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DIRETORIA
Presidente: Francisco Gomes da Costa
Vice-presidente: Henrique Loureiro Monteiro
1.º Secretário: Arnaldo de Figueiredo Guimarães
2.º Secretário: Francisco José Magalhães Ferreira
1.º Tesoureiro: Manuel Lopes da Costa
2.º Tesoureiro: Jorge Manuel Mendes Reis Costa
1.º Procurador: Carlos Eurico Soares Félix
2.º Procurador: Manuel José Vieira
Diretor Bibliotecário: Maximiano de Carvalho e Silva
Diretor Cultural: Carlos Alberto Soares dos Reis Martins
Diretor Escolar: Evanildo Cavalcante Bechara
Diretor de Divulgação: João Manuel Marcos Rodrigues Reino
CONSELHO DELIBERATIVO
Presidente: Manuel Paulino
1.º Secretário: Maria Lêda de Moraes Chini
2.º Secretário: Bernardino Alves dos Reis
CONSELHO FISCAL
Membros Efetivos: Albano da Rocha Ferreira
Ronaldo Rainho da Silva Carneiro
Antonio da Silva Correia
SUPERINTENDENTE
Albino Melo da Costa
CONFLUÊNCIA
REVISTA
DO
INSTITUTO DE LÍNGUA PORTUGUESA
Produção Gráfica
Editora Lucerna
Cx. Postal 32054
CEP 21933-970 – Rio de Janeiro – RJ
Internet: www.lucerna.com.br
Pede-se permuta
Pídese canje
On demande l’échange
Si chiede lo scambio
We ask for exchange
Man bitte um Austausch
SUMÁRIO
Pág.
ARTIGOS
Sobre o gerúndio e “gerundismo”:
uma análise de um assunto emotivo e polêmico
(JOHN ROBERT SCHMITZ) ............................................................................ 87
Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica
(BARBARA SPAGGIARI)................................................................................ 111
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio. Breve
percurso por textos dos séculos XIII a XVI – usos, sentidos e valores
(CARLA ABREU VAZ) ................................................................................ 127
Afinal, quem é a mulher de verdade? – um estudo lexical, antes do mais
(MARIA EMÍLIA BARCELLOS DA SILVA) ........................................................ 167
A saudade na Língua Portuguesa
(NELLY CARVALHO) .................................................................................. 183
Câmara e Câmera
(RICARDO CAVALIERE)............................................................................... 193
Aspectos lexicais do português do Brasil no século XIX
(CASTELAR DE CARVALHO) ........................................................................ 203
6
RESENHA CRÍTICA
SILVA, Amós Coêlho da & MONTAGNER, Airto Ceolin.
Dicionário latino-português.
(MARIZA MENCALHA DE SOUZA) ................................................................ 223
EDITORIAL
o livro, nessa arquitetura, era uma lançadeira importante. Nas pautas de impor-
tação e exportação, ainda que medíocres no volume e centradas em meia-dúzia
de artigos de sobremesa, ou da saudade, o intercâmbio do livro, revistas e jor-
nais ocupava um dos lugares cimeiros, juntamente com os vinhos e os azeites.
Nas últimas décadas do século passado, entretanto, tivemos reflexos mui-
to negativos que afetaram esse comércio, sobretudo a importação do livro por-
tuguês. Primeiro, vieram as razões de natureza econômica: era impossível fixar
um preço razoável para a venda do livro importado com as desvalorizações de
um câmbio descontroladamente variável e o empate de capital a juros exorbi-
tantes. Depois, as profundas mudanças políticas, culturais, sociais e no ensino
ocorridas nos dois países (no Brasil chegou-se a acabar com os cursos de
Literatura Portuguesa numa altura em que bons especialistas implicavam com
eles) cortaram o fascínio recíproco que existia antes pelos autores de um e de
outro país e não se chegaram a conhecer os escritores mais novos salvo raras
exceções.
Coincidiram com essa fase os espasmos das crises econômicas, os pe-
quenos investimentos dos governos para criar focos de difusão da cultura na-
cional no estrangeiro, o desprezo dos currículos na apreciação dos conteúdos
gerados no outro país, as perdas no hábito da leitura e assim por diante.
O resultado de tudo isso fez com que nos últimos anos a solução para o
problema do livro português no Brasil e do livro brasileiro em Portugal passasse
a ser uma só: a edição no Brasil de autores portugueses e a edição em Portugal
de autores brasileiros. Estão aí os casos bem sucedidos de José Saramago ou
de Miguel Sousa Tavares, deste lado do Atlântico, ou de Paulo Coelho e Nélida
Piñon do lado de lá.
É claro que esta solução é facilitada quando se trata de autores conheci-
dos em que o risco das editoras é pequeno, ou nulo. No entanto, quando estão
em causa obras de escritores pouco conhecidos, ou mesmo de outros que ape-
sar do prestígio interno, resistem à edição, tudo se paralisa de novo. E nem o
apoio que vem sendo dado pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas a
algumas editoras brasileiras tem sido suficiente para estimular o lançamento
dos novos valores literários. É só ir ao Real Gabinete Português de Leitura e
verificar como há autores de sucesso em Portugal que são completamente
ignorados no Brasil.
A verdade é que sem o livro, como instrumento difusor, e sem os progra-
mas de ensino nas escolas e nas universidades, com grelhas de matérias em
que apareça transversalmente a produção de conhecimento do outro país, bra-
sileiros e portugueses cada vez mais terão modos diferentes de entender e
apreciar as próprias raízes.
Confluência 31 9
NÚMERO EM HOMENAGEM A
ERNESTO FARIA
ERNESTO FARIA
(1906 – 1962)
PROFESSOR ERNESTO DE FARIA JÚNIOR
Rosalvo do Valle
UFF-ABF-LLP
1. Introdução
2. Dados biográficos
Ernesto de Faria Júnior, nasceu no dia 23 de maio de 1906 no Rio de
Janeiro, então Distrito Federal, na Rua Baltasar Lisboa, nº 62, hoje Bairro da
Tijuca, filho único de Ernesto de Faria, funcionário público, e Aurora Barbosa
de Faria, professora de ensino primário. Órfão aos três anos e pouco, fez os
primeiros estudos na escola em que sua mãe lecionava, e continuou-os no ex-
tinto Colégio Ateneu Brasileiro, ambos próximos de sua residência. Em 1918
estudou no internato do Colégio Salesiano de Santa Rosa, Niterói, RJ, transfe-
rindo-se em 1919 para o Colégio Anchieta, internato jesuítico de Nova Fribur-
go, RJ, onde estudou até 1921. Concluiu o curso secundário pelo regime então
vigente de exames parcelados.
Esse ano de 1921 é marcante na vida de Ernesto Faria. Aos quinze anos,
conheceu o grande mestre de sua carreira – e mestre pela vida fora –, o pro-
fessor Antenor Nascentes, cujas aulas de português no Curso de Rui Maurício
de Lima e Silva, passou a freqüentar, “naturalmente cativado pelo fascínio do
mestre e vencido pelo irresistível de sua própria vocação para estudos lingüís-
ticos”, como diz a professora Aída Costa, acrescentando que Antenor Nascen-
Professor Ernesto de Faria Júnior 13
3. Atividades docentes
(1961) – em que Sílvio Elia obteve o primeiro lugar –, além de ter integrado
outras comissões de concursos de ensino médio oficial.
Participou de congressos nacionais como representante da Faculdade
Nacional de Filosofia: Congresso de Dialectologia e Etnografia (Rio Grande do
Sul, 1958), Congresso Internacional de Crítica Literária (Recife, 1960), II Con-
gresso de Língua Falada no Teatro (Salvador 1956).
Fora do país, Ernesto Faria também teve o reconhecimento da dimensão
universitária de sua obra. Em 1948, a convite do Adido Cultural da França,
participou dos trabalhos iniciais do ano letivo da Faculdade de Letras da Uni-
versidade de Paris; em 1951 fez na Sorbonne uma conferência sobre Pérsio; a
convite do governo português, na Universidade de Coimbra falou sobre “Lucílio
e as origens da sátira latina”, conferência publicada, “com alguns acrescentos
e notas” na Revista Filológica. Em outubro de 1953 foi autorizado pelo Presi-
dente da República a se afastar do país por seis meses “a fim de realizar, na
Europa, estudos relacionados com os programas de assistência técnica presta-
da por organizações internacionais aos países subdesenvolvidos”; e em 1954
vemo-lo representante oficial do Brasil no II Congresso Internacional de Estu-
dos Clássicos, realizado em Copenhague.
Em 1959 é mais intensa sua atividade na Europa: delegado oficial do Bra-
sil e representante da Associação de Estudos Clássicos no III Congresso de
Estudos Clássicos, em Londres; estágio na Faculdade de Letras da Universida-
de de Paris; visita a várias faculdades portuguesas, como convidado oficial do
governo; participação em Congresso de Filologia, na Rumênia, também como
convidado oficial; recepção na Société des Études Latines, de Paris, sendo
saudado por Jules Marouzeau, Jacques Perret e Marcel Durry; participação
em sessão especial, a convite do Groupe Romand de la Société des Études
Latines, para falar sobre os estudos clássicos no Brasil.
5. Outros títulos
“Fizeram-se três escrutínios, dos quais resultou ficarem desde logo eleitos, pelo
quorum de dois terços da Academia, de acordo com as disposições dos Estatu-
tos, cinco dentre os concorrentes. Foram estes os Srs. Professores Afrânio Peixoto,
Basílio de Magalhães, Ernesto Faria Júnior, Saul Borges Carneiro e Sílvio Elia”. (3)
Ernesto Faria exerceu a cátedra até seu último momento, naquela tarde
trágica de 14 de março de 1962. Construiu sua obra sem se afastar das estimu-
lantes atividades de professor, em contato com os alunos, com os colegas, uma
saudável troca de idéias; mas também não se poupou do exercício de funções
administrativas, a um tempo traiçoeiramente sedutoras e profundamente
desgastantes. Sua correspondência particular registra a preocupação de ami-
gos com problemas de saúde dele, sobrecarregado com a direção da Faculda-
de. Com todos os tropeços Ernesto Faria não descuidou da obra, e nos legou
uma apreciável bibliografia.
Às questões de saúde, porém, somou-se uma outra, por certo bem mais
grave: o duro golpe que os estudos clássicos sofreram com a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (Lei nº 4024, de 24/12/61), que, ao revogar a
Reforma Capanema é, realmente, um divisor de águas na história da educação
brasileira. Ficou-nos, além do mais, esse marco de triste memória: a morte
trágica de Ernesto Faria em plena Congregação da Faculdade Nacional de
Filosofia, na sessão de 14 de março de 1962, iniciada às 15 horas, e assim
tragicamente interrompida.
Ao discutir a nova legislação, não resistiu ao tratamento que dá ao latim. E
o protesto violento, que começara a escrever de manhã, em casa, ficou em
pouco mais de uma página. O grande defensor dos estudos clássicos e da
formação humanística morreu com o latim. (7)
Ernesto Faria já pressentira com lucidez a acentuada tendência anti-hu-
manística de projetos que desde 1948 viriam a formalizar-se na LDBEN. Na
Introdução à Didática do Latim (1959), ao examinar a educação brasileira,
Professor Ernesto de Faria Júnior 23
11. Bibliografia
Reproduzimos a bibliografia do Dicionário Escolar Latino-Português,
6ª edição, revisão de Ruth Junqueira de Faria, com prefácio de Walmírio Macedo
e a homenagem (que transcrevemos adiante) de Antônio Houaiss – ex-alunos
do autor. Acrescentamos as teses de concurso e as publicações que consegui-
mos localizar em revistas especializadas.
Nota do original: “Em alguns casos, não foi possível ter em mão as edi-
ções subseqüentes, daí a sua não inclusão nesta relação”.
Professor Ernesto de Faria Júnior 25
1955 – 14) ______ & FARIA, Ruth. Novo curso de latim. 1ª e 2ª séries do curso gina-
sial. Gramática, textos e exercícios... [por] Ruth Faria e Ernesto Faria. Rio de
Janeiro, Ed. da Organização Simões, 1955, 218 p.
1955 – 15) ______. Dicionário escolar latino-português. Org. por Ernesto Faria [ com
a colaboração de Maria Amélia Pontes Vieira e outros 2ª ed. Rio de Janeiro, MEC,
Campanha Nacional de Material de Ensino, 1955. 1045 p. ]
15.1 ______. [Colab. de Maria Amélia Pontes Vieira e outros] 4ª ed. Rio de
Janeiro, MEC, Campanha Nacional de Material de Ensino, 1967. 1081 p.
15.2 ______. [Colab. de Maria Amélia Pontes Vieira e outros] Rev. de Ruth
Junqueira de Faria. 5a ed. Rio de Janeiro, MEC, FENAME, 1975, 1088 p.
1958 – 16) ______. Gramática superior da língua latina. Rio de Janeiro, Liv. Acadêmi-
ca 1958. 524 p. (Biblioteca Brasileira de Filologia, 14).
1959 – 17) ______. Introdução à didática do latim. Rio de Janeiro, Universidade do
Brasil, Faculdade Nacional de Filosofia, 1959. 374 p.
Teses
FARIA JÚNIOR, Ernesto de. A pronúncia do latim. Novas diretrizes ao estudo do
latim. (Tese de concurso para o provimento das cadeiras de Latim do Colégio
Pedro II). Rio de Janeiro, 1933, 131p.
FARIA JÚNIOR, Ernesto de. Pérsio: estudo literário e lexicográfico. (Tese de concur-
so para o provimento da cadeira de Língua e Literatura Latina da Faculdade
Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil). Rio de Janeiro, 1945, 166 p.
Boletim de Filologia
Humanitas
1. Solenidade de Posse
Rio, 4/4/1946.
Sousa da Silveira.
30 Rosalvo do Valle
Doctor Latinus Latine videtur salutandus; en, cur aliqua verba Latina dicam,
clare lenteque eloquenda, Farianum in modum pronuntianda, ut omnes hic
praesentes me intellegere possint. Liceat igitur mihi, professori egredienti,
ingredientem salvere iubere, atque, ut Persiano versu tibi Dne. Faria, notissimo
incipiam, sic exordior:
Hic enim est dies, quo sollemniter Doctor Latinus agnosceris, quo in sacrum
Magistrorum gremium reciperis, quo augustam hanc Musarum sedem coronatus
ingrederis. Sed quid te dico ingredientem? Nonne iam multis ex annis hic te
vidimus operantem, erudientem, docentem? Nonne iampridem Magister es
egregius? – Sane id quidem; sed Magistri se habent – venia sit comparationi –
ut boni Christiani, qui, non tantum baptizati, verum etiam confirmati esse debent.
Post baptismum receptum Christianus adhuc indiget confirmatione, sancto
christimatis sacramento, ad fidem firmandam atque roborandam.
Ita amicus Faria, ut bonus Christianus, idem iam erat bonus Magister,
baptizatus in undis laborum magistralium. At – felicius quam ego numquam
talem gratiam adeptus – Dnus. Faria nunc rite est confirmatus sollemni concursu,
quem vocant, ut Doctor linguae Latinae! Atque, quoniam in confirmatione opus
est patrino aliquo, velut chrismatis patrono, nescio an non videatur temerarium
vel insolens offerre me tamquam talem patrinum, qui manum benevolam
beneficamque nunc tibi imponat dicens: Doctor Faria, esto fortis atque robustus,
utpote munitus ac firmatus in magisterio. En, commissa est tibi ista iuventus
Brasiliana literarum cupida: erudi eam, doce eam linguam literasque Latinas,
hoc sapientiae sacrarium, matrem hanc linguarum Romanicarum omnium
nostraeque Lusitanae. Nobilissima est lingua Latina, prima omnium linguarum
toto orbe terrarum quandocumque inventarum, lingua est Sanctae Matris
Ecclesiae lingua est omnium scientiarum universalis!
Ac vobis, cari discipuli discipulaque, dico: estote dociles assiduique in studiis,
applicantes ad Latinum illud Horatii de Graeco dictum: ... vos (monumenta
Latina) / Nocturna versate manu, versate diurna! Tam insigni Magistro usi
Professor Ernesto de Faria Júnior 31
discite legere Latine, Ioqui Latine, scribere Latine! Sane difficile illud quidern
est, atque, ut ait idem Horatius:
Sed en, astat vobis victor laureatus, Doctor Faria: eius aemulamini
exemplum, eius utimini auxilio!
Omnia denique ut versibus nostro amico dicatis complectar, disticha aliqua
a me composita pro fine afferre iuvabit:
Gratulabundus cecini
Georgius Henricus Augustinus Padberg Drenkpol
recente, Mestre Amado Alonso e à qual, nos seus empirismos, nas suas dissipa-
ções ou nas suas suffisances (digamos assim), atribui ele grande parte do
malogro das técnicas ou dos melhores empenhos científicos.
Quando, pois, há três anos, transpus o vestíbulo da casa, com todos os
ônus que isso me acarretou, naturalmente passei a observar de perto o homem
e a obra que já me chamara a curiosidade. Senti – e ainda agora este sentimen-
to me permite estes reparos – senti que não tínheis muito jeito para medalhão-
pendurado-na-glória ou mesmo para catedrático-enfaixado-nas-becas-boloren-
tas. Tanto melhor. Agitava-se ou perpassava, entretanto, nas suas inquietações
ou na sua vocação apostolar, um autêntico estudioso e pesquisador, para o qual
a sua disciplina, o latim, também não obrigava a espirros e rapés, nem oferecia
engrolações retóricas e pomposas, para engano d’almas ingênuas e embeleco
das rodinhas de botica, entre o gamão e o tabuleiro de damas. Vi que não
possuíeis o Chernowitz nem líeis horóscopos para a freguesia.
Foi sempre – e é ainda – a minha observação. E não há decepção nenhu-
ma nisso. Pelo contrário.
Como quer que seja, escusamo-nos os vossos alunos – meros aprendizes
que somos – de fazer julgamentos sobre os vossos invulgares méritos culturais
e profissionais, pois os vossos livros são do conhecimento dos doutos, vossa
carreira funcional manteve constante impulso ascendente e, mais do que tudo,
penso eu, vosso recente concurso público documenta suficientemente; esse
concurso em virtude do qual vos é agora conferida a dignidade de Catedrático
efetivo da Universidade e, em conseqüência, a de Doutor em Letras Clássicas.
Está presente aqui, neste momento, a maioria dos vossos severos e sapientíssimos
examinadores, juizes e, agora, testemunhas mais do que fidedignas da vossa
vitória inconcussa e galharda.
Por falar nesse concurso: assisti a todos os atos públicos dele e, franca-
mente, vale a pena comprar caro uma cadeira de primeira fila, como fiz eu
(como fez, por exemplo, Mestre Sousa da Silveira), para assistir a justas gentis
e renhidas como essa de que saístes armado cavaleiro da vossa dama, isto é, da
vossa cátedra e da vossa disciplina querida. Soubestes, vós e os vossos temí-
veis contraditores da banca examinadora – às vezes verdadeiros advogados-
do-diabo – evitar o choro e o ranger de dentes desses prélios infernais a que se
dá o nome de concursos públicos de magistério. Vimos todos, por exemplos,
como nem se queimaram hereges em efígie ou, sequer, a reputação de ninguém
saiu ferida com uma flor de retórica ao menos, nem mesmo com um mau
pensamento ou alusão longínqua. Alunos, trouxemos essa lição de nobreza, que
valeu.
Professor Ernesto de Faria Júnior 35
“Mas como é bonito ser apontado com o dedo e ouvir dizerem de si: ele é este!”
Baltasar Xavier
2. Um Humanista.
Tristão de Athayde
Escreveu Garrett que Camões morreu com a pátria. Teria o nosso Ernes-
to Faria Júnior morrido com... o latim?
É provável, pelo menos, que a morte do latim, em nosso ensino secundá-
rio, poucos dias antes de sua própria morte, tão inesperada e prematura, tenha
apressado o seu fim. Pois se pode dizer que viveu para o latim e para o seu
ensino. Desde os tempos da Universidade do Distrito Federal – quando Capa-
nema colocara o latim no centro da formação ginasial – dedicara-se Ernesto de
Faria de corpo e alma à grande língua, fonte da nossa e veículo de tanta e tão
36 Rosalvo do Valle
do ensino e de tão alta dedicação à nobre matéria a que se dedicou, sem reser-
vas, que seu nome ficará para sempre ligado à história do nosso incipiente e
mal-aventurado humanismo. Mas, como a gloriosa língua do Lácio, insuperável
instrumento não apenas de ilustração, mas de cultura, sobreviverá a todas as
mortes e ressurreições parciais a que as reformas de ensino a tem submetido,
o nome do nosso saudoso mestre e amigo também sobreviverá ao seu prema-
turo e inesperado desaparecimento.
23 de maio de 1962
“Felizes os que chegam à tarde da vida com a mesma alegria, com a mesma saúde
espiritual e a mesma fôrça de ânimo com que nela amanheceram. Quantos logram
tal ventura? Raros e esses são os privilegiados de Deus”.
22 de março de 1963.
“Assim, tudo nos leva a persistir em dar à nossa educação nacional uma orienta-
ção nítida e preponderantemente humanística, no sentido mais amplo do têrmo,
isto é, de forma a dar aos nossos adolescentes uma cultura geral harmônica e
equilibrada. Esta cultura evidentemente compreenderá em si a prática da experi-
mentação científica e sua técnica de observação, elementos essenciais da cultura
contemporânea. Mas também não deixará de dar os elementos, tão indispensá-
veis quanto aquêles, para que o nosso adolescente possa por si mesmo com-
preender que a sua civilização e a sua língua, o que dela faz parte e a integra,
tiveram um passado que lhe cumpre conhecer para que o possa amar, que acima
das contingências materiais há grandes princípios e nobres ideais que devem
nortear a sua vida no sentido da solidariedade humana, da confraternização uni-
versal, da justiça, do bem e da paz. É esta superior hierarquia de valores que
nossos estudos de humanidades sempre procuraram alcançar, constituindo o
melhor de nossas tradições culturais”.
