Clarice Lispector e A Crítica - Cristina Ferreira-Pinto Bailey PDF
Clarice Lispector e A Crítica - Cristina Ferreira-Pinto Bailey PDF
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Ferreira-Pinto Bailey
Cristina
C LARICE L ISPECTOR É SEM DÚVIDA UM DOS NOMES MAIS IMPORTANTES
da literatura brasileira de todos os tempos. Desde sua estréia, sua obra
representou uma ruptura com os paradigmas narrativos vigentes em meados
do século XX, pois transgrediu convenções lingüísticas e literárias. Lispector
tem tido grande repercussão não só no panorama das letras brasileiras, mas
também no da literatura ocidental, desde a América Latina até a Europa e os
Estados Unidos. Seu nome, junto ao de Machado de Assis e João Guimarães
Rosa, é provavelmente o que com mais freqüência comparece em antologias
literárias, tanto no Brasil como no exterior, invariavelmente aparecendo em
volumes representativos da literatura de autoria feminina. Alguns de seus textos
de ficção, como por exemplo A paixão segundo G. H., têm servido de base para
obras teatrais e cinematográficas. Dentre estas, o filme de Susana Amaral
lançado em 1986 e baseado no livro homônino de Lispector, A hora da estrela,
serviu para levar a obra da escritora a uma audiência mais ampla, expandindo
assim também seu público leitor. 1
Enquanto seu prestígio é maior nos meios intelectuais e acadêmicos, as
crônicas que escreveu durante seis anos para o Jornal do Brasil, entre agosto de
1967 e dezembro de 1973, fizeram de Lispector uma voz familiar para uma
audiência mais heterogênea e, como ela própria comentou, muitas foram as
cartas de leitores que recebeu por ocasião dessas crônicas. Familiar, mas nem
por isso menos misteriosa, à medida em que crescia a fama de Lispector como
1
A bibliografia ativa de Lispector, com a data de publicação da primeira edição de cada
obra, encontra-se na “Cronologia – vida e obra”, ao final deste volume.
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escritora, foi-se criando em torno dela uma aura de mistério, quase mito, em
parte devido à própria personalidade e gosto pela privacidade da autora. Diz
Nádia Batella Gotlib: “ao isolar-se voluntariamente, [Clarice] cercava-se de uma
aura de mistério, permanecendo intocável e favorecendo, quem sabe, certas
mitificações: belíssima, sobretudo na mocidade; ... sedutoramente atraente; anti-
social, esquisita, complicada, difícil, mística, bruxa” (52). Lispector-pessoa
despertou a curiosidade do público e o interesse da crítica, o que resultou,
anos depois de sua morte, em estudos de caráter biográfico, como o importante
livro de Gotlib, Clarice: uma vida que se conta (1995) e o de Lícia Manzo, Era uma
vez: eu (1998), e ainda teses como a de Teresa Cristina Monteiro Ferreira, de
1995, publicada mais tarde pela editora Rocco, Eu sou uma pergunta: uma biografia
de Clarice Lispector (1999).
Nascida em 1920 e falecida prematuramente pouco antes de seu
quinqüagésimo-sétimo aniversário, em 1977, Clarice Lispector e sua obra
continuam a ser objeto de estudos críticos e tema de dissertações de mestrado
e doutorado. Desde 1943, quando Antonio Candido escreveu a primeira
apreciação crítica, sobre o romance Perto do coração selvagem, publicado a finais
daquele ano, os instrumentos de análise utilizados na abordagem aos romances,
contos, crônicas, livros infantis e fragmentos narrativos de Lispector têm sido
os mais variados, tomados da filosofia, a religião, o estruturalismo, o pós-
estruturalismo, a psicanálise, as teorias feministas, a autobiografia, e muitas
outras linhas teóricas, o que, aliás, corresponde à polissemia característica dos
textos analisados.
Entretanto, e como veremos a seguir, a vasta e sempre crescente fortuna
crítica da autora tem se centrado em três pontos principais de análise: a
dimensão filosófica-existencial da obra; a construção formal e o estilo narrativo,
ambos considerados singulares e idiossincráticos; a questão do feminino, suas
personagens mulheres e o caráter feminista explícito ou implícito dos textos.
