veja-se como um sema que caracteriza indubitavelmente o
verbo ter (o traço semântico [+ posse]) se perde, no primeiro exemplo, com perífrase verbal,
em que o verbo ter funciona como auxiliar do verbo ver.
22
Ex.: – Estou a ver televisão. / – Estou vendo televisão. / – Descanso vendo televisão. Não é
possível parafrasear os dois primeiros exemplos por “estou e vejo”, no entanto, é, perfeita-
mente, lícito, em relação ao terceiro exemplo, dizer “eu descanso e vejo”.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 133

embora surjam duas formas verbais, o sujeito a que estas reportam é um só23.
Para terminar, e porque já afirmámos não ser nosso intuito arrolar de forma
exaustiva todos os critérios que permitam a identificação do verbo auxiliar, apon-
tamos mais um critério que nos parece bastante significativo e que é a frequência
de ocorrência destes elementos, na medida em que existem verbos que ocor-
rem de forma muito pontual como auxiliares em contraste com outros que sur-
gem constantemente em contextos em que adquirem estatuto de verbo auxiliar.
Como vemos, é possível recorrer a variadas formas de testar, das quais só
alistámos um pequeno número, a título de exemplo, para aferir o grau de
auxiliaridade de determinados verbos. Contudo, apesar da complementarida-
de destes exercícios, tem sido muito custoso assentar uma lista de verbos auxi-
liares. Todavia, como frisámos anteriormente, não nos parece necessariamente
relevante possuirmos uma lista estabelecida de verbos auxiliares atestada e
aprovada pelos diversos estudiosos. Para o actual estudo não é essa a questão
essencial, dado que, independentemente de determinado verbo ser considerado
tendencialmente mais ou menos auxiliar, importa notar o comportamento de
ambos os verbos que formam o conjunto, ou seja, a perífrase verbal, e só depois
interessará perceber se o verbo chamado auxiliar é, efectivamente, auxiliador
do verbo principal, e por isso momentaneamente despojado de alguns semas,
ou se, pelo contrário, continua revestido de todos os seus traços semânticos que
fazem dele um verbo com sentido pleno. Antes, contudo, de nos abalançarmos
na análise específica das chamadas perífrases verbais com gerúndio, tecere-
mos algumas considerações sumárias acerca do gerúndio, dos seus usos e
valores no panorama do sistema verbal português24.

23
Ex.: – Estive a ver televisão. / – Ando a ver os filmes do Woody Allen. Apesar de surgirem duas
formas (estive + ver / ando + ver), estas remetem para um mesmo sujeito. Na verdade, o
núcleo da significação é transmitido pela forma de infinitivo e é através desta que entendemos
qual a acção praticada pelo sujeito. Ao contrário daquilo que, erroneamente, se poderia crer, a
forma verbal que precede a de infinitivo não aponta para outra acção desse mesmo sujeito ou
de outro sujeito, mas vem revestir de diferente tonalidade a acção veiculada pela forma de
infinitivo.
24
A exposição que pretendemos, nesta fase, não será exaustiva, na medida em que, apesar de ser
importante conhecer os usos, sentidos e valores do gerúndio na língua portuguesa, esse não é
o ponto fulcral deste estudo. Não descuramos, obviamente, que para o exame das perífrases
verbais com gerúndio há que conhecer, precisamente, os seus usos, sentidos e valores. No
entanto, não devemos esquecer que o objecto final da análise serão as perífrases verbais, isto
é, um complexo verbal cujo sentido, temos vindo a reforçá-lo, não é já a soma dos sentidos de
cada parte, mas um sentido uno e indivisível, um sentido de conjunto e não um sentido
construído dos retalhos dos sentidos de cada forma de per si.
134 Carla Abreu Vaz

Na gramática de Celso Cunha e de Lindley Cintra, apresentam-se algu-


mas propostas de entendimento dos usos e sentidos do gerúndio, observando
que o gerúndio tem uma forma simples e outra composta e apresentando
exemplos das possíveis ocorrências do gerúndio em contexto sintáctico25. Said
Ali, na sua gramática histórica26, expõe também os contextos sintácticos em
que o gerúndio pode surgir e os sentidos daí advindos. Na gramática de Evanildo
Bechara27, não existe uma secção que se debruce concretamente sobre o uso
do gerúndio, mas as considerações acerca deste vão sendo feitas ao longo da
secção que diz respeito, precisamente, ao estudo do verbo.
Expomos, de seguida, sumariamente, um pensamento que entendemos
ser de ressalvar relativamente ao gerúndio, seus usos, sentidos e valores28.
Epifânio da Silva Dias diz o seguinte relativamente à origem da forma de
gerúndio e à sua evolução para o português:

“A forma verbal em -ndo representa etymologicamente o ablativo do gerundio


latino; herdou, porêm, em parte, os empregos syntacticos não só do ablat. do
gerundio, senão tambem, e principalmente, do participio presente latino.

25
Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 13ª
edição, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1997, p. 487-491. Não obstante o facto de estas conside-
rações nos parecerem insuficientes, do ponto de vista teórico, recorreremos, mais adiante,
neste estudo, aos exemplos apresentados por estes autores para ilustrarem os sentidos passí-
veis de serem expressos pelo gerúndio.
26
Manuel Said ALI, Gramática Histórica da Língua Portuguesa, São Paulo, Edições Melhora-
mento, 6ª ed., 1966, p. 355-361.
27
Evanildo BECHARA, Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 37ª
edição, 1999.
28
Reforçamos que não vamos tocar em profundidade as possíveis questões teóricas que possam
desenvolver-se à roda do estudo do gerúndio, na sua inclusão numa classe sintáctica, no seu
comportamento sintáctico, nas suas compatibilidades ou incompatibilidades, etc. Notamos,
uma vez mais, que nos importa, sobretudo, a compreensão dos seus sentidos para deste ponto
partirmos para o estudo dos sentidos e valores das perífrases verbais com gerúndio. Assim, e
para não repetirmos o que se encontra exposto em várias gramáticas, remetemos para as
seguintes obras de reflexão metalinguística, de modo a dilucidar quaisquer questões: A. GRIVET,
Grammatica Analytica da Língua Portugueza, Rio de Janeiro, Tipografia de G. Leuzinger &
Filhos, 1881; Manuel Said ALI, Gramática Histórica da Língua Portuguesa, São Paulo,
Edições Melhoramento, 1966; Epiphânio da Silva DIAS, Syntaxe Historica Portuguesa, 5ª
edição, Lisboa, Classica Editora, Imp. 1970; Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, Nova
Gramática do Português Contemporâneo, 13ª edição, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1997;
Evanildo BECHARA, Moderna Gramática Portuguesa, 37ª edição, revista e ampliada, Rio de
Janeiro, Editora Lucerna, 1999.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 135

Além de entrar na conjugação periphrastica, o partic. em -ndo, ou se liga, como


apposto, já ao sujeito, já a outra palavra substantiva da or., ou se junta a sujeito
próprio, correspondendo com elle ao abl. absoluto latino”29.

Temos, do ponto de vista formal, uma explicação bastante completa acer-


ca do gerúndio. Enfatizamos a referência à herança dos usos sintácticos do
particípio presente latino30 e, particularmente, a sua participação na conjugação
perifrástica. Registamos, sem comentar, porque achamos curiosa, a observa-
ção de Grivet respeitante à relação do gerúndio com o infinitivo e à sua inclu-
são num grupo específico:

“Desta exposição theorica, o que resalta, é que, por tudo quanto é essencial, os
gerundios são verdadeiras fórmas do infinitivo […] os gerundios se portão fre-
quentemente como adjectivos, ou, para fallar de conformidade com a nomenclatu-
ra desta grammatica, como apposições junto a um substantivo ou pronome: desta
observação, e de sua origem verbal proveiu provavelmente o desacerto de sua
classificação entre os participios”31.

Notemos que o uso das perífrases verbais com gerúndio é muito mais
assinalado no português do Brasil do que no português europeu contemporâneo

29
Epiphânio da Silva DIAS, Syntaxe Historica Portuguesa, 5ª edição, Lisboa, Classica Editora,
Imp. 1970, p. 240.
30
Vejam-se alguns exemplos que podemos encontrar no português actual como herança, precisa-
mente, do particípio presente latino: lente<LEGENTE- (“aquele que lê”), part. pres. de LEGRE;
servente<SERVIENTE- (“aquele que serve”), part. pres. de SERVÎRE; parturiente<PARTURIENTE-
(“aquela que dá à luz”), part. pres. de PARTURÎRE; paciente<PATIENTE- (“aquele que pade-
ce”), part. pres. de P ATI ; utente<U TENTE - (“aquele que usa”), part. pres. de U TI ;
intendente<INTENDENTE- (“aquele que intende”), part. pres. de INTENDRE, nubente<NUBENTE-
(“aquele que casa”), part. pres. de NUBRE, entre muitos outros (docente, discente, falante,
orante, edificante, cantante, presidente, pretendente…) e confrontem-se com os seguintes:
baptizando, crismando, mestrando, alimentando, educando, confessando, graduando,
magistrando, ordinando, vincendo, etc. A estas formas sincrónicas subjaz a herança da sintaxe
latina, como afirma Epifânio; em ambas as formas poderá vislumbrar-se, através da paráfrase
que se faz de cada uma delas, as funções sintácticas em causa, veiculando a ideia de acção, de
movimento, de processo, de duração… Diz Manuel Said Ali, referindo-se ao gerúndio, “[…]
Tem aplicação muito mais ampla que em latim, fazendo as vezes do particípio do presente, o
qual perdeu a função verbal, passando a servir de adjetivo e substantivo”. Vide Gramática
Histórica da Língua Portuguesa, São Paulo, Edições Melhoramento, 1966, 6ª ed., p. 146.
31
A. GRIVET, Grammatica Analytica da Língua Portugueza, Rio de Janeiro, Tipografia de G.
Leuzinger & Filhos, 1881, p. 343.
136 Carla Abreu Vaz

que privilegia as formas com preposição seguida de infinitivo32. Relevamos,


também, a identificação semântica do gerúndio com os particípios, na medida
em que é possível, como já vimos atrás com o particípio presente, estabelecer
uma relação de sentido com o particípio passado33. No entanto, apesar destas
observações que consideramos válidas, parece-nos mais substancial a obser-
vação concreta e direccionada dos sentidos transmitidos através do uso do
gerúndio, para compreendermos os seus sentidos nos textos que tencionamos
examinar34.
Tomemos algumas observações insertas em Nova Gramática do Portu-
guês Contemporâneo35, onde se diz que o gerúndio anteposto à oração prin-
cipal, colocado no início do período, exprime “uma acção realizada imediata-
mente antes da indicada na oração principal” ou “uma acção que teve começo
antes ou no momento da indicada na oração principal e ainda continua”36. Aposto

32
Considerem-se os exemplos: no português europeu – Ando a ler Pessoa. / Estava a dormir
quando o telefone tocou.; no português do Brasil – Ando lendo Pessoa. / Estava dormindo
quando o telefone tocou.
33
Atente-se nas seguintes frases: “Proferindo estas palavras, o gardingo atravessou rapidamen-
te a caverna e desapareceu” / “Ganhando a praça, o engenheiro suspirou livre”. O gerúndio
expressa uma acção realizada imediatamente antes daquela que é indicada na oração principal.
Assim, vejamos como o uso do particípio com o gerúndio (a forma composta de gerúndio) é,
de todo, possível, conseguindo-se o mesmo sentido: Tendo proferido estas palavras, o gardingo
atravessou rapidamente a caverna e desapareceu. / Tendo ganhado a praça, o engenheiro
suspirou livre. Encontramos estes exemplos em Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, ob.
cit., p. 488 e seguintes.
34
Temos vindo a falar dos usos, sentidos e valores do gerúndio e das perífrases verbais com
gerúndio de uma perspectiva sincrónica, sem, contudo, esquecermos que é nosso objectivo o
estudo das perífrases verbais com gerúndio no português medieval e o apuramento do seu grau
de gramaticalização. Acreditamos, no entanto, que a partir de um determinado momento
recuado no tempo os sentidos principais dessas perífrases se cristalizaram e continuaram até
aos nossos dias, apenas com possíveis cambiantes, sem que isso transtorne, consideravelmen-
te, os seus sentidos.
35
Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, ob. cit., p. 487-491. Escolhemos esta gramática para
representar a chamada gramática tradicional, sem que com isso queiramos fazer qualquer tipo
de juízo positivo ou negativo a uma obra que consideramos de valor e que terá que ser vista e
analisada à luz do seu tempo e dos seus objectivos. A gramática tradicional, em abstracto, nem
sempre responde às necessidades teóricas que determinadas matérias suscitam. Contudo,
relativamente a este assunto, parece-nos útil a informação que se recolhe na referida obra.
36
Vejam-se os exemplos “Proferindo estas palavras, o gardingo atravessou rapidamente a
caverna e desapareceu”; “Estalando de dor de cabeça, insone, tenho o coração vazio e amar-
go”, respectivamente. Cf. Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, ob. cit., p. 488.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 137

ao verbo principal, o gerúndio corresponderá a um adjunto adverbial de modo37


e, posposto à oração principal, indicará uma acção posterior, equivalendo, em
muitos casos, a uma oração coordenada iniciada pela conjunção e38; se antece-
dido da preposição em, o gerúndio marca a anterioridade imediata da acção
com reportação à acção do verbo principal39. O gerúndio pode, também, ex-
pressar a ideia de progressão indeterminada, principalmente com recorrência à
sua repetição 40 . Pode, ainda, o gerúndio, segundo a gramática que
referenciámos, “combinar-se com os auxiliares estar, andar, ir e vir, para
marcar diferentes aspectos da execução do processo verbal”41. É este carácter,
concretamente, que importa para a presente análise e é este aspecto que nos
ocupará doravante. Por conseguinte, delineadas, em traços gerais, algumas
questões que influirão na nossa investigação, será conveniente demorar algum
tempo na observação dos verbos que acompanham as formas de gerúndio e
que como já evidenciámos serão, especialmente, estar, ser, andar, ir e vir42.
Detemo-nos, por ora, com maior pormenor, nas formas estar e ser e é delas
que trataremos na secção seguinte deste estudo.

ESTAR e SER

Os verbos estar e ser43 podem adquirir três estatutos diferentes. Esta


parece-nos, no campo dos estudos linguísticos e gramaticais, uma questão con-

37
Exemplo: “Chorou soluçando sobre a cabeça do cão”. Cf. Celso CUNHA, Luís F. Lindley
CINTRA, ob. cit, p. 488.
38
Exemplo: “No quintal as folhas fugiam com o vento, dançando no ar em reviravoltas de
brinquedo” <=> No quintal as folhas fugiam com o vento e dançavam no ar em reviravoltas
de brinquedo. Cf. Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, ob. cit, p. 489.
39
Exemplo: “Em se lhe dando corda, ressurgia nele o tagarela da cidade”. Cf. Celso CUNHA, Luís
F. Lindley CINTRA, ob. cit, p. 489.
40
Exemplo: “Viajando, viajando, esquecia-se o mal e o bem”. Cf. Celso CUNHA, Luís F.
Lindley CINTRA, ob. cit, p. 489.
41
Vide Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, ob. cit. p. 490.
42
Não relevaremos, neste ponto, o facto de estes verbos poderem ser considerados ou não
verdadeiros auxiliares pelos estudiosos. Como já o dissemos, essa não é para nós e para o
estudo que pretendemos levar a cabo a questão mais preponderante.
43
Parece-nos clara a importância da diferença de matizes existente entre o uso de estar e o de ser,
no português ou no castelhano, em contraponto, por exemplo, com a existência de être, no
francês, ou de to be, no inglês. Notemos que no francês e no inglês temos uma só forma para
significar aquilo que no português ou no castelhano se expressa com duas estruturas distintas.
138 Carla Abreu Vaz

sensual. Estar e ser podem adquirir quer uma função atributiva, quer uma fun-
ção predicativa44, quer uma função auxiliar45. Será, concretamente, no âmbito
da auxiliaridade que estes verbos mais nos importarão para este estudo46.
Deste modo, interessará conhecer o sentido de estar e de ser, ou melhor
diríamos, os sentidos que estar e ser foram adquirindo desde o latim até ao
momento em que esses sentidos se cristalizaram e se prolongaram até ao pre-
sente. Estar procede do verbo latino STÂRE que significava “estar de pé”47; ser

Por isso, não é irrelevante no português e no castelhano o uso de uma ou de outra e o jogo de
tonalidades que se consegue nem sempre será fácil de entender para os falantes de línguas que
não possuem estas duas formas.
44
Relativamente às funções atributiva e predicativa destes verbos não nos deteremos
espaçadamente; reforçamos, somente, os diferentes contextos e as restrições de ocorrência de
um e de outro, por nos parecer que a explanação destas questões não é fundamental para o
nosso estudo, na medida em que estar e ser serão apenas dois dos verbos que estudaremos, em
conjunto com andar, ir, vir, para além de que o nosso exercício se concentra na ocorrência
destas formas com formas de gerúndio, isto é, no surgimento destas formas em estrutura
complexa (perífrase verbal) e não em ocorrência única e isolada, mas como verbos auxiliadores
denotadores de um maior ou menor grau de gramaticalização ou de deslexicalização, dependen-
do do ponto de vista adoptado. Para um estudo mais aprofundado dos verbos ser e estar, das
suas funções (auxiliar, atributiva predicativa), dos seus usos e da sua semântica, aconselhamos
a leitura dos seguintes trabalhos: Elisabete RANCHHOD, “On the Support Verbs Ser and Estar
in Portuguese”, em Linguisticæ Investigationes, Amsterdam, John Benjamins B.V., Tomo VII,
2, 1983, p. 317-353; Ricardo NAVAS RUIZ, Ser y estar. Estudio sobre el sistema atributivo del
español, Salamanca, Universidad de Salamanca, Filosofía y Letras, 1963; José Maria SAUSSOL,
Ser y estar. Orígenes de sus funciones en el “cantar de mio Cid”, s. l., Publicaciones de la
Universidad de Sevilla, 1977; Antonio VAÑÓ-CERDÁ, Ser y estar + Adjectivos. Un estudio
sincrónico y diacrónico, Gunter Narr Verlag, Tübingen, 1982.
45
Se para alguns verbos como andar, ir, vir, entre outros, nem sempre é consensual a atribuição
da função de “verbo auxiliar”, para os verbos ser e estar esta concessão parece-nos ser aceite
pelos diversos estudiosos. Note-se que as listas de verbos auxiliares variam de autor para
autor e ainda não foi possível, e certamente será muito difícil que se consiga, estabelecer uma
lista de verbos auxiliares aceite por todos. Ressalvamos, ainda que, apesar das diferenças
existentes, fruto dos vários critérios adoptados, a classe dos verbos auxiliares fará parte de um
inventário restrito (lista limitada, fechada), em contraponto com a classe maior que esta
integra, a classe dos verbos, a qual, poderá, conjecturalmente, fazer parte de um inventário
alargado (lista ilimitada, aberta).
46
Lembramos que é objectivo deste trabalho o estudo das perífrases verbais com gerúndio, o que
implicará a consideração do maior ou menor grau de auxiliaridade dos verbos que co-ocorrem
com estas formas, com vista ao apuramento de um maior ou menor grau de gramaticalização do
complexo verbal.
47
Andrés BELLO aponta a particularidade de ser se aplicar às qualidades essenciais e permanen-
tes e de estar se identificar com as qualidades transitórias e acidentais; apud Ricardo NAVAS
RUIZ, Ser y estar. Estudio sobre el sistema atributivo del español, Salamanca, Universidad de
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 139

provém da fusão dos verbos latinos ESSE e SDÇRE, significando, este último,
“estar sentado”. Segundo Andrés Bello, “no hay verbos de más frecuente uso
que los dos por cuyo medio se significa la existencia directamente: ser y es-
tar”48. Estar e ser são destacados de entre todos os outros verbos como aque-
les a que mais se recorre por veicularem o sentido da existência49, a base de
todos os outros possíveis sentidos. Por este motivo, decidimos analisá-los a par
neste estudo e perceber mais pormenorizadamente o seu comportamento, con-
frontando um e outro; os seus sentidos primordiais e os seus sentidos adquiridos
após a união a uma forma de gerúndio; a frequência de ocorrência de uma e
outra forma; o prevalecimento da escolha de uma forma sobre a outra.
Segundo diversos dicionários etimológicos50, podemos verificar que o
sentido que se encontrava, primordialmente, associado às formas estar e ser
desde o latim até à evolução para as línguas românicas sofrerá uma evolu-
ção. Sincronicamente, serão muito raros os casos em que estar e ser man-
terão os seus sentidos primevos de “estar de pé” e “estar sentado”, respec-
tivamente. No que respeita à co-ocorrência destas formas com formas de
gerúndio, em perífrase verbal, as primeiras acabarão, ainda que possa exis-
tir um ou outro caso pontual, por se gramaticalizar e perder totalmente esse
sentido matricial.

Salamanca, Filosofía y Letras, 1963, p. 117. Cremos ser indispensável a consciência da dife-
rença de coloração semântica dos verbos em análise que poderá, desde logo, ser corroborada
com o sentido que os verbos possuíam no latim; um significando “estar sentado” (relevando
um estado permanente e assumpto) e o outro “estar de pé” (marcando um estado passageiro
e casual).
48
IDEM, apud Ricardo NAVAS RUIZ, ob. cit, p. 117.
49
Neste contexto, não devem ser olvidadas as reflexões de alguns gramáticos portugueses, e
outros, acerca do verbo substantivo, que entendiam o verbo ser como a base de todos os
outros verbos, fazendo com que tudo o que se dissesse carregasse intrinsecamente o sentido de
ser, isto é: viver, como diz Grivet, parodiando esta teoria, “nada mais é senão o equivalente de
ser vivente”; cf. A. GRIVET, Nova Grammatica Analytica da Lingua Portugueza, Rio de
Janeiro, Typ. de G. Leuzinger & Filhos, 1881, p. 227. Esta ideia encontra-se já presente na
Gramática de Port-Royal; cf. a seguinte edição crítica: Antoine ARNAULD, Claude
LANCELOT, Grammaire Générale et Raisonnée de Port-Royal [avec une introduction
historique par M. A. BALLY], Genève, Slatkine Reprints, 1993.
50
Entre outros, destacamos o Diccionario crítico etimológico castellano e hispánico de Joan
COROMINAS e José A. PASCUAL, Madrid, Gredos, 1981; o Dicionário etimológico nova
fronteira da língua portuguesa, de Antônio Geraldo da CUNHA, Rio de Janeiro, Editora Nova
Fronteira, 2ª ed., 1986; o Dictionnaire Illustre Latin-Français, de Félix GAFFIOT, Paris,
Hachette, 1934.
140 Carla Abreu Vaz

Passemos, deste modo, mais concretamente à análise das formas estar e


ser com gerúndio e ao estudo dos seus diversos usos, sentidos e valores no
português dos séculos XIII a XVI51.

ESTAR e SER + Gerúndio – usos, sentidos e valores


Para estudarmos os usos e os sentidos das perífrases com estar e ser +
gerúndio será necessário recorrermos a um corpus que nos permita uma
análise concreta e contextualizada. Por conseguinte, a prática que a seguir
delineamos será aquela que adoptaremos até ao final deste exercício e basear-
se-á na análise de pequenos excertos, no propósito de determinar os usos, sen-
tidos e valores das formas em causa, à luz de critérios diversificados, comen-
tando e argumentando sempre que pertinente e necessário.
Atentemos no seguinte extracto e vejamos como é clara a diferença entre
estar e ser e como o sentido que podemos com clareza divisar está completa-
mente enraizado no sentido primordial de cada forma.

i) Deffendemos que nenhuu uozeyro non seya ousado d(e) auirsse est aquel d(e)
que a´ de teer uoz [...] no~ tenha mays ya uoz por outro, pero mandamos que
possa au(er) ualya da uintena da d(e)manda, assy como manda a lee. E todo ome
q(ue) for uozeyro razoe o preyto stando en pee leuantado e no~ seendo. E sse o
assy no~ fez(er) no seya ouuydo do alcayd(e), foras se u mandar seer, seya. Ou se
p(er)uentura algu~a enfirmidade auen que no~ possa star en pee, seya. Poys
q(ue) for dado p(or) uozeyro razoe apostame~te a ben e no~ deoste ne~ diga mal
ao alcayd(e) nen a nenguu, seno~ aq(ue)llo p(er) q(ue) pod(e) mellorar en seu
p(re)yto.
FR livro 1/título 9/fólio 80v (Séc. XIII, 1280?)

A frase destacada “stando en pee leuantado e no~ seendo”, por si só,


explicita esse mesmo sentido ao reforçar quase pleonasticamente a ideia intrín-
seca no latim ao verbo STÂRE (“estar de pé”) e esclarece, contrapondo, “en
pee leuantado e no~ seendo”, isto é, em pé levantado e não sentado, sema
inerente ao verbo latino SDÇRE.
Notemos como os verbos estar e ser são usados com o seu sentido
matricial. Não devemos, contudo, deixar de observar que no exemplo em ques-

51
Como já notámos, não existem muitos trabalhos que se concentrem, sobremaneira, neste tema,
especialmente no âmbito da língua portuguesa. Por isto, seguimos de perto alguns estudos,
que também já referimos, na esfera do castelhano. Cf. notas 4 e 41.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 141

tão não estamos perante uma perífrase com gerúndio, mas diante de uma
forma simples de gerúndio. Serve, no entanto, o exemplo, para frisarmos essa
ligação dos sentidos dos verbos estar e ser, no português do século XIII, aos
seus sentidos primevos na língua latina. Por este motivo, parece-nos clara a
ausência de gramaticalização das formas estar e ser. Os verbos em causa
surgem com o seu valor pleno, sem qualquer grau de deslexicalização e conse-
quente gramaticalização.
Observemos outro trecho e tentemos entrever o sentido das formas V
[estar] + Ger. e o seu maior ou menor grau de gramaticalização.

ii) E entom viro~ vi~ir out(ra) alma pella ponte. e estava (L) chorando carregada de
hu~u feixe de t(ri)go. e q(ua)ndo vyo (L) que avia de passar. p(re)guntou ao angeo
de q(ua)es almas (L) he esta pena. e [o] angeo disse. Esta pena he daq(ue)lles que
(L) furta~ pouco ou muito. e agora conve~-te que passes p(er) (L) ella co~ hu~a
vaca que furtaste. Diz ella. se a furtey entreguey-a (L). E o ango disse. Entregaste-
a porque ha no~ (L) podeste encobrir. p(er)o no~ padeçera´s tanta pena como (L)
se a no~ entregaras. E ento~ apareceo aly a vaca muy (L) brava e~ guisa que non
q(ue)rya p(er) ne~hu~a entrar (L) pella ponte. Enp(er)o ouve-a de tomar ao pesco-
ço. e e~ntrou (L) co~ ella pella ponte. e indo co~ ella e~ meo da ponte. (L) topou
co~ aq(ue)lla alma que tragya o feixe do t(ri)go. E ento~ (L) rrogou-lhe que o
leixasse passar co~ sua vaca. e o outro (L) disse. mas leixa-me tu passar co~ meu
t(ri)go. E enq(ua)nto asy estava~ ap(er)fiando. avya~ gram medo de cair (L) em
fundo. e acusava-sse hu~u (con)t(ra) o outro do mal que (L) fezero~. por que
aquella pena sofryam. e pollo gram temor (L) que avia~ de cayr. na~ ousava~ de
hir ne~ de tornar. (L) E estando e~ este medo. q(ua)ndo oolhou acho/||u||/sse da
out(ra) parte. e apareceo-lhe o angeo e disse-lhe. Bem sejas (L) vi~ido no~ cures
jamais de va/||ca||/ que ja della fezeste (L) penite~cia. E entom a alma mostrou-lhe
os pees chagados (L) dos clavos e dizia que non podia andar. E o ango (L) disse.
Lenbra-te como os avias fortes p(er)a andar em (L) vaydades. Penssa de andar
que hu~u atorme~tador (L) muy negro e muy cruel n(os) esta esp(er)ando e no~
podemos (L) fogir ao seu ofi´cio e~na sua pousada. E indo adiante (L) p(er)
lugares escuros e muy maaos. apareceo hu~a casa rredonda como forno. chea de
fogo aceso. (L) e q(ue)ymava q(ua)ntas almas achava. E q(ua)ndo a´ a´lma (L) vyo
esta pena. disse ao ango. Ay mizq(ui)nha. ja chegam(os) (L) aa porta da morte.
VS5 fólio 127r (Séc. XIII/XIV)

