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Ética E Deontologia Dos Professores: Pensamento E Práticas: Aline Bernardes Seiça

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ÉTICA E DEONTOLOGIA DOS PROFESSORES:

PENSAMENTO E PRÁTICAS

ALINE BERNARDES SEIÇA


Escola Secundária D. Pedro V
2

RESUMO
Apresentam-se neste artigo alguns aspectos de uma investigação sobre
pensamento ético e deontológico dos professores. Partindo do conceito de natureza ética
da educação, procura-se saber que princípios e valores presidem às práticas docentes,
como é que os professores concebem os seus deveres profissionais, que tipo de relação
estabelecem entre deveres e princípios e como encaram a possível criação de um código
deontológico da profissão. Discute-se ainda a possível influência da situação do
professor na carreira no modo de conceber estas questões.

RESUMÉ
Dans cet article on presente quelques aspects d’une recherche sur la pensée
éthique et déontologique des enseignants. Le point de départ est le concept de nature
éthique de l’éducation et on cherche à savoir quels principes et valeurs président aux
pratiques enseignantes, comment les professeurs pensent-ils leurs devoires
professionnels, quels rapports voient- ils entre les devoirs et les principes et comment
envisagent-ils la possible création d’un code de devoirs pour la profession. On discute
aussi la possible influence de la situation de l’enseignant dans la carrière sur la
conception de ces questions.

ABSTRACT
This paper reports part of a research study on teacher’s ethical and deontological
thinking. Having as a standing-point the concept of education’s ethical nature, we
search for what kinds of principles and values guide teaching activities, how teachers do
conceive of their professional duties, what kind of relationship they set up between
duties and principles and what they think of the possibility of having a written code of
duties. We also discuss if the teacher’s position on the career influences his or her’s
thinking of this questions.
1

INTRODUÇÃO
É já lugar-comum, nos dias de hoje, proclamar a crise da educação como um
dos sintomas da generalizada crise dos valores nas sociedades contemporâneas. A crise
da educação não se reflecte apenas nas atitudes e comportamentos dos alunos perante o
ensino e a aprendizagem; reflecte-se ainda na imagem da escola e no estatuto social dos
professores, de que são indicadores, entre outros, os níveis salariais em vigor para a
carreira docente. Tem repercussões, também, nas representações que os professores
criam da sua própria profissão, no modo como concebem a natureza, os fundamentos e
os objectivos da educação.
Se é certo que se encontram, neste domínio, opiniões muito díspares entre os
professores, não deixa também de ser verdade que algumas linhas de pensamento, das
quais sublinharei duas, sobressaem como mais fortes: a primeira afirma que, na sua
essência, toda a educação, por ser teleológica, traz consigo um compromisso ético. A
segunda, ao considerar que os actos ensinam mais do que as palavras, atribui ao
professor a enorme responsabilidade de ser exemplar para os seus alunos.
Mas naturalmente que se levantam, a este propósito, algumas dificuldades:
dadas a diversidade de perspectivas coexistentes na sociedade contemporânea e a
tendência tão difundida para tomar como equivalentes e indiferentes todas as formas de
pensar, se não de agir, que valores vamos ensinar ou estimular? Que ideais de cidadão -
de pessoa - constituirão o nosso telos educativo? Que princípios presidirão aos actos do
professor?
Estas questões conduzem-nos pela mão ao centro do paradoxo que afecta
realmente a educação nos nossos dias e que é, provavelmente, uma das razões da sua
crise: se seguimos a tendência geral da sociedade, então são o relativismo e o
subjectivismo que prevalecem e não há, consequentemente, uma finalidade educativa
comum; educamos em nome da diversidade e para a diversidade, com todas as
consequências práticas daí decorrentes, nomeadamente a efectiva desigualdade na
concorrência ao mercado de trabalho. Pela mesma ordem de ideias, também não será
significativo falar de princípios normativos.
Se educarmos ao arrepio das tendências sociais, em nome de valores e
finalidades mais gerais e objectivos, conseguiremos salvaguardar as diferenças
individuais? E teremos forças e meios para concorrer com - ou usar em proveito da
2