Estes três aspectos da obra lispectoriana são com freqüência enfocados
isoladamente, preferindo muitos críticos o estudo individual dos livros. Outros,
em especial a partir de meados da década de 1980, procuram atingir uma visão
global da ficção lispectoriana, já que o problema da linguagem em Lispector
encontra-se profundamente vinculado às preocupações filosóficas
freqüentemente vividas por personagens femininas. Como afirma Maria José
Somerlate Barbosa em Clarice Lispector: des/fiando as teias da paixão (2001),
“Lispector examina a linguagem, dilemas existenciais, divisão de classes,
problemas raciais e conflitos entre os sexos como intersecções de um mesmo
discurso social” (147).
No entanto, a representação da vivência feminina na obra de Lispector
não foi o que atraiu a atenção dos primeiros críticos. Ao contrário, o surgimento
de estudos que enfocam a questão do feminino e a dimensão feminista da
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2
Todas as traduções do texto de Fitz são minhas.
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cuja ficção, ainda segundo Cixous, seria um dos melhores exemplos do que ela
caracteriza como “écriture féminine”.3 Embora o ensaio filosófico-pessoal de
Cixous seja freqüentemente instigante, como por exemplo o conhecido “The
Laugh of the Medusa” (1975), e seus ensaios sobre Lispector também possam
sê-lo, estes são um tanto desconcertantes para os leitores que conheceram
Lispector através da obra da própria Lispector. O desconcerto vem da
constatação de que Cixous freqüentemente parafraseia os textos da autora
brasileira, descontextualiza-os e incorpora-os em seu próprio texto sem as
devidas indicações, ou, por outro lado, “coloca palavras em sua boca [de
Lispector]“ (Carrera 88), sobrepondo sua própia voz à de Lispector. Vários
críticos, entre eles Marta Peixoto e Anna Klobucka, apontaram o quanto as
leituras de Cixous são problemáticas, pois o que delas emerge é a voz, as idéias
e a autoridade de Cixous. Ironicamente, já que Cixous elogia Lispector por sua
narrativa “generosa” em que o espaço do Outro é respeitado, a voz da escritora
brasileira permanece abafada, enquanto que “Lispector dá a Cixous um
contexto, um nome e uma voz, uma autoridade exterior, a partir do qual ela
pode falar de suas próprias idéias, obsessões e sonhos” (Carrera 86; tradução
minha).
O interesse pela “écriture féminine” e por uma escrita do corpo
representadas na ficção lispectoriana constitui, entretanto, apenas um aspecto
de um vasto caudal crítico. O interesse pela questão do feminino em Lispector
permanece, mas já aliado a outros elementos da sua ficção, como por exemplo,
estudos sobre os elementos judaicos do texto lispectoriano, como os de Nelson
Vieira, em Jewish Voices in Brazilian Literature (1995) e “Clarice Lispector’s Jewish
Universe: Passion in Search of Narrative Identity” (1999). Destacam-se também
análises marcadas pela influência dos estudos culturais e voltadas à questão
social. Muitas dessas análises aparecem a partir da década de 1990, estimuladas
pela problemática social que A hora da estrela, ao contrário das obras anteriores
de Lispector, coloca tão explicitamente.
Macabéa, personagem central de A hora da estrela – considerando Rodrigo
S. M. o protagonista – é emblemática da situação do migrante nordestino na
cosmópole do Sudeste brasileiro, de sua alienação cultural e marginalização
social e racial, problemas agravados pela sua condição de mulher. Muitos
estudiosos, como Lesley Feracho em Linking the Americas: Race, Hybrid Discourse,
and the Reformulation of Feminine Identity (2005), têm discutido a questão social
em A hora da estrela, enfocando a situação de Macabéa, enquanto que outros
críticos, como Ítalo Moriconi e Lúcia Sá, atentam para as dificuldades do
narrador na construção de sua personagem como exemplares do conflito vivido
3
Tradução minha. No texto em inglês, “the greatest writer” coloca Lispector como a maior
escritora entre todos os escritores, independente de sexo.
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pelo intelectual brasileiro frente à sua realidade. De todo modo, A hora da estrela
não foi a primeira nem a única vez em que Lispector aborda um tema social
em sua ficção, como esclareceu Solange Ribeiro de Oliveira no seu livro
precursor A barata e a crisálida (1985), sobre A paixão segundo G. H. Como vai
ficando mais claro graças ao quadro hermenêutico que a crítica lispectoriana
vem compondo, a ficção de Lispector desdobra-se em níveis de significados
que se manifestam na preocupação com o social, com as estruturas de poder,
as relações de gênero e a relação do sujeito com sua realidade interior e exterior.
