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Universidade Federal da Bahia


Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Tom Valença

Consumir e ser consumido, eis a questão! (parte II)

outras configurações entre usuários de drogas


numa cultura de consumo

Salvador - Ba
Março – 2010
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Tom Valença

Consumir e ser consumido, eis a questão! (parte II)

outras configurações entre usuários de drogas


numa cultura de consumo

Tese de doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais com concentração
em Antropologia, sob orientação
do Prof. Edward MacRae.

Banca examinadora:
Antonio Nery Filho
Eduardo Paes-Machado
Edward MacRae
Júlio Assis Simões
Paulo César Alves

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Dois fins ou três


legitimam a falta
de princípios?

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Agradecimentos

Manifestar agradecimentos publicamente nunca foi do meu feitio, mas há situações


que merecem abertura de precedente. Neste caso, talvez mais de uma.
Inicialmente, eu agradeço as minhas famílias, tanto a que chamo de família de raiz –
meu pai, o Valença Mor; minha mãe, a Dona Clô; meus irmãos e sobrinhos –, quanto
aquela que percebo como família de antena – minha esposa Rosa, minha filha Yedra e
meus amigos. Essa galera toda foi paciente e muito tolerante com minha falta de
paciência e tolerância em relação ao que eu considerava como podendo obnubilar a
realização deste projeto; conversas de sala de visitas, encontros não programados,
confraternizações programadas, viagens para qualquer lugar e tudo o que roubasse meu
precioso tempo para divagar e refletir sobre os problemas que em grande parte eu
mesmo havia construído.
Também é fundamental salientar a assistência que recebi de pessoas que são
especialistas em problemas criados por outros para que elas ajudem a resolvê-los.
Primeiramente, Gey Espinheira, com sua paciência zen para ouvir meus delírios e
depois devolvê-los em duas ou três bem humoradas sentenças filosóficas. Outra pessoa
referencial é Edward MacRae, highlander de alta estirpe que com seu humor pra lá de
britânico vem mostrando que fazer ciência não é ser burocrático com receio de não ser
compreendido. Não por acaso, estes dois outsiders estabelecidos ajudaram a orientar
nesta obra corrente, o que muitos acreditavam não ser possível orientar.
Aos interlocutores que desde sempre me recusei a chamar de informantes, pois o
que se estabeleceu entre nós não foi um mero repasse de informações, mas sim um
diálogo profícuo e na maioria das vezes agradável, mando um forte abraço.
Por fim, resgatando o que já havia dito sobre a dissertação de mestrado: “não tenho
dúvidas de que este projeto pôde ser realizado porque em decorrência de configurações
muito específicas, minha faceta dionisíaca cedeu o trono para minha faceta apolínea”. E
desse lugar no qual me encontro envio saudações aos gregos e aos baianos.

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Resumo

Nos debates acadêmicos e nas representações midiáticas sobre a problemática das


drogas, se tende a centralizar a abordagem na relação entre tráfico, violência e exclusão,
muitas vezes naturalizando o consumo de substâncias psicoativas como um fator de
desequilíbrio nas configurações socioculturais contemporâneas. Tal perspectiva enfatiza
menos o discurso emitido do lugar do usuário que o seu papel como elo mais vulnerável
da rede de consumo – principalmente sendo o comércio das drogas ilícitas um dos mais
rentáveis do mercado. Se, ao naturalizar a relação entre drogas e ilicitude, se estigmatiza
a identidade e as marcas distintivas do usuário, esta pesquisa investiga o discurso
identitário que perpassa representações de estudantes universitários usuários – em um
momento histórico no qual estes são colocados em evidência pela ampla exibição do
filme Tropa de elite, e das proibições da apresentação do filme Maconha/Grass (a
verdadeira história da proibição da maconha) em uma universidade federal e da Marcha
da Maconha em várias capitais do país.
Palavras-chave: Drogas, universitários, processo civilizador, reflexividade e controles
sociais.
Abstract
In academic debate and media representations of the drug related problems, focus
tends to be placed on the relation between trafficking, violence and social exclusion,
and the use of psychoactive substances as a destabilizing factor in contemporary
sociocultural configurations is taken as natural. Such a perspective gives less emphasis
to the place of the user than of his role as the most vulnerable link in the chain of drug
consumption - especially since commerce in drugs is one of the most profitable of
markets. Since the naturalization of the relation between drugs and lawlessness leads to
the stigmatization of the user´s identity and his distinctive characteristics, the present
research seeks to investigate the discourse of identity that runs through the
representations of drug using university students at the particular moment in history
when they are put in evidence by the wide exhibition given to the film Tropa de Elite,
the banning of a presentation of the film Maconha /Grass (the true story of the
prohibition of marihuana) in a public university, and of the Marihuana March in several
Brazilian capitals.
Key Words: Drugs, University students, civilizing process, reflexivity, social
controls.

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SUMÁRIO

I - A trama

1.1 Configurando o objetivo........................................................................8


1.2 Quem? O que? Como?.........................................................................10
1.3 Perspectivas teóricometodológicas......................................................15
1.4 Recorte e desenho do estudo................................................................17
1.5 Sumário de capítulos............................................................................19
1.6 Uma visão panorâmica da perspectiva bibliográfica...........................21
1.7 Sobre a estigmatização das drogas .....................................................32
1.8 O homo academicus em algumas configurações contemporâneas......45
1.9 Juventude como profissão de fé..........................................................62

II – O cenário

2.1 Luzes, representações, ação!.................................................................76


2.2 O campo representado.......................................................................... 90
2.3 Da apresentação do campo à proibição no campus.............................104
2.4 Consumir para viver, viver para consumir..........................................108
2.5 Meu nome não é Junkie.......................................................................116
2.6 Mas o que é que o intérprete interpreta?.............................................134

III – A ação

3.1 Cortes etnográficos: aproximações e apreciações...............................138


3.2 As vicissitudes do campo....................................................................142
3.3 O reencantamento da vida cotidiana...................................................155
3.3.1 Em busca do que?............................................................................155
3.3.2 Automedicação reflexiva.................................................................169
3.3.3 Nas raias da medicalização..............................................................171
3.3.4 Drogas como capital e gastos com consumo...................................174

6
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3.3.5 Drogas em família...........................................................................179


3.3.6 Cultura de especialistas...................................................................189
3.3.7 “Desetnizando” o consumo.............................................................194
3.3.8 Sexo + drogas ainda combina com rock and roll?..........................196
3.3.9 A cena eletrônica em cena..............................................................202
3.3.10 Estilo de vida, consumo e produção.............................................207

IV – Os bastidores como palco

4.1 Cultura universitária e estrutura de vida.............................................215


4.2 Mas afinal, reduzindo quais riscos?...................................................229
4.3 Os metaespecialistas entram em ação.................................................253

V – Entre aplausos e apupos: as consequências reflexivas

5.1 O consumo de maconha e seus efeitos socioculturais e


mercadológicos..........................................................................................................261
5.2 O consumo em meio a configurações de violência..............................267
5.3 A distinção como mecanismo redutor de riscos...................................273
5.4 Professores, estudantes e controles informais......................................279
5.5 Recursos miméticos para reencantar a realidade cotidiana..................288
5.6 Reflexões finais....................................................................................290

Perfil dos interlocutores.............................................................................300


Referências bibliográficas..........................................................................302
Referências videográficas..........................................................................319
Websites.....................................................................................................320

7
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I – A trama

1.1 Configurando o objetivo

A pesquisa Consumir e ser consumido, eis a questão! objetivou estender uma


reflexão de longa duração sobre o acadêmico usuário de drogas, desdobrando-se em
duas partes. Se numa primeira etapa da pós-graduação com a dissertação: Consumir e
ser consumido, eis a questão! – configurações entre usuários de drogas numa cultura
de consumo, foi lançado um olhar sobre o professor universitário, suas representações e
controles sociais enquanto usuário, nessa atual etapa da pesquisa: Consumir e ser
consumido, eis a questão! parte II - outras configurações entre usuários de drogas
numa cultura de consumo, o escopo foi direcionado sobre o estudante universitário,
seus hábitos sociais e suas configurações identitárias na condição de usuário.
Digo reflexão de longa duração no sentido de forjar uma categoria que sintetize,
mesmo que de modo rasteiro, as categorias; reflexividade (Giddens:2000) e processo de
longa duração (Elias:1993). Em função do tempo disponível para a execução do projeto,
seria inviável realizar uma análise diacrônica ao longo da carreira de alguns sujeitos
acadêmicos, de modo que, busquei concretizar uma análise sincrônica entre professores
e estudantes universitários. Tendo como referência que todo professor um dia foi
estudante e que dos atuais estudantes, é de onde poderão surgir futuros professores,
então as duas etapas da pesquisa configuram um processo reflexivo de longa duração.
O cenário geral desta pesquisa é a cultura de consumo (Featherstone:1995) pois o
que define esta é que as pessoas ao consumirem mercadorias criam vínculos e
estabelecem distinções sociais. Em relação ao consumo de substâncias psicoativas não é
diferente, já que estas são culturalmente revestidas de camadas de valores que as
potencializam como drogas. Assim, ao cruzar relações entre consumidores que pelos
papéis sociais que exercem, não sejam necessariamente marginalizados/estigmatizados,
busquei ir além das representações dominantes no senso comum, nas quais geralmente
se pré-conceitua que um consumidor de drogas não tem condições de ser socialmente
incluído e integrado em outras redes comunitárias que não sejam formadas por
consumidores como eles. Esta pesquisa, tentando perceber outras representações que
não sejam anacrônicas, esvaziadas de significação configuracional para os próprios
representados, se propõe penetrar nesse terreno velado e analisar os modos como estes

8
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se relacionam - e se representam1 - com a “demonização da droga” (Zaluar: 1994) e a


estigmatização do consumidor, ou seja: de forma específica o objetivo é:
- investigar como o estudante universitário consumidor de drogas interage com as
representações sociais dominantes e os controles sociais civilizatórios, e se esse
consumidor em suas práticas, sinaliza outro(s) modo(s) de representação e de controles
sociais que contemple(m) o consumo de drogas2. Em outras palavras, conhecer os
significados atribuídos por universitários ao seu consumo de drogas, bem como alguns
dos valores psicossocioculturais relacionados a esse consumo.

1
- pois nem sempre os consumos de drogas como maconha, ópio e cocaína ostentaram as representações
estigmatizadas que ostentam atualmente, como bem demonstra Escohotado em Las Drogas: De los
orígenes a la prohibición (1994).
2
- nesse projeto, drogas lícitas devem ser referenciadas, pois é inviável abordar drogas ilícitas sem
estabelecer uma interface entre o consumo destas e o consumo de drogas lícitas, enquanto dois lados
configurados de uma mesma moeda.

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1.2 Quem? O que? Como?

Já que meu interesse é perceber como os interlocutores elencados enquanto


universitários usuários de drogas procuram superar estigmas - e mesmo quando não
conseguem, intento perceber as tentativas que já são significativas -, cerco-me de alguns
cuidados para não reforçá-los. Na elaboração desse projeto evito trabalhar com a
categoria dependente, assim como com a categoria viciado. Tais categorias poderiam
desconstruir os sentidos das autorepresentações que são problematizações centrais nesta
investigação, na medida em que distorceriam a autoimagem de usuário que a grande
maioria dos interlocutores sustenta. De minha parte, há uma expectativa de que este
projeto sirva para a minimização de danos sociais configurados em torno de alguns
estigmas ligados a representações – posso estar equivocado e até ajudar a incrementá-
los – ou pelo menos pô-los em xeque: ante os próprios interlocutores e ante a sociedade
de forma geral.
Colocando a questão desse modo é inegável a dimensão política que essa pesquisa
socioantropológica adquire, mas essa dimensão não é articulada como política ativista e
militante, e sim como ciência política, visto que, a relação entre consumidores de drogas
e representações estigmatizantes não é tratada normativamente - não valorando o
sentido normalizador ou desviante do consumo -, mas sim processualmente -
investigando a dinâmica das relações de poder que tende a gerar sentido na
normalização ou na desviança desse consumo e de suas reflexividades.
Quem? Na dimensão epistemológica, o que quero significar quando indico que meu
interesse está mais voltado para os estilos de vida dos interlocutores do que
propriamente para seus usos de drogas? Quero significar suas estratégias de controles
sociais para contornar os estigmas e conduzir suas vidas em meio aos valores das
configurações socioculturais dominantes, configurações que de modo geral estabelecem
que a cultura das drogas tenha uma conotação negativa. Concentro grande atenção nos
habitus sociais dos interlocutores, nos dispositivos empregados por estes para processar
suas demandas civilizadamente.
Apesar das diferenças nas opções comunitárias em torno do consumo de variadas
drogas – já que os interlocutores aqui analisados não são percebidos como indivíduos
isolados, mas configurados em meio a seus pares - há uma interface que liga as opções
elencadas pelos sujeitos. Este ponto de intercessão está na representação dominante
desse consumo enquanto estigmatizante pois, mesmo no consumo de substâncias lícitas

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como o álcool e tabaco, há cada vez mais delimitações de sanções e controles sociais.
Estas configurações comunitárias ainda podem diferir entre elas no que diz respeito à
faixa etária, gênero, classe, etnia e formação acadêmica. Nesse sentido, o ponto de
interseção costurado entre variadas drogas e contextos de consumo é que os
consumidores aqui interlocutores são universitários3, o que minimamente já garante que
estes buscam alguma superação do estigma, ao sustentarem uma outra carreira além da
carreira de usuário.
O que? Se fosse investigá-los apenas enquanto usuários de drogas, talvez fosse
interessante trabalhar com a categoria rede (Romani:1999), mas como os investigo
como universitários usuários, a categoria comunidade (Bauman:2003) parece mais
adequada, na medida em que mesmo não havendo um contato direto e voluntário entre
todos os interlocutores, há uma referência identitária comum que passa pelo título de
estudante universitário, o que lhes confere um estatuto muito mais sólido por
caracterizar um pertencimento estabelecido. Se os represento como comunidades4,
quero salientar com isso, os valores e objetivos comuns à carreira universitária; por
exemplo, a demanda pela produção de conhecimento – inclusive sobre drogas -, e
principalmente sua representação ante a sociedade. Por outro lado, não seria muito
preciso defini-los como grupo, pois muitos deles nem se conhecem. Se podem ser
representados como um grupo, o devem ser apenas como o grupo de sujeitos dessa
pesquisa, mas nunca como um grupo entre eles mesmos.
Quais os habitus sociais que de modo dominante configuram estas comunidades? O
tipo de droga preferencial? O curso que fazem? O poder aquisitivo? Qualquer que seja o
leque de respostas, descarto duas categorias de análise para abordá-los: subcultura e
contracultura. Adotar as representações de subcultura e de contracultura para analisar
consumidores de drogas é correr o risco de ser conivente com a estigmatização, pois
subcultura e contracultura acabam indicando uma relação de dependência (sub) e
negação (contra) em referência a alguma “Cultura” dominante. Os interlocutores aqui
não percebem suas culturas como dependentes, mas sim como interdependentes em
relação a outras culturas e buscam a superação das diferenças, não sua negação.
Também a teoria do desvio que tem grande valor principalmente quando se estuda
grupos de excluídos, não é priorizada neste estudo, o que não quer dizer que seja

3
- e dentro desta categoria, novamente encontro particularidades ligadas a faixa etária, gênero, classe,
etnia e formação acadêmica, que só ganham sentido analítico quando configuradas.
4
- de modo mais preciso prefiro dizer comunidades, no plural. Posteriormente retomarei a questão.

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descartada. A teoria do desvio consagrada como uma perspectiva que investiga a


questão das drogas salientando os controles sociais que são constituídos entre os grupos
que imputam o desvio e os grupos representados como desviantes (Becker:1997, 8/9), é
uma referência incontornável.
Neste trabalho corrente, busco dialogar com as interpretações consagradas por Becker
referentes ao desvio, tendo como baliza a categoria “estabelecidos e outsiders” (Elias &
Scotson: 2000). Esta categoria também originalmente utilizada para analisar as relações
de poder entre grupos distintos pode acrescentar às contribuições da teoria do desvio
que é, em grande medida, empregada para analisar grupos que dificilmente superam as
consequências da estigmatização. Digo acrescentar no sentido de que, os outsiders na
interpretação de Elias, não são irrevogavelmente sentenciados pelo status negativo da
estigmatização – o que muitas vezes acontece com os desviantes - e querem provar seu
valor, acreditando que podem vir a ser estabelecidos: “os membros de um grupo
outsider, na verdade desprezado, reivindicam não apenas uma igualdade social, mas
também uma igualdade humana” (Elias:2001,136). Esta última reflexão se aproxima das
reflexões dos interlocutores aqui observados. Se estes, por exemplo, fossem moradores
de rua usuários de crack, a teoria do desvio seria precisa para estudá-los, mas como são
universitários usuários que dispõem de melhores condições para alterar o equilíbrio nas
relações de poder configuradas, a categoria eliasiana soa mais condizente5.
A categoria cultura de consumo pode enriquecer a análise aqui em curso. Esse
consumo coloca em perspectiva de observação uma cultura em processo, com dinâmica
para inclusive, ressignificar padrões comportamentais desviantes e transgressores.
Assim, os universitários usuários de drogas aqui em foco estabelecem os limites de uma
outra perspectiva cultural, não necessariamente desviante, mas alternativa, alternativa
esta que possui vários pontos de contato e tensão com a perspectiva de produção
representada como dominante. No recorte contemporâneo da cultura de consumo, os
atores não negam a cultura de produção6, o que buscam é superá-la, é não representá-la
como suas referências limítrofes de controle social.

5
- no trabalho de campo, considerar a priori que tais interlocutores operavam comportamentos desviantes
os fez sentirem-se desconfortáveis, encerrados numa perspectiva cultural na qual só os valores dos grupos
estabelecidos que condenam o desvio por eles mesmo imputados, devessem ser levados em conta.
6
- isto é, não negam a cultura característica da Modernidade baseada nas distinções propiciadas pelo
paradigma da produção - onde o status pessoal e coletivo era majoritariamente referenciado pela
qualidade da produção de trabalho e não necessariamente pela qualidade do consumo de bens – na qual a
teoria do desvio fez pleno sentido.

12
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Não se trata de enquadrar os sujeitos desta pesquisa na perspectiva multicultural,


pois aceitar que há diferenças de valores em curso não contemporiza os conflitos entre
os consumidores de drogas e os contrários a esse consumo, não resolvendo os danos que
podem ser causados pelas estigmatizações consequentes destes conflitos. O que aqui se
configura se aproxima da perspectiva intercultural, no sentido de que os pontos de vista
trazidos ao foco, além de ressaltarem as diferenças entre alguns valores culturalmente
estabelecidos e outros estigmatizados, gera reflexividade e questionamentos em torno de
algumas normatizações representacionais correspondentes. Essa postura metodológica,
muito mais do que uma demanda relacionada ao manancial teórico do pesquisador, é
consequência do desdobramento dinâmico da pesquisa, ou seja, do que o pesquisador
pensa que os interlocutores pensam.
Seguindo este raciocínio, a ferramenta hermenêutica adotada permite enfatizar que se
os interlocutores afirmam não classificar estigmatizadamente outras pessoas que são
contrárias ao consumo de drogas – ao contrário de muitos que os estigmatizam
exatamente por serem consumidores -, é com esse dado que se deve trabalhar. Muito
mais do que averiguar se os interlocutores dizem a verdade ou não, me interesso em
interpretar como essa representação sustentada reflete seus estilos de vida, estilos nos
quais pode ser emblemático - ou não! - classificar seus pares pelos seus consumos.
Como? Nesse processo, disponho de alguns recursos teóricometodológicos que a
certos modos de olhar, podem refletir como emanações de uma perspectiva eclética7. No
entanto, insisto nesse modo de construção, ressaltando que se deve considerá-lo muito
menos como uma perspectiva eclética e muito mais como uma perspectiva de síntese.
Qual a diferença? A diferença é que com o recorte eclético se busca aglomerar as
diferenças – antes tidas como excludentes - numa sobreposição das partes, como se o
todo das pessoas envolvidas pudesse falar através de uma única voz, a voz do
pesquisador. Já o recorte com perspectiva de síntese busca a construção dialógica entre
as diferentes vozes dos pesquisados e do pesquisador, estando mais próximo de um rap
polifônico do que de um coral monofônico. Inevitavelmente ainda será através da voz
do pesquisador que os pesquisados irão falar, mas nesse caso ficará muito mais explícito
quando for o pesquisador que estiver falando através dos pesquisados. Daí que neste
texto os interlocutores têm espaço para dizer muito mais do que sim ou não e
oportunidade para serem mais do que números que confirmam ou negam estatísticas.

7
- me refiro a uma interpretação que foi feita por um colega em relação à construção teórico-
metodológica da primeira parte deste projeto.

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Dito isto, a perspectiva de síntese é adotada no intuito de interpretar não a tolerância


das diferenças, mas os riscos sociais resultantes da tensão no diálogo entre os diferentes,
encarando os conflitos emergentes como fenômenos passíveis de observação. Desse
modo, que não se estranhe quando as categorias; comunidade, hedonismo,
hermenêutica, representação e aporia mudem de sujeitos e se repitam ao longo do texto
se juntando às categorias; liberdade, segurança, configuração, estabelecidos, outsiders,
habitus social, estigma, set e setting, já bem repetidas, na primeira parte deste projeto8.
Também é importante destacar que se utilizo alternadamente ao longo do texto as
expressões drogas e substâncias psicoativas por um lado, usuários e consumidores de
drogas por outro, não é por imprecisão conceitual, mas exatamente porque a precisão
dos conceitos restringe seu agenciamento. Uso de substâncias psicoativas diz respeito
ao contato direto da pessoa com a fonte da substância química: a maconha, a cocaína, o
álcool, etc. Já o consumo de drogas envolve não só o uso propriamente dito, como
também às condições que o propiciam; o contato com a rede de tráfico para aquisição da
substância, a situação sociocultural e psicológica em que o uso se dá, seus riscos e
mecanismos de defesa, assim como as suas representações - que por sua vez fazem
parte dos efeitos. Quando utilizo o vocábulo drogas em detrimento da expressão
substâncias psicoativas, estou querendo enfatizar as representações enquanto efeitos
estigmatizantes que são acopladas às substâncias. E se mesmo assimilando consumidor
como uma categoria mais completa do que usuário, ainda me refiro algumas vezes ao
usuário, é porque estou respeitando a interpretação que os próprios interlocutores fazem
de si, assim como o sentido original imputado pelos autores de referência.
Esta perspectiva metodológica permitiu trazer as tensões do diálogo entre teoria e
prática “à flor da pele”, na medida em que tais tensões seriam dificilmente contornáveis
sem descaracterizar os estilos de vida desses estudantes universitários que também são
consumidores de drogas. Por exemplo, como não trazer ao texto a tensão configurada
quando me percebi no palco do combate entre as representações que sustentei destes
interlocutores quando comecei a pesquisa e as suas autorrepresentações que vim a
encontrar no campo? Sem trazer estas tensões ao texto, este projeto estaria incompleto
e mesmo deficiente em relação à ambição de sua proposta e da riqueza dos dados
configurados.

8
- Consumir e ser consumido, eis a questão! configurações entre usuários de drogas numa cultura de
consumo. (Dissertação de mestrado. UFBa, 2005).

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1.3 Perspectivas teóricometodológicas

Muito além da classificação e hierarquização de critérios quantitativos de frequência


de uso, o consumo de drogas na perspectiva desse projeto, é abordado através da
configuração dos valores identitários a ele relacionados. Assim, o cunho
socioantropológico dessa investigação faz-se necessário – além do lugar de onde fala o
interlocutor, interessa saber em que condições fala o interlocutor -, a fim de
contextualizar informações sobre os habitus sociais do interlocutor não só em relação às
drogas, mas em relação com outros sujeitos consumidores e não consumidores. Essa
perspectiva permite que a abordagem dos efeitos do consumo seja direcionada muito
menos às propriedades farmacológicas, do que às motivações, expectativas e estrutura
de vida do usuário - em resumo, seu estilo de vida -, como também às configurações do
meio sociocultural onde este se encontra inserido – sua estrutura de vida.
Estes aspectos acima citados serão trazidos à análise num processo dialógico com as
categorias privilegiadas abaixo. Nesse processo, tais categorias serão relativizadas de
acordo com as distintas propostas teóricas dos autores referenciais, como também com
as percepções reflexivas do pesquisador.

I – Para trabalhar o conceito de relação, priorizo a teoria do processo civilizador


(Elias:1990/1993), por intermédio das categorias: configuração, estabelecidos e
outsiders, habitus social e esferas miméticas. Também disponibilizo da teoria da
reflexividade institucional (Giddens:1991/2000), ressaltando a categoria confiança. Por
fim, há a categoria comunidade (Bauman:2003) que fecha este primeiro tópico.

II - Visando analisar o estudante usuário utilizo as categorias: sistemas especialistas


(Giddens:1991), e homo academicus (Bourdieu:1998) - com sua subcategoria heréticos
consagrados. Como referências para esta análise são observadas as ressignificações que
as categorias liberdade e segurança adquirem desde a cultura de produção – quando
eram interpretadas como princípio de prazer X princípio de realidade (Freud:1974 B).

III – Para abordar drogas na cultura de consumo, utilizo como referências


fundamentais: cultura de consumo (Featherstone:1995), capital cultural
(Bourdieu:1992/1984/2007), liberdade (Bauman:1989), estilo de vida (Giddens:2002),

15
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Phármakon (Derrida:1997), hedonismo (Lipovetsky:2006) e reencantamento


(Maffesoli:2006).

IV – Com o intento de investigar o uso de psicoativos enquanto consumo de drogas,


emprego num plano conceitual as categorias: controles sociais, desvio e carreira de
usuário (Becker:2008), estigma (Goffman:1998), set, setting, rituais, sanções sociais e
uso compulsivo (Zinberg:1984), estrutura de vida e disponibilidade de aquisição da
substância (Grund:1993).

V - Para analisar a cultura da droga enquanto estilo de vida, cuja referência prioriza
a investigação sobre o consumidor não marginalizado, não excluído, tenho como base a
pesquisa de Gilberto Velho; Nobres e Anjos, um estudo de tóxicos e hierarquia (1998).
A escolha da pesquisa de Velho como referência se deu por um fator muito simples.
Este estudo pioneiro na investigação do consumo de drogas no Brasil na década de
1970, e que privilegiou consumidores não ligados à marginalidade e à violência do
tráfico, acabou obtendo uma repercussão e representação restrita entre pesquisadores da
área. De forma geral, em meio aos não especialistas na problemática, há uma maior
informação sobre pesquisas, como as de Alba Zaluar, que privilegiam as relações entre
drogas, tráfico, violência e exclusão. Ora, os interlocutores da presente pesquisa
abraçam um estilo de vida muito mais próximo dos interlocutores de Velho – mas só
por efeito aproximativo, já que todos valorizam muito a carreira estudantil – do que dos
interlocutores de Zaluar, e nesse sentido foi realizada a opção pelo modelo.

Diante do objetivo proposto esta esquematização permite explorar as seguintes


questões:

1. História pessoal do consumo de drogas lícitas e ilícitas, estrutura e estilo de vida;


2. Significados atribuídos ao consumo e sua dimensão cultural;
3. Configurações acadêmicas: trajetória na instituição, nível de satisfação com a
academia, ambiente e processo de produção intelectual;
4. Inserção social: participação em comunidades, níveis de vinculação e de
discriminação em função do consumo;
5. Recursos culturais e/ou miméticos: religião/espiritualidade, arte, lazer, esporte e
política.

16
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1.4 - Recorte e desenho do estudo

Tenho então, como interlocutores, universitários consumidores de drogas, e entre


estes, foi possível perceber a configuração de algumas comunidades de consumo – em
interface com suas carreiras de universitários. Defino-as como comunidades na medida
em que nelas, tais interlocutores constroem controles informais específicos em torno de
seus consumos de substâncias psicoativas, caracterizando uma identidade comunitária
cujos códigos de acesso não são explícitos para os de fora. Os participantes destas
comunidades configuram um universo amostral de 22 interlocutores entre 21 e 36 anos,
de ambos os gêneros, distribuídos por universidades públicas (50%) e faculdades
particulares (50%).
As interpretações que esses usuários de drogas enquanto universitários fazem de seus
estilos de vida e que gostariam que fossem levadas em conta quando fossem
publicamente representados não seriam bem exploradas se fossem observadas por
intermédio da aplicação de questionários ou de entrevistas fechadas. Para registrar estas
interpretações sem se limitar a recortes metodológicos que fossem pouco adequados à
natureza do objeto de estudo, o trabalho de campo abrangeu não só visitas aos campi de
atuação e aos domicílios dos interlocutores, mas também os acompanhou em festas,
shows, bares, praias, rituais religiosos e até a um casamento. Se as entrevistas foram de
grande valia quando foi preciso entrar em contato com os discursos dos interlocutores,
os cortes etnográficos foram inestimáveis para que eu realizasse uma imersão cultural
em suas práticas cotidianas. Digo cortes etnográficos, pois falar em etnografia pode
passar a falsa noção de um distanciamento formal entre o pesquisador e o pesquisado, a
ponto do primeiro delinear o segundo como um objeto distante a ser aproximado. No
presente caso, quando pesquisador e pesquisados estão configurados em cortes de
tempo e espaço onde os controles sociais não são tão diferenciados9, o que aconteceu no
campo foi menos uma observação do outro enquanto objeto distante e mais uma
reinterpretação do próximo enquanto sujeito – e eis um risco tão inevitável quanto
enriquecedor.

Passo a passo - Se na primeira parte da pesquisa houve um predomínio de


interlocutores de humanidades, principalmente professores concentrados na Faculdade

9
- se não éramos todos nativos, éramos todos universitários...

17
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de Filosofia e Ciências Humanas da UFBa, nessa segunda parte, a mesma área de


concentração e o mesmo campus foram mais uma vez trazidos para o centro das
atenções por um número significativo de interlocutores estudantes, tanto em função das
polêmicas referentes ao consumo conspícuo de maconha na referida unidade quanto por
serem alguns interlocutores atuais (36%), estudantes da mesma - unidade da qual
também faz parte o pesquisador, o que lhe permite uma observação mais participante.
Assim, no primeiro estágio dessa segunda parte da investigação, parti desse lócus social
como referência.
Inicialmente para checar a eficácia de um roteiro de entrevistas, foram realizadas
duas pré-entrevistas - construídas a partir do roteiro utilizado com os professores. As
várias observações de locais tão distintos como sala de aula e show de rock forneceram
indicações sobre as diversas configurações miméticas que os interlocutores
frequentavam, sendo possível registrar mais pormenorizadamente seus estilos de vida.
Estas variadas participações observantes foram realizadas no intuito de, além da palavra
dos interlocutores, acessar suas manifestações de emoções em configurações “menos
autocontroladas”, o que pôde traduzir-se em uma chance de registrar comportamentos
menos racionalizados que os registrados nas entrevistas. Nesses ambientes com suas
peculiaridades, os controles informais dos interlocutores muitas vezes não são
manifestos com palavras, mas com ações.
Como recurso macroestrutural que extrapola a análise de dados primários, já que,
como Bourdieu (2000), não acredito no “monoteísmo metodológico10”, lanço mão da
análise de discursos midiáticos sobre o consumo de drogas e suas representações:
jornais impressos e virtuais, e também telejornais. Isto em função das representações
emitidas por estes veículos de comunicação municiarem valores não só para a
reflexividade do senso comum, mas também para as próprias ciências sociais, e para a
própria comunidade de universitários como um todo.

10
-“é preciso desconfiar das recusas sectárias que se escondem por trás das profissões de fé demasiado
exclusivas, e tentar, em cada caso, mobilizar todas as técnicas que, dada a definição do objeto, possam
parecer pertinentes e que, dadas as condições práticas de recolha dos dados, são praticamente
utilizáveis”,(BOURDIEU: 2000,26).

18
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1.5 - Sumário de capítulos

O primeiro capítulo após introduzir o manancial teórico referencial opera uma leitura
sobre a estigmatização dos consumidores de drogas, averiguando a configuração
sociocultural que ganhou corpo na primeira metade do século passado quando as drogas
foram lançadas na ilegalidade. Em seguida é desenhado um recorte da condição de ser
universitário, o que é fazer parte de um corpo discente tendo como referência as
representações dominantes do homo academicus. Para tanto o foco é direcionado ao
campo universitário enquanto ethos e cultura estudantil. Este capítulo é encerrado com
um panorama sobre o que vem significando ser jovem no Brasil das últimas décadas
tendo como setting a cultura estudantil já que o jovem acaba sendo o principal público
alvo da cultura universitária. Nos limites deste recorte busco explicitar os conceitos e a
intencionalidade da tese. A pergunta que se desdobra e faz eco é: qual projeto estes
universitários jovens e consumidores de drogas estigmatizadas sustentam com seus
estilos de vida11?

O segundo capítulo é uma introdução às representações que tendem a favorecer a


estabilização de estigmas que geram conflitos para o universitário usuário. Essa
estigmatização é observada inicialmente em função das polêmicas alicerçadas em torno
do filme Tropa de elite a partir do qual é cristalizada a representação – já existente - do
universitário usuário/traficante, representação que através de veículos midiáticos entrou
em voga no período subsequente. Num segundo momento é traçado um panorama das
representações que configuram o setting de consumo de drogas na cultura universitária,
e como este por sua vez, reflete um novo olhar das ciências em relação à problemática
do consumo de psicoativos. Concluindo este capítulo, as culturas dos usuários e dos
universitários são interpretadas através das vozes e das configurações comunitárias de
alguns interlocutores, sendo observados alguns controles sociais que estes
disponibilizam como mecanismos de adequação relacionados às comunidades de
pertença fundamentais – família e escola – referências básicas do processo civilizador.

11
- e se ao senso comum é motivo de estranhamento associar universitários e drogas quase que com
naturalidade, o estranho para pesquisadores da problemática é que não haja a possibilidade dessa
associação, como transparece na seguinte fala do antropólogo Gilberto Velho: “Têm muitos jovens que
não usam cocaína, mesmo, e conheci vários que nunca fumaram um cigarro de maconha, juventude
universitária, o que poderia parecer quase espantoso. Mas existem essas pessoas...”, in: (LABATE et Al:
2008,134).

19
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Através de cortes etnográficos e análise interpretativa de configurações dialógicas, o


terceiro capítulo investiga, universitários participantes de algumas comunidades que por
seus habitus sociais configuracionais possuem representações muitas vezes antitéticas, e
aqui representando a “rivalidade” entre Ciências Humanas e Ciências da Saúde, há
alguns interlocutores que são estudantes concentrados em Humanidades enquanto
outros são alunos da área médica. Há também representantes do emparelhamento entre
hedonismo e reflexividade. No caso, alguns estudantes que são frequentadores da cena
eletrônica ou da noite soteropolitana e outras baladas, assim como interlocutores que
produzem pesquisa, trabalho e ativismo político em torno do consumo de drogas. A
observação está centrada nos seus estilos de vida, nas relações não só com família e
escola, e outros setores da sociedade, mas também com os cuidados de si e o lazer.

O quarto capítulo analisa o ambiente universitário como setting de mudança de estilo


de vida em relação às comunidades de pertença originais. A reflexividade consumida na
cultura acadêmica que não se limita aos conteúdos programáticos dos cursos abre
possibilidades de interpenetrações com valores culturais distintos, favorecendo a
inserção dos interlocutores em redes sociais amplas com mecanismos de controles
sociais negociáveis. Como estes interlocutores incorporam as práticas de redução de
riscos e danos aos seus estilos de vida?

O quinto capítulo opera uma interpretação sobre como a crise econômica ensaiada
em 2008 propiciou uma configuração que favorece outros sentidos para o consumo de
drogas e seus efeitos. Em seguida é realizada uma leitura sincrônica sobre configurações
de estudantes e professores universitários usuários, registrando aproximações e
distanciamentos quanto às suas perspectivas profissionais e quanto a recursos miméticos
emblemáticos da cultura de consumo.

Ao fim e ao cabo serão expostas as reflexões finais.

20
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1.6 - Uma visão panorâmica da perspectiva bibliográfica

A referência básica deste estudo é a categoria de Elias “o processo civilizador”


(1990,1993), categoria que indica que as culturas das sociedades modernas se
diferenciam em relação às culturas tradicionais por um maior controle individual das
emoções no sentido de facilitar a organização das suas configurações coletivas. Para que
as sociedades modernas estabeleçam configurações consistentes, de longa duração, é
necessário que se controle frequentemente as emoções individuais para que elas não
gerem tensões entre as pessoas e os grupos. Nas sociedades tradicionais essas emoções
eram controladas em função de ritos e sanções mágico-religiosas. Com o descrédito das
instâncias mágico-religiosas, esse controle sobre a administração das emoções foi se
estabilizando como responsabilidade pessoal, responsabilidade que garantiria o futuro
das sociedades civilizadas. Como funciona essa responsabilidade? Assumir
individualmente a responsabilidade de controlar as emoções, implica em que os
indivíduos conhecem e temem os riscos que acompanham o descontrole de tais
emoções. Ora, nos dias de hoje o consumo de drogas sustenta uma representação
dominante que remete diretamente ao descontrole. Uma interpretação possível para essa
representação dominante é que o consumo de drogas seria um processo anticivilizatório,
um desvio estabilizado como padrão na curva dos projetos de desenvolvimento social.
Assim, em tese, se a proposta é viver em sociedades que se configuram em torno
dos “órgãos centrais de controle de emoções” como família e escola, as emoções
descontroladas, que podem resultar em conflitos para a estabilidade destes órgãos,
devem ser submetidas a controles regulares. O processo civilizador vem “educando” os
indivíduos para que gradativamente o controle precise ser cada vez menos exercido por
intermédio dos órgãos que mantêm o monopólio da forca – como a polícia – para ser
operado pelos próprios indivíduos, como autocontrole. Assim se esboçou a perspectiva
de uma sociedade civilizada onde a segurança coletiva não estivesse sendo ameaçada
pelo descontrole de emoções individuais.
A configuração é outra categoria relevante para este projeto, definida por Elias
(2001) como um padrão relacional flexível, mutável, delimitado pela dinâmica do
conjunto de indivíduos em suas relações uns com os outros, num modelo de
interdependência social processual. Nesse modelo o “poder” não é representado como
uma substância, mas como uma relação configurável:

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“É muito fácil, por exemplo, não perceber que o conceito de figuração foi
criado expressamente para superar a confusa polarização das teorias
sociológicas em teorias que colocavam o ‘indivíduo’ acima da sociedade e
outras que colocavam a ‘sociedade’ acima do indivíduo [...] na realidade,
faz muito tempo que esse eixo de lutas foi ofuscado por outros” (ELIAS:
2001, 148).

“As diferenças dessa dependência e dessa interdependência humanas são o


núcleo daquilo a que se refere quando se fala das relações de poder entre os
indivíduos de uma dada sociedade.” (ELIAS: 2001,154).

Analisar as configurações é antes de qualquer coisa apreender as naturezas dinâmicas


da interdependência e da interpenetração dos indivíduos nas sociedades. Numa relação
de poder entre indivíduos ou grupos com valores distintos, mas com interesses próximos
– como no caso dos que são contra e dos que são a favor do consumo de drogas – há
uma interpenetração de objetivos a serem atingidos, assim como uma interdependência
dos que buscam atingi-los:

“A sequência de movimentos em ambos os lados só pode ser


compreendida e explicada em termos da dinâmica imanente na sua
interdependência. Se a sequência das ações em ambos os lados fosse
estudada isoladamente, perderia todo o sentido.” (ELIAS:1999,87).

A interdependência desenha o modo como os estabelecidos e os outsiders (Elias &


Scotson, 2000) se configuram numa relação de poder. Os estabelecidos são os que estão
numa posição privilegiada enquanto os outsiders são os que se encontram em posição
contrária. Em acordo com esta percepção reflexiva, o que configura o usuário de drogas
como um estigmatizado outsider12, muito mais do que o efeito das drogas, são as
relações de poder ao redor do consumo com os não usuários estabelecidos. Mas um
universitário usuário de drogas seria ao mesmo tempo estabelecido como universitário,
enquanto por outro lado, no exercício do papel social de usuário, seria outsider. Esse
duplo papel como estabelecido e como outsider engloba características muito próprias,
pois ao flexibilizar as posições individuais nas relações de poder, abre-se espaço para

12
- chamo a atenção para o recorrente emprego do vocábulo inglês outsider nesse texto, pois traduzi-lo
como desviante, marginal ou excluído poderia induzir uma interpretação que aproxime seu sentido do
desvio e da exclusão econômica, o que não combina com o recorte da pesquisa. Assim, inicialmente
mantive o outsider como forma de pontuar muito mais a diversidade de valores culturais em jogo, do que
um desvio ou exclusão de ordem econômica. A respeito do termo outsider ser empregado tanto por
Becker quanto por Elias, há diferenças em seus usos. Se na teoria do desvio, Becker constata que o
outsider é representado como um indivíduo à margem da estrutura e que dificilmente buscaria/encontraria
status nesta, na teoria do processo civilizador, a estabilidade das configurações sociais depende de que o
outsider seja incluído, mas incluído como um estigmatizado. Vale ressaltar que nessas configurações, o
outsider não cessa sua busca por status que algumas vezes pode ser efetivado.

22
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flexibilizar o grau de dominação a que esse indivíduo está exposto. Quando essa
manobra ocorre ao redor de pessoas em condição social estabelecida e que sustentam
valores outsiders, pode haver a ressignificação do estigma como status positivo – em
tese, o estigma é um status negativo (Goffman:1988) - o que caracterizaria uma relação
de poder invertida quanto à disposição de valores.
Como já foi pontuado na última nota de rodapé, há diferenças significativas entre a
teoria do processo civilizador e a teoria do desvio. Enquanto o desviante parece se
alimentar da representação do seu desvio, o outsider se configura na busca por
ressignificação do estigma:

“A curiosa fixação dos desejos dos outsiders pelo reconhecimento e


aceitação do establishment faz com que tal objetivo se transforme no foco
de todos os seus atos e desejos, sua fonte de significado. Para eles nenhuma
outra estima, nenhum outro sucesso, têm tanto peso quanto a estima do
círculo em que são vistos como outsiders inferiores, quanto ao sucesso em
seu establishment local”. (ELIAS:1995, 39).

Dito de outra forma, estabelecidos e outsiders não são opostos irreconciliáveis, mas
sim polaridades complementares, interdependentes e interpenetradas quanto a seus
objetivos. Esta dinâmica caracteriza muitas das relações de poder configuradas na
contemporaneidade e não apenas no caso do consumo de drogas.
E já que tratamos de polaridades, nessa altura do texto faz-se necessário introduzir as
esferas miméticas. Segundo Elias & Dunning (1992), definir como meta coletiva um
maior controle de emoções não significou que estas foram simplesmente recalcadas. O
processo civilizador deslocou-as para um eixo cultural onde podem ser configuradas
enquanto habitus sociais que sustentam representações estabelecidas, de modo a serem
projetadas coletivamente com riscos reduzidos13, pelo menos em tese.
Nessa perspectiva, ganham sentido civilizador o jogo de futebol, o carnaval, o
cinema, a telenovela, os reality shows, os videogames e o consumo de drogas. Se no
futebol e no carnaval ainda podem se configurar episódios onde imperam emoções
violentas, anticivilizatórias, é no consumo de drogas que essa violência acaba ganhando
um poder de representação que deixa de ser episódico para ser padrão. Práticas que
como estas dão vazão às emoções são interpretadas pelos dois autores como
representações miméticas. Estas representações acontecem numa esfera cultural onde é
possível trazer à dimensão do consumo, emoções que podem ser violentas, porém até

13
- O título original do livro em inglês onde Elias & Dunning versam sobre a questão é esclarecedor: The
quest for excitement – A busca por excitação.

23
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certo ponto são também controláveis, de forma que seja viável aos indivíduos
civilizados se excitarem com o fluir de emoções fortes:

“a estrutura das organizações e instituições miméticas representa a


antítese e o complemento das instituições formalmente impessoais
encaminhadas a um fim, que deixam pouco espaço para emoções
apaixonadas ou flutuações no estado de animo [...] a esfera mimética
constitui uma parte específica e integral da realidade social”.( ELIAS &
DUNNING: 1992, 95/6)...

...quer dizer, as atividades e representações praticadas nas esferas miméticas –


configuradas em jogos, shows, atividades de lazer espetaculares ou não, esportes
radicais ou não, novas práticas religiosas, as antigas e as novas drogas que a cultura de
consumo põe incessantemente a disposição - são um contraponto ao excesso de
racionalidade produtiva, contraponto que cada vez mais naturalmente vai sendo
incorporado como habitus sociais. Por sua vez, os habitus sociais (Elias:1994) enquanto
categoria analítica são padrões referenciais relativos a formação da estrutura social da
personalidade dos indivíduos em meio aos outro membros que compõem a sociedade14.

“cada pessoa singular, por mais diferente que seja de todas as demais, tem
uma composição específica que compartilha com outros membros de sua
sociedade. Esse habitus, a composição social dos indivíduos, como que
constitui o solo de que brotam as características pessoais mediante as quais
um indivíduo difere dos outros membros de sua sociedade”.
(ELIAS:1994,150).

Assim, tanto o habitus do outsider como o habitus do estabelecido não devem ser
percebidos como habitus do indivíduo ou habitus da sociedade, mas como habitus
configurados pela interface entre o indivíduo e sua sociedade. Importante salientar que é
através das emoções vividas nas esferas miméticas que esses habitus são mais
fortemente incorporados.
Um último ponto referencial da teoria civilizatória vai facilitar seguir em frente. Se
até meados do século XVIII as representações sociais centradas nas grandes cidades

14
- o que não quer dizer determinismo - uma interpretação também possível para a teoria de Elias -, pois
se certos hábitos são estabelecidos como a norma vigente num certo período, em pouco tempo podem
deixar de sê-lo, como tem acontecido como o hábito de consumir álcool e tabaco a partir dos controles
formais exercidos em função da lei seca e da lei antitabagismo. Se os controles formais para a mudança
de hábitos ainda podem sugerir algum nível de determinismo em torno desses hábitos, resta observar até
que ponto os consumidores ainda resistem em se submeter a tais mudanças.

24
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utilizavam majoritariamente o pronome Nós para delimitar vínculos relacionais, nesses


últimos dois séculos e meio tem havido mudanças em favor do pronome Eu. Esse dado
indica o estabelecimento de configurações culturais mais voltadas ao individualismo e
muito menos voltadas para os tradicionais vínculos relacionais que submetiam as
demandas dos indivíduos aos seus grupos. Porém, Elias acredita que as mudanças
processuais não são tão simples. Nesse sentido ele elabora a categoria polarizada Nós-
Eu (1994), para resolver a impossibilidade configuracional em separar o nós do eu, a
sociedade do indivíduo, já que o Eu nunca é um Eu sozinho, é sempre um Eu em meio a
outros Eus, que configuram alguns Nós, diante de alguns Eles. Assim, podemos refletir
que o usuário com seus pares usuários, configura um Nós, assim como com outros não
usuários, ele configurará outros Nós - o Nós da mesma família, o Nós colegas de
faculdade, etc, o que de certa forma equivale as várias comunidades com seus ritos e
controles próprios. Tais possibilidades relacionais em algum momento poderão
configurar um conflito com potencial para por o usuário em xeque, na medida em que
ele se propuser a fazer parte de certo grupo onde seu Eu usuário destoe do Nós grupal,
se este for um grupo não usuário. Nesse grupo, seu Eu usuário tenderá a ser visto como
o outsider estigmatizável15 que será rechaçado pelo Nós não usuários, enquanto este
último Nós será visto como estabelecido, grupo dominante na configuração.
Nas configurações sociais entre os Eus e os Nós, de forma geral “O grau de
integração depende da assimilação dos outsiders e da capacidade dos grupos
estabelecidos de assimilá-los” (Elias & Scotson:2001,141) - o que no caso de
universitários usuários pode significar uma configuração onde a sua assimilação pode
ter curso na medida em que o Eu usuário for compatível como o Nós universitários.
Para que isso aconteça se deve salientar os aspectos configuracionais relacionando às
distinções no grau e no posicionamento da organização dos indivíduos. O indivíduo no
processo de configuração, pode ser outsider e estabelecido e essa dupla relacionalidade
configuracional ao flexibilizar a posição de poder, flexibiliza o grau de estigmatização

15
- se tal reflexão causa estranhamento, não se deve desconsiderar que o livro de Becker, Outsiders, e o
livro de Goffman, Estigma, tenham sido lançados em 1963, enquanto a obra de Elias e Scotson, Os
estabelecidos e os outsiders, foi publicada em 1965. Os três livros enfocam estudos sobre
comportamentos tidos como desviantes ou não estabelecidos enquanto conduta padrão diante dos códigos
de civilidade, num modelo de abordagem socioantropológica que na época era bastante inovador. Com
exceção da Escola de Chicago – da qual Becker é membro da segunda geração - até então a sociologia
tratava do comportamento estabelecido enquanto civilizado, ao passo que a antropologia estudava o
desvio, mas o desvio de culturas não urbanas, ou mesmo não “civilizadas”. Além disso, a obra de Elias,
principalmente O Processo civilizador, ganhou visibilidade no fim dessa mesma década, a partir de 1968,
quando o pós-estruturalismo e o estudo de temas outsiders começavam a tornar-se uma realidade.

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a que esse indivíduo está exposto. Aqui abro um parêntese para pontuar que,
desdobrando as categorias eliasianas anteriormente trabalhadas, o universitário usuário
pode fazer parte do que chamo de outsiders estabelecidos (Valença:2005,25), indivíduos
que em posição social estabelecida, conseguem administrar suas facetas outsiders, sem
que por isso tenham seu status estabelecido reduzido à condição de estigma.
Entretanto, não é por acaso que estes outsiders estabelecidos são minoria, pois o que
de forma geral se pode perceber é que a otimização do estigma dá-se quando o grupo
estigmatizador resiste fortemente às possibilidades de que o grupo estigmatizado
alcance posições de poder16. Interfaceando a teoria do processo civilizador de Elias com
a teoria do estigma de Goffman17, é possível observar que no caso de usuários que
vivam centrados no que Becker chama de subcultura das drogas, e que não consigam
otimizar relacionalidades com outras subculturas, o uso de drogas será o estigma que os
denunciará como “inferiores”, inferioridade esta que lhes impede de se relacionarem
melhor com outras culturas. Nessa perspectiva, um dos aspectos merecedores de maior
observação é que quaisquer dificuldades sociais dos outsiders usuários tenderão a
serem vistos como problemas destes enquanto usuários, e não como problemas de
relacionamento. O estigma é uma arma usada pelos estabelecidos nas relações de poder
para manter os outsiders sob controle.
Como já foi sinalizado, não é adequado para analisar a configuração dos estudantes
universitários usuários, e mesmo dos usuários/traficantes, utilizar a categoria desvio,
mas, em relação à representação estabelecida do tráfico de drogas ligada à violência e
exclusão, a teoria do desvio pode ser aplicada adequadamente. Trazendo à discussão o
cientista social Howard Becker, não é difícil entender porque numa configuração
econômica em grande parte adversa, como a vivida por boa fatia da população
brasileira que não tem acesso ao consumo generalizado, a motivação de atos desviantes
ganha representatividade. Em relações de poder onde o equilíbrio quase sempre pende
para o mesmo lado, alguns consumidores potencialmente falhos18 são tentados a buscar,
ludicamente, controles sociais paralelos que lhes favoreçam, ou que no mínimo não

16
- no governo do presidente norte-americano Ronald Reagan passou a ser norma que funcionários
públicos realizassem exames de urina regularmente visando detectar uso de drogas, com fins de barrar-
lhes o acesso à carreira profissional. Essa é uma manobra eficiente para estabelecer o estigma de que um
usuário de drogas não apresenta condições de ascensão na carreira profissional.
17
- de acordo com Goffman (1988,13) o estigma acaba sendo usado “em referência a um atributo
profundamente depreciativo”, que não supre a necessidade de buscar “uma linguagem de relações e não
de atributos”.
18
- os consumidores falhos são “aqueles cujos meios não estão à altura dos desejos.” (BAUMAN: 1998,
57).

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favoreçam a quem geralmente leva vantagem. Seria de um reducionismo acrítico


creditar esse desvio especificamente aos que estão excluídos do consumo material,
porém, na medida em que a exclusão aumenta a impossibilidade de construir uma
representação socialmente consumível, esta exclusão acaba sendo uma facilitadora para
a consumação do desvio.
O que se habituou chamar de ato desviante geralmente não é um ato individual, é um
procedimento construído socialmente19, conscientemente ou não fazendo parte de um
repertório de habitus sociais. O desvio é parte de uma construção socialmente
desenhada a partir de regras e com o objetivo de efetuar controles:

“...os grupos sociais criam o desvio ao estabelecer as regras cuja infração


constitui desvio e ao aplicá-las a pessoas particulares, marcando-as como
outsiders. Sob tal ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a
pessoa faz, mas sim a conseqüência da aplicação por outrem de regras e
sanções ao transgressor”, (BECKER: 1997, 8/9).

O que interessa prioritariamente, é que, na teia de relações sociais


contemporaneamente configuradas, o estigma do tráfico enquanto desvio não se
restringe aos traficantes, pois os consumidores de drogas são cada vez mais
estigmatizados como corresponsáveis por este. Nessa posição vulnerável, o consumidor
acaba sendo vítima de dupla violência; a produzida diretamente em função do tráfico -
por parte de alguns traficantes e da polícia – e a violência simbólica produzida pelo
restante da sociedade, representada por setores como família, escola e instituições
religiosas. Estas instituições interpenetram seus objetivos quando projetam a
“representação do mal” no consumo de drogas.
Enfatizando o poder moral persuasivo destas instituições de controle, Becker analisa
a maneira como os usuários de maconha a partir das experiências em grupo, construíram
suas identitárias carreiras de maconheiros. O autor dá atenção à quantidade e à
qualidade das informações sobre o uso de maconha que circulam nesses grupos,
buscando saber como tais informações influenciam e determinam as auto-
representações dos usuários. Na reflexão do autor, para se tornar um usuário de
maconha é necessário fazer parte da cultura da droga, assim adquirindo a prática dos
procedimentos adequados de uso: identificando dentre seus efeitos aqueles que são
esperados, bem como aprender a percebê-los como prazerosos. Dessa forma torna-se

19
- e esse é um dos motivos pelo qual eu não chamo meus interlocutores de desviantes.

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viável reconstruir os próprios valores sobre a “substância psicoativa”, distanciando-se


daqueles valores reproduzidos no senso comum, que tendem a categorizar a cultura da
droga como indistintamente negativa. Becker projeta a mesma percepção reflexiva em
relação ao consumo de outras drogas.
Nesse sentido, o consumo de drogas, além de ser regulado pela repressão policial e
pela violência do tráfico, é fundamentalmente regulado pelos controles informais
possibilitados pelas informações trocadas pelos usuários. Tal aprendizado depende não
só das informações sobre a droga, depende dos procedimentos práticos que protejam a
privacidade do usuário – daí a importância da relação dos usuários com os não usuários,
com outras culturas com as quais mantêm relação direta e mesmo indireta, mas ainda
assim interpenetrada. Interfaceando Norbert Elias a Becker, é possível cogitar que as
informações interpenetradas que circulam entre os usuários seriam os habitus sociais, a
partir dos quais as “configurações de carreiristas” são processadas.
Este último item é de capital importância, pois, as interpenetrações de objetivos nas
configurações cotidianas dispõem usuário e não usuário, indivíduo e sociedade20 como
sujeitos que mesmo podendo soar antagônicos em interesses, são faces da mesma
moeda. Não considerar as interpenetrações pode levar a uma redução processual – por
exemplo, localizando “o problema” na droga ou no usuário sem levar em conta as
configurações sociais. Dessa forma, o usuário estaria sempre reduzido à condição
incontornável de usuário – dito assim, na primeira pessoa do singular - que só se
reconhece nesses termos. Numa reflexão contrária a esta redução processual, os habitus
sociais não diretamente relacionados ao uso – ou seja, os habitus comuns aos não
usuários - também fazem parte do repertório dos usuários, pois no processo
configuracional, um usuário inevitavelmente tem outras relações e papéis além dos que
mantém com usuários.
Nesse ponto, usando a categoria configuração como âncora, já é possível fazer uma
aproximação com o que médico e pesquisador do uso de drogas, Norman Zinberg,
chama setting. No livro Drug, set, setting (1984) Zinberg sustenta que no setting de
consumo de drogas – na configuração do espaço físico e social onde são vividos os
habitus de consumo - o usuário encontra um cenário para que sua estrutura de
personalidade dê vazão às emoções até então controladas. Às motivações psicológicas e
expectativas que o usuário põe em curso neste setting, Zinberg chama de set. A

20
- afinal vivemos numa “sociedade de indivíduos”, como indica o título da obra derradeira de Elias
(1994). No caso, não se configura uma contradição e sim uma aporia.

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articulação realizada pelo usuário entre seu settting e seu set é tão constitutiva do modo
de consumo que se faz das drogas, quanto as próprias propriedades farmacológicas
destas. Inclusive, Zinberg reconhece, assim como Becker, a importância do saber do
usuário, o que na visão deste último, é a base para a construção da sua carreira de
usuário. Além disso, o que na sua formulação teórica estrutural Zinberg chama de
setting, é muito próximo do que Becker chama de cenário21. A partir desse ponto de
confluência com a visão de Becker, Zinberg segue acrescentando que a carreira dos que
ele chama de “usuários controlados”, não se sustentaria sem que se estabeleça como
hábitos, específicos controles sociais, controles que por sua vez, são operacionalizáveis
através de sanções e rituais específicos.
Os rituais sociais são esculpidos como padrões de comportamento particularizados
para o uso de drogas específicas, que devem ser operados junto aos procedimentos de
aquisição e administração, tanto quanto à seleção do espaço físico e social. Em última
instância, também são contextualizadas neste recorte as atividades que possam ser
desejáveis após o uso, como também os mecanismos de defesa para manter afastados os
efeitos indesejáveis. De acordo com o raciocínio de Zinberg sanções sociais são as
normatizações que estipulam se, e como, determinada droga deve ser consumida de
modo a não causar conflitos. O usuário mesmo que discorde deve levá-las em
consideração para que não ameace a segurança da sua própria comunidade, pois os
valores e regras comportamentais dos usuários devem ser construídos levando em conta
as leis e as políticas externas ao grupo, que limitam e regulam o uso. Cabe aos usuários
respeitar as sanções que favorecem a segurança da comunidade. Pensando Zinberg
através dá ótica de Elias, os controles sociais, tanto para drogas lícitas22 quanto para as
ilícitas, teriam como setting distintas configurações, o que se aplica a grupos
estabelecidos tanto quanto a grupos outsiders, sendo que os sets dos usuários estão de
acordo com os habitus sociais do Nós grupal em questão.
O que os estudos de Zinberg sobre consumo de drogas ilícitas - opiáceos,
alucinógenos e maconha - em fins dos anos 1970 revelam, é que, principalmente os
grupos de usuários de maconha, já não precisam se formar apenas para uso, como
faziam, por exemplo, quando o estigma contra o usuário era maior, à época do estudo
pioneiro de Becker nos anos 50, ou aqui no Brasil, no auge do regime militar. Isto pode

21
- e as representações não param de ganhar sentido por aí. Na perspectiva de Goffman (2003) os sujeitos
são atores que atuam no palco da vida cotidiana.
22
- por exemplo, não beber quando se dirige ou não fumar em recintos fechados.

29
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ser constatado inclusive pela diminuição da inclinação para a configuração de rodas de


fumo como padrão característico de ritual de consumo (MacRae &Simões:2000), que de
forma geral marcou o começo das carreiras de muitos usuários com mais de 40 anos, e
que hoje já não é um habitus social tão característico entre os usuários. O que Zinberg
constata é que o vínculo comunitário dos usuários de maconha quando se estrutura em
rodas de fumo, é feito muito mais pela sociabilidade da qual a droga é um dos
ingredientes do setting, do que por questões de segurança propriamente, podendo nesta
condição favorecer a caracterização de comunidades diferentes das comunidades de
usuários mais antigas. MacRae (2006) interpreta esta reflexão de Zinberg da seguinte
forma:

“Tal flexibilidade do ritual seria parcialmente explicada pela leveza e


transitoriedade dos efeitos e pela maneira mais tranqüila de amplos setores
sociais conceberem o seu uso. Este, embora ainda ilícito, era visto como
envolvendo uma “droga leve” de amplo uso na população. Havendo perdido
muito de sua aura “desviante”, o uso de Cannabis agora prescindiria dos
antigos rituais determinados principalmente pela necessidade do
ocultamento dessa prática. Ao mesmo tempo ‘sanções sociais’ para o uso
controlado haviam se consolidado e eram encontradas entre a maior parte
das subculturas usuárias” (MACRAE: 2006,7).

Da maconha a outras drogas ilícitas, este raciocínio é pertinente23, e nesse sentido, o


que está sendo investigado é: que carreiras - segundo Becker - que ambientes e
motivações - segundo Zinberg - configuram o cenário/setting dos presentes
interlocutores.
Se Zinberg enquanto médico atualizou o trabalho do sociólogo Becker, Grund
enquanto psicólogo atualizou o trabalho de Zinberg. Pesquisando usuários de cocaína e
heroína na Holanda, Grund ampliou o modelo proposto por Zinberg. O psicólogo
considerou o modelo do médico significativo, porém estático, um modelo submetido à
redução processual por não configurar especificamente como os integrantes dos
distintos grupos de usuários moldavam os controles sociais às suas demandas variadas.
Desta forma, sendo o setting um campo muito vasto, Grund buscou explicitar quais
eram efetivamente as interfaces sociais cruciais para tais usuários. O modelo de
Zinberg, segundo Grund, também não coloca em evidência um aspecto fundamental
quanto aos controles: a mercadificação das drogas, na medida em que o tráfico

23
- guardando as devidas proporções, pois, por exemplo, não se deve considerar cocaína e crack drogas
leves.

30
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potencializa imensamente todos os riscos que os usuários podem ter em relação a


segurança. A disponibilidade de aquisição é outro item capital, já que a violência e a
marginalidade que circundam o tráfico além de riscos físicos, possibilitam perigosas
estigmatizações que muito preocupam os usuários. As sanções e os rituais dificilmente
poderão ser bem ajustados, se não for levado em conta que a dificuldade de aquisição
pode tornar o processo um ponto tensamente centralizado para o usuário, pondo-o em
conflito com uma estrutura de vida que possa ser considerada segura. Assim, Grund
acrescenta ao modelo de Zinberg outro item que o atualiza: a estrutura de vida.
A estrutura de vida possibilita uma leitura dinâmica do setting, onde o usuário é
percebido num recorte muito mais atuante que no modelo de Zinberg, atuante no
sentido reflexivo, pois são então consideradas as atividades que extrapolam a relação
direta com as drogas – os outros Nós-Eu, de que fala Elias – nos vários níveis de
interações sociais. Grund encerra sua atualização do modelo de Zinberg constatando que
a disponibilidade das drogas – e no caso de seu estudo, drogas consideradas pesadas
pelo discurso médico – mesmo quando regular, não é necessariamente sinônimo de uso
descontrolado, pois este uso está sempre sujeito às tendências culturais e movimentos
mercadológicos, ou seja, sujeito a padrões sociais que efetuam seus controles.
A partir destes referenciais teóricos que estabelecem uma ponte dialógica entre a
sociologia (Elias, Becker, Goffman) medicina (Zinberg) e a psicologia (Grund) é
possível operar uma reflexão configuracional sobre a cultura universitária e o consumo
de drogas.

31
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1.7 - Sobre a estigmatização das drogas

Antes de entrar em considerações diretas sobre universitários e o consumo de


drogas, é pertinente focar atenção nos significados que este consumo adquiriu ao longo
do tempo, principalmente dos últimos cento e cinquenta anos de processo civilizador.
Se para boa parte da sociedade hoje o conceito de maconha medicinal cada vez mais
presente nos noticiários internacionais soa contraditório – afinal a representação
dominante indaga: como uma droga ilícita pode ser medicinal? -, uma referência
concreta é que essa modalidade de consumo não é nada nova, tanto que pode ser
encontrada na farmacopéia norte-americana (Escohotado: 2008) e brasileira (Adiala:
1986) que vigorou entre o século XIX e meados do século XX. Estranho? Não naquela
época em que a Cannabis era uma planta importante na cultura popular do Nordeste do
Brasil (Dória: 1986) e nos agronegócios estadunidenses - os presidentes Franklin e
Jefferson foram dois de seus maiores plantadores. Por exemplo, na ausência das
plantações de cânhamo24 não haveria iluminação pública em muitas cidades de grande
porte dos EUA onde até o invento da luz elétrica, foi utilizado o óleo de cânhamo como
matéria prima para “se fazer a luz”. Se estes dados parecem ter sido apagados da
memória pública, isso se deve ao estabelecimento de determinados estigmas como
ferramentas de controle social. Mas como isso aconteceu?
Na Europa da segunda metade do século XIX quando Nietzsche professou a morte
de Deus (2004) e o Homem Moderno começou a se libertar da culpa judaico-cristã que
aprisionava suas emoções individuais às necessidades de segurança do “rebanho”25, os
“milagres farmacológicos” estavam sendo sintetizados e tornados estabelecidos pelas
mãos da ciência, ciência que longe dos olhos de Deus em certa medida se configurava
como seu substituto, como uma religião secularizada. Os opiáceos e a cocaína foram
eleitos como substâncias essenciais pela ciência médica que vigorou na Europa e na
América do Norte durante boa parte daquele século. O láudano – um composto de ópio

24
- o cânhamo é uma variedade do gênero Cannabis mas sem o potencial psicoativo da Cannabis sativa
– que é conhecida popularmente como maconha.
25
- Nietzsche não se posicionava como um filósofo, mas como um “psicólogo da cultura”, e por este
ponto de vista sua afirmação sobre a morte de Deus soa como um diagnóstico do zeitgeist (o espírito da
época) no qual as buscas de sentido social pelas vias transcendentais sustentadas pelas sociedades
tradicionais e pré-modernas estavam caindo em descrédito em função da crescente influência das
ciências. Os homens estavam sendo chamados a assumir a responsabilidade de serem eles mesmos
deuses de suas vidas. Importante ressaltar que este diagnóstico cultural do autor foi referência silenciosa
para as teorizações de Weber sobre desencantamento e racionalidades (Cohn:2005) e de Freud (1976 B)
sobre o inconsciente e o sentimento de culpa.

32
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e álcool originário do século XVI – e a morfina sintetizada em 1804 foram prescritos


para uma infinidade de males; enquanto nos EUA, principalmente em função da guerra
civil (1861/6), essas substâncias foram usadas como potentes anestésicos para reduzir as
dores dos feridos, na Europa além de utilizadas nas guerras austroprussiana (1866) e
francoprussiana (1870/71) eram muito utilizadas para diminuir as dores das almas dos
cidadãos mais abastados, que não frequentavam campos de batalha.
Todavia, o uso dessas substâncias não estava isento de riscos e não foi preciso muito
tempo para que se percebesse que essa panacéia poderia levar a quadros de dependência
até então desconhecidos, o que fez com que tais medicamentos começassem a ser
prescritos como mais cuidados. A heroína sintetizada em 1874 passou a ser indicada
como droga substituta do ópio e da morfina – na verdade sendo um subproduto mais
refinado da morfina que por sua vez é um refinamento do ópio - mas em pouco tempo
seu uso se mostrou tão ou mais arriscado que os anteriores, pois a dependência se
concretizava num espaço de tempo muito menor. Merece destaque que a cocaína que
havia sido sintetizada em 1860 em alguns anos passou a ser considerada por muitos
médicos como um substituto que causava menos dependência do que a heroína, que por
sua vez parecia ser mais eficiente no organismo do que a morfina, que pareceu ser
menos danosa do que o ópio usado em estado bruto. A cocaína até a virada do século foi
bem aceita no circuito médico sendo prescrita como anestésico, como antídoto para
prostração nervosa, para neurastenia e debilidade geral. Nesse quadro de uso
generalizado os efeitos negativos começaram a se repetir em escala maior – Freud por
exemplo, ele próprio até então um neurologista usuário e entusiasta da substância teve
problemas quando um paciente faleceu em função de overdose prescrita por ele. Em
1891 cerca de 200 relatórios sobre intoxicação sistêmica por cocaína foram divulgados,
e entre estes treze óbitos foram registrados, (Chasin & Lima:2008).
Nesse momento histórico em que tais drogas passaram a ser observadas com outros
olhos pelo setor médico26, algumas representações contrárias ao seus usos começam a
ganhar consistência. Na América do Norte, a cruzada puritana impetrada pelos órfãos do
Deus de que fala Nietzsche, estabelece a representação do uso de drogas como o sinal
da falta de temperança27, da falta de firmeza moral que a ausência desse Deus

26
- isso indica que como o phármakon dos antigos gregos, tais drogas podiam ser substâncias usadas
para curar ou para envenenar, à depender dos controles configurados em torno dos seus usos.
27
- temperança num sentido contrário ao imputado pelos gregos que era o sentido encontrado no
equilíbrio entre os excessos e a abstinência, enquanto aqui, a imputação dada é de abstinência pura e
total. As referências aos gregos nessas duas últimas notas serão destrinchadas na parte final do texto.

33
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anunciava. A profecia anunciada por estes puritanos – a quem Becker posteriormente


poderia chamar de “empresários morais” - é de que, se a ausência de Deus abre uma
fenda na moral humana, as drogas, ao invés de preenchê-la, apenas indicam essa
impossibilidade, levando ao caminho do “Mal” sem possibilidade de retorno...
Por parte dos trabalhadores braçais, as drogas foram absorvidas como um habitus
social adequado as suas necessidades de mitigar o cansaço e a dor física, então mais
implacáveis sem a incondicionalidade de um Deus para consolá-los. Estes trabalhadores
enfrentavam longas jornadas de trabalho que não raro ultrapassavam 70 horas de
atividade. Não foi por acaso que entre 1890 e 1900 a produção de cocaína quintuplicou,
pois o potencial de consumo dessa droga deixou de ser limitado às elites e passou a ser
voltado para o indivíduo comum imerso na cultura de produção. Lembrando do que já
disse Grund (1993), a disponibilidade de aquisição é fundamental para o
estabelecimento de alguma regularidade no consumo. Independentemente da
regularidade de consumo, estes trabalhadores, de modo diferente do que aconteceu com
a nobreza decadente e a burguesia ascendente da Europa, não foram chamados de
habituados, mas de dope fiends - drogados.
Nesse setting, de olho nas demandas das populações urbanas cada vez mais
numerosas e suscetíveis aos “novos bens de consumo” da vida moderna, as drogas se
tornaram cada vez mais bem vistas tanto pela indústria mercantil - no primeiro caso, a
referência emblemática foram as Guerras do ópio deflagradas pelo governo e por
empresários ingleses contra os chineses com o intuito de lucrar com a venda do ópio
produzido na Índia -, quanto pela a indústria farmacêutica – nesse segundo caso, na
Alemanha, opiáceos e cocaína foram fabricados em larga escala pela Merck e pela
Bayer e foram a grande aposta do segmento industrial do período. O argumento desses
sujeitos com visão de mercado é de que as substâncias sintetizadas poderiam ajudar o
desenvolvimento da produção laboral do homem moderno e civilizado. No lugar dos
preceitos de um Deus como ferramentas de motivação para a vida cotidiana, o homem
passou a utilizar algumas substâncias, produtos feitos pela ciência, produtos que
aplacavam a dor da existência física e espiritual e ofereciam novas portas de acesso a
felicidade.

34
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Tendo em vista esta perspectiva, é necessário registrar que os primeiros abusos de


consumo de drogas28 não devem ser analisados sem serem relacionados à panacéia
farmacológica que a ciência médica colocou a disposição dos homens sem a
contrapartida do esclarecimento das consequências do uso mal controlado. Quando este
modelo médico de controle pouco rigoroso começou a apresentar desgaste a
representação das drogas como “o milagre farmacológico da ciência” continuou sendo
sustentada por intermédio de outros sujeitos com interesses interpenetrados aos
interesses dos médicos; os empresários da indústria farmacêutica. Em menos de meio
século os interesses dessas duas configurações de sujeitos ajudaram a desenvolver um
público consumidor regular. Nesse setting a aquisição desses produtos em farmácias e
boticários era facilitada, mas o público consumidor continuou sem saber como reduzir
os possíveis riscos de seu uso, principalmente por ignorarem-nos. Diante desse quadro é
válido estender mais longamente a reflexão sobre a configuração sociocultural norte-
americana, já que é nesse território que a cultura proibicionista se estabelece com
legitimidade.
No final daquele século quando alguns controles sociais começaram a ser
configurados para conter os abusos, o consumo já havia se tornado um habitus social
arraigado que frequentemente colocava à prova a eficácia desses controles. Em Nova
Orleans, após passarem boa parte dos anos 1880/1890 tendo por hábito consumir
cocaína regularmente29, muitos trabalhadores braçais negros30 se queixaram que sua
retirada de circulação os deixaria sem combustível para realizar o trabalho pesado. No
Texas, muitas prostitutas alegaram que só resistiam a dura e longa jornada de trabalho
com o aditivo da cocaína. De modo geral já não eram mais os ricos clientes de médicos
que consumiam cocaína e heroína31, eram algumas comunidades de negros e chineses
que trabalhavam respectivamente como mão-de-obra nas plantações de algodão do sul
dos EUA e na construção das ferrovias que possibilitaram a conquista do Oeste. Em

28
- drogas são consumidas desde tempos remotos e nem mesmo entre os romanos cujos controles quanto
aos excessos eram muito flexíveis, o abuso foi uma problemática maior. O abuso de drogas passa a ser
configurado como descontrole social apenas nas culturas Modernas (ESCOHOTADO, 2008).
29
– nesse período passou a ser hábito consumir como estimulante, uma bebida feita com grãos de kola
(que contem cafeína) e folhas de coca (sendo que de 1884 a 1886 essa bebida, French Wine Cola,
também tinha o vinho como um de seus ingredientes). Hoje, já sem as folhas de coca e com o nome de
Coca-Cola este estimulante é o produto mais vendido no mundo.
30
- e isso não quer dizer pouca gente, pois naquela época Nova Orleans era uma das cidades norte-
americanas com maior contingente de negros.
31
- nessa época, ambas as substâncias eram vendidas por valores acessíveis aos trabalhadores. O que fez
seus preços inflarem até o patamar atual – no qual um trabalhador braçal geralmente só tem acesso a
cocaína na forma de crack – foi justamente a proibição que se seguiu.

35
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função desse consumo as comunidades étnicas referidas foram estigmatizadas como


pouco civilizadas.
Com um maior controle sobre as prescrições médicas, do final do século XIX até o
fim da lei-seca em 1931, as autoprescrições dos novos usuários aumentaram e nesse
recorte a representação do antigo habituado cedeu lugar a representação do adicto.
Nessa mudança de representação passa-se da pessoa que convive com o hábito para a
pessoa que não pode viver sem o hábito, e este modo de estigmatização do usuário
como mecanismo de controle social direcionado contra grupos que poderiam ser
identificadas etnicamente, desde então voltou a ser norma corrente. Digo voltou, pois
de acordo com Escohotado (2008), esse mecanismo reedita os processos de perseguição
política que caracterizaram a Inquisição como forma de eliminar as resistências aos
valores dominantes. Nessa política disciplinar, estabelecer a representação da
temperança como hábito civilizado padrão já exclui, a priori, tais comunidades étnicas
do padrão esperado, pois estas comunidades têm por características culturais consagrar
alguns momentos ritualísticos aos excessos, aos descontroles controlados.
Se os puritanos, que antes poderiam até aceitar o uso de drogas por parte da elite como
terapêutico, agora observavam esse consumo por parte dos pobres como
degenerescência, como algo imoral, a imprensa logo encontrou uma nova fonte de
manchetes onde drogas, sexo e racismo passaram a ser os ingredientes centrais: Não
apenas os negros usuários de cocaína, mas também os chineses usuários de ópio,
irlandeses usuários de álcool e mexicanos usuários de maconha foram estigmatizados
como adictos problemáticos que promoviam o descontrole da ordem pública,
geralmente induzindo ao consumo e seduzindo, quando não estuprando, as mulheres
brancas. O consumo de drogas passou a ser associado a desordens sociais e baixa
produtividade, numa representação que ameaçava enormemente os controles centrais de
uma cultura de produção. Em pouco tempo as drogas não eram mal vistas apenas entre
os puritanos como também pelo cidadão médio que passava a perspectivá-las como
anticivilizatórias. A própria indústria farmacêutica, depois de uma virada de século de
grandes lucros, teve que retrair-se, pelo menos momentaneamente. Um dos problemas
centrais gerados nessa configuração foi que os usuários passaram a representar uma
nova categoria social; os desviantes por adicção.
Os controles sociais continuaram se fortalecendo e o congresso norte-americano
aprovou o Harrison Act, (1914) estabelecendo regras para produzir, distribuir e
prescrever opiáceos e cocaína, mas que na prática foi uma medida que inicialmente

36
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propiciou uma maior concentração de poderes nas mãos dos médicos e da indústria
farmacêutica para administrar substâncias “adictivantes”32. Como reação a esta
concentração de poderes, a pressão dos empresários morais se fez forte e cinco anos
depois a suprema corte reviu a questão. Os médicos que ainda tentaram prescrever em
grande escala passaram a correr o risco de serem processados, sendo levados a abraçar o
discurso dos puritanos sob risco de não poder exercer a profissão. Acima de tudo,
traçava-se um perfil da relação “ética” entre medico e paciente para analisar o
enquadramento a ser operado:

“Si el sujeto había obtenido la droga tras una consulta rápida y barata, con
un médico de clientela pobre, la posesión complacía impulsos inconfesables
de dope fiends. Si el medico dispensaba a pocos adictos una pequeña
cantidad cada vez, con una minuta adecuada a clientelas distinguidas, su
conducta podía aceptarse como “tratamiento”. (ESCOHOTADO:2008,641)

Até a chegada dos anos 1940, o comprometimento da classe médica com a indústria
farmacêutica foi passando por ressignificações e assim, cada vez menos houve opiáceos
e cocaína à disposição, enquanto cada vez mais barbitúricos e anfetaminas foram
disponibilizadas de forma lícita e regular. O antigo habituado que tinha dinheiro no
bolso não abandonou sua relação com o sistema especialista médico, ele migrou para os
novos fármacos que possibilitavam efeitos similares aos das substâncias ilícitas e se
tornavam cada vez mais populares sem acarretar o risco da estigmatização.
A lei-seca – em inglês o vocábulo prohibition parece oferecer uma medida mais exata
da perspectiva de controle do que a tradução brasileira – deixou como herança duas
consequências: 1° - serviu para camuflar que a grande quantidade de “desviantes”
surgidos na época33 eram frutos da crise financeira, quando a representação que se
estabeleceu historicamente foi a de que estes foram vítimas do abuso no consumo de
álcool34. 2° - se configurou pela primeira vez a interdependência e a interpenetração de
objetivos de várias comunidades criminosas mafiosas que passaram a controlar a
produção e o contrabando etílico. Esse mercado alternativo se tornou tão explícito que o
Estado acabou percebendo que o dinheiro que as destilarias clandestinas faturavam

32
- como consequência, essa concentração de poderes contribui na configuração de um mercado negro,
pois os antigos e novos comerciantes excluídos da competição legal começaram a distribuir drogas
clandestinamente. E não apenas facilitaram a disponibilidade, mas para incrementar os lucros passaram a
adulterar tais drogas, o que vem acontecendo até hoje.
33
- e nesse contexto começa a se cristalizar uma mudança no perfil, pois surgem os consumidores jovens.
34
- se 25% de desemprego e contração da economia em torno de 40% podem ser explicados em termos
do consumo de álcool, então esses consumo talvez tenha ocorrido entre políticos e economistas...

37
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poderia entrar no seu bolso sob a forma de impostos que ajudariam na recuperação da
economia americana, e com esta perspectiva a lei foi revogada.
Como saldo sociológico, esse período favoreceu a banalização de desvios e rótulos
sociais, boa parte ligados a álcool e outras drogas. Como saldo mercadológico os
medicamentos prescritos cada vez mais passaram a ser vendidos e usados para estimular
e relaxar os usuários – principalmente os trabalhadores – com efeitos potenciais
próximos aos das drogas ilícitas com uma diferença; enquanto as drogas são
estigmatizadas como mecanismos desviantes os medicamentos possuem status de
favorecer a civilidade:

“De 1940 a 1948, o consumo de analgésicos dobrou nos Estados Unidos, na


Austrália e na Dinamarca. Na Suíça, por volta de 1950, os analgésicos eram
tão populares quanto o cigarro é hoje. Havia embalagens para presente e as
pessoas tomavam comprimido nas festas. Em algumas cidades onde esse
hábito foi mais difundido, as mortes devido a insuficiência renal eram três
vezes maiores que na vizinhança”. (Vergara, 2003, 52)

O abuso de substâncias farmacêuticas prescritas dessa vez não foi tornado motivo de
manchetes de jornais, pois a partir da descriminalização do álcool as atenções midiáticas
estavam voltadas para os abusos no consumo das drogas proibidas e particularmente,
uma droga que ganhou centralidade foi a maconha. Aproveitando do setting moral já
estabelecido pelos puritanos, a indústria têxtil e a indústria automobilística que tinham a
planta canábica como potencial matéria-prima concorrente que ameaçava sua
hegemonia no mercado deram curso a alguns controles sociais com o objetivo de tirá-la
da concorrência direta.
Como nas articulações de política econômica interesses particulares podem andar
juntos com interesses coletivos, é válido ressaltar que o diretor da Agência Federal de
Narcóticos norte-americana (FBN) era parente de um dos principais investidores da
petrolífera Du Pont, petrolífera que arquitetava uma série de produtos no mercado que
abrangia do nylon ao combustível para automóveis. Os produtos da Du Pont
encontraram uma séria concorrência nas fibras e no óleo de cânhamo. Além disso, o
FBN interpenetrou objetivos com um poderoso aliado que tinha interesses particulares
em relação à cultura da cannabis: o magnata Randolph Hearst, líder de uma poderosa
rede de jornais, percebeu que a hegemonia de suas plantações de eucalipto, com fins a
produção de papel, estava sendo ameaçada pelas plantações de cânhamo, um

38
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concorrente que demonstrava maior durabilidade35 e rentabilidade. Como Hearst já


havia tido problemas com revolucionários mexicanos, que no começo do século
invadiram algumas propriedades suas e que de modo geral fumavam maconha, ele
utilizou seus jornais para estabelecer uma campanha na qual mexicanos e uso de
cannabis estavam ligados a settings de violência, estupros e promiscuidade, campanha
que visava a erradicação da planta e a marginalização dos mexicanos. Neste contexto,
em 1937, os EUA através de articulações de uma política econômica então em
progresso convenceram outros países a incluir a maconha na lista das substâncias
proibidas ao lado dos opiáceos e da cocaína, lista que obteve alcance mundial.
Essa articulação entre política econômica e interesses mercadológicos utilizou do
suporte midiático dos jornais de Hearst para fazer com que os controles em torno dos
usuários de drogas ganhassem uma dimensão até então inovadora para a Modernidade;
as campanhas publicitárias através de filmes de curta-metragem – algumas mostradas no
documentário Grass/Maconha – e de filmes de longa-metragem nos quais a maconha é
representada como uma força demoníaca capaz de levar seus usuários à assassinatos,
loucura, orgias e até ao comunismo. Esses filmes foram exibidos nos cinemas até os
anos 1950, atingindo grandes platéias até então muito pouco informadas ou quase que
totalmente desinformadas sobre uso de drogas e seus efeitos. Para estas audiências, as
representações cinematográficas que ligavam uso de drogas ao Mal – ao imoral - e ao
crime - ao ilegal - em boa medida funcionaram como ferramenta não de controle de
saúde, mas de controle de comportamento.
No meio da década de 1950, essa busca por controle comportamental através da
restrição ao consumo de drogas encontrou focos de resistência com o surgimento do
que se convencionou chamar de Beat generation, jovens insatisfeitos com o estilo de
vida estabelecido no qual os jovens eram apenas projetos de adultos. Os sujeitos da Beat
generation - principalmente seus expoentes centrais; Kerouac, Ginsberg e Burroughs -
forjaram seu próprio caminho para a felicidade. Não encontrando identificação no
modelo comportamental da cultura de produção, eles rejeitaram a carreira universitária
– Ginsberg chegou a ser ‘convidado a se retirar” de uma faculdade -, questionaram a
limitação de objetivos de vida a um emprego regular e, em alta velocidade, viajaram
física e psicologicamente através de carros, trens, jazz, sexo, anfetaminas, barbitúricos,
álcool, tabaco, maconha, morfina, heroína e o que mais estivesse à disposição. Esses

35
- – não esquecendo que a primeira Bíblia impressa por Gutenberg foi impressa em folhas de cânhamo.

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jovens relataram suas experiências em livros que se tornaram antimodelos


comportamentais para a juventude36 diante dos controles sugeridos pelos empresários
morais, e não apenas nos EUA. A partir de então o perfil do usuário que já estava sendo
flexibilizado desde a Lei seca acelerou o processo de mudança; já não sendo mais
necessariamente o perfil do homem branco de 40 anos, nem de classe média.
No Brasil o proibicionismo também veio se cristalizando desde o século XIX quando
as peculiaridades da cultura seguiram configurações nas quais estabelecidos e outsiders
pareciam manter alguma trégua exatamente em função do uso de substâncias
psicoativas. Freyre relatou a tensão em torno desse uso nos engenhos de açúcar, e a
consequente adesão da fumaça da maconha à pele negra, tendo a ver com a formação do
povo brasileiro:

“a monocultura, em parte nenhuma da América, facilitou pequenas culturas


úteis, pequenas culturas e indústrias ancilares ao lado da imperial, de cana-
de-açúcar. Só as que se podem chamar de entorpecentes, de gozo, quase de
evasão, favoráveis àquela volutuosidade: o tabaco para os senhores; a
maconha – plantada nem sempre clandestinamente perto dos canaviais –
para os trabalhadores, para os negros, a gente de cor; a cachaça, a
aguardente, a branquinha. [...] Não parece simples coincidência que se
surpreendam tantas manchas escuras de tabaco ou maconha entre o verde-
claro dos canaviais. Houve evidente tolerância – para a cultura dessas
plantas volutuosas, tão próprias para encher de langor os meses de ócio
deixados ao homem pela monocultura da cana. Largos meses que sem um
bom derivativo podiam resultar perigosos para a estabilidade dos grandes
senhores de terra de açúcar. Estes por sua vez tornaram-se maiores
fumadores de charutos finos (FREYRE: 2004, 40/41).
“Muitos dos barcaceiros, como os jangadeiros, acreditavam em Iemanjá,
guiam-se pelas estrelas conhecem os ventos de longe, fumam maconha para
sonhar com mulher nua ou moça bonita” (FREYRE: 2004, 68).

Tabaco para uns, maconha para outros.... assim se configuraram estabelecidos e


outsiders, casas-grandes e senzalas. Porém, independentemente da estabilidade dessa
configuração social rural, com a chegada da Modernidade ao Brasil a estigmatização
das drogas e particularmente da maconha acabaram seguindo o modelo racializado
empregado nos Estados Unidos durante o século XIX. Em 1830 a primeira lei que
estabeleceu restrições a venda e ao uso de maconha foi decretada no Rio de Janeiro
trazendo embutida o viés racial. Num decreto de Saúde Pública foi estabelecido que:

É proibida a venda e o uso do “pito do pango”, bem como a conservação


dele em casas públicas; os contraventores serão multados em 20$000 e os

36
- alguns deles como Allen Ginsberg e Gregory Corso foram internados em instituições psiquiátricas por
comportamento delinquente.

40
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escravos e as pessoas que dele usarem, em 3 dias de cadeia. (HENMAN &


PESSOA:1986,131).

Nesse texto que à época não proporcionou maiores impactos, os escravos – que eram
negros – são posicionados como os usuários, de modo até inverso ao que se constata
hoje em dia quando um grande número de descendentes de escravos e/ou excluídos da
rede de educação e consumo como foram os escravos, são posicionados como os
traficantes. O que não se inverte desde que esse texto foi escrito é que se esses escravos
não eram os traficantes ainda assim eram eles que recebiam a pena disciplinar mais
rígida e exemplar: 3 dias de cadeia contra 20000 réis de pena imposta ao vendedor. O
dilema moral representado nesse raciocínio é que não seria correto que os vendedores –
e se os vendedores no texto chamados de “contraventores” não eram escravos, o que
seriam eles? - continuassem a por em tentação seres moralmente fracos como os negros.
Assim, os três dias de cadeia serviam como “quarentena” contra o Mal que os rondava.
A maconha foi tão estigmatizada que não era de bom tom falar sobre seu uso, tanto
que só em 1933 houve registros policiais de prisões relacionadas com o seu comercio –
apesar desse comercio nunca ter cessado. O auge dessa representação se dá no texto de
Bizarria Mamede maconha: ópio do pobre de 1945, onde o autor afirma
categoricamente que todos os esforços saneadores devem ser voltados ao combate da
maconha e não das outras drogas que já estão sendo eficientemente fiscalizadas. Se essa
representação da maconha como droga favorecedora da “sociose deselegante” dos
excluídos foi se solidificando no país ao longo do século XIX, no século XX, o uso de
outras drogas por grupos incluídos em setores da sociedade economicamente mais
estabelecidos, recebeu representações mais elegantes por parte dos agentes de controle.
Os chamados vícios elegantes perpetrados pelos jovens das camadas mais elevadas
eram tão discretamente observados pelos agentes de fiscalização que a partir da década
de 1940 a representação pública dos hábitos desse segmento quase inexiste.
Esses vícios elegantes diziam respeito ao consumo de opiáceos, cocaína e éter que de
modo geral os jovens que iam estudar em Paris traziam de volta na bagagem como
sinônimo de distinção, de civilidade moderna. De modo civilizado, para aqueles
usuários que perdiam o controle sobre seus usos, em 1924 na cidade do Rio de Janeiro,
o Sanatório de Botafogo já oferecia caríssimas vagas para terapia. Contudo, não eram
apenas os filhos da elite que utilizavam tais substâncias. O escritor Benjamim Costallat
no seu texto No bairro da cocaína (Resende:2006,109) aponta que na boêmica realidade
carioca: “Entre dez meretrizes, nove são cocainômanas”.