Homenagem
Vi-o, a Ernesto Faria, após as canseiras das aulas diárias, lutar contra o
tempo, no preparo sôfrego de sua tese de concurso para a cátedra de latim do
Colégio Pedro II, A pronúncia do latim, novas diretrizes no ensino do latim:
era o ano de 1933. Escusa dizer que, com 27 anos de idade, era muita petulân-
cia sua querer dar diretrizes ao ensino de uma língua que, com raízes numa
tradição multissecular, fora também a primeira língua de cultura ensinada no
país sob diretrizes mais que sabidas e consabidas. Quem era aquele magro
professorzinho para propor “nova” didática, mais que isso, novas diretrizes,
novas idéias-forças para o ensino, o aprendizado, o uso moderno do latim? E –
a haver uso – que uso?
Qualquer síntese que se tente fazer da luta docente de Ernesto Faria fica
sem sentido, se não se buscar resumir seu pensamento sobre o ensino, o estudo
e o uso do latim na contemporaneidade – sobretudo porque seu pensamento se
tornava maduro a esse respeito exatamente quando a “crise do latim” chegava
ao auge no Brasil.
Ernesto Faria estava, já então, convencido de que eram profundamente
negativas as seguintes posturas em face do latim: 1) ensiná-lo a reboque da
tradição – eu diria mais rigorosamente – a reboque da inércia com que se
amolecera dentro da Cúria romana e da docência nos seminários católicos
mundo em fora; 2) ensiná-lo como língua viva e, por conseguinte, como coisa
que tivesse em si mesma seu fim, já que duma língua viva o que se deve querer
é o seu manejo, oral e escrito (se língua viva de cultura) para as situações
sociais concretas em que os interlocutores (ou interscribentes) necessitam dela
para se comunicarem. Ao invés disso, Ernesto Faria postulava: 1) não se bus-
cará “falar” nem se buscará “escrever” o que já não se fala nem se escreve –
e “onde” se fala e se escreve o latim é um reduto que quase nada mais tem do
latim, a Igreja e certas universidades que pediam teses em latim: no mínimo, aí
havia – ressalvadas as mensagens universalistas papais para povos de todas
as línguas – um exibicionismo aristocrático e elitista classificatório, sem possí-
vel proveito senão para os iniciados, muito reduzidos num mundo em democra-
tização do saber; 2) era a insistência em querer fazer “falar” e “escrever” latim
que transformava esse ensino em algo irracional à sensibilidade e inteligência
dos estudantes, violentados por essa total gratuidade – já que, como “exercí-
cio” mental, dizia-se, o xadrez, a lógica, as matemáticas dariam (e davam)
mais; 3) entretanto, o latim era, efetivamente, a chave para uma aquisição
constelar da língua portuguesa de cultura e, com ela, das línguas românicas de
cultura e, com elas, das línguas de cultura, sem falar da abertura cultural que
havia em saber ver as sementes do presente no passado, em abundância no
Professor Ernesto de Faria Júnior 43
Não citarei nomes dos que se fizeram seus discípulos, numa linha que vem
de Antenor Nascentes – e, antes, de Fausto Barreto – e é por ele continuada.
Temo omitir. Mas estou certo de que a muitos deles que lerem esta nota lhes
ocorrerão traços inconfundíveis do mestre e amigo que foi Ernesto Faria, tão
atento à formação cultural de cada um e ao mesmo tempo tão solidário com a
vida material, espiritual e sentimental de cada um.
A bibliografia de Ernesto Faria, aqui estampada, não busca ser exaustiva,
tanto é fato que o primeiro título, acima referido, dela não consta – a sua tese
de concurso.
Nessa bibliografia ver-se-ão as três vertentes do seu trabalho autoral. O
que não se verá, porém, é a adequação de cada texto ao projeto que o animava
– fazer do latim e sua cultura um instrumental cultural que situe o estudioso e o
homem no universo da cultura contemporânea sempre que esta vise a um tipo
de universalidade humanística que não busque uma tecnificação que tangencia
a pulverização dos homens em cada homem.
Os livros – os livrinhos, disse o fabulista – têm seu destino. Alguns mor-
rem, mas foram ou não foram fecundos. Há, no acervo autoral de Ernesto
Faria, alguns que pulsam de vitalidade e que continuam vivos para quantos
queiram não apenas estudar o latim e sua cultura, mas também buscar suas
conexões com o português e as línguas de cultura e o mundo moderno. A ree-
dição do seu Dicionário escolar latino-português, é assim, relevante e aus-
piciosa para quantos, muito além e muito aquém do escolar, se interessem por
aqueles fatos de cultura.
6. In Memoriam
J. Marouzeau
(Société des Études Latines)
13. Agradecimento
Notas e Referências
(1) COSTA, Aída. A vida e a obra de Ernesto Faria, in: Boletim de Estudos Clássicos,
nº VI – 1967, S.Paulo, . 29-41.
(2) PERRET, Jacques. A Atualidade dos Estudos greco-latinos, F. Briguiet & Cia, Edi-
tores, Rio de Janeiro, 1937.
(3) CHEDIAK, Antônio José. Síntese Histórica da Academia Brasileira de Filologia
(1944-1949). Primeira parte, inédito, Rio de Janeiro, 1999.
(4) ELIA, Sílvio. Ensaios de Filologia e Lingüística, 2ª edição, refundida e aumenta-
da, Grifo/MEC, Rio de Janeiro, 1975.
(5) TUFFANI, Eduardo. Repertório Brasileiro de Língua e Literatura Latina (1830-
1996). Íbis, Cotia, SP, 2006,
(6) COSERIU, Eugênio. Tradição e Novidade na Ciência da Linguagem. Estudos de
História da Lingüística, tradução de Carlos Alberto da Fonseca e Mário Ferreira,
Presença/Editora da USP, Rio de Janeiro, 1980.
(7) VALLE, Rosalvo do. Os estudos clássicos na Universidade, Cadernos de Letras da
UFF, nº 1, Niterói, RJ, 1990.
(8) FARIA, Ruth Junqueira de. Lívio Andronico: a obra, a língua, a métrica. Tese de
Livre-Docência, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 1975.
(9) VALLE, Rosalvo do. Considerações sobre a “Peregrinatio Aetheriae”. Tese de
Livre-Docência, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 1975.
(10) In: ARAÚJO, Antônio Martins de. Índices da Revista Filológica. (Arquivo de
Estudos de Filologia, História, Etnografia, Folclore e Língua Literária). ANPOL –
GT – Historiografia da Lingüística Brasileira – Indexação das Revistas Filológicas
Brasileiras do Fascículo XX.
(11) Sobre Jorge Henrique Agostinho Padberg Drenkpol (1877-1948) e sua espantosa
erudição, ver “Elogio de Padberg – Drenkpol” no discurso de posse de Gládstone
Chaves de Melo como seu sucessor na Academia Brasileira de Filologia – In:
MELO, Gládstone Chaves de – e SILVA NETO, Serafim da. Conceito e Método da
Filologia, edição da “Organização Simões”, Rio, 1951, p. 59-85.
O Prof. Ernesto Faria foi um grande divulgador dos estudos latinos, tanto
no magistério, como por meio de suas obras, e deixou-nos irrefutáveis argu-
mentos sobre a importância do Latim para o domínio da língua portuguesa e
enriquecimento de nossa cultura.
Particularmente, defendemos a tese de que um professor de nosso idio-
ma, sem o conhecimento do Latim, apresentará, em geral, embasamento defi-
ciente, insegurança na descrição dos fatos lingüísticos, principalmente nos cam-
pos da morfologia e da sintaxe. É claro que não se trata do domínio exclusivo
do Latim literário, formal, erudito ou clássico, mas também do Latim corrente,
fundamental para uma visão ampla da estruturação das línguas românicas.
Na bibliografia dos estudos latinos destaca-se o trabalho do Prof. Ernesto
Faria por abrir novos horizontes no ensino secundário e no universitário, uma
vez que hauriu as idéias da lingüística moderna de renomados mestres, como
Meillet, Marouzeau, Bourciez, Meyer-Lübke, Havet, Jespersen, Väänänen,
Serafim da Silva Neto, C. Bally para só citar alguns.
Em 1933, publica A Pronúncia do Latim, obra refundida e publicada em
1938, sob o título Manual de Pronúncia do Latim. Aí, compara a pronúncia no
passado e no presente. A pronúncia chamada tradicional, adaptada ao siste-
ma fônico das línguas: francês, inglês, italiano, português etc., e a pronúncia
com base nos estudos da ciência da linguagem denominada reconstituída ou
restaurada. Mereceu palavras elogiosas do lingüista francês Marouzeau.
Em 1941, dá-nos uma obra de valor pedagógico e didático inestimável: O
Latim e a Cultura Contemporânea. Além de apresentar aspectos da prepara-
ção do professor de Latim, explicita as finalidades do seu ensino por meio dos
objetivos pragmático, disciplinar e cultural.
Contudo, a sua grande contribuição aos estudos latinos viria em 1955 com
a Fonética Histórica do Latim. Nessa obra o Prof. Ernesto Faria demonstra
domínio do assunto, segurança na exposição e riqueza bibliográfica. De início,
50 Horácio Rolim de Freitas
2o. 1As vogais eram distinguidas pelo traço pertinente de altura (quantidade)2
a#, a(, e#, e(, i #, i (, o#, o(, u#, u(
O Prof. Ernesto Faria3 cita Quintiliano: “Longa esse duorum temporum,
breuem unius etiam pueri sciunt.” (A longa ter a duração de dois tempos e a
breve a de um até as crianças o sabem).
3o. Os ditongos eram: /au/ aurum; /ae/ caelum; /oe/ poena; /eu/ Orpheus
e, raríssimo /ui/ cui.
4o. Quanto às consoantes, há de observar-se: a letra c representava o
fonema /k/ (oclusivo surdo) mesmo diante de /e/ ou /i/; a letra g o fonema
oclusivo sonoro mesmo diante de /e/ ou de /i/.
5o. O h não constituía um fonema, era um sinal de aspiração em Roma
para representar o espírito forte da língua grega, usado pela elite culta, como,
por exemplo, na palavra ‘ωρα, escrita hora, com aspiração da vogal inicial.
Era denominado, em latim, ah (com h aspirado). Na baixa latinidade pro-
nunciou-se como um /k/, daí a escrita em certas palavras, como nichil por nihil.
O nome da letra é representado, assim, em várias línguas ach (ak) e hacca: no
italiano acca, no francês hache, no espanhol hache e, por imitação da pronún-
cia aspirada, agá, no português.
6o. O /m/ inicial e medial era uma oclusiva labial nasal, sendo, no final da
palavra, um fonema tênue, mas consonantal, como demonstra a métrica latina,
seguindo-se-lhe uma consoante.
O /n/ era um fonema labiodental articulado, inclusive, no final da palavra.
7o. O /r/ era um fonema pré-palatal cuja vibração levou os romanos a
denominarem-no “canina littera”.
8o. O /s/, inicial, medial, intervocálico ou final, representava um fonema
linguodental sibilante surdo. Sabe-se que, desde o séc. IV a.C. , o /s/ intervocá-
lico, depois de sonorizar-se, sofreu rotacismo (cf. amase > amare). Ainda no
período clássico esse fonema era representado tanto pela grafia –s- como por
–ss-: caussa, causa; cassus, casus. Comprova-se esse fonema surdo também
pela transcrição de palavras latinas no grego: Sulpicius em grego Σουλπιvκιος;
Caesar, grego: Καιvσαρ.
1
Niedermann – Précis de Phonétique Historique du Latin, Paris, Librairie Klincksieck, 1906, p.7.
2
Herman, Joseph – Le Latin Vulgaire, Paris, Presses Universitaires de France, 1970, p. 36.
3
Faria, Ernesto – Fonética Histórica do Latim, p. 51.
Obs. Transcrevemos a citação da obra do Prof. Ernesto Faria. Contudo, a lição de Quintiliano
é: “Longam esse duorum temporum, brevem unius etiam pueri sciunt.”
52 Horácio Rolim de Freitas
9o. O fonema /t/ era pronunciado como oclusiva linguodental surda, mes-
mo no grupo ti diante de vogal: Iustitia.
10o. O /u/ , grafado V, era “emitido com a boca apertada e os lábios pouco
esticados para a frente”4
Os gramáticos latinos comparam a sua pronúncia ao ditongo grego –ou-
como na transcrição do Latim para essa língua: Epicuros = grego Eπιvκουρος.
Representa um fonema consonantal fricativo labiovelar5, como em Valerius,
grego Ουαλεvριος.
A cultura helênica introduziu entre os intelectuais a aspiração das con-
soantes gregas:χ , representada por –ch-, ψ, representada por -ph-, θ, repre-
sentado por –th-, como nas palavras sepulchrum, sulphur, thesaurus.
Por outro lado, houve os que combateram a chamada pronúncia restaura-
da, defendendo o uso da pronúncia tradicional. Entre esses opositores destaca-
mos dois eminentes mestres: Nélson Romero e Cândido Jucá Filho.
Cândido Jucá6 não considera o traço de intensidade distintivo no Latim,
como apregoaram lingüistas, a saber: Lindsay, Laurand, Brugmann, Seelmann.
Considera pertinente o acento de altura, lembrando, por exemplo, passagem de
carta de Cícero em que esta cita a confusão de pronúncia entre a palavra latina
bini e a grega bivnei, concluindo ser o acento latino-grego melódico, ou de altura.
É evidente a pertinência do traço de altura, diferenciador de palavras,
como: ve(nit / ve#nit (presente / perfeito), ma(lum (o mal) / ma#lum (maçã), ro(sa
(nominativo) / ro#sa (ablativo); po(pulus (povo) / po#pulus (choupo, tipo de árvo-
re). Essa explicação sobre a pronúncia na época clássica nos dá J. Herman:
“La durée était un trait phonologiquement pertinent...”7. Mais adiante, nas pá-
ginas 44 e 45, Herman afirma: “Não resta dúvida de que o acento latino, depois
do período clássico, sofreu modificações, sendo o traço de altura, no curso da
evolução, substituído pelo acento de intensidade”.
Sobre o exemplo geralmente apresentado da palavra Cícero, transcrita
em grego Κικεvρον, com capa em lugar de sigma, explica o Prof. Jucá que se
trata de transliteração, não de igualdade de pronúncia. Acresce o exemplo de
palavras latinas escritas com /f/ e transcritas em grego por (ϕ), o que não
significa que soavam igualmente. Como abonação, cita passagem de Meillet:
4
Faria, Ernesto. Fonética Histórica do Latim, p. 57.
5
Väänänenn. Introducción al Latin Vulgar, p. 92
6
Jucá Filho, Cândido. A Pronúncia Reconstituída do Latim
7
Herman, Joseph. Le Latin Vulgaire, p. 37.
O Prof. Ernesto Faria e sua importância para os estudos de latim 53
“Les oclusives non aspirées, soit sourdes (pi, tau, capa), soit sonores (beta,
delta, gama) du grec ne devaient pas répondre exactement a P, T, C et B, D, G
du latin”.8
São bem fundamentados os argumentos do mestre Cândido Jucá Filho,
grande conhecedor da cultura e língua latinas e gregas.
Aproveito o ensejo para fazer um reparo, a bem da justiça, a uma afirma-
ção feita pelo Prof. Jucá desairosa a Serafim da Silva Neto, na página 46.9 Ali
critica a Serafim por ter arrolado entre os nomes masculinos em –us, a palavra
vinus, sabendo-se que pertence ao gênero neutro: vinum. Realmente, no Ma-
nual de Gramática Histórica Portuguesa, de 1942, na p. 18, encontramos a
seguinte lição: “Esse latim corrente lusitânico caracterizava-se pela simplicida-
de: nele não havia preocupação literária pois era uma linguagem usual. O voca-
bulário não contava palavras de cunho literário, mas apenas designativas de
objetos e cousas cotidianas.” Aí, entre os vários exemplos, está a palavra vinus,
forma masculina.
A citação de Serafim é fidelíssima; refere-se ao latim corrente, o sermo
usualis em que a tendência ao desaparecimento do gênero neutro já se confi-
gurava. Os nomes neutros no singular passavam para o masculino, enquanto,
no plural, terminados em –a, para o feminino. É antiga a lição de Grandgent:
“En latín popular y tardio esta tendencia (neutros que pasaron a ser masculi-
nos) era muy marcada”10; e cita balneus, caelus, fatus, lactem, vasus, vinus etc.
Encontramos em Petrônio farta exemplificação do gênero neutro substi-
tuído pelo masculino, na obra Satiricon.11 Eis alguns: caelus hic; totus caelus;
Vix me balneus calfecit; Vasus fictilis.
A pronúncia reconstituída não leva em conta os aspectos diatópicos e
diastráticos. A aspiração do h, a pronúncia das consoantes aspiradas do grego:
ϕ (ph), χ (ch), θ (th), por exemplo, só eram enunciadas na linguagem culta dos
homens de letras e, assim mesmo, nos centros de erudição.
Diz-nos Serafim da Silva Neto que “o h não soava desde o tempo de
Cícero. Escrevia-se mas não se pronunciava”.12
Muitas palavras tinham pronúncia e forma diferentes, como nas seguintes
situações fônicas:
8
Meillet, A. Esquisse d’une Histoire de la Langue Latine, Paris, Librairie Hachette, 1928, p. 92.
9
Op. cit.
10
Grandgent. Introducción al Latín Vulgar, p. 216.
11
Petrônio. Satiricon, p. 90, 96, 130.
12
Silva Neto, Serafim da. Fontes do Latim Vulgar, p. 87
54 Horácio Rolim de Freitas
13
Silva Neto, Serafim. op. cit., p. 122.
14
Romero, Nélson. Pronúncia do Latim, p. 56.
15
Silva Neto, Serafim. História da Língua Portuguesa, 1a. ed., p. 197.
16
Grandgent. op. cit. p. 203.
17
Romero, Nélson. A Pronúncia do Latim, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1942.
O Prof. Ernesto Faria e sua importância para os estudos de latim 55
18
Idem, op. cit. p. 68.
19
Idem, op. cit. p. 77.
20
Idem, ib. p. 29.
56 Horácio Rolim de Freitas
Bibliografia
21
In: Graeca et Latina, n° 6/7, p. 34.
O Prof. Ernesto Faria e sua importância para os estudos de latim 57
1
Por simplificação, não se empregam neste texto os diacríticos costumeiramente utilizados nas
transcrições do grego em caracteres latinos.
60 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt
os fios da teia, as palavras, pelo seu poder de nomear, também podem ser
consideradas uma espécie de instrumento (organon) que serve para desemba-
ralhar ou destrinçar as substâncias (diacriticon tes ousias), impondo certa
organização ao mundo supra-sensível das Idéias. Uma vez separados, os seres
que se nomeiam podem ser diversamente entrelaçados no espaço do dizer ou
enunciar (legein), o que permite a construção do raciocínio, a busca da verda-
de e a instauração do processo interlocutivo com o propósito de instruir ou
informar. Pelo ato de dizer, o indivíduo sempre denomina as coisas para si
mesmo ou para outrem. Deste modo, instaura-se o processo dialógico entre
diferentes sujeitos ou o “diálogo da alma consigo mesma”. Para Platão, o
dialogismo é princípio fundador da linguagem e meio fundamental para a ação
do filósofo: falar, pensar e filosofar são, por excelência, formas de dialegesthai.
Para compreender o ponto de vista de Platão sobre a linguagem, é neces-
sário pinçar e confrontar informações que se encontram dispersas em vários
dos seus textos. Também é necessário relembrar que a “segunda navegação”,
mais árdua e difícil, proposta por ele no Fédon, deve conduzir o sujeito
cognoscente ao mundo das formas puras ou Idéias2, que existem per se (to
auto) e são realidades anteriores às coisas do universo sensível. Originárias de
uma dimensão metafísica, que no Fedro (247c-e) corresponde a um “lugar
supraceleste” (huperouranios topos), as Idéias se apresentam como algo
(ousia) unitário e indestrutível; algo desprovido de qualquer materialidade; algo
que mantém com os objetos do mundo físico apenas uma série de relações que
se imbricam ou se complementam: precedência e causalidade; modelo e imita-
ção; presença, participação e comunhão. Assim, a Idéia é vista como princípio
e causa das coisas sensíveis, a sua ratio essendi ou seu pressuposto de inteli-
gibilidade. O mundo da empeiria apenas mimetiza modelos preexistentes, for-
mas arquetípicas. A participação, por sua vez, é pensada como a presença da
unidade na variedade: trata-se do reflexo de uma Idéia que impõe determinada
ordem ao caos de nossas incessantes experiências; é um ponto comum (limite)
por que se identificam diversos seres apreensíveis pelos sentidos em um
continuum aberto e interminável, que se perde na liberdade do Infinito.
Na Sétima Carta (342a-b), Platão apresenta relevante síntese das suas
várias e variadas reflexões sobre a relação entre o ser, o saber e a linguagem.
2
Como bem se sabe, Platão atribui ao inteligível unitário, “per se existente, o nome neutro Eidos
ou o seu equivalente feminino Idea (Forma, Idéia). De modo geral, eidos corresponde, em
latim, ao termo species.
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 61
4
Consoante a argumentação de Demócrito, se as palavras fossem uma cópia do real, não deveria
haver diferentes nomes para o mesmo objeto, nem a designação de diferentes seres pelo
mesmo nome.
5
Cf. Crátilo, 387 b; Sofista, 263 b.
