Tese Tom
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Tom Valença
Salvador - Ba
Março – 2010
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Tom Valença
Banca examinadora:
Antonio Nery Filho
Eduardo Paes-Machado
Edward MacRae
Júlio Assis Simões
Paulo César Alves
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Agradecimentos
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Resumo
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SUMÁRIO
I - A trama
II – O cenário
III – A ação
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I – A trama
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- pois nem sempre os consumos de drogas como maconha, ópio e cocaína ostentaram as representações
estigmatizadas que ostentam atualmente, como bem demonstra Escohotado em Las Drogas: De los
orígenes a la prohibición (1994).
2
- nesse projeto, drogas lícitas devem ser referenciadas, pois é inviável abordar drogas ilícitas sem
estabelecer uma interface entre o consumo destas e o consumo de drogas lícitas, enquanto dois lados
configurados de uma mesma moeda.
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como o álcool e tabaco, há cada vez mais delimitações de sanções e controles sociais.
Estas configurações comunitárias ainda podem diferir entre elas no que diz respeito à
faixa etária, gênero, classe, etnia e formação acadêmica. Nesse sentido, o ponto de
interseção costurado entre variadas drogas e contextos de consumo é que os
consumidores aqui interlocutores são universitários3, o que minimamente já garante que
estes buscam alguma superação do estigma, ao sustentarem uma outra carreira além da
carreira de usuário.
O que? Se fosse investigá-los apenas enquanto usuários de drogas, talvez fosse
interessante trabalhar com a categoria rede (Romani:1999), mas como os investigo
como universitários usuários, a categoria comunidade (Bauman:2003) parece mais
adequada, na medida em que mesmo não havendo um contato direto e voluntário entre
todos os interlocutores, há uma referência identitária comum que passa pelo título de
estudante universitário, o que lhes confere um estatuto muito mais sólido por
caracterizar um pertencimento estabelecido. Se os represento como comunidades4,
quero salientar com isso, os valores e objetivos comuns à carreira universitária; por
exemplo, a demanda pela produção de conhecimento – inclusive sobre drogas -, e
principalmente sua representação ante a sociedade. Por outro lado, não seria muito
preciso defini-los como grupo, pois muitos deles nem se conhecem. Se podem ser
representados como um grupo, o devem ser apenas como o grupo de sujeitos dessa
pesquisa, mas nunca como um grupo entre eles mesmos.
Quais os habitus sociais que de modo dominante configuram estas comunidades? O
tipo de droga preferencial? O curso que fazem? O poder aquisitivo? Qualquer que seja o
leque de respostas, descarto duas categorias de análise para abordá-los: subcultura e
contracultura. Adotar as representações de subcultura e de contracultura para analisar
consumidores de drogas é correr o risco de ser conivente com a estigmatização, pois
subcultura e contracultura acabam indicando uma relação de dependência (sub) e
negação (contra) em referência a alguma “Cultura” dominante. Os interlocutores aqui
não percebem suas culturas como dependentes, mas sim como interdependentes em
relação a outras culturas e buscam a superação das diferenças, não sua negação.
Também a teoria do desvio que tem grande valor principalmente quando se estuda
grupos de excluídos, não é priorizada neste estudo, o que não quer dizer que seja
3
- e dentro desta categoria, novamente encontro particularidades ligadas a faixa etária, gênero, classe,
etnia e formação acadêmica, que só ganham sentido analítico quando configuradas.
4
- de modo mais preciso prefiro dizer comunidades, no plural. Posteriormente retomarei a questão.
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- no trabalho de campo, considerar a priori que tais interlocutores operavam comportamentos desviantes
os fez sentirem-se desconfortáveis, encerrados numa perspectiva cultural na qual só os valores dos grupos
estabelecidos que condenam o desvio por eles mesmo imputados, devessem ser levados em conta.
6
- isto é, não negam a cultura característica da Modernidade baseada nas distinções propiciadas pelo
paradigma da produção - onde o status pessoal e coletivo era majoritariamente referenciado pela
qualidade da produção de trabalho e não necessariamente pela qualidade do consumo de bens – na qual a
teoria do desvio fez pleno sentido.
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- me refiro a uma interpretação que foi feita por um colega em relação à construção teórico-
metodológica da primeira parte deste projeto.
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- Consumir e ser consumido, eis a questão! configurações entre usuários de drogas numa cultura de
consumo. (Dissertação de mestrado. UFBa, 2005).
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V - Para analisar a cultura da droga enquanto estilo de vida, cuja referência prioriza
a investigação sobre o consumidor não marginalizado, não excluído, tenho como base a
pesquisa de Gilberto Velho; Nobres e Anjos, um estudo de tóxicos e hierarquia (1998).
A escolha da pesquisa de Velho como referência se deu por um fator muito simples.
Este estudo pioneiro na investigação do consumo de drogas no Brasil na década de
1970, e que privilegiou consumidores não ligados à marginalidade e à violência do
tráfico, acabou obtendo uma repercussão e representação restrita entre pesquisadores da
área. De forma geral, em meio aos não especialistas na problemática, há uma maior
informação sobre pesquisas, como as de Alba Zaluar, que privilegiam as relações entre
drogas, tráfico, violência e exclusão. Ora, os interlocutores da presente pesquisa
abraçam um estilo de vida muito mais próximo dos interlocutores de Velho – mas só
por efeito aproximativo, já que todos valorizam muito a carreira estudantil – do que dos
interlocutores de Zaluar, e nesse sentido foi realizada a opção pelo modelo.
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- se não éramos todos nativos, éramos todos universitários...
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-“é preciso desconfiar das recusas sectárias que se escondem por trás das profissões de fé demasiado
exclusivas, e tentar, em cada caso, mobilizar todas as técnicas que, dada a definição do objeto, possam
parecer pertinentes e que, dadas as condições práticas de recolha dos dados, são praticamente
utilizáveis”,(BOURDIEU: 2000,26).
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O primeiro capítulo após introduzir o manancial teórico referencial opera uma leitura
sobre a estigmatização dos consumidores de drogas, averiguando a configuração
sociocultural que ganhou corpo na primeira metade do século passado quando as drogas
foram lançadas na ilegalidade. Em seguida é desenhado um recorte da condição de ser
universitário, o que é fazer parte de um corpo discente tendo como referência as
representações dominantes do homo academicus. Para tanto o foco é direcionado ao
campo universitário enquanto ethos e cultura estudantil. Este capítulo é encerrado com
um panorama sobre o que vem significando ser jovem no Brasil das últimas décadas
tendo como setting a cultura estudantil já que o jovem acaba sendo o principal público
alvo da cultura universitária. Nos limites deste recorte busco explicitar os conceitos e a
intencionalidade da tese. A pergunta que se desdobra e faz eco é: qual projeto estes
universitários jovens e consumidores de drogas estigmatizadas sustentam com seus
estilos de vida11?
11
- e se ao senso comum é motivo de estranhamento associar universitários e drogas quase que com
naturalidade, o estranho para pesquisadores da problemática é que não haja a possibilidade dessa
associação, como transparece na seguinte fala do antropólogo Gilberto Velho: “Têm muitos jovens que
não usam cocaína, mesmo, e conheci vários que nunca fumaram um cigarro de maconha, juventude
universitária, o que poderia parecer quase espantoso. Mas existem essas pessoas...”, in: (LABATE et Al:
2008,134).
19
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O quinto capítulo opera uma interpretação sobre como a crise econômica ensaiada
em 2008 propiciou uma configuração que favorece outros sentidos para o consumo de
drogas e seus efeitos. Em seguida é realizada uma leitura sincrônica sobre configurações
de estudantes e professores universitários usuários, registrando aproximações e
distanciamentos quanto às suas perspectivas profissionais e quanto a recursos miméticos
emblemáticos da cultura de consumo.
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“É muito fácil, por exemplo, não perceber que o conceito de figuração foi
criado expressamente para superar a confusa polarização das teorias
sociológicas em teorias que colocavam o ‘indivíduo’ acima da sociedade e
outras que colocavam a ‘sociedade’ acima do indivíduo [...] na realidade,
faz muito tempo que esse eixo de lutas foi ofuscado por outros” (ELIAS:
2001, 148).
12
- chamo a atenção para o recorrente emprego do vocábulo inglês outsider nesse texto, pois traduzi-lo
como desviante, marginal ou excluído poderia induzir uma interpretação que aproxime seu sentido do
desvio e da exclusão econômica, o que não combina com o recorte da pesquisa. Assim, inicialmente
mantive o outsider como forma de pontuar muito mais a diversidade de valores culturais em jogo, do que
um desvio ou exclusão de ordem econômica. A respeito do termo outsider ser empregado tanto por
Becker quanto por Elias, há diferenças em seus usos. Se na teoria do desvio, Becker constata que o
outsider é representado como um indivíduo à margem da estrutura e que dificilmente buscaria/encontraria
status nesta, na teoria do processo civilizador, a estabilidade das configurações sociais depende de que o
outsider seja incluído, mas incluído como um estigmatizado. Vale ressaltar que nessas configurações, o
outsider não cessa sua busca por status que algumas vezes pode ser efetivado.
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flexibilizar o grau de dominação a que esse indivíduo está exposto. Quando essa
manobra ocorre ao redor de pessoas em condição social estabelecida e que sustentam
valores outsiders, pode haver a ressignificação do estigma como status positivo – em
tese, o estigma é um status negativo (Goffman:1988) - o que caracterizaria uma relação
de poder invertida quanto à disposição de valores.
Como já foi pontuado na última nota de rodapé, há diferenças significativas entre a
teoria do processo civilizador e a teoria do desvio. Enquanto o desviante parece se
alimentar da representação do seu desvio, o outsider se configura na busca por
ressignificação do estigma:
Dito de outra forma, estabelecidos e outsiders não são opostos irreconciliáveis, mas
sim polaridades complementares, interdependentes e interpenetradas quanto a seus
objetivos. Esta dinâmica caracteriza muitas das relações de poder configuradas na
contemporaneidade e não apenas no caso do consumo de drogas.
E já que tratamos de polaridades, nessa altura do texto faz-se necessário introduzir as
esferas miméticas. Segundo Elias & Dunning (1992), definir como meta coletiva um
maior controle de emoções não significou que estas foram simplesmente recalcadas. O
processo civilizador deslocou-as para um eixo cultural onde podem ser configuradas
enquanto habitus sociais que sustentam representações estabelecidas, de modo a serem
projetadas coletivamente com riscos reduzidos13, pelo menos em tese.
Nessa perspectiva, ganham sentido civilizador o jogo de futebol, o carnaval, o
cinema, a telenovela, os reality shows, os videogames e o consumo de drogas. Se no
futebol e no carnaval ainda podem se configurar episódios onde imperam emoções
violentas, anticivilizatórias, é no consumo de drogas que essa violência acaba ganhando
um poder de representação que deixa de ser episódico para ser padrão. Práticas que
como estas dão vazão às emoções são interpretadas pelos dois autores como
representações miméticas. Estas representações acontecem numa esfera cultural onde é
possível trazer à dimensão do consumo, emoções que podem ser violentas, porém até
13
- O título original do livro em inglês onde Elias & Dunning versam sobre a questão é esclarecedor: The
quest for excitement – A busca por excitação.
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certo ponto são também controláveis, de forma que seja viável aos indivíduos
civilizados se excitarem com o fluir de emoções fortes:
“cada pessoa singular, por mais diferente que seja de todas as demais, tem
uma composição específica que compartilha com outros membros de sua
sociedade. Esse habitus, a composição social dos indivíduos, como que
constitui o solo de que brotam as características pessoais mediante as quais
um indivíduo difere dos outros membros de sua sociedade”.
(ELIAS:1994,150).
Assim, tanto o habitus do outsider como o habitus do estabelecido não devem ser
percebidos como habitus do indivíduo ou habitus da sociedade, mas como habitus
configurados pela interface entre o indivíduo e sua sociedade. Importante salientar que é
através das emoções vividas nas esferas miméticas que esses habitus são mais
fortemente incorporados.
Um último ponto referencial da teoria civilizatória vai facilitar seguir em frente. Se
até meados do século XVIII as representações sociais centradas nas grandes cidades
14
- o que não quer dizer determinismo - uma interpretação também possível para a teoria de Elias -, pois
se certos hábitos são estabelecidos como a norma vigente num certo período, em pouco tempo podem
deixar de sê-lo, como tem acontecido como o hábito de consumir álcool e tabaco a partir dos controles
formais exercidos em função da lei seca e da lei antitabagismo. Se os controles formais para a mudança
de hábitos ainda podem sugerir algum nível de determinismo em torno desses hábitos, resta observar até
que ponto os consumidores ainda resistem em se submeter a tais mudanças.
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15
- se tal reflexão causa estranhamento, não se deve desconsiderar que o livro de Becker, Outsiders, e o
livro de Goffman, Estigma, tenham sido lançados em 1963, enquanto a obra de Elias e Scotson, Os
estabelecidos e os outsiders, foi publicada em 1965. Os três livros enfocam estudos sobre
comportamentos tidos como desviantes ou não estabelecidos enquanto conduta padrão diante dos códigos
de civilidade, num modelo de abordagem socioantropológica que na época era bastante inovador. Com
exceção da Escola de Chicago – da qual Becker é membro da segunda geração - até então a sociologia
tratava do comportamento estabelecido enquanto civilizado, ao passo que a antropologia estudava o
desvio, mas o desvio de culturas não urbanas, ou mesmo não “civilizadas”. Além disso, a obra de Elias,
principalmente O Processo civilizador, ganhou visibilidade no fim dessa mesma década, a partir de 1968,
quando o pós-estruturalismo e o estudo de temas outsiders começavam a tornar-se uma realidade.
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a que esse indivíduo está exposto. Aqui abro um parêntese para pontuar que,
desdobrando as categorias eliasianas anteriormente trabalhadas, o universitário usuário
pode fazer parte do que chamo de outsiders estabelecidos (Valença:2005,25), indivíduos
que em posição social estabelecida, conseguem administrar suas facetas outsiders, sem
que por isso tenham seu status estabelecido reduzido à condição de estigma.
Entretanto, não é por acaso que estes outsiders estabelecidos são minoria, pois o que
de forma geral se pode perceber é que a otimização do estigma dá-se quando o grupo
estigmatizador resiste fortemente às possibilidades de que o grupo estigmatizado
alcance posições de poder16. Interfaceando a teoria do processo civilizador de Elias com
a teoria do estigma de Goffman17, é possível observar que no caso de usuários que
vivam centrados no que Becker chama de subcultura das drogas, e que não consigam
otimizar relacionalidades com outras subculturas, o uso de drogas será o estigma que os
denunciará como “inferiores”, inferioridade esta que lhes impede de se relacionarem
melhor com outras culturas. Nessa perspectiva, um dos aspectos merecedores de maior
observação é que quaisquer dificuldades sociais dos outsiders usuários tenderão a
serem vistos como problemas destes enquanto usuários, e não como problemas de
relacionamento. O estigma é uma arma usada pelos estabelecidos nas relações de poder
para manter os outsiders sob controle.
Como já foi sinalizado, não é adequado para analisar a configuração dos estudantes
universitários usuários, e mesmo dos usuários/traficantes, utilizar a categoria desvio,
mas, em relação à representação estabelecida do tráfico de drogas ligada à violência e
exclusão, a teoria do desvio pode ser aplicada adequadamente. Trazendo à discussão o
cientista social Howard Becker, não é difícil entender porque numa configuração
econômica em grande parte adversa, como a vivida por boa fatia da população
brasileira que não tem acesso ao consumo generalizado, a motivação de atos desviantes
ganha representatividade. Em relações de poder onde o equilíbrio quase sempre pende
para o mesmo lado, alguns consumidores potencialmente falhos18 são tentados a buscar,
ludicamente, controles sociais paralelos que lhes favoreçam, ou que no mínimo não
16
- no governo do presidente norte-americano Ronald Reagan passou a ser norma que funcionários
públicos realizassem exames de urina regularmente visando detectar uso de drogas, com fins de barrar-
lhes o acesso à carreira profissional. Essa é uma manobra eficiente para estabelecer o estigma de que um
usuário de drogas não apresenta condições de ascensão na carreira profissional.
17
- de acordo com Goffman (1988,13) o estigma acaba sendo usado “em referência a um atributo
profundamente depreciativo”, que não supre a necessidade de buscar “uma linguagem de relações e não
de atributos”.
18
- os consumidores falhos são “aqueles cujos meios não estão à altura dos desejos.” (BAUMAN: 1998,
57).
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19
- e esse é um dos motivos pelo qual eu não chamo meus interlocutores de desviantes.
27
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20
- afinal vivemos numa “sociedade de indivíduos”, como indica o título da obra derradeira de Elias
(1994). No caso, não se configura uma contradição e sim uma aporia.
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articulação realizada pelo usuário entre seu settting e seu set é tão constitutiva do modo
de consumo que se faz das drogas, quanto as próprias propriedades farmacológicas
destas. Inclusive, Zinberg reconhece, assim como Becker, a importância do saber do
usuário, o que na visão deste último, é a base para a construção da sua carreira de
usuário. Além disso, o que na sua formulação teórica estrutural Zinberg chama de
setting, é muito próximo do que Becker chama de cenário21. A partir desse ponto de
confluência com a visão de Becker, Zinberg segue acrescentando que a carreira dos que
ele chama de “usuários controlados”, não se sustentaria sem que se estabeleça como
hábitos, específicos controles sociais, controles que por sua vez, são operacionalizáveis
através de sanções e rituais específicos.
Os rituais sociais são esculpidos como padrões de comportamento particularizados
para o uso de drogas específicas, que devem ser operados junto aos procedimentos de
aquisição e administração, tanto quanto à seleção do espaço físico e social. Em última
instância, também são contextualizadas neste recorte as atividades que possam ser
desejáveis após o uso, como também os mecanismos de defesa para manter afastados os
efeitos indesejáveis. De acordo com o raciocínio de Zinberg sanções sociais são as
normatizações que estipulam se, e como, determinada droga deve ser consumida de
modo a não causar conflitos. O usuário mesmo que discorde deve levá-las em
consideração para que não ameace a segurança da sua própria comunidade, pois os
valores e regras comportamentais dos usuários devem ser construídos levando em conta
as leis e as políticas externas ao grupo, que limitam e regulam o uso. Cabe aos usuários
respeitar as sanções que favorecem a segurança da comunidade. Pensando Zinberg
através dá ótica de Elias, os controles sociais, tanto para drogas lícitas22 quanto para as
ilícitas, teriam como setting distintas configurações, o que se aplica a grupos
estabelecidos tanto quanto a grupos outsiders, sendo que os sets dos usuários estão de
acordo com os habitus sociais do Nós grupal em questão.
O que os estudos de Zinberg sobre consumo de drogas ilícitas - opiáceos,
alucinógenos e maconha - em fins dos anos 1970 revelam, é que, principalmente os
grupos de usuários de maconha, já não precisam se formar apenas para uso, como
faziam, por exemplo, quando o estigma contra o usuário era maior, à época do estudo
pioneiro de Becker nos anos 50, ou aqui no Brasil, no auge do regime militar. Isto pode
21
- e as representações não param de ganhar sentido por aí. Na perspectiva de Goffman (2003) os sujeitos
são atores que atuam no palco da vida cotidiana.
22
- por exemplo, não beber quando se dirige ou não fumar em recintos fechados.
29
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23
- guardando as devidas proporções, pois, por exemplo, não se deve considerar cocaína e crack drogas
leves.
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31
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24
- o cânhamo é uma variedade do gênero Cannabis mas sem o potencial psicoativo da Cannabis sativa
– que é conhecida popularmente como maconha.
25
- Nietzsche não se posicionava como um filósofo, mas como um “psicólogo da cultura”, e por este
ponto de vista sua afirmação sobre a morte de Deus soa como um diagnóstico do zeitgeist (o espírito da
época) no qual as buscas de sentido social pelas vias transcendentais sustentadas pelas sociedades
tradicionais e pré-modernas estavam caindo em descrédito em função da crescente influência das
ciências. Os homens estavam sendo chamados a assumir a responsabilidade de serem eles mesmos
deuses de suas vidas. Importante ressaltar que este diagnóstico cultural do autor foi referência silenciosa
para as teorizações de Weber sobre desencantamento e racionalidades (Cohn:2005) e de Freud (1976 B)
sobre o inconsciente e o sentimento de culpa.
32
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26
- isso indica que como o phármakon dos antigos gregos, tais drogas podiam ser substâncias usadas
para curar ou para envenenar, à depender dos controles configurados em torno dos seus usos.
27
- temperança num sentido contrário ao imputado pelos gregos que era o sentido encontrado no
equilíbrio entre os excessos e a abstinência, enquanto aqui, a imputação dada é de abstinência pura e
total. As referências aos gregos nessas duas últimas notas serão destrinchadas na parte final do texto.
33
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34
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28
- drogas são consumidas desde tempos remotos e nem mesmo entre os romanos cujos controles quanto
aos excessos eram muito flexíveis, o abuso foi uma problemática maior. O abuso de drogas passa a ser
configurado como descontrole social apenas nas culturas Modernas (ESCOHOTADO, 2008).
29
– nesse período passou a ser hábito consumir como estimulante, uma bebida feita com grãos de kola
(que contem cafeína) e folhas de coca (sendo que de 1884 a 1886 essa bebida, French Wine Cola,
também tinha o vinho como um de seus ingredientes). Hoje, já sem as folhas de coca e com o nome de
Coca-Cola este estimulante é o produto mais vendido no mundo.
30
- e isso não quer dizer pouca gente, pois naquela época Nova Orleans era uma das cidades norte-
americanas com maior contingente de negros.
31
- nessa época, ambas as substâncias eram vendidas por valores acessíveis aos trabalhadores. O que fez
seus preços inflarem até o patamar atual – no qual um trabalhador braçal geralmente só tem acesso a
cocaína na forma de crack – foi justamente a proibição que se seguiu.
35
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propiciou uma maior concentração de poderes nas mãos dos médicos e da indústria
farmacêutica para administrar substâncias “adictivantes”32. Como reação a esta
concentração de poderes, a pressão dos empresários morais se fez forte e cinco anos
depois a suprema corte reviu a questão. Os médicos que ainda tentaram prescrever em
grande escala passaram a correr o risco de serem processados, sendo levados a abraçar o
discurso dos puritanos sob risco de não poder exercer a profissão. Acima de tudo,
traçava-se um perfil da relação “ética” entre medico e paciente para analisar o
enquadramento a ser operado:
“Si el sujeto había obtenido la droga tras una consulta rápida y barata, con
un médico de clientela pobre, la posesión complacía impulsos inconfesables
de dope fiends. Si el medico dispensaba a pocos adictos una pequeña
cantidad cada vez, con una minuta adecuada a clientelas distinguidas, su
conducta podía aceptarse como “tratamiento”. (ESCOHOTADO:2008,641)
Até a chegada dos anos 1940, o comprometimento da classe médica com a indústria
farmacêutica foi passando por ressignificações e assim, cada vez menos houve opiáceos
e cocaína à disposição, enquanto cada vez mais barbitúricos e anfetaminas foram
disponibilizadas de forma lícita e regular. O antigo habituado que tinha dinheiro no
bolso não abandonou sua relação com o sistema especialista médico, ele migrou para os
novos fármacos que possibilitavam efeitos similares aos das substâncias ilícitas e se
tornavam cada vez mais populares sem acarretar o risco da estigmatização.
A lei-seca – em inglês o vocábulo prohibition parece oferecer uma medida mais exata
da perspectiva de controle do que a tradução brasileira – deixou como herança duas
consequências: 1° - serviu para camuflar que a grande quantidade de “desviantes”
surgidos na época33 eram frutos da crise financeira, quando a representação que se
estabeleceu historicamente foi a de que estes foram vítimas do abuso no consumo de
álcool34. 2° - se configurou pela primeira vez a interdependência e a interpenetração de
objetivos de várias comunidades criminosas mafiosas que passaram a controlar a
produção e o contrabando etílico. Esse mercado alternativo se tornou tão explícito que o
Estado acabou percebendo que o dinheiro que as destilarias clandestinas faturavam
32
- como consequência, essa concentração de poderes contribui na configuração de um mercado negro,
pois os antigos e novos comerciantes excluídos da competição legal começaram a distribuir drogas
clandestinamente. E não apenas facilitaram a disponibilidade, mas para incrementar os lucros passaram a
adulterar tais drogas, o que vem acontecendo até hoje.
33
- e nesse contexto começa a se cristalizar uma mudança no perfil, pois surgem os consumidores jovens.
34
- se 25% de desemprego e contração da economia em torno de 40% podem ser explicados em termos
do consumo de álcool, então esses consumo talvez tenha ocorrido entre políticos e economistas...
37
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poderia entrar no seu bolso sob a forma de impostos que ajudariam na recuperação da
economia americana, e com esta perspectiva a lei foi revogada.
Como saldo sociológico, esse período favoreceu a banalização de desvios e rótulos
sociais, boa parte ligados a álcool e outras drogas. Como saldo mercadológico os
medicamentos prescritos cada vez mais passaram a ser vendidos e usados para estimular
e relaxar os usuários – principalmente os trabalhadores – com efeitos potenciais
próximos aos das drogas ilícitas com uma diferença; enquanto as drogas são
estigmatizadas como mecanismos desviantes os medicamentos possuem status de
favorecer a civilidade:
O abuso de substâncias farmacêuticas prescritas dessa vez não foi tornado motivo de
manchetes de jornais, pois a partir da descriminalização do álcool as atenções midiáticas
estavam voltadas para os abusos no consumo das drogas proibidas e particularmente,
uma droga que ganhou centralidade foi a maconha. Aproveitando do setting moral já
estabelecido pelos puritanos, a indústria têxtil e a indústria automobilística que tinham a
planta canábica como potencial matéria-prima concorrente que ameaçava sua
hegemonia no mercado deram curso a alguns controles sociais com o objetivo de tirá-la
da concorrência direta.
Como nas articulações de política econômica interesses particulares podem andar
juntos com interesses coletivos, é válido ressaltar que o diretor da Agência Federal de
Narcóticos norte-americana (FBN) era parente de um dos principais investidores da
petrolífera Du Pont, petrolífera que arquitetava uma série de produtos no mercado que
abrangia do nylon ao combustível para automóveis. Os produtos da Du Pont
encontraram uma séria concorrência nas fibras e no óleo de cânhamo. Além disso, o
FBN interpenetrou objetivos com um poderoso aliado que tinha interesses particulares
em relação à cultura da cannabis: o magnata Randolph Hearst, líder de uma poderosa
rede de jornais, percebeu que a hegemonia de suas plantações de eucalipto, com fins a
produção de papel, estava sendo ameaçada pelas plantações de cânhamo, um
38
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- – não esquecendo que a primeira Bíblia impressa por Gutenberg foi impressa em folhas de cânhamo.
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- alguns deles como Allen Ginsberg e Gregory Corso foram internados em instituições psiquiátricas por
comportamento delinquente.
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Nesse texto que à época não proporcionou maiores impactos, os escravos – que eram
negros – são posicionados como os usuários, de modo até inverso ao que se constata
hoje em dia quando um grande número de descendentes de escravos e/ou excluídos da
rede de educação e consumo como foram os escravos, são posicionados como os
traficantes. O que não se inverte desde que esse texto foi escrito é que se esses escravos
não eram os traficantes ainda assim eram eles que recebiam a pena disciplinar mais
rígida e exemplar: 3 dias de cadeia contra 20000 réis de pena imposta ao vendedor. O
dilema moral representado nesse raciocínio é que não seria correto que os vendedores –
e se os vendedores no texto chamados de “contraventores” não eram escravos, o que
seriam eles? - continuassem a por em tentação seres moralmente fracos como os negros.
Assim, os três dias de cadeia serviam como “quarentena” contra o Mal que os rondava.
A maconha foi tão estigmatizada que não era de bom tom falar sobre seu uso, tanto
que só em 1933 houve registros policiais de prisões relacionadas com o seu comercio –
apesar desse comercio nunca ter cessado. O auge dessa representação se dá no texto de
Bizarria Mamede maconha: ópio do pobre de 1945, onde o autor afirma
categoricamente que todos os esforços saneadores devem ser voltados ao combate da
maconha e não das outras drogas que já estão sendo eficientemente fiscalizadas. Se essa
representação da maconha como droga favorecedora da “sociose deselegante” dos
excluídos foi se solidificando no país ao longo do século XIX, no século XX, o uso de
outras drogas por grupos incluídos em setores da sociedade economicamente mais
estabelecidos, recebeu representações mais elegantes por parte dos agentes de controle.
Os chamados vícios elegantes perpetrados pelos jovens das camadas mais elevadas
eram tão discretamente observados pelos agentes de fiscalização que a partir da década
de 1940 a representação pública dos hábitos desse segmento quase inexiste.
Esses vícios elegantes diziam respeito ao consumo de opiáceos, cocaína e éter que de
modo geral os jovens que iam estudar em Paris traziam de volta na bagagem como
sinônimo de distinção, de civilidade moderna. De modo civilizado, para aqueles
usuários que perdiam o controle sobre seus usos, em 1924 na cidade do Rio de Janeiro,
o Sanatório de Botafogo já oferecia caríssimas vagas para terapia. Contudo, não eram
apenas os filhos da elite que utilizavam tais substâncias. O escritor Benjamim Costallat
no seu texto No bairro da cocaína (Resende:2006,109) aponta que na boêmica realidade
carioca: “Entre dez meretrizes, nove são cocainômanas”.
41
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37
- médico que foi nomeado Chefe da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes.
42
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38
- a repressão à cartomancia e ao falso espiritismo demonstra que se buscava controlar todas as possíveis
manifestações de irracionalidade contrárias ao que se interpretava como processo civilizador, e não
apenas ao uso de drogas.
39
- a partir da primeira conferência internacional de Genebra em 1925, as drogas que antes eram
consideradas imorais passam ser ilegais, configurando um estatuto que antes moral passava a ser jurídico,
disciplinador e normatizador.
43
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44
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De acordo com essa leitura, é possível interpretar que o estudante é antes de tudo, um
“fingidor”, no sentido de ser um ator que vem a ter possibilidades de inverter papéis
sociais sem com isso se descaracterizar. Ele é alguém que pode estabelecer como uma de
suas prioridades, buscar a inversão entre feriado e dia de semana, sendo assim, alguém
que possivelmente não necessita viver separadamente um tempo de produção e um
tempo de lazer. E o que o autorizaria a se portar com essa autonomia? A obtenção da
carteira de estudante, um título que mesmo temporário lhe credencia alguma distinção
social. Na perspectiva apontada pelos autores, ser estudante é ser alguém que ao atingir o
status universitário, pode fingir ser adulto até para escolher consumir o tempo de forma
como só um não adulto pode fazê-lo. Sua autoridade para tanto é legitimada na medida
45
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em que aos adultos não universitários, ela não é concedida, não sendo estes autorizados a
usufruí-la. Mas não é apenas isto que está em jogo:
Neste segmento, Bordieu & Passeron fazem uma elaboração em torno de como as
integrações do meio estudantil são dispostas de modo a processar habitus40 não
anômicos41. Se processam integrações como disposições de habitus eletíveis e estes
grupos, por mais heterodoxos que sejam, buscam uma imersão num sentimento fraternal
quase religioso e uma convicção ludicamente política para se estabelecerem enquanto
unidade estudantil. Indo adiante, é possível perceber que a leitura realizada pelos autores
sobre a cultura de Cafés dos anos 60, permite aqui um paralelo interpretativo em relação
a cultura de barzinho dos dias atuais, isto é, trocando o consumo de café dos campi
franceses pelo consumo de cerveja dos barzinhos soteropolitanos, há um cenário em
comum onde se pode perceber como a cultura universitária representa as possibilidades
de configuração comunitária:
40
- e os habitus para Bourdieu, assim como Elias, são as chaves das dinâmicas relacionais.
41
- principalmente quando a representação então corrente de anomia implicava em disfunção e não em
uma condição funcional específica, como usada originariamente por Durkheim (ELIAS &
SCOTTSON:2000,9).
46
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comunitário de igreja ou de partido que restaria como modelo aos jovens que não
tivessem por objetivo “um encontro” com um estudante arquertípico. Em relação aos
laços dessa fraternidade, e mesmo enquanto esta se configura e se estabelece como
comunidade de estudantes arquetípica, um ou outro professor talvez possa eventualmente
representar uma figura paterna menos ameaçadora aos propósitos desse engajamento: “O
professor pode mesmo aparecer como garantia e fiança de legitimidade dos
engajamentos mais distantes do universo escolar” (Bourdieu & Passeron: 1968,73)42. A
busca por um vínculo fraternal aqui apontado por Bourdieu & Passeron não deve ser
interpretada como um desvio nos enfrentamentos das relações de poder, porém como
uma perspectiva alternativa para realizar tal enfrentamento - nisso mantendo uma
interface com o que foi percebido na presente pesquisa. Por exemplo, a respeito do status
acadêmico é dito que:
42
- inclusive, na pesquisa em curso, alguns interlocutores ativistas antiproibicionistas tipicamente
atuantes, são ex-alunos de um professor com tais características.
47
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universitário pode ser interpretado como um jogo de habitus academicus, jogo que
consagra disposições:
Aqui, os autores buscam afastar o viés pelo qual se interpreta o setting universitário
emblematizado nos anos 60 como disfuncional, pois reconhecem que o estudante
enquanto outsider “ao mundo real” não deixou de ser e saber-se estabelecido em relação
a este mundo real, nem deixou de estar sendo muito mais nômico do que anômico no
jogo do referido “campo de aplicação de regras”.
43
- nesse texto Freud faz uma “viagem” aos tempos das culturas pré-históricas e argumenta sobre as
relações de poder arcaicas nas quais aqueles que se rebelaram contra o pai dominador e lhe tomaram o
poder – assassinando-o – depois, ao perceberam a ausência do líder no grupo, temeram por sua
desagregação e se sentiram culpados por terem deixado suas emoções correrem sem controle. A culpa
aqui sinaliza a introjeção do controle representado na figura paterna.
48
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44
- reflexão compatível com a relação do interlocutor Rimbaud com sua mãe, apresentada mais adiante.
45
- hoje em dia configuradas em seus respectivos settings, estas inquietações estudantis soariam muito
menos intelectuais e muito mais reflexivas, pragmáticas.
49
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Desse modo, o estudante universitário por mais autônomo que pareça ser, não escapa
da sujeição a ter uma representação estabelecida que lhe antecede; ou como apto a
alcançar suas aspirações ou como estando operacionalmente à margem de poder realizar
tais aspirações. Mas como a universidade não se resume a estudantes, Bourdieu, alguns
anos depois, já sem a colaboração de Passeron, também traçou algumas considerações
sobre os professores, que, com as devidas mediações, acabam sendo referências
pertinentes para interpretar as comunidades de estudantes. Em seu estudo específico
sobre as relações de poder na academia francesa (Homo academicus:2008), o autor
constata que a relação hierarquizada de poder entre membros da academia tende a
perpetuar-se independentemente da dominação pender para um lado ou para o outro,
pois em última instância, é a tensão gerada por esta pendência que “naturaliza” as
posições sociais e a ordem do mundo universitário.
De acordo com essa pesquisa, os habitus dos intelectuais acadêmicos incorporam
crenças e comportamentos que delimitam objetivamente o que deve ser o campo
acadêmico. E se todo campo deve ter capitais culturais correspondentes, o campo
acadêmico, tem seus capitais formatados em relação a três recortes: os capitais
equacionados entre o prestígio disciplinar e as origens de classe, os capitais referentes à
tensão da renovação do quadro docente em meio aos docentes veteranos, e por fim, os
capitais associados à polarização de valores entre cursos ortodoxos e heterodoxos. Por
hora esse último ponto é o que interessa.
Bourdieu constatou uma polarização entre os cursos com valores e representações
ortodoxas - cursos que ostentam uma tradição de longa data, legitimados
especificamente em função dessa temporalidade - e cursos heterodoxos, sendo estes
últimos considerados cursos que podem vir a sustentar representações heréticas, no
sentido de formularem perspectivas contrárias aos ortodoxos. O autor francês indica que
em alguns casos, os heréticos desses cursos conquistam seguidores suficientes para
torná-los “heréticos consagrados”, cujas percepções e comportamentos tornam-se
aceitos também em certos círculos com status ortodoxo. Esta categoria de heréticos
quando consagrada – consagrada precisamente enquanto herética - ganha autonomia e
respeito em relação às pressões conservadoras da academia.
Abraçando esse raciocínio bourdiesiano, observemos o caso da presente pesquisa.
Em sua primeira parte, seguindo indicações de que havia um grande consumo de drogas
lícitas de forma ilícita entre os biomédicos, especificamente nos cursos de medicina e
enfermagem onde o acesso aos fármacos é facilitado, fui em busca de contatos na área
50
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que pudessem propiciar uma interlocução, mas, de cinco contatos realizados - contatos
efetuados por intermédio da rede de relações de outros interlocutores - nenhum se
dispôs a participar da pesquisa, com receio de que a exposição de sua privacidade
maculasse-lhe a representação, mesmo sendo assegurado o anonimato46.
De forma geral há nessa postura defensiva uma indicação de que o discurso desses
médicos pode estar muito mais próximo de delimitar a relação liberdade X segurança
como uma oposição – ou uma categoria ou outra. Por sua vez, o discurso dos
interlocutores oriundos das humanidades, que na quase totalidade achou fundamental
trazer esta discussão à baila sem temer que a exposição de suas idéias lhes maculasse a
representação, está mais próximo da busca por uma relação de complementaridade entre
as categorias liberdade e segurança – uma categoria e a outra. Assim, há indicações de
que diferenças entre uma área de conhecimento e outra não residem apenas nas
metodologias de pesquisa e nos seus objetos de estudo, mas principalmente em função
das perspectivas e das representações dos sujeitos envolvidos e de seus respectivos
status.
Ao perspectivar a realidade acadêmica local é bom lembrar que se a realidade da
França pesquisada por Bourdieu e a realidade do Brasil são muito diferentes, o modelo
universitário brasileiro tem uma interface com o modelo francês,47 daí ser não apenas
possível como viável dialogar com essa interpretação de Bourdieu. Mas de qualquer
maneira, não é só a realidade universitária francesa que oferece material comparativo
para a pesquisa aqui em curso, como deixa claro, o estudo efetuado por Habermas,
Friedeburg, Oehler e Weitz entre os estudantes alemães no mesmo momento histórico
da pesquisa francesa, intitulada: O comportamento político dos estudantes comparado
ao da população geral. Nessa pesquisa, há indícios de uma possível universalização do
perfil dos universitários, perfil traçado anteriormente.
46
- dessa forma o universo da pesquisa de mestrado se concentrou nas humanidades onde a receptividade
ao projeto foi ampla.
47
– basta analisar a formação da USP, referência nacional como centro universitário Prime.
51
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Esta interpretação está muito próxima da que foi operada anteriormente por Bourdieu
e Passeron, e, nessa perspectiva, é possível localizar no texto a referência a um setting
universitário, um ethos favorável a uma específica universalização da representação
peculiar apontada. Por outro lado, essa universalização não implica necessariamente
numa uniformidade de disposições: “Subjetivamente muitos estudantes não se sentem
distanciados. Mas objetivamente o estão”, (Habermas, Friedeburg, Oehler & Weitz:
1968,130). E esse distanciamento talvez até seja legitimável se ele se dá em função de
modelos de responsabilidade então dominantes que se mostram defasados diante das
expectativas das comunidades de jovens, principalmente estudantes. Esse
distanciamento traz à tona a impossibilidade de uma agenda universitária legitimamente
autônoma, mas talvez deva se levar em conta que essa impossibilidade é que dá sentido
a busca por uma agenda. Então, poder alienar-se do tempo dominante no qual domingo
é dia de cinema e segunda-feira é dia de trabalho, e não o contrário, fará parte da nova e
diversificada “programação curricular”.
“Pode-se , de fato, verificar que os jovens (mas não só eles) julgam os fatos
políticos a partir do âmbito de sua experiência pessoal e casual, e não
baseados em argumentos e contra-argumentos objetivos. Inclusive nesse
ponto, os estudantes ocupam posição especial. Eles entendem o aspecto
‘abstrato’ da democracia, o que geralmente não ocorre com outras pessoas”
(HABERMAS, FRIEDEBURG, OEHLER & WEITZ:1968, 120).
52
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53
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Profissão dos adultos de classe alta, será essa definição de universitário um problema
ou uma solução? Se apenas os adolescentes extemporâneos de classe alta puderem
configurar forças para forjar uma cultura universitária; então ser estudante é uma
profissão que equivale a um título de nobreza, tendo pouco a ver com cidadania. Não
sendo este o caso, o direito ao Lernfreiheit demandado pelos universitários é em última
instância, o direito de exercer a plena cidadania. Contudo, ser cidadão talvez não seja
uma missão ao alcance de todos, principalmente para os que passaram direto da
adolescência para uma carreira de trabalhador adulto, sem o privilégio de ter sido
estudante universitário. Ou de pelo menos, ter estado na rede de relações diretas e
reflexivas destes:
54
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“existe uma tendência inerente aos estudantes para tomar uma posição
definida em relação ao status quo, extensiva à vida intelectual e a seu status
de futura elite, na qual tentam valer-se de seus conhecimentos e valores
como padrões de julgamento do comportamento manifestado pelas elites
atuais [...] Muitos movimentos de protesto que visam mudanças na
universidade não são necessariamente vinculados a uma reivindicação por
mudanças radicais na estrutura social. [...] Apesar de receber um tipo de
educação conforme a uma moderna orientação dentro da universidade,
muitos dos estudantes dessa sociedade, se não a maioria, foram socializados
num ambiente tradicional, e deles só se pode esperar que resistam às
mudanças que ameaçam transformar radicalmente os valores e
conhecimentos com os quais cresceram”, (LIPSET:1968, 134).