educação - as novas tecnologias e todas as seduções que as acompanham, isto é,


conseguiremos ainda educar?
O meu interesse por esta área problemática decorre de duas circunstâncias
concomitantes: a primeira é ser professora e estar directamente envolvida na prática
docente; a outra é ter estado ligada, durante algum tempo, à formação de professores
como orientadora pedagógica. A conjugação de ambas as tarefas, obrigando-me a uma
reflexão mais sistemática sobre a natureza da práxis docente, permitiu reorientar as
minhas preocupações neste domínio, até então quase exclusivamente intuitivas e
vivenciais.
O trabalho realizado com professores em formação contribuiu, por sua vez, para
delimitar uma outra questão estreitamente ligada às anteriores: será possível - e
desejável - estimular, se não a formação, pelo menos a reflexão dos formandos sobre
temas éticos de modo a (1) tomarem consciência dos valores que estão em jogo na
relação pedagógica e da responsabilidade moral que lhes cabe pelo facto de serem
professores e (2) proporcionar-lhes o conhecimento dos fundamentos que lhes permitam
deliberar em casos de conflito?
Conhecer as opiniões dos professores neste domínio a partir das quais seja
possível inferir a pertinência ou não de um código deontológico para a docência e o
interesse numa formação ética dos futuros professores são os objectivos deste estudo.1

NATUREZA ÉTICA DA PROFISSÃO DOCENTE


Várias ciências, nas últimas décadas, têm procurado identificar e caracterizar as
especificidades da profissão docente e daqueles que a exercem, nas suas múltiplas
facetas. No entanto, muitos aspectos permanecem obscuros. É o caso do pensamento e
do comportamento moral do professor, cuja importância é inegável se se tiver em conta
a função eminentemente ética que a profissão desempenha, por força da sua própria
natureza.
Na obra intitulada “Os Usos da Filosofia”, Mary Warnock afirma a sua
convicção de que a educação deve ser orientada para a incrementação da liberdade das
pessoas, entendendo isto como uma espécie de elevação a partir de uma dada situação
sobre a qual, geralmente, se não reflecte. Tratar-se-ia, então, de possibilitar o
conhecimento da história e do desenvolvimento das instituições e da sociedade em que
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se vive, bem como dos instrumentos conceptuais utilizados, como meios de


proporcionar essa elevação. E como a liberdade é um valor, continua a autora, então a
educação é intrinsecamente valorativa.
Salvas as devidas distâncias, não será difícil encontrar aqui ecos da metáfora
platónica da educação como libertação da ignorância - da ilusão - por meio de uma
dialéctica ascensional que é também um processo de crescimento intelectual, moral,
humano, em suma, que conduz da “caverna” para a luz; e do pedagogo como aquele
que, propriamente falando, nada ensina, a não ser o esforço da ascensão e a sua
simbólica libertadora (Platão, República, 514a- 517c).
No seu sentido mais amplo, Ética designa um conjunto de preocupações teóricas
concernentes à intencionalidade da vida humana e às razões pelas quais se age. Daí que
no seu contexto se fale de princípios e de valores com um alcance geral e que estes
princípios encontrem o seu fundamento no plano da racionalidade.
Embora seja corrente tomar os termos ética e moral como sinónimos e usá-los
indiferenciadamente, no campo filosófico a distinção faz-se e justifica-se pelas
diferentes áreas semânticas que os dois termos cobrem: ética significa a teoria do certo
e do errado na conduta e reporta-se aos valores que a ela presidem; moral tem que ver
com a prática, isto é, com os comportamentos efectivos das pessoas em articulação com
os valores (Billingdon, 1988). Assim, a ética refere-se aos princípios, ao que deve ser
em geral - que Kant, por exemplo, designou por imperativo categórico,
aprioristicamente concebido - enquanto a moral remete para as máximas da acção, isto
é, para o modo como cada indivíduo interpreta o dever geral em função da situação
particular (Kant, 1960).
Mantendo embora a distinção entre ética e moral, Ricoeur (1990, p. 5) recorre a
um outro critério e considera os seguintes princípios: o do que é “considerado bom” e o
do que “se impõe como obrigatório”; a ética reporta-se ao primeiro e a moral ao
segundo. E acrescenta que não será difícil reconhecer “na distinção entre o objectivo de
uma vida boa e a obediência às normas a oposição entre duas heranças, a herança
aristotélica, onde a ética se realiza pela sua perspectiva teleológica, e a herança
kantiana, onde a moral é definida pelo carácter de obrigação da norma, logo numa
perspectiva deontológica.”
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Compreende-se, então, que a educação se encontra na encruzilhada destas duas