Reparemos como logo na primeira frase deste fragmento percebemos a


existência de um sentido diferente do sentido primitivo de estar. Esse sentido
diverso poderá ser entendido através do contexto, na frase “E entom viro~ vi~ir
out(ra) alma pella ponte. e estava (L) chorando carregada de hu~u feixe de
142 Carla Abreu Vaz

t(ri)go”; facilmente apreendemos que o sentido de estar não é já o de “ficar de


pé”, mas um outro sentido mais dinâmico, de cariz progressivo. Esta interpreta-
ção é corroborada pela oração anterior, através do complexo verbal “viram
vir”, indicando, deste modo, uma acção em progressão52. Assim, atentando no
contexto global, vejamos como aquilo que se descreve não é uma atitude está-
tica, por parte do sujeito da frase (a alma), mas, pelo contrário, um movimento
corroborado pelo verbo vir na frase anterior, implicando que o conjunto “estava
(L) chorando” não veicule um sentido de imobilidade, mas um sentido de
actividade. Quase poderíamos comutar o verbo estar pelo verbo vir, sem essa
substituição acarretar, efectivamente, uma alteração considerável do sentido
anteriormente difundido: E entom viro~ vi~ir out(ra) alma pella ponte. e
[vinha] (L) chorando carregada de hu~u feixe de t(ri)go. Contudo, existe
um outro sentido susceptível de ser entendido através da dinâmica com o verbo
chorar, precisamente o segundo membro da perífrase verbal. A ligação de
estar a chorar poderá acarretar um sentido de permanência num determinado
estado, neste caso o do choro. Se assim for, temos, num mesmo conjunto, duas
possíveis leituras dos usos de estar + gerúndio53. No entanto, e devido à pro-
52
Atente-se, também, no uso da conjunção coordenativa copulativa “e” que ajuda, ainda mais, ao
sentido de progressão. É importante notar o facto de no excerto que se apresenta surgir
representado, graficamente, um ponto final entre uma oração e outra. Este facto deve ser
considerado à luz da transmissão textual e do posterior tratamento dos textos. É sumamente
conhecido que no período temporal em que estes textos se inserem (séculos XIII a XVI) não
existia uma norma fixada quer quanto à ortografia quer quanto à pontuação, por isso nem
sempre serão relevantes todos os sinais que surgem em alguns textos, nem a sua colocação;
para além de que para a feitura de um corpus como o do CIPM foi necessário consultar várias
edições críticas e estabelecer um critério uniforme e coerente. Por conseguinte, não vamos
discutir em pormenor esta questão, muito embora não hesitarmos em questionar um ou outro
sinal, cuja colocação ou ausência se mostre realmente pertinente e útil para o desbravar de
determinado sentido. Vide, por exemplo, Michael METZELTIN, “Segmentation Sémantique
d’un acte de vente médiéval”, em Jean ROUDIL, Phrases, textes et ponctuation dans les manuscrits
espagnols du Moyen Age et dans les éditions de texte (Actes de le Colloque organisé par le
Séminaire d’Études Mediévales Hispaniques (Paris, 20-21 novembre 1981), Paris, Librairie
Klincksieck, s.d., p. 141-155.
53
Não podemos esquecer que muitas vezes a tentativa de apuramento dos usos, sentidos e
valores de cada perífrase verbal não pode descurar os elementos que constituem a perífrase.
Isto é, apesar de considerarmos o valor do conjunto, pois é esse o objectivo do nosso exercício,
não podemos descuidar o valor que cada unidade tem em si mesma. Poderá parecer um
paradoxo, mas, efectivamente, não o é; o que acontece é que, muitas vezes, para o apuramento
do sentido de uma determinada perífrase verbal, se tomam em conta aspectos que podem
tornar as conclusões duvidosas. Considere-se o seguinte trecho, apenas a título exemplificativo,
que é usado num estudo para corroborar um possível valor durativo da perífrase ir + gerúndio:
Os portogueeses asi forõ durãdo e sofre~do sa batalha e~ tal presa e coita, como ouuides.
Facilmente verificamos a falibilidade da sustentação deste exemplo, pelo facto de que o verbo
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 143

blemática da pontuação de que já falámos, também poderíamos considerar a


seguinte leitura: E entom viro~ vi~ir, chorando, out(ra) alma pella ponte. e
estava (L) carregada de hu~u feixe de t(ri)go. Neste caso não teríamos já
uma perífrase verbal com gerúndio. Não obstante esta possibilidade, o nosso
entendimento acolhe com maior convicção a primeira leitura aventada.
Observemos como no mesmo fragmento, mais à frente, encontramos um
uso da perífrase verbal com um sentido já distinto do primeiro: “E enq(ua)nto
asy estava~ ap(er)fiando. avya~ gram medo de cair (L) em fundo. e acusava-
sse hu~u (con)t(ra) o outro do mal que (L) fezero~”. Neste caso, a proximida-
de com a conjunção enquanto e com o advérbio assim fornece-nos uma pos-
sibilidade de leitura diferente da anterior, na medida em que não é já um sentido
de movimentação que sobressai, mas um sentido de simultaneidade. A conjun-
ção e o advérbio coadjuvam a construção de um paralelismo de acções; isto é,
ao mesmo tempo que “estava~ ap(er)fiando” outro acontecimento se desenro-
lava paralelamente. Observemos o seguinte esquema de modo a melhor con-
cretizar as nossas ideias. Neste trecho, que traduzimos de forma gráfica, veri-
ficamos a coexistência de duas acções, que se desenrolam paralelamente, ou
de uma acção em curso que intercepta, num determinado momento, uma outra
acção mais pontual.
enq(ua)nto asy estava~ ap(er)fiando

PR ME
Simultaneidade
Legenda
PR – ponto de referência
ME – momento da enunciação

avya~ gram medo de cair (L) em fundo. e acusava-sse


hu~u (con)t(ra) o outro do mal que (L) fezero~

ir é usado, precisamente, com o verbo durar, o que implica que o carácter durativo poderá
encontrar-se, desde logo, no próprio verbo que veste a forma de gerúndio, pois esse é um valor
que lhe é intrínseco. No entanto, não queremos com esta observação afirmar que devemos
tomar em absoluto cada perífrase, pois essa seria uma opção impensável neste estudo. Ainda
porque o contexto envolvente é de todo necessário para o bom entendimento do sentido de
determinado complexo verbal. O que pretendemos enfatizar é a necessidade de algum cuidado
na determinação dos sentidos e valores de cada perífrase e a importância, precisamente, que os
elementos envolventes ganham numa análise deste teor. O exemplo que apresentámos foi
retirado de Odette A. de Souza CAMPOS, O gerúndio no português, Rio de Janeiro, Presença/
INL-MEC, 1980, p. 34.
144 Carla Abreu Vaz

Vejamos, ainda dentro do fragmento em causa, mais uma ocorrência de


estar + gerúndio: “Penssa de andar que hu~u atorme~tador (L) muy negro e
muy cruel n(os) esta esp(er)ando e no~ podemos (L) fogir ao seu ofi´cio e~na
sua pousada”. Neste caso, estar surge associado ao verbo esperar, o que
poderá, desde logo, indiciar uma situação de prolongamento temporal. Não po-
demos esquecer que essa leitura é feita, primeiramente, pelo significado do
verbo em causa e não pela perífrase no seu conjunto. Vejamos, porém, que o
uso do complexo verbal, neste contexto, permite a leitura de um valor de per-
manência, sem, no entanto, implicar, obrigatoriamente, uma leitura etimológica
do sentido de estar, apesar de considerarmos que a leitura próxima da etimolo-
gia será lícita e é reforçada pela semântica do verbo esperar54. O mesmo
poderá suceder com o seguinte extracto, onde o sentido que transparece do uso
da perífrase em contexto é o de permanência.

iii) Qua~do esto disse (L) ho abbade. logo Zozimas e~clinou outra vez (L) a ssua
ffaçe e~ terra e honrrarom todos Nosso (L) Ssenhor e feyta ha horaçom disserom
ame~. (L) Horando ho santo home~ Zozimas e~ aq(ue)l (L) moesteiro. vyo ally os
santos padres splandeçer (L) p(er) virtudes e p(er) obras servindo (L) a Nosso
Senhor ssem q(ue)dar E estavam p(er) toda (L) a noyte obrando p(er) ssuas maao~s
e canta~do (L) psalmos e louvores a Deos.
VS7 fólio 52r (Séc. XIII/XIV)

Reforçamos, uma vez mais, que o facto de “estar toda a noite obrando e
cantando” não transporta, irrevogavelmente, a ideia de o fazer de pé55. Mesmo
que estivessem de pé quando cantavam os salmos, que era, efectivamente, a
posição litúrgica recomendada, não estariam a noite inteira nessa posição, mas,
com certeza, apenas parte da noite. A ideia que se pretende reforçar não será
a de que “estavam toda a noite cantando salmos e louvores a Deus, de pé”,
mas a ideia de que esse foi um processo contínuo que se prolongou durante um
espaço de tempo considerável; cremos ser este o ponto mais importante56.
54
Reforçamos, apenas, que o facto de estar esperando, no contexto em causa, envolver perma-
nência, não tem necessariamente de acarretar a ideia próxima da forma latina, isto é, não tem de
ser, inevitavelmente, uma espera feita de pé. Poderá, cremos, vislumbrar-se, neste exemplo,
um pequeno grau de gramaticalização da forma estar, na medida em que, pelo menos um dos
seus semas (“de pé”), não tem obrigatoriamente de estar activado.
55
Não ignoramos, contudo, que a posição de orante é, na tradição do Cristianismo Antigo, a
posição de pé. Lembremos, por exemplo, que o celebrado hino bizantino de louvor à Virgem,
cujo nome é Akáthistos querendo dizer “não sentado”, é cantado, precisamente, de pé.
56
Apesar de já o termos referido, acreditamos ser importante reforçar, uma vez mais, a seguinte
preocupação: para uma análise dos usos, dos sentidos e dos valores das unidades da língua não
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 145

Consideremos o fragmento que apresentamos de seguida:

iv) Assy que o santo tenpllo (L) rreçebya todos os outros ssem enbargo nehuu~
(L) mais a mi~ssoo cativa. nom q(ue)ria rreçeber e~ ne~hu~a (L) guisa. mais assy
como aaz de cavaleyros estava (L) (con)tra mi~. que me nom leixava e~trar. mais
inpuxava-me (L) cada vez ata as portas do adro depois (L) que me esto aconteçeo
muitas vezes fiquey (L) muy fraqua e mui cansada em guisa que nom (L) podia
estar sobre meus pees e asentey-me e~ (L) huu~ canto do adro apartada cuidando
e~ mim (L) donde me viinria esto que nom podia entrar em (L) o tenplo E estando
assy pensando emtendy (L) donde me acontiçia tal cousa Ca p(o)lla çugidade das
minhas maas obras nom podia eu adorar (L) o lenho da Santa Vera Cruz Entom
começey (L) eu mizq(ui)nha de chorar e firir os peitos co~ (L) minhas maaos e dar
grandes sospiros de coraço~ (L) e esparger muitas lagrimas e tive me~tes (L) do
lugar hu estava e vy hu~a imagem da (L) Virgem Maria que estava hedificada. a
dep(ar)te (L) em huu~ logar […]
VS7 fólio 59r, 59v (Séc. XIII/XIV)

Observemos como o sentido da forma estar aparece completado pela


expressão “sobre os meus pees e asentey-me”, dissipando as possíveis dúvidas
quanto ao sentido do verbo. Notemos, ainda, que estar ocorre com uma forma
de gerúndio (cuidando); sem, no entanto, descurarmos a análise profunda e
concluirmos que esta não é, verdadeiramente, uma perífrase verbal, senão a
simples ocorrência das duas formas na mesma frase. O que verificamos no
excerto em questão é que as duas formas são autónomas. Este facto poderá
ser corroborado se recordarmos que a perífrase verbal transmite um sentido de
conjunto, o que neste exemplo não acontece. Apesar, como já referimos, das
vicissitudes da pontuação neste tipo de documento, facilmente verificamos que
estar se liga a uma oração anterior (“muitas vezes fiquey (L) muy fraqua e mui
cansada em guisa que nom (L) podia estar sobre meus pees e asentey-me”),
enquanto que cuidar pertence já a outra oração (“asentey-me e~ (L) huu~
canto do adro apartada cuidando e~ mim (L) donde me viinria esto”). O que

podemos esquecer a informação que é, exclusivamente, linguística e aquela que faz parte do
mundo extralinguístico. Dependendo daquilo que se pretende estudar, devemos ter em consi-
deração uma e/ou outra. No caso do presente exercício e porque o objectivo é o estudo dos
usos, sentidos e valores das perífrases verbais com gerúndio, não podemos descurar nenhum
dos dois tipos de informação, pois, para além da importância do contexto, é de inestimável
interesse o conhecimento extralinguístico, seja ele histórico-factual, vivencial ou outro. Nota-
mos, ainda, que a norma actual não permite o conjunto estar (IMP) + por + intervalo de tempo
limitado, por o aspecto imperfectivo da forma verbal não ser compatível com limites tempo-
rais precisos.
146 Carla Abreu Vaz

sucede é que o exemplo poderá ser parafraseado por não podia estar sobre
os meus pés, por isso sentei-me, cuidando em mim; o que mostra que esta-
mos, efectivamente, perante duas acções diferentes e independentes. Na frase
que se segue, inclusa no mesmo troço de texto, podemos notar, uma vez mais,
um valor de permanência, reforçado, ainda mais, pelo facto de estar se encon-
trar no gerúndio juntamente com pensar (“E estando assy pensando emtendy
(L) donde me acontiçia tal cousa Ca p(o)lla çugidade das minhas maas obras
nom podia eu adorar (L) o lenho da Santa Vera Cruz”)57. Repare-se que esta
frase vem na sequência daquela que analisámos anteriormente, o que poderá
implicar uma continuação reforçada do sentido de permanência ou prolonga-
mento da acção ou de um estado nessa mesma acção. O mesmo acontece com
o troço seguinte, com uma ligeira diferença:

v) E disse lhe Sam Paulo: Este he aquelle que eu preego, que decendeo dos ceeos
e tomou carne~ e padeceo morte e resurgio ao terceyro dia. Estando assy departindo,
pasou perante elles hu~u~ cego. E dise lhe Dinis per ma~dado de Sam Paulo que
recebesse vista em nome de Jhesu Christo, e logo vio, e logo Dinis con sua molher
e co~ toda sua familia recebeo a fe de Christo e bautizou se. E, depois que foy
e~sinado per Sam Paulo per tres a~nos, feze o bispo de Athe~nas, e elle per sua
preegaçom tornou aa fe de Jhesu Christo a cidade de Athe~nas e grande parte
daquella terra e depois foy glorioso martir e~na cidade de Paris.
OE livro 3/capítulo 11/fólio 30v (Séc. XV)

O trecho acima transcrito parece-nos marcar, ainda mais, aquilo que


acabámos de expor, na medida em que, para além de um sentido de prolonga-
mento, este uso da perífrase gera um outro sentido, o de progressão na acção,
coadjuvado não apenas pela presença do gerúndio nas duas formas verbais,
mas, também, pela própria semântica do verbo departir, bem como pela pre-
sença do advérbio “assy”.

57
Neste exemplo, algumas dúvidas poderão surgir quanto à verdadeira classificação deste com-
plexo verbal. Notemos que ambas as formas se encontram no gerúndio. No entanto, não nos
parece que sejam duas formas independentes. Na literatura especializada, as definições de
perífrase verbal que encontrámos vão, genericamente, ao encontro daquela que adoptámos,
partindo da obra de Henrique BARROSO. E nesta não existe nenhuma referência à possibilida-
de de o verbo auxiliador poder ocorrer no gerúndio, o que nos poderá levar a entender o
composto verbal em causa como não sendo uma perífrase verbal. Porém, parece-nos que,
apesar dos argumentos contra esta conjectura, neste contexto, o complexo em causa poderá ser
considerado uma perífrase verbal, cujo verbo auxiliador se apresenta na forma de gerúndio com
um propósito enfático e reforçador do sentido de prolongamento da acção.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 147

Vejamos, de seguida, as duas únicas ocorrências que, no conjunto do nos-


so corpus, conseguimos reunir, com ser + gerúndio:

vi) E em os (L) rramos desta arvore estava~ muitos lirios e muitas (L) rrosas. e
hervas de muitas naturas que dava~ de sy (L) muy bo´o´ odor. E so aq(ue)lla
arvore estava~ muitas (L) co~panhas ase´e´ntadas e~ cadeiras d’ouro. e de marfil
(L) em que siiam louva~do ao senhor Deos pollos muit(os) be~es que lhes dava.
E eram vistidos de muy fremosas (L) vistiduras. e tiinham coroas muy /||r||/
sprandece~tes (L) em suas cabeças. E ento~ disse a alma. Senhor (L) di-me que
sinifica esta arvor. ou que conpanhas som (L) estas. E o ango disse. Esta arvor
sinifica a s(an)c(t)a (L) ig(re)ja. e estes que estam so ella som aq(ue)lles que a bem
guardarom. (L) e bem acrece~taro~ p(er) seus bo´o´s m(er)ecime~tos (L) e porque
leixarom o mal e obraro~ bem.
VS5 fólio 129v (Séc. XIII/XIV)

vii) Tanto que Sancto Agustinho esto leeo, logo foy espargida e~no seu coraçom
hu~a luz de segurança, que tirou delle todalas treeuas da duuida da ffe de Jhesu
Christo que ante auia. E foy depois muy sancto e muy glorioso doutor e declarou
muyto estes marauilhosos e~xertos da Sancta Trindade. Onde aueeo que hu~u~
dia, se~e~do elle estudando, ueeo a elle hu~a molher pera lhe demandar conselho.
E ella feze lhe grande reuerença e recontou lhe seu negocio, mais o sancto home~
tam solamente nom tornou a cousa que lhe ella dissesse nem a oolhou, e a molher
partiu se dally con grande tristeza.
OE livro 2/capítulo 2/fólio 7r (Séc. XV)

Em ambos os fragmentos, o verbo ser conserva o seu valor matricial


(“estar sentado”)58. É, efectivamente, o sema “estar sentado” que predomina,
o que pode corroborar-se, por exemplo, em vi), pelo contexto: “E so aq(ue)lla
arvore estava~ muitas (L) co~panhas ase´e´ntadas e~ cadeiras d’ouro. e de

58
Não rejeitamos, contudo, uma outra leitura que também será aceitável e que é a de permanência
num determinado estado, num sentido que se aproxima daquele veiculado pela perífrase de
estar + gerúndio. Podemos experimentar a permuta de uma forma por outra sem que isso
afecte, significativamente, o sentido das frases: co~panhas ase´e´ntadas e~ cadeiras d’ouro.
e de marfil (L) em que estavam louva~do ao senhor Deos/ Onde aueeo que hu~u~ dia,
estando elle estudando. Ainda porque, no primeiro caso, o argumento que serve para fazermos
a leitura no sentido etimológico de ser (co~panhas ase´e´ntadas e~ cadeiras d’ouro. e de
marfil) poderá servir também para reforçar a possibilidade de estar aparecer em lugar de ser
sem se perder informação relevante, porque essa informação surge precisamente na frase
co~panhas ase´e´ntadas e~ cadeiras d’ouro. e de marfil. Admitimos, no entanto, que a nossa
opção de leitura, por nos parecer mais natural, se aproxima mais do sentido etimológico de ser.
Não podemos, porém, ignorar todas as possibilidades que possam surgir como válidas.
148 Carla Abreu Vaz

marfil”. Não nos foi possível, em todo o corpus que reunimos, encontrar outras
ocorrências de ser + gerúndio e, tão pouco, de ser + gerúndio onde ser
manifeste um sentido que não aquele ligado à sua etimologia latina59.
Analisados os usos, os sentidos e os valores de estar e ser + gerúndio,
vejamos as ideias que dessa análise conseguimos recolher. Pela amostra que
congregámos, percebemos que estar e ser + gerúndio poderão ocorrer nos
mesmos contextos, sem com isso acarretar uma significativa alteração de sen-
tido. Deste modo, cremos poder afirmar que o uso da perífrase com estar
prevalece sobre o uso da perífrase com ser, dado que no nosso corpus de
análise, como já referenciámos, encontrámos apenas dois exemplos com ser +
gerúndio60. Podemos afirmar, também, que a perífrase estar + gerúndio não
terá sofrido um considerável grau de gramaticalização, na medida em que, con-
siderando a perífrase moderna, o valor principal que nela distinguimos é o de
permanência num espaço, num tempo, num determinado estado, etc. Esse va-
lor advém-lhe do sentido matricial de “ficar de pé”, por isso não se desprendeu
totalmente da sua etimologia61.
Deixamos algumas conclusões, que cremos mais relevantes, para o termo
desta análise, para assim passarmos ao estudo das formas andar, ir e vir e
podermos, no final, estabelecer as ligações necessárias ao bom esclarecimento
dos pontos fundamentais desta investigação.

ANDAR, IR e VIR
O verbo andar deriva do latim *AMB-TÂRE frequentativo de AMBÎRE
(“dar voltas, rodear”), o verbo ir provém do verbo latino ÎRE (“deslocar-se de
um local para o outro”) e vir procede do latim VNÎRE (“movimentar-se em
direcção ao sujeito do enunciado”62). Estes são considerados verbos de movi-

59
Este facto, por si só, dar-nos-á já indícios do comportamento desta perífrase verbal. Mais
adiante, em lugar que considerarmos próprio, volveremos a este assunto.
60
Para completar a nossa ideia, usamos as palavras de Alicia YLLERA quando diz: “Seer +
gerundio, documentado ya en el Cid aunque en minoría frente a estar, alcanza un desarrollo
relativo en el siglo XIII, apareciendo en las mismas construcciones que estar y con idéntico
valor. Pero su empleo cae en desuso a finales del siglo XIII o principios del XIV; en este siglo
sólo aparecen raros ejemplos en verso, la prosa lo ha abandonado definitivamente”, em ob. cit.,
p. 50.
61
Mais adiante, em comparação com as formas andar e ir, por exemplo, será mais fácil perceber-
mos a distinção.
62
Cf. nota 65.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 149

mento e em associação com o gerúndio levam a que a perífrase verbal ganhe


um sentido durativo. Este conjunto de verbos parece-nos ser mais rico e fecun-
do para o objectivo do actual estudo, pelo facto de vermos, de antemão, que
sofrerão maior grau de gramaticalização do que estar e ser. Este é, contudo,
um aspecto que tem, ainda, de ser analisado, ponderado e demonstrado para
depois ser discutido convenientemente.
Das três perífrases verbais com verbos de movimento, as mais comuns
são, no português arcaico, aquelas que se formam com os verbos andar, ir e
vir. Dessas três, diz Odette Campos, “[...] as de ir ocorrem com mais freqüên-
cia do que as com andar e vir, sendo também as mais comuns de todas as
construções perifrásticas de gerúndio no português arcaico [...]”63.
Agora que vimos as estruturas e os sentidos dos verbos andar, ir e vir,
partamos para uma análise mais pormenorizada das perífrases verbais com
cada uma destas formas.

ANDAR + Gerúndio – usos, sentidos e valores

Fixemo-nos no seguinte extracto e analisemos de que modo se comporta


a perífrase verbal andar + gerúndio.

viii) Ja ouvistes em como Taço foy vençudo de Hercolles e como o persseguyo


ataa Mo~cayo. Mas, despois [que Hercolles] ally foy, andou buscando a terra e
avysandoa e semelhoulhe muy boa. E porem pobrou hu~a cidade ao pee do monte
Cayo e pobrouha de hu~as gentes que com elle veheram de Grecia; e hu~u~s
delles era~ de Tiran e os outros de Anssona e pore~ pos nome aa cidade Tirassona
e oje em dia lhe chama~ Taraçona.
CGE capítulo 9/fólio 7c,7d (Séc. XIV)

Vemos como em viii) o complexo verbal se reporta a uma acção na qual


se apercebe a ideia de [+ movimento], um dos semas do verbo andar. Neste
caso, apoiando-nos no contexto anterior ao da frase em apreço, verificamos
que, na perífrase “andar buscando”, andar mantém ainda o seu sentido primá-
rio; em associação com buscar, permite reforçar, ainda mais, esse mesmo
sentido, facultando a imagem mental daquele que, em desespero para encon-
trar o que busca, se movimenta, dando voltas, de um lado para o outro. Neste
caso, andar não se apresenta, de todo, gramaticalizado.
63
Vide Odette A. de Souza CAMPOS, ob. cit., p. 33.
150 Carla Abreu Vaz

ix) Ou é Meliom Garcia queixoso ou nom faz come home de parage escontra duas
meninhas que trage, contra que[m] nom cata bem nem fremoso: (V5) ca lhas vej’eu
trager, bem dês antano ambas vestidas de mui mao pano, nunca mais feo vi nem
mais lixoso. Andam ant’el chorando mil vegadas, por muito mal que ham com el
levado; (V10) [e] el, come home desmesurado contra elas, que andam mui coita-
das, nom cata rem do que catar devia; e poi’las [el] tem sigo noit’e dia, seu mal é
tragê-las mal lazeradas.
CEM416 /D. Dinis /B 1533 (Séc. XIII/XIV)

Em ix), acima transcrito, podemos entrever já uma outra leitura, pelo facto
de, em conformidade com o contexto, não se descreverem duas acções dife-
rentes (“o andar” e “o chorar”), mas sim uma só acção: “andar chorando”.
Podemos experimentar a troca de andar por estar, sem com isso afectar o
sentido da frase: estão ant’el chorando mil vegadas, por muito mal que
ham com el levado; ainda porque a própria preposição ante pede, ainda mais,
o uso de estar do que de andar. Este exercício reforça a hipótese da gramati-
calização em detrimento do sentido matricial de andar. O efeito que se conse-
gue com ambas as perífrases (andar e estar + gerúndio) é o de persistência
num determinado estado, no sentido de reforçar o que é substancial, o choro.
No fragmento que se segue, ambos os complexos verbais são passíveis de
serem entendidos à luz da análise que elaborámos para ix). Temos, por isso,
uma vez mais, o verbo andar desprovido do seu sema de movimento, não
implicando que as estruturas “anda juntando” e “and’el trabalhando” veiculem
a ideia, ligada a andar, de deslocamento físico, espacial.

x) Pois teu preit’anda juntando aquel que é do teu bando, di-me, doutor, como ou
quando lhe cuidas fazer enmenda (V5) por quant’and’el trabalhando com’aposta
ta fazenda. Pois com muitos há baralha por te juntar prol sem falha, di, doutor, si
Deus ti valha, (V10) se lhe cuidas dar merenda por quant’el por ti trabalha como
apostat’a fazenda.
CEM435 / Estêvão da Guarda / B 1308, V913 (Séc. XIII/XIV)

Nos fragmentos xi), xii) e xiii), abaixo reproduzidos, podemos ver como o
verbo andar atingiu o grau máximo de gramaticalização, dado que nenhum dos
seus semas se encontra em actividade nestes trechos.

xi) E todos estes fogos asu~ados se aju~tam asu~adame~te e~no mu~do. Depois
que os angios disero~ esto a aquele sancto home~, teue elle me~tes e vio os
demo~es que andaua~ uoa~do e~ aquelles fogos e fazendo batalhas contra os
sanctos home~e~s.
OE livro 4/capítulo 1/fólio 38v (Séc. XV)
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 151

xii) Ca a molher he tal como o pintor, que, asy como o pintor faz muytas pinturas e
muytas linhas de collores, bem assy a molher com seus afaagos pinta as ymage~e~s
das maas cuydaço~es e~no coraçom do home~. E jsso meesmo faz o diaboo.
Onde Salamo~: Com os afaagos dos seus beiiços tira per elle. E, assy como a
berbeleta tanto anda voando acerca da candea ataa que sse queyma e~ ella, bem
assy fazem aquelles que ameude husam a co~panha das molheres.
OE livro 4/capítulo 57/fólio 135r (Séc. XV)

xiii) Depois desto, pescadores que andauo~ pescando e~no ryo, acharo~ o seu
corpo e trouxero~ no aa egreya de Sam Pedro, e, seendo aly, viro~ todos clarame~te
hu~as ymage~e~s de sancto[s] que hi estauo~, que lhe faziam reuere~ça e o
saudauo~ ho~rradame~te.
OE livro 4/capítulo 36/fólio 99v (Séc. XV)

Se andar não tivesse sofrido gramaticalização, estaríamos perante uma


situação de incompatibilidade semântica (“andaua~ uoa~do”, “anda voando”,
“andauo~ pescando”), de impossibilia, pois não é concebível, a não ser no
mundo do fantástico, andar e voar ao mesmo tempo ou andar e pescar ao
mesmo tempo. Uma vez mais, no lugar de andar, poderia surgir estar: e vio os
demo~es que [estavão] uoa~do, E, assy como a berbeleta tanto [está]
voando acerca da candea, pescadores que [estavão] pescando e~no ryo,
porque o sentido principal das expressões em questão é aquele que também é
passível de ser veiculado por estar, o propósito de enfatizar um processo, uma
acção no seu desenvolvimento, neste caso, o de “voar” e o de “pescar”, que
também já está presente na própria forma de gerúndio. Neste caso, o auxiliador
serve apenas para reforçar essa ideia, o que, uma vez mais, comprova, a exis-
tência de total gramaticalização.
Nos dois últimos excertos que apresentamos para ilustrar a perífrase ver-
bal andar + gerúndio, verificamos que andar se encontra num elevado grau
de gramaticalização, tendo perdido a sua identidade enquanto verbo indepen-
dente, de sentido pleno.

xiv) E pore~ diz o Ecclesiastico que ao seruo de maa uo~tade co~pre de lhe dare~
torme~to e adouas. Ca a carne~ deue seer atorme~tada e pressa, que no~ caya e~
peccado ne~ ande uaguejando per maaos deseios e per deleytaço~o~es çuyas, e
pore~ diz Sam Paulo: Eu castigo a minha carne~ e torno a e~ seruidom.
OE livro 4/capítulo 11/fólio 54v (Séc. XV)

xv) Quanta sandice he procurar home~ as cousas pera seu herdeyro e negar sy
meesmo todallas cousas, porque a grande erança faz e~migo do amigo, ca mais se
152 Carla Abreu Vaz

alegraria con a tua morte aquelle que mais [ha] dauer. Onde conta Valerio que
hu~u~ home~ rrico auya huum filho que continuadamente andaua cuydando como
mataria seu padre por herdar sua rriqueza e pensaua como o mataria, con ferro ou
co~ peçonha ou per outra maneyra.
OE livro 4/capítulo 54/fólio 130v (Séc. XV)

Vejamos, de perto, os exemplos em observação. Em xiv), diz-se que a


“carne” não deve andar vagueando por maus desejos; ora, poderíamos fazer
uma leitura literal de andar, na medida, até, em que ocorre com um outro
verbo, vaguear, do qual, pelo menos, um sema, coincidirá com o de andar: o
sema de [+ movimento]. No entanto, a linguagem usada tem um sentido figura-
do e não se pretende dizer que a “carne” ande, efectivamente, com os seus pés
vagueando atrás de maus desejos, mas que há, como nos casos anteriores, um
decurso; um prolongar da acção que se pretende reforçar. O mesmo acontece
em xv), onde não se espera que, para pensar, o sujeito em causa tenha de
andar; tenha de fazer, verdadeiramente, o movimento físico de “dar passos”.
No caso em apreço não é o que ocorre; é claramente visível que andar terá
sofrido completa gramaticalização e que, uma vez mais, serve apenas para
reforçar o processo em causa, fortalecendo a ideia de que se trata de uma
acção, de facto, muito pensada, que se prolonga durante um determinado perío-
do de tempo.
Analisadas as perífrases com andar + gerúndio, através dos exemplos
acima transcritos, e aventadas as hipóteses de leitura e de ocorrência ou não
ocorrência de gramaticalização, avançamos para o exame das perífrases com
ir e vir + gerúndio.