Assim também como os pesquisadores alemães, Lipset constata que a busca por
mudanças realizada pelos estudantes se refere a interesses específicos, não sendo
necessariamente interesses estruturais. De modo geral, os aspectos que parecem comuns
a esses quatro estudos realizados nos anos 1960 e que devem ser registrados, são que;
ao universitário é permitido um modelo de inversão – na polarização
segurança/liberdade -, para tornar-se adulto com permissão para não sê-lo quando assim
fosse adequado. Sua cultura política - num modelo cultural que se representa como
menos retórico do que mimético -, por mais que busque ser autônoma não o é, estando
interpenetrada com a cultura política ortodoxa, e refletindo esta tensão para o restante da
sociedade.
Já especificamente no caso de um país como o Brasil que, diferentemente de França,
Alemanha e EUA, apresenta grandes desigualdades econômicas e educacionais, o
significado de, voltar quarenta anos até os anos 1960 para interpretar, em perspectiva,
certas possibilidades de representação estudantil, é realizar inevitavelmente uma análise
crítica do papel do estudante como agente de mudança naquela configuração, muito
mais do que uma análise de sua luta acadêmica por status. Pensemos em como os
estudantes universitários daquele período tentaram equilibrar a balança entre liberdade e
segurança nas relações de poder. No livro do jornalista Zuenir Ventura, 1968: O ano
que não terminou (2008), se percebe o quanto os estudantes, quando imbuídos de uma
proposta comunitária, podem “ser fortemente políticos” não só em meio à comunidade
55
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acadêmica, mas em meio ao contexto mais amplo da sociedade, explicitando o que foi
viver num momento histórico de refluxo da noção de civilidade48.
Em 1968, no dia primeiro de abril – não é brincadeira, verdade! –, o Brasil esteve
muito adiante do famoso mês de maio francês no que diz respeito ao papel do estudante
universitário enquanto agente produtor de conhecimento e de mudança social. Este
pioneirismo se configurou pelo momento histórico brasileiro, no qual a democracia era
muito menos uma referência concreta do que simbólica. No correr daquele ano, o
Estado brasileiro deixou a perspectiva dialógica de lado e passou a usar frequentemente
a força física contra os universitários:
48
– Num processo totalitário quando as individualidades são submetidas a controles sociais rígidos as
emoções individuais mais violentas já não podem ser sumariamente submetidas ao autocontrole
psicológico, com o risco de eclodir episodicamente, o que leva o próprio processo civilizador ao risco de
se desconfigurar. (ELIAS:1990).
49
– como será analisado na página 104.
56
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“Ao contrário de outros países onde a motivação tinha a ver com exigências
de liberdade sexual, o movimento no Brasil foi desde o começo
essencialmente político. Na França, alunos da Universidade de Nanterre
deram início a insurreição com uma reivindicação de dormitórios mistos...
Nos Estados Unidos, uma aluna da Universidade Columbia, revelou ao New
York Times em off, com medo de aparecer, que dormia com o namorado nas
dependências masculinas do colégio. Descoberta sua identidade, a jovem foi
ameaçada de expulsão, e uma onda de protestos se transformou num grande
debate sobre direitos individuais e sobre a moral da nova geração.
Já no Brasil, as manifestações começaram com a morte pela polícia carioca
do estudante Edson Luis, num protesto contra o FMI (Fundo Monetário
Internacional) no restaurante estudantil do Calabouço. As moças brasileiras
não carregavam o cartaz “Virgindade dá câncer”, como no México, mas
“Abaixo a ditadura” (VENTURA: 2008 B, 96/97).
Conquistada uma maior segurança num processo democrático, passa-se a ter mais
espaço para lidar com as liberdades individuais e coletivas, e não apenas entre os
universitários50. Esta etapa de transição, nos dias de hoje passa por fato já concretizado,
tornada em habitus sociais que até parecem que sempre estiveram aí. Mas não é
exatamente assim. Em Nobres e anjos (1998), Gilberto Velho retrata o desencantamento
com o discurso estudantil – mas não apenas este - que se abateu sobre os órfãos desta
geração revolucionária dos anos 60, na primeira metade da década de 70. Os sujeitos
que ele chama de “nobres”, foram membros diretos desta geração; passaram pela utopia
estudantil, pelo desencantamento com a situação política do país e pela busca de
autoconhecimento intermediado em grande medida pelo consumo de drogas. Mesmo
sendo esta uma época na qual a imagem universitária ganhou representação por suas
50
- e já que toda regra não deixa de ter sua exceção, como interpretar a situação acontecida na Uniban
em 22/10/09 quando uma aluna que trajava um vestido considerado muito curto foi hostilizada, ameaçada
de estupro e perseguida por uma multidão de 700 colegas, a ponto de precisar de escolta policial para se
proteger? Como interpretar a sua posterior expulsão da Instituição por desrespeitar “os princípios éticos”
e a “dignidade acadêmica”? Como interpretar a revogação desta medida após a Instituição perceber que a
sociedade se indignou com o mecanismo de controle empregado? Essa situação representa um patamar
antidemocrático, onde os próprios estudantes representam o papel repressor e anticivilizatório que antes
em 1968, muitos discentes condenaram. Por sua vez, a instituição em questão representa o que uma
Instituição de ensino deveria combater: a intolerância aos habitus sociais estabelecidos como desviantes.
57
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Ventura pondera que nos anos 90, os caras-pintadas quando apareceram nas tvs
caminhando e cantando pelas ruas, por algum momento pareceram que iriam ressuscitar
o espírito estudantil de 68, mas sua atuação se restringiu a um fenômeno específico que
foi o impeachment do presidente Fernando Collor. O objetivo dos estudantes caras-
pintadas esteve em torno da configuração da segurança coletiva no sentido democrático
e não das liberdades individuais dos próprios democratas. Já aqui nesta pesquisa ligada
51
– com exceção desse desencantamento com a carreira estudantil, os anjos, quanto ao estilo de vida,
possuem muitos pontos em comum com os interlocutores universitários da pesquisa corrente,
principalmente, a busca por liberdade para consumir drogas.
58
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“eu não afirmaria que essa força de resistência, essa liberdade assumida de
dizer tudo no espaço público, tenha seu lugar único ou privilegiado no que
se chamam Humanidades... Mas esse princípio de incondicionalidade se
apresenta, originalmente e por excelência, nas Humanidades”.
(DERRIDA:2003,23).
52
- como aconteceu em 2008 com a proibição da Marcha da Maconha. Não se podia imaginar que no ano
seguinte a questão tomasse às proporções que tomou.
53
- Derrida teve a oportunidade de assimilar as reflexões decorrentes das pesquisas sobre universitários
realizadas por Bourdieu, Habermas & cia, pesquisadores que o antecederam no estudo em questão, em
pelo menos trinta anos.
59
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Vale ressaltar que para Derrida, a justiça é um valor muito mais pertinente com a
contemporaneidade do que a verdade55, mesmo que justiça em relação à “uma lei acima
das leis” possa até soar como uma verdade, mas verdade com letra minúscula, pois esta
verdade não é A Verdade transcendente que conferiria identidade aos universitários com
a simples entrada numa Universidade. Pelo contrário, essa “verdade” só será conquistada
quando o estudante deixar a Universidade e consagrar-se como trabalhador. Nesse
sentido essa não é uma verdade absoluta, muito mais próxima está da justiça em relação
à sociedade como um todo, onde às pessoas que não cursaram uma universidade esperam
dos que cursaram, respostas para os problemas sociais em curso. Eis a justa
desconstrução da Verdade sobre a condição da Universidade.
54
- e esse lugar da incondicionalidade não é apenas de apresentação, mas também de representação,
como indica Foucault, um contemporâneo de Derrida: “a representação não é simplesmente um objeto
para as ciências humanas; ela é [...] o próprio campo das ciências humanas, e em toda a sua extensão; é o
suporte geral dessa forma de saber, aquilo a partir do qual ele é possível.” (FOUCAULT:2000, 503). Esta
é a representação da cultura universitária na qual esta pesquisa ganha sentido.
55
- pois de acordo com este: “Se pararmos de pensar na verdade como o nome da coisa que dá significado
à vida humana, e pararmos de concordar com Platão em que a busca da verdade é a atividade humana
central, então poderemos substituir a busca da verdade pela esperança messiânica de justiça” (SOUZA,
2005).
60
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A condição que Derrida propõe para fazer da justiça a verdade corrente entre os que
estão dentro da Universidade, se concretiza quando se estabelece um canal onde possa
haver um diálogo direto entre os últimos e os que estão fora da Universidade. Isto indica
que numa reflexão sobre a Universidade a díade professor/aluno deve sofrer uma
descentralização, assim se fazendo justiça a quem não teve acesso a este universo.
61
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“Os anos nos têm e nos fazem; fazem com que sejamos crianças, jovens,
adultos ou velhos. E isto, apesar da relativa flutuação das fronteiras
culturais, legislativas ou administrativas, nos situa uns e outros em grupos
socialmente definidos”, (LLORET:1998,14).
Esta reflexão implica em ter como referência uma idade arquetípica “que determina
as expectativas de relação e comportamento” (Lloret:1998, 21), e que muitas vezes
adere à idade cronológica das pessoas, deixando-lhes pouca margem de variação em
relação ao padrão estabelecido como dominante, ou seja: “pertencer a um grupo de
idade significa ter que adequar-se a uma normativa bastante precisa”, (Lloret:1998,15).
Acrescentando conteúdos socioculturais localizados historicamente a este modelo,
Morin (1986) indica que as culturas juvenis do pós-guerra configuraram conteúdos
novos e positivos à condição juvenil, conteúdos relacionados ao lazer e às mais variadas
experimentações com o corpo. O próprio sentido representacional de juventude se
tornou mais complexo, pois os jovens das classes trabalhadoras passaram a ter mais
visibilidade. Essa definição tendo como referência o pós-guerra não é gratuita, pois,
com o ruir do projeto de modernidade civilizada, “Depois da Segunda Guerra Mundial,
o hedonismo colocou o prazer, e o lazer à frente das preocupações humanas”,
62
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Fora essa exceção, que mostra a influência reflexiva de filmes estrelados por jovens
outsiders como Marlon Brando (O Selvagem, 1953), James Dean (Juventude
56
- e se para muitos educadores essa contradefinição bourdiesiana se tornou um lugar comum já
esvaziado de sentido, alguns outros sustentam suas argumentações tendo como premissa exatamente a
referência de que a juventude não é apenas uma palavra.
57
- os habitus sociais dominantes nessa representação foram originariamente forjados em torno da
juventude eminentemente burguesa do fim do século XIX, e nesse recorte foi inventada a tradição do que
é ser jovem.
63
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“Os jovens de hoje nasceram em tempo de crise social. Não por acaso,
quase dois quintos são desempregados” (SINGER: 2008, 28).
“Os jovens de hoje são os filhos da coorte de jovens que passou pelo trauma
da desilusão com a via política para a revolução, nos anos 1970 e 1980.
Para os filhos, possivelmente, esse trauma é desconhecido ou não passa de
uma vaga referência ao passado” (SINGER: 2008, 32).
58
- e aqui vale ressaltar que, com exceção de certos dandies e de alguns poetas românticos, os jovens
tipicamente burgueses do final do século XIX sustentavam como valor eticamente civilizado e
cientificamente moderno, que o uso de drogas apontava uma falha moral. (ESCOHOTADO:2008).
59
- o projeto cujo recorte representou a população entre 15 e 24 anos de ambos os gêneros foi levado a
campo em 2003 aplicando 3501 entrevistas em 584 setores censitários em áreas rurais e urbanas do país.
O universo representado foi de 34,1 milhões de jovens residentes no território brasileiro, 20,1% da
população total.
64
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ideológico e mais pragmático, pragmático em relação tanto aos seus próprios objetivos
quanto em relação aos objetivos da sociedade como um todo:
60
- o vocábulo glocal é um neologismo que indica o acesso a constantes fluxos culturais globais nas
realidades locais, pontuando uma interface entre aspectos da cultura global e da cultura local.
(BECK:1999).
65
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para uma sociedade ideal, na prática, esses jovens se mostram muito preocupados com
questões imanentes, os riscos ligados a questões de segurança. Contudo, as respostas
ainda deixam no ar uma dúvida significativa: a preocupação com os riscos pelo uso de
drogas se dá em relação aos efeitos psicoativos das drogas ou pela violência do tráfico?
Para superar os riscos por trás desta dúvida, a confiança é um recurso recorrente,
mesmo que em níveis de aproximação diferenciados: como um tópico que deve ser
discutido com os pais, a questão das drogas foi eleita em 2°, com 52%, atrás de
educação com 61% de indicações, em respostas múltiplas. Já como tópico para discutir
entre os amigos, o consumo de drogas está em 1° lugar com 46%, depois sexualidade
45% e esportes, 43%. Pra discutir com a sociedade como um todo a educação foi um
tema eleito com 50%, desigualdade social e pobreza 45%, e drogas 42%. Estes números
talvez indiquem que entre estes jovens investigados conversas sérias sobre drogas é algo
de fórum íntimo que requer além da confiança, uma dose de identificação, pois acaba
sendo uma temática que eles reservam para desenvolver com amigos que vivenciam as
mesmas questões, e não com os pais que geralmente vivem culturas diferentes.
(2008,64). Se esses jovens acreditassem no risco das drogas enquanto psicoativos é
possível que a confiança nos pais para dialogar sobre a questão fosse maior, pois estes
últimos são caracterizados como provedores de saúde. Dessa forma, é possível que
riscos ligados a drogas sejam percebidos pelos pesquisados como aspectos estruturais da
rede de consumo.
Refletindo diretamente sobre as comunidades de pertença básicas da juventude –
família e escola, onde acima de tudo se trabalha as relações de confiança – é possível
identificar mudanças que estão ocorrendo nas últimas quatro décadas, a começar pela
própria operacionalização das representações do papel central da família em sua
formatação convencional: “enquanto apenas 10% dos jovens com ensino superior são
casados61, 43% dos que têm até a 4° série do ensino fundamental já compõem uma nova
unidade familiar”. Por outro lado, “cada vez mais, jovens vivenciam certos elementos
de ‘transição para a vida adulta’ sem realizar a independência da família de origem”
(2008, 47), ou seja, os menos escolarizados estão casando mais, talvez indicando que o
casamento não seja uma opção para quem está em condições de realizar reflexões sobre
o momento socioeconômico, mas sim uma tradição estabelecida para os que dispõem de
menores condições de reflexividade que assim a abraçam como um valor dado.
61
- o que pode ser aferido na pesquisa que realizo com universitários na qual apenas um dos vinte e dois
interlocutores é casado.
66
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“ter liberdade (citado por 22%) é mais valorizado pelos mais velhos,
sobretudo os homens: 33% dos rapazes com mais de 20 anos formula desse
modo o que é melhor de ser jovem, ante 14% das moças adolescentes [...] A
citação desse elemento também é maior entre quem está na PEA63 (24%) do
que entre quem não está (15%), o que tem relação com a maior idade de
quem está na PEA, mas também com a mobilidade que é conquistada pelos
jovens que começam a trabalhar, em razão tanto do maior ‘respeito’
conferido pela família quanto do dinheiro sobre o qual podem decidir
gastar.” (ABRAMO: 2008, 57).
63
- PEA: população economicamente ativa.
68
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drogas estão em terceiro lugar como motivo de preocupação (24%). Esse não
relacionamento direto das drogas com violência e segurança64, talvez se dê em função
de que os jovens mais escolarizados possuem informações que permitem reflexões
mais críticas que perspectivem o consumo de drogas como uma questão muito mais de
saúde pública do que como caso de polícia. Entretanto, essa porção da juventude mais
reflexiva por ainda não tem garantida a autonomia em relação aos vínculos familiares:
Assim, pode até parecer que a responsabilidade dos jovens não combina com
autonomia financeira, mas esse é um ponto de vista problemático, pois na cultura de
consumo a liberdade para gastar, mesmo que seja dinheiro herdado, não é sinônimo de
hedonismo puro, ela carece de responsabilidade. O que a pesquisa Perfil da juventude
brasileira não esclarece é a qual tipo de responsabilidade esse item específico se refere.
A responsabilidade para consigo mesmo ou responsabilidade para com o outro? Se um
jovem se casa e continua sustentado pelos pais, sua responsabilidade se dirige ao seu
cônjuge e filhos ou a seus pais? É preciso levar em conta que a “moratória da
juventude”65 talvez não seja mais um adiamento da entrada dos jovens na realidade
adulta, mas um rito de iniciação em relação a esta. Num momento histórico onde não há
trabalho para todos, uma eventual entrada nesse mercado não anularia tal moratória:
Dito isto fica mais fácil interpretar que o tráfico como mercado de trabalho “aberto”
tem grande potencial para atrair uma porção significativa de jovens que estão longe da
maturidade, e que às vezes morrem sem ter tido muitas chances de atingi-la. Como a
dinâmica cultural que envolve juventude e responsabilidade é um fenômeno recente,
64
- o que não contradiz o dado anterior no qual, as drogas são colocadas como uma temática que precisa
ser discutida.
65
- a moratória da juventude é uma categoria recorrente no circuito pedagógico e significa a suspensão
das responsabilidades do jovem até que ele se torne adulto.
69
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não se deve esperar que os jovens sustentem reflexões muito profundas sobre o
processo, até porque ainda o estão vivenciando. É passível de percepção que uma
tendência em configuração entre os jovens é de que a responsabilidade não deve ser
perspectivada como uma categoria com valor necessariamente conflitante com os
valores que caracterizam a juventude, principalmente no caso do Nordeste do Brasil,
onde a responsabilidade pelo sustento econômico chega mais cedo. Nesta região do país
circulam os mais baixos valores de remuneração dos jovens brasileiros, com 94%
faturando até meio salário mínimo (Lassance: 2008,76). Nesse recorte:
70
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os alunos são movidos por afetos ao estabelecerem índices tão positivos de apreciação
de seus professores”, (2008,115) 66.
Como o espectro afetivo da juventude não se dirige exclusivamente para trocas com
professores e colegas, há outros campos passíveis de exploração, principalmente
levando em conta que as atuais políticas de vida abarcam campos que até a década de
1960 eram considerados inferiores por não estarem conectadas diretamente com
atividades de produção, mas sim com atividades de fins de semana, como pensam
Brenner, Dayrell & Carrano:
66
- a matéria de jornal Docentes usuários de drogas são mais flexíveis com aluno (citada na pg.89) é
uma exemplar distorção reflexiva da questão.
71
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67
- e usuário descontrolado não deve ser confundido com usuário de drogas pesadas, pois como aponta
Grund (1993) a maioria destes últimos tende a desenvolver estruturas de vida nas quais o controle é uma
constante. O usuário descontrolado pode fazer um uso sem controle de qualquer droga, leve ou pesada.
72
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73
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médio, mas na cultura universitária onde vai ser encontrado o maior número de jovens
que pensam a descriminalização da maconha como uma questão de segurança e não
apenas questão de liberdade.
E não apenas Carlini-Marat, pois a pesquisa realizada por Venturi e Bokany também
indica que estudantes do nível médio seguem esta direção: “quatro em cada cinco são
favoráveis a exames antidoping nas escolas para detectar o uso de drogas [...] a maioria
é contra [...] o consumo da maconha (81%) - droga que teria sido experimentada por
apenas 10%”, (2008, 352).
Se a maior parte desses jovens se mostra contrária quanto à descriminalização da
maconha, talvez não se deva cogitar que estes jovens sejam efetivamente mais
conservadores - com a maior disponibilidade de informações que há hoje sobre o
assunto - que seus pais e irmãos mais velhos, pois nem toda geração 1970 foi tão
libertária quanto a representação dominante pode fazer crer:
70
- de acordo com Maffesoli: “O tribalismo lembra, empiricamente, a importância do sentimento de
pertencimento, a um lugar, a um grupo, como fundamento essencial de toda vida social”. (2006,11).
74
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71
- algumas definições teóricas ainda serão feitas no correr do texto, mas antes de entrar no próximo
capítulo é viável esclarecer que reflexividade (Giddens:2002) não é igual a reflexo da realidade, apenas
indica que a circulação de informações gera reflexões.
75
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II – O cenário
Entre as várias polêmicas suscitadas pelo filme Tropa de elite72, uma ganha
magnitude em função do objetivo desta pesquisa; aquela que se estabelece em torno da
representação dos estudantes universitários consumidores de drogas como co-
responsáveis pelo tráfico. As tensas controvérsias entre ser esta uma representação
estereotipada ou realista não se restringiram às discussões em corredores de cinema e
mesas de bar. Este debate inicialmente informal, reflexivamente ganhou contornos
acadêmicos que foram propagados por intermédio de uma matéria em jornal de grande
circulação: Universidade reage a seu papel em filme (Folha de São Paulo, 28/10/07), na
qual, pesquisadores, professores e estudantes entrevistados durante o 31° encontro da
ANPOCS (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais)
defenderam seus pontos de vista. Nas palavras da antropóloga e professora da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Alba Zaluar:
72
- até o término de 2007, cerca 2,5 milhões assistiram o filme no cinema, enquanto 11,5 milhões de
espectadores assistiram em DVD a cópia pirata, sendo a película cinematográfica nacional de maior
audiência do ano (Jornal A Tarde, 11/01/08). O filme narra uma operação de “limpeza” realizada pelo
Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) às vésperas de uma visita do Papa João Paulo II ao RJ.
Durante esta operação, um dos capitães da corporação entra em crise, dividido entre o nascimento de seu
filho e ter que continuar executando traficantes para manter o controle social.
73
- lembrando que um jornal impresso, mesmo sendo o mais respeitado, tem potencial para atingir uma
parcela reduzida dos milhões de espectadores do filme em questão.
76
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Em segundo lugar, e por extensão, os jovens usuários e/ou traficantes de drogas das
classes média e alta - entre os quais se encontram vários universitários - também
passaram a receber mais atenção tanto policial quanto midiática, principalmente após a
ocorrência de uma morte por overdose74 em uma festa rave.
Jovens de classe média são presos suspeitos de tráfico (G1 RJ, 08/01/08)
Acusados foram presos em Búzios, Jacarepaguá e no centro do Rio.
Segundo a polícia, eles vendiam drogas pela internet, por meio de um site
de relacionamentos e um programa de mensagens instantâneas [...] os
policiais investigavam a troca de ecstasy no Morro Menino de Deus, em S.
Gonçalo, por equipamentos eletrônicos roubados, como computadores,
câmeras digitais e celulares.
Com esses objetos de atenção pública na pauta do dia, foi quebrado um dos últimos
redutos onde o consumo de drogas parecia ser “mais seguro” por estar supostamente
74
- Jovem morre intoxicado após festa rave em Itaboraí (O Globo online, 28/10/07)
“Um jovem morreu e 18 foram internados depois de uma festa rave em Itaboraí. O rapaz que seria
menor de idade morreu vítima de intoxicação logo após dar entrada no hospital. Com ele, a Secretaria
Municipal de Saúde só encontrou um documento, uma carteira de estudante falsificada. Dos 18 jovens
atendidos no hospital, 16 tinham sintomas do abuso de álcool e drogas”.
77
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78
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que corresponde a 23,11% da população nacional. 49% desses jovens têm cartão de
crédito, num universo de apenas 17% da população que conta com essa opção de
moeda. A análise destes dados indica que a representação social estabelecida ligando
drogas à exclusão e violência talvez não seja tão precisa78.
Reforçando esta última perspectiva, uma pesquisa79 realizada pela FMUSP
(Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) indica que alunos com renda
familiar mais alta - acima de 40 salários mínimos - e que não sustentam credos
religiosos, são os mais propensos ao consumo de substâncias psicoativas. Se por um
lado, entre os estudantes oriundos de famílias mais abastadas o consumo de álcool foi
de 92,2% e de drogas ilícitas foi de 39,2%, por outro lado, entre os oriundos de famílias
com renda mensal inferior a 10 salários mínimos o consumo de álcool foi de 75,2% e de
ilícitos de 16,7. É preciso ter cuidados para que uma leitura referenciada no poder
aquisitivo para analisar exclusão e consumo de drogas, não indique apenas que um
grupo possui mais poder aquisitivo que o outro para o consumo - consumo não só de
drogas, mas inclusive de educação -, afinal, a polarização exclusão/inclusão não se
reduz apenas ao aspecto econômico, na medida em que o capital cultural na
contemporaneidade é uma moeda corrente fortíssima. Nesse sentido, a presente pesquisa
buscou mais indicações passíveis de interpretações em configurações culturais ligadas
ao consumo de drogas que não se reduzissem ao recorte econômico – o que não quer
dizer que este não tenha sido considerado.80
Diversificados eventos acadêmicos - no que tange às perspectivas teóricas e
metodológicas - com foco no consumo de drogas se sucederam no país em 2007: nos
dias 4 e 5 de maio houve o Seminário “Maconha na Roda” na Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da UFBa. Na ocasião, profissionais de direito, história, psicologia,
sociologia e antropologia além de um representante da comunidade Rastafari,
abordaram várias perspectivas da problemática em meio às perguntas de uma audiência
bastante heterogênea. Também seguindo um modelo transdisciplinar com a participação
de advogados, um delegado de polícia e um estudante representante de um grupo de
Estudos sobre Plantas Cannabaceaea, foi realizado um debate sobre drogas e legislação
na Faculdade de Direito da mesma UFBa em 29/08. No 50° Congresso da UNE, de 04 a
78
- mais adiante quando for analisada a pesquisa Tráfico de Drogas e Constituição no Brasil será
apresentado o outro lado desta questão.
79
- pesquisa na qual foram aplicados 926 questionários aos estudantes de Ciências Biológicas no período
2000/01, (FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, 27/04/06).
80
- até porque o capital cultural não é independente do capital econômico, apenas não se resume a este.
79
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81
- secretaria que em 2008 mudou o nome para Secretaria Nacional Sobre Drogas, apesar de manter a
mesma sigla (SENAD). Não obstante essa mudança de nome em meio a manutenção da sigla ser algo
meio confuso, a secretaria já ostenta um nome que sugere uma menor estigmatização do objeto de
estudo.
82
- nos EUA, tal guerra fecundada pelo presidente Nixon no começo da década de 1970 e que teve a sua
emblematização no governo do presidente Ronald Reagan entre 1981 e 1989, é um desdobramento do
discurso proibicionista e configurou um período em que um quarto de todos os jovens negros, do gênero
masculino, estiveram ou na prisão ou em liberdade condicional, a maioria acusada de envolvimento não
violento com drogas, enquanto o consumo de drogas nacional continuou sendo o maior do planeta
(Shaffer, 1997). No Brasil, 14% da massa carcerária (170 mil pessoas), estão relacionados ao tráfico. E
destes 14%, estima-se que 90% sejam pequenos entregadores, usuários que traficam para ter o que
consumir, não para lucrar. (FSP, 04/08/08). Na Colômbia, o reforço econômico e militar norte-americano
para erradicação das plantações de coca - chamado inicialmente de Plano Colômbia, posteriormente de
Iniciativa Regional Andina e finalmente de Plano Patriota – rendeu controvérsias: Além das fumegações
nos campos que devastaram as mais variadas agriculturas, pauperizando agricultores, as comunidades
rurais foram forçadas a construir redes de informantes – gerando alcaguetes - para estabelecer os
controles sociais que favorecessem as corporações militares, sendo assim lançadas num estado paranóico
de falta de confiança e insegurança coletiva (Brasil de Fato, 2006 n° 158).
80
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83
- procedimento similar ao utilizado para medir a poluição.
84
- como a pesquisa realizada com estudantes de quatro universidades pela Universidade Federal
Fluminense e financiada pelo CNPq (ver pgs. 83/84) em 2005, na qual o questionário foi a principal
ferramenta de investigação.
85
- a pesquisa do CNP também foi realizada nas cidades de Taranto no sul da Itália onde a concentração
de cocaína foi bem menor que em Roma e em Argel, capital da Argélia, onde a concentração não foi
constatada. Historicamente, Roma, onde a concentração foi maior, não é considerada como uma cidade
mais pobre e mais violenta do que Argel, o que não reforça a representação estabelecida que une
intrinsecamente drogas a violência e a exclusão. Pesquisa semelhante na Espanha obteve resultado
positivo registrando grande concentração de heroína, cocaína, maconha e ecstasy na zona universitária da
avenida Diagonal em Barcelona e no campus da Universidade Complutense em Madri. (El Pais,
14/05/09).
81
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86
- o projeto partiu de tese de doutorado em Psicologia que indicou que de 1140 usuários de ecstasy,
houve uma predominância de pessoas com até 25 anos; sendo que 54,3% possuíam nível superior
incompleto; 52,6% tinham emprego fixo e 65,4% provinham da classe A.
82
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87
- algumas estratégias de redução de riscos são chamadas pelos seus praticantes de “redução de danos” e
essa linguagem nativa será respeitada. A nota seguinte segue esta terminologia nativa. Mais adiante esta
questão será abordada.
88
- aliás, a polarização guerra às drogas X redução de danos leva a um debate cujas dimensões últimas
estão no conflito configurado entre o modelo de políticas públicas de origem norte-americana no qual o
foco é o controle do mercado, ou o modelo europeu cujo foco central visa o bem-estar do usuário. Em
meio a este cenário, no dia 10/10/08, o Ministério da Saúde divulgou edital para financiar projetos
relacionados à redução de danos. O orçamento de R$1,4 milhão é destinado a Secretarias Estaduais e
Municipais de Saúde, universidades públicas, organizações da sociedade civil e não-governamentais sem
fins lucrativos que desenvolvam projetos com essa perspectiva.
89
- na notícia seguinte veiculada por outro jornal sobre a mesma pesquisa, os números divergem; o
Estado de São Paulo afirma que o universo pesquisado foi de 2.631 informantes.
83
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algum tipo de droga. Dos que fumam maconha, 40% consomem a droga no
campus universitário90. Dos que cheiram cocaína, o percentual sobe para
45%. Entre os usuários de heroína, 75% usam a droga na universidade.
Outro dado chama a atenção: entre os usuários, mais da metade disseram
que não pretende abandonar o hábito.
84
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85
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respostas - instituições que deveriam exatamente buscar superar tais naturalizações. Esta
naturalização de representações proibicionistas pode favorecer o entendimento de como
nessa pesquisa houve um baixíssimo número de “dependentes” de álcool (3,65%) se
comparado ao número de “dependentes” de medicamentos psicotrópicos (6,39%) e de
maconha (5,58%), resultado contrário aos encontrados na maioria das pesquisas na área.
Medida será aplicada aos usuários que não forem alunos. Objetivo é
controlar entrada e saída de pessoas da instituição.
Alunos da USP de Ribeirão Preto invadem prédio contra veto a festa com
álcool - (Folha on line - 09/10/2009)
86
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Essas são duas situações nas quais as medidas em relação a uma problemática que
envolve o corpo discente foram tomadas sem a participação direta deste, colocando-o na
posição passiva do corpo que carece ser vigiado e controlado. Independentemente da
violência do tráfico no Rio de Janeiro ser das mais altas, a medida panóptica91 de
observar e fotografar acaba encarcerando o corpo discente na moratória da juventude,
estigmatizando a cultura universitária como incapaz de gerir seus consumos sem a
intervenção do sistema especialista estabelecido. Será que com controles proibitivos
sobre o consumo de álcool e olhos de Big Brother92 sobre os fumantes de maconha que
não possuem carteira de estudante – olha aqui mais vez uma a distinção universitária
determinando quem vai ou não ser catalogado como usuário de droga que ameaça a
ordem pública – a segurança dos frequentadores dos campi está assegurada?
Reitores pedem que idade para consumo de álcool nos EUA caia para 18
anos (FSP 22/08/08)
91
“o sistema panóptico [...] é destinado a se difundir no corpo social; tem por vocação tornar-se aí uma
função generalizada”, (FOUCAULT: 1986, 183). O sistema panóptico – quando poucos observam muitos
-representou o modo moderno de regulamentar o controle, fosse na prisão, na escola, no hospital, na
igreja como um superego virtual. O conhecimento dessa forma racionalizado se tornou um meio de
regulação e controle nas práticas – ou instituições, como diria Giddens.
92
- de acordo com Bauman (1999), agora é a vez do sistema sinóptico, quando muitos observam poucos.
Como medida de segurança os indivíduos nas sociedades contemporâneas estão configurando cada vez
mais frequentemente o habitus social de estar sob o olho do Big Brother, seja no trabalho ou no shopping.
93
- possivelmente Bourdieu chamaria estes acadêmicos de heréticos consagrados.
87
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Embora muitas mães de alunos tenham se queixado das reflexões desses reitores, é
possível perceber que por trás da elasticidade na ressignificação dos controles sociais
formais presente nesta surpreendente possibilidade de tolerância ao consumo, o
objetivo central é configurar uma maior “vigilância” sobre os consumidores dentro dos
campi. Eis um modelo politicamente correto de descontrole para controlar, favorecendo
que os universitários operem responsabilidades em relação aos seus consumos de
álcool. Adotando uma perspectiva oposta à adotada pela USP no caso Baladaboa, estes
reitores favorecem uma ressignificação para a problemática do consumo de álcool, ou
no mínimo uma amortização das representações estigmatizantes em torno deste. Nesse
sentido, esta estratégia de controle de riscos no ambiente universitário pode ter
consequências amplamente pragmáticas para a comunidade na medida em que as
demandas dos estudantes não foram reprimidas, foram respeitadas. Esses reitores
ousaram por não temeram se opor ao discurso proibicionista que inclusive injeta
dinheiro nas Universidades. Sobre essa relativa autonomia institucional o sociólogo
Fernando Henrique Cardoso traçou o seguinte comentário: “A grande virtude da
universidade americana é que ela tem auto-estima, não tem medo, fala com o dono do
poder e com o dono da empresa, sabe que não vai se vender nem ser cooptada. A nossa
não, a nossa fica isolada por medo. Do governo então ela tem horror.” (Ventura:2008
B,181).
Um último aspecto fundamental sobre o sistema especialista midiático que aqui
merece destaque é que há casos em que a mídia até procura ser “simpática” com a
problemática, mas a necessidade de produzir notícias espetaculares pode tomar o lugar
88
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da objetividade. Na matéria Docentes usuários de drogas são mais flexíveis com alunos
(Infociência, 2005, N°14) sobre a dissertação resultante da primeira parte desta
pesquisa, é sustentado que “Os professores universitários que usam drogas têm um
olhar muito mais sensibilizado com relação ao aluno. O fluxo do relacionamento entre
esses dois atores sociais torna-se mais leve quando o professor usa psicoativos”. Se
fosse claramente fruto da interpretação do jornalista, tal matéria seria até aceitável 94,
mas a citação acima é redigida entre aspas, o que significa que o pesquisador disse
exatamente isso, quando não foi isso o que aconteceu.
Estas interpretações que os órgãos midiáticos constroem sobre o olhar que a
academia projeta sobre o consumo de drogas, sobre a perspectiva do proibicionismo e
sobre a redução de riscos são tão passíveis de reflexividade quanto às próprias
pesquisas que interpretam. Seguindo esta linha interpretativa a questão aqui levantada
é: até que ponto as interpretações efetuadas pelos universitários sobre a problemática
são consideradas legítimas e trazidas à tona pelos órgãos de imprensa?
94
- o próprio autor da citada matéria teve dificuldade com a editoria do jornal que não quis colocá-la na
primeira página e até quis modificá-la. A resistência se deu em função de ser este um jornal universitário e
esta matéria poderia comprometer a representação pública da classe dos professores.
89
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90
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- Ela (a funcionária) chegou uma vez gritando com a galera que tava fumando e
algumas pessoas em reação diziam: “eu não tou só fumando, eu tou fazendo um ato
político, porque é um espaço que eu uso da minha forma”. Tentando mediar a situação,
uma professora não usuária interferiu dizendo: “eles vão fumar aonde, na rua? Na rua
não pode!”.
95
- modelo de configuração que já havia sido apontado na primeira parte desta pesquisa, a dissertação de
mestrado: Consumir e ser consumido eis a questão, (VALENÇA: 2005) onde o foco recai sobre o
consumo de drogas por professores.
91
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prática que pode parecer simples mas é altamente complexa. A principal estratégia é a
circulação de informações.
96
- informações que chegam não apenas nos bate-papos informais, mas por intermédio da mídia e dos
próprios estudos acadêmicos.
92
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Como esta pesquisa fala em redução de riscos, alguns estudantes perguntam a quem
tal pesquisa beneficia, observando-a com desconfiança, alegando que os dados
poderiam ser usados contra seus interesses. Desta forma, a pergunta que aqui pode e
deve ser formulada é: que setores da sociedade se beneficiam com esta pesquisa?
Dois dias antes de escrever este parágrafo, num show musical encontrei dois
estudantes que sabiam da pesquisa, sendo que um deles havia recusado participar por
temer que os dados pudessem ser manipulados de modo que o comprometesse. No
exato momento em que nossos olhares se cruzaram, ambos desviaram-se de mim como
se eu representasse um olhar a ser evitado. Já que antes desta pesquisa se tornar pública,
estes mesmos estudantes me olhavam diferentemente, é possível considerar essa como
uma atitude de rejeição ao projeto, ou pelo menos ao modo como estava sendo
executado. Ao contrário do que sustentei como pressuposto metodológico, com este
grupo específico de universitários não foi possível estabelecer uma configuração de
interlocutores em rede construída com a técnica da bola de neve,97 tamanhas as
resistências.
Na primeira parte da pesquisa realizada durante o mestrado, quando o objeto de
estudo foi o professor universitário usuário de drogas, esta técnica foi facilmente
aplicada com resultados bastante satisfatórios, pois, se o objetivo era estudar o estilo de
vida de uma comunidade de usuários, permitir que a própria comunidade se
configurasse foi metodologicamente ideal. Na atual etapa da pesquisa esse
procedimento não funcionou na medida em que alguns estudantes ao contrário dos
professores, pareceram não levar a pesquisa muito a sério, ou se levaram, o fizeram
numa perspectiva pouco interativa com o pesquisador. Várias entrevistas foram
marcadas, mas tais entrevistáveis não sustentaram o compromisso, dois deles sequer
desmarcaram o encontro. Um deles chegou a remarcar a entrevista cinco vezes –
entrevista que acabou não sendo realizada – justificando sua ausência por estar de
ressaca ou se preparando para ir a uma festa, o que não deixa de ser significativo a
respeito de sua política-vida. Ao contrário da prontidão dos professores da área de
humanidades98 para fazer o que estivesse ao alcance para a concretização da pesquisa,
tais estudantes mostraram um certo descompromisso com a questão. Esse
97
- técnica na qual o grupo de interlocutores pesquisados se constrói através de sua rede de contatos. Um
usuário contata outro e verifica se este tem interesse em participar da pesquisa, sem uma seleção de
elenco determinada pelo pesquisador.
98
- como já foi indicado anteriormente, os professores da área médica se recusaram a participar e com
essa negativa mostraram que levaram a pesquisa a sério, pois a recusa indicou que não estavam dispostos
a permitir alterações nas suas representações públicas.
93
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descompromisso com uma questão que lhes é diretamente pertinente é um dado bastante
significativo no que diz respeito à percepção que este grupo formula da redução de
riscos, pois no meu ponto de vista, eles não são apenas “objetos” de estudo, são uma
comunidade que através da pesquisa poderia obter uma circulação de informações
diretamente relacionada com suas demandas. Obviamente, este é apenas o meu ponto de
vista.
Em meio a essas resistências, reformulei minha postura e retornei ao campo
procurando estabelecer contato com pessoas que eu já sabia, por intermédio da minha
própria rede de relações, que eram usuárias, me fazendo valer, de modo aproximado, de
uma reflexão de Gilberto Velho: “transformei parte significativa de minha rede de
relações sociais em objeto de pesquisa, em um movimento heterodoxo para os padrões
tradicionais da antropologia”, (2003:15). Nas circunstâncias em que me encontrava,
operar um “movimento heterodoxo” na construção do sujeito de estudo se mostrou uma
estratégia enriquecedora, pois a suposta proximidade entre o pesquisador e o
pesquisado, muito mais do que me fazer perder o distanciamento crítico, me fez poder
corroborar as narrativas apresentadas, com as biografias às quais eu tinha algum acesso.
Assim operando, merece ser salientado que um procedimento de pesquisa em
ciências humanas – talvez mais do que em outras áreas, ou pelo menos de modo
diferente destas - deve ser cercado de cuidados para que não se torne uma redução
processual no que diz respeito à polarizada relação pesquisador/pesquisado. Dito de
outro modo, nem sempre que eu penso que sei o que os sujeitos pesquisados pensam,
encontro equivalência no que eles pensam que eu devo pensar sobre eles. Esta
constatação foi realizada na primeira oportunidade em que apresentei resultados parciais
da pesquisa99 em um encontro nacional de pesquisadores, situação em que dois dos
meus interlocutores que estavam presentes, se mostraram contrariados com o material
trazido à baila. Em suas opiniões, suas identidades foram expostas - mesmo que com
pseudônimos -, de forma que eles me criticaram por isso.