“heranças”: ao formar os jovens com vista à autonomia e à cidadania, são os fins que
determinam os processos educativos e há, consequentemente, um ideal orientador; ao
mesmo tempo, a boa consecução dos objectivos educacionais exige normas e o respeito
por elas da parte de todos os intervenientes, com especial ênfase para os professores.
Sejam quais forem as origens dos princípios éticos, problema que não cabe no
âmbito deste trabalho discutir, é pertinente, no entanto, questionar até que ponto devem
eles ter expressão no processo educativo, já que é mediante este processo que o ser
humano se torna apto a agir de forma simultaneamente autónoma e integrada.
Semelhante perspectiva pode encontrar-se já no pensamento de Platão, quando
considera que só a educação permite formar o cidadão virtuoso, isto é, o cidadão
moral, estabelecendo uma estreita vinculação entre ética e pedagogia. Não se trata, por
certo de uma pedagogia qualquer nem, muito menos, da pedagogia relativista e
pragmática do sofista Protágoras, para quem cada indivíduo é medida e critério das suas
próprias verdades, que o mesmo é dizer das suas próprias acções. Platão exemplifica
este ponto de vista com as palavras que põe na boca do personagem Cálicles: “(...)
aquele que quiser viver bem deverá deixar crescer à vontade as suas paixões, sem as
reprimir e por maiores que elas sejam, deverá ser capaz de as satisfazer graças à sua
coragem e inteligência, dando-lhes tudo aquilo que elas desejarem.” (Górgias, 491e -
492a); a este, contrapõe a sua própria concepção de vida, representada pela dramatis
personae Sócrates: “Tal é, parece-me, o objectivo que cada um deve visar durante a
vida. Todos os seus esforços, todos os seus actos, devem ser dirigidos no sentido de
adquirir a justiça e a temperança como condições de felicidade, sem consentir nunca
que as paixões campeiem (...)” (idem, 509d-e), acrescentando que só pelo cultivo da
filosofia este objectivo de autonomia e autodeterminação pode ser atingido e que cabe
precisamente ao filósofo, mestre pela palavra e pelo exemplo, orientar os alunos neste
caminho que cada um tem de fazer por si mesmo.
Também Aristóteles concebe a educação como formação para a cidadania
(Política, livro oitavo, I), mediante o desenvolvimento de certas actividades e poderes
característicos do ser humano, nomeadamente a capacidade de orientar racionalmente as
suas acções. Esta função prática da razão, diz Williams (1993, p. 55) “é suposto
produzir coerência e reduzir os conflitos entre os desejos do indivíduo que vive (como o
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homem deve viver) em sociedade”. Portanto, a aprendizagem da cidadania é,


simultaneamente, a aprendizagem do autocontrolo e dos justos princípios em função
dos quais se deve viver para viver bem o que, na perspectiva de Aristóteles, é o mesmo
que ser feliz; indivíduo e sociedade interpenetram-se e implicam-se mutuamente.
Assim, é a própria concepção de humanidade do homem que está em jogo
quando se educa, que é o bastante para compreender a dimensão ética da tarefa
educativa e a responsabilidade dos que nela se comprometem, tanto mais que o alcance
da educação não é individual, mas social: cada novo indivíduo formado vai integrar-se
no tecido social que ajuda a construir e a renovar; da sua (boa) formação ética
dependerá, pois, a de toda a sociedade (Cordero, 1986). O mesmo autor insiste, aliás, na
necessidade de tornar conscientes os professores da inevitável orientação teleológica do
processo educativo. É que não são indiferentes os fins que se pretende atingir e que
determinam, consequentemente, o tipo de educação que se vai realizar. Portanto, na raiz
de qualquer projecto educativo está uma intencionalidade ética que o orienta e legitima.
Do mesmo modo, o professor nunca é neutro quando escolhe os caminhos pedagógicos
que vai percorrer e é a sua própria pessoa que está em jogo quer quando escolhe quer
quando actua em função das escolhas feitas.
Vão neste mesmo sentido as reflexões de Billington (1988), quando analisa a
etimologia da palavra educação a partir das duas palavras latinas educare e educere.
Diz ele que, embora as palavras possam parecer semelhantes, há entre elas “um hiato de
sentido tão largo que é difícil imaginar que possam ambas coabitar no contexto
curricular de uma escola” (p. 259) e justifica o seu ponto de vista através da
explicitação do respectivo sentido.
Assim, educare significa treinar, equipar alguém com determinadas habilidades
(skills) físicas ou intelectuais, em articulação com o desempenho de uma ocupação ou
profissão. Desta interpretação decorrem duas importantes consequências educativas: a
primeira é que a valoração dos temas incluídos no currículo escolar é determinada pelas
necessidades económicas e sociais da comunidade ou do estado. A motivação para
aprender - e ensinar - um assunto será a da qualificação que esse assunto confere ao
aprendente para a obtenção de determinado emprego.
A segunda consequência faz depender a apreciação das prioridades curriculares
de um critério de utilidade, pelo que será dada primazia às competências para as quais
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há mais oportunidades de trabalho, e não é de estranhar, neste caso, um certo desprezo