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 65
dos nomes era com freqüência considerada uma espécie de sinete que se apli-
cava diretamente aos corpos singulares e sempre cambiáveis das coisas apre-
endidas pelos sentidos6. Tal relação dicotômica atribuída ao processo lingüísti-
co, que supõe uma espécie de “realismo direto”, foi veementemente criticada
por Platão e por Aristóteles, pois desqualificava a linguagem como meio de
encontrar e manifestar a verdade. Conforme acima explicado, para os dois
filósofos as vozes das palavras representam de imediato algo unitário ou inva-
riável, que, por sua vez, remete aos variados e infinitamente variáveis estados
de coisas da realidade. Surgem, desse modo, os lineamentos de uma teoria
semiológica de base triangular, cuja síntese se pode expressar pelo princípio
medieval de que uoces significant res mediantibus conceptibus7.
6
Reminiscências da ingênua suposição de aderência da forma sonora da palavra a certo objeto
do mundo real sobrevivem no emprego encantatório da linguagem, na crença de que a simples
emissão do vocábulo faz as coisas acontecerem. Conforme o dito popular, “é só falar no diabo
que ele aparece”.
7
Comentando as Categorias de Aristóteles, Simplício, filósofo neoplatônico do séc. VI, já
afirma que o objetivo da referida obra é justamente discorrer sobre “vozes simples que signi-
ficam coisas simples, por intermédio de conceitos simples”: peri haplon phonon semainouson
hapla pragmata dia meson haplon noematon. (In Cat., p.12, 9)
66 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt
(1450b e 1456b), onde ele precisamente arrola oito “partes da expressão” (mere
lexeos ), entre as quais aparecem os stoicheia (fonema / letra) e a sílaba.
É interessante observar que em Commentarium in librum aristotelis
perihermeneias, Boécio (fins do séc. V), traduz o termo lexis por locutio, a
que confere a definição de uox articulata, entendendo por uox uma espécie
de sonus que é peculiar aos seres animados e suscetível de carrear alguma
significação. Interpretando com acerto o texto aristotélico, Boécio reconhece
que algumas partes locutionis (mere lexeos) não são portadoras de valor se-
mântico: “Locutio namque non in solis significatiuis uocibus constat sed
supergrediens significationes uocum ad articulatos sonos usque consistit”.
Com os pensadores estóicos que viveram entre os séculos III a.C. e I a.C,
os termos lexis e logos ganharam novos empregos na descrição da linguagem.
Segundo informações colhidas em Sexto Empírico (séc. II d.C.) e em Diógenes
Laércio (séc. III d.C.), os estóicos empregavam logos para indicar uma “voz
significativa” (phone semantike), ao passo que lexis indicava apenas uma
“voz articulada” (phone enarthros)8, que podia ser significativa, como hemera
[dia] ou “não-significativa” (asemantos), como blitri (espécie de onomatopéia).
Ao valor semântico associado à lexis, os estóicos costumavam dar o nome de
lekton. Nesta linha de entendimento, logos sempre corresponde, como sucede
com o signo saussuriano, a uma entidade de duas faces, uma sensível (lexis) e
outra inteligível (lekton)9. Enquanto componentes do logos, a face sensível ou
corpórea é um significante (semainon); a face inteligível ou incorpórea é um
significado (semainomenon). Em conjunto, representam alguma coisa do mun-
do extralingüístico (tuchanon, pragma). Em resumo, temos:
phone não-articulada
phone articulada ......................... (lexis)
lexis sem lekton
lexis com lekton........................... (logos)
É interessante comparar a classificação acima com outra anterior, que se
pode inferir do pensamento aristotélico. Na opinião de Aristóteles (Peri Psuches,
II, 420b; Peri Hermeneias, II, 16a), alguns dos sons produzidos pelos seres
animados, (psophos empsuchou) podem ser usados com valor de sinal
8
A “voz articulada” era sempre vista como phone engrammatos, quer dizer, como emissão
sonora suscetível de ser reproduzida ou representada por letras.
9
Os termos logos, lexis e lekton ressurgem nos textos de Santo Agostinho (séc. IV d.C.) sob as
formas de uerbum, dictio e dicibile, respectivamente. A distinção agostiniana entre uerbum
mentis (cordis) e uox uerbis também parece ter as suas raízes na oposição estóica entre logos
endiathetos e logos prophorikos.
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 67
10
Para Aristóteles, o sinal (semeion) é algo que mantém com aquilo que é sinalizado (semeioton)
uma relação implicativa. Conforme se infere do que ele diz nos Primeiros Analíticos (II, 27,
70a ), a coisa que faz supor a existência de outra , seja anterior ou posterior, é, desta outra, um
sinal. Por conseguinte, o sinal é sempre uma coisa que leva ao conhecimento de alguma outra.
Como preferiam dizer os estóicos, o semeion serve para revelar o semeioton. Assim, a fumaça
funciona como sinal de fogo; uma cicatriz, como sinal de um antigo ferimento. É fato conhecido
que a doutrina estóica a respeito dos sinais (inclusive exemplos) reaparece na obra de Santo
Agostinho.
11
Vale lembrar que a definição aristotélica de sumbolon, embora distante da interpretação
saussuriana, encontrou plena guarida nos trabalhos semióticos de Charles S. Peirce.
12
Em Aristóteles, o termo semainomenon aparece, por exemplo, na seguinte passagem da Retó-
rica (III, 1405b): kallos de onomatos to men, hosper Likumnios legei, en tois psophois e toi
semainomenoi... [ como diz Licínio, a beleza de uma palavra pode estar nos seus sons ou no
seu significado...]. Também nos textos aristotélicos é comum o emprego de semainon para
indicar “o que significa” (significante).
68 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt
Vocum alia significatiua, alia non significatiua. Vox significatiua est illa quae aliquid
auditui repraesentat, ut ‘homo’ ‘hominem’, uel gemitus infirmorum dolorem aut
latratus canum iram uel gaudium. Vox non significatiua est illa quae auditui nihil
repraesentat, ut ‘bu’, ‘ba’.
13
Entre os primeiros gramáticos latinos, a definição da palavra (uerbum), como a menor unidade
significativa, aparece com todas as letras em Varrão: Verbum dico orationis uocalis partem,
quae sit indiuisa et minima. (De lingua Latina, X)
70 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt
14
A tradicional tradução de Peri Hermeneias por Da Interpretação (lat. De Interpretatione; ing.
On Interpretation ) tem recebido algumas críticas. Muitos hoje preferem traduzir o referido
título por Da Expressão, o que não só corresponde a um dos sentidos do termo grego, mas
também parece estar em mais fina sintonia com os propósitos da obra aristotélica.
15
Releva notar que Quintiliano, autor de séc. I d.C., atribui a Aristóteles apenas a distinção entre
onoma, rhema e sundesmos ( Inst. Orat., I, 4). O mesmo já antes fizera Dionísio de Halicarnasso
(séc. I a.C.), que categoricamente afirma, em seu tratado sobre a combinação das formas
verbais, que Aristóteles e alguns seus contemporâneos, como Teodeto, só distinguiram as três
referidas classes de palavras.
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 71
16
O duplo sentido de onoma, entre os gregos, também se encontra em uerbum, entre os gramá-
ticos latinos. Conforme explica Quintiliano (Inst. Orat., I, 5), toma-se uerbum ora em sentido
genérico, ora em sentido específico. Genericamente, designa qualquer palavra, equivalendo a
uox, locutio ou dictio; especificamente, aplica-se a determinada “parte da oração”, como lego
ou scribo.
72 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt
17
Na Techne, o adjetivo (epitheton) é visto como uma espécie de nome (onoma) que se junta a
outro nome. Tal interpretação, que implica a adoção de uma perspectiva sintática, está ligada
à distinção medieval entre nomen substantivum (que significa per modum per se stantis) e
nomen adiectivum (que significa per modum adiacentis).
74 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt
Quod ad partis singulas orationis, deinceps dicam. Quoius quoniam sunt diuisiones
plures, nunc ponam potissimum eam qua diuiditur oratio secundum naturam in
quattuor partis: in eam quae habet casus et quae habet tempora et quae habet
neutrum et in qua est utrumque. Has uocant quidam appellandi, dicendi,
adminiculandi, iungendi. Appellandi ut homo et Nestor, dicendi ut scribo et lego,
iungendi ut que19, adminiculandi ut docte et commode.
19
Algumas edições do texto varroniano trazem, em lugar de “iungendi ut que”, a construção
“iungendi ut scribens et legens”. Embora scribens e legens se enquadrem na classe das palavras
com flexão de caso e tempo, anteriormente mencionada, não faz sentido considerá-las como
formas iungendi.
76 Luiz M. M. de Barros / Terezinha Bittencourt
Appellandi partes sunt quattuor, e quis dicta a quibusdam prouocabula quae sunt
ut quis, quae; uocabula ut scutum, gladium; nomina ut Romulus, Remus;
pronomina ut hic,haec. Duo media dicuntur nominatus; prima et extrema articuli.
Primum genus est infinitum, secundum ut infinitum, tertium ut finitum, quartum
finitum.
(De lingua Latina, 8. 23)
Nomen: Pars orationis cum casu corpus aut rem proprie communiterue
significans.
Pronomen: Pars orationis, quae pro nomine posita tantundem paene significat
personamque interdum recipit.
Verbum: Pars orationis cum tempore et persona sine casu aut agere aliquid
aut pati aut neutrum significans.
Partes Orationis: notas sobre a tradição greco-latina 77
5. Conseqüências e conclusão
Para ser adequada, toda classificação deve atender a três requisitos lógi-
cos: a) apoiar-se em critério homogêneo e relevante; b) ser exaustiva; c) ob-
servar o princípio da irredutibilidade. Enquanto modi significandi, as palavras
carregam em si um conteúdo genérico e irredutível (valor categórico) associa-
do a outros traços semânticos particulares (valor específico). Pelo modo gené-
rico de significar, as palavras põem em relevo a essência, a existência ou as
relações dos seres pertencentes ao espaço infinito do real e do imaginário, que
elas reticulam e representam. Assim, com amparo no seu valor categórico, é
possível distribuir primariamente as palavras em três classes:
1. Apelativo (Palavra que apenas desvela a essência dos seres, isto é,
o quê permanente e imutável das coisas.)
2. Verbo (Palavra que indicia certo modo de existência dos seres,
que os concebe como evento, como algo suscetível de
ocorrência e mudança na linha do tempo.)
3. Conectivo (Palavra que exprime relação entre os seres.)
Referências Bibliográficas
1
Quero agradecer a leitura crítica dos seguintes colegas: Gladis Massini-Cagliari, Marli Qua-
dros Leite, Renato Miguel Basso e Sumiko N. Ikeda. As falhas são da minha responsabilidade.
2
A polêmica em torno do gerúndio trouxe vários neologismos para o português: gerundismo,
gerundizar e antigerundista. É bom lembrar que existe o termo gerundivo que se refere ao
“particípio do futuro passivo latino” (Aurélio de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1986, p. 685. Alguns exemplos em portu-
guês são: doutorando, graduando, formando. Existem em português os adjetivos “fervente” e
“corrente”, antigos particípios latinos, relacionados com o gerúndio V___NDO. O adjetivo
“gerundial” está arraigado no idioma. O enunciado “chovendo, não sairei” é, segundo a análise
de Bechara (2000: 155) uma oração subordinada adverbial condicional reduzida de gerúndio
ou reduzida gerundial.
88 John Robert Schmitz
3
Certa insegurança se observa também no texto do articulista, ensaísta e autor de telenovelas,
Walcyr Carrasco. Cf. Walcyr Carrasco, “Certo ou errado”, Veja, São Paulo, 16 de fevereiro de
2005. Carrasco escreve nestes termos: “A Língua Portuguesa está mudando. Se é um processo
bom ou ruim, tenho minhas dúvidas” (p. 138).
4
É plenamente possível em português empregar o presente do indicativo: “Enquanto você
arruma a cozinha, vou passar o aspirador”/ “Enquanto você resolve seus assuntos, vou espe-
rar/ vou ficar aqui”. O problema é que alguns gramáticos dizem que a forma com o gerúndio é
prolixa e, portanto, desnecessária. Eles recomendam o uso da forma “simples” argumentando
que é mais “enxuta”.
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 89
sexta seção, especulo se o uso gerúndio deve ser considerado um erro e per-
gunto o que é um erro realmente. Na sétima, teço comentários sobre a crença
por parte de muitos usuários de que a ocorrência do gerúndio se deve à influên-
cia da língua inglesa em contato com o português. Na última parte do trabalho,
apresento algumas conclusões que decorrem da análise.
... observemos ainda que no setor das perífrases a noção que apresenta maior
riqueza de possibilidades de expressão é a de duração, e que de todas a mais
versátil é a perífrase com estar (a) + infinitivo/gerúndio/particípio passado, indi-
cando ação inceptiva cursiva propriamente dita e cursiva progressiva, resultativa
e cessativa.
Está mais de acordo com o gênio da língua portuguesa (ênfase minha) o uso do
gerúndio com auxiliar estar ou infinitivo com a para traduzir atos que se realizam
paulatinamente, em vez do uso de forma simples do verbo, como faz o francês
(Jeanne nous regarde / Joana está-nos olhando ou a nos olhar (p. 232)).
“Chorando de coraçon
foi-sse correndo
a casa, e viu enton
estar fazendo
os bischocos e obrar
na touca a perfia,
e começou a chorar
con mui grand’alegria.”
(Cantigas de Santa Maria, 18)
9
O francês tem o “gerondif”: Ils vont chantant e En attendent le plaisir de vous rencontrer...,
mas não uma forma perifrástica como être (estar)+ gerúndio.
92 John Robert Schmitz
O francês tem equivalentes para as sentenças (i) e (ii) acima, mas não para (iii)
e (iv). O italiano, por sua vez, apresenta “traduções” para (i) e (ii) respectiva-
mente “invierò la relazione domani” e “ínvio la relazione domani”; no sistema
verbal italiano não existem equivalentes para (iii) e (iv).
À guisa de exemplo, o falante do português pode dizer “Maria canta” e
também “Maria está cantando”. Existe em francês uma única possibilidade
“Marie chante”, oração essa que comunica o que Marie sabe fazer e também
o que ela está fazendo num determinado momento da fala. Para transmitir
continuidade, a língua francesa depende exclusivamente de advérbios ou ex-
pressões adverbiais: “maintenant”, “dans ce moment” ou “être en train de+
infinitivo”. Obviamente, uma oração isolada (fora de contexto) é ambígua.
Quanto ao português brasileiro, cabe observar que o próprio verbo estar
(com ou sem ser+NDO) precede adjetivos dinâmicos tais como: “Ele está (sendo)
curioso, barulhento, intransigente, exibido, oferecido, fingido” Esses mesmos
adjetivos também seguem o verbo de ligação ser: “Ele é curioso, barulhento,
intransigente, exibido, oferecido, fingido etc.” Daí se pode concluir que o portu-
guês de acordo com a figura abaixo possui um quadro verbal “diferenciado”
em contraste com o inglês ou com o francês.
está sendo
Mário está curioso.
é
10
O português é diferente de outras línguas do mundo em utilizar o gerúndio em enunciados
como: Só rindo, Só vendo, só perguntando, Foi sem querer, querendo.
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 93
Cunha (1970: 282) observa que no português popular “... o gerúndio subs-
titui por vezes a forma imperativa”. Eis alguns exemplos retirados do livro de
Cunha:
“Ele (= projeto de lei do deputado Aldo Rebelo) teria que estar sendo mais discu-
tido.” [ Luis Fernando Veríssimo, Agência O Globo,Gazeta do Povo (Curitiba), 25
de janeiro de 2001.
“Toda vez que eu ligo a TV ou ele está sendo preso ou está sendo solto!” (José
Simão, Folha de S. Paulo, 20 de abril de 2004, p. E 7)
“Os carnês estão sendo enviados.”
“Os impostos estão sendo cobrados.”
está
anda
vive
Ele fica pesquisando a vida dos dinossauros.
vai
vem
segue
continua
vai
deve
pode
espera
tem vontade de estar pesquisando a vida dos dinossauros.
Ele admite
pretende
reconhece
pensa
planeja
julga
Este artigo foi feito especialmente para que você possa estar recortando, estar
imprimindo e estar fazendo diversas cópias, para estar deixando discretamente
sobre a mesa de alguém que não consiga estar falando sem estar espalhando essa
praga terrível que parece estar se disseminando na comunicação moderna, o
gerundismo. (Manifesto antigerundista).
saiba exatamente quando, no decorrer da próxima semana, que ela vai poder
enviar.”12 O referido enunciado não ocorreu num ambiente de telemarketing
mas num ambiente universitário. Daí se vê que “vou estar+V____NDO” pode
ser recebido diferentemente por dois ou mais usuários. Generalizar com base
em uma opinião é sempre perigoso. A linguagem é plural e não é propriedade
de um indivíduo só.
Vou estar pode ser recebido por parte de um determinado ouvinte como
exemplo de má-vontade em realizar a ação logo. A causa da irritação pode ser
muito mais a própria situação em que a linguagem é usada. Teclar no telefone
número 1 para “alhos” e 2 para “bugalhos” e assim número 8 !! para finalmente
ouvir uma gravação que diz: “Obrigado, você vai estar recebendo um telefone-
ma de um de nossos representantes”, contribuiria, sem dúvida, para a perda de
paciência por parte de uma pessoa até bem equilibrada. O problema é nem
sempre lingüístico. Em uma situação em que o lapso de tempo necessário para
que uma ação de enviar ou transferir algo, um documento por fax, por exem-
plo, depende da própria eficiência do serviço prestado: as linhas telefônicas são
lentas? A rede vive fora do ar ou está lenta? É provável que alguns usuários que
trabalhem diretamente com a Internet e aparelhos de fax estejam acostumados
às demoras nas tentativas de “enviar” e “transferir” devido ao tamanho dos
arquivos, mas outros ficam irritados e impacientes com a demora.. Os que de-
pendem de serviços de entrega em domicílio estão cientes da morosidade do
tráfego nas ruas e avenidas congestionadas: o enviar e o transmitir se tornam
(para eles) ações de duração e não atividades pontuais. Ainda, outras situações:
o funcionário ou a funcionária está dando conta do grande número de chama-
das? A fila não anda? Os funcionários estão revoltados devido a problemas
trabalhistas ou de ordem pessoal? A língua e a linguagem são fenômenos sociais
e os acontecimentos no dia-a-dia dos seres humanos afetam a linguagem que eles
utilizam. Cabe lembrar que mesmo sem usar nenhum gerúndio, um(a) telefonis-
ta pode ocasionar irritação quando deixar um indivíduo esperando muito tempo
para ser atendido. O problema pode ficar em certas instâncias fora da própria
linguagem, pois filas intermináveis em repartições ou em bancos também irri-
tam mesmo quando não ocorrerem gerúndios na interação entre indivíduos.
É importante também não adotar uma postura preconceituosa contra gru-
pos de pessoas que trabalham no campo de telemarketing que atribuem à
12
Os meus agradecimentos a todos os colegas e também aos informantes “leigos” que debateram
comigo a respeito do gerúndio. Não menciono nomes específicos, pois a consulta por minha
parte foi realizada informalmente por correio eletrônico. Julgo que não seria ético indicar
nomes, pois muitos dos consultados disseram que gostariam de refletir mais sobre o assunto.
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 97
13
Numa das páginas na Internet que ataca o uso do gerúndio, os autores do site consideram o
grupo de indivíduos que trabalham no campo de telemarketing como sendo um “gueto”.
Lamentável é o uso da referida palavras que lembra a exclusão social de milhares de judeus na
Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial.
Considerando que um bom número de pessoas que trabalham na área de telemarketing são
mulheres, pergunto se não poderia haver certa dose de discriminação contra elas. Recentemen-
te, na programação de uma novela televisa, uma alta executiva de uma empresa humilhou uma
secretária por ela ter usado ir+estar+V___NDO. Mais um exemplo do uso da língua (e a
linguagem) como instrumento de poder e autoridade. Existe uma dose de “terrorismo” em
certas atitudes sobre a linguagem,
14
Infelizmente, afirmei em trabalho anterior (Schmitz, 2004) que a construção ir (poder, dever,
ficar) é recente no idioma. Com base nos exemplos encontrados nas obras de D. Machado,
Telles e Resende, retiro a afirmação. Os enunciados retirados de D. Machado mostram que a
construção em tela data de 1935, mais de 70 anos atrás. Cabe observar que não encontrei
enunciados com ir+estar+V___NDO nos referidos textos. É possível que essa forma seja
realmente mais recente e restrita a textos orais informais. Seria interessante saber exatamente
quando ingressaram no idioma pela primeira vez construções como poder+estar+V___NDO,
dever+estar+V___NDO, e haver de+estar+V____NDO. Não encontrei exemplos de ir (po-
der, dever, haver de+ V___NDO no corpus das obras de Maria Helena de Moura Neves,
Gramáticos de Usos do Português. São Paulo: Editora Unesp, 2000 e também de Odette
Gonçalves Luiza Altmann de Souza Campos. O Gerúndio em Português. Rio de Janeiro:
Presença, 1980.
98 John Robert Schmitz
(iv) “Quis dizer-lhe como esse encontro me deixou desanuviado, mas ele de-
via estar sabendo, eu não precisava mais falar” ( p. 93) Lygia Fagundes
Telles, Invenção e Memória. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
Se você ficar transferindo 3 mil reais da minha conta corrente durante o dia 23. Vai
zerar a conta. Só transfira uma vez, não fique transferindo.
Possenti (2005: 11) afirma que o verbo enviar não é durativo e portanto
incompatível com o verbo auxiliar estar que tem sentido durativo. Com base
nesta consideração, o autor afirma que o enunciado “vou estar enviando o seu
cartão” é “estranho” ao passo que o enunciado “vou estar morando em S.
Paulo” está bem formado devido ao fato de estar e o verbo principal em -NDO
serem durativos. Posso contra-argumentar que a noção de duração não é um
traço inerente dos verbos. Somente quando eles são empregados em eventuais
tempos verbais seria possível cientificar se um determinado verbo for durativo
ou não.