No meu ponto de vista, fiquei surpreso com a reação, pois os dados que precipitaram
a tensão dos interlocutores foram posteriores não só à nossa específica interlocução em
campo como também foram posteriores à própria construção do texto. De modo mais
preciso, estes dados estavam em relação direta com a polêmica proibição da Marcha da
Maconha que colocou ambos os interlocutores no “olho do furacão”, já que estavam
99
- pois acreditei que o feedback dos interlocutores poderia enriquecer os resultados finais.
94
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95
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Abraço esse raciocínio ao sublinhar que, indo além de uma observação participante,
devo transformar a fronteira entre observar e participar numa interface que permita a
observação plena de minha participação. Assim, altero levemente a formatação do texto
para não perder a confiança dos interlocutores, de forma que com essa flexibilização na
minha participação ainda possa manter o foco centrado nas observações. Dessa forma
ganha o projeto, pois ao interagir com o feedback dos interlocutores, acrescento à
perspectiva dialógica, um terceiro momento, dadivoso: além do receber e do dar, agora
há a reação à informação dada. Com essa reação, também ganha o pesquisador, que
segue seu curso sem dúvidas éticas quanto a seus mecanismos de aproximação e
distanciamento, pois, talvez seja como já disse da Matta (1983: 34): “E só há dados
quando há um processo de empatia correndo de lado a lado”.
Numa dimensão analítica mais ampla, é perceptível que não estudo apenas as
comunidades de usuários, também estudo a comunidade que eu e meus interlocutores
configuramos em nosso processo dialógico, pois os três momentos da pesquisa – ir a
campo, analisar dados e construir um texto – são momentos que devem ser observados
numa perspectiva metodológica dadivosa. “A hermenêutica supõe ser quem descreve da
mesma substância que aquilo que descreve. Ela requer uma certa comunidade de
perspectiva” (Maffesoli: 2006, 29). Receber, reagir e repassar informações sobre
consumo de drogas, eis dinâmica da comunidade de perspectiva em questão – e é a
tensão manifesta no feedback dos interlocutores que faz com que o título dessa obra seja
aporisticamente “consumir e ser consumido”. Eis por onde trilho o ofício de cientista
social que tem por objeto de estudo uma comunidade estigmatizada.
Ter configurado como interlocutores da pesquisa pessoas que estão em processo de
construção de suas auto-imagens enquanto sujeitos sociais - apenas 36% dos
interlocutores trabalham, e apenas 18% estão acima dos 30 anos - não faz do meu
trabalho algo fácil. Por que eu deveria acreditar que jovens estudantes universitários
usuários de drogas não oporiam resistência a uma possível ameaça de desconstrução de
suas auto-imagens? Se de alguma forma esta pesquisa pode macular-lhes a
representação, então serei colocado na posição de outsider ao grupo, sendo aquele que
de alguma forma põe sua identidade em xeque. Contrariando as expectativas do
pesquisador, o fato de tal pesquisa estar sendo realizada por alguém que tem um status
96
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- Antes era diferente, a faculdade traz uma perspectiva nova porque, antes, eu
consumia como se fosse um rebelde. Na faculdade você tem menos sentimento de culpa,
o espaço é protegido, sem preocupação como eu tinha quando fumava na rua,
preocupação constante com a polícia, porque quando você tem uma quantidade grande
de baseado, você tem que esconder em algum lugar. Na faculdade não, você tá
conversando...
É preciso destacar que alguns dos interlocutores aqui referidos entraram num curso
universitário após terem sido detidos pela polícia (pg. 121) ou mesmo terem sido
internados pelos familiares em instituições psiquiátricas em função do consumo de
drogas (pg. 163). Passar por mecanismos institucionais de controle e sanção deste porte
pode causar insegurança, medo, ansiedade. Num sentido psicológico, estas tensões ao
serem compartilhadas com quem passou ou pode passar por situação semelhante,
geralmente diminuem de intensidade. Quando pessoas com sets assim predispostos
compartilham um campo de produção - no caso, uma carreira universitária -, configura-
100
- levando em conta que tender a reconhecer autoridade apenas nas autoridades estabelecidas – e em
certa medida confundindo-a com um discurso autoritário - pode indicar imaturidade por parte de um
grupo outsider.
101
- o jovem que morreu numa rave em Itaboraí, portava apenas uma carteira de estudante falsificada.
97
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- Quando ela (minha mãe) descobriu que eu fumava e que eu assumi, eu fazia
questão de deixar baseado pra ela ver. Ela pegava e jogava fora, mas eu fazia no
intuito de mostrar que naquela casa, que eu também moro lá, que eu tinha que ter
minha liberdade. Agora na faculdade ela respeita muito mais, ela vê que eu tou
estudando, eu tou trabalhando, que eu não sou vagabundo maconheiro.
Ora, se este segundo lar é uma comunidade cultural onde os valores dominantes não
devem ser impostos, mas construídos em conjunto, se pode especular que na fala de
Rimbaud, o espaço universitário seria um setting viável para a construção de respeito
pelo usuário - “Agora na faculdade ela respeita muito mais, ela vê que eu tou
estudando, eu tou trabalhando, que eu não sou vagabundo maconheiro”. Dessa forma,
a comunidade universitária configura o espaço cultural onde é possível processar a
ressignificação da imagem de um usuário que inclusive, tem planos de seguir a carreira
de professor.
Os modos de socialização das comunidades de usuários pesquisados dependem em
certa medida de sua configuração no espaço universitário, porém, não de forma
restritiva, pois, quando os laços são solidificados, chegam a expandir os limites físicos
deste segundo lar. No entorno da faculdade anteriormente citada como permissiva, há
102
- e esse status universitário não é cancelado, mesmo quando as máculas a Instituição acadêmica se
sucedem. Em 2008, os nomes de reitores de duas das mais importantes universidades do país (UnB e
UNIFESP) foram envolvidos em escândalos de improbidade administrativa, e em 2009, as provas do
ENEM que serviriam de acesso as carteiras de estudante universitárias foram facilmente roubadas e
postas a venda, mostrando a fragilidade da Instituição.
98
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alguns “anexos” - é assim que muitos estudantes denominavam os botecos - onde foi
possível observar uma concentração constante de universitários que se reuniam para
confraternizar e tomar cerveja entre as 11 e às 16 h dos dias letivos. Boa parte destes
acabava resumindo sua passagem na unidade de ensino muito mais com o intuito de
encontrar a galera e socializar do que necessariamente para assistir aulas. Alguns
costumavam fumar maconha na faculdade, antes de ir para os anexos. Um número
reduzido fumava na área dos anexos, apesar das constantes reclamações dos
comerciantes locais que desaprovavam tal prática103.
Tendo em perspectiva que esta configuração de uma comunidade de universitários
usuários representa uma política de vida104 na qual a busca por liberdade é tão
valorizada quanto a busca por segurança, é possível analisar hermenêuticamente o que,
entre doses de cerveja, disse um estudante recém ingresso num mestrado em ciências
humanas: “sei que não vou investir tudo no curso agora. Tenho outras coisas pra fazer”.
Com estas palavras, um estudante pode estar indicando que quer ter (a) segurança (da
carreira), mas para isso não vai abrir mão da sua liberdade (de desfrutar de sua
juventude). Esta fala de um estudante com 24 anos de idade não provocou maiores
reações entre os oito colegas presentes, entretanto, num momento posterior, uma destes
que também bebe cerveja e fuma maconha, se referiu ao primeiro como imaturo por ter
faltado aula para ir à praia - coisa que ela, sendo a única na mesa na faixa etária dos
cinquenta anos, nunca faria, preferindo ir à praia, fumar e beber numa outra
circunstância que não comprometesse seus estudos. Apesar deste porém, tal diferença
de idades e prioridades não os coloca em lados separados do muro, - até porque quando
ela tinha vinte e poucos anos fez a mesma coisa que ele faz agora - pelo contrário, eles
mantêm uma relação cordial e solidária.
O ponto que vale ressaltar em relação a estes dois interlocutores é que ambos são
alunos com boa produção acadêmica e bem queridos não só entre os colegas usuários,
mas também entre os colegas não usuários. No convívio destes últimos com os
primeiros é onde, na prática, se caracterizam conflitos maiores em decorrência do
estigma atrelado às representações do usuário. Alguns estudantes não usuários de forma
nenhuma se sentem confortáveis e seguros quando suas imagens públicas podem ser
103
- dois anos após esse período de observações, o movimento em torno dos anexos diminuiu de
intensidade, possivelmente em relação direta com alguns assaltos que aconteceram na área, tendo como
vítimas principais, os estudantes.
104
- a política de vida (1995) ou política-vida (2002) é uma categoria desenvolvida por Giddens que se
refere a politização de várias práticas cotidianas ligadas à esfera privada indo dos cuidados com o corpo
ao consumo de bens, definindo um estilo de vida contemporâneo.
99
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maculadas pelo estilo de vida dos colegas: “se o cara quer fumar maconha, cheirar
cocaína, então vá pra longe daqui, aqui é um lugar sério!”, proferiu uma estudante de
Administração de uma faculdade particular.
Aliás, há uma representação dominante de que os estudantes usuários de drogas nas
faculdades particulares são mais discretos. A reflexão de um estudante de Ciências da
Computação e usuário, recém ingresso no curso e já bastante enturmado com os
colegas, é significativa:
Marley - Que há com certeza há, sempre em todos os ramos há alguém que usa. Já
conversei sobre isso, mas meus colegas particularmente não concordam... em relação a
mim não seriam preconceituosos se soubessem, mas alguns são (preconceituosos). Tem
um preconceito assim besta, mas se você conversar um pouco, explicar quais foram os
motivos que te levaram a usar drogas, acho que eles entendem, fingem que não tem
preconceito e fica por isso mesmo, mas eu acho que tem um preconceito sim.
T.V. - Você antes da entrevista disse que no último mês, não fumou maconha nos
dias de aula, o que te levou a isso?
105
- especificamente quanto ao consumo de uma substância lícita, mas não apenas ele. Em pesquisa
realizada em 2001 pela Unesco no Brasil, (A TARDE: 11/07/01) foi verificado que a capital baiana atingiu
o primeiro lugar no ranking do consumo de álcool por estudantes, 62% na faixa entre 10/24 anos. Já numa
pesquisa efetuada especificamente em Salvador, foi constatado o crescimento do consumo de drogas entre
grupos com níveis de escolaridade altos e atividades econômicas forte, (CARVALHO NETO, J.;
ALMEIDA FILHO, N.; REGO, R.C.F.; SANTANA,V.S.: 1987).
100
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106
- com valor de mercado similar ao do crack, a merla é uma combinação da pasta de coca e solvente
encontrada na cidade da qual Garrincha é oriundo.
101
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construir uma autoestima até então ausente – não foi reprovado em nenhuma disciplina
e já estava estagiando num veículo de comunicação respeitável - teve uma recaída no
consumo de cocaína e de crack e acabou tendo que trancar a faculdade e abandonar o
estágio. Neste momento de sua vida, Garrincha se encontrou em uma situação para a
qual há poucas soluções na busca por inclusão social, pois ele não acredita que possa
obter respeito sem ter um diploma de terceiro grau, e para tanto ele precisa controlar o
seu descontrole sobre o consumo.
107
- em sua política de vida, ela não manifestou maiores preocupações em relação à sua saúde por não
possuir um filtro de água em casa – não pelo menos no período de duas semanas em que frequentei sua
residência -, e não é por limitações econômicas ou de informações.
108
- ficar = manter um rápido relacionamento afetivo e sexual.
109
- presenças = oferta dadivosa de drogas.
102
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conquistar seus objetivos, por outro lado, acaba sendo estigmatizada como “fácil
demais” por alguns rapazes de tribos próximas: “tem cara que acha que eu sou puta!”
comenta, irritada.
Esta representação a incomoda como uma macula em sua imagem de universitária
independente110 que sonha em fazer uma pós-graduação na Europa tendo como
principal trunfo, exatamente seu jogo de cintura. Seu desconforto com essa imagem a
levou a se tornar defensiva com os rapazes que se aproximam. Numa dada
circunstância, ela manifestou uma reação agressiva com um “broder” recém conhecido
pelo qual sentiu alguma atração, quando ao telefone foi perguntada se tinha algum
“canal” de ácido. “Não me ligue pra isso! Você acha que eu só sirvo pra essas coisas é?”
Sua reação parece indicar que servir pra “essas coisas” é um comportamento típico de
puta. Se assim for, o consumo de drogas e a disponibilidade sexual acarretam
inseguranças à sua liberdade.
Nesse sentido, os preconceitos que acompanham a cultura das drogas tanto podem
facilitar aos usuários a criação de algumas representações positivas – a da usuária com
jogo de cintura que não precisa de dinheiro para conseguir drogas - quanto podem
manter outras negativas – a de se tornar uma mulher “fácil demais” para sustentar o uso.
Sendo o consumo de drogas ilícitas predominantemente praticado por homens111, os
preconceitos que perpassam as relações de gênero indicam que a segunda representação
– a de que a interlocutora é uma mulher “fácil demais” - tende a se impor como
dominante.
110
- remetendo a uma reflexão de Bourdieu & Passeron (1968,79) na pg.49 sobre as rupturas simbólicas.
111
- no universo da pesquisa apenas 25% do total de interlocutores é do gênero feminino.
103
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112
-“A noção de reflexividade institucional de Giddens (como também a de Beck) envolve a
transformação dos sistemas especialistas nas esferas públicas[...] Os atores sociais apropriam-se na vida
cotidiana, das verdades proposicionais deste conhecimento especializado democraticamente validado –
que é global, ou seja, universal e válido em qualquer lugar” (BECK, GIDDENS & LASH:1995, 241). A
“reflexividade institucional implica o ‘filtro contínuo das teorias de especialistas, dos conceitos e dos
achados para a população leiga’.” (BECK, GIDDENS & LASH:1995, 244).
104
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*Apoio Institucional:
ABORDA – Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos;
ANANDA – Associação Interdisciplinar de Estudos sobre Plantas
Cannabaceae (BA)
BaLanCe – Coletivo de Redução de Danos (BA);
GIESP/UFBA – Grupo de Estudos sobre Substâncias Psicoativas (BA);
Growroom – seu espaço para crescer;
Plantando a Paz – Movimento Nacional pela Legalização do Cânhamo
(PR);
MNLD – Movimento Nacional pela Legalização das Drogas (RJ);
NEIP – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos;
Princípio Ativo (RS);
Psicotropicus (RJ);
Se Liga – Associação de Usuários de Álcool e outras Drogas (PE);
É possível perceber que nessa celeuma a tensão se configurou muito menos pelas
questões levantadas pelo documentário113 do que pelo impedimento da cultura
113
- Maconha/Grass: a verdadeira história da proibição da maconha, o filme em torno do qual se
configurou a polêmica foi premiado como o melhor documentário do ano 2000 pela Academia Canadense
de Cinema e TV. Além de ter sido vendido pela Editora Abril em bancas de revista, pode ser baixado pela
Internet gratuitamente.
105
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106
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Se esta interpretação parece simplista, não deixa de ser emblemático que, no ponto
de vista do criador de Tropa de elite, José Padilha114, a descriminalização da maconha
poderia ser uma alternativa para os malefícios desse tráfico (A Tarde, 03/10/07). Este
ponto de vista parece contraditório em relação à atitude do Bope retratada em seu
filme115? Se levarmos em conta uma declaração do próprio cineasta no Globo.com
(26/12/07): “No Brasil, o comprador de drogas está dando dinheiro para um grupo
armado que controla uma comunidade carente”, talvez seja possível interpretar que
Padilha ao ponderar sobre descriminalização, esteja indicando uma alternativa de
redução de riscos em relação ao tráfico e sua violência, de modo que, os Capitães
Nascimentos da vida possam encontrar a aposentadoria precoce116.
114
- que em função de algumas interpretações sobre o filme, recebeu a representação estigmatizada de
realizador de uma obra fascista.
115
- seguindo a linha interpretativa da nota anterior, para muitos espectadores Tropa de elite é
basicamente um filme antidrogas, um panfleto publicitário da filosofia proibicionista de tolerância zero.
116
- e como essa solução parece distante da realidade, Padilha está filmando Tropa de elite 2, no qual o
Capitão Nascimento doze anos depois do primeiro filme é obrigado a abandonar sua aposentadoria...
107
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Nessa modelo cultural o phármakon – que por enquanto, pode ser interpretado
simplesmente como droga - tanto pode levar à satisfação quanto pode inviabilizá-la,
mas a demanda por “mais uma dose” não chega a desconfigurar os controles sociais
vigentes:
“A cultura de consumo não representa nem um lapso do controle, nem a
instituição de controles mais rígidos; mas antes a corroboração dos
controles por uma estrutura gerativa subjacente flexível, capaz de lidar ao
mesmo tempo com o controle formal e o descontrole, bem como facilitar
uma troca de marchas confortável entre ambos.” (FEATHERSTONE:
1995,48).
108
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117
- descontrole controlado é uma expressão que Featherstone canibalizou de Elias (ELIAS & DUNNING
1992,59).
109
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foi perceptível que alguns usuários de álcool tinham aversão por uso de maconha e
alguns usuários de maconha manifestavam um certo descaso por uso de cocaína, na
pesquisa com estudantes foi perceptível que 68% dos interlocutores era poliusuária.
Essa diferença de postura entre professores e estudantes está relacionada com a menor
idade dos estudantes que, imersos na cultura de consumo estão habituados às
configurações antitéticas. Para os professores, que por serem mais velhos acabam sendo
herdeiros de alguns valores característicos da cultura de produção, as diferentes drogas
tendem a não comungar necessariamente culturas igualitárias.
Digo culturas igualitárias na medida em que na virada da década de 1960/70,
Baudrillard (1995,47) refletia que a busca da “felicidade constitui a referência absoluta
da sociedade de consumo, revelando-se como o equivalente autêntico da salvação”, pois
o “mito da felicidade é aquele que recolhe e encarna, nas sociedades modernas, o mito
da igualdade”. Na devida proporção em que “Para ser o veículo do mito do igualitário, é
preciso que a felicidade seja mensurável por objetos e signos do conforto” (1995,47), o
consumo é perspectivado como a moral da cultura contemporânea, disponibilizando o
consumidor para atingir a felicidade que pode se encontrar materializada em uma pílula,
um cigarro, ou em uma bebida, em – teóricas - condições igualitárias de escolha.
O lugar onde se exerce o consumo já nem precisa ser o shopping center, mas
simplesmente o cenário da vida cotidiana, cenário no qual o corpo social é um palco
onde se mimetizam símbolos, capitais e representações: “o consumo surge como modo
ativo de relação (não só com objetos, mas ainda com a coletividade e o mundo), como
modo de atividade sistemática e de resposta global, que serve de base a todo nosso
sistema cultural” (Baudrillard:1995,11). Neste modo ativo de relação, as trocas cruzam
riscos e incertezas.
No caso das drogas, riscos e incertezas balizados pela ilicitude, pela proibição. É
exatamente em função do modelo proibicionista que por exemplo, em Amsterdã, onde
consumir maconha é permitido em coffee shops118 e no Cannabis Cup119, o consumo é
muito mais intenso entre turistas internacionais que chegam naquela cidade sedentos por
novidades120 do que por holandeses. Entre os nativos de Amsterdã o consumo não
aumentou proporcionalmente desde que a tolerância passou a vigorar em 1976, contudo,
118
- em 2008 havia em Amsterdã 228 coffee shops, sendo que o total na Holanda é de 750 coffee shops.
119
- festival anual onde, pagando cerca de duzentos euros, o consumidor pode fumar as melhores
maconhas do mundo.
120
- no mercado holandês há infinitos produtos derivados da maconha: cosméticos, cervejas, roupas, etc.
110
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com a posse de um governo com postura mais ortodoxa em 2009, começou a haver uma
revisão das sanções exatamente em função do consumo dos turistas que resolvem liberar
os controles sem limites121 fugindo da proibição em suas comunidades nativas. Debates
e reflexões tomaram corpo em torno da proposta de redução da quantidade de coffee
shops e da sua destinação exclusiva para frequência de cidadãos holandeses, uma
espécie de clube só para distintos com seus cartões de acesso, distintos que também
passariam a ajudar a cultivar as espécies, favorecendo um abastecimento sustentável. Se
durante 30 anos o consumo de maconha deixou de representar uma situação de risco e
passou a representar um modelo de controle social bem sucedido, a representação que a
citada equipe de governo sustenta é que este é um modelo de controle social que atrai o
risco, e para evitá-lo, carece regulamentar os usuários com rigor. Entretanto, o critério
que selecionaria e distinguiria os frequentadores deste clube não seria a vontade de
participação do usuário, seria sua nacionalidade. Esta mudança de critério de controle
tira das mãos dos usuários o poder de escolha, problematizando uma questão que já é
complexa:
121
- os governantes que assumiram a gestão passaram a estabelecer uma clara política nacionalista. Eles
alegam que o índice de criminalidade aumentou em torno do consumo de drogas por parte dos turistas,
principalmente os norte-americanos apontados como os que mais consomem álcool e outras drogas de
forma descontrolada.
111
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Como os riscos são inevitáveis - o que não quer significar que não possam ser
reduzidos - a observação das comunidades de usuários indica que as suas buscas por
liberdade passam por rituais e sanções que não são construídos independentemente de
uma ampla configuração com a cultura proibicionista. Contudo, buscar liberdade não
quer dizer partir de uma condição onde não haja nenhuma, e sim poder ressignificá-la
de acordo com demandas específicas. A liberdade é construída processualmente:
Se assim for, podemos dizer que a liberdade só tem sentido quando se vivenciou
alguma forma prévia de restrição à sua fruição. Ora, num exercício reflexivo, se pode
pensar que buscar liberdade em torno do consumo de drogas ilícitas - com todos os
estigmas que as atividades ilícitas carregam - é partir de uma condição previa onde a
configuração da liberdade tenha estado em vínculo de proximidade com as atividades
lícitas, mas tal proximidade não tenha sido suficiente para garantir a fruição do que os
usuários possam entender por liberdade. Nesse sentido, a liberdade buscada, é liberdade
inclusive para dimensionar certas configurações como aprisionantes, insatisfatórias,
quando a insatisfação parece ser, na atual cultura dominante, o grande mal a ser
combatido. Como o marketing do consumo afirma haver livro de auto-ajuda para quase
tudo e personal trainer para o tudo que sobrar, o importante tem sido oferecer
possibilidades de satisfação, como um sinônimo de liberdade.
112
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122
- trocadilho que procura se situar entre O mal-estar da civilização (FREUD, 1974 A) e O mal-estar da
pós-modernidade (BAUMAN, 1998).
113
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114
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do prognóstico da OMS123 para garantir que seus clientes sejam legitimados, afinal: “A
liberdade é na verdade um privilégio, e um privilégio oferecido com moderação e sem
entusiasmo por parte de quem a oferece” (Bauman, 1989:56), e quem oferece está
sempre de olho em quem pode aceitar pagar a oferta.
123
- Depressão será a doença mais comum do mundo em 2030, diz OMS (BBC 02/09/2009).Por trás desta
manchete da BBC está um prognóstico da OMS de que até 2030 a depressão que hoje atinge mais de 450
milhões de pessoas será a doença mais incapacitante do planeta, havendo um maior prejuízo para os
chamados países em desenvolvimento, basicamente por estes possuírem menos dinheiro para comprar
antidepressivos e bancar tratamentos. No Brasil, que é uma exceção entre tais países - sendo considerado
farmaemergente, junto a Índia e Russia -, a consequência direta desse prognóstico que vem sendo
divulgado desde 2002 é que nos últimos quatro anos o mercado de antidepressivos cresceu 44,8% acima
da média mundial,de acordo com o IMS Health (G1:26/12/09). Por outro lado, o que não foi
diagnosticado pela OMS foram os fatores de risco que podem ter precipitado tal depressão planetária...
115
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Nos dias de hoje, será que refletir sobre as possibilidades de um estigma vir a gerar
status positivo124, ainda causa estranhamento? Levando em conta que uma das
principais estratégias da cultura de consumo é naturalizar a sedução pela novidade
aparentemente infinita, a “repetida multiplicação das escolhas que torna possível a
abundância” (Lipovetsky: 2006, 2), refletir sobre a ressignificação de certos estigmas
como concretização emblemática da liberdade de escolha vem se tornando cada vez
mais plausível. No cenário internacional de celebridades da cultura pop contemporânea,
Amy Winehouse, Britney Spears e Lindsay Lohan passaram boa parte dos anos de 2007
e 2008 sendo manchetes, em grande medida, por seus envolvimentos com drogas. Estas
manchetes geraram reflexividade sobre os motivos que levam jovens bem sucedidas e
ricas a perder o controle sobre seus consumos – no caso de Britney Spears, em função
do descontrole intensamente midiatizado, houve a perda da guarda dos filhos. É passível
de constatação que se estas celebridades tiveram suas imagens públicas criticadas como
politicamente incorretas já que “potencialmente são exemplos” para um público
consumidor jovem, por outro lado, suas representações públicas ganharam mais
projeção, mantendo-as na pauta do dia com as inquestionáveis expectativas: será que
elas ainda são tão boas como artistas ou as drogas são o ponto de decadência de suas
carreiras? Será que essas celebridades são vítimas do sucesso ou estão aproveitando
intensamente la vida loca? Será que realmente perderam o controle, ou será que essa
perda de controle midiatizada faz parte da celebração de suas representações?
Aos olhos do grande público que consumiu vários escândalos enquanto informação, o
hedonismo dessas estrelas tem gerado uma espetacularização glamourosa do consumo
de drogas, às vezes de modo bem irônico. A imagem de Amy Winehouse125 pareceu
ganhar sobrevidas; quando ela entrou e saiu de clínicas de reabilitação, quando surgiu
um vídeo no Youtube onde ela aparece consumindo crack ou quando agrediu algum fã.
Em sensacionalismo extremo, alguns jornalistas chegaram a oferecer drogas a
Winehouse e ao ator Heath Ledger – morto algum tempo depois por overdose acidental
de medicamentos ou tecnicamente, suicídio acidental - para filmá-los em consumo e
124
- sim, porque o estigma nada mais é do que um status negativo (Goffman: 1988).
125
- Amy que não apenas tem um sobrenome sugestivo (Winehouse pode ser traduzido como Casa do
vinho), mas que também se tornou famosa cantando “rehab”, forma abreviada para se referir aos centros
de reabilitação para usuários de drogas (drug rehabilitation).
116
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126
- Polícia prende homem que filmou Amy Winehouse usando crack (Folhaonline, 12/12/08), Paparazzi
são acusados de dar drogas a Heath Ledger – (Terraonline,12/04/08).
127
- e isto obviamente não se restringe às drogas, mas a todos os capitais culturais disponibilizáveis,
como comida ou sexo por exemplo.
117
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e dos fãs que se solidarizam com suas confissões públicas ao invés de simplesmente
receber penas criminais e exclusão de círculos sociais. A assimilação desses controles
parece conferir uma margem de segurança equacionada à liberdade aparentemente
irrestrita. Este padrão cultural, pelo qual algumas celebridades optam ao escolher um
estilo de vida onde a liberdade é configurada em interface com uma segurança
previamente conquistada, é um padrão com potencial para gerar reflexividade também
entre – e talvez, principalmente - usuários que não tem muitas opções de liberdade com
segurança, nem de segurança com liberdade.
E é nesse sentido que, saindo das manchetes de jornais e entrando nas salas e campi
universitários, a vulnerabilidade dos estigmatizáveis consumidores de drogas pode
encontrar abrigo no desejo de pertença em uma comunidade. Mas que modelo de
comunidade seria este? Longe de ser um modelo fechado, inicialmente essa proposta de
comunidade contemporânea pode transcorrer num sentido contrário da representação
dominante, de que droga se aprende a consumir nas ruas - em meio a insegurança e ao
risco não calculado -, na medida em que alguns interlocutores, viveram suas
experiências iniciáticas nos seios das próprias famílias:
Cleópatra - Eu fumo já há 8 ou 9 anos, (na época da entrevista estava com 22) mas
eu tenho contato com a maconha há bastante tempo porque meu pai é usuário.
T. V. - E a relação dele com você e a maconha é tranquila?
Cleópatra - Na verdade desde pequena eu percebo que meu pai e meus tios, irmãos
do meu pai, sempre fumavam, vi que tinha um cheiro diferente e que eles não fumavam
em qualquer lugar. Quando eu tinha mais ou menos 8 anos, meu pai chegou pra mim e
uma prima minha que o pai também fuma, e falou: “ó, isso aqui que a gente fuma é
maconha, cês vão ouvir muita coisa na rua e na televisão falando sobre isso, mas
qualquer dúvida que vocês tiverem vocês vem perguntar pra gente”. Na hora que ele
saiu, a gente: ‘ah, é maconha!’ Aquela coisa de Jornal Nacional, de prisão, era uma
coisa normal na nossa vida. Não é a gente saber que era maconha que faria nossos
pais virarem criminosos, e aí foi bem tranquilo.
Quando eu comecei a fumar, logo de imediato eu nem contei pro meu pai, a gente
nem morava junto, mas aos poucos ele foi percebendo, o jeito de tar se vestindo, os
amigos, o som que cê tá curtindo, um dia ele falou pra mim: “ó, eu acho que cê tá
fumando maconha, cê nunca me contou, mas da minha mão você só vai receber um
baseado no dia que você chegar pra conversar comigo”. Eu tinha uns 15 (anos), eu
118
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pensei: bom, é o momento, porque meu pai sempre fumava perto de mim, eu tinha
vontade de fumar e de fumar principalmente com ele, e conversar, e aí a relação é bem
tranquila entre nós.
T V - Você acredita que as relações familiares de seus colegas são parecidas?
Cleópatra - Eu tenho alguns amigos que tem com a mãe ou o pai esta abertura, ou
com os dois. Por ter certas opções acabo me deparando com pessoas que tem às vezes
esse estilo de vida e a relação familiar parecida, mas com a grande maioria a relação é
diferente. Eu acho que dentro desse nosso universo nós somos exceções...
Eu nunca tive grandes problemas com minha família, minha mãe não gosta, não
fuma, claro que se ela pudesse escolher ela preferia que eu não fumasse. [...] Dos cinco
irmãos de meu pai, quatro fumam, e todos têm filhos com a vida muito bem
estabilizada, e são muito carinhosos, é uma família muito grudada. Meu avô já
perguntou pra meu pai se ele tinha dúvida que eu fumava maconha e meu pai
respondeu que não tinha dúvida nenhuma.
Pancho Villa - A gente aprendeu que podia cheirar lança-perfume com os nossos
pais, era normal a gente chegar em casa e com 13 anos eu via meu pai cheirar, falar
que botava na geladeira pra ficar melhor. Cheirava com sete primos no carnaval.
119
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Comecei a fumar (maconha) com meu irmão mais novo, no prédio onde eu morava
todo mundo fumava.
Esta fala de Pancho deixa clara uma situação em que não apenas o especialista
referencial é o próprio pai, mas a configuração relacional mais imediata - irmão,
primos, vizinhos – favorece uma percepção das drogas não como motivo de conflitos,
mas sim como condizente com o pertencimento comunitário. Contudo, não há como
naturalizar esta situação de diálogo e confiança como garantia inquestionável contra os
riscos do consumo:
Marley - Desde quando eu era pequeno minha mãe sempre falou que ela fumava, e
me falou porque ela fumava, e eu nunca tive problema com isso, os amigos dela
também fumam, todos bem sucedidos, todos com grandes exemplos de vida. Aquilo
mostrava pra mim que a relação entre usuários de maconha e marginalidade e falta de
querer fazer as coisas não tem nada a ver. Isso aí é de pessoa pra pessoa. Tem pessoas
que são muito inteligentes, bem sucedidas que são usuárias de drogas.
120
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T.V. - Você falou que só quando você tinha 20 anos seu pai ficou sabendo do seu
uso, por que durante quatro anos você nunca trocou uma idéia com ele?
Rimbaud - É meio difícil falar isso dentro de casa, eu não me sentia muito aberto pra
falar antes de chegar numa idade, hoje em dia é uma conversa mais fácil, antes eu era
muito menino. Primeiro eu não queria dizer que já tinha fumado, eu tinha um consumo
muito diferente do de hoje em dia, hoje em dia eu discuto a coisa. Isso de ganhar uma
grana e comprar o meu, isso começou a surgir depois que eu entrei na faculdade. Uma
coisa (ruim) de não ter conversado com meu pai, foi a circunstância em que ele
descobriu, foi um nocaute... foi quando eu acabei sendo preso... foi engraçado que foi
na época do aniversário dele. Ele foi me buscar na delegacia, ele tava até bebendo...
ele falou: “ó como é que eu descobri que você fuma...”, aquela coisa. A partir daí ele
veio com o discurso, de que tinha a preocupação de que eu tava abusando da
substância. A gente não mora junto e ele tenta perceber como é que eu tou me
relacionando com a droga.
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Garrincha - Na verdade veio de dentro de casa com a coisa de meu irmão mais
velho. Eu convivi com o fantasma de meu pai biológico que não teve presente, mas
tinha o fantasma do uso de drogas dele, e isso refletia quando eu era criança, eu ouvia
falar sobre o uso de drogas do meu pai... mas não atribuo meu uso de drogas a nada
disso, simplesmente foi a hora que pintou e eu comecei.
T. V. - Havia outras pessoas que consumiam?
Garrincha - A gente morava em Brasília, e tava passando férias em Salvador com
meu primo, meu irmão, e dois colegas. Foi nessa situação que eu fiz a primeira
experiência com a maconha.
T. V. - Você colocou que conviveu com o fantasma de seu pai enquanto usuário,
usuário de que?
Garrincha - Eu era criança quando eu tive essa notícia, minha mãe confirmou, mas
não soube dizer que droga era, mas eu achava que era algo injetável. Eu vi meu pai
recentemente, ele agora veio pra Salvador. Foi a sexta vez que eu vi ele.
T. V. - Vocês teriam abertura pra conversar sobre essas questões?
Garrincha - Abertura eu não sei, ele pra mim é uma pessoa que eu não tenho
intimidade com ele. Eu já tentei, ele teve uns problemas acho que com álcool tempo
atrás, eu levei ele pro lugar onde eu frequento (os Narcóticos Anônimos), ele acha que
tem o controle da situação... Essa coisa dele achar que tem o controle, ele acaba
criando uma barreira que não dá essa liberdade de tar perguntando: que droga que cê
usava? Me lembro que com 16 anos ele dizia: “se tu começar a dar problema aí, vou
trazer tu pra morar comigo”, querendo dar uma de pai.
T.V. - Você acredita mesmo que o fantasma dele lhe persegue?
Garrincha - Quando eu me referi à palavra fantasma, eu tava me referindo àquela
referência do pai, usando como referência o uso de droga dele. Não tenho outra
referência dele.
O fantasma de um pai usuário, que Garrincha trouxe em sua primeira fala e tentou
racionalizar na última, se configura como uma herança maldita, uma representação que
pode ser utilizada por ele como justificativa para a sua impotência ante seu consumo
intemperado de drogas. Seu incomodo com a aparente incapacidade do pai em dialogar,
em estabelecer uma adequabilidade ao contexto, mostra a sua tentativa de trazer uma
relação fantasmagórica para um nível de realidade tal, onde a droga é o fio de contato
que os une. Vale observar que sendo uma pessoa que faz consumo notoriamente
122
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Garrincha - Na verdade, minha mãe, segundo ela, já sofreu com o uso de drogas de
meu pai. Meu irmão já tava também envolvido, já tinha sido mandado pra colégio
interno.
Cleópatra - Eu nunca tive grandes problemas com minha família, minha mãe não
gosta, não fuma, claro que se ela pudesse escolher ela preferia que eu não fumasse,
mas por outro lado ela foi casada com meu pai que fuma por muito tempo, eu sei
também que ela já fumou com ele algumas vezes - ela nunca me falou, meu pai que me
contou como segredo.
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até a tirar vantagem da situação, pois o segredo compartilhado com o pai sobre o rápido
momento de consumo de maconha por parte de mãe, estreitou-lhes a confiança. Já
Rimbaud leva o conflito para a dimensão da “luta política” por direitos, que de certo
modo o impulsiona a forjar sua identidade, a buscar respeito no embate entre seus
valores e os valores impostos por sua mãe, na medida em que esta – a “careta” -
representa os valores dominantes na sociedade. Entretanto, é preciso ressaltar que a
comunidade de usuários que tem raízes familiares não deve ser reduzida exclusivamente
a laços de sangue, pois as comunidades contemporâneas não se sustentariam só com
“raízes consanguíneas”, elas necessitam de “antenas eletivas”. Na perspectiva da
ativação dessas “antenas”, laços afetivos com características familiares passam a ser
forjados entre os pares que configuram as comunidades de estudantes universitários
onde os interlocutores atuam. Se não é viável falar de uma comunidade de estudantes
que são usuários, mas sim de comunidades de estudantes usuários, cada uma com suas
peculiaridades, é viável começar a análise por uma delas, no caso, a estigmatizada
comunidade de estudantes usuários dos cursos de Humanidades da Universidade
Federal da Bahia:
Cleópatra - No meu campus tem muita gente que usa principalmente maconha, mas
na verdade tem um estigma de que lá só tem doidão, todo mundo fuma maconha, mas
se comparar tem muito mais gente que não fuma do que gente que fuma.
T.V. - Esse estigma lhe incomoda?
Cleópatra - Não, não incomoda tanto, o que incomoda mais é ser um estigma criado
por sermos da área de humanas.
T.V. - Você acha que esse preconceito não acontece em outras áreas?
Cleópatra - Eu acho que em outras áreas devem existir outros preconceitos, mas no
caso da maconha e das ciências humanas é algo que “casou” pra criar esse
preconceito.
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pesquisador – que a essa altura já beirava a paranóia - como alguém infiltrado entre os
nativos para catalogá-los. Ampliando a perspectiva comparativa da observação, esse
campus universitário não é o único setting de consumo de drogas onde há conflito:
126
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que ele descobriu o valor da cultura universitária. Em sua reflexão, entrar para a
universidade depois dos trinta anos de idade128, não foi desdobramento do fim do curso
de nível médio, mas sim decorrência de sua política de vida na qual não havia maiores
incompatibilidades entre a liberdade para fazer o que queria e a segurança de saber o
que queria. O que houve foi uma maior responsabilidade para guiar sua liberdade em
sintonia com sua segurança.
Seguindo a proposta hermenêutica, é possível observar através dos relatos de outros
interlocutores, que nas configurações universitárias, apesar de levarem a fama, os
estudantes não são os únicos a consumir drogas:
128
- sendo o único interlocutor com esse perfil etário.
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alunos meus – agora eu não tou ensinando, tou com dedicação exclusiva ao doutorado
- depois das aulas eu fumava (com eles) também.
No ponto de vista deste interlocutor, o consumo dos usuários no campus onde faz
pós-graduação é até discreto tendo como referência o campus onde fez graduação.
Mesmo que Zumbi se refira, principalmente, à mesma substância psicoativa a que se
referem interlocutores anteriores, suas percepções não homogeneízam as relações de
poder dentro da comunidade universitária de usuários, como mostra sua fala a respeito
da relação professores/estudantes. Se na pesquisa realizada com professores, foi
constatado que os docentes mantêm alguma discrição quanto ao grau de envolvimento
com os discentes, aqui, na voz de Zumbi, é dito claramente que há consumo conjunto
sim.
Também merece destaque a reflexão de que: “Alguns chegam em sala de aula depois
de ter fumado um, [...] acabam atrapalhando a aula, mas são pessoas que se não
utilizassem a droga iam atrapalhar do mesmo jeito. Precisaria de mais pesquisa pra
dizer que aquele aluno é problemático por causa da droga”, ou seja, será que um
“aluno problemático” que usa drogas é problemático porque usa drogas? Se for possível
sustentar a categoria de aluno problemático, em alguns casos - e talvez não por
coincidência, em faculdades particulares -, a comunidade universitária pode até ser
interpretada por estes estudantes como terapêutica:
128
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T.V. - Como é que você vê o consumo de drogas dos outros no ambiente acadêmico,
de estudo?
Marley - Eu acho que atrapalha, porque no meu caso quando eu fumava me dava
sono, preguiça de estudar, pode não ser com todo mundo, tem pessoas que conseguem
fumar e prestar atenção na aula, mas eu mesmo fico disperso.
129
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129
Se não se mostra tão preocupado com sua representação quanto Garrincha ,
Marley se mostra muito interessado em construir uma carreira profissional - esse
interlocutor já indicou anteriormente que reduz o consumo em período de maior
necessidade de produção. Se reduzir não é parar, é buscar algum controle, Marley vai
oferecendo indícios de que a inserção na comunidade universitária é a sua opção de
reduções de riscos sociais, a sua alternativa para configurar um reencantamento130 com
o cotidiano, num processo facilitado pela posse da carteira de estudante. Esta
ressignificação da cultura universitária por parte de alguns universitários usuários nada
mais é do que uma revisão reflexiva do que pode ser a educação, pois, muito mais do
que formar profissionais competentes, o setting do ensino superior tem potencial para
formar cidadãos que busquem equilibrar razão – segurança - e emoção - liberdade.
Este reencantamento pode ser configurado através de uma cultura universitária que leve
em conta as questões de ordem afetiva/emocional dos estudantes. O caso de Marley é
um bom exemplo desta situação, pois o que ele busca é o equilíbrio entre seus controles
emocionais e sua capacidade de administrar conhecimentos.