41
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Abrindo um rápido parêntese, ao se realizar um paralelo entre o modo como os vícios


elegantes entraram na sociedade brasileira no seu período de adesão ao projeto de
Modernidade e cultura de produção e o modo como o uso das drogas sintéticas entram
na cena contemporânea da cultura de consumo há alguma semelhança na construção da
carreira de usuário – uma viagem à Europa financiada pela família que sonha que o
filho adquira hábitos culturais e status de primeiro mundo foi algumas vezes como o
processo se desencadeou, como um dos interlocutores relatará mais adiante. Em relação
sociose deselegante, também é possível fazer uma comparação entre o usuário de
maconha daquele período e o usuário de crack de hoje, aquele que geralmente só
aparece nas páginas policiais depois de morto. Parêntese fechado.
Numa macroperspectiva configuracional, a polarização Vícios elegantes X Sociose
deselegante representou uma relação social de poder entre estabelecidos e outsiders: os
usuários economicamente incluídos eram representados como elegantes, pois mesmo
quando o seu consumo saia de controle eles tinham recursos para “remediar” o
problema frequentando sanatórios particulares ou simplesmente realizando uma longa
viagem de férias. Por outro lado, os usuários economicamente excluídos não eram
apenas deselegantes. A representação corrente de sua “fraqueza moral” indicava que
sem recursos simbólicos e materiais para remediar sua condição – ou mesmo mantê-la
estabilizada - haveria uma possibilidade do uso de maconha levar ao desvio em direção
ao crime, pois a ação dessa substância inibiria a razão fraca e liberaria as emoções
primitivas. Na lógica da cultura de produção que a Modernidade trouxe ao Brasil o
processo civilizador e seus controles sociais corriam o risco de serem cancelados pelo
uso da maconha, pois esta sustentava potencial para libertar a faceta incivilizada do
homem:

“o homem no seu natural é agressivo. A relativa tolerância do indivíduo


moderno é conseqüência de imposição de penalidades, da polícia; dos
códigos e dos regimentos. A sua tendência é a de viver primitivamente,
depredando, reclamando agredindo, e só não o faz porque a vida em comum
o impede e tem meios para punir. Veja-se o indígena. E a maconha tem a
capacidade de retirar, transitoriamente embora, esta censura das camadas
superiores do cérebro, mostra o homem tal qual é.” (PARREIRAS: 1958,
261)

No contexto histórico dessa reflexão de Parreiras37, quando negros e índios eram


integrantes de etnias representadas majoritariamente como vulneráveis as tentações

37
- médico que foi nomeado Chefe da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes.

42
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anticivilizatórias que embotavam “as camadas superiores do cérebro”, a CNFE


(Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, criada em 1936) funcionou com
o objetivo de estabelecer normas de controle fiscalizador em relação ao cultivo,
extração, produção, posse, oferta, venda, compra e uso ilícito de entorpecentes, normas
que protegessem a sociedade do “homem tal qual é”. A maconha assim foi tornada um
problema de âmbito nacional, sustentado nos argumentos de Rodrigues Dória – que não
apenas foi um político bem articulado como também foi professor de Medicina Pública
da Faculdade de Direito da Bahia e presidente da Sociedade de Medicina Legal.
Na tese de cunho eugênico sustentada por Dória o escravo foi protagonista do plantar
e do cultivar a maconha no Brasil. Dória partiu do ponto de vista de que o uso desta
planta é “muito disseminado entre pessoas de baixa condição, na maioria analfabetos”,
(Adiala:1986,13) sendo que seus “pesares, as dores e a busca de prazeres são
apresentados como motivadores do vício e as taras degenerativas como condição
facilitadora” (Adiala:1986,13). Essa leitura aparentemente classista do quadro social
não encobre que os pobres e analfabetos referidos eram os negros escravos e
descendentes. Dória credita à planta da maconha um status étnico, inferindo suas
qualidades a partir das supostas qualidades da raça negra; se o negro era intemperante o
uso da maconha o levava ao vício, se o negro era agressivo o uso da maconha o levava a
violência, se o negro era ignorante o uso da maconha o levava a degradação. Eis a
“vingança dos vencidos”, a herança maldita que os escravos legaram para o processo
civilizador...
A configuração da balança de poder entre os que se propunham a enfrentar
institucionalmente a questão das drogas ganha contornos mais definidos. Em 1921 o
decreto-lei 4.294 foi promulgado intensificando a repressão ao “comercio ilícito de
entorpecentes, à embriaguez, à cartomancia e ao falso espiritismo”38 (Resende: 2006,
21). Os farmacêuticos e droguistas locais, assim como seus pares estadunidenses,
resistiram ao excesso de controle imposto39 e em 1928 uma comissão elaborou um
documento endereçado ao Departamento Nacional de Saúde Pública no qual defendia
um maior envolvimento do governo no tratamento dos usuários. Estava nacionalmente

38
- a repressão à cartomancia e ao falso espiritismo demonstra que se buscava controlar todas as possíveis
manifestações de irracionalidade contrárias ao que se interpretava como processo civilizador, e não
apenas ao uso de drogas.
39
- a partir da primeira conferência internacional de Genebra em 1925, as drogas que antes eram
consideradas imorais passam ser ilegais, configurando um estatuto que antes moral passava a ser jurídico,
disciplinador e normatizador.

43
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polarizado o setting entre a perspectiva médica e a policial no enfrentamento da questão


das drogas.
A década de 1930 e o processo revolucionário/ditatorial instaurado no período
trouxeram como consequências valores moralizadores que impuseram controles
comportamentais ao estilo de vida boêmio principalmente em cidades como Rio de
Janeiro e São Paulo. Não foi por acaso que os textos reunidos no livro Cocaína
(Resende: 2006) escritos por autores respeitáveis das três primeiras décadas daquele
século e que refletiam o estilo de vida da juventude da elite brasileira do período
sofreram uma censura invisível e silenciosa permanecendo mais de seis décadas longe
dos olhos do grande público. A imagem do jovem brasileiro que se tem registrada como
representativa é a imagem que vigorou a partir nos anos 1960 quando, em meio aos
movimentos estudantis, o uso de drogas foi mais uma vez ressignificado.

44
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1.8 - O homo academicus em algumas configurações contemporâneas

E por falar em movimentos universitários, afinal quem são os estudantes


universitários? No âmbito local se sabe que 79,6% dos jovens baianos não são
universitários (A Tarde: 05/09/08), mas quem são esses outros 20,4%? Para chegar
perto de uma resposta que não seja meramente estatística é preciso deixar
momentaneamente de lado as fronteiras geográficas da Bahia e observar que a categoria
estudante universitário ganhou maior visibilidade no mundo a partir da década de 1960
do século XX. É a partir desse setting específico que são aqui trazidas algumas
perspectivas das ciências sociais que possam ser consideradas significativas para os
propósitos de construir um diálogo com a condição de ser universitário na
contemporaneidade. Assim, num primeiro momento estabelecendo uma ponte dialógica
com os sociólogos Bourdieu & Passeron (o tempo e o espaço no mundo estudantil,
1968) é interessante ressaltar como estes autores interpretaram o campo universitário de
Paris, inicialmente como campo de ruptura com as tradições estabelecidas na
administração do tempo de trabalho e do tempo de lazer:

“A condição de estudante permite quebrar os padrões temporais da vida


social ou mudar-lhe a ordem. Sentir-se estudante é, de início, e talvez antes
de tudo, sentir-se livre para ir ao cinema a qualquer hora e, por
conseqüência, nunca aos domingos como os demais; é empenhar-se em
enfraquecer ou submeter as grandes oposições que estruturam
imperiosamente tanto o lazer como as atividades dos adultos; é fingir
desconhecer a oposição entre os dias feriados e a semana, o dia e a noite, o
tempo consagrado ao trabalho e o tempo livre” (BOURDIEU &
PASSERON:1968, 62).

De acordo com essa leitura, é possível interpretar que o estudante é antes de tudo, um
“fingidor”, no sentido de ser um ator que vem a ter possibilidades de inverter papéis
sociais sem com isso se descaracterizar. Ele é alguém que pode estabelecer como uma de
suas prioridades, buscar a inversão entre feriado e dia de semana, sendo assim, alguém
que possivelmente não necessita viver separadamente um tempo de produção e um
tempo de lazer. E o que o autorizaria a se portar com essa autonomia? A obtenção da
carteira de estudante, um título que mesmo temporário lhe credencia alguma distinção
social. Na perspectiva apontada pelos autores, ser estudante é ser alguém que ao atingir o
status universitário, pode fingir ser adulto até para escolher consumir o tempo de forma
como só um não adulto pode fazê-lo. Sua autoridade para tanto é legitimada na medida

45
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em que aos adultos não universitários, ela não é concedida, não sendo estes autorizados a
usufruí-la. Mas não é apenas isto que está em jogo:

“Mais próximo do agregado sem consistência que do grupo profissional, o


meio estudantil apresentaria todos os sintomas da anomia se os estudantes
não fossem senão estudantes e se não estivessem integrados em outros
grupos, isto é, na maior parte, à sua família ou secundariamente a grupos
eletivos como as associações religiosas ou os partidos [...] os estudantes
mais ligados ao meio familiar ou a associações secundárias estão ao mesmo
tempo na origem da maior parte das tentativas para dar vida ao grupo dos
condiscípulos” (BOURDIEU & PASSERON:1968, 68).

Neste segmento, Bordieu & Passeron fazem uma elaboração em torno de como as
integrações do meio estudantil são dispostas de modo a processar habitus40 não
anômicos41. Se processam integrações como disposições de habitus eletíveis e estes
grupos, por mais heterodoxos que sejam, buscam uma imersão num sentimento fraternal
quase religioso e uma convicção ludicamente política para se estabelecerem enquanto
unidade estudantil. Indo adiante, é possível perceber que a leitura realizada pelos autores
sobre a cultura de Cafés dos anos 60, permite aqui um paralelo interpretativo em relação
a cultura de barzinho dos dias atuais, isto é, trocando o consumo de café dos campi
franceses pelo consumo de cerveja dos barzinhos soteropolitanos, há um cenário em
comum onde se pode perceber como a cultura universitária representa as possibilidades
de configuração comunitária:

“a unidade elementar do cafés estudantis é ainda a mesa, isso se dá porque


inúmeros estudantes vêm consumir, antes de mais nada, as significações
simbólicas de que são investidos o café, e o trabalho solitário no café... faz
parte do espaço mítico em que os estudantes vêm encontrar o estudante
arquetípico, mais do que se reunir uns com os outros. Incluindo o próprio
‘quarto de estudante’, não há espaço imposto por pressões econômicas que
não possa se prestar ao jogo das transfigurações simbólicas” (BOURDIEU &
PASSERON:1968,72).

Levando em conta as “transfigurações simbólicas” possíveis, Bordieu & Passeron


cogitam que o Café como espaço de consumo é onde o estudante poderia fomentar uma
percepção das relações sociais mais pautadas numa lúdica troca fraternal – mais
horizontalizada, de igual para igual – com o outro, do que em trocas que seguissem um
austero modelo paternal – mais verticalizada - e que talvez correspondesse ao modelo

40
- e os habitus para Bourdieu, assim como Elias, são as chaves das dinâmicas relacionais.
41
- principalmente quando a representação então corrente de anomia implicava em disfunção e não em
uma condição funcional específica, como usada originariamente por Durkheim (ELIAS &
SCOTTSON:2000,9).

46
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comunitário de igreja ou de partido que restaria como modelo aos jovens que não
tivessem por objetivo “um encontro” com um estudante arquertípico. Em relação aos
laços dessa fraternidade, e mesmo enquanto esta se configura e se estabelece como
comunidade de estudantes arquetípica, um ou outro professor talvez possa eventualmente
representar uma figura paterna menos ameaçadora aos propósitos desse engajamento: “O
professor pode mesmo aparecer como garantia e fiança de legitimidade dos
engajamentos mais distantes do universo escolar” (Bourdieu & Passeron: 1968,73)42. A
busca por um vínculo fraternal aqui apontado por Bourdieu & Passeron não deve ser
interpretada como um desvio nos enfrentamentos das relações de poder, porém como
uma perspectiva alternativa para realizar tal enfrentamento - nisso mantendo uma
interface com o que foi percebido na presente pesquisa. Por exemplo, a respeito do status
acadêmico é dito que:

“como o acesso a inteligentsia não é um projeto racional e razoável, senão


para uma fração restrita de estudantes, qual pode ser a função dessa
experiência fictícia e lúdica da condição intelectual, tal como é dado a todos
os estudantes realizar durante vários anos, inclusive aqueles que não serão
intelectuais?” [...] O exercício simbólico da profissão intelectual [...] das
tarefas de intelectual acabado são, sob certo ponto de vista e para certas
categorias de estudantes, uma das condições da adesão aos valores que
dominam o mundo intelectual [...] Longe de ser um simples meio, a
aprendizagem é, em si, seu fim” (BOURDIEU & PASSERON:1968,76).

Numa interpretação pragmática, as palavras acima indicam que o status acadêmico


pode ser tão ou mais valorizado que o saber que supostamente lhe é correspondente.
Nesse específico sentido simbólico, a pesquisa sobre os estudantes de Paris pode
estabelecer uma aproximação maior do “estudo” – ou melhor, da carreira de estudante
- com o jogo do que com o trabalho. Os autores apontam que: “Pela natureza da sanção
mais séria que ele encerra, o exame, o sistema universitário está, indubitavelmente,
mais próximo do jogo que do trabalho” (Bourdieu & Passeron:1968,77). O que isso
indica? Muito mais do que apontar que o estudo não é coisa séria, indica que a carreira
de quem estuda se configura num desdobramento simbólico das relações dinâmicas
suscitadas pelas situações de jogo - e o exame mede exatamente a capacidade do
estudante controlar suas emoções em prol de uma meta a ser atingida - onde o campo

42
- inclusive, na pesquisa em curso, alguns interlocutores ativistas antiproibicionistas tipicamente
atuantes, são ex-alunos de um professor com tais características.

47
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universitário pode ser interpretado como um jogo de habitus academicus, jogo que
consagra disposições:

“Se o universo escolar evoca por mais de um traço o universo do jogo,


campo de aplicação de regras, que só valem enquanto se aceita jogar com
elas, espaço e tempo limitados, delimitados, extraídos do mundo real, onde
pesam os determinismos, é que, mais do que todo outro jogo, ele propõe ou
impõe aos que o jogam a tentação de se apegar ao jogo, dando-lhes a crer
que ele tem o próprio ser como perda ou ganho” (BOURDIEU &
PASSERON:1968,77).

Aqui, os autores buscam afastar o viés pelo qual se interpreta o setting universitário
emblematizado nos anos 60 como disfuncional, pois reconhecem que o estudante
enquanto outsider “ao mundo real” não deixou de ser e saber-se estabelecido em relação
a este mundo real, nem deixou de estar sendo muito mais nômico do que anômico no
jogo do referido “campo de aplicação de regras”.

“Como não ver, efetivamente, que a revolta contra o sistema escolar e a


evasão pelos entusiasmos heterodoxos realizem por vias tortas os fins
últimos que a universidade persegue?... As condutas, na aparência mais
boêmicas, não são frequentemente senão a obediência a modelos
tradicionais fora do campo tradicional de aplicação desses modelos e os
franco-atiradores da cultura de bons alunos que fazem gazeta... a revolta
contra a pressão exterior à regra é uma das vias por onde se realiza a
interiorização dos valores impostos pela regra; como no mito freudiano, é
com o assassinato do pai que começa o reino do pai introjetado”
(BOURDIEU & PASSERON:1968,78).

Bourdieu & Passeron aqui estabelecem um curioso diálogo com a perspectiva


sustentada por Freud em Totem e Tabu, (1974c)43 para explicitar que o compromisso
dos estudantes com a liberdade de serem estudantes não os eximia da responsabilidade
em arcar com a segurança que deveriam oferecer à sociedade como futuros
trabalhadores, responsabilidade inclusive em relação aos não universitários. Ao
cortarem o cordão umbilical que os unia “aos modelos tradicionais” os estudantes se
tornaram parte de um novo modelo de tradição. Nesse processo de naturalização de
“entusiasmos heterodoxos” que não se resumem a mesas de bar, os estudantes acabam
sendo:

43
- nesse texto Freud faz uma “viagem” aos tempos das culturas pré-históricas e argumenta sobre as
relações de poder arcaicas nas quais aqueles que se rebelaram contra o pai dominador e lhe tomaram o
poder – assassinando-o – depois, ao perceberam a ausência do líder no grupo, temeram por sua
desagregação e se sentiram culpados por terem deixado suas emoções correrem sem controle. A culpa
aqui sinaliza a introjeção do controle representado na figura paterna.

48
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“levados a confundir as rupturas simbólicas da adolescência com uma


realização intelectual. Assim, inúmeras moças estudantes, das quais tantas
escolhas permanecem regidas pelos mais tradicionais modelos, realizam a
imagem que elas se fazem, da intelectual livre, libertando-se das normas
sexuais [...] E o encanto de certos engajamentos políticos está
frequentemente, de certa forma, em que eles permitem a consumação
simbólica do rompimento com o meio familiar, sob a forma
simultaneamente menos dolorosa e mais escandalosa.44 O jogo tipicamente
intelectual da tomada de distância de todas as limitações, quer se trate de
origem social ou do futuro profissional e dos estudos que o preparam,
chama e suporta o jogo da diferenciação pela diferenciação” (BOURDIEU
& PASSERON:1968,79).

Ao invés de um rompimento com padrões anteriores, as inquietações estudantis


podem estar indicando um compromisso velado com a continuidade45. Eis uma
construção identitária dos jovens universitários, onde a sexualidade e a militância
política, muito mais do que ferramentas de corte e rompimento, funcionaram como
atualizações das disposições comunitárias, nas quais os estudantes estavam inclusos.
Sendo que o compromisso com a continuidade não é necessariamente sinônimo de
acomodação, Bourdieu e Passeron percebem e apontam claramente a obsolescência da
tentativa de operar uma “redução” da cultura universitária às racionalidades de uma
cultura de produção: “as ideologias e as imagens suscitadas pelo relacionamento
tradicional à cultura condenam a prática universitária, professoral ou estudantil, a
apreender o real apenas indireta e simbolicamente, isto é, através do véu da ilusão
retórica” (Bourdieu & Passeron:1968,83). De fato, no momento histórico em que tal
pesquisa foi realizada na França, a retórica universitária insurgente estava sendo usada
para desconstruir a retórica estabelecida.
Segundo esses autores há duas perspectivas – pelo menos! - quando se enfatiza as
bases da condição estudantil, levando em conta que, se a maioria dos universitários
possui aspirações “burguesas” de consumir, nem todos possuem condições econômicas
de levar esse consumo à cabo:

“uma é característica, sobretudo dos estudantes de origem burguesa, que


fazem dos seus estudos uma experiência em que não entram problemas mais
sérios do que eles aí introduzem. O outro exprime a inquietude do futuro,
própria dos estudantes vindos das camadas sociais mais afastadas da cultura
escolar e condenados a vivê-la irrealmente” (BOURDIEU & PASSERON:
1968,86).

44
- reflexão compatível com a relação do interlocutor Rimbaud com sua mãe, apresentada mais adiante.
45
- hoje em dia configuradas em seus respectivos settings, estas inquietações estudantis soariam muito
menos intelectuais e muito mais reflexivas, pragmáticas.

49
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Desse modo, o estudante universitário por mais autônomo que pareça ser, não escapa
da sujeição a ter uma representação estabelecida que lhe antecede; ou como apto a
alcançar suas aspirações ou como estando operacionalmente à margem de poder realizar
tais aspirações. Mas como a universidade não se resume a estudantes, Bourdieu, alguns
anos depois, já sem a colaboração de Passeron, também traçou algumas considerações
sobre os professores, que, com as devidas mediações, acabam sendo referências
pertinentes para interpretar as comunidades de estudantes. Em seu estudo específico
sobre as relações de poder na academia francesa (Homo academicus:2008), o autor
constata que a relação hierarquizada de poder entre membros da academia tende a
perpetuar-se independentemente da dominação pender para um lado ou para o outro,
pois em última instância, é a tensão gerada por esta pendência que “naturaliza” as
posições sociais e a ordem do mundo universitário.
De acordo com essa pesquisa, os habitus dos intelectuais acadêmicos incorporam
crenças e comportamentos que delimitam objetivamente o que deve ser o campo
acadêmico. E se todo campo deve ter capitais culturais correspondentes, o campo
acadêmico, tem seus capitais formatados em relação a três recortes: os capitais
equacionados entre o prestígio disciplinar e as origens de classe, os capitais referentes à
tensão da renovação do quadro docente em meio aos docentes veteranos, e por fim, os
capitais associados à polarização de valores entre cursos ortodoxos e heterodoxos. Por
hora esse último ponto é o que interessa.
Bourdieu constatou uma polarização entre os cursos com valores e representações
ortodoxas - cursos que ostentam uma tradição de longa data, legitimados
especificamente em função dessa temporalidade - e cursos heterodoxos, sendo estes
últimos considerados cursos que podem vir a sustentar representações heréticas, no
sentido de formularem perspectivas contrárias aos ortodoxos. O autor francês indica que
em alguns casos, os heréticos desses cursos conquistam seguidores suficientes para
torná-los “heréticos consagrados”, cujas percepções e comportamentos tornam-se
aceitos também em certos círculos com status ortodoxo. Esta categoria de heréticos
quando consagrada – consagrada precisamente enquanto herética - ganha autonomia e
respeito em relação às pressões conservadoras da academia.
Abraçando esse raciocínio bourdiesiano, observemos o caso da presente pesquisa.
Em sua primeira parte, seguindo indicações de que havia um grande consumo de drogas
lícitas de forma ilícita entre os biomédicos, especificamente nos cursos de medicina e
enfermagem onde o acesso aos fármacos é facilitado, fui em busca de contatos na área

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que pudessem propiciar uma interlocução, mas, de cinco contatos realizados - contatos
efetuados por intermédio da rede de relações de outros interlocutores - nenhum se
dispôs a participar da pesquisa, com receio de que a exposição de sua privacidade
maculasse-lhe a representação, mesmo sendo assegurado o anonimato46.
De forma geral há nessa postura defensiva uma indicação de que o discurso desses
médicos pode estar muito mais próximo de delimitar a relação liberdade X segurança
como uma oposição – ou uma categoria ou outra. Por sua vez, o discurso dos
interlocutores oriundos das humanidades, que na quase totalidade achou fundamental
trazer esta discussão à baila sem temer que a exposição de suas idéias lhes maculasse a
representação, está mais próximo da busca por uma relação de complementaridade entre
as categorias liberdade e segurança – uma categoria e a outra. Assim, há indicações de
que diferenças entre uma área de conhecimento e outra não residem apenas nas
metodologias de pesquisa e nos seus objetos de estudo, mas principalmente em função
das perspectivas e das representações dos sujeitos envolvidos e de seus respectivos
status.
Ao perspectivar a realidade acadêmica local é bom lembrar que se a realidade da
França pesquisada por Bourdieu e a realidade do Brasil são muito diferentes, o modelo
universitário brasileiro tem uma interface com o modelo francês,47 daí ser não apenas
possível como viável dialogar com essa interpretação de Bourdieu. Mas de qualquer
maneira, não é só a realidade universitária francesa que oferece material comparativo
para a pesquisa aqui em curso, como deixa claro, o estudo efetuado por Habermas,
Friedeburg, Oehler e Weitz entre os estudantes alemães no mesmo momento histórico
da pesquisa francesa, intitulada: O comportamento político dos estudantes comparado
ao da população geral. Nessa pesquisa, há indícios de uma possível universalização do
perfil dos universitários, perfil traçado anteriormente.

“A situação do estudante é, antes de mais nada, peculiar. Por um lado, é


considerado adulto e, por outro, não tem licença para sê-lo... Os interesses
‘ligados à formação’ dos estudantes são transitórios. Não são fixos, como os
interesses profissionais, mas ligados à situação temporária da formação.
Contudo os estudantes não são mais alunos. São considerados adultos, cuja
responsabilidade é alvo dos apelos de todos os grupos imagináveis,
inclusive do Estado” (HABERMAS, FRIEDEBURG, OEHLER & WEITZ:
1968,116) .

46
- dessa forma o universo da pesquisa de mestrado se concentrou nas humanidades onde a receptividade
ao projeto foi ampla.
47
– basta analisar a formação da USP, referência nacional como centro universitário Prime.

51
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Esta interpretação está muito próxima da que foi operada anteriormente por Bourdieu
e Passeron, e, nessa perspectiva, é possível localizar no texto a referência a um setting
universitário, um ethos favorável a uma específica universalização da representação
peculiar apontada. Por outro lado, essa universalização não implica necessariamente
numa uniformidade de disposições: “Subjetivamente muitos estudantes não se sentem
distanciados. Mas objetivamente o estão”, (Habermas, Friedeburg, Oehler & Weitz:
1968,130). E esse distanciamento talvez até seja legitimável se ele se dá em função de
modelos de responsabilidade então dominantes que se mostram defasados diante das
expectativas das comunidades de jovens, principalmente estudantes. Esse
distanciamento traz à tona a impossibilidade de uma agenda universitária legitimamente
autônoma, mas talvez deva se levar em conta que essa impossibilidade é que dá sentido
a busca por uma agenda. Então, poder alienar-se do tempo dominante no qual domingo
é dia de cinema e segunda-feira é dia de trabalho, e não o contrário, fará parte da nova e
diversificada “programação curricular”.

“Pode-se , de fato, verificar que os jovens (mas não só eles) julgam os fatos
políticos a partir do âmbito de sua experiência pessoal e casual, e não
baseados em argumentos e contra-argumentos objetivos. Inclusive nesse
ponto, os estudantes ocupam posição especial. Eles entendem o aspecto
‘abstrato’ da democracia, o que geralmente não ocorre com outras pessoas”
(HABERMAS, FRIEDEBURG, OEHLER & WEITZ:1968, 120).

O que os pesquisadores alemães pontuam é que ser universitário é representado em


certa medida, como a superação de ser jovem. Estando estes jovens ingressos no campo
universitário, potencializam-se para perceber que as dimensões práticas da democracia
são muito menos democráticas do que sugere a teoria. Em outras palavras, parece restar
como opção que a representação dos universitários em construção indique um específico
capital cultural que lhes credencie muito mais status em seu próprio círculo do que
realmente indique que estejam operando mudanças efetivas nas relações de poder entre
eles e o restante da sociedade. A aceitação dos limites desse status é onde se configura
ou não a condição universitária, pois o habitus político é deslocado para uma dimensão
mais psicologizada:

“A colocação adequada do problema da participação política consiste em


retroceder do plano das manifestações isoladas de comportamento (nas quais a
participação é objetivada) para o da atitude, na qual se expressa uma
participação política, que não se traduz mais em ações. A essa atitude damos a

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designação de hábito político. O hábito expressa não tanto as ações como os


impulsos, não tanto as imagens como os traços característicos de uma
mentalidade” (HABERMAS, FRIEDEBURG, OEHLER & WEITZ:1968,
127).

Os autores alemães chamam a atenção para a participação política como um habitus.


Mas este é um habitus ressignificado em relação ao que até então se pensava como
participação política. O que na interpretação de alguns observadores ortodoxos pode ser
considerado como distanciamento não político por parte dos estudantes, como alienação
ideológica, para os próprios estudantes em foco, significou uma atitude política
heterodoxa. A busca por uma cultura universitária enquanto ethos propício a atitudes é
uma perspectiva política com uma linha de participação extremante diferenciada das até
então dominantes. Essas interpretações de Habermas & cia não têm vigência só na
Europa, pois outras pesquisas realizadas no mesmo recorte temporal do lado de cá do
Atlântico, indicam que a cultura universitária como campo para o estabelecimento da
cultura política estudantil também foi uma atitude presente. Em relação às
manifestações contestatórias de alguns universitários norte-americanos, as reflexões dos
pesquisadores Goodman & Glaser (uma controvérsia sobre a revolta dos estudantes de
Bekerley, 1968) seguem uma linha argumentativa que denuncia os limites da
perspectiva política da condição universitária que então se configurava:

“os estudantes chamaram a atenção para o fato de que a Universidade da


Califórnia tornou-se uma ‘fábrica’, desrespeitando o corpo docente e os
alunos, uma fábrica em que se processam licenças profissionais e
treinamento dirigido a corporações tecnológicas, e um local para se realizar
pesquisas contratadas por entidades externas”, (GOODMAN &
GLAZER:1968, 126).

Nesse caso, as manifestações estudantis são interpretadas como motivadas pela


instabilidade proporcionada em seu lócus por forças exteriores ao campo acadêmico –
por forças que na época, ainda não eram chamadas de “Mercado”. A redução de uma
Universidade renomada como Bekerley à categoria de “fábrica”, feriu não só o respeito
pela autonomia da Instituição Universitária, mas também a respeitabilidade da
identidade dos estudantes. Então, o que pôde ser percebido concretamente pelos
pesquisadores não foi apenas o movimento dos estudantes, foi o movimento dos
estudantes interagindo com a sociedade. Nesse ponto, a luta por probidade acadêmica
não foi travada exclusivamente no nível simbólico:

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“Até agora dois novos fatores na revolta de Bekerley apareceram: 1- Os


estudantes desejam estender o conceito de Liberdade Universitária desde o
Lehrfreiheit (liberdade para os professores para ensinar de acordo com sua
capacidade) e incluir o Lernfreiheit (liberdade dos estudantes para pedir o
que precisam ser ensinados, e, se necessário, convidar professores, inclusive
para defensores de suas causas). 2- O corpo docente, estimulado pelos
estudantes, deseja reassumir as prerrogativas que tinha transferido para a
administração, como por exemplo, a disciplina”, (GOODMAN &
GLAZER:1968,126).

“A tentativa de estender a Liberdade Universitária à Liberdade de Aprender


implica uma transformação revolucionária no status dos indivíduos que
frequentam uma universidade. Até agora, os universitários americanos têm
sido considerados, e consideram a si próprios, como adolescentes
extemporâneos; mas a reivindicação do direito ao Lernfreiheit significa que
eles são jovens adultos capazes de saber por que devem lutar [...] Na
Europa, ‘ser estudante’ é, em si mesmo, uma espécie de profissão dos
adultos jovens, especialmente os de classe alta”, (GOODMAN &
GLAZER:1968,128).

Profissão dos adultos de classe alta, será essa definição de universitário um problema
ou uma solução? Se apenas os adolescentes extemporâneos de classe alta puderem
configurar forças para forjar uma cultura universitária; então ser estudante é uma
profissão que equivale a um título de nobreza, tendo pouco a ver com cidadania. Não
sendo este o caso, o direito ao Lernfreiheit demandado pelos universitários é em última
instância, o direito de exercer a plena cidadania. Contudo, ser cidadão talvez não seja
uma missão ao alcance de todos, principalmente para os que passaram direto da
adolescência para uma carreira de trabalhador adulto, sem o privilégio de ter sido
estudante universitário. Ou de pelo menos, ter estado na rede de relações diretas e
reflexivas destes:

“a principal ação política dos estudantes seria, no momento, a de


humanização interna e a de tornar culturais as atividades da comunidade
universitária – pois os coleges e as universidades têm se tornado tão
entrelaçados ao sistema emaranhado da sociedade que quaisquer inovações de
progresso interno causarão um estremecimento sério no sistema”,
(GOODMAN & GLAZER:1968:130).

De acordo com a perspectiva de Goodman e Glaser, a cultura política de origem


universitária é um modelo que emana reflexividade incontornável para o restante da
sociedade, pois o estilo de vida universitário também passa a influenciar o estilo de vida
dos não universitários. Já Seymour Lipset em uma pesquisa intitulada O comportamento
político da juventude universitária alarga o horizonte comparativo ao investigar focos
da juventude universitária nas Américas, Europa e Ásia, registrando as oscilações que

54
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norteariam as dificuldades para administrar as dimensões públicas e privadas dessa


tentativa de mudança de paradigma.

“existe uma tendência inerente aos estudantes para tomar uma posição
definida em relação ao status quo, extensiva à vida intelectual e a seu status
de futura elite, na qual tentam valer-se de seus conhecimentos e valores
como padrões de julgamento do comportamento manifestado pelas elites
atuais [...] Muitos movimentos de protesto que visam mudanças na
universidade não são necessariamente vinculados a uma reivindicação por
mudanças radicais na estrutura social. [...] Apesar de receber um tipo de
educação conforme a uma moderna orientação dentro da universidade,
muitos dos estudantes dessa sociedade, se não a maioria, foram socializados
num ambiente tradicional, e deles só se pode esperar que resistam às
mudanças que ameaçam transformar radicalmente os valores e
conhecimentos com os quais cresceram”, (LIPSET:1968, 134).

Assim também como os pesquisadores alemães, Lipset constata que a busca por
mudanças realizada pelos estudantes se refere a interesses específicos, não sendo
necessariamente interesses estruturais. De modo geral, os aspectos que parecem comuns
a esses quatro estudos realizados nos anos 1960 e que devem ser registrados, são que;
ao universitário é permitido um modelo de inversão – na polarização
segurança/liberdade -, para tornar-se adulto com permissão para não sê-lo quando assim
fosse adequado. Sua cultura política - num modelo cultural que se representa como
menos retórico do que mimético -, por mais que busque ser autônoma não o é, estando
interpenetrada com a cultura política ortodoxa, e refletindo esta tensão para o restante da
sociedade.
Já especificamente no caso de um país como o Brasil que, diferentemente de França,
Alemanha e EUA, apresenta grandes desigualdades econômicas e educacionais, o
significado de, voltar quarenta anos até os anos 1960 para interpretar, em perspectiva,
certas possibilidades de representação estudantil, é realizar inevitavelmente uma análise
crítica do papel do estudante como agente de mudança naquela configuração, muito
mais do que uma análise de sua luta acadêmica por status. Pensemos em como os
estudantes universitários daquele período tentaram equilibrar a balança entre liberdade e
segurança nas relações de poder. No livro do jornalista Zuenir Ventura, 1968: O ano
que não terminou (2008), se percebe o quanto os estudantes, quando imbuídos de uma
proposta comunitária, podem “ser fortemente políticos” não só em meio à comunidade

55
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acadêmica, mas em meio ao contexto mais amplo da sociedade, explicitando o que foi
viver num momento histórico de refluxo da noção de civilidade48.
Em 1968, no dia primeiro de abril – não é brincadeira, verdade! –, o Brasil esteve
muito adiante do famoso mês de maio francês no que diz respeito ao papel do estudante
universitário enquanto agente produtor de conhecimento e de mudança social. Este
pioneirismo se configurou pelo momento histórico brasileiro, no qual a democracia era
muito menos uma referência concreta do que simbólica. No correr daquele ano, o
Estado brasileiro deixou a perspectiva dialógica de lado e passou a usar frequentemente
a força física contra os universitários:

“As agitações estudantis se alastraram por quase todo o país. Em Fortaleza,


o Serviço de Informações dos Estados Unidos, o USIS, era destruído por
manifestantes; em Recife, 2 mil universitários realizaram uma passeata
proibida; em Belém, estudantes eram retirados à força da universidade,
fechada pelo reitor; em Natal, uma greve paralisa todas as faculdades; em
Maceió, protestos; na Bahia, um estudante ferido por um policial revolta a
população; em Brasília, a universidade permanecia ocupada pelos
estudantes e cercada pela polícia; Em Minas, três estudantes eram baleados,
um policial gravemente ferido por um paralepípedo e um carro oficial
incendiado; Em São Luís, os muros amanheceram pichados: ‘O Brasil é um
novo Vietnã’. Em Goiânia, um policial civil invadiu a catedral
Metropolitana,onde se reuniam estudantes, e feriu a bala dois deles”
(VENTURA: 2008 A,104).

Hoje em dia os estudantes ocupam universidades protestando contra gestões


duvidosas ou para assistir filmes arbitrariamente proibidos49 chegando a receber apoio
da comunidade não acadêmica, mas quatro décadas atrás, as lutas eram bem mais
sangrentas e menos populares. Apesar dos objetivos em questão abrangerem questões
politicamente ligadas à liberdade do cidadão e não necessariamente do cidadão
universitário, os protestos estudantis acabaram obtendo muito pouco apoio da população
não universitária. O certo é que com quarenta e dois anos de distância de 1968, as lutas
culturais passaram a ser incorporadas às problemáticas que as comunidades
universitárias enfrentam, concomitantemente à busca por um patamar de valores mais
democráticos. Pode-se cogitar que desses mais de quarenta anos, os vinte primeiros
foram gastos para garantir a configuração de um setting minimamente democrático, e
que assim, as lutas culturais levantadas pelos universitários - mas não só por estes -

48
– Num processo totalitário quando as individualidades são submetidas a controles sociais rígidos as
emoções individuais mais violentas já não podem ser sumariamente submetidas ao autocontrole
psicológico, com o risco de eclodir episodicamente, o que leva o próprio processo civilizador ao risco de
se desconfigurar. (ELIAS:1990).
49
– como será analisado na página 104.

56
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puderam ganhar a estabilidade de habitus sociais. Contudo, em 1968 a realidade local


era outra:

“Distingo uma diferença bem significativa entre o 68 nos países em


desenvolvimento e o 68 norte-americano e europeu. Aqui houve um choque
direto contra a repressão, contra a falta de democracia. Lá, o movimento se
deu no contexto democrático. Enquanto nós estávamos mais voltados para a
obtenção da democracia, eles já transcendiam esse campo, suas lutas já
eram culturais” – Fernando Gabeira (VENTURA:2008 B,162).

“Ao contrário de outros países onde a motivação tinha a ver com exigências
de liberdade sexual, o movimento no Brasil foi desde o começo
essencialmente político. Na França, alunos da Universidade de Nanterre
deram início a insurreição com uma reivindicação de dormitórios mistos...
Nos Estados Unidos, uma aluna da Universidade Columbia, revelou ao New
York Times em off, com medo de aparecer, que dormia com o namorado nas
dependências masculinas do colégio. Descoberta sua identidade, a jovem foi
ameaçada de expulsão, e uma onda de protestos se transformou num grande
debate sobre direitos individuais e sobre a moral da nova geração.
Já no Brasil, as manifestações começaram com a morte pela polícia carioca
do estudante Edson Luis, num protesto contra o FMI (Fundo Monetário
Internacional) no restaurante estudantil do Calabouço. As moças brasileiras
não carregavam o cartaz “Virgindade dá câncer”, como no México, mas
“Abaixo a ditadura” (VENTURA: 2008 B, 96/97).

Conquistada uma maior segurança num processo democrático, passa-se a ter mais
espaço para lidar com as liberdades individuais e coletivas, e não apenas entre os
universitários50. Esta etapa de transição, nos dias de hoje passa por fato já concretizado,
tornada em habitus sociais que até parecem que sempre estiveram aí. Mas não é
exatamente assim. Em Nobres e anjos (1998), Gilberto Velho retrata o desencantamento
com o discurso estudantil – mas não apenas este - que se abateu sobre os órfãos desta
geração revolucionária dos anos 60, na primeira metade da década de 70. Os sujeitos
que ele chama de “nobres”, foram membros diretos desta geração; passaram pela utopia
estudantil, pelo desencantamento com a situação política do país e pela busca de
autoconhecimento intermediado em grande medida pelo consumo de drogas. Mesmo
sendo esta uma época na qual a imagem universitária ganhou representação por suas

50
- e já que toda regra não deixa de ter sua exceção, como interpretar a situação acontecida na Uniban
em 22/10/09 quando uma aluna que trajava um vestido considerado muito curto foi hostilizada, ameaçada
de estupro e perseguida por uma multidão de 700 colegas, a ponto de precisar de escolta policial para se
proteger? Como interpretar a sua posterior expulsão da Instituição por desrespeitar “os princípios éticos”
e a “dignidade acadêmica”? Como interpretar a revogação desta medida após a Instituição perceber que a
sociedade se indignou com o mecanismo de controle empregado? Essa situação representa um patamar
antidemocrático, onde os próprios estudantes representam o papel repressor e anticivilizatório que antes
em 1968, muitos discentes condenaram. Por sua vez, a instituição em questão representa o que uma
Instituição de ensino deveria combater: a intolerância aos habitus sociais estabelecidos como desviantes.

57
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manifestações políticas, o que ficou registrado e incorporado na cultura das camadas


sociais médias e altas, não foram explícita e exclusivamente as sequelas dos controles
sociais extremos fomentados num processo ditatorial, mas sim a ressignificação de
hábitos, com mudanças ligadas à esfera privada, aos cuidados de si, questões pouco
ligadas diretamente às guerrilhas revolucionárias.
Já os interlocutores que Velho chama de “anjos” são os herdeiros diretos desta
geração de nobres, adolescentes e jovens sem valores de produção que pudessem
abraçar, frutos de uma visão de mundo anômica – e esta anomia fazia de seu consumo
de drogas não um comportamento de exclusão, mas uma modalidade elitista de
inclusão. Os nobres negaram os valores de produção em busca de valores alternativos,
muitos largando os diplomas acadêmicos para viver como outsiders à cultura de
produção – mas geralmente sustentados financeiramente por suas famílias tradicionais,
numa aporia que ao mesmo tempo rejeita e abraça os valores do passado. Os anjos nem
se preocuparam em negar o passado, negaram o futuro de onde a carreira de estudante
era o “estigma” a ser evitado, vivendo apenas para consumir o presente51.
As gerações que se seguiram aos anos 1970 não deixam de refletir esta realidade. No
livro 1968: o que fizemos de nós (2008), a análise que Ventura faz da nova geração dos
anos 2000 partindo de uma comparação com os jovens de 1968 e valendo-se de uma
interpretação da anomia enquanto processo desviante parece ser feita para os Anjos,
para a juventude das camadas médias cariocas pesquisadas por Velho nos anos 70:

“Filhos de um tempo que decretou o fim da história, das ideologias e das


utopias, esses adolescentes adotaram como conduta a anomia, isto é, a
ausência de regras, e decretaram por conta própria o fim dos limites e das
interdições, instituindo o reino da permissividade”. (VENTURA:2008 B,
22).

Ventura pondera que nos anos 90, os caras-pintadas quando apareceram nas tvs
caminhando e cantando pelas ruas, por algum momento pareceram que iriam ressuscitar
o espírito estudantil de 68, mas sua atuação se restringiu a um fenômeno específico que
foi o impeachment do presidente Fernando Collor. O objetivo dos estudantes caras-
pintadas esteve em torno da configuração da segurança coletiva no sentido democrático
e não das liberdades individuais dos próprios democratas. Já aqui nesta pesquisa ligada

51
– com exceção desse desencantamento com a carreira estudantil, os anjos, quanto ao estilo de vida,
possuem muitos pontos em comum com os interlocutores universitários da pesquisa corrente,
principalmente, a busca por liberdade para consumir drogas.

58
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especificamente ao consumo de drogas, foi observado que se as atitudes dos estudantes


em relação a esse consumo, num primeiro momento parecem pontuais52, sem um pano
de fundo notoriamente “democrático”, talvez devam ser consideradas como atitudes
atomizadas que estão ganhando corporificação, principalmente pelo nível de
organização que pode ser percebido atualmente – já não se trata simplesmente de
palavras de ordem berradas, entre pedradas e correrias, há blogs, twitters, grupos de
estudo, seminários e conferências acontecendo de norte a sul do país. Graças às
conquistas culturais em curso no presente período histórico incontestavelmente mais
democrático do que nos anos 1960, os universitários já não lutam mais com paus e
pedras, mas sim com bytes e chips.
Nos dias informatizados de hoje quando muitos educadores parecem reconhecer que
o objetivo central da Universidade já não se reduz a favorecer a mera assimilação de
conteúdos programáticos por parte dos estudantes, mas sim possibilitar a plena
formação destes enquanto seres sociais e culturais, é pertinente trazer o filósofo Jacques
Derrida à cena, um autor enquadrado como pós-estruturalista – o que para uns é status
para outros é estigma - com uma perspectiva teórica diferenciada dos autores até agora
enfocados53. No começo do século XXI, Derrida pôs em perspectiva um projeto para a
Universidade (Universidade sem condição, 2003) que vai além dos projetos dos e para
os universitários, mas de forma nenhuma na contramão destes. Sua proposta coloca a
Universidade como referência incondicional para a democratização da sociedade, e o
universitário, principalmente o locado em Humanidades, como sendo o ponto de partida
desse projeto, não o ponto de chegada:

“A Universidade deveria ser o lugar em que nada está livre do


questionamento, nem mesmo a figura atual e determinada da democracia;
[...] Eis, portanto, o que poderíamos, valendo-nos dela, chamar de
Universidade sem condição: o direito de princípio de dizer tudo, ainda que a
título de ficção e de experimentação do saber, e o direito de dizê-lo
publicamente, de publicá-lo”. (DERRIDA:2003,18).

“eu não afirmaria que essa força de resistência, essa liberdade assumida de
dizer tudo no espaço público, tenha seu lugar único ou privilegiado no que
se chamam Humanidades... Mas esse princípio de incondicionalidade se
apresenta, originalmente e por excelência, nas Humanidades”.
(DERRIDA:2003,23).

52
- como aconteceu em 2008 com a proibição da Marcha da Maconha. Não se podia imaginar que no ano
seguinte a questão tomasse às proporções que tomou.
53
- Derrida teve a oportunidade de assimilar as reflexões decorrentes das pesquisas sobre universitários
realizadas por Bourdieu, Habermas & cia, pesquisadores que o antecederam no estudo em questão, em
pelo menos trinta anos.

59
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Como é possível perceber nesse fragmento discursivo de Derrida publicado nos


primórdios dos anos 2000, há pontos em comum com os registros efetuados pelas
pesquisas referenciadas nos anos 1960. A começar pela interpretação da Universidade
que não é mais referenciada como objetivo final, mas como um ponto de partida na luta
por direitos. E mais uma vez, as Humanidades têm um lugar de destaque no processo de
ressignificação de objetivos estudantis, na desconstrução de significações que até pouco
pareciam perenemente estabelecidas:

“...(o) princípio de incondicionalidade se apresenta, originalmente e por


excelência nas Humanidades. Ele tem um lugar de apresentação, de
manifestação [...] quando se trata de nada menos que repensar o conceito de
homem, a figura da humanidade em geral, e singularmente aquela que
pressupõem as assim chamadas, na Universidade, há séculos,
Humanidades54. Pelo menos desse ponto de vista, a desconstrução tem seu
lugar privilegiado na Universidade e nas Humanidades como lugar de
resistência irredentista, até mesmo, analogicamente como uma espécie de
princípio de desobediência civil, ou ainda, de dissidência em nome de uma
lei superior e de uma justiça do pensamento.
Chamemos aqui pensamento o que às vezes comanda, de acordo com uma
lei acima das leis, a justiça dessa resistência ou dessa dissidência. É também
o que se faz operar ou inspira a desconstrução como justiça”
(DERRIDA:2003, 23/24).

Vale ressaltar que para Derrida, a justiça é um valor muito mais pertinente com a
contemporaneidade do que a verdade55, mesmo que justiça em relação à “uma lei acima
das leis” possa até soar como uma verdade, mas verdade com letra minúscula, pois esta
verdade não é A Verdade transcendente que conferiria identidade aos universitários com
a simples entrada numa Universidade. Pelo contrário, essa “verdade” só será conquistada
quando o estudante deixar a Universidade e consagrar-se como trabalhador. Nesse
sentido essa não é uma verdade absoluta, muito mais próxima está da justiça em relação
à sociedade como um todo, onde às pessoas que não cursaram uma universidade esperam
dos que cursaram, respostas para os problemas sociais em curso. Eis a justa
desconstrução da Verdade sobre a condição da Universidade.

54
- e esse lugar da incondicionalidade não é apenas de apresentação, mas também de representação,
como indica Foucault, um contemporâneo de Derrida: “a representação não é simplesmente um objeto
para as ciências humanas; ela é [...] o próprio campo das ciências humanas, e em toda a sua extensão; é o
suporte geral dessa forma de saber, aquilo a partir do qual ele é possível.” (FOUCAULT:2000, 503). Esta
é a representação da cultura universitária na qual esta pesquisa ganha sentido.
55
- pois de acordo com este: “Se pararmos de pensar na verdade como o nome da coisa que dá significado
à vida humana, e pararmos de concordar com Platão em que a busca da verdade é a atividade humana
central, então poderemos substituir a busca da verdade pela esperança messiânica de justiça” (SOUZA,
2005).

60
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“na Universidade, dentre todos os que de uma maneira ou de outra, são


considerados como nela trabalhando (docentes, pessoal de gestão ou de
administração, pesquisadores, estudantes), alguns, especialmente os
estudantes enquanto tais, apenas serão chamados corretamente
“trabalhadores” quando um salário vier retribuir de forma regular, como
uma mercadoria num mercado, a atividade de um ofício ou de uma
profissão. Para isso não basta uma bolsa de estudos”. (DERRIDA:2003,
42).

“devemos declarar, e professar continuamente a idéia de que esse espaço de


tipo acadêmico deve ser simbolicamente protegido por uma espécie de
imunidade absoluta, como se seu dentro fosse inviolável – embora a
proteção dessa imunidade acadêmica nunca seja pura, podendo sempre
desenvolver processos perigosos de auto-imunidade, e sobretudo, embora
ela não deva impedir de nos dirigir ao fora da Universidade -, sem
abstenção utópica”. (DERRIDA:2003, 49).

A condição que Derrida propõe para fazer da justiça a verdade corrente entre os que
estão dentro da Universidade, se concretiza quando se estabelece um canal onde possa
haver um diálogo direto entre os últimos e os que estão fora da Universidade. Isto indica
que numa reflexão sobre a Universidade a díade professor/aluno deve sofrer uma
descentralização, assim se fazendo justiça a quem não teve acesso a este universo.

“A Universidade sem condição não se situa necessariamente, nem


exclusivamente, no recinto do que se chama hoje a Universidade. Ela não é
necessariamente, nem exclusivamente, exemplarmente representada na
figura do professor. Ela tem lugar, procura seu lugar em toda parte onde
essa incondicionalidade pode ser anunciada” (DERRIDA:2003, 82).

E se assim for, onde mais a incondicionalidade da Universidade pode ser anunciada


enquanto perspectiva a não ser em meio a incondicionalidade da juventude, afinal não é
o jovem que por excelência, se espera que se torne universitário?

61
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1.9 - Juventude como profissão de fé

Nesse ponto do texto é necessário fazer uma mudança de foco da categoria


Universitário para a categoria Jovem, uma construção tipificada nas sociedades
modernas. Até os anos 1950, em face da idéia funcional contida no projeto de
civilização ocidental, “ser jovem” era vivenciar uma transição entre o mundo da criança,
desconectado das responsabilidades que configuram a segurança social, e o mundo
adulto, este predominantemente, ou quase que exclusivamente, voltado às
responsabilidades do trabalho, à segurança da família e das comunidades próximas.
Nesse recorte, a escola enquanto instituição, e principalmente a universidade, foi
configurada como o cenário específico para a passagem do jovem para a vida adulta,
sendo a comunidade de preparo para o mundo do trabalho (Abramo: 2005, 41).
Antes de tudo, falar em ser jovem só tem sentido quando também se pode falar em
ser criança, ser adulto, ser velho, como categorias mais ou menos bem definidas,
perspectivando etapas que se sucedem cronologicamente:

“Os anos nos têm e nos fazem; fazem com que sejamos crianças, jovens,
adultos ou velhos. E isto, apesar da relativa flutuação das fronteiras
culturais, legislativas ou administrativas, nos situa uns e outros em grupos
socialmente definidos”, (LLORET:1998,14).

Esta reflexão implica em ter como referência uma idade arquetípica “que determina
as expectativas de relação e comportamento” (Lloret:1998, 21), e que muitas vezes
adere à idade cronológica das pessoas, deixando-lhes pouca margem de variação em
relação ao padrão estabelecido como dominante, ou seja: “pertencer a um grupo de
idade significa ter que adequar-se a uma normativa bastante precisa”, (Lloret:1998,15).
Acrescentando conteúdos socioculturais localizados historicamente a este modelo,
Morin (1986) indica que as culturas juvenis do pós-guerra configuraram conteúdos
novos e positivos à condição juvenil, conteúdos relacionados ao lazer e às mais variadas
experimentações com o corpo. O próprio sentido representacional de juventude se
tornou mais complexo, pois os jovens das classes trabalhadoras passaram a ter mais
visibilidade. Essa definição tendo como referência o pós-guerra não é gratuita, pois,
com o ruir do projeto de modernidade civilizada, “Depois da Segunda Guerra Mundial,
o hedonismo colocou o prazer, e o lazer à frente das preocupações humanas”,

62
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(Zaluar:1994,106). O hedonismo em questão, foi especificamente assimilado por jovens


desencantados com o estilo de vida estabelecido como modelo para a juventude.
Em meio a conteúdos hedonistas ou não, no entendimento de Bourdieu (1983: 112),
reduzir as relações de poder em torno do campo da juventude a uma condição, a uma
preparação para o mundo do trabalho, perpetuando hierarquias em que “cada um deve
se manter em seu lugar”, é improdutivo. Para ele, essa caracterização reduz a juventude
à condição de ser “apenas uma palavra”56, e essa minimização representacional da
cultura juvenil abriria espaço para que aqueles que a esta não se adaptassem estivessem
em desvios de comportamentos, de atitudes, de estilos, e de uma forma ou de outra,
serem contrapostos as padronizações estabelecidas e esperadas.
Nos anos 1960 a categoria juventude que não é tão nova57 inovou as possibilidades
para se vivenciar a categoria. O modelo de representação estabelecido por essa
juventude retratou uma configuração onde foi possível a inversão dos valores da cultura
de produção. Nessa reconfiguração, a socialização passou a ser mediada não apenas por
intermédio dos núcleos tradicionais, como a família e a escola; mas, com importância
gradualmente mais institucionalizada e perceptível, através da cultura e do lazer,
settings onde: “A Vivência da experiência juvenil passa a adquirir sentido em si mesma
e não mais somente como preparação para a vida adulta”. (Abramo:2008, 43). Nesse
recorte histórico quando a cultura adquiriu a dimensão de lazer é preciso abrir um
pequeno parêntese para situar as gangues brasileiras da virada dos anos 1950/60,
gangues oriundas da classe média e da elite:

“trata-se de início, de jovens da classe média e de elite, que podem contar


com recursos financeiros para consumir, ter o lazer e a diversão como eixos
de vida [...] Uma parte desses jovens, sobretudo quando estava em grupo,
ostentava um comportamento agressivo, e até violento; então vários deles
passaram a ser considerados, pelas autoridades e pela imprensa do período
como donos de um comportamento e de uma atitude de gangue” (COSTA:
2006, 17).

Fora essa exceção, que mostra a influência reflexiva de filmes estrelados por jovens
outsiders como Marlon Brando (O Selvagem, 1953), James Dean (Juventude

56
- e se para muitos educadores essa contradefinição bourdiesiana se tornou um lugar comum já
esvaziado de sentido, alguns outros sustentam suas argumentações tendo como premissa exatamente a
referência de que a juventude não é apenas uma palavra.
57
- os habitus sociais dominantes nessa representação foram originariamente forjados em torno da
juventude eminentemente burguesa do fim do século XIX, e nesse recorte foi inventada a tradição do que
é ser jovem.

63
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Transviada,1955) e Elvis Presley (O prisioneiro do Rock, 1957), interpretando papeis


de jovens outsiders, a juventude da década de 60 foi representada majoritariamente
atrelada à pele do estudante de classe média, sendo que esse estudante de classe média
em muitos aspectos remetia ao que se convencionou chamar de burguês. O estilo de
vida da juventude oriunda da burguesia do século XIX configurou um modelo para a
cultura de produção moderna que emanou desdobramentos que entraram em colapso na
década de 1960. Desde então o estilo de vida atrelado à cultura de produção vem sendo
posto em xeque por grupos culturalmente bem distantes da juventude burguesa
novecentista58 no que se refere aos valores, comportamentos e às representações do que
é norma e do que é desvio.
Mais de quarenta anos depois desta flexibilização do paradigma juvenil os valores
culturais em torno dos jovens já representam um momento social em que a busca por
maior liberdade de escolhas ganha conotações que a categoria burguês originalmente
não poderia indicar. Hoje, as juventudes brasileiras vivem em um cenário
socioeconômico que não é inequivocamente democrático em função de suas
disparidades na distribuição de renda, mas que indica outras perspectivas de estilo de
vida diversas daquelas do período ditatorial. Este cambio de estilo de vida pôde ser
constatado pelos “olhos” da pesquisa Perfil da juventude brasileira, um projeto
realizado pelo Instituto Cidadania onde há um amplo painel de dados quantitativos
recentes que aqui podem ser reinterpretados59.

“Os jovens de hoje nasceram em tempo de crise social. Não por acaso,
quase dois quintos são desempregados” (SINGER: 2008, 28).

“Os jovens de hoje são os filhos da coorte de jovens que passou pelo trauma
da desilusão com a via política para a revolução, nos anos 1970 e 1980.
Para os filhos, possivelmente, esse trauma é desconhecido ou não passa de
uma vaga referência ao passado” (SINGER: 2008, 32).

Nesse recorte de desemprego o “trauma da desilusão” com o modelo de ativismo


político tradicional permite operar uma interpretação que põe em diálogo as leituras que
Velho e Ventura fizeram da juventude: o ativismo dos jovens acaba sendo menos

58
- e aqui vale ressaltar que, com exceção de certos dandies e de alguns poetas românticos, os jovens
tipicamente burgueses do final do século XIX sustentavam como valor eticamente civilizado e
cientificamente moderno, que o uso de drogas apontava uma falha moral. (ESCOHOTADO:2008).
59
- o projeto cujo recorte representou a população entre 15 e 24 anos de ambos os gêneros foi levado a
campo em 2003 aplicando 3501 entrevistas em 584 setores censitários em áreas rurais e urbanas do país.
O universo representado foi de 34,1 milhões de jovens residentes no território brasileiro, 20,1% da
população total.

64
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ideológico e mais pragmático, pragmático em relação tanto aos seus próprios objetivos
quanto em relação aos objetivos da sociedade como um todo:

“Os jovens que se engajam na concepção de um mundo melhor a ser


construído por eles o pensam em geral em termos de sustentabilidade
ambiental e justiça social. Este é o sonho que emerge com força dos Fóruns
Sociais Mundiais, em que a presença juvenil é marcante.” (SINGER: 2008,
30).

Os valores dessa juventude não são eminentemente nacionalistas ou puramente


hedonistas, encontram-se conectados a questões de configurações socioculturais
especificamente glocais60. Questionados sobre os valores mais importantes para uma
sociedade ideal, os jovens da amostra responderam: solidariedade (55%), respeito às
diferenças (50%), igualdade de oportunidades (46%), temor a Deus (44)% e justiça
social (41%). Quatro desses itens valorizados pertencem a uma agenda de pauta
democrática, o que pode indicar que esses jovens não configuram uma condição de
anomia nem se reconhecem estando isolados em suas individualidades. Pensar em
termos de direitos democráticos, é assumir a responsabilidade de viver configurado
numa “sociedade de indivíduos” com suas vantagens e mazelas, pois a pergunta e a
resposta aqui postas parecem ser: mas afinal, “o que os jovens entendem por uma
sociedade solidária? Possivelmente uma sociedade que não discrimine os diferentes por
raça, religião, orientação sexual, etc.” (Singer:2008,33), uma sociedade na qual se possa
acreditar ser possível assegurar o direito às liberdades. Entretanto, se concretamente em
uma das respostas fornecida ainda é perceptível o temor a Deus – Deus que não apenas
está vivo, mas que é temido - as questões que os jovens colocam majoritariamente
como questões presentes são de outra ordem que não a ordem transcendental.
A pesquisa Perfil da juventude brasileira investigou aspectos da condição juvenil – o
pior de ser jovem - e da situação juvenil - quais são os problemas que mais preocupam
atualmente. Para a condição de ser jovem, 23% responderam, conviver com riscos (17%
drogas e 9% violência) e 20% se referiram a escassez de trabalho e ausência de renda.
Em relação a situação do jovem contemporâneo: 55% indicaram que os problemas mais
preocupantes dizem respeito a segurança/violência, 52% emprego, 24% drogas e 16%
fome/miséria. Se foi pautado o temor a Deus como um dos valores mais importantes

60
- o vocábulo glocal é um neologismo que indica o acesso a constantes fluxos culturais globais nas
realidades locais, pontuando uma interface entre aspectos da cultura global e da cultura local.
(BECK:1999).

65
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para uma sociedade ideal, na prática, esses jovens se mostram muito preocupados com
questões imanentes, os riscos ligados a questões de segurança. Contudo, as respostas
ainda deixam no ar uma dúvida significativa: a preocupação com os riscos pelo uso de
drogas se dá em relação aos efeitos psicoativos das drogas ou pela violência do tráfico?
Para superar os riscos por trás desta dúvida, a confiança é um recurso recorrente,
mesmo que em níveis de aproximação diferenciados: como um tópico que deve ser
discutido com os pais, a questão das drogas foi eleita em 2°, com 52%, atrás de
educação com 61% de indicações, em respostas múltiplas. Já como tópico para discutir
entre os amigos, o consumo de drogas está em 1° lugar com 46%, depois sexualidade
45% e esportes, 43%. Pra discutir com a sociedade como um todo a educação foi um
tema eleito com 50%, desigualdade social e pobreza 45%, e drogas 42%. Estes números
talvez indiquem que entre estes jovens investigados conversas sérias sobre drogas é algo
de fórum íntimo que requer além da confiança, uma dose de identificação, pois acaba
sendo uma temática que eles reservam para desenvolver com amigos que vivenciam as
mesmas questões, e não com os pais que geralmente vivem culturas diferentes.
(2008,64). Se esses jovens acreditassem no risco das drogas enquanto psicoativos é
possível que a confiança nos pais para dialogar sobre a questão fosse maior, pois estes
últimos são caracterizados como provedores de saúde. Dessa forma, é possível que
riscos ligados a drogas sejam percebidos pelos pesquisados como aspectos estruturais da
rede de consumo.
Refletindo diretamente sobre as comunidades de pertença básicas da juventude –
família e escola, onde acima de tudo se trabalha as relações de confiança – é possível
identificar mudanças que estão ocorrendo nas últimas quatro décadas, a começar pela
própria operacionalização das representações do papel central da família em sua
formatação convencional: “enquanto apenas 10% dos jovens com ensino superior são
casados61, 43% dos que têm até a 4° série do ensino fundamental já compõem uma nova
unidade familiar”. Por outro lado, “cada vez mais, jovens vivenciam certos elementos
de ‘transição para a vida adulta’ sem realizar a independência da família de origem”
(2008, 47), ou seja, os menos escolarizados estão casando mais, talvez indicando que o
casamento não seja uma opção para quem está em condições de realizar reflexões sobre
o momento socioeconômico, mas sim uma tradição estabelecida para os que dispõem de
menores condições de reflexividade que assim a abraçam como um valor dado.

61
- o que pode ser aferido na pesquisa que realizo com universitários na qual apenas um dos vinte e dois
interlocutores é casado.

66
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A situação socioeconômica da maioria da população jovem não permite que a escola


tenha a devida centralidade e muito menos exclusividade como espaço formador:
“Poder estudar ou só se dedicar ao estudo é citado por 26% dos jovens, um pouco mais
pelos adolescentes e pelas mulheres, e cresce com a escolaridade, chegando a 38% entre
os jovens com formação universitária” (2008, 57), Dito de outra forma, a carreira de
estudante encontra centralidade exatamente entre os jovens que já possuem uma
carreira, o que de certa forma implica em que “alguém” banque essa carreira, e na
maioria dos casos esse “alguém” é a família. Desse modo, o chamado jovem de origem
burguesa busca independência sociocultural, mas não necessariamente independência
econômica. Nesse caso, o trabalho muito mais do que um meio para atingir o auto-
sustento, é um dispositivo com potencial para elevar o capital cultural62 e o status. Esta
questão merece atenção e se configura na tensão entre a necessidade de produção para
obter segurança e a busca por liberdade e distinção: “na faixa de renda mais alta (mais
de cinco salários mínimos), o trabalho como fator de independência (29%) supera a
citação de trabalho como necessidade (24%)”, (Abramo: 2008, 54). Assim sendo, o
trabalho pode vir a favorecer a independência de quem anteriormente já investiu na
independência cultural.
Mas o capital cultural do qual pode dispor a juventude contemporânea não se limita a
ressignificações do trabalho e do estudo, pois, no tempo tradicionalmente reservado
para atividades de descanso - os fins de semana - é quando mais os jovens se
predispõem a dinamizar a sociabilidade, o que na maioria dos casos quer dizer diversão:
78% indicam atividades processadas fora de casa, sendo a maioria delas (45%) de lazer
e entretenimento, (Abramo: 2008, 54). O foco aqui não reside mais na inversão
“sessentista” fins de semana durante a semana, mas sim na formatação estabelecida
como tradicional, o que indica que transgressão não é a moeda mais forte desse recorte
de juventude, mas sim a interpenetração possível entre padrões e valores antes
antagônicos. E nessa perspectiva, é possível perceber que “O interesse por cultura e
lazer [...] cresce um pouco com a escolaridade: é citado por 24% entre os que têm
menor escolaridade e por 33% entre os que têm nível superior” (Abramo: 2008, 63).
62
- o capital cultural é dimensionado por um conjunto de estratégias, valores e disposições relacionados
ao consumo de bens - consumo de uma música, de um filme, roupa, comida ou droga - que indicam um
grau de distinção e poder em grupos nos quais tais consumos são desejados de modo correntes,
(Bourdieu,1992). Por exemplo, pessoas financeiramente pobres consumidoras de telenovelas podem
adquirir disposição para sustentar capitais culturais oriundos das classes média e alta - o carro ideal é
uma Ferrari, o corpo ideal é siliconado e lipoaspirado - mesmo sem dinheiro para materializar tais
consumos.

67
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Essa juventude - principalmente a com maior nível de escolaridade - interessada em


cultura e lazer não vê muito sentido em buscar modelos de liberdade que não levem em
conta aspectos de segurança:

“ter liberdade (citado por 22%) é mais valorizado pelos mais velhos,
sobretudo os homens: 33% dos rapazes com mais de 20 anos formula desse
modo o que é melhor de ser jovem, ante 14% das moças adolescentes [...] A
citação desse elemento também é maior entre quem está na PEA63 (24%) do
que entre quem não está (15%), o que tem relação com a maior idade de
quem está na PEA, mas também com a mobilidade que é conquistada pelos
jovens que começam a trabalhar, em razão tanto do maior ‘respeito’
conferido pela família quanto do dinheiro sobre o qual podem decidir
gastar.” (ABRAMO: 2008, 57).

Para estes jovens, o respeito da família e a possibilidade de terem dinheiro para


estarem inseridos numa cultura de consumo propiciam maior segurança para conferir às
suas buscas por liberdade uma representação com valoração socialmente positiva. Mas o
que essa juventude quer dizer com liberdade? É possível dizer que liberdade significa
liberdade de opção para consumir, mas também é possível dizer que essa perspectiva de
liberdade é construída em meio à possibilidade de escolher com responsabilidade, entre
os valores que se consideram piores e melhores na inserção do jovem no mundo adulto:
“entre as piores coisas de ser jovem estão, conviver com riscos (23% da amostra), falta
de liberdade (22%) e falta de trabalho ou renda (20%)”. (Abramo: 2008, 58). Se até
pouco tempo atrás, juventude era antônimo de responsabilidade, a ressignificação da
juventude implica em que para usufruir da liberdade é preciso desfrutar também de
segurança. Na atual configuração da cultura de consumo, assumir a responsabilidade de
conviver com riscos ainda assusta 23% da amostra, enquanto outros 22% temem
exatamente a falta de liberdade – para encarar os riscos. Estes números tão próximos
indicam que para estes jovens liberdade e segurança são configuradas como categorias
estanques, não submetidas a experiências de vida que possibilitem reflexões profundas,
o que por sua vez não favorece uma percepção destas mesmas como categorias
aporísticas e em certa medida até complementares.
Se questões de violência e segurança ganham mais peso entre os assuntos que
preocupam em maior proporção os que sustentam mais alto nível de escolaridade –
assim afirmam 64% dos que atingiram o ensino superior contra 32% dos que só
atingiram o ensino fundamental - , é curioso notar que entre os mais escolarizados, as

63
- PEA: população economicamente ativa.

68
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drogas estão em terceiro lugar como motivo de preocupação (24%). Esse não
relacionamento direto das drogas com violência e segurança64, talvez se dê em função
de que os jovens mais escolarizados possuem informações que permitem reflexões
mais críticas que perspectivem o consumo de drogas como uma questão muito mais de
saúde pública do que como caso de polícia. Entretanto, essa porção da juventude mais
reflexiva por ainda não tem garantida a autonomia em relação aos vínculos familiares:

“a juventude acaba quando chega a maturidade e se assumem


responsabilidades (citado por 32%), quando se constitui família, se casa e
tem filhos (citado por mais 31%)”. (ABRAMO: 2008, 59). “o fim da
juventude não implica independência financeira dos pais: este fator aparece
somente para 15% dos entrevistados.” (ABRAMO: 2008, 60).

Assim, pode até parecer que a responsabilidade dos jovens não combina com
autonomia financeira, mas esse é um ponto de vista problemático, pois na cultura de
consumo a liberdade para gastar, mesmo que seja dinheiro herdado, não é sinônimo de
hedonismo puro, ela carece de responsabilidade. O que a pesquisa Perfil da juventude
brasileira não esclarece é a qual tipo de responsabilidade esse item específico se refere.
A responsabilidade para consigo mesmo ou responsabilidade para com o outro? Se um
jovem se casa e continua sustentado pelos pais, sua responsabilidade se dirige ao seu
cônjuge e filhos ou a seus pais? É preciso levar em conta que a “moratória da
juventude”65 talvez não seja mais um adiamento da entrada dos jovens na realidade
adulta, mas um rito de iniciação em relação a esta. Num momento histórico onde não há
trabalho para todos, uma eventual entrada nesse mercado não anularia tal moratória:

“A entrada no mercado de trabalho não aparece, para a grande maioria dos


jovens, como corrosiva desta ‘moratória’; o trabalho não aparece como
elemento negador desta experiência, mas ao contrário, para muitos deles,
como constitutivo deste conjunto” (ABRAMO: 2008, 68).

Dito isto fica mais fácil interpretar que o tráfico como mercado de trabalho “aberto”
tem grande potencial para atrair uma porção significativa de jovens que estão longe da
maturidade, e que às vezes morrem sem ter tido muitas chances de atingi-la. Como a
dinâmica cultural que envolve juventude e responsabilidade é um fenômeno recente,
64
- o que não contradiz o dado anterior no qual, as drogas são colocadas como uma temática que precisa
ser discutida.
65
- a moratória da juventude é uma categoria recorrente no circuito pedagógico e significa a suspensão
das responsabilidades do jovem até que ele se torne adulto.

69
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não se deve esperar que os jovens sustentem reflexões muito profundas sobre o
processo, até porque ainda o estão vivenciando. É passível de percepção que uma
tendência em configuração entre os jovens é de que a responsabilidade não deve ser
perspectivada como uma categoria com valor necessariamente conflitante com os
valores que caracterizam a juventude, principalmente no caso do Nordeste do Brasil,
onde a responsabilidade pelo sustento econômico chega mais cedo. Nesta região do país
circulam os mais baixos valores de remuneração dos jovens brasileiros, com 94%
faturando até meio salário mínimo (Lassance: 2008,76). Nesse recorte:

“tendo em vista a crise da sociedade assalariada e as transformações do


mundo do trabalho, tornando o desemprego uma categoria de natureza
estrutural e permanente para grandes contingentes populacionais, a
autonomia do adulto via independência financeira pode não se realizar.”
(SPOSITO: 2008, 89).

Em meio a esse cenário de poucas opções de trabalho a configuração da identidade


juvenil que já não pode ser centrada nem na família nem na escola carece de uma outra
instância num certo sentido menos institucionalizada para servir como referência:

“o espaço deixado por essas formas tradicionais - escola e família - passa


‘a ser ocupado por um maior desdobramento da subjetividade juvenil’ e é
‘nessa desinstitucionalização da condição juvenil que têm surgido as
possibilidades de viver a etapa da juventude de uma forma distinta da que
foi experimentada por gerações anteriores’.” (SPOSITO: 2008, 91).

É possível interpretar que a subjetivação sugere outra forma de institucionalização


que não as tradicionais, mas que nem por isso deixa de ser intitucionalizável. Para
estruturar a subjetividade, a confiança que os jovens depositaram em seus familiares é
projetada em outros especialistas, os professores, não no sentido de que sejam os
detentores do conhecimento, mas como agentes que possam ajudar a juventude a
interpretar tal conhecimento em maior acordo com as demandas glocais: dos jovens que
só cursaram até o ensino fundamental, 88% depositam confiança nos professores; dos
que chegaram até o ensino médio, 92% confiam; e dos que chegaram ao ensino
superior, 95% dizem confiar (Sposito:2008,114). Se Derrida já indicava a
descentralização da relação professor/aluno nas configurações universitárias, isto não
quer dizer que não haja uma ressignificação positiva dessa relação. Pelo contrário, esta
relação deve passar de uma perspectiva meramente intelectual para se configurar como
uma perspectiva relacional afetiva. De acordo com Sposito: “especialistas acreditam que

70
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os alunos são movidos por afetos ao estabelecerem índices tão positivos de apreciação
de seus professores”, (2008,115) 66.
Como o espectro afetivo da juventude não se dirige exclusivamente para trocas com
professores e colegas, há outros campos passíveis de exploração, principalmente
levando em conta que as atuais políticas de vida abarcam campos que até a década de
1960 eram considerados inferiores por não estarem conectadas diretamente com
atividades de produção, mas sim com atividades de fins de semana, como pensam
Brenner, Dayrell & Carrano:

“As denominadas atividades de pura sociabilidade podem ser definidas


como geradoras de tensões emocionais agradáveis e de formas
descomprometidas de integração social (Elias e Dunning, 1992). Essas
formas descomprometidas possuem, entretanto, uma grande efetividade
social para o estabelecimento de valores, conhecimentos e identidades.” -
(BRENNER, DAYRELL & CARRANO:2008,177)

As “atividades de pura sociabilidade” acima apontadas favorecem um


reencantamento mimético das atividades de produção, assim caracterizando um
descompromisso compromissado e abrindo portas para o descontrole controlado. Em
outras palavras, o happy hour e o fim de semana passam a fazer parte das configurações
produtivas, como alguns de seus momentos mais significativos, e não como sua
negação.

“A autonomia dos sujeitos sociais nos tempos e espaços de lazer encontra


sua relatividade no modo como esses se inserem na atmosfera produtiva,
estabelecem suas relações culturais e também na maneira como
experimentam a liberdade de ação política em determinado contexto social
comunitário” (BRENNER, DAYRELL & CARRANO: 2008,177).

A relatividade em questão remete a responsabilidade não necessariamente com a


produção de trabalho, mas com a produção de ações políticas sintonizadas com as
comunidades as quais os jovens integram. Essa “liberdade de ação política” é um setting
que não exclui o lazer e o consumo de drogas: se no Brasil, o consumo per capita de
bebidas alcoólicas entre 1961 e 2000 aumentou 154,8% (Carlini-Marlatt: 2008, 306), é
bom não esquecer que boa parte desses consumidores é jovem. E se no âmbito nacional
o consumo de álcool é o fator predominante quanto a riscos de acidentes de trânsito e

66
- a matéria de jornal Docentes usuários de drogas são mais flexíveis com aluno (citada na pg.89) é
uma exemplar distorção reflexiva da questão.

71
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violência – facilitando a ocorrência de deficiências físicas, doenças e mortes - é


equivocado estigmatizar os usuários compulsivos de álcool por tal situação:

“esses problemas não são devidos principalmente aos dependentes do


álcool, pequena proporção do total de pessoas que consomem álcool, mas
pela grande fatia de jovens e adultos que, sob efeito do álcool, expõem-se a
uma variada gama de situações arriscadas.” (CARLINI-
MARLATT:2008,306).

Os jovens usuários recreativos de álcool - por exemplo, aqueles que bebem em


excesso nos fins de semana - se não estabelecerem controles informais sobre seus
consumos correm o risco de não saberem distinguir entre o hedonismo e uma moratória
sem limites de contenção, podendo passar à categoria de usuários problemáticos,
diferentemente dos usuários considerados “dependentes”, que por conviverem
cotidianamente com os riscos acabam aprendendo a administrá-los. Uma reflexão
analógica simplista poderia resultar na seguinte projeção: se os usuários recreativos de
álcool podem ser problemáticos, os usuários vistos como “dependentes” de drogas
ilícitas também o podem e assim deve ser. Com essa reflexão por aproximação, os
usuários recreativos de drogas ilícitas saem mais uma vez prejudicados, pois entre estes,
os usuários problemáticos - aqueles que estão diretamente envolvidos com descontroles
e danos em torno do consumo – são minoria absoluta, estando em torno de 10%67. O
problema é que na prática representacional, esta minoria empresta sua fama para os
outros 90% de usuários recreativos não necessariamente problemáticos, favorecendo-
lhes algum grau de estigmatização. Resumindo; os usuários recreativos de álcool podem
ser um problema representacional para os usuários considerados “dependentes” por
terem menos contato com a necessidade frequente de exercer mecanismos de controle.
Já no caso dos usuários de drogas ilícitas, os usuários taxados como “dependentes” é
que são um problema de ordem representacional para os usuários recreativos.
Responsável pela análise da relação entre drogas e jovens no projeto de pesquisa do
Instituto Cidadania, Carlini-Marlatt (2008, 310) não só afirma que o consumo de álcool
e tabaco de 1970 pra cá aumentou como indica que o consumo de drogas ilícitas no
país também cresceu. Ela corrobora essa observação por intermédio da pesquisa
efetuada pelo CEBRID (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas) - o 1°

67
- e usuário descontrolado não deve ser confundido com usuário de drogas pesadas, pois como aponta
Grund (1993) a maioria destes últimos tende a desenvolver estruturas de vida nas quais o controle é uma
constante. O usuário descontrolado pode fazer um uso sem controle de qualquer droga, leve ou pesada.

72
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levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo


envolvendo as 107 maiores cidades do país 2001 – que aponta que entre os anos de
1987 e 1997, houve um aumento de uso na vida de maconha - de 2,8% para 7,6% - e o
de cocaína - de 0,5% para 2%. Em sentido absoluto estes números impressionam, mas
num sentido relativo, especificamente no que diz respeito a uma comparação com o
aumento do consumo de drogas lícitas como o álcool68, a problemática epidemiológica
das drogas ilícitas e os danos relacionados proporcionam um impacto minoritário sobre
a juventude brasileira.
Entretanto, a pesquisadora em saúde pública conclui que, ao observarmos a
reflexividade cotidianamente veiculada pela maior parte dos órgãos midiáticos de
grande porte, é passível de percepção que “Elas (as drogas) ocupam, um lugar de
destaque no imaginário de nossa população, provocando ondas de pânico” (Carlini-
Marlatt:2008,310), talvez até um pânico moral69 (Cohen:1972) proporcional às
estigmatizações recorrentes.
Um questionamento pertinente levantado por Carlini-Marlatt é no sentido de traçar
um perfil legítimo dos usuários de drogas ilícitas que não se restrinja à idade, gênero e
etnia. Dados a respeito são construídos secundariamente, aparecendo em pesquisas da
área educacional que giram em torno de alunos com baixo rendimento e com problemas
de família. Por esses alunos geralmente serem apontados como os mais propensos ao
consumo de drogas, tende-se a interpretar esse consumo como sendo fruto da escolha e
não da falta de escolha. “Nesses casos, o uso de drogas ilícitas parece ser menos
resultado da oportunidade de usá-las do que da falta de oportunidade em outros
domínios da vida social e afetiva” (Carlini-Marlatt:2008, 314).
Ao fim e ao cabo, a pesquisadora indica que, se questões de segurança pautam o
discurso cultural da juventude dos dias de hoje, não é na cultura do ensino do nível
68
- “52% das vítimas de homicídio, 64% das de afogamento fatais e 51% dos vitimizados fatalmente em
acidentes de trânsito apresentaram álcool na corrente sanguínea em níveis mais elevados do permitido
para dirigir veículos” (DUARTE e CARLINI-COTRIM, 2000)”... “Estudos feitos em prontos-socorros de
Brasília, Curitiba, Recife, Salvador (NERY FILHO et alii, 1997), São Paulo (GAZAL-CARVALHO et
alii, 2002), e Campinas (MANTOVAN et alii, 1993), por diferentes autores e instituições, também
encontram presença de álcool no sangue de vítimas em porcentagens que variam de 29% a 61%).”
(CARLINI-MARLATT:2008, 306/307).
69
- sobre o pânico moral: “Sociedades parecem ser sujeitas, agora e sempre, a períodos de pânico
moral. A condição, episódio, pessoa ou grupo emerge para se tornar definido como uma ameaça aos
valores e interesses sociais; sua natureza é apresentada de uma forma estilizada e estereotipada pela mídia
de massa [...] Especialistas credenciados pela sociedade anunciam seus diagnósticos e soluções; formas
de confrontamento são envolvidas ou (mais comum) são utilizados para, a condição então desaparecer,
submergir ou deteriorar e então se tornar mais visível”. (COHEN:1972). O pânico moral é assim uma
arma eficiente para efetuar controles sociais.

73
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médio, mas na cultura universitária onde vai ser encontrado o maior número de jovens
que pensam a descriminalização da maconha como uma questão de segurança e não
apenas questão de liberdade.

“Em relação à descriminalização da maconha, [...] os jovens se revelam


ainda mais conservadores do que nos outros temas, com somente 17% de
concordância (o máximo de apoio a essa bandeira foi encontrado entre os
jovens com instrução universitária, 28%)”. (CARLINI-MARLATT:2008,
315)

E não apenas Carlini-Marat, pois a pesquisa realizada por Venturi e Bokany também
indica que estudantes do nível médio seguem esta direção: “quatro em cada cinco são
favoráveis a exames antidoping nas escolas para detectar o uso de drogas [...] a maioria
é contra [...] o consumo da maconha (81%) - droga que teria sido experimentada por
apenas 10%”, (2008, 352).
Se a maior parte desses jovens se mostra contrária quanto à descriminalização da
maconha, talvez não se deva cogitar que estes jovens sejam efetivamente mais
conservadores - com a maior disponibilidade de informações que há hoje sobre o
assunto - que seus pais e irmãos mais velhos, pois nem toda geração 1970 foi tão
libertária quanto a representação dominante pode fazer crer:

“foi a existência efetiva dessas vanguardas (minoritárias por definição) que


fez com que sua atitude, no plano da leitura dos fatos, fosse generalizada
como a de toda uma geração e – mais importante, porque no plano
propriamente dos fatos – fez com que os valores que propagavam fossem
gradual e parcialmente, modificando o horizonte moral dominante, a ponto
de permitir o arrefecimento do conflito intergeracional, tal como hoje se
observa.” (VENTURI & BOKANY:2008,353/4)

A representação hoje dominante dessa juventude “setentista” é a representação


configurada em torno de uma elite específica que deve ter correspondido a uma
porcentagem inferior aos 17% de jovens atualmente a favor da descriminalização da
maconha e, nesse sentido, tais 17% são exemplares de uma outra elite, na medida em
que não são rotulados de revolucionários ou guerrilheiros, são apenas jovens que se
organizam em tribos70 para levar adiante o processo de construção de suas identidades.
Além disso, Venturi e Bokany percebem que ser parte de uma minoria a favor da
descriminalização da maconha não quer dizer que a maioria os veja da forma como

70
- de acordo com Maffesoli: “O tribalismo lembra, empiricamente, a importância do sentimento de
pertencimento, a um lugar, a um grupo, como fundamento essencial de toda vida social”. (2006,11).

74
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eram vistos os antiproibicionistas de gerações anteriores: “77% acham que o usuário de


drogas deve receber tratamento médico, ante apenas 13% favoráveis à manutenção da
política vigente (8% são favoráveis a ambas medidas, tratamento médico e prisão)”
(Venturi e Bokany:2008,365). Para estes jovens, aos poucos, o risco do consumo de
maconha vai deixando de ser refletido como um caso de prisão para ser representado
como um caso de saúde.
Assim, a pesquisa perfil da juventude brasileira que teve os seus dados analisados
por diversos pesquisadores que focaram diferentes dimensões e campos da questão,
apresenta aspectos diversos das disposições configuracionais de uma mostra
representativa dos jovens brasileiros. Ao interpretar a análise destes dados um primeiro
ponto que pode ser constatado é que a juventude nacional está em sintonia com as
juventudes de outros paises no sentido de que esta juventude é mais do que uma
palavra, é uma enciclopédia viva condutora de sentimentos, inquietações e expectativas
que não devem ser processualmente reduzidos a padrões de comportamento
normatizado e normalizado, muito menos colocada na condição de ser apenas um
projeto de adulto. Além disso, os jovens que participaram da pesquisa configuram uma
realidade histórica com características próprias e intransferíveis, muito mais do que
formando um mero mercado consumidor, embora num sentido pragmático formem o
mercado consumidor etário com maior potencial de demanda. Estes são sujeitos de uma
cultura quente e processual ao tempo em que também são sujeitados por ela, sendo
membros de uma cultura onde é possível consumir e ser consumido, sem desculpa e
sem culpa.
Agora que os objetivos do projeto e o quadro teórico geral já foram delineados71, que
as representações do proibicionismo, do desvio social e da estigmatização quanto ao uso
de drogas foram explicitadas como mecanismos de controle social característicos da
cultura de produção, e que as categorias universitário e juventude foram postas em foco
observacional, se faz preciso configurar o consumo de drogas na contemporaneidade,
suas representações em meio às comunidades midiáticas e acadêmicas.

71
- algumas definições teóricas ainda serão feitas no correr do texto, mas antes de entrar no próximo
capítulo é viável esclarecer que reflexividade (Giddens:2002) não é igual a reflexo da realidade, apenas
indica que a circulação de informações gera reflexões.

75
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II – O cenário

2.1 - Luzes, representações, ação!

Entre as várias polêmicas suscitadas pelo filme Tropa de elite72, uma ganha
magnitude em função do objetivo desta pesquisa; aquela que se estabelece em torno da
representação dos estudantes universitários consumidores de drogas como co-
responsáveis pelo tráfico. As tensas controvérsias entre ser esta uma representação
estereotipada ou realista não se restringiram às discussões em corredores de cinema e
mesas de bar. Este debate inicialmente informal, reflexivamente ganhou contornos
acadêmicos que foram propagados por intermédio de uma matéria em jornal de grande
circulação: Universidade reage a seu papel em filme (Folha de São Paulo, 28/10/07), na
qual, pesquisadores, professores e estudantes entrevistados durante o 31° encontro da
ANPOCS (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais)
defenderam seus pontos de vista. Nas palavras da antropóloga e professora da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Alba Zaluar:

"O filme apresenta preconceitos que os policiais têm e veiculam


constantemente acerca das ONGs, dos estudantes e, por extensão, dos
intelectuais"[...] "É óbvio que não são os estudantes usuários de drogas que
são responsáveis pela violência. Ela é extremamente complexa, tem várias
fontes, inclusive a facilidade com que as armas chegam aos traficantes, que
é uma coisa que tem que ser esclarecida." (FOLHA DE SÃO PAULO,
28/10/07).

Apesar deste “esclarecimento” em veículo midiático73 proferido por uma especialista


que estuda o assunto há mais de duas décadas, a problemática referencial é de que o
consumo de drogas tem sua representação social geralmente configurada em meio à
violência e à exclusão. Assim sendo, as conseqüências da polêmica acima citada
atingem dois alvos interpenetrados: os estudantes e os jovens socialmente incluídos.
Num primeiro momento, os estudantes universitários projetados à berlinda pelo filme,
passaram a ganhar cada vez mais as páginas policiais dos noticiários:

72
- até o término de 2007, cerca 2,5 milhões assistiram o filme no cinema, enquanto 11,5 milhões de
espectadores assistiram em DVD a cópia pirata, sendo a película cinematográfica nacional de maior
audiência do ano (Jornal A Tarde, 11/01/08). O filme narra uma operação de “limpeza” realizada pelo
Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) às vésperas de uma visita do Papa João Paulo II ao RJ.
Durante esta operação, um dos capitães da corporação entra em crise, dividido entre o nascimento de seu
filho e ter que continuar executando traficantes para manter o controle social.
73
- lembrando que um jornal impresso, mesmo sendo o mais respeitado, tem potencial para atingir uma
parcela reduzida dos milhões de espectadores do filme em questão.