IR e VIR + Gerúndio – usos, sentidos e valores

Fixemo-nos nos extractos que se seguem e tentemos perceber de que


forma procede a perífrase ir + gerúndio, aquela, como já vimos, cujo uso
parece ser o mais recorrente no português arcaico.

xvi) E quanto mais p(er) elle descendia~ q(ua)nto mais pouco (L) via~ p(er) hu
avia~ de tornar. E ento~ disse a alma. Senhor (L) que carrei´ra he esta que asy he
atorme~tada E o ango disse (L) E esta he a carreira da morte. e forom descendendo.
e viro~ hu~u valle e~ que estavo~ muitas forjas de ferreyros e (L) ouviro~ muitas
vozes e muitos choros.
VS5 fólio 129v (Séc. XIII/XIV)
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 153

xvii) Q(ua)ndo esto ouvio Agapito e~tendeo (L) e ssoube cousa tam maravilhosa.
ficou mui espantado e foy correndo ao abbade e contou-lhe (L) todo como acon-
tecera de Panunçio e (L) de sua filha e veo o abbade e deitou-sse em t(e)rra
fazendo sseu p(ra)nto e dizia: – ay Eufrosina esposa (L) de Jhesu Cristo e filha dos
Santos nenbra-te dos (L) servos de Deos con que serviste a Nosso Ssenhor (L) e
nenbra-te deste moesteiro e hora por nos a Nosso (L) Ssenhor Jhesu Cristo que
nos faça chegar ao (L) porto de ssaude e aver q(ui)nhom com os sseus (L) santos
e mandou o abbade que sse juntassem todos (L) os frayres e ffezessem ssupultura
honrradamente (L) aaquel santo corpo assy como co~vi´i´nha (L).
VS6 fólio 49v (Séc. XIII/XIV)

xviii) E, despois que esto ouve feyto, tomou co~sselho com suas gentes e foysse
con suas naves pello mar ataa que chegou ao ryo Bethis, ao que agora chama~
Guadalquivyr, e foy per elle acima ataa que chegou ao logar a que agora chama~
Sevylha. E senpre hia buscando a ribeira onde acharia bo~o~ logar pera pobrar em
elle hu~a grande cidade e nom achou outro tam bo~o~ como aquelle em que agora
Sevylha he pobrada.
CGE capítulo 6/fólio 5a, 5b (Séc. XIV)

xix) E porem pobrou hu~a cidade ao pee do monte Cayo e pobrouha de hu~as
gentes que com elle veheram de Grecia; e hu~u~s delles era~ de Tiran e os outros
de Anssona e pore~ pos nome aa cidade Tirassona e oje em dia lhe chama~
Taraçona. E, despois que esto e outras muytas cousas ouve feyto, começou de
hyr conquerendo toda essa terra ataa que chegou a hu~u~ logar que lhe pareceo
que era bo~o~ pera pobrar e fez hi hu~a fortelleza e poselhe nome [Ur]gel, que
quer dizer em latym apremame~to, por que mais guaanhou elle aquella terra per
prema que per amor.
CGE capítulo 9/fólio 7c,7d (Séc. XIV)

Em xvi), xvii), xviii) e xix), verificamos que ir não estará gramaticalizado,


na medida em que é perfeitamente visível como o sema que implica “desloca-
ção de um lugar para o outro” está em pleno funcionamento nos exemplos
referidos. Nas perífrases verbais em causa, a ideia fundamental é a de “movi-
mento em direcção a”, transmitida pelo verbo auxiliador ir; assim, o verbo que,
em cada caso, possui a forma de gerúndio especifica de que modo se faz essa
deslocação: “forom descendendo”; “foy correndo”; “hia buscando”, “hyr
conquerendo”.
Em xx), xxi), xxii) e xxiii), por sua vez, deparamos com uma situação bem
distinta.

xx) E elle leixoulha por lhe criar aquelle moço. E esto com tal condiçom que, quan-
do elle fosse grande, que fezesse delle aquello que lhe ella mandasse. E, despois
154 Carla Abreu Vaz

que este amor foy posto e o moço foy crecendo e fazendosse mancebo, foy muy
ligeiro e valente mais que outro homem que se no mundo soubesse.
CGE capítulo 5/fólio 4b (Séc. XIV)

xxi) E esto faziam por duas cousas: a primeira, por que ella era muy boa e muy
fremosa e muy filha dalgo; e a segunda, por que era herdeyra do reyno. E ella no~
queria outorgar de casar con ne~ hu~u~ e esteve assy hu~u~ tempo. O padre hya
envelhecendo e os home~e~s bo~o~s da terra temyansse da sua morte. Pedironlhe
que casasse sua filha por tal que, se elle morresse, que no~ ficassem elles sem
senhor.
CGE capítulo 11/fólio 8b (Séc. XIV)

xxii) Qual he mayor sandice que a me~te do home~ no~ seer trigosa pera perfeiço~,
quando o corpo se uay ya tostemente pera perdiçom, co~ue~ a saber e~na uilhice,
e~ que os olhos ua~a~o perdendo a uista e as orelhas o ouuido e os cabellos
caaem e os dentes mi~gua~ e o coyro se e~uerruga e seca sse e o baffo cheyra mel
e o peyto offega e a tosse no~ queda e os geolhos treme~ e os pees e as pernas
incha~?
OE livro 4/capítulo 9/fólio 52r (Séc. XV)

xxiii) Os d’Aragom, que soem donear, e [os] Catalães com eles a perfia, leixados
som por donas a lidar, vam-s’acordando que era folia; (V5) e de bu[r]las, cuid’eu,
ri[i]r-s’end’ia quem lhe dissess’aqueste meu cantar: a dona gaia do bom semelhar,
ó amor quiçá nõn’os preçaria.
CEM414 /Caldeirom /B 1623, V 1157 (Séc. XIII/XIV)

Nestes trechos, o verbo ir não apresenta já o sentido de “movimentar-se


de um local para outro” que veicula como verbo pleno, mas imprime um carácter,
cremos poder afirmá-lo, incoativo às acções expressas em cada exemplo, atra-
vés dos verbos crescer e fazer, envelhecer, perder e acordar (lembrar),
respectivamente. Note-se como a ideia essencial é a de “dar início a uma acção”
que se vai desenrolando; através do uso do gerúndio, nos verbos que arrolámos,
reforça-se, ainda mais, esse sentido de progressão e de evolução. Nestes ca-
sos, o verbo ir, em nosso entender, encontra-se já totalmente gramaticalizado.
Olhemos, deste modo, mais de perto para as amostras abaixo apresenta-
das e vejamos que sentidos se mostram e que conclusões poderemos retirar
acerca do grau de gramaticalização destas formas.

xxiv) O angio de Deus falou a Sam Philippe apostolo e dise lhe: Leuanta te e uay te
contra o meodia aa carreyra que uay de Jherusalem pera Gaza. E el leua~tou se e
foy sse a aquella carreyra. E aque hu~u~ castrado, home~ poderoso, que auya de
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 155

ueer todallas ryquezas da raynha de Ethiopia, hya per aquelle caminho, ca elle
ueera orar a Jherusale~ e tornaua-se pera sua terra em seu carro e hya leendo per
o liuro da propheta Ysai[a]s. E disse o Spiritu Sancto a Filippe: Achega te e ajunta
te ao carro.
OE livro 3/capítulo 4/fólio 19v (Séc. XV)

xxv) E outrossy, porque Plato, perfeyto da cidade de Constantinopla, e Marino,


per ma~dado do enperador, emaderom a hu~u~ hymno da Triindade palauras
contra a ffe e ho yam cantando con seu maao emadime~to pella praça da cidade,
ueo subitamente sobre elles nuve~e~s que lançaua~ sobre as cabeças delles
cijnza em logo de chu~u~a, e toda a cidade e a proui~cia foy cuberta.
OE livro 2/capítulo 13/fólio 15r (Séc. XV)

xxvi) Quando o padre esto vio, ma~dou que este terceyro filho que ouuesse o
regno pella sua grande priguiça. E este rey he o diaboo que regua sobre todollos
filhos da soberua. E o seu primeiro filho he aquelle que esta e~ peccado e~
conpanhia de maaos, per que se uay hindo de mal e~ pior. E, como quer que elle
esto uee, mais escolhe de sse queymar co~ fogo de peccado que se partir de maa
conpanhia.
OE livro 4/capítulo 69/fólio 154r (Séc. XV)

Em xxiv), comprovamos que existe uma justaposição de acções, pois,


efectivamente, os sujeitos das frases em análise praticam duas acções em si-
multâneo; este facto poderá ser atestado pelo contexto: “e tornaua-se pera sua
terra em seu carro e hya leendo per o liuro da propheta Ysai[a]s”. A acção
descrita envolve movimento de um local para outro (“tornaua-se pera sua terra
em seu carro”); no entanto, se concebermos que é o carro que se desloca e não
o sujeito em si mesmo, ser-nos-á legítimo aventarmos a hipótese de que ir já se
encontra gramaticalizado; isto é, no seu carro, o sujeito lê o livro do profeta
Isaías enquanto viaja. Seria possível, por conseguinte, a permuta da perífrase
verbal por uma forma simples sem que isso pese no sentido fundamental da
frase: e tornaua-se pera sua terra em seu carro, leendo per o liuro da
propheta Ysai[a]s ou e tornaua-se pera sua terra em seu carro e lia per o
liuro da propheta Ysai[a]s. Relativamente a xxv), será lícito apontar que ir
funciona, ainda, como verbo de sentido pleno, na medida em que pelo contexto
da frase em questão podemos, com efeito, perceber um sentido de “desloca-
mento em direcção a”, através do uso da preposição por: “yam cantando con
seu maao emadime~to pella praça da cidade”64. Examinamos, por fim, o frag-

64
Cf. o excerto xxix) com vir + gerúndio.
156 Carla Abreu Vaz

mento xxvi) e comprovamos que este é um exemplo bem visível de como ir se


encontra já inteiramente gramaticalizado. Neste caso, o verbo auxiliador e o
verbo principal são exactamente o mesmo (“uay hindo”), por isso o primeiro ir
não poderá, nesta estrutura, veicular o sentido de “deslocamento físico de um
lugar para outro”, ainda porque, se prestarmos atenção, o complexo em análise
situa-se dentro de uma contextura mais alargada que é “uay hindo de mal e~
pior”, uma espécie de estrutura cristalizada65 que tem em si mesma um sentido
próprio que não é o de “movimentação num espaço concreto e palpável”, mas
o de um processo que se desenrola, como vimos nalguns exemplos anteriores,
progredindo, num crescendo66.
Atentemos, de seguida, na perífrase com vir + gerúndio. Pelo próprio
número de excertos seleccionados, facilmente se comprova que se recorre a
este tipo de perífrase com menos frequência do que às perífrases com andar e
com ir. Nos primeiros trechos que seleccionámos e que abaixo reproduzimos,
podemos verificar que a perífrase vir + gerúndio será das que sofreu menos
gramaticalização. Observemos os exemplos em questão e vejamos a causa
desta afirmação.

xxvii) Mas a alma consente a[a] carne e uaa[n] se pello caminho cha~a~o e perigo-
so, e~ que os demo~es, que som ladro~ees, esbulham o home~ de todollos be~e~s
e o lançom e~ morte perdurauel. Assy como aconteceo a hu~u~ homem rico,
husureyro, que, estando e~na ora da morte, ueeo a elhe o sacerdote amo[e]stando
o da saude de sua aalma e disse lhe que tres cousas lhe eram necessarias pera sua
saluaço~, s. que se confessasse co~pridame~te e se doesse dos peccados e
pagasse todo o alheo segu~do seu poder.
OE livro 4/capítulo 31/fólio 91r (Séc. XV)

xxviii) E depois passarom a Spanha e primeirame~te arribarom a Bayona de


Gasconha. E ali souberom do spelho que Spam ma~dara poer na torre de Faro em
que viiam as naves que viinham per mar e pensaro~ en como o podessem
quebra~tar e deshy que entraryam aa terra mais sem sospeita. E juntarom sua frota
em Bayona e veherom junto con hu~a rybeira ataa o cabo e aly ficaro~ emcubertos.
E tomaro~ duas naves e cobriro~nas de rama e veeronsse chegando.
CGE capítulo 49 /fólio 18d (Séc. XIV)

65
Vide observação sobre sintema supra.
66
Esta expressão encontra-se cristalizada ainda na actualidade. Veja-se, por exemplo, Guilherme
Augusto SIMÕES, Dicionário de Expressões Populares, Lisboa, Dom Quixote, 1993, p. 375.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 157

xxix) E, estando elle aa mea nocte chorando ante o loguar de Sam Pedro em oraçom,
veo hu~a luz do ceeo que toda a egreya alomeou, e~ guisa que as candeas e as
lampadas no~ luziam nehu~a cousa, e com aquella claridade conpanha de sanctos,
que uiinham cantando muy doceme~te, e elle ficou muy espantado.
OE livro 2/capítulo 11/fólio 13v (Séc. XV)

xxx) Qve~ quer q(ue) aia deffenso~ subre algu~a demanda que lli faz seu
(con)tendor, se a defensyo~ remata o preyto todo como se fosse p(re)yto que
auya co~ seu (con)tentor q(ue) nu~nq(ua) lhy demandasse rre~ aaquel q(ue) o
dema~da ou de paga q(ue) aya feyta daquel au(er) q(ue) lhy ue~ dema~da~do en
iuyzo ou d(e) tempo q(ue) a´ gaada a cousa q(ue) lhy demande~ ou out(ra) cousa
semellauil, atal deffe~so~ possa parar ante sy p(er) q(ue) se deffenda an(te) q(ue)
o juyzo seya fijdo.
FR livro 2/título 10/fólio 97r (Séc. XIII, 1280?)

Nestes três casos, vir mantém o seu sentido matricial de “deslocar-se de


lá para cá”. Em xxvii), o “sacerdote” deslocou-se de onde estava em direcção
a “ele”, admoestando-o67; em xxviii), pelo próprio contexto, onde anteriormente
surge já o verbo vir (“e veherom junto con hu~a rybeira ataa o cabo e aly
ficaro~ emcubertos. E tomaro~ duas naves e cobriro~nas de rama e veeronsse
chegando”), confirma-se, novamente, o sentido pleno de vir, estando activado
o sema de “aproximação”; em xxix), sucede, precisamente, o mesmo que
acabámos de descrever em relação a xxviii), ainda mais corroborado pelo con-
texto (“conpanha de sanctos”), fazendo lembrar uma marcha processional.
Cremos, todavia, que no último fragmento, xxx), vir + gerúndio apresenta
algum grau de gramaticalização, pelo facto de, naquele contexto, não implicar o
movimento físico de “aproximação a” na orientação “de lá para cá”, mas sim-
plesmente de marcar uma continuidade na acção, uma atitude de reforço dessa
acção, no intuito de assinalar o arrastamento dessa mesma acção num qual-
quer período temporal.
Arroladas e analisadas as perífrases verbais com estar, ser, andar, ir e
vir + gerúndio em textos antigos, vejamos, seguidamente, de que forma se
comportam estas mesmas estruturas num texto do século XX.

67
Entendemos este exemplo como sendo uma perífrase verbal com vir + gerúndio. Temos, no
entanto, que referir que também ponderámos tratar-se apenas de dois verbos independentes
para duas acções distintas; vejamos: o sacerdote veio a ele e admoestou-o; esta hipótese seria
possível sem se perder o sentido.
158 Carla Abreu Vaz

Algumas perífrases verbais com gerúndio numa


obra do século XX – usos, sentidos e valores
No intuito de averiguar de que modo se comportam, no português moder-
no, as perífrases verbais com gerúndio de que temos vindo a ocupar-nos,
decidimos incluir no nosso estudo alguns fragmentos de um texto do século
XX68. Vamos, de forma breve, observar e analisar as formas que encontrámos
e considerámos convenientes para o nosso propósito. Vejamos, em primeiro
lugar, a perífrase estar + gerúndio:

xxxi) [...] querer ser a primeira, é certo que imediatamente atrairia os olhares de
quem passa ou se mostra na rua, mas esse gosto tão depressa vem, logo é perdido
porque, ao abrir-se a janela da casa em frente e nela aparecendo dama que por ser
vizinha é rival, desviam-se os olhares de quem me estiver contemplando, ciúme
que não suporto, tanto mais que ela é mesquinhamente feia e eu divinamente bela,
ela tem a boca grande e a minha é um botão [...]
MC/p. 144 (Séc. XX)

Notemos que, tal como nos exemplos de séculos anteriores, a perífrase de


estar + gerúndio, no troço acima transcrito, veicula um sentido de permanên-
cia num estado, o da contemplação. E não esqueçamos que o próprio acto de
contemplar poderá evocar a imagem que também o sentido primitivo de estar
chama a si, o sentido de “ficar de pé”. Mesmo que esta leitura possa parecer
abusiva, cremos que, também, neste e no caso que se segue, estar não se
encontra totalmente desapegado do seu sentido matricial, não podendo, por
isso, afirmar-se que estar sofreu total gramaticalização. Se existir um grau de
gramaticalização, esse será muito pequeno em comparação com as restantes
formas verbais em apreço.

68
Não é relevante, para o nosso propósito, a escolha entre um texto do século XX ou um texto
do nosso século, o XXI, dado que este último é ainda muito incipiente e qualquer exemplo que
se escolhesse não poderia dizer-se verdadeiramente do século XXI, mas, ainda, do século XX.
Sabemos, perfeitamente, que a evolução da língua não se faz em períodos tão breves de tempo.
Deste modo, mesmo um romance dado à luz em 2004, não poderia, do ponto de vista linguístico,
ser considerado um exemplo da língua do século XXI. Esta problemática é, também, premente
no que respeita a textos de séculos anteriores. O título do artigo de Célia Maria Moraes de
CASTILHO, “Seria quatrocentista o português implantado no Brasil? Estruturas sintácticas
duplicadas em textos portugueses do séc. XV” – publicado em Rosa Virgínia Mattos e SILVA
(Org.), Para a história do português brasileiro, Vol. II (Primeiros estudos), Tomo I, São
Paulo, Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2001,
p. 57-89 – poderá ser denotador daquilo que afirmamos.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 159

Nos trechos abaixo transcritos, temos a perífrase ir + gerúndio que trans-


mite um sentido de movimento veiculado pela semântica do próprio verbo que é
reforçado com o gerúndio do verbo principal.

xxxii) [...] são levados para fora numa carroça de rodas baixas puxada a seis cava-
los, como só para gente real ou de grande título se usa, o que, se não prova a
realeza e a dignidade dos touros, está mostrando quanto eles são pesados, di-
gam-no os cavalos, aliás bonitos e luzidamente aparelhados, encabuzados de
veludo carmesim lavrado, com as mantas franjadas de prata falsa, assim como as
cabeçadas e cobertas de pescoço, e lá vai o touro crivado de flechas, esburacado
de lançadas, arrastando pelo chão as tripas, os homens em delírio apalpam as
mulheres delirantes, e elas esfregam-se por eles sem disfarce [...].
MC/p. 94 (Séc. XX)

xxxiii) Cada branco vale meio preto, agora arranjem-se para conseguir entrar no
paraíso, por isso é que, um dia, as praias deste jardim, por acaso à beira-mar
plantado, estarão cheias de postulantes a enegrecer os costados, ideia que hoje
faria rir, alguns nem à praia irão, deixam-se ficar em casa e untam-se com untos
vários, e quando saem não os reconhece o vizinho, Que faz aqui este cabra, essa
é a grande dificuldade das irmandades de cor, por enquanto vão saindo estas, é o
que se pode arranjar [...].
MC/p. 147 (Séc. XX)

xxxiv) Desceram Scarlatti e Bartolomeu de Gusmão ao Terreiro do Paço, aí se


separaram, o músico foi inventar músicas pela cidade enquanto não eram horas de
começar o ensaio na capela real, o padre recolheu a casa, à sua varanda donde se
via o Tejo, na outra margem as terras baixas do Barreiro, as colinas de Almada e do
Pragal, por aí fora, até, já invisível, à Cabeça Seca do Bugio, que dia luminoso,
quando Deus andou a criar o mundo não disse Fiat, se assim fosse teria ficado o
mundo todo por igual, uma palavra e basta, mas foi andando e fazendo [...].
MC/p. 159 (Séc. XX)

xxxv) Do outro lado do convento, num rebaixo que dava para a encosta, é que
eram as ruínas. Havia paredes altas, abóbadas, recantos que se adivinhava serem
de celas, bom lugar para passar a noite ao abrigo do frio e das feras. Blimunda,
ainda receosa, entrou no breu profundo das abóbadas, apalpou o caminho com as
mãos e os pés, temendo cair em algum buraco. Aos poucos, os olhos foram-se
habituando ao negrume, depois a claridade difusa do espaço recortou os vãos
das frestas, assinalando as paredes.
MC/p. 338 (Séc. XX)

No caso dos excertos que apresentamos, ir mantém o seu valor primeiro,


o de “deslocamento em direcção a”, implicando movimento físico que é re-
160 Carla Abreu Vaz

forçado, ainda mais, pelo significado dos verbos arrastar, sair, andar e fazer.
Não podemos, deste modo, afirmar que ir se apresenta gramaticalizado nos
exemplos xxxii), xxxiii) e xxxiv). No entanto, se observarmos o trecho xxxv),
perceberemos que o uso do verbo ir convoca já um sentido gramaticalizado e
não um sentido enraizado na etimologia da forma verbal em causa. O contexto
ajuda ao esclarecimento desse valor, na medida em que “os olhos”, sujeito da
frase em causa, não podem caminhar, deslocar-se sozinhos sem o resto do
corpo, por isso é possível, ao autor, usar metaforicamente a perífrase como o
faz neste trecho: “Aos poucos, os olhos foram-se habituando ao negrume”. O
verbo ir perdeu o seu sema “deslocar-se de um lugar para outro” para, no
conjunto verbal, expressar um valor de progressão, de crescendo relativamente
a um estado.
Olhemos, agora, para o fragmento que se segue onde surge a perífrase
andar + gerúndio e vejamos como andar não se apresentará totalmente
gramaticalizado.

xxxvi) Já andam os lavradores lavrando, vão para o campo mesmo debaixo de


chuva, a leiva cresce da terra húmida como saem as crianças lá donde vêm, e, não
sabendo gritar como elas, suspira ao sentir-se rasgada pelo ferro, e deita-se de
lado, luzidia, oferecendo-se à água que continua a cair, agora muito devagar,
quase poalha impalpável, para que não se perca a forma do alqueive, terra encres-
pada para o conchego da seara.
MC/p. 68 (Séc. XX)

Se pensarmos que para lavrarem a terra os lavradores terão de se movi-


mentar, podendo deslocar-se às voltas no campo, conseguimos vislumbrar, ain-
da, o sentido matricial de andar. Não obstante, podemos também entender
este “andar” não como um “movimentar-se, caminhando, dando passos”, mas,
com o mesmo sentido que víramos aquando da análise das perífrases com
andar + gerúndio nos textos mais antigos, por exemplo, em ix), onde observámos
que as acções implicadas não se desdobravam em dois actos distintos. O mes-
mo sucede nesta situação: não se trata de “andar e de lavrar”, mas de “andar
lavrando” ou, poderíamos dizer, de estar lavrando. Assim, na perífrase em
estudo, o verbo andar apresentará um grau de gramaticalização que não é
ainda completo, mas que poderá desenvolver-se nessa direcção.
Foquemos, de imediato, os troços que recolhemos, onde surge o complexo
verbal com vir + gerúndio.

xxxvii) Equilibrada a contagem, desinteressa-se Deus dos funerais, por isso em


Mafra foi só um anjinho a enterrar, como a tantos outros sucede, mal se dá pelo
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 161

acontecimento, mas em Lisboa não podia ser assim, foi outra pompa, saiu o infan-
te da sua câmara, metido no caixãozito que os conselheiros de Estado levavam,
acompanhado de toda a nobreza, e ia também el-rei, mais os irmãos, e se ia el-rei
seria por dor de pai, mas principalmente por ser o falecido menino primogénito e
herdeiro do trono, são as obrigações do protocolo, vieram descendo até ao pátio
da capela, todos de chapéu na cabeça, e quando o caixão foi colocado nas andas
que o haviam de transportar, descobriu-se el-rei e pai, e, tendo-se descoberto e
coberto outra vez, voltou para o paço, são as desumanidades do protocolo.
MC/p. 101 (Séc. XX)

xxxviii) Quase trinta metros de altura será a queda, e dela morrerá, e esta Inês
Antónia, por ora tão orgulhosa do favor de que goza o seu homem, tornar-se-á
numa viúva triste, ansiosa se lhe cairá agora o filho, pobre. Diz mais Álvaro se
mudarão os noviços para duas casas já construídas por cima da cozinha, e, a
propósito desta informação, lembrou Baltasar que, estando os rebocos ainda tão
húmidos e correndo tão fria a estação, não iriam faltar doenças aos frades, e
Álvaro Diogo respondeu que já havia braseiros ardendo noite e dia dentro das
celas acabadas, mas que, mesmo assim, a humidade escorria pelas paredes, E as
estátuas dos santos, Baltasar, deram muito trabalho a trazer, Nem por isso, o pior
foi carregar, depois, com jeito e força, mais a paciência dos bois, viemos andando.
MC/p. 322 (Séc. XX)