Como pano de fundo para essa possível ressignificação da comunidade universitária
que enfatize além da produção de conhecimento, a adequabilidade emocional dos
alunos, se encontra um certo hedonismo contemporaneamente configurado. O que essa
reflexão sugere? Sugere que esta comunidade ao trazer como um dos seus dispositivos
centrais, uma película de redução de riscos, não esteja necessariamente buscando, entre
os efeitos desejados, a anulação da liberdade e do prazer. Uma contradição? Não
exatamente, apenas mais uma aporia, entre as muitas que caracterizam a cultura de
consumo, cultura onde transitar entre a liberdade e a segurança passa a ser mais uma
opção. A obrigatoriedade de optar entre liberdade ou segurança, se ainda é dominante,
não é mais hegemônica.
A hedonização da cultura contemporânea já não proporciona tanto estranhamento e
cada vez mais se aproxima de ser configurada como parte da regra estabilizada, se
afastando de ser a marginalizada exceção à regra. Vale ressaltar que esse hedonismo
referido não é intemperado, sem controles: “O fim do ‘goze sem entraves’ não significa
a reabilitação do puritanismo, mas, sim, a ampliação social de um modelo de hedonismo
normalizado e administrativo, higienizado e racional. Ao hedonismo desregrado seguiu-
129
- inclusive, Marley se disponibilizou para contar publicamente sua trajetória, caso isso ajudasse outras
pessoas a não viverem as agruras que ele viveu.
130
- e reencantamento na perspectiva de Mafessoli (1995) reside na busca pelo prazer, pela alegria de
viver em tribos não limitadas pelos excessos de racionalidades.
130
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Pancho Villa - Quando eu era garoto li um livro que falava de várias drogas e pra
mim chamou muito a atenção que dizia que maconha era uma droga que não causava
overdose, e eu pensei: que porra é essa? Isso instigou várias coisas e desde então eu
comecei a ler tudo sobre maconha. Na sequência descobri que os amigos no prédio
fumavam e as primeiras vezes que fumei pensei: o efeito é muito bom, bom pra caralho!
Descobri que falavam mal de uma coisa que não fazia mal. Me senti na obrigação de me
colocar como usuário e defender contra alguém que falava mal, que eu sabia que era
mentira. Eu sempre li muito, eu sempre fui da turma o excêntrico, quando eu passei a
fumar passei a ser o que defendia a maconha.
131
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temas outsider. “Descobri que falavam mal de uma coisa que não fazia mal. Me senti na
obrigação de me colocar como usuário e defender contra alguém que falava mal, que eu
sabia que era mentira.” Essa situação é plenamente compatível com uma postura de
alguém que encontrou o reencantamento com o conhecimento não através da teoria mas
sim de sua própria prática, o que o leva à ressignificação de estigmas e à construção de
um discurso com instrumental universitário intensamente reflexivo. Pancho almeja
não só contestar um parecer de especialistas como também busca se tornar um
especialista ao contestar tais especialistas. Na prática, o que Pancho descreve é o que
chamo de uma hermenêutica “tripla”131, virtualmente dialogando com Scott Lash
quando este pondera sobre a importância dos sistemas especialistas132: “a reflexividade
na modernidade implica uma liberdade crescente dos sistemas especialistas e uma
crítica a eles... A reflexividade não é baseada na confiança, mas na ausência de
confiança nos sistemas especialistas” (Beck, Giddens & Lash:1997,142). A falta de
confiança em certos especialistas sobre consumo de drogas fez com que Pancho
buscasse configurar uma nova leitura sobre este consumo, leitura que ele faz questão de
compartilhar com seus colegas da cultura universitária. Especificamente nesse caso, se
tornar um tipo de especialista parece ser um desejo antigo, uma motivação primária que
Pancho cultivou através dos anos:
Pancho - Tentei a primeira vez jornalismo (no vestibular), pois desde o começo,
minha idéia era ser conhecido como alguém que sabia o que tava falando sobre
maconha. Esse é o ponto de partida na minha adolescência. Eu parti pra buscar uma
carreira que me desse um prestígio de tar falando e a minha fala sobre determinado
assunto fosse respeitada.
Não apenas falar sobre maconha, mas Pancho ao falar, quer ter sua fala respeitada,
consagrada a distinção por retificar uma inverdade: “Me senti na obrigação de me
131
- A hermenêutica tripla é uma tentativa do pesquisador em estabelecer um diálogo com Giddens no
sentido de que: “Para Giddens, a reflexividade na modernidade ocorre por intermédio de uma
‘hermenêutica dupla’, em que (embora o primeiro meio de interpretação seja o agente social) o segundo
meio de interpretação é o sistema especialista.” (Lash in: BECK, GIDDENS & LASH: 1997,142). A
hermenêutica tripla objetiva a superação do segundo meio de interpretação, quando o especialista
primeiro se torna apenas informação para um agente que, com as reflexividades em torno dessa
“informação” passa a ser o especialista, aquele que no setting configuracional específico pode ser o mais
adequado para satisfazer suas demandas.
132
- “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos
ambientes material e social em que vivemos hoje” (Giddens:1991, 35).
132
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colocar como usuário e defender (a maconha) contra alguém que falava mal, que eu
sabia que era mentira”. Qual a sua estratégia? Ele buscou configurar uma carreira
universitária construída com uma sólida representação de pesquisador, o que requer
doses de temperança que muitos colegas usuários talvez não disponham. E Pancho
parece obter, num primeiro momento, certo êxito entre os discentes, mas também entre
os próprios docentes, especialistas por excelência:
Pancho Villa - Por enquanto tem sido tudo perfeito. Só um professor de metodologia
que ficou resistente (ao seu projeto de pesquisa sobre o consumo de maconha). Outros
professores acharam ótimo. Inclusive alguns professores vistos como caretas, já me
disseram que tiveram vontade de experimentar. Levei agora a discussão pro CETAD
(Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas), e foi bastante bem aceito. Já me
chamaram pra fazer uma apresentação na escola de Belas Artes, onde existe um
conflito com os maconheiros. O pessoal de Biologia me chamou pra falar na semana de
Biologia. Falei no Fórum Social com o pessoal que trabalha em comunidade com
projetos de saúde. Apresentei a redução de danos. Uma senhora presente me disse que
nunca ouviu falar disso e que eu precisava falar sobre redução de danos nas escolas de
ensino médio, de segundo grau.
133
- A Marcha da Maconha 2008 acabou configurando uma polêmica diferente da que pretendeu levantar,
pois o ponto central da discussão foi deslocado para o direito democrático de trazer a público, temáticas
consideradas hereges e que alguns setores ortodoxos da sociedade preferem que fiquem longe da
reflexividade popular por acreditá-las explosivas demais.
133
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134
- nessa proposta rortyana, diferentemente da habermasiana, é preferível pensar em comunidades ao
invés de Comunidade.
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III – A ação
Apesar de já ter feito referência às resistências que encontrei em campo, talvez seja
interessante relatar que enquanto ainda a pesquisa não era de conhecimento público, a
minha aproximação inicial não foi tão difícil. Por ter sido acidental, foi até fácil. Entre
2003 e 2004 enquanto estava realizando a primeira parte da pesquisa, centrada no
consumo de professores, ministrei um curso intitulado Drogas em curso! no CETAD.
Este foi um curso dirigido para estudantes universitários onde 60% da turma foi
constituída por usuários, 20% por ex-usuários e 20% não se considerando usuários –
apesar destes fazerem uso social do álcool, não o consideravam como droga. O
diferencial entre os estudantes usuários e os ex-usuários é que os últimos foram usuários
problemáticos de droga lícita, o álcool etílico, – inclusive havendo envolvimento com
violência e prisões – ao passo que os usuários de droga ilícita – a maconha,
principalmente – que “estavam na ativa”, não eram usuários problemáticos, conseguiam
manejar bem seus vários papéis sociais sem deixar que o consumo lhes estigmatizasse.
No curso, a demanda desses últimos, além da busca por novas informações sobre o
consumo, era uma procura por ferramentas científicas que possibilitassem a construção
de uma via de representação para a categoria dos usuários menos impregnada por
valores estigmatizados/estigmatizantes. Boa parte do curso foi gasta com discussões
sobre possíveis representações que os reconhecessem como inseridos nas redes de
produção e consumo e não como excluídos. Merece destaque que dos dez participantes
sete pertenciam a área de ciências humanas, o que me fez pensar que esta realmente
seria uma área profícua para observação. Nesse momento em que possuí o status
temporário de professor, conheci alguns interlocutores que futuramente iriam participar
da segunda parte da pesquisa.
Algumas semanas depois de iniciado o curso, guiado por um estudante de graduação,
realizei uma aproximação junto a um grupo que estava frequentando “o mirante” de
FFCH, já citado pela estudante redutora de danos (pg.90). Havia oito pessoas reunidas,
cinco homens e três mulheres que não deveriam passar dos 25 anos. O guia me
apresentou como alguém que estava ministrando um curso sobre drogas135, mas que não
135
- Nesse momento ser apresentado como professor causou menos estranhamento entre os estudantes do
que posteriormente quando fui percebido por outros interlocutores como estudante pesquisador.
138
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era um curso com perfil proibicionista. Este último juízo de valor que creditou ao curso
uma representação antiproibicionista, garantiu que os presentes não me vissem como
um opositor aos valores do grupo. Como resultado, eles me olharam sem manifestar
maiores estranhamentos ou entusiasmos. Um deles me perguntou jocosamente: “e pode
fumar lá dentro?” Depois de alguns risos, quando eu disse que essa não era a proposta,
ele não manifestou maiores interesses sobre o curso, assim como os outros que
continuaram conversando. Após esclarecer qual era a proposta, e sem querer forçar a
aproximação num primeiro contato, entrei numa conversa que alguém puxou sobre
música. Um baseado estava aceso circulando de mão em mão e um outro estava sendo
confeccionado em meio a conversas paralelas. Três dos presentes não estavam fazendo
uso, mas isso não pareceu ser motivo de conflito ou constrangimento.
Um dos presentes fumou o baseado deitado numa rede armada entre dois coqueiros,
quando comentei sobre a coincidência dele estar com uma rede à mão num momento
como aquele. Meio que surpreso com minha observação, ele retornou: “não é
coincidência não, eu trago essa rede todo dia pra fumar um aqui!”. Como ninguém riu,
percebi que não era uma piada. Tal discurso soou relevante, já que pareceu se encaixar
na representação de que “a galera do mirante” não quer nada além de fumar maconha,
numa explícita entrega irrestrita ao princípio de prazer. Mas o comportamento
específico daquele usuário talvez não seja tão típico – apesar de servir como estereótipo
– pois demanda certa racionalidade instrumental: para montar a rede, o usuário teria que
transportá-la frequentemente – sendo que ele não possuía um veículo - quer dizer, para
configurar um setting “macunaímico”, este estudante demanda constantemente um set
afetivo-emocional motivado. Essa possibilidade me fez refletir: o que estes estudantes
estão fazendo não é apenas fumar maconha e se divertir, eles estão configurando um
setting de produção universitária como um setting de convivência, setting onde as
possibilidades de segurança se encontram interpenetradas com as possibilidades de
liberdade.
Bem, como cada setting tem suas configurações específicas, uma professora chamou
a atenção de que, na então Faculdade Jorge Amado, uma das mais respeitadas
faculdades particulares de Salvador, os valores e representações dos estudantes são bem
distintos destes citados acima. Um grupo de usuários de maconha que costumava se
reunir para fumar no estacionamento não foi tão tolerado e acabou sendo denunciado
pelos próprios colegas à diretoria que autorizou a entrada da polícia no campus para a
detenção dos infratores. Um deles chegou a ser indiciado como traficante. Além do
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136
- Índice Geral dos Cursos.
137
- na verdade, este pode ter sido um significativo lapso de linguagem, já que o apresentador
possivelmente quis dizer: não importa se é universitário.
140
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- tirar o dele = ganhar dinheiro.
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- digo isto porque geralmente o consumo de cocaína é cercado de maiores cuidados do que o de
maconha - mesmo a maconha pelo seu cheiro sendo mais facilmente identificável. Para consumi-la com
mais tranquilidade, os usuários se afastam do grupo maior. As diferenças de custo pesavam nesse ponto, e
se no caso da maconha geralmente me ofereciam, no caso da cocaína isso nunca ocorreu.
144
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outsiders passam por um rito de avaliação até serem aceitos no grupo, como nativos ou
como “convidados”.
A partir de então fui percebendo que conquistando a confiança dos líderes era uma
questão de tempo até que cada vez menos, minha presença entre as várias células
comunitárias que frequentei, deixasse de ser percebida como a presença de um outsider.
Vez por outra eu vacilava, e deixava que minha participação atrapalhasse a observação.
Certa ocasião, num dos bares freqüentados, percebi o flerte entre duas garotas dum
grupo de estudantes sentados em duas mesas contíguas, e fiz uma leitura que quase
causou minha expulsão do grupo; a de que se me mostrasse para algumas interlocutoras
como apto a ser confidente de suas intimidades, seria mais rapidamente aceito. Digo
isso porque no dia seguinte, na casa onde algumas delas moravam, achando que estava
sendo discreto o suficiente, perguntei a uma delas: “tá rolando um clima entre você e
aquela garota de ontem?”. Bem, nos segundos seguintes parece que a terceira guerra
mundial havia sido declarada, pelo menos ao redor de meus ouvidos, que foram
bombardeados com impropérios e desaforos os mais variados, indicando que eu não
devia me meter na vida dos outros. Em função desse incidente essas duas interlocutoras
se afastaram de mim e tive receio que outras se afastassem também. Mais uma vez, fui
lembrado de que não era tão nativo assim e se pretendia pelo menos ser tolerado,
deveria ter mais cuidado nas intervenções.
Desse momento em diante passei observar mais minha própria participação,
principalmente quando algum uso de drogas estava sendo feito pelo grupo. Certa
ocasião, num dos bares, numa mesa ao lado de onde eu estava sentado, dois estudantes
que não deviam ter mais que 21, 22 anos, bebiam separados dos grupos maiores –
geralmente havia vários segmentos da tribo distribuídos pelas mesas. Um dos dois
começou a passar mal e a vomitar na própria mesa. Os colegas ao redor, não deram
muita atenção e até riram do descontrolado bebedor, mas ninguém, nem mesmo seu
parceiro interveio – a exceção da dona do bar que tentou limpar a sujeira, porém o
sujeito vomitou mais uma vez. Pensei em intervir, mas já que seus colegas não pareciam
preocupados, não quis quebrar a egrégora do grupo, ainda mais lembrando que a
imagem do Redutor de Danos era vista de forma jocosa por muitos dos presentes. Ao
invés de intervir diretamente, apenas sugeri a pessoa mais próxima que se o fulano
vomitasse de novo, nós não aguentaríamos mais o cheiro. Depois de uma gargalhada, tal
pessoa pediu pra não servirem mais bebida ao colega, e assim foi. Nessa cena, o que
pareceu chamar mais a atenção do grupo não foi se o estudante bêbado carecia de ajuda,
145
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mas sim a especulação sobre o porquê daquele fulano ter sido levado a botar “as barbas
de molho”; foi porque misturou cachaça com cerveja, porque não comeu antes de beber
ou porque fumou maconha depois de beber. De fato, o grupo se mostrou mais
interessado em especular o porquê do problema do que em resolver o problema. O
consenso era de que ele não iria morrer por causa daquela bebedeira, e nisso o fulano
passou a meia hora seguinte prostrado na mesa, enquanto seu companheiro se mudou
para outro lugar menos fétido.
Para dificultar que eu, inconscientemente, interferisse mais do devia em certas
configurações comunitárias configuradas por interlocutores com os quais ainda estava
desenvolvendo afinidade, resolvi criar certo distanciamento me cercando por outros
interlocutores que eu conhecia. Em certa oportunidade fui acompanhado a uma rave,
por dois casais de amigos usuários de drogas140, mas não usuários da nova geração de
substâncias psicoativas sintéticas – ressalva esta que as mulheres dos casais fizeram
questão de salientar várias vezes. Ambos os casais estavam numa faixa etária acima dos
40 anos, e como eu, nunca haviam ido a uma festa de música eletrônica, e também
estavam com curiosidade de saber do que se tratava. A rave havia sido bem divulgada
na internet, e uma das interlocutoras da pesquisa me convidou para conhecer o ambiente
do qual ela tanto falava. Estando lá, também encontrei com um outro interlocutor, que
faria uma apresentação como DJ. Mesmo estando a maior parte do tempo na companhia
dos casais de amigos, pude observar como ambos os interlocutores reconhecidos se
relacionavam em seus grupos. Um destes exercia uma notória liderança sobre os seus
pares, principalmente por ostentar o posto de DJ, o que lhe conferia uma inequívoca
distinção. Os que passavam por perto faziam questão de saudá-lo, e muitos disseram
estar aguardando ansiosamente pelo seu set musical141. A outra interlocutora também
parecia exercer certa influência sobre as seis outras pessoas com as quais passou a maior
parte do tempo, porém de forma mais discreta, talvez de modo não muito perceptível
por quem não estivesse demasiado atento, mas bastava que ela emitisse uma olhada por
sobre os óculos, para que o tom da conversação mudasse do sério para o cômico, e as
outras iam atrás – soube posteriormente, serem todas universitárias das áreas de
Humanas e de Letras. Entre as sete, ela era quem mais se relacionava com pessoas de
fora desse pequeno subgrupo.
140
- uma delas era estudante de pós-graduação.
141
- um determinado período de tempo da festa no qual o DJ mostra seu serviço, em meio a vários outros
DJs que se revezam.
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vibrações, qual não foi minha surpresa ao encontrar entre os que pareciam perdidos
entre as tribos, um rosto de uma pessoa mais velha que a maioria dos presentes – o que
por si só já chamava a atenção –, um rosto de uma pessoa que eu conhecia e que era o
rosto de uma professora do meu departamento, professora que não tinha uma imagem
associada ao consumo de drogas ou à pesquisas na área. Mais rápida do que eu pudesse
imaginar, essa professora quando me viu, foi logo justificando que estava ali por pura
curiosidade, já que não conhecia aquele tipo de ambiente. “Claro, eu também!” -
respondi, percebendo seu constrangimento, já que ela sabia que eu pesquisava
estudantes e professores usuários de drogas.
No dia seguinte acordei com o telefone tocando. Era o meu amigo que havia
adquirido um ácido na rave, ligando para se queixar de que o ácido era de má qualidade:
“Tá vendo aí, o boqueiro142 daqui vende cocaína malhada e o playboyzinho gringo,
mesmo quando é estudante, vem de lá e vende ácido frio. Tem que descriminalizar pra
acabar com essa safadeza de não poder confiar em ninguém!”.
E se para uns, a confiança no outro é um valor quase ausente numa festa que pode
ser chamada de hedonista, numa festa de casamento onde se supõe a atmosfera oposta
ao hedonismo, as relações de confiança podem ganhar contornos no mínimo, incomuns.
Numa festa matrimonial que aconteceu numa imensa chácara afastada da cidade, com
muitos ambientes diferenciados, onde estavam reunidos entre os convidados, cinco
professores e sete estudantes - nove destes da área de humanas - foi possível perceber
como funcionam as lideranças e as redes de articulação para operar o descontrole
controlado no consumo de álcool, maconha e cocaína, de fato, configurando três
settings distintos. Em um desses settings, um casal de professores que até então não se
conhecia – sendo que o representante do gênero masculino era assumidamente
homossexual, inclusive tendo ido ao evento acompanhado do seu esposo –, começou a
conversar animadamente entre doses generosas de uísque. Alguns copos depois, a
conversa pareceu esquentar na pista de dança, chamando a atenção de alguns presentes.
A professora, que era estrangeira, - outsider ao meio, mas não aos consumos - foi
informada por um dos presentes, que o seu parceiro de dança era gay. De imediato, sua
reação talvez tenha passado despercebida, pois pode ter sido confundida com algum
passo de dança mais exótico, mas um observador mais atento pôde ter percebido que
ela, enquanto girava o corpo ao ritmo da música dizia por entre os dentes: “você é gay!
142
- boqueiro = pequeno traficante de drogas.
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você é gay!”, desferindo alguns socos “suaves” no peito do seu parceiro. Nisso, o
esposo oficial do professor – seu orientando -, partiu na direção da professora
resmungando quase discretamente para mim: “vou furar os olhos dela!”. Felizmente ele
se contentou em arrastar pela mão seu companheiro para um canto da pista de dança,
onde por alguns instantes trocaram palavras mais ríspidas. O comentário entre alguns
que conheciam o casal, tido como extremamente fiel, e, especificamente, sobre o
sedutor em questão, este tido como um homossexual convicto, foi : “o que o álcool não
faz!” A mística do álcool prevaleceu na representação sustentada pela maioria dos
presentes, inclusive de alguns estudantes, mas será esta a única interpretação que pode
ganhar status de representação em torno da situação específica? Ainda no calor da festa,
perguntado sobre o episódio, o professor respondeu sorrindo enquanto dirigia-se para o
carro: “é que eu sou flexível!”....
Se alguns presentes creditaram o comportamento inesperado do professor ao
consumo de uísque – para alguns, foi difícil aceitar que um homossexual pudesse ter um
flerte com uma heterossexual, mas se o flerte fosse deflagrado pelo consumo de álcool,
o estranhamento estaria reduzido -, o próprio professor, creditou seu comportamento à
sua própria flexibilidade143 em relação a suas escolhas e não ao seu consumo144de
álcool. Numa análise configuracional do ocorrido, o consumo de álcool e a flexibilidade
do professor – flexibilidade que pode ser traduzida aqui como suas expectativas e
predisposições naquela específica configuração de setting -, não surtiram efeitos em
separado, pelo contrário. Mas a representação que ficou registrada pela maioria dos
olhos presentes como comentário jocoso noite adentro foi que a bebida faz até “veado
virar macho!”.
Como a festa ainda estava no começo, posteriormente foi proveitoso perceber o
movimento para o consumo de cocaína e maconha. Se havia muitos convidados não
usuários - notoriamente estes eram os membros das famílias dos noivos que no geral só
consumiam álcool – em nenhum momento percebi um movimento de consumo que
transgredisse as normas da convivência pacífica entre as tribos de usuários e de não
usuários. Entre os que consumiram cocaína, houve uma ou duas tentativas discretas de
143
- soa relevante sua feliz escolha de palavras a respeito do ser “flexível”, o que demonstra no mínimo
seu senso de humor, pois na época do ocorrido, estava sendo uma piada dizer que uma pessoa com
comportamento bissexual, é alguém com motor “flex”.
144
- e se muitos dos presentes soubessem que naquele evento o professor também fumou maconha, talvez
especulassem, como no caso do estudante bêbado no anexo, se o que o levou a “perder os freios” foi a
combinação de maconha com álcool, e mesmo a ordem em que foi efetuado o consumo.
149
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fazer uma “vaquinha145” - num total de seis pessoas, dos quais dois eram estudantes e
uma professora - para juntar dinheiro para a aquisição. Sem que “os caretas”
percebessem, a conversação aconteceu no salão de jogos, mas metade dos evocados se
recusou a contribuir alegando falta de dinheiro. O restante do grupo então elegeu duas
pessoas para saírem no transcorrer da festa e realizarem a compra. Nesse meio tempo
foi possível perceber a ansiedade entre os que ficaram esperando, mesmo dançando ou
jogando sinuca e sempre bebendo, a toda hora alguém perguntava: cadê? E quando
finalmente os “aviões146” chegaram das compras, houve, por parte dos que esperavam
sem ter contribuído, uma dissimulação da ansiedade, traduzida em: “oh, vocês já
chegaram! Foi rápido!”. Em contrapartida, por parte de quem contribuiu com dinheiro,
houve uma manifestação explícita da ansiedade expressa no: “porra, que demora!”.
Discretamente, os seis foram se retirando para um quarto no andar superior onde se
realizou a partilha. Chegando lá, os que se recusaram a contribuir se aproximaram
pedindo uma “presença” aos que contribuíram e foi notório o incomodo dos que
contribuíram com os “queixões147”. Esses últimos acabaram sendo parcialmente
satisfeitos, possivelmente para não continuarem “queixando”, mas mesmo assim
posteriormente foram atrás de quem tinha, dessa vez sendo negados em suas demandas.
Talvez por isso e pelo temor que mais convidados aparecessem para a partilha, pôde-se
perceber certa urgência entre os usuários contribuintes para retornar ao centro da festa,
ou pelo menos para não permanecerem juntos no mesmo setting de consumo por muito
tempo.
Já entre os fumantes de maconha, a reunião de usuários num dos jardins não foi nada
problemática, pois estes estavam afastados o bastante do centro da festa para que o
cheiro não incomodasse, inclusive sendo respeitados pelos seguranças armados que
perceberam toda a movimentação. Na rodada que pude observar, entre os oito presentes,
dois eram professores e três eram estudantes. As trocas comunicacionais entre estes
fumantes foram amistosas e acompanhadas de risos e piadas sobre os aspectos
filosóficos do casamento e do próprio fato de se sentirem seguros com a presença dos
seguranças armados, e não o contrário. Um dos fumantes também havia tomado um
quarto de ácido lisérgico pra se “preparar pra uma rave que iria acontecer na
madrugada”. Dois baseados foram consumidos e depois o grupo voltou para a pista de
145
- vaquinha = juntar dinheiro entre alguns para comprar drogas.
146
- aviões = aqueles que vão realizar a compra das drogas.
147
- queixões = aqueles que não contribuem com o dinheiro ou contribuíram de forma desproporcional ao
que querem consumir.
150
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dança, antes passando pelo bar para recarregar os copos. Depois se dividiram em dois
grupos, dançando e conversando animadamente pela meia-hora seguinte.
Assim, nessa festa de casamento pude registrar como comunidades de usuários se
organizam em função dos seus consumos, e nos três pólos de consumo observados o
único que em algum momento foi percebido pelos convidados não usuários, e percebido
como um momento de descontrole foi o ligado ao álcool e a sexualidade. O uso de
maconha e cocaína não gerou danos sociais.
Mas se festas de casamento não são tão frequentes no meio investigado, não se pode
dizer o mesmo em relação a eventos culturais de grande porte, como shows e
espetáculos. Esses settings de forma geral mais informais favorecem diferentes
configurações relacionais inter e intragrupais em torno do consumo de drogas. Nesse
recorte, merece registro que um show da Nação Zumbi na Concha Acústica do Teatro
Castro Alves foi uma boa oportunidade para observar alguns interlocutores, afinal a
Nação Zumbi é uma das bandas com maior aceitação entre o público universitário local.
A Concha Acústica, por ser um espaço para eventos a céu aberto, acaba sendo um
setting que favorece o consumo de maconha com mais segurança do que em locais
fechados148, pois a origem do cheiro é mais dificilmente localizável pelos agentes de
segurança. Depois que as luzes se apagam e o espetáculo começa, geralmente em
shows de rock como este, é possível sentir o cheiro de baseados acessos em meio a
platéia, que mesmo não sendo constituída em sua maioria por pessoas que ali façam uso
de drogas, acaba sendo tolerante – eu particularmente nunca vi problemas acontecerem
com usuários que fumam maconha na Concha, e venho frequentando-a por mais de
vinte anos. Contudo, já ouvi falar, até por parte de uma das interlocutoras, que alguns
usuários já tiveram problemas com a polícia por consumir nesse espaço.
A par dessa informação, alguns professores usuários presentes que têm uma imagem
pública “por preservar” – e de acordo com estes, exatamente por isso têm mais a perder
do que quando eram “meros estudantes” -, se cercaram por alguns mecanismos de
segurança que se fizeram necessários para lhes manter a privacidade. Para estes, a
liberdade de consumo só ganha sentido se devidamente cercada por segurança, e não em
148
- e como nem todo estudante universitário possui condições financeiras para pagar R$ 30.00 ou
R$40.00 para assistir um show, a Concha Acústica é um setting referencial por cobrar valores às vezes
abaixo desse patamar. Recordo que, a gravadora Trama, em seu projeto “Trama Universitário”, fez uma
promoção especial para universitários em shows de seus artistas no período 2004/2007, e em 2006, a
Nação Zumbi ao lado do Cordel do Fogo Encantado, foram entre as bandas do elenco, as que tiveram
maior penetração entre o público universitário local, e nesse público, pude perceber muito mais consumo
de maconha que nas platéias de outros shows no mesmo local.
151
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oposição a esta. Assim, tais professores que estavam acompanhados por alguns alunos,
quando estes últimos sugeriram “fumar um”, foram os primeiros em meio ao
entusiasmo da proposta, a colocar algumas condições para irem juntos. Um deles
sugeriu esperar apagarem as luzes sobre a arquibancada, mas o outro professor ainda
achou pouco, e perguntou se alguém estava vendo onde estavam os policiais. Depois de
ser informado de que os policiais estavam longe, ele ainda se incomodou com a
possibilidade de que, estando em meio a tantos alunos fumantes e não fumantes, um
desses últimos o visse em meio aos fumantes, e decidiu não fumar por receio de ser
reconhecido.
O grupo – formado por quatro estudantes -, achou graça da questão, mas respeitou e
se dividiu em dois subgrupos com outras pessoas, em um dos quais estava o professor
decidido a fumar, além de quatro estudantes e dois amigos usuários; o outro subgrupo
que ficou fazendo companhia ao professor cauteloso era constituído por uma estudante e
dois amigos, deixando decidido que iriam fumar depois, no decorrer do show. O
primeiro subgrupo teceu seus mecanismos de segurança; se dirigiu para o lado da
Concha Acústica oposto à escada que leva ao acesso de entrada, onde o movimento é
bem menor – principalmente da polícia - e onde outros usuários geralmente se reúnem
para fumar, ficando assim diluídos em meio a muitos fumantes. Essa estratégia visou
favorecer em pleno show, uma perspectiva na qual eles poderiam observar quem se
aproximasse sem serem facilmente observados, exceto, pelos outros usuários ao redor.
“aqui nesse canto, nos degraus intermediários - explica um dos estudantes - fica difícil a
polícia chegar sem ser vista antes”. Desse modo, o sistema panóptico de segurança
estava anulado.
Configurando assim seus controles informais, o grupo ficou a vontade durante e
depois de fumar, sem se preocupar muito com os olhares que alguns curiosos dirigiram
em sua direção, só parecendo haver algum desconforto quando duas pessoas
desconhecidas se aproximaram pedindo permissão para fumar. Não que tenham sido
mal recebidos ou que o grupo não parecesse disposto a estabelecer relações de trocas
com estranhos, mas estes chegaram fazendo algum barulho, comentando em voz alta
que o cheiro do fumo era muito bom e coisas do gênero, comentários aos quais os
integrantes do grupo original, preferiram não dar muita consideração, possivelmente
para não chamar mais a atenção de outros possíveis fumantes presentes entre os
espectadores. Contudo, não houve como negarem que mais três pessoas se juntassem a
rodinha, pois estas eram as que ficaram lá em cima, e que desceram para sentir mais de
152
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perto o calor do show, com a exceção do professor. Duas músicas e um baseado depois,
com um copo de cerveja na mão e outros já consumidos, não é que o professor mais
cauteloso aparece perguntando se sobrou “alguma coisa”, ao que todos riem e entre
estes, alguém responde: “é claro! Só tava faltando você para acender!”.
Em algum momento, ao me distanciar fisicamente do grupo de usuários
imediatamente próximo para criar alguma familiaridade com o grupo maior presente ao
show, percebi que o restante da platéia não parecia estar muito preocupado com
situações como esta com a qual se preocupavam meus interlocutores. Na prática e sem
maiores planejamentos, estes últimos acabaram configurando uma ZAT – Zona
Autônoma Temporária (Bey, 2001149) -, onde havia um acordo tácito para consumir o
descontrole controlado. Com a arquibancada cheia, durante os noventa minutos de show
pude contabilizar doze baseados sendo consumidos aqui e ali. Entre os muitos rostos
presentes, - dos quais não sei e talvez nunca venha saber os nomes correspondentes -
vários deles eu já havia podido registrar em um ou outro evento, muitos deles em
corredores e pátios universitários.
Também merece registro que, quando essa zona autônoma temporária não é
configurada, as estratégias de redução de riscos adquirem contornos mais ousados. Num
show do Cordel do Fogo Encantado, um casal de estudantes que estava de posse de
cocaína não quis correr o risco de ser flagrado consumindo no banheiro. Então foi
resolvido que a melhor maneira seria diluir o pó em água destilada e com um pequeno
conta-gotas administrar a substância no nariz como se fosse algum medicamento
descongestionante...
Participando e observando estes settings de consumo abertos – barzinho, rave,
casamento e shows de rock - pude registrar os controles elaborados pelas comunidades
de usuários. Sendo estes settings zonas autônomas temporárias ou não, a maioria dos
usuários se colocou não mais como pessoas que devem se esconder por receio de serem
representadas como desviantes, mas como pessoas que são parte de comunidades com
características específicas, seja usando um descongestionante nasal tranquilamente em
meio a massa de estranhos como um portador de uma prescrição médica o faria sem
receio de chamar a atenção ou seja fumando em meio à multidão como meros
149
- a zona autônoma temporária remete a configurações efêmeras onde por um período curto de tempo se
estabelecem regras e controles que só dizem respeito para os que se encontram nos limites internos da
zona. Não é um cancelamento dos valores dominantes, mas sua suspensão ou pelo menos sua
relativização. A idéia central de Bey é combater as relações de poder em sua forma dominante,
configurando espaços de liberdade que surjam e desapareçam.
153
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Interpretado o ponto de vista da maioria dos interlocutores, seria mais preciso falar
em habitus sociais ao invés de vícios ou mesmo dependência para descrever seus
comportamentos em torno do consumo de drogas150. Hábitos porque se 41% desses
interlocutores consomem maconha diariamente e outros 50% consomem maconha e
álcool semanalmente, estamos nos referindo a um consumo habitual e não ocasional que
acontece uma vez por mês ou mesmo por ano. Por outro lado, apenas 5% desses
interlocutores relacionam de modo sistemático sua produção e atuação em papéis
cotidianos com o consumo de drogas, daí seria pouco preciso falar em “vício”. Nesse
enquadre é possível cogitar que o consumo de drogas enquanto reincidência habitual de
um comportamento que põe em risco os interlocutores só vem a obter sentido se for
possível ser representado como um processo no qual as drogas enquanto objetos de
consumo são reencantadas, se acrescentando às suas propriedades químicas, memórias
afetivas positivas. Nas palavras dos próprios interlocutores é perceptível que há ligações
miméticas no momento de consumo, resgatando sentidos que foram atuantes em
alguma circunstância do passado:
Mozart - Pra mim droga sempre teve no meio de descobertas. Ninguém sente o que
sentiu a primeira vez (cantarolando): “a primeira vezzzz!/tudo começou/ a primeira
vezzz!” (Risos).
O sentido desse cantarolar pode ser interpretado como: ninguém sente o que sentiu a
primeira vez, mas continua tentando sentir. A repetição de um comportamento em busca
de uma representação mimeticamente carregada de sentido pode até ser interpretada
psicanalítica ou filosoficamente como uma busca por resgate do estado primordial ou do
eterno retorno ao ponto de partida. Mas Mozart ao transformar o axioma em música – o
que neste texto quer dizer poesia – já demonstra estar dando algum sentido no mínimo
momentaneamente prazeroso à sua busca. Já as palavras de Marley e de Hofmann
150
- não é apenas no senso comum que a representação do “viciado” é dominante em detrimento da
representação do usuário. Na base metodológica de muitas pesquisas, o uso na vida acaba sendo
interpretado como se usar drogas uma vez, indicasse que o usuário se tornou dependente, quando não
“viciado”.
155
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Hofmann - Quando viajei a Amsterdã, tive acesso a LSD, êxtase, depois eu voltei pra
cá interessado em ter outras experiências com essas coisas. Eu tinha 22 anos. Eu fui a
Amsterdã com a intenção de conhecer essas coisas. Quando eu voltei pra cá foi uma
decepção atrás da outra, eu nunca mais encontrei o que eu encontrei lá.
156
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Pancho Villa - O efeito que eu busco é o mais próximo do enteógeno que dá uma
ligação com um determinado estado de pensamento. Eu considero a cannabis sagrada,
embora eu não busque uma entidade e tal. Eu uso a cannabis porque ela me faz bem,
eu sei que ela me causa alguns problemas, mas eu vejo como uma espécie de missão,
fazer alguma coisa por ela, porque ela já me deu muitas instruções. Ela já me disse
muito o que é que eu sou, o que é que eu quero, o que eu preciso pra viver, o que
preciso pra ser feliz. Não são respostas dadas diretamente por ela, mas na experiência
com ela, na relação.
T.V. - Sua gata se chama Kaya151, você tem alguma relação mística com a
maconha?
Cleópatra - Eu acredito que (a maconha) seja sagrada, eu não tenho muito
conhecimento do rastafarianismo, apesar de usar dreads152. Tenho uma crença de que
muitas plantas são sagradas, plantas de poder, e eu não tenho nenhuma relação
religiosa com a maconha, mas eu acredito que cada momento que eu fumo seja um
contato com o divino, com o natural, com o que há de puro... porque a maconha existia
muito antes que existissem a leis, os preconceitos, surgiu com o mundo.
T.V. - Você está tentando desenvolver uma colônia de cogumelos (esporos de fungos
comprados num site), isso é só curiosidade ou você faz alguma busca transcendental?
Buda - Isso pra mim é sagrado, é estar no profundo da minha alma, do meu ser, da
minha consciência, da minha inconsciência, porque eu sinto que essas substâncias
mexem profundamente com a minha história.
151
- kaya significa maconha, inclusive sendo título de um álbum de Bob Marley.
152
- por sua vez dreads significa cabelos trançados.
157
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Um dos aspectos que aqui pode ser levantado é que os interlocutores salientam suas
necessidades de uma visão de mundo transcendente, porém, sem vinculação com
dogmatizações estabelecidamente institucionalizadas. Cada um busca configurar uma
interpretação que reencanta tanto a maconha quanto os cogumelos, tratando-os como
entidades – embora Pancho o negue - com as quais podem entrar em relação direta.
Uma outra questão passível de leitura é que estas falas indicam que seus sujeitos
correspondentes não são pessoas niilistas, distantes de valores socialmente construtivos.
Pelo contrário, os três mostram manter vínculos com o discurso ecológico de resgate do
encantamento com a Natureza, como no movimento contracultural dos anos 60/70. A
fala de Rimbaud a seguir exemplifica a incorporação de alguns referenciais da
contracultura reflexivamente ressignificados pelo seu repertório de valores:
Para tentar “destruir o que é mitológico sobre a onda”, Rimbaud perpetua uma
retroalimentação entre drogas e cultura; consome personagens consagrados no que se
refere à cultura das drogas: Baudaleire, Huxley, Leary e a banda The Doors, consumo
que por sua vez o motiva a consumir substâncias psicoativas variadas, substâncias que
o remetem aos mitos construídos em torno das obras artísticas consumidas. Nesse
processo cíclico não estaria ele buscando configurar um novo encantamento para
objetos de consumo culturalmente superestimados? A superestimação de um bem
cultural ao lhe possibilitar infinitas representações adequadas a distintas configurações,
desconstrói um valor absoluto abrindo espaço para novas significações e é nessa esteira
que parece seguir a reflexão de Rimbaud. Outros interlocutores, quando as
configurações de consumo em relação a um objeto passam a ter seus sentidos
158
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Blavatsky passou a interpretar que seu campo de lazer onde havia consumo de
maconha já não proporcionava mais satisfação e sim negatividade. Desse modo,
começou a tentar reconfigurar seu set de acordo com o setting comunitário que estava
começando a conhecer, desconstruindo uma carreira na comunidade de maconheiros
para construir uma carreira que trazia novos sentidos, novos significados para sua busca
de satisfação. Já um estudante de filosofia optou por interpretar as demandas religiosas
como contingências sociais associadas à cultura:
159
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Mata Hari - Minha família é católica, eu frequentava a igreja. Hoje em dia eu não
sou cética, eu não gosto de nenhuma religião, eu gosto é de trabalhar a espiritualidade.
160
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Eu sou curiosa, outro dia eu fui pela primeira vez numa sessão de Daime com o pessoal
do Balance, já convivo com eles há três anos e eu me senti a vontade pra ir a um ritual
aliado a uma substância psicoativa. Eu tinha curiosidade, mas, tinha medo e não sabia
se eu ia me adaptar a aquele ritual, mas eu gostei.
Se “o conflito não é por ser usuária, nessa coisa cristã, o conflito é com o prazer”, o
ponto central em questão já não está em torno da transgressão ou do desvio através do
consumo de drogas, está sim nos descontroles que podem acompanhar este consumo.