Central a tudo isso, a linguagem é em Lispector sempre o fio condutor que
leva escritora, personagens e leitores numa incessante viagem de busca ao “é
da coisa”.
*****
Citando a própria autora, Silviano Santiago afirma que “A prosa inaugural
de Clarice ... exige um novo leitor – ‘quem souber ler lerá’” (235). Essa “prosa
inaugural”, que nasce com Perto do coração selvagem, renova-se em cada um dos
livros que se seguem, exigindo sempre um novo tipo de leitor, mas também
novas leituras. Se Lispector foi capaz de impactar nossa visão de mundo e
nosso entendimento dele, a nova visão que ela nos presenteou faz-nos olhar
sua obra com outros olhos e incita-nos a buscar caminhos antes não
experimentados, outras formas de ler Clarice Lispector, que nos levem à
compreensão de sua escrita e da pessoa que ela foi. Eis o objetivo do presente
volume: no momento do trigésimo aniversário da morte de Lispector,
apresentar novos aportes críticos à obra da grande escritora brasileira.
Clarice Lispector. Novos aportes críticos reúne alguns dos mais importantes
estudiosos da narrativa lispectoriana, do Brasil, Estados Unidos e Europa, além
de um depoimento do escritor Moacyr Scliar, ficcionista gaúcho, também
descendente de uma família judia russa como Lispector, que a conheceu ainda
jovem, quando iniciava a carreira literária. Se Santiago fala da “aula inaugural”
de Lispector, Scliar conta-nos sobre a lição em que se constituiu sua primeira
leitura dos contos dela, lição feita revelação, impacto, epifania. Revelação do
mundo, revelação de nós mesmos. Como leitores somos também um pouco
discípulos da escritora e, como não deixa de ser natural, curiosos sobre a
personalidade que se esconde/revela nos textos da Mestra.
Nádia Batella Gotlib debruça-se sobre fotografias de Lispector, imagens
da infância e da idade adulta, quando viveu em Nápoles, e sobre textos pessoais
como cartas e depoimentos. A proposta de Gotlib é armar um quadro histórico
onde a fotobiografia complementa e esclarece a autobiografia e estas a literatura.
Neste sentido, as crônicas que Lispector escreveu para o Jornal do Brasil, e que
foram postumamente reunidas no volume A descoberta do mundo, de 1984,
mostram-se uma rica fonte de referência para a leitura da sua ficção. As crônicas,
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valendo-se, como Gotlib, tanto das crônicas como das cartas que a autora,
quando no exterior, escreveu às irmãs e aos amigos. Entretanto, enquanto Gotlib
concentra-se em dois momentos-chave da vida da autora, Williams apresenta
todo um itinerário de vida, desde a viagem original, ou seja, a chegada ao
Brasil, até sua volta ao Rio de Janeiro, depois de uma passagem pela África e
períodos em Nápoles, Berna, Londres e Estados Unidos. Assim, se Ribeiro
traça a presença do Recife e do Rio de Janeiro como espaços referenciais na
narrativa de Lispector, Williams completa esse traçado, detendo-se em cada
um dos espaços geográficos por onde Lispector se deslocou, examinando sua
presença e sua influência na obra da escritora. Williams aborda o tema da
viagem – nas cartas, crônicas e narrativa de ficção de Lispector – tanto no sentido
de deslocamento geográfico como psicológico. Segundo ela, Lispector,
consciente da sua alteridade, sentiu-se sempre “forasteira”, distante, à margem,
diferente, tanto no Brasil, a pátria adotada pelos pais, como nos países
estrangeiros onde esteve. Lispector vive assim, constantemente, a experiência
de sentir-se estrangeira onde quer que estivesse, um sentimento que, além de
produzir um estado de permanente solidão, gera uma perspectiva crítica muito
particular da realidade. O sentido de solidão, e mesmo de alienação, como diz
Williams, e a perspectiva particular refletem-se nos textos lispectorianos,
tornando-se a viagem e o encontro com o Outro – com o estranho, com o
estrangeiro – motifs recorrentes em Lispector.