76
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Universitário suspeito de traficar ecstasy é preso (FSP,05/09/07)


Polícia disse acreditar se tratar de um dos maiores traficantes da droga em
SP

Rapaz de 21 anos liderava um grupo que vendia 20 mil comprimidos por


mês no Estado, de acordo com informações da polícia. [...] Em festas rave e
casas noturnas no Estado, locais onde o consumo da droga costuma ser
maior, policiais disfarçados se aproximaram de membros da suposta
quadrilha e obtiveram informações sobre os métodos dos seus integrantes.
O preço da droga variava entre R$ 15 e R$ 50 por comprimido. O delegado
responsável pela investigação, disse que o grupo comercializava a maior
parte da droga com outros traficantes. Mas, segundo a investigação, também
eram feitas vendas no varejo em raves e boates e pela internet. A maior
parte do tráfico se concentrava no interior de São Paulo. Um irmão do
universitário atua na Bahia trazendo a droga da Holanda e a distribuindo
para Salvador, São Paulo e Distrito Federal.

Droga Apreendida com universitário valeria R$ 18 milhões (Redação Terra,


20/12/07)

Rio de Janeiro - A Secretaria de Segurança pública do RJ informou na


tarde desta quinta-feira que os 100 Kg de pasta de cocaína apreendidos com
um universitário em Itaboraí (RJ), na noite de ontem, foram avaliados em
R$ 18 milhões. Segundo peritos do Instituto de Criminalística Carlos Éboli,
trata-se de droga pura que, misturada com outras substâncias, produziria até
600 Kg.

Em segundo lugar, e por extensão, os jovens usuários e/ou traficantes de drogas das
classes média e alta - entre os quais se encontram vários universitários - também
passaram a receber mais atenção tanto policial quanto midiática, principalmente após a
ocorrência de uma morte por overdose74 em uma festa rave.

Jovens de classe média são presos suspeitos de tráfico (G1 RJ, 08/01/08)
Acusados foram presos em Búzios, Jacarepaguá e no centro do Rio.
Segundo a polícia, eles vendiam drogas pela internet, por meio de um site
de relacionamentos e um programa de mensagens instantâneas [...] os
policiais investigavam a troca de ecstasy no Morro Menino de Deus, em S.
Gonçalo, por equipamentos eletrônicos roubados, como computadores,
câmeras digitais e celulares.

Com esses objetos de atenção pública na pauta do dia, foi quebrado um dos últimos
redutos onde o consumo de drogas parecia ser “mais seguro” por estar supostamente

74
- Jovem morre intoxicado após festa rave em Itaboraí (O Globo online, 28/10/07)
“Um jovem morreu e 18 foram internados depois de uma festa rave em Itaboraí. O rapaz que seria
menor de idade morreu vítima de intoxicação logo após dar entrada no hospital. Com ele, a Secretaria
Municipal de Saúde só encontrou um documento, uma carteira de estudante falsificada. Dos 18 jovens
atendidos no hospital, 16 tinham sintomas do abuso de álcool e drogas”.

77
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afastado da violência do tráfico: as comunidades de jovens incluídos em configurações


socioeconomicamente estabelecidas. A badalada Festa em quadrinhos, evento que há 14
anos vinha sendo um “point75” no verão baiano para centenas de curtidores da cena
eletrônica e afins – boa parte deles sendo estudantes universitários -, na edição 2008
(12/01/08, Praia do Forte) recebeu apenas 230 participantes, quando o esperado estava
em torno de 1000 pessoas. O motivo alegado por um dos organizadores foi exatamente
a insegurança que “as tribos festeiras” passaram a vivenciar após o incidente de Itaboraí
e da atenção policial e midiática redobrada para eventos desse porte. O risco se tornou
iminente:

PM-MG acha droga em ônibus e prende 43 passageiros (UOL –


28/12/07)
Cerca de 330 comprimidos de ecstasy e 330 cartelas de micropontos de
LSD, além de 150 gramas de cocaína e 600 gramas de haxixe, foram
apreendidos hoje à noite pela Polícia Militar mineira dentro de um ônibus
de turismo fretado para transportar estudantes e professores universitários
de Belo Horizonte a uma festa rave que será realizada em cidade localizada
no Estado da Bahia. Os quarenta e três passageiros foram presos e,
conforme a Polícia Militar, a maioria pertencente à classe média alta da
capital mineira.

No meio acadêmico vem sendo notório e crescente o interesse em observar mais


atentamente a questão76, não apenas por ter alguns de seus membros envolvidos na
polêmica, mas principalmente por ser esta uma questão que demanda muito mais do que
a perspectiva policial pode oferecer na busca por soluções. O IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística), realizou em 2007 a pesquisa; O estado da juventude:
drogas, prisões e acidentes, pesquisa que indica que 85% dos consumidores de drogas
no Brasil que assumem a condição77, são brancos, dos quais 62% estão na classe A;
60% deles têm de oito a onze anos de estudo - quando a média de estudo no Brasil é de
cinco anos. 35,82% desses jovens têm entre 10 e 19 anos – configurando 16,53% da
população brasileira nessa faixa. O percentual sobe para 50,74% entre 20 e 29 anos, o
75
- point é um lugar que está na moda.
76
- e esta questão não gera reflexividade apenas no meio universitário, pois o filme Meu nome não é
Johnny - que conta a história de um jovem da classe média carioca que se tornou um grande usuário-
traficante de cocaína - em dez semanas de exibição levou um público de 2 milhões de pessoas às salas de
cinema. (FSP: 12/03/08).
77
- é possível questionar a metodologia empregada na pesquisa, pois uma pessoa das camadas sociais
mais populares pode ter mais receio de se colocar como usuário diante de um pesquisador sobre o qual
não possua maiores referências e assim correr o risco de sofrer represálias, do que uma pessoa das
camadas sociais mais altas. Ao trazer tal pesquisa à discussão, o ponto central sobre o qual se faz
significativo chamar a atenção é especificamente a existência da representação propiciada pela pesquisa e
não sua excelência enquanto projeto.

78
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que corresponde a 23,11% da população nacional. 49% desses jovens têm cartão de
crédito, num universo de apenas 17% da população que conta com essa opção de
moeda. A análise destes dados indica que a representação social estabelecida ligando
drogas à exclusão e violência talvez não seja tão precisa78.
Reforçando esta última perspectiva, uma pesquisa79 realizada pela FMUSP
(Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) indica que alunos com renda
familiar mais alta - acima de 40 salários mínimos - e que não sustentam credos
religiosos, são os mais propensos ao consumo de substâncias psicoativas. Se por um
lado, entre os estudantes oriundos de famílias mais abastadas o consumo de álcool foi
de 92,2% e de drogas ilícitas foi de 39,2%, por outro lado, entre os oriundos de famílias
com renda mensal inferior a 10 salários mínimos o consumo de álcool foi de 75,2% e de
ilícitos de 16,7. É preciso ter cuidados para que uma leitura referenciada no poder
aquisitivo para analisar exclusão e consumo de drogas, não indique apenas que um
grupo possui mais poder aquisitivo que o outro para o consumo - consumo não só de
drogas, mas inclusive de educação -, afinal, a polarização exclusão/inclusão não se
reduz apenas ao aspecto econômico, na medida em que o capital cultural na
contemporaneidade é uma moeda corrente fortíssima. Nesse sentido, a presente pesquisa
buscou mais indicações passíveis de interpretações em configurações culturais ligadas
ao consumo de drogas que não se reduzissem ao recorte econômico – o que não quer
dizer que este não tenha sido considerado.80
Diversificados eventos acadêmicos - no que tange às perspectivas teóricas e
metodológicas - com foco no consumo de drogas se sucederam no país em 2007: nos
dias 4 e 5 de maio houve o Seminário “Maconha na Roda” na Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da UFBa. Na ocasião, profissionais de direito, história, psicologia,
sociologia e antropologia além de um representante da comunidade Rastafari,
abordaram várias perspectivas da problemática em meio às perguntas de uma audiência
bastante heterogênea. Também seguindo um modelo transdisciplinar com a participação
de advogados, um delegado de polícia e um estudante representante de um grupo de
Estudos sobre Plantas Cannabaceaea, foi realizado um debate sobre drogas e legislação
na Faculdade de Direito da mesma UFBa em 29/08. No 50° Congresso da UNE, de 04 a

78
- mais adiante quando for analisada a pesquisa Tráfico de Drogas e Constituição no Brasil será
apresentado o outro lado desta questão.
79
- pesquisa na qual foram aplicados 926 questionários aos estudantes de Ciências Biológicas no período
2000/01, (FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, 27/04/06).
80
- até porque o capital cultural não é independente do capital econômico, apenas não se resume a este.

79
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08 de julho em Brasília, aconteceu pela primeira vez na história desta instituição um


debate em torno da descriminalização. Ampliando o espectro de pesquisas sobre a
problemática, nos dias 4 e 5 de outubro a SENAD (Secretaria Nacional Antidrogas)81
juntamente com o IDT (Instituto de Drogas e Toxicodependência de Portugal)
promoveu em Brasília o I Seminário Internacional da Rede de Pesquisa sobre Drogas,
premiando e incentivando pesquisas acadêmicas tanto na área de Saúde quanto nas
Ciências Sociais. A partir de 2007 eventos desta natureza ganharam regularidade.
Um aspecto a se ressaltar em torno dessa superexposição pública de um até então
estigmatizado objeto de investigação, está no fio que une esses variados eventos. As
reflexões debatidas não partiram da premissa de que o consumo de drogas seja uma
questão de análise por um prisma intervencionista exclusivamente médico-policial,
mediado por um parecer jurídico inquestionável: de que o fenômeno drogas, muito mais
do que ser configurado e interpretado culturalmente deve ser uma cultura a se banir.
Esta perspectiva que é um resquício inequívoco da política pública norte-americana de
“Guerra às drogas”, vem se mostrando visivelmente ineficiente no enfrentamento da
questão82. Tentando superar este impasse, duas proposições hermenêuticas estão
ganhando voz: 1° - as percepções reflexivas feitas em torno de usuários de substâncias
psicoativas não indicam necessariamente o envolvimento direto destes com a violência
do tráfico, mas sim com outros valores culturais correspondentes às suas glocalidades
comunitárias, divergentes de valores dominantes em outras comunidades. 2° - tráfico e
uso de drogas não são privilégios da pobreza econômica e dos excluídos da educação
formal.

81
- secretaria que em 2008 mudou o nome para Secretaria Nacional Sobre Drogas, apesar de manter a
mesma sigla (SENAD). Não obstante essa mudança de nome em meio a manutenção da sigla ser algo
meio confuso, a secretaria já ostenta um nome que sugere uma menor estigmatização do objeto de
estudo.
82
- nos EUA, tal guerra fecundada pelo presidente Nixon no começo da década de 1970 e que teve a sua
emblematização no governo do presidente Ronald Reagan entre 1981 e 1989, é um desdobramento do
discurso proibicionista e configurou um período em que um quarto de todos os jovens negros, do gênero
masculino, estiveram ou na prisão ou em liberdade condicional, a maioria acusada de envolvimento não
violento com drogas, enquanto o consumo de drogas nacional continuou sendo o maior do planeta
(Shaffer, 1997). No Brasil, 14% da massa carcerária (170 mil pessoas), estão relacionados ao tráfico. E
destes 14%, estima-se que 90% sejam pequenos entregadores, usuários que traficam para ter o que
consumir, não para lucrar. (FSP, 04/08/08). Na Colômbia, o reforço econômico e militar norte-americano
para erradicação das plantações de coca - chamado inicialmente de Plano Colômbia, posteriormente de
Iniciativa Regional Andina e finalmente de Plano Patriota – rendeu controvérsias: Além das fumegações
nos campos que devastaram as mais variadas agriculturas, pauperizando agricultores, as comunidades
rurais foram forçadas a construir redes de informantes – gerando alcaguetes - para estabelecer os
controles sociais que favorecessem as corporações militares, sendo assim lançadas num estado paranóico
de falta de confiança e insegurança coletiva (Brasil de Fato, 2006 n° 158).

80
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Isto posto, um exemplo inusitado explicita a guinada paradigmática em curso. De


acordo com a agência de notícias Reuters (G1, 31/05/07), uma pesquisa pioneira
realizada na Itália pelo Conselho Nacional de Pesquisa constatou a concentração de
partículas de substâncias psicoativas – principalmente cocaína, maconha, haxixe e
nicotina - na atmosfera da cidade de Roma. A área com maior concentração de
partículas de maconha e cocaína não foi ao redor de casas noturnas ou zonas de
prostituição, mas sim nas cercanias da Università di Roma “La Sapienza”. Em torno da
repercussão da divulgação da pesquisa, não houve maiores contestações por parte dos
frequentadores da Universidade La Sapienza no sentido de que tal concentração fosse,
por exemplo, de maconha e cocaína utilizada legalmente em alguma pesquisa, logo, é
possível considerar hipoteticamente, que fossem drogas consumidas com finalidades
lúdicas, recreativas. O procedimento metodológico para detectar partículas - a
concentração de cocaína no inverno de 2007 foi de até 0,1 nanograma (1 bilionésimo de
grama) por metro cúbico - que novas tecnologias possibilitam83, poderia simplesmente
estar indicando uma situação casual, mas se tais dados forem postos em interface com
percepções configuradas em pesquisas com metodologia “convencional”84, podem
indicar uma tendência inequívoca; a de que o consumo de drogas também se dá entre as
culturas urbanas universitárias contemporâneas, não necessariamente ligadas à exclusão
ou violência85.
Por último, mas não menos importante para traçar um quadro significativo do
consumo de drogas na contemporaneidade, é relevante analisar uma pesquisa realizada
entre acadêmicos de renome internacional:

83
- procedimento similar ao utilizado para medir a poluição.
84
- como a pesquisa realizada com estudantes de quatro universidades pela Universidade Federal
Fluminense e financiada pelo CNPq (ver pgs. 83/84) em 2005, na qual o questionário foi a principal
ferramenta de investigação.
85
- a pesquisa do CNP também foi realizada nas cidades de Taranto no sul da Itália onde a concentração
de cocaína foi bem menor que em Roma e em Argel, capital da Argélia, onde a concentração não foi
constatada. Historicamente, Roma, onde a concentração foi maior, não é considerada como uma cidade
mais pobre e mais violenta do que Argel, o que não reforça a representação estabelecida que une
intrinsecamente drogas a violência e a exclusão. Pesquisa semelhante na Espanha obteve resultado
positivo registrando grande concentração de heroína, cocaína, maconha e ecstasy na zona universitária da
avenida Diagonal em Barcelona e no campus da Universidade Complutense em Madri. (El Pais,
14/05/09).

81
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Cientista usa drogas para "turbinar" desempenho – (FSP 11/04/08)

Uma enquete com 1.400 cientistas realizada na internet pela revista


britânica "Nature" revela que já está disseminado na comunidade acadêmica
o uso de drogas para melhorar o desempenho intelectual. Um em cada cinco
entrevistados disse já ter feito uso "instrumental" de remédios que
normalmente são usados para tratar problemas psiquiátricos. A droga mais
popular entre os cientistas, ao que parece, é a Ritalina, usada para tratar
crianças com TDAH (transtorno do déficit de atenção por hiperatividade).
Segundo entrevistados, ela melhora a capacidade de concentração para
estudos e pode valer a pena mesmo tendo efeitos colaterais. A enquete da
"Nature" sobre o assunto foi iniciada no começo do ano, motivada por um
artigo de pesquisadores da Universidade de Cambridge sobre aspectos
sociais e éticos desse novo fenômeno. A idéia do trabalho veio de um
editorial da própria "Nature", que defende a pesquisa de drogas com
propósito específico de melhorar desempenho acadêmico. A revista -
influente em praticamente todas as áreas da ciência - recebeu tantos
comentários sobre o trabalho que decidiu fazer uma sondagem própria. A
enquete divulgada ontem não tem valor de censo - o questionário era
voluntário -, mas revela o que parece ser um fenômeno emergente na maior
comunidade científica do mundo, a dos EUA (de onde vieram 70% das
respostas).

Se respeitáveis cientistas estão consumindo drogas para melhorar o desempenho


acadêmico, será que chegarão a receber o estigma de usuários de drogas? Esse
“consumo científico” tem representabilidade e respeitabilidade para fazer com que se
venha a refletir sobre a questão das drogas por um outro ponto de vista que não o da
estigmatização? Enquanto as respostas vão sendo construídas em meio a esse amplo
cenário de consumo entre grupos socioeconomicamente incluídos tanto na Europa
quanto no Brasil, chega a ser um paradoxo que algumas interpretações de estratégias
públicas de redução de riscos sociais para o consumo de drogas estejam sujeitas a
configurações de valores incontornavelmente pouco científicas –– interpretações de
difícil sustentação ante uma observação mais apurada. Um exemplo emblemático desta
situação é o caso da campanha: "Se você pretende consumir ecstasy, evite fazê-lo
sozinho, tome líquidos não-alcoólicos sem exagero, use roupas leves e descanse a cada
meia hora, quando dança”, elaborada em um projeto de pós-graduação da USP
(Universidade de São Paulo) e custeada pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo) que objetivava atingir os consumidores de ecstasy86. A
interpretação por parte de alguns setores da imprensa para esta campanha foi de que o
Projeto Baladaboa era uma apologia ao consumo de drogas, apologia operada com
dinheiro público:

86
- o projeto partiu de tese de doutorado em Psicologia que indicou que de 1140 usuários de ecstasy,
houve uma predominância de pessoas com até 25 anos; sendo que 54,3% possuíam nível superior
incompleto; 52,6% tinham emprego fixo e 65,4% provinham da classe A.

82
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“Site e programa são uma glamourização disfarçada, fingindo-se de


linguagem científica, do consumo de ecstasy. Nada mais é do que uma
variante da cultura da droga, agora financiada com dinheiro público. Na
home, vem uma advertência patética: ‘Um princípio básico do projeto
Baladaboa é a transmissão de informações comprovadas baseadas na
ciência e não em ideologias morais ou políticas.’ Só esse trecho deveria
levar a Fapesp a suspender seu vergonhoso patrocínio.”. (Veja.com –
17/06/07).

Em junho de 2007, ao tomar conhecimento dessa representação social diretamente


associada a seu nome, a FAPESP voltou atrás e cancelou a verba disponibilizada para o
projeto. Ao fim e ao cabo de episódios como este, seria por demais simplista acreditar
que um tema polêmico como redução de riscos87 para o consumo de drogas – ao invés
da erradicação da sua cultura88 - seria facilmente assimilado, mesmo entre pessoas de
ciência.
Se algumas comunidades midiáticas podem lançar “olhares” pouco reflexivos – ou
movidos por um modelo de reflexividade pautada em valores comprometidos com o
status quo - sobre pesquisas acadêmicas que visam a redução de riscos, elas também
podem lançar este mesmo modo de olhar sobre pesquisas acadêmicas que sustentem
olhares nitidamente proibicionistas sobre os universitários e o consumo de drogas:

RJTV, TV Globo – 28.07.2005


Drogas nas universidades
Foram quase dez anos usando maconha e cocaína. O que começou como
curiosidade, acabou em vício. Hoje, aos 28 anos, a mulher, que preferiu não
se identificar, lembra bem onde aconteceu o primeiro contato com as
drogas: "Na faculdade, as coisas são muito fáceis. Para você fazer parte da
turma, da patota, das festas, das chopadas, tudo é apresentado. Eu usei
maconha e cocaína. Cheguei a ver uma professora minha fumando
maconha, durante o dia, em um corredor da universidade."
A Universidade Federal Fluminense (UFF) fez uma pesquisa em quatro
instituições de ensino do Rio de Janeiro: duas públicas e duas privadas. O
estudo abordou seis tipos de drogas: tabaco, álcool, maconha, cocaína,
heroína e psicotrópicos, remédios que causam perturbações psíquicas. Dos
3,6 mil alunos e professores entrevistadas89, 26% afirmaram que usam

87
- algumas estratégias de redução de riscos são chamadas pelos seus praticantes de “redução de danos” e
essa linguagem nativa será respeitada. A nota seguinte segue esta terminologia nativa. Mais adiante esta
questão será abordada.
88
- aliás, a polarização guerra às drogas X redução de danos leva a um debate cujas dimensões últimas
estão no conflito configurado entre o modelo de políticas públicas de origem norte-americana no qual o
foco é o controle do mercado, ou o modelo europeu cujo foco central visa o bem-estar do usuário. Em
meio a este cenário, no dia 10/10/08, o Ministério da Saúde divulgou edital para financiar projetos
relacionados à redução de danos. O orçamento de R$1,4 milhão é destinado a Secretarias Estaduais e
Municipais de Saúde, universidades públicas, organizações da sociedade civil e não-governamentais sem
fins lucrativos que desenvolvam projetos com essa perspectiva.
89
- na notícia seguinte veiculada por outro jornal sobre a mesma pesquisa, os números divergem; o
Estado de São Paulo afirma que o universo pesquisado foi de 2.631 informantes.

83
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algum tipo de droga. Dos que fumam maconha, 40% consomem a droga no
campus universitário90. Dos que cheiram cocaína, o percentual sobe para
45%. Entre os usuários de heroína, 75% usam a droga na universidade.
Outro dado chama a atenção: entre os usuários, mais da metade disseram
que não pretende abandonar o hábito.

O Estado de São Paulo - 28/07/2005


Pesquisa: 26% dos estudantes dependem de droga
Uma pesquisa realizada em quatro universidades fluminenses, com 2.631
pessoas, mostrou que 26,56% dos entrevistados usam algum tipo de droga
habitualmente, ou seja, são dependentes. O estudo, financiado pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
foi realizado pelo professor da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Dalcy Fontanive, doutor em Psicologia.
A pesquisa abordou o uso de seis tipos de drogas, entre lícitas e ilícitas:
tabaco (9,88% de dependentes), álcool (3,65%), medicamentos
psicotrópicos (6,39%), maconha (5,58%), cocaína (0,91%) e heroína
(0,15%). Entre os entrevistados que disseram usar drogas, 59 são
professores.
A maconha é o entorpecente preferido dos universitários. Quando se
inclui o número dos que usam a erva "socialmente", o índice de
consumidores cresce para 40% dos entrevistados. Todos admitem já terem
fumado maconha nas instituições. Como ressalta Fontanive, há mais
dependentes de maconha do que de álcool.
Segundo o professor, isso acontece porque a maconha vicia com mais
rapidez e é, erroneamente, classificada como droga leve. A pesquisa mostra
ainda que o número de mulheres drogadas cresceu. O uso de entorpecentes
também não está restrito a uma ou outra classe social.
O pesquisador ressalta que o resultado não indica que a universidade se
tornou um antro de consumo de drogas, apenas reflete a sociedade. (grifos
meus).

Na matéria do telejornal da Rede Globo a Universidade não apenas é representada


como um campo propício ao consumo como também ganha destaque que mais de 50%
dos consumidores não pretendem abandonar o hábito. Uma leitura apressada desta
última afirmação poderia levar a concluir que se os consumidores não pretendem
abandonar o hábito é porque estão condenados ao “vício”. Contudo, uma leitura
configuracional poderia perceber que se mais de 50% dos consumidores acadêmicos
não pretendem abandonar o consumo, talvez seja porque eles tenham construído
controles informais que possibilitem conciliar os riscos sociais do consumo com a
produção acadêmica.
Já na matéria do jornal O Estado de São Paulo, é realizada uma interpretação do uso
habitual de drogas como “dependência”, o que pode gerar uma interpretação muito
próxima àquela gerada por “vício”. Seguindo esse mesmo raciocínio, o dado
significativo de que há mais mulheres assumindo publicamente o uso é traduzido como
90
- a matéria veiculada no jornal O Estado de São Paulo indica que 40% fazem uso social, não
especificando se no campus ou não.

84
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havendo um maior número de “mulheres drogadas”. Também é significativo que a


matéria registre a representação de 59 professores como usuários de drogas – pois os
consumos nas universidades não se limitam ao corpo discente – e principalmente, que o
consumo “não está restrito a uma ou outra classe social”. Num exercício hermenêutico,
aqui pode ser feita uma interpretação sobre a interpretação que o jornal fez sobre a
pesquisa: a de que o consumo de drogas se dá entre pessoas de ambos os gêneros, sem
que a distinção de classe seja vista como o determinante central do consumo que se dá
não necessariamente entre grupos marginalizados, mas entre participantes de
instituições acadêmicas. Com essa reconfiguração, estes dados podem ser interpretados
como a indicação de que o habitus social do consumo de drogas na cultura universitária
não pode ser mais representado como uma exceção às regras do processo civilizador,
principalmente sendo a universidade por excelência, um campo de formação cultural
civilizatório com status “superior”.
Também é bastante significativa a afirmação por parte do próprio coordenador da
pesquisa da UFF, de que esse consumo de drogas na academia “reflete a sociedade”.
Sim, reflete. O que ainda não se sabe exatamente é como a sociedade reflete sobre esse
consumo acadêmico, se é:

1 – abraçando uma perspectiva que desconfia de que o olhar proibicionista ao invés


de esclarecer, obscurece ainda mais a questão. Esta perspectiva é emblematicamente
manifesta por quem esteve presente no setting onde foi realizada a pesquisa da UFF, e
que relata qual era o clima psicológico fomentado pelos pesquisadores:

“olha, eu estudei na UFF em 96 e foi realizada uma pesquisa muito


parecida com esta, talvez seja a mesma ou realizada pelo mesmo professor.
Gostaria de comentar que os resultados deste tipo de pesquisa devem ser
vistos com cautela, pois os critérios de "escolha isenta e aleatória" de alunos
dos campi não foram respeitados. Os pesquisadores procuravam entrevistar
justamente os alunos considerados maconheiros e faziam perguntas
capciosas - tipo: "você experimentaria heroína?", "Quantos amigos seus
fumam maconha aqui?", dando a impressão de que se a resposta fosse
afirmativa quanto à possibilidade seria arrolada na pesquisa como fato
("declarou ter experimentado"), entendem? E como vocês podem ver nesta
notícia, há todo um discurso contra a cannabis”. M.A.

Esse depoimento deixa claro como a naturalização de representações proibicionistas


pode trazer reflexos que comprometem os “olhares” emitidos pelas instituições de
pesquisa – o que facilita a formulação de perguntas capciosas que direcionam as

85
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respostas - instituições que deveriam exatamente buscar superar tais naturalizações. Esta
naturalização de representações proibicionistas pode favorecer o entendimento de como
nessa pesquisa houve um baixíssimo número de “dependentes” de álcool (3,65%) se
comparado ao número de “dependentes” de medicamentos psicotrópicos (6,39%) e de
maconha (5,58%), resultado contrário aos encontrados na maioria das pesquisas na área.

2 – Uma outra abordagem para refletir sobre o consumo de drogas na cultura


universitária se encontra abraçando a perspectiva estabelecida enquanto proibicionista:

PUC-Rio vai fotografar quem fuma maconha no campus


(Globo.com - 09/07/09)

Medida será aplicada aos usuários que não forem alunos. Objetivo é
controlar entrada e saída de pessoas da instituição.

As pessoas que forem flagradas fumando maconha no campus da Pontifícia


Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC- Rio), na Gávea, na Zona
Sul do Rio, serão fotografadas pelos seguranças da universidade. A regra
valerá para todos que não forem alunos da instituição. Caso a pessoa não
queira se identificar, será fotografada pelos seguranças e terá sua foto
arquivada pela universidade. Segundo o vice-reitor de Assuntos
Comunitários da PUC-Rio, a medida visa proteger os estudantes da
universidade. “As pessoas que fumarem maconha no campus serão
abordadas pelos nossos seguranças. Se não for aluno, será fotografado e sua
entrada será controlada na universidade”, afirmou. A estudante L. P.
aprovou a nova medida, mas ressaltou que ela pode influenciar na liberdade
dos alunos.“A PUC está buscando melhorar sua imagem, e esse tipo de
repressão pode ser boa. Mas também corta a liberdade dos alunos, pois
agora seremos mais vigiados”, disse ela. O vice-reitor informou ainda que a
medida de repressão também é feita com os alunos flagrados com drogas.
"O aluno que for pego é chamado para conversar e recebe orientações. Se a
situação se repetir serão julgadas formas de punição", disse.

Alunos da USP de Ribeirão Preto invadem prédio contra veto a festa com
álcool - (Folha on line - 09/10/2009)

Alunos da USP de Ribeirão Preto (313 km de São Paulo) ocupam desde a


noite de quarta-feira (7) a sede da Coordenadoria do Campus da USP,
antiga prefeitura da unidade. Os estudantes protestam contra decisão do
Conselho Gestor, órgão máximo da universidade em Ribeirão, que reforçou
a proibição às festas com consumo de álcool dentro da universidade.
Segundo o coordenador do campus, a proibição, que vigora desde 2007, foi
reforçada por lei estadual aprovada em maio deste ano, que veta o álcool em
instituições de ensino. Os alunos argumentam que a decisão restringe as
festas programadas para arrecadar dinheiro, visando manter centros
acadêmicos, diretórios e atléticos. O diretor do DCE afirmou que a
manifestação dos estudantes não é pelo direito de consumir bebidas e
realizar festas, mas pela restrição às atividades acadêmicas impostas pela
nova norma. "Do jeito que está, toda a nossa atividade vai ter que passar por
autorização. Sessão de cinema, jogar bola no final de semana, tudo".

86
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Essas são duas situações nas quais as medidas em relação a uma problemática que
envolve o corpo discente foram tomadas sem a participação direta deste, colocando-o na
posição passiva do corpo que carece ser vigiado e controlado. Independentemente da
violência do tráfico no Rio de Janeiro ser das mais altas, a medida panóptica91 de
observar e fotografar acaba encarcerando o corpo discente na moratória da juventude,
estigmatizando a cultura universitária como incapaz de gerir seus consumos sem a
intervenção do sistema especialista estabelecido. Será que com controles proibitivos
sobre o consumo de álcool e olhos de Big Brother92 sobre os fumantes de maconha que
não possuem carteira de estudante – olha aqui mais vez uma a distinção universitária
determinando quem vai ou não ser catalogado como usuário de droga que ameaça a
ordem pública – a segurança dos frequentadores dos campi está assegurada?

3 – uma possibilidade de perspectiva alternativa se encontra abraçando aspectos


parciais das perspectivas proibicionista e antiproibicionista na busca pelo equilíbrio da
balança das relações de poder configuradas. Se as instituições universitárias de forma
geral parecem sempre representar a face ortodoxa dessa geração de reflexão,
curiosamente, nos EUA, mantenedores principais do war on drugs, alguns setores
acadêmicos mais heterodoxos93, propõem facilitar o consumo de algumas substâncias
psicoativas com o objetivo de reduzir os danos do próprio consumo:

Reitores pedem que idade para consumo de álcool nos EUA caia para 18
anos (FSP 22/08/08)

Uma lei do governo Ronald Reagan (1981-89) que proíbe o consumo de


bebidas alcoólicas por menores de 21 anos foi posta em xeque nos EUA,
onde mais de cem gestores de universidades e faculdades assinaram uma
carta pedindo ao Congresso que debata a redução do limite para 18 anos.

91
“o sistema panóptico [...] é destinado a se difundir no corpo social; tem por vocação tornar-se aí uma
função generalizada”, (FOUCAULT: 1986, 183). O sistema panóptico – quando poucos observam muitos
-representou o modo moderno de regulamentar o controle, fosse na prisão, na escola, no hospital, na
igreja como um superego virtual. O conhecimento dessa forma racionalizado se tornou um meio de
regulação e controle nas práticas – ou instituições, como diria Giddens.

92
- de acordo com Bauman (1999), agora é a vez do sistema sinóptico, quando muitos observam poucos.
Como medida de segurança os indivíduos nas sociedades contemporâneas estão configurando cada vez
mais frequentemente o habitus social de estar sob o olho do Big Brother, seja no trabalho ou no shopping.

93
- possivelmente Bourdieu chamaria estes acadêmicos de heréticos consagrados.

87
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Para os reitores, o relativo controle nos dormitórios das instituições não


impede os jovens de se embriagarem em outros lugares onde não estão sob
vigilância. "Foi desenvolvida uma cultura de bebedeira clandestina e
perigosa, que se dá frequentemente fora do campus", diz a carta assinada
por líderes de instituições como a Universidade de Massachusetts e a
Universidade Estadual de Ohio.
O reitor da Universidade de Maryland se engajou no debate, sob argumento
de que o abuso de álcool tem efeitos mais negativos que seu consumo
regular. "Praticamente todos os estupros [no campus] estão associados com
o abuso de álcool. Quase todos os ataques de qualquer tipo estão associados
à bebida. A questão do limite de idade não é apenas sobre beber e dirigir",
disse ele ao jornal "Washington Post", citando o fato que motivou a lei, em
1984. "É uma questão muito maior, e nós, reitores, conseguimos vê-la
amplamente."
"Assinei o documento porque incentivo a exploração de novas idéias e
novas abordagens sobre a melhor maneira de preparar jovens adultos para
tomar decisões responsáveis quanto ao álcool", disse a imprensa o diretor
do Westminster College.

Embora muitas mães de alunos tenham se queixado das reflexões desses reitores, é
possível perceber que por trás da elasticidade na ressignificação dos controles sociais
formais presente nesta surpreendente possibilidade de tolerância ao consumo, o
objetivo central é configurar uma maior “vigilância” sobre os consumidores dentro dos
campi. Eis um modelo politicamente correto de descontrole para controlar, favorecendo
que os universitários operem responsabilidades em relação aos seus consumos de
álcool. Adotando uma perspectiva oposta à adotada pela USP no caso Baladaboa, estes
reitores favorecem uma ressignificação para a problemática do consumo de álcool, ou
no mínimo uma amortização das representações estigmatizantes em torno deste. Nesse
sentido, esta estratégia de controle de riscos no ambiente universitário pode ter
consequências amplamente pragmáticas para a comunidade na medida em que as
demandas dos estudantes não foram reprimidas, foram respeitadas. Esses reitores
ousaram por não temeram se opor ao discurso proibicionista que inclusive injeta
dinheiro nas Universidades. Sobre essa relativa autonomia institucional o sociólogo
Fernando Henrique Cardoso traçou o seguinte comentário: “A grande virtude da
universidade americana é que ela tem auto-estima, não tem medo, fala com o dono do
poder e com o dono da empresa, sabe que não vai se vender nem ser cooptada. A nossa
não, a nossa fica isolada por medo. Do governo então ela tem horror.” (Ventura:2008
B,181).
Um último aspecto fundamental sobre o sistema especialista midiático que aqui
merece destaque é que há casos em que a mídia até procura ser “simpática” com a
problemática, mas a necessidade de produzir notícias espetaculares pode tomar o lugar

88
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da objetividade. Na matéria Docentes usuários de drogas são mais flexíveis com alunos
(Infociência, 2005, N°14) sobre a dissertação resultante da primeira parte desta
pesquisa, é sustentado que “Os professores universitários que usam drogas têm um
olhar muito mais sensibilizado com relação ao aluno. O fluxo do relacionamento entre
esses dois atores sociais torna-se mais leve quando o professor usa psicoativos”. Se
fosse claramente fruto da interpretação do jornalista, tal matéria seria até aceitável 94,
mas a citação acima é redigida entre aspas, o que significa que o pesquisador disse
exatamente isso, quando não foi isso o que aconteceu.
Estas interpretações que os órgãos midiáticos constroem sobre o olhar que a
academia projeta sobre o consumo de drogas, sobre a perspectiva do proibicionismo e
sobre a redução de riscos são tão passíveis de reflexividade quanto às próprias
pesquisas que interpretam. Seguindo esta linha interpretativa a questão aqui levantada
é: até que ponto as interpretações efetuadas pelos universitários sobre a problemática
são consideradas legítimas e trazidas à tona pelos órgãos de imprensa?

94
- o próprio autor da citada matéria teve dificuldade com a editoria do jornal que não quis colocá-la na
primeira página e até quis modificá-la. A resistência se deu em função de ser este um jornal universitário e
esta matéria poderia comprometer a representação pública da classe dos professores.

89
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2.2 - O campo representado

Também entre os próprios universitários usuários de drogas há interpretações


conflitantes em relação ao consumo e aos riscos acarretados, como pôde ser constatado
no trabalho de campo específico desta pesquisa. Uma estudante que atua como redutora
de danos relatou:

- Quando eu comecei a trabalhar com redução de danos a galera começou a me


esculhambar. Um dia cheguei no mirante pra fumar e tinha sete pessoas com ácido na
cabeça, aí alguém falou: “não venha com redução de danos pra cá não, porque a gente
quer ampliar efeitos, sai pra lá com redução de danos”... eu fui um pouco
ridicularizada com esse projeto no começo. Eles achavam ridículo como é que eu, uma
pessoa que usa psicoativos vem com esse discurso careta? (risos). “Como é que uma
pessoa que seis meses atrás tomava um ácido inteiro com a gente, agora recomenda
que a gente tome só metade?” Isso foi muito interessante porque me ajudou a pensar o
projeto (de redução de danos).

Em meados de 2007, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBa onde a


cena acima ocorreu – faculdade que vários frequentadores representam como a mais
permissiva quanto ao consumo de drogas na cidade de Salvador -, alguns estudantes
usuários de maconha já não restringiam seu consumo aos “mirantes”, gradativamente se
espalhando pelos espaços do campus - jardins, estacionamento e até o Diretório
Acadêmico -, aparentemente pouco preocupados em manter uma “área para fumantes”
mais reservada, assim causando polêmica. O que ampliou o impasse é que este foi um
movimento contrário às restrições cada vez mais impostas ao consumo de tabaco,
restrições estas com as quais muitos dos usuários de maconha concordam. Em função
dessa situação, muitos atritos ocorreram. Uma funcionária administrativa da unidade
chegou a ter uma altercação com um grupo de usuários que se reuniam para fumar bem
próximos às salas de aula, tentando, numa reação bastante pontuada pela emoção, tomar
o baseado das mãos de um dos estudantes, o que a levou a ser vista por muitos discentes
- usuários e não usuários - como uma pessoa autoritária. A mesma estudante redutora de
danos confirmou o fato:

90
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- Ela (a funcionária) chegou uma vez gritando com a galera que tava fumando e
algumas pessoas em reação diziam: “eu não tou só fumando, eu tou fazendo um ato
político, porque é um espaço que eu uso da minha forma”. Tentando mediar a situação,
uma professora não usuária interferiu dizendo: “eles vão fumar aonde, na rua? Na rua
não pode!”.

Sem sobrevalorizar o aspecto emocional deste episódio específico onde nem os


estudantes nem a funcionária conseguiram reduzir os danos sociais da problemática –
pelo contrário, até ‘incendiaram” o conflito - faz-se necessário observar que as atitudes
de pessoas e grupos são incontornavelmente marcadas pelo grau de controle ao qual
submetem suas emoções (Freud: 1974 B, Weber: 1982, Elias: 1990). Em uma academia
universitária que sustenta uma representação dominante ante a sociedade de ser um
espaço cultural onde se trabalha “exclusivamente” com processos racionais
intelectualizados, a racionalização das emoções enquanto cota de civilidade é cobrada
em proporções muito maiores.
Dito isto, é passível de observação que os estudantes usuários envolvidos na polêmica
acima cobrem essa racionalidade dos setores docentes e administrativos da academia -
mas nem tanto deles mesmos - ao defenderem a delimitação do espaço universitário
como um setting comunitário onde deve haver maior compreensão para com suas
demandas por parte da comunidade acadêmica, explicitado no “eu não tou só fumando,
tou fazendo um ato político”. Nesta situação, esta comunidade de usuários considera os
controles sociais estabelecidos pela comunidade acadêmica ortodoxa como obstáculos a
serem vencidos na construção de sua identidade, na formulação de suas representações
individuais e coletivas. Neste modelo de configuração95 o Nós-grupal desses outsiders
busca estabelecer seu espaço contestando valores dominantes, independentemente de
serem tais outsiders uma minoria – ou até por isso mesmo. Questionada sobre a
possibilidade de um projeto de redução de danos sociais na faculdade ser bem-
sucedido, a mesma estudante respondeu:

- Eu acho que só de sentar e discutir já é uma redução de danos, porque eu acredito


que a maior redução de danos é você tentar permitir que o outro pense sobre uma

95
- modelo de configuração que já havia sido apontado na primeira parte desta pesquisa, a dissertação de
mestrado: Consumir e ser consumido eis a questão, (VALENÇA: 2005) onde o foco recai sobre o
consumo de drogas por professores.

91
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prática que pode parecer simples mas é altamente complexa. A principal estratégia é a
circulação de informações.

Ao não levar em conta a “circulação de informações”96 muitas vezes contrárias aos


seus interesses, ramificações desta mesma comunidade de usuários correm o risco de
não estarem blindadas contra controles e sanções sociais correntes. No verão de 2007,
um grupo de graduandos da área de Humanidades partiu de Salvador em um ônibus
fretado para participar de um congresso no Rio de Janeiro. Nesta caravana havia muitos
usuários - maconha, tabaco, álcool e ácido lisérgico foram as drogas mais consumidas
na viagem. Alguns estudantes portavam alguma quantidade de maconha para
comercializar, como sustentação econômica para a viagem. Chegando ao congresso, no
clima festivo que se instaurou, um dos estudantes se empolgou tanto com sua
“imunidade” por estar numa caravana universitária que resolveu colocar uma placa
pendurada no pescoço, indicando que vendia a erva. Sua estratégia de marketing
funcionou tão rapidamente que acabou atraindo a atenção de muitos compradores e
também da polícia, que o deteve em flagrante. O resto do grupo voltou para Salvador e
ele continuou detido no Rio de Janeiro, para constrangimento e consternação de muitos
de seus colegas de viagem, que acharam “injusta” sua detenção. A questão que se
coloca diante destes dados é: se todos os envolvidos sabiam dos riscos, por que ao invés
de lamentar as consequências não procuraram evitá-las? Por que não buscaram reduzir
os riscos ao invés de lamentar a “injustiça” das sanções sociais aplicadas, sanções que,
de acordo com as leis vigentes, carteira de estudante alguma poderia evitar?
Quando se coloca em pauta estratégias de redução de riscos, há uma problematização
central que precisa ser dimensionada, ou seja, essa redução de riscos beneficia
especificamente que setores da sociedade? Nesse sentido é possível afirmar que a
tentativa de orientar uma redução de riscos entre estudantes com valores comuns ao
grupo citado acima, de forma geral é vista como “caretice”, como algo que beneficia
muito mais os não usuários. Desse modo, essa comunidade de usuários parece se
contentar em buscar prioritariamente a “ampliação de efeitos”, até que uma situação
traumática como a narrada no parágrafo anterior venha a acontecer. Em outras palavras,
a redução de riscos só passou a ter sentido para eles depois que os danos aconteceram.

96
- informações que chegam não apenas nos bate-papos informais, mas por intermédio da mídia e dos
próprios estudos acadêmicos.

92
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Como esta pesquisa fala em redução de riscos, alguns estudantes perguntam a quem
tal pesquisa beneficia, observando-a com desconfiança, alegando que os dados
poderiam ser usados contra seus interesses. Desta forma, a pergunta que aqui pode e
deve ser formulada é: que setores da sociedade se beneficiam com esta pesquisa?
Dois dias antes de escrever este parágrafo, num show musical encontrei dois
estudantes que sabiam da pesquisa, sendo que um deles havia recusado participar por
temer que os dados pudessem ser manipulados de modo que o comprometesse. No
exato momento em que nossos olhares se cruzaram, ambos desviaram-se de mim como
se eu representasse um olhar a ser evitado. Já que antes desta pesquisa se tornar pública,
estes mesmos estudantes me olhavam diferentemente, é possível considerar essa como
uma atitude de rejeição ao projeto, ou pelo menos ao modo como estava sendo
executado. Ao contrário do que sustentei como pressuposto metodológico, com este
grupo específico de universitários não foi possível estabelecer uma configuração de
interlocutores em rede construída com a técnica da bola de neve,97 tamanhas as
resistências.
Na primeira parte da pesquisa realizada durante o mestrado, quando o objeto de
estudo foi o professor universitário usuário de drogas, esta técnica foi facilmente
aplicada com resultados bastante satisfatórios, pois, se o objetivo era estudar o estilo de
vida de uma comunidade de usuários, permitir que a própria comunidade se
configurasse foi metodologicamente ideal. Na atual etapa da pesquisa esse
procedimento não funcionou na medida em que alguns estudantes ao contrário dos
professores, pareceram não levar a pesquisa muito a sério, ou se levaram, o fizeram
numa perspectiva pouco interativa com o pesquisador. Várias entrevistas foram
marcadas, mas tais entrevistáveis não sustentaram o compromisso, dois deles sequer
desmarcaram o encontro. Um deles chegou a remarcar a entrevista cinco vezes –
entrevista que acabou não sendo realizada – justificando sua ausência por estar de
ressaca ou se preparando para ir a uma festa, o que não deixa de ser significativo a
respeito de sua política-vida. Ao contrário da prontidão dos professores da área de
humanidades98 para fazer o que estivesse ao alcance para a concretização da pesquisa,
tais estudantes mostraram um certo descompromisso com a questão. Esse

97
- técnica na qual o grupo de interlocutores pesquisados se constrói através de sua rede de contatos. Um
usuário contata outro e verifica se este tem interesse em participar da pesquisa, sem uma seleção de
elenco determinada pelo pesquisador.
98
- como já foi indicado anteriormente, os professores da área médica se recusaram a participar e com
essa negativa mostraram que levaram a pesquisa a sério, pois a recusa indicou que não estavam dispostos
a permitir alterações nas suas representações públicas.

93
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descompromisso com uma questão que lhes é diretamente pertinente é um dado bastante
significativo no que diz respeito à percepção que este grupo formula da redução de
riscos, pois no meu ponto de vista, eles não são apenas “objetos” de estudo, são uma
comunidade que através da pesquisa poderia obter uma circulação de informações
diretamente relacionada com suas demandas. Obviamente, este é apenas o meu ponto de
vista.
Em meio a essas resistências, reformulei minha postura e retornei ao campo
procurando estabelecer contato com pessoas que eu já sabia, por intermédio da minha
própria rede de relações, que eram usuárias, me fazendo valer, de modo aproximado, de
uma reflexão de Gilberto Velho: “transformei parte significativa de minha rede de
relações sociais em objeto de pesquisa, em um movimento heterodoxo para os padrões
tradicionais da antropologia”, (2003:15). Nas circunstâncias em que me encontrava,
operar um “movimento heterodoxo” na construção do sujeito de estudo se mostrou uma
estratégia enriquecedora, pois a suposta proximidade entre o pesquisador e o
pesquisado, muito mais do que me fazer perder o distanciamento crítico, me fez poder
corroborar as narrativas apresentadas, com as biografias às quais eu tinha algum acesso.
Assim operando, merece ser salientado que um procedimento de pesquisa em
ciências humanas – talvez mais do que em outras áreas, ou pelo menos de modo
diferente destas - deve ser cercado de cuidados para que não se torne uma redução
processual no que diz respeito à polarizada relação pesquisador/pesquisado. Dito de
outro modo, nem sempre que eu penso que sei o que os sujeitos pesquisados pensam,
encontro equivalência no que eles pensam que eu devo pensar sobre eles. Esta
constatação foi realizada na primeira oportunidade em que apresentei resultados parciais
da pesquisa99 em um encontro nacional de pesquisadores, situação em que dois dos
meus interlocutores que estavam presentes, se mostraram contrariados com o material
trazido à baila. Em suas opiniões, suas identidades foram expostas - mesmo que com
pseudônimos -, de forma que eles me criticaram por isso.
No meu ponto de vista, fiquei surpreso com a reação, pois os dados que precipitaram
a tensão dos interlocutores foram posteriores não só à nossa específica interlocução em
campo como também foram posteriores à própria construção do texto. De modo mais
preciso, estes dados estavam em relação direta com a polêmica proibição da Marcha da
Maconha que colocou ambos os interlocutores no “olho do furacão”, já que estavam

99
- pois acreditei que o feedback dos interlocutores poderia enriquecer os resultados finais.

94
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envolvidos com a organização do evento e foram arrolados no processo aberto pelo


Ministério Público como apologistas. Estes interlocutores a partir de então se sentiram
vulneráveis, o que não aconteceu durante nossa interlocução onde se mostraram seguros
de seus posicionamentos políticos, e passaram a interpretar a minha escrita como um
material que os incriminaria. Um dos dois chegou a dizer com voz alterada, que o meu
texto descontextualizava sua fala, e que no mínimo estava mal escrito. Assimilei suas
críticas, percebendo que a celeuma era uma defesa quase que natural de pessoas que se
sentiam ameaçadas de serem estigmatizadas como apologistas da maconha quando seus
propósitos eram bem diferentes. Retomei o texto tentando me colocar em seus lugares
e respeitar seus sentimentos. Se muito do que me foi dito nas entrevistas ao ser revelado
poderia ameaçar a integridade de meus interlocutores - um destes, havia me dito, um
ano antes, que o maior receio de sua cônjuge era exatamente de que ele fosse visto
como um apologista e fosse preso por isto -, restava a mim agir eticamente de modo a
preservar a confiança que tiveram na nossa interlocução.
Contudo, essa posição me levantou um outro problema para com a integridade da
pesquisa: se o contexto que havia mudado não foi entre a nossa interlocução e a minha
escrita, mas sim após a minha escrita, exatamente no setting político no qual os
interlocutores atuavam, como explorar ao máximo os dados já construídos sem que isso
prejudicasse a eles ou a própria pesquisa? Como a pesquisa ainda estava em curso -
lembrando que uma possível interlocutora já havia declinado de participar da pesquisa
com receio de que fosse feito uso do material de forma que pudesse prejudicá-la - será
que esta polêmica iria dificultar que eu viesse a estabelecer relações de confiança com
outros interlocutores?
Nesse ponto do processo de pesquisa, minha estratégia e minhas expectativas a
respeito é que se tornaram passíveis de uma observação mais atenta, pois, de acordo
com o bom senso, para que consiga manter configurações de confiança, terei que
sacrificar uma parte significativa de dados que estão sendo construídos. Por outro lado,
me sinto na obrigação quase que obsessiva de explorar o material construído ao
máximo, mesmo que aparentemente isso sugira uma quebra de contrato com as pessoas
com as quais trabalho. A respeito de situações que levem a esse tipo de impasse
metodológico, Canevacci afirma:

“Aqui se insere um tipo de pesquisa/autopesquisa na qual a alteração


obriga a ‘observar-se participante’, no sentido de que se podem ‘multiplicar

95
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as reflexões sobre si mesmo, como figura móvel, interconectado com uma


‘rede de significados que ele mesmo ajuda a produzir” (2005: 94).

Abraço esse raciocínio ao sublinhar que, indo além de uma observação participante,
devo transformar a fronteira entre observar e participar numa interface que permita a
observação plena de minha participação. Assim, altero levemente a formatação do texto
para não perder a confiança dos interlocutores, de forma que com essa flexibilização na
minha participação ainda possa manter o foco centrado nas observações. Dessa forma
ganha o projeto, pois ao interagir com o feedback dos interlocutores, acrescento à
perspectiva dialógica, um terceiro momento, dadivoso: além do receber e do dar, agora
há a reação à informação dada. Com essa reação, também ganha o pesquisador, que
segue seu curso sem dúvidas éticas quanto a seus mecanismos de aproximação e
distanciamento, pois, talvez seja como já disse da Matta (1983: 34): “E só há dados
quando há um processo de empatia correndo de lado a lado”.
Numa dimensão analítica mais ampla, é perceptível que não estudo apenas as
comunidades de usuários, também estudo a comunidade que eu e meus interlocutores
configuramos em nosso processo dialógico, pois os três momentos da pesquisa – ir a
campo, analisar dados e construir um texto – são momentos que devem ser observados
numa perspectiva metodológica dadivosa. “A hermenêutica supõe ser quem descreve da
mesma substância que aquilo que descreve. Ela requer uma certa comunidade de
perspectiva” (Maffesoli: 2006, 29). Receber, reagir e repassar informações sobre
consumo de drogas, eis dinâmica da comunidade de perspectiva em questão – e é a
tensão manifesta no feedback dos interlocutores que faz com que o título dessa obra seja
aporisticamente “consumir e ser consumido”. Eis por onde trilho o ofício de cientista
social que tem por objeto de estudo uma comunidade estigmatizada.
Ter configurado como interlocutores da pesquisa pessoas que estão em processo de
construção de suas auto-imagens enquanto sujeitos sociais - apenas 36% dos
interlocutores trabalham, e apenas 18% estão acima dos 30 anos - não faz do meu
trabalho algo fácil. Por que eu deveria acreditar que jovens estudantes universitários
usuários de drogas não oporiam resistência a uma possível ameaça de desconstrução de
suas auto-imagens? Se de alguma forma esta pesquisa pode macular-lhes a
representação, então serei colocado na posição de outsider ao grupo, sendo aquele que
de alguma forma põe sua identidade em xeque. Contrariando as expectativas do
pesquisador, o fato de tal pesquisa estar sendo realizada por alguém que tem um status

96
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acadêmico apenas um pouco distinto do pesquisados - já que o pesquisador em questão


é também um estudante, estabelecendo assim a relação mais próxima possível da
horizontalidade - talvez aproxime menos do que hipoteticamente suposto. Sem entrar na
discussão sobre competitividade entre estudantes - principalmente entre os estudantes de
graduação e os de pós-graduação - não deve ser fácil para pessoas à sombra de
estigmatizações, reconhecer autoridade e confiar num “quase igual” que lhes traz os
estigmas à superfície para que sirvam de objeto de estudo.
Se o pesquisador por também ser um estudante não representa uma autoridade aos
olhos deste grupo100, não é difícil constatar que para estes, simplesmente ser um
estudante representa certa autoridade em relação ao restante da sociedade,
principalmente em relação aos que não possuem tal título. Uma das impressões iniciais
que pôde ser construída no trabalho de campo foi que, para alguns usuários, ter uma
carteira de estudante é como ter uma insígnia distintiva101 que os blinda contra o
estigma e até mesmo contra as sanções sociais que circundam os usuários de drogas sem
o status de estudante. Como indica Rimbaud, universitário com 22 anos de idade:

- Antes era diferente, a faculdade traz uma perspectiva nova porque, antes, eu
consumia como se fosse um rebelde. Na faculdade você tem menos sentimento de culpa,
o espaço é protegido, sem preocupação como eu tinha quando fumava na rua,
preocupação constante com a polícia, porque quando você tem uma quantidade grande
de baseado, você tem que esconder em algum lugar. Na faculdade não, você tá
conversando...

É preciso destacar que alguns dos interlocutores aqui referidos entraram num curso
universitário após terem sido detidos pela polícia (pg. 121) ou mesmo terem sido
internados pelos familiares em instituições psiquiátricas em função do consumo de
drogas (pg. 163). Passar por mecanismos institucionais de controle e sanção deste porte
pode causar insegurança, medo, ansiedade. Num sentido psicológico, estas tensões ao
serem compartilhadas com quem passou ou pode passar por situação semelhante,
geralmente diminuem de intensidade. Quando pessoas com sets assim predispostos
compartilham um campo de produção - no caso, uma carreira universitária -, configura-

100
- levando em conta que tender a reconhecer autoridade apenas nas autoridades estabelecidas – e em
certa medida confundindo-a com um discurso autoritário - pode indicar imaturidade por parte de um
grupo outsider.
101
- o jovem que morreu numa rave em Itaboraí, portava apenas uma carteira de estudante falsificada.

97
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se um setting comunitário que pode ser sustentável, pois as representações dos


universitários passam a ser um legítimo mecanismo de defesa para contrabalancear a
insegurança e o medo atrelados às representações que eles carregam enquanto usuários.
Desse modo, a carteira de estudante é convertida em um capital cultural que autoriza
seus portadores usuários a se defenderem contra os valores que os estigmatizam102.
Além disso, não se deve esquecer que, se 36% destes ainda moram com suas famílias,
que, de modo geral, são contrárias ao consumo de drogas, o lócus universitário que
durante os anos de ensino médio lhes foi “prometido” como o espaço da construção de
uma identidade aceita e reconhecida pelo mundo adulto, tem a significância de um
“segundo lar”. Neste lar, idealmente deve haver espaço para compensar os valores
impostos no “primeiro lar”. Ainda de acordo com Rimbaud:

- Quando ela (minha mãe) descobriu que eu fumava e que eu assumi, eu fazia
questão de deixar baseado pra ela ver. Ela pegava e jogava fora, mas eu fazia no
intuito de mostrar que naquela casa, que eu também moro lá, que eu tinha que ter
minha liberdade. Agora na faculdade ela respeita muito mais, ela vê que eu tou
estudando, eu tou trabalhando, que eu não sou vagabundo maconheiro.

Ora, se este segundo lar é uma comunidade cultural onde os valores dominantes não
devem ser impostos, mas construídos em conjunto, se pode especular que na fala de
Rimbaud, o espaço universitário seria um setting viável para a construção de respeito
pelo usuário - “Agora na faculdade ela respeita muito mais, ela vê que eu tou
estudando, eu tou trabalhando, que eu não sou vagabundo maconheiro”. Dessa forma,
a comunidade universitária configura o espaço cultural onde é possível processar a
ressignificação da imagem de um usuário que inclusive, tem planos de seguir a carreira
de professor.
Os modos de socialização das comunidades de usuários pesquisados dependem em
certa medida de sua configuração no espaço universitário, porém, não de forma
restritiva, pois, quando os laços são solidificados, chegam a expandir os limites físicos
deste segundo lar. No entorno da faculdade anteriormente citada como permissiva, há

102
- e esse status universitário não é cancelado, mesmo quando as máculas a Instituição acadêmica se
sucedem. Em 2008, os nomes de reitores de duas das mais importantes universidades do país (UnB e
UNIFESP) foram envolvidos em escândalos de improbidade administrativa, e em 2009, as provas do
ENEM que serviriam de acesso as carteiras de estudante universitárias foram facilmente roubadas e
postas a venda, mostrando a fragilidade da Instituição.

98
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alguns “anexos” - é assim que muitos estudantes denominavam os botecos - onde foi
possível observar uma concentração constante de universitários que se reuniam para
confraternizar e tomar cerveja entre as 11 e às 16 h dos dias letivos. Boa parte destes
acabava resumindo sua passagem na unidade de ensino muito mais com o intuito de
encontrar a galera e socializar do que necessariamente para assistir aulas. Alguns
costumavam fumar maconha na faculdade, antes de ir para os anexos. Um número
reduzido fumava na área dos anexos, apesar das constantes reclamações dos
comerciantes locais que desaprovavam tal prática103.
Tendo em perspectiva que esta configuração de uma comunidade de universitários
usuários representa uma política de vida104 na qual a busca por liberdade é tão
valorizada quanto a busca por segurança, é possível analisar hermenêuticamente o que,
entre doses de cerveja, disse um estudante recém ingresso num mestrado em ciências
humanas: “sei que não vou investir tudo no curso agora. Tenho outras coisas pra fazer”.
Com estas palavras, um estudante pode estar indicando que quer ter (a) segurança (da
carreira), mas para isso não vai abrir mão da sua liberdade (de desfrutar de sua
juventude). Esta fala de um estudante com 24 anos de idade não provocou maiores
reações entre os oito colegas presentes, entretanto, num momento posterior, uma destes
que também bebe cerveja e fuma maconha, se referiu ao primeiro como imaturo por ter
faltado aula para ir à praia - coisa que ela, sendo a única na mesa na faixa etária dos
cinquenta anos, nunca faria, preferindo ir à praia, fumar e beber numa outra
circunstância que não comprometesse seus estudos. Apesar deste porém, tal diferença
de idades e prioridades não os coloca em lados separados do muro, - até porque quando
ela tinha vinte e poucos anos fez a mesma coisa que ele faz agora - pelo contrário, eles
mantêm uma relação cordial e solidária.
O ponto que vale ressaltar em relação a estes dois interlocutores é que ambos são
alunos com boa produção acadêmica e bem queridos não só entre os colegas usuários,
mas também entre os colegas não usuários. No convívio destes últimos com os
primeiros é onde, na prática, se caracterizam conflitos maiores em decorrência do
estigma atrelado às representações do usuário. Alguns estudantes não usuários de forma
nenhuma se sentem confortáveis e seguros quando suas imagens públicas podem ser

103
- dois anos após esse período de observações, o movimento em torno dos anexos diminuiu de
intensidade, possivelmente em relação direta com alguns assaltos que aconteceram na área, tendo como
vítimas principais, os estudantes.
104
- a política de vida (1995) ou política-vida (2002) é uma categoria desenvolvida por Giddens que se
refere a politização de várias práticas cotidianas ligadas à esfera privada indo dos cuidados com o corpo
ao consumo de bens, definindo um estilo de vida contemporâneo.

99
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maculadas pelo estilo de vida dos colegas: “se o cara quer fumar maconha, cheirar
cocaína, então vá pra longe daqui, aqui é um lugar sério!”, proferiu uma estudante de
Administração de uma faculdade particular.
Aliás, há uma representação dominante de que os estudantes usuários de drogas nas
faculdades particulares são mais discretos. A reflexão de um estudante de Ciências da
Computação e usuário, recém ingresso no curso e já bastante enturmado com os
colegas, é significativa:

Marley - Que há com certeza há, sempre em todos os ramos há alguém que usa. Já
conversei sobre isso, mas meus colegas particularmente não concordam... em relação a
mim não seriam preconceituosos se soubessem, mas alguns são (preconceituosos). Tem
um preconceito assim besta, mas se você conversar um pouco, explicar quais foram os
motivos que te levaram a usar drogas, acho que eles entendem, fingem que não tem
preconceito e fica por isso mesmo, mas eu acho que tem um preconceito sim.

Durante o ensino médio em colégio particular, quando começou sua carreira de


usuário, Marley percebia um consumo de drogas bem mais explicito105 do que entre
seus atuais colegas de faculdade, principalmente porque seu foco estava bastante
voltado para as atividades da comunidade de usuários: “tava sempre fumando, conhecia
todo mundo que fumava, era uma coisa comum, era uma coisa que intensificava a
amizade e distinguia a gente dos outros alunos como grupo específico de usuários de
drogas”. Já no momento atual o foco de atenção de Marley está mais voltado para um
modelo de distinção que acompanhe a construção de sua carreira profissional. Em
relação direta com a sua atual sobrecarga de estudo, ele tem administrado seu consumo
de forma mais controlada, e sua atitude é outra como transparece no diálogo abaixo:

T.V. - Você antes da entrevista disse que no último mês, não fumou maconha nos
dias de aula, o que te levou a isso?

105
- especificamente quanto ao consumo de uma substância lícita, mas não apenas ele. Em pesquisa
realizada em 2001 pela Unesco no Brasil, (A TARDE: 11/07/01) foi verificado que a capital baiana atingiu
o primeiro lugar no ranking do consumo de álcool por estudantes, 62% na faixa entre 10/24 anos. Já numa
pesquisa efetuada especificamente em Salvador, foi constatado o crescimento do consumo de drogas entre
grupos com níveis de escolaridade altos e atividades econômicas forte, (CARVALHO NETO, J.;
ALMEIDA FILHO, N.; REGO, R.C.F.; SANTANA,V.S.: 1987).

100
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Marley - Ah, o estudo! Porque eu entrei na faculdade e tou estudando o que eu


gosto, eu quero ser um profissional bem sucedido, eu quero ser um dos melhores alunos
da faculdade, eu quero tirar as melhores notas, quero me empenhar bastante.
T.V. - Como você está se saindo?
Marley - Muito bem, o pessoal na sala me chama de gênio! (bem empolgado).
T.V. - Você se sente bem quando as pessoas te chamam de gênio?
Marley - Não me sinto muito bem não (rindo), na verdade eles é que são muito
burros.
T.V. - Na faculdade, diferentemente do segundo grau você não tá associando escola
com uso de droga. Como é que tá sendo isso?
Marley - Tá sendo agradável, eu tou gostando, porque hoje eu tenho mais
maturidade pra estudar, eu estudo de outra forma, eu assisto aula de outra forma,
porque eu tou estudando o que eu gosto.

Nesse momento de sua carreira de estudante universitário, aos 22 anos de idade,


buscando outra forma de distinção que não a advinda do consumo de drogas – “tava
sempre fumando... era uma coisa que intensificava a amizade e distinguia a gente dos
outros alunos” -, a representação de Marley como gênio parece imunizá-lo contra o
estigma que algum tempo atrás o incomodava quando foi usuário de crack. Talvez esta
informação provoque certo estranhamento para muitos, afinal, diante da representação
estabelecida dos usuários de crack como excluídos sem reversão, por que seria “natural”
aceitar a representação de um ex-usuário que agora é considerado um gênio por seus
colegas estudantes de informática?
Já no caso de Garrincha, a problemática ganha contornos mais complexos.
Garrincha começou sua carreira de usuário aos 13 anos - maconha, álcool, cocaína e
merla106 - e teve muitos problemas para conciliar o consumo de drogas com sua
produção como estudante. Ele só concluiu o nível médio por intermédio de exame
supletivo aos 21 anos de idade. Quando aos 25 anos ingressou num curso de
Comunicação numa faculdade particular em Salvador, sua preocupação imediata foi de
que ninguém soubesse de seu passado, porque isso poderia atrapalhar sua carreira.
De certa maneira, seus temores tinham fundamento, muito menos por causa de sua
imagem do que por sua atitude, pois ao final do segundo semestre, quando começava a

106
- com valor de mercado similar ao do crack, a merla é uma combinação da pasta de coca e solvente
encontrada na cidade da qual Garrincha é oriundo.

101
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construir uma autoestima até então ausente – não foi reprovado em nenhuma disciplina
e já estava estagiando num veículo de comunicação respeitável - teve uma recaída no
consumo de cocaína e de crack e acabou tendo que trancar a faculdade e abandonar o
estágio. Neste momento de sua vida, Garrincha se encontrou em uma situação para a
qual há poucas soluções na busca por inclusão social, pois ele não acredita que possa
obter respeito sem ter um diploma de terceiro grau, e para tanto ele precisa controlar o
seu descontrole sobre o consumo.

Garrincha - Quando eu entrei na faculdade eu tomei a decisão de não usar droga.


Parece conversa, mas ou encontra outro jeito de acontecer ou não dá mais.

A demanda explicitada por Garrincha remete a uma ponderação de Bauman:

“A educação superior se tornou a condição mínima de esperança até mesmo


de uma duvidosa chance de vida digna e segura (o que não significa que um
diploma garanta uma viagem tranquila; apenas parece fazer isso porque
continua sendo o privilégio de uma minoria)”. (2005:23).

Construir o acesso a este “privilégio de uma minoria” é o desafio maior que


Garrincha coloca para si mesmo. Indo além da problemática de Garrincha, é perceptível
que fazer parte de uma minoria privilegiada não garante que estigmas sejam cancelados.
E mais; estigmas não são privilégios das relações entre estabelecidos e outsiders,
podendo ser percebidos nas relações entre os pertencentes a mesma comunidade: uma
estudante com 23 anos, oriunda de família de classe média, divide residência com um
colega e prefere gastar seu dinheiro de bolsista nas baladas consumindo drogas,
geralmente álcool e maconha do que por exemplo, comprando livros107. Apesar da bolsa
que recebe não ser das melhores, a falta de dinheiro para compra de cocaína não chega a
ser um problema para seu consumo, pois com sua atitude extrovertida consegue
“ficar108” com companheiros que não se opõem em fazer-lhe “presenças109”, e aqui se
configura um impasse: se com essa atitude, por um lado ganha algum status entre suas
amigas mais próximas que a percebem como alguém “com jogo de cintura” para

107
- em sua política de vida, ela não manifestou maiores preocupações em relação à sua saúde por não
possuir um filtro de água em casa – não pelo menos no período de duas semanas em que frequentei sua
residência -, e não é por limitações econômicas ou de informações.
108
- ficar = manter um rápido relacionamento afetivo e sexual.
109
- presenças = oferta dadivosa de drogas.

102
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conquistar seus objetivos, por outro lado, acaba sendo estigmatizada como “fácil
demais” por alguns rapazes de tribos próximas: “tem cara que acha que eu sou puta!”
comenta, irritada.
Esta representação a incomoda como uma macula em sua imagem de universitária
independente110 que sonha em fazer uma pós-graduação na Europa tendo como
principal trunfo, exatamente seu jogo de cintura. Seu desconforto com essa imagem a
levou a se tornar defensiva com os rapazes que se aproximam. Numa dada
circunstância, ela manifestou uma reação agressiva com um “broder” recém conhecido
pelo qual sentiu alguma atração, quando ao telefone foi perguntada se tinha algum
“canal” de ácido. “Não me ligue pra isso! Você acha que eu só sirvo pra essas coisas é?”
Sua reação parece indicar que servir pra “essas coisas” é um comportamento típico de
puta. Se assim for, o consumo de drogas e a disponibilidade sexual acarretam
inseguranças à sua liberdade.
Nesse sentido, os preconceitos que acompanham a cultura das drogas tanto podem
facilitar aos usuários a criação de algumas representações positivas – a da usuária com
jogo de cintura que não precisa de dinheiro para conseguir drogas - quanto podem
manter outras negativas – a de se tornar uma mulher “fácil demais” para sustentar o uso.
Sendo o consumo de drogas ilícitas predominantemente praticado por homens111, os
preconceitos que perpassam as relações de gênero indicam que a segunda representação
– a de que a interlocutora é uma mulher “fácil demais” - tende a se impor como
dominante.

110
- remetendo a uma reflexão de Bourdieu & Passeron (1968,79) na pg.49 sobre as rupturas simbólicas.
111
- no universo da pesquisa apenas 25% do total de interlocutores é do gênero feminino.

103
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2.3 - Da apresentação do campo à proibição no campus

Dos problemas intracomunitários aos problemas intercomunitários ainda é na relação


entre estabelecidos e outsiders que os preconceitos com suas propriedades
estigmatizantes acarretam consequências mais graves para as comunidades de
universitários usuários. Retomando a realidade nacional como recorte de análise, se em
2007 houve, como pontuado algumas páginas atrás, diferentes eventos geradores de
reflexividade institucional112 que colocaram em evidência os danos sociais causados
pelas representações estabelecidas dos usuários de drogas, seria precipitado acreditar
que já a partir de 2008 os sintomas do conflito de valores em jogo fossem diminuir
rapidamente. No caso de usuários com status universitário não foi diferente:

Filme sobre maconha acaba em confronto (FSP – 05/04/08)

A exibição de um filme sobre o uso da maconha deu início a um conflito


entre universitários, professores e policiais anteontem na UFMG
(Universidade Federal de Minas Gerais). Vários estudantes ficaram feridos
e duas alunas, com escoriações no corpo, tiveram de ser levadas a um
pronto-socorro. Segundo o DCE, a confusão teve início por volta das
18h30, quando um grupo com cerca de 70 alunos do Instituto de
Geociências exibia o documentário "Maconha/Grass", do diretor canadense
Ron Mann, em uma arena da unidade no campus Pampulha. O filme aborda
questões polêmicas sobre uso da droga e argumenta, entre outros pontos,
que a proibição da maconha ocorre em razão de interesses políticos e
econômicos. Segundo a PM, foram espalhados cartazes pela faculdade que
faziam apologia das drogas e não havia autorização da direção do instituto
para promover o evento. A diretora do instituto disse que a autorização não
foi dada porque os organizadores não se apresentaram e não informaram
horário e responsáveis pelo evento. "Não fomos oficialmente avisados. Por
isso achamos por bem proibir. Não foi porque o vídeo era sobre drogas",
disse. Um convênio entre a universidade e a PM permite que soldados
trabalhem nas áreas comuns, desde que a reitoria autorize. A reitoria nega
ter autorizado a entrada dos policiais [...] Segundo a PM, vigilantes que
foram até o instituto para interromper a exibição foram ameaçados e
pediram ajuda à polícia. Quando os militares chegaram, houve tumulto com
os estudantes. Um aluno chegou a ser detido por suposto desacato à
autoridade. A prisão gerou revolta nos universitários. Segundo a
coordenadora do DCE, os PM chamados começaram a agredir os
participantes. Já segundo a PM, a confusão foi iniciada porque militares
foram recepcionados com pedradas.

112
-“A noção de reflexividade institucional de Giddens (como também a de Beck) envolve a
transformação dos sistemas especialistas nas esferas públicas[...] Os atores sociais apropriam-se na vida
cotidiana, das verdades proposicionais deste conhecimento especializado democraticamente validado –
que é global, ou seja, universal e válido em qualquer lugar” (BECK, GIDDENS & LASH:1995, 241). A
“reflexividade institucional implica o ‘filtro contínuo das teorias de especialistas, dos conceitos e dos
achados para a população leiga’.” (BECK, GIDDENS & LASH:1995, 244).

104
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Como vem crescendo o número de atores sociais que usufruem do conhecimento


especializado, a reflexividade institucional foi imediata ao conflito e as comunidades
Princípio Ativo e Coletivo Marcha da Maconha, como porta-vozes de muitos usuários
que de outra forma não teriam voz, e também da cultura universitária - pois nesta
situação específica estas duas comunidades acabam defendendo o papel social da
cultura universitária enquanto geradora de informação e reflexão -, se manifestaram
utilizando a internet como ferramenta:

Princípio Ativo - 07/04/08

“Estas pessoas que impediram o debate sobre políticas de drogas na


Universidade Federal de Minas Gerais, bem como todas aquelas que as
apóiam, estão no fundo expressando que, no seu entender, as leis de uma
sociedade não podem ser construídas pelas pessoas que vivem nesta
sociedade [...] O que o reitor e a vice reitora quiseram dizer aos seus alunos
e alunas, é que nesta universidade não está permitindo a existência de
sujeitos do conhecimento - somente de meros objetos”.

Coletivo Marcha da Maconha Brasil* – 07/04/08

“A sociedade brasileira deve debater, repensar e propor novos caminhos e


novos valores a cerca da questão das drogas, através de espaços de
aprofundamento e de elaboração de políticas públicas, como os propostos
pelos estudantes da UFMG. Independente de um posicionamento favorável
ou contrário a determinadas visões e propostas, é imperioso que existam
espaços públicos, de participação horizontal e plural, para a elaboração de
novos modelos de reflexão sobre as drogas e sua relação com a sociedade”.

*Apoio Institucional:
ABORDA – Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos;
ANANDA – Associação Interdisciplinar de Estudos sobre Plantas
Cannabaceae (BA)
BaLanCe – Coletivo de Redução de Danos (BA);
GIESP/UFBA – Grupo de Estudos sobre Substâncias Psicoativas (BA);
Growroom – seu espaço para crescer;
Plantando a Paz – Movimento Nacional pela Legalização do Cânhamo
(PR);
MNLD – Movimento Nacional pela Legalização das Drogas (RJ);
NEIP – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos;
Princípio Ativo (RS);
Psicotropicus (RJ);
Se Liga – Associação de Usuários de Álcool e outras Drogas (PE);

É possível perceber que nessa celeuma a tensão se configurou muito menos pelas
questões levantadas pelo documentário113 do que pelo impedimento da cultura

113
- Maconha/Grass: a verdadeira história da proibição da maconha, o filme em torno do qual se
configurou a polêmica foi premiado como o melhor documentário do ano 2000 pela Academia Canadense
de Cinema e TV. Além de ter sido vendido pela Editora Abril em bancas de revista, pode ser baixado pela
Internet gratuitamente.

105
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universitária em questionar as representações de valores estabelecidos. Aos olhos dos


estudantes e simpatizantes, este impedimento não se sustenta em pareceres
cientificamente embasados, mas sim em sanções extremas que foram empregadas
arbitrariamente com o objetivo de estabelecer o controle social. As consequências a esta
mácula no distintivo dos universitários mobilizou boa parte da comunidade acadêmica
adquirindo dimensões numa ordem muito mais ampla do que a do consumo de drogas:

Estudantes mantêm ocupação da reitoria da Federal de Minas - FSP


09/04/08

No início da noite de ontem, os cerca de 120 estudantes que invadiram a


reitoria da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) na manhã de
segunda-feira continuavam acampados no saguão do local. Eles protestam
contra a ação da Polícia Militar que reprimiu alunos do Instituto de
Geociências durante a exibição de um documentário sobre o consumo e a
produção de maconha. A eventual desocupação será discutida hoje[...] Os
alunos pediram o fim do convênio entre a UFMG e a corporação[...] Os
estudantes pedem o direito de realizar "atividades políticas e culturais" no
campus "sem censura". A reitoria aceitou a exigência, mas não suspenderá
os processos administrativos contra os alunos.

Se na prática a reitora efetivamente aceitou as exigências dos estudantes -


"atividades políticas e culturais" no campus "sem censura" -, a problemática das drogas
terá servido como uma potente ferramenta na luta dos universitários pela configuração
de um setting reflexivo. Porém, o que de imediato se percebeu, é que o conflito fez
crescer o interesse de usuários e não usuários em assistir ao documentário proibido. E
mesmo que este documentário impulsionado pelo impasse não seja transformado em um
campeão de audiência como Tropa de elite, a pergunta que não se cala é: o que fez com
que Maconha/Grass: A verdadeira história da proibição da maconha e Tropa de elite,
obras com narrativas e conteúdos distintos fossem configurados no centro de tanta
polêmica servindo como trailer para as celeumas que envolveram a proibição da Marcha
da Maconha em várias capitais? Para provocar reflexividade, uma resposta parcial é que
Maconha/Grass indica como os caminhos que levam ao tráfico foram construídos como
consequências de controles sociais operados sobre o consumo por parte de constelações
política e economicamente estabelecidas – que pouco têm a ver com questões de saúde
pública, apesar de ser este o discurso difundido -, enquanto Tropa de elite mostra que as
representações deste tráfico estão sendo ressignificadas em função do fracasso das
sanções sociais decorrentes da política de guerra às drogas analisadas no primeiro filme.

106
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Se esta interpretação parece simplista, não deixa de ser emblemático que, no ponto
de vista do criador de Tropa de elite, José Padilha114, a descriminalização da maconha
poderia ser uma alternativa para os malefícios desse tráfico (A Tarde, 03/10/07). Este
ponto de vista parece contraditório em relação à atitude do Bope retratada em seu
filme115? Se levarmos em conta uma declaração do próprio cineasta no Globo.com
(26/12/07): “No Brasil, o comprador de drogas está dando dinheiro para um grupo
armado que controla uma comunidade carente”, talvez seja possível interpretar que
Padilha ao ponderar sobre descriminalização, esteja indicando uma alternativa de
redução de riscos em relação ao tráfico e sua violência, de modo que, os Capitães
Nascimentos da vida possam encontrar a aposentadoria precoce116.

114
- que em função de algumas interpretações sobre o filme, recebeu a representação estigmatizada de
realizador de uma obra fascista.
115
- seguindo a linha interpretativa da nota anterior, para muitos espectadores Tropa de elite é
basicamente um filme antidrogas, um panfleto publicitário da filosofia proibicionista de tolerância zero.
116
- e como essa solução parece distante da realidade, Padilha está filmando Tropa de elite 2, no qual o
Capitão Nascimento doze anos depois do primeiro filme é obrigado a abandonar sua aposentadoria...

107
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Agora que o quadro das representações acadêmicas e midiáticas já foi configurado é


pertinente fazer algumas pontuações conceituais sobre a cultura de consumo e sobre a
metodologia interpretativa que caracteriza a análise do projeto:

2.4 - Consumir para viver, viver para consumir!

Estamos todos imersos em culturas, e contemporaneamente, a cultura de consumo


não mais projeta um ideal de felicidade como objetivo futuro, mas como um pacote de
desejos que possam ser satisfeitos no presente - independentemente e até mesmo em
função dos desequilíbrios econômicos de um país como o Brasil. O adiamento da
satisfação individual em prol da segurança coletiva, característico da cultura de
produção, pode ser interpretado como “o investimento acima do lucro, o trabalho acima
do consumo” (Bauman:2001,181), num movimento diametralmente oposto ao da
cultura do consumo, que objetiva exatamente abolir o adiamento da satisfação. Uma
questão que pode ser formulada como uma crítica a essa perspectiva é que se a
satisfação não é mais procrastinada, ela também não pode ser totalmente realizada, pois
assim acarretaria o risco de extinguir o desejo por satisfação. A solução é cultivar
satisfações ao alcance do presente, satisfações parciais ou mesmo insatisfatórias, que
deixem margem operacional para, potencialmente, poderem ser satisfeitas depois. O
desejo por satisfação assim é que passa a ser procrastinado em lugar da própria
satisfação.

“A sociedade dominada pela estética do consumo precisa portanto, de um


tipo muito especial de satisfação – semelhante ao pharmakon de Derrida,
essa droga curativa que é ao mesmo tempo um veneno, ou melhor, uma
droga que deve ser dosada cuidadosamente, nunca numa dosagem completa,
que mata” (BAUMAN:2001,183).

Nessa modelo cultural o phármakon – que por enquanto, pode ser interpretado
simplesmente como droga - tanto pode levar à satisfação quanto pode inviabilizá-la,
mas a demanda por “mais uma dose” não chega a desconfigurar os controles sociais
vigentes:
“A cultura de consumo não representa nem um lapso do controle, nem a
instituição de controles mais rígidos; mas antes a corroboração dos
controles por uma estrutura gerativa subjacente flexível, capaz de lidar ao
mesmo tempo com o controle formal e o descontrole, bem como facilitar
uma troca de marchas confortável entre ambos.” (FEATHERSTONE:
1995,48).

108
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Esta tendência cultural leva ao que Featherstone representa como “descontrole


controlado”117, mas poderia de forma mais completa representar como de descontrole
controlado de emoções, pois em última instância, o que se propõe controlar ou não é o
direcionamento mimético das emoções para algum modelo de consumo. O que
caracteriza a primazia do descontrole controlado é que o consumidor acredita que o
controle de seu descontrole está em suas próprias mãos ou do poder simbólico do
dinheiro que tais mãos podem movimentar no consumo de distinções contemporâneas.
Numa cultura onde o consumo é a via de busca por transcendência tornada
adequadamente possível, o consumo de bens materiais antiteticamente configurados é
central na geração de capital cultural.
Em sua teorização sobre a cultura do consumo, Featherstone (1995) especula como
os marcadores de status contemporâneos passaram a ser definidos por uma estrutura
antitética, aporística, em diálogo constante com os valores vigentes, numa lógica
cultural que sedimenta representações pela diferença. Em outras palavras, em relação ao
consumo de drogas, as categorias; inclusão X exclusão, lícitos X ilícitos, norma X
desvio apenas aparentam uma desordem estrutural, mas configuram uma dinâmica
cultural onde as diferenças pontuam as relações. Os valores centrais da cultura de
consumo levam em conta que oposições previamente estruturadas podem ser
ressignificadas e reconfiguradas, de modo a capacitar indivíduos e grupos para usarem
bens simbólicos com fins a estabelecer parâmetros de referência nos quais, mesmo a
exclusão é representada como modo de inclusão. As oposições estruturais dependem da
existência de padrões relativamente estáveis de disposição e princípios classificatórios –
os habitus sociais – que são identificáveis e funcionam estabelecendo fronteiras de
consumo entre indivíduos e grupos.
Dentro da cultura da droga, por exemplo, é possível perceber variadas representações
e polarizações antitéticas. Zaluar (2002) indica que, embora certos usuários consumam
multiplamente maconha e cocaína, eles se distribuem em grupos antagônicos no que diz
respeito ao ethos e às representações sociais associadas às drogas. Assim, a maconha
estaria diretamente interfaceada ao relaxamento, à natureza, ao ócio e à paz, enquanto a
cocaína estaria relacionada a um uso associado à aceleração da produtividade, à tensão
das relações de competição e à agressividade concomitante. Estas categorizações
implicam em hábitos, ritos, sanções e status distintos. Se na pesquisa com professores

117
- descontrole controlado é uma expressão que Featherstone canibalizou de Elias (ELIAS & DUNNING
1992,59).

109
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foi perceptível que alguns usuários de álcool tinham aversão por uso de maconha e
alguns usuários de maconha manifestavam um certo descaso por uso de cocaína, na
pesquisa com estudantes foi perceptível que 68% dos interlocutores era poliusuária.
Essa diferença de postura entre professores e estudantes está relacionada com a menor
idade dos estudantes que, imersos na cultura de consumo estão habituados às
configurações antitéticas. Para os professores, que por serem mais velhos acabam sendo
herdeiros de alguns valores característicos da cultura de produção, as diferentes drogas
tendem a não comungar necessariamente culturas igualitárias.
Digo culturas igualitárias na medida em que na virada da década de 1960/70,
Baudrillard (1995,47) refletia que a busca da “felicidade constitui a referência absoluta
da sociedade de consumo, revelando-se como o equivalente autêntico da salvação”, pois
o “mito da felicidade é aquele que recolhe e encarna, nas sociedades modernas, o mito
da igualdade”. Na devida proporção em que “Para ser o veículo do mito do igualitário, é
preciso que a felicidade seja mensurável por objetos e signos do conforto” (1995,47), o
consumo é perspectivado como a moral da cultura contemporânea, disponibilizando o
consumidor para atingir a felicidade que pode se encontrar materializada em uma pílula,
um cigarro, ou em uma bebida, em – teóricas - condições igualitárias de escolha.

O lugar onde se exerce o consumo já nem precisa ser o shopping center, mas
simplesmente o cenário da vida cotidiana, cenário no qual o corpo social é um palco
onde se mimetizam símbolos, capitais e representações: “o consumo surge como modo
ativo de relação (não só com objetos, mas ainda com a coletividade e o mundo), como
modo de atividade sistemática e de resposta global, que serve de base a todo nosso
sistema cultural” (Baudrillard:1995,11). Neste modo ativo de relação, as trocas cruzam
riscos e incertezas.
No caso das drogas, riscos e incertezas balizados pela ilicitude, pela proibição. É
exatamente em função do modelo proibicionista que por exemplo, em Amsterdã, onde
consumir maconha é permitido em coffee shops118 e no Cannabis Cup119, o consumo é
muito mais intenso entre turistas internacionais que chegam naquela cidade sedentos por
novidades120 do que por holandeses. Entre os nativos de Amsterdã o consumo não
aumentou proporcionalmente desde que a tolerância passou a vigorar em 1976, contudo,

118
- em 2008 havia em Amsterdã 228 coffee shops, sendo que o total na Holanda é de 750 coffee shops.
119
- festival anual onde, pagando cerca de duzentos euros, o consumidor pode fumar as melhores
maconhas do mundo.
120
- no mercado holandês há infinitos produtos derivados da maconha: cosméticos, cervejas, roupas, etc.

110
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com a posse de um governo com postura mais ortodoxa em 2009, começou a haver uma
revisão das sanções exatamente em função do consumo dos turistas que resolvem liberar
os controles sem limites121 fugindo da proibição em suas comunidades nativas. Debates
e reflexões tomaram corpo em torno da proposta de redução da quantidade de coffee
shops e da sua destinação exclusiva para frequência de cidadãos holandeses, uma
espécie de clube só para distintos com seus cartões de acesso, distintos que também
passariam a ajudar a cultivar as espécies, favorecendo um abastecimento sustentável. Se
durante 30 anos o consumo de maconha deixou de representar uma situação de risco e
passou a representar um modelo de controle social bem sucedido, a representação que a
citada equipe de governo sustenta é que este é um modelo de controle social que atrai o
risco, e para evitá-lo, carece regulamentar os usuários com rigor. Entretanto, o critério
que selecionaria e distinguiria os frequentadores deste clube não seria a vontade de
participação do usuário, seria sua nacionalidade. Esta mudança de critério de controle
tira das mãos dos usuários o poder de escolha, problematizando uma questão que já é
complexa:

“diferentemente dos perigos antigos, os riscos que envolvem a condição


humana no mundo das dependências globais podem não só deixar de ser
notados, mas também minimizados, mesmo quando notados. Do mesmo
modo, as ações necessárias para exterminar ou limitar os riscos podem ser
desviadas das verdadeiras fontes do perigo e canalizadas para alvos errados.
Quando a complexidade da situação é descartada, fica fácil apontar para
aquilo que está mais à mão como sendo causa das incertezas e ansiedades
modernas.” (BAUMAN: Folha de São Paulo, 29/11/03).

Esta reflexão não se aplica apenas aos controles exercidos em função da


nacionalidades, como quer o governo de Amsterdã, pois: “apontar para aquilo que está
mais à mão como sendo causa das incertezas e ansiedades modernas.”, é o que pode
estar acontecendo atualmente com tantos usuários de drogas quando, num mecanismo
mimético de projeção, acabam sendo responsabilizados pela violência que perpassa o
tráfico. É assim, apontando os riscos de acordo com “aquilo que está mais à mão” que
se constroem outsiders.

121
- os governantes que assumiram a gestão passaram a estabelecer uma clara política nacionalista. Eles
alegam que o índice de criminalidade aumentou em torno do consumo de drogas por parte dos turistas,
principalmente os norte-americanos apontados como os que mais consomem álcool e outras drogas de
forma descontrolada.

111
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Como os riscos são inevitáveis - o que não quer significar que não possam ser
reduzidos - a observação das comunidades de usuários indica que as suas buscas por
liberdade passam por rituais e sanções que não são construídos independentemente de
uma ampla configuração com a cultura proibicionista. Contudo, buscar liberdade não
quer dizer partir de uma condição onde não haja nenhuma, e sim poder ressignificá-la
de acordo com demandas específicas. A liberdade é construída processualmente:

“a liberdade existe apenas como relação social; que, em vez de ser


propriedade, fruição do indivíduo em si, é uma qualidade que faz parte de
uma certa diferença entre os indivíduos; que só tem sentido como oposição
a algum outro condicionalismo, passado ou presente” -
(BAUMAN:1989,18).