100 John Robert Schmitz
a) Escala de comprometimento?
b) Atenuação de assertividade?
c) Determinação histórica
d) Concisão
Não somente a construção com gerúndio ir+estar+ V____NDO “Ama-
nhã, vou estar conversando com ele” mas também a construção “Amanhã,
estarei conversando com ele” são considerados “pouco econômicas à expres-
são do sentido pretendido” por parte de Camargo (2000). A autora recomenda
“Amanhã conversarei (vou conversar) com ele”. Qual será o “sentido preten-
dido” a que se refere a autora? O perigo com a recomendação é que eventuais
vestibulandos podem inferir que o futuro perifrástico “Estarei conversando”
não é exemplo de português correto. Pior ainda é condenar “conversarei” na
crença de que o futuro não é usado em português do Brasil como afirma Cipro
104 John Robert Schmitz
15
Os que argumentam que o gerúndio é prolixo nem sempre sabem que, em certos casos, o
presente indicativo e a forma perifrástica estar+NDO funcionam como variantes estilísticos,
pois os usuários de português podem escolher: “Envio neste momento um e-mail com dois
anexos”/ “Estou enviando neste momento um e-mail com dois anexos”.
Sobre o gerúndio e “gerundismo” 105
16
Um estudo pormenorizado, muito sério e comovente sobre o preconceito lingüístico é o livro
de autoria de Maria Marta Pereira Schere, Doa-se lindos filhotes de poodle. São Paulo, Pará-
bola, 2005.
106 John Robert Schmitz
8. Concluindo
a) Neste trabalho tentei mostrar que o português é uma das línguas do
mundo que apresenta uma variedade de construções perifrásticas com a pre-
sença do verbo auxiliar estar (e vários outros): “Ele está, vem, vai, anda, vive
estudando”. Bechara (2001:219-220) resume com propriedade a complexidade
do sistema verbal do português: “É o que ocorre com estive fazendo, que
expressa, além do nível do tempo e da perspectiva primária, também a visão.
Tenho estado fazendo expressa nível temporal, perspectiva primária, pers-
pectiva secundária e visão. Já tenho estado vindo fazendo, tinha-se estado
pondo a fazer embora teoricamente possíveis, não são correntes.”
b) Comentei no decorrer do artigo que os próprios usuários do idioma
empregam a referida construção perifrástica com criatividade nos textos escri-
tos e também orais. Alguns exemplos:
“Deu o que deu. Ou está dando no que está dando”, Eliane Cantanhêde, “Dor no
coração”, Folha de S. Paulo, 29 de fevereiro de 2004, p. A2.
17
A polêmica sobre o gerúndio infelizmente traz críticas à figura do tradutor. Alguns anti-
gerundistas culpam ao tradutor brasileiro de língua inglesa pela presença do gerúndio em
português. É injusto generalizar e afirmar que todos os tradutores são incompetentes e que não
respeitam a sua própria língua. Existe muita seriedade e profissionalismo por parte dos
tradutores e intérpretes brasileiros.
108 John Robert Schmitz
Referências bibliográficas
18
Cabe observar que em inglês “reading”em “John is reading” ( João está lendo) é um “participle”
(particípio). Um “gerund” é “reading”em “Reading develops the mind” (A leitura desenvolve
a mente).
110 John Robert Schmitz
CAMARGO, Thaís Nicolette de. “Sobre tempo e aspecto nos verbos”, Fuvest,
Resumo/Português, Folha de S. Paulo, 19 de dezembro de 2000.
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SEARLE, John e VANDERVEKEN, Daniel. Foundations of Illocutionary
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FILOSOFIA DA LINGUAGEM E TERMINOLOGIA ECDÓTICA
Barbara Spaggiari
1
Cf. Barbara SPAGGIARI-Maurizio PERUGI, Fundamentos da Crítica Textual, Rio de Janeiro,
Editora Lucerna, 2004.
112 Barbara Spaggiari
mal, e pode ser grafada duma só maneira, sob pena de não ser entendida pelo
leitor, ou então, de introduzir um erro patente no texto.
Nas línguas clássicas existia, portanto, um sistema não apenas gramatical,
mas também (orto)gráfico, que não admitia oscilações, ou mudanças, graças à
estandardização suportada, tanto pela língua grega como pela latina, em sua
expressão literária, ou culta.
A situação muda radicalmente com o advento das línguas vernáculas, que,
em seu secular processo de afastamento da matriz comum latina, atravessam
várias etapas evolutivas, chegando só em época assaz recente a uma norma
estandardizada, oficial, ‘ne varietur’ (o que, nem sempre, mas freqüentemente,
coincide com a afirmação de uma estrutura estadual, ou de qualquer modo
centralizada, capaz de impor uma norma lingüística unitária).
A distinção entre ‘crítica das lições’ e ‘crítica das formas’, introduzida por
Gaston Paris na sua edição da Vie de Saint Alexis (1872),2 constitui, portanto,
uma pedra angular na história da ecdótica moderna. Com isso, o fundador da
filologia românica toma em conta o fato de que a mesma palavra pode ser
grafada, numa língua neolatina antiga, com diferenças formais, que não inci-
dem sobre a substância, isto é, sobre a identidade e o significado da palavra. Na
sua introdução metodológica à Vie de Saint Alexis, Gaston Paris retoma várias
vezes o mesmo conceito, articulando sempre a oposição entre o que ele chama
‘fond’ (“altérations apportées au fond”, “refonte du fond”, p.10) e o que ele
define como ‘forme’ (“altérations apportées à la forme”, “refonte de la forme”,
ibid.), até ele chegar à definição da tarefa do editor crítico, como sendo consti-
tuída por duas operações distintas, mesmo que complementares: se ao editor
cabe, por um lado, “la constitution du texte en ce qui concerne les leçons”, ele
deve também, por outro lado, “déterminer les formes du langage et d’écriture
qu’il faut adopter” (p.27).
Dentro da ‘varia lectio’ será preciso, então, distinguir entre lições diver-
gentes quanto à ‘substância’, que terão que ser levadas em conta aos fins
estemáticos, e lições que apenas divergem quanto à ‘forma’, isto é, do ponto de
vista gráfico ou fonético. Sendo definida a oposição entre ‘fond’ e ‘forme’,
como acabamos de ver, por Gaston Paris, ficou essa terminologia própria dos
filólogos franceses, ou francófonos, que falam, portanto, de ‘variantes de fond’
e de ‘variantes de forme’.
2
Cf. La Vie de Saint Alexis. Poème du XIe siècle (...), publ. par Gaston PARIS et Léopold
PANNIER, Paris, Franck, 1872.
Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica 113
Na sua tese de docência livre,4 que não chegou a defender pelo seu pre-
maturo falecimento, Emmanuel Pereira Filho edita o poema camoniano Tão
suave, tão fresca & tão fermosa (RH, f.45), demonstrando, além do mais,
que se trata de uma Canção, e não de uma Ode, como pretendem a tradição
manuscrita e a impressa.
3
Cf. Graça Almeida RODRIGUES, “Edições críticas, textologia, normas para a transcrição de
textos do século XVI ”, in Arquivos do Centro Cultural Português, 17 (1982), p.637-660; Ivo
CASTRO, Editar Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990.
4
Cf. Emmanuel PEREIRA FILHO, Uma Forma Provençalesca na Lírica de Camões, Rio de
Janeiro, Gernasa, 1974.
114 Barbara Spaggiari
Para sistematizar a análise que devemos fazer (...) e mesmo para maior comodidade
na explanação dos problemas, vamos desde logo classificar todas estas variantes
em dois grupos genéricos, segundo um critério que não tem pretensões maiores
que a sua finalidade estritamente prática.
Para isso, partimos da conhecida dicotomia saussureana entre significante e sig-
nificado. Chamamos então variantes externas àquelas que não ultrapassam de
muito o âmbito da estrutura significante, atingindo no máximo certos aspectos
conotativos do signo, falado ou escrito ; e reservamos a designação de variantes
internas para aquelas em que haja, ou em que pelo menos seja lícito presumir,
qualquer divergência de significado. (...) Cada variante, seja ela do tipo que for, no
momento em que tivermos de considerar o seu valor ecdótico, terá de ser sempre
apreciada em si e independentemente de quaisquer classificações. Além do que, o
que se revela na prática corrente é que as variantes que chamamos externas são,
na maioria dos casos, de importânca secundária para a formulação de conclusões
estemáticas, o que fica reservado quase sempre às que chamamos internas, evi-
denciando-se, portanto, como de grande comodidade o separá-las para efeito de
estudo. Por outro lado, no entanto, o certo é que a sua visão de conjunto (...)
quase sempre proporciona uma série de conlusões que consolidam ou pelo me-
nos aclaram as hipóteses que as internas levam a formular. E só isso seria o
bastante para justificar a utilidade da classificação (Uma Forma Provençalesca,
o.c., p.35-36).
5
Cf. Emmanuel PEREIRA FILHO, Estudos de Crítica Textual, Rio de Janeiro, Gernasa, 1972, que
reúne os dispersos de 1954 a 1967: a citação na nota 36, p.215.
6
Veja-se “No quarto centenário da primeira publicação de Camões”, in Estudos, o.c., p.32-36 (a p.34).
Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica 115
7
Cf. Ch.V. LANGLOIS et de Ch. SEIGNOBOS, Introduction aux études historiques, Paris,
Hachette,1898.
8
A critique externe, ou critique d’érudition, abrange, na verdade, várias etapas e, diríamos hoje,
várias metodologias, a saber : 1. a critique de restitution, ou critique des textes, que é, nada mais
nada menos, o estabelecimento do texto segundo critérios científicos, isto é, a edição crítica do
documento a analisar ; 2. a critique de provenance, ou critique des sources, que prevê a
investigação sobre o lugar de proveniência do documento, a sua datação e a identificação do
nome do autor, bem como a recolha e a classificação das fontes que nos transmitiram o
documento.
9
Quanto à critique interne, que é logicamente e cronologicamente posterior à precedente, essa
prevê, por seu lado, a critique d’interprétation, ou herméneutique, e outras categorias, algo
ultrapassadas, como a “ critique interne negative de sincérité et d’exactitude ”.
116 Barbara Spaggiari
10
Como se pode ver, Humboldt confere, deste modo, à língua uma função intermediária entre o
espiritual e o sensível, numa espécie de equilíbrio, em que a língua nem coincide com um, nem
com outro, precisamente porque ela brota da síntese dialógica (e não dialética, no sentido
hegeliano do termo) dum com outro. Não se trata, contudo, de uma separação ontológica, mas
sim de uma distinção meramente conceitual.
Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica 117
11
Cf. Donatella Di Cesare, “‘Innere Form der Sprache’: Humboldts Grenzbegriff Steinthals
Begriffsgrenze”, in Historiographia Linguistica, 1996, p.321-346.
118 Barbara Spaggiari
Invertendo, deste jeito, a relação entre as duas entidades, tal como era
concebida por Humboldt, Steinthal afirma a primazia da forma interna, enquan-
to princípio que modela a língua. Isto acaba por significar que o som é algo de
exterior (“ein Äusseres”), mesmo que derive do interior (“aus dem Innern
stammt”), assim representando apenas o sinal (“Zeichen”) dum conteúdo já
preexistente na consciência (“Gedanken-Element”).
Colocando, desta maneira, em bases meramente psicológicas, quer a filo-
sofia da linguagem, quer a pesquisa lingüística empírica, o afastamento de
Steinthal com respeito às teorias de Humboldt torna-se numa distância irrecu-
perável.
O núcleo desta distância, que separa irremediavelmente Steinthal de Hum-
boldt, é o próprio conceito de ‘forma lingüística interna’. O objeto específico da
lingüística, na opinião de Steinthal, é a forma interna concebida como causa
lingüisticamente independente da própria língua, à medida que o som se reduz
apenas a um puro sinal exterior. Em lugar de, como escreve Humboldt, brotar
de um ato de síntese do sensível com o espiritual, da esfera interna com a
externa, na doctrina de Steinthal a língua dissolve-se no Espírito, ficando o som
lingüístico apenas como instrumento externo.
A língua, ou melhor, as diferentes línguas, deixam de ser um ‘órgão criati-
vo’ no sentido humboldtiano, para se reduzir a simples meio da ‘forma interna’,
que tende para a expressão.
Esse exame pormenorizado das diferenças teóricas entre o mestre e o
discípulo pertence, porém, aos estudos mais recentes e aprofundados no âmbi-
to da filosofia da linguagem. Na primeira metade do século passado, a situação
era bem diferente. Divulgada e, de certo modo, simplificada pela obra editorial
de Steinthal, a teoria humboldtiana lançou raízes e se consolidou não apenas no
estruturalismo européu, como premissa e corolário da arbitraridade do signo
saussuriano,13 mas também, entre 1920 e 1940, na escola americana e, nomea-
damente, na antropologia lingüística de Edward Sapir (1884-1939) e Benjamin
Whorf (1897-1941).
A chamada ‘hipótese Sapir-Wolf’ e, com ela, o relativismo linguístico, ba-
seiam-se, como é sabido, na observação empírica de que a língua não reflete
13
“Philosophes et linguistes se sont toujours accordés à reconnaître que, sans le secours des
signes, nous serions incapables de distinguer deux idées d’une façon claire et constante. Prise
en elle-même, la pensée est comme une nébulose où rien n’est nécessairement délimité. Il n’y
a pas d’idées préétablies, et rien n’est distinct avant l’apparition de la langue” (cf. Ferdinand
de Saussure, Cours de Linguistique Générale, publié par Charles Bally et Albert Sechehaye.
Éd. critique par Tullio De Mauro, Payot, Paris, 1972, p. 155).
120 Barbara Spaggiari
14
Não confundi-la com Weltanschaaung.
15
Cf. Joaquim Mattoso Câmara Jr, Dispersos. Nova edição revista e ampliada. Organizado por
Carlos Eduardo Falcão Uchôa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2004, p.19.
Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica 121
16
Ainda recentemente, foi descrita mais uma língua até hoje desconhecida, a duma tribo amazô-
nica, os Piraha, que não possuem palavras para exprimir números, quantidades ou côres. Essa
variedade lingüística emprega apenas sete consoantes e três vogais, não conhece forma alguma
de escritura, nem qualquer sistema de signos. Os antropólogos americanos da Columbia
University, que descobriram a sua existência, tentaram, sem sucesso, ensinar a contar aos
adultos dessa tribo, mas eles são incapaces de distinguir os números, depois de meses de
tentativas (cf. Holden, “ How Language Shapes Math ”, in Science, 2004: 1, 19 August 2004).
Na ‘visão do mundo’ dos Piraha, cuja memória coletiva não ultrapassa as duas gerações, não se
precisa, evidentemente, contar, nem catalogar as cores, ou avaliar as quantidades das cousas.
122 Barbara Spaggiari
Como claramente se pode perceber, com respeito ao que antes foi dito
sobre as idéias de Humboldt e a interpretação de Steinthal, o resumo que Mattoso
Câmara aqui oferece, relativamente à definição de “forma interna” e “forma
externa”, sofre, por um lado, de simplificação excessiva, enquanto, por outro
Filosofia da linguagem e terminologia ecdótica 123
“Daí, uma integração entre o som e o sentido, tão completa e essencial, que na
língua – como estabeleceu outro grande teorista, Ferdinand de Saussure – o som
vocal é sempre ‘o significante’ e a idéia sempre ‘o significado’” (ibid.).
Essa breve reflexão acaba por nos confirmar dois aspectos fundamentais
da cultura brasileira do séc.XX. Primeiro, o papel primordial desempenhado
por Mattoso Câmara Jr. na (alta) divulgação das teorias lingüísticas modernas,
e, nomeadamente, das de Wilhelm von Humboldt, nos anos 1965-67, a partir da
resenha sobre a edição dos Schriften zur Sprachphilosophie,17 até à comu-
nicação Wilhelm von Humboldt e Edward Sapir, apresentada num congresso
internacional em Bucurest. A reflexão sobre as idéias de Humboldt, apesar de
ser, em Mattoso Câmara, bastante tardia, encontra, como vimos, seu lugar nas
discussões contemporâneas sobre o ‘relativismo lingüístico’ de Sapir e Whorf.
O segundo aspecto, que ressalta da nossa pesquisa, é a incontornável
vertente lingüística que, desde as origens, sempre caracterizou a filologia brasi-
leira, constituindo assim um marco no panorama internacional da crítica tex-
tual. De fato, nos fins do séc.XX, a ecdótica européia, se, por um lado, em-
preendeu a revisão do chamado método lachmanniano, por outro, acabou por
progressivamente se afastar da lingüística e de seus métodos. No Brasil, pelo
contrário, as discussões teóricas elaboradas em torno do eixo Bédier-Lachmann
quase não encontraram eco, enquanto a ecdótica propriamente dita “nunca
17
Linguistics, 33, 1967, p.101-103.
124 Barbara Spaggiari
interrompeu as suas ligações com uma robusta tradição lingüística, o que foi
sobretudo possível em virtude da relação, desde logo estabelecida, entre a iden-
tidade lingüística do país, e o conflito de mais a mais evidente com a norma
lingüística portuguesa. No tocante à crítica textual, esta tensão teve, aliás, conse-
qüências sumamente benéficas” (Fundamentos da Crítica Textual, o.c., p.55).
Referências bibliográficas
1
Sobre este tema, consultem-se as seguintes referências: Paul J. HOPPER, Elizabeth Closs
TRAUGOTT, Grammaticalization, Cambridge, Cambridge University Press, 1993; Ekkehard
KÖNIG, Elizabeth Closs TRAUGOTT, “The Semantics-Pragmatics of Grammaticalization
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Grammaticalization, Amsterdam, Jonh Benjamins, 1991, vol. I, p. 189-218; Elizabeth Closs
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Pragmatic Aspects of Grammaticalization”, em Winfred P. LEHMANN, Yakov MALKIEL (eds.),
Perspectives on Historical Linguistics, Amsterdam, John Benjamins, 1982, p. 245-271; Elizabeth
Closs TRAUGOTT, “Subjectification in Grammaticalisation”, em Dieter STEIN, Susan WRIGHT
(eds.), Subjectivity and Subjectivisation, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p.
37-54.
2
Reunimos uma selecção de textos, em registo escrito, dos séculos XIII a XVI, passando pelo
século XX.
3
Mais adiante, aprofundaremos a análise particular destas formas e tentaremos a adopção de
uma terminologia acurada e apropriada aos nossos propósitos e ao nosso pensar.
128 Carla Abreu Vaz
4
Abordaremos a temática da auxiliaridade mais à frente neste estudo.
5
Surgem alguns trabalhos no âmbito do estudo do gerúndio, dos seus sentidos e valores, do seu
lugar no sistema verbal do português ou de outras línguas românicas, nomeadamente, no
castelhano, embora não de forma sistematizada e aprofundada, mas como exemplo de mais um
possível uso do gerúndio. Arrolamos, assim, alguns trabalhos que consideramos dignos de
nota, mas que, quer por tratarem de aspectos não directamente relacionados com o nosso tema
quer por não terem como objecto de estudo, exclusivamente, a língua portuguesa, não incidem
directa e particularmente sobre o propósito do nosso estudo: Henrique BARROSO, O aspecto
verbal perifrástico em português contemporâneo – visão funcional/sincrónica, Porto, Porto
Editora, 1994; José Luís MUÑÍO VALVERDE, El gerundio en el español medieval (S. XII-XIV),
Málaga, Ágora, 1995; Mário SQUARTINI, Verbal Periphrases in Romance, Aspect, Actionality,
and Grammaticalization, Berlim, New York, Mouton de Gruyter, 1998; Alicia YLLERA,
Sintaxis histórica del verbo español: las perífrasis medievales, Zaragoza, Departamento
Filologia Francesa, Universidad de Zaragoza, 1980.
6
Doravante CIPM. Este será, maioritariamente, o nosso corpus de eleição e o suporte para o
presente estudo pelo facto de ser diversificado e de se encontrar em versão electrónica,
permitindo, deste modo, uma procura mais rápida, mais eficaz e mais produtiva. O CIPM está
disponível em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/. O CIPM é um corpus que, não obstante se
encontrar em construção, possui já um número considerável de textos disponíveis on-line para
consulta dos estudiosos. Tem como base textos editados, publicados até à data, de vários tipos
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 129
e géneros até ao século XVI. Esses textos encontram-se tratados informaticamente, datados,
anotados, normalizados de acordo com critérios estabelecidos e bem especificados. Para um
conhecimento mais alargado dos estudos em Linguística de Corpora e, em particular, deste
corpus, leiam-se os seguintes artigos que esclarecem possíveis dúvidas quanto aos seus con-
teúdos e quanto à sua utilização, propriedades e potencialidades, e consulte-se a bibliografia
neles recomendada: M. Francisca XAVIER, M. Lourdes CRISPIM, M. Graça VICENTE, “Por-
tuguês Antigo. Construção e Disponibilização de Recursos em Suporte Informático”, em
Actas do XVIII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa, APL,
2003, p. 859-867; Maria Francisca XAVIER, “Corpora e Estudos Linguísticos”, ibidem, p.
869-883; Maria Fernanda Bacelar do NASCIMENTO, “O lugar do corpus na investigação
linguística”, ibidem, p.601-605; Maria Francisca XAVIER, Maria de Lourdes CRISPIM, “Das
edições impressas às versões digitalizadas de textos medievais: o caso do CIPM”, em Ivo de
CASTRO, Inês DUARTE, (Org.), Razões e Emoção. Miscelânea de estudos em homenagem a
Maria Helena Mira Mateus, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003, p. 437-448.
7
Vide, em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/, Cantigas de Escárnio e Maldizer, D. Dinis/ B 1533
(doc. CEM416).
8
Vide, em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/, Cantigas de Escárnio e Maldizer, D. Dinis/ B 1537
(doc. CEM420).
9
Vide, em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/, Foro Real, livro 3/título 17/fólio 123r.
10
Vide, em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/, Crónica Geral de Espanha, capítulo 12/fólio 10a.
11
Note-se que esta não é uma forma de gerúndio, mas uma forma participial.
12
Vide, em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/, Crónica Geral de Espanha, capítulo 51/fólio 19c.