Regina Zilberman, por sua vez, busca nas crônicas outro elemento
importante na formação de Lispector: o livro. Não por coincidência, Recife é o
cenário da descoberta de um livro iniciador: Reinações de Narizinho, de Monteiro
Lobato. Entretanto, Zilberman não se limita a observar o papel deste e de outros
primeiros livros na formação da leitora Lispector. Mais que isso, ela examina o
livro como instrumento de transgressão com o qual Lispector alcança seus
leitores, ao oferecer-nos textos – tanto as crônicas como as narrativas de ficção
– que brincam conosco leitores, desestabilizando a relação antes estável mas
desigual entre autor(a) = autoridade e leitor(a) = recipiente passivo. Através,
principalmente, da ambigüidade, Lispector põe em cheque sua própria voz
autoral, ao mesmo tempo que nos ensina um conceito de leitura como jogo
transgressivo e epifânico que se completa na pessoa do leitor.
O caráter transgressivo do texto lispectoriano é o objeto de análise no ensaio
de Lucia Helena, que ressalta a opção feita por Lispector por uma forma de
“realismo não–descritivo” onde a linguagem assume foros de sujeito textual,
indispensável e indissolúvel às inquirições existencialistas das personagens.
Estas vivem situações-limite à margem do tempo linear, ao mergulharem no
que Helena descreve como os “abismos do ser e da existência”. Na tentativa de
reproduzir tais abismos, a linguagem em Lispector torna-se cada vez mais
lírica, metafórica, sugestiva e fragmentada. E, embora universal em suas
preocupações temáticas, o texto lispectoriano é também histórico e local, ao
X Clarice Lispector e a crítica W 19
OBRAS CITADAS
Feracho, Lesley. Linking the Americas: Race, Hybrid Discourse, and the Reformulation
of Feminine Identity. Albany: SUNY P, 2005.
Ferreira, Teresa Cristina Montero. Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice
Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Figueiredo, Maria Cristina Vianna. “A personagem feminina na literatura de
Clarice Lispector”. Suplemento literário de Minas Gerais 1021 (1986): 2-3.
Fitz, Earl E. “Freedom and Self-Realization: Feminist Characterization in the
Fiction of Clarice Lispector”. Modern Language Studies 10 (1980): 51-56.
_____ “O lugar de Clarice Lispector na história da literatura ocidental: uma
avaliação comparativa”. Clarice Lispector. Orgs. Wilma Areas e Berta
Waldman. Número especial de Remate de Males. Revista de Teoria Literária 9
(1989): 31-37.
_____ “Reading Clarice Lispector in the Context of Modern Latin American
Literature”. Palestra. Universidade do Texas-Austin, outubro 1997.
_____ Sexuality and Being in the Poststructuralist Universe of Clarice Lispector.
Austin: U of Texas P, 2001.
Fukelman, Clarisse. “Escreves estrelas (ora, direis)”. A hora da estrela. De Clarice
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_____ “A palavra em exílio. Uma leitura de Clarice Lispector”. A mulher na
literatura. Org. Nádia Batella Gotlib. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG,
1990. 161-80.
Gotlib, Nádia Batella. Clarice: uma vida que se conta. 2ª ed. São Paulo: Ática,
1995.
Helena, Lucia. Nem musa nem medusa. Itinerários da escrita em Clarice Lispector.
Niterói: EDUFF; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
Herman, Rita. “Existence in Laços de família”. Luso-Brazilian Review 4 (1967): 69-
74.
Kloss, Robert. “The Problem of Who One Really Is: The Functions of Sexual
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Lindstrom, Naomi. “Clarice Lispector: Articulating Woman’s Experience”.
Chasqui: Revista de Literatura Latinoamericana 8/1 (1978): 43-52.
Lins, Álvaro. “A experiência incompleta: Clarice Lispector” [1944]. Os mortos
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2a. ed. Coleção Archivos. Madrid, Paris, México, Buenos Aires, São Paulo,
Rio de Janeiro, Lima: ALLCA XX; Edições UNESCO, 1996.
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Manzo, Lícia. Era uma vez: eu. A não-ficção na obra de Clarice Lispector. Curitiba:
Secretaria do Estado do Paraná; Xerox do Brasil, 1998.
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