Se assim for, podemos dizer que a liberdade só tem sentido quando se vivenciou
alguma forma prévia de restrição à sua fruição. Ora, num exercício reflexivo, se pode
pensar que buscar liberdade em torno do consumo de drogas ilícitas - com todos os
estigmas que as atividades ilícitas carregam - é partir de uma condição previa onde a
configuração da liberdade tenha estado em vínculo de proximidade com as atividades
lícitas, mas tal proximidade não tenha sido suficiente para garantir a fruição do que os
usuários possam entender por liberdade. Nesse sentido, a liberdade buscada, é liberdade
inclusive para dimensionar certas configurações como aprisionantes, insatisfatórias,
quando a insatisfação parece ser, na atual cultura dominante, o grande mal a ser
combatido. Como o marketing do consumo afirma haver livro de auto-ajuda para quase
tudo e personal trainer para o tudo que sobrar, o importante tem sido oferecer
possibilidades de satisfação, como um sinônimo de liberdade.

“Esta centralidade da liberdade individual como um elo que mantém unidos


o mundo da vida individual, a sociedade e o sistema social, foi atingida com
o recente deslocamento da liberdade para fora da área da produção e do
poder e para dentro da área do consumo” (BAUMAN:1989:18/19).

Nessa perspectiva da cultura de consumo a segurança que caracterizou o discurso da


cultura de produção não é descartada, apenas reconfigurada diante do discurso da
liberdade de consumo. Se o discurso que caracterizava uma cultura de produção era o da
fé no futuro para obtenção de segurança, na cultura de consumo o futuro é acima de

112
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tudo um risco, restando a liberdade de escolher, no presente, as opções capitalizáveis de


felicidade:

“a liberdade de escolha é, na sociedade pós-moderna, o essencial entre os


fatores de estratificação” (BAUMAN:1998,118), “Na sociedade pós-
moderna e de consumo, escolher é o destino de todos, mas os limites de
escolhas realistas diferem e também diferem os estoques de recursos
necessários para fazê-las. É a responsabilidade individual pela escolha que é
igualmente distribuída, não os meios individualmente possuídos para agir
de acordo com essa responsabilidade”. (BAUMAN:1998, 243).

E quando há “responsabilidade individual pela escolha que é igualmente distribuída”,


a lógica do consumo de drogas ganha transparência, pois, é possível perceber que
através desse consumo, não só o traficante pode encontrar o caminho mais rápido para o
enriquecimento – ou ao menos viver em torno desta representação - como o usuário
também pode escolher uma instrumentalização específica para trazer ao presente
alguma liberdade para pleitear a felicidade. No crepúsculo da cultura de produção essa
possibilidade já havia sido apontada:

“O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no


afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um benefício, que
tanto indivíduos quanto povos lhe concederam um lugar permanente na
economia de sua libido. Devemos a tais veículos não só a produção
imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de
independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse
‘amortecedor de preocupações’ é possível, em qualquer ocasião, afastar-se
da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com
melhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente
essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e sua
capacidade de causar danos”, (FREUD: 1974 A, 97).

Eis o cerne do “mal-estar da modernidade”122, ou seja, se o que leva à felicidade ou


ao menos à amortização de preocupações é um fator de risco, vale a pena optar por
escolher tal risco? Se na cultura de produção as categorias freudianas princípio da
realidade e o princípio do prazer (Freud:1974 B), acabaram sendo configuradas em rota
de colisão - se deve escolher a segurança ou o risco - na cultura de consumo, a
responsabilidade individual pelas escolhas dos riscos fornece segurança à construção da
liberdade e liberdade à construção da segurança.

122
- trocadilho que procura se situar entre O mal-estar da civilização (FREUD, 1974 A) e O mal-estar da
pós-modernidade (BAUMAN, 1998).

113
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Em decorrência da possibilidade de atingir algumas doses de liberdade através do


consumo, os grupos outsiders que ascendem à condição de consumidores, podem se
sentir tão próximos da liberdade corrente quanto os grupos estabelecidos. Se antes do
deslocamento da ênfase na produção para a ênfase no consumo a perspectiva
civilizatória objetivava um modelo inexorável de controle das emoções individuais para
definir as fronteiras do progresso social, atualmente, o controle é construído através da
liberação das emoções, ou mais precisamente, da institucionalização das emoções e dos
desejos, oferecendo no mercado o que antes esteve culturalmente proibido, suspenso, e,
através dessa oferta, vender um projeto de liberdade. Gradativamente, a felicidade
enquanto estado de espírito (Platão, 1996), vem sendo trocada pelo desejo de consumir
felicidade. Hoje, ela já pode ser obtida por um preço que se pode pagar - obviamente,
para alguns, esta obtenção paga é mais complexa, porém, é nessa luta que as
representações são ressignificadas.
Partindo desta reflexão, ao invés de eleger a culpa como reguladora dos habitus
sociais, como era comum cinquenta anos atrás, cada vez mais o “slogan da hora” parece
ser: Enquanto a vida lhe consome, consuma a vida! “O estímulo de novos desejos toma
o lugar da regulamentação normativa, a publicidade toma o lugar da coerção e a
sedução torna redundantes ou invisíveis as pressões da necessidade”
(Bauman:1998,185), sem preconceitos se dirigindo tanto para quem pratica esportes
radicais, quanto para quem frequenta cultos neopentecostais. O que imputa culpa ao
indivíduo não é mais o fato dele transgredir alguma proibição à sua liberdade ou
desviar-se das normas para obter satisfação, mas sim, o fato de não gozar desta, pois já
nem é preciso necessariamente transgredir ou desviar para gozar satisfação. Hoje tudo
tem um preço e a oferta é para todos, e mesmo quem não pode pagar, pode ao menos,
desejar consumir.
Entretanto, não se deve operar uma redução da cultura de consumo a um cenário de
hedonismo anômico, a uma ausência de princípios morais que pode levar a modelos de
liberdade e felicidade autodestrutivos. Se por um lado, o consumidor é livre para desejar
obter satisfação, por outro, ele tem o “dever” de desejar uma satisfação segura. A
liberdade contemporânea demanda segurança e não é por acaso que nos banners e
outdoors encontra-se cerveja com 0% de álcool, café livre de cafeína, doces sem açúcar,
cigarros que não contêm tabaco. Não é por acaso que as comunidades de usuários de
drogas cada vez mais constroem suas práticas com mecanismos para redução de riscos,
como também não é por acaso que a lucrativa indústria de antidepressivos se apropria

114
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do prognóstico da OMS123 para garantir que seus clientes sejam legitimados, afinal: “A
liberdade é na verdade um privilégio, e um privilégio oferecido com moderação e sem
entusiasmo por parte de quem a oferece” (Bauman, 1989:56), e quem oferece está
sempre de olho em quem pode aceitar pagar a oferta.

123
- Depressão será a doença mais comum do mundo em 2030, diz OMS (BBC 02/09/2009).Por trás desta
manchete da BBC está um prognóstico da OMS de que até 2030 a depressão que hoje atinge mais de 450
milhões de pessoas será a doença mais incapacitante do planeta, havendo um maior prejuízo para os
chamados países em desenvolvimento, basicamente por estes possuírem menos dinheiro para comprar
antidepressivos e bancar tratamentos. No Brasil, que é uma exceção entre tais países - sendo considerado
farmaemergente, junto a Índia e Russia -, a consequência direta desse prognóstico que vem sendo
divulgado desde 2002 é que nos últimos quatro anos o mercado de antidepressivos cresceu 44,8% acima
da média mundial,de acordo com o IMS Health (G1:26/12/09). Por outro lado, o que não foi
diagnosticado pela OMS foram os fatores de risco que podem ter precipitado tal depressão planetária...

115
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2.5 - Meu nome não é Junkie

Nos dias de hoje, será que refletir sobre as possibilidades de um estigma vir a gerar
status positivo124, ainda causa estranhamento? Levando em conta que uma das
principais estratégias da cultura de consumo é naturalizar a sedução pela novidade
aparentemente infinita, a “repetida multiplicação das escolhas que torna possível a
abundância” (Lipovetsky: 2006, 2), refletir sobre a ressignificação de certos estigmas
como concretização emblemática da liberdade de escolha vem se tornando cada vez
mais plausível. No cenário internacional de celebridades da cultura pop contemporânea,
Amy Winehouse, Britney Spears e Lindsay Lohan passaram boa parte dos anos de 2007
e 2008 sendo manchetes, em grande medida, por seus envolvimentos com drogas. Estas
manchetes geraram reflexividade sobre os motivos que levam jovens bem sucedidas e
ricas a perder o controle sobre seus consumos – no caso de Britney Spears, em função
do descontrole intensamente midiatizado, houve a perda da guarda dos filhos. É passível
de constatação que se estas celebridades tiveram suas imagens públicas criticadas como
politicamente incorretas já que “potencialmente são exemplos” para um público
consumidor jovem, por outro lado, suas representações públicas ganharam mais
projeção, mantendo-as na pauta do dia com as inquestionáveis expectativas: será que
elas ainda são tão boas como artistas ou as drogas são o ponto de decadência de suas
carreiras? Será que essas celebridades são vítimas do sucesso ou estão aproveitando
intensamente la vida loca? Será que realmente perderam o controle, ou será que essa
perda de controle midiatizada faz parte da celebração de suas representações?
Aos olhos do grande público que consumiu vários escândalos enquanto informação, o
hedonismo dessas estrelas tem gerado uma espetacularização glamourosa do consumo
de drogas, às vezes de modo bem irônico. A imagem de Amy Winehouse125 pareceu
ganhar sobrevidas; quando ela entrou e saiu de clínicas de reabilitação, quando surgiu
um vídeo no Youtube onde ela aparece consumindo crack ou quando agrediu algum fã.
Em sensacionalismo extremo, alguns jornalistas chegaram a oferecer drogas a
Winehouse e ao ator Heath Ledger – morto algum tempo depois por overdose acidental
de medicamentos ou tecnicamente, suicídio acidental - para filmá-los em consumo e

124
- sim, porque o estigma nada mais é do que um status negativo (Goffman: 1988).
125
- Amy que não apenas tem um sobrenome sugestivo (Winehouse pode ser traduzido como Casa do
vinho), mas que também se tornou famosa cantando “rehab”, forma abreviada para se referir aos centros
de reabilitação para usuários de drogas (drug rehabilitation).

116
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posteriormente vender as imagens ou chantageá-los126. Já aos olhos de um público mais


específico que em razão de seus próprios consumos de psicoativos e sua estigmatização,
tende a ser mais reservado ou cuidadoso em relação ao grande grupo de não usuários, a
reflexividade propiciada pelo consumo descontrolado por parte de celebridades tem
potencial para tocá-los profundamente. Ao encontrarem familiaridade no modelo
exótico de consumo adotado por estes últimos, os primeiros encontram segurança
ontológica onde antes só parecia haver o risco de uma liberdade estigmatizante:

“O que os ávidos espectadores esperam das confissões públicas das pessoas


na ribalta é a confirmação de que sua própria solidão não é apenas tolerável,
mas com alguma habilidade e sorte pode dar bons frutos. Mas o que os
espectadores que se deleitam com as confissões das celebridades recebem
como primeira recompensa é a sensação de fazer parte: o que lhes é
prometido todo dia (“a quase qualquer momento”) é uma comunidade de
solitários” (BAUMAN: 2003,64).

Nesse recorte, Amy, Britney e cia, configuram uma comunidade de celebridades


“especialistas em intemperança”, que simbolicamente pode favorecer que solitários
usuários se sintam mais próximos de fazer parte de um setting comunitário. Estas
celebridades estabelecem um modelo de consumo com valores outsider que sinalizam a
liberdade de escolha acima da segurança da escolha. “lidar com o excesso é o que passa,
na modernidade tardia, por liberdade individual”, (Bauman:2003, 119). O que está em
jogo é a possibilidade de atingir a liberdade individual por intermédio de uma certa
“espiritualidade hedonista”, na qual o descontrole controlado, a intemperança
temperada, represente um capital de risco de primeira grandeza - quanto maior o risco,
maior o capital.
Em tal perspectiva de consumo nada mais deve ser proibido como o “mal em si”,
mas sim consumido com uma margem de segurança adequada sob medida ao
contexto127. No caso do consumo de drogas destas celebridades, o banner: com risco é
mais gostoso está autorizado a piscar em luzes tridimensionais no lugar do proibido é
mais gostoso. O diferencial desta perspectiva em relação ao hedonismo descontrolado
dos anos 1960 é que no presente caso, opera um princípio de redução de riscos em que
se pode e se deve abraçar controles formais e informais se preciso, por exemplo:
entrando e saindo de clínicas de reabilitação e contando com o apoio afetivo da família

126
- Polícia prende homem que filmou Amy Winehouse usando crack (Folhaonline, 12/12/08), Paparazzi
são acusados de dar drogas a Heath Ledger – (Terraonline,12/04/08).
127
- e isto obviamente não se restringe às drogas, mas a todos os capitais culturais disponibilizáveis,
como comida ou sexo por exemplo.

117
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e dos fãs que se solidarizam com suas confissões públicas ao invés de simplesmente
receber penas criminais e exclusão de círculos sociais. A assimilação desses controles
parece conferir uma margem de segurança equacionada à liberdade aparentemente
irrestrita. Este padrão cultural, pelo qual algumas celebridades optam ao escolher um
estilo de vida onde a liberdade é configurada em interface com uma segurança
previamente conquistada, é um padrão com potencial para gerar reflexividade também
entre – e talvez, principalmente - usuários que não tem muitas opções de liberdade com
segurança, nem de segurança com liberdade.
E é nesse sentido que, saindo das manchetes de jornais e entrando nas salas e campi
universitários, a vulnerabilidade dos estigmatizáveis consumidores de drogas pode
encontrar abrigo no desejo de pertença em uma comunidade. Mas que modelo de
comunidade seria este? Longe de ser um modelo fechado, inicialmente essa proposta de
comunidade contemporânea pode transcorrer num sentido contrário da representação
dominante, de que droga se aprende a consumir nas ruas - em meio a insegurança e ao
risco não calculado -, na medida em que alguns interlocutores, viveram suas
experiências iniciáticas nos seios das próprias famílias:

Cleópatra - Eu fumo já há 8 ou 9 anos, (na época da entrevista estava com 22) mas
eu tenho contato com a maconha há bastante tempo porque meu pai é usuário.
T. V. - E a relação dele com você e a maconha é tranquila?
Cleópatra - Na verdade desde pequena eu percebo que meu pai e meus tios, irmãos
do meu pai, sempre fumavam, vi que tinha um cheiro diferente e que eles não fumavam
em qualquer lugar. Quando eu tinha mais ou menos 8 anos, meu pai chegou pra mim e
uma prima minha que o pai também fuma, e falou: “ó, isso aqui que a gente fuma é
maconha, cês vão ouvir muita coisa na rua e na televisão falando sobre isso, mas
qualquer dúvida que vocês tiverem vocês vem perguntar pra gente”. Na hora que ele
saiu, a gente: ‘ah, é maconha!’ Aquela coisa de Jornal Nacional, de prisão, era uma
coisa normal na nossa vida. Não é a gente saber que era maconha que faria nossos
pais virarem criminosos, e aí foi bem tranquilo.
Quando eu comecei a fumar, logo de imediato eu nem contei pro meu pai, a gente
nem morava junto, mas aos poucos ele foi percebendo, o jeito de tar se vestindo, os
amigos, o som que cê tá curtindo, um dia ele falou pra mim: “ó, eu acho que cê tá
fumando maconha, cê nunca me contou, mas da minha mão você só vai receber um
baseado no dia que você chegar pra conversar comigo”. Eu tinha uns 15 (anos), eu

118
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pensei: bom, é o momento, porque meu pai sempre fumava perto de mim, eu tinha
vontade de fumar e de fumar principalmente com ele, e conversar, e aí a relação é bem
tranquila entre nós.
T V - Você acredita que as relações familiares de seus colegas são parecidas?
Cleópatra - Eu tenho alguns amigos que tem com a mãe ou o pai esta abertura, ou
com os dois. Por ter certas opções acabo me deparando com pessoas que tem às vezes
esse estilo de vida e a relação familiar parecida, mas com a grande maioria a relação é
diferente. Eu acho que dentro desse nosso universo nós somos exceções...
Eu nunca tive grandes problemas com minha família, minha mãe não gosta, não
fuma, claro que se ela pudesse escolher ela preferia que eu não fumasse. [...] Dos cinco
irmãos de meu pai, quatro fumam, e todos têm filhos com a vida muito bem
estabilizada, e são muito carinhosos, é uma família muito grudada. Meu avô já
perguntou pra meu pai se ele tinha dúvida que eu fumava maconha e meu pai
respondeu que não tinha dúvida nenhuma.

Pelo que relata Cleópatra, é possível perceber que o sistema especialista é


representado por alguém próximo, seu pai, que soube conduzir sua vida sem que o
consumo de maconha o estigmatizasse, e que por sua vez também representa seus
irmãos usuários bem sucedidos. O pai de Celópatra estabelece com ela, uma relação
face a face, onde a confiança é o primeiro requisito de redução de riscos, explicitado
no:“mas da minha mão você só vai receber um baseado no dia que você chegar pra
conversar comigo”. Conversar é o meio de estabelecer elos, mostrando que a
problemática das drogas pode ser “trazida para a sala de jantar” sem ser
necessariamente um assunto indigesto. E mesmo que no pólo contrário esteja sua mãe,
resistente ao consumo, na postura favorável estão os tios e sobrinhos estabilizados e
carinhosos, e mesmo o avô, ou seja, a oposição de sua mãe não determina
necessariamente um ponto de conflito que caracterize uma família disfuncional, pois a
representação que Cleópatra traz para nossa interlocução é a de “uma família muito
grudada”.

Pancho Villa - A gente aprendeu que podia cheirar lança-perfume com os nossos
pais, era normal a gente chegar em casa e com 13 anos eu via meu pai cheirar, falar
que botava na geladeira pra ficar melhor. Cheirava com sete primos no carnaval.

119
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Comecei a fumar (maconha) com meu irmão mais novo, no prédio onde eu morava
todo mundo fumava.

Esta fala de Pancho deixa clara uma situação em que não apenas o especialista
referencial é o próprio pai, mas a configuração relacional mais imediata - irmão,
primos, vizinhos – favorece uma percepção das drogas não como motivo de conflitos,
mas sim como condizente com o pertencimento comunitário. Contudo, não há como
naturalizar esta situação de diálogo e confiança como garantia inquestionável contra os
riscos do consumo:

Marley - Desde quando eu era pequeno minha mãe sempre falou que ela fumava, e
me falou porque ela fumava, e eu nunca tive problema com isso, os amigos dela
também fumam, todos bem sucedidos, todos com grandes exemplos de vida. Aquilo
mostrava pra mim que a relação entre usuários de maconha e marginalidade e falta de
querer fazer as coisas não tem nada a ver. Isso aí é de pessoa pra pessoa. Tem pessoas
que são muito inteligentes, bem sucedidas que são usuárias de drogas.

Nesse exemplo em que há a confiança estabelecida na relação mãe-filho, se percebe


que a representação trazida à tona: - “os amigos dela também fumam, todos bem
sucedidos” – não associa consumo de drogas e marginalidade, pelo contrário.
Entretanto, ter essa representação como mecanismo de redução de riscos não foi
garantia para que Marley não tivesse sérios problemas com seu consumo de crack, que
pelo período de um semestre, o aproximou da marginalidade, inclusive afastando-o de
sua mãe. Outros interlocutores também relataram que suas iniciações com drogas
mesmo quando alicerçadas por uma ambiência familiar de consumo, nem sempre foram
muito tranquilas:

T.V. - Você começou a consumir em que ambiente?


Rimbaud - No meu caso tem uma relação com a galera, mas o contato, a cultura de
fumar começou dentro de casa. Meu pai, ele consome e o irmão de meu pai também. Na
época que o meu pai foi pros EUA, era época de liberdade, aquela coisa hippie. Essa
coisa hoje pra meu pai nunca foi um grilo. Mas ele só descobriu dois anos atrás que eu
fumava. Eu comecei com 15, 16 anos.

120
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T.V. - Você falou que só quando você tinha 20 anos seu pai ficou sabendo do seu
uso, por que durante quatro anos você nunca trocou uma idéia com ele?
Rimbaud - É meio difícil falar isso dentro de casa, eu não me sentia muito aberto pra
falar antes de chegar numa idade, hoje em dia é uma conversa mais fácil, antes eu era
muito menino. Primeiro eu não queria dizer que já tinha fumado, eu tinha um consumo
muito diferente do de hoje em dia, hoje em dia eu discuto a coisa. Isso de ganhar uma
grana e comprar o meu, isso começou a surgir depois que eu entrei na faculdade. Uma
coisa (ruim) de não ter conversado com meu pai, foi a circunstância em que ele
descobriu, foi um nocaute... foi quando eu acabei sendo preso... foi engraçado que foi
na época do aniversário dele. Ele foi me buscar na delegacia, ele tava até bebendo...
ele falou: “ó como é que eu descobri que você fuma...”, aquela coisa. A partir daí ele
veio com o discurso, de que tinha a preocupação de que eu tava abusando da
substância. A gente não mora junto e ele tenta perceber como é que eu tou me
relacionando com a droga.

Já nessa fala de Rimbaud é possível interpretar que há um grau de dificuldade do


interlocutor em estabelecer um diálogo com alguém que para ele, não é apenas um
“pai”, mas um pai que representa a época da liberdade, emblematizada pela sua imersão
na cultura hippie. Talvez pese o receio de sustentar, ante alguém que acabou definindo
uma identidade enquanto jovem, uma auto-representação de um jovem inseguro por não
ostentar uma identidade significativamente estabelecida: “eu não me sentia muito aberto
pra falar antes de chegar numa idade”. Nesse recorte, a prisão de Rimbaud acabou
sugerindo uma representação negativa, marcada pelo estigma, mas que de certa forma
pareceu favorecer uma maior aproximação dialógica entre ele e seu pai: “A gente não
mora junto e ele tenta perceber como é que eu tou me relacionando com a droga”.
Rimbaud não é o único interlocutor que relatou dificuldade de comunicação. Houve um
caso em que a pouca comunicação possível gerou uma representação referencial
familiar não muito edificante:

T.V. - Como foi o início de seu contato com drogas?


Garrincha - Aos 13 anos eu tava cursando a 8° série, e comecei com álcool e
maconha.
T. V. - Como era esse consumo?

121
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Garrincha - Na verdade veio de dentro de casa com a coisa de meu irmão mais
velho. Eu convivi com o fantasma de meu pai biológico que não teve presente, mas
tinha o fantasma do uso de drogas dele, e isso refletia quando eu era criança, eu ouvia
falar sobre o uso de drogas do meu pai... mas não atribuo meu uso de drogas a nada
disso, simplesmente foi a hora que pintou e eu comecei.
T. V. - Havia outras pessoas que consumiam?
Garrincha - A gente morava em Brasília, e tava passando férias em Salvador com
meu primo, meu irmão, e dois colegas. Foi nessa situação que eu fiz a primeira
experiência com a maconha.
T. V. - Você colocou que conviveu com o fantasma de seu pai enquanto usuário,
usuário de que?
Garrincha - Eu era criança quando eu tive essa notícia, minha mãe confirmou, mas
não soube dizer que droga era, mas eu achava que era algo injetável. Eu vi meu pai
recentemente, ele agora veio pra Salvador. Foi a sexta vez que eu vi ele.
T. V. - Vocês teriam abertura pra conversar sobre essas questões?
Garrincha - Abertura eu não sei, ele pra mim é uma pessoa que eu não tenho
intimidade com ele. Eu já tentei, ele teve uns problemas acho que com álcool tempo
atrás, eu levei ele pro lugar onde eu frequento (os Narcóticos Anônimos), ele acha que
tem o controle da situação... Essa coisa dele achar que tem o controle, ele acaba
criando uma barreira que não dá essa liberdade de tar perguntando: que droga que cê
usava? Me lembro que com 16 anos ele dizia: “se tu começar a dar problema aí, vou
trazer tu pra morar comigo”, querendo dar uma de pai.
T.V. - Você acredita mesmo que o fantasma dele lhe persegue?
Garrincha - Quando eu me referi à palavra fantasma, eu tava me referindo àquela
referência do pai, usando como referência o uso de droga dele. Não tenho outra
referência dele.

O fantasma de um pai usuário, que Garrincha trouxe em sua primeira fala e tentou
racionalizar na última, se configura como uma herança maldita, uma representação que
pode ser utilizada por ele como justificativa para a sua impotência ante seu consumo
intemperado de drogas. Seu incomodo com a aparente incapacidade do pai em dialogar,
em estabelecer uma adequabilidade ao contexto, mostra a sua tentativa de trazer uma
relação fantasmagórica para um nível de realidade tal, onde a droga é o fio de contato
que os une. Vale observar que sendo uma pessoa que faz consumo notoriamente

122
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descontrolado de drogas, Garrincha projeta um incomodo muito maior com a falta de


controle no consumo do pai do que com o seu. Nessa inversão de posicionamentos, é
Garrincha que tenta “curar” o pai, e fica frustrado ao não conseguir. É como se esta
inadequabilidade do pai para manter um consumo controlado mostrasse que ele também
não teria recursos para controlar seu próprio consumo. Este relato também se junta a
alguns outros, ao trazer, de forma oposta e complementar, a representação da mãe
tradicionalmente contrária ao uso:

Garrincha - Na verdade, minha mãe, segundo ela, já sofreu com o uso de drogas de
meu pai. Meu irmão já tava também envolvido, já tinha sido mandado pra colégio
interno.

Cleópatra - Eu nunca tive grandes problemas com minha família, minha mãe não
gosta, não fuma, claro que se ela pudesse escolher ela preferia que eu não fumasse,
mas por outro lado ela foi casada com meu pai que fuma por muito tempo, eu sei
também que ela já fumou com ele algumas vezes - ela nunca me falou, meu pai que me
contou como segredo.

T. V. - Sua mãe fuma?


Rimbaud - Não! É um conflito extremo (dela) com meu pai. Depois desse episódio
(da detenção policial) eu comecei a repetir pra que ela soubesse, porque se você
acredita numa nova forma de lidar com a droga, não falo nem em legalização, mas
normalização do consumo, como tem pra cerveja, tem pro cigarro, não vou fingir que
eu não uso, como algumas pessoas fazem, e vou mostrar que eu sou um ser humano que
usa e não vou deixar de ser humano e ser um marginal, entendeu? Minha mãe é o que a
gente chama de “careta”. Ela sabe que eu fui parar numa delegacia, mas não sabe que
foi por causa de maconha.

Se entre estes três pares de pais há conflitos em relação ao uso de drogas, na


formação de valores de cada um dos interlocutores correspondentes, opera uma
elaboração para a tensão resultante: Em relação à Garrincha, o fantasma do pai parece
ser-lhe muito mais atraente do que repulsivo, na medida em que sem perceber ele acaba
não só seguindo-lhe o rastro, mas usando-o como modelo de representação. Cleópatra
não sustenta como negativo o não consentimento da mãe para seu consumo, chegando

123
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até a tirar vantagem da situação, pois o segredo compartilhado com o pai sobre o rápido
momento de consumo de maconha por parte de mãe, estreitou-lhes a confiança. Já
Rimbaud leva o conflito para a dimensão da “luta política” por direitos, que de certo
modo o impulsiona a forjar sua identidade, a buscar respeito no embate entre seus
valores e os valores impostos por sua mãe, na medida em que esta – a “careta” -
representa os valores dominantes na sociedade. Entretanto, é preciso ressaltar que a
comunidade de usuários que tem raízes familiares não deve ser reduzida exclusivamente
a laços de sangue, pois as comunidades contemporâneas não se sustentariam só com
“raízes consanguíneas”, elas necessitam de “antenas eletivas”. Na perspectiva da
ativação dessas “antenas”, laços afetivos com características familiares passam a ser
forjados entre os pares que configuram as comunidades de estudantes universitários
onde os interlocutores atuam. Se não é viável falar de uma comunidade de estudantes
que são usuários, mas sim de comunidades de estudantes usuários, cada uma com suas
peculiaridades, é viável começar a análise por uma delas, no caso, a estigmatizada
comunidade de estudantes usuários dos cursos de Humanidades da Universidade
Federal da Bahia:

Cleópatra - No meu campus tem muita gente que usa principalmente maconha, mas
na verdade tem um estigma de que lá só tem doidão, todo mundo fuma maconha, mas
se comparar tem muito mais gente que não fuma do que gente que fuma.
T.V. - Esse estigma lhe incomoda?
Cleópatra - Não, não incomoda tanto, o que incomoda mais é ser um estigma criado
por sermos da área de humanas.
T.V. - Você acha que esse preconceito não acontece em outras áreas?
Cleópatra - Eu acho que em outras áreas devem existir outros preconceitos, mas no
caso da maconha e das ciências humanas é algo que “casou” pra criar esse
preconceito.

É possível interpretar que Cleópatra diz que não se incomoda, já se incomodando.


Cleópatra, como uma pessoa que está envolvida numa comunidade na qual acredita, se
incomoda sim, que sua comunidade seja estigmatizada. Foi perceptível que ela até então
muito tranquila, fechou um pouco o semblante. O dado trazido, de que o número de
fumantes não constitui uma maioria entre os colegas, não quer dizer que não seja
significativo. Quanto à associação de maconha com ciências humanas ter por objetivo

124
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estigmatizar as pessoas consideradas “mais intelectualizadas” – os heréticos com


potencial para serem consagrados - se ainda estivéssemos no período da ditadura, seria
uma reflexão mais pertinente com os mecanismo de controle social em curso. Porém,
hoje em dia, essa reflexão pode ser interpretada como operada exatamente por quem
sendo mais intelectualizado, não quer que sua representação – e de sua comunidade - se
resuma ao consumo de maconha. Uma outra estudante da mesma faculdade tem um
ponto de vista um pouco diferente sobre a representação da comunidade em questão:

Leila Diniz - Eu fumava pouco, quando entrei na universidade eu fiquei abismada


porque as pessoas fumavam demais. Eu perguntava como é que vocês conseguem fumar
todos os dias, fumar e ir pra aula? Eu fumava em festas, eu nunca comprava, mas
depois na faculdade comecei a comprar...
T.V. - O grupo de universitários usuários que você conhece é de pessoas integradas?
Leila Diniz - São, com certeza são, porque os acadêmicos são socialmente
integrados.
T.V. - Olha, isso não é o que eu tenho observado, não necessariamente...
Leila Diniz - Eu falei isso porque é um grupo de uma classe média alta... é uma
problemática o uso de maconha aqui... hoje em dia existe uma pasta do diretório
acadêmico de drogas, inclusive a diretora quando entrou, começou com uma reação
ofensiva com a galera que tava fumando... certa vez ela olhou pra mim e disse: “olha a
cara dela!” eu disse: “me respeite, o que é isso?”

Se algumas pessoas associam ciências humanas e maconha veiculando um


preconceito que estigmatiza a comunidade de ciências humanas como um todo, também
pode ser observado que sustentar que todo estudante usuário é integrado por ser de
classe média é um preconceito que busca dar alguma distinção ao usuário de ciências
humanas de classe média. Enquanto o primeiro preconceito busca desqualificar o
estudante de ciências humanas por ser usuário, o segundo preconceito procura
requalificar o estudante usuário por ser de classe média – e nas entrelinhas silogísticas
dessa reflexão, se deixa margem para sustentar que o usuário problemático é aquele que
mesmo sendo universitário, não tem o status de pertencer à classe média. Entre estigmas
e distinções, a existência de uma pasta acadêmica sobre drogas, emblematiza a
intensidade do conflito – o embate entre a estudante e a diretora não deixou dúvidas – e
até em função da existência desse arquivo, é possível que alguns usuários percebam o

125
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pesquisador – que a essa altura já beirava a paranóia - como alguém infiltrado entre os
nativos para catalogá-los. Ampliando a perspectiva comparativa da observação, esse
campus universitário não é o único setting de consumo de drogas onde há conflito:

T.V. - Hoje na escola de música há consumo de drogas?


Mozart - Rapaz, quando eu entrei tinha uma galera barra pesada. Bateram boca
com chefe de departamento, chegou o ponto do diretor da escola ir lá em cima (risos),
só que ele era muito legal, entendeu a história porque era muito ligado à Arte. A gente
fumava e produzia, levava violão, era o nosso ambiente, o timing era outro. Tinha os
doidozinhos lá que sentava e estudava mesmo... A música era algo ligado ao prazer,
muito forte.
T.V. - Havia um conflito entre usuários e não usuários?
Mozart - Sim, tinha cara feia, e isso mudou agora. Raramente eu vejo alguém
fumando maconha na escola, ou já vem fumado ou tá lá embaixo e fuma. Não tem mais
aquele grupo que fumava, ia pra aula doidão, isso não existe.
T.V. - Você acha isso uma coisa positiva ou negativa?
Mozart - Eu acho isso positivo porque deixou de ser o foco. Eram adolescentes
mesmo, eu via isso, que a galera tava num movimento às vezes de descoberta, deve ter
estudado em escola particular, ainda mora junto com a mãe, tem status de ser um
estudante da faculdade. Então, o cara fica doidão e curte aquele status de poder tar
doidão ali dentro. Eu nunca encarava desse jeito, eu tinha sido doidão mas tava em
outra fase. Entrei na faculdade na época que eu fui pra França, e eu vi aquela
academia de música, e conheci a história dos compositores e comecei a viajar nessa
onda. Eu ia pra rua e via os caras tocando jazz, eu ia pra rua tocar berimbau doidão e
ganhava dinheiro (risos), botava a cuia lá e ganhava francos.

Mozart percebe uma melhora na representação da comunidade estudantil de sua


unidade com a diminuição dos doidões. Em seu ponto de vista, por algum tempo ele
esteve em meio a uma comunidade imatura no modo como fez uso descontrolado do
poder de representação do usuário: “tem status de ser um estudante da faculdade... o
cara fica doidão e curte aquele status de poder tar doidão ali dentro”, porém, Mozart
não perdeu a capacidade reflexiva para criticar sem rancor, o próprio comportamento –
e essa dimensão autocrítica não corresponde à representação pública dos usuários de
drogas. Além disso, foi no seu período on the road, em meio ao consumo de drogas,

126
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que ele descobriu o valor da cultura universitária. Em sua reflexão, entrar para a
universidade depois dos trinta anos de idade128, não foi desdobramento do fim do curso
de nível médio, mas sim decorrência de sua política de vida na qual não havia maiores
incompatibilidades entre a liberdade para fazer o que queria e a segurança de saber o
que queria. O que houve foi uma maior responsabilidade para guiar sua liberdade em
sintonia com sua segurança.
Seguindo a proposta hermenêutica, é possível observar através dos relatos de outros
interlocutores, que nas configurações universitárias, apesar de levarem a fama, os
estudantes não são os únicos a consumir drogas:

T.V. - Como é o consumo no ambiente acadêmico?


Zumbi - (doutorando no curso de comunicação) - Tenho vários amigos que fazem
pós-graduação que usam, mas a maior parte não utiliza, entre os estudantes, agora
entre os professores a maioria utiliza, geralmente maconha e cocaína, e utilizam com
alguns orientandos selecionados, porque eles não gostam de se expor.
T.V. - Você acha que essa é uma boa relação entre orientador e orientando?
Zumbi - Geralmente esse uso não é em horário de produção acadêmica, é um
horário de confraternização. Não vejo problemas.
T.V. - Dá pra comparar o consumo acadêmico em sua cidade natal – capital de um
estado do sudeste - e em Salvador?
Zumbi - Lá é bem pior, lá grande parte dos alunos fumam e fumam pelo campus
todo. Andando no campus daqui eu vejo poucas rodinhas. Aqui não tem muito essa
convivência do campus, a pessoa vai pra faculdade estudar e depois quando acaba, não
vai “fumar um” com os amigos, vai pra casa fumar ou fuma no carro.
T.V. - E enquanto professor, você já teve oportunidade de ver em sala de aula alunos
sob efeito de drogas? Pergunto isso porque alguns professores dizem que as drogas
prejudicam o rendimento do aluno.
Zumbi - Não, não vejo assim, não. Alguns chegam em sala de aula depois de ter
fumado um, chegam muito acelerados, acabam atrapalhando a aula, mas são pessoas
que se não utilizassem a droga iam atrapalhar do mesmo jeito. Precisaria de mais
pesquisa pra dizer que aquele aluno é problemático por causa da droga. Inclusive

128
- sendo o único interlocutor com esse perfil etário.

127
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alunos meus – agora eu não tou ensinando, tou com dedicação exclusiva ao doutorado
- depois das aulas eu fumava (com eles) também.

No ponto de vista deste interlocutor, o consumo dos usuários no campus onde faz
pós-graduação é até discreto tendo como referência o campus onde fez graduação.
Mesmo que Zumbi se refira, principalmente, à mesma substância psicoativa a que se
referem interlocutores anteriores, suas percepções não homogeneízam as relações de
poder dentro da comunidade universitária de usuários, como mostra sua fala a respeito
da relação professores/estudantes. Se na pesquisa realizada com professores, foi
constatado que os docentes mantêm alguma discrição quanto ao grau de envolvimento
com os discentes, aqui, na voz de Zumbi, é dito claramente que há consumo conjunto
sim.
Também merece destaque a reflexão de que: “Alguns chegam em sala de aula depois
de ter fumado um, [...] acabam atrapalhando a aula, mas são pessoas que se não
utilizassem a droga iam atrapalhar do mesmo jeito. Precisaria de mais pesquisa pra
dizer que aquele aluno é problemático por causa da droga”, ou seja, será que um
“aluno problemático” que usa drogas é problemático porque usa drogas? Se for possível
sustentar a categoria de aluno problemático, em alguns casos - e talvez não por
coincidência, em faculdades particulares -, a comunidade universitária pode até ser
interpretada por estes estudantes como terapêutica:

T.V. - Na faculdade você percebe o consumo de drogas?


Garrincha - Quando eu entrei na faculdade eu tomei a decisão de não usar droga.
Parece conversa, mas ou encontra outro jeito de acontecer ou não dá mais. Eu tava há
dois dias sem usar drogas quando veio a notícia de que passei no vestibular. Fiquei
mais de um ano sem usar droga e sem nenhum tipo de internação! Hoje eu considero
maconha e álcool como droga também, porque algumas vezes que eu tentei ficar sem a
cocaína e continuava fazendo uso da maconha, eu frequentava os mesmos lugares,
encontrava as mesmas pessoas, em questão de tempo eu tava retomando o uso da
cocaína. Nos dois primeiros semestres eu não tive contato na faculdade com pessoas
que usavam drogas, é lógico que eu sacava quem usava, mas não tinha nem conversa a
respeito disso. Eu já vi algumas pessoas usando, vi algumas pessoas chegarem com
cheiro de droga.
T.V. - Quando você retomou o consumo isso foi fora da faculdade?

128
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Garrincha - É, o consumo foi fora da faculdade. No segundo semestre eu não perdi


nenhuma matéria na faculdade, e aí veio uma recaída e eu acabei perdendo o terceiro
semestre inteiro. Inclusive eu já tava estagiando num veículo de comunicação bem
conceituado.
Quando eu iniciei a faculdade foi a minha primeira experiência sem droga, a
impressão que eu tinha é que tava escrito na testa: usuário pesado! Até que um dia uma
colega falou: o Garrincha é ingênuo, o Garrincha não tem maldade! Então tá
mudando, essa imagem que eu tenho a meu respeito é aquela coisa que as pessoas não
têm. Eu entrei na faculdade com toda aquela carga que eu vivi e achando que aquilo
tava estampado na minha cara. E as pessoas me viam participando na aula, chegando
no horário. Então consegui algumas amizades.
T.V. - Você chegou a conversar com esses amigos sobre suas questões com drogas?
Garrincha - Não. Tem uma pessoa só na faculdade que sabe.
T.V. - Usuária?
Garrincha - Não sei, acho que não.

Se o estigma é a única marca identitária estabelecida, então como reconhecer-se e ser


representado de outro modo? Garrincha pensa a comunidade universitária como a
alternativa terapêutica possível para o seu estigma “estampado na cara”. Tão carregado
pelo fardo, ele é surpreendido quando uma colega o exime da “maldade”. Aos seus
olhos, a solução é ficar invisível aos olhos dos outros colegas e principalmente aos
olhos dos colegas usuários, pois a carreira de estudante universitário é seu maior
investimento para ressignificar sua representação pública. E Garrincha não é o único
interlocutor que não vê o consumo na academia com bons olhos:

T.V. - Como é que você vê o consumo de drogas dos outros no ambiente acadêmico,
de estudo?
Marley - Eu acho que atrapalha, porque no meu caso quando eu fumava me dava
sono, preguiça de estudar, pode não ser com todo mundo, tem pessoas que conseguem
fumar e prestar atenção na aula, mas eu mesmo fico disperso.

129
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129
Se não se mostra tão preocupado com sua representação quanto Garrincha ,
Marley se mostra muito interessado em construir uma carreira profissional - esse
interlocutor já indicou anteriormente que reduz o consumo em período de maior
necessidade de produção. Se reduzir não é parar, é buscar algum controle, Marley vai
oferecendo indícios de que a inserção na comunidade universitária é a sua opção de
reduções de riscos sociais, a sua alternativa para configurar um reencantamento130 com
o cotidiano, num processo facilitado pela posse da carteira de estudante. Esta
ressignificação da cultura universitária por parte de alguns universitários usuários nada
mais é do que uma revisão reflexiva do que pode ser a educação, pois, muito mais do
que formar profissionais competentes, o setting do ensino superior tem potencial para
formar cidadãos que busquem equilibrar razão – segurança - e emoção - liberdade.
Este reencantamento pode ser configurado através de uma cultura universitária que leve
em conta as questões de ordem afetiva/emocional dos estudantes. O caso de Marley é
um bom exemplo desta situação, pois o que ele busca é o equilíbrio entre seus controles
emocionais e sua capacidade de administrar conhecimentos.
Como pano de fundo para essa possível ressignificação da comunidade universitária
que enfatize além da produção de conhecimento, a adequabilidade emocional dos
alunos, se encontra um certo hedonismo contemporaneamente configurado. O que essa
reflexão sugere? Sugere que esta comunidade ao trazer como um dos seus dispositivos
centrais, uma película de redução de riscos, não esteja necessariamente buscando, entre
os efeitos desejados, a anulação da liberdade e do prazer. Uma contradição? Não
exatamente, apenas mais uma aporia, entre as muitas que caracterizam a cultura de
consumo, cultura onde transitar entre a liberdade e a segurança passa a ser mais uma
opção. A obrigatoriedade de optar entre liberdade ou segurança, se ainda é dominante,
não é mais hegemônica.
A hedonização da cultura contemporânea já não proporciona tanto estranhamento e
cada vez mais se aproxima de ser configurada como parte da regra estabilizada, se
afastando de ser a marginalizada exceção à regra. Vale ressaltar que esse hedonismo
referido não é intemperado, sem controles: “O fim do ‘goze sem entraves’ não significa
a reabilitação do puritanismo, mas, sim, a ampliação social de um modelo de hedonismo
normalizado e administrativo, higienizado e racional. Ao hedonismo desregrado seguiu-

129
- inclusive, Marley se disponibilizou para contar publicamente sua trajetória, caso isso ajudasse outras
pessoas a não viverem as agruras que ele viveu.
130
- e reencantamento na perspectiva de Mafessoli (1995) reside na busca pelo prazer, pela alegria de
viver em tribos não limitadas pelos excessos de racionalidades.

130
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se o hedonismo prudente, ‘limpo’ e vagamente triste.” (Lipovetsky: 2005,193). Esse


modelo aporístico de hedonismo que não exclui a redução de riscos, até propicia um
equilíbrio sedutor e consumível entre segurança e liberdade, ou melhor, favorece o
consumo de liberdade com margens de segurança. Eis a fórmula da felicidade!
Se nesse reencantamento do cotidiano há uma quase obrigação moral de consumir
felicidade, uma cultura universitária onde se considere a política de vida dos seus
integrantes, não está tão na contramão da história. Em uma cultura alicerçada pela
informação, as infinitas e sedutoras opções de consumo encontram na reflexiva
comunidade universitária um canal de receptividade com potencial para favorecer
escolhas que podem ser mais ou menos edificantes na distinção entre múltiplos capitais
culturais – que por sua vez podem ser mais ou menos hedonistas, de acordo com as
perspectivas de consumir doses de felicidade, seja optando por um cigarro, um copo ou
um comprimido.
O reencantamento que acompanha esse consumo hedonista nas comunidades
universitárias favorece uma postura reflexiva em torno das informações sobre drogas e
passa pela ressignificação da representação dos especialistas tradicionais – nesse setting
representados pelos docentes - pois estes, não só como formadores de opinião, mas
como formadores de conduta, têm em suas mãos: “um entrelaçamento articulado de
redes globais e locais de estruturas de informação e comunicação” (Beck, Giddens &
Lash:1997,147). E é refletindo sobre esse sistema especialista que um dos interlocutores
busca definir seu modelo de hedonismo racional e temperado:

Pancho Villa - Quando eu era garoto li um livro que falava de várias drogas e pra
mim chamou muito a atenção que dizia que maconha era uma droga que não causava
overdose, e eu pensei: que porra é essa? Isso instigou várias coisas e desde então eu
comecei a ler tudo sobre maconha. Na sequência descobri que os amigos no prédio
fumavam e as primeiras vezes que fumei pensei: o efeito é muito bom, bom pra caralho!
Descobri que falavam mal de uma coisa que não fazia mal. Me senti na obrigação de me
colocar como usuário e defender contra alguém que falava mal, que eu sabia que era
mentira. Eu sempre li muito, eu sempre fui da turma o excêntrico, quando eu passei a
fumar passei a ser o que defendia a maconha.

Pancho, em sua condição de usuário universitário, se sente devidamente


instrumentalizado para abraçar a representação de um estudioso que se especializa em

131
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temas outsider. “Descobri que falavam mal de uma coisa que não fazia mal. Me senti na
obrigação de me colocar como usuário e defender contra alguém que falava mal, que eu
sabia que era mentira.” Essa situação é plenamente compatível com uma postura de
alguém que encontrou o reencantamento com o conhecimento não através da teoria mas
sim de sua própria prática, o que o leva à ressignificação de estigmas e à construção de
um discurso com instrumental universitário intensamente reflexivo. Pancho almeja
não só contestar um parecer de especialistas como também busca se tornar um
especialista ao contestar tais especialistas. Na prática, o que Pancho descreve é o que
chamo de uma hermenêutica “tripla”131, virtualmente dialogando com Scott Lash
quando este pondera sobre a importância dos sistemas especialistas132: “a reflexividade
na modernidade implica uma liberdade crescente dos sistemas especialistas e uma
crítica a eles... A reflexividade não é baseada na confiança, mas na ausência de
confiança nos sistemas especialistas” (Beck, Giddens & Lash:1997,142). A falta de
confiança em certos especialistas sobre consumo de drogas fez com que Pancho
buscasse configurar uma nova leitura sobre este consumo, leitura que ele faz questão de
compartilhar com seus colegas da cultura universitária. Especificamente nesse caso, se
tornar um tipo de especialista parece ser um desejo antigo, uma motivação primária que
Pancho cultivou através dos anos:

Pancho - Tentei a primeira vez jornalismo (no vestibular), pois desde o começo,
minha idéia era ser conhecido como alguém que sabia o que tava falando sobre
maconha. Esse é o ponto de partida na minha adolescência. Eu parti pra buscar uma
carreira que me desse um prestígio de tar falando e a minha fala sobre determinado
assunto fosse respeitada.

Não apenas falar sobre maconha, mas Pancho ao falar, quer ter sua fala respeitada,
consagrada a distinção por retificar uma inverdade: “Me senti na obrigação de me

131
- A hermenêutica tripla é uma tentativa do pesquisador em estabelecer um diálogo com Giddens no
sentido de que: “Para Giddens, a reflexividade na modernidade ocorre por intermédio de uma
‘hermenêutica dupla’, em que (embora o primeiro meio de interpretação seja o agente social) o segundo
meio de interpretação é o sistema especialista.” (Lash in: BECK, GIDDENS & LASH: 1997,142). A
hermenêutica tripla objetiva a superação do segundo meio de interpretação, quando o especialista
primeiro se torna apenas informação para um agente que, com as reflexividades em torno dessa
“informação” passa a ser o especialista, aquele que no setting configuracional específico pode ser o mais
adequado para satisfazer suas demandas.
132
- “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos
ambientes material e social em que vivemos hoje” (Giddens:1991, 35).

132
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colocar como usuário e defender (a maconha) contra alguém que falava mal, que eu
sabia que era mentira”. Qual a sua estratégia? Ele buscou configurar uma carreira
universitária construída com uma sólida representação de pesquisador, o que requer
doses de temperança que muitos colegas usuários talvez não disponham. E Pancho
parece obter, num primeiro momento, certo êxito entre os discentes, mas também entre
os próprios docentes, especialistas por excelência:

Pancho Villa - Por enquanto tem sido tudo perfeito. Só um professor de metodologia
que ficou resistente (ao seu projeto de pesquisa sobre o consumo de maconha). Outros
professores acharam ótimo. Inclusive alguns professores vistos como caretas, já me
disseram que tiveram vontade de experimentar. Levei agora a discussão pro CETAD
(Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas), e foi bastante bem aceito. Já me
chamaram pra fazer uma apresentação na escola de Belas Artes, onde existe um
conflito com os maconheiros. O pessoal de Biologia me chamou pra falar na semana de
Biologia. Falei no Fórum Social com o pessoal que trabalha em comunidade com
projetos de saúde. Apresentei a redução de danos. Uma senhora presente me disse que
nunca ouviu falar disso e que eu precisava falar sobre redução de danos nas escolas de
ensino médio, de segundo grau.

Se estes dados indicaram que a representação de Pancho enquanto especialista no


tema estava prestes a se tornar estabelecida, as relações de poder que envolvem a
problemática do consumo de drogas, lhe impuseram um revés, pois o conflito de
interesses entre o status quo proibicionista e a proposta de debate antiproibicionista em
torno da Marcha da Maconha133 colocou sua posição em xeque: de especialista, passou a
correr o risco de ser representado como apologista.

133
- A Marcha da Maconha 2008 acabou configurando uma polêmica diferente da que pretendeu levantar,
pois o ponto central da discussão foi deslocado para o direito democrático de trazer a público, temáticas
consideradas hereges e que alguns setores ortodoxos da sociedade preferem que fiquem longe da
reflexividade popular por acreditá-las explosivas demais.

133
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2.6 – Mas o que é que o interprete interpreta?

Antes de seguir o processo reflexivo e tendo como referência a noção de que a


completude desta narrativa não se dará antes que o leitor execute suas reflexões sobre o
texto, é necessário operar uma breve mediação metodológica para legitimar os
parâmetros narrativos. Inicialmente, de que recursos disponho para dialogar
duplamente; com os interlocutores em campo e com as minhas referências teórico-
metodológicas? Para não correr o risco de querer me aproximar do leitor do texto me
afastando do interlocutor que encontrei em campo, elejo a hermenêutica como recurso,
na medida em que esta, desde a primeira parte do projeto, se mostrou uma ferramenta
metodológica hot, isto é, que permite configurar uma perspectiva dialógica, no sentido
de salientar as peculiaridades das vozes presentes no diálogo, e que também abre ao
leitor, a possibilidade de ser um intérprete deste diálogo. Assim sendo, busco minimizar
corriqueiras reduções processuais que podem ocorrer, como a monologização do
diálogo – tipo: “agora que também sou nativo, entendo o pensar e estou autorizado a
falar pelo Outro” - que se desenha quando o estranhamento se torna familiaridade.
O que está aqui proposto é uma construção na qual procuro não incorporar a fala do
Outro à minha fala, mas sim problematizá-la com a fala que sustento. Esta perspectiva
reflexiva tem potencial para superar tanto a dicotomia sujeito/objeto quanto a dicotomia
metodologia/teoria. Tal proposta considera que a descrição ou a interpretação mantêm
uma interface que pode ser representada como uma gradação, onde as sequências
configuradas são mais ou menos sistematizadas em função do objeto. O que esta
proposta hermenêutica rechaça é um discurso estritamente descritivo onde o
pesquisador “naturalmente” represente o pesquisado, num sentido de representação
platônico - universalizante e transcendental, adverso ao glocal e processual. Na
construção das minhas percepções reflexivas numa teia de significados configurada com
os significados propostos pelos interlocutores, tenho convicção de que se talvez entre
estes eu possa ser até considerado um nativo, só o sou até o ponto em que não ameaço
concretamente seus nativismos.
A hermenêutica enquanto ferramenta reflexiva me potencializa para reduzir a
ameaça de riscos aos interlocutores na medida em que me permite configurá-los não
como exóticos em relação ao familiar ou como familiarizados em relação ao exótico,
mas sim como exóticos em relação a minha familiaridade com o exótico e
familiarizados em relação ao seu exótico familiar. Com esse recurso metodológico em

134
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mãos me sinto autorizado a “participar” de seus contextos, de suas configurações


culturais, onde as teias de significados do consumo de drogas podem vir a ganhar
sentido.
Em relação à cultura de consumo a hermenêutica favorece uma concepção de cultura
na qual as representações que não possam ser relacionadas com as contingências tendem
a perder fôlego – nesse caso isso significaria não perceber como o consumo de
substâncias psicoativas possibilita criar vínculos e estabelecer distinções sociais, na
medida em que as drogas são culturalmente revestidas de camadas de valores que por
sua vez são potencializadas de acordo com as contingências do setting. As
contingências indicam que a ausência de perenidade das representações é a condição
que viabiliza pensar uma cultura de consumo. Assim, na prática, as pesquisas em
ciências sociais que não dialogarem com as contingências que envolvem o acesso à
cultura dos interlocutores, e ao invés disso congele-os na “camisa-de-força teórica”,
correm o risco de desconstruir o objeto ao invés de construí-lo. Dialogar é estar atento e
aberto às incertezas e aos riscos, interpretando os processos culturais enquanto teias de
valores e significados interdependentes, interpenetrados e processuais. Como já disse
Geertz:

“Acreditando como Weber que o homem é um animal amarrado às teias de


significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias
e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de
leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.”
(Geertz: 1989, 4).

Se assim for, cientificamente a interpretação pode ser uma valiosa construção


dialógica com o que os outros “pensam e fazem”, e ao fazer uso desse procedimento
hermenêutico, estou também possibilitando que outros interpretem o que eu penso e
faço. Encarando o risco da proposta, interpretar o papel de hermeneuta numa
investigação sobre consumo de drogas é assumir que o sujeito que ao tentar se
aproximar para interpretar correndo o risco de se distanciar, também pode e acaba sendo
interpretado. Em última instância, este é um risco inevitável e até esperado quando se
está numa configuração polifônica: como assimilar as interpretações da interpretação. A
essa elaboração, acrescento que para ter alguma familiaridade com os significados
configurados pelo Outro, assim como ter referências num repertório interpretativo
adequado à comunidade em foco, não é fundamental me tornar nativo – e os
interlocutores me mostraram mais de uma vez que sabem da quase impossibilidade

135
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dessa imersão na cultura nativa se concretizar integralmente. O que se faz fundamental é


acreditar na possibilidade de dialogar com estes nativos, sem desconsiderar os sotaques
e os vícios de linguagem...
Para que a interpretação não se resuma a um relativismo extremo – um possível
olhar etnocêntrico do pesquisador - é preciso assegurar que o intérprete saiba-se
interprete. Assim, interpretar não é simplesmente se aproximar do que soe familiar, pois
o que é familiar não gera necessariamente um conhecimento dado. Interpretar deve ser
buscar se distanciar, se alienar a familiaridade com o familiar para melhor observá-lo.
Esta abordagem hermenêutica ao reconhecer que configurativamente, pesquisador e
pesquisados podem ser da mesma natureza, não resume minha perspectiva a
socioantropologia, pelo contrário, abre o leque para uma aproximação com a filosofia.
Num rico debate com Richard Rorty sobre relativismo (Souza: 2005), Jurgen Habermas
traz à tona algumas idéias de Dilthey. Para este último, os interpretes fazem parte de
contextos, assim muitas vezes tendendo a não registrar o posicionamento original em
campo dos objetos interpretados. Se Dilthey concebe um interprete como um
participante da história interpretada, esta é a situação na qual me encontro. Ele defende
em sua formulação, de acordo com Habermas, que “As interpretações podem ser
profundas ou superficiais, mas não verdadeiras ou falsas” (Souza:2005, 67), na medida
em que não é mais A Verdade que está em jogo, e sim contextos, onde, no ponto de
vista de Rorty, algumas interpretações podem ser mais autênticas – o que os nativos
tendem a interpretar como mais verdadeiras - do que outras. No curso da cultura de
consumo, esta proposta interpretativa encontra eco na medida que rortyanamente “a
função reveladora do mundo tornou-se reflexiva” (Souza:2005, 75) havendo contextos
variados para diferentes verdades. No presente estudo, não é difícil perceber que tanto
os consumidores de drogas como aqueles que os discriminam, se mostram convictos de
suas verdades e estão dispostos a prová-las ao outro. Como pesquisador, a aporia entre
estas duas verdades é a verdade que posso e devo pesquisar.
Indo além no diálogo filosófico, Rorty por sua vez cogita a respeito da
adequabilidade do melhor argumento para uma específica audiência, uma específica
comunidade, adequabilidade que caracteriza a substituição estratégica da verdade única
por uma racionalidade que não tem como fundação as argumentações universalizáveis, e
que se configura através de conexões sentimentais, de vínculos de confiança134. Rorty

134
- nessa proposta rortyana, diferentemente da habermasiana, é preferível pensar em comunidades ao
invés de Comunidade.

136
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ao manter estas “opções de acesso a verdade” abertas, contextualiza a hermenêutica


como uma prática democrática e que por isso mesmo pode ser universal sem
necessariamente ser universalizante.
Ora, se em certos contextos, em meio a certas audiências, há verdades
argumentáveis de modo mais autêntico do que outras, não seria exatamente esse
argumento mais autêntico diante de uma específica audiência, o que procuro capturar
nas representações sustentadas pelos meus interlocutores? Suas estratégias de
sobrevivência apesar dos estigmas? O que pode me assegurar ter tido acesso a esse(s)
argumento(s) é exatamente o dado de que com parte dos interlocutores não estabeleci
uma relação de confiança imediata. Essa ausência de empatia instantânea
paradoxalmente me deu acesso aos seus argumentos mais autênticos – interpretando que
eu sou a audiência que representa “as audiências ausentes”, ante as quais eles assim
encontraram uma boa oportunidade para erguerem suas vozes e estabelecerem suas
verdades, oportunidade que alguns não tinham tido até então. Metodologicamente essa
falta de empatia e confiança de alguns interlocutores para comigo foi a verdade mais
desafiadora e adequada para os objetivos do projeto aqui apresentado. Pelo menos assim
interpretei.

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III – A ação

3.1 - Cortes etnográficos: aproximações e apreciações

Apesar de já ter feito referência às resistências que encontrei em campo, talvez seja
interessante relatar que enquanto ainda a pesquisa não era de conhecimento público, a
minha aproximação inicial não foi tão difícil. Por ter sido acidental, foi até fácil. Entre
2003 e 2004 enquanto estava realizando a primeira parte da pesquisa, centrada no
consumo de professores, ministrei um curso intitulado Drogas em curso! no CETAD.
Este foi um curso dirigido para estudantes universitários onde 60% da turma foi
constituída por usuários, 20% por ex-usuários e 20% não se considerando usuários –
apesar destes fazerem uso social do álcool, não o consideravam como droga. O
diferencial entre os estudantes usuários e os ex-usuários é que os últimos foram usuários
problemáticos de droga lícita, o álcool etílico, – inclusive havendo envolvimento com
violência e prisões – ao passo que os usuários de droga ilícita – a maconha,
principalmente – que “estavam na ativa”, não eram usuários problemáticos, conseguiam
manejar bem seus vários papéis sociais sem deixar que o consumo lhes estigmatizasse.
No curso, a demanda desses últimos, além da busca por novas informações sobre o
consumo, era uma procura por ferramentas científicas que possibilitassem a construção
de uma via de representação para a categoria dos usuários menos impregnada por
valores estigmatizados/estigmatizantes. Boa parte do curso foi gasta com discussões
sobre possíveis representações que os reconhecessem como inseridos nas redes de
produção e consumo e não como excluídos. Merece destaque que dos dez participantes
sete pertenciam a área de ciências humanas, o que me fez pensar que esta realmente
seria uma área profícua para observação. Nesse momento em que possuí o status
temporário de professor, conheci alguns interlocutores que futuramente iriam participar
da segunda parte da pesquisa.
Algumas semanas depois de iniciado o curso, guiado por um estudante de graduação,
realizei uma aproximação junto a um grupo que estava frequentando “o mirante” de
FFCH, já citado pela estudante redutora de danos (pg.90). Havia oito pessoas reunidas,
cinco homens e três mulheres que não deveriam passar dos 25 anos. O guia me
apresentou como alguém que estava ministrando um curso sobre drogas135, mas que não

135
- Nesse momento ser apresentado como professor causou menos estranhamento entre os estudantes do
que posteriormente quando fui percebido por outros interlocutores como estudante pesquisador.

138
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era um curso com perfil proibicionista. Este último juízo de valor que creditou ao curso
uma representação antiproibicionista, garantiu que os presentes não me vissem como
um opositor aos valores do grupo. Como resultado, eles me olharam sem manifestar
maiores estranhamentos ou entusiasmos. Um deles me perguntou jocosamente: “e pode
fumar lá dentro?” Depois de alguns risos, quando eu disse que essa não era a proposta,
ele não manifestou maiores interesses sobre o curso, assim como os outros que
continuaram conversando. Após esclarecer qual era a proposta, e sem querer forçar a
aproximação num primeiro contato, entrei numa conversa que alguém puxou sobre
música. Um baseado estava aceso circulando de mão em mão e um outro estava sendo
confeccionado em meio a conversas paralelas. Três dos presentes não estavam fazendo
uso, mas isso não pareceu ser motivo de conflito ou constrangimento.
Um dos presentes fumou o baseado deitado numa rede armada entre dois coqueiros,
quando comentei sobre a coincidência dele estar com uma rede à mão num momento
como aquele. Meio que surpreso com minha observação, ele retornou: “não é
coincidência não, eu trago essa rede todo dia pra fumar um aqui!”. Como ninguém riu,
percebi que não era uma piada. Tal discurso soou relevante, já que pareceu se encaixar
na representação de que “a galera do mirante” não quer nada além de fumar maconha,
numa explícita entrega irrestrita ao princípio de prazer. Mas o comportamento
específico daquele usuário talvez não seja tão típico – apesar de servir como estereótipo
– pois demanda certa racionalidade instrumental: para montar a rede, o usuário teria que
transportá-la frequentemente – sendo que ele não possuía um veículo - quer dizer, para
configurar um setting “macunaímico”, este estudante demanda constantemente um set
afetivo-emocional motivado. Essa possibilidade me fez refletir: o que estes estudantes
estão fazendo não é apenas fumar maconha e se divertir, eles estão configurando um
setting de produção universitária como um setting de convivência, setting onde as
possibilidades de segurança se encontram interpenetradas com as possibilidades de
liberdade.
Bem, como cada setting tem suas configurações específicas, uma professora chamou
a atenção de que, na então Faculdade Jorge Amado, uma das mais respeitadas
faculdades particulares de Salvador, os valores e representações dos estudantes são bem
distintos destes citados acima. Um grupo de usuários de maconha que costumava se
reunir para fumar no estacionamento não foi tão tolerado e acabou sendo denunciado
pelos próprios colegas à diretoria que autorizou a entrada da polícia no campus para a
detenção dos infratores. Um deles chegou a ser indiciado como traficante. Além do

139
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antagonismo de valores entre os estudantes e a direção nesta faculdade, chama a atenção


o conflito de valores entre os próprios estudantes, pois alguns estudantes não fumantes
ficaram ao lado dos colegas detidos, lhes parecendo menos problemático o uso de
maconha do que a invasão do campus pela polícia e a detenção de um colega. De modo
geral, de acordo com o que relatam alguns professores, os alunos desta faculdade – e
das faculdades particulares de forma geral - são menos tolerantes com o consumo de
maconha do que os alunos não fumantes da citada unidade da UFBa, que não se
incomodam tanto com a “galera do mirante” contanto que ela não saia de perto do
mirante.
Nesse ponto, a mercadificação da educação gera uma escala de valores entre as
instituições de ensino superior que não é medida apenas pelo IGC136. Os próprios
estudantes de instituições particulares sabendo que muitas destas são menos “bem
cotadas no mercado”, reflexivamente são levados a buscar mecanismos de defesa que
lhes assegure alguma representabilidade distinta. O consumo de drogas é um discurso
que segue na contramão desta distinção. Uma faculdade particular onde o consumo é
notório é uma faculdade com cotação negativa no mercado e nisso é possível que pese a
repercussão da categoria ‘universitário usuário traficante” que ficou atrelada ao filme
Tropa de elite.
Como não poderia deixar de ser, a mídia local também incorporou a categoria
universitário usuário-traficante emblematizada no referido filme. Um exemplo é a
matéria: Flagrante, uso de drogas na UCSal!, exibida em 27/10/07 no teleprograma Se
liga Bocão!. Na reportagem, aos exibir imagens de jovens fumando maconha no
estacionamento do campus, o teleapresentador Bocão energicamente pede que a polícia
use a lei: “não importa se é usuário137 pois quando é preto, pobre, do subúrbio, a polícia
desce a madeira!”. A matéria, que após circular no Youtube por alguns dias foi retirada
do ar, diz que jovens universitários se reúnem não para estudar, mas para usar drogas.
“São jovens universitários... a droga é comprada ali mesmo no local... o tráfico não é
reprimido, não se preocupam se estão ou não sendo observados”. Se os estudantes não
se preocupam de estarem sendo observados é algo discutível, pois como se percebe, a
filmagem foi feita de modo camuflado, mas não há dúvidas de que os controles
informais que poderiam oferecer alguma segurança à comunidade destes usuários foram

136
- Índice Geral dos Cursos.
137
- na verdade, este pode ter sido um significativo lapso de linguagem, já que o apresentador
possivelmente quis dizer: não importa se é universitário.

140
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deixados de lado. Em meio ao movimento dos carros, vários usuários fumam e


comercializam abertamente, numa exposição com muito mais visibilidade do que a da
“galera do mirante” na UFBa. Recurso corporativista ou não, ao defender a comunidade
de usuários da UFBa em relação à visibilidade do consumo e mesmo à acusação de que
há tráfico, Cleópatra foi muito incisiva em apontar que outsider é o outro:

Cleópatra - Onde eu sei que rola constantemente e diariamente (tráfico) é na


Católica. Tudo mundo que frequenta “o mirante” sabe.
T.V. - Tráfico pra sustentar o uso ou tráfico para dar lucro?
Cleópatra - Pro cara “tirar o dele”138, o cara vai lá justamente pra isso.

Talvez o incômodo de Cleópatra se dê porque esse excesso de visibilidade da


imagem – que agora não é apenas a imagem de universitário usuário, mas também de
universitário traficante - é uma representação que gruda na pele das várias comunidades
de usuários, e não apenas na pele daquela comunidade específica.

138
- tirar o dele = ganhar dinheiro.

141
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3.2 - O campo e suas vicissitudes

Estava claro que se eu pretendia realizar cortes etnográficos em determinadas


comunidades de usuários de drogas, seria preciso estreitar laços que possibilitassem ir
além do que possibilita um questionário ou uma entrevista. Assim, metodologicamente,
foi mais vantajoso utilizar as entrevistas como ponto de partida do que como ponto de
chegada, pois a partir das sessões de entrevista fui estreitando contatos que me
facilitaram compartilhar alguns momentos de relativa intimidade. Assim fazendo, pude
perceber em que medida de seu estilo de vida cotidiano, o interlocutor é aquilo que diz
ser com suas palavras – e nem me refiro a representação que o interlocutor acredita que
os outros façam dele, mas de sua auto-representação. Não é nenhuma novidade que o
que uma pessoa diz sobre si mesma, principalmente numa situação de entrevista, não
corresponda exatamente ao seu atuar no mundo.
As entrevistas foram marcadas a critério do interlocutor, geralmente em sua casa ou
local de trabalho/estudo, o que já me favoreceu uma leitura inicial do seu setting. A
maior parte dos sujeitos apresentou um estilo de vida que pode ser identificado como
estilo condizente com as perspectivas das camadas médias urbanas, principalmente pelo
padrão de moradia. Por exemplo, numa das situações antropologicamente mais “ricas”,
um estudante de doutorado em Comunicação que morava só num bairro bem popular
parecia fazê-lo por opção política e não por limitações econômicas. Na condição de
bolsista, sua residência era incrivelmente produzida: dois laptops e um computador de
mesa com conexão banda larga, aparelho de tv de última geração, dois celulares, muitos
livros na estante, além de veículo, e uma verbal mensal para psicoativos em torno de R$
300,00.
Alguns interlocutores sem renda própria ainda moravam com os pais, outros na
condição de bolsistas dividiam moradia com colegas ou companheiros, uma
interlocutora também bolsista morava só numa casa de praia e ainda um deles, oriundo
das camadas superiores, morava com a esposa numa cobertura bastante confortável.
Entre os que não moravam com as famílias de origem, havia vários arranjos, mas
geralmente envolvendo outras pessoas também usuárias, seja como cônjuge seja como
colega. Em relação ao sustento econômico, 55% deles, incluindo os de graduação,
possuía bolsas de estudo, demonstrando que suas qualidades acadêmicas não eram
deficientes. Esta maioria dispunha de recursos para manter seus consumos em dia, e não
só de alimentos e de material de estudo, mas principalmente o consumo de psicoativos.

142
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Também foi perceptível que esses interlocutores possuíam uma bagagem


informacional ampla e atualizada quando falavam sobre questões do momento – como
em tese, se espera de um universitário, mas na prática nem sempre é o que se encontra -,
geralmente manifestando não só informações, mas reflexividade no que dizia respeito à
política, economia, música, cinema, sexo e principalmente sobre drogas.
Se alguns dos interlocutores já faziam parte da minha rede de relações, o que eu
precisei fazer foi utilizar a situação de entrevista como ferramenta de aproximação, um
motivo para estabelecer contato que possibilitasse mais intimidade. Assim, consegui
estabelecer – em certos casos, restabelecer – uma ponte que me permitiu um olhar mais
próximo de seus estilos de vida. Com alguns eu fui a bares, com outros a festas ou
shows, e com aqueles que frequentavam unidades de ensino onde o consumo de drogas
era notório, cheguei a assistir aulas em suas turmas. Em 40% dos casos, cheguei a
frequentar suas moradias, em situações outras que não as de entrevista, sendo que
depois de concluído o trabalho de campo ainda mantivemos algum contato. Faz-se
imprescindível assinalar o quão importante foi o contato inicial, em suas casas ou em
seus ambientes de estudo/trabalho, pois aí já se podia perceber seus mecanismos de
inserção e interação em suas áreas de atuação, seus controles informais. Os que
moravam longe dos pais e eram fumantes de maconha, fumaram durante a entrevista, os
que moravam com os pais, e dentre estes, nenhum era a favor do uso, preferiram ser
entrevistados nas faculdades, onde alguns fizeram uso. Um usuário de cocaína, que
morava só, cheirou a substância durante a entrevista. Nesse sentido, a casa e a rua são
configuradas de acordo com a necessidade contingencial de adequação. Assim há mais
liberdade em casa para consumir quando não há interdição familiar, principalmente
para os que moravam sem os pais. Para estes universitários, a rua significava o risco
desnecessário e que deve ser evitado. Já para aqueles que moravam com as famílias
tradicionais, a rua era um “risco seguro” que valia a pena ser corrido, enquanto a casa
dos “pais caretas” era seguramente um risco a ser evitado.
Como busquei ganhar alguma familiaridade com o que para eles fosse familiar, é
preciso registrar como seus estilos de vida me causaram algum impacto, não
necessariamente positivo ou negativo, apenas como decorrência de algum nível inicial
de estranhamento. Refletindo por este ângulo, as notas de campo não são trazidas em
anexo e sim no corpo do texto, porque tais notas fazem parte da construção do campo,
das ambivalências e aporias que encontrei diretamente no processo de construção dos
dados. Colocar essas notas em anexo seria como colocá-las aparte do campo, como se o

143
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pesquisador estivesse distanciado do campo, o que no mínimo, seria uma desconstrução


da relação sujeito-objeto que se buscou para atingir a familiaridade em questão.
Gradualmente, fui me tornando parte das galeras e cheguei a “ficar” com uma das
estudantes, o que acredito me abriu algumas portas, pois a partir de então, eles já não
demonstravam se incomodar com minha presença – pelo menos não aparentemente –
mesmo quando a droga que o grupo estava consumindo era cocaína139. Após ficar com a
referida interlocutora por alguns dias, eu passei a ser o Cara que ficou frequentando o
grupo, sem que eles se referissem a mim como aquele que chegou como pesquisador,
como outsider. Em última instância eu estava naquele setting de consumo sob a
representação de ter sido o Cara de uma das usuárias, e uma das que tinha voz ativa.
Essa questão da voz ativa e liderança é outro ponto importante a ressaltar nessas
articulações comunitárias. Sempre havia um líder ao redor do qual a atividade do grupo
circulava. A liderança podia ser apontada em função dos capitais culturais sustentadas
pelos membros da comunidade, como por exemplo; possuir uma casa ou um carro para
efetuar o consumo, possuir mais dinheiro para adquirir ou simplesmente pelo carisma
representado. Ao contrário da representação dominante que projeta os usuários de
drogas como caóticos e desorganizados, não tive dificuldades para observar nessas
comunidades que sempre havia um líder ou líderes para evocar o uso, para indicar um
roteiro a se fazer na noite ou direcionar uma discussão. Sempre existia alguém que
ajudava a controlar o descontrole, um líder facilmente perceptível em cada galera que
frequentei. Sem precisar ter sido estritamente pragmático em minha abordagem, sempre
que possível me aproximava dos líderes, ou talvez eles se aproximassem de mim, pois,
queira ou não, se eu estava fazendo uma pesquisa na qual “sua tribo” estava inclusa, se
eles eram realmente líderes, tinham que me deixar claro que eles também estavam de
olho em mim. Mas isso não implicou em animosidade, apenas percebi que dos grupos
em foco, eram sempre estes líderes os que mais queriam saber detalhes sobre mim e
sobre a pesquisa. Essa é outra questão que merece ser levantada. As relações de poder
sustentadas por outsiders tanto em relação a outsiders quanto a estabelecidos, por
heterodoxas e hedonistas que parecessem ser tais comunidades, mantêm estruturas
semelhantes às encontradas em relações estabelecidas. Assim, os outsiders aos grupos

139
- digo isto porque geralmente o consumo de cocaína é cercado de maiores cuidados do que o de
maconha - mesmo a maconha pelo seu cheiro sendo mais facilmente identificável. Para consumi-la com
mais tranquilidade, os usuários se afastam do grupo maior. As diferenças de custo pesavam nesse ponto, e
se no caso da maconha geralmente me ofereciam, no caso da cocaína isso nunca ocorreu.

144
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outsiders passam por um rito de avaliação até serem aceitos no grupo, como nativos ou
como “convidados”.
A partir de então fui percebendo que conquistando a confiança dos líderes era uma
questão de tempo até que cada vez menos, minha presença entre as várias células
comunitárias que frequentei, deixasse de ser percebida como a presença de um outsider.
Vez por outra eu vacilava, e deixava que minha participação atrapalhasse a observação.
Certa ocasião, num dos bares freqüentados, percebi o flerte entre duas garotas dum
grupo de estudantes sentados em duas mesas contíguas, e fiz uma leitura que quase
causou minha expulsão do grupo; a de que se me mostrasse para algumas interlocutoras
como apto a ser confidente de suas intimidades, seria mais rapidamente aceito. Digo
isso porque no dia seguinte, na casa onde algumas delas moravam, achando que estava
sendo discreto o suficiente, perguntei a uma delas: “tá rolando um clima entre você e
aquela garota de ontem?”. Bem, nos segundos seguintes parece que a terceira guerra
mundial havia sido declarada, pelo menos ao redor de meus ouvidos, que foram
bombardeados com impropérios e desaforos os mais variados, indicando que eu não
devia me meter na vida dos outros. Em função desse incidente essas duas interlocutoras
se afastaram de mim e tive receio que outras se afastassem também. Mais uma vez, fui
lembrado de que não era tão nativo assim e se pretendia pelo menos ser tolerado,
deveria ter mais cuidado nas intervenções.
Desse momento em diante passei observar mais minha própria participação,
principalmente quando algum uso de drogas estava sendo feito pelo grupo. Certa
ocasião, num dos bares, numa mesa ao lado de onde eu estava sentado, dois estudantes
que não deviam ter mais que 21, 22 anos, bebiam separados dos grupos maiores –
geralmente havia vários segmentos da tribo distribuídos pelas mesas. Um dos dois
começou a passar mal e a vomitar na própria mesa. Os colegas ao redor, não deram
muita atenção e até riram do descontrolado bebedor, mas ninguém, nem mesmo seu
parceiro interveio – a exceção da dona do bar que tentou limpar a sujeira, porém o
sujeito vomitou mais uma vez. Pensei em intervir, mas já que seus colegas não pareciam
preocupados, não quis quebrar a egrégora do grupo, ainda mais lembrando que a
imagem do Redutor de Danos era vista de forma jocosa por muitos dos presentes. Ao
invés de intervir diretamente, apenas sugeri a pessoa mais próxima que se o fulano
vomitasse de novo, nós não aguentaríamos mais o cheiro. Depois de uma gargalhada, tal
pessoa pediu pra não servirem mais bebida ao colega, e assim foi. Nessa cena, o que
pareceu chamar mais a atenção do grupo não foi se o estudante bêbado carecia de ajuda,

145
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mas sim a especulação sobre o porquê daquele fulano ter sido levado a botar “as barbas
de molho”; foi porque misturou cachaça com cerveja, porque não comeu antes de beber
ou porque fumou maconha depois de beber. De fato, o grupo se mostrou mais
interessado em especular o porquê do problema do que em resolver o problema. O
consenso era de que ele não iria morrer por causa daquela bebedeira, e nisso o fulano
passou a meia hora seguinte prostrado na mesa, enquanto seu companheiro se mudou
para outro lugar menos fétido.
Para dificultar que eu, inconscientemente, interferisse mais do devia em certas
configurações comunitárias configuradas por interlocutores com os quais ainda estava
desenvolvendo afinidade, resolvi criar certo distanciamento me cercando por outros
interlocutores que eu conhecia. Em certa oportunidade fui acompanhado a uma rave,
por dois casais de amigos usuários de drogas140, mas não usuários da nova geração de
substâncias psicoativas sintéticas – ressalva esta que as mulheres dos casais fizeram
questão de salientar várias vezes. Ambos os casais estavam numa faixa etária acima dos
40 anos, e como eu, nunca haviam ido a uma festa de música eletrônica, e também
estavam com curiosidade de saber do que se tratava. A rave havia sido bem divulgada
na internet, e uma das interlocutoras da pesquisa me convidou para conhecer o ambiente
do qual ela tanto falava. Estando lá, também encontrei com um outro interlocutor, que
faria uma apresentação como DJ. Mesmo estando a maior parte do tempo na companhia
dos casais de amigos, pude observar como ambos os interlocutores reconhecidos se
relacionavam em seus grupos. Um destes exercia uma notória liderança sobre os seus
pares, principalmente por ostentar o posto de DJ, o que lhe conferia uma inequívoca
distinção. Os que passavam por perto faziam questão de saudá-lo, e muitos disseram
estar aguardando ansiosamente pelo seu set musical141. A outra interlocutora também
parecia exercer certa influência sobre as seis outras pessoas com as quais passou a maior
parte do tempo, porém de forma mais discreta, talvez de modo não muito perceptível
por quem não estivesse demasiado atento, mas bastava que ela emitisse uma olhada por
sobre os óculos, para que o tom da conversação mudasse do sério para o cômico, e as
outras iam atrás – soube posteriormente, serem todas universitárias das áreas de
Humanas e de Letras. Entre as sete, ela era quem mais se relacionava com pessoas de
fora desse pequeno subgrupo.

140
- uma delas era estudante de pós-graduação.
141
- um determinado período de tempo da festa no qual o DJ mostra seu serviço, em meio a vários outros
DJs que se revezam.

146
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A rave era de amplitude internacional; havia argentinos, italianos e alguns DJs


ingleses, sendo estes últimos os responsáveis por trazer a maior parte das drogas
sintéticas consumidas no evento. A tribo dos ingleses, constituída por jovens na faixa
dos 20 e poucos anos, estava em número de sete - quatro rapazes e três moças, todos
com longos cabelos louros no estilo Rastafari. No embalo da meia-noite, ao som de
intensos ritmos eletrônicos, eles começaram a se atirar na lama, deitando e rolando,
corpos sobre corpos, indistintos e sorridentes, convidando outros a fazer o mesmo.
Quase uma hora depois eles permaneciam enlameados, dançando no mesmo ritmo,
inclusive depois da música ter cambiado a batida. Duas das pessoas que me
acompanhavam comentaram entre risos, como era decadente aquele ritual, não vendo o
sentido daquele frenesi, ao som de uma música no mínimo estridente e repetitiva. Olhei
para um deles, que ostentava seus longos cabelos grisalhos, e que não muito tempo
atrás disse que o sonho de juventude dele e de sua esposa era poder ter estado em
Woodstock, e lancei uma provocação: se eles acharam por demais significativo, – no
sentido político e estético – que no filme Woodstock, certo movimento de jovens dos
anos 60 festejasse seus valores culturais exatamente dançando desnudos na lama e
usando substâncias que alteravam a consciência ao som de uma música estridente, o
que mudou para que quase a mesma cena, cerca de 40 anos depois, recebesse uma
ressignificação quase oposta? A resposta mais rápida que um dos quatro formulou, foi
de que: “não somos mais estudantes, somos pais de família!” Rimos e brindamos a
reflexão.
Se “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”, como diz a música de
Belchior, há controvérsias, mas de qualquer modo, pais de família também demandam o
consumo de liberdade, não apenas de segurança. Um dos meus acompanhantes se
mostrando enfadado com o estilo musical em curso resolveu procurar alguma droga
para aproveitar a estadia, mas como ele não conhecia ninguém acabou sendo mal
sucedido em sua busca. Eu sabia que meus acompanhantes eram usuários de maconha,
álcool e eventualmente cocaína ou ácido, então resolvi ajudar entrando em contato com
minha interlocutora. Foi uma espera rápida. Ela conseguiu um ácido com os ingleses e
intermediou a transação para meu acompanhante. Este olhou para mim e gracejou: “Isso
é melhor do que pó! E se vem da Europa, é sinal de qualidade garantida!” Minha
interlocutora riu e me informou que boa parte daqueles presentes era universitária, mas
essa informação ali não tinha nenhuma importância, o que importava era que cada um
estivesse transmitindo uma “good vibe”. E observando, para tentar captar as boas

147
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vibrações, qual não foi minha surpresa ao encontrar entre os que pareciam perdidos
entre as tribos, um rosto de uma pessoa mais velha que a maioria dos presentes – o que
por si só já chamava a atenção –, um rosto de uma pessoa que eu conhecia e que era o
rosto de uma professora do meu departamento, professora que não tinha uma imagem
associada ao consumo de drogas ou à pesquisas na área. Mais rápida do que eu pudesse
imaginar, essa professora quando me viu, foi logo justificando que estava ali por pura
curiosidade, já que não conhecia aquele tipo de ambiente. “Claro, eu também!” -
respondi, percebendo seu constrangimento, já que ela sabia que eu pesquisava
estudantes e professores usuários de drogas.
No dia seguinte acordei com o telefone tocando. Era o meu amigo que havia
adquirido um ácido na rave, ligando para se queixar de que o ácido era de má qualidade:
“Tá vendo aí, o boqueiro142 daqui vende cocaína malhada e o playboyzinho gringo,
mesmo quando é estudante, vem de lá e vende ácido frio. Tem que descriminalizar pra
acabar com essa safadeza de não poder confiar em ninguém!”.
E se para uns, a confiança no outro é um valor quase ausente numa festa que pode
ser chamada de hedonista, numa festa de casamento onde se supõe a atmosfera oposta
ao hedonismo, as relações de confiança podem ganhar contornos no mínimo, incomuns.
Numa festa matrimonial que aconteceu numa imensa chácara afastada da cidade, com
muitos ambientes diferenciados, onde estavam reunidos entre os convidados, cinco
professores e sete estudantes - nove destes da área de humanas - foi possível perceber
como funcionam as lideranças e as redes de articulação para operar o descontrole
controlado no consumo de álcool, maconha e cocaína, de fato, configurando três
settings distintos. Em um desses settings, um casal de professores que até então não se
conhecia – sendo que o representante do gênero masculino era assumidamente
homossexual, inclusive tendo ido ao evento acompanhado do seu esposo –, começou a
conversar animadamente entre doses generosas de uísque. Alguns copos depois, a
conversa pareceu esquentar na pista de dança, chamando a atenção de alguns presentes.
A professora, que era estrangeira, - outsider ao meio, mas não aos consumos - foi
informada por um dos presentes, que o seu parceiro de dança era gay. De imediato, sua
reação talvez tenha passado despercebida, pois pode ter sido confundida com algum
passo de dança mais exótico, mas um observador mais atento pôde ter percebido que
ela, enquanto girava o corpo ao ritmo da música dizia por entre os dentes: “você é gay!

142
- boqueiro = pequeno traficante de drogas.

148
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você é gay!”, desferindo alguns socos “suaves” no peito do seu parceiro. Nisso, o
esposo oficial do professor – seu orientando -, partiu na direção da professora
resmungando quase discretamente para mim: “vou furar os olhos dela!”. Felizmente ele
se contentou em arrastar pela mão seu companheiro para um canto da pista de dança,
onde por alguns instantes trocaram palavras mais ríspidas. O comentário entre alguns
que conheciam o casal, tido como extremamente fiel, e, especificamente, sobre o
sedutor em questão, este tido como um homossexual convicto, foi : “o que o álcool não
faz!” A mística do álcool prevaleceu na representação sustentada pela maioria dos
presentes, inclusive de alguns estudantes, mas será esta a única interpretação que pode
ganhar status de representação em torno da situação específica? Ainda no calor da festa,
perguntado sobre o episódio, o professor respondeu sorrindo enquanto dirigia-se para o
carro: “é que eu sou flexível!”....
Se alguns presentes creditaram o comportamento inesperado do professor ao
consumo de uísque – para alguns, foi difícil aceitar que um homossexual pudesse ter um
flerte com uma heterossexual, mas se o flerte fosse deflagrado pelo consumo de álcool,
o estranhamento estaria reduzido -, o próprio professor, creditou seu comportamento à
sua própria flexibilidade143 em relação a suas escolhas e não ao seu consumo144de
álcool. Numa análise configuracional do ocorrido, o consumo de álcool e a flexibilidade
do professor – flexibilidade que pode ser traduzida aqui como suas expectativas e
predisposições naquela específica configuração de setting -, não surtiram efeitos em
separado, pelo contrário. Mas a representação que ficou registrada pela maioria dos
olhos presentes como comentário jocoso noite adentro foi que a bebida faz até “veado
virar macho!”.
Como a festa ainda estava no começo, posteriormente foi proveitoso perceber o
movimento para o consumo de cocaína e maconha. Se havia muitos convidados não
usuários - notoriamente estes eram os membros das famílias dos noivos que no geral só
consumiam álcool – em nenhum momento percebi um movimento de consumo que
transgredisse as normas da convivência pacífica entre as tribos de usuários e de não
usuários. Entre os que consumiram cocaína, houve uma ou duas tentativas discretas de

143
- soa relevante sua feliz escolha de palavras a respeito do ser “flexível”, o que demonstra no mínimo
seu senso de humor, pois na época do ocorrido, estava sendo uma piada dizer que uma pessoa com
comportamento bissexual, é alguém com motor “flex”.
144
- e se muitos dos presentes soubessem que naquele evento o professor também fumou maconha, talvez
especulassem, como no caso do estudante bêbado no anexo, se o que o levou a “perder os freios” foi a
combinação de maconha com álcool, e mesmo a ordem em que foi efetuado o consumo.