Em ambos os casos, vir ostenta, no conjunto verbal, o seu sentido primei-


ro, de “movimentar-se em direcção ao sujeito do enunciado”. Em xxxvii), toda
a descrição que envolve a acção de “vieram descendo” aponta para esse sen-
tido de vir. Recorremos ao mesmo argumento que usámos atrás neste estudo,
aquando da análise dos excertos xvi), xvii), xviii) e xix), relativos a textos de
fases pretéritas da língua portuguesa, com perífrase verbal com ir + gerúndio.
Neste caso, cremos, também, que no composto verbal em causa o valor essen-
cial é aquele que é intrínseco a vir (“movimento em direcção ao sujeito da
enunciação” 69), verbo auxiliador de descer e andar, os quais envergam a for-
69
Não o havíamos referido, ainda, mas parece-nos a propósito a observação de que será, com
efeito, relevante, para a distinção dos sentidos de ir e de vir, a existência de um ponto de
referência, de uma perspectiva. Esse ponto de referência, cuja perspectiva é sumamente
pertinente, é um sujeito enunciador, ponto fulcral para essa diferenciação, pois só assim é
possível perceber verdadeiramente o sentido de ir e o sentido de vir, na medida em que ambos
implicam “movimento de um determinado local para outro”. A disjunção de sentidos é feita,
precisamente, partindo desse sujeito enunciador: ir implica movimento a partir desse ponto
de referência, afastando-se dele, e vir envolve movimento para esse ponto de referência,
aproximando-se dele. Fazemos este reparo, pelo facto de, mormente, nos excertos que apre-
sentamos para a perífrase com vir + gerúndio, termos de partir do princípio que existe esse
sujeito enunciador que, factual ou ficticiamente, serve, com efeito, de ponto de referência,
desenrolando-se a acção em função dele.
162 Carla Abreu Vaz