130 Carla Abreu Vaz
dam ant’el chorando mil vegadas” / “foronsse chegando ataa que se viron as
hostes”13).
É este o corpus que servirá de alicerce ao estudo no qual tentaremos
percepcionar a gramaticalização das formas já mencionadas; será a partir des-
te que tentaremos perscrutar quais os graus, pois pensamos ser possível esta-
belecer diferentes níveis, de gramaticalização dessas formas e a sua progressi-
va evolução. Numa fase final, pensamos poder estabelecer algumas conexões
com o português moderno, embora este estudo se centre, preferencialmente,
no período compreendido entre os séculos XIII e XVI, como já referenciámos.
Direccionando o escopo concretamente para o nosso corpus, vejamos
algumas questões, de ordem prática, que nos parece ser necessário esclarecer.
Elaborámos, já o dissemos, tendo como base o CIPM, o nosso próprio corpus
de estudo. Recorreremos aos excertos que considerarmos pertinentes para
corroboração das propostas de análise e para o descortinar dos possíveis sen-
tidos das perífrases verbais em observação. Cada excerto seleccionado está
devidamente identificado, de forma a facilitar o seu reconhecimento14.
As considerações que ora serão protagonistas da nossa reflexão e preo-
cupação linguísticas prender-se-ão, antes de mais, com questões terminológi-
cas de pendor formal e teórico. Deste modo, vejamos quais os conceitos que
será necessário explanar no contexto do nosso estudo. Ao falarmos de formas
verbais do tipo V [x] + Ger., estamos a afirmar que estas são formas compos-
tas e não formas simples. Estas são conhecidas, vulgarmente, por perífrases
verbais ou por locuções verbais. A ideia subjacente a tal rotulagem parece-nos
advir da forma que tais estruturas apresentam e do valor que veiculam. Este
tipo de construção apresenta uma estrutura complexa, composta, geralmente,
por dois ou mais elementos que, quer do ponto de vista formal quer do ponto de
vista semântico, funcionam como uma construção una e indivisível, veiculando,
assim, um sentido de conjunto que não é igual à soma das várias partes, mas é,
em si, uma unidade coesa com uma significação e sentidos próprios. Esta ideia
13
Vide, em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/, Crónica Geral de Espanha, capítulo 61/fólio 23a.
14
Elaborámos um pequeno índice de abreviaturas que acompanhará o corpus (transcrevemo-lo
por ordem de ocorrência): FR: Foro Real; v: verso; r: rosto; CEM: Cantigas de Escárnio e de
Maldizer; VS: Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense; CGE: Crónica Geral de
Espanha; OE: Orto do Esposo; MC: Memorial do Convento [As referências da 1a edição desta
obra são: José SARAMAGO, Memorial do Convento, Lisboa, Caminho, 1982. Este texto foi
digitalizado e, posteriormente, tratado por nós; as referências que indicamos dizem respeito à
edição, em suporte de papel, que usámos: José SARAMAGO, Memorial do Convento, Lisboa,
RBA (Editores Reunidos Lda), 1994]; p.: página(s).
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 131
“[...] uma construção que reúne, quase sempre, duas formas verbais: uma flexionada
(morfemas de tempo, modo, voz, pessoa e número) e outra não flexionada (infini-
tivo, gerúndio ou particípio), constituindo um verdadeiro sintagma verbal, se-
mântica, paradigmática e sintagmaticamente delimitado, e uma unidade constante
aos níveis da “norma” e do “sistema” e que tem por função expressar uma moda-
lidade, ou seja, um valor sistemático de natureza ou modal ou temporal, ou aspectual
ou diatéctica”17 .
15
Veja-se Elizabeth TRAUGOTT, “Grammaticalization and Lexicalization”, em R. E. ASHER
(Editor-in-chief), J. M. Y. SIMPSON (Coordinating Editor), The Encyclopedia of Language and
Linguistics, Oxford et alii, Pergamon Press, 1994, vol. III, p. 1483.
16
Cf. Jorge Morais BARBOSA, “Sintemas Verbais Portugueses: Ir + ‘Infinitivo’ e Haver de +
‘Infinitivo’”, em Revista Portuguesa de Filologia, Vol. XXI, Coimbra, Instituto de Língua e
Literatura Portuguesas, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1996-1997, p. 229-239.
17
Vide Henrique BARROSO, O aspecto verbal perifrástico em português contemporâneo – visão
funcional/sincrónica, Porto, Porto Editora, 1994, p. 71.
18
Entre outros, distinguimos Henrique BARROSO, ob. cit.; Maria Helena Mira MATEUS et alii,
Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003; Anabela GONÇALVES, “Aspectos
da sintaxe dos verbos auxiliares do português europeu”, em Matilde MIGUEL, Telmo MÓIA,
Quatro estudos em sintaxe do português, Lisboa, Edições Colibri, 1995, p. 7-50.
132 Carla Abreu Vaz
19
Cf. Henrique BARROSO, ob. cit., p. 65. Esta ideia é já defendida por Bernard POTTIER no
estudo sobre a auxiliaridade no castelhano. Veja-se, deste autor, Lingüística moderna y filología
hispánica, Madrid, Editorial Gredos, 1976, em especial o capítulo XVIII, “Sobre el concepto
de verbo auxiliar”, p. 194-202. Cf., ainda, Rosa Virgínia Mattos e SILVA, Estruturas trecentistas,
elementos para uma gramática do português arcaico, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1989, p. 437-471, onde a autora, relativamente ao mesmo assunto, faz referência a um
inventário restrito e a um inventário aberto de verbos que ocuparão determinado lugar nas
estruturas em causa.
20
Não é objectivo máximo desta análise discutir em profundidade teórica o conceito de verbo
auxiliar; no entanto, julgamos pertinente lançar algumas linhas de reflexão sobre esta temática
na medida em que as estruturas que pretendemos analisar são constituídas, inevitavelmente,
por verbos que serão considerados auxiliares por determinados autores e por outros verbos
que, certamente, não serão contemplados nesse rol.
21
Ex.: – Gosto muito de Woody Allen. Tenho visto todos os seus filmes. / – Gosto muito de Woody
Allen. Tenho todos os seus filmes. Veja-se como um sema que caracteriza indubitavelmente o
verbo ter (o traço semântico [+ posse]) se perde, no primeiro exemplo, com perífrase verbal,
em que o verbo ter funciona como auxiliar do verbo ver.
22
Ex.: – Estou a ver televisão. / – Estou vendo televisão. / – Descanso vendo televisão. Não é
possível parafrasear os dois primeiros exemplos por “estou e vejo”, no entanto, é, perfeita-
mente, lícito, em relação ao terceiro exemplo, dizer “eu descanso e vejo”.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 133
embora surjam duas formas verbais, o sujeito a que estas reportam é um só23.
Para terminar, e porque já afirmámos não ser nosso intuito arrolar de forma
exaustiva todos os critérios que permitam a identificação do verbo auxiliar, apon-
tamos mais um critério que nos parece bastante significativo e que é a frequência
de ocorrência destes elementos, na medida em que existem verbos que ocor-
rem de forma muito pontual como auxiliares em contraste com outros que sur-
gem constantemente em contextos em que adquirem estatuto de verbo auxiliar.
Como vemos, é possível recorrer a variadas formas de testar, das quais só
alistámos um pequeno número, a título de exemplo, para aferir o grau de
auxiliaridade de determinados verbos. Contudo, apesar da complementarida-
de destes exercícios, tem sido muito custoso assentar uma lista de verbos auxi-
liares. Todavia, como frisámos anteriormente, não nos parece necessariamente
relevante possuirmos uma lista estabelecida de verbos auxiliares atestada e
aprovada pelos diversos estudiosos. Para o actual estudo não é essa a questão
essencial, dado que, independentemente de determinado verbo ser considerado
tendencialmente mais ou menos auxiliar, importa notar o comportamento de
ambos os verbos que formam o conjunto, ou seja, a perífrase verbal, e só depois
interessará perceber se o verbo chamado auxiliar é, efectivamente, auxiliador
do verbo principal, e por isso momentaneamente despojado de alguns semas,
ou se, pelo contrário, continua revestido de todos os seus traços semânticos que
fazem dele um verbo com sentido pleno. Antes, contudo, de nos abalançarmos
na análise específica das chamadas perífrases verbais com gerúndio, tecere-
mos algumas considerações sumárias acerca do gerúndio, dos seus usos e
valores no panorama do sistema verbal português24.
23
Ex.: – Estive a ver televisão. / – Ando a ver os filmes do Woody Allen. Apesar de surgirem duas
formas (estive + ver / ando + ver), estas remetem para um mesmo sujeito. Na verdade, o
núcleo da significação é transmitido pela forma de infinitivo e é através desta que entendemos
qual a acção praticada pelo sujeito. Ao contrário daquilo que, erroneamente, se poderia crer, a
forma verbal que precede a de infinitivo não aponta para outra acção desse mesmo sujeito ou
de outro sujeito, mas vem revestir de diferente tonalidade a acção veiculada pela forma de
infinitivo.
24
A exposição que pretendemos, nesta fase, não será exaustiva, na medida em que, apesar de ser
importante conhecer os usos, sentidos e valores do gerúndio na língua portuguesa, esse não é
o ponto fulcral deste estudo. Não descuramos, obviamente, que para o exame das perífrases
verbais com gerúndio há que conhecer, precisamente, os seus usos, sentidos e valores. No
entanto, não devemos esquecer que o objecto final da análise serão as perífrases verbais, isto
é, um complexo verbal cujo sentido, temos vindo a reforçá-lo, não é já a soma dos sentidos de
cada parte, mas um sentido uno e indivisível, um sentido de conjunto e não um sentido
construído dos retalhos dos sentidos de cada forma de per si.
134 Carla Abreu Vaz
25
Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 13ª
edição, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1997, p. 487-491. Não obstante o facto de estas conside-
rações nos parecerem insuficientes, do ponto de vista teórico, recorreremos, mais adiante,
neste estudo, aos exemplos apresentados por estes autores para ilustrarem os sentidos passí-
veis de serem expressos pelo gerúndio.
26
Manuel Said ALI, Gramática Histórica da Língua Portuguesa, São Paulo, Edições Melhora-
mento, 6ª ed., 1966, p. 355-361.
27
Evanildo BECHARA, Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 37ª
edição, 1999.
28
Reforçamos que não vamos tocar em profundidade as possíveis questões teóricas que possam
desenvolver-se à roda do estudo do gerúndio, na sua inclusão numa classe sintáctica, no seu
comportamento sintáctico, nas suas compatibilidades ou incompatibilidades, etc. Notamos,
uma vez mais, que nos importa, sobretudo, a compreensão dos seus sentidos para deste ponto
partirmos para o estudo dos sentidos e valores das perífrases verbais com gerúndio. Assim, e
para não repetirmos o que se encontra exposto em várias gramáticas, remetemos para as
seguintes obras de reflexão metalinguística, de modo a dilucidar quaisquer questões: A. GRIVET,
Grammatica Analytica da Língua Portugueza, Rio de Janeiro, Tipografia de G. Leuzinger &
Filhos, 1881; Manuel Said ALI, Gramática Histórica da Língua Portuguesa, São Paulo,
Edições Melhoramento, 1966; Epiphânio da Silva DIAS, Syntaxe Historica Portuguesa, 5ª
edição, Lisboa, Classica Editora, Imp. 1970; Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, Nova
Gramática do Português Contemporâneo, 13ª edição, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1997;
Evanildo BECHARA, Moderna Gramática Portuguesa, 37ª edição, revista e ampliada, Rio de
Janeiro, Editora Lucerna, 1999.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 135
“Desta exposição theorica, o que resalta, é que, por tudo quanto é essencial, os
gerundios são verdadeiras fórmas do infinitivo […] os gerundios se portão fre-
quentemente como adjectivos, ou, para fallar de conformidade com a nomenclatu-
ra desta grammatica, como apposições junto a um substantivo ou pronome: desta
observação, e de sua origem verbal proveiu provavelmente o desacerto de sua
classificação entre os participios”31.
Notemos que o uso das perífrases verbais com gerúndio é muito mais
assinalado no português do Brasil do que no português europeu contemporâneo
29
Epiphânio da Silva DIAS, Syntaxe Historica Portuguesa, 5ª edição, Lisboa, Classica Editora,
Imp. 1970, p. 240.
30
Vejam-se alguns exemplos que podemos encontrar no português actual como herança, precisa-
mente, do particípio presente latino: lente<LEGENTE- (“aquele que lê”), part. pres. de LEGRE;
servente<SERVIENTE- (“aquele que serve”), part. pres. de SERVÎRE; parturiente<PARTURIENTE-
(“aquela que dá à luz”), part. pres. de PARTURÎRE; paciente<PATIENTE- (“aquele que pade-
ce”), part. pres. de P ATI ; utente<U TENTE - (“aquele que usa”), part. pres. de U TI ;
intendente<INTENDENTE- (“aquele que intende”), part. pres. de INTENDRE, nubente<NUBENTE-
(“aquele que casa”), part. pres. de NUBRE, entre muitos outros (docente, discente, falante,
orante, edificante, cantante, presidente, pretendente…) e confrontem-se com os seguintes:
baptizando, crismando, mestrando, alimentando, educando, confessando, graduando,
magistrando, ordinando, vincendo, etc. A estas formas sincrónicas subjaz a herança da sintaxe
latina, como afirma Epifânio; em ambas as formas poderá vislumbrar-se, através da paráfrase
que se faz de cada uma delas, as funções sintácticas em causa, veiculando a ideia de acção, de
movimento, de processo, de duração… Diz Manuel Said Ali, referindo-se ao gerúndio, “[…]
Tem aplicação muito mais ampla que em latim, fazendo as vezes do particípio do presente, o
qual perdeu a função verbal, passando a servir de adjetivo e substantivo”. Vide Gramática
Histórica da Língua Portuguesa, São Paulo, Edições Melhoramento, 1966, 6ª ed., p. 146.
31
A. GRIVET, Grammatica Analytica da Língua Portugueza, Rio de Janeiro, Tipografia de G.
Leuzinger & Filhos, 1881, p. 343.
136 Carla Abreu Vaz
32
Considerem-se os exemplos: no português europeu – Ando a ler Pessoa. / Estava a dormir
quando o telefone tocou.; no português do Brasil – Ando lendo Pessoa. / Estava dormindo
quando o telefone tocou.
33
Atente-se nas seguintes frases: “Proferindo estas palavras, o gardingo atravessou rapidamen-
te a caverna e desapareceu” / “Ganhando a praça, o engenheiro suspirou livre”. O gerúndio
expressa uma acção realizada imediatamente antes daquela que é indicada na oração principal.
Assim, vejamos como o uso do particípio com o gerúndio (a forma composta de gerúndio) é,
de todo, possível, conseguindo-se o mesmo sentido: Tendo proferido estas palavras, o gardingo
atravessou rapidamente a caverna e desapareceu. / Tendo ganhado a praça, o engenheiro
suspirou livre. Encontramos estes exemplos em Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, ob.
cit., p. 488 e seguintes.
34
Temos vindo a falar dos usos, sentidos e valores do gerúndio e das perífrases verbais com
gerúndio de uma perspectiva sincrónica, sem, contudo, esquecermos que é nosso objectivo o
estudo das perífrases verbais com gerúndio no português medieval e o apuramento do seu grau
de gramaticalização. Acreditamos, no entanto, que a partir de um determinado momento
recuado no tempo os sentidos principais dessas perífrases se cristalizaram e continuaram até
aos nossos dias, apenas com possíveis cambiantes, sem que isso transtorne, consideravelmen-
te, os seus sentidos.
35
Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, ob. cit., p. 487-491. Escolhemos esta gramática para
representar a chamada gramática tradicional, sem que com isso queiramos fazer qualquer tipo
de juízo positivo ou negativo a uma obra que consideramos de valor e que terá que ser vista e
analisada à luz do seu tempo e dos seus objectivos. A gramática tradicional, em abstracto, nem
sempre responde às necessidades teóricas que determinadas matérias suscitam. Contudo,
relativamente a este assunto, parece-nos útil a informação que se recolhe na referida obra.
36
Vejam-se os exemplos “Proferindo estas palavras, o gardingo atravessou rapidamente a
caverna e desapareceu”; “Estalando de dor de cabeça, insone, tenho o coração vazio e amar-
go”, respectivamente. Cf. Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, ob. cit., p. 488.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 137
ESTAR e SER
37
Exemplo: “Chorou soluçando sobre a cabeça do cão”. Cf. Celso CUNHA, Luís F. Lindley
CINTRA, ob. cit, p. 488.
38
Exemplo: “No quintal as folhas fugiam com o vento, dançando no ar em reviravoltas de
brinquedo” <=> No quintal as folhas fugiam com o vento e dançavam no ar em reviravoltas
de brinquedo. Cf. Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, ob. cit, p. 489.
39
Exemplo: “Em se lhe dando corda, ressurgia nele o tagarela da cidade”. Cf. Celso CUNHA, Luís
F. Lindley CINTRA, ob. cit, p. 489.
40
Exemplo: “Viajando, viajando, esquecia-se o mal e o bem”. Cf. Celso CUNHA, Luís F.
Lindley CINTRA, ob. cit, p. 489.
41
Vide Celso CUNHA, Luís F. Lindley CINTRA, ob. cit. p. 490.
42
Não relevaremos, neste ponto, o facto de estes verbos poderem ser considerados ou não
verdadeiros auxiliares pelos estudiosos. Como já o dissemos, essa não é para nós e para o
estudo que pretendemos levar a cabo a questão mais preponderante.
43
Parece-nos clara a importância da diferença de matizes existente entre o uso de estar e o de ser,
no português ou no castelhano, em contraponto, por exemplo, com a existência de être, no
francês, ou de to be, no inglês. Notemos que no francês e no inglês temos uma só forma para
significar aquilo que no português ou no castelhano se expressa com duas estruturas distintas.
138 Carla Abreu Vaz
sensual. Estar e ser podem adquirir quer uma função atributiva, quer uma fun-
ção predicativa44, quer uma função auxiliar45. Será, concretamente, no âmbito
da auxiliaridade que estes verbos mais nos importarão para este estudo46.
Deste modo, interessará conhecer o sentido de estar e de ser, ou melhor
diríamos, os sentidos que estar e ser foram adquirindo desde o latim até ao
momento em que esses sentidos se cristalizaram e se prolongaram até ao pre-
sente. Estar procede do verbo latino STÂRE que significava “estar de pé”47; ser
Por isso, não é irrelevante no português e no castelhano o uso de uma ou de outra e o jogo de
tonalidades que se consegue nem sempre será fácil de entender para os falantes de línguas que
não possuem estas duas formas.
44
Relativamente às funções atributiva e predicativa destes verbos não nos deteremos
espaçadamente; reforçamos, somente, os diferentes contextos e as restrições de ocorrência de
um e de outro, por nos parecer que a explanação destas questões não é fundamental para o
nosso estudo, na medida em que estar e ser serão apenas dois dos verbos que estudaremos, em
conjunto com andar, ir, vir, para além de que o nosso exercício se concentra na ocorrência
destas formas com formas de gerúndio, isto é, no surgimento destas formas em estrutura
complexa (perífrase verbal) e não em ocorrência única e isolada, mas como verbos auxiliadores
denotadores de um maior ou menor grau de gramaticalização ou de deslexicalização, dependen-
do do ponto de vista adoptado. Para um estudo mais aprofundado dos verbos ser e estar, das
suas funções (auxiliar, atributiva predicativa), dos seus usos e da sua semântica, aconselhamos
a leitura dos seguintes trabalhos: Elisabete RANCHHOD, “On the Support Verbs Ser and Estar
in Portuguese”, em Linguisticæ Investigationes, Amsterdam, John Benjamins B.V., Tomo VII,
2, 1983, p. 317-353; Ricardo NAVAS RUIZ, Ser y estar. Estudio sobre el sistema atributivo del
español, Salamanca, Universidad de Salamanca, Filosofía y Letras, 1963; José Maria SAUSSOL,
Ser y estar. Orígenes de sus funciones en el “cantar de mio Cid”, s. l., Publicaciones de la
Universidad de Sevilla, 1977; Antonio VAÑÓ-CERDÁ, Ser y estar + Adjectivos. Un estudio
sincrónico y diacrónico, Gunter Narr Verlag, Tübingen, 1982.
45
Se para alguns verbos como andar, ir, vir, entre outros, nem sempre é consensual a atribuição
da função de “verbo auxiliar”, para os verbos ser e estar esta concessão parece-nos ser aceite
pelos diversos estudiosos. Note-se que as listas de verbos auxiliares variam de autor para
autor e ainda não foi possível, e certamente será muito difícil que se consiga, estabelecer uma
lista de verbos auxiliares aceite por todos. Ressalvamos, ainda que, apesar das diferenças
existentes, fruto dos vários critérios adoptados, a classe dos verbos auxiliares fará parte de um
inventário restrito (lista limitada, fechada), em contraponto com a classe maior que esta
integra, a classe dos verbos, a qual, poderá, conjecturalmente, fazer parte de um inventário
alargado (lista ilimitada, aberta).
46
Lembramos que é objectivo deste trabalho o estudo das perífrases verbais com gerúndio, o que
implicará a consideração do maior ou menor grau de auxiliaridade dos verbos que co-ocorrem
com estas formas, com vista ao apuramento de um maior ou menor grau de gramaticalização do
complexo verbal.