149
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fazer uma “vaquinha145” - num total de seis pessoas, dos quais dois eram estudantes e
uma professora - para juntar dinheiro para a aquisição. Sem que “os caretas”
percebessem, a conversação aconteceu no salão de jogos, mas metade dos evocados se
recusou a contribuir alegando falta de dinheiro. O restante do grupo então elegeu duas
pessoas para saírem no transcorrer da festa e realizarem a compra. Nesse meio tempo
foi possível perceber a ansiedade entre os que ficaram esperando, mesmo dançando ou
jogando sinuca e sempre bebendo, a toda hora alguém perguntava: cadê? E quando
finalmente os “aviões146” chegaram das compras, houve, por parte dos que esperavam
sem ter contribuído, uma dissimulação da ansiedade, traduzida em: “oh, vocês já
chegaram! Foi rápido!”. Em contrapartida, por parte de quem contribuiu com dinheiro,
houve uma manifestação explícita da ansiedade expressa no: “porra, que demora!”.
Discretamente, os seis foram se retirando para um quarto no andar superior onde se
realizou a partilha. Chegando lá, os que se recusaram a contribuir se aproximaram
pedindo uma “presença” aos que contribuíram e foi notório o incomodo dos que
contribuíram com os “queixões147”. Esses últimos acabaram sendo parcialmente
satisfeitos, possivelmente para não continuarem “queixando”, mas mesmo assim
posteriormente foram atrás de quem tinha, dessa vez sendo negados em suas demandas.
Talvez por isso e pelo temor que mais convidados aparecessem para a partilha, pôde-se
perceber certa urgência entre os usuários contribuintes para retornar ao centro da festa,
ou pelo menos para não permanecerem juntos no mesmo setting de consumo por muito
tempo.
Já entre os fumantes de maconha, a reunião de usuários num dos jardins não foi nada
problemática, pois estes estavam afastados o bastante do centro da festa para que o
cheiro não incomodasse, inclusive sendo respeitados pelos seguranças armados que
perceberam toda a movimentação. Na rodada que pude observar, entre os oito presentes,
dois eram professores e três eram estudantes. As trocas comunicacionais entre estes
fumantes foram amistosas e acompanhadas de risos e piadas sobre os aspectos
filosóficos do casamento e do próprio fato de se sentirem seguros com a presença dos
seguranças armados, e não o contrário. Um dos fumantes também havia tomado um
quarto de ácido lisérgico pra se “preparar pra uma rave que iria acontecer na
madrugada”. Dois baseados foram consumidos e depois o grupo voltou para a pista de

145
- vaquinha = juntar dinheiro entre alguns para comprar drogas.
146
- aviões = aqueles que vão realizar a compra das drogas.
147
- queixões = aqueles que não contribuem com o dinheiro ou contribuíram de forma desproporcional ao
que querem consumir.

150
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dança, antes passando pelo bar para recarregar os copos. Depois se dividiram em dois
grupos, dançando e conversando animadamente pela meia-hora seguinte.
Assim, nessa festa de casamento pude registrar como comunidades de usuários se
organizam em função dos seus consumos, e nos três pólos de consumo observados o
único que em algum momento foi percebido pelos convidados não usuários, e percebido
como um momento de descontrole foi o ligado ao álcool e a sexualidade. O uso de
maconha e cocaína não gerou danos sociais.
Mas se festas de casamento não são tão frequentes no meio investigado, não se pode
dizer o mesmo em relação a eventos culturais de grande porte, como shows e
espetáculos. Esses settings de forma geral mais informais favorecem diferentes
configurações relacionais inter e intragrupais em torno do consumo de drogas. Nesse
recorte, merece registro que um show da Nação Zumbi na Concha Acústica do Teatro
Castro Alves foi uma boa oportunidade para observar alguns interlocutores, afinal a
Nação Zumbi é uma das bandas com maior aceitação entre o público universitário local.
A Concha Acústica, por ser um espaço para eventos a céu aberto, acaba sendo um
setting que favorece o consumo de maconha com mais segurança do que em locais
fechados148, pois a origem do cheiro é mais dificilmente localizável pelos agentes de
segurança. Depois que as luzes se apagam e o espetáculo começa, geralmente em
shows de rock como este, é possível sentir o cheiro de baseados acessos em meio a
platéia, que mesmo não sendo constituída em sua maioria por pessoas que ali façam uso
de drogas, acaba sendo tolerante – eu particularmente nunca vi problemas acontecerem
com usuários que fumam maconha na Concha, e venho frequentando-a por mais de
vinte anos. Contudo, já ouvi falar, até por parte de uma das interlocutoras, que alguns
usuários já tiveram problemas com a polícia por consumir nesse espaço.
A par dessa informação, alguns professores usuários presentes que têm uma imagem
pública “por preservar” – e de acordo com estes, exatamente por isso têm mais a perder
do que quando eram “meros estudantes” -, se cercaram por alguns mecanismos de
segurança que se fizeram necessários para lhes manter a privacidade. Para estes, a
liberdade de consumo só ganha sentido se devidamente cercada por segurança, e não em

148
- e como nem todo estudante universitário possui condições financeiras para pagar R$ 30.00 ou
R$40.00 para assistir um show, a Concha Acústica é um setting referencial por cobrar valores às vezes
abaixo desse patamar. Recordo que, a gravadora Trama, em seu projeto “Trama Universitário”, fez uma
promoção especial para universitários em shows de seus artistas no período 2004/2007, e em 2006, a
Nação Zumbi ao lado do Cordel do Fogo Encantado, foram entre as bandas do elenco, as que tiveram
maior penetração entre o público universitário local, e nesse público, pude perceber muito mais consumo
de maconha que nas platéias de outros shows no mesmo local.

151
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oposição a esta. Assim, tais professores que estavam acompanhados por alguns alunos,
quando estes últimos sugeriram “fumar um”, foram os primeiros em meio ao
entusiasmo da proposta, a colocar algumas condições para irem juntos. Um deles
sugeriu esperar apagarem as luzes sobre a arquibancada, mas o outro professor ainda
achou pouco, e perguntou se alguém estava vendo onde estavam os policiais. Depois de
ser informado de que os policiais estavam longe, ele ainda se incomodou com a
possibilidade de que, estando em meio a tantos alunos fumantes e não fumantes, um
desses últimos o visse em meio aos fumantes, e decidiu não fumar por receio de ser
reconhecido.
O grupo – formado por quatro estudantes -, achou graça da questão, mas respeitou e
se dividiu em dois subgrupos com outras pessoas, em um dos quais estava o professor
decidido a fumar, além de quatro estudantes e dois amigos usuários; o outro subgrupo
que ficou fazendo companhia ao professor cauteloso era constituído por uma estudante e
dois amigos, deixando decidido que iriam fumar depois, no decorrer do show. O
primeiro subgrupo teceu seus mecanismos de segurança; se dirigiu para o lado da
Concha Acústica oposto à escada que leva ao acesso de entrada, onde o movimento é
bem menor – principalmente da polícia - e onde outros usuários geralmente se reúnem
para fumar, ficando assim diluídos em meio a muitos fumantes. Essa estratégia visou
favorecer em pleno show, uma perspectiva na qual eles poderiam observar quem se
aproximasse sem serem facilmente observados, exceto, pelos outros usuários ao redor.
“aqui nesse canto, nos degraus intermediários - explica um dos estudantes - fica difícil a
polícia chegar sem ser vista antes”. Desse modo, o sistema panóptico de segurança
estava anulado.
Configurando assim seus controles informais, o grupo ficou a vontade durante e
depois de fumar, sem se preocupar muito com os olhares que alguns curiosos dirigiram
em sua direção, só parecendo haver algum desconforto quando duas pessoas
desconhecidas se aproximaram pedindo permissão para fumar. Não que tenham sido
mal recebidos ou que o grupo não parecesse disposto a estabelecer relações de trocas
com estranhos, mas estes chegaram fazendo algum barulho, comentando em voz alta
que o cheiro do fumo era muito bom e coisas do gênero, comentários aos quais os
integrantes do grupo original, preferiram não dar muita consideração, possivelmente
para não chamar mais a atenção de outros possíveis fumantes presentes entre os
espectadores. Contudo, não houve como negarem que mais três pessoas se juntassem a
rodinha, pois estas eram as que ficaram lá em cima, e que desceram para sentir mais de

152
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perto o calor do show, com a exceção do professor. Duas músicas e um baseado depois,
com um copo de cerveja na mão e outros já consumidos, não é que o professor mais
cauteloso aparece perguntando se sobrou “alguma coisa”, ao que todos riem e entre
estes, alguém responde: “é claro! Só tava faltando você para acender!”.
Em algum momento, ao me distanciar fisicamente do grupo de usuários
imediatamente próximo para criar alguma familiaridade com o grupo maior presente ao
show, percebi que o restante da platéia não parecia estar muito preocupado com
situações como esta com a qual se preocupavam meus interlocutores. Na prática e sem
maiores planejamentos, estes últimos acabaram configurando uma ZAT – Zona
Autônoma Temporária (Bey, 2001149) -, onde havia um acordo tácito para consumir o
descontrole controlado. Com a arquibancada cheia, durante os noventa minutos de show
pude contabilizar doze baseados sendo consumidos aqui e ali. Entre os muitos rostos
presentes, - dos quais não sei e talvez nunca venha saber os nomes correspondentes -
vários deles eu já havia podido registrar em um ou outro evento, muitos deles em
corredores e pátios universitários.
Também merece registro que, quando essa zona autônoma temporária não é
configurada, as estratégias de redução de riscos adquirem contornos mais ousados. Num
show do Cordel do Fogo Encantado, um casal de estudantes que estava de posse de
cocaína não quis correr o risco de ser flagrado consumindo no banheiro. Então foi
resolvido que a melhor maneira seria diluir o pó em água destilada e com um pequeno
conta-gotas administrar a substância no nariz como se fosse algum medicamento
descongestionante...
Participando e observando estes settings de consumo abertos – barzinho, rave,
casamento e shows de rock - pude registrar os controles elaborados pelas comunidades
de usuários. Sendo estes settings zonas autônomas temporárias ou não, a maioria dos
usuários se colocou não mais como pessoas que devem se esconder por receio de serem
representadas como desviantes, mas como pessoas que são parte de comunidades com
características específicas, seja usando um descongestionante nasal tranquilamente em
meio a massa de estranhos como um portador de uma prescrição médica o faria sem
receio de chamar a atenção ou seja fumando em meio à multidão como meros

149
- a zona autônoma temporária remete a configurações efêmeras onde por um período curto de tempo se
estabelecem regras e controles que só dizem respeito para os que se encontram nos limites internos da
zona. Não é um cancelamento dos valores dominantes, mas sua suspensão ou pelo menos sua
relativização. A idéia central de Bey é combater as relações de poder em sua forma dominante,
configurando espaços de liberdade que surjam e desapareçam.

153
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participantes da multidão. Se alguns ainda tomaram cuidados com sua exposição em


meio aos não usuários, já não houve mais configurações dominantes de não usuários
que os apontassem distintivamente como desviantes. Em configurações miméticas deste
porte, os não fumantes pareciam tratar os fumantes de maconha como tratariam os
fumantes de tabaco; mantendo alguma distância física, mas não sociocultural.

154
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3.3 - O reencantamento da vida cotidiana

3.3.1 - Em busca do que?

Interpretado o ponto de vista da maioria dos interlocutores, seria mais preciso falar
em habitus sociais ao invés de vícios ou mesmo dependência para descrever seus
comportamentos em torno do consumo de drogas150. Hábitos porque se 41% desses
interlocutores consomem maconha diariamente e outros 50% consomem maconha e
álcool semanalmente, estamos nos referindo a um consumo habitual e não ocasional que
acontece uma vez por mês ou mesmo por ano. Por outro lado, apenas 5% desses
interlocutores relacionam de modo sistemático sua produção e atuação em papéis
cotidianos com o consumo de drogas, daí seria pouco preciso falar em “vício”. Nesse
enquadre é possível cogitar que o consumo de drogas enquanto reincidência habitual de
um comportamento que põe em risco os interlocutores só vem a obter sentido se for
possível ser representado como um processo no qual as drogas enquanto objetos de
consumo são reencantadas, se acrescentando às suas propriedades químicas, memórias
afetivas positivas. Nas palavras dos próprios interlocutores é perceptível que há ligações
miméticas no momento de consumo, resgatando sentidos que foram atuantes em
alguma circunstância do passado:

Mozart - Pra mim droga sempre teve no meio de descobertas. Ninguém sente o que
sentiu a primeira vez (cantarolando): “a primeira vezzzz!/tudo começou/ a primeira
vezzz!” (Risos).

O sentido desse cantarolar pode ser interpretado como: ninguém sente o que sentiu a
primeira vez, mas continua tentando sentir. A repetição de um comportamento em busca
de uma representação mimeticamente carregada de sentido pode até ser interpretada
psicanalítica ou filosoficamente como uma busca por resgate do estado primordial ou do
eterno retorno ao ponto de partida. Mas Mozart ao transformar o axioma em música – o
que neste texto quer dizer poesia – já demonstra estar dando algum sentido no mínimo
momentaneamente prazeroso à sua busca. Já as palavras de Marley e de Hofmann

150
- não é apenas no senso comum que a representação do “viciado” é dominante em detrimento da
representação do usuário. Na base metodológica de muitas pesquisas, o uso na vida acaba sendo
interpretado como se usar drogas uma vez, indicasse que o usuário se tornou dependente, quando não
“viciado”.

155
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quase fecham o sentido em torno da impossibilidade de resgatar esse prazer arcaico e de


certa maneira mítico, associado ao consumo de substâncias psicoativas:

T.V. - O que você gostava no crack que não gostava na cocaína?


Marley - Era muito mais forte. Uma sensação de euforia, cê ficava... sentia o gosto e
queria sentir mais e cada vez mais. Cada vez que você fumava mais você sentia menos o
gosto. Cê fumava mais e mais pra sentir o gosto que sentiu na primeira vez.

Hofmann - Quando viajei a Amsterdã, tive acesso a LSD, êxtase, depois eu voltei pra
cá interessado em ter outras experiências com essas coisas. Eu tinha 22 anos. Eu fui a
Amsterdã com a intenção de conhecer essas coisas. Quando eu voltei pra cá foi uma
decepção atrás da outra, eu nunca mais encontrei o que eu encontrei lá.

O eterno retorno a um momento de satisfação sacralizado enquanto representação é


uma interpretação que cabe para estas falas de Mozart, Marley e Hofmann. A busca,
mesmo não atingindo seu objetivo último – na impossibilidade da satisfação plena -,
cumpre seu papel enquanto ritual, pois é o que o motiva o consumidor a consumir mais,
quase como uma compulsão. No presente caso em que o consumo de drogas baliza esse
ritual de busca, as interpretações realizadas pelos interlocutores ajudam a visualizar as
peculiaridades do processo.
Estas interpretações aqui trazidas nas próprias falas dos interlocutores inicialmente
indicam o perigo da homogeneização das drogas, pois maconha e LSD, de um lado, e
cocaína e crack, do outro, recebem distintas interpretações de seus consumidores. As
significações que lhes são imputadas não estão apenas nas palavras faladas, pois é
possível analisar alguns sentidos no modo como essas falas foram expressadas.
Enquanto Mozart emitia uma expressão fisionômica de contentamento ao falar da
maconha sorrindo e gesticulando expansivamente, Marley falou do crack cabisbaixo e
pensativo. Já Hofmann se expressou sobre as substâncias sintéticas com serenidade e
olhos que pareciam não piscar para não perderem minha reação às suas palavras. O que
conecta esses três modos de expressão acima registrados é que eles indicaram que seus
emissários estavam em busca de algo mais do que encontraram. Outras falas ampliaram
a perspectiva:

156
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Pancho Villa - O efeito que eu busco é o mais próximo do enteógeno que dá uma
ligação com um determinado estado de pensamento. Eu considero a cannabis sagrada,
embora eu não busque uma entidade e tal. Eu uso a cannabis porque ela me faz bem,
eu sei que ela me causa alguns problemas, mas eu vejo como uma espécie de missão,
fazer alguma coisa por ela, porque ela já me deu muitas instruções. Ela já me disse
muito o que é que eu sou, o que é que eu quero, o que eu preciso pra viver, o que
preciso pra ser feliz. Não são respostas dadas diretamente por ela, mas na experiência
com ela, na relação.

Hofmann - Ocasionalmente eu faço uso enteogênico da substância, no sentido de


buscar um real contato com Deus. Vou pra floresta em torno da fogueira e vou com um
grupo de pessoas que fazem parte desse movimento, alguns inclusive Rastafaris, cantar
Deus, rezar pra Deus, às vezes levar 4, 8 horas dedicadas a isso. Mas existem muitos
momentos que são só recreativos. Na praia com meus amigos fazer um surf, ou alguma
noite...

T.V. - Sua gata se chama Kaya151, você tem alguma relação mística com a
maconha?
Cleópatra - Eu acredito que (a maconha) seja sagrada, eu não tenho muito
conhecimento do rastafarianismo, apesar de usar dreads152. Tenho uma crença de que
muitas plantas são sagradas, plantas de poder, e eu não tenho nenhuma relação
religiosa com a maconha, mas eu acredito que cada momento que eu fumo seja um
contato com o divino, com o natural, com o que há de puro... porque a maconha existia
muito antes que existissem a leis, os preconceitos, surgiu com o mundo.

T.V. - Você está tentando desenvolver uma colônia de cogumelos (esporos de fungos
comprados num site), isso é só curiosidade ou você faz alguma busca transcendental?
Buda - Isso pra mim é sagrado, é estar no profundo da minha alma, do meu ser, da
minha consciência, da minha inconsciência, porque eu sinto que essas substâncias
mexem profundamente com a minha história.

151
- kaya significa maconha, inclusive sendo título de um álbum de Bob Marley.
152
- por sua vez dreads significa cabelos trançados.

157
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Um dos aspectos que aqui pode ser levantado é que os interlocutores salientam suas
necessidades de uma visão de mundo transcendente, porém, sem vinculação com
dogmatizações estabelecidamente institucionalizadas. Cada um busca configurar uma
interpretação que reencanta tanto a maconha quanto os cogumelos, tratando-os como
entidades – embora Pancho o negue - com as quais podem entrar em relação direta.
Uma outra questão passível de leitura é que estas falas indicam que seus sujeitos
correspondentes não são pessoas niilistas, distantes de valores socialmente construtivos.
Pelo contrário, os três mostram manter vínculos com o discurso ecológico de resgate do
encantamento com a Natureza, como no movimento contracultural dos anos 60/70. A
fala de Rimbaud a seguir exemplifica a incorporação de alguns referenciais da
contracultura reflexivamente ressignificados pelo seu repertório de valores:

T.V. - Você busca transcendência quando consome?


Rimbaud - Quando eu usei o ácido pela primeira vez, foi nesse nível, não algo
espiritual, é mais sensorial mesmo, ó como minha visão pode ser diferente. Mas isso eu
já vinha percebendo na embriaguez porque o álcool foi a droga que eu tive maior
contato. Nenhuma outra droga vai se comparar aos vários estágios que a bebida me
levou, até a onda de chorar, a maior deprê, ou então de ficar eufórico. O ácido foi
outra coisa, também tinha lido Timothy Leary, Aldous Huxley (As portas da percepção),
escutado The Doors, e você fica: ‘será velho, será que eu vou captar?’ Tem um pouco
desse lado espiritual. Comprei “Paraísos artificiais” por causa da onda. Eu tento
destruir o que é mitológico sobre a onda.

Para tentar “destruir o que é mitológico sobre a onda”, Rimbaud perpetua uma
retroalimentação entre drogas e cultura; consome personagens consagrados no que se
refere à cultura das drogas: Baudaleire, Huxley, Leary e a banda The Doors, consumo
que por sua vez o motiva a consumir substâncias psicoativas variadas, substâncias que
o remetem aos mitos construídos em torno das obras artísticas consumidas. Nesse
processo cíclico não estaria ele buscando configurar um novo encantamento para
objetos de consumo culturalmente superestimados? A superestimação de um bem
cultural ao lhe possibilitar infinitas representações adequadas a distintas configurações,
desconstrói um valor absoluto abrindo espaço para novas significações e é nessa esteira
que parece seguir a reflexão de Rimbaud. Outros interlocutores, quando as
configurações de consumo em relação a um objeto passam a ter seus sentidos

158
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incontornavelmente esvaziados, buscam reconfigurações onde novas ritualizações de


consumo possam ter curso. É o caso de Blavatsky que se cansou de fumar até dez
baseados por dia:

T. V. - E como foi quando ao chegar aos 28 anos de idade esta situação de


consumo intenso de maconha se tornou incomoda?
Blavatsky - Quando eu entrei em contato com esse chá (a ayahuasca), ele possibilita
a gente um contato com o sagrado, e é uma coisa que do ponto de vista da experiência
é muito mais forte do que a maconha. Comecei a perceber que aquele uso compulsivo
da maconha tava me prejudicando, no sentido de que eu tenho uma mediunidade muito
aguçada. Na minha visão de mundo aquilo abriu minha energia pro campo espiritual.
Como eu tinha essa mediunidade eu captava muita coisa que não era legal, eu convivia
com pessoas que não tinham uma energia muito legal, em contextos tipo bares,
enquanto que a ayahuasca era uma substância psicoativa usada dentro de um contexto
ritualístico. Essa religião tem uma visão negativa de drogas, então eu acho que isso
influenciou também, eu tava num grupo com uma visão e eu tava com um
comportamento fora da visão.

Blavatsky passou a interpretar que seu campo de lazer onde havia consumo de
maconha já não proporcionava mais satisfação e sim negatividade. Desse modo,
começou a tentar reconfigurar seu set de acordo com o setting comunitário que estava
começando a conhecer, desconstruindo uma carreira na comunidade de maconheiros
para construir uma carreira que trazia novos sentidos, novos significados para sua busca
de satisfação. Já um estudante de filosofia optou por interpretar as demandas religiosas
como contingências sociais associadas à cultura:

T. V. -Você acredita na questão religiosa, na transcendência via Deus?


Nietzsche - Não, eu já acreditei, já fui adepto do candomblé, já fui espírita, hoje em
dia eu não acredito. Aqui é o que há e cada um faz daqui o céu e o inferno. Nessa
dicotomia corpo e espírito, o espírito é corpo. Eu cheguei a frequentar na minha
infância, fui iniciado, meu tio é Pai-de-Santo. Hoje eu acho que religião é uma das
maiores ilusões. Tem um valor social, pois as pessoas precisam de Deus, dos
mandamentos. Eu tenho um texto: Verdade, a história de uma mentira. Eu sou estudioso
de Nietzsche, de Sartre.

159
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Em O futuro de uma ilusão e no Mal-estar na civilização (1974: vol. XXI) Freud


interpretou a religiosidade e o consumo de drogas como “ilusões” necessárias para
compensar a saúde psíquica da civilização ocidental do início do século XX, civilização
marcada por um excesso de controles de emoções. Eu perspectivo ser mais adequado
interpretar religiosidade e consumo de drogas como vias miméticas de encantamento
que em certas configurações podem ser compatíveis ou não. Levando em conta que ao
longo desse início de terceiro milênio a maioria das instituições religiosas, estabelecidas
ou outsiders, reencanta as drogas como “a ilusão”, como o grande Mal a ser
representado e combatido, só é viável refletir configurativamente sobre os valores
culturais dos interlocutores se forem trazidas à tona as suas culturas religiosas familiares
e como eles as interpretam hoje:

T. V. - Você tem uma formação religiosa?


Oscar Wilde - Parte de minha família é católica, parte é protestante. Eles até
tentaram a catequese mas... Eu continuei indo a igreja depois de já tar fumando pra
manter um rito familiar, depois eu abandonei de vez. Hoje minhas crenças são outras.
A saída da cultura da igreja e a entrada na cultura da droga são ritos de passagem.
Hoje eu sou ateu, não por não acreditar em Deus, mas por acreditar em vários deuses.
Atualmente eu costumo dizer pras pessoas que eu rezo pra Jah Rasta sempre que posso.
Digamos que eu seja uma pessoa de pouca fé, é por isso que eu rezo muito pra Jah
(risos).
T. V. - O que você acha da religião do Daime?
Oscar Wilde - Apesar da cosmologia ser bastante interessante, os rituais serem
interessantes, eu não sou muito fã da doutrina do Daime, tem uma coisa católica e
kardecista, ela é cheia de caretices também. Essa carolagem não me cabe.
T. V. - E o Daime enquanto enteógeno?
Oscar Wilde - Eu acho o enteógeno forte, eu tive uma experiência numa praia onde
tinha todo o contexto, mas era o contexto de uma cerimônia religiosa. Na ocasião dei
uma ou duas fugas durante o trabalho pra fumar um. Há uma linha onde o ritual inclui
também a marijuana, é uma linha bastante discriminada pelo próprio pessoal do
Daime, mas ambos são enteógenos.

Mata Hari - Minha família é católica, eu frequentava a igreja. Hoje em dia eu não
sou cética, eu não gosto de nenhuma religião, eu gosto é de trabalhar a espiritualidade.

160
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Eu sou curiosa, outro dia eu fui pela primeira vez numa sessão de Daime com o pessoal
do Balance, já convivo com eles há três anos e eu me senti a vontade pra ir a um ritual
aliado a uma substância psicoativa. Eu tinha curiosidade, mas, tinha medo e não sabia
se eu ia me adaptar a aquele ritual, mas eu gostei.

Estes dois trechos de depoimentos mostram que o desengajamento com a


religiosidade de base cristã não impediu que seus sujeitos buscassem alguma
modalidade de transcendência. De fato se mostram predispostos a serem mais críticos e
mesmo irônicos quanto às contingências: “Digamos que eu seja uma pessoa de pouca
fé, é por isso que eu rezo muito pra Jah”, disse Oscar pausadamente. Há quem, de modo
menos irônico, porém jocoso, reflita sobre as consequências de sua formação cultural:

T. V. - Você teve formação religiosa?


Salomé - Eu digo que lá em casa que a gente é católico apostólico baiano, porque
estudei em colégio de freira, fiz comunhão, meus pais são casados na Igreja católica
mas frequentam centro espírita. Eu fui evangelizadora de juventude, mas também a
família da gente tem uma relação com o candomblé. Recentemente eu pratiquei Yoga.
T. V. - Essa bagagem lhe coloca em conflito com seu lado de usuária?
Salomé - Com certeza! Uma vez eu fui a uma missa com minha mãe e o padre falou
que era a hora de pedir perdão a Deus pelas coisas que não se conta pra ninguém. Na
hora eu pensei que eu não ia pedir perdão por isso, porque eu não tou fazendo nada de
errado. Isso não é pecado. Mas o conflito não é por ser usuária, nessa coisa cristã, o
conflito é com o prazer. O que é bom da vida passa pela questão da sexualidade, da
comida, do uso psicoativo de drogas.

Se “o conflito não é por ser usuária, nessa coisa cristã, o conflito é com o prazer”, o
ponto central em questão já não está em torno da transgressão ou do desvio através do
consumo de drogas, está sim nos descontroles que podem acompanhar este consumo.
Assumir que no seu ponto de vista “O que é bom da vida passa pela questão da
sexualidade, da comida, do uso psicoativo de drogas” não leva Salomé a sentir-se
culpada, leva-a a refletir sobre a compatibilidade entre seus valores atuais com os
sustentados em seu passado de estudante CDF adversa a descontroles. A redução das
culpas em relação aos seus hábitos de consumo faz com que Salomé atualmente se
permita alguns descontroles no cotidiano, por exemplo, ela acha que está acima do peso,

161
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mas do prazer de comer ela não abre mão. Uma outra interlocutora que também não se
prende a sentimentos de culpa, encara com naturalidade buscar mecanismos de
transcendência por menos ortodoxos que parecam ser em seu conjunto. Ela busca a
segurança que as instituições mantenedoras tradicionais não puderam suprir e a
liberdade que a juventude demanda configurar:

T. V. - Sua família é religiosa?


Blavatsky - É, minha mãe é praticante, meu pai é mais ou menos. A igreja católica
não me satisfez, e eu fui no candomblé. Com 14, 15 procurei a igreja messiânica. Pro
Seicho-No-Iê eu ia sozinha desde 12 anos.

Essa busca por algo mais desde os 12 anos de idade, sozinha, já demonstra uma
predisposição do set psíquico de Blavatsky na busca por encantamento. Chama a
atenção sua falta de preconceitos ou de receio de entrar em conflitos com as
representações dominantes em sua família. Este esvaziamento de sentido no catolicismo
não é “privilegio” do set dos interlocutores, estando presente sob uma baixa
reflexividade no set e no setting familiar:

Rimbaud - Minha mãe tentou me catequizar como católico, num centro


comunitário, mas nem ela mesmo frequentava a Igreja.

Também é possível perceber que há quem interprete o sentimento de religiosidade


não necessariamente como uma questão de fé, mas como um procedimento pragmático
que lhe favoreça a segurança psicológica:

Lampião - Meus pais são católicos, minha mãe é kardecista também, e meu pai era
de Umbanda. Essa coisa ecumênica acaba me deixando solto demais, pois eu ando em
muitos ambientes carregados de energia. No HGE mesmo, na sutura, chega gente
baleada de tiro...a religião dá um suporte pra você não se apertar tanto com as
energias externas.

Se Lampião em função de suas contingências de trabalho como residente de


medicina sente a ausência de uma base religiosa mais consistente, há casos em que o
laço religioso enquanto referência de pertencimento e confiança em relação a alguma

162
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comunidade, quando posto em contato com a cultura das drogas, se tornou muito mais
uma camisa de força do que um suporte na equação entre busca de segurança e de
liberdade:

Leila Diniz - Eu vim de uma família que é uma família católica, do interior, e minha
família tem uma atitude superagressiva em relação a consumo de qualquer tipo de
drogas, é um discurso panfletário, eu tive sérios problemas com isso.
T. V. - Que tipo de problemas?
Leila Diniz - Eu entrei na faculdade e comecei a perceber que o consumo da
maconha não era aquele discurso que tanto tempo minha família tinha articulado e fui
flexibilizando mais, assumindo que existe formas de você usar que não agride tanto seu
organismo. Comecei a comprar mais, a fumar todos os dias, começou a ter um papel
terapêutico na minha vida, chegava em casa estressada, fumava um beck153... (o efeito
era) instantâneo. E eu não podia fumar em casa. Me mudei pra casa de uma amiga e
conversei com minha mãe que estava fumando maconha, que era o oposto daquilo que
eles pensam. Aí eles me internaram numa clínica.
Minha mãe que tem transtorno bipolar, toma remédio, ficou meio descontrolada,
subiu com dois enfermeiros e pra evitar confusão na casa de minha amiga eu fui pra
clínica, pra conversar. Cheguei lá, conversei com um psiquiatra que fez uma breve
entrevista. Eu disse que quando tou estudando eu não fumo, agora eu tou de férias e tou
fumando. Ele apertou um botãozinho debaixo da mesa e me levaram. Na hora foi
aquele escândalo da porra, eu briguei de chute, de tapa, depois um terceiro me aplicou
uma injeção, e o enfermeiro falou: “cê acha que ta aonde? Aqui a história é outra!”
Me aplicaram a injeção e eu dormi amarrada. Fiquei amarrada no primeiro dia. Eu
tinha 20 anos. Fiquei uma semana, era um lugar cheio de idosos, supercaro, minha
família não tinha condição, mas pra eles era um investimento. Lá dentro não podia ler,
só as coisas de lá, coisas ridículas. Nem televisão podia, porque eles consideravam
qualquer influência externa como subversiva. Cigarro podia, a clínica já tem o seu
estoque, nem precisa pedir a família – e foi aí que eu comecei a fumar tabaco, fumei um
maço e meio por dia.
T. V. - Você diria que a proposta seria trocar uma droga lícita por outra lícita?

153
- beck = cigarro de maconha.

163
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Leila Diniz - É! (risos), exatamente... depois do terceiro dia comecei a perceber como
funcionava, tinha que ficar amiga de todos pra ter regalias como pedir duas carteiras
de cigarro por dia, quando o certo é uma só, inclusive a maioria das pessoas
internadas são fumantes, fumam sempre.
T. V. - Ao sair de lá como você se sentiu em relação às drogas?
Leila Diniz - Eu já tinha usado ácido uma vez só, e depois da clínica eu comecei a
usar muito mais. Eu saí e de imediato comecei a usar. Passei uns dias em casa e fui
morar com amigos meus. Nesse meio tempo eu me reconciliei com minha família, nós
conversamos, mas falei que não rolava mais da gente morar junto porque foi uma
reação muito forte, eu quis viver de outra forma.
T. V. - Você se sente uma pessoa religiosa?
Leila Diniz - Sim, eu frequento o Daime, frequento o Candomblé, eu só não
estabeleço um vínculo mais afetivo.

Começando pela questão religiosa, é possível constatar como uma pessoa de origem
familiar católica faz a sua escolha pessoal enveredando pelo Daime e pelo Candomblé,
mas sem querer estabelecer “um vínculo mais afetivo”. O que isso pode indicar? Pode
indicar que Leila busca algum laço social com algumas comunidades, mas até em
consequência de suas experiências familiares, não o quer muito apertado para que não
se transforme num nó. Ela quer segurança coletiva, mas quer também a satisfação de
poder obtê-la com liberdade.
Por outro lado, inevitavelmente o foco no relato de Leila pode ser posto na via-crúcis
pouco religiosa pela qual passou. Primeiramente sendo internada à força, enquanto em
seu ponto de vista, era sua mãe bipolar que carecia de maiores cuidados. Depois, foi
submetida a procedimentos terapêuticos de controle com potencial muito mais
desestruturante do que estruturante; administraram-lhe uma droga sem seu
consentimento, teve que dormir amarrada, foi isolada e privada de contato com seus
pares, e ainda acabou estimulada a consumir tabaco descontroladamente como
mecanismo de reinserção social na comunidade de internos: “Cigarro podia, a clínica já
tem o seu estoque, nem precisa pedir a família – e foi aí que eu comecei a fumar tabaco,
fumei um maço e meio por dia”.
Todos esses mecanismos de controle coercitivos como humilhações e
constrangimentos configuraram um processo ao qual Leila, uma estudante universitária
aos 20 anos ao ser submetida, foi lançada numa autêntica ampliação de danos a saúde

164
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mental, moral e física154. O ponto crítico desse processo foi ela ter sido levada a
“deixar” de fumar um baseado por dia para em troca fumar um maço e meio de tabaco.
Tudo isso em nome da sua saúde. O efeito colateral dessa internação violenta foi que ao
retornar da confinamento, Leila num processo de compensação “descompensante”
passou um período consumindo descontroladamente. Mas quanto à sua religiosidade,
Leila não perdeu sua fé, posteriormente apenas tornou-se mais eletiva quanto à
configuração dos seus vínculos comunitários. A partir de então ela já não precisa aceitar
os vínculos que são adequados a sua família, ela procura afinidades na cultura do
Candomblé, na cultura do Daime. Essa última cultura inclusive, é uma das mais eleitas
pelos interlocutores com atração por substâncias psicoativas:

Krisnamurti - Minha família é católica, eu mesmo usando drogas eu tava em busca


de algum lugar que me aconchegasse, que me orientasse, mas eu nunca encontrei um
lugar assim que fosse a minha cara. O que eu encontrei foi a União (do Vegetal) que
foi um lugar em que eu nem tava em busca disso daí e encontrei.
T. V. - Se você excluir o aspecto religioso, qual a diferença da experiência da
ayahuasca pras outras drogas?
Krisnamurti - Eu sou uma pessoa boa pra falar isso porque eu conheço os dois
lados. A maconha, por exemplo, eu não progredia com o uso da maconha. Na época
que eu fumava era um relax, eu tou de bem com a vida, não sei o que... mas agora, eu
acho que eu tava me atrasando. Usava cocaína era aquela alegria, aquela energia, e
depois no dia seguinte aquela depressão, sentia que causava um efeito colateral. Com a
ayahuasca não, é uma substância comprovadamente boa pra saúde, e é um privilégio
de se conhecer e melhorar a si mesmo, a substância e a doutrina... a maioria (dos
ayahuasqueiros) foram usuários de drogas. A gente lá fala sobre isso, a transformação,
e tem muitos ali que foram em busca de droga mesmo, pra ficar doido.
T. V. - E como sua família vê essa sua nova faceta?
Krisnamurti - Eu posso dizer que vivem com a paz.
T. V. - eles conhecem a União do Vegetal?
Krisnamurti - Sim, minha mãe e meu irmão já beberam, não seguem não. Eu tive
cada situação de chegar em casa drogado, foi uma tristeza, hoje, eu posso dizer que ela

154
- quem quiser entrar na esfera mimética de uma experiência similar deve assistir ao filme Bicho de sete
cabeças (Bodanzky, 2000).

165
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(a mãe) vive assim em paz. Ela foi lá conheceu, viu que é uma doutrina que segue o
cristianismo.

Uma interpretação cabível para esta fala de Krisnamurti é que se “segue o


cristianismo” a cultura daimista é adequável aos valores familiares porque o
cristianismo carrega uma representação de acolhimento fraternal. Se o acolhimento
buscado por Krisnamurti não é encontrado entre seus familiares, ainda é adequado a
estes a sua pertença em uma outra comunidade cristã – vale ressaltar que até então ele
não tinha a comunidade universitária como opção de segunda família. Se, como ele diz,
a maioria dos ayahuasqueiros já fez parte da cultura das drogas, então, frequentando sua
atual comunidade, Krishnamurti não estaria tão só quanto ao set psicológico.
O acolhimento fraternal é fundamental numa experiência comunitária.155 Na
perspectiva das comunidades fraternais as relações de poder buscam seguir um eixo
horizontal onde os vínculos dadivosos são um elemento configurador da possibilidade
de reencantamento. A depender da configuração do setting a circulação da dádiva pode
até ser interrompida - ou melhor, ressignificada - em seu processo sem maiores
prejuízos para a integração comunitária, como se percebe na seguinte observação de
Leila que atua como redutora de danos na cena eletrônica:

Leila Diniz - Numa festa rave eu não aceito bebida, porque muita gente às vezes
coloca ácido como cortesia, e isso não é uma ofensa, é uma troca. Eu tenho observado
isso.

Em casos de comunidades não tradicionais como esta citada acima, quando a dádiva
em forma de bebida não circula plenamente entre os participantes não acarreta
necessariamente uma desagregação do coletivo, apenas reajustes na sua dinâmica, pois
possivelmente outra pessoa fará a circulação daquela bebida desenhar um novo curso.
Oscar que acampou uma semana no Festival Universo Paralelo descreve sua
experiência:

Oscar Wilde - Levei umas 50 gramas, mas provavelmente eu não consumi tudo
porque eu compartilhei com muita gente, sempre tinha um beck de alguém, essa energia

155
- é emblemático lembrar aqui das Fraternidades das grandes universidades estadunidenses, em tese,
um espaço de exercício de convivência fraterna.

166
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lá de compartilhar a substância é bem comum. Já é comum na cultura da maconha,


mas lá esse clima é mais acentuado, inclusive com outras substâncias. Eu tomei ácido
nos vários dias e haxixe, muito haxixe. Naquela situação era comum as pessoas
compartilharem haxixe.

Entre os frequentadores da cena eletrônica parece circular uma cultura dadivosa e


fraternal próxima à das rodas de maconha que aconteciam com frequência quando esta
substância era mais perseguida. Maconha - e em menor escala - ácido lisérgico e
ecstasy, no universo desta pesquisa fazem parte de settings dadivosos, ao contrário da
cocaína e do crack. Compartilhar ou não compartilhar drogas, muito mais do que uma
questão de economia financeira, acaba sendo uma questão de estabelecimento ou não
de laços de confiança. Além disso, a busca por transcendência não se resume a tentar
superar configurações sociais pouco confiáveis e esvaziadas de sentido, dependendo em
grande medida dos sets dos interlocutores; suas expectativas, motivações e bagagens
emocionais municiam sentidos os mais variados aos settings e as drogas:

Mata Hari - Hoje eu faço uso até mais frequente de maconha porque durante uma
época da minha vida eu ficava com medo de falar que fumava maconha, numa
paranóia, numa ansiedade muito grande, quando eu misturava com álcool então... eu
evitava consumir em grande quantidade. Eu fui aprendendo a controlar a substância,
hoje eu convivo com pessoas que fumam sempre, a maioria dos meus amigos fumam e
fumam diariamente. Eu não gosto de misturar com trabalho, por exemplo, eu vou
trabalhar agora, eu jamais fumaria por que aí atrapalha minha concentração. Mas se
eu tou no meu happy hour, ou vou assistir um filme na casa de alguém, eu fumo.
T. V. - quando você começou sua carreira de usuária você sentia ansiedade e
paranóia quando fumava, e depois aprendeu a lidar com a situação. O que lhe levou a
insistir numa situação que era desagradável?
Mata Hari - Isso acontecia com frequência, mas não acontecia todas às vezes, só em
momentos particulares, então eu passei a identificar o que me colocava naquela
situação. Então por exemplo: não fumar com pessoas que eu não conhecesse bem ou
não me sentisse a vontade, não fumar demais, exageradamente, saber a hora de parar,
não insistir depois que já dei alguns tragos e os efeitos já tão começando.

167
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Essa fala de Mata fornece boas pistas sobre os controles informais que ela aprendeu
a utilizar como mecanismos de redução de riscos e danos. Se no começo de sua carreira
como fumante de maconha os efeitos de ansiedade e paranóia estiveram presentes, é
possível interpretar que ela teve motivos que compensaram continuar fumando. Como
esses efeitos negativos não aconteciam sempre, mas com frequência, é possível supor
que às vezes em que não aconteciam, fumar maconha foi bom o suficiente para
compensar as outras vezes em que os efeitos negativos apareceram. Essa é uma situação
de risco e ao aceitar a opção de seguir em frente, Mata precisou refletir sobre os
ingredientes que configuravam o cenário, decompondo o seu setting e o seu set: “eu
passei a identificar o que me colocava naquela situação [...] não fumar com pessoas que
eu não conhecesse bem ou não me sentisse a vontade, não fumar demais,
exageradamente, saber a hora de parar”. Como que exemplificando as reflexões de
Becker sobre a construção da carreira de maconheiro (Outsiders,2008), Mata não
demonizou a substâncias pelos efeitos indesejados, aprendeu a evitá-los, identificando
os controles sociais que interagiam diretamente com os efeitos químicos da substância
psicoativa. Outro interlocutor que exemplifica como encarou seus medos foi
Tutancamon:

T. V. - Você tem lembranças das primeiras experiências com drogas?


Tutancamon - Eu sou uma pessoa que na realidade ao mesmo tempo em que eu não
tenho medo, eu tenho medo. Uma insegurança de não conseguir segurar aquilo ali.
Como toda coisa nova, é o desconhecido que rola. Então tinha um pouco de vontade
porque eu queria entrar em estado alterado de consciência, mas ao mesmo tempo eu
tinha medo de não conseguir segurar este estado. Eu vi que não era nada daquilo. Você
consegue lidar com aquilo.

Essas falas de Mata e Tutancamon, são falas de dois estudantes de medicina e talvez
por força da profissão, parecem mais interessados em investigar os próprios medos. Não
por acaso quatro dos sete estudantes de medicina aqui elencados fazem psicoterapia,
configurando 18% do universo total.

T. V. - Você faz psicoterapia?


Pasolini - Faço psicanálise tem dois anos.
T. V. - Você trabalha essa questão das substâncias na terapia?

168
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Pasolini - Eu trabalho muito, mas resolvi não conversar muito com minha
psicanalista porque ela tem a posição dela, tem a tendência a falar que a diferença
entre análise e psiquiatria é que análise é natural e que psiquiatria é artificial. Como
ela confia no taco dela demais (risos), e acha que ela resolve e tem o domínio, então eu
respeito (risos).

Oscar Wilde - Meu terapeuta era protestante e eu percebia que ele ficava chocado
quando eu falava sobre a erva...

O que merece grande destaque nestas falas de um estudante de medicina e de um


outro de história é que em ambos os casos os interlocutores apontam resistências dos
seus terapeutas no que diz respeito à problemática das drogas, seja por implicações
propriamente profissionais, no caso, a dicotomia natural/artificial estabelecendo uma
falsa fronteira entre psicanálise e psiquiatria, seja por implicações morais, como no caso
do terapeuta protestante. Se o setting terapêutico pode não parecer muito receptivo às
reflexões sobre o consumo de drogas não prescritas, alguns interlocutores, buscam
configurar sua própria terapêutica, terapêutica esta onde as drogas podem ser
representadas como remédios, como phármakons:

3.3.2 - Automedicação reflexiva

Buda - Eu tou esperando chegar o vaporizer156 pra dizer oficialmente que a erva que
eu fumo é medicinal (risos). Você não queima nem a garganta. Redução de danos total!
Um cara colocou num artigo que quando você queima, 111 substâncias são liberadas,
dessas tem várias que são policarbonos, que são consideradas cancerígenos, e no
Volcano, ele detectou 4 substâncias. A erva queima a 170 graus, no vaporizer você
eleva apenas a 150.

Oscar Wilde - Depois de muitos anos usando (maconha) eu lido com a substância
muito bem e não interfere muito. Eu consigo trabalhar, estudar, escrever ou dirigir ou
trepar. Outras substâncias exigem contextos mais adequados. O que não quer dizer

156
- vaporizer é um aparelho eletrônico – mais conhecido pela etiqueta Volcano - que permite administrar
a maconha numa temperatura controlada de modo que a erva não queima, apenas aquece ao ponto de não
liberar as propriedades mais tóxicas (como alcatrão) e sim as mais psicoativas (como o THC). Geralmente
importado dos EUA ou da Europa, seu custo está em torno de US$ 500.

169
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também que a maconha é adequada pra todas as situações. Eu evito atividades que
exigem maior concentração, prefiro fazer um uso mais lúdico-terapêutico. Lúdico
quase sempre, terapêutico quando eu tou meio tenso, quando eu tou sem sono.

Buda - Desde que eu perdi o movimento estudantil a maconha é minha terapêutica.


Depois disso eu não cheguei a formar um grupo. Desde o oitavo semestre faço consumo
diário.

Há indicações nestas falas que levam a pensar a maconha não apenas como objeto de
consumo lúdico, mas como um ansiolítico natural - e nessa condição, a sua
administração pode ser interpretada como automedicação. A maconha é uma substância
psicoativa que enquanto phármakon permite múltiplas representações; pode ser
representada como ansiolítico, como afrodisíaco e mesmo como substituto do outro, e
este é o ponto de vista de Buda: “Desde que eu perdi o movimento estudantil a maconha
é minha terapêutica”. Na falta do outro há lugar para um substituto. Aliás, essa
elasticidade de sentidos pode ser imputada a qualquer droga e não apenas a maconha:

T. V. - E além de maconha você usa outras drogas?


Zumbi - Rapaz, são tantas, mais fácil eu dizer o que eu não uso (risos). Uso cocaína,
uso LSD, uso DMT, às vezes certos remédios como Inibex e gosto. Tomo medicamentos
pra me ajudar na concentração, que são Nootropil, Ginko Biloba, que ajuda na
memorização e na concentração e ajuda a performance mental.
T. V. - Como você administra esse multiuso? Tal hora pra tomar um remédio pra
memória, tal hora pra tomar um outro pra relaxar?
Zumbi - Tem dia que eu não uso nada, eu acordo com a postura de não usar nada,
mas quando eu tou vendo que na primeira hora de trabalho eu tou com dificuldade de
concentração, tou com um pouco de sono, ou tou com dificuldade de memorizar eu
tomo um Notropil ou Ginko Biloba. E a noite eu fumo maconha pra relaxar.
T. V. - Esses remédios você adquire com prescrição?
Zumbi - Não, eu sei o efeito que eles fazem, já conversei com um médico a respeito,
ele falou que não tem contra-indicação.

Zumbi, que dois anos antes passou por uma overdose de cocaína e disse que iria
parar com tudo, no momento da interlocução agiu como se já estivesse refeito do susto.

170
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Para compor sua farmácia doméstica ele fez pesquisas por conta própria, tanto em
contato direto com outros consumidores como também com médicos e pesquisadores da
área. Assim, seus hábitos de consumo incorporam algumas drogas para produzir quando
este é o objetivo, e outras drogas para relaxar quando assim ele o quer. Zumbi configura
seu consumo de acordo com o momento mais propicio para fruição destes ou daqueles
hábitos pertinentes a sua estrutura de vida.
Adquirir drogas prescritas não é tão difícil e os seus usuários se sentem seguros para
administrar substâncias manipuladas em laboratórios com controle de qualidade. Por
outro lado, no caso da comercialização das substâncias ilícitas há o risco da baixa
qualidade das substâncias que não passam por um controle de qualidade mais rigoroso
exatamente em consequência de sua ilicitude. A pesquisa possibilitou observar que
alguns interlocutores se preocupam que essa qualidade não controlada das substâncias
venha a interferir diretamente sobre seus efeitos. A busca de Hofmann por controlar a
qualidade das drogas que pretende consumir se tornou seu princípio ativo:

Hofmann - Comprei um bioteste em Amsterdã que mede a qualidade das substâncias.


Deixei de fazer o consumo, deixei até de fazer o bioteste porque eles tavam botando
diversas outras substâncias que não aquelas que eu tinha interesse de comprar. Depois
voltei a usar no Universo Paralelo onde você encontra coisas de boa qualidade. De lá
pra cá paralisei de novo porque não há coisas com qualidade no mercado.

3.3.3 - Nas raias da medicalização

Se os interlocutores parecem não se opor ao aumento da própria automedicação


associada ao crescimento da disponibilidade de informações e da reflexividade, quando
o assunto é a banalização do consumo de substâncias psicoativas controladas, os
interlocutores, principalmente os da área médica, se dividem quanto às significações
desse consumo, em grande parte no que se refere a sua eficiência e segurança:

171
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Mata Hari - Isso é uma coisa que me preocupa, porque o que eu vejo é que muitos
pacientes pedem, e mesmo na enfermaria tem funcionários que pedem receita pra
família: “há, me dá uma receita pra minha mãe, pra meu filho”. E vejo também gente
usando ansiolíticos e antidepressivos prescritos por médicos pouco atentos ao
emocional do paciente que acaba se acostumando aos efeitos dos medicamentos e não
quer abrir mão deles. O paciente se sente bem com o uso e quer continuar usando. Eu
vejo pouco debate sobre isso no meio acadêmico e é muito confortável. Eu tou tratando
a doença de fulano que tá baseada em fatores de ansiedade. Em vez de encaminhar
essa pessoa pra uma terapia, você aplica um ansiolíto. Eu acho perigoso e sou contra!
Eu só prescrevo em situações bem determinadas; em doenças graves, dificuldade pra
dormir, pacientes terminais.

Buda - Há um consenso de que antidepressivos e ansiolíticos não são drogas, são


remédios. Receitar um destes hoje é normal porque você sabe que muitos médicos
trabalham juntos com os laboratórios. Nos EUA se um médico não adota os consensos
da indústria farmacêutica, consenso para prescrever medicamentos em praticamente
toda consulta, pode ser processado pelos pacientes que vão ali pra receber alguma
prescrição e não para ouvir conversa. Querem fazer o mesmo por aqui. Um médico
aqui não pode ficar duas horas atendendo um paciente, atende em 15 minutos e passa
adiante senão sua produtividade vai ser baixa. Os médicos usam armaduras de chefões,
mas não se permitem muito contato com as pessoas vivas, os pacientes.

T.V. - Você percebe o discurso da medicalização como um problema ou uma coisa


normal?
Tutancamon - Na medicina é aceita como normal, mas eu vejo um problema porque
atrás disso tem várias outras questões, principalmente a questão dos laboratórios que
prostituem o médico ou ele mesmo se permite a, mas a questão é: você está com
depressão; antidepressivo, você tá ansioso; ansiolítico. Você quer resolver aquilo
pontualmente, sem se ligar em várias outras coisas que o paciente apresenta, como se
uma pílula fosse resolver todos os problemas.

172
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T.V. - Você está enveredando pela psiquiatria onde se usa muito ansiolítico e
antidepressivo, você pensa que remédios assim são diferentes de substâncias
psicoativas?
Pasolini - É droga, é substância psicoativa!
T.V. - Você é a favor da medicalização?
Pasolini - Já pensei sobre isso, acontece na medicina inteira, não é exclusivo da
psiquiatria, os laboratórios lucrando tão na medicina em geral. Essa medicalização
exagerada me levou a pensar em não fazer psiquiatria, talvez não fosse o meu perfil
trabalhar com saúde mental dessa forma. Mas talvez existam pessoas que não consigam
resolver com análise...

Uma reflexão recorrente nos depoimentos desses estudantes de medicina sobre a


medicalização é que a perspectiva mercadológica, que envolve os profissionais de saúde
e os laboratórios farmacêuticos157, não sustenta como prioridade os cuidados com a
saúde dos pacientes e sim a lucratividade. Chega-se a estabelecer um consenso interno
de que medicamentos psiquiátricos não devem ser representados como substâncias
psicoativas. Se Pasolini pareceu relutar em ter que admitir que “talvez existam pessoas
que não consigam resolver com análise”, Picasso já o admite sem conflitos:

Picasso - Tem sido um crescente na medicina como um todo, o número de pessoas


que precisam de medicamentos, de ajuda por psicoativos controlados.

Essa observação de Picasso, ao afirmar que esse mercado de consumo visa satisfazer
a demanda por saúde mental, inverte a lógica de mercado apontada pelos colegas, e
talvez esteja apontando no mesmo sentido que o prognóstico da OMS sobre a pandemia
de depressão. Será que Picasso acaba incluindo a ele e a seus colegas no âmbito desse
consumo? Se inclui, a demanda deles será por processos de cura?

T.V. - Vocês não têm interesse em usar medicamentos?


Picasso - Eu tenho!

157
- diferentemente do começo do século passado quando o Harrison Act entrou em vigor, atualmente,
laboratórios e médicos de forma geral, defendem os mesmos interesses. Uma pesquisa de doutorado
realizada na Unesp, apontou que 27% dos médicos atualizam seus conhecimentos sobre os medicamentos
que utilizam com os representantes dos laboratórios (Jornal Nacional,14/05/04).

173
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Buda - Eu já tomei Ritalina com álcool, é uma viagem! A psicomotricidade fica a


mil. Eu não conseguia parar de me mexer (risos coletivos).
Da Vinci - Qual é a onda?
Buda - Rapaz, você fica completamente hiperativo, mais do que com anfetamina. Eu
não gostei muito não, eu gosto de viajar.
Da Vinci - Mas não assustou não?
Buda - Não, dá pra tomar. Agora eu não entendo como é que toma aquilo ali pra
estudar.
T.V. - É, mas é que você fez um coquetel com álcool que pode ter sido determinante
em relação aos efeitos.
Buda - Na verdade a Ritalina faz um efeito contrário ao padrão em atividade, é
com a dopamina que ela mexe. Se o cara tá em hiperatividade, se você dá a Ritalina
causa o efeito contrário, se o cara tá calmo e toma, cê bota ele na loucura da
hiperatividade...
T.V. - Então vocês acham que os medicamentos valem os efeitos?
Buda - Entre as cinco drogas mais prescritas do mundo você tem três drogas
psiquiátricas. E não é só antidepressivo não, tem pessoas que tem dependência de
ansiolítico pra dormir.

O temor da dependência de ansiolíticos e de antidepressivos parece não assustar estes


interlocutores possivelmente por acreditarem no saber que eles como especialistas na
área de saúde devem dominar. Também merece destaque a afirmação de Buda sobre os
números de prescrições psiquiátricas serem dos mais altos no mercado da saúde. O
vetor econômico é aqui de capital relevância para refletir não apenas sobre a amplitude
do mercado de consumo de drogas lícitas, mas principalmente refletir sobre a inclusão
dos interlocutores nessa específica ordem configuracional. Muitos deles ainda são
bolsistas e/ou dependentes das famílias e o capital econômico para a aquisição de
drogas enquanto capital cultural é indicativo de seus estilos de vida:

3.3.4 - Drogas como capital e gastos com consumo

Os interlocutores que dispõem de mais recursos econômicos não se sentem


constrangidos com seus gastos quanto à cultura das drogas, na prática, este consumo

174
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lhes confere capital cultural dentro da comunidade de pares. Pelo prazer como falam de
seus gastos, eles indicam que sustentá-los confere-lhes algum status positivo:

T.V. - Qual seu investimento mensal em drogas?


Zumbi - Com os ilícitos por volta de uns R$ 200,00 a 300 reais. E com os fármacos,
gasto R$ 50,00 ou um pouco mais. Normal.

T.V. - Você tem idéia de quanto gasta mensalmente com consumo?


Hofmann – Tenho! Em torno de R$150,00. Equivale a 15 gramas, mas é a
substância! Skank! Dura um mês inteiro, consumo diariamente. Quando eu utilizava
maconha normal, o consumo era bem maior, mais de 150 gramas. Mas agora eu ganho
potência, qualidade, eu faço um que dura dois dias, então eu não diminui o uso, eu
melhorei a qualidade do produto. Eu gastava menos, consumia mais e satisfazia menos.

Sendo dois interlocutores oriundos de famílias economicamente bem estabelecidas,


seus gastos não comprometem seus estilos de vida. A entrevista com Hoffman
aconteceu no terraço de sua cobertura onde ele faz autocultivo de skank, pois em seus
planos não há porque ser eternamente dependente de um fornecedor quando se pode
além de cultivar, controlar o padrão de qualidade. Apesar dessa facilitação do consumo
que uma situação econômica mais favorável permite, há quem se sinta constrangido em
fazer parte de uma comunidade familiar economicamente bem estabelecida:

Buda - Sou de família de classe média alta ou alta. Minha família me banca e é algo
que me incomoda.

Esse incomodo de Buda158 que gastou cerca de US$500,00 para adquirir o


vaporizador, não é incomodo por ter dinheiro, mas sim pela vergonha de que outros
saibam que o dinheiro gasto na busca por satisfação não foi ganho com seu trabalho.
Essa vergonha introjetada é mais um mecanismo psicológico de controle do processo
civilizador, mecanismo que em meio ao hedonismo da cultura de consumo não é
compartilhado pelos seus colegas de curso:

158
- que inclusive acha legal a faculdade de medicina na qual estuda, a Escola Bahiana de Medicina, ser
considerada a mais barata do país.

175
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T.V. - Vocês têm noção de gasto mensal?


Da Vinci - É mais com bebida, vai R$100,00, R$150,00 numa noite...
Picasso - Mas não é toda noite que a gente sai, duas vezes na semana.
T.V. - E essa grana aperta o orçamento?
Picasso - O lance é assim; nossos pais dão uma mesada pra gente, pelo menos os
meus continuam dando o que davam três anos atrás, eu não peço mais nada, a gente já
tá trabalhando (fazendo residência), ganhando dinheiro nosso, e como em casa a gente
não paga nada, a gente gasta consumindo outras coisas; viajando, indo pra festas,
shows.

Viagens, festas e shows compõem o estilo de vida desse grupo de residentes,


desconstruindo uma representação dominante de que residentes não têm tempo para
outra coisa além de estudar. Quando o consumo de bebidas etílicas pode chegar a
R$150.00 numa noite, é possível registrar que esse é o consumo de uma elite de
estudantes economicamente privilegiada que não se preocupa muito com seus gastos e
que não se limita apenas a estudar. Entre os estudantes que têm por preferência as
drogas ilícitas, nenhum deles faz gastos tão altos quanto estes, mesmo entre os que são
de famílias economicamente privilegiada. O gasto do grupo citado está diretamente
relacionado com seu estilo de vida específico enquanto estudantes de medicina de uma
faculdade privada. Entretanto, ter mais dinheiro para consumo não fez com estes
estudantes investissem em cocaína ou outras drogas ilícitas mais dispendiosas, pois no
setting médico onde circulam, o consumo de uísques, vodcas importadas e de lança-
perfume é muito mais valorizado. Já para duas interlocutoras também oriundas de
famílias economicamente bem estabilizadas o capital cultural investido pode ser
interpretado em parâmetros outros que não o estritamente econômico:

Mata - Com o cigarro (de tabaco) eu gasto imensamente mais do que com maconha.
Cigarro eu fumo há doze anos e cada vez mais, óbvio. Cinco cigarros por dia durante a
semana, no fim de semana uma carteira. Já maconha são 3 becks por semana.

T.V. - Você costuma comprar maconha?

176
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Salomé - Não, geralmente como eu tenho um narguillê159, eu levo o narguillê e levo


as essências, eu entro com a parte legalizada (risos) e outras pessoas que tem mais
acesso compram...

Gastar dinheiro com drogas para estas duas interlocutoras não é fonte de status, e não
porque não tenham dinheiro. No caso de Mata e de Salomé não há uma busca por
distinção em meio as suas comunidades de consumo. Salomé inclusive estabelece
vinculações dadivosas, pois o narguillé e as essências que ela disponibiliza não custam
barato. Fumar maconha com essas ferramentas não é simplesmente um luxo que
configure um estilo de vida mais exótico, é muito mais um mecanismo que confere
pertencimento num grupo com marcos identitários bem específicos.
Outro dado que indica uma maior facilitação para que esses universitários aqui
elencados invistam mais dinheiro em consumo de drogas se assim o desejarem, é que
dos vinte e dois interlocutores, vinte e um deles não possuem filhos para sustentar. O
único interlocutor que é pai mantém seus hábitos em comum acordo com sua esposa,
também adepta da cultura psicoativa:

T.V. - Quanto você gasta mensalmente com drogas?


Mozart - Geralmente por mês umas cinco garrafas de vinho, bote vinte contos cada
garrafa, e maconha é 50 gramas quinze dias, então vai cem contos por mês, eu e minha
mulher cada.
T.V. - Esses duzentos contos por mês pesam no orçamento?
Mozart - É uma área de lazer pra gente, a gente não sai, a gente não tá na balada; a
gente vai ao cinema muito pouco, então a gente pega um DVD, toma um vinho, tá
dentro do orçamento de diversão. Às vezes não tem também, então não vou roubar pra
ter (risos).

Com o casamento, Mozart já não frequenta mais os bares nas noites, nem mesmo
para tocar Blues com seus amigos. O consumo de drogas ao som de música sempre
presente em sua casa com ampla área verde numa rua tranquila no bairro de Itapoá, para
Mozart assume o lugar da vida boêmia que ele por mais de uma década prestigiou; se
não dá mais para ir ao cinema, assiste-se um DVD tomando vinho e fumando maconha,

159
- narguillé é um recipiente para fumar com uma concentração de água que resfria a fumaça e reduz os
danos ao aparelho respiratório do fumante.

177
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se não dá mais para frequentar festas dionisíacas, reúne-se com um casal de amigos que
também sejam pais e que tenham prazer em beber e fumar “familiarmente”. Se a sua
verba no final do mês não é das mais elásticas, ele e sua esposa sabem que o gasto de
R$200,00 não é um investimento em supérfluos, é um investimento em porções seguras
de felicidade. Em relação à segurança, os interlocutores que possuem menor renda não
deixam de estar incluídos no circuito de consumo, pois sua comunidade de pares
consumidores tem como uma das finalidades lhes fornecer segurança para acessarem a
liberdade:

Lampião – Eu tento encaixar no orçamento que eu tenho com bolsa, com estágio. A
prioridade de gasto acaba não sendo esta [...] Eu tenho minhas atividades que eu não
deixo de cumpri-las e o uso recreativo tem momentos encaixados na minha vida. Com
isso, sempre alguém tá trazendo e nunca falta. Gasto R$ 80,00 por mês no total e dá
pra encaixar.

Quando não há dinheiro disponível para o consumo, as pessoas estabelecem relações


de troca onde as drogas entram muito menos como um meio para obter lucro econômico
do que para obter alguma satisfação. Leila que consome muito mais maconha do que
álcool resume seu gasto mensal a R$100,00 com álcool, pois maconha e outras drogas
eventuais, ela consome na medida em que repassa parte do que compra para outros
consumidores de sua rede comunitária. Seria impreciso enquadrá-la aqui como usuária-
traficante – apesar dessa representação acarretar um risco quase inevitável -, pois ela
não visa lucro econômico e sim ter o que consumir. O estilo de vida de um legítimo
usuário/traficante deve envolver a expectativa de lucro até como elemento distintivo:

T.V. - Você tem uma receita do que gasta e ganha?


Nietzsche - Não tenho porque é muito rotativo, e eu gasto muito. Sempre eu tiro o
necessário pra alimentação, aluguel, o que sobrar é festa (risos). Já me passei, já gastei
demais, o que me quebra é mulher. Eu tou com uma mulher do lado ela me leva até na
China se ela quiser. Dias em motel só consumindo...

Esse interlocutor que comercializa cocaína demonstra muito mais interesse em gastar
do que em ganhar dinheiro, tanto quanto não liga a mínima para o que se diz ser a regra

178
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tradicional do traficante; não consumir o que deve vender. O seu lucro se dá muito mais
em capital cultural – consumindo drogas e sexo - do que em capital econômico.

3.3.5 - Drogas em família

Vale ressaltar que se Nietzsche curte o lado hedonista, ele não descuida de suas
responsabilidades e mantém boas relações com a família:

T.V. - Você chegou a ter problema alguma vez?


Nietzsche - Não, por conta disso não. Tive problema em relação a um baseado, mas
nunca nada sério. Fiquei um ano morando com família, mas eu sempre morei sozinho.
Minha mãe até um mês atrás tava crente que eu tava vendendo maconha, pra evitar
isso eu saí de lá, eu gosto de ter minha liberdade, eu gosto de andar nu pela casa.

Para evitar comprometer sua segurança e continuar desfrutando da liberdade que sua
condição lhe propicia, Nietzsche se mudou para um apartamento alugado onde pode até
deixar um pacote de cocaína aberto na sala enquanto recebe visitas160. Diferentemente
da juventude universitária que esteve atuante nas décadas de 1960/70, a presente não
busca necessariamente rompimentos com familiares que possuem valores mais
conservadores. Alguns munidos de informações e reflexividade buscam através do
diálogo validar seus pontos de vista outsider, enquanto outros buscam diplomaticamente
evitar um conflito que em suas perspectivas, não trariam maior esclarecimento e sim
tensões configuracionais. Se a família é a primeira edição dos sistemas especialistas
com a qual o indivíduo interage, na transição da juventude para a adultez – e nesse
recorte a carreira universitária configura o rito de passagem central – é geralmente onde
acontece a ressignificação dos sistemas especialistas, inicialmente um domínio
relacionado aos parentes mais próximos:

T.V. - Você gosta de rock and roll?


Rimbaud - Pra caramba, por causa de meu pai. Por isso que eu falei que Led
Zeppelin, Beatles faziam parte da minha vida desde guri. Queira ou não, as histórias

160
- ele parece acreditar que essa exposição não compromete a sua segurança, pelo contrário, na prática
aumenta seu status entre as visitas já que possibilita demonstrar que ele confia nelas.

179
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que meu pai conta que ele fez, a memória que ele passa pra mim eu consumo, me
interessa e forma meu modo de ver e de pensar. Eu comecei a me distanciar de pai
quando eu conheci o reggae, que meu pai não gosta. Aí rolou uma independência
mesmo.

Seria simplório e inadequado constatar que a independência à qual Rimbaud se


refere, se deva ao dado de seu pai gostar mais de rock do que reggae enquanto música.
Essa divergência estética talvez indique que estes gêneros musicais com seus settings
característicos, se podem até “andar juntos”, não são necessariamente os mesmos; o
rock enquanto representação cultural tende a ser configurado enquanto celebração de
uma desconstrução em relação aos valores estabelecidos, sendo de modo geral, uma
sonoridade mais agressiva. Já o reggae tende a ser representado como celebração de
uma construção que busca transcender o estabelecido, mas não agredindo, e sim
chamando para a confraternização. Embora haja um público que consuma os dois
gêneros musicais, há representações diferenciadas enquanto capitais culturais
consumidos por tribos que se distinguem exatamente pela reflexividade presente em
seus gostos e não só em relação a drogas. Entre variados capitais; música, livros, e
também filmes podem, delimitar este recorte identitário:

Rimbaud - Outro dia eu tava discutindo Cheech e Chong que é da época de meu
pai e ele gosta daquela porra. Eu assisto, dou risada, mas eu acho que é onda de
doidão. Os Caras fizeram seu papel naquela época.

Personagens que estrelaram alguns filmes hoje cultuados, Cheech e Chong são dois
outsiders maconheiros que se metem em muitas confusões por causa de seu consumo
descontrolado da erva161. O que Rimbaud indica na sua crítica desses personagens é que
ele busca a superação do mito de doidão e quem sabe, do mito de usuário hippie
representado pelo passado no pai. Depois de ter sido detido pela polícia, Rimbaud não
quer ser enquadrado como um desqualificado, um maconheiro doidão, principalmente
aos olhos do pai. Esse também é um ponto central para uma interlocutora que tem uma
boa relação com o pai – o representante do sistema especialista - sobre a questão do
consumo.

161
- personagens apreciados pelo interlocutor Marley (22), dois anos mais jovem do que Rimbaud (24).

180
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Cleópatra - Foi uma das coisas que quando eu comecei a fumar, meu pai me falou:
“você que fuma tem que fazer tudo em dobro, que qualquer coisa que você fizer de
errado, qualquer vacilo, vão falar que é porque você fuma maconha”. Meu pai por
exemplo, os pais dele descobriram que ele fumava maconha. Três dias depois ele
passou em medicina na USP, aí vão falar o que? Ele cursou seis meses, pra provar que
poderia fazer tudo que ele quisesse, então largou e fez cinema.
T.V. - Será que esse fazer tudo em dobro não é um fardo, ou seja, cê ter que provar
alguma coisa aos outros por fumar não lhe incomoda?
Cleópatra - Não, não me incomoda ... fazendo em dobro ou não, a questão é não
terem o que falar de mim. Eu não preciso provar nada pra ninguém, mas também não
preciso ouvir crítica de ninguém.

Essa é uma típica situação em que a produção de trabalho tem o efeito de uma
redução de riscos em relação ao consumo, uma inversão para a representação corrente
de que o maconheiro tende a ser inapto para a produção. Nesse caso, o consumo de
maconha não é amotivacional, pelo contrário, é motivacional. Exceção à regra? Não,
segundo outra interlocutora, Mata: “eu tenho que comprovar pela minha competência,
que isso aí (consumo de maconha) não afeta nada. Então não tem conflito, mas também
não dou muita abertura pra crítica”. É possível afirmar que se o conselho paterno
acompanha a trajetória de Cleópatra ajudando-a a reduzir os riscos, nem toda herança
familiar recebida pelos interlocutores é revestida pela confiança proporcionada pelo
diálogo:

T.V. - Antes da universidade você tinha contato com o mundo das drogas?
Tutancamon - Eu tinha na verdade um contato com meu irmão quatro anos mais
velho, ele fez de tudo que se possa imaginar e aí mora o problema. A questão é que
como ele fazia é muito diferente do que eu faço hoje em dia, tocava o terror! Pra ele
era um beck atrás do outro, não fazia porra nenhuma o dia todo, só pá, pá, pá. Estudar
que nada, aí andava com a galera em boca de fumo. Se embananou todo, quase não
consegue formar. E eu tive essa aproximação desde 13, 14 anos, mas sempre numa
postura totalmente adversa. Ele teve que parar, se continuasse nessa não ia ter
conseguido formar. Quando parou, tudo começou a dar certo porque a forma dele era
daquela forma polarizada, era 8 ou 80. Eu tinha repulsa, eu não tinha nem medo,

181
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porque eu era muito estudioso, muito certinho, até então eu não saia, não bebia, não
fazia nada. Eu tinha pavor às drogas por causa daquele exemplo dele.
Depois de ter entrado na universidade eu comecei a abrir o leque, já não tinha
aquela cobrança do vestibular. Meus primos também fumavam um, dois anos mais
novos. Eu via todo mundo tranquilo, então eu comecei a me aproximar mais depois que
eu vi que não era aquele problema. Tudo começou com eles. Eles tinham acesso,
desciam em boca. Mas ao mesmo tempo fui ampliando minha rede de contatos. O que
me afastou deles foi que ficaram descontrolados, começaram a partir pra “pedra”162,
aí eu me desassociei mais.

As influências fraternas de Tutancamon indicam duas direções; as influências


fraternas consanguíneas indicam um caminho mais descontrolado, intemperado, pois no
período que estava mais exposto a elas, Tutancamon na sua condição de inexperiente
colocava-se como sujeito passivo, receptáculo de influências, fosse do irmão, fosse dos
primos. As influências fraternas eletivas – a comunidade de universitários – já indicam
uma reflexividade maior, um posicionamento de sujeito ativo apto a efetuar opções. A
partir deste último período Tutancamon começou a operar a ressignificação das drogas e
de alguns controles informais. Em relação aos primos, quando estes passaram a
representar algum grau de risco, Tutancamon, agiu de acordo com as reflexões que sua
experiência lhe mostrou serem mais adequadas; se afastou dos usuários problemáticos,
não das drogas. Mas esse afastamento não significou rompimento com a família:

T.V. - E como é sua relação com a família quanto às drogas?


Tutancamon - Eles sabem, é uma relação superaberta, na realidade meus pais
também viveram isso, meu pai também já tocou terror na época dele, movimento hippie
e tal, minha mãe também, já em menor escala. Meu pai era da pesada! Eu enxergo isso
hoje bem tranquilamente, esse problema com meu irmão acho que foi deixando eles
mais abertos pro que realmente pode tar representando aquilo ali, ver um ponto maior.
Não é a droga que não presta, é você observar a conjuntura toda. Hoje meu pai diz:
“rapaz, olha esse cigarro que você já fumou pra caramba, é melhor você ficar fumando
a massa do que ficar fumando essa porra aí”.

162
- pedra = pedra de crack

182
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O hábito do consumo de drogas circulou pela família de Tutancamon com diferentes


significados, em diferentes configurações, dos pais hippies ao irmão junkie, finalmente
chegando nele, que tem por objetivo ser considerado um consumidor temperado. Ter a
oportunidade de refletir profundamente sobre as experiências de seus predecessores
estando-lhes aberto ao diálogo, favorece que Tutancamon seja esse “caminho do meio
da família” no que se refere ao consumo. A importância do diálogo para configurar a
confiança familiar é capital. Alguns interlocutores que até possuem espaço para realizar
esse diálogo, pela força dos estigmas envolvidos só o realizam parcialmente:

T.V. - E como é sua relação com a família em relação às drogas?


Buda - Ninguém sabe, só meu pai e minha mãe. Depois que meu pai se separou de
minha mãe eu fumei com ele. Ele veio aqui uma vez e me disse que tinha experimentado
depois da separação, com alguns amigos. Aí eu falei que fumava e ele ficou surpreso.
Chamei ele pra fumar comigo e conversamos muito, foi legal. Já minha mãe quando
descobriu que eu fumava ficou muito chateada.
T.V. - Ela sabe que você fumou com seu pai?
Buda - Não, senão ela ia ficar chateada com ele.

Como no caso de Cleópatra, há uma cumplicidade fortemente estabelecida entre


Buda e seu o pai que exclui até a mãe. Nesse sentido o consumo de drogas adquire a
carga simbólica de um segredo compartilhado que pode ser decisivo no que diz respeito
às futuras relações de confiança. Também os pais de Hofmann, Rimbaud, Pancho, os
pais de Tutancamon e a mãe de Marley - 32% dos pais e 9% das mães - consomem ou já
consumiram entre os ilícitos, pelo menos maconha. Esse consumo não garante
necessariamente, que a relação entre pais e filhos seja tranquila:

T.V. - Como é que você lida com a família em relação a esta questão?
Hofmann - Foi uma briga muito grande e ainda é. O filho no qual foi investido
muito nele, estudou nos melhores colégios, aprendeu inglês, viajou pra Europa, e
acabou usuário de drogas. Foi incutido na mente deles pela televisão e pelos jornais e
pelas perspectivas dos outros de que isso seria algo ruim. Isso me trouxe grandes
conflitos internos com minha família, meus pais. Nestes conflitos eu resolvi manter
minha postura em relação àquilo. Meus pais chegaram a me pedir pra se manter na
ignorância, ou melhor, ‘se você faz, não faça na minha frente’. Só que eu resolvi tomar

183
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uma postura contrária, que eles acreditavam que era desrespeito a eles. Não quero só
que você saiba, mas saiba quando, onde e com quem. Porque eu não vou esconder isso
de vocês, que isso ainda vai fazer parte da minha vida por um bom tempo, talvez pra
sempre, talvez até só o ano que vem. Se a gente não mantiver um diálogo aberto em
relação a isso que é algo constante na minha vida, há grandes chances das barreiras
entre nós serem cada vez maiores, e eu venha a privar de contar com todo o resto de
conhecimento, todo o resto de aprendizado, em função de uma única coisa que eles
acreditavam que não era boa pra mim. Meus pais não bebem, não fumam e eu respeito.

A situação familiar vivida por Hofmann vem a culminar na polarização política do


silêncio X expressão do barulho. Seus pais queriam silêncio sobre o que não aceitavam
ouvir - como fez a família de Oscar e a de Lampião -, e Hofmann fez barulho sobre o
que não quis calar – Como Rimbaud. Seu barulho é justificado com o seu receio de que
lhe operassem um reducionismo de sua pessoa à sua faceta de usuário. Sua dor como
filho, é ter que aceitar por não se submeter aos controles formais, que dos seus pais,
tenha que se “privar de contar com todo o resto de conhecimento, todo o resto de
aprendizado, em função de uma única coisa”.

T.V. - Na sua família não nenhum outro usuário?


Hofmann - Meu pai já foi usuário.
T.V. - De que?
Hofmann - De maconha, no interior. As perspectivas das pessoas com quem ele foi
usuário e da forma como eles utilizavam a substância não foi muito boa. As pessoas
com quem ele andou no futuro não se deram muito bem e ele tomou isso como (sendo)
responsabilidade da substância e não porque os outros não tiveram a chance como ele de
fazer uma faculdade, e não porque a família dele teve uma condição melhor. Hoje já
não busco defender como antes defendia, em virtude dessa projeção mercadológica,
profissional que eu tenho que ter em relação a minha imagem.
T.V. - A sua titulação na graduação e na atual pós-graduação ajudou a amenizar a
situação?
Hofmann - Não, na verdade a expectativa cresceu, eles acreditam que agora já que
eu estou formado, já que eu tou na pós-graduação, não sou mais nenhum menino e eu
tenho que me formar um homem, e dessa forma, significa que eu tenho que parar de
utilizar a substância. Isto pra eles é coisa de adolescente rebelde. E eu digo que não há

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coisa mais careta do que fumar maconha! De rebeldia isso não tem nada! Se isso fosse
tão rebelde teria mudado o mundo e você vê que não mudou em nada. Se você conhecer
as pessoas que eu conheço que utilizam a substância, tem umas que são mais caretas do
que as que não usam.

Hofmann acredita que na configuração em que se encontrava o seu pai quando


jovem, foi mais fácil “demonizar” a maconha para justificar o insucesso de seus ex-
pares do que fazer uma análise crítica das condições socioculturais onde viviam. Por
sua vez ele não se esquiva de buscar um diálogo pautado em argumentos
cientificamente bem construídos, mas em função da grande expectativa criada em torno
de sua carreira, a sua redução de riscos ainda é pouco: “eles acreditam que agora já que
eu estou formado, já que eu tou na pós-graduação, não sou mais nenhum menino eu
tenho que me formar um homem, e dessa forma, significa que eu tenho que parar de
utilizar a substância”. Quanto maior o grau de instrução de Hofmann, maior é a
cobrança por parte de sua família de que as drogas fiquem para trás. No ponto de vista
dos pais, é assim que se configura o processo civilizador. A réplica de Hofmann para
esta situação deixa claro como a atual cultura de consumo de drogas já superou a
necessidade de desvio e de transgressão: “E eu digo que não há coisa mais careta do que
fumar maconha! De rebeldia isso não tem nada!”. Talvez nada seja mais revolucionário
na reflexão de Hofmann do que dizer que não há nada mais careta do que fumar
maconha, “Se você conhecer as pessoas que eu conheço que utilizam a substância, tem
umas que são mais caretas do que as que não usam”. Assim sendo, o fumar maconha
para Hofmann passa a ser representado como um hábito que passou por várias
significações culturais nos últimos dois séculos, inclusive estando em algum momento
histórico, associado à rebeldia da juventude. Mas nem todo interlocutor está disposto a
correr o risco de ampliar os riscos de um enfrentamento familiar, mesmo os que
trabalham como redutores de danos:

T.V. - Você tem problemas com a família por causa de drogas?


Lampião - Não, mas também não tem nada declarado. Eu acredito que sabem, mas o
debate não vem à tona. Eu já tentei, mas a formação de meus pais não dá margem para
serem convencidos de outras questões que envolvem os psicoativos que não a

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marginalização. Então pra gente viver bem, a gente não toca (no assunto). Não deixo
de usar, chego em casa barrunfado163 e tudo.

Mata Hari - Minha mãe é ingênua, quando eu morava com minha família, varias
vezes eu chegava em casa de LSD, de maconha, sentava pra conversar tranquilamente
e ela não percebia.

Esses dois interlocutores trabalham com redução de danos em festas de música


eletrônica, mas em casa sentem prazer em mostrar aos familiares que não precisam
controlar excessivamente os próprios riscos, pois acreditam dominar suas performances.
Já o caso de Einstein chega a ser curioso, segundo indicam seus amigos:

T.V. - Como é a relação com as famílias, eles sabem que vocês usam?
Picasso - minha mãe descobriu e ficou de boa, ficou de boa assim, ela odeia, mas
não fala nada. Meu pai encontrou uma ponta no carro e disse: “encontrei isso no seu
carro, ou você vai falar a verdade pra mim ou vai falar que seus amigos é que tão
fumando” (risos). Ele fez uma pagação, aí eu falei que ia parar.
T.V. - E você Einstein?
Einstein - Eles não têm noção...
Da Vinci - ...mas eles desconfiam...
Einstein - ...desconfiam mas eu me ligo, nem levo maconha pra casa.
Picasso - ...ele chegava muito doido, mas o pessoal acha que ele tem problema com
álcool.

Mesmo que soe como uma piada, para a segurança de Einstein no setting familiar, o
seu suposto consumo de álcool acabou servindo como estratégia de redução de danos
sociais para os possíveis problemas que poderiam ser provocados se seu consumo de
maconha se torna-se de conhecimento público. Todavia, em outras configurações
familiares diferentes das em que pais são estabelecidos e filhos são outsiders, o lugar
reservado para o consumo de maconha não se confunde com o espaço do “muito
doido”, às vezes nem com o espaço para o recreativo, pois o principal espaço relacional

163
- barrunfado = com cheiro de maconha.

186
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está concentrado no campo das responsabilidades e da produção, como no caso do único


interlocutor que é pai:

Mozart - Meu filho tá com 3 anos e eu não posso fumar, eu tenho que tar ligado
nele. Eu vou sair com ele prum parque, parece uma coisa lúdica, mas não é, tem um
monte de perigos. Agora pra entrar no universo dele é ótimo, pintar, desenhar...
T.V. - Sua esposa também é usuária, como é que é o convívio?
Mozart - Ela trabalha também com educação, ela escreve, se não tiver pra escrever
ela fica louca. Ela é touro, é muito chão, então pra ela escrever ela tem que voar um
pouquinho.

E não é apenas no caso de Mozart, pois pais, irmãos, filhos e familiares próximos
podem influenciar na configuração de representações marcantes a respeito do
significado das drogas, mas não apenas parentes; todos aqueles que fazem parte do
cotidiano dos usuários possuem potencial para influenciá-los quanto a seus valores:

T.V. - Você teve contato com drogas antes da graduação?


Salomé - Desde a escola, sétima, oitava série, tinha colegas que todo mundo sabia
que fumavam. E naquele período isso tinha uma conotação de uma coisa muito ruim.
Aqueles meninos eram os bagunceiros, baderneiros, que perdiam ano e a gente não
devia ter nenhum tipo de contato. E eu como CDF que era, sentava na frente da sala,
não me envolvia muito com essa galera. Também eram mais velhos do que eu.

Uma representação social vigente é que uma “aluna CDF” não deveria ser desviada
de sua carreira de estudante acima da média por envolvimento com maconheiros que
não apenas eram bagunceiros, também possuíam baixo rendimento e eram candidatos
fortes à reprovação – e aqui fica subentendido que eram bagunceiros e repetentes por
influência direta do consumo de maconha. Eis a naturalização do estigma, a
demonização do consumo e do consumidor que só foi passível de desmistificação
quando Salomé ingressou na universidade, onde constatou que colegas que fumavam
maconha eram também bons alunos. Outra interlocutora que também foi boa aluna no
segundo grau levou menos tempo para chegar a este ponto de reflexão.

T.V. - Como foram os primeiros contatos com a maconha?

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Blavatsky - Eu morava numa rua que tinha várias pessoas que fumavam, eu ficava
observando e achava legal o modo como eles ficavam tocando violão, eu achava
bonito, e aí eu comecei a ter contato com isso. Meu pai começou a conversar comigo,
minha mãe também, aí eu comecei a ver diferença do discurso do que o meu pai falava,
que maconha deixava a pessoa assim e assim, e na prática eu não via isso, eu via as
pessoas normais, conversando, embora as pessoas que tinham tido contato com drogas
mais pesadas tenham tido situações de desequilíbrio mesmo, mas naquele primeiro
momento não tinha nada que fosse problemático naquele grupo. E um dia uma dessas
pessoas deixou uma “ponta” numa árvore e eu que tinha acabado de fazer 13 anos
peguei pra ver como era. Eu fui sozinha fumar, gostei, achei muito legal, aquele
relaxamento, me anestesiou um pouco. A partir daí eu comecei a fumar.

Esta é uma iniciação atípica por alguns fatores, primeiramente pela idade precoce da
interlocutora, segundo por ter sido realizada sem ajuda de ninguém que a introduzisse
na comunidade de consumidores e terceiro, mas não menos importante, por tratar-se de
uma pessoa do gênero feminino. Comecemos por este último item, já que o universo de
consumidores da pesquisa é predominantemente masculino (77%). Não que seja
anormal uma mulher fumar maconha, mas se essa mulher for uma adolescente de 13
anos que o faz totalmente desacompanhada, se tem desenhada uma situação que faz
questionar: ela foi motivada pela audácia, pelo tédio ou pela mera curiosidade para
tamanho empreendimento? A pista oferecida pela sua fala é de que: “eu comecei a ver
diferença do discurso do que o meu pai falava, que maconha deixava a pessoa assim e
assim, e na prática eu não via isso”. Como no caso experienciado por Pancho, a
distância entre as informações transmitidas pelo senso comum e as experiências de vida
fez com que Blavatsky fosse se afastando de valores até então absolutos. Nesse recorte,
o elemento motivacional que seduziu uma pessoa de 13 anos não foi a maconha em si,
mas a configuração onde ela era consumida, o estilo de vida do grupo de pessoas que
frequentava sua vizinhança, “o modo como eles ficavam tocando violão, eu achava
bonito”. A maconha foi um dos elementos que configuraram um estilo de vida sedutor,
mas não foi o único.

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3.3.6 - Cultura de especialistas

Se na iniciação de Blavatsky não houve um especialista que facilitasse sua


introdução na comunidade de consumo, na prática cotidiana de alguns dos interlocutores
há um momento em que estes ganham representações mais associadas aos professores
do que aos pais e familiares164. Mudam as configurações do setting e mudam também as
possibilidades de controles informais relacionadas com cada setting. Essas
possibilidades passam a ser configuráveis de acordo com as interfaces entre os sets
motivacionais dos interlocutores e os settings relacionados à cultura acadêmica onde as
drogas adquirem outro potencial de consumo. Vejamos alguns casos onde a
representação de especialistas em relação à cultura das drogas parece gerar conflito de
interesses. Inicialmente em cursos de medicina, onde boatos indicam haver consumo de
substâncias controladas:

Lampião - Essas substâncias como Ritalina, hoje eu vejo que são usadas de
maneira recreativa.
T.V. - A receita é controlada...
Lampião - Exatamente, a receita é supercontrolada mas pra quem tá no meio...
você pode conseguir com professores que fornecem receita se você chegar pra ele e
bater um papo, tentar convencer ele de que você se enquadraria no critério pra
transtorno de atenção e hiperatividade que é pra que é teoricamente mais indicado, e
que você tá afim de focar atenção em alguma atividade. Você bate um papo e consegue
a receita não é nada complicado.
T.V. - Os professores são abertos a esse ponto, não têm medo de se comprometer?
Lampião - Não é o comum, mas existem alguns professores que fazem. Algumas
pessoas sabem, acaba sendo uma rede. Algumas pessoas sabem que Professor X ou Y
faz, mas Professor X ou Y tem mais proximidade de algum acadêmico, e é por via desse
acadêmico que se consegue uma receita ou o acesso.

Pasolini - Até existiam festas patrocinadas por professores, alguns eventos.


T.V. - Os professores bancam a bebida?

164
- e como a teorização de Giddens (1991) dialoga com a de Freud (1974 B), num primeiro momento da
formação cultural de um indivíduo, os especialistas que o influenciam não são necessariamente os que
dominam a excelência técnica ou competência profissional (Giddens, 1991,35), mas os que possuem
influência afetiva na comunidade de pertença.

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Pasolini - Às vezes sim...

T.V. - Ouvi dizer que tem professor que até banca a bebida, é isso?
Da Vinci - Depende...
Buda - Doutor F., um cirurgião, uma bichona louca, banca formatura da galera, tá
ligado? em troca disso ele é paraninfo, faz discurso... e vai ser paraninfo da minha
turma a contragosto meu, (risos). Eu já vi um discurso do cara dizendo que acima dos
médicos só existe Deus!
T.V. - E vocês têm essa imagem da medicina como um curso de elite, abaixo só de
Deus?
Buda - É elite, man! Você vê num hospital que tem várias profissões universitárias,
você vê o conforto do médico, os outros profissionais não têm.