ma de gerúndio, especificando o modo como se activa esse valor de vir: “vie-


ram descendo”; “viemos andando”. O contexto, mais uma vez, serve de argu-
mento para a leitura proposta, dado que alguns dos seus constituintes apontam,
efectivamente, para a leitura prima de vir: no excerto xxxvii), o verbo sair em
“saiu o infante da sua câmara”; o verbo levar e ir em “levavam, acompanhado
de toda a nobreza, e ia também el-rei” e o verbo transportar em “o caixão foi
colocado nas andas que o haviam de transportar” e, no extracto xxxviii), o
verbo trazer em “E as estátuas dos santos, Baltasar, deram muito trabalho a
trazer”. Note-se como neste último caso o verbo trazer consolida, ainda mais,
o nosso raciocínio relativamente ao que atrás afirmámos acerca de vir e de ir.
Tal como vir se poderá parafrasear como “movimento em direcção ao sujeito
do enunciado”, também trazer se poderá explanar deste modo, em oposição,
por exemplo, a levar que melhor se coadunará com a paráfrase que
apresentámos para o verbo ir.

~~~~~

Chegamos ao cabo deste breve estudo ao longo do qual tentámos fazer


um percurso através das chamadas perífrases verbais com gerúndio. Dentro
das possibilidades existentes, escolhemos os verbos estar, ser, andar, ir e vir
por nos terem parecido, de antemão, aqueles que ocorreriam com maior
frequência, facto que se confirmou com o desenrolar das nossas leituras e da
nossa investigação. Deste modo, atentemos nos aspectos que cremos de im-
portância evidenciar, à guisa de conclusão. No que concerne à perífrase verbal
com estar + gerúndio, importa ressaltar que esta terá, desde muito cedo70,
adquirido o valor que ainda hoje lhe reconhecemos, que nos parece ser, em
grande parte dos casos, um valor de permanência em que a acção descrita é
apresentada no seu desenvolvimento, numa determinada extensão de tempo ou
no seu decorrer em simultâneo com outra acção71. Em nosso entender, o verbo
estar, na maioria dos contextos, ter-se-á, também precocemente, despegado
do seu sentido primitivo de “ficar de pé”, ou seja, muito precocemente se terá
gramaticalizado. A perífrase com ser + gerúndio apresentará, genericamente,

70
Segundo Alicia YLLERA “[…] la perífrasis [estar + gerundio] se constituye plenamente en la
prosa del XIII, momento en el que surgen o se consolidan sus empleos hoy más frecuentes
[...]”. Vide ob. cit., p. 47.
71
Vide esquema na p. 14 do nosso estudo.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 163

usos aproximados aos usos de estar + gerúndio, também desde muito cedo72,
prolongando-se essa proximidade até aos nossos dias; o que facilmente se com-
prova se tivermos em consideração os usos sincrónicos que fazemos de ser e
estar nas diversas construções onde estes podem aparecer como auxiliares.
Por vezes, porém, parece-nos difícil distinguir qualquer cambiante de sentido
nos usos sincrónicos destas duas formas. Aventamos a hipótese de, na perífra-
se ser + gerúndio, ser não ter sofrido gramaticalização ou pelo menos não a
ter sofrido em elevado grau. Isso explicará, em parte, o facto de, pelo que
fomos verificando ao longo da nossa pesquisa e até pelos escassos exemplos
que conseguimos reunir, o complexo verbal ser + gerúndio não ter sido muito
usado e, por esse motivo, ter sido, desde cedo, destronado pelo composto estar
+ gerúndio que abriria as portas a um maior leque de sentidos, na medida em
que terá sofrido um maior grau de gramaticalização73.
No respeitante à perífrase verbal com andar + gerúndio, em confronto
com os compostos ir e vir + gerúndio, parece-nos ser aquela que, depois de
ter sofrido gramaticalização74, terá sido mais usada e, sincronicamente, o seu
uso continua a ser talvez o mais recorrente. Foi-nos permitido verificar, embo-
ra, admitimo-lo, a nossa amostra seja pequena, que andar terá sido muito usa-
do com verbos de movimento ou em contextos que veiculem essa ideia; lem-
72
Alicia YLLERA, referindo-se ao verbo ser, diz: “En el siglo XIII se dibuja ya el empleo análogo
al de estar en la lengua moderna como ocurría también en el caso de este auxiliar. Alterna en un
gran número de construcciones con estar”. Cf. ob. cit., p. 48.
73
Socorremo-nos, novamente, das palavras de YLLERA: “Seer + gerundio, documentado ya en el
Cid aunque en minoría frente a estar, alcanza un desarrollo relativo en el siglo XIII, apareciendo
en las mismas construcciones que estar y con idéntico valor. Pero su empleo cae en desuso a
finales del siglo XIII o principios del XIV; en este siglo sólo aparecen raros ejemplos en verso,
la prosa lo ha abandonado definitivamente”. Tomamos esta última observação para reforçar
que na literatura, em prosa ou em verso, quando se pretende um efeito estético diferente e até,
atrevemo-nos a afirmá-lo, arcaizante, se recorre ao uso de ser em detrimento de estar. Vejamos
os exemplos que se seguem: “E a outra sacudiu o seu (facho) sobre as duas cidades, e súbito no
lugar, onde elas foram, estavam dois montões de ruínas” (A. Herculano); “Todas as terradas
que eram no ancoradoiro” (Filinto Elísio); “Fiel ao que prometo, num instante, qual voa o
pensamento, aqui de volta serei, trazendo à mão as tuas naves” (Porto Alegre); “Tomou um
trote e sendo sobre a atalaia do Barroso viu que levavam grande dianteira” (A. Garrett);
“Muito há que eu devera ser cá, não é assim?”; “Pelo seu conto enfim de pérfidas promes-
sas…| amanhã lá serei no prazo dado” (F. Castilho); “Ia que nam sabiam o novo amor que só
consigo tem respeito, e assi se foram pêra Almina por serem presentes em seu parto” (J.
Ferreira de Vasconcelos), entre outros. Confrontem-se os exemplos apresentados em António
de Morais SILVA, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, [Lisboa], Editorial Confluência,
10ª ed., 1949, vol. X, p. 92.
74
Segundo R. SPAULDING não existem ocorrências verdadeiramente perifrásticas de andar +
gerúndio até ao século XIV. Apud Alicia YLLERA, ob. cit., p. 82.
164 Carla Abreu Vaz

bremos os seguintes exemplos: “andou buscando”; “anda juntando”; “and’el


trabalhando”; “andaua~ uoa~do”; “andauo~ pesca~do”; “ande vaguejando”75.
Pudemos, ainda, perceber que andar poderá, em muitos contextos, ser substi-
tuído por estar em situação perifrástica, sem que isso afecte o sentido funda-
mental dos enunciados. Substituamos, como prova, nos exemplos acima trans-
critos, o verbo andar pelo verbo estar: esteve buscando; está juntando; está
ele trabalhando; estavam voando; estavam pescando; esteja vagueando.
É possível que, num ou noutro contexto, se verifique uma leve diferença na
tonalidade do sentido, por exemplo, no carácter actualizador que estar pos-
sui, na medida em que evoca “o aqui e o agora” que não é possível com andar.
Este emite uma ideia de arrastamento da acção, a qual pode vir-se desenrolan-
do já desde um passado mais ou menos distante ou prolongar-se até um ponto
indeterminado no futuro. No entanto, reforçamo-lo, esses matizes não afectam
o sentido de forma essencial. Actualmente, na perífrase com andar + gerúndio,
o verbo andar encontra-se altamente gramaticalizado e serão já raros os con-
textos onde poderemos encontrá-lo, em composto verbal, com o seu sentido
efectivo de “deslocar-se”.
Relativamente a ir + gerúndio diz Menéndez Pidal76:

“Ir + gerundio está documentado en la baja latinidad y es la perífrasis común a un


mayor número de lenguas románicas occidentales. Es la más empleada en los
textos primitivos, especialmente en la épica y mester de clerecía. Desde el Cid
aparece en diversos giros con un valor más general que el de movimiento orienta-
do hacia un lugar, “andar, haber, existir.”

Pudemos aferir, efectivamente, ao longo da pesquisa que viemos fazendo,


que existe um maior recurso às perífrases com ir + gerúndio. Porém, parece-
nos que o seu uso será, por vezes, meramente enfático e não aduzirá um valor
essencial ao enunciado, dado que, à semelhança de andar, ocorre, frequente-
mente, com verbos de movimento: “forom descendendo”; “foi correndo”; “hia
buscando”; “hyr conquerendo”77. Vejamos como seria possível substituir a pe-
rífrase verbal pela forma simples: desceram; correu; buscava; conquistar78.
Note-se que o sentido que se perde com esta substituição não é o de movimen-
to, mas o de “continuidade”, “duração”, “progressão” que é conferido ao verbo
75
Vide exemplos inclusos nos excertos da secção II a) do presente estudo.
76
Apud Alicia YLLERA, ob. cit., p. 57.
77
Vide exemplos inclusos nos excertos da secção II b) deste estudo.
78
Para um melhor entendimento, integrem-se as expressões no seu contexto original. Cf. secção
II b) deste estudo.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 165

principal pelo gerúndio, o que prova que, nestes casos, é possível, com efeito,
que ir surja de forma pleonástica. No entanto, ir poderá ocorrer já de forma
metafórica, o que indiciará um processo de gramaticalização, na medida em
que o seu significado próprio está totalmente ausente: “foy crecendo”; “hya
envelhecendo”; “vam-s’acordando”; “hya lendo”; “yam cantando”79. No com-
posto ir + gerúndio, o verbo ir, hodiernamente, apresenta-se quase sempre
gramaticalizado, à excepção de quando ocorre com verbos de movimento em
que adquire um papel redundante do ponto de vista da informação útil a trans-
mitir pelo conjunto.
Quanto ao conjunto verbal vir + gerúndio, pudemos perceber,
inclusivamente, pelos exemplos que recolhemos, que será, por contraste com
as perífrases com andar e ir + gerúndio, aquela a que mais raramente se
recorrerá, pelo menos quando vir mantém na perífrase o seu significado pro-
fundo de “deslocamento no espaço físico em direcção a um sujeito enuncia-
dor”. Acreditamos que vir se terá gramaticalizado muito cedo, pelo facto de,
mais do que um “movimento no espaço físico”, o verbo vir aduzir à perífrase
verbal um sentido de progressão temporal, mais do que física e espacial; obser-
ve-se: “ue~dema~da~do” em “aaquel q(ue) o dema~da ou de paga q(ue) aya
feyta daquel au(er) q(ue) lhy ue~ dema~da~do en iuyzo ou d(e) tempo q(ue)
a´ gaada a cousa q(ue) lhy demande~ ou out(ra) cousa semellauil”80. Contudo,
cremos que, nos nosso dias, o uso de vir + gerúndio se distribuirá quase equi-
libradamente pelo sentido associado ao significado de vir, enquanto verbo ple-
no, implicando “deslocamento e aproximação no espaço físico” e pelo sentido
metafórico que implica “progressão e aproximação no tempo”.
Havendo caminhado, consideravelmente, por entre as linhas e as entreli-
nhas de alguns textos do passado, situados entre os séculos XIII e XVI, e
passando por uma obra do século XX, deixamos para trás aqueles sentidos e
valores que conseguimos retirar dos usos das perífrases estar, ser, andar, ir e
vir + gerúndio81, numa investigação que consideramos o tubo-de-ensaio de
uma pesquisa que merecerá um maior desenvolvimento e maturação, na cren-
ça de que seria objecto de um estudo muito desafiante o levantamento e a
posterior comparação das perífrases verbais com gerúndio com as perífra-
ses verbais com preposição (a) + infinitivo.

79
Vide exemplos inclusos nos excertos da secção II b) deste estudo.
80
Idem.
81
Através dos exemplos que escolhemos e partindo de toda a reflexão que fomos urdindo ao
longo deste estudo, podemos comprovar a lentidão com que ocorrem muitos processos evo-
lutivos e a copresença, em determinada fase, de usos sucessivos, isto é, a memória da língua.
AFINAL, QUEM É A MULHER DE VERDADE?
– UM ESTUDO LEXICAL, ANTES DO MAIS

Maria Emília Barcellos da Silva


UFRJ/UERJ

A tradição ocidental judaico-cristã instaurou o mito da dependência femi-


nina em relação ao ser masculino com a narrativa da criação da mulher, a partir
de uma costela de Adão, fato que erigiu os contornos de uma sociedade estatuída
em bases patriarcais, fortalecidas pelo banimento da contestadora Lilith, figura
capaz de esculpir um comportamento diferente daquele arbitrado como com-
patível com o “sexo frágil”, “segundo sexo”, “sexo submisso” e outros que-tais.
A óptica pela qual cada cultura vê as suas mulheres varia em função dos
fatores e das condições civilizatórias que suscitam e modelam condutas e atitu-
des dos seus planificadores e construtores. Em todas as sociedades, em todos
os tempo, a humanidade elaborou uma divisão biológica do trabalho muitas
vezes ligada, remota ou proximamente, às diferenças originais que orientam
primariamente os indivíduos. É indiscutível que a cultura, a um só tempo, molda
e limita os seres que a determinam, autorizando o que será pensado e sentido
pelos copartícipes grupais. No entanto, mesmo as diferenças físicas e sociais –
marcantes e marcadas – são vistas e ponderadas diversamente pelas várias
culturas: o que é considerada conduta feminina por uma pode ser havida como
masculina por outra: exemplo disso é o fato de, na ocidental, à guisa de prote-
ção, a mulher preceder o homem nos deslocamentos; na oriental e na socieda-
de silvícola, é ele quem vai à frente, concebendo o seu protecionismo por outros
entendimentos; em certas comunidades rurais, especialmente as dos habitantes
do chaco paraguaio, o resguardo pós-parto, por exemplo, é prerrogativa do pai
da criança, enquanto a mãe não interrompe a sua lida, seja na lavoura seja na
casa, além do tempo necessária para dar à luz o seu filho.
A sociedade ocidental rotulou determinadas atitudes como ou masculinas
ou femininas, segundo o seguinte quadro de especificações elaborado a partir
de depoimentos colhidos em pesquisa realizada durante o segundo semestre de
97 e o primeiro de 98, com cariocas adultos, de ambos os sexos, escolaridade
mínima de segundo grau:
168 Maria Emília Barcellos da Silva

características masculinas característica femininas


agressividade doçura
autoridade submissão
decisão timidez
vigor sensibilidade
razão emoção
independência dependência
raciocínio analítico ilogicidade
profundidade reflexiva superficialidade
discernimento intuição

Considerada a atualidade da recolha dos dados, observa-se que as atitu-


des arroladas decorrem de visadas bastante ultrapassadas que tentam explicar
o mundo como, de há muito, se convencionou ser ele estabelecido, sem atentar
para a falta de ressonância com o que se verifica cotidianamente: são mantidos
e, cobrados de uns e de outros – ao sabor da conveniência –, os rótulos que não
mais correspondem à realidade dos indivíduos construtores, por igual, da reali-
dade que os acolhe.
Alguns informantes do sexo masculino, de mais de 50 anos, declararam-
se saudosos do tempo em que à mulher cabiam três elocuções bastantes e
suficientes para justificarem o seu estar-no-mundo:

“shiit, galinha; cala a boca, criança e sim senhor, meu marido”.

A experiência e a observação dos fatos reiteram que a Natureza cria


seres masculinos e femininos, e os valores culturais recortam a espécie em
homens e mulheres, buscando, com isso, administrar, senão minimizar, a ação
destas, praticamente, definido-a como “deficientes sociais”.
Cabe aqui fazer a distinção necessária entre “gênero” e “sexo”: “gênero”
é um produto social aprendido – daí a dicotomia “homem/ mulher”; “sexo” é o
equipamento biológico sexual – daí a dicotomia “macho/ fêmea”. A respeito
desses entendimentos, manifestam-se estudiosos de várias áreas do saber, en-
tre eles, Simone de Beauvoir, que declara “nascemos macho e fêmea e tornamo-
nos homem e mulher”. Decorre dessa reflexão que, sendo esse um comporta-
mento aprendido, ele pode ser modificado segundo os ditames das circunstâncias:
tem-se uma Margareth Tatcher (realizando tarefas até então confiadas a ho-
Afinal, quem é a mulher de verdade? 169

mens) e tem-se um Barishnikov (maravilhando o mundo com leveza, graça e


ritmo sem prejuízo maior do seu compromisso com a masculinidade).
A Educação, não a realizada em prol da repetição pura e simples do
consabido, mas a calcada em procedimentos reflexivos e criativos, seria a úni-
ca estratégia capaz de forjar o penhor dessa igualdade – fora dela só se pode
esperar o acirramento da miopia das gentes quando se trata de visualizar e
praticar o discurso das identidades e das semelhanças.
Sendo a língua inalienável do nicho social em que ela se desenvolve, pela
análise dos usos lingüísticos que dela faz a comunidade que a pratica, chega-se à
apreensão das características desse mesmo grupo de falantes. Em que pese aos
avanços políticos e científicos registados na história da humanidade, a desigualda-
de dos papéis masculino e feminino ainda é colhida do aparato lingüistico empre-
gado pelos informantes, como a seguir se descreverá. O corpus que sustenta
este estudo foi eliciado, especialmente, do léxico carioca, encaixando expressões
ocorrentes quer na oralidade espontânea, quer na escrita. Assim sendo, centra-se
o trabalho em dois focos principais – o das regras gramaticais e o dos itens lexicais
analisados consoante a teoria e a terminologia cunhadas por Pottier.
A onipresença masculina, fortalecida tanto na administração familiar quanto
fora dela, é reiterada e consagrada na estrutura gramatical da língua pelo uso
do masculino como forma de gênero não-marcado, tomado, pois, como base do
sistema: o feminino é, geralmente, descrito como variação morfológica do mas-
culino. A ascenção de mulheres a cargos e funções, antes só confiadas e de-
sempenhadas por homens, de quando em vez sacode estruturas sociais e gra-
maticais estabelecidas para rotular e expressar as novidades funcionais; vai daí
que o léxico se expande na condição de inventário aberto a ser preenchido
pelas novidades das práticas humanas – ministro, presidente, senador e, até
mesmo, professor adjunto clamam por novas acomodações expressivas para
dar conta dos entes que deixam o abrigo – nem sempre cômodo – dos emara-
nhados do lar para se expor às agruras de estruturar a sua cidadania. Esse
percurso traçado do recôndito do lar para o lado externo à vida familiar é bem
descrito no excerto da poeta gaúcha Suzana Vargas:

“não me confino às curvas da cozinha;


deixei as cascas dos tomates e
aprendi a me cortar sozinha.”

Ainda nos limites da Morfossintaxe, é alardeado, entre outras prescrições,


que o feminino seja indicado pela desinência {a} em oposição à {zero} do
170 Maria Emília Barcellos da Silva

masculino; por outro lado, quando se faz necessária a concordância nominal, o


gênero e o número do nome regram a escolha a ser operada. No entanto, se
estão envolvidos nomes masculinos e femininos reza no discurso normativo que
os elementos adjetivais sejam empregados no masculino, desconsiderando o
número de entes femininos envolvidos na elocução.
Dentre as classes e subclasses gramaticais que corroboram o intento de
esmaecer a figura feminina também nas formas de expressão, assomam os
pronomes: por ora tratar-se-á especialmente dos indefinidos referentes à pes-
soa – ninguém, alguém, outrem, que não apresentam marca específica de
gênero, quando presentes nos jogos de concordância, recebem o tratamento
dispensado ao masculino. Por outro lado, quando a forma feminina comparece
em estruturas que envolvam indefinidos, ela se refere não ao indefinido mas à
pessoa a quem esses pronomes se ligam: “ninguém é culpado”// “e a bruxa
perguntou quem é mais bela do que eu?”. Portanto, quando o gênero grama-
tical não é determinado nem conhecido, a opção é pela forma masculina, a
guindada ao status de representante da espécie.
No mesmo rumo de raciocínio, atuam os pronomes pessoais retos, em que
o emprego de eles recobre ele + ela; esse procedimento não se restringe ao
português: uma análise comparativa comprovaria ser esse um universal lingüís-
tico, como universal é a assunção da mulher como ser aparentemente destina-
do à subalternidade na escala das gentes.
Quando os gêneros concorrem numa mesma estrutura e se estiver a ope-
rar com adjetivos pospostos, eles são empregados no masculino plural, embora
seja tolerada a concordância com o gênero do nome mais próximo, acionando-
se, para tanto, a ingerência atrativa.
Relacionam-se e agrupam-se, a seguir, dados colhidos dos inquéritos e
que respondem a questões do tipo “comprove a predominância do masculi-
no a partir de expressões usadas em diferentes graus de formalidade”:

I. irmãos II. a) o homem é mortal III. o homem de Neanderthal


reis b) o homem foi à Lua o homem de Java
alunos c) o homem descobriu o rádio o homem de Pequim
homem d) o homem inventou o rádio o homem do Pacoval

IV. doutor/ doutora ministro/ ministra IV. diplomata


ator/ atriz cozinheiro/ cozinheira monarquista
poeta/poetisa costureiro/ costureira político
ministro/ ministra morador
embaixador/ embaixatriz/ embaixadora professor adjunto
professor doutor
Afinal, quem é a mulher de verdade? 171

Em I, ratifica-se o predomínio masculino sobre referências femininas ao


se listarem lexias que sintetizam gêneros diferentes, quando se designam mem-
bros de uma classe.
Em II a), o termo “homem” equivale à “humanidade”; no entanto, em II b)
tal generalidade cede espaço ao específico, ao particular, pelo teor histórico da
afirmação. Em II c), a lexia volta a recobrir os dois gêneros, posto que é reco-
nhecida a parceria de uma mulher nesse processo específico de “descobrir”;
em II d), também é o verbo, associado ao conhecimento histórico, que faz o
termo “homem” investir-se do sentido específico: se, nos enunciados arrolados,
fosse substituído o vocábulo “homem” por “mulher” – diferentemente do que
acontece – estar-se-ia alijando o ser masculino da descrição, pois a definição
“qualquer indivíduo pertencente à espécie animal que apresenta maior
grau de complexidade evolutiva” predica “homem” no seu aspecto essen-
cial; em conseqüência disso, para expressar algo básico, o falante vê-se obriga-
do a operar a lexia “homem”. Em enunciados desse teor, cabe, portanto, ao
arcabouço semêmico dos verbos empregados, o alargamento ou a restrição
significativa do termo homem.
Em III, apesar da óbvia e necessária existência de mulheres entre os
indivíduos pré-históricos, não se contemplam expressões paralelas cujo núcleo
ostente a palavra “mulher”. Em enunciados que envolvam expressões do tipo

a 1) origem do homem b 1) origem da mulher


a 2) evolução do homem b 2) evolução da mulher,

a informação percorrerá caminhos diversos: certamente, nas elocuções listadas


em b 1) e b 2), acabar-se-á chegando à famosa “costela adâmica”, pedra-de-
toque do discurso de submissão feminino em relação ao homem-masculino.
Em IV, demonstra-se o uso genérico do masculino verberado na denomi-
nação das profissões. Ainda que dispondo dos instrumentos lingüísticos gerado-
res de feminino, certos nomes de profissões mantêm-se na forma masculina
mesmo quando se tratar de mulheres – e mais: quando marcados pela flexão de
feminino, reforçada pelo acréscimo sufixal ao radical em causa, em pleno pro-
cesso de derivação; quando derivado, o termo assume traços de desprestígio,
como é o caso de “poetisa” que, assim empregado, aponta mais para um capri-
cho do que para um dom. Em cargo altamente prestigiado, como o de “minis-
tro”, a aceitação da forma feminina é conquista recente; ainda assim, as mu-
lheres que ocuparam esse cargo, em nível internacional (Indira Gandhi, Golda
Meyr, Margareth Tatcher) são preferentemente referidas no masculino. O caso
172 Maria Emília Barcellos da Silva

de “embaixador” é bastante significativo: a forma “embaixatriz” aponta para


uma clara dependência do ser feminino, enquanto “embaixadora” revela a
ascenção da mulher, em status diverso do até então atribuído à mulher. Em
profissões relacionadas a serviços domésticos, a maior freqüência é de nomes
femininos que, quando reportados na forma masculina, denotam maior prestígio
(cozinheira/ cozinheiro; costureiro/ costureira).
Em V, listam-se termos que, ao serem definidos no dicionário, são sempre
relacionados a seres masculinos, à guisa de generalização, independente do
sexo de quem viabilizar o exercício funcional subjacente ao termo: respectiva-
mente, “diplomata – funcionário pertencente ao quadro de serviço diplomáti-
co...”; “monarquia – Estado sob o governo de um monarca”; “político –
aquele que trata ou se ocupa da política”; “morador – aquele que mora”. Na
Constituição brasileira ou na regulamentação da vida universitária, todos os
cargos são arrolados no masculino – presidente, senador, deputado, professor
adjunto, professor doutor. como já se declarou anteriormente. Por extensão, é
oportuno anotar que também a nomenclatura religiosa expressa a supremacia
masculina, desde o “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”: são
masculinos tanto o Pai, quanto o Filho e o Espírito Santo. Para tormento das
almas aflitas, que clamam por igualdade, Deus e o Diabo, passando pela falange
de todos os anjos, arcanjos, querubins, zéfiros, serafins, tronos, também são
masculinos; cabe apontar que a forma anja, em contrapartida, não participa do
acervo vocabular sacramentado pelos dicionários da língua portuguesa, deusa
paga o preço do profano e diaba só é empregado para emprego muito(íssimo)
informal.
A preferência pelo masculino é inconteste na expressividade dos falantes,
ainda que não se possa ignorar que os homens-masculinos foram os que mais
produziram coisas para as sociedades. Essa predominância é de tal ordem que
os meninos crescem ouvindo termos que os referendam favoravelmente, en-
quanto as meninas têm de aprender que, em alguns contextos, são homens e
que chamar um homem de “mulher(zinha)” é uma das formas mais seguras de
ofendê-lo seja qual for a sua inserção nas sendas da masculinidade, especial-
mente daquelas que concernem à “macheza”e as suas circunstâncias.
Os dicionários – esses prestigiados registros dos usos sociais, as verda-
deiras e reverenciadas memórias da sociedade – atestam o tratamento diferen-
ciado com que se qualificam as mulheres: um breve levantamento do que está
arrolado na entrada “mulher” revela os preconceitos vigentes na sociedade ao
se opor a designação de um ser masculino a um feminino. Tomando por base
enunciados do tipo
Afinal, quem é a mulher de verdade? 173

homem público // mulher pública


homem honesto // mulher honesta,

depreende-se que os adjetivos ligados ao substantivo “homem” não implicitam


condutas sexuais como acontece quando se elidem ao núcleo “mulher”; o caso
de “honesto” referindo-se à mulher motivou a acepção 4 do verbete no Auré-
lio: “casto, puro, virtuoso”, bem distante de “íntegro, probo, reto” com que
se qualifica o nome masculino. Para resgatar a honorabilidade feminina, parece
suficiente elidi-la a um nome masculino, do tipo “a mulher de César”, (“a que
tinha de ser e parecer honesta” – não por ela ou por sua escolha, mas pela
contigüidade e convivência com o Imperador). Se ligada ao substantivo “mu-
lher”, toda a expressão adjetiva carrega-se de traços pejorativos, como se
constata em

mulher à toa mulher da zona


mulher da comédia mulher de amor mulher do piolho
mulher dama mulher de má nota mulher fatal
mulher da ponta da rua mulher do fado mulher perdida
mulher da rótula mulher do mundo mulher pública
mulher da rua mulher do pala aberto mulher vadia
mulher da vida (à exceção de “mulher do piolho”, todas as lexias
ora arroladas são perífrases de “meretriz”).

Bem mais poderia ser dito sobre a mulher numa sociedade em que o
julgamento prévio dos indivíduos começa pelas suas características sexuais.
Buscou-se, por ora, demonstrar que, na boca do povo, ao expressar a sua vi-
são-de-mundo, o falante declara que, embora perceba a mulher como membro
necessário de uma sociedade, ele a opõe à classe de “ser humano” – essa
desigualdade básica foi reiterada não só pelas escolhas léxicas com que são
designados os entes femininos, como também pelo instigante câmbio de signifi-
cados que circunscrevem o estar-no-mundo quando o referente é “mulher”.
Das expressões citadas no Aurélio nucleadas em torno da palavra “homem”,
100% apresentam semas positivos; das que têm “mulher” por foco, cerca de
92% referem-se à atividade sexual e portam conotações negativas. Enquanto a
lexia “homem” ou se refere à humanidade no seu todo ou ao ser masculino
unicamente, “mulher” restringe-se sistematicamente ao ente feminino e, qua-
se sempre, deprecia o ser a que designa, apelando, por isso, não raro, a recur-
sos eufêmicos.
174 Maria Emília Barcellos da Silva

As próprias instituições que estabelecem as condutas desejáveis e espe-


radas dos pares sociais, as quais, quando banalizadas na fala popular, configu-
ram a amplitude da diversidade de tratamento dispensado ao homem e à mu-
lher, explicitada pela seguinte regra:

“um homem com muitas mulheres – poligamia;


uma mulher com muitos homens – poliandria;
um homem com uma só mulher – monotonia”.

A dependência da mulher, estabelecida e cobrada por uma sociedade cons-


truída em moldes masculinos, é um aprendizado longo e continuado: desde a
infância, os meninos são educados para “serem homens”; as meninas para
“serem mocinhas/moças, nunca para “serem mulheres” (o que incorreria numa
conotação depreciativa). Nessa conjuntura, tanto se fabrica a feminilidade como
a masculinidade, a virilidade, a macheza.
As constatações até aqui propostas não se esgotam nas reflexões de cu-
nho sociológico, antropológico ou mesmo religioso com que se tece este texto
até este ponto; tais assertivas podem ser sonorizadas e ritmadas pelas e nas
criações da MPB.
Com base num corpus estruturado por 12 músicas selecionadas do can-
cioneiro nacional, compostas no período entre 1940/ 1980, tituladas com nome
de mulher, tal como se expõe no QUADRO 1, dá-se conta das visadas de
mundo e dos estatutos organizadores das hierarquias vivenciais e vivenciadas
que plenificam a aventura vital.

QUADRO 1
CORPUS n º de lexias CORPUS n° de lexias CORPUS n°de lexias

1-Amélia 95 5-M.Betânia 127 9-Conceição 66


2-Emília 73 6-Dindi 122 10-Maria 129
3-Aurora 42 7-Helena 63 11-Tieta* 100
4-Marina 84 8-Laura 89 12-Maria-Maria* 113
(* obras não quantificadas nos quadros 2 e 3).

Para prestar contas ao compromisso lingüístico – em verdade, o tracejador


da circunstância que ora se trabalham – distribuíram-se as lexias textuais dos
discursos musicais em categorias morfossintáticas, apresentando tais itens,
Afinal, quem é a mulher de verdade? 175

segundo a freqüência absoluta ditada pela relação com a totalidade de cada


canção. (Q 2).

QUADRO 2

CLASSESGRAMATICAIS OCORRÊNCIA Média


S.CONCRETO 23,6
S.ABSTRATO 4,2
ADJETIVO 3,0
VBO. 21,4
ADVÉRBIO 7,7
PR.PESSOAL 8,2
PRONOME 9,3
CONJUNÇÃO 4,8
PREPOSIÇÃO 9,7
ARTIGO 5,3
INTERJEIÇÃO 2,5
EXPLETIVO 0,3
(Valores absolutos dos itens lexicais distribuídos por classe gramatical e
por composição selecionada)

O QUADRO 3 apresenta o rang das escolhas morfossintáticas, com os


percentuais das médias das freqüências absolutas, avaliadas em cada classe
considerada.
QUADRO 3
RANG N° 01 N° 02 N° 03 N° 04 N° 05 N° 06 N° 07 N°08 N°09 N°10 Total
1-s.conc 21,70 17,80 22,22 13.09 19,68 18,85 15,87 40,44 13,63 21,70 20,49
2-verbo 17,05 24,65 8,88 23,80 19,68 22,95 25,39 8,98 31.81 17.05 20,02
3-pron 12,40 6,84 0 11,90 11,81 9,83 7,93 6,47 12,12 12,40 9,17
4-prep 18,60 12,32 8,88 7,14 13,38 5,73 6,34 0 0 18,60 9,09
5-p.pes 7,75 10,95 6,66 19,04 9,44 10,65 7.93 0 7,57 7,57 8,75
6-adv 6,97 12,32 4,44 10,71 8,66 9,01 9,52 2,24 13,63 6,97 8,44
7-art 3,10 4,10 4,44 1,19 3,93 5,73 8,51 22,40 4,54 3,10 6,10
8-conj 3,87 5,47 8,88 4,76 3,93 7,37 4,76 2,24 10,60 3,87 5,57
9-interj 0,77 1,36 26,66 0 0 2,45 1,58 4,49 3,03 0,77 4,11
10-adj. 3,87 2,73 0 0 8,66 4,09 6,34 10,11 1,15 3,87 4,08
11-explet 0 0 3,00 3,57 0 0 0 0 0 0 0,35
(Rang das classes gramaticais distribuídas em percentuais e pelo corpus selecionado).
176 Maria Emília Barcellos da Silva

As hipóteses de natureza extralingüística foram suscitadas pela seleção


de núcleos preenchidos por nomes marcados pelo feminino.
As composições selecionadas permitiram retratar o imaginário nacional
que se sustenta, mais claramente, nas classes média e baixa – e mais veladamente
na classe alta – uma concepção de modelo feminino que, surpreendentemente
pouco mudou nesse quase meio século de corte temporal proposto.
As criações aqui referidas deram conta da constante disputa entre o de-
sejo e a interdição que não se desfez nem se atenuou quando posta na pena de
um Vinicius de Morais ou de um Chico Buarque, haja vista, respectivamente,
as composições “Minha namorada” e “Geni e o Zepelin”: na primeira,
para “ser a amada” do poeta, ele exigia o cumprimento de um decálogo com-
portamental que ia desde o que deveria ser pensado até o modo como a mulher
deveria falar para poder ocupar bem mais uma função do que um estado rela-
cional de base afetiva; na segunda, a personagem, “cujo corpo era dos er-
rantes, dos cegos e dos retirantes e de quem não tinha mais nada” e,
por isso, era discriminada por todos, foi alvo da insistência dos cidadãos mode-
lares que, “em romaria pela cidade e pelo bispo de olhos vermelhos”,
suplicavam para que Geni satisfizesse os desejos do alienígena; não obstante,
cumprida a missão de serenar os ímpetos do guerreiro, volta ela a ser escorraçada
pelos moradores por força da mesma conduta com a qual salvara a cidade,
conduta essa que transita do moral para o imoral conforme a necessidade dos
privilegiados, dos “donos da verdade”.
Pelo que está dito nas letras selecionadas, à mulher coube por acordo –
com o qual ela mesma, por vezes, pactua – papéis situados, sem maiores dis-
cussões, em pólos opostos de uma mesma linha de comportamental: num extre-
mo, instala-se como a mãe provedora, santa (tão mais santa quanto mais dis-
tante no tempo e no espaço); avançando o ponto de observação nesse mesmo
continuum, encontra-se a companheira, a cúmplice, mais raramente a partner
sexual, depois a transgressora do consuetudo – esta numa vizinhança bastante
contígua à “pecadora”, fonte de todo o mal do homem e, por extensão, da
perversão do mundo.
Na voz do que se concebeu como música popular brasileira distribuída por
nada menos do que quatro décadas, a figura da mulher é freqüentemente lou-
vada pela doação total de si mesma e pela anulação que faz de todas as suas
competências, principalmente, se forem aquelas que capacitam a realização de
um indivíduo mentalmente bem dotado: tão mais louvados quanto mais desisti-
rem de tudo em prol do outro, seja ele filho, marido, irmão, chefe ou grupo
familiar.
Afinal, quem é a mulher de verdade? 177

Observando-se o quadro 2, depreende-se


a) a predominância dos substantivos concretos ante as demais subclasses,
despontando a relevância emprestada ao campo físico em que a mulher se
desloca em detrimento da mínima abstração que a ela possa ser relacionada;
b) a surpreendente cotação mínima dos adjetivos na escolha vocabular,
significativamente relacionados a dotes femininos predominantemente físicos
(“morena, linda, igual, sincera”); comparecem em número inferior aos atri-
buídos aos homens-personagens e, então, referem-se a estados d’alma
(“tristonho, cansado, desesperado, estranho, ceguinho, juntinho, coita-
dinho, pobre”) e a coisas (“refrigerado, bom, grande, desfeito”); não
raro a casa predicativa é ocupada pelo substantivo “mulher”, que transita da
condição de substantivo para a de adjetivo, qualificando nada mais nada menos
do que o indefinido não-marcado “aquilo” ou o substantivo “coisa”: “aquilo
sim é que era mulher”/”você é a coisa mais linda”;
c) o lugar ocupado pelos predicados verbais, nominais ou verbos-nominais
(rang 2) em que pese à presença do verbo “ser”. Quando se ligam a sujeitos de
núcleo marcado pelo feminino, os predicados, em sua maioria, circunscrevem-se
aos limites e às intimidades do lar (lavar, cozinhar, fazer-me carinho); quando
referendam atitudes intelectivas, as ações complementam-se com objetos cujo
núcleo se insere na área do prosaico e do vulgar (“pensar em luxo e riqueza,
não saber o que é consciência, sonhar com que o morro não tem, fazer
exigências, achar bonito não ter o que comer”); as ações indicativas de pos-
se sempre visam a itens da área do consumo, e as que podem apontar ascenção
social implicitam que esta é sempre obtida pelo concurso direto do homem (“tudo
que você vê você quer/ teria um lindo apartamento com porteiro e eleva-
dor, teria madame antes do nome/você não arranjava outro igual”); os
verbos que denotam afeto, sistematicamente, apresentam a mulher como sujeito
ativo e, no máximo, é-lhe concedido o espaço da casa sintática reservada aos
objetos – na sua maioria “objetos diretos”, o que preconiza uma possível apassivação
(“deixa que eu te adore/ o bem que eu te quero”);
d) a predominância dos advérbios de tempo e de lugar, e o de negação
dissemina-se praticamente em todos os elementos constituintes do corpus;