47
Andrés BELLO aponta a particularidade de ser se aplicar às qualidades essenciais e permanen-
tes e de estar se identificar com as qualidades transitórias e acidentais; apud Ricardo NAVAS
RUIZ, Ser y estar. Estudio sobre el sistema atributivo del español, Salamanca, Universidad de
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 139
provém da fusão dos verbos latinos ESSE e SDÇRE, significando, este último,
“estar sentado”. Segundo Andrés Bello, “no hay verbos de más frecuente uso
que los dos por cuyo medio se significa la existencia directamente: ser y es-
tar”48. Estar e ser são destacados de entre todos os outros verbos como aque-
les a que mais se recorre por veicularem o sentido da existência49, a base de
todos os outros possíveis sentidos. Por este motivo, decidimos analisá-los a par
neste estudo e perceber mais pormenorizadamente o seu comportamento, con-
frontando um e outro; os seus sentidos primordiais e os seus sentidos adquiridos
após a união a uma forma de gerúndio; a frequência de ocorrência de uma e
outra forma; o prevalecimento da escolha de uma forma sobre a outra.
Segundo diversos dicionários etimológicos50, podemos verificar que o
sentido que se encontrava, primordialmente, associado às formas estar e ser
desde o latim até à evolução para as línguas românicas sofrerá uma evolu-
ção. Sincronicamente, serão muito raros os casos em que estar e ser man-
terão os seus sentidos primevos de “estar de pé” e “estar sentado”, respec-
tivamente. No que respeita à co-ocorrência destas formas com formas de
gerúndio, em perífrase verbal, as primeiras acabarão, ainda que possa exis-
tir um ou outro caso pontual, por se gramaticalizar e perder totalmente esse
sentido matricial.
Salamanca, Filosofía y Letras, 1963, p. 117. Cremos ser indispensável a consciência da dife-
rença de coloração semântica dos verbos em análise que poderá, desde logo, ser corroborada
com o sentido que os verbos possuíam no latim; um significando “estar sentado” (relevando
um estado permanente e assumpto) e o outro “estar de pé” (marcando um estado passageiro
e casual).
48
IDEM, apud Ricardo NAVAS RUIZ, ob. cit, p. 117.
49
Neste contexto, não devem ser olvidadas as reflexões de alguns gramáticos portugueses, e
outros, acerca do verbo substantivo, que entendiam o verbo ser como a base de todos os
outros verbos, fazendo com que tudo o que se dissesse carregasse intrinsecamente o sentido de
ser, isto é: viver, como diz Grivet, parodiando esta teoria, “nada mais é senão o equivalente de
ser vivente”; cf. A. GRIVET, Nova Grammatica Analytica da Lingua Portugueza, Rio de
Janeiro, Typ. de G. Leuzinger & Filhos, 1881, p. 227. Esta ideia encontra-se já presente na
Gramática de Port-Royal; cf. a seguinte edição crítica: Antoine ARNAULD, Claude
LANCELOT, Grammaire Générale et Raisonnée de Port-Royal [avec une introduction
historique par M. A. BALLY], Genève, Slatkine Reprints, 1993.
50
Entre outros, destacamos o Diccionario crítico etimológico castellano e hispánico de Joan
COROMINAS e José A. PASCUAL, Madrid, Gredos, 1981; o Dicionário etimológico nova
fronteira da língua portuguesa, de Antônio Geraldo da CUNHA, Rio de Janeiro, Editora Nova
Fronteira, 2ª ed., 1986; o Dictionnaire Illustre Latin-Français, de Félix GAFFIOT, Paris,
Hachette, 1934.
140 Carla Abreu Vaz
i) Deffendemos que nenhuu uozeyro non seya ousado d(e) auirsse est aquel d(e)
que a´ de teer uoz [...] no~ tenha mays ya uoz por outro, pero mandamos que
possa au(er) ualya da uintena da d(e)manda, assy como manda a lee. E todo ome
q(ue) for uozeyro razoe o preyto stando en pee leuantado e no~ seendo. E sse o
assy no~ fez(er) no seya ouuydo do alcayd(e), foras se u mandar seer, seya. Ou se
p(er)uentura algu~a enfirmidade auen que no~ possa star en pee, seya. Poys
q(ue) for dado p(or) uozeyro razoe apostame~te a ben e no~ deoste ne~ diga mal
ao alcayd(e) nen a nenguu, seno~ aq(ue)llo p(er) q(ue) pod(e) mellorar en seu
p(re)yto.
FR livro 1/título 9/fólio 80v (Séc. XIII, 1280?)
51
Como já notámos, não existem muitos trabalhos que se concentrem, sobremaneira, neste tema,
especialmente no âmbito da língua portuguesa. Por isto, seguimos de perto alguns estudos,
que também já referimos, na esfera do castelhano. Cf. notas 4 e 41.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 141
tão não estamos perante uma perífrase com gerúndio, mas diante de uma
forma simples de gerúndio. Serve, no entanto, o exemplo, para frisarmos essa
ligação dos sentidos dos verbos estar e ser, no português do século XIII, aos
seus sentidos primevos na língua latina. Por este motivo, parece-nos clara a
ausência de gramaticalização das formas estar e ser. Os verbos em causa
surgem com o seu valor pleno, sem qualquer grau de deslexicalização e conse-
quente gramaticalização.
Observemos outro trecho e tentemos entrever o sentido das formas V
[estar] + Ger. e o seu maior ou menor grau de gramaticalização.
ii) E entom viro~ vi~ir out(ra) alma pella ponte. e estava (L) chorando carregada de
hu~u feixe de t(ri)go. e q(ua)ndo vyo (L) que avia de passar. p(re)guntou ao angeo
de q(ua)es almas (L) he esta pena. e [o] angeo disse. Esta pena he daq(ue)lles que
(L) furta~ pouco ou muito. e agora conve~-te que passes p(er) (L) ella co~ hu~a
vaca que furtaste. Diz ella. se a furtey entreguey-a (L). E o ango disse. Entregaste-
a porque ha no~ (L) podeste encobrir. p(er)o no~ padeçera´s tanta pena como (L)
se a no~ entregaras. E ento~ apareceo aly a vaca muy (L) brava e~ guisa que non
q(ue)rya p(er) ne~hu~a entrar (L) pella ponte. Enp(er)o ouve-a de tomar ao pesco-
ço. e e~ntrou (L) co~ ella pella ponte. e indo co~ ella e~ meo da ponte. (L) topou
co~ aq(ue)lla alma que tragya o feixe do t(ri)go. E ento~ (L) rrogou-lhe que o
leixasse passar co~ sua vaca. e o outro (L) disse. mas leixa-me tu passar co~ meu
t(ri)go. E enq(ua)nto asy estava~ ap(er)fiando. avya~ gram medo de cair (L) em
fundo. e acusava-sse hu~u (con)t(ra) o outro do mal que (L) fezero~. por que
aquella pena sofryam. e pollo gram temor (L) que avia~ de cayr. na~ ousava~ de
hir ne~ de tornar. (L) E estando e~ este medo. q(ua)ndo oolhou acho/||u||/sse da
out(ra) parte. e apareceo-lhe o angeo e disse-lhe. Bem sejas (L) vi~ido no~ cures
jamais de va/||ca||/ que ja della fezeste (L) penite~cia. E entom a alma mostrou-lhe
os pees chagados (L) dos clavos e dizia que non podia andar. E o ango (L) disse.
Lenbra-te como os avias fortes p(er)a andar em (L) vaydades. Penssa de andar
que hu~u atorme~tador (L) muy negro e muy cruel n(os) esta esp(er)ando e no~
podemos (L) fogir ao seu ofi´cio e~na sua pousada. E indo adiante (L) p(er)
lugares escuros e muy maaos. apareceo hu~a casa rredonda como forno. chea de
fogo aceso. (L) e q(ue)ymava q(ua)ntas almas achava. E q(ua)ndo a´ a´lma (L) vyo
esta pena. disse ao ango. Ay mizq(ui)nha. ja chegam(os) (L) aa porta da morte.
VS5 fólio 127r (Séc. XIII/XIV)
PR ME
Simultaneidade
Legenda
PR – ponto de referência
ME – momento da enunciação
ir é usado, precisamente, com o verbo durar, o que implica que o carácter durativo poderá
encontrar-se, desde logo, no próprio verbo que veste a forma de gerúndio, pois esse é um valor
que lhe é intrínseco. No entanto, não queremos com esta observação afirmar que devemos
tomar em absoluto cada perífrase, pois essa seria uma opção impensável neste estudo. Ainda
porque o contexto envolvente é de todo necessário para o bom entendimento do sentido de
determinado complexo verbal. O que pretendemos enfatizar é a necessidade de algum cuidado
na determinação dos sentidos e valores de cada perífrase e a importância, precisamente, que os
elementos envolventes ganham numa análise deste teor. O exemplo que apresentámos foi
retirado de Odette A. de Souza CAMPOS, O gerúndio no português, Rio de Janeiro, Presença/
INL-MEC, 1980, p. 34.
144 Carla Abreu Vaz
iii) Qua~do esto disse (L) ho abbade. logo Zozimas e~clinou outra vez (L) a ssua
ffaçe e~ terra e honrrarom todos Nosso (L) Ssenhor e feyta ha horaçom disserom
ame~. (L) Horando ho santo home~ Zozimas e~ aq(ue)l (L) moesteiro. vyo ally os
santos padres splandeçer (L) p(er) virtudes e p(er) obras servindo (L) a Nosso
Senhor ssem q(ue)dar E estavam p(er) toda (L) a noyte obrando p(er) ssuas maao~s
e canta~do (L) psalmos e louvores a Deos.
VS7 fólio 52r (Séc. XIII/XIV)
Reforçamos, uma vez mais, que o facto de “estar toda a noite obrando e
cantando” não transporta, irrevogavelmente, a ideia de o fazer de pé55. Mesmo
que estivessem de pé quando cantavam os salmos, que era, efectivamente, a
posição litúrgica recomendada, não estariam a noite inteira nessa posição, mas,
com certeza, apenas parte da noite. A ideia que se pretende reforçar não será
a de que “estavam toda a noite cantando salmos e louvores a Deus, de pé”,
mas a ideia de que esse foi um processo contínuo que se prolongou durante um
espaço de tempo considerável; cremos ser este o ponto mais importante56.
54
Reforçamos, apenas, que o facto de estar esperando, no contexto em causa, envolver perma-
nência, não tem necessariamente de acarretar a ideia próxima da forma latina, isto é, não tem de
ser, inevitavelmente, uma espera feita de pé. Poderá, cremos, vislumbrar-se, neste exemplo,
um pequeno grau de gramaticalização da forma estar, na medida em que, pelo menos um dos
seus semas (“de pé”), não tem obrigatoriamente de estar activado.
55
Não ignoramos, contudo, que a posição de orante é, na tradição do Cristianismo Antigo, a
posição de pé. Lembremos, por exemplo, que o celebrado hino bizantino de louvor à Virgem,
cujo nome é Akáthistos querendo dizer “não sentado”, é cantado, precisamente, de pé.
56
Apesar de já o termos referido, acreditamos ser importante reforçar, uma vez mais, a seguinte
preocupação: para uma análise dos usos, dos sentidos e dos valores das unidades da língua não
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 145
iv) Assy que o santo tenpllo (L) rreçebya todos os outros ssem enbargo nehuu~
(L) mais a mi~ssoo cativa. nom q(ue)ria rreçeber e~ ne~hu~a (L) guisa. mais assy
como aaz de cavaleyros estava (L) (con)tra mi~. que me nom leixava e~trar. mais
inpuxava-me (L) cada vez ata as portas do adro depois (L) que me esto aconteçeo
muitas vezes fiquey (L) muy fraqua e mui cansada em guisa que nom (L) podia
estar sobre meus pees e asentey-me e~ (L) huu~ canto do adro apartada cuidando
e~ mim (L) donde me viinria esto que nom podia entrar em (L) o tenplo E estando
assy pensando emtendy (L) donde me acontiçia tal cousa Ca p(o)lla çugidade das
minhas maas obras nom podia eu adorar (L) o lenho da Santa Vera Cruz Entom
começey (L) eu mizq(ui)nha de chorar e firir os peitos co~ (L) minhas maaos e dar
grandes sospiros de coraço~ (L) e esparger muitas lagrimas e tive me~tes (L) do
lugar hu estava e vy hu~a imagem da (L) Virgem Maria que estava hedificada. a
dep(ar)te (L) em huu~ logar […]
VS7 fólio 59r, 59v (Séc. XIII/XIV)
podemos esquecer a informação que é, exclusivamente, linguística e aquela que faz parte do
mundo extralinguístico. Dependendo daquilo que se pretende estudar, devemos ter em consi-
deração uma e/ou outra. No caso do presente exercício e porque o objectivo é o estudo dos
usos, sentidos e valores das perífrases verbais com gerúndio, não podemos descurar nenhum
dos dois tipos de informação, pois, para além da importância do contexto, é de inestimável
interesse o conhecimento extralinguístico, seja ele histórico-factual, vivencial ou outro. Nota-
mos, ainda, que a norma actual não permite o conjunto estar (IMP) + por + intervalo de tempo
limitado, por o aspecto imperfectivo da forma verbal não ser compatível com limites tempo-
rais precisos.
146 Carla Abreu Vaz
sucede é que o exemplo poderá ser parafraseado por não podia estar sobre
os meus pés, por isso sentei-me, cuidando em mim; o que mostra que esta-
mos, efectivamente, perante duas acções diferentes e independentes. Na frase
que se segue, inclusa no mesmo troço de texto, podemos notar, uma vez mais,
um valor de permanência, reforçado, ainda mais, pelo facto de estar se encon-
trar no gerúndio juntamente com pensar (“E estando assy pensando emtendy
(L) donde me acontiçia tal cousa Ca p(o)lla çugidade das minhas maas obras
nom podia eu adorar (L) o lenho da Santa Vera Cruz”)57. Repare-se que esta
frase vem na sequência daquela que analisámos anteriormente, o que poderá
implicar uma continuação reforçada do sentido de permanência ou prolonga-
mento da acção ou de um estado nessa mesma acção. O mesmo acontece com
o troço seguinte, com uma ligeira diferença:
v) E disse lhe Sam Paulo: Este he aquelle que eu preego, que decendeo dos ceeos
e tomou carne~ e padeceo morte e resurgio ao terceyro dia. Estando assy departindo,
pasou perante elles hu~u~ cego. E dise lhe Dinis per ma~dado de Sam Paulo que
recebesse vista em nome de Jhesu Christo, e logo vio, e logo Dinis con sua molher
e co~ toda sua familia recebeo a fe de Christo e bautizou se. E, depois que foy
e~sinado per Sam Paulo per tres a~nos, feze o bispo de Athe~nas, e elle per sua
preegaçom tornou aa fe de Jhesu Christo a cidade de Athe~nas e grande parte
daquella terra e depois foy glorioso martir e~na cidade de Paris.
OE livro 3/capítulo 11/fólio 30v (Séc. XV)
57
Neste exemplo, algumas dúvidas poderão surgir quanto à verdadeira classificação deste com-
plexo verbal. Notemos que ambas as formas se encontram no gerúndio. No entanto, não nos
parece que sejam duas formas independentes. Na literatura especializada, as definições de
perífrase verbal que encontrámos vão, genericamente, ao encontro daquela que adoptámos,
partindo da obra de Henrique BARROSO. E nesta não existe nenhuma referência à possibilida-
de de o verbo auxiliador poder ocorrer no gerúndio, o que nos poderá levar a entender o
composto verbal em causa como não sendo uma perífrase verbal. Porém, parece-nos que,
apesar dos argumentos contra esta conjectura, neste contexto, o complexo em causa poderá ser
considerado uma perífrase verbal, cujo verbo auxiliador se apresenta na forma de gerúndio com
um propósito enfático e reforçador do sentido de prolongamento da acção.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 147
vi) E em os (L) rramos desta arvore estava~ muitos lirios e muitas (L) rrosas. e
hervas de muitas naturas que dava~ de sy (L) muy bo´o´ odor. E so aq(ue)lla
arvore estava~ muitas (L) co~panhas ase´e´ntadas e~ cadeiras d’ouro. e de marfil
(L) em que siiam louva~do ao senhor Deos pollos muit(os) be~es que lhes dava.
E eram vistidos de muy fremosas (L) vistiduras. e tiinham coroas muy /||r||/
sprandece~tes (L) em suas cabeças. E ento~ disse a alma. Senhor (L) di-me que
sinifica esta arvor. ou que conpanhas som (L) estas. E o ango disse. Esta arvor
sinifica a s(an)c(t)a (L) ig(re)ja. e estes que estam so ella som aq(ue)lles que a bem
guardarom. (L) e bem acrece~taro~ p(er) seus bo´o´s m(er)ecime~tos (L) e porque
leixarom o mal e obraro~ bem.
VS5 fólio 129v (Séc. XIII/XIV)
vii) Tanto que Sancto Agustinho esto leeo, logo foy espargida e~no seu coraçom
hu~a luz de segurança, que tirou delle todalas treeuas da duuida da ffe de Jhesu
Christo que ante auia. E foy depois muy sancto e muy glorioso doutor e declarou
muyto estes marauilhosos e~xertos da Sancta Trindade. Onde aueeo que hu~u~
dia, se~e~do elle estudando, ueeo a elle hu~a molher pera lhe demandar conselho.
E ella feze lhe grande reuerença e recontou lhe seu negocio, mais o sancto home~
tam solamente nom tornou a cousa que lhe ella dissesse nem a oolhou, e a molher
partiu se dally con grande tristeza.
OE livro 2/capítulo 2/fólio 7r (Séc. XV)
58
Não rejeitamos, contudo, uma outra leitura que também será aceitável e que é a de permanência
num determinado estado, num sentido que se aproxima daquele veiculado pela perífrase de
estar + gerúndio. Podemos experimentar a permuta de uma forma por outra sem que isso
afecte, significativamente, o sentido das frases: co~panhas ase´e´ntadas e~ cadeiras d’ouro.
e de marfil (L) em que estavam louva~do ao senhor Deos/ Onde aueeo que hu~u~ dia,
estando elle estudando. Ainda porque, no primeiro caso, o argumento que serve para fazermos
a leitura no sentido etimológico de ser (co~panhas ase´e´ntadas e~ cadeiras d’ouro. e de
marfil) poderá servir também para reforçar a possibilidade de estar aparecer em lugar de ser
sem se perder informação relevante, porque essa informação surge precisamente na frase
co~panhas ase´e´ntadas e~ cadeiras d’ouro. e de marfil. Admitimos, no entanto, que a nossa
opção de leitura, por nos parecer mais natural, se aproxima mais do sentido etimológico de ser.
Não podemos, porém, ignorar todas as possibilidades que possam surgir como válidas.
148 Carla Abreu Vaz
marfil”. Não nos foi possível, em todo o corpus que reunimos, encontrar outras
ocorrências de ser + gerúndio e, tão pouco, de ser + gerúndio onde ser
manifeste um sentido que não aquele ligado à sua etimologia latina59.
Analisados os usos, os sentidos e os valores de estar e ser + gerúndio,
vejamos as ideias que dessa análise conseguimos recolher. Pela amostra que
congregámos, percebemos que estar e ser + gerúndio poderão ocorrer nos
mesmos contextos, sem com isso acarretar uma significativa alteração de sen-
tido. Deste modo, cremos poder afirmar que o uso da perífrase com estar
prevalece sobre o uso da perífrase com ser, dado que no nosso corpus de
análise, como já referenciámos, encontrámos apenas dois exemplos com ser +
gerúndio60. Podemos afirmar, também, que a perífrase estar + gerúndio não
terá sofrido um considerável grau de gramaticalização, na medida em que, con-
siderando a perífrase moderna, o valor principal que nela distinguimos é o de
permanência num espaço, num tempo, num determinado estado, etc. Esse va-
lor advém-lhe do sentido matricial de “ficar de pé”, por isso não se desprendeu
totalmente da sua etimologia61.
Deixamos algumas conclusões, que cremos mais relevantes, para o termo
desta análise, para assim passarmos ao estudo das formas andar, ir e vir e
podermos, no final, estabelecer as ligações necessárias ao bom esclarecimento
dos pontos fundamentais desta investigação.
ANDAR, IR e VIR
O verbo andar deriva do latim *AMB-TÂRE frequentativo de AMBÎRE
(“dar voltas, rodear”), o verbo ir provém do verbo latino ÎRE (“deslocar-se de
um local para o outro”) e vir procede do latim VNÎRE (“movimentar-se em
direcção ao sujeito do enunciado”62). Estes são considerados verbos de movi-
59
Este facto, por si só, dar-nos-á já indícios do comportamento desta perífrase verbal. Mais
adiante, em lugar que considerarmos próprio, volveremos a este assunto.
60
Para completar a nossa ideia, usamos as palavras de Alicia YLLERA quando diz: “Seer +
gerundio, documentado ya en el Cid aunque en minoría frente a estar, alcanza un desarrollo
relativo en el siglo XIII, apareciendo en las mismas construcciones que estar y con idéntico
valor. Pero su empleo cae en desuso a finales del siglo XIII o principios del XIV; en este siglo
sólo aparecen raros ejemplos en verso, la prosa lo ha abandonado definitivamente”, em ob. cit.,
p. 50.
61
Mais adiante, em comparação com as formas andar e ir, por exemplo, será mais fácil perceber-
mos a distinção.
62
Cf. nota 65.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 149
ix) Ou é Meliom Garcia queixoso ou nom faz come home de parage escontra duas
meninhas que trage, contra que[m] nom cata bem nem fremoso: (V5) ca lhas vej’eu
trager, bem dês antano ambas vestidas de mui mao pano, nunca mais feo vi nem
mais lixoso. Andam ant’el chorando mil vegadas, por muito mal que ham com el
levado; (V10) [e] el, come home desmesurado contra elas, que andam mui coita-
das, nom cata rem do que catar devia; e poi’las [el] tem sigo noit’e dia, seu mal é
tragê-las mal lazeradas.
CEM416 /D. Dinis /B 1533 (Séc. XIII/XIV)
Em ix), acima transcrito, podemos entrever já uma outra leitura, pelo facto
de, em conformidade com o contexto, não se descreverem duas acções dife-
rentes (“o andar” e “o chorar”), mas sim uma só acção: “andar chorando”.