Assumir que no seu ponto de vista “O que é bom da vida passa pela questão da
sexualidade, da comida, do uso psicoativo de drogas” não leva Salomé a sentir-se
culpada, leva-a a refletir sobre a compatibilidade entre seus valores atuais com os
sustentados em seu passado de estudante CDF adversa a descontroles. A redução das
culpas em relação aos seus hábitos de consumo faz com que Salomé atualmente se
permita alguns descontroles no cotidiano, por exemplo, ela acha que está acima do peso,
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mas do prazer de comer ela não abre mão. Uma outra interlocutora que também não se
prende a sentimentos de culpa, encara com naturalidade buscar mecanismos de
transcendência por menos ortodoxos que parecam ser em seu conjunto. Ela busca a
segurança que as instituições mantenedoras tradicionais não puderam suprir e a
liberdade que a juventude demanda configurar:
Essa busca por algo mais desde os 12 anos de idade, sozinha, já demonstra uma
predisposição do set psíquico de Blavatsky na busca por encantamento. Chama a
atenção sua falta de preconceitos ou de receio de entrar em conflitos com as
representações dominantes em sua família. Este esvaziamento de sentido no catolicismo
não é “privilegio” do set dos interlocutores, estando presente sob uma baixa
reflexividade no set e no setting familiar:
Lampião - Meus pais são católicos, minha mãe é kardecista também, e meu pai era
de Umbanda. Essa coisa ecumênica acaba me deixando solto demais, pois eu ando em
muitos ambientes carregados de energia. No HGE mesmo, na sutura, chega gente
baleada de tiro...a religião dá um suporte pra você não se apertar tanto com as
energias externas.
162
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comunidade, quando posto em contato com a cultura das drogas, se tornou muito mais
uma camisa de força do que um suporte na equação entre busca de segurança e de
liberdade:
Leila Diniz - Eu vim de uma família que é uma família católica, do interior, e minha
família tem uma atitude superagressiva em relação a consumo de qualquer tipo de
drogas, é um discurso panfletário, eu tive sérios problemas com isso.
T. V. - Que tipo de problemas?
Leila Diniz - Eu entrei na faculdade e comecei a perceber que o consumo da
maconha não era aquele discurso que tanto tempo minha família tinha articulado e fui
flexibilizando mais, assumindo que existe formas de você usar que não agride tanto seu
organismo. Comecei a comprar mais, a fumar todos os dias, começou a ter um papel
terapêutico na minha vida, chegava em casa estressada, fumava um beck153... (o efeito
era) instantâneo. E eu não podia fumar em casa. Me mudei pra casa de uma amiga e
conversei com minha mãe que estava fumando maconha, que era o oposto daquilo que
eles pensam. Aí eles me internaram numa clínica.
Minha mãe que tem transtorno bipolar, toma remédio, ficou meio descontrolada,
subiu com dois enfermeiros e pra evitar confusão na casa de minha amiga eu fui pra
clínica, pra conversar. Cheguei lá, conversei com um psiquiatra que fez uma breve
entrevista. Eu disse que quando tou estudando eu não fumo, agora eu tou de férias e tou
fumando. Ele apertou um botãozinho debaixo da mesa e me levaram. Na hora foi
aquele escândalo da porra, eu briguei de chute, de tapa, depois um terceiro me aplicou
uma injeção, e o enfermeiro falou: “cê acha que ta aonde? Aqui a história é outra!”
Me aplicaram a injeção e eu dormi amarrada. Fiquei amarrada no primeiro dia. Eu
tinha 20 anos. Fiquei uma semana, era um lugar cheio de idosos, supercaro, minha
família não tinha condição, mas pra eles era um investimento. Lá dentro não podia ler,
só as coisas de lá, coisas ridículas. Nem televisão podia, porque eles consideravam
qualquer influência externa como subversiva. Cigarro podia, a clínica já tem o seu
estoque, nem precisa pedir a família – e foi aí que eu comecei a fumar tabaco, fumei um
maço e meio por dia.
T. V. - Você diria que a proposta seria trocar uma droga lícita por outra lícita?
153
- beck = cigarro de maconha.
163
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Leila Diniz - É! (risos), exatamente... depois do terceiro dia comecei a perceber como
funcionava, tinha que ficar amiga de todos pra ter regalias como pedir duas carteiras
de cigarro por dia, quando o certo é uma só, inclusive a maioria das pessoas
internadas são fumantes, fumam sempre.
T. V. - Ao sair de lá como você se sentiu em relação às drogas?
Leila Diniz - Eu já tinha usado ácido uma vez só, e depois da clínica eu comecei a
usar muito mais. Eu saí e de imediato comecei a usar. Passei uns dias em casa e fui
morar com amigos meus. Nesse meio tempo eu me reconciliei com minha família, nós
conversamos, mas falei que não rolava mais da gente morar junto porque foi uma
reação muito forte, eu quis viver de outra forma.
T. V. - Você se sente uma pessoa religiosa?
Leila Diniz - Sim, eu frequento o Daime, frequento o Candomblé, eu só não
estabeleço um vínculo mais afetivo.
Começando pela questão religiosa, é possível constatar como uma pessoa de origem
familiar católica faz a sua escolha pessoal enveredando pelo Daime e pelo Candomblé,
mas sem querer estabelecer “um vínculo mais afetivo”. O que isso pode indicar? Pode
indicar que Leila busca algum laço social com algumas comunidades, mas até em
consequência de suas experiências familiares, não o quer muito apertado para que não
se transforme num nó. Ela quer segurança coletiva, mas quer também a satisfação de
poder obtê-la com liberdade.
Por outro lado, inevitavelmente o foco no relato de Leila pode ser posto na via-crúcis
pouco religiosa pela qual passou. Primeiramente sendo internada à força, enquanto em
seu ponto de vista, era sua mãe bipolar que carecia de maiores cuidados. Depois, foi
submetida a procedimentos terapêuticos de controle com potencial muito mais
desestruturante do que estruturante; administraram-lhe uma droga sem seu
consentimento, teve que dormir amarrada, foi isolada e privada de contato com seus
pares, e ainda acabou estimulada a consumir tabaco descontroladamente como
mecanismo de reinserção social na comunidade de internos: “Cigarro podia, a clínica já
tem o seu estoque, nem precisa pedir a família – e foi aí que eu comecei a fumar tabaco,
fumei um maço e meio por dia”.
Todos esses mecanismos de controle coercitivos como humilhações e
constrangimentos configuraram um processo ao qual Leila, uma estudante universitária
aos 20 anos ao ser submetida, foi lançada numa autêntica ampliação de danos a saúde
164
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mental, moral e física154. O ponto crítico desse processo foi ela ter sido levada a
“deixar” de fumar um baseado por dia para em troca fumar um maço e meio de tabaco.
Tudo isso em nome da sua saúde. O efeito colateral dessa internação violenta foi que ao
retornar da confinamento, Leila num processo de compensação “descompensante”
passou um período consumindo descontroladamente. Mas quanto à sua religiosidade,
Leila não perdeu sua fé, posteriormente apenas tornou-se mais eletiva quanto à
configuração dos seus vínculos comunitários. A partir de então ela já não precisa aceitar
os vínculos que são adequados a sua família, ela procura afinidades na cultura do
Candomblé, na cultura do Daime. Essa última cultura inclusive, é uma das mais eleitas
pelos interlocutores com atração por substâncias psicoativas:
154
- quem quiser entrar na esfera mimética de uma experiência similar deve assistir ao filme Bicho de sete
cabeças (Bodanzky, 2000).
165
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(a mãe) vive assim em paz. Ela foi lá conheceu, viu que é uma doutrina que segue o
cristianismo.
Leila Diniz - Numa festa rave eu não aceito bebida, porque muita gente às vezes
coloca ácido como cortesia, e isso não é uma ofensa, é uma troca. Eu tenho observado
isso.
Em casos de comunidades não tradicionais como esta citada acima, quando a dádiva
em forma de bebida não circula plenamente entre os participantes não acarreta
necessariamente uma desagregação do coletivo, apenas reajustes na sua dinâmica, pois
possivelmente outra pessoa fará a circulação daquela bebida desenhar um novo curso.
Oscar que acampou uma semana no Festival Universo Paralelo descreve sua
experiência:
Oscar Wilde - Levei umas 50 gramas, mas provavelmente eu não consumi tudo
porque eu compartilhei com muita gente, sempre tinha um beck de alguém, essa energia
155
- é emblemático lembrar aqui das Fraternidades das grandes universidades estadunidenses, em tese,
um espaço de exercício de convivência fraterna.
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Mata Hari - Hoje eu faço uso até mais frequente de maconha porque durante uma
época da minha vida eu ficava com medo de falar que fumava maconha, numa
paranóia, numa ansiedade muito grande, quando eu misturava com álcool então... eu
evitava consumir em grande quantidade. Eu fui aprendendo a controlar a substância,
hoje eu convivo com pessoas que fumam sempre, a maioria dos meus amigos fumam e
fumam diariamente. Eu não gosto de misturar com trabalho, por exemplo, eu vou
trabalhar agora, eu jamais fumaria por que aí atrapalha minha concentração. Mas se
eu tou no meu happy hour, ou vou assistir um filme na casa de alguém, eu fumo.
T. V. - quando você começou sua carreira de usuária você sentia ansiedade e
paranóia quando fumava, e depois aprendeu a lidar com a situação. O que lhe levou a
insistir numa situação que era desagradável?
Mata Hari - Isso acontecia com frequência, mas não acontecia todas às vezes, só em
momentos particulares, então eu passei a identificar o que me colocava naquela
situação. Então por exemplo: não fumar com pessoas que eu não conhecesse bem ou
não me sentisse a vontade, não fumar demais, exageradamente, saber a hora de parar,
não insistir depois que já dei alguns tragos e os efeitos já tão começando.
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Essa fala de Mata fornece boas pistas sobre os controles informais que ela aprendeu
a utilizar como mecanismos de redução de riscos e danos. Se no começo de sua carreira
como fumante de maconha os efeitos de ansiedade e paranóia estiveram presentes, é
possível interpretar que ela teve motivos que compensaram continuar fumando. Como
esses efeitos negativos não aconteciam sempre, mas com frequência, é possível supor
que às vezes em que não aconteciam, fumar maconha foi bom o suficiente para
compensar as outras vezes em que os efeitos negativos apareceram. Essa é uma situação
de risco e ao aceitar a opção de seguir em frente, Mata precisou refletir sobre os
ingredientes que configuravam o cenário, decompondo o seu setting e o seu set: “eu
passei a identificar o que me colocava naquela situação [...] não fumar com pessoas que
eu não conhecesse bem ou não me sentisse a vontade, não fumar demais,
exageradamente, saber a hora de parar”. Como que exemplificando as reflexões de
Becker sobre a construção da carreira de maconheiro (Outsiders,2008), Mata não
demonizou a substâncias pelos efeitos indesejados, aprendeu a evitá-los, identificando
os controles sociais que interagiam diretamente com os efeitos químicos da substância
psicoativa. Outro interlocutor que exemplifica como encarou seus medos foi
Tutancamon:
Essas falas de Mata e Tutancamon, são falas de dois estudantes de medicina e talvez
por força da profissão, parecem mais interessados em investigar os próprios medos. Não
por acaso quatro dos sete estudantes de medicina aqui elencados fazem psicoterapia,
configurando 18% do universo total.
168
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Pasolini - Eu trabalho muito, mas resolvi não conversar muito com minha
psicanalista porque ela tem a posição dela, tem a tendência a falar que a diferença
entre análise e psiquiatria é que análise é natural e que psiquiatria é artificial. Como
ela confia no taco dela demais (risos), e acha que ela resolve e tem o domínio, então eu
respeito (risos).
Oscar Wilde - Meu terapeuta era protestante e eu percebia que ele ficava chocado
quando eu falava sobre a erva...
Buda - Eu tou esperando chegar o vaporizer156 pra dizer oficialmente que a erva que
eu fumo é medicinal (risos). Você não queima nem a garganta. Redução de danos total!
Um cara colocou num artigo que quando você queima, 111 substâncias são liberadas,
dessas tem várias que são policarbonos, que são consideradas cancerígenos, e no
Volcano, ele detectou 4 substâncias. A erva queima a 170 graus, no vaporizer você
eleva apenas a 150.
Oscar Wilde - Depois de muitos anos usando (maconha) eu lido com a substância
muito bem e não interfere muito. Eu consigo trabalhar, estudar, escrever ou dirigir ou
trepar. Outras substâncias exigem contextos mais adequados. O que não quer dizer
156
- vaporizer é um aparelho eletrônico – mais conhecido pela etiqueta Volcano - que permite administrar
a maconha numa temperatura controlada de modo que a erva não queima, apenas aquece ao ponto de não
liberar as propriedades mais tóxicas (como alcatrão) e sim as mais psicoativas (como o THC). Geralmente
importado dos EUA ou da Europa, seu custo está em torno de US$ 500.
169
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também que a maconha é adequada pra todas as situações. Eu evito atividades que
exigem maior concentração, prefiro fazer um uso mais lúdico-terapêutico. Lúdico
quase sempre, terapêutico quando eu tou meio tenso, quando eu tou sem sono.
Há indicações nestas falas que levam a pensar a maconha não apenas como objeto de
consumo lúdico, mas como um ansiolítico natural - e nessa condição, a sua
administração pode ser interpretada como automedicação. A maconha é uma substância
psicoativa que enquanto phármakon permite múltiplas representações; pode ser
representada como ansiolítico, como afrodisíaco e mesmo como substituto do outro, e
este é o ponto de vista de Buda: “Desde que eu perdi o movimento estudantil a maconha
é minha terapêutica”. Na falta do outro há lugar para um substituto. Aliás, essa
elasticidade de sentidos pode ser imputada a qualquer droga e não apenas a maconha:
Zumbi, que dois anos antes passou por uma overdose de cocaína e disse que iria
parar com tudo, no momento da interlocução agiu como se já estivesse refeito do susto.
170
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Para compor sua farmácia doméstica ele fez pesquisas por conta própria, tanto em
contato direto com outros consumidores como também com médicos e pesquisadores da
área. Assim, seus hábitos de consumo incorporam algumas drogas para produzir quando
este é o objetivo, e outras drogas para relaxar quando assim ele o quer. Zumbi configura
seu consumo de acordo com o momento mais propicio para fruição destes ou daqueles
hábitos pertinentes a sua estrutura de vida.
Adquirir drogas prescritas não é tão difícil e os seus usuários se sentem seguros para
administrar substâncias manipuladas em laboratórios com controle de qualidade. Por
outro lado, no caso da comercialização das substâncias ilícitas há o risco da baixa
qualidade das substâncias que não passam por um controle de qualidade mais rigoroso
exatamente em consequência de sua ilicitude. A pesquisa possibilitou observar que
alguns interlocutores se preocupam que essa qualidade não controlada das substâncias
venha a interferir diretamente sobre seus efeitos. A busca de Hofmann por controlar a
qualidade das drogas que pretende consumir se tornou seu princípio ativo:
171
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Mata Hari - Isso é uma coisa que me preocupa, porque o que eu vejo é que muitos
pacientes pedem, e mesmo na enfermaria tem funcionários que pedem receita pra
família: “há, me dá uma receita pra minha mãe, pra meu filho”. E vejo também gente
usando ansiolíticos e antidepressivos prescritos por médicos pouco atentos ao
emocional do paciente que acaba se acostumando aos efeitos dos medicamentos e não
quer abrir mão deles. O paciente se sente bem com o uso e quer continuar usando. Eu
vejo pouco debate sobre isso no meio acadêmico e é muito confortável. Eu tou tratando
a doença de fulano que tá baseada em fatores de ansiedade. Em vez de encaminhar
essa pessoa pra uma terapia, você aplica um ansiolíto. Eu acho perigoso e sou contra!
Eu só prescrevo em situações bem determinadas; em doenças graves, dificuldade pra
dormir, pacientes terminais.
172
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T.V. - Você está enveredando pela psiquiatria onde se usa muito ansiolítico e
antidepressivo, você pensa que remédios assim são diferentes de substâncias
psicoativas?
Pasolini - É droga, é substância psicoativa!
T.V. - Você é a favor da medicalização?
Pasolini - Já pensei sobre isso, acontece na medicina inteira, não é exclusivo da
psiquiatria, os laboratórios lucrando tão na medicina em geral. Essa medicalização
exagerada me levou a pensar em não fazer psiquiatria, talvez não fosse o meu perfil
trabalhar com saúde mental dessa forma. Mas talvez existam pessoas que não consigam
resolver com análise...
Essa observação de Picasso, ao afirmar que esse mercado de consumo visa satisfazer
a demanda por saúde mental, inverte a lógica de mercado apontada pelos colegas, e
talvez esteja apontando no mesmo sentido que o prognóstico da OMS sobre a pandemia
de depressão. Será que Picasso acaba incluindo a ele e a seus colegas no âmbito desse
consumo? Se inclui, a demanda deles será por processos de cura?
157
- diferentemente do começo do século passado quando o Harrison Act entrou em vigor, atualmente,
laboratórios e médicos de forma geral, defendem os mesmos interesses. Uma pesquisa de doutorado
realizada na Unesp, apontou que 27% dos médicos atualizam seus conhecimentos sobre os medicamentos
que utilizam com os representantes dos laboratórios (Jornal Nacional,14/05/04).
173
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174
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lhes confere capital cultural dentro da comunidade de pares. Pelo prazer como falam de
seus gastos, eles indicam que sustentá-los confere-lhes algum status positivo:
Buda - Sou de família de classe média alta ou alta. Minha família me banca e é algo
que me incomoda.
158
- que inclusive acha legal a faculdade de medicina na qual estuda, a Escola Bahiana de Medicina, ser
considerada a mais barata do país.
175
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Mata - Com o cigarro (de tabaco) eu gasto imensamente mais do que com maconha.
Cigarro eu fumo há doze anos e cada vez mais, óbvio. Cinco cigarros por dia durante a
semana, no fim de semana uma carteira. Já maconha são 3 becks por semana.
176
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Gastar dinheiro com drogas para estas duas interlocutoras não é fonte de status, e não
porque não tenham dinheiro. No caso de Mata e de Salomé não há uma busca por
distinção em meio as suas comunidades de consumo. Salomé inclusive estabelece
vinculações dadivosas, pois o narguillé e as essências que ela disponibiliza não custam
barato. Fumar maconha com essas ferramentas não é simplesmente um luxo que
configure um estilo de vida mais exótico, é muito mais um mecanismo que confere
pertencimento num grupo com marcos identitários bem específicos.
Outro dado que indica uma maior facilitação para que esses universitários aqui
elencados invistam mais dinheiro em consumo de drogas se assim o desejarem, é que
dos vinte e dois interlocutores, vinte e um deles não possuem filhos para sustentar. O
único interlocutor que é pai mantém seus hábitos em comum acordo com sua esposa,
também adepta da cultura psicoativa:
Com o casamento, Mozart já não frequenta mais os bares nas noites, nem mesmo
para tocar Blues com seus amigos. O consumo de drogas ao som de música sempre
presente em sua casa com ampla área verde numa rua tranquila no bairro de Itapoá, para
Mozart assume o lugar da vida boêmia que ele por mais de uma década prestigiou; se
não dá mais para ir ao cinema, assiste-se um DVD tomando vinho e fumando maconha,
159
- narguillé é um recipiente para fumar com uma concentração de água que resfria a fumaça e reduz os
danos ao aparelho respiratório do fumante.
177
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se não dá mais para frequentar festas dionisíacas, reúne-se com um casal de amigos que
também sejam pais e que tenham prazer em beber e fumar “familiarmente”. Se a sua
verba no final do mês não é das mais elásticas, ele e sua esposa sabem que o gasto de
R$200,00 não é um investimento em supérfluos, é um investimento em porções seguras
de felicidade. Em relação à segurança, os interlocutores que possuem menor renda não
deixam de estar incluídos no circuito de consumo, pois sua comunidade de pares
consumidores tem como uma das finalidades lhes fornecer segurança para acessarem a
liberdade:
Lampião – Eu tento encaixar no orçamento que eu tenho com bolsa, com estágio. A
prioridade de gasto acaba não sendo esta [...] Eu tenho minhas atividades que eu não
deixo de cumpri-las e o uso recreativo tem momentos encaixados na minha vida. Com
isso, sempre alguém tá trazendo e nunca falta. Gasto R$ 80,00 por mês no total e dá
pra encaixar.
Esse interlocutor que comercializa cocaína demonstra muito mais interesse em gastar
do que em ganhar dinheiro, tanto quanto não liga a mínima para o que se diz ser a regra
178
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tradicional do traficante; não consumir o que deve vender. O seu lucro se dá muito mais
em capital cultural – consumindo drogas e sexo - do que em capital econômico.
Vale ressaltar que se Nietzsche curte o lado hedonista, ele não descuida de suas
responsabilidades e mantém boas relações com a família:
Para evitar comprometer sua segurança e continuar desfrutando da liberdade que sua
condição lhe propicia, Nietzsche se mudou para um apartamento alugado onde pode até
deixar um pacote de cocaína aberto na sala enquanto recebe visitas160. Diferentemente
da juventude universitária que esteve atuante nas décadas de 1960/70, a presente não
busca necessariamente rompimentos com familiares que possuem valores mais
conservadores. Alguns munidos de informações e reflexividade buscam através do
diálogo validar seus pontos de vista outsider, enquanto outros buscam diplomaticamente
evitar um conflito que em suas perspectivas, não trariam maior esclarecimento e sim
tensões configuracionais. Se a família é a primeira edição dos sistemas especialistas
com a qual o indivíduo interage, na transição da juventude para a adultez – e nesse
recorte a carreira universitária configura o rito de passagem central – é geralmente onde
acontece a ressignificação dos sistemas especialistas, inicialmente um domínio
relacionado aos parentes mais próximos:
160
- ele parece acreditar que essa exposição não compromete a sua segurança, pelo contrário, na prática
aumenta seu status entre as visitas já que possibilita demonstrar que ele confia nelas.
179
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que meu pai conta que ele fez, a memória que ele passa pra mim eu consumo, me
interessa e forma meu modo de ver e de pensar. Eu comecei a me distanciar de pai
quando eu conheci o reggae, que meu pai não gosta. Aí rolou uma independência
mesmo.
Rimbaud - Outro dia eu tava discutindo Cheech e Chong que é da época de meu
pai e ele gosta daquela porra. Eu assisto, dou risada, mas eu acho que é onda de
doidão. Os Caras fizeram seu papel naquela época.
Personagens que estrelaram alguns filmes hoje cultuados, Cheech e Chong são dois
outsiders maconheiros que se metem em muitas confusões por causa de seu consumo
descontrolado da erva161. O que Rimbaud indica na sua crítica desses personagens é que
ele busca a superação do mito de doidão e quem sabe, do mito de usuário hippie
representado pelo passado no pai. Depois de ter sido detido pela polícia, Rimbaud não
quer ser enquadrado como um desqualificado, um maconheiro doidão, principalmente
aos olhos do pai. Esse também é um ponto central para uma interlocutora que tem uma
boa relação com o pai – o representante do sistema especialista - sobre a questão do
consumo.
161
- personagens apreciados pelo interlocutor Marley (22), dois anos mais jovem do que Rimbaud (24).
180
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Cleópatra - Foi uma das coisas que quando eu comecei a fumar, meu pai me falou:
“você que fuma tem que fazer tudo em dobro, que qualquer coisa que você fizer de
errado, qualquer vacilo, vão falar que é porque você fuma maconha”. Meu pai por
exemplo, os pais dele descobriram que ele fumava maconha. Três dias depois ele
passou em medicina na USP, aí vão falar o que? Ele cursou seis meses, pra provar que
poderia fazer tudo que ele quisesse, então largou e fez cinema.
T.V. - Será que esse fazer tudo em dobro não é um fardo, ou seja, cê ter que provar
alguma coisa aos outros por fumar não lhe incomoda?
Cleópatra - Não, não me incomoda ... fazendo em dobro ou não, a questão é não
terem o que falar de mim. Eu não preciso provar nada pra ninguém, mas também não
preciso ouvir crítica de ninguém.
Essa é uma típica situação em que a produção de trabalho tem o efeito de uma
redução de riscos em relação ao consumo, uma inversão para a representação corrente
de que o maconheiro tende a ser inapto para a produção. Nesse caso, o consumo de
maconha não é amotivacional, pelo contrário, é motivacional. Exceção à regra? Não,
segundo outra interlocutora, Mata: “eu tenho que comprovar pela minha competência,
que isso aí (consumo de maconha) não afeta nada. Então não tem conflito, mas também
não dou muita abertura pra crítica”. É possível afirmar que se o conselho paterno
acompanha a trajetória de Cleópatra ajudando-a a reduzir os riscos, nem toda herança
familiar recebida pelos interlocutores é revestida pela confiança proporcionada pelo
diálogo:
T.V. - Antes da universidade você tinha contato com o mundo das drogas?
Tutancamon - Eu tinha na verdade um contato com meu irmão quatro anos mais
velho, ele fez de tudo que se possa imaginar e aí mora o problema. A questão é que
como ele fazia é muito diferente do que eu faço hoje em dia, tocava o terror! Pra ele
era um beck atrás do outro, não fazia porra nenhuma o dia todo, só pá, pá, pá. Estudar
que nada, aí andava com a galera em boca de fumo. Se embananou todo, quase não
consegue formar. E eu tive essa aproximação desde 13, 14 anos, mas sempre numa
postura totalmente adversa. Ele teve que parar, se continuasse nessa não ia ter
conseguido formar. Quando parou, tudo começou a dar certo porque a forma dele era
daquela forma polarizada, era 8 ou 80. Eu tinha repulsa, eu não tinha nem medo,
181
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porque eu era muito estudioso, muito certinho, até então eu não saia, não bebia, não
fazia nada. Eu tinha pavor às drogas por causa daquele exemplo dele.
Depois de ter entrado na universidade eu comecei a abrir o leque, já não tinha
aquela cobrança do vestibular. Meus primos também fumavam um, dois anos mais
novos. Eu via todo mundo tranquilo, então eu comecei a me aproximar mais depois que
eu vi que não era aquele problema. Tudo começou com eles. Eles tinham acesso,
desciam em boca. Mas ao mesmo tempo fui ampliando minha rede de contatos. O que
me afastou deles foi que ficaram descontrolados, começaram a partir pra “pedra”162,
aí eu me desassociei mais.
162
- pedra = pedra de crack
182
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T.V. - Como é que você lida com a família em relação a esta questão?
Hofmann - Foi uma briga muito grande e ainda é. O filho no qual foi investido
muito nele, estudou nos melhores colégios, aprendeu inglês, viajou pra Europa, e
acabou usuário de drogas. Foi incutido na mente deles pela televisão e pelos jornais e
pelas perspectivas dos outros de que isso seria algo ruim. Isso me trouxe grandes
conflitos internos com minha família, meus pais. Nestes conflitos eu resolvi manter
minha postura em relação àquilo. Meus pais chegaram a me pedir pra se manter na
ignorância, ou melhor, ‘se você faz, não faça na minha frente’. Só que eu resolvi tomar
183
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uma postura contrária, que eles acreditavam que era desrespeito a eles. Não quero só
que você saiba, mas saiba quando, onde e com quem. Porque eu não vou esconder isso
de vocês, que isso ainda vai fazer parte da minha vida por um bom tempo, talvez pra
sempre, talvez até só o ano que vem. Se a gente não mantiver um diálogo aberto em
relação a isso que é algo constante na minha vida, há grandes chances das barreiras
entre nós serem cada vez maiores, e eu venha a privar de contar com todo o resto de
conhecimento, todo o resto de aprendizado, em função de uma única coisa que eles
acreditavam que não era boa pra mim. Meus pais não bebem, não fumam e eu respeito.
184
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coisa mais careta do que fumar maconha! De rebeldia isso não tem nada! Se isso fosse
tão rebelde teria mudado o mundo e você vê que não mudou em nada. Se você conhecer
as pessoas que eu conheço que utilizam a substância, tem umas que são mais caretas do
que as que não usam.
185
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marginalização. Então pra gente viver bem, a gente não toca (no assunto). Não deixo
de usar, chego em casa barrunfado163 e tudo.
Mata Hari - Minha mãe é ingênua, quando eu morava com minha família, varias
vezes eu chegava em casa de LSD, de maconha, sentava pra conversar tranquilamente
e ela não percebia.
T.V. - Como é a relação com as famílias, eles sabem que vocês usam?
Picasso - minha mãe descobriu e ficou de boa, ficou de boa assim, ela odeia, mas
não fala nada. Meu pai encontrou uma ponta no carro e disse: “encontrei isso no seu
carro, ou você vai falar a verdade pra mim ou vai falar que seus amigos é que tão
fumando” (risos). Ele fez uma pagação, aí eu falei que ia parar.
T.V. - E você Einstein?
Einstein - Eles não têm noção...
Da Vinci - ...mas eles desconfiam...
Einstein - ...desconfiam mas eu me ligo, nem levo maconha pra casa.
Picasso - ...ele chegava muito doido, mas o pessoal acha que ele tem problema com
álcool.
Mesmo que soe como uma piada, para a segurança de Einstein no setting familiar, o
seu suposto consumo de álcool acabou servindo como estratégia de redução de danos
sociais para os possíveis problemas que poderiam ser provocados se seu consumo de
maconha se torna-se de conhecimento público. Todavia, em outras configurações
familiares diferentes das em que pais são estabelecidos e filhos são outsiders, o lugar
reservado para o consumo de maconha não se confunde com o espaço do “muito
doido”, às vezes nem com o espaço para o recreativo, pois o principal espaço relacional
163
- barrunfado = com cheiro de maconha.
186
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Mozart - Meu filho tá com 3 anos e eu não posso fumar, eu tenho que tar ligado
nele. Eu vou sair com ele prum parque, parece uma coisa lúdica, mas não é, tem um
monte de perigos. Agora pra entrar no universo dele é ótimo, pintar, desenhar...
T.V. - Sua esposa também é usuária, como é que é o convívio?
Mozart - Ela trabalha também com educação, ela escreve, se não tiver pra escrever
ela fica louca. Ela é touro, é muito chão, então pra ela escrever ela tem que voar um
pouquinho.
E não é apenas no caso de Mozart, pois pais, irmãos, filhos e familiares próximos
podem influenciar na configuração de representações marcantes a respeito do
significado das drogas, mas não apenas parentes; todos aqueles que fazem parte do
cotidiano dos usuários possuem potencial para influenciá-los quanto a seus valores:
Uma representação social vigente é que uma “aluna CDF” não deveria ser desviada
de sua carreira de estudante acima da média por envolvimento com maconheiros que
não apenas eram bagunceiros, também possuíam baixo rendimento e eram candidatos
fortes à reprovação – e aqui fica subentendido que eram bagunceiros e repetentes por
influência direta do consumo de maconha. Eis a naturalização do estigma, a
demonização do consumo e do consumidor que só foi passível de desmistificação
quando Salomé ingressou na universidade, onde constatou que colegas que fumavam
maconha eram também bons alunos. Outra interlocutora que também foi boa aluna no
segundo grau levou menos tempo para chegar a este ponto de reflexão.
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Blavatsky - Eu morava numa rua que tinha várias pessoas que fumavam, eu ficava
observando e achava legal o modo como eles ficavam tocando violão, eu achava
bonito, e aí eu comecei a ter contato com isso. Meu pai começou a conversar comigo,
minha mãe também, aí eu comecei a ver diferença do discurso do que o meu pai falava,
que maconha deixava a pessoa assim e assim, e na prática eu não via isso, eu via as
pessoas normais, conversando, embora as pessoas que tinham tido contato com drogas
mais pesadas tenham tido situações de desequilíbrio mesmo, mas naquele primeiro
momento não tinha nada que fosse problemático naquele grupo. E um dia uma dessas
pessoas deixou uma “ponta” numa árvore e eu que tinha acabado de fazer 13 anos
peguei pra ver como era. Eu fui sozinha fumar, gostei, achei muito legal, aquele
relaxamento, me anestesiou um pouco. A partir daí eu comecei a fumar.
Esta é uma iniciação atípica por alguns fatores, primeiramente pela idade precoce da
interlocutora, segundo por ter sido realizada sem ajuda de ninguém que a introduzisse
na comunidade de consumidores e terceiro, mas não menos importante, por tratar-se de
uma pessoa do gênero feminino. Comecemos por este último item, já que o universo de
consumidores da pesquisa é predominantemente masculino (77%). Não que seja
anormal uma mulher fumar maconha, mas se essa mulher for uma adolescente de 13
anos que o faz totalmente desacompanhada, se tem desenhada uma situação que faz
questionar: ela foi motivada pela audácia, pelo tédio ou pela mera curiosidade para
tamanho empreendimento? A pista oferecida pela sua fala é de que: “eu comecei a ver
diferença do discurso do que o meu pai falava, que maconha deixava a pessoa assim e
assim, e na prática eu não via isso”. Como no caso experienciado por Pancho, a
distância entre as informações transmitidas pelo senso comum e as experiências de vida
fez com que Blavatsky fosse se afastando de valores até então absolutos. Nesse recorte,
o elemento motivacional que seduziu uma pessoa de 13 anos não foi a maconha em si,
mas a configuração onde ela era consumida, o estilo de vida do grupo de pessoas que
frequentava sua vizinhança, “o modo como eles ficavam tocando violão, eu achava
bonito”. A maconha foi um dos elementos que configuraram um estilo de vida sedutor,
mas não foi o único.
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Lampião - Essas substâncias como Ritalina, hoje eu vejo que são usadas de
maneira recreativa.
T.V. - A receita é controlada...
Lampião - Exatamente, a receita é supercontrolada mas pra quem tá no meio...
você pode conseguir com professores que fornecem receita se você chegar pra ele e
bater um papo, tentar convencer ele de que você se enquadraria no critério pra
transtorno de atenção e hiperatividade que é pra que é teoricamente mais indicado, e
que você tá afim de focar atenção em alguma atividade. Você bate um papo e consegue
a receita não é nada complicado.
T.V. - Os professores são abertos a esse ponto, não têm medo de se comprometer?
Lampião - Não é o comum, mas existem alguns professores que fazem. Algumas
pessoas sabem, acaba sendo uma rede. Algumas pessoas sabem que Professor X ou Y
faz, mas Professor X ou Y tem mais proximidade de algum acadêmico, e é por via desse
acadêmico que se consegue uma receita ou o acesso.
164
- e como a teorização de Giddens (1991) dialoga com a de Freud (1974 B), num primeiro momento da
formação cultural de um indivíduo, os especialistas que o influenciam não são necessariamente os que
dominam a excelência técnica ou competência profissional (Giddens, 1991,35), mas os que possuem
influência afetiva na comunidade de pertença.
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T.V. - Ouvi dizer que tem professor que até banca a bebida, é isso?
Da Vinci - Depende...
Buda - Doutor F., um cirurgião, uma bichona louca, banca formatura da galera, tá
ligado? em troca disso ele é paraninfo, faz discurso... e vai ser paraninfo da minha
turma a contragosto meu, (risos). Eu já vi um discurso do cara dizendo que acima dos
médicos só existe Deus!
T.V. - E vocês têm essa imagem da medicina como um curso de elite, abaixo só de
Deus?
Buda - É elite, man! Você vê num hospital que tem várias profissões universitárias,
você vê o conforto do médico, os outros profissionais não têm.
Nas relações de poder que são estabelecidas entre membros da academia, às vezes as
elites correm o risco de perder o referencial que delimita a fronteira do controle ético e
formal entre a busca por segurança e a busca por liberdade165. Nesse caso específico, os
professores enquanto representantes legítimos do sistemas especialistas, devem saber
que o código de ética médica proíbe que os profissionais influenciados pelo mercado de
consumo, receitem remédios. O boom da farmacologia nos últimos trinta anos
normalizando o consumo de certas substâncias prescritas se sustenta na confiança dos
clientes nos sistemas de especialistas médicos. De certa forma, a distinção em relação
ao usuário de drogas ilícitas possibilitada pelo aval médico de uma prescrição, pode
levar um indivíduo a buscar consumir medicamentos sem correr riscos de ser dominado
pelo sentimento de vergonha. Fornecer receitas para alunos, tanto quanto trocar o
fornecimento de bebidas alcoólicas por favores políticos são comportamentos que só
estabilizam a representação tanto da normalização de comportamentos “dadivosos”
como o do paraninfo citado por Buda, quanto da ausência de vergonha e de princípios
éticos associados a tais comportamentos. Exceção à regra é quando algum especialista
tem sua representação pública maculada pelo consumo descontrolado:
165
- como no já citado caso dos cientistas da Nature consumidores de Ritalina.
190
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Por esta última declaração se nota que nem todo médico está tão próximo de Deus
como faz parecer o discurso de Doutor F.. Médicos são acima de tudo seres humanos,
sujeitos às próprias emoções e aos descontroles correspondentes, assim como os
professores e estudantes oriundos de outras áreas do conhecimento. A pesquisa também
apontou situações em que a representação do professor diante dos alunos carrega a
imagem de um passado que na prática já não se confirma, o que abre espaço para sua
ressignificação:
191
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Esta quebra de contrato na relação de respeito entre professor e aluno fez com que
Hofmann passasse a configurar suas estratégias de redução de riscos para evitar
possíveis danos à sua imagem pública, danos à sua representação enquanto estudante e
futuro profissional, em função do estigma de ser consumidor de maconha. Esse
problema aconteceu numa faculdade particular em um curso da área de Ciências
Naturais onde predomina uma perspectiva ortodoxa quanto ao consumo de drogas.
Alguns interlocutores buscam um setting acadêmico com configuração quase contrária
a este, na esperança de reduzir os riscos atrelados a este modelo de setting. Rimbaud por
exemplo, entrou na UFBa em Economia e depois de dois semestres se transferiu para
Ciências Sociais. Ele deixou claro que realizou esta troca de cursos após ter conversado
com amigos sobre drogas e acreditou que descobriu um curso onde se sentiria a
vontade para se envolver mais profundamente com a questão: “é um assunto que eu
considero um nó pra sociedade. Fiz vestibular pra Ciências Sociais porque me permite
fazer uma abordagem sobre as drogas melhor que a Economia permite.” É possível
interpretar que um curso que permita uma abordagem “melhor” sobre as drogas não
deve ser um curso onde se corra o risco de ser humilhado como Hofmann se sentiu por
ser estigmatizado como maconheiro. Um setting acadêmico com tais características -
onde se reduz a possibilidade de ser humilhado ou envergonhado - já indica uma
minimização de riscos sociais que acaba sendo lucrativa para o consumidor. Sim, pois
enquanto vigorar a perspectiva proibicionista, humilhação e vergonha serão dois
dispositivos de controle bastante eficientes:
Rimbaud - A principio, eu não me bati, porque todo mundo que fuma um, passa por
isso, porque quando você faz alguma coisa demais, uma coisa proibida, um dia os
“home” dá em cima, seja civil ou PM. A visão que eu tive de ser preso, é: ó como a
193
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polícia tenta me chamar a atenção pra algo que eles disseram que eu faço de errado.
Aquela conversa de que eu tou financiando o tráfico, a violência...
Se nos séculos XIX e XX a etnização do consumo serviu para controlar, como estão
as coisas hoje? Correndo o risco de etnizar o que deve ser “desetnizado”, é inevitável
trazer a questão à tona. Sendo a única interlocutora negra participando da pesquisa,
moradora em um condomínio num dos bairros mais privilegiados da cidade, Salomé
194
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(24) que até três anos atrás não consumia drogas, tendo até uma imagem negativa delas,
é alguém que emblematiza bem como as consequências desse consumo podem ser
percebidos à flor da pele:
T.V. - Você já pensou no que lhe levou a mudar de opinião sobre as drogas?
Salomé - Eu acho que com a análise de como a minha família se organiza, a criação
da gente, pelo fato de nós sermos uma família de negros que conseguiu ter uma
ascensão social, de sair de circunstância de intensa pobreza, meu pai e minha mãe
pobres que conseguiram, trabalhando e estudando muito, uma ascensão, a gente acaba
tendo uma preocupação pequeno burguesa de prestar uma satisfação social. Você tem
que ser sempre o melhor naquilo que você faz, você não pode vacilar que as pessoas
tão sempre esperando mesmo você se fuder.
T.V. - Você acredita que por ser negra você tem que tomar mais cuidado com a
questão das drogas?
Salomé - Talvez sim, eu não tinha pensado nisso ainda, mas eu acho que sim porque
tem o problema com a polícia e com certeza a relação que a polícia tem com pessoas
negras, ainda que a maior parte dos policiais também seja formado por negros,
necessariamente você já tá dentro do padrão suspeito, né?
Salomé está deitada confortavelmente em uma rede quando emite estas últimas
palavras, de modo pausado. Buscando manter uma tradição construída arduamente por
seus pais, ela não deseja que seu status familiar de negra econômica e culturalmente
incluída seja maculado pelo estigma que acompanha o consumidor de drogas, pois tal
status já é uma superação de outro estigma; ser negra e pobre. Salomé é uma mulher
altiva com uma fala desenvolta e que em sala de aula costuma participar com reflexões
bem construídas e fundamentadas. Se a reflexão sobre ser negra e consumidora de
drogas efetivou-se apenas na configuração de nosso diálogo – levando em conta que
nesse diálogo com um pesquisador também negro, foi ela quem puxou a interpretação
étnica – para Salomé, esta não deve ser uma questão tão facilmente trazida à tona, em
função de sua busca por não se expor, por não querer se colocar dentro do “padrão
suspeito”, por não querer ser estigmatizada já que seus valores culturais sustentam “uma
preocupação pequeno burguesa de prestar uma satisfação social”.