Nas relações de poder que são estabelecidas entre membros da academia, às vezes as
elites correm o risco de perder o referencial que delimita a fronteira do controle ético e
formal entre a busca por segurança e a busca por liberdade165. Nesse caso específico, os
professores enquanto representantes legítimos do sistemas especialistas, devem saber
que o código de ética médica proíbe que os profissionais influenciados pelo mercado de
consumo, receitem remédios. O boom da farmacologia nos últimos trinta anos
normalizando o consumo de certas substâncias prescritas se sustenta na confiança dos
clientes nos sistemas de especialistas médicos. De certa forma, a distinção em relação
ao usuário de drogas ilícitas possibilitada pelo aval médico de uma prescrição, pode
levar um indivíduo a buscar consumir medicamentos sem correr riscos de ser dominado
pelo sentimento de vergonha. Fornecer receitas para alunos, tanto quanto trocar o
fornecimento de bebidas alcoólicas por favores políticos são comportamentos que só
estabilizam a representação tanto da normalização de comportamentos “dadivosos”
como o do paraninfo citado por Buda, quanto da ausência de vergonha e de princípios
éticos associados a tais comportamentos. Exceção à regra é quando algum especialista
tem sua representação pública maculada pelo consumo descontrolado:

Tutancamon - Eu tenho até amigas, médicas alcoolístas, exercendo a profissão e já


misturando tudo, fazendo besteira. E se perdem mesmo...

165
- como no já citado caso dos cientistas da Nature consumidores de Ritalina.

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Por esta última declaração se nota que nem todo médico está tão próximo de Deus
como faz parecer o discurso de Doutor F.. Médicos são acima de tudo seres humanos,
sujeitos às próprias emoções e aos descontroles correspondentes, assim como os
professores e estudantes oriundos de outras áreas do conhecimento. A pesquisa também
apontou situações em que a representação do professor diante dos alunos carrega a
imagem de um passado que na prática já não se confirma, o que abre espaço para sua
ressignificação:

Salomé - Na verdade a gente ouve comentários ou histórias a respeito dos


professores, de (seu) consumo anterior ou de alguma permanência. Mas na maioria
(das vezes) não é um debate que esteja presente como a gente vê em outros espaços.
T.V. - Sobre os professores?
Salomé - Sobre os professores a gente ouve muito: “ah, fulano agora fica tirando
essa onda de careta, mas já deitou e rolou, botou pra fuder, tal e tal”...
T.V. – E qual foi impacto desses comentários sobre a imagem dos professores? No
fim das contas com que imagem eles ficam?
Salomé - Alguns ficam com imagem de hipócritas, comparando as histórias
passadas com o comportamento que eles têm contemporaneamente. Mas no geral acho
que não arranha muito não. Porque tem gente que tem um tipo de comportamento
semelhante.

Se é possível significar a carreira universitária como a vida num segundo lar, à


maneira do que acontece entre pais e filhos, as representações dos professores são
fundamentais para o estabelecimento de relações de confiança com os alunos. No que se
refere ao consumo de drogas, há professores que acreditam ser possível administrar esta
questão ao largo do estabelecimento de vínculos de confiança:

T.V. - Como é sua relação entre consumo e produção?


Hofmann - Eu já tentei buscar o equilíbrio, eu já tentei todos os métodos, consumir
antes de assistir a aula... Hoje eu coloco na balança outras questões que alguns anos
atrás eu não colocava. Principalmente os valores sociais. Eu até a graduação não tinha
pudor nenhum em relação à utilização da substância, pouco me importava inclusive, o
que os outros acreditavam em relação a isso, basicamente porque as pessoas com quem
eu tava junto, a maioria eram usuárias. Todos eram jovens, todos tavam no sentido de

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construção de suas idéias, de seus valores. Já no ambiente da pós-graduação eu noto


que as pessoas são mais velhas, os conceitos já tão bem formados, as opiniões em
relação a isso tão bem amadurecidas e vão tar julgando ali, os rótulos, as marcas do
que eu possa vir a ser ou não por usar a substâncias e não pela minha capacidade
como estudante principalmente por ser jovem. Hoje eu uso a substância posteriormente
a aula, ou às vezes, nem associar um dia de estudo a isso.
T.V. - Então você está controlando seu consumo em função das representações que
outras pessoas possam vir a ter de você?
Hofmann - Que já têm!
T.V. - Isso já foi explicitado?
Hofmann - Com certeza! No final da minha graduação na FTC, eu fui fumar um e
entrei na sala de aula e um professor me parou e foi questionar diante de toda a turma
por que eu cheguei atrasado. Eu disse que tava conversando, e ele disse: “não, eu sei
muito bem o que você tava fazendo. Você tava fumando maconha”. Nesse momento eu
me senti um pouco fragilizado com a história. “você sabe que eu sei qual é a sua, e eu
sei que você é usuário”. Nessa aula tavamos conectados na internet e nesse momento
era o auge do meu envolvimento com o GIESP (Grupo Interdisciplinar de Estudo sobre
Substâncias Psicoativas), Marcha da Maconha e eu abri o google, digitei meu nome, e
lá as primeiras vinte aparições diziam respeito a isso: a minha palestra no CONAD
(Conselho Nacional Antidrogas) e coisas do gênero e eu mostrei pra ele e pro resto da
turma, eu disse: “olhe, se você quiser saber qualquer informação a meu respeito.
Agora, aqui, você tá sendo pago pra dar aula, e não anotar o que eu faço ou deixo de
fazer”. Foi a única vez no ambiente acadêmico que eu me senti humilhado. As pessoas
da sala já sabiam do meu uso, sem problema.
T.V. - Havia outros usuários?
Hofmann - Sim, quase 70%, então não havia problema quanto a isso.
T.V. - Você chegou a pensar em algum momento que este tipo de estigmatização
poderia lhe prejudicar?
Hofmann - Com certeza! Muitas vezes, inclusive porque existem outras pessoas que
gostam de se ocupar da vida alheia, às vezes não tem nada o que fazer. Então em
alguns momentos eu senti que isso poderia me prejudicar não só na vida acadêmica
mas na vida profissional. Tem pessoas ali da área em que eu pretendo trabalhar e a
opinião delas pesa mais do que opiniões externas ou que a minha opinião. Então hoje
eu já tenho mais cautela com relação a isso.

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T.V. - No momento em que você sofreu um constrangimento em sala de aula, o que


predominou, seu lado usuário constrangido ou seu lado ativista político?
Hofmann - Hoje eu vejo a coisa de uma forma mais fria, mas no momento eu lhe
garanto que eu me senti mais intimidado do que qualquer coisa. Todas as substâncias
endógenas do meu corpo como a adrenalina, foram liberadas, e eu fiquei em estado de
semi-pânico em virtude de que eu não sabia o que tava acontecendo, e porque eu estava
sendo ofendido e criticado e vindo de um professor que eu nunca desrespeitei.

Esta quebra de contrato na relação de respeito entre professor e aluno fez com que
Hofmann passasse a configurar suas estratégias de redução de riscos para evitar
possíveis danos à sua imagem pública, danos à sua representação enquanto estudante e
futuro profissional, em função do estigma de ser consumidor de maconha. Esse
problema aconteceu numa faculdade particular em um curso da área de Ciências
Naturais onde predomina uma perspectiva ortodoxa quanto ao consumo de drogas.
Alguns interlocutores buscam um setting acadêmico com configuração quase contrária
a este, na esperança de reduzir os riscos atrelados a este modelo de setting. Rimbaud por
exemplo, entrou na UFBa em Economia e depois de dois semestres se transferiu para
Ciências Sociais. Ele deixou claro que realizou esta troca de cursos após ter conversado
com amigos sobre drogas e acreditou que descobriu um curso onde se sentiria a
vontade para se envolver mais profundamente com a questão: “é um assunto que eu
considero um nó pra sociedade. Fiz vestibular pra Ciências Sociais porque me permite
fazer uma abordagem sobre as drogas melhor que a Economia permite.” É possível
interpretar que um curso que permita uma abordagem “melhor” sobre as drogas não
deve ser um curso onde se corra o risco de ser humilhado como Hofmann se sentiu por
ser estigmatizado como maconheiro. Um setting acadêmico com tais características -
onde se reduz a possibilidade de ser humilhado ou envergonhado - já indica uma
minimização de riscos sociais que acaba sendo lucrativa para o consumidor. Sim, pois
enquanto vigorar a perspectiva proibicionista, humilhação e vergonha serão dois
dispositivos de controle bastante eficientes:

Rimbaud - A principio, eu não me bati, porque todo mundo que fuma um, passa por
isso, porque quando você faz alguma coisa demais, uma coisa proibida, um dia os
“home” dá em cima, seja civil ou PM. A visão que eu tive de ser preso, é: ó como a

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polícia tenta me chamar a atenção pra algo que eles disseram que eu faço de errado.
Aquela conversa de que eu tou financiando o tráfico, a violência...

O estigma por ser usuário pode levar a uma autopercepção de vulnerabilidade, e


alguns usuários podem até naturalizar que “um dia os ‘home’ dá em cima”. Assim, o
risco deixa de ser uma exceção e passa a fazer parte dos valores culturais correntes. Se
esta percepção de vulnerabilidade é um mecanismo de controle vigente, há quem não se
acomode e se sinta revoltado com situações similares:

Buda - Enquanto não se regulamentar, vai haver pessoas passíveis de criminalizar.


Outro dia fui humilhado pela polícia numa blitz. Eu tava com alguns amigos e eles não
foram com minha cara, passaram um pente fino no carro de mais de 40 minutos,
passavam dedo nos cds pra ver se tinha pó. Se fosse descriminalizado a gente não taria
sujeito a esse abuso. É foda, já aconteceu deu tar aqui fumando um na varanda e um
vizinho de cima gritar; “oh essa fumaça ai!”, que direito ele tem de fazer isso? Não
pode! Eu tou em minha casa, ninguém pode me impedir de fumar! Isso me estressa e
revolta. Pra evitar esse tipo de problemas não fumo na rua, só na Concha Acústica.
Eu nunca fui numa boca de fumo, alguém chega e vai buscar. Em minha cidade (uma
das capitais do Nordeste) dava pra sair pelas ruas fumando, aqui não.

A vergonha que o sentir-se humilhado acarretou a Buda não é vergonha de fumar


por supostamente ser este um comportamento desviante, mas vergonha de ser tratado
como um desviante por fumar, quando ele não acredita que esteja fazendo algo de
errado. Buda, que apesar da revolta manifesta nessa fala, é uma pessoa comedida e
bastante simpática, já percebeu que sua mudança de setting metropolitano requer
diferentes estratégias para fumar, diferentes controles informais para não se expor
demais seja à polícia seja aos vizinhos.

3.3.7 - “Desetnizando” o consumo

Se nos séculos XIX e XX a etnização do consumo serviu para controlar, como estão
as coisas hoje? Correndo o risco de etnizar o que deve ser “desetnizado”, é inevitável
trazer a questão à tona. Sendo a única interlocutora negra participando da pesquisa,
moradora em um condomínio num dos bairros mais privilegiados da cidade, Salomé

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(24) que até três anos atrás não consumia drogas, tendo até uma imagem negativa delas,
é alguém que emblematiza bem como as consequências desse consumo podem ser
percebidos à flor da pele:

T.V. - Você já pensou no que lhe levou a mudar de opinião sobre as drogas?
Salomé - Eu acho que com a análise de como a minha família se organiza, a criação
da gente, pelo fato de nós sermos uma família de negros que conseguiu ter uma
ascensão social, de sair de circunstância de intensa pobreza, meu pai e minha mãe
pobres que conseguiram, trabalhando e estudando muito, uma ascensão, a gente acaba
tendo uma preocupação pequeno burguesa de prestar uma satisfação social. Você tem
que ser sempre o melhor naquilo que você faz, você não pode vacilar que as pessoas
tão sempre esperando mesmo você se fuder.
T.V. - Você acredita que por ser negra você tem que tomar mais cuidado com a
questão das drogas?
Salomé - Talvez sim, eu não tinha pensado nisso ainda, mas eu acho que sim porque
tem o problema com a polícia e com certeza a relação que a polícia tem com pessoas
negras, ainda que a maior parte dos policiais também seja formado por negros,
necessariamente você já tá dentro do padrão suspeito, né?

Salomé está deitada confortavelmente em uma rede quando emite estas últimas
palavras, de modo pausado. Buscando manter uma tradição construída arduamente por
seus pais, ela não deseja que seu status familiar de negra econômica e culturalmente
incluída seja maculado pelo estigma que acompanha o consumidor de drogas, pois tal
status já é uma superação de outro estigma; ser negra e pobre. Salomé é uma mulher
altiva com uma fala desenvolta e que em sala de aula costuma participar com reflexões
bem construídas e fundamentadas. Se a reflexão sobre ser negra e consumidora de
drogas efetivou-se apenas na configuração de nosso diálogo – levando em conta que
nesse diálogo com um pesquisador também negro, foi ela quem puxou a interpretação
étnica – para Salomé, esta não deve ser uma questão tão facilmente trazida à tona, em
função de sua busca por não se expor, por não querer se colocar dentro do “padrão
suspeito”, por não querer ser estigmatizada já que seus valores culturais sustentam “uma
preocupação pequeno burguesa de prestar uma satisfação social”.
Salomé é pós-graduanda em um curso de Ciências Humanas da UFBa, onde há um
dos maiores contingentes locais de estudantes negros. Muitos destes estudantes negros e

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que também são consumidores de drogas, por estarem imersos nas camadas mais pobres
da população articulam um discurso bem diferente do proferido por Salomé. Um
estudante de Ciências Sociais em duas oportunidades – em uma aula e em uma palestra
que ministrei sobre consumo de drogas com intervalo de um ano entre elas – me fez a
mesma pergunta: “a questão das drogas não devia ser debatida pelas entidades negras, já
que os negros são os mais discriminados?”. Em ambas as circunstâncias eu forneci a
mesma resposta: “olhe ao redor quando for fumar lá no “mirante”, ou mesmo olhe ao
redor aqui nesta sala e veja quantos negros estão presentes, e me diga se seria justo que
esta maioria de não negros fosse segregada da discussão”. Embora o estudante estivesse
certo quanto a serem os negros os mais discriminados, ele não configurou a situação de
forma precisa, pois o debate que estávamos propondo não se dirigia a sociedade como
um todo e sim ao espaço universitário e nesse espaço havia uma maioria de estudantes
não negra. Como excluir os não negros do debate? No próprio universo da pesquisa não
deixa de ser sintomático que haja poucos negros, mesmo que na última década tenha
havido um acréscimo de negros nas salas de aula do país em função dos projetos de
ação afirmativa. Na prática, circunscrever o debate sobre o consumo de drogas em
torno de um segmento étnico seria como estabelecer a representação de que droga é
coisa de grupos étnicos segregados, reforçando mais ainda os preconceitos que supõe
combater.

3.3.8 - Sexo + Drogas ainda combina com rock and roll?

Se na cultura de consumo a busca por liberdade com segurança é uma disposição que
se configura presente enquanto habitus social, esta busca não se aplica só ao consumo
de drogas, mas também à sexualidade, entre outras possibilidades. A própria interface
cercada de riscos entre consumo de drogas e a sexualidade que trouxe as estratégias de
redução de riscos e danos para a pauta da política de vida cotidiana, já é um campo
explorado pelo mercado:

Pancho Villa - Eu considero maconha e sexualidade bem próximas, e não sou só eu,
a própria indústria legalizada do cânhamo como na Espanha, nas revistas
especializadas é maconha e mulher; feira de maconha, é maconha e mulher. Tem uma
exploração do lado sensual. É uma cultura que eu não diria machista, mas voltada
para a maioria dos usuários que é homem. Há mais usuários homens em países onde a

196
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droga é proibida. Na Amostra Brasil a proporção é de 3 homens pra cada mulher, tanto
no censo quanto na amostra domiciliar. Na Espanha é 2:1, Na Holanda ninguém
duvide de ser a mesma coisa166.

Se o mercado onde a cultura de produtos relacionados à maconha não é proibida –


como é o caso da Espanha e da Holanda - faz essa relação com a sexualidade, na lógica
simbólica de consumidores onde estas revistas e feiras não estão a disposição, se
operam elaborações reflexivas não muito distantes:

T.V. - Você faz alguma associação entre drogas e a sexualidade?


Marley - Depende, porque tem mulheres que são usuárias e que curtem caras que
fumam a massa e aí isso te dá um status, dentro do grupo. Mas também tem aquele
grupo que não é usuário, aí você pode se dar bem com as mulheres sem ser usuário.
Nunca me dei bem com mulher, (risos). Ah sim, quando tá no ato sexual cê sente um
tesão a mais, eu sentia isso, eu gostava.

T.V. - Drogas têm a ver com sexualidade?


Einstein - Tem que tomar uma cachaça, aí eu pego as mulheres todas (risos), aí eu
digo: agora vai começar a putaria! (mais risos)

Drogas podem ser interpretadas como desinibidoras e como afrodisíacas de acordo


com as dinâmicas valorativas do setting, como explicitou Marley, uma pessoa tímida.
No caso de quem não apenas usa, mas também comercializa, o elo que relaciona
drogas e sexualidade passa por outros parâmetros de avaliação:

Nietzsche - Sim, droga e sexo tá muito relacionado, e principalmente no meu caso,


tem que saber discernir quem é quem, sabe? As pessoas tão interessadas em mim ou na
droga? Isso é um problema sério! Geralmente as pessoas sentam na minha mesa
porque sabem que “desce”, muita mulher chega no meu lado pra fazer troca de
valores: “me leve pra onde você quiser”. Agora, eu acho que maconha estimula, a
brincadeira fica mais descontraída. Há um mito de que a cocaína é broxante, eu acho
que isso é psicológico, depende muito de com quem você tá do lado. Eu não tenho
nenhum problema com sexo e cocaína, dá até tesão.
166
- na presente pesquisa a proporção é +/- 4:1.

197
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Salomé - Com o “doce167” eu já tinha curiosidade antes até da maconha. Huxley e


As portas da percepção, coisa de leitura, como eu tenho curiosidade em questão a
ayahuasca, mas essa não tive coragem ainda nem procurei. Tomei doce na mudança do
Garcia e as pessoas: “você vai sentir o amor”. Eu encontrei com dois caras com quem
eu já tinha tido história, o encontro já tinha rolado antes do doce. Os dois vieram e eu
fiquei sem saber como resolver a onda. Um dos caras ficou com a gente, depois
encontrei o outro. Eu deixei rolar e um me agarrou na frente do outro ai eu comecei a
ver o amor brutalmente. O primeiro ficou puto e até hoje não fala comigo. Fui com o
outro pra casa de uns amigos e aí foi um negócio louco porque todas as minhas
percepções ficaram supersensibilizadas, e aí eu senti realmente a onda do amor, (risos).

T.V. - Você foi precoce em relação ao consumo de drogas, a busca de


religiosidade, e também foi assim em relação com a sexualidade?
Blavatsky - Não, atrasadíssima! Engraçado isso, eu só fui transar com 19. Com
relação a isso eu tinha um pouco de vergonha porque ninguém era virgem. Então eu
era superdescolada, mas nesse plano eu era um pouco recatada.
T.V. - E o deixar de ser virgem tem alguma coisa a ver com consumo de maconha?
Blavatsky - Isso aconteceu regado a muita maconha! (risos)

Estas cinco declarações, três feitas por homens e duas feitas por mulheres, mostram
que para ambos os gêneros os vínculos entre drogas e sexualidade pode estar presente
seja no momento da conquista seja no momento da consumação do ato. Nesse terreno
Nietzsche sente na pele a dificuldade em estabelecer relações de confiança – afinal, há
relações de confiança possíveis entre traficantes e usuários? No seu ponto de vista,
quando se interessa sexualmente por alguma garota ele não está naquele setting como
traficante, e sim como consumidor que dadivosamente compartilha seus bens de
consumo. Seu questionamento não está ligada ao uso das drogas – para ele maconha e
cocaína podem ser consideradas drogas afrodisíacas – e sim a configuração do seu
consumo: será que o outro o vê apenas como um traficante? Por sua vez, Blavatsky que
considera que passou a usufruir tardiamente de sua sexualidade, chegou ao ato regando-
o com “muita maconha”, e em função do seu suposto retardo, talvez muito menos
como afrodisíaco do que como ansiolítico, como redutor de tensões. Já a atitude de

167
- doce = ácido lisérgico.

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Salomé que fez sua escolha entre dois amantes – ao invés de deixar que eles a
escolhessem, como esperava o amante preterido - para desfrutar a psicodélica “onda do
amor”, mostra que ela sob efeito do ácido não se deixou levar pelo setting de forma
acrítica – não ficando com o primeiro por ser o primeiro que apareceu – nem perdeu
seus controles informais a ponto de poder relembrar confortavelmente que suas
“percepções ficaram supersensibilizadas” sem que isso lhe constrangesse por ter podido
ter cometido excessos em público. Refletindo em torno desses dados é possível cogitar
que se a população masculina pesquisada é muito maior, não quer dizer que as mulheres
sejam menos reflexivas ou que se submetam a uma reflexividade imposta pelo ponto de
vista masculino quando envolvem controle de afetos e consumo de drogas. As emoções
masculinas ligadas a consumo de drogas e sexualidade de forma geral são até mais
ambivalentes:

T.V. - Nesse período crítico como foi sua vida afetiva e sexual?
Garrincha - Quando o uso da cocaína era menor não atrapalhava, porém na medida
em que ele foi aumentando, aí começou a não haver mais (vida sexual), a verdade é
essa. Depois o sexo se tornou um prazer não tão grande quanto a necessidade do uso
da droga. Antes eu saia com garotas de programa, mas recentemente uma pessoa com
quem me relacionei fez uma crítica a isso. Eu usava com garotas de programa, mas
chegou um ponto que meu uso ficou tão escroto que se uma garota dessas me visse na
rua saia correndo.
T.V. - E agora como está o desejo?
Garrincha - Depois que eu descobri o sexo sem o uso de drogas, comparar o sexo
como o uso e sem o uso não tem comparação!

Marley - Já com crack a pessoa não consegue... eu pelo menos não conseguia ter
relação sexual, no momento e durante um bom tempo depois. Não dava ereção, não
dava interesse. Cê só pensava na droga, só queria saber da droga.

Diante do que estes dois interlocutores dizem, em relação ao crack e a sexualidade


não há aporia, é um ou outro! Ou se troca o outro pela substância e aceita-se esse limite
ou se abre mão da substância para estar em contato com o outro. Para Garrincha e
Marley a dificuldade de articular uma interface entre o consumo controlado de crack e
um setting que não seja o do seu consumo soa quase incontornável, tanto que a solução

199
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que ambos encontraram quando queriam consumir pedras e concomitantemente


desfrutar companhias humanas foi envolvendo-se com garotas de programa, também
consumidoras. Se mesmo assim estes ainda acham difícil associar o consumo de crack e
o ato sexual em si, o mesmo não pode ser dito em relação ao consumo de maconha,
como indicou Marley anteriormente, mas não apenas ele:

Oscar Wilde - Particularmente, eu gosto de fumar antes do sexo.


T.V. - Seu parceiro também é usuário?
Oscar Wilde - Bem esporadicamente, inclusive, quando ele faz uso é pra fazer sexo,
como afrodisíaco.

Oscar fala sobre sexo com tranquilidade e sua gesticulação andrógina levemente
afetada é bem cadenciada. Para ele o consumo de maconha e o desfrutar de sua
sexualidade são pontos de afirmação identitária que não lhe causaram maiores conflitos:

Oscar Wilde - Pensando em minha orientação sexual, eu sou gay, mas eu tenho um
relacionamento estável porque eu tenho um namorado há três anos, e dado ao meu
ethos eu não tenho percebido uma grande discriminação quanto a isso. Convivo com
pessoas bem resolvidas com alto nível de instrução. Eu nunca tive um diálogo aberto
com minha família sobre essas questões. Eu acho que eles sabem e não se toca no
assunto. Eles sabem que agora eu vivo uma vida que é minha, eu tenho carreira solo,
eu faço minhas escolhas. Quando perguntaram alguma coisa, foi mais pelas fofocas de
eu tar andando como maconheiros, mais do que por eu tar apresentando algum
comportamento desviante.

Sendo uma família do interior, o que mais incomodava os parentes em relação a


postura discreta de Oscar, eram as “fofocas” sobre as suas más companhias. Muito mais
do que fumar maconha ou ser homossexual, comportamentos em tese, representados
como desviantes, o problema era andar com maconheiros, porque eram estes que
poderiam desviar Oscar para o caminho do mal e não a maconha em si como acreditava
o pai de Hofmann. Por outro lado, Oscar também está preocupado com sua
representação pública, pois o “eu sou gay, mas eu tenho um relacionamento estável
porque eu tenho um namorado há três anos” pode ser interpretado como uma
justificativa. O temor do estigma de ser visto como promíscuo por ser gay, fez Oscar

200
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justificar sem vacilar: “mas eu tenho um relacionamento estável”, como se ser gay
implicasse necessariamente em promiscuidade. Por sua atuação reflexiva, Oscar parece
estar livre de algumas estigmatizações, mas não de todas. Contudo, nem todos os
interlocutores estão preocupados em definir sua sexualidade:

T.V. - Sexualmente como é que você se define?


Leila Diniz - Eu não sei, eu acho muito louco definir uma identidade sexual, as
coisas acontecem, eu já namorei com meninos e meninas, as mulheres compartilham
muito, usam as mesmas calcinhas (risos), com os homens não.
T.V. - E sexualidade combina com drogas?
Leila Diniz - Depende muito do contexto, não são coisas necessariamente ligadas.

Leila que já teve problemas com sua família fortemente religiosa em função do
consumo de drogas não se tornou por isso, defensiva em relação à sua sexualidade
heterodoxa. Se por um lado ela não teme estigmatizações, por outro ela não deixa de por
em prática seus controles informais para não confundir sexualidade e consumo de
drogas como questões intrínsecas e necessariamente inclusivas. Vale ressaltar que Leila
tem vinte e poucos anos e faz parte de uma geração que teve sua sexualidade
configurada considerando os riscos das doenças sexualmente transmissíveis. Nesse
setting uma equação que pode ser considerada corriqueira é: Sexo + drogas = risco! Já
quem está na faixa etária dos 37 anos e até trocou a poligamia168 por um casamento
monogâmico, pode acrescentar sua significação atualizada para a questão:

T.V. - E drogas têm ligação com sexualidade?


Mozart - Com certeza, e música. Já passou a fase do rock and roll, hoje eu prefiro
sexo ouvindo Aretha Franklin, Nina Simone, Madredeus. Baseadinho às vezes
prolonga...

O “já passou a fase do rock and roll” traz à baila reminiscências culturais das
décadas 60/70, quando se estabilizou que os controles informais da contracultura
tenderiam a se configurar em torno do consumo de sexo, drogas e rock’n roll. Se os
mais jovens hoje optam não necessariamente por rock’n roll, mas às vezes por rap – hip

168
- 15 anos antes Mozart morou numa comunidade anárquica onde mantinha vínculos maritais com três
moradoras.

201
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hop – e/ou música eletrônica, os mais velhos como Mozart atuam reflexivamente
buscando no jazz ou na música étnica um novo cenário onde a configuração de drogas e
sexualidade obtenham uma significação reencantadora. Por sua vez, os jovens
frequentadores da cena eletrônica elaboram uma nova articulação entre sexualidade e
consumo de drogas que pode causar estranhamento aos roqueiros:

Zumbi - Eu vejo que o tipo de droga que é utilizado nas raves leva a uma atitude
meio assexuada. Eu particularmente, eu nunca fiquei com uma mulher em rave.
T.V. - Atitude assexuada ou autossexuada?
Zumbi - Por exemplo, o êxtase é uma droga que as pessoas falam que você toma e
fica com tesão, realmente quando eu tomei eu fiquei excitado, mas eu não tinha vontade
de tocar as pessoas, no máximo gostava de ficar roçando meu corpo no delas, mas não
tinha vontade de penetração.

Esta fala de Zumbi não sobrevalorizando a sexualidade possivelmente provocaria


estranhamento ao meu amigo da comunidade rock’n roll que esteve pela primeira vez
numa rave algumas páginas atrás. Se para este último e muitos de seus pares, colocar a
sexualidade como um valor dominante era afirmativo de um momento cultural onde os
dispositivos de controle sobre a mesma eram rígidos, para Zumbi e muitos
frequentadores da cena rave, a sexualidade e mesmo a politização dos discursos
libertários no setting específico não são valores fundamentais no processo identitário da
comunidade.

3.3.9 - A cena eletrônica em cena

T.V. - Você sente estes espaços de música eletrônica como espaços libertários ou de
conformismo pago?
Zumbi - Esses espaços onde se estabelece uma zona autônoma temporária são
espaços onde as pessoas se permitem tar fazendo coisas sem tar muito preocupadas
com sanções, a reação do outro, o que impera é o espírito da diversão, de experiências
psicoativas também, ouvir música. Em vários períodos da história isso sempre existiu.
Cada movimento tem o seu diferencial. Comparando o movimento hippie com a rave, o
rock é substituído pela música eletrônica, as drogas permanecem, o sexo não tem o

202
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mesmo papel que tinha na contracultura, onde se tentava uma liberação sexual, liberto
de certos valores.
T.V. - O pessoal do hip hop diz que o pessoal das raves é pela inércia e não pelo
movimento, você concorda?
Zumbi - A música eletrônica ao contrário da contracultura não tem muito a questão
da letra, da palavra. Como a maioria das músicas é instrumental, já não tem
mensagem, enunciados, e como são ambientes bem barulhentos, quase não há diálogo.
As questões da cultura se dão entre as raves; as pessoas acabam convivendo, falando
de som, falando de cultura. A militância que se passa é uma forma de viver
experiências de psiconáutica, utilizar uma droga pra saber qual é o efeito dela, usar o
máximo de drogas diferentes possíveis. Hoje as raves cresceram e acabam angariando
várias tribos, às vezes inconcebíveis: o playboy que curte pagode e axé, hoje em dia tá
indo pra rave.
T.V. - E usa drogas sintéticas?
Zumbi - Acho que vai por causa disso. Quando ia atrás do Trio elétrico, o máximo
que usava era um lolozinho, lança-perfume, hoje vão pra rave pra ficar na mesma vibe,
só que com outros tipos de drogas. E é aí que eu vejo a diferença, porque quando vai
atrás do Trio elétrico, o lance é pegar o máximo de mulher possível. Na rave não tem
essa vibe nem entre as mulheres, o lance é se drogar, chupar pirulito, ficar fazendo
careta, (risos).
T.V. - O quase não haver diálogo seria possível se não houvesse psicoativos?
Zumbi - A altura da música atrapalha, mas eu já fui em rave onde eu não usei nada
e conversei bem mais.

Na zona autônoma temporária citada por Zumbi o cancelamento momentâneo dos


valores dominantes não está posto necessariamente em palavras e diálogos, pois, a
perspectiva é de que “A militância que se passa é uma forma de viver experiências de
psiconaútica”. Para os frequentadores mais fieis desta comunidade o problema passa a
ser configurado com a banalização do consumo de drogas sintéticas, a partir do qual
outra tribo e sua “forma de viver” passam a frequentar e agregar outros valores à cena
eletrônica, valores que não favorecem a aporia e sim ao antagonismo de hábitos e ao
conflito de interesses. Nesse sentido o recorte sexual que é trazido para o setting
eletrônico pelos playboys gera mais tensão do que interação para os mais ortodoxos.
Einstein por exemplo, deve ser o que Zumbi chamaria de playboy já que para aquele

203
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não há muita diferença entre frequentar um espaço cultural de Música Axé e um de


Música Eletrônica:

Einstein - Axé, eletrônica, a gente gosta mais dessas músicas porque tem gente
diferente, mulher diferente, rola a putaria!

Para os nativos da comunidade eletrônica, ter representado o seu setting como um


meio onde “rola a putaria”, equivale a um deslocamento de sentido, pois eles não se
interessam por esse modelo tradicional de consumo das esferas miméticas populares
onde a sexualidade tem um valor banalizado. O objetivo de consumo de Einstein e de
seus pares em meio ao setting eletrônico é um exemplo de uma adesão multicultural, no
qual a tribo eletrônica com seus controles aceita com alguma tensão a aproximação de
uma tribo com valores e controles diferentes para comungar um mesmo espaço cultural.
A interpenetração de busca por liberdade parece ser de baixa reflexividade, pois em
grande parte o setting axé é um setting para o qual os ravers se configuraram como
proposta alternativa. Dessa forma, o consumo de drogas e de sexo por parte dos
outsiders acaba tendo potencial para fazer com que a comunidade estabelecida tenha
parte de seu sentido esvaziado. Um ponto de vista feminino fornece sua contrapartida
para a questão:

T.V. - Um outro interlocutor me disse que nesses espaços duas coisas contam muito
pouco: o conversar, quando ele toma doce ou bala ele não faz a mínima questão de
conversar. E o sexualizar, porque ao contrário do mito que fala do ecstasy como droga
do amor, este interlocutor diz que rola o amor próprio, não necessariamente o amor
sexualizado em relação ao outro. Como é isso pra você?
Cleópatra - Isso da sexualidade eu concordo, eu acho que é raro rolar azaração, a
não ser em festas diferentes aonde vai a galera de micareta. Tem festa de música
eletrônica que vai a galera de micareta. O que rola às vezes é quando cê vai de casal,
às vezes gera, de ficar se beijando, independente de onde você tiver. Mas em festa
eletrônica não rola de passar a mão, de pegar várias, de ficar queixando. Agora,
quanto a conversar eu discordo um pouco, normalmente eu converso bastante, às vezes
saio da pista pra conversar dando risada. O que rola é situação de você não conseguir
falar, cê tá muito louco.

204
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“A galera de micareta” é a galera que sustenta a representação de passar a mão, de


pegar várias, de ficar queixando. O que com isso fica claro é como uma comunidade
outsider que passa a ser estabelecida como a comunidade da cena eletrônica, acaba
desenvolvendo mecanismos de defesa de sua identidade que antes eram percebidos
como mecanismos preconceituosos e mesmo intolerantes. Porém, os problemas mais
graves detectados na cena eletrônica independem da tribo, tendo relação mais direta
com o set dos consumidores que são inexperientes nesse tipo de evento. Oscar descreve
o que pôde observar na edição 2008/2009 do festival Universo Paralelo que acontece
uma vez por ano. Oscar já esteve presente em três edições e nessa última ele acampou
uma semana inteira.

T.V. - Como era o clima?


Oscar Wilde - De forma geral, eu via um consumo bastante controlado, as pessoas
não perdiam o controle, o nível de violência era praticamente zero, aconteciam furtos-
descuido, eu não vi brigas rolando. Como eu tava acompanhando o pessoal da redução
de danos, vi alguns casos, principalmente no primeiro e no segundo dia, de pessoas que
tomaram ácido em grande quantidade e tiveram pequenos surtos, dois rapazes piraram,
um que além de ácido tinha cheirado ketamina, ele entrou em conflito. Depois eu
conversei com o pessoal e parece que é assim: primeiro e segundo dias, aqueles que
nunca tomaram acabam tendo essas experiências e alguns deles piram. Geralmente
exageram em álcool, as pessoas bebem demais aliado a outros fatores, sol escaldante,
às vezes o pessoal esquece de comer, beber água.

A sentença “aqueles que nunca tomaram acabam tendo essas experiências e algumas
deles piram”, mostra como os principiantes podem encontrar dificuldades para
consumar o que Becker chamaria de carreira de usuário169, se não houverem absorvido
alguns mecanismos de controles informais. Um dos erros mais graves pode ser
combinar drogas sintéticas com bebida alcoólica em demasia. O hábito de beber demais
não está associado a cultura rave, pois, de modo geral, nesta, circula a informação de
que as drogas sintéticas combinadas com álcool podem levar a desidratação e ao
aumento da temperatura do corpo. Nessa condição é que o hábito do consumo abusivo

169
- basicamente saber administrar a droga de maneira adequada, reconhecer-lhe os efeitos e aprender a
gostar deles, além de evitar as condições socioculturais que possam interferir negativamente com o
consumo ( BECKER, 2008).

205
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de álcool da galera de micareta é visto com ressalvas. Contudo, não são apenas estes
que vivenciam bad trips, envolvendo consumo de descontrolado de álcool:

T.V. - Você é frequentador da cena eletrônica?


Tutancamon - Sou frequentador, ultimamente não tenho ido muito por não gostar do
que tem acontecido (a invasão por parte de outras tribos) e por algumas implicações de
trabalho, mas é como se eu tivesse doido pra adentrar, ter esse momento.
T.V. - E quando você tá nesse movimento que tipo de substâncias você consome?
Tutancamon - Praticamente tudo! Na realidade é um trabalho interno meu que,
conjuntamente com a terapia, tem mais ou menos uns dois anos. É um trabalho pra
saber enxergar o limite das coisas, porque tem um ponto que você não controla mais.
Você pode tar sendo ali, o fruto de coisas que você não quer fazer, não é só viagem
como se você tivesse de boa. Eu também não tenho essa restrição, vejo como coisa que
tem que ir aos poucos, não é deixar de fazer, mas também não perder o controle da
coisa. Pra não dar em coisa errada que já aconteceu algumas vezes, não foram tanto
assim, mas foram desprazerosas.
T.V. - Consumindo o que?
Tutancamon - Olha, pra ser sincero, principalmente, quer dizer, eu encaro o... o
fator assim desestruturador, o álcool! Pra mim ele é a pior de todas as drogas,
geralmente quando ele tava associado a alguma coisa ele fazia você sair de seu estado
total e fazer coisas e coisas e coisas e não lembrar de nada. Com o ácido eu já tive
poucas experiências de não lembrar de nada. Eu atribuo ao álcool, à mistura, ele sendo
o ponto forte de desequilíbrio.

Na primeira parte da resposta, Tutancamon se justifica mais do que responde a


pergunta, como se envergonhado de “perder o controle da coisa”. Talvez sua relação
com o álcool não seja assim tão bem resolvida quanto ele supõe ser. De fato,
Tutancamon, Einstein e Mata são três estudantes de medicina que apesar de gostarem e
elegerem-no como droga preferencial, têm muito mais restrições ao álcool do que a
outras drogas. Sobre a perda do controle referida por Tutancamon, há configurações de
settings onde sua observação é mais perceptível do que numa rave. Por exemplo, na
relação que os interlocutores configuram entre seus consumos de drogas e suas
produções de estudo/trabalho.

206
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3.3.10 - Estilo de vida, consumo e produção

Quatro dos interlocutores têm envolvimento com o mercado musical, sendo que um
deles atua como técnico e dois como DJs. Estes interlocutores frequentam settings onde
consumo de drogas e produção de trabalho não são majoritariamente representados
como incompatíveis. Diferentemente da imagem hedonista que por algum tempo foi
dominante quanto ao meio artístico, o primeiro interlocutor fala dos estúdios de
gravação como um espaço de trabalho duro onde não há consumo desenfreado de
substâncias psicoativas. Os dois Djs também deixam claro que mesmo durante as festas
raves muitas vezes eles priorizam o tocar e não o consumir drogas. Em ambas as
situações, seria fácil para os interlocutores conseguir drogas, inclusive até de graça, mas
quando o consumidor assume a responsabilidade sobre sua busca de satisfação, esta
pode surgir não do consumo descontrolado e sim de poder controlar quando se deve
consumir. Nesse recorte, a configuração na qual quem consome também é consumido
deixa de ser necessariamente uma problemática e passa a ser uma situação com a qual
se deve interagir do modo mais adequado. Outros interlocutores também pensam assim.

T.V. - Você associa sua produção com o fumar?


Pancho Villa - Quando é um trabalho de memorização tipo fichamento, atrapalha.
Mas se for um trabalho pra refletir eu acho que até ajuda.

Oscar Wilde - Havia uma certa moderação porque esse consumo não podia
interferir nos nossos resultados, acho que um dos fatos da turma ser respeitada é
porque tinha uma produção, então isso equilibrava, mas havia um certo cuidado.
Rolava uma certa alternância, o início do semestre era uma fase de muito mais
gandaia, de farra, e o final do semestre era de mais introspecção e estudos intensos. A
gandaia ficava mais pro final de semana.

A reflexão de Pancho é compartilhada por 40,8% dos interlocutores. Buscar a


moderação como faz Oscar é estabelecer dispositivos de controle como constitutivos do
próprio consumo, o status que equilibra o estigma. Ele inclusive percebe como a
“produção” favorecia o status não apenas seu como também da turma de colegas que
frequentava e compartilhava o habitus sociais de consumo. Ter sua produção
acadêmica reconhecida intensifica o sentimento de pertença na comunidade e favorece

207
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uma ascensão na posição de carreira de um estudante cuja imagem esteja relacionada


com consumo de drogas. Quando esta produção transforma a droga de objeto de
consumo em objeto de estudo, os antigos hereges podem vir a ser novos consagrados:

Blavatsky - Surpreendentemente houve boa receptividade ao meu projeto pela


seriedade com a qual eu abordo esse assunto (o uso terapêutico da ayahuasca). Eu
passei em primeiro lugar na seleção do doutorado com esse projeto, e teve uma
aceitação surpreendente pra mim, pessoas de outras áreas falam da seriedade do
trabalho, da criatividade de abordar um assunto polêmico. Eu achava que dentro da
universidade eu poderia sofrer algum tipo de preconceito.

O status legal da ayahuasca como substância psicoativa lícita vem facilitando sua
maior aceitação na comunidade acadêmica, a ponto de nos últimos anos haver uma
grande quantidade de pesquisas sendo realizadas a respeito, algumas inclusive
relacionadas com terapias alternativas para usuários de álcool. A boa aceitação ao
projeto de Blavatsky é um exemplo de como um consumidor pode ressignificar seu
objeto de consumo psicoativo a ponto de torná-lo objeto de consumo informacional para
muitos outros, e por ser este consumo simbólico, não corre riscos de acarretar maiores
danos. A condição de doutoranda faz de Blavatsky uma outsider estabelecida e seu
status acadêmico agora é muito diferente da época em que era chamada “Berlota de
Ouro”170... Mas, se na cultura das drogas é possível ressignificar objetos de consumo,
também será possível ressignificar modelos de relações interpessoais? Buda, que é
oriundo de outra cidade do Nordeste e veio para Salvador para cursar a faculdade de
Medicina, dentro do curso não chegou a formar um grupo de amigos. Ele se queixa
dessa falta de vínculos afetivos e procura resolver a questão na comunidade de amigos
que se formou em torno do consumo de maconha:

Buda - Aqui em Salvador eu ando mais sozinho, são poucas as pessoas com quem eu
criei um vínculo... na verdade foram muitas as pessoas com quem eu criei um vínculo
em relação a erva aqui em Salvador. Mas a frequência do contato é que é muito
variável. Não tem nenhuma pessoa que eu encontro diariamente pra fumar. Eu fumo
geralmente sozinho. Mas quando eu tenho o prazer de estar com alguns amigos que

170
- item 4.1, pg. 241.

208
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apreciam, aí eu tenho momentos maravilhosos pra conversar. Eu aprendi a morar só e


agora recebo os amigos. Eu sofri muito por companhia, hoje em dia eu me aceito
sozinho.

O consumo de maconha de Buda vem sendo sua ferramenta principal para configurar
vínculos sociais. Para enfrentar o desenraizamento de sua cidade natal seu tempo de
lazer é preenchido frequentando o circuito de salas de arte ou indo curtir shows de jazz
no MAM (Museu de Arte Moderna) outro pólo frequentado pelos interlocutores onde se
pode ver muitos universitários, inclusive fumando maconha na área aberta de frente
para a Baia de Todos os Santos. “eu tou na Bahia, eu curto a negritude, gosto de fumar e
ir pro Pelô levar os amigos de fora”, ele afirma sorridente. Quando troca a rua pela casa,
Buda vem criando um espaço de convivência em seu apartamento que divide com um
outro estudante. Foi lá inclusive, numa das tardes em que conversamos, onde ele me
apresentou; Einstein, Da Vinci e Picasso. Por ser uma pessoa muito receptiva ele é
visivelmente querido pelos amigos, e pelo menos nesse setting doméstico ele não
pareceu solitário. Tutancamon enfrentou problema semelhante:

T.V. - Nesse ambiente acadêmico onde você tinha poucos pares, você se sentia a
vontade pra consumir?
Tutancamon - Na realidade, como um todo era uma coisa tensa porque de certa
forma você acabava assumindo aquela persona que não pode fazer nada errado, mas,
de alguma forma eu fui me distanciando de diversos grupos da sala. Eu quando entrei
eu tinha muitos contatos, o pessoal gostava muito de mim, mas também eu comecei
enxergar minhas coisas, meus gostos, eu fui procurando... não me abri porque também
eu não achei pessoas que compartilhassem ou que pelo menos aceitassem aquilo, que
não tivessem postura retrógrada, de que por aquilo eu seria menor, que me aceitassem.
T.V. - Você diz que nesse ambiente você não achou uma tribo, mas, em outros
ambientes você buscou formar uma tribo?
Tutancamon - Ultimamente eu venho tentando procurar locais em que eu me sinta
bem, que eu consiga trocar energia, mas ao mesmo tempo eu me isolo um pouco. Eu
acabo não tendo esse contato que eu queria, não sei se por questões acadêmicas ou
implicações de rotina.

209
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A dificuldade para encontrar uma segunda família fez com que Tutancamon
analisasse a possibilidade de que seu estilo de vida outsider no qual se inclui o consumo
de drogas, fosse responsável por seu isolamento. Sua busca por uma comunidade
eletiva leva em conta seu grande cuidado para não comprometer o seu status médico – e
nesse sentido ele acaba se colocando como “aquela persona que não pode fazer nada
errado” -, mas mesmo assim, os resultados ainda não são satisfatórios. O ponto positivo
desta busca é que Tutancamon não está disposto a pagar qualquer preço para ser aceito,
pois ele não se coloca em condição de inferioridade “de que por aquilo eu seria menor”
– como muitas vezes acontece. Uma carreira universitária não garante a priori, relações
fraternais para quem frequenta o mesmo curso:

T.V. - Seus amigos são colegas de trabalho?


Lampião - Alguns são, eu nunca me fechei no grupo da medicina, na verdade eu
sempre tive alguns problemas em relação aos companheiros da área de medicina. Até o
sexto semestre, todo semestre eu pensei em largar, entrava em crise com relação ao
curso, com relação ao que era exigido como demanda de tempo, de horário e de curtir
outras coisas da vida, outros meios de conhecimento e de cultura, porque a medicina
suga muito seu tempo se você acaba trabalhando só aquilo mesmo. O que me fez ficar
foi o pessoal do DA, que é com quem eu tenho maior vínculo de amizade. Pessoas de
diversos cursos, não necessariamente de medicina.
T.V. - Esse link com o DA tem alguma coisa a ver com substâncias psicoativas?
Lampião - Não! quando eu entrei eu era o mais doidão, hoje em dia todo mundo faz
uso, não por minha causa. Sou militante do diretório, há um ano e meio eu ando mais
afastado por viés familiar. A minha gestão envolve a área da saúde.

Lampião é mais um outsider que em meio a seus colegas de faculdade não se sente
em casa, assim como Buda e como Tutancamon. Ele acredita que a carreira de estudante
de medicina suga muito seu tempo “se você acaba trabalhando só aquilo mesmo” e
busca ressignificar esse tempo em torno de “outros meios de conhecimento e de
cultura”. O depoimento destes três estudantes de medicina desconstrói a imagem de que
a carreira médica não comporta lugar para vivenciar emoções171, pelo contrário, se na

171
- pesquisas nas Universidades de Uberlândia e na Faculdade de Medicina do ABC indicam que
estudantes de medicina são os universitários mais propensos a depressão, em grande parte relacionada
com a cobrança nos estudos e o estresse com a rotina hospitalar (Medicina & Bem-estar – Isto É -

210
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prática clínica estes estudantes devem “aprender” a guardar suas emoções, na prática de
suas vidas cotidianas buscam outros com quem possam compartilha-lhas. Estudantes de
outros cursos como o de História, vivenciam as mesmas demandas de pertencimento:

Cleópatra - Eu participo do movimento estudantil, mas sem partido. Vou pro


Congresso da UNE, eu tenho um grupo na faculdade que tem pessoas do PT, PV e PSB.
E pra eleição do DCE a gente fez aliança com o pessoal do PC do B. É nessa linha, eu
não tenho partido nenhum.

Para Cleópatra, o movimento político oferece possibilidade de estabelecer laços


afetivos que não se restringem aos objetivos políticos propriamente. Da mesma forma
ela participa de grupos de malabares e de Clowns, sem sentir nenhum conflito entre as
naturezas das duas atividades – na cultura de consumo transitar entre pão e circo faz
muito mais sentido do que optar por pão ou por circo. E em ambas as situações, como
ativista e como malabarista, Cleópatra costuma participar “fumada”. De modo geral, os
interlocutores exercitam sua sociabilidade em atividades que podem ser relacionadas
aos seus consumos de psicoativos sem maiores prejuízos para sua produção ou não
potencializando os riscos sociais em suas relações com os não consumidores:

T.V. - Quais são suas atividades no tempo livre?


Oscar Wilde - Eu vou a um concerto musical onde se fuma, eu vou à praia.
Geralmente eu fumo antes de teatro e cinema.

A cultura ligada à musicalidade está na preferência dos interlocutores e não só dos


que são músicos, até porque nos settings onde a cultura musical tem curso, há espaço
físico para consumo de drogas não apenas individual, mas coletivo. 59% dos
interlocutores frequentam espaços de Música Eletrônica e 23% frequentam a Concha
Acústica regularmente. Mas a cultura musical não se resume à imersão e efervescência
em shows e festas. Os interlocutores também dão importância a aspectos socioculturais
que a música favorece, configurando interpretações reflexivas que perduram após o
momento de fruição. Uma indicação significativa (18%) foi a influencia do compositor
e cantor Raul Seixas, considerado um misto de filósofo anarquista e profeta da

10/07/09). A ironia aporística é que aqueles que deveriam ser os mais capazes de resolver os problemas
ligados à depressão acabam sendo alguns dos mais afetados por ela.

211
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contracultura. Raul não apenas cantou, mas viveu de forma hedonista e o seu consumo
pesado de drogas se tornou associado à sua imagem. Este consumo midiaticamente
representado foi um dos fatores que contribuíram para o desequilíbrio de sua saúde,
desequilíbrio que acabou levando-o a morte. Porém, o autor de Sociedade Alternativa e
Maluco Beleza não é o único referencial ortodoxamente hedonista em questão. Isso
porque boa parte das interlocutoras, (40% delas), elegeu Janis Joplin como referência
musical, talvez não por acaso uma cantora que alcançou sucesso com uma imagem nada
submissa e assumidamente bissexual num cenário musical de hegemonia masculina.
Janis morreu em consequência direta de uma overdose de heroína e a sua morte assim
como a de Raul, favoreceram a cristalização de suas representações outsider - ao
morrerem antes de envelhecer ambos permanecerão representados eternamente como
jovens.
No quesito cultura cinematográfica, os autores mais citados pelos interlocutores
foram Tarantino e Almodóvar. Não por acaso entre os anos 1980 e 1990 estes autores
foram responsáveis por consagrarem novas perspectivas narrativas para abordar temas
como violência e sexualidade, geralmente impregnando-os com humor cáustico,
forjando novas perspectivas reflexivas sobre aspectos hedônicos das culturas urbanas
contemporâneas. O processo mimético que os filmes desses autores proporcionam aos
espectadores carregam os elementos básicos do cinema de entretenimento – violência e
sexo estilizados – mas com uma carga de tragicomédia nos conflitos vividos que
possibilitam aos espectadores refletirem, inclusive sobre questões que remetem ao
consumo de drogas; seja em torno dos inusitados primeiros socorros para a overdose de
heroína da personagem Mia em Pulp Fiction - Tempo de violência (1994) ou do
inusitado consumo de drogas efetuado pelas freiras do Convento Redentoras
Humilhadas em Maus Hábitos (1983).
Quanto à literatura, Huxley e Castañeda foram os autores mais citados (14%), autores
que fizeram experimentos pessoais com drogas imbuídos de espírito científico; o
primeiro cercou-se de médicos para registrar suas viagens com mescalina. O segundo
como antropólogo em trabalho de campo para tese, buscou iniciação com índios
mexicanos com os quais consumiu “plantas de poder” como peiote e cogumelos. Ambos
estiveram em moda nos anos 60 e parece que em meio aos universitários
contemporâneos ainda propiciam reflexões e sentidos. Um dos aspectos centrais de suas
investigações é que ambos se colocaram como sujeitos e como objetos de suas
experiências, numa relativização de papéis que soa bastante atual – na prática dos

212
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interlocutores, 18% também se colocam como sujeitos e objetos de suas experiências


psiconáuticas172.
Uma outra possibilidade que estes interlocutores disponibilizam para serem
concomitantemente sujeitos e objetos reflexivos é quando efetivam suas práticas
corporais. Estas não se resumem ao consumo de drogas, vão desde a busca por uma
melhora do condicionamento físico – cuidados com saúde e estética – até a busca por
autoconhecimento - processos terapêuticos e/ou religiosos.
Em números absolutos; três deles praticam surf, dois fazem natação, um pratica
jogging, dois fazem musculação em academia e um pratica ginástica por conta própria.
A maioria destes não se interessa por atividades físicas em academias por acreditarem
que nestas predomina uma cultura homogeneizada demais - os dois únicos que
frequentam academias são estudantes de medicina. A preferência geral é por atividades
que ponham o praticante em contato com a natureza, como o surf ou o jogging ao ar
livre. Estes interlocutores disseram que não percebem incompatibilidade em malhar
após ter fumado maconha – alguns disseram que a substância relaxa os músculos
diminuindo o cansaço -, mas não consumiriam nenhuma outra substância para fazê-lo.
Já entre os que preferem uma atividade saudável mais sutil há um praticante de
Yoga, três em processo terapêutico, dois que são frequentadores assíduos da União do
Vegetal e dois que frequentam sessões ayahuasqueiras ocasionalmente sendo que uma
destes também frequenta o candomblé. Nesse segundo bloco, só os frequentadores da
UDV se abstêm de fumar maconha173 para realizar as respectivas práticas. Em função de
todas estas práticas corporais174, se percebe como os atuais estudantes consumidores de
drogas diferem da representação dos estudantes consumidores que estiveram atuando
nos anos 60/70, para os quais, o estilo de vida que envolvia atividades não intelectuais
era em boa medida considerado alienante. Os presentes interlocutores encaram os
cuidados com o corpo como parte de suas políticas de vida. Se a cultura de consumo
valoriza sobremaneira esses cuidados, não se deve concluir disto que os consumidores
em questão consomem a cultura do corpo de modo acrítico. A leitura que fazem sobre
as academias de ginástica e seu “clima de shopping Center”, como diz Nietzsche, e as
atividade que os põem “em contato com a natureza”, como acentua Blavatsky, indica
que não é qualquer atividade que consideram optáveis. Se o corpo é um objeto

172
- psiconáutica = usar substâncias psicoativas para navegar pela própria mente.
173
- como também se abstêm de consumir qualquer outra substância psicoativa.
174
- numa perspectiva psicológica, práticas psicoterapêuticas também são práticas corporais, mesmo que
o paciente se limite a falar. As emoções falam através do corpo, mesmo quando o corpo está em inércia.

213
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colonizável por fetichismos, os interlocutores elegem reflexivamente que colonizações


lhes sejam mais adequadas. Um dado que se configurou na pesquisa foi que a partir da
imersão na cultura universitária, as atividades cotidianas dos interlocutores ganharam
em grau de reflexividade.

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IV – Os bastidores como palco

4.1 - Cultura universitária e estrutura de vida

A reflexividade consumida na cultura acadêmica além de não se limitar aos


conteúdos programáticos dos cursos abre possibilidades de interpenetrações com
valores culturais distintos, porém não incongruentes:

Salomé - Na graduação as coisas foram tomando uma outra direção embora eu


tenha começado a beber e a fumar tardiamente em relação aos meus colegas e amigos.
Eu só comecei no final do sexto, sétimo semestre. Saia com a galera, sempre tava nos
bares, mas não bebia e não sentia vontade. No final desse período numa festa na
Facom, (Faculdade de Comunicação da UFBa) a galera tava fumando e eu resolvi
experimentar. Pra mim é uma coisa com pessoas específicas num momento específico,
eu não posso lá em casa, não tem esse espaço, essa abertura. Fumo desde 2006 e de lá
pra cá (2009) em comparação com as outras pessoas é pouquíssimo tempo e meu
consumo não é diário.

Se fumar a menos tempo do que os outros membros do grupo por um lado


constrangeu Salomé, por outro, ela não deixou de ir aos poucos elaborando valores que
lhe permitiram deixar de ser uma secundarista CDF “careta” e tornar-se uma
universitária aberta para novas experiências antes improváveis. Confirmando as
percepções reflexivas de Becker, Salomé só passou a sentir-se uma usuária de maconha,
depois de haver aprendido a pensar e agir como uma usuária de maconha:

Salomé - Eu costumo fumar com 3 grupos diferentes, algumas pessoas até se


conhecem. Um grupo maior e que todo mundo teve uma convivência na graduação,
amigos, passamos por várias coisas juntos, alguns até que namoraram, é um grupo
sólido. Foi com algumas pessoas desse grupo com quem eu fumei da primeira vez. Tem
um casal de amigos com quem eu fumo de vez em quando, a gente vai pra casa deles,
conversa e rola. Tem um grande amigo meu que é da graduação, e que conhece as
pessoas desse grupo maior, mas não tem uma relação de proximidade como eu tenho. É
nesses 3 universos que eu fumo. O grupo maior tem umas 15 pessoas, mas que eu vejo
com muita frequência tem 5 ou 6. Todos são universitários, alguns que terminaram a

215
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graduação e tão trabalhando e outros que tão como eu, na pós-graduação. Uma parte
desse grupo maior é de meus amigos da graduação não necessariamente da mesma
turma, mas do mesmo período. Outra parte é a galera da Escola de Música que tem
uma relação com a gente e tem gente de Belas Artes.
T.V. - Que atividades vocês curtem?
Salomé - Praia, necessariamente o Porto da Barra, muito cinema, muita festa, bares,
Rio Vermelho frequentemente, muito show na Concha, casa de amigos. A maioria é da
mesma área, mas tem gente de Música, de Comunicação, de Ciências Sociais, é que
acaba todo mundo dialogando com as Ciências Humanas.

A rede de amigos de Salomé é “um grupo sólido”, onde “tem gente de Música, de
Comunicação, de Ciências Sociais”, configurando uma comunidade com vários níveis
de interação e interpenetração. O elo central é que são “todos universitários” - alguns
trabalhando e outros na pós-graduação - e fumantes de maconha. Se configurações
assim acontecem com estudantes de uma universidade pública, como será que se
articulam os estudantes numa faculdade particular, especificamente num curso como
Medicina? Numa reunião na casa de Buda onde alguns baseados foram queimados para
comemorar o aniversário de Einstein – antes do grupo, à exceção de Buda, sair para
beber nos bares da vida, - foi formulada uma possível resposta:

T.V. - A galera da faculdade sabe que vocês consomem drogas?


Einstein - Sabem!
Buda - A turma de vocês é a turma mais liberal da cidade, tá de boa! Todo mundo
se respeita na sala de vocês.
Picasso - Eles não mexem com ninguém!
Einstein - Eu não tenho problema entre os meus amigos.
Da Vinci - Minha turma tem 5 veados, 2 lésbicas, um monte de louco...
Picasso - ...tem uns 30% de louco...
Da Vinci - ...por baixo...
Picasso - ...todo mundo se respeita naquela porra...
Einstein - ...só tem muito doido...
Picasso - ...todo mundo já se comeu, porra...(risos) ... tem uma mulher casada que
todo mundo já comeu...
T.V. - Você já comeu?

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Picasso - ...já fiquei com ela, não comi porque não forcei, se forçar rola.
Buda - ...na minha turma é bem diferente...
Einstein - ...na turma da gente também tem muito idiota...

Pela descontração do diálogo, estes residentes de medicina em visita ao amigo Buda


dificilmente seriam diagnosticados como “deprimidos”175. Seu ambiente de estudo não
parece nada estressante, pois a turma de colegas que eles descrevem possui várias
características que raramente estariam listadas como associadas ao setting médico: 5
veados, 2 lésbicas, 30% de loucos além de uma mulher casada que todo mundo come. E
o que parece que uniu estes quatro interlocutores tem muito menos conexão com as
demandas da carreira do que com esse clima descontraído:

Einstein - Quando eu entrei na faculdade eu não sabia nem fechar um baseado


(risos), a gente se conhece desde o começo.
Buda - O cara que mora comigo é da sala deles e aproximou a gente ainda mais,
principalmente pela cannabis.
Da Vinci - Ele sempre chamava pra fumar um.

O aprendizado de Einstein sobre a carreira de maconheiro não se deu na rua, nem em


casa, se deu na faculdade. O estudante que aproximou Einstein de seus amigos mais
fieis divide residência com Buda, residência que é referência para vários outros
estudantes que moram com as famílias e não desfrutam de um espaço de convivência
onde possam por em prática seus hábitos de consumo, fortalecendo seus laços. Mas
Einstein não foi o único estudante de medicina observado a iniciar sua carreira de
consumidor de drogas na faculdade:

Tutancamon - Eu na realidade tenho uma história de vida que até os 20 anos


(estando com 25) não consumia nada! Nem fumava nem nada! De repente eu comecei
fumando, depois bebendo, logo depois maconha e mais ou menos estabilizou nessa daí
(risos). Outras cositas mais foram surgindo, mas também já foi numa fase que eu tava
mais equilibrado. Por eu ter melhorado tanto quando eu entrei, entrei de sola!
T.V. - E esse consumo tem a ver com o ambiente universitário?

175
- como indicam as pesquisas realizadas com estudantes de Medicina em Uberlândia e no ABC (nota
171, pgs. 210/211).

217
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Tutancamon - com certeza! Eu acho que foi o divisor de águas. Eu acho que também
envolve muito o ideológico, a questão de você resolver sua cabeça se permitir fazer
algumas coisas.

O que Tutancamon aponta timidamente é que só começou a consumir drogas na


faculdade, pois no setting universitário pôde dar forma a um corpo de saberes e valores:
“envolve muito o ideológico, a questão de você resolver sua cabeça se permitir fazer
algumas coisas”. Lembrando de sua relação ambivalente com o irmão mais velho que
teve dificuldades para conduzir a carreira estudantil em função do seu consumo de
drogas descontrolado e também com os primos também usuários compulsivos, o
“ideológico” aqui equivale a acreditar que a cultura universitária fornece as ferramentas
de controle para garantir a liberdade.

Oscar - Depois que eu entrei na academia o uso passou a ser mais cotidiano. Isso
porque minha estrutura de vida mudou. Depois da universidade eu fui morar sozinho e
aí eu tive essa liberdade de ter uso frequente sem causar danos ao meu convívio
doméstico.

Quando Oscar afirma que sua estrutura de vida176 mudou, afirma-o como sendo uma
consequência direta por ter ingressado na academia universitária. Assim como
Tutancamon coloca a universidade como um divisor de águas em sua vida, Oscar sendo
um universitário se sente capaz de ampliar suas possibilidades de usufruir da liberdade
de fumar cotidianamente, “sem causar danos ao meu convívio doméstico”. Nesse
recorte ele constrói a busca por liberdade para consumir quando quiser, junto com a
busca por segurança no que diz respeito ao convívio doméstico.
Para que fique claro o porquê da divisão de águas propiciada pelo ingresso na
carreira universitária, é pertinente refletir sobre a cultura na qual estavam imersos esses
jovens anteriormente. Analisar os discursos dos interlocutores quando se remetem as
suas trajetórias de vida pode lançar nova luz sobre representações construídas ao redor
da cultura das drogas. Por exemplo, quando se fala de drogas indistintamente como uma
categoria homogênea, há uma tendência em colocar a maconha como porta de entrada

176
- e sua leitura de estrutura de vida segue no mesmo sentido da realizada por Grund; no sentido de
estabelecer parâmetros de controle para o cotidiano que não são voltados para o exclusivo consumo de
drogas, mas sim para assegurar a execução de um estilo de vida.

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para a escalada em direção às drogas consideradas mais pesadas. Além desse não ser um
ponto pacífico, pois muitos consumidores de maconha a têm como droga exclusiva, ou
mesmo afirmam não consumir drogas artificiais177, as experiências de vida de alguns
interlocutores indicam que seria mais objetivo falar em escalada a partir do álcool – que
começa de modo geral, enquanto os estudantes ainda estão no segundo grau:

Marley - O consumo de álcool (no segundo grau) era bem intensificado mesmo. Tem
gente que saia mais de uma vez por semana pra beber.

Garrincha - Eu tive uma dificuldade grande pra terminar o primeiro grau. Eu fiz o
supletivo, e veio o primeiro ano do segundo grau. Meus amigos todos já faziam uso de
álcool ... Aí pintaram outras drogas, como a cocaína, por exemplo.

Essas experiências de vida batizadas com álcool seguem no terceiro grau, não
necessariamente abrindo portas para outras drogas, apesar de haver muitos que fazem
consumo de mais de uma substância. Nas práticas de consumo de álcool e de outras
drogas os settings nem sempre são os mesmos ou necessariamente compatíveis:

Buda - Outro dia numa festa da galera (de medicina) onde se consumia muito
álcool, muito mesmo, acendi um baseado e tomei uma dura porque não podia fumar ali.
Que hipocrisia! Já o álcool tem o total aval, basta ver as chopadas onde o pessoal bebe
até passar mal. Nos trotes também o consumo é bem visto. Eles nem podem orientar os
pacientes a não beber, orientam a beber pouco pra não serem muito contraditórios.

T.V. - Como você percebe o consumo de substâncias psicoativas no ambiente


acadêmico?
Mata Hari - Depende do tipo de substância. O uso de álcool é cultuado,
principalmente entre graduandos e residentes. Na faculdade tem aquele oba-oba em dia

177
- o que alguns nativos chamam de drogas artificiais são as drogas sintéticas (produzidas totalmente em
laboratórios como MDMA, LSD ou GHB) e as semi-sintéticas (produzidas em laboratório a partir de
algum elemento da natureza como heroína, cocaína ou crack). Levando em conta que, dos oito venenos
mais potentes hoje em dia, sete são produzidos pela própria natureza (VASCONCELOS: 20/02/10),
talvez a polarização entre drogas naturais e drogas artificiais não seja o critério mais adequado para
legitimar a maconha como substância não danosa.

219
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de trote, fila aula pra beber, acabou a aula tarde vai beber não sei aonde178. Em minha
época de graduação eu frequentava os botecos no uso de álcool.
T.V. - Suas primeiras experiências com substâncias psicoativas foram na faculdade
ou anteriores?
Mata - São anteriores, mas na faculdade se intensificaram. Álcool é uma coisa
cultural na minha família. Tem aquela coisa de se reunir, de beber, meu tio, meu pai,
meus irmãos. Eu bebo desde muito nova, claro, eu sempre fui orientada. Eu sempre
bebi nos bares, cerveja. Na escola também, no cursinho. Agora maconha eu comecei a
consumir no final do colegial, antes de entrar na faculdade.

O consumo de álcool parece ser tão habitual no cotidiano de alguns interlocutores


que sua representação serve até para amortecer os danos que poderiam ser causados pela
representação do consumo de maconha, basta lembrar o comentário que Picasso operou
entre risos, sobre a ingenuidade dos pais de Einstein: “ele chegava muito doido de
maconha em casa, mas o pessoal lá acha que ele tem problema com álcool”. E se
nessa configuração familiar específica, a representação do consumo de álcool reduziu os
danos sociais que poderiam ser causados pela representação do consumo de maconha,
na configuração de uma confraternização de Medicina, os mesmos Einstein e Picasso
acompanhados de Da Vinci, “aprontaram” várias confusões em meio a um consumo
excessivo de álcool, mas foram expulsos do evento sob a acusação de terem fumado
maconha. Nesse caso o consumo de maconha “levou a fama” de ter induzido os
comportamentos realizados sob o efeito do álcool.
Esta situação aconteceu num encontro de confraternização da comunidade médica em
Porto Seguro, com direito a hospedagem em resort, festas com cantores da moda, etc e
tal, havendo participantes de todo o Brasil. O trio de estudantes interlocutores buscou
possibilidades de satisfação sem atentar para os controles informais que uma situação
como essa requer. Beberam muito, e entre outras brincadeiras, estourarem uma bomba
em um banheiro do estabelecimento. Foram expulsos do resort e a representação que
ficou na memória dos colegas é de que eles três foram expulsos porque fumaram

178
- esta reflexão me lembra que em 2006 estive em Ribeirão Preto para participar de um encontro de
Enfermagem cujo tema era Saúde Mental e nos três dias que estive em meio à comunidade, nos intervalos
do evento o tema recorrente entre professores, conferencistas e estudantes girava sempre em torno do
álcool, e não álcool como problema, mas álcool enquanto solução (esse trocadilho não foi intencional).
Quais bares iriam frequentar quando a programação encerrava, era uma das questões que mais inquietava
a saúde mental dos participantes.

220
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maconha no café da manhã do hotel. De fato, eles fumaram, mas o dado que foi
desconsiderado é que a bomba e as brincadeiras foram atividades realizadas quando
estavam consumindo álcool de forma desmedida e não maconha. O dado que merece
reflexão é que, independentemente deles terem fumado um baseado e terem bebido
litros de álcool, na representação pública aquele comportamento desviante de estudantes
de medicina foi produto do consumo de maconha e não do álcool ou ao menos da
interação entre ambos. Como indica o interlocutor seguinte, mesmo entre os integrantes
da área médica o álcool não é sempre representado como uma substância psicoativa.

T.V. - Há consumo perceptível de substâncias psicoativas no ambiente acadêmico?


Lampião - Rola, partindo do pressuposto de que o álcool é uma substância
psicoativa e é a mais divulgada, a mais falada, de uso banalizado, por conta das
pessoas que não a rotularem como psicoativo. Ali naquele meio onde tá a faculdade de
Medicina que é onde tem alguns bares; tem a Faculdade de Educação, o ISC, o
Instituto de Saúde, o velho “Chuleta” que é o ponto de encontro do pessoal da
faculdade. Lá, o uso de álcool é comum, frequente inclusive. Nas festas com bandas em
que os componentes são da própria universidade, a presença do álcool é constante.

Se o consumo de álcool parece não causar estranhamento na comunidade


universitária da área de saúde, outros consumos têm receptividade mais localizada.
Como no caso da comunidade dos estudantes de História:

T.V. - O consumo entre seus colegas era de que substâncias?


Oscar Wilde - Nas festas; cocaína, no cotidiano de aulas; maconha. Álcool sempre!
Faz parte de uma certa rotina das pessoas beberem antes ou após as aulas.

Essa rotina em relação ao álcool tem seus procedimentos de pertença característicos


entre os estudantes, o que Zinberg (1980) chamaria de rituais sociais; um lugar para
consumo, um horário apropriado e a companhia certa – procedimentos que se aplicam
as outras drogas também. Os universitários que passam a ter contato com esses hábitos
rituais fortalecem seus vínculos de confiança na segurança comunitária ao tempo em
que, enquanto grupo, fortalecem uma identidade. Para alguém que já teve algum contato
com esses rituais, não é difícil observar a sua configuração. Mas há uma condição

221
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especial em que, não tendo administrado com temperança seus consumos, o estudante
prefere fechar os olhos para não enxergar nos outros o que não quer ver em si mesmo:

Garrincha - Nos dois primeiros semestres eu não tive contato na faculdade com
pessoas que usavam drogas, é lógico que eu sacava quem usava, mas não tinha nem
conversa a respeito disso. Eu já vi algumas pessoas usando, vi algumas pessoas
chegarem com cheiro de droga, mas não quis nem saber os nomes delas.

Esse interlocutor que já foi usuário descontrolado de álcool, cocaína e crack estava
num momento em que não queria coexistência com quem pudesse remetê-lo ao passado,
até admitindo a coexistência à distância, mas não abrindo espaço para “conversa a
respeito disso”. Ele prefere deixar o passado para trás, mas há quem acredite que trazer
essa experiência polêmica para o presente pode ser não apenas catártico, mas
sociologicamente viável e politicamente correto.

Marley - Posso falar da minha experiência? Eu com 18 anos me envolvi com crack,
fumei durante um ano e meio... desestruturou completamente a minha vida. Cheguei a
sair de casa algumas vezes, brigas com minha mãe, cheguei a namorar uma garota de
programa (sorrindo de modo constrangido) que era usuária também. Cheguei a andar
com marginais que não faziam nada da vida, ficavam o tempo todo fora de casa.

Marley depois de dois meses sem estudar e vivendo pelas ruas voltou para casa, e em
seguida começou a fazer terapia. O fator decisivo que lhe fez mudar de atitude e buscar
ajuda foi a vergonha que sentiu diante da mãe:

T.V. - Como você fechou essa porta em sua vida?


Marley - Primeiro acho que começou com a vergonha. Quando minha mãe descobriu
eu fiquei com vergonha. Tinha vontade de não sair mais de casa, não ver mais
ninguém, com vergonha do que eu tinha feito... e força de vontade, eu cheguei a sair de
Salvador, minha mãe me ajudou bastante, a gente ficou um mês e meio afastado de todo
mundo. Eu tomei remédio durante dois meses, remédio forte, tarja preta, pra a
ansiedade, pra tirar a fissura da droga... tive algumas recaídas, não foi fácil parar ...
mas hoje em dia eu tou livre disso há bastante tempo. Eu nunca mais pretendo usar
nenhum outro tipo de droga sem ser maconha.

222
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T.V. - Você teria interesse em falar publicamente de sua experiência?


Marley - Sim, pode ser muito útil pra algumas pessoas porque minha experiência de
vida não foi fácil, e é um exemplo que deve ser ouvido e não deve ser seguido.
T.V. - Você não se incomodaria se outras pessoas, que seus colegas soubessem?
Marley - Não, eu não me incomodaria.
T.V. - As pessoas vêem o usuário de crack com certo preconceito, isso não lhe
incomoda?
Marley - Não me incomoda porque eu não pertenço mais a esse grupo. A experiência
que eu passei eu gosto de passar pras pessoas porque eu acho que... essa vida ninguém
deve viver.”

Deixando cair o receio inicial de expor uma situação delicada, Marley mostra nessa
fala catártica que a vergonha já foi superada. Se assim não o fosse, dificilmente ele
afirmaria que ainda fuma maconha, o que implica em que seja esta uma droga sobre a
qual ele pode supor exercer controle no consumo. Sua estrutura de vida está agora
baseada na sua carreira de universitário e não na sua carreira de usuário. Sendo uma
pessoa muito jovem, Marley demonstra uma capacidade de elaboração sobre uma
situação delicada que passa ao largo da vergonha, diferentemente de Garrincha.

Garrincha - Na medida em que o uso ia progredindo as companhias iam sumindo.


Até porque aquele pessoal com quem eu costumava fumar maconha antes, eu mesmo
tinha vergonha deles, de mostrar o meu uso de drogas como é que tava. Aquela galera
que fumava um, tomava uma cervejinha e voltava pra casa, pra mim já não dava mais,
porque pra mim não tava suficiente.
T.V. - Durante quanto tempo você levou este estilo de vida?
Garrincha - Uns 10 anos eu acho.

A vergonha de Garrincha acaba se manifestando de modo mais complexo que a


vergonha apresentada por Marley, pois está configurada não exclusivamente em relação
aos parentes, mas também em relação aos usuários que manifestavam um maior
controle sobre seus consumos. A vergonha é um mecanismo de controle social informal

223
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com potencial para baixar a auto-estima dos consumidores menos disciplinados179


podendo até resultar em retração da sociabilidade. Tanto Garrincha quanto Marley são
originários de famílias que podem ser representadas como disfuncionais e convivem
com os fantasmas de pais usuários e outsiders – lembrando que o pai de Marley faleceu
em decorrência da AIDS. Garrincha que por sua vez tem dificuldade em estabelecer um
diálogo mais aberto com sua mãe, não vem obtendo bons resultados com terapias, ao
contrário de Marley.

Garrincha - Não sei como é que tá hoje o relacionamento dos pais com os filhos
que fumam maconha, acho que a própria TV e o cinema já abordou de uma forma mais
apaziguadora. Minha vontade mesmo era de continuar usando. Aquilo (terapias) foram
tentativas da família pra contornar a situação. A gente ia pra terapia, mas nada que
tivesse uma sequência. Ia duas, três consultas e abandonava.

Se os processos terapêuticos aos quais foi submetido eram muito mais uma demanda
de sua família do que sua, Garrincha teve consciência de que seu desejo de consumo
não havia reduzido. Enquanto a busca por cura for apenas uma necessidade social na
tentativa para “contornar a situação” e não um desejo individual do consumidor quando
se percebe descontrolado, certos processos de cura podem até acabar provocando mais
danos:

T.V. - Como você se sentiu quando saiu da internação?


Garrincha - Na verdade eu senti muita revolta pelo fato de ter sido pego a força.
Posso dizer que esse tempo de uso, dos 20 aos 22, foi de um uso autodestrutivo e um de
acúmulo de frustrações muito grande... eu não sei, eu não conhecia o outro lado da
moeda.
T.V. - Você tinha algum plano pro futuro?
Garrincha - Eu não me lembro... não que eu não me lembro, mas é que tinha uma
coisa muito complicada, era uma instituição religiosa, até hoje eu tenho um

179
- uma possível interpretação para a teoria do processo civilizador é que a interdependência entre os
indivíduos configura um “superego social” que faz com que os indivíduos parem de lutar entre si na busca
por realizar sua satisfação pulsional, para juntos lutarem pela segurança de sua comunidade de hábitos. Se
esta tentativa de ordenamento falhar pondo a integridade da comunidade em risco, o indivíduo que não
controlou suas emoções em prol da segurança do grupo pode ser psicologicamente punido, se sentindo
constrangido e envergonhado ante este grupo. (ELIAS:1993)

224
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ressentimento muito grande com essa instituição evangélica, lá tinham as próprias


regras. Não saí feliz pelo fato de não usar drogas. Tava satisfeito com o fato da minha
mão não tremer mais, feliz por ter finalizado o segundo grau... mas ter de trabalhar
pro cara, trabalho físico! Tive que aguentar a questão de ser subordinado lá dentro,
sem ter argumento e ter que tar adaptado à filosofia deles, aquela coisa cristã, eu não
podia assoviar uma música que não fosse cristã!
Em coisa de um mês aqui em Salvador eu recomecei o uso. Eu não culpo nada,
outras pessoas. Assim como eu entrei num emprego, se eu tivesse uma cabeça boa
poderia ter tocado uma vida boa, eu poderia ter pego esse um ano sem usar droga e
tocado uma vida boa. Porém cheguei aqui e na primeira vez que eu peguei uma
quantidade de dinheiro razoável fui e retornei pro uso de droga. Ou seja, aquilo que
eles (a Instituição Evangélica) prometiam (a cura), não existe. Hoje eu tenho
consciência de que o que vale pra sair do uso de droga é o desejo da própria pessoa.
Não adianta a família, a justiça querer fazer qualquer coisa, que é o desejo da pessoa o
que conta.

A revolta de Garrincha quanto aos métodos de cura a que foi submetido parece
aumentar sua dificuldade para estabelecer controles informais quanto ao seu consumo.
Seu retorno ao consumo imediatamente após sair do internamento acabou sendo sua
resposta à internação forçada, apontando que aqueles métodos que não lhe permitiam
margem de escolha, falharam com ele. Essa resposta social pouco reflexiva e muito
mais reativa mostra como a vergonha vivenciada por Marley se mostrou mais eficiente
que a revolta de Garrincha quanto ao processo pessoal para estabelecer controles
informais sobre o consumo:

Marley - No início minha mãe não sabia, aí depois o segurança lá no colégio me


seguiu pra praça que eu fui fumar, me pegou fumando e a escola ligou pra minha mãe.
Minha mãe veio conversar comigo que eu tava muito novo pra fumar e ela na minha
idade não fumava, que era uma coisa pra quem tinha a cabeça melhor, quem tem
estrutura, pra quem é mais responsável com a vida, porque os jovens hoje em dia
querem fumar e acham que podem passar o dia todo fumando, só leva a coisa ruim, e
abre as portas pras outras drogas.

225
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Pondo em relevo o dado de que a mãe de Marley é consumidora controlada de


maconha enquanto a mãe de Garrincha nunca consumiu drogas ilícitas e aparentemente
nunca considerou a possibilidade de fazê-lo, o estabelecimento de vínculos dialógicos e
de confiança está mais próximo do primeiro interlocutor. As relações de confiança
quando exercitadas dialogicamente podem dispor os indivíduos a por em prática sua
reflexividade. Isso porque o simples consumo não faz da pessoa que consome
necessariamente ter sempre uma opinião objetiva sobre o consumo. Marley por
exemplo, que parou com as outras drogas e eventualmente fuma maconha, acredita na
escalada das drogas a partir da maconha. Por outro lado, Garrincha que não tem maiores
interesses por maconha e sim em drogas consideradas mais pesadas, não acredita que a
maconha seja - enquanto substância psicoativa - a porta de entrada para outras drogas. O
problema, segundo ele, está na configuração do setting:

Garrincha - O CETAD tem uma questão de redução de danos, essa redução pra
quem tem dependência química, talvez não seja o melhor. Porque imagina no meu caso,
tirar a cocaína, não dá pra reduzir os danos usando maconha, porque eu retorno pra
cocaína. Eu não tou dizendo que a maconha é uma porta de entrada, não é isso, é por
causa do ambiente, eu tou fumando um e daqui a pouco eu já tou indo pra onde rola a
cocaína e o álcool.

Depois da experiência com os controles formais rígidos de uma instituição religiosa,


Garrincha também sentiu dificuldades para lidar com os controles informais de uma
instituição como o CETAD, que em seu projeto de redução de riscos e danos não
submete o sujeito à privação do arbítrio, pelo contrário, chama-o à responsabilidade. O
que Garrincha acabou indicando indiretamente é que seu set emocional carece de
controles formais que de certa forma “assumam-lhe” a responsabilidade, porém
controles não tão rígidos quanto os de uma instituição religiosa. Quanto ao setting, ele
interpreta sua “dependência química” como diretamente dependente do ambiente onde
frequenta: “essa redução pra quem tem dependência química, talvez não seja o melhor
[...] é por causa do ambiente”. Nesse sentido, Garrincha é o que Bauman chamaria de
consumidor falho, pois se na cultura de consumo se pode consumir de tudo com
responsabilidade, Garrincha parece abrir mão da responsabilidade sobre seu consumo na
espera que alguma “instituição” o faça. Talvez uma experiência que possa ter sido

226
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emblemática nessa delegação de poderes foi que, muito cedo, houve interferência de
controles formais na relação entre Garrincha e seus consumos, a interferência da polícia:

Garrincha - Aos 16 anos a polícia me pegou usando droga na rua e com uma certa
quantidade, aí fui levado pra delegacia do menor e adolescente, tive que frequentar
assistente social todo mês, e meu pai tomou uma atitude; arranjou um emprego pra
mim.

Rimbaud - Uma coisa de não ter conversado com meu pai, foi a circunstância em
que ele descobriu foi um nocaute... foi quando eu acabei sendo preso... foi engraçado
que foi na época do aniversário dele. Ele foi me buscar na delegacia, ele tava até
bebendo... ele falou: “ó como é que eu descobri que você fuma... aquela coisa. A partir
daí ele veio com o discurso, de que tinha a preocupação de que eu tava abusando da
substância.

Como aconteceu com Marley, também Garrincha e Rimbaud se sentiram


envergonhados por suas famílias tomarem par da situação de consumo através dos
controles formais mais extremos; os controles exercidos pelos dispositivos sociais de
segurança. Mais uma vez, a redução de riscos só fez sentido depois que alguns danos
foram causados; o pai de Garrincha lhe arranjou um emprego e este dado permite até
uma interpretação de fundo psicanalítico de que seja esta a única lembrança positiva do
pai, ajuda que talvez ele continua esperando que aconteça de novo. Por sua vez o pai de
Rimbaud não lhe arranjou um emprego, buscou o diálogo. A situação deste último hoje
em dia é de alguém que faz um consumo com temperança, o que talvez possa favorecer
a interpretação de que a aproximação dialógica com o pai tenha lhe ajudado a ser menos
dependente de ajuda para desenvolver seus projetos, inclusive já tendo arranjado um
emprego por conta própria.
Contudo, os riscos do consumo não se restringem ao efeito reativo dos controles
formais, que aumentam o efeito reflexivo da vergonha. A vergonha como mecanismo
de controle pode ser construída em situações nas quais os consumidores se encontram
aleijados de poder para controlar seus consumos. Uma situação exemplar se dá quando
a dificuldade de autocontrole está relacionada com a falta de disponibilidade de dinheiro
para a aquisição de drogas (Grund, 1993):

227
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T.V. - Nesse período como você arranjava dinheiro pra comprar drogas? Você
tava trabalhando?
Garrincha - Não, não tava... o jeito de arranjar dinheiro é complicado. Às vezes
pegava emprestado... às vezes vendia alguma coisa minha... antes conseguia sustentar o
meu vício, já trafiquei pra sustentar o vício, em Brasília.

Garrincha encerrou esta última fala cabisbaixo, com dificuldade para traduzir a
vergonha em palavras, inclusive se retirando por alguns minutos para consumir um
cigarro de tabaco no silêncio do jardim. O que lhe proporcionou tanto constrangimento
é que ele durante certo período praticou pequenos furtos, hábito que pouco tempo
depois de nosso derradeiro encontro, veio a retomar, desta vez em relação a objetos da
própria casa, sendo posteriormente conduzido pelos familiares para nova internação. O
que este caso permite questionar é: como a responsabilização pelos riscos corridos pode
ser útil a Garrincha? Uma possível resposta está na minimização do seu sentimento de
vergonha por não controlar os tais riscos.
Em relação às expectativas dos outros interlocutores da pesquisa foi possível
verificar que hermeneuticamente, cada um sustenta uma visão muito particular do que
sejam riscos, riscos muitas vezes interpenetrados com danos. A responsabilização pelos
próprios riscos180 pode ser interpretada como uma estratégia profilática, um
procedimento a priori. Por sua vez, a redução de danos é uma estratégia terapêutica, a
posteriori. Já que nem sempre os interlocutores operam esta diferenciação conceitual, é
viável relacionar as estratégias e perspectivas definidas por eles como ressignificações
sobre o consumo de drogas. Estas estratégias são aqui interpretadas enquanto
configurações de habitus sociais de controle.

Lampião - O alcance e a adesão de usuários à idéia de redução de danos acontecem


de uma maneira mais interessante, pois se pauta no diálogo e convencimento e coloca
o cidadão como sujeito da sua ação. E mais uma coisa interessante é que as idéias não
são postas de maneira punitiva ou repressora ao usuário... “você não pode isso ou
aquilo"..., mas de maneira educativa.

180
- na perspectiva de Beck (1997,15), a sociedade contemporânea é uma sociedade de risco na qual “os
riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o
controle e a proteção”. A modernização reflexiva possível estaria na responsabilização individual
(1997,18) por este controle e por esta proteção, pondo em xeque o que foi previamente estabelecido por
instituições e especialistas.

228
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Para os que pensam como Lampião, redução de danos não é política pública, é
política de vida. Enquanto política de vida, os controles informais que estão em
circulação na cultura de consumo, não seriam eficientes enquanto mecanismos de
segurança, se, cada consumidor como “sujeito de sua ação” não abraçasse sua cota de
responsabilidade sobre a administração de seus consumos. Nessa cultura que mimetiza
emoções e na qual a exposição a riscos e a busca por segurança são indissociáveis, a
redução de danos acaba sendo interpretada como um mecanismo de controle sobre o
corpo, que ao se tornar habitus social, está à disposição do próprio consumidor. Eis o
processo civilizador! E se num momento anterior desta pesquisa alguns estudantes
questionaram a quem a redução de danos favorecia, serão os próprios estudantes
pesquisados, através da interpretação de fragmentos de suas trajetórias que fornecerão
possíveis respostas. Afinal, de qual(is) perspectiva(s) de redução de danos estamos
falando?

4.2 - Mas afinal, reduzindo quais riscos?

T.V. - E entrando na faculdade como era o consumo?


Pancho Villa - Aí eu já era usuário habitual, fumava todo dia. No primeiro semestre
logo, eu já fiz uma pesquisa. Eu fiz um trabalho de campo ligado aos usuários. Eu já
usava e aí descobri uma porrada de gente que fumava. Daí eu comecei a organizar o
Growroom181.
T.V. - Como você chegou na perspectiva da redução de danos?
Pancho Villa - Em 2002 fiz um curso que falava sobre drogas e vi que existia a
perspectiva da redução de danos, e comecei a ficar pensando que cannabis é uma
droga que causa danos à saúde, ela causa; mas danos à saúde que não são tipo você se
injetar com uma seringa, ou se cheirar muito você pode ter uma overdose. Com
cannabis você não tem riscos disso, você tem outros riscos, tipo; você vai comprar e o
cara vai lhe bater e nesses casos pra pensar redução de danos pra cannabis você tem
que olhar os danos relacionados ao adquirir, a você ser preso, coisas desse tipo. Aí
percebi que o trabalho que a gente tava fazendo na pesquisa era redução de danos. Aí
levei pro pessoal da comunidade a idéia, e tive resistência porque é aquela coisa;

181
- na pg. 261, a comunidade Growroom será trazida para o primeiro plano da investigação.

229
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maconheiro fuma e fala: “maconha não é droga182, maconha não causa danos, então
como é que vem falar de redução de danos pra maconha?” Eu levei de 2003 até hoje
(2007), pra convencer as pessoas da comunidade que eles fazem redução de danos!
Agora eles compraram essa idéia de que a redução de danos foi uma questão de
proteção pra comunidade não ser acusada de apologia, inclusive eles não se sentem
como redutores de danos, eles se sentem como membros de uma comunidade que ajuda
outros membros daquela comunidade. Na verdade é isso mesmo porque o nativo é o
cara que fuma e planta e que quer ajudar outras pessoas a plantar. A lógica é quem
precisa de cuidados são os doentes. “Eu não tou doente!”. Essa é a lógica, eles
compraram a idéia de que a comunidade é uma redução de danos mais pelo fato de que
esta é uma capa de que isto não é apologia, não é incentivo, incitação ao crime.