Podemos experimentar a troca de andar por estar, sem com isso afectar o
sentido da frase: estão ant’el chorando mil vegadas, por muito mal que
ham com el levado; ainda porque a própria preposição ante pede, ainda mais,
o uso de estar do que de andar. Este exercício reforça a hipótese da gramati-
calização em detrimento do sentido matricial de andar. O efeito que se conse-
gue com ambas as perífrases (andar e estar + gerúndio) é o de persistência
num determinado estado, no sentido de reforçar o que é substancial, o choro.
No fragmento que se segue, ambos os complexos verbais são passíveis de
serem entendidos à luz da análise que elaborámos para ix). Temos, por isso,
uma vez mais, o verbo andar desprovido do seu sema de movimento, não
implicando que as estruturas “anda juntando” e “and’el trabalhando” veiculem
a ideia, ligada a andar, de deslocamento físico, espacial.
x) Pois teu preit’anda juntando aquel que é do teu bando, di-me, doutor, como ou
quando lhe cuidas fazer enmenda (V5) por quant’and’el trabalhando com’aposta
ta fazenda. Pois com muitos há baralha por te juntar prol sem falha, di, doutor, si
Deus ti valha, (V10) se lhe cuidas dar merenda por quant’el por ti trabalha como
apostat’a fazenda.
CEM435 / Estêvão da Guarda / B 1308, V913 (Séc. XIII/XIV)
Nos fragmentos xi), xii) e xiii), abaixo reproduzidos, podemos ver como o
verbo andar atingiu o grau máximo de gramaticalização, dado que nenhum dos
seus semas se encontra em actividade nestes trechos.
xi) E todos estes fogos asu~ados se aju~tam asu~adame~te e~no mu~do. Depois
que os angios disero~ esto a aquele sancto home~, teue elle me~tes e vio os
demo~es que andaua~ uoa~do e~ aquelles fogos e fazendo batalhas contra os
sanctos home~e~s.
OE livro 4/capítulo 1/fólio 38v (Séc. XV)
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 151
xii) Ca a molher he tal como o pintor, que, asy como o pintor faz muytas pinturas e
muytas linhas de collores, bem assy a molher com seus afaagos pinta as ymage~e~s
das maas cuydaço~es e~no coraçom do home~. E jsso meesmo faz o diaboo.
Onde Salamo~: Com os afaagos dos seus beiiços tira per elle. E, assy como a
berbeleta tanto anda voando acerca da candea ataa que sse queyma e~ ella, bem
assy fazem aquelles que ameude husam a co~panha das molheres.
OE livro 4/capítulo 57/fólio 135r (Séc. XV)
xiii) Depois desto, pescadores que andauo~ pescando e~no ryo, acharo~ o seu
corpo e trouxero~ no aa egreya de Sam Pedro, e, seendo aly, viro~ todos clarame~te
hu~as ymage~e~s de sancto[s] que hi estauo~, que lhe faziam reuere~ça e o
saudauo~ ho~rradame~te.
OE livro 4/capítulo 36/fólio 99v (Séc. XV)
xiv) E pore~ diz o Ecclesiastico que ao seruo de maa uo~tade co~pre de lhe dare~
torme~to e adouas. Ca a carne~ deue seer atorme~tada e pressa, que no~ caya e~
peccado ne~ ande uaguejando per maaos deseios e per deleytaço~o~es çuyas, e
pore~ diz Sam Paulo: Eu castigo a minha carne~ e torno a e~ seruidom.
OE livro 4/capítulo 11/fólio 54v (Séc. XV)
xv) Quanta sandice he procurar home~ as cousas pera seu herdeyro e negar sy
meesmo todallas cousas, porque a grande erança faz e~migo do amigo, ca mais se
152 Carla Abreu Vaz
alegraria con a tua morte aquelle que mais [ha] dauer. Onde conta Valerio que
hu~u~ home~ rrico auya huum filho que continuadamente andaua cuydando como
mataria seu padre por herdar sua rriqueza e pensaua como o mataria, con ferro ou
co~ peçonha ou per outra maneyra.
OE livro 4/capítulo 54/fólio 130v (Séc. XV)
xvi) E quanto mais p(er) elle descendia~ q(ua)nto mais pouco (L) via~ p(er) hu
avia~ de tornar. E ento~ disse a alma. Senhor (L) que carrei´ra he esta que asy he
atorme~tada E o ango disse (L) E esta he a carreira da morte. e forom descendendo.
e viro~ hu~u valle e~ que estavo~ muitas forjas de ferreyros e (L) ouviro~ muitas
vozes e muitos choros.
VS5 fólio 129v (Séc. XIII/XIV)
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 153
xvii) Q(ua)ndo esto ouvio Agapito e~tendeo (L) e ssoube cousa tam maravilhosa.
ficou mui espantado e foy correndo ao abbade e contou-lhe (L) todo como acon-
tecera de Panunçio e (L) de sua filha e veo o abbade e deitou-sse em t(e)rra
fazendo sseu p(ra)nto e dizia: – ay Eufrosina esposa (L) de Jhesu Cristo e filha dos
Santos nenbra-te dos (L) servos de Deos con que serviste a Nosso Ssenhor (L) e
nenbra-te deste moesteiro e hora por nos a Nosso (L) Ssenhor Jhesu Cristo que
nos faça chegar ao (L) porto de ssaude e aver q(ui)nhom com os sseus (L) santos
e mandou o abbade que sse juntassem todos (L) os frayres e ffezessem ssupultura
honrradamente (L) aaquel santo corpo assy como co~vi´i´nha (L).
VS6 fólio 49v (Séc. XIII/XIV)
xviii) E, despois que esto ouve feyto, tomou co~sselho com suas gentes e foysse
con suas naves pello mar ataa que chegou ao ryo Bethis, ao que agora chama~
Guadalquivyr, e foy per elle acima ataa que chegou ao logar a que agora chama~
Sevylha. E senpre hia buscando a ribeira onde acharia bo~o~ logar pera pobrar em
elle hu~a grande cidade e nom achou outro tam bo~o~ como aquelle em que agora
Sevylha he pobrada.
CGE capítulo 6/fólio 5a, 5b (Séc. XIV)
xix) E porem pobrou hu~a cidade ao pee do monte Cayo e pobrouha de hu~as
gentes que com elle veheram de Grecia; e hu~u~s delles era~ de Tiran e os outros
de Anssona e pore~ pos nome aa cidade Tirassona e oje em dia lhe chama~
Taraçona. E, despois que esto e outras muytas cousas ouve feyto, começou de
hyr conquerendo toda essa terra ataa que chegou a hu~u~ logar que lhe pareceo
que era bo~o~ pera pobrar e fez hi hu~a fortelleza e poselhe nome [Ur]gel, que
quer dizer em latym apremame~to, por que mais guaanhou elle aquella terra per
prema que per amor.
CGE capítulo 9/fólio 7c,7d (Séc. XIV)
xx) E elle leixoulha por lhe criar aquelle moço. E esto com tal condiçom que, quan-
do elle fosse grande, que fezesse delle aquello que lhe ella mandasse. E, despois
154 Carla Abreu Vaz
que este amor foy posto e o moço foy crecendo e fazendosse mancebo, foy muy
ligeiro e valente mais que outro homem que se no mundo soubesse.
CGE capítulo 5/fólio 4b (Séc. XIV)
xxi) E esto faziam por duas cousas: a primeira, por que ella era muy boa e muy
fremosa e muy filha dalgo; e a segunda, por que era herdeyra do reyno. E ella no~
queria outorgar de casar con ne~ hu~u~ e esteve assy hu~u~ tempo. O padre hya
envelhecendo e os home~e~s bo~o~s da terra temyansse da sua morte. Pedironlhe
que casasse sua filha por tal que, se elle morresse, que no~ ficassem elles sem
senhor.
CGE capítulo 11/fólio 8b (Séc. XIV)
xxii) Qual he mayor sandice que a me~te do home~ no~ seer trigosa pera perfeiço~,
quando o corpo se uay ya tostemente pera perdiçom, co~ue~ a saber e~na uilhice,
e~ que os olhos ua~a~o perdendo a uista e as orelhas o ouuido e os cabellos
caaem e os dentes mi~gua~ e o coyro se e~uerruga e seca sse e o baffo cheyra mel
e o peyto offega e a tosse no~ queda e os geolhos treme~ e os pees e as pernas
incha~?
OE livro 4/capítulo 9/fólio 52r (Séc. XV)
xxiii) Os d’Aragom, que soem donear, e [os] Catalães com eles a perfia, leixados
som por donas a lidar, vam-s’acordando que era folia; (V5) e de bu[r]las, cuid’eu,
ri[i]r-s’end’ia quem lhe dissess’aqueste meu cantar: a dona gaia do bom semelhar,
ó amor quiçá nõn’os preçaria.
CEM414 /Caldeirom /B 1623, V 1157 (Séc. XIII/XIV)
xxiv) O angio de Deus falou a Sam Philippe apostolo e dise lhe: Leuanta te e uay te
contra o meodia aa carreyra que uay de Jherusalem pera Gaza. E el leua~tou se e
foy sse a aquella carreyra. E aque hu~u~ castrado, home~ poderoso, que auya de
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 155
ueer todallas ryquezas da raynha de Ethiopia, hya per aquelle caminho, ca elle
ueera orar a Jherusale~ e tornaua-se pera sua terra em seu carro e hya leendo per
o liuro da propheta Ysai[a]s. E disse o Spiritu Sancto a Filippe: Achega te e ajunta
te ao carro.
OE livro 3/capítulo 4/fólio 19v (Séc. XV)
xxvi) Quando o padre esto vio, ma~dou que este terceyro filho que ouuesse o
regno pella sua grande priguiça. E este rey he o diaboo que regua sobre todollos
filhos da soberua. E o seu primeiro filho he aquelle que esta e~ peccado e~
conpanhia de maaos, per que se uay hindo de mal e~ pior. E, como quer que elle
esto uee, mais escolhe de sse queymar co~ fogo de peccado que se partir de maa
conpanhia.
OE livro 4/capítulo 69/fólio 154r (Séc. XV)
64
Cf. o excerto xxix) com vir + gerúndio.
156 Carla Abreu Vaz
xxvii) Mas a alma consente a[a] carne e uaa[n] se pello caminho cha~a~o e perigo-
so, e~ que os demo~es, que som ladro~ees, esbulham o home~ de todollos be~e~s
e o lançom e~ morte perdurauel. Assy como aconteceo a hu~u~ homem rico,
husureyro, que, estando e~na ora da morte, ueeo a elhe o sacerdote amo[e]stando
o da saude de sua aalma e disse lhe que tres cousas lhe eram necessarias pera sua
saluaço~, s. que se confessasse co~pridame~te e se doesse dos peccados e
pagasse todo o alheo segu~do seu poder.
OE livro 4/capítulo 31/fólio 91r (Séc. XV)
65
Vide observação sobre sintema supra.
66
Esta expressão encontra-se cristalizada ainda na actualidade. Veja-se, por exemplo, Guilherme
Augusto SIMÕES, Dicionário de Expressões Populares, Lisboa, Dom Quixote, 1993, p. 375.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 157
xxix) E, estando elle aa mea nocte chorando ante o loguar de Sam Pedro em oraçom,
veo hu~a luz do ceeo que toda a egreya alomeou, e~ guisa que as candeas e as
lampadas no~ luziam nehu~a cousa, e com aquella claridade conpanha de sanctos,
que uiinham cantando muy doceme~te, e elle ficou muy espantado.
OE livro 2/capítulo 11/fólio 13v (Séc. XV)
xxx) Qve~ quer q(ue) aia deffenso~ subre algu~a demanda que lli faz seu
(con)tendor, se a defensyo~ remata o preyto todo como se fosse p(re)yto que
auya co~ seu (con)tentor q(ue) nu~nq(ua) lhy demandasse rre~ aaquel q(ue) o
dema~da ou de paga q(ue) aya feyta daquel au(er) q(ue) lhy ue~ dema~da~do en
iuyzo ou d(e) tempo q(ue) a´ gaada a cousa q(ue) lhy demande~ ou out(ra) cousa
semellauil, atal deffe~so~ possa parar ante sy p(er) q(ue) se deffenda an(te) q(ue)
o juyzo seya fijdo.
FR livro 2/título 10/fólio 97r (Séc. XIII, 1280?)
67
Entendemos este exemplo como sendo uma perífrase verbal com vir + gerúndio. Temos, no
entanto, que referir que também ponderámos tratar-se apenas de dois verbos independentes
para duas acções distintas; vejamos: o sacerdote veio a ele e admoestou-o; esta hipótese seria
possível sem se perder o sentido.
158 Carla Abreu Vaz
xxxi) [...] querer ser a primeira, é certo que imediatamente atrairia os olhares de
quem passa ou se mostra na rua, mas esse gosto tão depressa vem, logo é perdido
porque, ao abrir-se a janela da casa em frente e nela aparecendo dama que por ser
vizinha é rival, desviam-se os olhares de quem me estiver contemplando, ciúme
que não suporto, tanto mais que ela é mesquinhamente feia e eu divinamente bela,
ela tem a boca grande e a minha é um botão [...]
MC/p. 144 (Séc. XX)
68
Não é relevante, para o nosso propósito, a escolha entre um texto do século XX ou um texto
do nosso século, o XXI, dado que este último é ainda muito incipiente e qualquer exemplo que
se escolhesse não poderia dizer-se verdadeiramente do século XXI, mas, ainda, do século XX.
Sabemos, perfeitamente, que a evolução da língua não se faz em períodos tão breves de tempo.
Deste modo, mesmo um romance dado à luz em 2004, não poderia, do ponto de vista linguístico,
ser considerado um exemplo da língua do século XXI. Esta problemática é, também, premente
no que respeita a textos de séculos anteriores. O título do artigo de Célia Maria Moraes de
CASTILHO, “Seria quatrocentista o português implantado no Brasil? Estruturas sintácticas
duplicadas em textos portugueses do séc. XV” – publicado em Rosa Virgínia Mattos e SILVA
(Org.), Para a história do português brasileiro, Vol. II (Primeiros estudos), Tomo I, São
Paulo, Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2001,
p. 57-89 – poderá ser denotador daquilo que afirmamos.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 159
xxxii) [...] são levados para fora numa carroça de rodas baixas puxada a seis cava-
los, como só para gente real ou de grande título se usa, o que, se não prova a
realeza e a dignidade dos touros, está mostrando quanto eles são pesados, di-
gam-no os cavalos, aliás bonitos e luzidamente aparelhados, encabuzados de
veludo carmesim lavrado, com as mantas franjadas de prata falsa, assim como as
cabeçadas e cobertas de pescoço, e lá vai o touro crivado de flechas, esburacado
de lançadas, arrastando pelo chão as tripas, os homens em delírio apalpam as
mulheres delirantes, e elas esfregam-se por eles sem disfarce [...].
MC/p. 94 (Séc. XX)
xxxiii) Cada branco vale meio preto, agora arranjem-se para conseguir entrar no
paraíso, por isso é que, um dia, as praias deste jardim, por acaso à beira-mar
plantado, estarão cheias de postulantes a enegrecer os costados, ideia que hoje
faria rir, alguns nem à praia irão, deixam-se ficar em casa e untam-se com untos
vários, e quando saem não os reconhece o vizinho, Que faz aqui este cabra, essa
é a grande dificuldade das irmandades de cor, por enquanto vão saindo estas, é o
que se pode arranjar [...].
MC/p. 147 (Séc. XX)
xxxv) Do outro lado do convento, num rebaixo que dava para a encosta, é que
eram as ruínas. Havia paredes altas, abóbadas, recantos que se adivinhava serem
de celas, bom lugar para passar a noite ao abrigo do frio e das feras. Blimunda,
ainda receosa, entrou no breu profundo das abóbadas, apalpou o caminho com as
mãos e os pés, temendo cair em algum buraco. Aos poucos, os olhos foram-se
habituando ao negrume, depois a claridade difusa do espaço recortou os vãos
das frestas, assinalando as paredes.
MC/p. 338 (Séc. XX)
forçado, ainda mais, pelo significado dos verbos arrastar, sair, andar e fazer.
Não podemos, deste modo, afirmar que ir se apresenta gramaticalizado nos
exemplos xxxii), xxxiii) e xxxiv). No entanto, se observarmos o trecho xxxv),
perceberemos que o uso do verbo ir convoca já um sentido gramaticalizado e
não um sentido enraizado na etimologia da forma verbal em causa. O contexto
ajuda ao esclarecimento desse valor, na medida em que “os olhos”, sujeito da
frase em causa, não podem caminhar, deslocar-se sozinhos sem o resto do
corpo, por isso é possível, ao autor, usar metaforicamente a perífrase como o
faz neste trecho: “Aos poucos, os olhos foram-se habituando ao negrume”. O
verbo ir perdeu o seu sema “deslocar-se de um lugar para outro” para, no
conjunto verbal, expressar um valor de progressão, de crescendo relativamente
a um estado.
Olhemos, agora, para o fragmento que se segue onde surge a perífrase
andar + gerúndio e vejamos como andar não se apresentará totalmente
gramaticalizado.
acontecimento, mas em Lisboa não podia ser assim, foi outra pompa, saiu o infan-
te da sua câmara, metido no caixãozito que os conselheiros de Estado levavam,
acompanhado de toda a nobreza, e ia também el-rei, mais os irmãos, e se ia el-rei
seria por dor de pai, mas principalmente por ser o falecido menino primogénito e
herdeiro do trono, são as obrigações do protocolo, vieram descendo até ao pátio
da capela, todos de chapéu na cabeça, e quando o caixão foi colocado nas andas
que o haviam de transportar, descobriu-se el-rei e pai, e, tendo-se descoberto e
coberto outra vez, voltou para o paço, são as desumanidades do protocolo.
MC/p. 101 (Séc. XX)
xxxviii) Quase trinta metros de altura será a queda, e dela morrerá, e esta Inês
Antónia, por ora tão orgulhosa do favor de que goza o seu homem, tornar-se-á
numa viúva triste, ansiosa se lhe cairá agora o filho, pobre. Diz mais Álvaro se
mudarão os noviços para duas casas já construídas por cima da cozinha, e, a
propósito desta informação, lembrou Baltasar que, estando os rebocos ainda tão
húmidos e correndo tão fria a estação, não iriam faltar doenças aos frades, e
Álvaro Diogo respondeu que já havia braseiros ardendo noite e dia dentro das
celas acabadas, mas que, mesmo assim, a humidade escorria pelas paredes, E as
estátuas dos santos, Baltasar, deram muito trabalho a trazer, Nem por isso, o pior
foi carregar, depois, com jeito e força, mais a paciência dos bois, viemos andando.
MC/p. 322 (Séc. XX)
~~~~~
70
Segundo Alicia YLLERA “[…] la perífrasis [estar + gerundio] se constituye plenamente en la
prosa del XIII, momento en el que surgen o se consolidan sus empleos hoy más frecuentes
[...]”. Vide ob. cit., p. 47.
71
Vide esquema na p. 14 do nosso estudo.
Gramaticalização das formas estar, ser, andar, ir, vir + Gerúndio 163
usos aproximados aos usos de estar + gerúndio, também desde muito cedo72,
prolongando-se essa proximidade até aos nossos dias; o que facilmente se com-
prova se tivermos em consideração os usos sincrónicos que fazemos de ser e
estar nas diversas construções onde estes podem aparecer como auxiliares.
Por vezes, porém, parece-nos difícil distinguir qualquer cambiante de sentido
nos usos sincrónicos destas duas formas. Aventamos a hipótese de, na perífra-
se ser + gerúndio, ser não ter sofrido gramaticalização ou pelo menos não a
ter sofrido em elevado grau. Isso explicará, em parte, o facto de, pelo que
fomos verificando ao longo da nossa pesquisa e até pelos escassos exemplos
que conseguimos reunir, o complexo verbal ser + gerúndio não ter sido muito
usado e, por esse motivo, ter sido, desde cedo, destronado pelo composto estar
+ gerúndio que abriria as portas a um maior leque de sentidos, na medida em
que terá sofrido um maior grau de gramaticalização73.
No respeitante à perífrase verbal com andar + gerúndio, em confronto
com os compostos ir e vir + gerúndio, parece-nos ser aquela que, depois de
ter sofrido gramaticalização74, terá sido mais usada e, sincronicamente, o seu
uso continua a ser talvez o mais recorrente. Foi-nos permitido verificar, embo-
ra, admitimo-lo, a nossa amostra seja pequena, que andar terá sido muito usa-
do com verbos de movimento ou em contextos que veiculem essa ideia; lem-
72
Alicia YLLERA, referindo-se ao verbo ser, diz: “En el siglo XIII se dibuja ya el empleo análogo
al de estar en la lengua moderna como ocurría también en el caso de este auxiliar. Alterna en un
gran número de construcciones con estar”. Cf. ob. cit., p. 48.
73
Socorremo-nos, novamente, das palavras de YLLERA: “Seer + gerundio, documentado ya en el
Cid aunque en minoría frente a estar, alcanza un desarrollo relativo en el siglo XIII, apareciendo
en las mismas construcciones que estar y con idéntico valor. Pero su empleo cae en desuso a
finales del siglo XIII o principios del XIV; en este siglo sólo aparecen raros ejemplos en verso,
la prosa lo ha abandonado definitivamente”. Tomamos esta última observação para reforçar
que na literatura, em prosa ou em verso, quando se pretende um efeito estético diferente e até,
atrevemo-nos a afirmá-lo, arcaizante, se recorre ao uso de ser em detrimento de estar. Vejamos
os exemplos que se seguem: “E a outra sacudiu o seu (facho) sobre as duas cidades, e súbito no
lugar, onde elas foram, estavam dois montões de ruínas” (A. Herculano); “Todas as terradas
que eram no ancoradoiro” (Filinto Elísio); “Fiel ao que prometo, num instante, qual voa o
pensamento, aqui de volta serei, trazendo à mão as tuas naves” (Porto Alegre); “Tomou um
trote e sendo sobre a atalaia do Barroso viu que levavam grande dianteira” (A. Garrett);
“Muito há que eu devera ser cá, não é assim?”; “Pelo seu conto enfim de pérfidas promes-
sas…| amanhã lá serei no prazo dado” (F. Castilho); “Ia que nam sabiam o novo amor que só
consigo tem respeito, e assi se foram pêra Almina por serem presentes em seu parto” (J.