Salomé é pós-graduanda em um curso de Ciências Humanas da UFBa, onde há um
dos maiores contingentes locais de estudantes negros. Muitos destes estudantes negros e
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que também são consumidores de drogas, por estarem imersos nas camadas mais pobres
da população articulam um discurso bem diferente do proferido por Salomé. Um
estudante de Ciências Sociais em duas oportunidades – em uma aula e em uma palestra
que ministrei sobre consumo de drogas com intervalo de um ano entre elas – me fez a
mesma pergunta: “a questão das drogas não devia ser debatida pelas entidades negras, já
que os negros são os mais discriminados?”. Em ambas as circunstâncias eu forneci a
mesma resposta: “olhe ao redor quando for fumar lá no “mirante”, ou mesmo olhe ao
redor aqui nesta sala e veja quantos negros estão presentes, e me diga se seria justo que
esta maioria de não negros fosse segregada da discussão”. Embora o estudante estivesse
certo quanto a serem os negros os mais discriminados, ele não configurou a situação de
forma precisa, pois o debate que estávamos propondo não se dirigia a sociedade como
um todo e sim ao espaço universitário e nesse espaço havia uma maioria de estudantes
não negra. Como excluir os não negros do debate? No próprio universo da pesquisa não
deixa de ser sintomático que haja poucos negros, mesmo que na última década tenha
havido um acréscimo de negros nas salas de aula do país em função dos projetos de
ação afirmativa. Na prática, circunscrever o debate sobre o consumo de drogas em
torno de um segmento étnico seria como estabelecer a representação de que droga é
coisa de grupos étnicos segregados, reforçando mais ainda os preconceitos que supõe
combater.
Se na cultura de consumo a busca por liberdade com segurança é uma disposição que
se configura presente enquanto habitus social, esta busca não se aplica só ao consumo
de drogas, mas também à sexualidade, entre outras possibilidades. A própria interface
cercada de riscos entre consumo de drogas e a sexualidade que trouxe as estratégias de
redução de riscos e danos para a pauta da política de vida cotidiana, já é um campo
explorado pelo mercado:
Pancho Villa - Eu considero maconha e sexualidade bem próximas, e não sou só eu,
a própria indústria legalizada do cânhamo como na Espanha, nas revistas
especializadas é maconha e mulher; feira de maconha, é maconha e mulher. Tem uma
exploração do lado sensual. É uma cultura que eu não diria machista, mas voltada
para a maioria dos usuários que é homem. Há mais usuários homens em países onde a
196
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droga é proibida. Na Amostra Brasil a proporção é de 3 homens pra cada mulher, tanto
no censo quanto na amostra domiciliar. Na Espanha é 2:1, Na Holanda ninguém
duvide de ser a mesma coisa166.
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Estas cinco declarações, três feitas por homens e duas feitas por mulheres, mostram
que para ambos os gêneros os vínculos entre drogas e sexualidade pode estar presente
seja no momento da conquista seja no momento da consumação do ato. Nesse terreno
Nietzsche sente na pele a dificuldade em estabelecer relações de confiança – afinal, há
relações de confiança possíveis entre traficantes e usuários? No seu ponto de vista,
quando se interessa sexualmente por alguma garota ele não está naquele setting como
traficante, e sim como consumidor que dadivosamente compartilha seus bens de
consumo. Seu questionamento não está ligada ao uso das drogas – para ele maconha e
cocaína podem ser consideradas drogas afrodisíacas – e sim a configuração do seu
consumo: será que o outro o vê apenas como um traficante? Por sua vez, Blavatsky que
considera que passou a usufruir tardiamente de sua sexualidade, chegou ao ato regando-
o com “muita maconha”, e em função do seu suposto retardo, talvez muito menos
como afrodisíaco do que como ansiolítico, como redutor de tensões. Já a atitude de
167
- doce = ácido lisérgico.
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Salomé que fez sua escolha entre dois amantes – ao invés de deixar que eles a
escolhessem, como esperava o amante preterido - para desfrutar a psicodélica “onda do
amor”, mostra que ela sob efeito do ácido não se deixou levar pelo setting de forma
acrítica – não ficando com o primeiro por ser o primeiro que apareceu – nem perdeu
seus controles informais a ponto de poder relembrar confortavelmente que suas
“percepções ficaram supersensibilizadas” sem que isso lhe constrangesse por ter podido
ter cometido excessos em público. Refletindo em torno desses dados é possível cogitar
que se a população masculina pesquisada é muito maior, não quer dizer que as mulheres
sejam menos reflexivas ou que se submetam a uma reflexividade imposta pelo ponto de
vista masculino quando envolvem controle de afetos e consumo de drogas. As emoções
masculinas ligadas a consumo de drogas e sexualidade de forma geral são até mais
ambivalentes:
T.V. - Nesse período crítico como foi sua vida afetiva e sexual?
Garrincha - Quando o uso da cocaína era menor não atrapalhava, porém na medida
em que ele foi aumentando, aí começou a não haver mais (vida sexual), a verdade é
essa. Depois o sexo se tornou um prazer não tão grande quanto a necessidade do uso
da droga. Antes eu saia com garotas de programa, mas recentemente uma pessoa com
quem me relacionei fez uma crítica a isso. Eu usava com garotas de programa, mas
chegou um ponto que meu uso ficou tão escroto que se uma garota dessas me visse na
rua saia correndo.
T.V. - E agora como está o desejo?
Garrincha - Depois que eu descobri o sexo sem o uso de drogas, comparar o sexo
como o uso e sem o uso não tem comparação!
Marley - Já com crack a pessoa não consegue... eu pelo menos não conseguia ter
relação sexual, no momento e durante um bom tempo depois. Não dava ereção, não
dava interesse. Cê só pensava na droga, só queria saber da droga.
199
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Oscar fala sobre sexo com tranquilidade e sua gesticulação andrógina levemente
afetada é bem cadenciada. Para ele o consumo de maconha e o desfrutar de sua
sexualidade são pontos de afirmação identitária que não lhe causaram maiores conflitos:
Oscar Wilde - Pensando em minha orientação sexual, eu sou gay, mas eu tenho um
relacionamento estável porque eu tenho um namorado há três anos, e dado ao meu
ethos eu não tenho percebido uma grande discriminação quanto a isso. Convivo com
pessoas bem resolvidas com alto nível de instrução. Eu nunca tive um diálogo aberto
com minha família sobre essas questões. Eu acho que eles sabem e não se toca no
assunto. Eles sabem que agora eu vivo uma vida que é minha, eu tenho carreira solo,
eu faço minhas escolhas. Quando perguntaram alguma coisa, foi mais pelas fofocas de
eu tar andando como maconheiros, mais do que por eu tar apresentando algum
comportamento desviante.
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justificar sem vacilar: “mas eu tenho um relacionamento estável”, como se ser gay
implicasse necessariamente em promiscuidade. Por sua atuação reflexiva, Oscar parece
estar livre de algumas estigmatizações, mas não de todas. Contudo, nem todos os
interlocutores estão preocupados em definir sua sexualidade:
Leila que já teve problemas com sua família fortemente religiosa em função do
consumo de drogas não se tornou por isso, defensiva em relação à sua sexualidade
heterodoxa. Se por um lado ela não teme estigmatizações, por outro ela não deixa de por
em prática seus controles informais para não confundir sexualidade e consumo de
drogas como questões intrínsecas e necessariamente inclusivas. Vale ressaltar que Leila
tem vinte e poucos anos e faz parte de uma geração que teve sua sexualidade
configurada considerando os riscos das doenças sexualmente transmissíveis. Nesse
setting uma equação que pode ser considerada corriqueira é: Sexo + drogas = risco! Já
quem está na faixa etária dos 37 anos e até trocou a poligamia168 por um casamento
monogâmico, pode acrescentar sua significação atualizada para a questão:
O “já passou a fase do rock and roll” traz à baila reminiscências culturais das
décadas 60/70, quando se estabilizou que os controles informais da contracultura
tenderiam a se configurar em torno do consumo de sexo, drogas e rock’n roll. Se os
mais jovens hoje optam não necessariamente por rock’n roll, mas às vezes por rap – hip
168
- 15 anos antes Mozart morou numa comunidade anárquica onde mantinha vínculos maritais com três
moradoras.
201
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hop – e/ou música eletrônica, os mais velhos como Mozart atuam reflexivamente
buscando no jazz ou na música étnica um novo cenário onde a configuração de drogas e
sexualidade obtenham uma significação reencantadora. Por sua vez, os jovens
frequentadores da cena eletrônica elaboram uma nova articulação entre sexualidade e
consumo de drogas que pode causar estranhamento aos roqueiros:
Zumbi - Eu vejo que o tipo de droga que é utilizado nas raves leva a uma atitude
meio assexuada. Eu particularmente, eu nunca fiquei com uma mulher em rave.
T.V. - Atitude assexuada ou autossexuada?
Zumbi - Por exemplo, o êxtase é uma droga que as pessoas falam que você toma e
fica com tesão, realmente quando eu tomei eu fiquei excitado, mas eu não tinha vontade
de tocar as pessoas, no máximo gostava de ficar roçando meu corpo no delas, mas não
tinha vontade de penetração.
T.V. - Você sente estes espaços de música eletrônica como espaços libertários ou de
conformismo pago?
Zumbi - Esses espaços onde se estabelece uma zona autônoma temporária são
espaços onde as pessoas se permitem tar fazendo coisas sem tar muito preocupadas
com sanções, a reação do outro, o que impera é o espírito da diversão, de experiências
psicoativas também, ouvir música. Em vários períodos da história isso sempre existiu.
Cada movimento tem o seu diferencial. Comparando o movimento hippie com a rave, o
rock é substituído pela música eletrônica, as drogas permanecem, o sexo não tem o
202
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mesmo papel que tinha na contracultura, onde se tentava uma liberação sexual, liberto
de certos valores.
T.V. - O pessoal do hip hop diz que o pessoal das raves é pela inércia e não pelo
movimento, você concorda?
Zumbi - A música eletrônica ao contrário da contracultura não tem muito a questão
da letra, da palavra. Como a maioria das músicas é instrumental, já não tem
mensagem, enunciados, e como são ambientes bem barulhentos, quase não há diálogo.
As questões da cultura se dão entre as raves; as pessoas acabam convivendo, falando
de som, falando de cultura. A militância que se passa é uma forma de viver
experiências de psiconáutica, utilizar uma droga pra saber qual é o efeito dela, usar o
máximo de drogas diferentes possíveis. Hoje as raves cresceram e acabam angariando
várias tribos, às vezes inconcebíveis: o playboy que curte pagode e axé, hoje em dia tá
indo pra rave.
T.V. - E usa drogas sintéticas?
Zumbi - Acho que vai por causa disso. Quando ia atrás do Trio elétrico, o máximo
que usava era um lolozinho, lança-perfume, hoje vão pra rave pra ficar na mesma vibe,
só que com outros tipos de drogas. E é aí que eu vejo a diferença, porque quando vai
atrás do Trio elétrico, o lance é pegar o máximo de mulher possível. Na rave não tem
essa vibe nem entre as mulheres, o lance é se drogar, chupar pirulito, ficar fazendo
careta, (risos).
T.V. - O quase não haver diálogo seria possível se não houvesse psicoativos?
Zumbi - A altura da música atrapalha, mas eu já fui em rave onde eu não usei nada
e conversei bem mais.
203
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Einstein - Axé, eletrônica, a gente gosta mais dessas músicas porque tem gente
diferente, mulher diferente, rola a putaria!
T.V. - Um outro interlocutor me disse que nesses espaços duas coisas contam muito
pouco: o conversar, quando ele toma doce ou bala ele não faz a mínima questão de
conversar. E o sexualizar, porque ao contrário do mito que fala do ecstasy como droga
do amor, este interlocutor diz que rola o amor próprio, não necessariamente o amor
sexualizado em relação ao outro. Como é isso pra você?
Cleópatra - Isso da sexualidade eu concordo, eu acho que é raro rolar azaração, a
não ser em festas diferentes aonde vai a galera de micareta. Tem festa de música
eletrônica que vai a galera de micareta. O que rola às vezes é quando cê vai de casal,
às vezes gera, de ficar se beijando, independente de onde você tiver. Mas em festa
eletrônica não rola de passar a mão, de pegar várias, de ficar queixando. Agora,
quanto a conversar eu discordo um pouco, normalmente eu converso bastante, às vezes
saio da pista pra conversar dando risada. O que rola é situação de você não conseguir
falar, cê tá muito louco.
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A sentença “aqueles que nunca tomaram acabam tendo essas experiências e algumas
deles piram”, mostra como os principiantes podem encontrar dificuldades para
consumar o que Becker chamaria de carreira de usuário169, se não houverem absorvido
alguns mecanismos de controles informais. Um dos erros mais graves pode ser
combinar drogas sintéticas com bebida alcoólica em demasia. O hábito de beber demais
não está associado a cultura rave, pois, de modo geral, nesta, circula a informação de
que as drogas sintéticas combinadas com álcool podem levar a desidratação e ao
aumento da temperatura do corpo. Nessa condição é que o hábito do consumo abusivo
169
- basicamente saber administrar a droga de maneira adequada, reconhecer-lhe os efeitos e aprender a
gostar deles, além de evitar as condições socioculturais que possam interferir negativamente com o
consumo ( BECKER, 2008).
205
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de álcool da galera de micareta é visto com ressalvas. Contudo, não são apenas estes
que vivenciam bad trips, envolvendo consumo de descontrolado de álcool:
206
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Quatro dos interlocutores têm envolvimento com o mercado musical, sendo que um
deles atua como técnico e dois como DJs. Estes interlocutores frequentam settings onde
consumo de drogas e produção de trabalho não são majoritariamente representados
como incompatíveis. Diferentemente da imagem hedonista que por algum tempo foi
dominante quanto ao meio artístico, o primeiro interlocutor fala dos estúdios de
gravação como um espaço de trabalho duro onde não há consumo desenfreado de
substâncias psicoativas. Os dois Djs também deixam claro que mesmo durante as festas
raves muitas vezes eles priorizam o tocar e não o consumir drogas. Em ambas as
situações, seria fácil para os interlocutores conseguir drogas, inclusive até de graça, mas
quando o consumidor assume a responsabilidade sobre sua busca de satisfação, esta
pode surgir não do consumo descontrolado e sim de poder controlar quando se deve
consumir. Nesse recorte, a configuração na qual quem consome também é consumido
deixa de ser necessariamente uma problemática e passa a ser uma situação com a qual
se deve interagir do modo mais adequado. Outros interlocutores também pensam assim.
Oscar Wilde - Havia uma certa moderação porque esse consumo não podia
interferir nos nossos resultados, acho que um dos fatos da turma ser respeitada é
porque tinha uma produção, então isso equilibrava, mas havia um certo cuidado.
Rolava uma certa alternância, o início do semestre era uma fase de muito mais
gandaia, de farra, e o final do semestre era de mais introspecção e estudos intensos. A
gandaia ficava mais pro final de semana.
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O status legal da ayahuasca como substância psicoativa lícita vem facilitando sua
maior aceitação na comunidade acadêmica, a ponto de nos últimos anos haver uma
grande quantidade de pesquisas sendo realizadas a respeito, algumas inclusive
relacionadas com terapias alternativas para usuários de álcool. A boa aceitação ao
projeto de Blavatsky é um exemplo de como um consumidor pode ressignificar seu
objeto de consumo psicoativo a ponto de torná-lo objeto de consumo informacional para
muitos outros, e por ser este consumo simbólico, não corre riscos de acarretar maiores
danos. A condição de doutoranda faz de Blavatsky uma outsider estabelecida e seu
status acadêmico agora é muito diferente da época em que era chamada “Berlota de
Ouro”170... Mas, se na cultura das drogas é possível ressignificar objetos de consumo,
também será possível ressignificar modelos de relações interpessoais? Buda, que é
oriundo de outra cidade do Nordeste e veio para Salvador para cursar a faculdade de
Medicina, dentro do curso não chegou a formar um grupo de amigos. Ele se queixa
dessa falta de vínculos afetivos e procura resolver a questão na comunidade de amigos
que se formou em torno do consumo de maconha:
Buda - Aqui em Salvador eu ando mais sozinho, são poucas as pessoas com quem eu
criei um vínculo... na verdade foram muitas as pessoas com quem eu criei um vínculo
em relação a erva aqui em Salvador. Mas a frequência do contato é que é muito
variável. Não tem nenhuma pessoa que eu encontro diariamente pra fumar. Eu fumo
geralmente sozinho. Mas quando eu tenho o prazer de estar com alguns amigos que
170
- item 4.1, pg. 241.
208
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O consumo de maconha de Buda vem sendo sua ferramenta principal para configurar
vínculos sociais. Para enfrentar o desenraizamento de sua cidade natal seu tempo de
lazer é preenchido frequentando o circuito de salas de arte ou indo curtir shows de jazz
no MAM (Museu de Arte Moderna) outro pólo frequentado pelos interlocutores onde se
pode ver muitos universitários, inclusive fumando maconha na área aberta de frente
para a Baia de Todos os Santos. “eu tou na Bahia, eu curto a negritude, gosto de fumar e
ir pro Pelô levar os amigos de fora”, ele afirma sorridente. Quando troca a rua pela casa,
Buda vem criando um espaço de convivência em seu apartamento que divide com um
outro estudante. Foi lá inclusive, numa das tardes em que conversamos, onde ele me
apresentou; Einstein, Da Vinci e Picasso. Por ser uma pessoa muito receptiva ele é
visivelmente querido pelos amigos, e pelo menos nesse setting doméstico ele não
pareceu solitário. Tutancamon enfrentou problema semelhante:
T.V. - Nesse ambiente acadêmico onde você tinha poucos pares, você se sentia a
vontade pra consumir?
Tutancamon - Na realidade, como um todo era uma coisa tensa porque de certa
forma você acabava assumindo aquela persona que não pode fazer nada errado, mas,
de alguma forma eu fui me distanciando de diversos grupos da sala. Eu quando entrei
eu tinha muitos contatos, o pessoal gostava muito de mim, mas também eu comecei
enxergar minhas coisas, meus gostos, eu fui procurando... não me abri porque também
eu não achei pessoas que compartilhassem ou que pelo menos aceitassem aquilo, que
não tivessem postura retrógrada, de que por aquilo eu seria menor, que me aceitassem.
T.V. - Você diz que nesse ambiente você não achou uma tribo, mas, em outros
ambientes você buscou formar uma tribo?
Tutancamon - Ultimamente eu venho tentando procurar locais em que eu me sinta
bem, que eu consiga trocar energia, mas ao mesmo tempo eu me isolo um pouco. Eu
acabo não tendo esse contato que eu queria, não sei se por questões acadêmicas ou
implicações de rotina.
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A dificuldade para encontrar uma segunda família fez com que Tutancamon
analisasse a possibilidade de que seu estilo de vida outsider no qual se inclui o consumo
de drogas, fosse responsável por seu isolamento. Sua busca por uma comunidade
eletiva leva em conta seu grande cuidado para não comprometer o seu status médico – e
nesse sentido ele acaba se colocando como “aquela persona que não pode fazer nada
errado” -, mas mesmo assim, os resultados ainda não são satisfatórios. O ponto positivo
desta busca é que Tutancamon não está disposto a pagar qualquer preço para ser aceito,
pois ele não se coloca em condição de inferioridade “de que por aquilo eu seria menor”
– como muitas vezes acontece. Uma carreira universitária não garante a priori, relações
fraternais para quem frequenta o mesmo curso:
Lampião é mais um outsider que em meio a seus colegas de faculdade não se sente
em casa, assim como Buda e como Tutancamon. Ele acredita que a carreira de estudante
de medicina suga muito seu tempo “se você acaba trabalhando só aquilo mesmo” e
busca ressignificar esse tempo em torno de “outros meios de conhecimento e de
cultura”. O depoimento destes três estudantes de medicina desconstrói a imagem de que
a carreira médica não comporta lugar para vivenciar emoções171, pelo contrário, se na
171
- pesquisas nas Universidades de Uberlândia e na Faculdade de Medicina do ABC indicam que
estudantes de medicina são os universitários mais propensos a depressão, em grande parte relacionada
com a cobrança nos estudos e o estresse com a rotina hospitalar (Medicina & Bem-estar – Isto É -
210
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prática clínica estes estudantes devem “aprender” a guardar suas emoções, na prática de
suas vidas cotidianas buscam outros com quem possam compartilha-lhas. Estudantes de
outros cursos como o de História, vivenciam as mesmas demandas de pertencimento:
10/07/09). A ironia aporística é que aqueles que deveriam ser os mais capazes de resolver os problemas
ligados à depressão acabam sendo alguns dos mais afetados por ela.
211
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contracultura. Raul não apenas cantou, mas viveu de forma hedonista e o seu consumo
pesado de drogas se tornou associado à sua imagem. Este consumo midiaticamente
representado foi um dos fatores que contribuíram para o desequilíbrio de sua saúde,
desequilíbrio que acabou levando-o a morte. Porém, o autor de Sociedade Alternativa e
Maluco Beleza não é o único referencial ortodoxamente hedonista em questão. Isso
porque boa parte das interlocutoras, (40% delas), elegeu Janis Joplin como referência
musical, talvez não por acaso uma cantora que alcançou sucesso com uma imagem nada
submissa e assumidamente bissexual num cenário musical de hegemonia masculina.
Janis morreu em consequência direta de uma overdose de heroína e a sua morte assim
como a de Raul, favoreceram a cristalização de suas representações outsider - ao
morrerem antes de envelhecer ambos permanecerão representados eternamente como
jovens.
No quesito cultura cinematográfica, os autores mais citados pelos interlocutores
foram Tarantino e Almodóvar. Não por acaso entre os anos 1980 e 1990 estes autores
foram responsáveis por consagrarem novas perspectivas narrativas para abordar temas
como violência e sexualidade, geralmente impregnando-os com humor cáustico,
forjando novas perspectivas reflexivas sobre aspectos hedônicos das culturas urbanas
contemporâneas. O processo mimético que os filmes desses autores proporcionam aos
espectadores carregam os elementos básicos do cinema de entretenimento – violência e
sexo estilizados – mas com uma carga de tragicomédia nos conflitos vividos que
possibilitam aos espectadores refletirem, inclusive sobre questões que remetem ao
consumo de drogas; seja em torno dos inusitados primeiros socorros para a overdose de
heroína da personagem Mia em Pulp Fiction - Tempo de violência (1994) ou do
inusitado consumo de drogas efetuado pelas freiras do Convento Redentoras
Humilhadas em Maus Hábitos (1983).
Quanto à literatura, Huxley e Castañeda foram os autores mais citados (14%), autores
que fizeram experimentos pessoais com drogas imbuídos de espírito científico; o
primeiro cercou-se de médicos para registrar suas viagens com mescalina. O segundo
como antropólogo em trabalho de campo para tese, buscou iniciação com índios
mexicanos com os quais consumiu “plantas de poder” como peiote e cogumelos. Ambos
estiveram em moda nos anos 60 e parece que em meio aos universitários
contemporâneos ainda propiciam reflexões e sentidos. Um dos aspectos centrais de suas
investigações é que ambos se colocaram como sujeitos e como objetos de suas
experiências, numa relativização de papéis que soa bastante atual – na prática dos
212
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172
- psiconáutica = usar substâncias psicoativas para navegar pela própria mente.
173
- como também se abstêm de consumir qualquer outra substância psicoativa.
174
- numa perspectiva psicológica, práticas psicoterapêuticas também são práticas corporais, mesmo que
o paciente se limite a falar. As emoções falam através do corpo, mesmo quando o corpo está em inércia.
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graduação e tão trabalhando e outros que tão como eu, na pós-graduação. Uma parte
desse grupo maior é de meus amigos da graduação não necessariamente da mesma
turma, mas do mesmo período. Outra parte é a galera da Escola de Música que tem
uma relação com a gente e tem gente de Belas Artes.
T.V. - Que atividades vocês curtem?
Salomé - Praia, necessariamente o Porto da Barra, muito cinema, muita festa, bares,
Rio Vermelho frequentemente, muito show na Concha, casa de amigos. A maioria é da
mesma área, mas tem gente de Música, de Comunicação, de Ciências Sociais, é que
acaba todo mundo dialogando com as Ciências Humanas.
A rede de amigos de Salomé é “um grupo sólido”, onde “tem gente de Música, de
Comunicação, de Ciências Sociais”, configurando uma comunidade com vários níveis
de interação e interpenetração. O elo central é que são “todos universitários” - alguns
trabalhando e outros na pós-graduação - e fumantes de maconha. Se configurações
assim acontecem com estudantes de uma universidade pública, como será que se
articulam os estudantes numa faculdade particular, especificamente num curso como
Medicina? Numa reunião na casa de Buda onde alguns baseados foram queimados para
comemorar o aniversário de Einstein – antes do grupo, à exceção de Buda, sair para
beber nos bares da vida, - foi formulada uma possível resposta:
216
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Picasso - ...já fiquei com ela, não comi porque não forcei, se forçar rola.
Buda - ...na minha turma é bem diferente...
Einstein - ...na turma da gente também tem muito idiota...
175
- como indicam as pesquisas realizadas com estudantes de Medicina em Uberlândia e no ABC (nota
171, pgs. 210/211).
217
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Tutancamon - com certeza! Eu acho que foi o divisor de águas. Eu acho que também
envolve muito o ideológico, a questão de você resolver sua cabeça se permitir fazer
algumas coisas.
Oscar - Depois que eu entrei na academia o uso passou a ser mais cotidiano. Isso
porque minha estrutura de vida mudou. Depois da universidade eu fui morar sozinho e
aí eu tive essa liberdade de ter uso frequente sem causar danos ao meu convívio
doméstico.
Quando Oscar afirma que sua estrutura de vida176 mudou, afirma-o como sendo uma
consequência direta por ter ingressado na academia universitária. Assim como
Tutancamon coloca a universidade como um divisor de águas em sua vida, Oscar sendo
um universitário se sente capaz de ampliar suas possibilidades de usufruir da liberdade
de fumar cotidianamente, “sem causar danos ao meu convívio doméstico”. Nesse
recorte ele constrói a busca por liberdade para consumir quando quiser, junto com a
busca por segurança no que diz respeito ao convívio doméstico.
Para que fique claro o porquê da divisão de águas propiciada pelo ingresso na
carreira universitária, é pertinente refletir sobre a cultura na qual estavam imersos esses
jovens anteriormente. Analisar os discursos dos interlocutores quando se remetem as
suas trajetórias de vida pode lançar nova luz sobre representações construídas ao redor
da cultura das drogas. Por exemplo, quando se fala de drogas indistintamente como uma
categoria homogênea, há uma tendência em colocar a maconha como porta de entrada
176
- e sua leitura de estrutura de vida segue no mesmo sentido da realizada por Grund; no sentido de
estabelecer parâmetros de controle para o cotidiano que não são voltados para o exclusivo consumo de
drogas, mas sim para assegurar a execução de um estilo de vida.
218
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para a escalada em direção às drogas consideradas mais pesadas. Além desse não ser um
ponto pacífico, pois muitos consumidores de maconha a têm como droga exclusiva, ou
mesmo afirmam não consumir drogas artificiais177, as experiências de vida de alguns
interlocutores indicam que seria mais objetivo falar em escalada a partir do álcool – que
começa de modo geral, enquanto os estudantes ainda estão no segundo grau:
Marley - O consumo de álcool (no segundo grau) era bem intensificado mesmo. Tem
gente que saia mais de uma vez por semana pra beber.
Garrincha - Eu tive uma dificuldade grande pra terminar o primeiro grau. Eu fiz o
supletivo, e veio o primeiro ano do segundo grau. Meus amigos todos já faziam uso de
álcool ... Aí pintaram outras drogas, como a cocaína, por exemplo.
Essas experiências de vida batizadas com álcool seguem no terceiro grau, não
necessariamente abrindo portas para outras drogas, apesar de haver muitos que fazem
consumo de mais de uma substância. Nas práticas de consumo de álcool e de outras
drogas os settings nem sempre são os mesmos ou necessariamente compatíveis:
Buda - Outro dia numa festa da galera (de medicina) onde se consumia muito
álcool, muito mesmo, acendi um baseado e tomei uma dura porque não podia fumar ali.
Que hipocrisia! Já o álcool tem o total aval, basta ver as chopadas onde o pessoal bebe
até passar mal. Nos trotes também o consumo é bem visto. Eles nem podem orientar os
pacientes a não beber, orientam a beber pouco pra não serem muito contraditórios.
177
- o que alguns nativos chamam de drogas artificiais são as drogas sintéticas (produzidas totalmente em
laboratórios como MDMA, LSD ou GHB) e as semi-sintéticas (produzidas em laboratório a partir de
algum elemento da natureza como heroína, cocaína ou crack). Levando em conta que, dos oito venenos
mais potentes hoje em dia, sete são produzidos pela própria natureza (VASCONCELOS: 20/02/10),
talvez a polarização entre drogas naturais e drogas artificiais não seja o critério mais adequado para
legitimar a maconha como substância não danosa.
219
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de trote, fila aula pra beber, acabou a aula tarde vai beber não sei aonde178. Em minha
época de graduação eu frequentava os botecos no uso de álcool.
T.V. - Suas primeiras experiências com substâncias psicoativas foram na faculdade
ou anteriores?
Mata - São anteriores, mas na faculdade se intensificaram. Álcool é uma coisa
cultural na minha família. Tem aquela coisa de se reunir, de beber, meu tio, meu pai,
meus irmãos. Eu bebo desde muito nova, claro, eu sempre fui orientada. Eu sempre
bebi nos bares, cerveja. Na escola também, no cursinho. Agora maconha eu comecei a
consumir no final do colegial, antes de entrar na faculdade.
178
- esta reflexão me lembra que em 2006 estive em Ribeirão Preto para participar de um encontro de
Enfermagem cujo tema era Saúde Mental e nos três dias que estive em meio à comunidade, nos intervalos
do evento o tema recorrente entre professores, conferencistas e estudantes girava sempre em torno do
álcool, e não álcool como problema, mas álcool enquanto solução (esse trocadilho não foi intencional).
Quais bares iriam frequentar quando a programação encerrava, era uma das questões que mais inquietava
a saúde mental dos participantes.
220
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maconha no café da manhã do hotel. De fato, eles fumaram, mas o dado que foi
desconsiderado é que a bomba e as brincadeiras foram atividades realizadas quando
estavam consumindo álcool de forma desmedida e não maconha. O dado que merece
reflexão é que, independentemente deles terem fumado um baseado e terem bebido
litros de álcool, na representação pública aquele comportamento desviante de estudantes
de medicina foi produto do consumo de maconha e não do álcool ou ao menos da
interação entre ambos. Como indica o interlocutor seguinte, mesmo entre os integrantes
da área médica o álcool não é sempre representado como uma substância psicoativa.
221
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especial em que, não tendo administrado com temperança seus consumos, o estudante
prefere fechar os olhos para não enxergar nos outros o que não quer ver em si mesmo:
Garrincha - Nos dois primeiros semestres eu não tive contato na faculdade com
pessoas que usavam drogas, é lógico que eu sacava quem usava, mas não tinha nem
conversa a respeito disso. Eu já vi algumas pessoas usando, vi algumas pessoas
chegarem com cheiro de droga, mas não quis nem saber os nomes delas.
Esse interlocutor que já foi usuário descontrolado de álcool, cocaína e crack estava
num momento em que não queria coexistência com quem pudesse remetê-lo ao passado,
até admitindo a coexistência à distância, mas não abrindo espaço para “conversa a
respeito disso”. Ele prefere deixar o passado para trás, mas há quem acredite que trazer
essa experiência polêmica para o presente pode ser não apenas catártico, mas
sociologicamente viável e politicamente correto.
Marley - Posso falar da minha experiência? Eu com 18 anos me envolvi com crack,
fumei durante um ano e meio... desestruturou completamente a minha vida. Cheguei a
sair de casa algumas vezes, brigas com minha mãe, cheguei a namorar uma garota de
programa (sorrindo de modo constrangido) que era usuária também. Cheguei a andar
com marginais que não faziam nada da vida, ficavam o tempo todo fora de casa.
Marley depois de dois meses sem estudar e vivendo pelas ruas voltou para casa, e em
seguida começou a fazer terapia. O fator decisivo que lhe fez mudar de atitude e buscar
ajuda foi a vergonha que sentiu diante da mãe:
222
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Deixando cair o receio inicial de expor uma situação delicada, Marley mostra nessa
fala catártica que a vergonha já foi superada. Se assim não o fosse, dificilmente ele
afirmaria que ainda fuma maconha, o que implica em que seja esta uma droga sobre a
qual ele pode supor exercer controle no consumo. Sua estrutura de vida está agora
baseada na sua carreira de universitário e não na sua carreira de usuário. Sendo uma
pessoa muito jovem, Marley demonstra uma capacidade de elaboração sobre uma
situação delicada que passa ao largo da vergonha, diferentemente de Garrincha.
223
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Garrincha - Não sei como é que tá hoje o relacionamento dos pais com os filhos
que fumam maconha, acho que a própria TV e o cinema já abordou de uma forma mais
apaziguadora. Minha vontade mesmo era de continuar usando. Aquilo (terapias) foram
tentativas da família pra contornar a situação. A gente ia pra terapia, mas nada que
tivesse uma sequência. Ia duas, três consultas e abandonava.
Se os processos terapêuticos aos quais foi submetido eram muito mais uma demanda
de sua família do que sua, Garrincha teve consciência de que seu desejo de consumo
não havia reduzido. Enquanto a busca por cura for apenas uma necessidade social na
tentativa para “contornar a situação” e não um desejo individual do consumidor quando
se percebe descontrolado, certos processos de cura podem até acabar provocando mais
danos:
179
- uma possível interpretação para a teoria do processo civilizador é que a interdependência entre os
indivíduos configura um “superego social” que faz com que os indivíduos parem de lutar entre si na busca
por realizar sua satisfação pulsional, para juntos lutarem pela segurança de sua comunidade de hábitos. Se
esta tentativa de ordenamento falhar pondo a integridade da comunidade em risco, o indivíduo que não
controlou suas emoções em prol da segurança do grupo pode ser psicologicamente punido, se sentindo
constrangido e envergonhado ante este grupo. (ELIAS:1993)
224
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A revolta de Garrincha quanto aos métodos de cura a que foi submetido parece
aumentar sua dificuldade para estabelecer controles informais quanto ao seu consumo.
Seu retorno ao consumo imediatamente após sair do internamento acabou sendo sua
resposta à internação forçada, apontando que aqueles métodos que não lhe permitiam
margem de escolha, falharam com ele. Essa resposta social pouco reflexiva e muito
mais reativa mostra como a vergonha vivenciada por Marley se mostrou mais eficiente
que a revolta de Garrincha quanto ao processo pessoal para estabelecer controles
informais sobre o consumo:
225
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Garrincha - O CETAD tem uma questão de redução de danos, essa redução pra
quem tem dependência química, talvez não seja o melhor. Porque imagina no meu caso,
tirar a cocaína, não dá pra reduzir os danos usando maconha, porque eu retorno pra
cocaína. Eu não tou dizendo que a maconha é uma porta de entrada, não é isso, é por
causa do ambiente, eu tou fumando um e daqui a pouco eu já tou indo pra onde rola a
cocaína e o álcool.
226
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emblemática nessa delegação de poderes foi que, muito cedo, houve interferência de
controles formais na relação entre Garrincha e seus consumos, a interferência da polícia:
Garrincha - Aos 16 anos a polícia me pegou usando droga na rua e com uma certa
quantidade, aí fui levado pra delegacia do menor e adolescente, tive que frequentar
assistente social todo mês, e meu pai tomou uma atitude; arranjou um emprego pra
mim.
Rimbaud - Uma coisa de não ter conversado com meu pai, foi a circunstância em
que ele descobriu foi um nocaute... foi quando eu acabei sendo preso... foi engraçado
que foi na época do aniversário dele. Ele foi me buscar na delegacia, ele tava até
bebendo... ele falou: “ó como é que eu descobri que você fuma... aquela coisa. A partir
daí ele veio com o discurso, de que tinha a preocupação de que eu tava abusando da
substância.
227
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T.V. - Nesse período como você arranjava dinheiro pra comprar drogas? Você
tava trabalhando?
Garrincha - Não, não tava... o jeito de arranjar dinheiro é complicado. Às vezes
pegava emprestado... às vezes vendia alguma coisa minha... antes conseguia sustentar o
meu vício, já trafiquei pra sustentar o vício, em Brasília.
Garrincha encerrou esta última fala cabisbaixo, com dificuldade para traduzir a
vergonha em palavras, inclusive se retirando por alguns minutos para consumir um
cigarro de tabaco no silêncio do jardim. O que lhe proporcionou tanto constrangimento
é que ele durante certo período praticou pequenos furtos, hábito que pouco tempo
depois de nosso derradeiro encontro, veio a retomar, desta vez em relação a objetos da
própria casa, sendo posteriormente conduzido pelos familiares para nova internação. O
que este caso permite questionar é: como a responsabilização pelos riscos corridos pode
ser útil a Garrincha? Uma possível resposta está na minimização do seu sentimento de
vergonha por não controlar os tais riscos.
Em relação às expectativas dos outros interlocutores da pesquisa foi possível
verificar que hermeneuticamente, cada um sustenta uma visão muito particular do que
sejam riscos, riscos muitas vezes interpenetrados com danos. A responsabilização pelos
próprios riscos180 pode ser interpretada como uma estratégia profilática, um
procedimento a priori. Por sua vez, a redução de danos é uma estratégia terapêutica, a
posteriori. Já que nem sempre os interlocutores operam esta diferenciação conceitual, é
viável relacionar as estratégias e perspectivas definidas por eles como ressignificações
sobre o consumo de drogas. Estas estratégias são aqui interpretadas enquanto
configurações de habitus sociais de controle.
180
- na perspectiva de Beck (1997,15), a sociedade contemporânea é uma sociedade de risco na qual “os
riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o
controle e a proteção”. A modernização reflexiva possível estaria na responsabilização individual
(1997,18) por este controle e por esta proteção, pondo em xeque o que foi previamente estabelecido por
instituições e especialistas.
228
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Para os que pensam como Lampião, redução de danos não é política pública, é
política de vida. Enquanto política de vida, os controles informais que estão em
circulação na cultura de consumo, não seriam eficientes enquanto mecanismos de
segurança, se, cada consumidor como “sujeito de sua ação” não abraçasse sua cota de
responsabilidade sobre a administração de seus consumos. Nessa cultura que mimetiza
emoções e na qual a exposição a riscos e a busca por segurança são indissociáveis, a
redução de danos acaba sendo interpretada como um mecanismo de controle sobre o
corpo, que ao se tornar habitus social, está à disposição do próprio consumidor. Eis o
processo civilizador! E se num momento anterior desta pesquisa alguns estudantes
questionaram a quem a redução de danos favorecia, serão os próprios estudantes
pesquisados, através da interpretação de fragmentos de suas trajetórias que fornecerão
possíveis respostas. Afinal, de qual(is) perspectiva(s) de redução de danos estamos
falando?
181
- na pg. 261, a comunidade Growroom será trazida para o primeiro plano da investigação.
229
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maconheiro fuma e fala: “maconha não é droga182, maconha não causa danos, então
como é que vem falar de redução de danos pra maconha?” Eu levei de 2003 até hoje
(2007), pra convencer as pessoas da comunidade que eles fazem redução de danos!
Agora eles compraram essa idéia de que a redução de danos foi uma questão de
proteção pra comunidade não ser acusada de apologia, inclusive eles não se sentem
como redutores de danos, eles se sentem como membros de uma comunidade que ajuda
outros membros daquela comunidade. Na verdade é isso mesmo porque o nativo é o
cara que fuma e planta e que quer ajudar outras pessoas a plantar. A lógica é quem
precisa de cuidados são os doentes. “Eu não tou doente!”. Essa é a lógica, eles
compraram a idéia de que a comunidade é uma redução de danos mais pelo fato de que
esta é uma capa de que isto não é apologia, não é incentivo, incitação ao crime.
182
- levando em conta o ponto de vista desses consumidores não há como pensar na maconha como porta
de entrada para outras drogas, porque a maconha é, num bom número de casos, a única droga que eles
consomem.
230
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Mesmo que pareça redundante é importante observar que a redução de danos sociais
começa com o processamento da redução de riscos psicológicos para a própria redutora
que já não se dispõe a por sua segurança em risco em prol de uma suposta liberdade
incondicional. Partindo de sua experiência, Leila ao atuar como redutora de danos tem a
possibilidade de obter satisfação pessoal facilitando a satisfação segura de outras
pessoas, na prática efetuando duas reduções de riscos ao mesmo tempo. A segurança da
comunidade passa diretamente pela segurança que seus indivíduos integrantes
configuram em torno dos riscos que sua busca por liberdade acarreta. Outra redutora de
danos assim vivencia a questão:
T.V. - E como você aplica sua redução de danos pessoal trabalhando em raves, já
que você também gosta de raves?
Mata Hari - Eu não gosto de misturar, eu tenho alguns amigos que fazem uso, mas
eles seguram a onda, entendeu? Eu não gosto porque eu sou muito sensível. Eu já fui
atender pessoas com uma dor muito expressa e se te contamina..., eu fico carregada
com aquela experiência. Se eu usar uma substância eu não vou dar conta, entendeu?
Eu só uso quando a gente trabalha em festa com mais de 24 horas, depois que acabou
meu turno de trabalho, vou fazer uso.
Eu me dou bem com isso porque eu aprendi a redução de danos. Aprendi isso na
prática. Então eu tenho que ter o cuidado com a outra pessoa e isso faz parte da minha
profissão. Quando eu vi a proposta de redução de danos da galera eu me identifiquei, é
uma coisa que eles vem fazendo e que eu venho fazendo também comigo mesmo (risos).