Nesse segmento fica explicitada a configuração identitária da comunidade; no ponto


de vista de muitos dos seus integrantes a redução de danos é uma intervenção de saúde
para usuários problemáticos, não para uma comunidade que se propõe a ajudar quem
precisa de ajuda - e eles estão tecnicamente certos, o que fazem é redução de riscos,
não de danos - afinal, se colocar como quem precisa de ajuda é se colocar como
consumidor problemático, como passível de estigmatização. Se a perspectiva de redução
de danos pode servir politicamente como uma blindagem para a representação pública
da comunidade, os seus membros mais ortodoxos num plano mais pessoal, ainda não
desestigmatizaram a questão, não percebendo a adequação política da passagem da
condição de desviante problemático para a condição reflexiva de redutor de danos.
Uma das vantagens operacionais dessa ressignificação é passar a dispor da mão de
obra de pessoas que estiveram nessa situação de risco, para atuar como pessoas
instrumentalizadas na tentativa de ajudar a reduzir riscos e danos de terceiros. É o caso
de Leila que atua como redutora de danos e realiza uma pesquisa acadêmica sobre o
trabalho de redução de danos para frequentadores de festas de música eletrônica. Em
linhas gerais ela afirma que nas festas, o projeto funciona como um stand de
informações que previne e fornece assistência sobre uso e abuso de drogas.

182
- levando em conta o ponto de vista desses consumidores não há como pensar na maconha como porta
de entrada para outras drogas, porque a maconha é, num bom número de casos, a única droga que eles
consomem.

230
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Leila Diniz - Acompanhei o começo da cena eletrônica em Salvador, pegando uma


idéia que já existia em Barcelona, com o MD Control: redução de danos em cena
eletrônica. Fora o Balada Boa (SP) não existia nenhuma iniciativa nesse sentido.
T.V. - Nesse trabalho há compatibilidade com o seu lado de usuária?
Leila Diniz - É incompatível.
T.V. - Você já fez uso trabalhando?
Leila Diniz - Não.
T.V. - Então como você sabe que é incompatível?
Leila - (risos), Porque eu tenho todo um preparo pra tomar, em certas situações eu
sei que não dou conta, trabalhar com essas coisas em festa, eu sei que pode acontecer
muita coisa. Inclusive quando eu comecei a tomar ácido e bala foi nessas festas...

Mesmo que pareça redundante é importante observar que a redução de danos sociais
começa com o processamento da redução de riscos psicológicos para a própria redutora
que já não se dispõe a por sua segurança em risco em prol de uma suposta liberdade
incondicional. Partindo de sua experiência, Leila ao atuar como redutora de danos tem a
possibilidade de obter satisfação pessoal facilitando a satisfação segura de outras
pessoas, na prática efetuando duas reduções de riscos ao mesmo tempo. A segurança da
comunidade passa diretamente pela segurança que seus indivíduos integrantes
configuram em torno dos riscos que sua busca por liberdade acarreta. Outra redutora de
danos assim vivencia a questão:

T.V. - E como você aplica sua redução de danos pessoal trabalhando em raves, já
que você também gosta de raves?
Mata Hari - Eu não gosto de misturar, eu tenho alguns amigos que fazem uso, mas
eles seguram a onda, entendeu? Eu não gosto porque eu sou muito sensível. Eu já fui
atender pessoas com uma dor muito expressa e se te contamina..., eu fico carregada
com aquela experiência. Se eu usar uma substância eu não vou dar conta, entendeu?
Eu só uso quando a gente trabalha em festa com mais de 24 horas, depois que acabou
meu turno de trabalho, vou fazer uso.
Eu me dou bem com isso porque eu aprendi a redução de danos. Aprendi isso na
prática. Então eu tenho que ter o cuidado com a outra pessoa e isso faz parte da minha
profissão. Quando eu vi a proposta de redução de danos da galera eu me identifiquei, é
uma coisa que eles vem fazendo e que eu venho fazendo também comigo mesmo (risos).

231
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Mata prefere não consumir substâncias psicoativas para poder trabalhar com maior
margem de segurança, e desse modo sua liberdade está em optar por não consumir no
momento em que não acredita ser adequado. Se, enquanto residente de medicina, ela
encontra resistência até para discutir a redução de danos, na cena eletrônica, Mata
encontra um setting receptivo para suas práticas, até em função de sua ludicidade. Já
alguns ambientes, onde esta estratégia de controle começa gradativamente a ser
processada, não são tão lúdicos quanto o setting da cena eletrônica:

Buda - Trabalhei dois anos no Presídio Lemos Brito e lá, a maconha é que segura
a cadeia. Os caras fodidos, os “couro de rato183”, fumam qualquer coisa que brota, o
que chamam de cigarro “pacaia”. Eu fazia uma redução de danos com eles, não só em
relação a sexo, mas também em relação ao uso de drogas.

Em meio a controles formais que lhes permitem poucas opções de consumo184 os


“couro de rato” fumam o que brota, bebem o álcool que produzem185, injetam o que pica
e assim por diante. Nessa condição de exclusão de “direito ao PROCON”, o trabalho de
Buda é possibilitar controles informais que reduzam o excesso de risco configurados no
setting. Um presídio é um setting configurado em torno dos riscos, do seu controle e de
sua ausência. A afirmação de Buda de que “a maconha é que segura a cadeia” corrobora
a percepção sustentada por um professor na primeira parte da pesquisa e levanta a
seguinte reflexão: o consumo de drogas em certas configurações sociais serve como
ferramenta para processar e reforçar os controles formais186. Se muitos dos internos
estão ali por causa de suas ligações com o tráfico de drogas, é no consumo de drogas
que muitas das relações de poder por trás dos muros oscilam entre a pacificação e o
conflito direto.
As possibilidades de relacionar drogas com riscos e danos nos settings desta pesquisa
são várias: riscos e danos relacionados aos usos de drogas, às representações dos
usuários e às atividades de trabalho. No caso de Buda que é residente, é possível
observar como ele interpreta seu consumo de maconha como prevenção aos riscos

183
- os “couro de rato” são a escória na hierarquia prisional. Nesse sentido, esses presos não se percebem
como outsiders, pois não manifestam aspirações em reverter tal estigma. São desviantes tipificados.
184
- se estão encarcerados num presídio estes indivíduos são consumidores falhos pela própria condição
de exclusão em que se encontram, excluídos do consumo da plena cidadania!
185
- a pinga destilada pelos presos na cadeia é chamada “Maria Louca”, como se percebe no filme
Estômago, (Jorge, 2007).
186
- sobre esta constatação e sua reflexão ver capítulo seguinte.

232
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causados pelo trabalho muitas vezes estressante, no qual a vida de outra pessoa pode
estar em jogo:

T.V. - Você usa substâncias psicoativas pra trabalho ou lazer?


Buda - Algumas vezes vou em casa almoçar, tomar um banho e eu fumo um baseado.
Relaxa, deixa mais a vontade, eu consigo trabalhar melhor. No caso desse trabalho, ele
não é muito interessante pra mim, na função de um técnico, não faço o que eu gosto. Eu
lido com situações difíceis, o sofrimento dos pacientes, ou então, preciso de uma
sensibilidade a mais pra entender o que ele tá querendo me dizer. Estar mais tranquilo,
estar mais de bem comigo mesmo. Quando volto pro trabalho tou revigorado, com mais
disposição pra ajudar. Não me sinto de bobeira, eu vou lá e fico calado ouvindo o que o
paciente tem a dizer. Eles precisam disso.

Em relação ao setting de trabalho, Buda consome maconha para manter o equilíbrio


emocional ante os problemas dos pacientes, para os quais ele não vê resoluções fáceis.
Nesse caso é possível interpretar que Buda administre a maconha como ansiolítico - sua
solução é contrária à solução encontrada por Mata, pois ele acredita que, por intermédio
do consumo, ao invés de absorver a dor do paciente ele vai imergir na problemática
apresentada pelo outro. Se para Mata o consumo poderia mimeticamente a deslocar a
dor do paciente para o seu set pessoal, para Buda, o consumo poderia ajudar a
relativizar as suas questões pessoais, favorecendo assim uma maior aproximação da
problemática apresentada pelo paciente.
Se alguns setores da sociedade ainda associam as estratégias de redução de riscos e
danos exclusivamente à distribuição de seringas e cachimbos, setores mais específicos
ainda interpretam essa distribuição como incentivo ao consumo. Esse problema, como
já foi percebido no caso do projeto Balada Boa, também atinge pesquisadores e ativistas
que trabalham tendo substâncias psicoativas como objeto. Em razão deste estigma, os
interlocutores que desenvolvem qualquer projeto ligado à questão precisam reduzir os
riscos de sua atividade no que se refere às representações da vida pública e privada:

T.V. - Nesse momento em que seu trabalho como pesquisador tá tendo uma
representabilidade boa na comunidade, como você tá levando sua vida enquanto
usuário?

233
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Pancho Villa - Eu não me declaro como usuário, porque como pesquisador você já é
considerado suspeito de ser usuário. Se você falar de cocaína o pessoal ainda olha
assim e tal, mas se falar de maconha, você é maconheiro! Aí você ainda fala sobre
ativismo, fala sobre autocultivo como redução de danos, então eu sou visto como
usuário o tempo todo. Minha mãe é tranquila, meu pai também. Minha esposa não usa,
morre de medo, não tinha contato nenhum com esse universo. Se eu morasse sozinho
provavelmente eu plantaria uma quantidade grande. Eu não faço isso por causa dela,
não porque ela me pede, mas porque eu fico com receio de eu ser preso e ela ficar
fodida. O receio maior da minha esposa é que eu teja sendo investigado por apologia
ou por incentivo ao uso. Isso tem alterado a minha vida a ponto de eu estar cada vez
mais exposto na mídia. Eu evito fumar em qualquer lugar, me expor. Meu irmão queria
plantar, e eu disse: dou a teoria, lhe digo como fazer, mas depois de começar evite falar
comigo (risos). Porque quando rolar uma coisa dessa na cidade a primeira pessoa a ser
investigada vai ser eu.
T.V. - Se vivemos numa sociedade de risco, a sua carreira tá pondo sua vida
particular em risco. Tá valendo a pena correr esse risco?
Pancho Villa - Vale a pena, eu tou no caminho certo, eu tou falando de uma forma
que as pessoas tão escutand,o sem fazer apologia. Eu recebo elogios de pessoas que eu
não conheço através do orkut. Fizeram questão de mandar mensagem pra dar força. O
perfil do blog foi acessado quase 13 mil vezes. Eu não sei quem tá vendo isso, mas
enfim, tá lá.

Após viver certo período de encantamento com o se tornar “pop-star das drogas”,
como ele mesmo se definiu, Pancho em função de sua segurança teve que mudar o
discurso. Para não correr mais riscos de ver confundirem um movimento social em prol
da descriminalização da maconha com a sua figura pessoal, ele se retraiu da excessiva
exposição pública. Ele, uma colega e um professor foram intimados a comparecer a
Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes para prestar depoimentos sobre o envolvimento
com a Marcha da Maconha 2008. Pancho foi investigado por suspeita de apologia e
associação ao tráfico, enquanto sua colega e o professor foram ouvidos como
testemunhas. Se essa trajetória pode indicar que na configuração de certos settings
quem acaba precisando de redução de riscos e danos sociais é o próprio pesquisador,
nem todo setting se configura assim. Há setting em que uma consumidora que correu o
risco de ser estigmatizada vem a se tornar uma redutora de danos estabelecida:

234
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T.V. - Quando você pensou em trabalhar com redução de danos?


Leila Diniz - Eu já frequentava um grupo de tomadores de chá na faculdade e fui
trabalhar num projeto sobre o uso da Jurema em centros urbanos e era o que eu queria
trabalhar na época.
T.V. - Você frequentou um grupo de tomadores de chá?
Leila Diniz - Frequentei. A gente tomava na Faculdade de Biologia, sempre em
rituais não ortodoxos.
T.V. - O que você buscava?
Leila Diniz - Eu buscava muito o novo, era muito extraordinário, havia toda uma
cosmologia, tipo Mãe Jurema, que eu usava na época. Era um grupo que cada um fazia
sua pesquisa, se encontrava um dia e pronto, cada um fazia o que quisesse.
T.V. - Como é que foi essa passagem de um grupo heterodoxo como os tomadores
de chá para o trabalho de redução de danos?
Leila Diniz - Rapaz, foi ótimo pra mim porque eu desfiz os vínculos com o grupo de
tomadores de chá porque eu não podia tar indicando o chá pra alguém se eu não sei
como é que vai ser o efeito naquela pessoa. Uma vez eu dei o chá de ayahuasca pra
uma figura e a figura no meio da borracheira me falou: “como é que você me dá isso e
você não me avisa? É perigoso”.
T.V. - No momento você se sentiu responsável por ela?
Leila Diniz - Me senti e tentei acalmar ela...

Uma das referências básicas para o pleno fluir do sistema especialista é a presença de
confiança. Estabelecer confiança numa perspectiva comunitária é horizontalizar as
relações. Leila se sentiu desconfortável quando foi acusada por uma tomadora de chá de
colocá-la em risco, abalando uma relação de confiança. A partir de então, seu
procedimento de redução de riscos não abrangeu apenas controlar sua faceta de
tomadora de chá, mas também saber em que medida sua faceta de tomadora de chá
poderia fornecer reflexões úteis para reduzir tais constrangimentos nas relações de
confiança.

T.V. - Você se vê mais ligada às drogas como pesquisadora, como usuária ou não
há essa separação?
Leila Diniz - Essa é uma coisa que até hoje eu tou tentando separar a ferro e fogo
(risos). É diferente porque você tem que assumir uma postura crítica em relação à sua

235
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ação, e quando você começa a estudar o uso de substâncias psicoativas você está se
estudando também. A própria idéia da redução de danos que é uma idéia de cuidar de
si mesmo, mudou muito minha relação com a droga. Por exemplo, eu vou fazer campo
numa festa de música eletrônica, geralmente eu não tomo nada, porque eu não consigo
anotar, é uma experiência muito imersiva. Mas eu já tomei em festa, com finalidade de
pesquisa, eu queria ver como é que é.
T.V. - A sua família tem conhecimento do seu projeto?
Leila Diniz - Tem porque viram no jornal (risos), nem fui eu que contei. Acharam
ótimo... eles evitam falar sobre drogas, mas começaram a perceber que eu tava usando
maconha, mas tava produzindo, olharam com olhos ótimos!
T.V. - Porque você não comunicou a eles, souberam pelo jornal?
Leila Diniz - Na verdade foi um vacilo meu porque eles sabiam que eu estudava
drogas.

Apesar de reafirmar que a sua interpretação das estratégias de redução de danos se


baseia no cuidar de si mesmo, Leila esqueceu de reduzir os próprios danos com a
família. Disponibilizar a informação para os membros centrais da família, de que estava
ajudando pessoas com problemas relacionados ao consumo de drogas, poderia induzi-
los ao processo reflexivo de que sua “cura” passa por ajudar a “curar” outras pessoas.
Entretanto, nem todos os envolvidos com o setting de redução de danos têm como
objetivo a cura, alguns buscam um maior conhecimento sobre as comunidades que são
consumidoras diretas dessas estratégias enquanto bem de consumo. Um interlocutor
que se iniciou no setting dos redutores de danos enquanto pesquisador de consumo de
drogas, expôs suas reflexões:

T.V. - Até que ponto você está envolvido com redução de danos?
Oscar Wilde - Eu tou num grupo de estudo que desenvolve essa ação em várias
festas de música eletrônica, em duas ou três ocasiões eu já os acompanhei pra ver a
ação de perto, isso porque eu também tenho pesquisas nessa área. Eu pude observar
que muitas pessoas são desinformadas, vi reações de pessoas quando foram informadas
com os flyers sobre as várias substâncias. Até então, muitos não tinham visto
informações sobre drogas de maneira clara: “se você vai usar tome cuidado!”... Esse é
um festival que custa caro, é um público de classe média alta. A entrada lá na portaria

236
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custava R$ 350.00 com direito ao camping sem alimentação. Segundo a organização


eles tinham 10.000 pessoas.
T.V. - Fale sobre essa pesquisa que você tá desenvolvendo.
Oscar Wilde - Na verdade eu pretendo desenvolver uma pesquisa sobre o consumo
de cannabis entre adeptos da espiritualidade Rastafari. O uso ritualizado como uma
forma de redução de danos porque se dá num contexto onde os controles são bastante
importantes, evitam que as pessoas caiam em situação de risco social ou de conflito
com suas famílias.

Consumo em festas raves e consumo entre os Rastafari, em um caso consumo


lúdico, em outro, consumo religioso – que não deixa de ser lúdico como o lúdico
também incorpora elementos ritualísticos e dogmatizados. Nestes dois settings onde
Oscar pode realizar observações diretas não só sobre o quanto as pessoas estão
informadas, mas sobre seus controles e estratégias em relação aos riscos a partir de tais
informações.
No primeiro desses settings, ficou claro que ter dinheiro para estar incluso na cultura
de consumo não é tudo: disponibilizar de R$ 350,00 para entrar numa festa não garante
que quem paga necessariamente pague para consumir também informação, nem que já a
possua. Para estes consumidores que buscam uma zona temporária hedonista o consumo
de controles vai se tornando um hábito social configurado gradativamente, pois a
cultura das informações em torno das drogas já circula como um discurso característico
nesta comunidade.
No setting Rastafari onde o dinheiro que circula geralmente é pouco e onde os
controles são mais rígidos, Oscar percebe o “uso ritualizado como uma forma de
redução de danos”. Sendo esta uma comunidade que já tende a ser representada de
modo estigmatizado, por ser configurada majoritariamente por negros e pobres, Oscar
acredita que o consumo de maconha sem a ritualização religiosa deixaria a comunidade
mais vulnerável aos controles formais disciplinares, principalmente ao controle da
polícia.
Não carecer de controles formais como a polícia, só é possível quando os membros
da comunidade encontram adequação ao processo civilizador, exercendo o próprio
controle. O consumo de substâncias psicoativas passa pela pauta de educação da
comunidade e não como fruto da ausência dela. E dando centralidade à educação, é
importante analisar como os interlocutores que encontraram um caminho religioso

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lidam com o conceito, e particularmente com a articulação entre educação acadêmica,


redução de riscos e consumo de drogas. No caso de Krishnamurti que estava há mais de
10 anos sem interesse em estudar, a vontade surgiu depois de ingressar na comunidade
União do Vegetal, pois: “a religião que eu tou seguindo me deu vontade de aprender
mais, estudar, eu tou estudando algo que tem a ver com meu trabalho”. Nesse caso, a
religião o levou até a universidade e antes disso, o consumo destemperado de drogas o
levou à religião:

Krishnamurti - Eu tou lá há 4 anos. Quando eu conheci a ayahuasca era como se


fosse uma droga, era uma droga. Eu queria beber desse chá pra ficar alucinado.
T.V. - E o que aconteceu?
Krishnamurti - Aconteceu que eu encontrei o que eu não tava procurando, uma
religião que me levou a grandes transformações, me fez mudar totalmente o rumo de
minha vida, eu tava à deriva. Lá eu comecei botar o pé no chão e larguei o vício de
bebida, de maconha, de droga.
T.V. - Como é que é buscar uma droga “pra ficar alucinado” e encontrar uma
religião que utiliza uma “droga”?
Krishnamurti - O que a gente chama de droga mesmo, de alucinógeno, que tira a
gente do centro e fazer algo errado, não tem nada a ver com a ayahuasca, que é um
“iluminógeno”, pra iluminar o nosso caminho, que transforma, que é o caminho do
bem, que faz seguir a doutrina de Jesus Cristo.
T.V. - Na universidade você levanta essas questões?
Krishnamurti - Não, na universidade eu não conheço ninguém que usa e eu sou bem
discreto. Eu não me sinto discriminado não, eu não tenho problema de fazer amizade,
de tar com a turma, eu me vejo como uma pessoa bem social, mas em relação à religião
eu sou bem discreto. A não ser que alguém pergunte sobre o assunto.

Enquanto alguns adeptos da UDV buscam difundir a religião, Krishnamurti procura


ocultá-la, talvez ainda por sequelas da estigmatização relacionada ao consumo de
drogas, e acredita que assim está minimizando possíveis danos à sua imagem e à da
comunidade. Essa sua postura discreta não é unanimidade entre os nativos da
comunidade em questão, alguns inclusive acreditam que uma religião que incorpora o
uso de substâncias psicoativas deve ter ampla visibilidade para gerar reflexividade, e o
setting universitário é um meio com respeitabilidade para por esse processo em curso:

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Blavatsky - No trabalho de mestrado eu falei sobre a experiência de transformação


e cura na União do Vegetal, que é uma das religiões que fazem uso do chá da
ayahuasca. Eu estudei as experiências de cura dos adeptos, dos diversos problemas que
eles tinham, problemas psicológicos, consumo de drogas. Agora eu estudo o uso
ritualístico no tratamento da drogadependência, porque a ayahuasca tem se mostrado
uma redução de danos em pessoas que tem uso compulsivo de drogas.

Se Krishnamurti entrou na cultura religiosa atrás de drogas e encontrou a cura


chegando até a universidade, Blavatsky através da carreira universitária buscou mostrar
a cura propiciada pela cultura religiosa enteogênica como redução de danos para o
consumo abusivo de drogas. Esse recorte demonstra a liquidez do phármakon; para os
nativos a ayahuasca não é droga, é a cura para as drogas, enquanto que para os outsiders
a esta cultura, ayahuasca é droga que inclusive pode ofuscar seu setting religioso.
Entretanto, a escalada de Blavatsky até a atual condição estabelecida de universitária de
pós-graduação bem recebida na comunidade acadêmica não começa com seu projeto,
nem começa pensando em possibilidades de cura. Começa com uma carreira de usuária
descontrolada:

Blavatsky - O uso de maconha não foi e foi problemático pra mim no seguinte
aspecto: eu era uma pessoa que fumava maconha, mas eu trabalhava, estudava, e
desenvolvia todas as minhas tarefas tranquilamente. Eu consumia uma quantidade de
maconha muito grande, eu fumava 8 a 10 baseados por dia, meio quilo por mês. Era
uma coisa que tava no meu dia todo, então tudo que eu fazia tinha que ser fumado, era
uma coisa que era uma dependência mesmo. Isso não atrapalhava minhas atividades.
Embora muitas pessoas não consigam, eu tinha uma vida aparentemente normal com
isso. Agora, uma coisa me trazia alguns problemas, como tudo que eu tinha que fazer
eu tinha que fumar e nem todo lugar eu podia fumar, então eu evitava ir pra lugares
onde eu não poderia fumar. Então isso era uma coisa que me limitava um pouco porque
eu tinha essa dependência.

Como a problematização já foi formulada pela própria interlocutora; “o uso de


maconha não foi e foi problemático”, fica ecoando uma interpretação inicial: Será
possível fumar dez baseados por dia e ainda assim fazer tudo tranquilamente? Como a
própria Blavatsky já respondeu, muitos não conseguem, mas levando em conta uma

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abordagem meramente quantitativa, os adeptos do rastafarianismo também fumam uma


grande quantidade de maconha sem deixar de executar suas tarefas habituais, claro que
em diferentes contextos e com diferentes motivações. Se tamanho risco parece ter sido
compatível com sua então estrutura de vida, talvez o mais impactante da fala de
Blavatsky ainda esteja por vir:

Blavatsky - Cheguei a fazer movimento, a vender, cheguei a passar dificuldade em


relação à polícia, apreensão, já passei duas situações assim, fui pega na casa de um
traficante...
T.V. - E como começou o “movimento”?
Blavatsky - Eu comecei a fumar cada vez mais, meus pais não me davam uma
quantidade de dinheiro pra fazer o que eu quisesse, eles perceberam que eu fumava, já
tavam falando, mas eu queria aumentar o meu consumo e ficava limitada por questões
financeiras. Aí eu passei a ver que se eu comprasse uma quantidade maior e ficasse
com metade e vendesse a outra metade, eu podia economizar o dinheiro que meus pais
davam pra comer uma merenda. Peguei meio quilo, fiquei com a parte melhor e vendi
250 gramas. E comecei a fazer isso. Tinha épocas que eu aumentava, porque as pessoas
me procuravam pra comprar uma quantidade maior e eu comecei a movimentar mais.
Tinha épocas que eu ficava só restrita mesmo ao meu consumo. Mas eu cheguei a fazer
um movimento bom, em um mês pegar cinco quilos de fumo e adiantar.
T.V. - E daí pra parar na polícia, como é que foi?
Blavatsky - Eu tinha um cara, traficante matuto, ele vinha lá de Pernambuco,
Cabrobró, e ele trazia o melhor, eu sempre fui muito exigente com a qualidade, eu
rodava todos os interiores da Bahia pra ter o melhor. Eu fiz amizade com ele e ia na
casa dele pegar. Determinado momento eu cheguei na casa dele pra pegar dois ou três
quilos, e quando eu cheguei a polícia tava lá e foi aquela situação. Eu fui arrolada
como testemunha de acusação do cara, eu fiquei numa situação constrangedora,
porque como é que eu ia acusar uma pessoa que me fornecia? Fiz isso pra não ser
arrolada como fazendo formação de quadrilha. O advogado disse: “você é uma pessoa
de família, universitária - tinha acabado de entrar na faculdade, tava com 19/20 anos -,
aí você denuncia ele”. Eu aceitei a situação, mas eu procurei evitar problemas pro
cara que acabou ficando preso cinco anos, pegou AIDS na cadeia e morreu. Foi
horrível pra mim, eu tive que ir mais de dez vezes na justiça, eu jovem, despreparada,
foi uma situação problemática.

240
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Para os propósitos desta pesquisa, é interessante observar o argumento do advogado:


“você é uma pessoa de família, universitária, aí você denuncia ele187”. A distinção
emblematizada por Blavatsky ser universitária, foi usada pelo advogado como uma
representação que não apenas poderia desqualificar a acusação de tráfico feita a
estudante, como também poderia reforçar a acusação sobre o traficante que era um
matuto que não possuía status universitário. Apesar do desfecho trágico da situação, o
sentimento de culpa de Blavatsky pela morte do fornecedor não foi convertido em
vergonha social, já que o caso foi abafado, e ela continuou sustentado seu consumo com
o tráfico, fortalecida e blindada pelo distintivo de ser universitária.

T.V. - Como é que era o consumo na faculdade nesse período?


Blavatsky - Eu estudava na (Universidade) Católica e meu apelido era “Berlota de
Ouro”, tinha uma quadra que a gente ficava fumando e quando as pessoas me viam
diziam: “lá vem o baseado da melhor chegando!”. A quadra não era quadra esportiva,
era a quadra comum dos maconheiros188 (risos), e iam pessoas de todos os cursos pra
lá.
T.V. - Você vendia na faculdade?
Blavatsky - Eu não chegava lá com uma mala, mas algumas pessoas que me pediam,
pra elas e eu sempre colocava como se tivesse conhecido alguém, e eu tivesse fazendo o
intermédio. Eu tinha mais de 10 clientes lá da faculdade. Ai eu já tava casada. Uma dos
motivos porque eu casei foi por isso, porque meus pais não aceitavam. Eu casei pra me
livrar de toda perseguição que eu tinha por ser usuária de maconha.

Se o seu casamento funcionou como mecanismo de defesa ante a família em relação


ao seu uso de maconha, a carreira de universitária serviu como camuflagem para o
tráfico de Blavatsky. Para manter seu estilo de vida era preciso também manter uma
estrutura de vida. Merece registro que Blavatsky buscou reduzir os riscos que sua
atividade comercial poderia acarretar, colocando-se ante os clientes, não como
traficante, mas como mera intermediária. Entretanto, não foi difícil perceber que o
status que sua atividade lhe proporcionou – a “Berlota de Ouro” com um “baseado da
melhor chegando”, - foi rememorado com vaidosa satisfação, manifesto com pulmões
cheios e um sorriso expressivo. Se num extremo os controles informais podem ser

187
- sua postura ética de incriminar terceiros para inocentar sua cliente, mereceria um outro debate.
188
- a mesma quadra que foi filmada e exibida no teleprograma Se liga Bocão!, (pg. 140).

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exercidos ativando a vergonha como mecanismo de autocontrole para que se evite


transformar em hábito uma atividade de risco, por outro, a satisfação obtida com o
status entre os pares foi motivacional para que Blavatsky perpetuasse tal hábito por
alguns semestres. Em situações como esta não são apenas o autofornecimento e o lucro
econômico que estão em jogo, como se percebe na seguinte resposta fornecida por um
usuário assumidamente traficante:

T.V. – Se você parar de traficar agora daria pra manter o padrão de vida?
Nietzsche - É difícil, tem um certo status também...

Quando eu cheguei ao local da entrevista com Nietzsche em seu apartamento, ele


estava despachando um cliente suíço que saiu com ares de desconfiança em função da
minha presença. Durante a entrevista, Nietzsche se ausentou por cinco longos minutos
para fazer uma entrega de cocaína para um policial civil, indicado como cliente por um
amigo. Ele voltou rindo e contando ter logo visto a arma do cara por baixo da camisa.
Abrindo uma garrafa de vinho Nietzsche até comentou que não se incomodava em ter
clientes policiais, pois estes passavam segurança.

T.V. – E como é fazer movimento (tráfico)?


Nietzsche - Surgiu desde que eu comecei a fazer uso de maconha, eu percebi que
não era interessante ficar entrando em boca toda hora, e pegava uma quantidadezinha,
200 gramas, 500 gramas, dividia entre os amigos meus, fumava uma coisa boa, sem
gastar dinheiro, e aí fui enveredando e aconteceu.
T.V. - Isso faz quanto tempo?
Nietzsche - Isso tem uns 12 anos. Parava, dava um tempo, voltava. Depois comecei
a vender também cocaína, visando obter um lucro pra poder dar um passo pra algum
lugar, e essa é minha meta.

Um começo de carreira no “movimento” parecido com o de Blavatsky, que também


não ia em boca e queria tirar o seu fumo sem ter que gastar. A categoria universitário-
traficante pode até ser aqui aplicada, mas em ambos os casos, o movimento de
comercialização começou antes dos dois ingressarem na universidade. A grande
diferença entre estes dois casos é que neste último a comercialização não se fechou em
torno da maconha e com isso os riscos e as possibilidades de lucro se tornaram maiores.

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T.V. - Você que até pouco tempo morava com sua família - ele se mudou uma
semana antes dessa entrevista - como é que você administra pra não entrar em
paranóia?
Nietzsche - Rapaz, é uma relação difícil pra porra! Administrar o usuário e o
comerciante, sabe? Tem que ser administrado com o máximo de frieza, o máximo de
cálculo. Nem sempre dá certo, às vezes você usa demais o que não pode usar, mas é
isso mesmo.
T.V. - E a questão da segurança já lhe deixou paranóico?
Nietzsche - Já sim! Não tem como não ficar paranóico, eu sou paranóico (risos). Cê
tem que se armar com todos os artifícios, cê tem que prestar atenção em todos os
detalhes porque o Diabo mora nos detalhes.

Outro ponto em comum entre Nietzsche e Blavatsky é que ao contrário do que pode
sugerir o status de ser traficante e apesar dos riscos corridos, ambos buscavam uma
relação com os clientes que não os reduzissem à condição de meros comerciantes, mas
que os situassem como indivíduos que fazem parte da comunidade e que também são
fornecedores, ressignificando assim a representação estabelecida do traficante como
comerciante insensível cujo foco é exclusivamente o lucro econômico:

T.V. - Você já teve problemas com clientes?


Nietzsche - Já, todo dia tem aqueles que ficam com raiva, querem romper comigo,
ameaçam.
T.V. - Você sente medo?
Nietzsche - Não sinto medo não, tenho que mostrar na boa que não é assim, tenho
muito problema com cliente que pede fiado, eu mesmo já fiz isso... já tomei muita
porrada, você só aprende tomando porrada. Eu falo delicadamente pra mostrar que
não é nada pessoal, é só business, amigos amigos, negócios à parte. Ao longo dos
tempos eu consegui fazer uma agenda bem seletiva, não atendo números estranhos,
sempre que eu compro chip novo, sai uma parte da agenda, eu procuro fazer essa
redução de possíveis danos.
T.V. - Na faculdade, a galera conhece esse seu lado do movimento?
Nietzsche - Conhece, e tiram partido disso também porque a intenção também é
essa, redução de danos, é não ter o contato com a criminalidade.

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Mesmo que possa ser interpretada como estratégia de marketing, essa é a visão que
Nietzsche sustenta como representação pública de sua atividade: além de uma margem
básica de lucro e status entre os pares, ele opera reduzindo os danos dos clientes por
evitar que estes tenham “contato com a criminalidade” das bocas-de-fumo. Essa
perspectiva de redução de danos, entretanto, não poderia ser aplicada a ele mesmo que
acaba sendo a conexão entre a marginalidade e a comunidade universitária, e esse é um
ponto levado em conta por sua namorada, que - como no caso da esposa de Pancho -
tem restrições ao seu arriscado estilo de vida, servindo-lhe até como referencial de
controle:

T.V. - Você já disse que seu foco tá no presente, mas você pensa em ter família,
filhos?
Nietzsche - Tenho planos sim, adoro dormir com uma costelinha do lado, tenho a
maior vontade de ser pai... eu tenho preferência por mulheres mais sossegadas, de
preferência usuárias eventuais, porra louca é foda! A atual é legal, trabalha, faz as
coisas dela. Ela tá doida pra que eu acabe com o movimento, tenho planos de parar
com isso até o final do verão, quem sabe?
T.V. - Se você “parar” agora daria pra manter o padrão de vida?
Nietzsche - É difícil, tem um certo status também, mas eu disse pra ela através de
música: “por você eu largo tudo/ carreira, dinheiro e canudo”, (risos), e eu tou com
outros projetos aí que vai dar poder estabilizar e manter o padrão, um projeto ligado a
música e a barzinho, barraca de praia.
T.V. - Como você administra seu tempo já que você tem o material a disposição,
você tem o controle da hora pra relaxar e da hora pra produzir?
Nietzsche - Tenho que ter, tem o momento que você tá usando e que você não
consegue fazer nada, nem vender, o celular tem que ficar em off, é melhor porque tem
dias que o celular não pára. Outro dia eu dei um grito no ônibus, eu recebi 20 ligações
em meia-hora, um engarrafamento da porra...

Nietzsche como um hedonista contemporâneo, quer viver o presente sem fechar as


portas para o futuro, quer ter liberdade para escolher suas estratégias de segurança, e
quer desfrutar dessa segurança para usufruir da sua busca por liberdade. Mas o preço ele
já paga no presente, quando o toque do telefone pode tirá-lo do sério. Se o stress que
acompanha o risco do tráfico é proporcional ao tempo de envolvimento com o mesmo,

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torna-se compreensível que outros usuários que já fizeram algum tráfico esporádico
tenham motivos para se mostrarem tão tranquilos, agora que olham para esse tempo
enfocando-o como um passado distante:

Leila Diniz - Eu ganhei algum dinheiro quando eu comecei a morar fora vendendo
ácido. Ganhava alguns ácidos e vendia. Dois ácidos na época, R$ 120,00, era metade
do aluguel. Eu pegava seis ácidos vendia cinco, tirava dinheiro e ainda ficava com o
meu pra ir pruma festa. Maconha eu geralmente comprava 250 gramas, vendia metade,
aí pagava a minha maconha e ficava com o resto.

Mozart - Já fui em boca, já peguei quilo, já vendi quilo, hoje não faço mais isso de
jeito nenhum. Já fui pro Rio, pra SP vender, não faço mais isso.
T.V. - e como é que foi isso?
Mozart - Ia vender um quilo encomendado, de busu189. Não quero nem me lembrar,
é foda! O que você vai sofrer se pegarem... Embalados em folha de dendê, eu botava na
bagagem dos outros. Fiz isso umas três vezes. Eu preferia pegar menos, vendia pros
amigos e tirava o meu pra consumir. Eu tinha 25 anos.

Se nesse último relato chamam a atenção tanto o intenso risco de tal empreitada
quanto a estratégia defensiva de Mozart - colocar o flagrante na bagagem dos outros -,
também deve ser relevante a justificativa para este envolvimento com o risco do tráfico:
“Eu tinha 25 anos”. Nesse sentido, vale também ressaltar que este interlocutor foi o que
entrou na universidade em idade mais tardia, 31 anos, quando os riscos da juventude
não o seduziam mais. No seu ponto de vista, a carreira universitária se tornou sedutora
em função de que: “É outra viagem com essa idade”. Aos 25 anos de idade Mozart
ainda não havia sido “civilizado” pelos controles informais, e em retrospecto, quando
ele recorda esse período de tráfico, seus olhos se arregalam enquanto leva as mãos à
cabeça como se para evitar que ela caísse. Agora que Mozart é universitário e pai, ele
civilizadamente tem muito mais interesse em que a maconha seja descriminalizada para
que nem como consumidor ele esteja exposto a riscos.
Em números relativos, 91% da população de interlocutores acreditam que a
descriminalização é uma estratégia que deve ser implementada enquanto parte de uma

189
- busu = ônibus.

245
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política pública voltada para a redução de riscos dos usuários. Em meio a uma
população total de 22 pessoas, apenas um interlocutor se absteve de opinar a respeito,
enquanto um outro se manifestou em sentido contrário a descriminalização:

T.V. - Como você vê descriminalização, legalização e proibição das drogas?


Khrisnamurti - Eu penso que elas têm que ser... (pausa longa) eliminadas,
eliminadas. Porque tudo que a gente vê em relação a tráfico, a favela dominando a
cidade por causa do dinheiro, a política praticamente toda envolvida, é que aí acontece
a corrupção.
T.V. - E você acha possível eliminar as drogas?
Krishnamurti - Não, eu tenho uma visão de que aqui na Terra o que domina mesmo
é a força negativa. Eu acho que não chega esse dia não.
T.V. - Qual a alternativa?
Krishnamurti - Na Europa, por exemplo, há um povo que tem nível cultural e
intelectual mais elevado do que o do brasileiro, lá você conscientiza o povo pra você
liberar, legalizar, aqui no Brasil é um troço mais difícil. O tráfico é o que traz
corrupção para o nosso Brasil.
T.V. - Hoje você ainda tem contato com pessoas que usam drogas?
Krishnamurti - Tenho.
T.V. - Como é que é essa relação? Com que olhos você olha pra essas pessoas?
Krishnamurti - Eu não tenho nenhum preconceito, eu não tenho nem o hábito de
falar: isso tá certo, isso tá errado! A não ser que a pessoa queira algum conselho, aí eu
posso orientar alguma coisa. Acho que cada um tem que cuidar da sua vida.

Se nessa última sentença Krishnamurti se disse sem preconceitos com o usuário, lá


no começo ele se mostrou extremamente adverso às drogas, o que não é
necessariamente uma contradição, pois a “força negativa” a qual também se refere, pode
estar sendo representada pelas drogas e não pelos usuários que acabam sendo suas
“vítimas”. Por esta perspectiva, as drogas reencantam o mal enquanto – como ele disse
anteriormente - o enteógeno como força positiva reencanta o bem190. A força negativa
atribuída às drogas ganha tamanha dimensão que, nessa interpretação da configuração
sociocultural brasileira, o tráfico não é consequência da corrupção, pelo contrário, é o

190
- é possível perceber que o reencantamento em torno da cultura das drogas ganha interpretações
maniqueístas.

246
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tráfico que conduz a corrupção. Se da população de interlocutores apenas um não


formulou maiores reflexões a respeito, o restante sustenta pontos de vista bem
diferenciados do apresentado por Krishnamurti.

Buda - Eu sou a favor da legalização, acho que a maconha precisa ser legalizada,
dentro de uma regulamentação seria, em que ela vai ser vendida somente em locais
autorizados. O consumo não vai ser no meio da rua, as pessoas vão poder consumir só
em suas casas, mas passos precisam ser dados, e o primeiro passo é a
descriminalização. Acho que os usuários têm direito de plantar. Os maiores danos
causados pela maconha são danos causados pela proibição dela, porque você consome
substâncias de péssima qualidade, você é sujeito a riscos quando vai adquirir a
substância e você é tido como criminoso.
T.V. - E em relação às outras drogas ilícitas?
Buda - Olha é complicado porque todas as drogas carregam a cultura da droga, o
que foi consumido por grupos sociais associados a histórias e a personagens, como fica
no imaginário de cada pessoa sobre o que cada droga causa, então fica difícil se
comunicar com a sociedade como um todo sobre as drogas. No caso da maconha eu
acho que já existe uma comunicação em todas as classes sociais independente do nível
cultural, do nível do acesso a educação, as pessoas sabem, gerações de pais já
consumiram. Mas eu acho complicado discutir a legalização de drogas sintéticas
porque tem muita gente que não sabe nem o que é, o que causa. Eu acho que isto tem
que ser visto a nível de saúde pública, no sentido de ver o que vai fazer pra abrigar
esses usuários, pra mim essa é a questão fundamental. Reconhecer que os usuários
existem, porque as substâncias são consumidas, sempre foram e sempre serão. O
sistema de saúde tem que acolher essas pessoas que tem problemas e algumas
necessidades.

Os aspectos básicos aqui apontados pela argumentação de Buda giram em torno dos
riscos vividos pelos consumidores em decorrência da proibição como sendo os maiores
danos à saúde. Buda acredita que é preciso contextualizar as culturas das drogas antes
de colocar maconha e êxtase lado a lado, pois na prática, uma descriminalização geral
sem enfatizar a reflexão sobre as diferentes drogas e seus distintos sets e settings se
enquadraria numa perspectiva multiculturalista, o que acaba sendo muito mais propício
à propagação da cultura de consumo do que para a saúde do consumidor.

247
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T.V. - Descriminalizar ou manter como está?


Mata Hari - Eu ainda tenho algumas dúvidas quanto a isso, mas o consumo de
drogas quando é problema, é uma questão de saúde e não uma questão criminal.
Diminuir o tráfico ia resolver o problema de violência que rola hoje. A sociedade devia
se preocupar em ser mais realista. Existe consumo, sempre vai existir consumo, é muito
melhor informar, educar e tratar. Eu sou a favor de uma descriminalização gradual,
muito bem pensada, começando pela maconha e partindo pra outras drogas. Quem tem
dinheiro, usa. Se você tem dinheiro, droga você vai achar.

“Se você tem dinheiro, droga você vai achar”, eis a lógica da cultura de consumo!
Um problema implícito a esse raciocínio é que quem não tem dinheiro também vai
desejar consumir, e aí se configura um conflito de interesses que faz do tráfico e da
violência fenômenos estruturados na cultura de consumo e não à parte, como se
excluídos incondicionalmente. Diante da remota possibilidade da erradicação das
drogas, parece claro para Mata que a redução de riscos básicos está na redução da
violência; seja a violência física diretamente ligada ao tráfico, seja violência psicológica
ao tratar o que pode ser um problema de saúde como um problema criminal.

Tutancamon - Eu penso que as drogas devam ser descriminalizadas, e até apóio


isso, não necessariamente arregaçar tudo, mas, por exemplo, uma droga que eu vejo
que é menos problemática e é mais popular, a maconha. A gente já tem experiências
internacionais que mostram que isso não vai transtornar a cabeça das pessoas, e vai
tirar esse ranço que a gente carrega de muito tempo que não tem nem por que. Eu
lembro que eu assisti um filme sobre a história da maconha pela Superinteressante191,
eu não sei há quanto tempo atrás (a maconha) era vista como coisa de outro mundo.

Sim, a reflexão de Tutancamon é pertinente num recorte histórico de curta duração,


mas se há cerca de 70 anos atrás a maconha passou a ser representada como “coisa de
outro mundo”, vale lembrar que cerca de um século antes daquele período, a cannabis
era vista como um dos produtos mais naturais deste mundo. Em 2009, só no Brasil, a
ONU estima que haja cerca de 3 milhões de pessoas que consumiram/consomem a erva.
Numa biblioteca, escutei uma estudante usuária comentando com uma colega não

191
- Maconha/Grass (MANN:1999), o filme proibido para os universitários da UFMG.

248
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usuária sobre a descriminalização: “Uma economista disse que se durante muito tempo
muitas pessoas infringem uma lei, esta lei deve ser revista”. A conversa entre ambas
ficou nesse ponto, e, enquanto a revisão da lei está sendo negociada num processo que
nem sempre pode ser percebido como civilizado, Tutancamon se equivoca ao concluir
que não há um porquê para que se carregue esse ranço estigmatizante sobre a maconha.
Se ele assistir o filme Grass com mais atenção, ele poderá perceber porque.
No que diz respeito ao consumidor universitário, hoje em dia há uma representação
dominante ligando seu consumo, não só de maconha, mas de drogas em geral, à
individualização excessiva (Lipovetsky:2005,2006), ao descompromisso com questões
sociais. Entretanto, esta representação não condiz com a realidade dos interlocutores, já
que 18% deles estão envolvidos com pesquisas acadêmicas relacionadas ao consumo de
drogas, e 32% estão envolvidos com redução de danos e ativismo. Num recorte
reflexivo, mesmo os que não se envolvem especificamente com a temática estão
preocupados com os consumidores economicamente excluídos e os estigmas que os
cercam, não por uma perspectiva moral, mas sim por uma perspectiva pragmática:

T.V. - O que você pensa sobre descriminalização, liberação?


Mozart - Na periferia, a galera que passa tóxico e por causa disso rouba e mata é
uma minoria. Na periferia às vezes as pessoas que tão usando drogas é pra fugir
daquela realidade que tá ali. Queira ou não queira, o primeiro contato que ali você tem
com a droga é de fuga da realidade. Mas por outro lado se você não oferecer outra
realidade pra essa galera, outro prazer, eles não têm espaço de prazer. Eu quando ia
dar aula em escola pública via que eles não têm espaço.

Nessa passagem, Mozart está se referindo à necessidade que as pessoas têm de


usufruir das representações que acontecem nas esferas miméticas, principalmente
quando se encontram em situação de pobreza econômica. Em seu papel de educador, ele
constata que a periferia é retratada de modo estigmatizado, e que a violência nela
projetada não é consensual na comunidade. O significado mais adequado aqui para
“fuga da realidade” é que uma comunidade pobre que não tem pão possivelmente vai
precisar de “algum tipo” de circo para sobreviver.

Da Vinci - É mais fácil controlar descriminalizando.


T.V. - Por quê?

249
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Da Vinci - Porque você conseguiria dar uma finalidade pra esse dinheiro (gasto
para manter o proibicionismo), ser investido no social. Esse poderia ser um dos passos,
investir em segurança pública...

Lampião - Não acho que o Estado tem que agir de maneira punitiva, tem que agir de
maneira preventiva e educativa. Não só pela mudança da lei, mas pela derrubada de
mitos sobre psicoativos pra sociedade como um todo. Resolveria o controle sobre a
mercadoria, passaria a não ser mais mercadoria contrabandeada nem ilegal, levando
às esferas legais o conseguir e o consumir, livrando da marginalização que envolve o
uso e até quem não consome, mas tá vendendo. Polícia sobe o morro atrás de
traficante, mas quem tá por trás deles são políticos.

Oscar Wilde - Eu acredito na regulamentação do consumo, porque a legalização


implica numa produção em grande escala, em tributação, o que eu acho bastante
importante, porque você abre a possibilidade de um controle de qualidade e tira uma
série de pessoas da ilegalidade. Mas esse é um passo que eu não sei se haveria
estruturas pra regimentar, até existem estruturas pra combater isso. O primeiro passo é
a descriminalização que já é um passo iniciado, o segundo passo é a regulamentação
do autoconsumo. Porque a cocaína já foi vendida em farmácias, a heroína também. No
caso da cannabis a regulamentação do autocultivo já seria um passo enorme,
reduzindo a articulação do tráfico, que se arma porque a polícia vai lá com armas pra
matar a eles, então ele tem que se armar, a lógica é essa, então você começa a
desarticular isso. A gente sabe do lobby das indústrias farmacêuticas que não têm
interesse em descriminalizar.

Lampião fala em “derrubada de mitos sobre psicoativos” como algo tão ou mais
importante do que mudança de leis, pois enquanto representações os mitos podem ser
dispositivos de controle mais fortes e rígidos do que as próprias leis. Além disso, ele
sinaliza que o traficante do morro não é o ponto inicial da cadeia criminosa, é apenas
um elo. Já a reflexão de Oscar põe em perspectiva uma articulação mercadológica
complexa na qual o tráfico e a indústria farmacêutica não são fenômenos desconectados.
Ambos os interlocutores insistem na reflexão de que o risco maior é não reconhecer que
a ilegalidade gera mais dificuldades para que os controles formais sejam
suficientemente eficazes.

250
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T.V. - Você já pensou em uma alternativa para o consumo que não o tráfico
convencional?
Hofmann - Complexa é a lei que não permite ainda a produção. Porque
conhecimento, principalmente na área de saúde, se tem, para a produção de qualquer
uma dessas substâncias, seja natural ou sintética. Existem alguns produtos que são
controlados exatamente pelo processo de fabricação ser proibido. Eu acredito que o
governo deveria prover meios alternativos para a compra de substâncias, uma vez que
já foi decretada em 2006, a descriminalização. Como pode o consumo deixar de ser
crime e ainda assim a compra e a venda serem crime? Como vai o usuário adquirir
essas substâncias? Onde está o governo, já que não quer o tráfico para fornecer, nem
que seja cobrando uma taxa? Se ele não pode assumir não pode deixar na mão daquele
que só tem interesse financeiro. Então ele não pode privar você, que não tem interesse
de se envolver nem com o governo, nem com interesse do traficante, nem com a
produção da substância. Tem que se propor uma outra lei!
Acho que se deveria, sim, propor medidas novas de como gerenciar isso, uma vez
que o governo dá um passo pra frente e dois pra trás. A gente vai acabar indo pra lugar
nenhum, com um regime mais totalitarista ainda, porque estamos num momento tão
complexo que já tamos voltando ao discurso de proibir o tabaco, o álcool, e tentar
controlar o consumo de substâncias psicoativas da população. Agora é tarja preta e
não mais vermelha, a retenção da receita na farmácia. Na verdade é uma política
liberal que tem uma máscara de uma política proibitiva. E não que eu seja a favor do
álcool, porque eu particularmente sou contra, sou a favor da lei seca em função dos
acidentes que ocorrem, e não fumo tabaco, mas gostaria de assegurar o direito de
usuários de álcool e tabaco de usarem as substâncias deles.

Hofmann fala em uma “política liberal que tem uma máscara de uma política
proibitiva”, caracterizando um dispositivo de controle através do qual parece que o
consumo de drogas está sendo combatido, mas está sendo apenas ressignificado.
Hofmann poderia ficar calmamente no seu apartamento de cobertura colhendo os frutos
de sua plantação de skank, mas prefere arriscar alguma inquietação reflexiva. Ele parte
do ponto de vista jurídico ao afirmar que o governo “não pode privar você” de suas
demandas de consumo. “a retenção da receita na farmácia” é o ônus da prova de que o
governo não priva você, apenas lhe reclassifica de consumidor para cliente de um
sistema especialista, o sistema médico. Pondo esta reflexão em diálogo com o que disse

251
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Oscar anteriormente, “A gente sabe do lobby das indústrias farmacêuticas que não têm
interesse em descriminalizar”, fica configurado o atual mapa do consumo. Os que
dispõem de dinheiro podem se tornar os clientes com receitas para adquirir
benzodiazepínicos e antidepressivos, enquanto os excluídos do mercado econômico ou
outsiders às configurações culturais dominantes correm o risco de serem representados
como falhos, por consumir crack ou maconha.

Salomé - Acho que descriminalizar a maconha seria importantíssimo, tanto na


questão da segurança quanto na questão da saúde. É uma questão urgente, tem
semelhanças com a questão do aborto, não adianta proibir e fingir que isso não
acontece. É uma problemática cultural, moral e não tem nada a ver com uma
observação empírica, científica.
T.V. - E em relação a outras drogas como crack e cocaína?
Salomé - Eu acho que é mais complicado. No caso da cocaína numa festa outro dia,
me lembro que houve uma briga por causa de cocaína e eram amigos e fazem tudo
junto e tavam brigando por isso. Que alguém tinha cheirado mais carreira do que outro
alguém, e quem cheirou mais foi a pessoa que deu menos dinheiro. Rolou um clima
barrapesada. E o crack, tive um colega da graduação que tava usando e as pessoas se
preocupavam, eu não sei como ele conseguiu sair, mas ele saiu. Do que eu vi é o mais
degradante.

No caso da cocaína e do seu derivado, o crack, foram registrados os maiores índices


de rejeição ou no mínimo de suspeição, entre os interlocutores, (50%). A cocaína é uma
droga que é consumida por alguns, mas é considerada por todos como portadora de
grande potencial para gerar danos sociais, seja em relação à saúde ou principalmente em
relação às tensões que pode favorecer entre os consumidores. Nesse ponto, a sua
aquisição, por ser um bem de consumo relativamente caro, é potencialmente
problemática.
Em relação à maconha, há um consenso entre os interlocutores de ser esta a “menos
problemática” para a saúde entre as drogas ilícitas, e que os esforços pela
descriminalização devem começar por ela. Então, o que tem sido feito nesse sentido?

252
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4.3 - Os metaespecialistas entram em cena

Um bom exemplo na luta antiproibicionista é representado pela ANANDA que é um


coletivo formado por pesquisadores e redutores de danos, como também por ativistas. A
origem do coletivo se deu em meio à cultura universitária soteropolitana, mas seu
campo de ação não se fechou nesse setting, na busca por estabelecer um contato
frequente com a sociedade civil. Quando surgiu em 2007, a meta da comunidade era
quase que exclusivamente pesquisar os usos psicoativos e não psicoativos da cannabis.
Em função das proibições da Marcha da Maconha192 nos anos seguintes, quando
inclusive, em decorrência de uma liminar do Ministério Público, foi instaurado inquérito
policial para averiguar se integrantes do coletivo estavam fazendo apologia e
estabelecendo associação com o tráfico, a ANANDA passou, em 2009, a abraçar em sua
configuração, também ativistas e redutores de danos, resultando num coletivo que
objetiva, inicialmente, desenvolver uma cultura positiva dos usos da maconha. Essa
busca por dessestigmatização da cultura da maconha é perspectivada pelo coletivo como
um processo de reparação de “um erro histórico”, o proibicionismo.
Se as carteiras de estudante de muitos dos membros da ANANDA são insuficientes
para garantir que o movimento não seja representado de maneira estigmatizada, a
penetração dessa comunidade para além dos espaços estudantis tem sido intensificada
desde que a proibição da Marcha da Maconha em Salvador pelo segundo ano
consecutivo tornou-se um marco emblemático na reflexão e ação sobre a problemática
contemporânea das drogas. Vetar o direito à livre expressão dos contrários à
criminalização da maconha com o argumento de que tal manifestação pública é
apologética de comportamento criminoso, e que, sua propagação deveria ser restrita ao
âmbito acadêmico, acabou caracterizando a academia como um espaço de pouco
contato com a sociedade civil, fechado sobre si, onde tal discussão não geraria
“contágio” reflexivo nos valores vigentes. No sentido contrário, buscando extrapolar os
limites do âmbito universitário, a ANANDA passou a formatar seu espaço, muito mais
em direção ao ativismo e à redução dos danos propiciados pela proibição - prática que a
pôs em contato com a sociedade civil -, do que à pesquisa - prática que poderia confiná-
la no espaço acadêmico - operando um modelo de política estudantil contemporânea na
qual o contato com as contingências do cotidiano sustentam sua própria configuração.

192
- marcha que desde 1994 já aconteceu anualmente em mais de 200 cidades espalhadas pelo mundo.

253
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Essa iniciativa demandou um grau de confiança e organização comunitária que


resultou na operacionalização de um blog como ferramenta de comunicação. Neste blog
podem ser encontrados, além de debates de questões urgentes, como a agressão que um
dos integrantes do coletivo sofreu por parte da polícia civil ao ser flagrado portando
dois baseados, links que permitem acessar centros de atenção, defensoria pública, leis,
pesquisas, entrevistas e eventos sobre a temática das drogas. Justamente num momento
histórico em que várias minorias consolidam o direito de assumirem vozes públicas193,
as vozes emitidas pela cultura positiva da maconha – e que muitas vezes são vozes que
passam ao largo das universidades, daí a preocupação do coletivo com a “inclusividade”
dos excluídos - encontraram um veículo legítimo e instrumentalizado para clamar por
seu direito a inclusão. A respeito da necessidade manifesta neste movimento de
configurar uma representação de inclusão dos usuários à cidadania e mesmo à cultura de
consumo, um dos interlocutores que é simpatizante do coletivo, já havia sinalizado:

T.V. - como você vê a proibição da Marcha?


Oscar Wilde - é o segundo ano que eu acompanho de perto e mais uma vez é algo
que fere a liberdade de expressão, de livre manifestação. Pega-se a lei e interpreta-se
ela de acordo com os argumentos que são mais cabíveis aos propósitos. A Marcha
cumpre o papel dela mesmo não rolando, porque essa discussão já estourou na mídia.

O que o coletivo traz para o primeiro plano da discussão é que já não há mais
legitimidade para que uma interpretação sobre as leis e a representabilidade de hábitos
“de acordo com os argumentos que são mais cabíveis aos propósitos” de uma
comunidade com interesses contrários à questão, seja estabelecida como a Verdade
histórica. Em seu ponto de vista é aí que se encontra o erro histórico. Os integrantes da
ANANDA também perceberam que a marcha já cumpriu seu papel, pois mesmo tendo
sua data de realização procrastinada, a reflexividade em torno de sua proposta se
consolidou em escala mais ampla do que a originalmente objetivada; algumas pessoas
que não participam da cultura da maconha passaram a respeitar o movimento por não
concordarem com a demonização de um debate público sobre uma questão considerada
de interesse geral.

193
- a Parada Gay e a Parada do Orgulho Louco já foram incluídos nos calendários culturais da cidade.

254
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A Marcha da Maconha 2009 foi proibida de ocorrer na data original após a Justiça
acatar uma liminar do Ministério Público. O coletivo adiou o evento e nesse ínterim
entrou com recurso jurídico. A ANANDA foi às ruas duas vezes para se manifestar
contra a proibição de se expressar peripateticamente em marcha – assim, se manifestou
parada num ponto central da cidade, para não caracterizar a Marcha. Desse modo, o
coletivo conseguiu realizar uma boa troca de informações com a população em trânsito,
mesmo sendo observada pelos olhos de alguns agentes da Polícia Civil – que realizou
algumas detenções, mas não de membros do coletivo. Estes últimos exercitaram um
certo toque de dramaticidade mimética que chamou a atenção de muitos transeuntes:

01/05 - www.marchadamaconha.org
“Portando cartazes, faixas de protesto e usando mordaças e panos pretos
para lembrar o luto pela democracia, os ativistas da Ananda estiveram hoje,
no Farol da Barra, manifestando-se contra a decisão judicial que impediu a
realização da Marcha da Maconha”.

Nesse toque de dramaticidade emblematizado por algumas “interrogações


questionadoras” fincadas no chão do Farol da Barra e por outras tantas pintadas nas
camisetas dos participantes do coletivo, e principalmente, pelas mordaças
autoexplicativas usadas, encontra-se o diferencial em relação às antigas manifestações
públicas majoritariamente estudantis. Na presente configuração, a reflexão operada pelo
grupo foi lúdica; bocas amordaçadas têm potencial simbólico para falar muito mais alto
do que vozes em uníssono entoando palavras de ordem. A representação mimética foi
incorporada ao referencial de ferramentas que o grupo dispôs para dialogar com a
sociedade que entende a “lei da mordaça” por experiências próprias. E essa forma de
manifestação chamou a atenção de muitos transeuntes que se aproximaram e foram
informados do que se tratava. Há de se ressaltar que essa intervenção se configurou em
torno das contingências, pois o espírito original a ser evocado para a marcha era mais
tragicômico. Dois dias antes da proibição um possível participante traçava seus planos:

T.V. - você participaria da marcha da maconha?


Pasolini - eu já fui convidado (risos), por um amigo, eu vou usar a máscara de
Michael Phelps (mais risos).

255
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Usar a máscara de Phelps194 ou de qualquer outra celebridade não significa que os


participantes do coletivo evitem o comprometimento da imagem para não porem em
risco a própria segurança. Em 21/07/09 um e-mail circulou em algumas listas da rede
mundial com as quais o coletivo mantém contato:

Não somos anônimos, Somos a ANANDA


“Os integrantes da Ananda gostariam de deixar claro que de forma alguma
têm procurado o anonimato como forma de escapar à qualquer
responsabilidade. Muito pelo contrário, procuramos desde o princípio expor
às claras nosso trabalho... o que não podemos admitir é que mesmo
mantendo nossos trabalhos, objetivos e formas de atuação às claras, sejamos
acusados de envolvimento com atividades clandestinas ou criminosas.
Nosso trabalho é sério e gostaríamos de ter o mesmo nível de respeito
dedicado à outras instituições que, como nós, são reconhecidas
publicamente por também fazerem trabalhos relevantes nessa área
temática.”

Sem receio de sofrer retaliações ao expor seus membros, a ANANDA realiza uma
abertura ao debate com vários setores da sociedade. O coletivo busca interfaces com
órgãos oficiais, como a Instituição Fátima Cavalcanti de Redução de Danos, o CETAD
e o GIESP, sendo que este forneceu apoio financeiro e jurídico às Marchas. Além disso,
a ANANDA195 cujos membros circulam em vários setores do universo acadêmico
estabelecendo uma rede de informações em vários campos, configura a categoria
metaespecilistas196. Estes metaespecialistas na cultura das drogas buscam a superação
de reflexividades que se tornaram obsoletas quanto aos sentidos e às representações
sociais em curso, representações muitas vezes estabelecidas por especialistas que ao não
estabelecerem contato direto com esta cultura, apenas com suas consequências
negativas, operaram simplificações do fenômeno enquanto dinâmica cultural.
A estratégia dos metaespecialistas aqui focados é significar a problemática em torno
do consumo como uma questão política, e não apenas deslocá-la do campo
jurídicopolicial para o campo da saúde. As ações do coletivo não são realizadas sem
prévias pesquisas sobre leis, efeitos das substâncias nos organismos e no
comportamento social, lucratividade do mercado, etc. Desse modo, seus integrantes são
194
- nadador norte-americano recordista olímpico com 8 medalhas de ouro em Pequim 2008 que foi
fotografado fumando maconha numa festa na Universidade da Carolina do Sul (EUA), três meses após os
jogos olímpicos.
195
- observe-se que na enunciação desta segunda fase da ANANDA - agora a identificação completa é
ANANDA: Ativistas, Redutores de Danos e Pesquisadores Associados - os pesquisadores é que passam a
ser associados aos ativistas e aos redutores de danos.
196
- metaespecialistas enquanto categoria é uma tentativa de superação do sistema especialista
giddesiano. Nesse sentido, o metaespecialista visa estabelecer um paradigma que supere os precedentes.

256
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sujeitos reflexivos com potencial para construir e divulgar dados que de outra forma não
chegariam aos que não estão em salas de aula. Para refletir de modo engajado sobre os
efeitos deletérios dos controles sociais proibicionistas, o coletivo necessitou configurar
um corpo de conhecimentos que pudesse fazer frente às representações dos especialistas
ortodoxos; assim a comunidade é formada por estudantes de psicologia, direito,
antropologia, história, comunicação, medicina e biologia numa proposta transdisciplinar.
Mas apenas metaespecialistas não são suficientes para que a comunidade seja uma
legítima representação do social. O perfil diversificado dos integrantes do coletivo é
bem heterogêneo, pois além de estudantes, entre os ativistas e redutores de danos são
encontrados também artistas e artesãos, o que facilita a criação de algumas oficinas que
preparam o material para os eventos: faixas, cartazes, máscaras e outros materiais. Essas
produções coletivas favorecem que a interação e confiança do grupo não se restrinjam
apenas à realização da Marcha da Maconha e encontros formais. Cada um e todos
querem levar esta atividade reflexiva para seus campos de atuação pessoal. Os
integrantes se mostram entusiasmados com a receptividade e se percebe que a
comunidade encontrou uma outra possibilidade de construir satisfação coletiva ao
ressignificar a cultura das drogas, que assim deixa de ser apenas uma cultura recreativa
e passa a ser uma cultura política com potencial para desestigmatizar um estilo de vida
que até pouco tempo atrás seria publicamente representado como o fim de muitas
carreiras universitárias.
Apesar da receptividade e mesmo de uma maior aproximação dialógica entre os
ativistas e alguns membros da polícia civil em contato mais constante, os riscos ainda
estão presentes, pelo menos no set de alguns integrantes. A referência evocada no
coletivo foi o caso do ativista Aldo Bianzino que em 2007 faleceu na Itália em
circunstâncias não esclarecidas, após ser detido e conduzido a uma delegacia por
cultivar plantas de maconha com a finalidade de realizar pesquisa e produção de
medicamentos. Embora as detenções que aconteceram no Farol da Barra não tenham
sido acompanhadas de violência física, o fantasma dos controles formais inflexíveis
ainda está presente. Se na prática a redução de danos só configura sentido para os
envolvidos depois que alguns danos são vividos, a galera do coletivo legitima seu
direito à segurança reduzindo os riscos de forma preventiva197. Em todos os eventos ou

197
- e por falar em segurança, vale destacar que mais uma vez o pesquisador aqui foi lembrado de que não
era 100% nativo. Após participar de uma reunião do coletivo, foi levantada a suspeita de que ele gravou o
encontro sem autorização, por portar um aparelho de mp3 na cintura...

257
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reuniões, os participantes - membros do coletivo ou não - são instruídos a não portar


nenhuma substância. Diferentemente do estudante que me indagou se no curso que eu
estava ministrando sobre drogas, era um lugar pra fumar (pg.139), os integrantes do
coletivo elaboram rituais e sanções sobre os seus consumos de forma a não perder os
controles informais sobre a situação.
Nessa busca por uma interpenetração segura com a sociedade civil, a ANANDA vai
sendo configurada não como uma comunidade à parte, mas como uma organização
comunitária reflexivamente incluída, inclusiva e participativa. Assim, o que está em
jogo é uma proposta mais ousada do que, por exemplo, a proposta da tribo da cena
eletrônica cujo objetivo está fixado na configuração de Zonas Autônomas Temporárias.
Na prática, O coletivo ANANDA busca Zonas Interativas Permanentes que garantam a
possibilidade de desfrutar de valores culturais alternativos aos estabelecidos, não
durante horas ou dias, mas por tempo indeterminado.
Configurando a questão política do consumo de drogas numa perspectiva nacional,
este coletivo é apenas mais uma das comunidades que se organizam na luta ao redor de
uma cultura positiva das drogas, e nessa configuração mais ampla, as relações de poder
intercomunitárias correm o risco de reproduzir as próprias estruturas que se propõem a
combater. Essa é uma interpretação possível para um e-mail aberto enviado por um dos
organizadores da ANANDA em 12/07/09 para um interlocutor externo à comunidade:

a existência das tensões de certa parte do grupo que se auto-


denomina "Coletivo Nacional".... pessoas que saem por aí se auto-
denominando Coordenadores e Advogado da Marcha, como se
fossem representantes de pessoas que não só não precisam como não
querem ser representadas por outros... Todos nós sabemos dos
perigos de pessoas saírem por aí dizendo que representam a Redução
de danos no país, ou os usuários de drogas, seja aqui dentro ou lá
fora, em outros países.

“Coordenadores e advogados” à parte, a ANANDA sugere a descentralização não


apenas das representações configuradas em torno do poder estabelecido como também
das ações das comunidades antiproibicionistas. Em outro e-mail remetido para uma
lista de pesquisadores, o coletivo propõe que ao invés de “engessar” o movimento
centralizando sua representação em uma liderança ou outra, que comece a haver um
maior contato entre acadêmicos e ativistas, entre pesquisadores e redutores de danos em
várias cidades do país. A lista que o coletivo fornece engloba contatos a serem feitos
em Americana, Fortaleza, Brasília, Florianópolis, Rio de Janeiro, Aracaju, João

258
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Pessoa, Cuiabá, Natal e Manaus. Segundo a mensagem, o elo de ligação entre os


ativistas locados nestas cidades e os pesquisadores contatados é que, como muitos
ativistas são estudantes e muitos dos pesquisadores estão envolvidos com a docência, “é
possível que muitos deles já tenham sido seus alunos”.
Em setembro de 2009 o coletivo guardou uma grande vitória no currículo quando foi
concedido um Habeas Corpus que garantiu segurança judicial para a realização da
marcha. No dia 05 de dezembro de 2009 a Marcha da Maconha aconteceu. Em torno de
mil pessoas estiveram presentes na manifestação, pessoas de setores distintos da
sociedade – além de estudantes e professores, puderam ser identificados médicos,
artistas, jornalistas e uma simpática Mãe de Santo à frente do cortejo devidamente
trajada. Como uma sorridente porta-bandeira ela carregava um cartaz com os dizeres:
“Contra a criminalização do usuário da maconha”198. Entre as pessoas que passavam
pelo Farol da Barra naquela tarde de sábado muitas aderiram perpetuando uma
representatividade heterogênea para o evento. O transito parou de circular por quase
uma hora, mas foi perceptível que os motoristas e passageiros não manifestaram
maiores irritações. Alguns de dentro dos carros e ônibus sorriam e até cantavam em tom
de brincadeira, as músicas que os integrantes da marcha cantavam – sou maconheiro/
com muito amoooor/ foi o refrão mais entoado. Alguns liam os panfletos distribuídos
com surpresa, outros com ampla receptividade, mas não foram percebidas hostilizações
à manifestação. O mais curioso é que os policiais enquanto agentes de controle
formais não foram vistos na área - claro que meus olhos não são os mais treinados para
perceber quem não quer ser percebido – mas isso não provocou pânico entre os
transeuntes nem entre os motoristas que foram suficientemente pacientes para não
buzinarem evitando poluição sonora no bairro.
A organização da marcha foi eficiente para não perturbar a ordem municipal – o
carro de som se manteve emitindo um volume de decibéis tolerável - principalmente por
que um dos mecanismos de controle propostos era que portar e usar drogas durante a
manifestação seria contrário aos objetivos em pauta e esse item foi facilmente mantido,
a não ser por um baseado que foi aceso por alguns artesãos que já estavam no local e se
incorporaram ao movimento, mas foram rapidamente avisados pelos manifestantes da
inviabilidade do ato. Os próprios manifestantes acabaram sendo os agentes de controle

198
- de acordo com um dos organizadores da Marcha: “o lance da Mãe-de-Santo foi algo muito louco. Ela
é quem nos procurou, perguntando se poderia ir na Marcha. Me mandou um e-mail! eu disse que é claro,
iríamos adorar, e ela pareceu com os netinhos, a placa já pronta e toda vestida de baiana, inclusive com os
detalhes verdes. Ela disse que não é usuária mas o filho é, e ela não quer que ele morra por isso”.

259
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responsáveis pela segurança do evento. Um dos organizadores depois me informou


sobre a ausência dos agentes de controle formais:

“haviam poucos disfarçados, que eu saquei, mas a estratégia do governo foi


justamente não mandar a PM, nem o juizado, nem a Transalvador nem a
Civil, pra ver se nós íamos saber fazer o lance ou se ia dar merda.
O legal é que foi mais lindo ainda sem eles, demonstrando uma boa
capacidade dos maconheiros de se organizarem.”

As articulações legais e os resultados conquistados pela comunidade com fins à


liberdade de expressão demonstraram que desde o começo desta pesquisa até aqui,
algumas configurações foram extremamente ressignificadas. E não é apenas em função
da existência da ANANDA; na cidade de Salvador é possível entrar em contato com
membros da comunidade canábica Growroom que está na internet desde 2002,
caracterizando-se como um sítio virtual que abriga um fórum de usuários de Cannabis
sativa com membros na faixa etária entre 22 e 41 anos, em grande parte, brasileiros. O
espaço para sociabilidade permite que os usuários debatam o cultivo doméstico,
métodos de consumo, segurança, leis, e notícias relacionadas à maconha. Depois de
alguns reveses, como a prisão de um integrante na cidade de São Paulo indiciado por
tráfico em 2004 e a saída do ar por alguns meses em 2005 e 2006 para evitar problemas
legais com justiça portuguesa, pois, a comunidade hospedava um portal lusitano que
trabalhava com o mesmo tema, o Growroom entrou em 2010 fortalecido com as
conquistas em torno da Marcha da Maconha. Pancho já respira aliviado sem medo de
ser representado criminalmente como apologista, podendo afirmar com tranquilade que
a estratégia de ação mudou. Agora a exposição pública é benéfica à causa:

“Ao nos expor, pessoas ligadas à instituição de defesa da democracia, da


justiça, têm nos procurado para ajudar. Atualmente o Growroom já conta
com advogados próximos da rede em 5 capitais, RJ, SP, RS, BA e DF, 2
Magistrados no RJ e na BA e o lance só tá se ampliando...”

Também com origem em Salvador, o Coletivo Balance de Redução de Danos em


festas de música eletrônica, vem atuando e obtendo representabilidade em outros
estados. Não por acaso membros das comunidades Growroom e Balance, são
interlocutores desta pesquisa - enfim, uma jovem cultura positiva das drogas vai
ganhando representação tendo como referência algumas configurações nos bastidores da
cultura universitária.

260
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V – Entre aplausos e apupos: as consequências reflexivas

5.1 - O consumo de maconha e seus efeitos socioculturais e mercadológicos

Sim, algumas configurações estão sendo ressignificadas e merecem destaque, até


porque passaram de obscura exclusividade das páginas policiais para as manchetes das
primeiras páginas. Se no começo do texto foi referenciado um coletivo de estudantes
que partiu em caravana de Salvador para o Rio de Janeiro e um deles não voltou detido
por tráfico de maconha, mais uma vez um grupo estudantes em viagem para outro
estado com fins a participar de um Encontro Universitário enfrentou problemas com os
controles formais exercidos pela polícia. Desta vez o desfecho foi bem diferente...

Psicologia on line 27/08/09

Manifesto da Psicologia pela liberdade dos estudantes presos

Pela garantia dos Direitos Humanos dos cidadãos usuários de drogas

Três estudantes de Psicologia foram presos após ação policial no


alojamento dos participantes do XXII Encontro Nacional de Estudantes de
Psicologia (ENEP), no dia 25 de julho de 2009, em Belo Horizonte.

A acusação que pesa sobre os estudantes é a de tráfico de drogas. Contudo,


a condução dada ao caso não deixa claras quais foram as razões e
circunstâncias que conduziram a configuração da acusação como tráfico e
formação de quadrilha e não como uso de maconha.

Assim, o CFP exige, das autoridades que tomaram tal decisão, a


publicização dos motivos que embasam a acusação de tráfico de drogas e
formação de quadrilha. Tal exigência tem como base uma das mudanças
mais significativas na nova lei de drogas do Brasil, que é a diferenciação
das penas atribuídas ao uso e ao tráfico de drogas. A pena de prisão é
prevista somente para os casos de tráfico.

[...] o entendimento do CFP de que o encarceramento não é solução para a


reabilitação e reinserção social, atrelada a toda a discussão que vem sendo
feita há anos sobre a necessidade de revisão do sistema prisional brasileiro.

O CFP defende o fortalecimento de políticas públicas voltadas para a


cidadania e a saúde dos usuários, a visibilização da rede de interesses que
existe em torno do tráfico e o cumprimento da lei.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA


CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DA 3ª REGIÃO (BAHIA E
SERGIPE)
CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DA 4ª REGIÃO (MINAS
GERAIS)
COORDENAÇÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES DE PSICOLOGIA

Brasília, 27 de agosto de 2009

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A diferença entre este caso e o do estudante que ficou detido acusado de tráfico em
2007 no Rio enquanto seus colegas retornaram para Salvador está na reação reflexiva.
Enquanto no primeiro caso os colegas se conformaram em lamentar a “injustiça” da
situação, no caso presente houve a mobilização dos colegas estudantes de psicologia e
posteriormente da Coordenação Nacional dos Estudantes de Psicologia, do Conselho
Federal de Psicologia e de dois Conselhos Regionais. Este respaldo institucional da
comunidade de Psicologia199 confere legitimidade e ampliação da reflexividade em
torno da problemática. Os três estudantes que foram acusados de tráfico acabaram num
primeiro plano representando a comunidade dos estudantes de psicologia que eram
usuários como também num plano mais amplo, representaram a comunidade de
Psicologia independentemente de seus membros serem usuários ou não. Esta
comunidade se reuniu para defender seus membros da estigmatização.
A amplitude do problema dos usuários acusados de tráfico está na imprecisão da lei
que leva a um impasse em relação à sua interpretação. Se em tese, a lei 11.343/06
desonera o usuário em detrimento do traficante, a definição prática de quem é usuário e
quem é traficante ainda gera polêmica, pois se concentra na interpretação do agente de
controle que julgar a ocorrência. Uma das contribuições mais significativas para analisar
as implicações dessa imprecisão decorre da reflexividade que está sendo gerada pela
pesquisa Tráfico de Drogas e Constituição no Brasil, realizada pelo Grupo de Pesquisa
em Política de Drogas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
em parceria com a Universidade de Brasília (Boiteux, Castilho, Vargas, Batista, Prado
& Japiassu, 2009). A pesquisa analisou 730 sentenças no Rio de Janeiro e em Brasília,
entre 2006 e 2008. Foi constatado que no Rio de Janeiro, 66,4% dos condenados por
tráfico de drogas são primários, 65,4% respondem apenas por tráfico (sem associação
ou quadrilha), 60,8% foram presos sozinhos, 91,9% em flagrante e apenas 14,1%
estavam armados. A análise dos dados indica que a atuação da Justiça Penal acaba
enquadrando os elos mais vulneráveis, ou seja, os pequenos traficantes – que não são
peças centrais do tráfico, sendo rapidamente substituídos na rede de vendas. O mais
problemático é que na prática também são enquadrados muitos usuários, pois apesar da

199
- e esta mudança de postura no campo da psicologia é significativa, pois, quando estudante de
graduação neste curso, estagiando no atendimento clínico no começo da década de 1990, havia uma
orientação para que os estagiários não atendessem casos de usuários de drogas. De acordo com os
professores que nos orientavam, este era um campo problemático que só os psiquiatras estavam
devidamente aparelhados para enfrentar. Lembro que fui o único estudante a quebrar este padrão e de ter
virado motivo de piada entre os colegas por este motivo.

262
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nova Lei de Drogas em tese ter desvinculado o usuário da pena de cárcere, o artigo 33
não é claro na diferenciação entre o usuário e o pequeno traficante.
Eis um risco ao qual estão expostos não apenas os três estudantes acusados em Belo
Horizonte, mas inclusive, muitos usuários que não terão Conselhos ou Coordenações
Nacionais para lutar por seus direitos. Nesse sentido, alguns intelectuais estão buscando
alternativas para forjar a reflexividade das esferas governamentais. Um exemplo dessa
vertente é representada pela Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia,
formada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao lado de mais dois ex-
presidentes, Cesar Gavíria da Colômbia e Ernesto Zedillo do México, e de alguns
intelectuais e escritores como Vargas Llosa e Paulo Coelho. O objetivo desta comissão
é propor uma mudança de foco para encarar a problemática das drogas, não mais
representando-as necessariamente como caso de polícia e sim como caso de saúde
pública. Começando pela maconha, a proposta da comissão estuda a descriminalização
de sua posse, seguindo uma lógica explicitada na seguinte matéria:

Maconha:é hora de legalizar? (Época on line, 13/02/09).


As conclusões da comissão seguem a lógica fria dos números e do mercado.
Gastam-se bilhões de dólares por ano, mata-se, prende-se, mas o tráfico se
sofistica, cria poderes paralelos e se infiltra na polícia e na política. O
consumo aumenta em todas as classes sociais. Desde 1998, quando a ONU
levantou sua bandeira de “um mundo livre de drogas” – hoje considerada
ingenuidade ou equívoco –, mais que triplicou o consumo de maconha e
cocaína na América Latina.

Se a perspectiva de representação a ser posta em foco é a da saúde, vale frisar que o


parâmetro analítico dessa comissão é o das ciências sociais e não das ciências médicas,
pois, além de serem políticos, FHC é sociólogo, e Gaviria e Zedillo são economistas. O
que entrou em jogo em um período de crise econômica global como a deflagrada em
2008 foi a possibilidade de uma ressignificação da economia política emanada pelos
EUA200, cujos gastos anuais com repressão às drogas somam US$ 35 bilhões, com
consequências interpenetradas no restante do planeta. Nesse recorte geoeconômico,
contestando a política proibicionista que só aumentou os gastos e a própria violência
que se propôs a combater, a Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia
ganha representatividade em manchete de uma revista popular como geradora de: “um

200
- esse padrão não é novo. Como já foi indicado no item 1.7, a extinção da lei seca em 1933 ajudou a
economia estadunidense a superar a crise econômica de 1929.

263
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maior realismo no combate às drogas, sem preconceitos ou visões ideológicas, que


ajudaria a reduzir danos às pessoas, sociedade e instituições”, (Época on line, 13/02/09).
Talvez não seja por acaso que em 2009 as Supremas Cortes do México e da
Argentina relativizaram os controles proibicionistas, descriminalizando o porte de
pequenas quantidades de drogas. Do outro lado do Atlântico, em vários países, a posse
pessoal de qualquer droga já não é crime. Espanha, Portugal, Itália, República Checa,
alguns estados alemães e Cantões Suíços estão gradativamente abolindo a política
proibicionista. Mesmo nos países que prescrevem o uso de drogas como crime, na
prática muito poucos vão para a prisão. Os que chegam a ser presos cumprem frações
das penas. Na Inglaterra, onde em tese as leis são duras, na prática só 0,2% dos usuários
seguem para a prisão por no máximo 3 meses. (How drugs are being decriminalised.
Revista Economist, 12/11/09).
Também na América do Norte estão sendo operadas algumas ressignificações. Se no
começo dos anos 1970, durante o governo explicitamente proibicionista de Nixon, 84%
dos norte americanos eram contra a descriminalização da maconha e 12% a favor, hoje
no governo de Obama, que vem gradativamente reconhecendo o fracasso do
proibicionismo, 44% são a favor e 54% são contra (Gallup,19/10/09). Essa mudança de
posicionamento público não se dá apenas entre os cidadãos, se dá também entre as
instituições mantenedoras de mecanismo de controle social. O Departamento de Justiça
estadunidense anunciou que flexibilizará a luta contra o consumo da maconha medicinal
nos 14 estados que o autorizam, embora a tolerância aos traficantes que tentarem tirar
vantagem da lei será mínima. Para situar a questão, em Los Angeles no final de 2009,
havia 80 pontos de venda de maconha medicinal. A maconha comprada com recibo – o
consumidor paga uma taxa de US$ 99,00 para ter direito a um documento que lhe dá
acesso ao serviço - é remédio, enquanto a maconha comprada ilicitamente continua
sendo considerada veneno. Entretanto, com esse precedente terapêutico aberto, a
maconha começa a ser “desdemonizada”, e, não exclusivamente na Califórnia, já se
pensa também na descriminalização da maconha não medicinal.
Uma reflexão sobre a regulamentação do consumo de maconha seja nos EUA ou no
Brasil deve levar em conta o equilíbrio entre a perspectiva econômica e os riscos e
danos que este consumo pode acarretar à saúde. Usuários de drogas lícitas antes com
poucas sanções, como álcool e tabaco, cujos danos são muito mais dispendiosos do que
os causados pela maconha, agora aprendem a lidar com controles mais rígidos.
Seguindo esta mesma linha de raciocínio, se põe em perspectiva uma regulação do

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consumo na qual cada droga deve ser pensada de modo específico, de acordo com suas
características, ou seja, se há uma regulação maior para o consumo de álcool e tabaco,
também pode haver não apenas tolerância maior para o consumo de maconha, mas uma
regulação para o seu consumo. Se por um lado, os especialistas ortodoxos continuam
tentando impor sanções indistintas para usuários de maconha e de crack, especialistas
heterodoxos já divulgam que a maconha é tão diferente do crack quanto os
antidepressivos são dos ansiolíticos. De acordo com Masur e Carlini os piores efeitos da
maconha estão nos controles sociais que lhes são impostos. Segundo dizem, a:

“revista da Associação Brasileira de psiquiatria, órgão oficial dos


psiquiatras brasileiros, publicou em 1987 um editorial que sugere a
descriminalização da maconha” no sentido de ampliar “as possibilidades de
recuperação do usuário, isolando-o do traficante e evitando sua dupla
penalização: a pena social por ser um drogado e a pena legal por ser um
drogado, esta última muitas vezes mais danosas do que a primeira”,
(MASUR & CARLINI: 2004, 86).

No ponto de vista dos autores a descriminalização da maconha não só afastaria o


usuário do circuito violento do tráfico como corrigiria o que já foi chamado de erro
histórico: “não se tem comprovado ser a maconha o primeiro degrau de uma escalada
para narcóticos” (idem:2004, 87). Ainda de acordo com os autores, o discurso da
descriminalização em alguns setores da área de saúde não é novidade, já se insinuava
desde 1980, podendo ser percebido através de um editorial do Jornal Brasileiro de
Psiquiatria: “o perigo maior do uso da maconha é expor os jovens a consequências de
ordem policial sumamente traumáticas” (idem:2004, 87) .
As reflexões de um ex-membro do Conselho Federal de Entorpecentes (Carlini) e de
uma ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e do Alcoolismo
(Masur) acabam dialogando com as ciências sociais e humanas, pois chamam a atenção
para o fato que:

“vários sociólogos americanos afirmam que o uso crônico de maconha, ao


contrário da imagem popular, não torna os jovens alienados e estranhos,
mas reflete uma rejeição do sistema social e das regras da sociedade, não
indicando necessariamente uma desorganização social” (2004, 93).

Se “o uso crônico de maconha não torna os jovens alienados e estranhos”, de acordo


com o que pensam “vários sociólogos americanos”, também as novas reflexões
operadas por alguns setores da área médica estariam indicando que a “naturalização”

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entre o uso de maconha e o desvio social já não é mais adequada? Nessa perspectiva
em que o proibicionismo vai deixando de ditar incondicionalmente o que é saudável ou
não, já não soa contraditório que se faça um uso terapêutico da maconha201 como
ansiolítico, como redutor de ansiedade. E mais, os neurocientistas Renato Malcher-
Lopes e Sidarta Ribeiro no livro Maconha, cérebro e saúde apontam que não é só como
ansiolítico que a maconha vem sendo administrada, pois se pode até relacioná-la a um
modo de uso antidepressor: “há evidencias de que certos usuários de maconha a
utilizam como uma forma de automedicação contra depressão”202 (Malcher-Lopes &
Ribeiro: 2007,87). Indo além, Malcher-Lopes e Ribeiro efetuam uma investigação sobre
os efeitos cerebrais e fisiológicos da maconha, desconstruindo algumas representações
estabelecidas ao constatar que:

“a maconha protagoniza uma verdadeira revolução, representando uma das


mais promissoras fronteiras no desenvolvimento da neurobiologia e da
medicina. A descoberta dos endocanabinóides, ou seja, moléculas análogas
aos princípios ativos da maconha, mas produzidas pelo próprio cérebro, é a
grande novidade por trás desta guinada científica.[...] Nesse início de século
XXI, acredita-se que os canabinóides estejam envolvidos na remodelação
dos circuitos neuronais, na extinção de memórias traumáticas, na formação
de novas memórias e na proteção de neurônios. [...] A desregulação do
sistema canabinóide pode estar envolvida nas causas da depressão,
dependência psicológica, epilepsia, esquizofrenia e doença de Parkinson”
”(MALCHER-LOPES & RIBEIRO:2007,8/9).

Enfatizando o frescor destes dados, o potencial da maconha medicinal como fonte de


canabinóides exógenos é maior do que tem sido divulgado, o que abre perspectivas de
mercados licitamente lucrativos. A questão aqui posta é: que setores da sociedade vão
poder consumir esse lucratividade?203

201
- mas numa perspectiva exclusivamente terapêutica, não recreativa. Segundo Carlini em entrevista a
revista da FAPESP (O uso medicinal da maconha, 17/02/10), o CEBRID (Centro Brasileiro de Estudos
sobre Drogas Psicotrópicas) pautou para maio de 2010 um simpósio internacional sobre maconha com o
título de “Por uma agência brasileira da Cannabis medicinal?”, no qual será debatida a viabilidade da
maconha terapêutica no Brasil. O primeiro passo nessa direção seria a criação de uma agência nacional da
Cannabis ligada ao Ministério da Saúde, sem a qual a ONU não aprovaria investimentos em estudos
desse porte com uma substância proibida. A análise sobre a manutenção da proibição do uso recreativo da
maconha estaria fora da alçada dessa agência.
202
- a anandamida, um canabinóide endógeno, inibe uma maior proliferação neuronal no hipocampo,
proliferação que se especula estar diretamente conectada a incidencia de depressão (MALCHER-LOPES
& RIBEIRO:2007,86).
203
- de acordo com informações diretamente recebidas de um ativista estadunidense, há nos EUA poucos
estudos sendo realizados com a planta integral em benefício de estudos com suas substâncias isoladas e
puras. Assim, de acordo com o ponto de vista dos ativistas, são favorecidas pesquisas sobre os
cannabinóides naturais e sintéticos que podem ser produzidos por laboratórios - abordagem compatível
com os interesses da "Big Pharma" (os poderosos conglomerados que dirigem a indústria farmacêutica) -
e não sobre a maconha como planta que pode ser fumada – o que interessaria aos usuários recreativos e
aos autocultivadores.