Ferreira de Vasconcelos), entre outros. Confrontem-se os exemplos apresentados em António
de Morais SILVA, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, [Lisboa], Editorial Confluência,
10ª ed., 1949, vol. X, p. 92.
74
Segundo R. SPAULDING não existem ocorrências verdadeiramente perifrásticas de andar +
gerúndio até ao século XIV. Apud Alicia YLLERA, ob. cit., p. 82.
164 Carla Abreu Vaz
principal pelo gerúndio, o que prova que, nestes casos, é possível, com efeito,
que ir surja de forma pleonástica. No entanto, ir poderá ocorrer já de forma
metafórica, o que indiciará um processo de gramaticalização, na medida em
que o seu significado próprio está totalmente ausente: “foy crecendo”; “hya
envelhecendo”; “vam-s’acordando”; “hya lendo”; “yam cantando”79. No com-
posto ir + gerúndio, o verbo ir, hodiernamente, apresenta-se quase sempre
gramaticalizado, à excepção de quando ocorre com verbos de movimento em
que adquire um papel redundante do ponto de vista da informação útil a trans-
mitir pelo conjunto.
Quanto ao conjunto verbal vir + gerúndio, pudemos perceber,
inclusivamente, pelos exemplos que recolhemos, que será, por contraste com
as perífrases com andar e ir + gerúndio, aquela a que mais raramente se
recorrerá, pelo menos quando vir mantém na perífrase o seu significado pro-
fundo de “deslocamento no espaço físico em direcção a um sujeito enuncia-
dor”. Acreditamos que vir se terá gramaticalizado muito cedo, pelo facto de,
mais do que um “movimento no espaço físico”, o verbo vir aduzir à perífrase
verbal um sentido de progressão temporal, mais do que física e espacial; obser-
ve-se: “ue~dema~da~do” em “aaquel q(ue) o dema~da ou de paga q(ue) aya
feyta daquel au(er) q(ue) lhy ue~ dema~da~do en iuyzo ou d(e) tempo q(ue)
a´ gaada a cousa q(ue) lhy demande~ ou out(ra) cousa semellauil”80. Contudo,
cremos que, nos nosso dias, o uso de vir + gerúndio se distribuirá quase equi-
libradamente pelo sentido associado ao significado de vir, enquanto verbo ple-
no, implicando “deslocamento e aproximação no espaço físico” e pelo sentido
metafórico que implica “progressão e aproximação no tempo”.
Havendo caminhado, consideravelmente, por entre as linhas e as entreli-
nhas de alguns textos do passado, situados entre os séculos XIII e XVI, e
passando por uma obra do século XX, deixamos para trás aqueles sentidos e
valores que conseguimos retirar dos usos das perífrases estar, ser, andar, ir e
vir + gerúndio81, numa investigação que consideramos o tubo-de-ensaio de
uma pesquisa que merecerá um maior desenvolvimento e maturação, na cren-
ça de que seria objecto de um estudo muito desafiante o levantamento e a
posterior comparação das perífrases verbais com gerúndio com as perífra-
ses verbais com preposição (a) + infinitivo.
79
Vide exemplos inclusos nos excertos da secção II b) deste estudo.
80
Idem.
81
Através dos exemplos que escolhemos e partindo de toda a reflexão que fomos urdindo ao
longo deste estudo, podemos comprovar a lentidão com que ocorrem muitos processos evo-
lutivos e a copresença, em determinada fase, de usos sucessivos, isto é, a memória da língua.
AFINAL, QUEM É A MULHER DE VERDADE?
– UM ESTUDO LEXICAL, ANTES DO MAIS
Bem mais poderia ser dito sobre a mulher numa sociedade em que o
julgamento prévio dos indivíduos começa pelas suas características sexuais.
Buscou-se, por ora, demonstrar que, na boca do povo, ao expressar a sua vi-
são-de-mundo, o falante declara que, embora perceba a mulher como membro
necessário de uma sociedade, ele a opõe à classe de “ser humano” – essa
desigualdade básica foi reiterada não só pelas escolhas léxicas com que são
designados os entes femininos, como também pelo instigante câmbio de signifi-
cados que circunscrevem o estar-no-mundo quando o referente é “mulher”.
Das expressões citadas no Aurélio nucleadas em torno da palavra “homem”,
100% apresentam semas positivos; das que têm “mulher” por foco, cerca de
92% referem-se à atividade sexual e portam conotações negativas. Enquanto a
lexia “homem” ou se refere à humanidade no seu todo ou ao ser masculino
unicamente, “mulher” restringe-se sistematicamente ao ente feminino e, qua-
se sempre, deprecia o ser a que designa, apelando, por isso, não raro, a recur-
sos eufêmicos.
174 Maria Emília Barcellos da Silva
QUADRO 1
CORPUS n º de lexias CORPUS n° de lexias CORPUS n°de lexias
QUADRO 2
soquismo, cuja exacerbação tem por lema “achar bonito não ter o que co-
mer” e conseguir “alegrar-se” com a fome que lhe bate à porta; no entanto
cabe questionar-se a que tipo de fome Amélia se submete e qual teria sido a
carência que a levou a “desertar”: fome de quê? quanto terá ela resistido à
carência física tão convenientemente louvada pelo companheiro simplista? qual
terá sido a “gota d’água” para que ela se evadisse? quanto teria pesado para a
sua saturação o conceito exarado pelo amante no que se refere, por exemplo,
ao que seja “ter consciência?” Onde estariam traçadas as fronteiras faméli-
cas de “Amélia-lembrança”? E mais, onde estaria ela agora, heroína ausente e
santificada, já que o tempo presente do amante é preenchido pela “substituta”
que se inscreve no grupo das que suprem as suas carências com a exploração
desmedida e compulsiva do trabalho do companheiro? Se Amélia é a “mulher
de verdade”, por oposição, a sua sucessora é, então, a “mulher de mentira”,
mas é esta que está viva e presente, satisfazendo-se no exercício de teúda-e-
manteúda do lacrimoso parceiro, na medida em que “tudo que vê (ela) quer”:
se a consagrada “mulher de verdade” não preenche as exigências do ego-
hic-et-nunc com que se estabelece uma ação presente, tem-se de sucumbir ao
fato de que o ideal de mulher, para se sustentar, tem de acionar uma inversão
no eixo verdade-mentira. E mais: se Amélia confessadamente não “tinha ne-
nhuma vaidade” (do latim, vanitas, de vanus”, “vazio”) era também – e por
isso mesmo – um ser incompleto, longe, portanto, da perfeição acalentada pelo
discurso masculino.
A radicalização dos papéis femininos expressados pelos dados em tela dá
conta da fantasia que relata a luta sem guarida entre o desejo físico e o cons-
trangimento socialmente definido das mulheres que parece se dividirem contra-
ditoriamente ao se realizarem de acordo com os seus próprios desígnios, sem
pré-julgamento do que é conveniente ou permitido, sem, por se autodeterminarem,
ter de ocupar irreversivelmente ou o nicho do lar ou o reduto do prostíbulo –
não se esquecendo que, redoma ou lupanar, esses espaços resultam da
mensuração masculina. Em “Tieta”, por exemplo, em que se poderia suspeitar
de uma aparente ruptura dos padrões conservadores (uma vez que dela parece
advirem as decisões de “vir com calor, sem pudor, p’ra tirar nosso juízo”,
rompendo-se assim o estatuto preestabelecido pelo qual não cabe à mulher a
iniciativa nem da escolha da parceria nem do jogo amoroso), a uma leitura mais
atenta, revela-se, em verdade, que a personagem feminina nada mais faz do
que atender ao chamado masculino, circunscrevendo-se, desse modo, num dos
pólos da linha de desempenho consentido já aludido.
Com base no levantamento lexicográfico, morfossintático e semântico
propiciado pelos data do corpus, pode-se apontar que o contraponto da ação
180 Maria Emília Barcellos da Silva
Referências bibliográficas
Introdução Histórico-filosófica
2-Palavras e sentimento
Cada povo tem as suas palavras com que expressa os próprios sentimen-
tos. Mas estes sentimentos adquirem, até certo ponto, conotações diferentes,
consoantes as palavras que a eles se referem. Trata-se, afinal, de uma natural
decorrência do conhecer humano. A atividade do pensar está indissociada dos
conceitos; e estes, das palavras que os suportam. Um é a forma do outro;
alterando-se o elemento formal, altera-se o conteúdo de que é forma.
Daqui decorre um problema clássico: o dá real intraduzibilidade das pala-
vras. Do mesmo modo que não existem traduções perfeitamente equivalentes
dum idioma para o outro. Não basta conhecerem-se mecanicamente os vocá-
bulos em nível de dicionário. Para que se traslade toda a ressonância de uma
língua, tem que haver aquela permeação interior, que não é resultado de apren-
dizagem, mas de vida.
É um problema amplo que se põe e que abarca questões de sociolingüísti-
ca. Se uma língua não é um frio sistema de rotulações com correspondência
nas outras – o que se poderia esperar de uma simples nomenclatura –, é fácil
prever a sua total falência quando se pretende decifrar ou traduzir o mundo
ideal ou sentimental de um povo. Pode, quando muito, ver-se mitigado o seu
desvirtuamento nos campos da práxis comercial ou da mera informação objeti-
va; nunca, porém, em se tratando de significar vivências interiores e estados
psíquicos originais”.
Ai palavras, ai palavras
Que estranha potência a vossa,
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta....
Sois de vento, ides no vento
No vento que não retorna
E , em tão rápida existência,
Tudo forma e se transforma!
Eu não tinha esse rosto assim magro, assim calmo, assim triste, nem o lábio amar-
go! Eu não tinha estas mãos tão sem força , tão paradas e frias e tristes, eu não
tinha esse coração que não se mostra/,Eu não dei por esta mudança tão simples,
tão certa , tão fácil / Em que espelho ficou perdida a minha face?
Eu hoje estou com saudade não sei ao certo de quê . de um dia de claridade, de um
carinho de verdade , de ouvir a voz de você/ Eu sinto uma falta louca de um sonho
bom que morreu, da alegria que foi pouca.do sorriso de uma boca, cujos beijos
não são meus E a nostalgia me invade... de um olhar que não se vê... pois não há
maior saudade que essa estranha ansiedade não sei ao certo de quê.
Ai que saudades que tenho da aurora da minha vida! Da minha infância querida
que os anos não trazem mais!
Alo cotovia onde voaste, por onde andaste, que tantas saudades me deixaste?
Andei onde deu o vento, onde foi meu pensamento, em sítios que nunca viste,de
um país que não existe
Voltei te trouxe alegria...
E esqueceste Pernambuco, distraída? Voei ao Recife, no cais pousei da rua da
Aurora. Aurora da minha vida que os anos não trazem mais
Os anos não, nem os dias ........Voei ao Recife e dos longes das distâncias, do
mais remoto dos teus dias de criança te trouxe a perdida esperança, trouxe a
extinta alegria.
Ora é representada pela noite de São João, junto com os entes queridos
que estão dormindo profundamente
......................................................
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente
A saudade na Língua Portuguesa 191
Vão derrubar esta casa. Mas meu quarto vai ficar, não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências: Vai ficar na eternidade, com seus livros com seus
quadros, Intacto, suspenso no ar!
5- Conclusão
Bibliografia
Fato ordinário nas línguas modernas, a dupla forma lexical das palavras de
significação externa atrai a atenção dos lexicólogos empenhados nos estudos
diacrônicos. Sabe-se que as variantes contemporâneas de um vocábulo portu-
guês devem-se ordinariamente a fatos restritos ao plano fonético, como ocorre
nos casos em que coexistem formas com b ou v – assobio, assovio –, decor-
rentes de degeneração da consoante oclusiva, e nos pares de alternância vocálica
em sílaba átona – dezasseis, dezesseis –, em que atuaram forças assimilatórias
no curso prosódico da palavra. Situações há, entretanto, em que a coexistência
de formas análogas se deve ao duplo ingresso de certos termos no léxico do
português, não raro de fontes distintas e em épocas diferentes. Este o caso de
corredor – lugar de passagem – e corredouro, em que o primeiro advém do
italiano antigo corridore (CUNHA, 1994), já registrado na segunda edição do
dicionário de Moraes Silva, e o segundo encontra registro no século XII (cf.
VITERBO, 1965) como derivado de cu( rre(re. Nas duplas divergentes em que
figuram uma forma erudita e outra hereditária, há via de regra grande distinção
semântica na língua contemporânea, como em artelho e artigo, plano e chão
etc. No caso de câmara e câmera, a duplinha a que nos dedicaremos nesse
breve estudo, o enquadramento das variantes não parece explicar-se facilmen-
te, dado que o uso dessas formas configura-se hoje indistinto em alguns casos
e, em outros, compulsoriamente distinto, em face de sua polissemia.
Ouve-se, por exemplo, atualmente que os deputados pouco comparece-
ram (como sói acontecer) às sessões da Câmara, fato registrado pelas câme-
ras dos fotógrafos jornalistas. A convivência dos dois termos paronímicos nos
textos contemporâneos dá ensejo a uma suposta distinção de sentido, como se
constituíssem dois vocábulos diferentes, o primeiro designador de “aposento”
ou “recinto” a que se restringe, em face de suas peculiaridades, o acesso das
pessoas – câmara nupcial, câmara mortuária, câmara-ardente etc. –, sen-
tido que metonimicamente se estende aos conselhos e colegiados de cunho
representativo – câmara comercial, câmara de deputados, câmara cível etc.
194 Ricardo Cavaliere
breve período, a vogal baixa interna do étimo grego se manteve em latim antes
de dissimilar para e.( Daí, teriam seguido curso paralelo a primitiva forma camar( a
e a alterada forma came(ra, sendo que a essa última se conferia maior prestígio
em registro literário.
O Appendix Probi, como sabemos, registra a correção came(ra non
camma(ra, clara evidência de maior prestígio da forma com e( em sermo
litterarius. Registrem-se, contudo, testemunhos de ambas as formas em al-
guns textos escritos, conforme nos informa o erudito lexicógrafo Guill. Freund
(FREUND,1860:399), fato que nos parece comprovar a existência de uma for-
ma primitiva no léxico latino com a vogal baixa interna. Nessa linha, revela-se
elucidativa a lição de Juan Corominas, para quem a forma came(ra é a normal
em latim escrito, mas cama(ra não só aparece como vulgarisco como também
em textos de autores hispânicos como Sêneca (cf. COROMINAS, 1954).
Saliente-se, por sinal, que os registros dessa forma não são tão raros em
textos de temário popular, como o Itinerario terrae sanctae, de Admnanus:
“Ecclesiae interior domus sine tecto, et sine camara, ad coelum sub aere nudo
patet” (CANGE, 1937:38). Diga-se, ademais, que durante o largo período ante-
rior ao século I a.C., quando floresce em magnitude a literatura latina, não se
podia falar em diferenças lexicais expressivas entre o sermo urbanus e o
sermo litterarius. Na verdade, não se há de esquecer de que a fonte do voca-
bulário prestigiado em norma culta escrita sempre foi o vocabulário popular
sedimentado pelo uso exemplar ao longo dos séculos (cf. MAURER JR., 1962).
A coexistência de variantes diastráticas do latim oral em cultos religiosos e nas
peças teatrais, sobretudo, favorecia o surgimento de formas lexicais em con-
corrência, fato que pode explicar a mudança gradual de cama(ra para came(ra
sem que o termo original se tenha elidido totalmente.
Em sua edição do Appendix, Serafim da Silva Neto (SILVA NETO,
1946:231) ocupa-se singularmente da nasal geminada1 na forma vulgar – a seu
juízo, uma pronúncia expressiva, similar a outros casos como *brutto>bruto;
*burriccu>burrico; camello>camelo etc. – sem que trace ao menos uma
linha para a questão da vogal átona interna. De qualquer forma, a presença da
correção came(ra non camma(ra no Appendix deixa supor que os gramáticos
latinos acreditavam ser a forma com a( uma corrupção secundária da forma
com e(, criada pelo falante como resultado de um processo de assimilação
1
Sobre a evolução –mm>mb (fr. chambre, cat. cambra), leia-se o substancioso texto Camara
non cammara (App. Pr. 84): la geminada latina –mm- em euskera, de Maria Jesús Pantoja
(PANTOJA, 2000).
198 Ricardo Cavaliere
Bibliografia
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra, Collegio das
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BORBA, Francisco da Silva. Dicionário de usos do português do Brasil.
São Paulo, Ática, 2002.
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CONSIGLIO NATIONALE DELLE RICERCHE. Tesoro della Lingua Ita-
liana delle Origini. Disponível em<http://tlio.ovi.cnr.it>. Consultado em 24
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COROMINAS, Juan. Diccionario crítico etimológico de la lengua caste-
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CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da
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FARIA, Ernesto. Fonética histórica do latim. 2a ed. Rio de Janeiro, Acadê-
mica, 1970.
Câmara e Câmera 201
1 – Panorama histórico-cultural
lhães, Araújo Porto Alegre e outros lançaram a revista Niterói, na qual propunham
uma renovação estética de cunho nacionalista para a literatura brasileira.
Nosso Romantismo coincidiu com o período pós-Independência, em que
havia um forte sentimento de auto-afirmação nacionalista (uma das marcas
dessa escola) e de lusofobia. Além disso, nossa formação étnica, histórica,
nosso meio ambiente, nossa inclinação ao sentimentalismo e à sensibilidade,
tudo contribuiu para que o Romantismo se adaptasse tão bem entre nós, tor-
nando-se um movimento bastante popular, pois com ele identificaram-se pro-
fundamente, desde cedo, o gosto e a alma brasileira. Para nós, o Romantismo
significou, sobretudo, a independência literária, propiciou o surgimento de vá-
rias gerações de homens de letras com o pensamento voltado para o Brasil e,
no plano da linguagem, permitiu uma adequação maior entre a língua escrita e
a língua falada.
No campo da poesia, destaca-se o nome do poeta maranhense Gonçalves
Dias (1823-1864), autor da célebre Canção do exílio. Considerado o consoli-
dador da escola romântica no Brasil, sua obra poética, a par do lirismo amoro-
so, caracteriza-se pelo nacionalismo, o culto da natureza e o indianismo, sendo
ele autor de um dicionário da língua tupi.
Em carta a Pedro Nunes Leal, escrita em 1857, Gonçalves Dias (1959:826)
reconhece a importância do estudo dos escritores lusitanos (“Que se estudem
muito e muito os clássicos”), mas, coerente com a linha nacionalista do Roman-
tismo, não se esquece de valorizar o português do Brasil: “A minha opinião é
que, ainda sem o querer, havemos de modificar altamente o português”. E mais
adiante, enfático: “E que, enfim, o que é brasileiro é brasileiro, e que cuia virá
a ser tão clássico como porcelana, ainda que a não achem tão bonita”. A
propósito, atente-se para a apossínclise “que a não achem”, colocação prono-
minal clássica, à lusitana, contrária à índole prosódico-sintática do português do
Brasil, que nesses casos prefere a próclise: “que não a achem”. Trata-se de
colocação freqüente nos nossos escritores do século XIX, sinal de que as ousa-
dias lingüísticas do Romantismo tinham seus limites. Sinal também de que a
tese da chamada “língua brasileira” nunca passou de um grande equívoco.
No campo da prosa romântica, destaca-se o nome do romancista cearen-
se José de Alencar (1829-1877). Considerado o patriarca da literatura brasilei-
ra, seus romances fizeram extraordinário sucesso, originalmente em folhetins e
depois sob a forma de livro. Além de abranger os grandes temas do Romantis-
mo brasileiro, sua obra revela-se inovadora, incorporando termos indígenas e
regionalistas, a par de uma sintaxe mais próxima do português falado no Brasil.
Na questão da linguagem, José de Alencar se destaca pelo esforço desen-
volvido em prol da libertação dos rígidos cânones gramaticais lusitanos, batendo-
Aspectos lexicais do português do Brasil no século XIX 207
se pela defesa de um estilo brasileiro, mas dentro dos limites do sistema lingüís-
tico português e não de uma suposta “língua brasileira”, absurdo que nunca lhe
passou pela cabeça. Aliás, tanto no pós-escrito de Diva e de Iracema, quanto
no prefácio de Sonhos d’ouro, a posição de Alencar revela-se bastante equi-
librada, como lembra Gladstone Chaves de Melo (1972:23):
Em tais escritos, é bem de notar que nem uma vez falou em “língua brasileira”:
sempre se refere à “língua portuguesa”. Fala, sim, em “dialeto brasileiro”, e em
“abrasileiramento” da língua portuguesa. Reagiu, e quase sempre com assaz de
razão, contra o purismo exagerado, contra a caturrice gramatical, contra a supers-
tição do classicismo.
verificar no cap. VIII do livro acima citado: “La maison est à moi, c’est à vous
d’en sortir” (A casa é minha, você é que deve abandoná-la), frase de Tartufe,
personagem da peça homônima, de Molière. Em crônica de 7-3-1889, Macha-
do (1997:517, v. 3) trata com humor a questão dos galicismos, apresentando
alguns exemplos com o respectivo “sucedâneo” em português.
4 – Conclusão
5 – Bibliografia
Literatura brasileira:
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sília, Ed. UnB, 1963.
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 26ª ed. São Paulo, Martins, 1974.
BILAC, Olavo. Obra reunida. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1996.
CORREIA, Raimundo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, Aguilar, 1961.
CRUZ E SOUSA, João da. Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995.
DIAS, Gonçalves. Poesia completa e prosa escolhida. Rio de Janeiro, Aguilar,
1959.
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar,
1997.
222 Castelar de Carvalho
Confluência
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