e) a supremacia do emprego de pronomes possessivos, sendo os de pri-
meira pessoa os preponderantes; quando ligados a pronome de primeira pes-
soa, esta sempre se refere ao homem-personagem;
f) coerentemente ao item e), os pronomes pessoais retos e oblíquos são
expressivamente de primeira pessoa, muito embora o título das composições
permitisse uma expectativa de ocorrência da segunda pessoa;
178 Maria Emília Barcellos da Silva

g) das conjunções, a mais presente é a aditiva “e”, o que garante a se-


qüencialidade do discurso poético;
h) o rang 4 ocupado pelas preposições, de certa forma, deve-se à alta
incidência de frases nominais, principalmente em decorrência da contribuição
das composições “Emília” e “Maria Bethânia”, que, reconhecidamente,
destorceram a quantificação;
i) a classe dos artigos preencheu fracamente o rang 7, apesar de outros
estudos, como os do Professor Antônio Geraldo da Cunha (da “Casa de Rui
Barbosa”) apontarem o artigo “a” como o item e maior incidência na Língua
Portuguesa;
j) as interjeições – aqui consideradas à parte em virtude da natureza mar-
cadamente emocional do corpus selecionado – surpreendemente superaram
os substantivos abstratos em quantificação, ainda que se reconheça o peso da
contribuição interjectiva ocorrente em “Aurora”;
l) os elementos expletivos foram palidamente representados neste levan-
tamento, ocupando o último rang na cotação geral.

Com base nos demonstrativos elaborados e aqui explorados, afirma-se


que, apesar dos esforços em prol da igualdade que marcam os nossos dias, a
mulher ainda tem uma longa estrada a percorrer para se livrar dos grilhões que
lhe foram impostos por milênios de servidão e mitificação de tabus, em especial
os referentes ao seu poder decisório e a sua sexualidade. Também se pode
cogitar que, quando rompe as fronteiras que lhes são consentidas, a mulher se
revela, via de regra, uma pessoa que dificilmente disfarça a sua revolta atávica,
tornando-se árida de afeto: distancia-se definitivamente – ou quase – das opor-
tunidades de gozo da sua sensualidade e cerceia vigorosamente o seu erotismo.
Tais constatações possibilitam cogitar que a “mulher de verdade” assim o seria
por se tornar intangível às carícias de um par, avessa aos devaneios e
despreendimentos só justificáveis pelos holocaustos que só o desvelo amoroso
compensa e proporciona, na medida em que acena com paraísos impensados.
No caso específico do arquétipo “Amélia”, que, de certa forma, instiga esta
reflexão sobre o ideário feminino, reitere-se o fato de que ela nunca é
presentificada mas só referida no pretérito (“era, passava, gostava, sabia”);
cabe perguntar se ela não se terá liberado ou libertado em vão, uma vez que
pouco se pode esperar de alguém cujo padrão comportamental é marcado pela
conformidade; faz-se legítimo pensar que ela apenas deva ter “mudado de dono”.
A “Amélia” da canção é hiperbólica apesar de cotidiana; consegue ser
nem rainha nem escrava, e a sua maior virtude inscreve-se num possível ma-
Afinal, quem é a mulher de verdade? 179

soquismo, cuja exacerbação tem por lema “achar bonito não ter o que co-
mer” e conseguir “alegrar-se” com a fome que lhe bate à porta; no entanto
cabe questionar-se a que tipo de fome Amélia se submete e qual teria sido a
carência que a levou a “desertar”: fome de quê? quanto terá ela resistido à
carência física tão convenientemente louvada pelo companheiro simplista? qual
terá sido a “gota d’água” para que ela se evadisse? quanto teria pesado para a
sua saturação o conceito exarado pelo amante no que se refere, por exemplo,
ao que seja “ter consciência?” Onde estariam traçadas as fronteiras faméli-
cas de “Amélia-lembrança”? E mais, onde estaria ela agora, heroína ausente e
santificada, já que o tempo presente do amante é preenchido pela “substituta”
que se inscreve no grupo das que suprem as suas carências com a exploração
desmedida e compulsiva do trabalho do companheiro? Se Amélia é a “mulher
de verdade”, por oposição, a sua sucessora é, então, a “mulher de mentira”,
mas é esta que está viva e presente, satisfazendo-se no exercício de teúda-e-
manteúda do lacrimoso parceiro, na medida em que “tudo que vê (ela) quer”:
se a consagrada “mulher de verdade” não preenche as exigências do ego-
hic-et-nunc com que se estabelece uma ação presente, tem-se de sucumbir ao
fato de que o ideal de mulher, para se sustentar, tem de acionar uma inversão
no eixo verdade-mentira. E mais: se Amélia confessadamente não “tinha ne-
nhuma vaidade” (do latim, vanitas, de vanus”, “vazio”) era também – e por
isso mesmo – um ser incompleto, longe, portanto, da perfeição acalentada pelo
discurso masculino.
A radicalização dos papéis femininos expressados pelos dados em tela dá
conta da fantasia que relata a luta sem guarida entre o desejo físico e o cons-
trangimento socialmente definido das mulheres que parece se dividirem contra-
ditoriamente ao se realizarem de acordo com os seus próprios desígnios, sem
pré-julgamento do que é conveniente ou permitido, sem, por se autodeterminarem,
ter de ocupar irreversivelmente ou o nicho do lar ou o reduto do prostíbulo –
não se esquecendo que, redoma ou lupanar, esses espaços resultam da
mensuração masculina. Em “Tieta”, por exemplo, em que se poderia suspeitar
de uma aparente ruptura dos padrões conservadores (uma vez que dela parece
advirem as decisões de “vir com calor, sem pudor, p’ra tirar nosso juízo”,
rompendo-se assim o estatuto preestabelecido pelo qual não cabe à mulher a
iniciativa nem da escolha da parceria nem do jogo amoroso), a uma leitura mais
atenta, revela-se, em verdade, que a personagem feminina nada mais faz do
que atender ao chamado masculino, circunscrevendo-se, desse modo, num dos
pólos da linha de desempenho consentido já aludido.
Com base no levantamento lexicográfico, morfossintático e semântico
propiciado pelos data do corpus, pode-se apontar que o contraponto da ação
180 Maria Emília Barcellos da Silva

sistematicamente atribuída à mulher inventada, a partir do ideário coletivo,


explicita-se em “Maria-Maria”, posto que a personagem se instaura sem sub-
missão a parâmetros outros que não os concernentes ao ser humano, sem limi-
tações traçadas pelo enquadramento biológico: “Maria-Maria” se define a par-
tir dela mesma, pela força do que propõe, denuncia, sustenta. Os adjetivos a ela
atribuídos são funcionais – são substantivos, abstratos em sua totalidade, os
que ocupam a casa predicativa: Maria é “dom, magia, força, som, cor, suor,
dose mais forte/mais lenta”; os verbos nocionais em que ela atua como
sujeito visam aos princípios fundamentais da vida: “merece viver e amar, ri
quando deve chorar, agüenta, tem raça, tem gana, mistura dor e ale-
gria”. Em “Maria-Maria”, louva-se o ente construtor do seu espaço as suas
próprias custas, o que conquistou, com seu esforço, o direito de preenchê-lo
como bem entender, livre dos estereótipos sociais. “Maria-Maria” atua como o
ato inaugural de uma nova visão especular do papel reservado às mulheres na
sociedade moderna.
Pelo exposto e comprovado pelos dados coligidos, tanto as amélias quanto
as suas contrapartidas obscurecem o verdadeiro ser-mulher e revelam os re-
cônditos dos processos psíquicos que limitam a trajetória das criaturas que,
sufocadas pelo desejo e pela ânsia de saciar a sua fome quer física quer anímica,
acabam impedidas de contemplar e de partilhar o incomparável espetáculo da
Vida.
Bem mais poderia ser dito – reitera-se – sobre a mulher que, quando
posta na boca do povo, revela o pensamento de uma cultura, os seus condicio-
namentos, estereótipos, a moral imposta, a desigualdade dos papéis masculinos
e femininos, enfim a duplicidade de valores – social e sexual – com que se
escreve e direciona a história das gentes.
Por fim, à guisa de conclusão, declara-se que, apesar dos avanços realiza-
dos na arte de conviver, as mulheres, “ensinadas” desde a mais tenra infância,
parece estarem fadadas, por mais algumas gerações, a beijar sapos para de-
pois engoli-los transmudados em príncipes (não obrigatoriamente nessa ordem),
tal como se pode depreender da quadrinha declamada , sem culpa e com muito
dengo, por uma informante da pesquisa, 18 anos, moradora da zona sul do Rio
de Janeiro:
Os homens são uns diabos,
não mulher que o negue,
mas todas estão à espera
de um diabo que as carregue.
Afinal, quem é a mulher de verdade? 181

Referências bibliográficas

BIDERMAN, M.T.C. A ciência da lexicografia. Alfa: Revista de Lingüística.


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YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes. Paris: Petite Bibliothéque Payot,
doc. 75, 1992.
A SAUDADE NA LÍNGUA PORTUGUESA
Nelly Carvalho
UFPE

Introdução Histórico-filosófica

São três as realidades básicas da pessoa humana: tempo, distância e com-


panhia, enquanto constitutivos da existência, que abrangem também os ele-
mentos estruturais da vida . Não há saudade sem tempo; porquanto os elemen-
tos lembrança e desejo, ainda que os sentidos, como um presente, têm que
estar sempre referidos ao passado e ao futuro, respectivamente. Lembrar uma
pessoa ou uma situação é constituí-la outra vez presente, conviver de novo com
ela, atualizar algo já passado; é situar-se num agora em relação a um antes. Por
outro lado, desejar retomar a posse de um bem, quer ele seja novo ou já vivido
anteriormente, é situar-se numa relação de tempo. Desta vez já não é a um
antes, mas sim a um depois. Trata-se de fazer o futuro presente; de possuir por
antecipação. Em ambos os movimentos está subjacente o elemento tempo – o
que significa, repetimos, que não há saudade atemporal.
O mesmo acontece quanto ao elemento espaço: o elemento distância.
Ninguém sente saudade de um bem que possui junto de si. Tem que interpor-se
um distanciamento, ainda que seja psicológico. Embora numa transposição ima-
ginativa, a condição de deslocamento do objeto da saudade, supõe a situação
de ausência, supõe essa oscilação entre o aqui e o ali de que falava Ortega.
A saudade é, pois um sentimento que implica relação de alteridade. Não
sempre necessariamente entre duas pessoas; mas em condições tais que sem-
pre uma delas se encontrará carente da companhia de um bem com a outra
relacionado.

1- O espaço luso-galego da saudade

Se todos os países de origem céltica podem ser considerados espaço pri-


vilegiado da saudade, importa analisar, dentro desse espaço, o caso particular
184 Nelly Carvalho

de Portugal e Galiza. Pergunta-se até que ponto é válido continuar a afirmar-se


ser a saudade um sentimento peculiar de luso-galegos, traço de união entre
ambas as gentes, e marca interior que individualiza, não só dentro da universa-
lidade dos povos, mas, inclusive, dentro da grande família em que estão inseri-
dos. O problema não se põe, evidentemente, em termos de exclusividade do
sentimento:em maior ou menor grau, ele é de todos, e muito particularmente
das gentes de raiz céltica. Põe-se, sim, em termos de encontrar justificativas
para a peculiar incidência e maior manifestação de sentimentos saudosos nesta
região do extremo noroeste da Europa.
Insistem os autores em que um dos elementos determinantes da peculiar
saudade luso-galega estará na sua condição de povos da finisterra.
Dada a sua singular configuração geográfica, é de crer que a fixação
céltica se terá dado de modo mais profundo nestas regiões litorâneas. Aquele
impulso criador de espaços na direção do ocidente terá ficado como que trava-
do pelo mar. O sonho da Atlântida, que a modo de impulso milenário, empurrou
estas gentes para o oceano, teria morrido frente ao infinito inexpugnável. Teria
havido ao longo da costa uma fixação étnica forçada, por se terem estes povos
encontrado no fim da terra, sem possibilidade de darem vasão ao impulso cria-
dor que os atraíra até ali. Com a barreira do mar, ficará sepultado o seu destino
de nomadismo, mas terá nascido o desejo do impossível, a sede do indefinido,
do não realizado e não conhecido. Terá nascido aquele jeito nostálgico de cam-
biantes indefiníveis a que se chamou: saudade: a saudade vem-nos de termos
permanecido durante séculos e séculos em frente ao mar do qual não conhe-
cíamos o outro extremo, e que devia, forçosamente apresentar à imaginação o
aspecto de remate do universo Não é impunemente que se é ou da planura ou
duma geografia de extremo.
Tal condição não tem conteúdo apenas topográfico de posição terrestre
saliente, de extremo. Revestem-se também as finisterras de sentido humano e
étnico por serem as metas onde vão quebrar as migrações dos povos, sítios em
que se entranham os arcaicos resíduos das raças autóctones empurradas, e de
novos bárbaros protegidos pelo desarrumo do litoral e das linhas orográficas
terminais. Este inconformismo perante a impossibilidade da ultrapassagem físi-
ca pode derivar ou em tristeza e passividade ou em estimulo criador. No caso
concreto luso-galego gerou a secular abertura para as emigrações e navega-
ções marítimas. A consciência da finisterra abriu-lhes a porta para a nostalgia,
a qual pelo seu caráter de ânsia espacial, transcendeu a melancolia passiva.
Foi ela que forneceu a coragem para superar todas as missões históricas
de desenraizamento. A consciência coletiva de acorretamento geográfico agrava
essa peculiar forma de tristeza a que podemos chamar: a saudade dos longes.
A saudade na Língua Portuguesa 185

2-Palavras e sentimento

Cada povo tem as suas palavras com que expressa os próprios sentimen-
tos. Mas estes sentimentos adquirem, até certo ponto, conotações diferentes,
consoantes as palavras que a eles se referem. Trata-se, afinal, de uma natural
decorrência do conhecer humano. A atividade do pensar está indissociada dos
conceitos; e estes, das palavras que os suportam. Um é a forma do outro;
alterando-se o elemento formal, altera-se o conteúdo de que é forma.
Daqui decorre um problema clássico: o dá real intraduzibilidade das pala-
vras. Do mesmo modo que não existem traduções perfeitamente equivalentes
dum idioma para o outro. Não basta conhecerem-se mecanicamente os vocá-
bulos em nível de dicionário. Para que se traslade toda a ressonância de uma
língua, tem que haver aquela permeação interior, que não é resultado de apren-
dizagem, mas de vida.
É um problema amplo que se põe e que abarca questões de sociolingüísti-
ca. Se uma língua não é um frio sistema de rotulações com correspondência
nas outras – o que se poderia esperar de uma simples nomenclatura –, é fácil
prever a sua total falência quando se pretende decifrar ou traduzir o mundo
ideal ou sentimental de um povo. Pode, quando muito, ver-se mitigado o seu
desvirtuamento nos campos da práxis comercial ou da mera informação objeti-
va; nunca, porém, em se tratando de significar vivências interiores e estados
psíquicos originais”.

3-Palavra e tradução: Portugal e Galícia


Saudade não é Soledad não é homesickness, não é morriña nem regret;
Saudade é diferentede nostalgia, de Sehnsucht, de Heimweh, de desiderium, de
spleen, de mal du pays. A dor romena, a hiraeth dos celtas do País de Gales, a
asturiana señardad, ou a enyorança catalã, exprimem estados psíquicos de cla-
ra conotação saudosa, mas não são a saudade.
Saudade inclui um pouco de tudo o que os referidos vocábulos sentimen-
tais significam, e algo mais. É uma palavra-síntese, uma condensação de esta-
dos de alma. Nela estão implícitos os sentimentos de solidão física e espiritual,
o desejo do amor ausente, a ânsia do impossível, o sentimento de ausência da
terra, um certo instinto de morte, a melancolia da paisagem e o desejo de Deus.
Ela é, ao mesmo tempo, misto antinômico de alegria e dor, força de ensimesma-
mento e de criatividade, sentimento que atinge o homem na concretude históri-
ca e na radicalidade do ser..
186 Nelly Carvalho

Poderíamos ainda ajuntar um terceiro elemento que, a modo de condicio-


namento extrínseco, pode concorrer para a exacerbação saudosa: a emigração
Se saudade é insatisfação consciente, o homem busca na terra a possibi-
lidade de reencontrar a plenitude. Busca fundir-se no todo material, ao encon-
tro da radicalidade positiva. Não contempla a paisagem; sente-a panteisticamente
como um todo impreciso e conciliador. Fundir-se nessa harmonia física, mais
do que experiência estética é, possibilitar o reencontro com o bem perdido e
desejado. Daí o sentimento peculiaríssimo da “morriña” – pequena morte –,
porventura o sentimento mais genuinamente saudoso entre os galegos.
Pela “morriña” realiza-se uma espécie de “ritual mistérico”: a alma aspira
a morrer na terra e fundir-se nela, para garantir a posse da mesma, no tempo.
Tal forma de apego telúrico e inconsciente leva o galego a sentir saudades da
sua terra mesmo quando nela vive. É que, em última análise, criou-se entre
ambos uma relação que transcende o campo psicológico. Entra-se no metafísi-
co. A terra é a contemplação do homem, a sua ultrapassagem. E porque é
impossível a fusão absoluta, agrava-se a experiência da finitude: nasce a saudade.
Quanto à saudade portuguesa, ela decorre sobretudo, de uma vivência
espacial diferente: o espaço dinâmico, aberto, criador. Foi sem dúvida, a dimen-
são autêntica que reforçou esta peculiar forma de sentir. Aquele instinto atávico
de nomandismo celta – que no galego se consubstanciou, por transferência,
num certo instinto de morte, ou “morriña” –, teve, no português, a sua forma de
libertação sobretudo nas grandes viagens marítimas. Foi no mar que Portugal
descarregou essa tensão.
Situado entre a última terra mediterrânea e primeira atlântica, Portugal
projetou na oceanidade o apelo da terra e da planura a que não teve acesso:
compensou com o mar a sua escassez de continente. E este curso histórico,
além de individuar Portugal no quadro do mundo moderno, influiu na psique
portuguesa num sentido ativista, apurando-lhe as aptidões de adaptação e enri-
quecendo-as com experiência, exotismo, calor e claridade.
Só é possível, pois, a geração da saudade pelo amor e ausência, quando
estes “pais da saudade” forem integrados num espaço criador. É este espaço
que, finalmente há a ultrapassagem da mera saudade–solidão em saudade–
ausência e desta, finalmente, em saudade–companhia Saudade – companhia
que, sendo o último termo deste sentimento fundamental, engloba, em síntese
superior, ambas as primeiras. Engloba-as enriquecidas pela dimensão de servi-
ço, epopéia e destino sagrado. Nele o cósmico e o divino estão presentes: o
A saudade na Língua Portuguesa 187

ente saudoso está sempre acompanhado. A relação do amor ausente transce-


dentaliza-se e, como tal, encontra um tempo e um espaço novos: “saudade
portuguesa é portanto – um sentimento que só se compreende tridimensional-
mente, que envolve relações essenciais com o cósmico e o divino.
A saudade – é pois, o sentimento da soledade ontológica do homem. Este
estado sentimental só se reflete ou transparece na poesia lírica, que é, por
conseguinte, a voz da intimidade humana, a mais direta manifestação do seu
ser, a revelação do homem. Saudade e lirismo são, pois, duas etapas de uma
mesma coisa: a vivência e a expressão da intimidade do ser humano, da sua
soedade ontológica” E mais adiante, ao analisar o pendor de transcedência que
nos ajuda a ultrapassar a “soedade” original – “escura soedade que quase não
é mais do que um puro latejar de vida individualizada” – o grande pensador
galego reafirma a sua tese: “o eco espiritual desta soedade é, já o vimos, o
sentimento a que chamamos saudade; e a manifestação deste sentimento é a
lírica. A lírica é, pois, a exteriorização – a transcendência – da sociedade onto-
lógica do homem, uma transcendência a que poderíamos chamar de confiden-
cial, posto que é a comunicação da intimidade radical do homem, quase que um
falar consigo mesmo”.
Lírica que, sem se situar predominantemente na esfera do sentimento
assumido pela mente, mas, antes, na esfera da emocionalização do pensamen-
to, não deixa de ser legitimamente lusíada e, enquanto tal, saudosa. Lirismo e
saudade, repetimos, vão juntos como os dois termos da relação significante –
significado.
A terceira maneira de relacionamento com a natureza – e o mais intrinse-
camente lusíada – é ao modo celta; ou seja, personificando essa mesma natu-
reza. Não há nem pretensa anulação do eu no complexo cósmico, nem a
sobrenceria transcendente de quem joga esteticamente com o objeto. Há an-
tes, uma atitude de confidência, de confronto do eu e do tu, de dualismo harmo-
nioso elevado ao nível pessoal.
É a saudade do amor leal, que nasce da ausência do amado enquanto a ele
ligado afetivamente. Só quem ama, e é fiel ao amor, é que sente a solidão e
tristeza da ausência do outro, com o desejo de reencontrá-lo.
“Mas na minha alma triste e saudosa / a saudade escreve, e eu translado”.
Neste desabafo camoniano, desde o seu desterro de Ceuta está implícito o
problema de que nos ocupamos: a relação entre saudade e lirismo.
188 Nelly Carvalho

4- A palavra Saudade na poesia

Diz Cecília Meireles sobre a força das palavras:

Ai palavras, ai palavras
Que estranha potência a vossa,
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta....
Sois de vento, ides no vento
No vento que não retorna
E , em tão rápida existência,
Tudo forma e se transforma!

Saudade como palavra tem conteúdo semântico de tristeza e vontade de


rever, resumido em uma única palavra que pode ser assim definida: saudade
não é lembrança , nem mesmo recordação, saudade é a dor da ausência, mal-
tratando o coração.
Em torno do ano de 1200, quando ainda nem existia Portugal como país,
nem a língua portuguesa como tal -era o galego-português- já se cantava nes-
sas terras do norte da Península Ibérica, o cuidado , o desejo e o lento morrer
de amor , uma saudade sem vocábulo.
Goethe dizia que onde há maior lacuna do conceito, palavras surgi-
rão na hora oportuna.
Camões cantava, no exílio em Ceuta:

Mas na minha alma triste e saudosa


A saudade escreve e eu traslado

De etimologia incerta, as formas arcaicas primeiras foram suidade,


soedade e soidade, na fase do inicial do português. Teria vindo assim de
soledade, solidão.
Também foi levantada a hipótese de vir de salutate,ou salutem datis
uma saudação bastante usada nas despedidas das cartas romanas. Até a in-
fluência de saúde já foi aventada.
A dificuldade de explicar a mudança fonética fez João Ribeiro opinar que
saudade tem origem no árabe saudá, profunda tristeza. A outra hipótese (meio
fantasiosa) é ter derivado de Ceudda, forma bérbere de dizer Ceuta, fortaleza
distante onde os soldados passavam longo tempo ausentes da terra natal.
A saudade na Língua Portuguesa 189

O que fica, na verdade, é que com esta palavra, marca-se um estado de


espírito que outras línguas não exprimem com precisão, sentimento muito pró-
prio dos que usam o português como língua materna.
Assim, agrava-se a consciência de finitude da vida e nasce a saudade.
Amor e ausência são os pais da saudade, diz um poeta antigo.
Temos saudades até de nós mesmos, das faces que perdemos nos vários
espelhos que refletiram nossa imagem. Novamente, em cena, Cecília Meireles:

Eu não tinha esse rosto assim magro, assim calmo, assim triste, nem o lábio amar-
go! Eu não tinha estas mãos tão sem força , tão paradas e frias e tristes, eu não
tinha esse coração que não se mostra/,Eu não dei por esta mudança tão simples,
tão certa , tão fácil / Em que espelho ficou perdida a minha face?

Às vezes, temos saudade e não sabemos nem de quê , como dizem os


versos:

Eu hoje estou com saudade não sei ao certo de quê . de um dia de claridade, de um
carinho de verdade , de ouvir a voz de você/ Eu sinto uma falta louca de um sonho
bom que morreu, da alegria que foi pouca.do sorriso de uma boca, cujos beijos
não são meus E a nostalgia me invade... de um olhar que não se vê... pois não há
maior saudade que essa estranha ansiedade não sei ao certo de quê.

Fernando Pessoa tomou-a como mote constante, sentimento emblemático


de seu povo: “Saudades, só portugueses/ Conseguem senti-las bem/ Por-
que têm essa palavra/Para dizer que as têm”. Porém, não são apenas os
portugueses e sim todos aqueles que usam a língua portuguesa, que com o
termo exprimem o sofrido sentimento.
E ainda existem a misteriosa saudade do presente , do tempo que se vive,
que se adivinha passageiro, que se pressente findar: Tenho sonhos cruéis,
n’alma doente, Sinto um vago receio prematuro, Vou a medo n’aresta do
futuro, embebido em saudades do presente (Camilo Pessanha)
A vida vai tecendo laços e tudo que tece são pedaços do vir-a-ser que se
transforma em ser. Assim, a saudade aportou no Brasil com a colonização e,
sendo o Recife um dos primeiros, senão o primeiro porto a ser tocado na rota,
ela aqui aportou e fez sua morada em nosso Pernambuco.
Mas vem da voz longínqua de um fluminense, Casimiro de Abreu, o pri-
meiro canto brasileiro , que quando crianças, levou-nos todos a tomar consciên-
cia da dorida saudade da infância:
190 Nelly Carvalho

Ai que saudades que tenho da aurora da minha vida! Da minha infância querida
que os anos não trazem mais!

Entre os poetas pernambucanos, o tema da saudade é dominante, ora


representado pela cotovia em Bandeira, que retoma as saudades de Casimiro,
saudade da terra natal e da perdida alegria da infância:

Alo cotovia onde voaste, por onde andaste, que tantas saudades me deixaste?
Andei onde deu o vento, onde foi meu pensamento, em sítios que nunca viste,de
um país que não existe
Voltei te trouxe alegria...
E esqueceste Pernambuco, distraída? Voei ao Recife, no cais pousei da rua da
Aurora. Aurora da minha vida que os anos não trazem mais
Os anos não, nem os dias ........Voei ao Recife e dos longes das distâncias, do
mais remoto dos teus dias de criança te trouxe a perdida esperança, trouxe a
extinta alegria.

Ora é representada pela noite de São João, junto com os entes queridos
que estão dormindo profundamente

Quando ontem adormeci


Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondo de bombas
Luzes de Bengala
Vozes
Cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas

......................................................
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente
A saudade na Língua Portuguesa 191

Olegário Mariano, ligando a saudade ao amor na encruzilhada do desti-


no, diz que ela veio ao mundo para ser boa e dar o seu sangue a quem a
queira.
Outros dizem ser parte de nós que alguém leva, parte de alguém que
nos fica.
E as saudades da casa em que moramos e que vemos ser derrubada em
nome do progresso? E dos bairros que se uniformizam e que se transformam
em lápides mortuárias das vivendas que ali existiam, cemitério de sonhos e
jardins,dos espaço das brincadeiras infantis?
Só um poeta é capaz de nos consolar, neste canteiro de demolições de
casas e memórias:

Vão derrubar esta casa. Mas meu quarto vai ficar, não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências: Vai ficar na eternidade, com seus livros com seus
quadros, Intacto, suspenso no ar!

Os poetas populares, também, a seu modo, transportam a saudade para


seus versos.
Luis Gonzaga avisava que a saudade é boa quando a gente lembra só
por lembrar, porém se vive a sonhar com alguém que se deseja rever,
saudade aí é ruim, e eu digo isso por mim . É também ,paradoxalmente, um
dos temas recorrentes no Carnaval, nas letras do frevo canção e de bloco, -a
dor de uma saudade vive sempre no meu coração Versos lembram que é
tão grande a saudade que até parece verdade que o tempo ainda pode
voltar. Grande ilusão!

5- Conclusão

Para comemorar todas as saudades que sentimos, sentiremos e carrega-


mos conosco, pela vida afora seja já longa ou breve ainda, um cancioneiro
inteiro não basta. As saudades que carregamos transbordam do coração.
Como diz o paraibano Ernani Sátiro:

Ó que saudades que tenho


Da minha rua da Aurora
Do rio naquela rua
Da aurora naquele rio
Daquele rio na aurora
192 Nelly Carvalho

Que as águas não trazem mais


Oh que saudades que tenho
De meus sonhos bem branquinhos
Lavando as águas barrentas.
Das águas levando os sonhos
Que as águas não trazem mais
Saudades são mil saudades
Do rio que corre agora
Pra outros que não o vêem
Ó que saudades, já quantas
Dos meus sonhos bem sonhados
Bem pouco realizados
Ó que saudades que tenho
Da rua da minha aurora!

Bibliografia

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CÂMARA E CÂMERA
Ricardo Cavaliere
(UFF, LLP, ABF)

Fato ordinário nas línguas modernas, a dupla forma lexical das palavras de
significação externa atrai a atenção dos lexicólogos empenhados nos estudos
diacrônicos. Sabe-se que as variantes contemporâneas de um vocábulo portu-
guês devem-se ordinariamente a fatos restritos ao plano fonético, como ocorre
nos casos em que coexistem formas com b ou v – assobio, assovio –, decor-
rentes de degeneração da consoante oclusiva, e nos pares de alternância vocálica
em sílaba átona – dezasseis, dezesseis –, em que atuaram forças assimilatórias
no curso prosódico da palavra. Situações há, entretanto, em que a coexistência
de formas análogas se deve ao duplo ingresso de certos termos no léxico do
português, não raro de fontes distintas e em épocas diferentes. Este o caso de
corredor – lugar de passagem – e corredouro, em que o primeiro advém do
italiano antigo corridore (CUNHA, 1994), já registrado na segunda edição do
dicionário de Moraes Silva, e o segundo encontra registro no século XII (cf.
VITERBO, 1965) como derivado de cu( rre(re. Nas duplas divergentes em que
figuram uma forma erudita e outra hereditária, há via de regra grande distinção
semântica na língua contemporânea, como em artelho e artigo, plano e chão
etc. No caso de câmara e câmera, a duplinha a que nos dedicaremos nesse
breve estudo, o enquadramento das variantes não parece explicar-se facilmen-
te, dado que o uso dessas formas configura-se hoje indistinto em alguns casos
e, em outros, compulsoriamente distinto, em face de sua polissemia.
Ouve-se, por exemplo, atualmente que os deputados pouco comparece-
ram (como sói acontecer) às sessões da Câmara, fato registrado pelas câme-
ras dos fotógrafos jornalistas. A convivência dos dois termos paronímicos nos
textos contemporâneos dá ensejo a uma suposta distinção de sentido, como se
constituíssem dois vocábulos diferentes, o primeiro designador de “aposento”
ou “recinto” a que se restringe, em face de suas peculiaridades, o acesso das
pessoas – câmara nupcial, câmara mortuária, câmara-ardente etc. –, sen-
tido que metonimicamente se estende aos conselhos e colegiados de cunho
representativo – câmara comercial, câmara de deputados, câmara cível etc.
194 Ricardo Cavaliere

Aparentemente, o significado atual de câmara implica necessariamente a


noção de espaço fisicamente delimitado, a que se implementa a idéia de reclu-
são ou privacidade de uso. Nesse aspecto, o termo é usado no jargão médico
para designação comum a várias cavidades e espaços do corpo, bem como à
cavidade ou espaço intercelular (cf. HOUAISS, 2001; FERREIRA, 2000). A
expressão câmara de sangue, que vem perdendo presença no jargão médico
contemporâneo, mas ainda se registra nos léxicos do português, do espanhol e
do italiano conduz à idéia de “diarréia sanguinolenta”, decerto resultante de
raciocínio metafórico. Nessa linha, Moraes Silva oferece o registro de “eva-
cuação do ventre” ou “excremento humano” (SILVA, 1813), o que reforça ser
um valor semântico expressivo pelo menos até o final dos setecentos em portu-
guês. No florentino, a par de outros dialetos itálicos, registra-se a expressão
andare a chamera, como nesse passo de Zucchero Bencivenni: “l’acieto à
questa natura, che s’elli truova lo stomaco pieno sì fa bene andare a chamera,
e s’elli il truova voto sì ristringnie” (CONSIGLIO, 2006). Observe-se, por ex-
pressivo, o dígrafo helênico, que denuncia na grafia a origem da palavra. Por
sinal, a dialetologia diacrônica italiana oferece profícua variação ortográfica:
camara, camera, cammera, cammara, chamera, kammora etc., conforme
nos informa o precioso e utilíssimo Tesoro della lingua italiana delle origini,
que hoje pode ser consultado de qualquer lugar do planeta pela Internet.
Note-se, em especial, que a metonímia em casos como câmara de co-
mércio e câmara de vereadores – que desloca a designação do continente
para o conteúdo, ou mais apropriadamente para o grupo de pessoas que por
dever de ofício reúne-se na câmara – pode assumir matiz distinto em que se
passa a designar o todo pela parte. Esse o caso de câmara (câmera) fotográ-
fica e câmara (câmera) cinematográfica, conceito de qualquer dispositivo
constituído de uma espécie de caixa ou compartimento fechado, ou quase fe-
chado, com uma abertura pela qual raios luminosos são captados no intuito de
gravar uma imagem em uma película química.
Por seu turno, câmera não goza de espectro semântico tão amplo, já que
seu uso contemporâneo limita-se à designação do citado dispositivo fotográfico
ou cinematográfico, com natural extensão para o indivíduo que manipula profis-
sionalmente esse artefato, caso em que concorre com câmara em flagrante
predileção. Decerto que algumas expressões isoladas como música de câme-
ra concorrem com a correspondente escrita com a, as quais se explicam pelo
já referido reingresso de certos termos no léxico do português mediante em-
préstimos de línguas modernas. Como judiciosamente afirma Antenor Nascen-
tes (NASCENTES, 1966), em música de câmera havemos de reconhecer
Câmara e Câmera 195

influência do italiano camera, que na língua de Dante detém um especial relevo


semântico para designar a sala de conselho para fins musicais. A presença do
italiano é, por sinal, flagrante no vocabulário da música clássica em todas as
línguas ocidentais. Essa via também nos legou o derivado camerista, italianismo
que designa o músico especialista em música de câmera, e camerata, peque-
no grupo instrumental. Via de regra, porém, não encontramos hoje no portu-
guês brasileiro, ao menos da linguagem geral, a forma com e no sentido de
aposento ou recinto, à exceção das expressões isoladas já aqui comentadas.
Uma curiosidade inicial diz respeito a essa notável preferência por câme-
ra para a designação de dispositivo fotográfico. A rigor, o fato revela que, não
obstante coexistam no léxico do português, os dois termos que ora estudamos
mantêm uma relação de disputa pela preferência do falante em cada uma das
acepções possíveis, de tal sorte que a natural reincidência e solidificação do
uso de uma delas acaba por suprimir o emprego da outra. As conseqüências da
concorrência lexical são fartamente exemplificadas no português, como nos
pares mais-chus, depressa-asinha e tantos outros, em que o falante simples-
mente optou por uma das formas semanticamente equivalentes, levando a uma
progressiva elisão da outra.
No caso da progressiva preferência de câmera por câmera, especifica-
mente na acepção de artefato de fotografia, ao menos no português do Brasil,
saliente-se, creio haver influência do inglês, que como veremos adiante, só
registra o nome primitivo com e, e especificamente nessa acepção. O fato,
decerto, se deve à intensa movimentação mercantil dos tempos modernos, alia-
da ao fato de os citados artefatos serem fabricados em países estrangeiros, que
preferem denominá-los na forma inglesa, já que é o inglês inegavelmente a
língua franca da indústria e do comércio. Com isso, popularizou-se a vinculação
de câmera ao sentido específico de dispositivo fotográfico ou cinematográfico.
Na voz dos etimologistas do latim, soa pacífica a origem de came(ra,ae no
grego καµαvρα. Ensina-nos Émile Boisacq que o termo expressa usualmente
no grego os significados de “quarto em abóbada”, “teto arqueado”, “teto da
cama” e “teto de carruagem” (BOISACQ, 1923). Em todos os casos, predo-
mina a idéia de forma abobadada. Em latim literário, por sinal, reina pacifica-
mente esta forma com e(, cujo sentido inicialmente limitar-se-ia à referida no-
ção de abóbada. Segundo Corominas, a acepção romance de “quarto” ou
“alcova”, que, como vimos, já tem antecedentes no grego, encontra-se em San-
to Agostinho e Casiodoro (COROMINAS, 1954).
O termo, decerto, ingressou na língua de Cícero pelo fluxo dos helenismos
incorporados ao léxico latino com mediação etrusca. Segundo Ernesto Farias
196 Ricardo Cavaliere

(FARIAS, 1970) esta influência do etrusco constitui a única explicação plausí-


vel para a variação de grafias de palavras gregas em latim, em que ora se
transcrevem com p palavras originalmente escritas com β, ora com b termos
originalmente escritos com π, dentre outras mudanças. Isso porque o etrusco