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5.2 – o consumo em meio a configurações de violência

A consumação dessa lucratividade é algo que ainda deve ser investigado com mais
apuro, principalmente por indicar numa direção oposta, mas diretamente interpenetrada
com uma modalidade de consumo que há muito se tornou insustentável para a maioria
dos cidadãos; o consumo da violência ligada ao tráfico204. O problema da violência
mesmo quando não é central na estrutura de vida dos interlocutores – já que não
frequentam bocas de fumo nem percebem tal aventura como romântica ou excitante -
está sempre presente nas representações do cotidiano:

Cleópatra - Um mês atrás, depois de rolarem 3 assaltos a polícia teve frequentando


(o campus). Outro dia rolou um debate sobre segurança na faculdade, os PMs lá, eu
sai, fui lá em cima e tava todo mundo fumando. Outro dia tinha um pessoal que não é
de lá fumando, a diretora foi perguntar quem eles eram, e eles mandaram ela tomar no
cú. A gente que é de lá fica vendo o pessoal que não é de lá fumando, a gente quando vê
pessoal de outra unidade lá, a gente tá dando carreira neles: a gente não vai fumar em
sua unidade!

Se alguns estudantes estão preocupados com a segurança em relação a outros


estudantes que “invadem seu espaço”, há também questões de segurança mais
complexas que vão além da demarcação do território específico dos usuários e atingem
a integridade física da comunidade universitária. Enquanto o trabalho de campo era
realizado, no período de um mês a segurança da UFBa foi rompida duas vezes em
situações cujas representações foram ligadas ao consumo de drogas, e uma delas na
unidade referida por Cleópatra:

Mulher é morta na Faculdade de Filosofia (A Tarde - 21/09/08)


[...] uma mulher foi morta com um tiro no rosto no interior do campus da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH). De acordo com
depoimentos de vigilantes, três tiros foram disparados por volta das 22

204
- é merecedor de reflexão que se entre os mais de 6.000 crimes letais que acontecem por ano no Rio
de Janeiro, 65% deles (em torno de 4.000) "têm relação direta ou indireta com o tráfico de drogas", os
mortos por uso excessivo não chegam a uma centena por ano. Drogas, o real inimigo na fronteira -
(FSP,14/11/09).

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horas. Os vigilantes encontraram a mulher morta atrás do prédio da


secretaria dos cursos de filosofia, psicologia e ciências sociais.
A vítima carregava uma pochete com seus documentos e dez pedras de
crack. A polícia não descarta que o crime tenha relação com o tráfico de
drogas, mas investiga o ex-namorado da vítima, que já havia sido acusado
duas vezes pela mulher de agressões.

Tentativa de estupro em ‘campus’ põe em xeque segurança na Ufba


(Correio da Bahia - 20/08/08)

Uma multidão formada por universitários, professores e funcionários


ocupou a Reitoria da Ufba, no bairro do Canela, para protestar contra a
tentativa de estupro de uma estudante do 6º semestre de dança [...] o vice-
reitor saiu para conversar com os estudantes e acabou admitindo que
bandidos costumam entrar no campus de Ondina, inclusive traficantes para
vender drogas para alunos, mas salientou que este foi o primeiro caso de
estupro registrado desde 2002. “Não é novidade nenhuma que existem
traficantes no campus, mas estupro é”, declarou. O acalorado debate entre
os manifestantes e o vice-reitor da Ufba girou em torno de um único tema:
segurança.

O primeiro desses crimes foi cometido há alguns metros do local onde a “galera do
mirante” costuma se reunir para fumar maconha, mas os frequentadores afirmaram que
a vítima era totalmente outsider, não apenas ao grupo como à própria comunidade
universitária. Essa não familiaridade com a vítima minimizou os danos de um estado de
quase pânico que foi instaurado no campus e talvez tivesse sido suficiente para acalmar
os ânimos se um mês antes não houvesse ocorrido a tentativa de estupro, num campus
que não dista um quilômetro do primeiro. Se o vice-reitor afirmou que: “Não é novidade
nenhuma que existem traficantes no campus”, esse tráfico em si, até a ocorrência do
sinistro, foi tolerado sem maiores preocupações quanto à segurança da comunidade.
A relação entre drogas e violência já havia sido investigada na primeira parte da
pesquisa entre os professores usuários, inclusive analisando o contexto carcerário no
qual um dos docentes, Esculápio, esteve diretamente envolvido. Entre o começo de sua
carreira como usuário de maconha e o período em que se tornou professor, ele se
envolveu com o tráfico, e como consequência de um cálculo impreciso sobre sua
segurança - pois nem todo o risco pode ser controlado, por mais cálculos que se faça –
foi detido pela polícia, indo parar na prisão:

Esculápio - O tráfico foi algo que se deu por questão de necessidade


financeira, e ao mesmo tempo que era usuário, eu vendia. Maconha não
agredia os meus valores, eu nunca venderia crack... Eu vivia muito com a

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coisa da tensão. O próprio uso aumentava ainda mais minha paranóia, meu
medo. Quando eu vendia, eu fumava menos. (VALENÇA:2005,144)

Ao dizer: “Maconha não agredia os meus valores”, Esculápio deixa pistas de que a
condição de usuário/traficante, não foi demandada apenas por uma “questão de
necessidade financeira”. Nesse sentido, seus valores são fundamentais para desenhar sua
estrutura de vida205. Tendo acesso diretamente aos fornecedores, é fato que não apenas
sua aquisição tornava-se mais constante – e de certa forma, mais fácil - mas também os
controles informais aos quais tinha que estar atento demandavam maior
responsabilidade: “Eu vivia muito com a coisa da tensão. O próprio uso aumentava
ainda mais minha paranóia, meu medo. Quando eu vendia, eu fumava menos”.

Esculápio - A prisão por causa da maconha não chegou a fazer com que
eu tivesse em relação a ela, algo traumático, que eu abominasse a maconha.
Foi ideológico, foi algo cultural, não foi algo que condicionou de uma forma
negativa a maconha. Na prisão por mais que eu tivesse informações sobre
uso, foi surpreendente ver, logo nos primeiros dias, a quantidade, a
frequência com que se fuma maconha. O acesso é bastante difícil e bastante
perigoso. Tinha bastante contato com pessoas que tavam lá por tráfico. Lá
dentro da prisão, a pessoa que chega lá, na hierarquia que é estabelecida lá
dentro, de classificação, a pessoa que chega lá por ter vendido maconha, tem
um valor, eles discriminam. Não há um estigma, há até um status. Há
algumas nuances que faz que quem esteja lá por ter traficado maconha seja
mais valorizado. Como alguns dizerem que quando saíssem dali (pessoas
que assaltavam) projetavam parar de roubar e passar só a traficar. Isso é
interessante, que de uma forma ou de outra, passava uma certa autocrítica
que muitos deles têm em relação ao ato de roubar. Houve casos até de
religiosos que burlaram as restrições de seus grupos e deram uma
“bolinha”206 e depois voltar lá e se esconder atrás da Bíblia. É comum os
presos dizerem que se faltar maconha a cadeia vira. E a segurança sabe
disso. A maconha é um fator regulador das prisões. O que eu observei é que
havia um pacto entre o comando dos presos e a equipe diligente, e tinha um
grupo lá que dominava e recebia quilos de maconha, pra fazer o comércio.

T.V. - Você tinha vínculo com esse grupo?

Esculápio - Tinha sim. Eu me ofereci pra esse grupo para trabalhar, fazer
documentos para o juiz, uma carta prum diretor. E por isso eu fiquei meio
visado pela segurança que armou algumas ciladas pra mim. Por exemplo,
quando eu passei pra cela especial, que ia tomar sol numa parte interna, me
entregaram, só que alguém lá tinha me dado um toque, e eu tive mais
cuidado. Fui muito sacaneado pela segurança pelo meu diploma. Cheguei a
sair do pátio onde eu convivia com os presos de um modo geral porque até
poderia morrer. (VALENÇA:2005, 146)

205
- de acordo com o modelo pensado por Grund (1993), os elementos centrais da estrutura de vida não se
limitam à disponibilidade de aquisição da substância, mas sim aos controles informais que o usuário
imprime ao cotidiano, inclusive em relação a questões que não se reduzem ao consumo de drogas.
206
- dar uma bolinha = fumar maconha.

269
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Três questões sobressaem nessa fala. Primeiramente, o interlocutor realiza uma


leitura crítica de que sua prisão não se deu por causa da maconha, mas sim por questões
ideológicas, culturais, ou seja, não fazendo uma naturalização de que a maconha tem
uma representação inalienavelmente negativa. Em segundo lugar, o seu registro de que
no setting panóptico da prisão, não apenas o traficante tem um status diferenciado dos
outros presos, como também as drogas são utilizadas como mecanismos reguladores da
tensão, servindo para controlar a violência do cárcere tanto pelos presos quanto pela
equipe diligente, num silencioso acordo tácito - o que leva a refletir se fora da prisão, de
certa forma também a maconha não se aplique ou possa ser aplicada a tal objetivo207.
Por fim vemos que no processo de configuração desse setting, o traficante desfruta de
um status muito maior que um acadêmico com seu diploma, diploma que chega a ser
um sinal de estigmatização, numa flexibilização de valores geralmente representados de
modo estático. E as surpreendentes falas de Esculápio continuam:

Esculápio - Quando saí da prisão não ficou nenhuma sequela em relação


à maconha. Foi até interessante que no dia que eu saí, saí com uma amiga e
fumei com ela no carro e foi uma experiência fantástica, inacreditável e
amedrontadora porque eu também senti...a prisão passa a ter um efeito...cê
sente falta como se fosse um útero. Eu tive mais medo fora do que lá
dentro.. como se você sentisse falta da prisão. (VALENÇA:2005,146)

Bem, aqui talvez seja possível interpretar que “Eu tive mais medo fora do que lá
dentro”, tenha conexão com a prioridade que a reinserção social passa a representar
para o interlocutor, isto é, a partir de então, ele deverá erguer seus próprios mecanismos
de controle, para que o estigma, representado pelo seu confinamento ao cárcere, não o
condene perpetuamente ao rótulo de traficante, quando estiver fora da prisão. Nesse
sentido, a maior ameaça encontrava-se fora da prisão, o que gera insegurança. Ele
também afirma que sua relação com a maconha não ficou marcada pela negatividade de
ter sido preso em função de sua posse, assim não se tornando uma representação
estigmatizada e traumática. Mas sua experiência psicoativa no cárcere não se resumiu
ao consumo de maconha:

Esculápio - Tive experiências na prisão com crack, mesmo sabendo que é


algo assim, nocivo, mas eu quis ter a experiência pra saber até do que eu iria
falar. Eu estava na prisão quando o crack começou a ser introduzido lá. A
primeira vez eu estava numa cela com muitos garotos, entrou de uma forma

207
- como foi possível perceber na citada relação entre senhores e escravos nas entressafras das
plantações da cana-de-açúcar, (item 1.7, pg.40).

270
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muito restrita e depois passou a ser a droga mais forte lá dentro. Eu convivi
com a decadência que o crack criou. Começou a facilitar a queda de alguns
acordos, de um código de ética, tipo roubo. Uma vez alguém fumou e deu
uma facada na bunda de outro. Alguma coisa pequena que foi extravasada.
Eu fiquei num lugar lá, na lavanderia e tinha algumas pessoas, alguns ex-
policiais que usavam crack, e fui assediado pra ficar dependente, ficar
viciado, pra ficar preso a eles e quem fica preso prometia as coisas;
televisão, etc...

T.V. - Como você lidou com a situação?

Esculápio - Eu fui rejeitando, usei algumas vezes lá dentro. Tinha um


efeito, inclusive por estar lá dentro. O prazer é relacionado ao fato de você
estar preso e você experimenta algumas sensações que passam a ter um
significado, pelo fato de você tá preso. Mas senti que é uma coisa altamente
viciante, muito fácil de criar uma dependência e fui deixando de lado. Eu
usei talvez 10,15 vezes num período de 3 meses(...) Aqui fora não teria
interesse em usar. (VALENÇA:2005,147)

Quando Esculápio diz que: “O prazer é relacionado ao fato de você estar preso e
você experimenta algumas sensações que passam a ter um significado, pelo fato de você
tá preso”, é possível que haja uma indicação de que o processo de consumo de crack,
geralmente tido como autodestrutivo, seja a representação da liberdade que resta nestas
específicas condições de controle social. De modo geral, se, para os que dispõem de sua
liberdade, o consumo de drogas ilícitas pode trazer insegurança em função de sua
ilicitude, para os presos que não dispõem de liberdade, o consumo de drogas é uma das
poucas alternativas seguras de manter acesa a chama da busca por liberdade. Contudo,
pensando o crack como capital cultural no cárcere, seus efeitos são representados de
forma oposta aos da maconha. Enquanto a maconha, como mecanismo de controle
social, tem a função de evitar que a “cadeia vire”, o crack até facilita a viração.
Dialogando com Grund e Zinberg, a disponibilidade de aquisição de crack na cadeia,
onde geralmente os residentes possuem mínimo controle sobre suas estruturas de vida,
facilita o uso compulsivo, o que interessa aos que lucram com seu comercio. Esculápio
entretanto, indica que é possível manter algum controle sobre seu uso.
Após dois anos e quatro meses vivendo nesse setting – o mesmo onde Buda
posteriormente trabalhou como redutor de danos, também constatando que a maconha
segura a “viração” - Esculápio se mostrou uma pessoa tranquila, que relatou sua
experiência no cárcere sem maiores traumas, todavia, não passou despercebido que ao
ser entrevistado em sua casa, tivemos que trocar de lugar algumas vezes, pois ele
receava que os vizinhos pudessem ter acesso à nossa conversa. Talvez ele tivesse razão
em ser tão precavido, ou talvez tal precaução fosse sequela da estrutura panóptica da
prisão.

271
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Entretanto, operar uma releitura da representação estabelecida de que maconha


incondicionalmente gera violência não é o único ponto em comum observável na
pesquisa efetuada entre os professores e na realizada entre os estudantes208, e mais;
como no caso dos estudantes, o consumo de drogas por parte destes docentes também
não representa a única diferença em relação ao estilo de vida estabelecido como
dominante entre os homo academicus. Esses interlocutores também podem ser
representados como outsiders por questões que vão da visão política à opção sexual,
passando pelas crenças religiosas. O consumo de drogas acaba sendo seu habitus social
mais suscetível à estigmatização, porque dentre os tópicos é o único com status de
ilicitude.
Quanto ao equilíbrio entre status positivo e status negativo - ou estigma - os
professores por já sustentarem uma distinção permanente, diferentemente dos estudantes
que possuem uma distinção temporária, estão em posição social mais respeitável onde
as responsabilidades aumentadas demandam a configuração de mecanismos de controle
informais mais objetivos sobre seus consumos. A maioria (85%) prioriza uma maior
divisão entre o tempo dedicado à produção e ao lazer, tempo este último onde as drogas
podem gerar menos riscos, ou que pelo menos causem riscos que não comprometam
tanto suas representações. Também é buscado um maior controle sobre as condições de
aquisição - não há mais necessidade de se arriscarem indo em bocas de fumo já que
existe a alternativa de adquirir as substâncias por delivery209 - e maior seletividade em
relação às comunidades de uso. Já a maioria dos estudantes (86%) não se sente atraída
por riscos desnecessários nas horas de aquisição e uso, mas uma diferença substancial
entre as duas comunidades é que a maior parte destes últimos não disponibiliza de uma
renda como a dos professores que lhes permita desfrutar tanto de maior segurança no
processo de aquisição – o delivery pode encarecer o produto em até 20% -, quanto de
substâncias com melhor qualidade, que custam mais.

208
- e esta é uma das questões que me levaram a construir objetos de estudo – tanto o professor usuário
quanto o universitário usuário - que não tendam a ser naturalmente representados como integrantes de
um contexto violento. O exemplo trazido por Esculápio demonstra que a conexão entre violência e
maconha não deve ser pensada como um efeito psicoativo, mas sim como um efeito configuracional.
209
- delivery = entrega em domicílio.

272
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5.3 - A distinção como mecanismo redutor de riscos

É pertinente mais uma vez ressaltar que o objetivo das minhas pesquisas de
mestrado e de doutorado210 é investigar como o acadêmico, professor ou estudante
consumidor de drogas, interage com as representações sociais dominantes e os controles
sociais do processo civilizador, e se esse consumidor em suas práticas sinaliza outro(s)
modo(s) de representação e de controles sociais que contemple(m) o consumo de
drogas. Nessa perspectiva, interpretando sua própria distinção acadêmica como um
mecanismo de controle informal, há professores que ousam disponibilizar da imagem de
docente para se proteger contra o estigma de ser usuário:

Hermes - Eu consumo solitariamente, sem confusão, sou professor, isso aí


cria toda uma blindagem a esse consumo. Em ambiente de trabalho tem
vários professores que não consomem, colegas de trabalho que sabem que
eu consumo. Há um diálogo sobre drogas e outros assuntos mais polêmicos
pela própria maturidade intelectual, é um espaço que dá pra ter conversa.
No senso comum um professor universitário já usufrui de status, e você
associa isso, no meu caso a um consumo chamado discreto, porque eu
consumo sozinho ou com alguns amigos, nunca é em nenhum momento
orgiástico, tipo altos sons, (risos). A gente ouve uma música, num volume
baixo, num caráter social discreto. No meu caso funciona porque todo
mundo sabe, o porteiro sabe, o síndico sabe. (VALENÇA:2005,124)

O “todo mundo sabe” se traduz na segurança que Hermes acredita ter conquistado em
função do status de professor, status que facilita a tolerância ao seu consumo. Também é
passível de atenção o seu enfoque no consumo solitário ou com poucos pares, não mais
prescindindo da antes inevitável roda de fumo como um mecanismo de defesa para
favorecer certo modelo de segurança. Na outra mão, foi possível encontrar quem tenha
se sentido incomodado por não conseguir usar a posição e o status de professor com
vistas à ressignificar a posição estigmatizada de usuário:

Cibele - Alguns professores da universidade são meio caretas. Já ouvi


coisas bem caretas de uma galera que eu fico olhando assim e eu não
acredito. Professores de antropologia dizendo: “quem fuma não pensa nada
de produtivo”. Eu fiquei ouvindo, mas esse comentário me incomoda e acho
que incomoda outras pessoas. Na hora não tive coragem de colocar meu
ponto de vista. (VALENÇA:2005,125)

210
- ambas as pesquisas seguem o mesmo modelo teóricometodológico.

273
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De acordo com Bourdieu (2008), boa parte do prestígio adquirido no campo


acadêmico está relacionado ao tempo de atuação. É possível que o pouco tempo de
atuação na área tenha influenciado a falta de “coragem” de Cibele, pois ela ensina a
menos de 3 anos numa faculdade particular, e a medida de sua coragem pode ser
proporcional à sua estabilidade no emprego e a seu status no mercado. Docentes com
mais tempo de experiência desenvolveram mecanismos para evitar o contato com o
específico discurso “careta” de alguns professores mencionados por Cibele, se
mostrando mais dispostos a estreitar laços não com colegas, mas com alunos, o que
necessariamente não os livra das “caretices”:

Dioniso - Eu sei que tem alguns alunos meus que usam, mas eles são
mais caretas que os professores, (risos) por mais que eles saibam que tem
liberdade pra comentar comigo, porque eu saio com eles pra beber e tudo,
mas eu acho que há um respeito pela figura do professor. Eu tento quebrar
isso, mas eu nunca tive um aluno que tentasse. Não é muito comum esse
discurso, um ou outro que a gente percebe pode fazer isso, mas não é uma
prática comum.
Talvez eles possam achar que eu use, mas compartilhar isso comigo, acho
que pra eles pode levar a alguma questão tipo: não cumpri minhas
obrigações enquanto aluno, e ele vai associar isso ao fato de eu usar. Então
talvez eles se resguardem, no meu caso, e de alguns professores lá do
campus. Eu acho que eles não têm essa imagem canônica do professor que
não usa drogas. Se rolasse essa questão na sala de aula, eu me colocaria em
cima da minha própria experiência. (VALENÇA:2005,125)

Dioniso não indica claramente até que ponto sua distinção como professor facilitaria
a aproximação dos alunos usuários, mas aponta que estes não abrem o jogo com ele
com receio de que ele associe o consumo de maconha daqueles com sua baixa
produtividade acadêmica. Mas de onde parte esta representação? Dos alunos que
acreditam que alguém que fuma maconha possa ter tendência a desenvolver um baixo
rendimento escolar, e na condição de usuários com baixo rendimento – o que poderia
caracterizar , segundo Zinberg, o uso compulsivo - se sentem pouco confortáveis para se
aproximar do professor no que diz respeito às drogas? Ou por outro lado, essa
representação poderia ser originária do professor que percebe de alguma forma que o
baixo rendimento escolar dos seus alunos pode ter a ver com o consumo de drogas, e
acredita que eles não se aproximam com receio de que isso seja percebido?
Possivelmente, para Dioniso e para outros docentes a resposta se encontra na
configuração da relação e das representações que se estabelece entre as partes.

274
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Nêmesis - Eu não fico falando que eu fumo! Eu me porto naturalmente.


Eu não tenho essa coisa do pudor: ah, é meu aluno, não pode saber, não
existe na minha cabeça. Agora eu me relaciono com alguns, tem um
estudante que não é meu aluno que vem na minha casa e eu fumo junto sem
nenhum problema. Eu não vejo isso como eu tar influenciando
negativamente. É a cabeça dele, a formação dele.
Eu não me sinto marginal, eu me sinto alternativa. Agora também eu sei
que sou muito querida, mas eu me sinto alternativa. E também eu sou
rebelde, eu faço questão de quebrar. Mas é uma maneira também de eu
marcar meu espaço, né? Talvez não tenha competência pra demarcar de
outra forma... mas eu acho que não é não, na minha concepção eu não seria
feliz se eu fosse aquele estereótipo de professora toda certinha, sabe? Na
maneira de vestir, na maneira de portar, Nossa Senhora! Deus me livre!
(VALENÇA:2005,126).

Nêmesis acredita e investe numa postura outsider como assinatura identitária, e com
essa assinatura obtém apreciação positiva entre seus alunos. Nêmesis sendo rebelde “faz
questão de quebrar”, marcar seu espaço, sentindo que é “muito querida”, sem ter que
fazer um supremo esforço no controle de suas emoções para ser representada como uma
típica estabelecida – seus longos cabelos trançados e tingidos de vermelho já fornecem
uma pista. Como ela diz; seu discurso não é marginal, é alternativo. Esta
autorepresentação indica que ela está consciente do seu valor e da sua estima, não se
sentindo à margem. Porém há quem sustente uma postura menos rebelde na relação
entre docente outsider e discente outsider, menos centrada na figura do professor e sim
nas trocas empáticas entre pessoas:

Panacéia - Pelo menos em sala de aula eu procuro ter uma aproximação


muito grande, uma empatia com os alunos, eu não vou tá expondo a minha
vida pessoal em sala de aula, mas, a depender do aluno, acho que não
impede que tenha um relacionamento pessoal, pelo contrário, inclusive eu
própria tenho um envolvimento pessoal com professores, mas não... Posso
sair com alunos e beber também, não tem problema não. Enquanto está no
meu curso, for meu aluno tem o máximo de limite possível, mas passou a
ser aluno dos outros... (VALENÇA:2005,127)

Ferônia - Eu tenho alunos que eu sentaria para fumar com eles... Um


professor universitário não pode ser vulgar, mas os alunos buscam isso...
Tenho alunos extremamente reacionários, maconha, nem pensar! Drogas tão
sempre associadas a ser maluco.

T.V. - Maconha na universidade incomoda?

Ferônia - De jeito nenhum, eu passo pelos meus alunos lá no campus e


vejo eles fumando, deitados tomando cachaça, ou fazendo nada, trocando
idéias, acho extremamente saudável, não me incomoda, quando posso me
aproximo, identifico quem são as figuras e há um reconhecimento étnico que
é mútuo, uma aluna diz: ‘ah professora, a senhora aí e essa sua roupa
hippie?’ (risos) ela faz uma identificação que não passava só pela minha
roupa, passava por outras coisas que ela lia por trás daquela minha... e eu
nem sou tão hippie! (VALENÇA:2005,127)

275
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Analisando estas últimas colocações, a questão nevrálgica para uma maior interação
entre professores e alunos outsiders parece ser as expectativas a respeito da
representação do professor – expectativas que às vezes partem do próprio professor; se
ele chega como “alternativo” ou mesmo se chega como “vulgar”. Os professores estão
cientes de que suas representações causam impacto entre os alunos - é só lembrar que a
estudante Salomé chamou a atenção para a imagem de hipócrita que pode aderir à pele
de um professor que “encaretou”. A preocupação dos professores com as suas
representações e com o envolvimento com os alunos é diferenciada entre os docentes
que ensinam em universidade públicas e os que ensinam em faculdades particulares,
pois os primeiros acreditam que há mais liberdade na universidade para exercer o papel
de professor, liberdade que de certa forma, mostram-se empenhados em desfrutar,
inclusive trazendo o consumo de drogas para o campo das reflexões. Já os que lecionam
em faculdades particulares parecem ter um olhar mais voltado para a sobrevivência,
algumas vezes sendo muito menos educadores do que funcionários de uma faculdade
em busca de um salário. Neste caso, o discurso tende a cindir liberdade e segurança, e o
envolvimento com alunos se torna mais controlado para evitar correr riscos
desnecessários. Como diz Ferônia: “Tenho alunos extremamente reacionários, maconha,
nem pensar! Drogas tão sempre associadas a ser maluco” (Valença:2005,127).
Por outro lado, aqueles que além de lecionar em universidade pública possuem um
longo currículo211, já conquistaram alguma respeitabilidade para se sentirem seguros e
confiantes o suficiente para incluir em sala de aula, a problemática das drogas como
uma questão em que a reflexividade científica pode favorecer à desestigmatização:

Pã - Há muitos anos atrás comecei a pensar num curso sobre drogas.


Todo semestre eu dou esse curso. Todo mundo acha uma boa idéia. Era uma
forma de fazer um trabalho com os alunos. Embora eu não veja o curso
como uma forma de prevenção, tem gente que vê assim. A melhor forma de
tratar o uso de drogas é você aprofundar o pensamento sobre isso e levar as
pessoas a pensar essa questão fugindo dos estereótipos. Embora meus
colegas não saibam o que acontece nesse curso, todos me apóiam.
Eu estabeleço com meus alunos relações bastante amigáveis. Eu não
tenho a imagem clássica do professor. Consequentemente os alunos
respondem de uma forma amigável. Inicialmente eu sentia a maior
hostilidade por parte dos alunos, “nós contra ele!”. Eu acho que existe
bastante na universidade, de um lado os alunos e do outro os professores,
hoje não mais, porque eu tenho uma certa reputação. E eu já vi professores
com umas atitudes, que faça-me o favor! Então, quando eu começava o

211
- associando o tempo de atuação com uma maior experiência de vida desses professores, é perceptível
que as narrativas que mais aprofundaram as reflexões sobre o consumo foram aquelas realizadas por
docentes com mais tempo de atuação – 50% dos pesquisados está com 15 anos ou mais de atuação.

276
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curso eu sentia que tinha um certo tempo para desarmar os espíritos. Esse
curso eu faço questão de abrir para alunos especiais. Havia psicólogos,
assistentes sociais, pessoas mais maduras. A resistência é por parte de
pessoas que jamais conceberam que na academia, um professor sério
pudesse dar uma aula sobre drogas que não fosse uma aula antidrogas.
Todo semestre tem pelo menos um aluno que vem esperando uma aula
antidrogas, como evitar a droga. Até esse termo droga, durante muito tempo
fui contra o uso dele porque ele tem uma carga conotativa muito forte.
“Droga, se fosse bom não tinha esse nome!”. Uma parte do curso é pra
quebrar essa visão. Pra mim esse curso é uma das coisas mais importantes
que eu faço aqui na universidade. Eu vejo mudanças radicais nas pessoas...
elas vêm falar pra mim no final do curso. Em um ou dois casos tenho feito
amizades mais ou menos duradouras. Em alguns casos surgem pessoas que
pedem para eu orientá-las. Se estabelece um clima de amizade,
cumplicidade. Eu me preocupo que as pessoas vejam isso como uma
disciplina séria, e é um enfoque sério, porque não se vê as drogas como uma
coisa séria. Por isso eu tenho que tomar cuidado, porque se pensam que eu
sou aquele professor muito louco, não vou chegar muito longe.
Eu acho que eu estou abrindo um espaço. Essa visão socioantropológica é
um campo que tá começando a se consolidar. Até agora as Ciências Sociais
não tem reconhecido a importância da discussão das drogas. Eu já sugeri à
ANPOCS (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências
Sociais), um trabalho e nunca foi aceito. A ABA (Associação Brasileira de
Antropologia) também não tem posição sobre isso. Entre as pessoas no ramo
de saúde, eles estão começando a admitir que a discussão das drogas não
deve ser feita de uma forma puramente biológica, que precisa ter uma
abordagem biopsicossocial. Mas na prática, quem entende de drogas são os
médicos. Agora, além dos psicólogos, também são chamados a dar sua
opinião, os sociólogos, os antropólogos. Mas na sociologia e na antropologia
ainda não se entendeu isso. Vem surgindo pessoas com 15 anos ou mais a
menos do que eu, e é essa geração que acho que vai realmente conseguir
consolidar essa discussão. (VALENÇA:2005,137)

Na busca por “conseguir consolidar essa discussão”, Pã é um docente que está pondo
em prática um projeto acadêmico reflexivo sobre um tema outsider, projeto que muito
além de ser um simples repasse de informações em sala de aula, propicia relações
amigáveis, pautadas na geração de confiança. Respaldados nesta confiança, alguns
alunos de Pã também esboçam projetos de pesquisa e intervenção sobre drogas levando
em conta as demandas de redução de riscos e danos da sociedade civil. Precursor esse
discurso herético, Pã aos poucos foi se tornando consagrado, um outsider estabelecido
que sustenta uma “certa reputação” para realizar um trabalho acadêmico cujos
resultados acabam atingindo os que estão além dos muros da academia.
Numa interlocução recente, Pã discordou que o movimento antiproibicionista que vem
sendo construído entre os estudantes metaespecialistas seja algo novo, pois alguns
docentes já abordavam a questão quando grande parte destes universitários ainda era
criança:

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Pã - A idéia do GIESP era aqui na UFBa, na Bahia, fornecer o espaço para essa
discussão. Não é nada pioneiro, pois em 89 em São Paulo, eu já participava do
movimento antriproibicionista com médicos e outros pesquisadores, como resposta à
Aids. Quanto ao GIESP, das nossas reuniões informais saiu o Balance, saiu a ANANDA
também.

Se a idéia do GIESP não é pioneira, sua configuração sim. O grupo é uma


comunidade acadêmica fomentada pelo CNPq, desenhando uma interface entre
cientistas sociais e médicos, professores e estudantes, na busca por quebrar a barreira
entre a representação estabelecida sobre drogas – em grande parte oriunda do discurso
das ciências médicas – e o discurso outsider sobre o mesmo tema – o discurso que se
constrói em meio às ciências sociais. A escritura dialógica da comunidade GIESP busca
o efeito de um phármakon usado como antídoto para combater uma escritura
considerada venenosa: o discurso proibicionista. Neste sentido, se entende a
preocupação de Pã em tornar público e transparente o diálogo que se constrói no GIESP
entre docentes e discentes, principalmente quando os primeiros possuem acesso a
esferas de poder que os últimos não possuem: “a gente traz notícias do governo sobre
política sobre drogas, talvez de forma não tão acadêmica, mas de forma mais militante,
pois demos fortíssimo apoio a Marcha da Maconha”.
“Talvez de forma não tão acadêmica” estes professores e estudantes, outsiders
estabelecidos e metaespecialistas, estejam levando questões investigadas à luz da
cultura acadêmica para as ruas, onde os problemas referentes ainda não receberam
soluções compatíveis.

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5.4 – Professores, estudantes e controles informais

É fundamental ressaltar que os vinte professores do universo investigado têm uma


frequência de consumo assim distribuída: quatorze consomem drogas diariamente, cinco
semanalmente e um quinzenalmente. Três destes interlocutores não percebem
incompatibilidade em consumir em horário de trabalho – entre estes, há exclusão de
100% dos consumidores de álcool - seja pesquisando, escrevendo ou mesmo
ministrando aula. Então é fato que o consumo de drogas pode ser considerado uma
prática que tem certa regularidade, não sendo uma eventualidade entre os pesquisados –
como também acontece entre os vinte e dois estudantes dos quais dez consomem
maconha diariamente, outros nove consomem semanalmente, especificamente maconha
e álcool, enquanto outros dois consomem ayahuasca quinzenalmente. Entre os
estudantes, três não percebem incompatibilidade entre produzir e consumir. Se em meio
aos discentes apenas dois usam exclusivamente substâncias lícitas – ayahuasca -, entre
os docentes três consomem apenas drogas lícitas, sendo que destes, dois se referem ao
álcool e um se refere à ayahuasca. Dos outros dezessete, apenas um consome
exclusivamente ilícitos - especificamente maconha – enquanto os outros consomem
conjuntamente lícitos com ilícitos: maconha com álcool, cocaína com álcool, maconha,
cocaína e álcool ou maconha com fármacos e ocasionalmente ácido lisérgico e ecstasy –
maconha com ayahuasca também consta, mas este dado não se refere necessariamente à
Santa Maria, que é a maconha consumida no setting consagrado como religioso.
Esta prática de consumo de ilícitos não configurou consumidores paranóicos,
excessivamente defensivos, pelo contrário, por não descuidarem de suas estruturas de
vida, mostraram-se interessados em frisar que consumir drogas ilícitas não os fazia
sentirem-se culpados por transgredir. A representação condenável do consumidor era
geralmente a representação que se podia fazer do outro. Aqui mais uma vez se
configura o jogo de poder onde se tende a buscar no consumo do outro uma
representação outsider, assim legitimando o estabelecimento do próprio consumo – o
que caracteriza a demanda por distinção. O que conta não é o valor econômico da droga
preferencial, nem seus efeitos farmacológicos, mas sim os efeitos identificados como
mecanismos de segurança da comunidade contra os de fora: “‘o desejo de demonizar os
outros se baseia nas incertezas ontológicas’ dos de dentro”, (Bauman: 2001, 198).
Mesmo em casos de consumidores que não se percebem como preconceituosos há
estigmatizações, por exemplo, consumidores preferenciais de maconha falam mal de

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cocaína: “As pessoas que cheiram são muito mais travadas, muito mais irritadas, muito
mais individualistas, menos sociáveis, menos comunicativas” - Nêmesis,
(VALENÇA:2005,168) como também falam mal do consumidor de álcool: “eu prefiro
um maconheiro que um cachaceiro!” – Têmis, (VALENÇA:2005,133). Com a mesma
intensidade, os consumidores exclusivos de álcool falam mal da cultura da maconha:
“Nunca fumei (maconha), acho chato, cheira mal, acho feio o gesto, sobretudo em
mulher” – Poseidon, (VALENÇA:2005 ,175), ou mesmo: “o que você compartilha?
sobretudo o riso, né? E uma certa besteiragem, as pessoas ficam muito... sei lá...
relaxadas demais, desligadas demais” - Zeus, (VALENÇA:2005 ,178).
Se no total houve quatorze consumidores de múltiplas drogas – geralmente maconha,
álcool e cocaína -, houve uma consumidora exclusiva de maconha que não tolerava
bebida alcoólica, e dois consumidores exclusivos de álcool que não toleravam maconha.
Também há questões de gênero indicadas. Entre os professores investigados, sete
mulheres e treze homens, 100% das mulheres se mostraram favoráveis ao consumo de
maconha, enquanto três, uma delas inclusive sendo bebedora regular, fizeram várias
ressalvas aos consumos etílicos. Já entre os homens, com exceção dos dois bebedores
exclusivos, houve uma tendência ao consumo múltiplo.
Entre os discentes os homens consomem com mais frequência e em maior
quantidade do que as mulheres. No total de interlocutores estudantes apenas dois não
consomem ilícitos, sendo que entre os vinte restantes não houve maiores resistências ao
consumo múltiplo. Foi perceptível que a cocaína vem sendo substituída pelo ácido e
pelo ecstasy e não apenas entre os que frequentam a cena eletrônica. Dos oito estudantes
de medicina, cinco se mostraram preocupados com o consumo de álcool, buscando
efetivar um consumo adequadamente controlado desta substância, pois creditam ao
álcool um potencial danoso maior do que o das outras substâncias que costumam
consumir. Se parece haver um consumo mais seletivo de substâncias entre os
professores do que entre os estudantes, também se pode perceber que o consumo
múltiplo dos discentes pode oferecer mais possibilidades na busca por liberdade ao
tempo em que apresenta mais riscos à sua segurança. Em meio a estes últimos, há uma
maior busca por controle entre as mulheres do que entre os homens – e estas,
definitivamente descartam a imagem do beberrão como uma representação de usuário
que lhes seja sedutora.
Apenas para efeito analítico, pode-se dizer que a ortodoxia está sendo representada
pelos docentes consumidores de drogas lícitas que nunca se propuseram a conhecer o

280
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ponto de vista dos heterodoxos, ou seja, o ponto de vista dos consumidores de drogas
ilícitas. Já estes últimos, nunca tiveram maiores dificuldades em consumir drogas lícitas
como o álcool, mesmo não estabelecendo identificações mais significativas. O que se
deve ressaltar é que, apesar das reservas de mercado de cada comunidade de
consumidores, nenhum interlocutor se manifestou a favor da proibição do consumo do
outro, mesmo que este lhe soe como outsider aos seus habitus sociais. Também na
cultura das drogas parece difícil estabelecer uma relação social sem que haja um
outsider. O ponto central é que como a convivência com as diferenças212 constitui um
dos aspectos básicos da estrutura antitética da cultura de consumo, ver no outro o
outsider já não impede que estes professores mantenham com ele relações civilizadas.
Entre os professores mais experientes – 50% deles com 15 ou mais anos de carreira
- há indícios de que o consumo seja identitário, sendo representado como o consumo
característico de sua geração, principalmente o consumo de álcool e de maconha. Estes
professores mais experientes também não têm maiores preocupações quanto à sua
reputação, pois se sabem estabelecidos, principalmente no caso de consumidores de
drogas lícitas. Já os professores com menos tempo de carreira preferem se manter sob o
véu da discrição, sendo mais cuidadosos na administração de sua liberdade, na medida
em que os mais experientes parecem já tê-la sob controle.
Considerando que não há nenhum interlocutor com menos de sete anos de consumo
em relação à sua droga preferencial, é significativo o fato de 15% deles exercerem o
controle não comprando o que consomem – ou se o fazem, se referem eufemisticamente
ao fato como comprando para dividir com um amigo, deixando claro que a aquisição
não é necessariamente fundamental para seu consumo. Observe-se que essa recusa em
investir numa relação mercadológica não está diretamente relacionada com a falta de
recursos financeiros, sendo especificamente um mecanismo de controle que funciona
mais ou menos assim: se não é preciso comprar, é sinal que não há dependência. De
certa forma, esse comportamento inverte a lógica de Grund sobre a disponibilidade de
aquisição, pois a segurança aqui está em consumir sem priorizar a posse da substância.
Contudo, vale registrar que esse procedimento não anula o desejo de consumir, como
salientou a docente Hécate: “eu não me sinto dependente, então eu sei que já tive
momento de fissura213...‘eu quero fumar hoje, eu quero!’(risos). Eu acho que a maconha
em mim causa fissura, sobretudo se eu tenho. Se eu não tenho, pode não acontecer”

212
- e nesse caso as diferenças são multiculturais e transculturais.
213
- fissura = desejo de fumar.

281
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(Valença:2005,79). Já em meio aos estudantes, ter a sua própria droga é o ideal de


consumo, e quanto mais possuírem, mais se sentem seguros, pois assim precisam ter
menos contato com as rotas do tráfico. Os poucos estudantes pesquisados que não
compram suas substâncias estão sofrendo limitações financeiras, limitações que estão
acima de qualquer outra manobra para efetivar controles informais de segurança.
No cômputo geral é possível perceber que, nas configurações entre drogas e a
imagem dos docentes, não são perceptíveis representações levando em conta direta e
exclusivamente o consumo enquanto ostentação do status quo. Pã, o docente com maior
poder aquisitivo e oriundo de família mais tradicionalmente estabelecida, não é
consumidor de cocaína, uma droga cara e que no senso comum está associada às classes
mais favorecidas. Pelo contrário, o consumo de cocaína acontece entre professores
oriundos da classe média não parecendo indicar uma tentativa de distinção – uma única
exceção talvez possa ser feita no caso de Príapo, o único dos interlocutores que cultiva a
imagem de transgressor, saindo para baladas agitadas com alguns alunos e garotas de
programa. Também perceptível é que nesta amostra o consumo de cocaína foi mais
presente entre os professores gays – em 80% dos casos - o que hipoteticamente pode ter
conexão com o fato destes interlocutores frequentarem mais a vida noturna, bares e
danceterias, como diz Eros: “Eu geralmente uso em bares, na vida noturna que vai até
de manhã, e você não vai até de manhã sem um estimulante”, (Valença:2005,151).
A predominância de orientação sexual foi distribuída em214: treze heterossexuais,
cinco homossexuais, um bissexual e um não precisamente definido. Entre os estudantes
dezenove eram heterossexuais dois eram homossexuais, e um bissexual. Etnicamente
houve registro de três professores negros, dezesseis brancos e um mestiço. Em meio ao
corpo discente foram registrados dezenove brancos, uma negra e dois mestiços. Os
interlocutores que são gays e/ou negros por fazerem parte de minorias mais
estigmatizáveis, buscam um maior controle sobre os riscos da exposição da imagem –
como indica Salomé - o que não quer dizer que não se exponham.
Se as configurações encontradas entre os professores têm no consumo de drogas a
ponta do iceberg de seu estilo de vida, estes professores trazem como reflexão que a
sociabilidade em torno desse consumo é mais importante do que os efeitos
farmacológicos das drogas em si. Enquanto a maioria dos estudantes que consomem
drogas sobrevaloriza as suas buscas por transcendência (54%), os professores colocam a

214
- um quadro com o perfil dos interlocutores está disponível na página 300.

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sociabilidade como o aspecto central do seu consumo (60%). Às vezes em um recorte


institucional, no universo dos docentes há configurações que de forma geral ajudam a
ressignificar a representação da sua imagem pública, com a inclusão de habitus sociais
até então considerados outsider à representação de um professor. Na esfera pública,
alguns destes já não temem ser vistos, muitas vezes com os próprios alunos215, em
bares, em festas ou até em atividades de fundo místico-religioso não exatamente
ortodoxas.
Algumas das referências mais distintivas encontradas entre estes professores foram
provenientes dos discursos dos que são pais e mães. A responsabilidade que acompanha
a representação da paternidade e da maternidade parece não ser tão simples de ser
ressignificada, principalmente quando os filhos passam a ter algum contato com o
consumo de drogas, fazendo com que estes pais e mães algumas vezes tenham que
ceder um pouco de sua liberdade enquanto consumidores de drogas, em prol da
segurança da família. Se entre os estudantes interlocutores cujos pais e mães consumiam
drogas, os seus pais estreitaram mais contato em relação à questão do que as respectivas
mães. Já entre os professores interlocutores que são pais, a maioria procura protelar o
enfrentamento da questão com os filhos, enquanto as professoras mães se posicionam de
modo mais presente. Assim há mãe que não aceita certos consumos diferentes dos seus
por parte do filho como também há mãe que através do consumo, seu e do filho, busca
estreitar os laços. Em ambos os casos, essas mães são levadas a ressignificar seus
consumos. Já no caso de mães que escondem seus consumos de seus filhos há um abalo
na autorepresentação quando estas se percebem colocando a liberdade pessoal,
duramente conquistada, na dependência da segurança familiar:

Hécate - Eu já tenho dois filhos, então já tive a experiência de conversar


com eles... um agora tem 11 e outro tem 8. Anos atrás eu já conversei com
eles. Eu disse: olha tem uma plantinha aqui que é muito especial, eu gosto
muito de usar, mas lá fora as pessoas não gostam, acham que é errado e tal,
tive essa conversa. Mas depois eu fiquei um pouco pirada, preocupada, pela
relação deles lá na escola, como é que vai trabalhar isso, como é que eles
vão pensar, porque a escola tem uma outra cultura. Então como é que ele vai
dimensionar a mãe nessa outra leitura, e aconteceu muito recentemente uma
coisa muito curiosa. Duas semanas atrás um amigo apareceu lá em casa com
um “beck”216 um dia de domingo e a gente ia fumar... e aconteceu, assim
depois que ele saiu, meu filho mais velho me questionou, porque que eu
tinha mentido, pois o mais novo chegou com um coleginha, então ele

215
- a sociabilidade também é um quesito importante para as comunidades dos estudantes, mas para estes,
diferentemente do que demonstram os professores, a sociabilidade não é uma questão aparte da busca por
transcendência, nem mais importante do que esta.
216
- beck = baseado.

283
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perguntou: que cheiro é esse? Eu falei: é incenso. Aí ele desce e vai lá pra
baixo, aí os coleguinhas perguntam: ‘que cheiro é esse?’ É incenso, é da
minha casa, ai o mais velho me questionou: por que eu menti, que não era
incenso coisa nenhuma, que ele sabia que era maconha, e por que eu tinha
mentido, eu disse: ‘como você sabe’? Aí ele disse: ‘você mesma já me disse,
(risos de Hécate) eu tenho medo, não quero que você fume mais aqui, me
prometa’... aí ele começou a chorar, ‘me prometa, pelo menos aqui não,
porque todo mundo lá sabe, as pessoas falaram que era maconha e eu tenho
medo que você seja presa’. Eu prometi que eu não fumo lá, (risos) pelo
menos quando ele estiver (risos). Eu fumo constrangida achando que eu tô
expondo mesmo. (VALENÇA:2005, 182/3)

Numa flexibilização de papéis, se por um lado Hécate parece que com o casamento se
livrou da pressão exercida pelos pais, por outro lado, com a maternidade passou a
sofrer a pressão dos filhos. A pressão já não era sentida enquanto filha, era sentida
enquanto mãe, na verdade sendo mesmo duplicada, porque além de mãe Hécate é uma
educadora por profissão. Nesse caso a questão que pesou na balança foi cumprir sua
promessa para o filho e não fumar ou mentir e manter seu prazer. Mas Hécate não é a
única interlocutora que atua sob tais pressões:

Nêmesis - Meu filho já experimentou maconha, ele não é um fumante,


mas já experimentou e ele tem 18 anos. Tabaco de jeito nenhum! De jeito
nenhum! A minha relação com ele é muito tranquila. Quando ele tinha 10,
11 anos ele aceitava até mais do que hoje. O choque dele era como abrir
pros amigos que tinha uma mãe que consumia drogas, a mãe e o pai. Ele
chegou a dizer pra mim: ‘sabe qual é o seu problema? É que você fuma’, um
dia ele brigando comigo ele disse isso. ‘Sabe qual é o problema de meu pai?
É que ele fuma’. Agora já tá muito mais tranquilo, mas quando eu ouvi isso
a minha rebeldia, que eu sou uma pessoa rebelde, bateu. Eu não acredito que
meu filho tá dizendo isso, né? Se ele vê isso como uma coisa negativa... a
gente (eu e o pai) já chegou a conversar com ele. Eu disse: ‘sabe qual é o seu
problema? É que você é careta’ (risos). Não tô fazendo apologia às drogas,
mas cê vê que é um pouco isso. Pra você ver que era o momento também.
Quando ele chegava da escola, quando ele era menor, ele não queria ver o
cheiro, ele dizia: apaga, apaga, apaga, meus amigos estão chegando. Ele
fazia um pouco o avião entre eu e o pai, ele levava maconha pro pai.

T.V. - Você se sentia culpada?

Nêmesis - Nunca me senti culpada, nunca, nunca, porque era uma coisa
muito aberta. Não teve essa de ah, eu não devo fumar, de jeito nenhum. Eu
já soube que ele experimentou, eu falei: ‘você pegou da minha’, ele falou:
‘eu comprei pra fumar com meus amigos, não peguei da sua’ (risos).
Como eu agiria em relação a meu filho se ele tivesse acesso a ácido?
Sabe que eu não sei... Sabe como eu agiria? Eu sou uma mãe tradicional. Eu
sou tão aberta num sentido, mas eu sou caretérrima. O dia que ele falou que
tinha bebido eu virei a fera, (foi quando ele ia fazer 17 anos). Eu gritava: ‘de
jeito nenhum. Só quando você tiver 18 anos e tudo mais’.
(VALENÇA:2005,184)

284
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Se a mãe de Nêmesis ficou chocada quando soube que ela fumava maconha, Nêmesis
também ficou chocada quando soube que seu filho consumiu bebida alcoólica, contudo,
ela não pensou em internar seu filho como pensou sua mãe em relação a ela. De uma
geração para outra, o receio materno em relação ao consumo de drogas ainda existe, o
que mudou foi a substância em questão. Enfim, estabeleceram-se relações ambivalentes
entre filhos usuários que passaram a ser pais e agora revivem a problemática das drogas
nas relações com seus filhos. Sendo que doze integrantes do grupo de professores são
pais, três destes são pais de filhos usuários. Entre estes, dois fumam maconha
ocasionalmente com seus filhos. Já entre os estudantes apenas um deles – Mozart - é pai
e em settings familiares controla seu consumo em função dessa paternidade. Os outros
vinte e um estudantes não estão preocupados com a questão da paternidade nesse
momento de suas carreiras – dezoito deles estando na faixa dos 20 anos – pois a
construção de suas identidades, diferentemente de seus pais não se estrutura tendo a
geração de filhos como valor básico.
As configurações familiares são cenários por excelência para a transformação da
intimidade (Giddens, 1992), principalmente quando são perspectivadas relações mais
reflexivas e solidárias. Estes, porém, não são os únicos cenários em processo de
transformação. Numa cultura de consumo, o setting religioso também adquire nuances
variadas muitas vezes num movimento de reencantamento de configurações
comunitárias que sustentam valores religiosos ortodoxos. As novas religiões urbanas,
sejam neopentecostais sejam new age, se apresentam historicamente como dissidências
de estruturas religiosas tradicionais217. Numa cultura cada vez mais mimética, estas
novas manifestações de religiosidade interpenetram o campo acadêmico onde podem
ser encontrados adeptos e estudiosos das citadas práticas, flexibilizando a laicidade da
ciência. O discurso religioso, que nos anos 1960 foi rejeitado em larga escala tanto por
universitários quanto por usuários de drogas como uma perspectiva social estabelecida
que foi imputada de forma dogmática, pôde reflexivamente vir a ser ressignificado – a
fé como fruto da escolha e não como fruto da falta de escolha.
Nereu foi um dos quatro interlocutores professores que buscou essa ponte entre a
ciência acadêmica e a fé. Se de certo modo ele demonstrou procurar um controle

217
- e como fenômenos concretizados numa cultura de consumo que merecem referência é mister citar a
pentecostal Igreja Bola de Neve frequentada por artistas, universitários e praticantes de esportes radicais -
com liturgias embaladas ao som de rock e reggae - e a católica Igreja Maradoniana que cultua o pop star
do futebol Diego Maradona como um Deus, contando com uma comunidade de mais de 100 mil fieis
espalhados pelo mundo, (globoesporte.com:01/09/09).

285
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pragmático sobre o consumo de drogas, ao entrar na abordagem da questão religiosa,


manifestou uma maleabilidade quanto à sua demanda por controle:

Nereu - Eu não conheço outras drogas, agora eu usei muito a ayahuasca,


usei jurema também, uma experiência muito semelhante à ayahuasca. Foi
uma descoberta, porque foi num contexto religioso, tem toda uma carga
emocional, uma expectativa grande. A potencia da substância é
incomensurável com um baseado, mexe profundamente com seu
inconsciente, entra em contato com regiões interiores de uma forma muito
intensa e prolongada. Na primeira vez que tomei, no caso era o Daime, foi o
contato com a espiritualidade, eu fiquei tocado com o reencontro com a
religiosidade. Eu tive uma formação católica, acreditava em Deus até entrar
na adolescência, não tinha uma prática religiosa, mas tinha um sentimento
de respeito. Com a adolescência fiquei ateu, totalmente materialista. Hoje
penso que o lugar da religiosidade é o lugar do mistério. O Daime também
foi através de amigos, lá na Chapada (Diamantina), tomei na mata, num
ritual. É a coisa de contato com a natureza e sentir o corpo. Nesse período
continuei fumando maconha de maneira lúdica, sem problema nenhum...
aliás, acabou dando um certo significado... a experiência com a maconha
mudou, mexer com estados de consciência não é brincadeira. A partir de
uma consciência maior do que eu estava fazendo quando eu estava usando
um psicoativo, eu passei a ter um respeito maior pela maconha. Ela tem que
ser usada de uma maneira que me faça bem. Tenho curiosidade de conhecer
o ecstasy, eu acho que uma ou duas experiências não mataria ninguém não.
Faltou oportunidade, também eu não quero sair atrás.
(VALENÇA:2005,189/90)

As experiências com o Daime favoreceram que Nereu reencantasse a sua leitura de


alguns valores ligados ao catolicismo, inclusive configurando a religião em sua vida
como “o lugar do mistério”. Essa possibilidade de fusão de uma estrutura religiosa com
o consumo de uma substância psicoativa indica como alguns interlocutores podem estar
mais próximos de significar a cultura do Daime enquanto procedimento reflexivo, do
que concebê-lo como fruto da fé cega, quando a entrega muitas vezes oblitera a
reflexividade.
Pã - Quando o Daime surgiu eu pensei: se eu tenho que participar de
alguma religião tem que ser essa. Tem os sacramentos, tem um chá que
parece ácido e tem a cannabis também. (VALENÇA:2005,193)

Essa fala indica que um nicho de tradição permaneceu pulsando no set do interlocutor
até que ele pudesse estar integrado num setting em que ambas as possibilidades, o
estabelecido – “os sacramentos” - e o outsider – “um chá que parece ácido e tem a
cannabis também” – não causassem conflitos internos e melhor, sem a pecha de uma
cultura marginalizada, pois ao dispor “sacramentos” e “psicoativos” num mesmo
setting, Pã pode estar indicando a superação do “desvio”: o consumo de sacramentos
que se enraízam num processo comunitário mantendo um aspecto que propiciava

286
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segurança às culturas tradicionais que é o pertencimento, não é uma representação


incompatível com o consumo de psicoativos que “dão asas” à busca individual por
liberdade e satisfação. Nessa configuração mimética, o setting estabelecido favorece a
geração de confiança em torno dos sacramentos, sem que sejam castradas as
possibilidades de satisfação. Vale ressaltar que o setting ayahuasqueiro congrega 20%
do universo docente pesquisado.
Pude constatar esta estruturação de confiança comunitária quando participei de um
ritual daimista – onde foram trabalhados hinários de cura e de chamada – ritual
realizado em uma praia de Salvador. Havia cerca de 120 participantes na celebração que
aconteceu entre as 21 horas de um sábado e às 6 horas da manhã seguinte. Em meio à
condução tranquila do processo com os participantes entoando cânticos melodiosos
acompanhados por jovens músicos afinados, foi possível verificar a harmonia
comunitária. Pã e Nereu entre os professores, Oscar Wilde e Mata Hari entre os
estudantes, eram alguns dos interlocutores que estavam presentes, entre vários outros
professores e estudantes de psicologia, medicina, história, antropologia, sociologia, etc.
Um aspecto que merece registro é que entre pessoas que geralmente não estabelecem
grandes laços comunitários quando no setting acadêmico, aconteceram aproximações
num nível além do meramente diplomático. Alguns professores e estudantes
permaneceram unidos até nos lugares em que sentaram durante horas. Nesse recorte
houve ligeira inversão dos “lugares de poder”; certos estudantes se mostraram muito
mais ativos na condução do processo; ajudando outros a realizar os procedimentos,
fazendo música, ao passo que os professores estavam mais centrados nas suas viagens,
introspectivos. Os cantos entoados repetidamente e a permanência durante mais de oito
horas seguidas em processo litúrgico foram atividades miméticas que propiciaram um
sentido comunitário ao efeito do enteógeno218 que vigorou até o raiar do dia.

218
- embora a ayahuasca tenha sido retirada da lista de substâncias proibidas em 1987 se restringido seu
uso ao sentido comunitário de um setting religioso, sua despenalização continuou sendo bastante
criticada, a ponto de sua condição precisar ter sido ratificada em janeiro de 2010 pelo CONAD (Conselho
Nacional de Políticas sobre Drogas). Em março deste mesmo ano, o assassinato do cartunista Glauco,
líder da Igreja daimista Céu de Maria em Osasco (SP), por um jovem usuário psicologicamente instável
que passou por três faculdades sem ter êxito em nenhuma delas, reacendeu a polêmica. O debate que
ganhou representação midiática foi construído em torno da relação entre substâncias psicoativas,
religiosidade e violência, pois segundo testemunhas, o acusado frequentava a Igreja para se curar da
dependência de cocaína e chegou a vender maconha para comprar a arma do crime, além de ter
assassinado também o filho de Glauco e posteriormente na fuga ter ferido um policial. De acordo com o
pai do acusado, foi a partir do consumo de Daime que sua personalidade tornou-se mais confusa –
conversas com plantas, afirmações de que seu irmão era Jesus, etc. De estabelecida, a cultura daimista foi
acusada de ser o problema para alguns usuários potencialmente problemáticos, voltando a ser
representada como cultura outsider.

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5.5 - Recursos miméticos para reencantar a realidade cotidiana

Se práticas religiosas ganham espaço, alguns professores consideram que entre as


atividades que são facilmente associáveis com o autoconhecimento e a busca por
transcendência, as práticas esportivas não merecem maiores investimentos. As
atividades – e suas representações miméticas - eleitas por estes geralmente não buscam
um maior controle sobre o próprio corpo, mas sim uma liberação da mente ou do
espírito, e nesse sentido, quando tais atividades não são de ordem terapêutica ou
religiosa, cumprem uma função sexual. Diferentemente, os estudantes acreditam que os
controles exercidos em relação ao próprio corpo são importantes para a configuração do
bem-estar e da busca por felicidade. Eles investem em esportes (nove deles) e
exercitam a sexualidade sem a compulsividade do descontrole de limites que marcou a
juventude de alguns professores mais velhos - lembrando aqui que os discentes Zumbi
e Cleópatra negaram as representações dominantes sobre as manifestações da
sexualidade na cena eletrônica (pgs. 202 e 204).
Já quando o ponto de referência são os demarcadores tradicionais da cultura
ocidental, a proximidade entre as duas comunidades foi maior. Foi observado que os
professores são consumidores de um capital cultural musical, cinematográfico e literário
em grande parte centrado nos anos 1960: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil,
The Beatles, The Rolling Stones, Dylan, Joplin, Buñuel, Godard, Fellini, Glauber,
Kubrick, Garcia Marques, Huxley, Leary, e alguns autores que despontaram nos anos
50 como Sartre, o pessoal da Beat Generation e Jorge Amado. Vários estudantes
também abraçaram doses de capital cultural configurado nos anos 60; de The Beatles e
Caetano a Huxley, Leary e Castañeda, passando por Godard e Fellini. Estes autores
construíram obras que puseram e ainda põem em xeque o patamar de valores culturais
“naturalizados” como tradicionais e se foram inicialmente representados como
outsiders, com o passar do tempo ganharam status como estabelecidos.
As significações para o consumo que professores e estudantes operam passam pelos
efeitos farmacológicos das drogas, mas não se limitam a estes. Por exemplo, os
professores consumidores exclusivos de bebida alcoólica afirmam claramente estar em
busca de sociabilidades, já que o grande prazer desses bebedores é beberem
acompanhados, muito mais do que simplesmente beber – inclusive Poseidon não leva
bebida para casa, pois seu lugar de sociabilidade é no barzinho. A professora Panacéia,
consome seus antidepressivos e ansiolíticos sozinha, para posteriormente se sentir mais

288
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apta a encarar o convívio social, seja para trabalho, seja para lazer. O estudante Buda
afirma claramente que o consumo de maconha está lhe proporcionando novas
possibilidades de relacionamento. Este sentido de consumo tanto para professores
quanto para alunos passa longe da representação do usuário de drogas como aquele que
troca o Outro pela droga. Aqui o perceptível é que o consumo de drogas pode facilitar a
participação em um contexto comunitário, e este parece ser o objetivo comum para a
maioria dos interlocutores.
No caso dos professores que estão com mais de 40 anos (65%), atualmente o
momento de uso ganhou outra significação, pois a mudança de setting cultural não
limitou as possibilidades de consumo às estruturas comunitárias estabelecidas no
passado. Se nas rodas de fumo de duas décadas atrás eles buscavam segurança uns nos
outros, hoje já não dependem tanto dessas rodas para afastar os riscos, sendo comum o
consumo solitário. Quando frequentam novos círculos de consumidores, às vezes
incluindo colegas e alunos, o fazem não tendo a droga como elemento central, mas
apenas como um catalisador que integra pessoas com valores próximos. Alguns
inclusive, indicam que consumir drogas já foi um critério de seleção para se estabelecer
vínculos, mas hoje tal critério não procede, pois há “caretas” que consomem drogas, da
mesma forma que há “doidões” que não consomem.
Com estes emparelhamentos de dados configurados entre professores e estudantes é
possível refletir sobre os controles informais disponibilizados por estes acadêmicos
como estratégias redutoras de riscos, destacando seus manejos da distinção acadêmica
na ressignificação das representações em torno de suas imagens. Com este objetivo
foram aqui emparelhados algumas práticas miméticas centrais utilizados em seus estilos
de vida para reencantar as tradições cotidianas – os novos habitus sociais referentes a
sociabilidade comunitária que retroalimenta valores tanto familiares quanto religiosos.
Enfim, dados que põem em foco algumas representações que caracterizaram o homo
academicus na sua vivência do processo civilizador em sua atual configuração enquanto
cultura de consumo.

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5.6 - Reflexões finais

As conexões de sentido entre uso de drogas e reflexões acadêmicas não são


novidades apesar do estranhamento que estas interpretações ainda podem proporcionar.
No livro "A Farmácia de Platão", o filósofo Derrida indica que no período clássico da
cultura grega o conceito de phármakon sustentava uma maleabilidade de sentidos,
inclusive podendo ser interpretado tanto por remédio quanto por veneno. Já na França
do começo da década de 1970 quando o livro foi publicado havia uma tendência
hermenêutica dominante em representar o phármakon exclusivamente como remédio,
pois, o vocábulo veneno guardava proximidade com o vocábulo droga, que estando
interpenetrado a valores considerados subversivos, se encontrava politicamente
estigmatizado. Derrida resgata a percepção de que uma característica fundamental do
phármakon é não estar naturalizado enquanto substância, não sendo necessariamente
remédio ou veneno. Contudo, a questão central é que o conceito na antiguidade não era
aplicado exclusivamente às substâncias psicoativas219, mas também às escrituras,
documentos que àquele período eram produzidos exclusivamente pelas mãos dos
frequentadores das academias filosóficas220.
Se, interpretando Derrida, a escritura – ou o produto do conhecimento em condições
materiais de consumo - pode ser contemporaneamente representada também como um
phármakon, a Universidade e especificamente as Ciências Humanas são o campo
comunitário que representa por excelência o local da produção de escrituras. Nesse
sentido, quando acadêmicos – professores e/ou estudantes – elegem discutir
publicamente com a sociedade a possibilidade das drogas poderem ser significadas
como remédios, não estariam indicando também que a própria cultura acadêmica pode
ser um phármakon agindo como antídoto contra o veneno da cultura proibicionista?
Talvez a possibilidade de interpretação da comunidade acadêmica enquanto
phármakon forneça um sentido a informação de que a primeira manifestação pública
pela descriminalização da maconha no Brasil tenha acontecido na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 1976 (Henman & Pessoa:1986).
219
- Aristóteles denominava phármakon o prazer curativo proporcionado pelas atividades miméticas,
(ELIAS & DUNNING: 1992, 101).
220
- nas atividades acadêmicas que caracterizaram o período, o uso de substâncias psicoativas fazia parte
da cultura da temperança: “Epicarmo considerava a lírica incompatível com a sobriedade, e Simónides
pensava o mesmo em relação a comédia”, (ESCOHOTADO: 2008, 151). Em relação ao consumo de
vinho Platão aponta em As leis que este: “permite a alma adquirir pudor, e ao corpo a boa saúde e a força”
(ESCOHOTADO:2008, 152).

290
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Ainda no final dessa década, estudantes de Ciências Sociais da UFRJ editaram o jornal
de teor antiproibicionista, O Patuá. Também foi emblemático o Primeiro Manifesto
Brasileiro pela Legalização da Cannabis que ocorreu na Faculdade de Filosofia da PUC
de São Paulo no começo da década de 80, assim como o Primeiro Simpósio Carioca de
Estudos sobre a Maconha, o “Maconha em Debate”, que teve curso no Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (Gabeira:2000,42/43). Estes debates foram
direcionados para refletir publicamente sobre as implicações da política proibicionista.
Seguindo tal linha reflexiva, a escritura dos coletivos antiproibicionistas - que não é
representada necessariamente pelos seus escritos, mas pelos seus atos - também
configura o efeito de um phármakon usado como antídoto para combater os efeitos
deletérios da escritura proibicionista. Quanto a isto, os professores, que se mostraram
mais dispostos a se comprometer com a corrente pesquisa do que os estudantes,
sustentam representações a respeito do que seja política bem mais tradicionais que os
discentes, que por sua vez configuram política em sintonia com o que Giddens chamaria
de política de vida.
Se por um lado alguns professores estão mais envolvidos em projetos de pesquisa e
intervenção já na sua base ligados as Instituições como o próprio CETAD, a REDUC
(Rede Brasileira de Redução de Danos), e a ABORDA (Associação Brasileira de
Redutoras e Redutores de Danos), do Nós-grupal da comunidade estudantil surgiram
iniciativas que acabaram ganhando o apoio posterior das Instituições. É o caso de
projetos como o Coletivo ANANDA e o Coletivo Balance de Redução de Danos,
autênticos antídotos antiproibicionistas. É importante salientar que 50% dos
interlocutores presentes estão incorporando estratégias de redução de riscos e danos ao
seu estilo de vida cotidiano. Entre os acadêmicos da Grécia Antiga, o que determinava
se o consumo era representado como consumo de remédio ou de veneno era a
capacidade de cada um dos consumidores para exercitar o controle – controle que na
época era chamado temperança - sobre o próprio consumo. Hoje, o que poderia oferecer
a medida desse consumo ser representado como controlado ou compulsivo é a
capacidade por parte do consumidor para a incorporação do habitus social da redução
de riscos e danos enquanto estratégia civilizatória.
O modelo proibicionista que encontrou apoio nos puritanos desde o século XIX vem
desde então interpretando a temperança como abstinência. Os presentes interlocutores

291
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interpretam o autocontrole enquanto busca por equilíbrio221 entre excesso e abstinência,


entre os riscos de um consumo compulsivo ou descontrolado por um lado – ausência de
segurança – e por outro, de uma repressão ao consumo – ausência de liberdade. Em
última instância o discurso proibicionista além de soar utópico no que diz respeito às
demandas do consumidor, segue em rota de colisão com os resultados de estudos
contemporâneos sobre a problemática desse mercado. Se em 2009, a maconha parece
ser uma solução para Estados falidos como uma nova fonte de impostos, como na
Califórnia, já se falava sobre essa possibilidade há alguns anos:

“o Prêmio Nobel de Economia de 1985 - Milton Friedman - e


membro do conservador Instituto Hoover, na Califórnia, encabeçou
uma lista de 500 economistas enviada ao presidente George W. Bush
e aos membros do Congresso norte-americano que pedia a
legalização da maconha. Ele baseia seu pedido no estudo recém-
divulgado de um economista de Harvard que calcula que a medida
economizaria US$ 14 bilhões por ano ao país. Friedman apóia a
medida por razões econômicas, mas também morais. ‘Nos últimos
mil anos, nunca houve uma morte por overdose de maconha’, disse o
economista norte-americano em entrevista exclusiva à Folha,
repetindo um argumento que milhões de adolescentes do mundo
sabem de cor”, (FOLHA DE SÃO PAULO, 19/06/05).

Também no campo jurídico, há setores que já não fazem do discurso proibicionista


uma unanimidade estabelecida, levando em conta que a cultura contemporânea
privilegia a liberdade individual e a esfera privada, sobremaneira:

“[...] quaisquer que sejam as penas previstas ou aplicadas, a


gravidade maior da política proibicionista revela-se na indevida
intervenção do sistema penal sobre a liberdade individual, a
intimidade e a vida privada dos consumidores, desrespeitando
garantias fundamentais do indivíduo, que são inseparáveis do Estado
Democrático de Direito e estão asseguradas na Constituição Federal
brasileira. (KARAM: 2003, 49).

Em campos tradicionalmente estabelecidos enquanto ortodoxos nas humanidades,


como o econômico e o jurídico, há debates em curso sobre a adequabilidade e a
legitimidade de não reduzir as drogas à classificação de veneno que deve ser proibido.
Num recorte macrosociológico, O antiproibicionismo vem sendo concebido como a
grande redução de danos sociais que alguns setores desses dois campos investigam, por

221
- no modelo cultural grego, e não só entre os acadêmicos, o uso dos prazeres era moralmente
recomendável para os que buscavam uma boa saúde (Foucault, 2006).

292
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mais distintas que sejam suas visões de mundo, como um mecanismo de controle social
alternativo em relação aos atuais mecanismos de controle. Essa perspectiva está
ancorada na tese de que no estado de direito, onde o indivíduo tem liberdade legal para
com seu corpo, a sociedade não pode violentá-lo em nome da segurança do próximo:

Ter em sua posse drogas qualificadas de ilícitas para seu consumo


pessoal ou consumi-las em circunstâncias que não tragam perigo
concreto, direto e imediato para outras pessoas, são condutas
privadas, que estão situadas na esfera individual, isto é, em um
campo de atividades que diz respeito, unicamente, à intimidade e à
vida privada de cada um. Faz parte da liberdade, da intimidade e da
vida privada de cada um a opção por fazer coisas, que pareçam para
os outros – ou que até, efetivamente, sejam – erradas, “feias”,
imorais ou danosas a si mesmo”, (KARAM: 2003, 49).

Nos dias de hoje fazer coisas “que pareçam para os outros” “erradas, ‘feias’, imorais
ou danosas a si mesmo” pode ser interpretado como ameaça à segurança coletiva, mas
esse é um risco que acompanha a busca por liberdade individual. Esta perspectiva não
seria interpretada na Grécia Antiga como um conflito: “No uso dos prazeres [...] as
regras morais às quais os indivíduos se submetem são muito distantes daquilo que se
pode constituir uma sujeição a um código bem definido”, (Foucault: 2006, 52). Em
outras palavras, entre os gregos “uma sujeição a um código bem definido” era estar sob
o olhar público e proceder de acordo, era aceitar o sentido desse olhar sem sentir
maiores estranhamentos, porém, longe desses olhares, não existiam limites para o uso
dos prazeres. As fronteiras do controle social iam até onde os olhos e ouvidos da
comunidade podiam captar. Não era imputada a vergonha ou a culpa aos que na
privacidade usavam seus corpos para obter prazer. Nesse cenário, a temperança
demandava levar em conta não apenas o próprio set do sujeito, mas principalmente a
sua adequabilidade ao setting no qual se encontrava para operar os controles informais:
“Pode-se reconhecer, na reflexão sobre o uso dos prazeres, o cuidado com uma tripla
estratégia: a da necessidade, a do momento e a do status” (Foucault: 2006, 52). Como
resultado da implementação desta estratégia a temperança pode ser hermenêuticamente
definida como o limite entre o uso controlado e o uso descontrolado dos prazeres.
Na cultura de consumo, o phármakon e a temperança são categorias ainda relevantes
para pensar as drogas, tanto que as estratégias gregas de controle dos prazeres não são
muito diferentes das estratégias de redução de danos que atualmente muitos
interlocutores buscam praticar. E mais; num plano teórico, ao considerar o momento e o

293
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status como estratégias fundamentais para a configuração da temperança, é possível ver


que o setting postulado por Zinberg segue no mesmo sentido. Num plano prático,
quando estas estratégias não são postas em curso, por exemplo, no consumo de crack
que é o phármakon atualmente representado como puro veneno, se estabelece um
setting de intemperança.
O crack é cada vez mais representado como o veneno das cidades grandes,
propiciando o status de exclusão aos intemperantes que se incluam no seu consumo. O
estudante Garrincha continua tentando expurgar esse phármakon venenoso do corpo, e
os meios encontrados o levaram mais uma vez para uma internação – involuntária -
junto a uma Instituição religiosa. De acordo com o seu relato – e ele afirmou que
muitos outros internos pensavam como ele -, os processos de cura empregados pelas
instituições religiosas que atuam no combate às drogas não acusam mais os usuários de
não terem fé - como faziam os puritanos no século XIX - , pois por não possuírem-na
são os “escolhidos” para receberem-na na Instituição. Com a devida temperança,
Garrincha e seus colegas poderão receber doses de fé como um remédio que expurgará
de seus corpos o veneno das drogas: “eu não podia assoviar uma música que não fosse
cristã!”. Nesse setting, a abstinência é o modelo de temperança proposto como objetivo,
e abstinência não apenas de drogas, mas de valores outsider:

Garrincha - Eu fui levado pra uma internação em SP. Durou um ano, na verdade foi
contra minha vontade porque eu não quis ficar e neguinho me pegou a força e me jogou
numa fazenda em São Carlos. Foi uma onda contra a minha vontade, isso até hoje eu
tenho aqui... sei lá [...] mas ter de trabalhar pro cara, trabalho físico, tive que aguentar
questão de ser subordinado lá dentro, sem ter argumento e ter que tar adaptado a
filosofia deles, aquela coisa cristã”.

Se as Igrejas que buscam a abstinência dos usuários descontrolados representam as


drogas como phármakons venenosos, os adeptos dos cultos ayahuasqueiros concebem a
ayahuasca como “o remédio”, reencantando o phármakon como cultura positiva. A
temperança dessas comunidades ayahuasqueiras se mostra quando seu enteógeno é
utilizado ritualisticamente para curar os usuários do veneno das outras substâncias. Num
sentido mercadológico, já se pesquisa as possibilidades de associar legalmente a
ayahuasca à perspectiva médica, terapêutica, como está acontecendo com a maconha.

294
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Enfatizando a perspectiva mercadológica, à exceção de um único interlocutor –


justamente um que atualmente só consome sua substância como “o remédio” -, todos os
outros participantes da pesquisa acreditam que a política proibicionista acaba sendo o
veneno que agrega violência ao consumo. Como apontam alguns interlocutores
estudantes de medicina, em acordo com a política proibicionista há remédios que
comercializados licitamente não agregam violência física ao consumo, mas podem
sedimentar o processo desse consumo como uma relação muito mais de poder do que de
saúde entre os consumidores que confiam no sistema especialista representado pelos
médicos, e os profissionais que representam tal sistema.

Buda - Há um consenso de que antidepressivo e ansiolíticos não são drogas, são


remédios. Receitar um destes hoje é normal, porque você sabe que muitos médicos
trabalham juntos com os laboratórios. Nos EUA se um médico não adota os consensos
da indústria farmacêutica (consenso para prescrever medicamentos em praticamente
toda consulta), pode ser processado pelos pacientes que vão ali pra receber alguma
prescrição e não para ouvir conversa. Querem fazer o mesmo por aqui.

Se os médicos passarem a ser processados por não prescrever, não apenas as relações
de poder estarão invertidas se comparadas à década de 1920 quando os doutores
estadunidenses corriam o risco de serem processados por prescrever, como também se
entenderá um dos motivos que levam muitos estudantes de medicina à depressão nos
dias de hoje. Já foi mencionado que midiaticamente alguns sistemas especialistas em
saúde representam a depressão como a enfermidade da contemporaneidade, (Whitfield:
2005, 127). No Brasil, onde a depressão ‘atinge” 17 milhões de pessoas, cerca de 10%
a 12% da população, entre 2003 e 2007 houve, como já indicado na nota 123, um
aumento de 40% nas vendas de antidepressivos (FSP:12/11/09), gerando uma fatura em
torno de US$ 320 milhões anuais. O crescimento desde mercado é tão distinto que o
laboratório Eli Lilly que perdeu a hegemonia do setor222 que liderava com o Prozac223 ,
preparou uma estratégia de divulgação do Cymbalta, - o phármakon de ponta da nova
geração de antidepressivos - entre médicos de diversas áreas: “Nossos representantes
visitarão profissionais de todas as especialidades que hoje também receitam

222
- com a quebra da patente, 26 versões genéricas ou similares ao Prozac (fluoxetina) foram lançadas no
território nacional desde 2001.
223
- o Prozac teve uma queda nas vendas, passando o faturamento de 2,6 bilhões em 2000, para 250
milhões em 2009 e especificamente no Brasil, de 330 mil caixas para 100 mil (www.antidrogas.com.br).

295
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antidepressivos, como oncologistas, ginecologistas e clínicos gerais”, relata a diretora


de marketing e vendas da empresa (Veiga, 2004). Essa cultura da medicalização vem
estabelecendo uma ampla rede de clientes que se sentem à vontade para escolher por
conta própria o phármakon para seu sintoma:

“A era Prozac permitiu que os antidepressivos pudessem ser usados por


pessoas de diferentes idades e pelos mais diversos motivos. Há quem tome
Prozac para evitar a ejaculação precoce, uma vez que um dos seus efeitos
colaterais é justamente baixar um pouco a libido. (www.antidrogas.com.br)

Para Jorge Pagura, ex-secretário de Saúde da prefeitura de São Paulo e


neurocirurgião do Hospital Albert Einstein, esse comportamento seja por parte do
consumidor ou dos médicos não acarreta riscos a segurança. “O importante é que as
pessoas tenham bem-estar e se aliviem das tensões que as acometem no dia-a-dia”,
(www.antidrogas.com.br). Esta banalização do consumo já chegou ao conhecimento
público:

Vício em remédio supera abuso de drogas ilícitas (FSP:25/02/10)

Um relatório com dados de 2009 divulgado ontem pela Junta


Internacional de Fiscalização a Entorpecentes, ligada à ONU, revela que
houve um crescimento no abuso de medicamentos, que, em alguns países,
tornou-se mais comum do que o consumo excessivo de drogas ilícitas como
heroína, cocaína e ecstasy juntas.
Remédios como benzodiazepínicos (tranquilizantes), analgésicos
opioides e anfetaminas (como os inibidores de apetite) estão entre os mais
usados para esse fim -em doses acima ou para fins diferentes do
recomendado. Muitos são de tarja preta, mas podem ser comprados na
internet, contrabandeados ou falsificados.

Segundo os interlocutores estudantes da área médica, esse é o discurso corrente no


setting das escolas de medicina. Não fugindo à perspectiva, alguns estudantes relatam
que vêem suas drogas de escolha como substâncias ansiolíticas, outros como
antidepressivas e essa é a cultura positiva das drogas que encontra espaço para
consagrá-las como remédios. Por sua vez, os professores se mostraram menos
resistentes em consumir fármacos acreditando em seu poder de cura e assim o fazem,
como bem demonstra Panacéia que não se constrange por deixar sua vitrine de
medicamentos na sala de estar, ao alcance dos olhos de qualquer visita. Numa cultura de
consumo onde as pessoas dispõem de ferramentas que aliviam as tensões do dia-a-dia, é
possível interpretar que as celebridades Michael Jackson e Heather Ledger não foram

296
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vítimas de erros médicos ou de suicídios acidentais, foram pessoas que tentaram aliviar
as tensões e pagaram com a própria vida o consumo dos seus phármakons escolhidos.
Muito além da tendência de propagação da representação da maconha medicinal, os
phármakons estão muito bem configurados na cultura de consumo...
Se, no começo desse projeto, foi proposto como objetivo apreender como o
universitário consumidor de drogas interage com as representações sociais dominantes e
os controles sociais civilizatórios, e se esse consumidor sinaliza outro(s) modo(s) de
representação e de controles sociais que contemple(m) o consumo de drogas, a
constatação final é de que o crescente nível de reflexividade, configurado em torno de
informações consumidas incessantemente, afeta as comunidades de universitários aqui
enfocados de modo que novos habitus sociais são incorporados em seus estilos de vida.
Estes interlocutores convivem num setting cultural onde gradativamente há mais
controles formais e informais para o consumo de álcool e tabaco; mais tolerância para o
consumo controlado de maconha, principalmente o medicinal; menos tolerância e mais
representações estigmatizantes quanto aos riscos e danos associados ao consumo de
cocaína e crack, além da normatização do consumo prescrito de fármacos com efeitos
psicoativos e da distinção da ayahuasca pela sua crescente representabilidade não
exatamente como ingrediente religioso, mas como um phármakon terapêutico. Não
apenas convivem pois, como demonstra a reflexividade em seus estilos de vida aqui
levantados, estes interlocutores são partes ativas desse processo de mudança de valores
e representações, às vezes apoiando, às vezes combatendo. Dentro dos seus settings
acadêmicos, seus sets pessoais também permitem ressignificar modelos de relação,
buscando estreitar laços de confiança e interpretando a sua comunidade universitária
como uma família eletiva, escolhida em adequação com sua “liberdade de opção”.
Em suas políticas de vida que, em comparação com os movimentos culturais dos anos
1960 envolvendo estudantes e drogas, configuram um cenário mais democrático224
onde novas representações ou ressignificações são estabelecidas, como no caso das
milenares estratégias gregas para controlar o uso dos prazeres atualmente interpretadas
como estratégias de redução de danos. Estes sujeitos estão formando novas
representações quanto ao que pode ser relacionalmente interpretado como estabelecido
ou outsider, incluído ou desviante, saudável ou patológico, jovem ou adulto, professor e

224
- embora o pessoal da UFMG e do Coletivo Marcha da Maconha possam discordar.

297
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estudante, e ainda os limites dos controles sociais que a política proibicionista propõe,
como também quanto aos limites da autonomia que a cultura universitária sustenta.
Como as mudanças de representações observáveis não se limitaram ao consumo de
drogas - para manter seus estilos de vida, os sujeitos precisam configurar uma estrutura
de vida e torná-la representação -, estes interlocutores desenvolveram novas
significações para as relações que envolvem confiança, amizade, sexualidade, política,
religiosidade, e o papel social do universitário e de sua cultura. A representação final
que se estabelece é que, ao buscar investigar as drogas e seus consumos, foi possível ter
contato com configurações de pessoas reflexivas antes apenas representadas, às vezes de
modo estigmatizado, como meros consumidores. Eis a questão!

FIM

Post-Scriptum I

No mais, que a escritura Consumir e ser consumido, eis a questão! enquanto


phármakon, não seja relegada a fazer esquecer, nem condenada ao esquecimento.

298
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Post- Scriptum II

Após a conclusão da redação desta tese, alguns fatos ocorreram e merecem registro.
A batida policial na Cracolândia em São Paulo no dia 25/02/10 visando eliminar das
ruas, os usuários de crack, se mostrou uma ação de controle social falha. A polícia civil
recolheu 250 usuários, para horas depois liberá-los, pois, não houve planejamento para
atendê-los na unidade da prefeitura correspondente (G1:25/02/10). O ganho social deste
episódio foi o aumento do estigma em torno destes usuários, além de fragilizar a
imagem de um projeto da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo que conta com
400 profissionais de saúde para tratar da questão. E não apenas no Brasil acontece tal
desrespeito pelo processo civilizador, pois na China e na Indochina – em países como
Camboja, Vietnã e Tailândia – o tratamento dispensado aos usuários vem recebendo
monitoramento do Human Rights Watch, tamanha a violência com que aqueles são
tratados: No Camboja, os usuários parecem ter sido destituídos de seus direitos básicos:
“Em um relatório publicado em janeiro, a Human Rights Watch descreveu em detalhes
abusos ocorridos em 11 centros gerenciados pelo governo, que incluíam choques
elétricos, surras, estupros, trabalho forçado e doações de sangue forçadas.”
(G1:28/02/10). A Human Rights Watch já havia constatado em janeiro de 2010 que na
China, qualquer dos centros de detenção obrigatória de usuários “colocava-os em risco
de sofrer abusos físicos e realizar trabalhos forçados sem remuneração”. O Vietnã
sustenta uma rede de centros de terapia para usuários de opiáceos que está usando uma
droga à base de ervas para desintoxicação, sobre a qual, segundo um especialista em
dependência química da OMS em Phnom Penh, não existe nenhuma informação sobre a
sua eficácia nem sobre seus efeitos colaterais. Na Tailândia em 2003, cerca de 2.800
pessoas suspeitas de tráfico foram executadas a tiro, (G1:28/02/10).
. Estes fatos indicam o quanto a democratização do debate sobre o consumo de drogas
ainda está longe de ser conquistada e enquanto isso muitos continuarão pagando com a
própria liberdade e até com a vida, o preço da busca por uma porção de felicidade. A
condição de desviantes através da qual estes últimos usuários são representados é
diferente da dos universitários outsiders, mas não é independente da mesma. O que
ambos os grupos almejam é o direito de correr o risco de investir em específicas doses
de felicidade oferecidas na corrente cultura de consumo. Quanto às consequências deste
risco, esta é uma questão para os acadêmicos debaterem por anos e anos...

299
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Perfil dos interlocutores

Interlocutor(a) Idade Gênero Formação Titulação Instituição Atividade Remunerada


Cleópatra 22 F História Graduanda Pública ------------
Salomé 25 F História Mestranda Pública Bolsa de estudo
Leila Diniz 21 F Ciências Sociais Graduanda Pública Bolsa de estudo
Mata Hari 28 F Medicina Residente Privada Bolsa de estudo
Blavatsky 32 F Ciências Sociais Doutoranda Pública Bolsa de estudo
Lampião 26 M Medicina Graduando Pública Bolsa de estudo
Rimbaud 22 M Ciências Sociais . Graduando Pública Comércio
Pancho Villa 28 M Ciências Sociais Graduando Pública Bolsa de estudo
Oscar Wilde 25 M História Graduando Pública Pesquisa
Zumbi 32 M Comunicação Doutorando Pública Bolsa de estudo
Marley 20 M Informática Graduando Privada ------------
Nietzsche 29 M Filosofia Graduando Pública Comércio
Mozart 37 M Música Graduando Pública Entretenimento
Buda 25 M Medicina Residente Privada Bolsa de estudo
Tutancamon 25 M Medicina Residente Privada Bolsa de estudo
Garrincha 28 M Comunicação Graduando Privada -----------
Picasso 27 M Medicina Residente Privada Bolsa de estudo
Einstein 25 M Medicina Residente Privada Bolsa de estudo
Da Vinci 25 M Medicina Residente Privada Bolsa de estudo

Krishnamurti 33 M Administração Graduando Privada Comércio

Pasolini 27 M Medicina Residente Privada Bolsa de estudo


Pós-
Hofmann 24 M Biologia graduando Privada -----------

Gasto
mensal
com Com/
Droga(s) Tempo consumo Frequência de sem
225
Interlocutor(a) preferencial(is) de uso uso Classe filhos Raça
Cleópatra Maconha 9 anos 50,00 Diário Média Sem Branca
Salomé Maconha 3 anos 0 Semanal Média Sem Negra
Leila Diniz Maconha/ecstasy 6 anos 0 Diário/mensal Média Sem Mestiça
Média-
Mata Hari Álcool 13 anos 100,00 Semanal alta Sem Branca
19
226
Blavatsky Ayahuasca anos 0 Quinzenal Média Sem Mestiça
Lampião Maconha 9 anos 80,00 Semanal Média Sem Mestiça
Rimbaud Maconha 6 anos 70,00 Diário Média Sem Branca
Média-
Pancho Villa Maconha 13 anos 50,00 Diário baixa Sem Mestiça
Oscar Wilde Maconha 12 anos 100,00 Diário Média Sem Branca
Zumbi Maconha/cocaína 19 anos 300,00 Diário/semanal Média Sem Branca
Marley Maconha 3 anos +/- 50,00 Semanal Média Sem Branca
Nietzsche Cocaína/maconha 12 anos 0 Diário/diário Média Sem Branca

225
- gasto referente às drogas no geral e não apenas em relação à droga preferencial.
226
- este tempo de uso não se limita ao tempo de uso da ayahuasca (4 anos), mas sim ao tempo de uso de
qualquer droga lícita (como álcool e fármacos) ou ilícita.

300
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Mozart Maconha 19 anos 100,00 Diário Média Com Mestiça


Buda Maconha 6 anos 60,00 Diário Alta Sem Branca
Tutancamon Álcool/maconha 5 anos 120,00 Semanal Média Sem Mestiça
Garrincha Crack/cocaína 15 anos --------- ---------- Média Sem Branca
Picasso Álcool 10 anos 500,00 Semanal Alta Sem Branca
Média-
Einstein Álcool 8 anos 500,00 Semanal alta Sem Branca
Média-
Da Vinci Álcool 8 anos 600,00 Semanal alta Sem Branca
Krishnamurti Ayahuasca 18 Média Branca
227
anos 0 Quinzenal Sem
Pasolini Álcool 7 anos 180,00 Semanal Média Sem Branca
Hofmann Maconha 8 anos 150,00 Diário Alta Sem Branca

227
- situação similar a da nota anterior.

301
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