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Mata prefere não consumir substâncias psicoativas para poder trabalhar com maior
margem de segurança, e desse modo sua liberdade está em optar por não consumir no
momento em que não acredita ser adequado. Se, enquanto residente de medicina, ela
encontra resistência até para discutir a redução de danos, na cena eletrônica, Mata
encontra um setting receptivo para suas práticas, até em função de sua ludicidade. Já
alguns ambientes, onde esta estratégia de controle começa gradativamente a ser
processada, não são tão lúdicos quanto o setting da cena eletrônica:
Buda - Trabalhei dois anos no Presídio Lemos Brito e lá, a maconha é que segura
a cadeia. Os caras fodidos, os “couro de rato183”, fumam qualquer coisa que brota, o
que chamam de cigarro “pacaia”. Eu fazia uma redução de danos com eles, não só em
relação a sexo, mas também em relação ao uso de drogas.
183
- os “couro de rato” são a escória na hierarquia prisional. Nesse sentido, esses presos não se percebem
como outsiders, pois não manifestam aspirações em reverter tal estigma. São desviantes tipificados.
184
- se estão encarcerados num presídio estes indivíduos são consumidores falhos pela própria condição
de exclusão em que se encontram, excluídos do consumo da plena cidadania!
185
- a pinga destilada pelos presos na cadeia é chamada “Maria Louca”, como se percebe no filme
Estômago, (Jorge, 2007).
186
- sobre esta constatação e sua reflexão ver capítulo seguinte.
232
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causados pelo trabalho muitas vezes estressante, no qual a vida de outra pessoa pode
estar em jogo:
T.V. - Nesse momento em que seu trabalho como pesquisador tá tendo uma
representabilidade boa na comunidade, como você tá levando sua vida enquanto
usuário?
233
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Pancho Villa - Eu não me declaro como usuário, porque como pesquisador você já é
considerado suspeito de ser usuário. Se você falar de cocaína o pessoal ainda olha
assim e tal, mas se falar de maconha, você é maconheiro! Aí você ainda fala sobre
ativismo, fala sobre autocultivo como redução de danos, então eu sou visto como
usuário o tempo todo. Minha mãe é tranquila, meu pai também. Minha esposa não usa,
morre de medo, não tinha contato nenhum com esse universo. Se eu morasse sozinho
provavelmente eu plantaria uma quantidade grande. Eu não faço isso por causa dela,
não porque ela me pede, mas porque eu fico com receio de eu ser preso e ela ficar
fodida. O receio maior da minha esposa é que eu teja sendo investigado por apologia
ou por incentivo ao uso. Isso tem alterado a minha vida a ponto de eu estar cada vez
mais exposto na mídia. Eu evito fumar em qualquer lugar, me expor. Meu irmão queria
plantar, e eu disse: dou a teoria, lhe digo como fazer, mas depois de começar evite falar
comigo (risos). Porque quando rolar uma coisa dessa na cidade a primeira pessoa a ser
investigada vai ser eu.
T.V. - Se vivemos numa sociedade de risco, a sua carreira tá pondo sua vida
particular em risco. Tá valendo a pena correr esse risco?
Pancho Villa - Vale a pena, eu tou no caminho certo, eu tou falando de uma forma
que as pessoas tão escutand,o sem fazer apologia. Eu recebo elogios de pessoas que eu
não conheço através do orkut. Fizeram questão de mandar mensagem pra dar força. O
perfil do blog foi acessado quase 13 mil vezes. Eu não sei quem tá vendo isso, mas
enfim, tá lá.
Após viver certo período de encantamento com o se tornar “pop-star das drogas”,
como ele mesmo se definiu, Pancho em função de sua segurança teve que mudar o
discurso. Para não correr mais riscos de ver confundirem um movimento social em prol
da descriminalização da maconha com a sua figura pessoal, ele se retraiu da excessiva
exposição pública. Ele, uma colega e um professor foram intimados a comparecer a
Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes para prestar depoimentos sobre o envolvimento
com a Marcha da Maconha 2008. Pancho foi investigado por suspeita de apologia e
associação ao tráfico, enquanto sua colega e o professor foram ouvidos como
testemunhas. Se essa trajetória pode indicar que na configuração de certos settings
quem acaba precisando de redução de riscos e danos sociais é o próprio pesquisador,
nem todo setting se configura assim. Há setting em que uma consumidora que correu o
risco de ser estigmatizada vem a se tornar uma redutora de danos estabelecida:
234
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Uma das referências básicas para o pleno fluir do sistema especialista é a presença de
confiança. Estabelecer confiança numa perspectiva comunitária é horizontalizar as
relações. Leila se sentiu desconfortável quando foi acusada por uma tomadora de chá de
colocá-la em risco, abalando uma relação de confiança. A partir de então, seu
procedimento de redução de riscos não abrangeu apenas controlar sua faceta de
tomadora de chá, mas também saber em que medida sua faceta de tomadora de chá
poderia fornecer reflexões úteis para reduzir tais constrangimentos nas relações de
confiança.
T.V. - Você se vê mais ligada às drogas como pesquisadora, como usuária ou não
há essa separação?
Leila Diniz - Essa é uma coisa que até hoje eu tou tentando separar a ferro e fogo
(risos). É diferente porque você tem que assumir uma postura crítica em relação à sua
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ação, e quando você começa a estudar o uso de substâncias psicoativas você está se
estudando também. A própria idéia da redução de danos que é uma idéia de cuidar de
si mesmo, mudou muito minha relação com a droga. Por exemplo, eu vou fazer campo
numa festa de música eletrônica, geralmente eu não tomo nada, porque eu não consigo
anotar, é uma experiência muito imersiva. Mas eu já tomei em festa, com finalidade de
pesquisa, eu queria ver como é que é.
T.V. - A sua família tem conhecimento do seu projeto?
Leila Diniz - Tem porque viram no jornal (risos), nem fui eu que contei. Acharam
ótimo... eles evitam falar sobre drogas, mas começaram a perceber que eu tava usando
maconha, mas tava produzindo, olharam com olhos ótimos!
T.V. - Porque você não comunicou a eles, souberam pelo jornal?
Leila Diniz - Na verdade foi um vacilo meu porque eles sabiam que eu estudava
drogas.
T.V. - Até que ponto você está envolvido com redução de danos?
Oscar Wilde - Eu tou num grupo de estudo que desenvolve essa ação em várias
festas de música eletrônica, em duas ou três ocasiões eu já os acompanhei pra ver a
ação de perto, isso porque eu também tenho pesquisas nessa área. Eu pude observar
que muitas pessoas são desinformadas, vi reações de pessoas quando foram informadas
com os flyers sobre as várias substâncias. Até então, muitos não tinham visto
informações sobre drogas de maneira clara: “se você vai usar tome cuidado!”... Esse é
um festival que custa caro, é um público de classe média alta. A entrada lá na portaria
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Blavatsky - O uso de maconha não foi e foi problemático pra mim no seguinte
aspecto: eu era uma pessoa que fumava maconha, mas eu trabalhava, estudava, e
desenvolvia todas as minhas tarefas tranquilamente. Eu consumia uma quantidade de
maconha muito grande, eu fumava 8 a 10 baseados por dia, meio quilo por mês. Era
uma coisa que tava no meu dia todo, então tudo que eu fazia tinha que ser fumado, era
uma coisa que era uma dependência mesmo. Isso não atrapalhava minhas atividades.
Embora muitas pessoas não consigam, eu tinha uma vida aparentemente normal com
isso. Agora, uma coisa me trazia alguns problemas, como tudo que eu tinha que fazer
eu tinha que fumar e nem todo lugar eu podia fumar, então eu evitava ir pra lugares
onde eu não poderia fumar. Então isso era uma coisa que me limitava um pouco porque
eu tinha essa dependência.
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187
- sua postura ética de incriminar terceiros para inocentar sua cliente, mereceria um outro debate.
188
- a mesma quadra que foi filmada e exibida no teleprograma Se liga Bocão!, (pg. 140).
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T.V. – Se você parar de traficar agora daria pra manter o padrão de vida?
Nietzsche - É difícil, tem um certo status também...
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T.V. - Você que até pouco tempo morava com sua família - ele se mudou uma
semana antes dessa entrevista - como é que você administra pra não entrar em
paranóia?
Nietzsche - Rapaz, é uma relação difícil pra porra! Administrar o usuário e o
comerciante, sabe? Tem que ser administrado com o máximo de frieza, o máximo de
cálculo. Nem sempre dá certo, às vezes você usa demais o que não pode usar, mas é
isso mesmo.
T.V. - E a questão da segurança já lhe deixou paranóico?
Nietzsche - Já sim! Não tem como não ficar paranóico, eu sou paranóico (risos). Cê
tem que se armar com todos os artifícios, cê tem que prestar atenção em todos os
detalhes porque o Diabo mora nos detalhes.
Outro ponto em comum entre Nietzsche e Blavatsky é que ao contrário do que pode
sugerir o status de ser traficante e apesar dos riscos corridos, ambos buscavam uma
relação com os clientes que não os reduzissem à condição de meros comerciantes, mas
que os situassem como indivíduos que fazem parte da comunidade e que também são
fornecedores, ressignificando assim a representação estabelecida do traficante como
comerciante insensível cujo foco é exclusivamente o lucro econômico:
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Mesmo que possa ser interpretada como estratégia de marketing, essa é a visão que
Nietzsche sustenta como representação pública de sua atividade: além de uma margem
básica de lucro e status entre os pares, ele opera reduzindo os danos dos clientes por
evitar que estes tenham “contato com a criminalidade” das bocas-de-fumo. Essa
perspectiva de redução de danos, entretanto, não poderia ser aplicada a ele mesmo que
acaba sendo a conexão entre a marginalidade e a comunidade universitária, e esse é um
ponto levado em conta por sua namorada, que - como no caso da esposa de Pancho -
tem restrições ao seu arriscado estilo de vida, servindo-lhe até como referencial de
controle:
T.V. - Você já disse que seu foco tá no presente, mas você pensa em ter família,
filhos?
Nietzsche - Tenho planos sim, adoro dormir com uma costelinha do lado, tenho a
maior vontade de ser pai... eu tenho preferência por mulheres mais sossegadas, de
preferência usuárias eventuais, porra louca é foda! A atual é legal, trabalha, faz as
coisas dela. Ela tá doida pra que eu acabe com o movimento, tenho planos de parar
com isso até o final do verão, quem sabe?
T.V. - Se você “parar” agora daria pra manter o padrão de vida?
Nietzsche - É difícil, tem um certo status também, mas eu disse pra ela através de
música: “por você eu largo tudo/ carreira, dinheiro e canudo”, (risos), e eu tou com
outros projetos aí que vai dar poder estabilizar e manter o padrão, um projeto ligado a
música e a barzinho, barraca de praia.
T.V. - Como você administra seu tempo já que você tem o material a disposição,
você tem o controle da hora pra relaxar e da hora pra produzir?
Nietzsche - Tenho que ter, tem o momento que você tá usando e que você não
consegue fazer nada, nem vender, o celular tem que ficar em off, é melhor porque tem
dias que o celular não pára. Outro dia eu dei um grito no ônibus, eu recebi 20 ligações
em meia-hora, um engarrafamento da porra...
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torna-se compreensível que outros usuários que já fizeram algum tráfico esporádico
tenham motivos para se mostrarem tão tranquilos, agora que olham para esse tempo
enfocando-o como um passado distante:
Leila Diniz - Eu ganhei algum dinheiro quando eu comecei a morar fora vendendo
ácido. Ganhava alguns ácidos e vendia. Dois ácidos na época, R$ 120,00, era metade
do aluguel. Eu pegava seis ácidos vendia cinco, tirava dinheiro e ainda ficava com o
meu pra ir pruma festa. Maconha eu geralmente comprava 250 gramas, vendia metade,
aí pagava a minha maconha e ficava com o resto.
Mozart - Já fui em boca, já peguei quilo, já vendi quilo, hoje não faço mais isso de
jeito nenhum. Já fui pro Rio, pra SP vender, não faço mais isso.
T.V. - e como é que foi isso?
Mozart - Ia vender um quilo encomendado, de busu189. Não quero nem me lembrar,
é foda! O que você vai sofrer se pegarem... Embalados em folha de dendê, eu botava na
bagagem dos outros. Fiz isso umas três vezes. Eu preferia pegar menos, vendia pros
amigos e tirava o meu pra consumir. Eu tinha 25 anos.
Se nesse último relato chamam a atenção tanto o intenso risco de tal empreitada
quanto a estratégia defensiva de Mozart - colocar o flagrante na bagagem dos outros -,
também deve ser relevante a justificativa para este envolvimento com o risco do tráfico:
“Eu tinha 25 anos”. Nesse sentido, vale também ressaltar que este interlocutor foi o que
entrou na universidade em idade mais tardia, 31 anos, quando os riscos da juventude
não o seduziam mais. No seu ponto de vista, a carreira universitária se tornou sedutora
em função de que: “É outra viagem com essa idade”. Aos 25 anos de idade Mozart
ainda não havia sido “civilizado” pelos controles informais, e em retrospecto, quando
ele recorda esse período de tráfico, seus olhos se arregalam enquanto leva as mãos à
cabeça como se para evitar que ela caísse. Agora que Mozart é universitário e pai, ele
civilizadamente tem muito mais interesse em que a maconha seja descriminalizada para
que nem como consumidor ele esteja exposto a riscos.
Em números relativos, 91% da população de interlocutores acreditam que a
descriminalização é uma estratégia que deve ser implementada enquanto parte de uma
189
- busu = ônibus.
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política pública voltada para a redução de riscos dos usuários. Em meio a uma
população total de 22 pessoas, apenas um interlocutor se absteve de opinar a respeito,
enquanto um outro se manifestou em sentido contrário a descriminalização:
190
- é possível perceber que o reencantamento em torno da cultura das drogas ganha interpretações
maniqueístas.
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Buda - Eu sou a favor da legalização, acho que a maconha precisa ser legalizada,
dentro de uma regulamentação seria, em que ela vai ser vendida somente em locais
autorizados. O consumo não vai ser no meio da rua, as pessoas vão poder consumir só
em suas casas, mas passos precisam ser dados, e o primeiro passo é a
descriminalização. Acho que os usuários têm direito de plantar. Os maiores danos
causados pela maconha são danos causados pela proibição dela, porque você consome
substâncias de péssima qualidade, você é sujeito a riscos quando vai adquirir a
substância e você é tido como criminoso.
T.V. - E em relação às outras drogas ilícitas?
Buda - Olha é complicado porque todas as drogas carregam a cultura da droga, o
que foi consumido por grupos sociais associados a histórias e a personagens, como fica
no imaginário de cada pessoa sobre o que cada droga causa, então fica difícil se
comunicar com a sociedade como um todo sobre as drogas. No caso da maconha eu
acho que já existe uma comunicação em todas as classes sociais independente do nível
cultural, do nível do acesso a educação, as pessoas sabem, gerações de pais já
consumiram. Mas eu acho complicado discutir a legalização de drogas sintéticas
porque tem muita gente que não sabe nem o que é, o que causa. Eu acho que isto tem
que ser visto a nível de saúde pública, no sentido de ver o que vai fazer pra abrigar
esses usuários, pra mim essa é a questão fundamental. Reconhecer que os usuários
existem, porque as substâncias são consumidas, sempre foram e sempre serão. O
sistema de saúde tem que acolher essas pessoas que tem problemas e algumas
necessidades.
Os aspectos básicos aqui apontados pela argumentação de Buda giram em torno dos
riscos vividos pelos consumidores em decorrência da proibição como sendo os maiores
danos à saúde. Buda acredita que é preciso contextualizar as culturas das drogas antes
de colocar maconha e êxtase lado a lado, pois na prática, uma descriminalização geral
sem enfatizar a reflexão sobre as diferentes drogas e seus distintos sets e settings se
enquadraria numa perspectiva multiculturalista, o que acaba sendo muito mais propício
à propagação da cultura de consumo do que para a saúde do consumidor.
247
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“Se você tem dinheiro, droga você vai achar”, eis a lógica da cultura de consumo!
Um problema implícito a esse raciocínio é que quem não tem dinheiro também vai
desejar consumir, e aí se configura um conflito de interesses que faz do tráfico e da
violência fenômenos estruturados na cultura de consumo e não à parte, como se
excluídos incondicionalmente. Diante da remota possibilidade da erradicação das
drogas, parece claro para Mata que a redução de riscos básicos está na redução da
violência; seja a violência física diretamente ligada ao tráfico, seja violência psicológica
ao tratar o que pode ser um problema de saúde como um problema criminal.
191
- Maconha/Grass (MANN:1999), o filme proibido para os universitários da UFMG.
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usuária sobre a descriminalização: “Uma economista disse que se durante muito tempo
muitas pessoas infringem uma lei, esta lei deve ser revista”. A conversa entre ambas
ficou nesse ponto, e, enquanto a revisão da lei está sendo negociada num processo que
nem sempre pode ser percebido como civilizado, Tutancamon se equivoca ao concluir
que não há um porquê para que se carregue esse ranço estigmatizante sobre a maconha.
Se ele assistir o filme Grass com mais atenção, ele poderá perceber porque.
No que diz respeito ao consumidor universitário, hoje em dia há uma representação
dominante ligando seu consumo, não só de maconha, mas de drogas em geral, à
individualização excessiva (Lipovetsky:2005,2006), ao descompromisso com questões
sociais. Entretanto, esta representação não condiz com a realidade dos interlocutores, já
que 18% deles estão envolvidos com pesquisas acadêmicas relacionadas ao consumo de
drogas, e 32% estão envolvidos com redução de danos e ativismo. Num recorte
reflexivo, mesmo os que não se envolvem especificamente com a temática estão
preocupados com os consumidores economicamente excluídos e os estigmas que os
cercam, não por uma perspectiva moral, mas sim por uma perspectiva pragmática:
249
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Da Vinci - Porque você conseguiria dar uma finalidade pra esse dinheiro (gasto
para manter o proibicionismo), ser investido no social. Esse poderia ser um dos passos,
investir em segurança pública...
Lampião - Não acho que o Estado tem que agir de maneira punitiva, tem que agir de
maneira preventiva e educativa. Não só pela mudança da lei, mas pela derrubada de
mitos sobre psicoativos pra sociedade como um todo. Resolveria o controle sobre a
mercadoria, passaria a não ser mais mercadoria contrabandeada nem ilegal, levando
às esferas legais o conseguir e o consumir, livrando da marginalização que envolve o
uso e até quem não consome, mas tá vendendo. Polícia sobe o morro atrás de
traficante, mas quem tá por trás deles são políticos.
Lampião fala em “derrubada de mitos sobre psicoativos” como algo tão ou mais
importante do que mudança de leis, pois enquanto representações os mitos podem ser
dispositivos de controle mais fortes e rígidos do que as próprias leis. Além disso, ele
sinaliza que o traficante do morro não é o ponto inicial da cadeia criminosa, é apenas
um elo. Já a reflexão de Oscar põe em perspectiva uma articulação mercadológica
complexa na qual o tráfico e a indústria farmacêutica não são fenômenos desconectados.
Ambos os interlocutores insistem na reflexão de que o risco maior é não reconhecer que
a ilegalidade gera mais dificuldades para que os controles formais sejam
suficientemente eficazes.
250
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T.V. - Você já pensou em uma alternativa para o consumo que não o tráfico
convencional?
Hofmann - Complexa é a lei que não permite ainda a produção. Porque
conhecimento, principalmente na área de saúde, se tem, para a produção de qualquer
uma dessas substâncias, seja natural ou sintética. Existem alguns produtos que são
controlados exatamente pelo processo de fabricação ser proibido. Eu acredito que o
governo deveria prover meios alternativos para a compra de substâncias, uma vez que
já foi decretada em 2006, a descriminalização. Como pode o consumo deixar de ser
crime e ainda assim a compra e a venda serem crime? Como vai o usuário adquirir
essas substâncias? Onde está o governo, já que não quer o tráfico para fornecer, nem
que seja cobrando uma taxa? Se ele não pode assumir não pode deixar na mão daquele
que só tem interesse financeiro. Então ele não pode privar você, que não tem interesse
de se envolver nem com o governo, nem com interesse do traficante, nem com a
produção da substância. Tem que se propor uma outra lei!
Acho que se deveria, sim, propor medidas novas de como gerenciar isso, uma vez
que o governo dá um passo pra frente e dois pra trás. A gente vai acabar indo pra lugar
nenhum, com um regime mais totalitarista ainda, porque estamos num momento tão
complexo que já tamos voltando ao discurso de proibir o tabaco, o álcool, e tentar
controlar o consumo de substâncias psicoativas da população. Agora é tarja preta e
não mais vermelha, a retenção da receita na farmácia. Na verdade é uma política
liberal que tem uma máscara de uma política proibitiva. E não que eu seja a favor do
álcool, porque eu particularmente sou contra, sou a favor da lei seca em função dos
acidentes que ocorrem, e não fumo tabaco, mas gostaria de assegurar o direito de
usuários de álcool e tabaco de usarem as substâncias deles.
Hofmann fala em uma “política liberal que tem uma máscara de uma política
proibitiva”, caracterizando um dispositivo de controle através do qual parece que o
consumo de drogas está sendo combatido, mas está sendo apenas ressignificado.
Hofmann poderia ficar calmamente no seu apartamento de cobertura colhendo os frutos
de sua plantação de skank, mas prefere arriscar alguma inquietação reflexiva. Ele parte
do ponto de vista jurídico ao afirmar que o governo “não pode privar você” de suas
demandas de consumo. “a retenção da receita na farmácia” é o ônus da prova de que o
governo não priva você, apenas lhe reclassifica de consumidor para cliente de um
sistema especialista, o sistema médico. Pondo esta reflexão em diálogo com o que disse
251
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Oscar anteriormente, “A gente sabe do lobby das indústrias farmacêuticas que não têm
interesse em descriminalizar”, fica configurado o atual mapa do consumo. Os que
dispõem de dinheiro podem se tornar os clientes com receitas para adquirir
benzodiazepínicos e antidepressivos, enquanto os excluídos do mercado econômico ou
outsiders às configurações culturais dominantes correm o risco de serem representados
como falhos, por consumir crack ou maconha.
252
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192
- marcha que desde 1994 já aconteceu anualmente em mais de 200 cidades espalhadas pelo mundo.
253
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O que o coletivo traz para o primeiro plano da discussão é que já não há mais
legitimidade para que uma interpretação sobre as leis e a representabilidade de hábitos
“de acordo com os argumentos que são mais cabíveis aos propósitos” de uma
comunidade com interesses contrários à questão, seja estabelecida como a Verdade
histórica. Em seu ponto de vista é aí que se encontra o erro histórico. Os integrantes da
ANANDA também perceberam que a marcha já cumpriu seu papel, pois mesmo tendo
sua data de realização procrastinada, a reflexividade em torno de sua proposta se
consolidou em escala mais ampla do que a originalmente objetivada; algumas pessoas
que não participam da cultura da maconha passaram a respeitar o movimento por não
concordarem com a demonização de um debate público sobre uma questão considerada
de interesse geral.
193
- a Parada Gay e a Parada do Orgulho Louco já foram incluídos nos calendários culturais da cidade.
254
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A Marcha da Maconha 2009 foi proibida de ocorrer na data original após a Justiça
acatar uma liminar do Ministério Público. O coletivo adiou o evento e nesse ínterim
entrou com recurso jurídico. A ANANDA foi às ruas duas vezes para se manifestar
contra a proibição de se expressar peripateticamente em marcha – assim, se manifestou
parada num ponto central da cidade, para não caracterizar a Marcha. Desse modo, o
coletivo conseguiu realizar uma boa troca de informações com a população em trânsito,
mesmo sendo observada pelos olhos de alguns agentes da Polícia Civil – que realizou
algumas detenções, mas não de membros do coletivo. Estes últimos exercitaram um
certo toque de dramaticidade mimética que chamou a atenção de muitos transeuntes:
01/05 - www.marchadamaconha.org
“Portando cartazes, faixas de protesto e usando mordaças e panos pretos
para lembrar o luto pela democracia, os ativistas da Ananda estiveram hoje,
no Farol da Barra, manifestando-se contra a decisão judicial que impediu a
realização da Marcha da Maconha”.
255
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Sem receio de sofrer retaliações ao expor seus membros, a ANANDA realiza uma
abertura ao debate com vários setores da sociedade. O coletivo busca interfaces com
órgãos oficiais, como a Instituição Fátima Cavalcanti de Redução de Danos, o CETAD
e o GIESP, sendo que este forneceu apoio financeiro e jurídico às Marchas. Além disso,
a ANANDA195 cujos membros circulam em vários setores do universo acadêmico
estabelecendo uma rede de informações em vários campos, configura a categoria
metaespecilistas196. Estes metaespecialistas na cultura das drogas buscam a superação
de reflexividades que se tornaram obsoletas quanto aos sentidos e às representações
sociais em curso, representações muitas vezes estabelecidas por especialistas que ao não
estabelecerem contato direto com esta cultura, apenas com suas consequências
negativas, operaram simplificações do fenômeno enquanto dinâmica cultural.
A estratégia dos metaespecialistas aqui focados é significar a problemática em torno
do consumo como uma questão política, e não apenas deslocá-la do campo
jurídicopolicial para o campo da saúde. As ações do coletivo não são realizadas sem
prévias pesquisas sobre leis, efeitos das substâncias nos organismos e no
comportamento social, lucratividade do mercado, etc. Desse modo, seus integrantes são
194
- nadador norte-americano recordista olímpico com 8 medalhas de ouro em Pequim 2008 que foi
fotografado fumando maconha numa festa na Universidade da Carolina do Sul (EUA), três meses após os
jogos olímpicos.
195
- observe-se que na enunciação desta segunda fase da ANANDA - agora a identificação completa é
ANANDA: Ativistas, Redutores de Danos e Pesquisadores Associados - os pesquisadores é que passam a
ser associados aos ativistas e aos redutores de danos.
196
- metaespecialistas enquanto categoria é uma tentativa de superação do sistema especialista
giddesiano. Nesse sentido, o metaespecialista visa estabelecer um paradigma que supere os precedentes.
256
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sujeitos reflexivos com potencial para construir e divulgar dados que de outra forma não
chegariam aos que não estão em salas de aula. Para refletir de modo engajado sobre os
efeitos deletérios dos controles sociais proibicionistas, o coletivo necessitou configurar
um corpo de conhecimentos que pudesse fazer frente às representações dos especialistas
ortodoxos; assim a comunidade é formada por estudantes de psicologia, direito,
antropologia, história, comunicação, medicina e biologia numa proposta transdisciplinar.
Mas apenas metaespecialistas não são suficientes para que a comunidade seja uma
legítima representação do social. O perfil diversificado dos integrantes do coletivo é
bem heterogêneo, pois além de estudantes, entre os ativistas e redutores de danos são
encontrados também artistas e artesãos, o que facilita a criação de algumas oficinas que
preparam o material para os eventos: faixas, cartazes, máscaras e outros materiais. Essas
produções coletivas favorecem que a interação e confiança do grupo não se restrinjam
apenas à realização da Marcha da Maconha e encontros formais. Cada um e todos
querem levar esta atividade reflexiva para seus campos de atuação pessoal. Os
integrantes se mostram entusiasmados com a receptividade e se percebe que a
comunidade encontrou uma outra possibilidade de construir satisfação coletiva ao
ressignificar a cultura das drogas, que assim deixa de ser apenas uma cultura recreativa
e passa a ser uma cultura política com potencial para desestigmatizar um estilo de vida
que até pouco tempo atrás seria publicamente representado como o fim de muitas
carreiras universitárias.
Apesar da receptividade e mesmo de uma maior aproximação dialógica entre os
ativistas e alguns membros da polícia civil em contato mais constante, os riscos ainda
estão presentes, pelo menos no set de alguns integrantes. A referência evocada no
coletivo foi o caso do ativista Aldo Bianzino que em 2007 faleceu na Itália em
circunstâncias não esclarecidas, após ser detido e conduzido a uma delegacia por
cultivar plantas de maconha com a finalidade de realizar pesquisa e produção de
medicamentos. Embora as detenções que aconteceram no Farol da Barra não tenham
sido acompanhadas de violência física, o fantasma dos controles formais inflexíveis
ainda está presente. Se na prática a redução de danos só configura sentido para os
envolvidos depois que alguns danos são vividos, a galera do coletivo legitima seu
direito à segurança reduzindo os riscos de forma preventiva197. Em todos os eventos ou
197
- e por falar em segurança, vale destacar que mais uma vez o pesquisador aqui foi lembrado de que não
era 100% nativo. Após participar de uma reunião do coletivo, foi levantada a suspeita de que ele gravou o
encontro sem autorização, por portar um aparelho de mp3 na cintura...
257
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258
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198
- de acordo com um dos organizadores da Marcha: “o lance da Mãe-de-Santo foi algo muito louco. Ela
é quem nos procurou, perguntando se poderia ir na Marcha. Me mandou um e-mail! eu disse que é claro,
iríamos adorar, e ela pareceu com os netinhos, a placa já pronta e toda vestida de baiana, inclusive com os
detalhes verdes. Ela disse que não é usuária mas o filho é, e ela não quer que ele morra por isso”.
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A diferença entre este caso e o do estudante que ficou detido acusado de tráfico em
2007 no Rio enquanto seus colegas retornaram para Salvador está na reação reflexiva.
Enquanto no primeiro caso os colegas se conformaram em lamentar a “injustiça” da
situação, no caso presente houve a mobilização dos colegas estudantes de psicologia e
posteriormente da Coordenação Nacional dos Estudantes de Psicologia, do Conselho
Federal de Psicologia e de dois Conselhos Regionais. Este respaldo institucional da
comunidade de Psicologia199 confere legitimidade e ampliação da reflexividade em
torno da problemática. Os três estudantes que foram acusados de tráfico acabaram num
primeiro plano representando a comunidade dos estudantes de psicologia que eram
usuários como também num plano mais amplo, representaram a comunidade de
Psicologia independentemente de seus membros serem usuários ou não. Esta
comunidade se reuniu para defender seus membros da estigmatização.
A amplitude do problema dos usuários acusados de tráfico está na imprecisão da lei
que leva a um impasse em relação à sua interpretação. Se em tese, a lei 11.343/06
desonera o usuário em detrimento do traficante, a definição prática de quem é usuário e
quem é traficante ainda gera polêmica, pois se concentra na interpretação do agente de
controle que julgar a ocorrência. Uma das contribuições mais significativas para analisar
as implicações dessa imprecisão decorre da reflexividade que está sendo gerada pela
pesquisa Tráfico de Drogas e Constituição no Brasil, realizada pelo Grupo de Pesquisa
em Política de Drogas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
em parceria com a Universidade de Brasília (Boiteux, Castilho, Vargas, Batista, Prado
& Japiassu, 2009). A pesquisa analisou 730 sentenças no Rio de Janeiro e em Brasília,
entre 2006 e 2008. Foi constatado que no Rio de Janeiro, 66,4% dos condenados por
tráfico de drogas são primários, 65,4% respondem apenas por tráfico (sem associação
ou quadrilha), 60,8% foram presos sozinhos, 91,9% em flagrante e apenas 14,1%
estavam armados. A análise dos dados indica que a atuação da Justiça Penal acaba
enquadrando os elos mais vulneráveis, ou seja, os pequenos traficantes – que não são
peças centrais do tráfico, sendo rapidamente substituídos na rede de vendas. O mais
problemático é que na prática também são enquadrados muitos usuários, pois apesar da
199
- e esta mudança de postura no campo da psicologia é significativa, pois, quando estudante de
graduação neste curso, estagiando no atendimento clínico no começo da década de 1990, havia uma
orientação para que os estagiários não atendessem casos de usuários de drogas. De acordo com os
professores que nos orientavam, este era um campo problemático que só os psiquiatras estavam
devidamente aparelhados para enfrentar. Lembro que fui o único estudante a quebrar este padrão e de ter
virado motivo de piada entre os colegas por este motivo.
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nova Lei de Drogas em tese ter desvinculado o usuário da pena de cárcere, o artigo 33
não é claro na diferenciação entre o usuário e o pequeno traficante.
Eis um risco ao qual estão expostos não apenas os três estudantes acusados em Belo
Horizonte, mas inclusive, muitos usuários que não terão Conselhos ou Coordenações
Nacionais para lutar por seus direitos. Nesse sentido, alguns intelectuais estão buscando
alternativas para forjar a reflexividade das esferas governamentais. Um exemplo dessa
vertente é representada pela Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia,
formada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao lado de mais dois ex-
presidentes, Cesar Gavíria da Colômbia e Ernesto Zedillo do México, e de alguns
intelectuais e escritores como Vargas Llosa e Paulo Coelho. O objetivo desta comissão
é propor uma mudança de foco para encarar a problemática das drogas, não mais
representando-as necessariamente como caso de polícia e sim como caso de saúde
pública. Começando pela maconha, a proposta da comissão estuda a descriminalização
de sua posse, seguindo uma lógica explicitada na seguinte matéria:
200
- esse padrão não é novo. Como já foi indicado no item 1.7, a extinção da lei seca em 1933 ajudou a
economia estadunidense a superar a crise econômica de 1929.
263
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consumo na qual cada droga deve ser pensada de modo específico, de acordo com suas
características, ou seja, se há uma regulação maior para o consumo de álcool e tabaco,
também pode haver não apenas tolerância maior para o consumo de maconha, mas uma
regulação para o seu consumo. Se por um lado, os especialistas ortodoxos continuam
tentando impor sanções indistintas para usuários de maconha e de crack, especialistas
heterodoxos já divulgam que a maconha é tão diferente do crack quanto os
antidepressivos são dos ansiolíticos. De acordo com Masur e Carlini os piores efeitos da
maconha estão nos controles sociais que lhes são impostos. Segundo dizem, a:
265
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entre o uso de maconha e o desvio social já não é mais adequada? Nessa perspectiva
em que o proibicionismo vai deixando de ditar incondicionalmente o que é saudável ou
não, já não soa contraditório que se faça um uso terapêutico da maconha201 como
ansiolítico, como redutor de ansiedade. E mais, os neurocientistas Renato Malcher-
Lopes e Sidarta Ribeiro no livro Maconha, cérebro e saúde apontam que não é só como
ansiolítico que a maconha vem sendo administrada, pois se pode até relacioná-la a um
modo de uso antidepressor: “há evidencias de que certos usuários de maconha a
utilizam como uma forma de automedicação contra depressão”202 (Malcher-Lopes &
Ribeiro: 2007,87). Indo além, Malcher-Lopes e Ribeiro efetuam uma investigação sobre
os efeitos cerebrais e fisiológicos da maconha, desconstruindo algumas representações
estabelecidas ao constatar que:
201
- mas numa perspectiva exclusivamente terapêutica, não recreativa. Segundo Carlini em entrevista a
revista da FAPESP (O uso medicinal da maconha, 17/02/10), o CEBRID (Centro Brasileiro de Estudos
sobre Drogas Psicotrópicas) pautou para maio de 2010 um simpósio internacional sobre maconha com o
título de “Por uma agência brasileira da Cannabis medicinal?”, no qual será debatida a viabilidade da
maconha terapêutica no Brasil. O primeiro passo nessa direção seria a criação de uma agência nacional da
Cannabis ligada ao Ministério da Saúde, sem a qual a ONU não aprovaria investimentos em estudos
desse porte com uma substância proibida. A análise sobre a manutenção da proibição do uso recreativo da
maconha estaria fora da alçada dessa agência.
202
- a anandamida, um canabinóide endógeno, inibe uma maior proliferação neuronal no hipocampo,
proliferação que se especula estar diretamente conectada a incidencia de depressão (MALCHER-LOPES
& RIBEIRO:2007,86).
203
- de acordo com informações diretamente recebidas de um ativista estadunidense, há nos EUA poucos
estudos sendo realizados com a planta integral em benefício de estudos com suas substâncias isoladas e
puras. Assim, de acordo com o ponto de vista dos ativistas, são favorecidas pesquisas sobre os
cannabinóides naturais e sintéticos que podem ser produzidos por laboratórios - abordagem compatível
com os interesses da "Big Pharma" (os poderosos conglomerados que dirigem a indústria farmacêutica) -
e não sobre a maconha como planta que pode ser fumada – o que interessaria aos usuários recreativos e
aos autocultivadores.
266
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A consumação dessa lucratividade é algo que ainda deve ser investigado com mais
apuro, principalmente por indicar numa direção oposta, mas diretamente interpenetrada
com uma modalidade de consumo que há muito se tornou insustentável para a maioria
dos cidadãos; o consumo da violência ligada ao tráfico204. O problema da violência
mesmo quando não é central na estrutura de vida dos interlocutores – já que não
frequentam bocas de fumo nem percebem tal aventura como romântica ou excitante -
está sempre presente nas representações do cotidiano:
204
- é merecedor de reflexão que se entre os mais de 6.000 crimes letais que acontecem por ano no Rio
de Janeiro, 65% deles (em torno de 4.000) "têm relação direta ou indireta com o tráfico de drogas", os
mortos por uso excessivo não chegam a uma centena por ano. Drogas, o real inimigo na fronteira -
(FSP,14/11/09).
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O primeiro desses crimes foi cometido há alguns metros do local onde a “galera do
mirante” costuma se reunir para fumar maconha, mas os frequentadores afirmaram que
a vítima era totalmente outsider, não apenas ao grupo como à própria comunidade
universitária. Essa não familiaridade com a vítima minimizou os danos de um estado de
quase pânico que foi instaurado no campus e talvez tivesse sido suficiente para acalmar
os ânimos se um mês antes não houvesse ocorrido a tentativa de estupro, num campus
que não dista um quilômetro do primeiro. Se o vice-reitor afirmou que: “Não é novidade
nenhuma que existem traficantes no campus”, esse tráfico em si, até a ocorrência do
sinistro, foi tolerado sem maiores preocupações quanto à segurança da comunidade.
A relação entre drogas e violência já havia sido investigada na primeira parte da
pesquisa entre os professores usuários, inclusive analisando o contexto carcerário no
qual um dos docentes, Esculápio, esteve diretamente envolvido. Entre o começo de sua
carreira como usuário de maconha e o período em que se tornou professor, ele se
envolveu com o tráfico, e como consequência de um cálculo impreciso sobre sua
segurança - pois nem todo o risco pode ser controlado, por mais cálculos que se faça –
foi detido pela polícia, indo parar na prisão:
268
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coisa da tensão. O próprio uso aumentava ainda mais minha paranóia, meu
medo. Quando eu vendia, eu fumava menos. (VALENÇA:2005,144)
Ao dizer: “Maconha não agredia os meus valores”, Esculápio deixa pistas de que a
condição de usuário/traficante, não foi demandada apenas por uma “questão de
necessidade financeira”. Nesse sentido, seus valores são fundamentais para desenhar sua
estrutura de vida205. Tendo acesso diretamente aos fornecedores, é fato que não apenas
sua aquisição tornava-se mais constante – e de certa forma, mais fácil - mas também os
controles informais aos quais tinha que estar atento demandavam maior
responsabilidade: “Eu vivia muito com a coisa da tensão. O próprio uso aumentava
ainda mais minha paranóia, meu medo. Quando eu vendia, eu fumava menos”.
Esculápio - A prisão por causa da maconha não chegou a fazer com que
eu tivesse em relação a ela, algo traumático, que eu abominasse a maconha.
Foi ideológico, foi algo cultural, não foi algo que condicionou de uma forma
negativa a maconha. Na prisão por mais que eu tivesse informações sobre
uso, foi surpreendente ver, logo nos primeiros dias, a quantidade, a
frequência com que se fuma maconha. O acesso é bastante difícil e bastante
perigoso. Tinha bastante contato com pessoas que tavam lá por tráfico. Lá
dentro da prisão, a pessoa que chega lá, na hierarquia que é estabelecida lá
dentro, de classificação, a pessoa que chega lá por ter vendido maconha, tem
um valor, eles discriminam. Não há um estigma, há até um status. Há
algumas nuances que faz que quem esteja lá por ter traficado maconha seja
mais valorizado. Como alguns dizerem que quando saíssem dali (pessoas
que assaltavam) projetavam parar de roubar e passar só a traficar. Isso é
interessante, que de uma forma ou de outra, passava uma certa autocrítica
que muitos deles têm em relação ao ato de roubar. Houve casos até de
religiosos que burlaram as restrições de seus grupos e deram uma
“bolinha”206 e depois voltar lá e se esconder atrás da Bíblia. É comum os
presos dizerem que se faltar maconha a cadeia vira. E a segurança sabe
disso. A maconha é um fator regulador das prisões. O que eu observei é que
havia um pacto entre o comando dos presos e a equipe diligente, e tinha um
grupo lá que dominava e recebia quilos de maconha, pra fazer o comércio.
Esculápio - Tinha sim. Eu me ofereci pra esse grupo para trabalhar, fazer
documentos para o juiz, uma carta prum diretor. E por isso eu fiquei meio
visado pela segurança que armou algumas ciladas pra mim. Por exemplo,
quando eu passei pra cela especial, que ia tomar sol numa parte interna, me
entregaram, só que alguém lá tinha me dado um toque, e eu tive mais
cuidado. Fui muito sacaneado pela segurança pelo meu diploma. Cheguei a
sair do pátio onde eu convivia com os presos de um modo geral porque até
poderia morrer. (VALENÇA:2005, 146)
205
- de acordo com o modelo pensado por Grund (1993), os elementos centrais da estrutura de vida não se
limitam à disponibilidade de aquisição da substância, mas sim aos controles informais que o usuário
imprime ao cotidiano, inclusive em relação a questões que não se reduzem ao consumo de drogas.