não tinha as sonoras b, d e g, fato que impunha aos termos helênicos com tais
consoantes grande variação de grafia ao ingressarem no latim: gr. kubernãn,
lat. gubernare; gr. pyrrós, lat. burrus; gr. amorga, lat. amurca (FARIAS,
1970: 22).
Somente após a derrocada da ocupação etrusca entre os séculos V e IV
a.C., puderam os romanos manter contato direto com as cidades gregas já
fundadas na Península Itálica. A partir desse momento, a influência helênica no
latim intensificou-se exponencialmente, facilitando o ingresso de empréstimos
que se iam adaptando com grande facilidade ao sistema fonético latino. A alte-
ração fonética do gr. καµαvρα para o latim camera parece seguir uma regra
geral de dissimilação que atinge a vogal de sílaba átona interna. Assim, a par de
kamára>camera, registram-se outros casos análogos de dissimilação: gr. Ta-
ras, Tárantos, lat. Tarentum; gr. kóthornos, lat coturnus (cf. FARIAS, 1970:24).
De qualquer modo, probabilíssima a hipótese de que o ingresso de καµαvρα
se tenha efetuado com a preservação da vogal baixa interna, ainda que por
curto período. Para que se admita a regra de mudança acima referida, há de
acatar-se necessariamente uma forma anterior ainda com a em latim, de tal
sorte que se possa normalmente enquadrar a mudança de a( para e( dentro da
regularidade que atingia a vogal baixa em sílabas abertas. A solução sofre pe-
queno revés se observarmos que, em sílaba interior aberta, o a( normalmente
passa a e ( e depois a i ( , como em *perfacio>*perfercio>perficio e
abago>abego>abigo (cf. FARIAS, 1970:182). No caso de came(ra, pois, o a(
precendente a r, proveniente ou não de rotacismo, passa a e(, como aconteceu
com *transdade>*tradare>tradere. Cumpre ainda notar que, para avalizar
essa hipótese de alteração fonética por dissimilação, haveremos igual e neces-
sariamente de admitir um prévio deslocamento sistólico que transformou o ter-
mo helênico em um proparoxítono latino.
Uma outra questão atinente à presença de came(ra e cama(ra em latim diz
respeito ao emprego das palavras nas variáveis de uso, tanto em língua oral
quanto em língua escrita. Observe-se que a forma cama(ra é atribuída pacifica-
mente ao latim vulgar, fato de que não se duvida aqui, sem que se fundamente
com clareza, entretanto, o motivo de essa variante com a( haver-se fortalecido
nos usos populares, em dissonância com a forma com e(, que se consolidou em
língua escrita. Em princípio, o fato reforça a tese de que, não obstante por
Câmara e Câmera 197

breve período, a vogal baixa interna do étimo grego se manteve em latim antes
de dissimilar para e.( Daí, teriam seguido curso paralelo a primitiva forma camar( a
e a alterada forma came(ra, sendo que a essa última se conferia maior prestígio
em registro literário.
O Appendix Probi, como sabemos, registra a correção came(ra non
camma(ra, clara evidência de maior prestígio da forma com e( em sermo
litterarius. Registrem-se, contudo, testemunhos de ambas as formas em al-
guns textos escritos, conforme nos informa o erudito lexicógrafo Guill. Freund
(FREUND,1860:399), fato que nos parece comprovar a existência de uma for-
ma primitiva no léxico latino com a vogal baixa interna. Nessa linha, revela-se
elucidativa a lição de Juan Corominas, para quem a forma came(ra é a normal
em latim escrito, mas cama(ra não só aparece como vulgarisco como também
em textos de autores hispânicos como Sêneca (cf. COROMINAS, 1954).
Saliente-se, por sinal, que os registros dessa forma não são tão raros em
textos de temário popular, como o Itinerario terrae sanctae, de Admnanus:
“Ecclesiae interior domus sine tecto, et sine camara, ad coelum sub aere nudo
patet” (CANGE, 1937:38). Diga-se, ademais, que durante o largo período ante-
rior ao século I a.C., quando floresce em magnitude a literatura latina, não se
podia falar em diferenças lexicais expressivas entre o sermo urbanus e o
sermo litterarius. Na verdade, não se há de esquecer de que a fonte do voca-
bulário prestigiado em norma culta escrita sempre foi o vocabulário popular
sedimentado pelo uso exemplar ao longo dos séculos (cf. MAURER JR., 1962).
A coexistência de variantes diastráticas do latim oral em cultos religiosos e nas
peças teatrais, sobretudo, favorecia o surgimento de formas lexicais em con-
corrência, fato que pode explicar a mudança gradual de cama(ra para came(ra
sem que o termo original se tenha elidido totalmente.
Em sua edição do Appendix, Serafim da Silva Neto (SILVA NETO,
1946:231) ocupa-se singularmente da nasal geminada1 na forma vulgar – a seu
juízo, uma pronúncia expressiva, similar a outros casos como *brutto>bruto;
*burriccu>burrico; camello>camelo etc. – sem que trace ao menos uma
linha para a questão da vogal átona interna. De qualquer forma, a presença da
correção came(ra non camma(ra no Appendix deixa supor que os gramáticos
latinos acreditavam ser a forma com a( uma corrupção secundária da forma
com e(, criada pelo falante como resultado de um processo de assimilação

1
Sobre a evolução –mm>mb (fr. chambre, cat. cambra), leia-se o substancioso texto Camara
non cammara (App. Pr. 84): la geminada latina –mm- em euskera, de Maria Jesús Pantoja
(PANTOJA, 2000).
198 Ricardo Cavaliere

vocálica. Essa hipótese, assim, compete com a anteriormente referida – de que


cama(ra tenha precedido a came(ra – como explicações cabíveis para a pre-
sença das duas variantes no léxico do latim. Não se elimine de todo, também, a
improvável pronúncia cama(ra por hipercorreção, ou mais possivelmente por
cultismo, numa tentativa de recuperar o étimo grego: “quod est graecos imitari”
(FORCELLINI, 1940).
Será justamente essa presença dual que justificará a disseminação
heteróloga de palavras hereditárias nas diversas línguas modernas que recebe-
ram o étimo latino, aqui com o radical em e( ali com o radical em a(. Na primeira
linhagem, registra-se o fluxo para o Norte, em que o e( prevalece no fr. chambre,
cat. cambra, no al. Kammer, no ing. camera, nesse último tão somente com o
sentido de máquina de fotografar e filmar. No tocante especificamente ao fran-
cês, evidencia-se que a forma chambre deriva do lat. came(ra (cf. LEBRUN
& TOISOUL, 1937), fato que reforça a tese de que ambas as formas came(ra
e cama(ra coexistiam nas vertentes diatópicas do latim vulgar, já que chambre
é termo hereditário. Saliente-se, por sinal, que não se pode descartar o desloca-
mento de ambas as formas para o francês antigo, a julgar pelos derivados
caméral e camériste em face de camarade (cf. LITTRÉ, 1956).
No tocante às vertentes do latim que se expandiram para o Oeste, especi-
ficamente às que estão nas fontes dos dialetos sulistas do italiano, e a que se
deslocou para a Península Ibérica, dando origem ao espanhol e ao português,
não obstante haja registro de ambas as formas, a considerada vulgar (esp.
cámara, port. câmara) parece constituir a fonte das palavras hereditárias. No
italiano moderno decerto predomina camera, mas nos dialetos da Córsega e da
Sicília o registro ordinário é de camara (cf. COROMINAS, 1954). Dessarte, a
variante com e nessas línguas pode inicialmente ter-se inscrito no espaço que
normalmente ocupam em linguagem culta os eruditismos, com posterior expan-
são para a língua corrente. No espanhol, por exemplo, a maioria dos termos que
compõem a família etimológica deriva do radical em a(: camarada (o que dor-
me na mesma cámara), camaranchón (local da casa onde se guardam coisa
velhas), camarera (criada) e camarero (chefe da camara do rei), camarín
alem de outras. A presença do derivado camerino, segundo Corominas, se
deve à influência do italiano (COROMINAS, 1954).
Não sem motivo, pois, o Diccionario de la lengua española, da Real
Academia (REA, 1984), destaca a forma cámara como principal, atribuindo-
lhe todos os sentidos conhecidos e vinculando-a ao étimo latino cama(ra. Do
ponto de vista semântico, entretanto, revela-se surpreendente que no primoro-
so dicionário o principal significado seja o de “sala ou cômodo principal de uma
Câmara e Câmera 199

casa”, a despeito de sua conhecida origem como “cômodo de repouso ou de


reclusão”. De qualquer forma, verifica-se que a primitiva noção de “cômodo
em forma arqueada ou abobadada” perdeu-se no tempo.
Finalmente, no tocante à presença da duplinha em português, há de con-
cluir-se que a disputa pela preferência do falante vem de longa data, de que
resultou uma progressiva reserva de significação para cada palavra no decurso
do tempo. A rigor, registram-se ambas em textos portugueses desde o século
XIV, com sensível prevalência da forma com a (cf. MACHADO, 1952; SIL-
VA, 1813), que desde logo ficou com o privilégio de designar o “cômodo de
dormir”. Por curiosidade, refira-se à expressão câmara cerrada que significa-
va a “quantia incerta que o marido promete a mulher de arras, ou talvez todo o
necessario para o adorno da camara da mulher, sentido de acordo com a lei de
9 de fev de 1643” (SILVA, 1813). Esse viés semântico é um legado da liturgia
matrimonial romana, a julgar pelo registro de camar( a como “dotalitium uxoris”
no Glossário de du Cange (CANGE, 1937).
O vocabulário de Bluteau ratifica a presença das duas formas em portu-
guês, estabilizada por longo período. Por sinal, Bluteau já pondera com uma
distinção semântica bem delineada dos usos de que ambos os termos gozam
em português, conferindo a câmara o sentido particular de “a casa, em que se
dorme”. Já no sentido de ente administrativo ou repartição pública, o clérigo
londrino aponta o uso indistinto de câmara ou câmera: “As casas, & o Tribu-
nal, em que o Presidente, Vereadores, &c. se ajuntão para tratar dos negócios
concernentes ao bem publico de hua cidade (...) De Jacinto Freire retira Bluteau
o seguinte passo: “Pedio vinte mil, Pardaos à Camera de Goa (BLUTEAU,
1712: 69).
A evolução semântica dos termos em português revela-nos uma progres-
siva predileção pela forma com a, que se encontra hoje com todos os sentidos
de maneira geral. O dicionário de Aurélio Buarque de Holanda (FERREIRA,
1970) confere 16 acepções para câmara, que vão desde o sentido de “compar-
timento ou aposento de uma casa e, em especial, o quarto de dormir” até “pes-
soa que opera a câmara de cinema ou televisão”, o que revela a grande área
semântica de uso da forma proveniente do latim vulgar. Diga-se o mesmo do
precioso léxico de Antônio Houaiss, não obstante seja esse menos detalhado
em expressões ou lexias em que consta nossa palavrinha.
Ambos os léxicos brasileiros, entretanto, falham no tocante à descrição de
usos ao atestarem a forma câmera, no português contemporâneo, como mera
variante de câmara, sem que se distingam as rigorosas restrições que a forma
com e hoje sofre na área semântica da terminologia administrativa ou jurídica.
200 Ricardo Cavaliere

Com efeito, no português do Brasil, não se admitem hoje expressões como


“Câmera dos Deputados”, ou “Câmera Cível, Câmera Criminal” – no sentido
de “órgão dos tribunais” –, já que o uso normativo impõe a forma com a como
exclusiva. O dicionário de Houaiss, em verdade, adverte que câmera “é de
emprego corrente especialmente nas acepções de ‘dispositivo ou aparelho óp-
tico’ em cine, foto e tv” (HOUAISS, 2001), o que efetivamente ocorre. Por
sinal, mesmo o recente Dicionário de usos, de Francisco da Silva Borba
(BORBA, 2002) que pretende cumprir papel mais acurado nessa área especí-
fica dos usos lingüísticos, deixa a desejar quanto à exata descrição semântica
das duas formas lexicais.
Enfim, a já referida preferência de câmera na acepção de máquina foto-
gráfica, máquina de filmar etc., a que já aqui nos referimos como provável
reingresso por empréstimo do inglês, constitui exemplo preciso desse processo
de fluxos e refluxos que a intensa troca lexical vem impondo às línguas contem-
porâneas. A hipótese se fortalece se observarmos que o mesmo fato é sintomá-
tico no alemão, em que, a par do vocábulo hereditário Kammer, registra-se hoje
a forma Kamera, emprestada ao ing. camera, para designar especificamente a
máquina de fotografar ou filmar (cf. HOEPNER, 2001:893).

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Câmara e Câmera 201

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ASPECTOS LEXICAIS DO PORTUGUÊS DO BRASIL NO SÉCULO XIX
Castelar de Carvalho*
UFRJ, ABF, ILP

1 – Panorama histórico-cultural

Para o Brasil, o século XIX começa verdadeiramente em 1808, com a


chegada de Dom João VI e da Corte portuguesa, hábil retirada estratégica do
Príncipe-Regente, em virtude da impossibilidade de enfrentar as tropas napo-
leônicas que invadiram a Península Ibérica. Com essa manobra política, D.
João resguardou-se da humilhação de cair prisioneiro dos franceses e, ao mes-
mo tempo, preservou o Império Colonial português, que passou a ser governa-
do a partir do Brasil.
A transferência da família real e do aparato administrativo da metrópole
para o Rio de Janeiro trouxe profundas modificações ao estatuto de Colônia em
que se encontrava o Brasil, elevado, a partir de 1815, à categoria de Reino
Unido ao de Portugal e Algarves, decisão histórica que veio a se revelar o
primeiro passo para a nossa posterior emancipação política, alcançada em 1822.
Aqui chegando, D. João promoveu, de imediato, a abertura dos portos ao
comércio internacional, medida que provocou não só repercussões econômi-
cas, mas também culturais, pois permitiu a entrada de um bem cultural impor-
tantíssimo: o livro, cuja importação e impressão eram proibidas durante todo o
período colonial. Foi nessa época que surgiu o primeiro jornal brasileiro, a Ga-
zeta do Rio de Janeiro, que circulou até 1822. Como assinala Boris Fausto
(2006:125),

A vinda da família real deslocou definitivamente o eixo administrativo da Colônia


para o Rio de Janeiro, mudando também a fisionomia da cidade. Entre outros
aspectos, esboçou-se aí uma vida cultural. O acesso aos livros e a uma relativa
circulação de idéias foram marcas distintivas do período.
* CASTELAR DE CARVALHO é professor adjunto (aposentado) de língua portuguesa da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de livros e ensaios, membro da Academia
Brasileira de Filologia e do Instituto de Língua Portuguesa do Liceu Literário Português.
204 Castelar de Carvalho

Durante toda a sua permanência no Brasil, até 1821, D. João, aclamado


rei em 1818 (após a morte de sua mãe, a rainha D. Maria I), lançou os funda-
mentos do que seria, após a Independência, o Estado nacional brasileiro, crian-
do inúmeras instituições administrativas, científicas e culturais, dentre as quais
merecem citação: as Escolas de Medicina e Cirurgia (Bahia e Rio de Janeiro),
a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, a Academia Militar e a de Marinha,
a Imprensa Régia, o Museu Nacional, a Biblioteca Real, embrião da futura
Biblioteca Nacional, a Escola de Belas Artes, o Jardim Botânico, a Escola de
Comércio. Importantes órgãos da administração e da justiça também foram
criados, como o Desembargo do Paço, o Conselho de Estado, o Banco do
Brasil e o Real Erário, mais tarde Ministério da Fazenda.
O monarca português incentivou também a criação de manufaturas nos
setores de tecido e de metalurgia, atividades antes proibidas na Colônia. Em
1816, a chegada da célebre Missão Artística francesa, integrada por importan-
tes artistas plásticos e arquitetos, trouxe extraordinário impulso a esse setor
cultural e constitui o núcleo de instituições hoje consagradas, como o Museu e
a Escola Nacional de Belas Artes. Destaque-se nessa Missão o nome de Jean
Baptiste Debret, autor do livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, pre-
cioso testemunho sociocultural e iconográfico do nosso país nas primeiras dé-
cadas do século XIX.
Mas a principal conseqüência histórica da presença da Corte portuguesa
no Rio de Janeiro foi a preservação da unidade política e territorial do Brasil,
que escapou assim da fragmentação sofrida pelas ex-colônias da América es-
panhola. A importância histórica, política e cultural de D. João VI para o Brasil
tem sido reconhecida e reavaliada nos últimos anos, pois, como afirma Hélio
Vianna (1975:367),

D. João, Príncipe-Regente e Rei de Portugal, Brasil e Algarves, por ter propiciado


e presidido a mais profunda transformação ocorrida em nossa História, a passa-
gem da fase colonial para a independente, dela é magna figura, sem dúvida.

A maior parte das instituições implantadas por D. João VI foi preservada


e ampliada durante o Primeiro e o Segundo Reinados. Em 1824, sob D. Pedro
I, que proclamou a nossa Independência, outorgou-se a primeira Constituição
do Brasil. Em 1827, foram criadas as Faculdades de Direito de Olinda e São
Paulo, que passaram a formar a elite intelectual brasileira, fato que, sem dúvi-
da, veio a repercutir na língua literária, contribuindo para aproximá-la da língua
falada no Brasil pelos nossos escritores. Em 1828, organizaram-se os Conse-
Aspectos lexicais do português do Brasil no século XIX 205

lhos Gerais das Províncias e o Supremo Tribunal de Justiça, hoje Supremo


Tribunal Federal. O conturbado e curto reinado de Pedro I (1822-1831) foi
marcado por movimentos de contestação à autoridade central, mas o Brasil
deles saiu incólume, preservando sua integridade política e territorial.
Durante o longo e profícuo reinado de D. Pedro II (1840-1889), pacificou-
se o país, consolidou-se a unidade política nacional e aperfeiçoou-se a estrutura
jurídica e administrativa do Estado. Importantes instituições culturais, criadas
ainda no período da Regência Una de Araújo Lima (Marquês de Olinda), foram
estimuladas ou ampliadas, como o Imperial Colégio de Pedro II (1837), “padrão
de ensino humanístico para todo o país”, no dizer de Sílvio Elia (2003:148), o
Arquivo Público (1837, hoje Arquivo Nacional) e o Instituto Histórico e Geo-
gráfico Brasileiro (1838), que foi, até o final do século XIX, a nossa mais impor-
tante instituição científica e literária, cujas sessões eram presididas, muitas ve-
zes, pelo próprio Imperador.
Homem sábio e incentivador das ciências e das artes, Pedro II criou ou
ampliou a Academia de Música, a Ópera Nacional, o Imperial Observatório, o
Museu Histórico Nacional, a Biblioteca Nacional, a Academia Imperial de Be-
las-Artes, a Escola Politécnica. Essas importantes instituições, todas de cará-
ter permanente, contribuíram para o incentivo da educação e da cultura entre
nós, constituindo inestimável legado da Monarquia à República, implantada em
1889. Sob o regime republicano, já no final do século XIX, em 1897, foi fundada
a Academia Brasileira de Letras, cujo presidente perpétuo é Machado de As-
sis, o grande romancista do Segundo Reinado.
É no século XIX que se acentuam as diferenças entre o português do
Brasil e o de Portugal, em que pese à alegada relusitanização do idioma após a
chegada da Corte portuguesa em 1808. Apesar de as primeiras gramáticas de
português publicadas entre nós valorizarem a vernaculidade, ressaltando a exis-
tência de um fundo lingüístico comum entre as duas modalidades da língua
portuguesa, essas diferenças, sobretudo as prosódicas, lexicais e sintáticas (es-
tas, em parte), suscitarão debates e polêmicas em torno da célebre questão da
impropriamente chamada “língua brasileira”. Neste trabalho, vamos nos ater
às características gerais que distinguem o léxico do português do Brasil empre-
gado na língua literária pelos nossos principais escritores, a partir do Romantismo.

2 – A contribuição renovadora do Romantismo

Domingos José Gonçalves de Magalhães é considerado o introdutor do Ro-


mantismo no Brasil, em 1836, com seu livro Suspiros poéticos e saudades. Maga-
206 Castelar de Carvalho

lhães, Araújo Porto Alegre e outros lançaram a revista Niterói, na qual propunham
uma renovação estética de cunho nacionalista para a literatura brasileira.
Nosso Romantismo coincidiu com o período pós-Independência, em que
havia um forte sentimento de auto-afirmação nacionalista (uma das marcas
dessa escola) e de lusofobia. Além disso, nossa formação étnica, histórica,
nosso meio ambiente, nossa inclinação ao sentimentalismo e à sensibilidade,
tudo contribuiu para que o Romantismo se adaptasse tão bem entre nós, tor-
nando-se um movimento bastante popular, pois com ele identificaram-se pro-
fundamente, desde cedo, o gosto e a alma brasileira. Para nós, o Romantismo
significou, sobretudo, a independência literária, propiciou o surgimento de vá-
rias gerações de homens de letras com o pensamento voltado para o Brasil e,
no plano da linguagem, permitiu uma adequação maior entre a língua escrita e
a língua falada.
No campo da poesia, destaca-se o nome do poeta maranhense Gonçalves
Dias (1823-1864), autor da célebre Canção do exílio. Considerado o consoli-
dador da escola romântica no Brasil, sua obra poética, a par do lirismo amoro-
so, caracteriza-se pelo nacionalismo, o culto da natureza e o indianismo, sendo
ele autor de um dicionário da língua tupi.
Em carta a Pedro Nunes Leal, escrita em 1857, Gonçalves Dias (1959:826)
reconhece a importância do estudo dos escritores lusitanos (“Que se estudem
muito e muito os clássicos”), mas, coerente com a linha nacionalista do Roman-
tismo, não se esquece de valorizar o português do Brasil: “A minha opinião é
que, ainda sem o querer, havemos de modificar altamente o português”. E mais
adiante, enfático: “E que, enfim, o que é brasileiro é brasileiro, e que cuia virá
a ser tão clássico como porcelana, ainda que a não achem tão bonita”. A
propósito, atente-se para a apossínclise “que a não achem”, colocação prono-
minal clássica, à lusitana, contrária à índole prosódico-sintática do português do
Brasil, que nesses casos prefere a próclise: “que não a achem”. Trata-se de
colocação freqüente nos nossos escritores do século XIX, sinal de que as ousa-
dias lingüísticas do Romantismo tinham seus limites. Sinal também de que a
tese da chamada “língua brasileira” nunca passou de um grande equívoco.
No campo da prosa romântica, destaca-se o nome do romancista cearen-
se José de Alencar (1829-1877). Considerado o patriarca da literatura brasilei-
ra, seus romances fizeram extraordinário sucesso, originalmente em folhetins e
depois sob a forma de livro. Além de abranger os grandes temas do Romantis-
mo brasileiro, sua obra revela-se inovadora, incorporando termos indígenas e
regionalistas, a par de uma sintaxe mais próxima do português falado no Brasil.
Na questão da linguagem, José de Alencar se destaca pelo esforço desen-
volvido em prol da libertação dos rígidos cânones gramaticais lusitanos, batendo-
Aspectos lexicais do português do Brasil no século XIX 207

se pela defesa de um estilo brasileiro, mas dentro dos limites do sistema lingüís-
tico português e não de uma suposta “língua brasileira”, absurdo que nunca lhe
passou pela cabeça. Aliás, tanto no pós-escrito de Diva e de Iracema, quanto
no prefácio de Sonhos d’ouro, a posição de Alencar revela-se bastante equi-
librada, como lembra Gladstone Chaves de Melo (1972:23):

Em tais escritos, é bem de notar que nem uma vez falou em “língua brasileira”:
sempre se refere à “língua portuguesa”. Fala, sim, em “dialeto brasileiro”, e em
“abrasileiramento” da língua portuguesa. Reagiu, e quase sempre com assaz de
razão, contra o purismo exagerado, contra a caturrice gramatical, contra a supers-
tição do classicismo.

Por exemplo, antecipando um ponto de vista atual da ciência lingüística a


respeito da colocação dos pronomes oblíquos à brasileira, justifica-se Alencar,
no prefácio de Senhora, tratando a questão como um problema de estilística
fônica e não propriamente de gramática, por se basear antes no ritmo e na
harmonia da frase que na rigidez canônica: “A regra a respeito da colocação do
pronome e de todas as partes da oração é a clareza e elegância, eufonia e
fidelidade na reprodução do pensamento”.
No período que se segue ao Romantismo, iniciado em 1881, com a publi-
cação de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1839-
1908), livro que inaugura o Realismo entre nós, nota-se uma certa tendência
para uma retomada do purismo lingüístico, para uma volta aos modelos clássi-
cos da língua, sobretudo nos poetas parnasianos. Machado de Assis, que es-
treou durante o Romantismo, mas se firmou como o nosso maior escritor a
partir do Realismo, mantém, contudo, uma posição bastante equilibrada no que
diz respeito à questão da língua, como era, aliás, do seu feitio. Buscando o
equilíbrio entre puristas e renovadores, Machado (1997:809, v. 3) pondera, no
ensaio “Instinto de nacionalidade”, escrito em 1873: “Nem tudo tinham os anti-
gos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se
enriquece o pecúlio comum”. Mas a senda de liberdade criativa, aberta pelo
Romantismo, estava consolidada, e seus postulados nacionalistas e libertários
encontrarão ressonância nas propostas renovadoras do Modernismo de 1922.

3 – A língua literária no século XIX


A espinha dorsal de uma língua é o seu sistema morfossintático. Nesse
sentido, as diferenças entre o português de Portugal e o do Brasil praticamente
208 Castelar de Carvalho

inexistem ou são mínimas. Nossas diferenças em relação à modalidade lingüís-


tica empregada pelos portugueses residem, sobretudo, nos planos do vocabulá-
rio cultural e da fonética ou, mais propriamente, no da prosódia (ritmo de fala
mais rápido e tendência para a síncope das vogais pré-tônicas em Portugal). O
plano da sintaxe, principalmente a de regência e a de colocação, também apre-
senta algumas diferenças específicas, mas a verdade é que o sistema lingüísti-
co é o mesmo. Conclui-se, portanto, que os nossos escritores escreveram suas
obras em língua portuguesa com estilo brasileiro. É esse estilo, que consagra o
princípio da diversidade na unidade, que buscaremos apontar, em seu aspecto
lexical, nas obras dos nossos principais escritores do século XIX, nas quais se
destacam os chamados brasileirismos de origem indígena e africana.
Tupinismos – Foram largamente empregados pelos escritores românti-
cos adeptos da corrente indianista, com destaque para Gonçalves Dias e José
de Alencar. Gladstone Chaves de Melo (1981:43), em livro clássico, cuja pri-
meira edição é de 1946, estima em cerca de 10.000 os vocábulos indígenas, a
maioria de origem tupi, incorporados ao português do Brasil. Mais recentemen-
te, Gladstone (1990:112) reduz esse número, “incluindo-se os topônimos”, para
algo em torno de 4.500 tupinismos.
Os tupinismos encontram-se principalmente nos campos semânticos da
flora (abacaxi, carnaúba), fauna (araponga, capivara), nos topônimos
(Abaeté, Guanabara), antropônimos (Araci, Ubirajara), usos (arapuca),
costumes (moqueca), crenças (caipora), doenças (catapora) e objetos de
uso geral (jacá). Nos poemas épico-indianistas de Gonçalves Dias, a exempli-
ficação já começa pelos próprios títulos: Os Timbiras, I Juca-Pirama (“Aque-
le que há de ser morto”), O canto do piaga.
Em Os Timbiras, encontram-se, dentre outros, os seguintes termos: piaga
(pajé, feiticeiro; termo dos índios do Caribe, adaptado por Gonçalves Dias),
tupã (raio, trovão, por extensão, deus), cauim (bebida à base de mandioca e
milho), pocema (grito de guerra dos indígenas), muçurana (corda com que se
amarrava o prisioneiro), boré (flauta de bambu). No Canto do piaga, apare-
cem: anhangá (demônio, gênio do mal), manitô (penates, espírito tutelar entre
os índios da América do Norte; Gonçalves Dias, consciente da universalidade
da corrente indianista entre os românticos, não se limitava aos nossos tupinismos),
maracá (chocalho), taba (aldeia), embira (fibra de certas árvores, usada para
tecer cordas), cipó (planta trepadeira), coati ou quati (mamífero carnívoro).
Em I-Juca-Pirama, temos: canitar (penacho, cocar), enduape (fraldão de
penas usado pelos guerreiros), iverapeme (também chamada de tacape ou
tangapema = espécie de clava), tapuias (os antigos tupis). Trata-se de um
Aspectos lexicais do português do Brasil no século XIX 209

pequeno exemplário, que pode ser ampliado mediante consulta ao “Dicionário


da língua tupi”, do próprio Gonçalves Dias (1959:843). Recomendamos, tam-
bém, o Dicionário histórico das palavras portuguesas de origem tupi, de
A. G. Cunha (São Paulo: Melhoramentos/EDUSP, 1978).
Em José de Alencar, os tupinismos são mais numerosos que em Gonçal-
ves Dias e vêm acompanhados de notas explicativas. Algumas são minuciosas,
revelando certa erudição etimológica resultante do trato com a língua dos ín-
dios. Nos romances indianistas de Alencar (O guarani, Iracema e Ubirajara),
os termos indígenas desempenham importante papel estilístico, pois imprimem
cor local aos episódios narrados, prestando-se a ousadas imagens poéticas e
criando a verossimilhança estética própria do ideário romântico. O romance
Iracema, aliás, é considerado um verdadeiro poema em prosa.
Os termos encontrados são designativos de plantas, animais, objetos, tri-
bos, nomes próprios, etc. De O guarani, selecionamos: Peri (junco silvestre),
Ceci (magoar, doer), ticum ou tucum (palmeira), urutau (coruja), pitima (ta-
baco), inúbia (trombeta de guerra), tangapema (tacape), irara (gato selva-
gem), bororé, uirari, curare (venenos), guanumbi (beija-flor), sapucaia,
pequiá (árvores muito altas). De Ubirajara, extraímos, além do próprio título
do romance, nomes próprios, como Araci, Pojucã, Jandira, Juçara; nomes
da fauna e da flora: nandu ou nhandu (ema), guaxinim (pequeno mamífero),
manati (peixe-boi), jabuti (réptil), airi (espécie de palmeira); objetos: igaçaba
(pote de barro); costumes: pocema (grito de guerra); fenômenos naturais:
pororoca (estrondo), dentre outros.
De Iracema, o mais popular romance indianista de Alencar, destacam-se
os nomes próprios: Araquém, pai de Iracema, Caubi, seu irmão, Moacir, filho
de Iracema e Martim. O nome da protagonista, forjado por Alencar, tem sua
formação explicada no capítulo II, em forma de “etimologia poética”: “Irace-
ma [de ira “mel” e ceme “lábios”], a virgem dos lábios de mel, que tinha os
cabelos mais negros que a asa da graúna [ave de canto mavioso]. O favo da
jati [espécie de abelha] não era doce como seu sorriso”. Encontram-se tam-
bém topônimos (Ceará “canto da jandaia”), objetos (camucim “pote”), nomes
da flora (andiroba “árvore que dá um azeite amargo”), da fauna (sucuri “ser-
pente”), de acidentes geográficos (Ibiapaba, serra entre o Ceará e o Piauí), de
rios (Jaguaribe), de costumes (moquém “assado na labareda”), de tribos (Tu-
pinambás). São termos freqüentes em Iracema, todos meticulosamente expli-
cados por Alencar, que criou com o nome da personagem um anagrama de
América. Nesse sentido, o nome Iracema pode ser entendido também como
um símbolo do indígena americano.
210 Castelar de Carvalho

Castro Alves (1847-1871), o poeta dos escravos, emprega também alguns


poucos tupinismos, designativos, em geral, da natureza brasileira: boré (flauta
de bambu, em “Jesuítas”), juriti (ave, em “A cruz da estrada”), jaguar (onça
pintada, em “Saudação a Palmares”), ouricuri (palmeira, em “Virgem dos úl-
timos amores”). No poema “A morte de Tapir”, Olavo Bilac (1865-1918), prin-
cipal representante do nosso Parnasianismo, emprega diversos tupinismos:
enduape (fraldão de penas), urucu (fruto vermelho), aiucara (colar), uapi
(tambor), acanguape (cocar), dentre outros. Também no soneto intitulado “A
Gonçalves Dias”, homenagem ao poeta maranhense, Bilac faz uso expressivo
de termos como tacape (clava), maracás (chocalhos), inúbia (trombeta de
guerra), canitar (penacho).

Africanismos –Substrato lingüístico transmitido pelo dialeto semicrioulo


falado pelos nossos escravos, os africanismos têm pouca representatividade na
língua literária, apesar de no século XIX já estarem, em sua maioria, incorpora-
dos à nossa língua corrente. Podem ser encontrados nas obras dos escritores
do período, mas se trata de um uso episódico, e não deliberado e sistemático,
como aconteceu com os tupinismos. Provavelmente porque os românticos, em
sua busca da identidade nacional, tinham em mente apenas a valorização do
elemento étnico brasileiro por excelência, que era, segundo eles, o índio. Mais
tarde, já no século XX, é que os africanismos serão valorizados estilisticamente
nos poemas de Jorge de Lima e Guilherme de Almeida, por exemplo. Coelho
Neto também usou em suas obras inúmeros termos de origem africana. A par-
tir da 2ª geração modernista (1930), já são mais freqüentes os africanismos,
como é possível constatar, por exemplo, nos romances de Jorge Amado.
Jacques Raimundo (1933) e Renato Mendonça (1935) fizeram estudos
pioneiros a respeito do assunto, relacionando cerca de três centenas de vocá-
bulos. Já para Gladstone Chaves de Melo (1990:110), esse número não passa
de aproximadamente 250 africanismos, integrados e adaptados ao nosso léxi-
co. De qualquer forma, um número bastante pequeno se comparado com os
tupinismos. Mais recentemente (2001), a professora baiana Yeda Pessoa de
Castro publicou pesquisa muito bem fundamentada, intitulada Falares africa-
nos na Bahia (v. bibliografia). Apesar do título, os termos arrolados, em sua
maioria, não se limitam à terra natal da autora, pois, na verdade, são de uso
corrente em outras regiões do Brasil.
Encontramos africanismos esporádicos em alguns autores. Por exemplo,
em Castro Alves, o substantivo senzala, no poema A canção do africano. No
romance regionalista O sertanejo, José de Alencar emprega a palavra samba,
Aspectos lexicais do português do Brasil no século XIX 211

no cap. XV da 2ª parte. O termo mucama aparece no cap. XXI de Ressurrei-


ção, de Machado de Assis. Neste mesmo autor, em Memórias póstumas de
Brás Cubas, cap. LXVIII, encontram-se dois exemplos representativos: o “de-
funto autor” Brás Cubas usa o termo moleque para se referir a um ex-escravo
seu, o Prudêncio. Este, por sua vez, emprega o termo quitanda. Observe, a
propósito, como Machado recorre a um desvio gramatical de sintaxe, comum
no português coloquial do Brasil, para poder reproduzir com fidelidade a fala
espontânea do personagem: “Ainda hoje deixei ele [e não deixei-o] na qui-
tanda, enquanto eu ia lá embaixo na [e não à] cidade”. O parnasiano Raimun-
do Correia (1860-1911) deu a um dos seus mais famosos poemas o título de
Banzo (Nostalgia).
No cap. VI de Brás Cubas, Machado põe um africanismo na boca da
personagem: “Ora, defuntos! respondeu Virgília com um muxoxo (gesto de
enfado)”. Em Quincas Borba, cap. LXVIII, diz o narrador que “Maria Bene-
dita estava nos seus calundus (de mau humor)”. Cumpre mencionar que mui-
tas dessas palavras africanas, uma vez incorporadas ao nosso idioma, “vesti-
ram-se à portuguesa morfologicamente”, como lembra Gladstone Chaves de
Melo (1981:88). É o caso, dentre outros, do verbo cochilar, que aparece con-
jugado na tradução que Machado de Assis fez para o poema The raven (O
corvo), de Edgar Allan Poe: “Mas como eu, precisando de descanso,/Já cochi-
lava...”.
Os africanismos lexicais distribuem-se por diversos campos semânticos,
representativos das múltiplas atividades desempenhadas pelos negros escra-
vos, que tiveram um contato mais íntimo e mais duradouro com os senhores
brancos do que os índios. Desse longo contato resultou a profunda influência
africana na cultura brasileira em geral, assunto magistralmente estudado por
Gilberto Freyre no livro clássico Casa-grande & senzala. Termos de uso cor-
rente entre nós podem servir de exemplo, como: acarajé, angu, babá, bangüê,
bunda, caçamba, cachaça, cachimbo, caçula, candomblé, camundongo,
dendê, dengue, exu, fubá, Iemanjá, lundu, macumba, mandinga,
marimbondo, moleque, muxoxo, orixá, Oxum, quilombo, quitanda, quitute,
samba, senzala, tanga, umbanda, vatapá, Xangô, xingar, zumbi. Alguns
podem ser encontrados nas obras da literatura brasileira do século XIX, mas
não fazem parte de um ideário estético, conforme ressalvamos acima.

Arcaísmos – A tendência dos românticos para a evasão no tempo e no


espaço levou-os, por motivação estilística, a empregar diversos arcaísmos, como
se vê, por exemplo, no poema Sextilhas de Frei Antão, em que Gonçalves
212 Castelar de Carvalho

Dias apresenta um repertório de termos arcaicos de diferentes fases da língua.


Alguns exemplos: agiolhar-se (ajoelhar-se), i (aí), arruído (ruído), assi (as-
sim), aspeito (aspecto), bem quista (benvinda), comemorança (comemora-
ção), entonces (então), giolho (joelho), moimento (monumento), pera (para),
praticar (conversar), remembrança (lembrança), soidão (solidão), sembrar
(semelhar), valeroso (valoroso).
Ainda de Gonçalves Dias, no poema Dies irae, temos: “Deus ofeso (ofen-
dido)/Tira os olhos do mundo, e o mundo há sido”. Extraímos do I-Juca-Pirama
os seguintes exemplos: “Aos golpes do imigo (inimigo)/Meu último amigo,/Sem
lar, sem abrigo,/Caiu junto a mi (mim)”; “Não vil, não ignavo (preguiçoso),/
Mas forte, mas bravo”; “No centro da taba se estende um terreiro,/Onde ora
(agora) se aduna o concílio guerreiro”; “São rudos (rudes), severos, sedentos
de glória”; “Não era nado (nascido) o sol quando partiste.”; “Entanto as mu-
lheres com leda (alegre) trigança (pressa)...”. No poema Tabira, encontra-
se o advérbio mal (no sentido de “gravemente”) modificando o adjetivo verbal
feridos: “Hão-de os teus, acossados nas matas,/Malferidos, sangrentos,
ignavos (fracos)...”. Aliás, Machado de Assis também recorreu a esse adjeti-
vo composto, de sabor arcaico, no célebre soneto A Carolina: “Que eu, se
tenho nos olhos malferidos/Pensamentos de vida formulados,/São pensamen-
tos idos e vividos.”.
O advérbio arcaico asinha (depressa) aparece em Queixumes, também
de Gonçalves Dias: “Não te fosses de mim tão asinha”. O mais expressivo
emprego desse advérbio pelos românticos ocorre no comovente poema Cântico
do calvário, de Fagundes Varela (1841-1875): “Escada de Jacó serão teus
raios/Por onde asinha subirá minh’alma”. O verbo arrear, no sentido de “en-
feitar”, foi empregado por Castro Alves no poema Lúcia: “Na formosa estação
da primavera/Quando o mato se arreia mais festivo...”.
No simbolista Cruz e Sousa (1861-1898), no poema Litania dos pobres,
encontra-se aspeitos (aspectos), termo usual em Camões: “Que trazeis magos
aspeitos/e o vosso bando é de eleitos”. Alberto de Oliveira (1857-1937),
parnasiano, também recorre a esse arcaísmo em um poema com título em latim
(Per tenebras “Pelas trevas”): “Noite, à beira do mar. O vulto e aspeito/Do
mar bem não se via.”.

Neologismos – No capítulo dos neologismos, destacam-se os poetas sim-


bolistas. Visando a aproximar a poesia da música, um dos traços marcantes
dessa escola, criam vocábulos que nem sempre obedecem às regras gramati-
cais ou à lógica semântica, uma vez que a preocupação primeira é traduzir
Aspectos lexicais do português do Brasil no século XIX 213

estados emotivos ou criar palavras impregnadas de sonoridade. É o caso, por


exemplo, de Cruz e Sousa, em cujos poemas o léxico virtual é constituído de
criações curiosas, formadas por substantivos abstratos: crepusculamento,
neblinamento, remotividade, silamento, tantalismo, triunfamentos; adjeti-
vos: dolências beethovínicas, garganta bourbônica, mar espumaroso, pureza
hostial, céu lirial, meneios pantéricos, visões volúpicas, ocasos purpurais;
verbos: liriar, melancolizar, nirvanizar, notambular, tentaculizar, violinar;
advérbios: pulverulentamente, soluçantemente, torcicolosamente. Como se
vê, Cruz e Sousa antecipa o emprego de um recurso estilístico que seria explo-
rado mais tarde por Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa, isto é, o
da criação vocabular expressiva.

Coloquialismos – Como não podia deixar de ser, o léxico vernáculo da


língua comum constitui a base expressional da nossa língua literária, mas a fala
popular, ou como se diz atualmente, a oralidade, com suas inovações e seu
colorido, encontra espaço em autores do período, conferindo ao texto um tom
espontâneo e expressivo. Embora a maior parte dos exemplos aqui citados
faça parte do discurso dos personagens e não do narrador, eles são válidos
porque documentam no texto literário um aspecto da língua oral em uso no
português brasileiro do século XIX.
Memórias de um sargento de milícias (1853), de Manuel Antônio de
Almeida (1831-1861), um romance realista em pleno Romantismo, registra ter-
mos e expressões de uso corrente “no tempo do Rei”, ou seja, no período em
que D. João VI esteve entre nós. Muitos dos exemplos a seguir permaneciam
em vigor na época da publicação do romance: alhada (situação difícil),
arrenegar (amaldiçoar), carola (beato), capadócio (malandro), escabriado
(desconfiado), ganchos (ganhos avulsos), lambada (pancada), lambeta (adu-
lador, mexeriqueiro), malquetrefe (homem vil), moafa (bebedeira), patuscada
(festa), quebranto (mau-olhado), sarilho (confusão), súcia (gente ordinária),
valdevinos (vadio), xilindró (cadeia). Expressões e ditados populares tam-
bém são freqüentes: bater com a língua nos dentes (cometer uma indiscri-
ção), botar panos quentes (encobrir erros), chorar na cama que é lugar
quente (arrepender-se de um erro), com a boca na botija (ser pego em fla-
grante), casa de pasto (restaurante, pensão), mau-olhado (inveja), papa-missas
(indivíduo beato), trepa-moleque (penteado feminino), ver estrelas (sentir dor),
ver-se em calças pardas (ver-se em apuros).
No romance O cortiço (1890), o escritor maranhense Aluísio Azevedo
(1857-1913), ao reproduzir a fala espontânea dos moradores da estalagem,
214 Castelar de Carvalho

oferece diversos exemplos da linguagem popular, alguns reveladores da ten-


dência à animalização dos personagens, própria do Naturalismo: baiacu da
praia, bestas no coito, galinha podre, grande besta, gente danada para
parir, pedaço d’asno, perua choca, praga de piolhos, pareciam ratas, que
vá para o diabo que a carregue!, sua vaca, dentre outros. Às vezes, o dis-
curso narrativo toma liberdades extremas, resvalando para a linguagem chula,
como se lê no cap. XXI: “Exclamava uma delas, com o pequeno seguro entre
as pernas a encher-lhe a bunda de chineladas”. Ou nesta outra, do cap. VIII:
“– Sai daí, safado! Toca lá, no que quer que seja, que te arranco a pele do
rabo!”. Nesse mesmo capítulo, o autor emprega, em seu próprio discurso, um
coloquialismo: “Ele tinha “paixa” [regressivo de paixão] pela Rita”. A forte
sensualidade animal presente no livro aparece em passagens como esta, do
cap. XV, que descreve o ápice da relação sexual de Jerônimo e Rita: “E com
um arranco de besta-fera caíram ambos prostrados, arquejando.”.
Em Quincas Borba, cap. L, Machado de Assis usa um termo coloquial
para se referir a um personagem enfadonho: “O Siqueira é um cacete, mas
paciência”. Neste mesmo romance, cap. CLXXIX, um dos personagens refe-
re-se à loucura de Rubião empregando um coloquialismo irônico: “– Como vai
o gira (o louco)? – O gira vai bem”. A propósito, é oportuno mencionar o
estudo clássico de Mattoso Câmara Jr. (Ensaios machadianos. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979) a respeito dos termos “cão” e “cachorro” em
Quincas Borba. Mattoso chama a atenção para o valor erudito do primeiro e
o coloquial do segundo e mostra como Machado explora estilisticamente essa
dicotomia lexical.
Outra fonte importante para o estudo da linguagem coloquial-popular em-
pregada no Rio de Janeiro, nas últimas décadas do século XIX, são as peças do
teatro de revista. Do livro Arthur Azevedo: a palavra e o riso (Rio de Janei-
ro: UFRJ/Perspectiva, 1988), de Antônio Martins de Araújo, extraímos os se-
guintes exemplos: bilontra (malandro), bestunto (cabeça), canoa (batida po-
licial), chinfrim (ordinário), mina (mulher de malandro), morcegada
(guardas-noturnos), tribofe (pessoa fracassada). Abundam também as frases
feitas: comer arara (deixar-se enganar), da pá virada (indivíduo turbulento),
arranjar/fazer gancho (arranjar-se na vida), dar cabo do canastro (assas-
sinar alguém), dar com a língua nos dentes (cometer uma indiscrição). O
linguajar caipira também aparece caricaturado na fala dos personagens de Arthur
Azevedo (1855-1908): “O janjão foi recrutado/Para a Guarda Nacioná;/Onte
eu vi ele fardado:/Parecia um generá”.
Aspectos lexicais do português do Brasil no século XIX 215

Latinismos – Embora a estética subjetiva do Romantismo rejeitasse o


objetivismo da cultura clássica, o latim não deixou de exercer irresistível fascí-
nio sobre os escritores do período, que empregaram em suas obras vocábulos
eruditos de base latina incorporados ao português, a partir dos séculos XV e
XVI (Renascimento). Às vezes, os latinismos são reproduzidos no original.
Trata-se de termos ou expressões empregados com finalidade estilística de
realce, de nobilitação do texto ou de prática da intertextualidade.
Em Gonçalves Dias, por exemplo, encontram-se, dentre outros: gáudio
(alegria), antiste (sacerdote), acerbo (áspero), álacre (alegre), álgido (frio),
ignoto (desconhecido), estulto (insensato), miserando (deplorável), nefando
(execrável), pulcro (belo), pávido (medroso), se aduna (se reúne), vesano
(insensato), vate (poeta). Alguns são compostos: alvinitente, flamívomo,
ignívomo, sitibundo. Em Iracema, de José de Alencar, aparecem grupos no-
minais alatinados, formados com substantivos ou adjetivos eruditos do tipo: co-
piosas libações (ingestão abundante de bebida), ádito agreste (lugar rústico),
mão lesta (mão ligeira), umbria das serras (lado sombrio das serras), vetusta
floresta (floresta muito antiga), crebros soluços (soluços freqüentes), rúbido
olhar (olhar ardente), ósculo ardente (beijo ardente), tépido ninho (ninho acon-
chegante), recôndito sítio (lugar oculto), coração pressago (que tem
premonição).
Em Fagundes Varela, no Cântico do calvário, lê-se: “Não mais! a areia
tem corrido, e o livro/De minha infanda (medonha) história está completo”.
Em Castro Alves, encontram-se: túmidos (inchados), cerúleos (azuis), pávido
(medroso), vetusta (muito velha), plangentes (chorosos), hibernal (frio), plaga
(praia, região). No poema O nadador, diz o poeta baiano: “O nadador intrépi-
do/Vos toca as tetas cérulas...”. No Navio negreiro, encontramos musa
[helenismo latinizado] libérrima e lúgubre coorte. Conhecido poema de Cas-
tro Alves tem seu título em latim: Sub tegmine fagi (Sob a sombra da faia).
Os parnasianos, que tinham como princípio estético o culto da Antigüidade
Clássica, empregam latinismos adaptados ao vernáculo ou no original, como se
vê nos títulos dos poemas de Olavo Bilac: Via Lactea (Via Láctea), Abyssus
(Abismo), Sahara Vitae (Vidas no Saara), Inania Verba (Palavras inúteis),
Mater (Mãe), Vanitas (Vaidade), In extremis (Nos extremos), Requiescat
(Descanse), Vulnerant omnes, ultima necat (Todas ferem, a derradeira mata).
Em Delenda Carthago (Cartago deve ser destruída), Bilac recorre a diversos
latinismos, designativos de termos bélicos: pugna (luta), machadinha bipennata
(de dois gumes), armipotente (poderosa nas armas), bucina (trombeta mili-
tar), eneatores (tocadores de trombeta), férrea squammata (malha de ferro),
216 Castelar de Carvalho

gládio (espada), pilum (dardo). Mesmo em um poema de cunho indianista,


como A morte de Tapir, não faltam termos alatinados: plúmbeo sono, crebro
murmúrio, árvore anosa, púrpuras [helenismo latinizado] ondeantes.
Raimundo Correia, outro parnasiano, também emprega latinismos nos tí-
tulos de seus poemas: Coerulei oculi (Olhos azuis). Em Plenilúnio, descreve
a lua cheia usando adjetivos de base erudita: disco argênteo, fúlgida névoa,
feral lume, noctâmbula aparição. As flores são lunárias, o perfume é letal, o
poeta é cogitabundo.
Cruz e Sousa, representante máximo do nosso Simbolismo, cultiva um
vocabulário erudito, muito ao gosto dessa escola, na qual os latinismos ocupam
lugar de destaque, como se constata nos grupos nominais extraídos de seus
poemas. Note-se a preferência pelos adjetivos proparoxítonos ligados à área
sensorial, à música ou à religiosidade, traços marcantes da estética simbolista:
beijo níveo, clarões álacres, consciências nefandas, fantasmas noctívagos,
frígidos sarcasmos, lácteos rios, lânguido abandono, mádidas frescuras, óleos
cândidos, prelúdios místicos, rórida camélia, rútilas fanfarras, risadas van-
dálicas, tábido pecado, torturas miserandas, trêmulos violinos, torres
formidandas. Substantivos ligados à religiosidade também são usados: âmbulas
sagradas (vasos sagrados), Foederis arca (Arca da aliança), Litania [ladai-
nha] dos pobres, Regina coeli (Rainha do céu). Do poema Lua, seleciona-
mos: clâmides (manto; helenismo latinizado), finíssimas dalmáticas (túnicas),
flórido noivado, lânguidos clarões, névoas frígidas, prónubas (de noiva)
alvuras, siderais abóbadas cerúleas, tristeza mórbida. Na poesia de Cruz e
Sousa, colhem-se latinismos quase que ao acaso.
Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), também simbolista, não satisfeito
em empregar termos latinos nos seus poemas, inclusive nos títulos e nas epígra-
fes, latinizou o próprio nome de batismo, Afonso Henriques da Costa Guima-
rães. Em seu famoso poema A catedral, encontram-se expressões do tipo:
catedral ebúrnea, hialino orvalho, lúgubres responsos, formadas com adjeti-
vos eruditos de base latina. Em seus poemas, são comuns sintagmas nominais
semelhantes: áureo palácio, luar noctívago, lírio albente, peito miserando,
pássaro canoro. A poesia de Alphonsus, impregnada de religiosidade, apresen-
ta diversas expressões do vocabulário litúrgico, como, por exemplo, immaculata
(imaculada), magnificat (enaltece), responsorium (responsório), requiescat
in pace (descanse em paz).
O nosso Machado de Assis também cultivou seus latinismos no original,
embora mais discretamente, conforme o seu feitio, por meio de citações ou dos
títulos de capítulos de seus romances e contos. No seu caso, a motivação é
Aspectos lexicais do português do Brasil no século XIX 217

geralmente a prática da intertextualidade, estilema muito freqüente em suas


obras. Por exemplo, em Helena, cap. XV, cita um verso da Bucólica III, 93, do
poeta Virgílio: Latet anguis in herba (A serpente se esconde no arbusto). No
conto “Teoria do medalhão” (Papéis avulsos), o pai, aconselhando o filho a
usar citações latinas para tornar um discurso vazio mais “pomposo”, sai-se
com este lugar-comum: Si vis pacem, para bellum (Se queres a paz, prepara-
te para a guerra). Outras vezes, Machado cita o Eclesiastes, livro do Antigo
Testamento, uma de suas leituras preferidas: Nihil sub sole novum ([Não há]
nada de novo sob o sol; cap. 1, vers. 9), como se vê na crônica “Salteadores da
Tessália”, em Páginas recolhidas. No Brás Cubas, o título do cap. LXXXIX
é In extremis (Nos extremos). No célebre conto “O alienista” (Papéis avul-
sos), um dos capítulos intitula-se Plus ultra (Mais além). Em Quincas Borba,
cap. CXI, cita a célebre frase de Júlio César: “Alea jacta est” (A sorte está
lançada).

Estrangeirismos – Os empréstimos a línguas estrangeiras aparecem


em várias obras publicadas no século XIX. Refletem as influências sociocultu-
rais sofridas pelo português do Brasil, sobretudo aquelas recebidas da França,
os chamados galicismos, usados uns na grafia original, outros já adaptados ao
nosso sistema ortográfico. Lembremos que foi na França que surgiram ou que
dela se irradiaram as escolas literárias dominantes nesse século. Apesar de
combatidos pelos puristas, muitos desses galicismos, de uso geral, acabaram
por se incorporar à língua corrente, perdendo os falantes, com o tempo, a cons-
ciência de sua origem francesa. Alguns exemplos que podem ser encontrados
nas obras dos escritores do período: abajur, atelier, bibelô, bijou (jóia), bu-
quê, chique, cocote (meretriz), coquete (mulher vaidosa), coupé (carruagem),
croquete, detalhe, dossiê, elite, escroque (vigarista), nouveau-riche (novo-
rico), pince-nez (óculos), peignoir (vestuário feminino), reclame (anúncio pu-
blicitário), restaurante, robe (roupão), toalete, tricô, vaudeville (comédia li-
geira), vitrine.
A literatura francesa exerceu uma influência muito forte sobre os nossos
escritores. Em alguns romances de Machado de Assis, os títulos dos capítulos
são escritos em francês, língua que ele dominava, a ponto de nela escrever
poemas e cartas. Veja-se, por exemplo, o cap. VI de Brás Cubas: “Chimène,
qui l’eût dit? Rodrigue, qui l’eût cru?” (Chimène, quem o teria dito? Rodrigue,
quem o teria acreditado?; trecho de El Cid, de Corneille). Vê-se que Machado
gostava de citar os autores franceses no original, estabelecendo com eles inter-
textualidade, mas adaptando-os às suas conveniências narrativas, como se pode
218 Castelar de Carvalho

verificar no cap. VIII do livro acima citado: “La maison est à moi, c’est à vous
d’en sortir” (A casa é minha, você é que deve abandoná-la), frase de Tartufe,
personagem da peça homônima, de Molière. Em crônica de 7-3-1889, Macha-
do (1997:517, v. 3) trata com humor a questão dos galicismos, apresentando
alguns exemplos com o respectivo “sucedâneo” em português.

Regionalismos – A corrente regionalista é outra faceta importante do


nacionalismo literário do Romantismo brasileiro. Acrescente-se a isto a tendên-
cia dessa escola para a evasão no tempo e no espaço, além da preocupação em
exaltar a vida rural e as virtudes do homem do campo. José de Alencar, com o
romance O gaúcho (1870), foi o primeiro a servir-se estilisticamente da lingua-
gem regional. Aqui, transcreveremos exemplos do romance Inocência, de
Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899), obra publicada em 1872, em plena
vigência, portanto, do Romantismo, mas que apresenta traços fortemente rea-
listas, em virtude de o seu autor ter vivido no sul de Mato Grosso durante o
período em que participou, como oficial do Exército brasileiro, da Guerra do
Paraguai.
O linguajar sertanejo caracteriza estilisticamente o ambiente físico e hu-
mano da região sul-matogrossense, aparecendo, às vezes, sob a forma de ar-
caísmos ou de termos deformados foneticamente. Alguns exemplos: anarquia
(desmoralização), anarquizar (desmoralizar), anicetos (insetos), ansim (as-
sim), arruído (barulho), cangueiros (pessoas inúteis), caroável (acostuma-
do), carreira (trabalho), casa de andar (sobrado), coco (dinheiro), data (por-
ção, certa quantidade), doce (açúcar, rapadura), enfernizado (com raiva),
entonces (então), estómbago (estômago), físico (médico), fundões (lugares
distantes), gimbo (quantia), imundície (grande quantidade), lavrados (jóias),
luxarias (coisas supérfluas), manducar (comer), mapiar (tagarelar), mofina
(sovina ou covarde), percisão (necessidade), permessa (promessa), pinóia
(homem fraco), pirlas (pílulas), rejume (regime), rufião (namorador), sabença
(conhecimento, sabedoria), socavões (lugares retirados), sustância (alimenta-
ção), tutu (pessoa influente), trens (objetos em geral), talento (importância,
força física), tento (cuidado, juízo), trabucar (trabalhar), vosmecê, mecê,
vassuncê, você (pronomes de tratamento).

Léxico e estilo de época – Além dos itens lexicais específicos arrola-


dos ao longo deste trabalho, é possível identificar um vocabulário próprio,
caracterizador de cada movimento literário existente no século XIX, pois as
escolas e os poetas têm as suas preferências lexicais, que os identificam esti-
Aspectos lexicais do português do Brasil no século XIX 219

listicamente. Desse modo, parece-nos pertinente falar de um vocabulário “ro-


mântico”, digamos assim, ou “parnasiano” ou “simbolista”, conforme se verifi-
ca no breve levantamento abaixo apresentado. É importante notar a formação
vernácula da maioria dos termos relacionados, reproduzidos aqui exatamente
como aparecem nos textos pesquisados.

Vocabulário romântico – Aproxima-se da língua comum, apresenta um


certo tom coloquial e reflete a subjetividade própria da escola. Distribui-se pe-
los campos semânticos dos sentimentos e sensações, da idealização da mulher
amada, da natureza. Substantivos: alma, amor, ânsia, anjo, beijo, berço,
bosque, campa, crepúsculo, crime, cruz, compaixão, céu, coração, dor,
Deus, delírio, desejo, donzela, êxtase, escuridão, floresta, febre, fibra,
flor, insônia, ilusão, infância, lábios, laranjais, lua, luar, mãe, medo, mor-
te, mancebo, manhã, noite, nuvem, olhos, orvalho, prazer, pranto, primo-
res, pátria, peito, palmeira, primavera, riso, rola, sonho, sabiá, sangue,
saudade, sepultura, sepulcro, sol, sombra, segredo, seio, tristeza, tarde,
várzea, virgem, vida, volúpia. Adjetivos: ardente, audaz, alegre, bravo, di-
toso, etéreo, escuro, forte, fraco, louco, lânguido, pálida, proscrito, sa-
grado, sombrio, solitário, triste, verde, venturoso. Verbos: amar, ansiar,
brilhar, beijar, dormir, fitar, lutar, morrer, querer, viver.

Vocabulário parnasiano – É mais erudito, ligado à mitologia e às artes


plásticas. Devido à identificação da escola com a literatura clássica, registra-se
a presença de vocábulos de origem grega ou latina. Alguns helenismos: Ana-
creonte, Afrodite, argonautas, arcádio, Corinto, eco, Febo, heleno, Homero,
Iônio, misantropo, musa, ninfa, Olimpo, pélago, sátiro, Téocrito, Teos,
zodíaco. Latinismos (além daqueles já citados): Baco, canora, divas, Ceres,
fauno, ignota, límpida, Marte, mácula, moribundo, nívea, Netuno, pávido,
plagas, serpe, tenebras, Vênus, vetusto, verba, vórtice, via, vesano. No
campo das artes plásticas, são freqüentes termos como: alabastro, cinzel,
estatuário, esmero, estátua, flores, gesso, lavrado, mimos, mármore, rele-
vos, taça, templo, vasos.

Vocabulário simbolista – Ligado à música, à captação de matizes e à


religiosidade. Há preferência por vocábulos exóticos, por um léxico espirituali-
zado, tendendo ao misticismo ou transcendentalismo. Substantivos (alguns são
abstratos no plural): açucenas, arcanjo, ângelus, bandolins, brancura, bru-
ma, cítara, claustro, cantos, catedral, desejos, distâncias, diluências,
220 Castelar de Carvalho

eflúvio, epístola, Evangelho, fosforescências, formas, harpa, imortalida-


des, incenso, lua, lírio, luar, latescências, liturgia, longes, mirra, majesta-
des, naves, neblinas, neves, plangências, quebranto, sonata, sacro, surdi-
na, salmos, sacrário, soluço, serenidades, solenidades, sonhos, sol,
triunfamentos, violão, vozes. Adjetivos: arcangélico, alvo, azulado, augus-
tas, branco, bíblica, búdica, hialino, castos, cristalinas, cândido, celestial,
diluídas, errantes, ebúrneo, finas, fúlgidas, fluidas, funambulescos, góti-
co, letárgico, lívidas, leves, lirial, lácteo, místicos, níveo, neblinantes,
nivosas, pulcro, purpúreo, sonora, sidéreo, sacro, tépidas, turvo, tantálicos,
transfigurado, vaporosas, vagos, virgens. Verbos: alvorar, notambular,
ondular, oscilar, tremer, transfigurar (verbo-chave no Simbolismo). Advér-
bios: amargamente, remotamente, noturnamente, pulverulentamente,
soluçantemente, torcicolosamente (os três últimos são neológicos).

4 – Conclusão

O século XIX foi extremamente importante e decisivo para o Brasil, em


muitos aspectos. Politicamente, preservamos nossa unidade e afirmamos nos-
sa Independência como nação. Culturalmente, criamos uma literatura autôno-
ma, genuinamente brasileira como expressão e afirmação estética dos nossos
valores nacionais. Lingüisticamente, incorporamos e reelaboramos termos e
maneiras de dizer que servem de expressão aos sentimentos e às aspirações do
nosso povo, em sua diversidade étnica e cultural. A partir do século XIX, con-
solida-se o português do Brasil, nos diversos planos da língua. No caso do
léxico, o levantamento aqui apresentado, embora sumário, oferece uma idéia
geral do acervo empregado pelos nossos escritores dos Oitocentos, em seus
variados aspectos, quer lingüísticos, quer estilísticos, e reafirma a existência de
um idioma comum ao Brasil e a Portugal, vale dizer, língua portuguesa com
estilo brasileiro. Oxalá este modesto artigo sirva de ponto de partida para a
elaboração de futuros dicionários das escolas literárias e dos autores que pon-
tificaram no Brasil ao longo do fecundíssimo século XIX.

5 – Bibliografia

CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia. Rio de Janeiro,


Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2001.
Aspectos lexicais do português do Brasil no século XIX 221

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AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 26ª ed. São Paulo, Martins, 1974.
BILAC, Olavo. Obra reunida. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1996.
CORREIA, Raimundo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, Aguilar, 1961.
CRUZ E SOUSA, João da. Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995.
DIAS, Gonçalves. Poesia completa e prosa escolhida. Rio de Janeiro, Aguilar,
1959.
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar,
1997.
222 Castelar de Carvalho

MACHADO DE ASSIS. Obra completa (3 vol.). Rio de Janeiro, Nova Aguilar,


1997.
OLIVEIRA, Alberto de. Poesia. 2ª ed. Rio de Janeiro, Agir, 1969.
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Inocência. 28ª ed. São Paulo, Melhoramen-
tos, s/d.
VARELA, Fagundes. Poesia. 2ª ed. Rio de Janeiro, Agir, 1961.
RESENHA CRÍTICA
Mariza Mencalha de Souza
UFRJ

SILVA, Amós Coêlho da & MONTAGNER, Airto Ceolin. Dicionário latino-


português. Apresentação de Evanildo Bechara. Rio de Janeiro: Ingráfica
Editorial, 2006.
(Contatos: (21) 2270-7478/Fax 3105-8224)

Há muito tempo, os latinistas vínhamos sentindo a falta de um dicionário


latino-português. Isso se explica porque os dicionários em língua vernácula es-
tão esgotados, e os estrangeiros, além de caros, são difíceis de serem encontra-
dos e exigem, sobretudo dos iniciantes em latim, o conhecimento e domínio de
uma outra língua que nem sempre eles têm.
Quem é da área sabe que os dois últimos dicionários de latim publicados
no Brasil datam da década de noventa. Um de autoria do filólogo e latinista F.
R. dos Santos Saraiva, e o outro do célebre latinista Ernesto Faria, homenagea-
do recentemente num colóquio organizado pelas Universidades Federal do Rio
de Janeiro e Federal Fluminense. O do professor Ernesto Faria, lançado pela
Fundação de Assistência ao Estudante, órgão do MEC, nunca mais foi reeditado,
e o do professor Saraiva, da Garnier, está esgotado há mais de dez anos.
Essas edições, quando disponíveis, são vendidas como raridade pelos li-
vreiros, tornando-se, desse modo, difícil adquiri-las, devido ao preço elevado
que passam a ter, principalmente se bem conservadas. As edições mais anti-
gas, tanto dos autores estrangeiros quanto dos nacionais, são encontradas, só
com muita sorte, escondidas em um cantinho das prateleiras empoeiradas de
um sebo e por preço nem sempre acessível ao estudante de Letras.
Conscientes dessas dificuldades e pensando nos docentes e alunos de
latim, Amós Coêlho da Silva e Airto Ceolin Montagner, doutores em língua e
literatura latinas, professores da Universidade do Estado Rio de Janeiro, tive-
ram a louvável iniciativa de trazer a público o Dicionário latino-português. A
obra resgata os estudos clássicos e revaloriza os diacrônicos, hoje praticamen-
te abandonados em nossas Faculdades de Letras e, entretanto, tão importantes
para a compreensão do funcionamento sincrônico de nossa língua.
224 Mariza Mencalha de Souza

O dicionário, destinado aos alunos de latim específico e dos ciclos básicos


do curso de Letras, poderá também ser útil aos especialistas em língua e litera-
tura latinas e a todos aqueles que manifestarem interesse em ter um primeiro
contato com a cultura clássica romana ou sentirem necessidade de consultar
algum termo ou expressão, por força do curso que fazem, caso em que se
enquadram os estudantes de Direito, que poderão então exclamar: quem nos
livrará dos gregos e romanos!
O dicionário, cuidadosamente elaborado, apresenta diversos aspectos po-
sitivos: é didático, inovador, de rica e confiável bibliografia e de preço acessível.
Por que didático? Porque busca ensinar, usando recursos visuais que faci-
litam a aprendizagem, tais como o destaque dos verbetes em negrito, a separa-
ção dos prefixos e radicais nas palavras da mesma família ou cognatas: de-
populatio, de-populator, de-populor. O mesmo critério é aplicado em relação
aos verbos compostos, nos quais prevérbios e radicais são separados, de-cerno,
de-duco, de-tego, etc, de forma didática, para facilitar o aprendizado do aluno.
O didatismo está presente também na apresentação dos substantivos e adjeti-
vos, cuja aprendizagem é igualmente facilitada pela decomposição de seus cons-
tituintes imediatos, como se observa em corni-ger, corni-pes, frugi-fer, de-
populatio e em outros nomes. A reunião das preposições e prefixos num único
verbete (ab e de), assinalando sua dupla função, leva o aluno a obter já na
primeira consulta duas informações.
O caráter inovador da obra é outro ponto a ser destacado. Está centrado,
sobretudo, na lista de sinônimos de diversos verbetes, inseridos entre colchetes,
numa ampla relação de campos semânticos, não encontrada em nenhum de
nossos dicionários. Serve de exemplo, a par de outros, o termo immanis, para o
qual os autores catalogam como sinônimos magnus, ingens, immensus,
grandis, amplus, magnificus, vastus. É uma iniciativa inteligente, uma vez
que amplia o léxico dos professores e alunos de língua e literatura latinas, ao
oferecer-lhes a oportunidade de conhecer e aprender em latim novos significa-
dos para as palavras que estão consultando.
Igualmente inovadora e original é a substituição do j ramista pelo i
consonantal, visto que resgata o uso de uma letra que já existia no alfabeto
latino. Em vez de jaceo e jam, encontram-se, portanto, iaceo e iam. O j ramista,
registrado nos dicionários anteriores ao dos professores Amós e Airto, é cria-
ção do gramático francês Pierre Ramée (Petrus Ramus), tendo sido introduzi-
do na escrita do latim somente no período renascentista.
A bibliografia, selecionada com cuidado, inclui obras clássicas, como o
Dictionnaire étymologique de la langue latine, de Ernout & Meillet, o
Resenha crítica 225

Novíssimo dicionário latino-português, de Francisco Saraiva, dentre outras,


não menos importantes, inclusive o Dicionário escolar latino-português, do
professor Ernesto Faria, já mencionado.
Nota-se também uma preocupação com o registro sistemático dos sinais
diacríticos, isto é, com a indicação das vogais longas e breves: de#-po(pu(la#ti(o,
de#-po(pu( la# tor, de#-po(pu( lo( r.
Há ainda uma série de termos, não só do latim clássico, mas também do
latim medieval e do cristão, o que veio enriquecer o livro. Do medieval, servem
de exemplos caritas ou charitas, Elias ou Helias, purpuratus. Do cristão,
citam-se ecclesia, ecclesiasticus, episcopus, carnalis.
Os termos jurídicos são iluminados com tradução e explicação, constituin-
do, por esse motivo, também uma fonte de consulta para os alunos de Direito.
Alibi (p. 435), habeas corpus (p. 439), uti possidetis (p. 445) incluem-se
nessa relação, dentre outros exemplos.
Os verbos foram ordenados do infectum para o perfectum (amo, as, are,
avi, atum), assemelhando-se, nesse particular, ao critério adotado pelo profes-
sor Ernesto Faria.
As célebres expressões, frases e provérbios latinos, extraídos todos de
autores consagrados, vêm acompanhados da pronúncia tradicional, de sua sig-
nificação e de outras informações valiosas esclarecendo o contexto e as obras
em que foram empregados. Ex.: ecce homo (p. 438), in vino veritas (p. 440),
morituri te salutant (p. 442), pulvis et umbra sumus e ridendo castigat mo-
res (p. 444). São, portanto, dados relevantes e enriquecedores.
Ressalte-se ainda a feliz idéia que tiveram os autores ao incluir, nas pági-
nas 6 e 446-463, algumas noções básicas da gramática latina, tais como o qua-
dro da declinação dos substantivos, os radicais de perfectum e as formas regu-
lares, irregulares e defectivas do verbo latino. A iniciativa é boa porque pode
auxiliar tanto os alunos de curiosidade insaciável, quanto os autodidatas e aque-
les que desejam apenas dirimir uma dúvida ou testar seu conhecimento em um
dos pontos de gramática relacionados na obra. Desse modo, o dicionário tem
dupla finalidade, servindo de manual de consulta sobre o significado dos verbe-
tes latinos e de minigramática, na qual foram priorizadas as duas partes básicas
do ensino e aprendizagem do latim: a declinação e a conjugação.
Tudo foi feito, como afirmam os autores, “com amor ao latim e à cultura
clássica”. E isso é tudo, porque já dizia Virgílio que “Omnia uincit Amor”. É
desse amor e do trabalho, acrescentaríamos, citando ainda o autor das
Geórgicas, “labor omnia uicit improbus”, que nasceu o dicionário dos profes-
sores Amós e Airto, cuja fortuna crítica se antecipa promissora. Parabéns aos
autores.
COLABORADORES DESTE NÚMERO

ANTÔNIO GOMES DA COSTA. Presidente da Federação das Associações


Portuguesas e Luso-Brasileiras e Presidente do Real Gabinete Português de
Leitura.

BARBARA SPAGGIARI. Professora catedrática de Filologia Românica. For-


mada em letras e línguas na Universidade de Florença, onde começa por estu-
dar lingüística geral nos anos 70, passa ao domínio da filologia sob o magistério
de Gianfranco Contini. A predileção para as literaturas ibéricas se manifesta já
no assunto das suas duas teses, uma sobre a Poesia religiosa anonima catalana
o occitanica (1977), outra sobre a Clepsidra de Camilo Pessanha (1982).
Com Maurizio Perugi escreveu Fundamentos da Crítica Textual: história,
metodologia e exercícios (Editora Lucerna, 2004).

CARLA ABREU VAZ. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas,


variante de Estudos Portugueses e Ingleses, pela Faculdade de Letras da Uni-
versidade de Coimbra, Portugal.

CASTELAR DE CARVALHO. Professor Doutor em Língua Portuguesa da


Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor dos
livros Para Compreender Saussure, Ensaios Gracilianos e Noel Rosa, Lín-
gua e Estilo (com o Prof. Antonio Martins de Araujo). Membro da ABF.

EVANILDO BECHARA. Professor Emérito pela Universidade Federal Flu-


minense e Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor Titular
aposentado dos cursos de graduação e pós-graduação dos Institutos de Letras
da UERJ e UFF. Vice-Presidente da Academia Brasileira de Filologia. Mem-
bro da Academia Brasileira de Letras. Entre outros trabalhos de filologia e
lingüistica, escreveu Moderna Gramática Portuguesa (37ed., Lucerna, 1999),
Lições de Português pela Análise Sintática (18ed., Lucerna, 2006), Gramá-
tica Escolar da Língua Portuguesa (Lucerna, 2001) e Ensino da Gramáti-
ca. Opressão? Liberdade? (17ed., Ática, 2005).
228

HORÁCIO ROLIM DE FREITAS. Livre-docente pela Universidade Católica


do Rio Grande do Sul e Professor Adjunto da UERJ (aposentado). Membro da
Academia Brasileira de Filologia. Entre outros trabalhos de filologia e lingüísti-
ca, escreveu Princípios de Morfologia (4ed., Oficina do Autor, 1997).

JOHN ROBERT SCHMITZ. Trabalha no Brasil desde 1970. Foi professor do


Departamento de Lingüística da PUCSP (1971-1987), UNESP/Assis (1987-
1988) e no momento é professor titular aposentado do Departamento de Lin-
güística Aplicada (1988-2003). Fez a graduação em letras na Universidade da
Cidade de Nova York (Brooklyn College), o mestrado na área de lingüística
aplicada na Columbia University (Teachers College) e o doutoramento na
PUCSP. Tem publicações nos campos de tradução, lexicologia, descrição de
línguas e ensino de língua estrangeira em revistas nacionais e internacionais.

LUIZ M.M. DE BARROS. Doutor em Lingüística pela UFRJ. Professor Ad-


junto de Lingüística da Universidade Federal Fluminense.

MARIA EMÍLIA BARCELLOS DA SILVA. Bacharel e licenciada em Lín-


gua e Literaturas de Língua Portuguesa e em Língua e Literatura Latinas pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Língua Portuguesa e
Doutora em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Magistério em graduação e pós-graduação de instituições nacionais e estran-
geiras, onde trabalha a Língua Portuguesa em diferentes matizes e aborda-
gens. Publicou recentemente os livros Redação em Concursos, O Parágrafo
e um manual de Elaboração de Monografias; tem sido co-autora de variado
material didático com que apóia os cursos de atualização que ministra em di-
versos estados brasileiros.

MARIZA MENCALHA DE SOUZA. Mestre em Língua e Literatura Latinas


pela UFRJ.

NELLY CARVALHO. Professor Adjunto de Língua Portuguesa da UFPE,


Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística da UFPE
e autora de vários livros e trabalhos na sua especialidade.

RICARDO CAVALIERE. Professor Adjunto de Língua Portuguesa da UFF.


Doutor em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e
autor de estudos de sua especialidade. Membro da Academia Brasileira de
Filologia.
Confluência 31 229

ROSALVO DO VALLE. Professor Emérito pela Universidade Federal Flumi-


nense. Aposentado como Titular de Língua Latina da Universidade Federal
Fluminense. Membro da Academia Brasileira de Filologia.

TEREZINHA BITTENCOURT. Doutora em Lingüística pela Universidade


de São Paulo. Professor Adjunto de Lingüística da Universidade Federal Flu-
minense. Membro da Academia Brasileira de Filologia.
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Estes preços são válidos para os números anteriores, com exceção do 1 ao 5, que
estão esgotados.
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