206
- dar uma bolinha = fumar maconha.
269
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Bem, aqui talvez seja possível interpretar que “Eu tive mais medo fora do que lá
dentro”, tenha conexão com a prioridade que a reinserção social passa a representar
para o interlocutor, isto é, a partir de então, ele deverá erguer seus próprios mecanismos
de controle, para que o estigma, representado pelo seu confinamento ao cárcere, não o
condene perpetuamente ao rótulo de traficante, quando estiver fora da prisão. Nesse
sentido, a maior ameaça encontrava-se fora da prisão, o que gera insegurança. Ele
também afirma que sua relação com a maconha não ficou marcada pela negatividade de
ter sido preso em função de sua posse, assim não se tornando uma representação
estigmatizada e traumática. Mas sua experiência psicoativa no cárcere não se resumiu
ao consumo de maconha:
207
- como foi possível perceber na citada relação entre senhores e escravos nas entressafras das
plantações da cana-de-açúcar, (item 1.7, pg.40).
270
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muito restrita e depois passou a ser a droga mais forte lá dentro. Eu convivi
com a decadência que o crack criou. Começou a facilitar a queda de alguns
acordos, de um código de ética, tipo roubo. Uma vez alguém fumou e deu
uma facada na bunda de outro. Alguma coisa pequena que foi extravasada.
Eu fiquei num lugar lá, na lavanderia e tinha algumas pessoas, alguns ex-
policiais que usavam crack, e fui assediado pra ficar dependente, ficar
viciado, pra ficar preso a eles e quem fica preso prometia as coisas;
televisão, etc...
Quando Esculápio diz que: “O prazer é relacionado ao fato de você estar preso e
você experimenta algumas sensações que passam a ter um significado, pelo fato de você
tá preso”, é possível que haja uma indicação de que o processo de consumo de crack,
geralmente tido como autodestrutivo, seja a representação da liberdade que resta nestas
específicas condições de controle social. De modo geral, se, para os que dispõem de sua
liberdade, o consumo de drogas ilícitas pode trazer insegurança em função de sua
ilicitude, para os presos que não dispõem de liberdade, o consumo de drogas é uma das
poucas alternativas seguras de manter acesa a chama da busca por liberdade. Contudo,
pensando o crack como capital cultural no cárcere, seus efeitos são representados de
forma oposta aos da maconha. Enquanto a maconha, como mecanismo de controle
social, tem a função de evitar que a “cadeia vire”, o crack até facilita a viração.
Dialogando com Grund e Zinberg, a disponibilidade de aquisição de crack na cadeia,
onde geralmente os residentes possuem mínimo controle sobre suas estruturas de vida,
facilita o uso compulsivo, o que interessa aos que lucram com seu comercio. Esculápio
entretanto, indica que é possível manter algum controle sobre seu uso.
Após dois anos e quatro meses vivendo nesse setting – o mesmo onde Buda
posteriormente trabalhou como redutor de danos, também constatando que a maconha
segura a “viração” - Esculápio se mostrou uma pessoa tranquila, que relatou sua
experiência no cárcere sem maiores traumas, todavia, não passou despercebido que ao
ser entrevistado em sua casa, tivemos que trocar de lugar algumas vezes, pois ele
receava que os vizinhos pudessem ter acesso à nossa conversa. Talvez ele tivesse razão
em ser tão precavido, ou talvez tal precaução fosse sequela da estrutura panóptica da
prisão.
271
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208
- e esta é uma das questões que me levaram a construir objetos de estudo – tanto o professor usuário
quanto o universitário usuário - que não tendam a ser naturalmente representados como integrantes de
um contexto violento. O exemplo trazido por Esculápio demonstra que a conexão entre violência e
maconha não deve ser pensada como um efeito psicoativo, mas sim como um efeito configuracional.
209
- delivery = entrega em domicílio.
272
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É pertinente mais uma vez ressaltar que o objetivo das minhas pesquisas de
mestrado e de doutorado210 é investigar como o acadêmico, professor ou estudante
consumidor de drogas, interage com as representações sociais dominantes e os controles
sociais do processo civilizador, e se esse consumidor em suas práticas sinaliza outro(s)
modo(s) de representação e de controles sociais que contemple(m) o consumo de
drogas. Nessa perspectiva, interpretando sua própria distinção acadêmica como um
mecanismo de controle informal, há professores que ousam disponibilizar da imagem de
docente para se proteger contra o estigma de ser usuário:
O “todo mundo sabe” se traduz na segurança que Hermes acredita ter conquistado em
função do status de professor, status que facilita a tolerância ao seu consumo. Também é
passível de atenção o seu enfoque no consumo solitário ou com poucos pares, não mais
prescindindo da antes inevitável roda de fumo como um mecanismo de defesa para
favorecer certo modelo de segurança. Na outra mão, foi possível encontrar quem tenha
se sentido incomodado por não conseguir usar a posição e o status de professor com
vistas à ressignificar a posição estigmatizada de usuário:
210
- ambas as pesquisas seguem o mesmo modelo teóricometodológico.
273
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Dioniso - Eu sei que tem alguns alunos meus que usam, mas eles são
mais caretas que os professores, (risos) por mais que eles saibam que tem
liberdade pra comentar comigo, porque eu saio com eles pra beber e tudo,
mas eu acho que há um respeito pela figura do professor. Eu tento quebrar
isso, mas eu nunca tive um aluno que tentasse. Não é muito comum esse
discurso, um ou outro que a gente percebe pode fazer isso, mas não é uma
prática comum.
Talvez eles possam achar que eu use, mas compartilhar isso comigo, acho
que pra eles pode levar a alguma questão tipo: não cumpri minhas
obrigações enquanto aluno, e ele vai associar isso ao fato de eu usar. Então
talvez eles se resguardem, no meu caso, e de alguns professores lá do
campus. Eu acho que eles não têm essa imagem canônica do professor que
não usa drogas. Se rolasse essa questão na sala de aula, eu me colocaria em
cima da minha própria experiência. (VALENÇA:2005,125)
Dioniso não indica claramente até que ponto sua distinção como professor facilitaria
a aproximação dos alunos usuários, mas aponta que estes não abrem o jogo com ele
com receio de que ele associe o consumo de maconha daqueles com sua baixa
produtividade acadêmica. Mas de onde parte esta representação? Dos alunos que
acreditam que alguém que fuma maconha possa ter tendência a desenvolver um baixo
rendimento escolar, e na condição de usuários com baixo rendimento – o que poderia
caracterizar , segundo Zinberg, o uso compulsivo - se sentem pouco confortáveis para se
aproximar do professor no que diz respeito às drogas? Ou por outro lado, essa
representação poderia ser originária do professor que percebe de alguma forma que o
baixo rendimento escolar dos seus alunos pode ter a ver com o consumo de drogas, e
acredita que eles não se aproximam com receio de que isso seja percebido?
Possivelmente, para Dioniso e para outros docentes a resposta se encontra na
configuração da relação e das representações que se estabelece entre as partes.
274
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Nêmesis acredita e investe numa postura outsider como assinatura identitária, e com
essa assinatura obtém apreciação positiva entre seus alunos. Nêmesis sendo rebelde “faz
questão de quebrar”, marcar seu espaço, sentindo que é “muito querida”, sem ter que
fazer um supremo esforço no controle de suas emoções para ser representada como uma
típica estabelecida – seus longos cabelos trançados e tingidos de vermelho já fornecem
uma pista. Como ela diz; seu discurso não é marginal, é alternativo. Esta
autorepresentação indica que ela está consciente do seu valor e da sua estima, não se
sentindo à margem. Porém há quem sustente uma postura menos rebelde na relação
entre docente outsider e discente outsider, menos centrada na figura do professor e sim
nas trocas empáticas entre pessoas:
275
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Analisando estas últimas colocações, a questão nevrálgica para uma maior interação
entre professores e alunos outsiders parece ser as expectativas a respeito da
representação do professor – expectativas que às vezes partem do próprio professor; se
ele chega como “alternativo” ou mesmo se chega como “vulgar”. Os professores estão
cientes de que suas representações causam impacto entre os alunos - é só lembrar que a
estudante Salomé chamou a atenção para a imagem de hipócrita que pode aderir à pele
de um professor que “encaretou”. A preocupação dos professores com as suas
representações e com o envolvimento com os alunos é diferenciada entre os docentes
que ensinam em universidade públicas e os que ensinam em faculdades particulares,
pois os primeiros acreditam que há mais liberdade na universidade para exercer o papel
de professor, liberdade que de certa forma, mostram-se empenhados em desfrutar,
inclusive trazendo o consumo de drogas para o campo das reflexões. Já os que lecionam
em faculdades particulares parecem ter um olhar mais voltado para a sobrevivência,
algumas vezes sendo muito menos educadores do que funcionários de uma faculdade
em busca de um salário. Neste caso, o discurso tende a cindir liberdade e segurança, e o
envolvimento com alunos se torna mais controlado para evitar correr riscos
desnecessários. Como diz Ferônia: “Tenho alunos extremamente reacionários, maconha,
nem pensar! Drogas tão sempre associadas a ser maluco” (Valença:2005,127).
Por outro lado, aqueles que além de lecionar em universidade pública possuem um
longo currículo211, já conquistaram alguma respeitabilidade para se sentirem seguros e
confiantes o suficiente para incluir em sala de aula, a problemática das drogas como
uma questão em que a reflexividade científica pode favorecer à desestigmatização:
211
- associando o tempo de atuação com uma maior experiência de vida desses professores, é perceptível
que as narrativas que mais aprofundaram as reflexões sobre o consumo foram aquelas realizadas por
docentes com mais tempo de atuação – 50% dos pesquisados está com 15 anos ou mais de atuação.
276
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curso eu sentia que tinha um certo tempo para desarmar os espíritos. Esse
curso eu faço questão de abrir para alunos especiais. Havia psicólogos,
assistentes sociais, pessoas mais maduras. A resistência é por parte de
pessoas que jamais conceberam que na academia, um professor sério
pudesse dar uma aula sobre drogas que não fosse uma aula antidrogas.
Todo semestre tem pelo menos um aluno que vem esperando uma aula
antidrogas, como evitar a droga. Até esse termo droga, durante muito tempo
fui contra o uso dele porque ele tem uma carga conotativa muito forte.
“Droga, se fosse bom não tinha esse nome!”. Uma parte do curso é pra
quebrar essa visão. Pra mim esse curso é uma das coisas mais importantes
que eu faço aqui na universidade. Eu vejo mudanças radicais nas pessoas...
elas vêm falar pra mim no final do curso. Em um ou dois casos tenho feito
amizades mais ou menos duradouras. Em alguns casos surgem pessoas que
pedem para eu orientá-las. Se estabelece um clima de amizade,
cumplicidade. Eu me preocupo que as pessoas vejam isso como uma
disciplina séria, e é um enfoque sério, porque não se vê as drogas como uma
coisa séria. Por isso eu tenho que tomar cuidado, porque se pensam que eu
sou aquele professor muito louco, não vou chegar muito longe.
Eu acho que eu estou abrindo um espaço. Essa visão socioantropológica é
um campo que tá começando a se consolidar. Até agora as Ciências Sociais
não tem reconhecido a importância da discussão das drogas. Eu já sugeri à
ANPOCS (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências
Sociais), um trabalho e nunca foi aceito. A ABA (Associação Brasileira de
Antropologia) também não tem posição sobre isso. Entre as pessoas no ramo
de saúde, eles estão começando a admitir que a discussão das drogas não
deve ser feita de uma forma puramente biológica, que precisa ter uma
abordagem biopsicossocial. Mas na prática, quem entende de drogas são os
médicos. Agora, além dos psicólogos, também são chamados a dar sua
opinião, os sociólogos, os antropólogos. Mas na sociologia e na antropologia
ainda não se entendeu isso. Vem surgindo pessoas com 15 anos ou mais a
menos do que eu, e é essa geração que acho que vai realmente conseguir
consolidar essa discussão. (VALENÇA:2005,137)
Na busca por “conseguir consolidar essa discussão”, Pã é um docente que está pondo
em prática um projeto acadêmico reflexivo sobre um tema outsider, projeto que muito
além de ser um simples repasse de informações em sala de aula, propicia relações
amigáveis, pautadas na geração de confiança. Respaldados nesta confiança, alguns
alunos de Pã também esboçam projetos de pesquisa e intervenção sobre drogas levando
em conta as demandas de redução de riscos e danos da sociedade civil. Precursor esse
discurso herético, Pã aos poucos foi se tornando consagrado, um outsider estabelecido
que sustenta uma “certa reputação” para realizar um trabalho acadêmico cujos
resultados acabam atingindo os que estão além dos muros da academia.
Numa interlocução recente, Pã discordou que o movimento antiproibicionista que vem
sendo construído entre os estudantes metaespecialistas seja algo novo, pois alguns
docentes já abordavam a questão quando grande parte destes universitários ainda era
criança:
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Pã - A idéia do GIESP era aqui na UFBa, na Bahia, fornecer o espaço para essa
discussão. Não é nada pioneiro, pois em 89 em São Paulo, eu já participava do
movimento antriproibicionista com médicos e outros pesquisadores, como resposta à
Aids. Quanto ao GIESP, das nossas reuniões informais saiu o Balance, saiu a ANANDA
também.
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cocaína: “As pessoas que cheiram são muito mais travadas, muito mais irritadas, muito
mais individualistas, menos sociáveis, menos comunicativas” - Nêmesis,
(VALENÇA:2005,168) como também falam mal do consumidor de álcool: “eu prefiro
um maconheiro que um cachaceiro!” – Têmis, (VALENÇA:2005,133). Com a mesma
intensidade, os consumidores exclusivos de álcool falam mal da cultura da maconha:
“Nunca fumei (maconha), acho chato, cheira mal, acho feio o gesto, sobretudo em
mulher” – Poseidon, (VALENÇA:2005 ,175), ou mesmo: “o que você compartilha?
sobretudo o riso, né? E uma certa besteiragem, as pessoas ficam muito... sei lá...
relaxadas demais, desligadas demais” - Zeus, (VALENÇA:2005 ,178).
Se no total houve quatorze consumidores de múltiplas drogas – geralmente maconha,
álcool e cocaína -, houve uma consumidora exclusiva de maconha que não tolerava
bebida alcoólica, e dois consumidores exclusivos de álcool que não toleravam maconha.
Também há questões de gênero indicadas. Entre os professores investigados, sete
mulheres e treze homens, 100% das mulheres se mostraram favoráveis ao consumo de
maconha, enquanto três, uma delas inclusive sendo bebedora regular, fizeram várias
ressalvas aos consumos etílicos. Já entre os homens, com exceção dos dois bebedores
exclusivos, houve uma tendência ao consumo múltiplo.
Entre os discentes os homens consomem com mais frequência e em maior
quantidade do que as mulheres. No total de interlocutores estudantes apenas dois não
consomem ilícitos, sendo que entre os vinte restantes não houve maiores resistências ao
consumo múltiplo. Foi perceptível que a cocaína vem sendo substituída pelo ácido e
pelo ecstasy e não apenas entre os que frequentam a cena eletrônica. Dos oito estudantes
de medicina, cinco se mostraram preocupados com o consumo de álcool, buscando
efetivar um consumo adequadamente controlado desta substância, pois creditam ao
álcool um potencial danoso maior do que o das outras substâncias que costumam
consumir. Se parece haver um consumo mais seletivo de substâncias entre os
professores do que entre os estudantes, também se pode perceber que o consumo
múltiplo dos discentes pode oferecer mais possibilidades na busca por liberdade ao
tempo em que apresenta mais riscos à sua segurança. Em meio a estes últimos, há uma
maior busca por controle entre as mulheres do que entre os homens – e estas,
definitivamente descartam a imagem do beberrão como uma representação de usuário
que lhes seja sedutora.
Apenas para efeito analítico, pode-se dizer que a ortodoxia está sendo representada
pelos docentes consumidores de drogas lícitas que nunca se propuseram a conhecer o
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ponto de vista dos heterodoxos, ou seja, o ponto de vista dos consumidores de drogas
ilícitas. Já estes últimos, nunca tiveram maiores dificuldades em consumir drogas lícitas
como o álcool, mesmo não estabelecendo identificações mais significativas. O que se
deve ressaltar é que, apesar das reservas de mercado de cada comunidade de
consumidores, nenhum interlocutor se manifestou a favor da proibição do consumo do
outro, mesmo que este lhe soe como outsider aos seus habitus sociais. Também na
cultura das drogas parece difícil estabelecer uma relação social sem que haja um
outsider. O ponto central é que como a convivência com as diferenças212 constitui um
dos aspectos básicos da estrutura antitética da cultura de consumo, ver no outro o
outsider já não impede que estes professores mantenham com ele relações civilizadas.
Entre os professores mais experientes – 50% deles com 15 ou mais anos de carreira
- há indícios de que o consumo seja identitário, sendo representado como o consumo
característico de sua geração, principalmente o consumo de álcool e de maconha. Estes
professores mais experientes também não têm maiores preocupações quanto à sua
reputação, pois se sabem estabelecidos, principalmente no caso de consumidores de
drogas lícitas. Já os professores com menos tempo de carreira preferem se manter sob o
véu da discrição, sendo mais cuidadosos na administração de sua liberdade, na medida
em que os mais experientes parecem já tê-la sob controle.
Considerando que não há nenhum interlocutor com menos de sete anos de consumo
em relação à sua droga preferencial, é significativo o fato de 15% deles exercerem o
controle não comprando o que consomem – ou se o fazem, se referem eufemisticamente
ao fato como comprando para dividir com um amigo, deixando claro que a aquisição
não é necessariamente fundamental para seu consumo. Observe-se que essa recusa em
investir numa relação mercadológica não está diretamente relacionada com a falta de
recursos financeiros, sendo especificamente um mecanismo de controle que funciona
mais ou menos assim: se não é preciso comprar, é sinal que não há dependência. De
certa forma, esse comportamento inverte a lógica de Grund sobre a disponibilidade de
aquisição, pois a segurança aqui está em consumir sem priorizar a posse da substância.
Contudo, vale registrar que esse procedimento não anula o desejo de consumir, como
salientou a docente Hécate: “eu não me sinto dependente, então eu sei que já tive
momento de fissura213...‘eu quero fumar hoje, eu quero!’(risos). Eu acho que a maconha
em mim causa fissura, sobretudo se eu tenho. Se eu não tenho, pode não acontecer”
212
- e nesse caso as diferenças são multiculturais e transculturais.
213
- fissura = desejo de fumar.
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214
- um quadro com o perfil dos interlocutores está disponível na página 300.
282
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215
- a sociabilidade também é um quesito importante para as comunidades dos estudantes, mas para estes,
diferentemente do que demonstram os professores, a sociabilidade não é uma questão aparte da busca por
transcendência, nem mais importante do que esta.
216
- beck = baseado.
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perguntou: que cheiro é esse? Eu falei: é incenso. Aí ele desce e vai lá pra
baixo, aí os coleguinhas perguntam: ‘que cheiro é esse?’ É incenso, é da
minha casa, ai o mais velho me questionou: por que eu menti, que não era
incenso coisa nenhuma, que ele sabia que era maconha, e por que eu tinha
mentido, eu disse: ‘como você sabe’? Aí ele disse: ‘você mesma já me disse,
(risos de Hécate) eu tenho medo, não quero que você fume mais aqui, me
prometa’... aí ele começou a chorar, ‘me prometa, pelo menos aqui não,
porque todo mundo lá sabe, as pessoas falaram que era maconha e eu tenho
medo que você seja presa’. Eu prometi que eu não fumo lá, (risos) pelo
menos quando ele estiver (risos). Eu fumo constrangida achando que eu tô
expondo mesmo. (VALENÇA:2005, 182/3)
Numa flexibilização de papéis, se por um lado Hécate parece que com o casamento se
livrou da pressão exercida pelos pais, por outro lado, com a maternidade passou a
sofrer a pressão dos filhos. A pressão já não era sentida enquanto filha, era sentida
enquanto mãe, na verdade sendo mesmo duplicada, porque além de mãe Hécate é uma
educadora por profissão. Nesse caso a questão que pesou na balança foi cumprir sua
promessa para o filho e não fumar ou mentir e manter seu prazer. Mas Hécate não é a
única interlocutora que atua sob tais pressões:
Nêmesis - Nunca me senti culpada, nunca, nunca, porque era uma coisa
muito aberta. Não teve essa de ah, eu não devo fumar, de jeito nenhum. Eu
já soube que ele experimentou, eu falei: ‘você pegou da minha’, ele falou:
‘eu comprei pra fumar com meus amigos, não peguei da sua’ (risos).
Como eu agiria em relação a meu filho se ele tivesse acesso a ácido?
Sabe que eu não sei... Sabe como eu agiria? Eu sou uma mãe tradicional. Eu
sou tão aberta num sentido, mas eu sou caretérrima. O dia que ele falou que
tinha bebido eu virei a fera, (foi quando ele ia fazer 17 anos). Eu gritava: ‘de
jeito nenhum. Só quando você tiver 18 anos e tudo mais’.
(VALENÇA:2005,184)
284
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Se a mãe de Nêmesis ficou chocada quando soube que ela fumava maconha, Nêmesis
também ficou chocada quando soube que seu filho consumiu bebida alcoólica, contudo,
ela não pensou em internar seu filho como pensou sua mãe em relação a ela. De uma
geração para outra, o receio materno em relação ao consumo de drogas ainda existe, o
que mudou foi a substância em questão. Enfim, estabeleceram-se relações ambivalentes
entre filhos usuários que passaram a ser pais e agora revivem a problemática das drogas
nas relações com seus filhos. Sendo que doze integrantes do grupo de professores são
pais, três destes são pais de filhos usuários. Entre estes, dois fumam maconha
ocasionalmente com seus filhos. Já entre os estudantes apenas um deles – Mozart - é pai
e em settings familiares controla seu consumo em função dessa paternidade. Os outros
vinte e um estudantes não estão preocupados com a questão da paternidade nesse
momento de suas carreiras – dezoito deles estando na faixa dos 20 anos – pois a
construção de suas identidades, diferentemente de seus pais não se estrutura tendo a
geração de filhos como valor básico.
As configurações familiares são cenários por excelência para a transformação da
intimidade (Giddens, 1992), principalmente quando são perspectivadas relações mais
reflexivas e solidárias. Estes, porém, não são os únicos cenários em processo de
transformação. Numa cultura de consumo, o setting religioso também adquire nuances
variadas muitas vezes num movimento de reencantamento de configurações
comunitárias que sustentam valores religiosos ortodoxos. As novas religiões urbanas,
sejam neopentecostais sejam new age, se apresentam historicamente como dissidências
de estruturas religiosas tradicionais217. Numa cultura cada vez mais mimética, estas
novas manifestações de religiosidade interpenetram o campo acadêmico onde podem
ser encontrados adeptos e estudiosos das citadas práticas, flexibilizando a laicidade da
ciência. O discurso religioso, que nos anos 1960 foi rejeitado em larga escala tanto por
universitários quanto por usuários de drogas como uma perspectiva social estabelecida
que foi imputada de forma dogmática, pôde reflexivamente vir a ser ressignificado – a
fé como fruto da escolha e não como fruto da falta de escolha.
Nereu foi um dos quatro interlocutores professores que buscou essa ponte entre a
ciência acadêmica e a fé. Se de certo modo ele demonstrou procurar um controle
217
- e como fenômenos concretizados numa cultura de consumo que merecem referência é mister citar a
pentecostal Igreja Bola de Neve frequentada por artistas, universitários e praticantes de esportes radicais -
com liturgias embaladas ao som de rock e reggae - e a católica Igreja Maradoniana que cultua o pop star
do futebol Diego Maradona como um Deus, contando com uma comunidade de mais de 100 mil fieis
espalhados pelo mundo, (globoesporte.com:01/09/09).
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Essa fala indica que um nicho de tradição permaneceu pulsando no set do interlocutor
até que ele pudesse estar integrado num setting em que ambas as possibilidades, o
estabelecido – “os sacramentos” - e o outsider – “um chá que parece ácido e tem a
cannabis também” – não causassem conflitos internos e melhor, sem a pecha de uma
cultura marginalizada, pois ao dispor “sacramentos” e “psicoativos” num mesmo
setting, Pã pode estar indicando a superação do “desvio”: o consumo de sacramentos
que se enraízam num processo comunitário mantendo um aspecto que propiciava
286
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218
- embora a ayahuasca tenha sido retirada da lista de substâncias proibidas em 1987 se restringido seu
uso ao sentido comunitário de um setting religioso, sua despenalização continuou sendo bastante
criticada, a ponto de sua condição precisar ter sido ratificada em janeiro de 2010 pelo CONAD (Conselho
Nacional de Políticas sobre Drogas). Em março deste mesmo ano, o assassinato do cartunista Glauco,
líder da Igreja daimista Céu de Maria em Osasco (SP), por um jovem usuário psicologicamente instável
que passou por três faculdades sem ter êxito em nenhuma delas, reacendeu a polêmica. O debate que
ganhou representação midiática foi construído em torno da relação entre substâncias psicoativas,
religiosidade e violência, pois segundo testemunhas, o acusado frequentava a Igreja para se curar da
dependência de cocaína e chegou a vender maconha para comprar a arma do crime, além de ter
assassinado também o filho de Glauco e posteriormente na fuga ter ferido um policial. De acordo com o
pai do acusado, foi a partir do consumo de Daime que sua personalidade tornou-se mais confusa –
conversas com plantas, afirmações de que seu irmão era Jesus, etc. De estabelecida, a cultura daimista foi
acusada de ser o problema para alguns usuários potencialmente problemáticos, voltando a ser
representada como cultura outsider.
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apta a encarar o convívio social, seja para trabalho, seja para lazer. O estudante Buda
afirma claramente que o consumo de maconha está lhe proporcionando novas
possibilidades de relacionamento. Este sentido de consumo tanto para professores
quanto para alunos passa longe da representação do usuário de drogas como aquele que
troca o Outro pela droga. Aqui o perceptível é que o consumo de drogas pode facilitar a
participação em um contexto comunitário, e este parece ser o objetivo comum para a
maioria dos interlocutores.
No caso dos professores que estão com mais de 40 anos (65%), atualmente o
momento de uso ganhou outra significação, pois a mudança de setting cultural não
limitou as possibilidades de consumo às estruturas comunitárias estabelecidas no
passado. Se nas rodas de fumo de duas décadas atrás eles buscavam segurança uns nos
outros, hoje já não dependem tanto dessas rodas para afastar os riscos, sendo comum o
consumo solitário. Quando frequentam novos círculos de consumidores, às vezes
incluindo colegas e alunos, o fazem não tendo a droga como elemento central, mas
apenas como um catalisador que integra pessoas com valores próximos. Alguns
inclusive, indicam que consumir drogas já foi um critério de seleção para se estabelecer
vínculos, mas hoje tal critério não procede, pois há “caretas” que consomem drogas, da
mesma forma que há “doidões” que não consomem.
Com estes emparelhamentos de dados configurados entre professores e estudantes é
possível refletir sobre os controles informais disponibilizados por estes acadêmicos
como estratégias redutoras de riscos, destacando seus manejos da distinção acadêmica
na ressignificação das representações em torno de suas imagens. Com este objetivo
foram aqui emparelhados algumas práticas miméticas centrais utilizados em seus estilos
de vida para reencantar as tradições cotidianas – os novos habitus sociais referentes a
sociabilidade comunitária que retroalimenta valores tanto familiares quanto religiosos.
Enfim, dados que põem em foco algumas representações que caracterizaram o homo
academicus na sua vivência do processo civilizador em sua atual configuração enquanto
cultura de consumo.
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Ainda no final dessa década, estudantes de Ciências Sociais da UFRJ editaram o jornal
de teor antiproibicionista, O Patuá. Também foi emblemático o Primeiro Manifesto
Brasileiro pela Legalização da Cannabis que ocorreu na Faculdade de Filosofia da PUC
de São Paulo no começo da década de 80, assim como o Primeiro Simpósio Carioca de
Estudos sobre a Maconha, o “Maconha em Debate”, que teve curso no Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (Gabeira:2000,42/43). Estes debates foram
direcionados para refletir publicamente sobre as implicações da política proibicionista.
Seguindo tal linha reflexiva, a escritura dos coletivos antiproibicionistas - que não é
representada necessariamente pelos seus escritos, mas pelos seus atos - também
configura o efeito de um phármakon usado como antídoto para combater os efeitos
deletérios da escritura proibicionista. Quanto a isto, os professores, que se mostraram
mais dispostos a se comprometer com a corrente pesquisa do que os estudantes,
sustentam representações a respeito do que seja política bem mais tradicionais que os
discentes, que por sua vez configuram política em sintonia com o que Giddens chamaria
de política de vida.
Se por um lado alguns professores estão mais envolvidos em projetos de pesquisa e
intervenção já na sua base ligados as Instituições como o próprio CETAD, a REDUC
(Rede Brasileira de Redução de Danos), e a ABORDA (Associação Brasileira de
Redutoras e Redutores de Danos), do Nós-grupal da comunidade estudantil surgiram
iniciativas que acabaram ganhando o apoio posterior das Instituições. É o caso de
projetos como o Coletivo ANANDA e o Coletivo Balance de Redução de Danos,
autênticos antídotos antiproibicionistas. É importante salientar que 50% dos
interlocutores presentes estão incorporando estratégias de redução de riscos e danos ao
seu estilo de vida cotidiano. Entre os acadêmicos da Grécia Antiga, o que determinava
se o consumo era representado como consumo de remédio ou de veneno era a
capacidade de cada um dos consumidores para exercitar o controle – controle que na
época era chamado temperança - sobre o próprio consumo. Hoje, o que poderia oferecer
a medida desse consumo ser representado como controlado ou compulsivo é a
capacidade por parte do consumidor para a incorporação do habitus social da redução
de riscos e danos enquanto estratégia civilizatória.
O modelo proibicionista que encontrou apoio nos puritanos desde o século XIX vem
desde então interpretando a temperança como abstinência. Os presentes interlocutores
291
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221
- no modelo cultural grego, e não só entre os acadêmicos, o uso dos prazeres era moralmente
recomendável para os que buscavam uma boa saúde (Foucault, 2006).
292
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mais distintas que sejam suas visões de mundo, como um mecanismo de controle social
alternativo em relação aos atuais mecanismos de controle. Essa perspectiva está
ancorada na tese de que no estado de direito, onde o indivíduo tem liberdade legal para
com seu corpo, a sociedade não pode violentá-lo em nome da segurança do próximo:
Nos dias de hoje fazer coisas “que pareçam para os outros” “erradas, ‘feias’, imorais
ou danosas a si mesmo” pode ser interpretado como ameaça à segurança coletiva, mas
esse é um risco que acompanha a busca por liberdade individual. Esta perspectiva não
seria interpretada na Grécia Antiga como um conflito: “No uso dos prazeres [...] as
regras morais às quais os indivíduos se submetem são muito distantes daquilo que se
pode constituir uma sujeição a um código bem definido”, (Foucault: 2006, 52). Em
outras palavras, entre os gregos “uma sujeição a um código bem definido” era estar sob
o olhar público e proceder de acordo, era aceitar o sentido desse olhar sem sentir
maiores estranhamentos, porém, longe desses olhares, não existiam limites para o uso
dos prazeres. As fronteiras do controle social iam até onde os olhos e ouvidos da
comunidade podiam captar. Não era imputada a vergonha ou a culpa aos que na
privacidade usavam seus corpos para obter prazer. Nesse cenário, a temperança
demandava levar em conta não apenas o próprio set do sujeito, mas principalmente a
sua adequabilidade ao setting no qual se encontrava para operar os controles informais:
“Pode-se reconhecer, na reflexão sobre o uso dos prazeres, o cuidado com uma tripla
estratégia: a da necessidade, a do momento e a do status” (Foucault: 2006, 52). Como
resultado da implementação desta estratégia a temperança pode ser hermenêuticamente
definida como o limite entre o uso controlado e o uso descontrolado dos prazeres.
Na cultura de consumo, o phármakon e a temperança são categorias ainda relevantes
para pensar as drogas, tanto que as estratégias gregas de controle dos prazeres não são
muito diferentes das estratégias de redução de danos que atualmente muitos
interlocutores buscam praticar. E mais; num plano teórico, ao considerar o momento e o
293
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Garrincha - Eu fui levado pra uma internação em SP. Durou um ano, na verdade foi
contra minha vontade porque eu não quis ficar e neguinho me pegou a força e me jogou
numa fazenda em São Carlos. Foi uma onda contra a minha vontade, isso até hoje eu
tenho aqui... sei lá [...] mas ter de trabalhar pro cara, trabalho físico, tive que aguentar
questão de ser subordinado lá dentro, sem ter argumento e ter que tar adaptado a
filosofia deles, aquela coisa cristã”.
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Se os médicos passarem a ser processados por não prescrever, não apenas as relações
de poder estarão invertidas se comparadas à década de 1920 quando os doutores
estadunidenses corriam o risco de serem processados por prescrever, como também se
entenderá um dos motivos que levam muitos estudantes de medicina à depressão nos
dias de hoje. Já foi mencionado que midiaticamente alguns sistemas especialistas em
saúde representam a depressão como a enfermidade da contemporaneidade, (Whitfield:
2005, 127). No Brasil, onde a depressão ‘atinge” 17 milhões de pessoas, cerca de 10%
a 12% da população, entre 2003 e 2007 houve, como já indicado na nota 123, um
aumento de 40% nas vendas de antidepressivos (FSP:12/11/09), gerando uma fatura em
torno de US$ 320 milhões anuais. O crescimento desde mercado é tão distinto que o
laboratório Eli Lilly que perdeu a hegemonia do setor222 que liderava com o Prozac223 ,
preparou uma estratégia de divulgação do Cymbalta, - o phármakon de ponta da nova
geração de antidepressivos - entre médicos de diversas áreas: “Nossos representantes
visitarão profissionais de todas as especialidades que hoje também receitam
222
- com a quebra da patente, 26 versões genéricas ou similares ao Prozac (fluoxetina) foram lançadas no
território nacional desde 2001.
223
- o Prozac teve uma queda nas vendas, passando o faturamento de 2,6 bilhões em 2000, para 250
milhões em 2009 e especificamente no Brasil, de 330 mil caixas para 100 mil (www.antidrogas.com.br).
295
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vítimas de erros médicos ou de suicídios acidentais, foram pessoas que tentaram aliviar
as tensões e pagaram com a própria vida o consumo dos seus phármakons escolhidos.
Muito além da tendência de propagação da representação da maconha medicinal, os
phármakons estão muito bem configurados na cultura de consumo...
Se, no começo desse projeto, foi proposto como objetivo apreender como o
universitário consumidor de drogas interage com as representações sociais dominantes e
os controles sociais civilizatórios, e se esse consumidor sinaliza outro(s) modo(s) de
representação e de controles sociais que contemple(m) o consumo de drogas, a
constatação final é de que o crescente nível de reflexividade, configurado em torno de
informações consumidas incessantemente, afeta as comunidades de universitários aqui
enfocados de modo que novos habitus sociais são incorporados em seus estilos de vida.
Estes interlocutores convivem num setting cultural onde gradativamente há mais
controles formais e informais para o consumo de álcool e tabaco; mais tolerância para o
consumo controlado de maconha, principalmente o medicinal; menos tolerância e mais
representações estigmatizantes quanto aos riscos e danos associados ao consumo de
cocaína e crack, além da normatização do consumo prescrito de fármacos com efeitos
psicoativos e da distinção da ayahuasca pela sua crescente representabilidade não
exatamente como ingrediente religioso, mas como um phármakon terapêutico. Não
apenas convivem pois, como demonstra a reflexividade em seus estilos de vida aqui
levantados, estes interlocutores são partes ativas desse processo de mudança de valores
e representações, às vezes apoiando, às vezes combatendo. Dentro dos seus settings
acadêmicos, seus sets pessoais também permitem ressignificar modelos de relação,
buscando estreitar laços de confiança e interpretando a sua comunidade universitária
como uma família eletiva, escolhida em adequação com sua “liberdade de opção”.
Em suas políticas de vida que, em comparação com os movimentos culturais dos anos
1960 envolvendo estudantes e drogas, configuram um cenário mais democrático224
onde novas representações ou ressignificações são estabelecidas, como no caso das
milenares estratégias gregas para controlar o uso dos prazeres atualmente interpretadas
como estratégias de redução de danos. Estes sujeitos estão formando novas
representações quanto ao que pode ser relacionalmente interpretado como estabelecido
ou outsider, incluído ou desviante, saudável ou patológico, jovem ou adulto, professor e
224
- embora o pessoal da UFMG e do Coletivo Marcha da Maconha possam discordar.
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estudante, e ainda os limites dos controles sociais que a política proibicionista propõe,
como também quanto aos limites da autonomia que a cultura universitária sustenta.
Como as mudanças de representações observáveis não se limitaram ao consumo de
drogas - para manter seus estilos de vida, os sujeitos precisam configurar uma estrutura
de vida e torná-la representação -, estes interlocutores desenvolveram novas
significações para as relações que envolvem confiança, amizade, sexualidade, política,
religiosidade, e o papel social do universitário e de sua cultura. A representação final
que se estabelece é que, ao buscar investigar as drogas e seus consumos, foi possível ter
contato com configurações de pessoas reflexivas antes apenas representadas, às vezes de
modo estigmatizado, como meros consumidores. Eis a questão!
FIM
Post-Scriptum I
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Post- Scriptum II
Após a conclusão da redação desta tese, alguns fatos ocorreram e merecem registro.
A batida policial na Cracolândia em São Paulo no dia 25/02/10 visando eliminar das
ruas, os usuários de crack, se mostrou uma ação de controle social falha. A polícia civil
recolheu 250 usuários, para horas depois liberá-los, pois, não houve planejamento para
atendê-los na unidade da prefeitura correspondente (G1:25/02/10). O ganho social deste
episódio foi o aumento do estigma em torno destes usuários, além de fragilizar a
imagem de um projeto da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo que conta com
400 profissionais de saúde para tratar da questão. E não apenas no Brasil acontece tal
desrespeito pelo processo civilizador, pois na China e na Indochina – em países como
Camboja, Vietnã e Tailândia – o tratamento dispensado aos usuários vem recebendo
monitoramento do Human Rights Watch, tamanha a violência com que aqueles são
tratados: No Camboja, os usuários parecem ter sido destituídos de seus direitos básicos:
“Em um relatório publicado em janeiro, a Human Rights Watch descreveu em detalhes
abusos ocorridos em 11 centros gerenciados pelo governo, que incluíam choques
elétricos, surras, estupros, trabalho forçado e doações de sangue forçadas.”
(G1:28/02/10). A Human Rights Watch já havia constatado em janeiro de 2010 que na
China, qualquer dos centros de detenção obrigatória de usuários “colocava-os em risco
de sofrer abusos físicos e realizar trabalhos forçados sem remuneração”. O Vietnã
sustenta uma rede de centros de terapia para usuários de opiáceos que está usando uma
droga à base de ervas para desintoxicação, sobre a qual, segundo um especialista em
dependência química da OMS em Phnom Penh, não existe nenhuma informação sobre a
sua eficácia nem sobre seus efeitos colaterais. Na Tailândia em 2003, cerca de 2.800
pessoas suspeitas de tráfico foram executadas a tiro, (G1:28/02/10).
. Estes fatos indicam o quanto a democratização do debate sobre o consumo de drogas
ainda está longe de ser conquistada e enquanto isso muitos continuarão pagando com a
própria liberdade e até com a vida, o preço da busca por uma porção de felicidade. A
condição de desviantes através da qual estes últimos usuários são representados é
diferente da dos universitários outsiders, mas não é independente da mesma. O que
ambos os grupos almejam é o direito de correr o risco de investir em específicas doses
de felicidade oferecidas na corrente cultura de consumo. Quanto às consequências deste
risco, esta é uma questão para os acadêmicos debaterem por anos e anos...
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Gasto
mensal
com Com/
Droga(s) Tempo consumo Frequência de sem
225
Interlocutor(a) preferencial(is) de uso uso Classe filhos Raça
Cleópatra Maconha 9 anos 50,00 Diário Média Sem Branca
Salomé Maconha 3 anos 0 Semanal Média Sem Negra
Leila Diniz Maconha/ecstasy 6 anos 0 Diário/mensal Média Sem Mestiça
Média-
Mata Hari Álcool 13 anos 100,00 Semanal alta Sem Branca
19
226
Blavatsky Ayahuasca anos 0 Quinzenal Média Sem Mestiça
Lampião Maconha 9 anos 80,00 Semanal Média Sem Mestiça
Rimbaud Maconha 6 anos 70,00 Diário Média Sem Branca
Média-
Pancho Villa Maconha 13 anos 50,00 Diário baixa Sem Mestiça
Oscar Wilde Maconha 12 anos 100,00 Diário Média Sem Branca
Zumbi Maconha/cocaína 19 anos 300,00 Diário/semanal Média Sem Branca
Marley Maconha 3 anos +/- 50,00 Semanal Média Sem Branca
Nietzsche Cocaína/maconha 12 anos 0 Diário/diário Média Sem Branca
225
- gasto referente às drogas no geral e não apenas em relação à droga preferencial.
226
- este tempo de uso não se limita ao tempo de uso da ayahuasca (4 anos), mas sim ao tempo de uso de
qualquer droga lícita (como álcool e fármacos) ou ilícita.
300
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227
- situação similar a da nota anterior.
301
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