relativamente às chamadas humanidades, cuja aplicação prática imediata não é visível.
Aqui, pois, os alunos são preparados para se integrarem em sistemas já constituídos e
reproduzirem as suas rotinas e os professores são vistos como servidores do estado.
Por sua vez, o valor semântico de educere - encaminhar para fora, exteriorizar -
conduz a um outro olhar sobre a educação, vista agora como o meio de preparar os
estudantes para o conhecimento do mundo e de si mesmos; não por qualquer razão
pragmática, mas pelo valor intrínseco da própria educação e das competências que ela
proporciona. Aqui, a motivação para aprender não é dada de fora, mas é interior, o que
significa que será o aluno a construir os sentidos das suas aprendizagens que, aliás,
estarão sempre em construção; a aprendizagem é um processo permanente. O grande
objectivo da educação entendida segundo esta perspectiva é o formar seres humanos
capazes de tomar decisões fundamentadas, apreciar os valores sustentados pelos outros
e julgar de forma autónoma.
Sem que tome explicitamente partido por qualquer destas orientações, antes as
reconhecendo, a ambas, como necessárias no sistema educativo, não deixa o autor,
porém, de chamar a atenção para as dificuldades que se levantam a todos os que
pretendem conciliá-las num mesmo projecto educativo; daí que questione se educere
não será apenas um ideal no espírito de algumas pessoas ...
Efectivamente, a questão está longe de ser pacífica e de recolher a unanimidade
de todos os que se interessam por temas de educação. Como nota Starratt (1994), muitas
pessoas, embora reconhecendo a importância de uma educação ética dos jovens, pensam
que não é à escola que deve caber essa função, mas à família ou às igrejas; as escolas
devem ter em vista, apenas, a formação científica, para a qual todo o tempo disponível
deve ser aproveitado. Outros, de forma mais radicalmente pragmática, estão convictos
de que a formação ética é simplesmente dispensável, devendo a escola promover o
sucesso e a competitividade, antecipando o mundo do trabalho que os alunos irão
posteriormente encontrar. A perspectiva valorizada é, então, a do educare.
Cordero (1986), por seu turno, parece privilegiar a raiz educere de educação, ao
considerar que a profissão do educador consiste em trabalhar na formação do homem,
fazendo desabrochar a personalidade humana. Nesta perspectiva, a personalidade é
conquista de cada um e supõe um esforço pessoal de autoconstrução em função das
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normas sociais e culturais vigentes. Mas cabe ao educador “(...) desenhar o tipo de
sujeito humano e de sociedade que se pretende conseguir através do trabalho educativo
para, em seguida, escolher os meios necessários à realização desse objectivo.” (p.
471). Assim sendo, a responsabilidade que recai sobre o educador é incontestável,
acentuando mais uma vez a dimensão ética da sua acção; e para levar a cabo esta acção,
o professor precisa de estar imbuído de determinadas características que, permitindo-lhe
respeitar a personalidade dos outros, lhe garantam a possibilidade de efectivamente
ensinar e que são geralmente referidas como “autoridade moral”.
Billington (1988), igualmente, fala de autoridade do professor neste mesmo
contexto. Começa por analisar o campo semântico da palavra remetendo-a para o étimo
latino auctoritas e o seu correlato auctor que designa o que é pioneiro ou iniciador de
ideias, imagens ou caracterizações. Após referir que o professor é geralmente
considerado detentor de autoridade ou, pelo menos, como devendo possuí-la, interroga-
se sobre as bases em que tal autoridade assenta e o modo como se relaciona com a
educação no seu duplo sentido etimológico.
Quanto à autoridade moral, pensa que é pela atitude do professor face à tarefa
educativa que ela se revela e que apresenta duas características distintivas: a primeira
consiste no facto de o professor indicar, pelo modo como se relaciona com o seu
trabalho, que a tarefa educativa, comum a professores e alunos, possui valor intrínseco;
aprender é um valor em si, sem precisar de motivações extrínsecas. Este professor
compromete-se com o sentido educere da educação, seja qual for o objecto do seu
ensino. A segunda característica, intimamente ligada à anterior, é a da capacidade do
professor para motivar o estudo, sem recorrer ao “fantasma” dos exames finais, o que
requer entusiasmo e empatia com os alunos, sem perder de vista os direitos de ambos os
participantes no processo educativo.
Também na mesma linha se pode ler Gusdorf (1978), apesar das diferenças de
discurso, ao caracterizar a exemplaridade e a autoridade do mestre nos seguintes
termos: “(...) é um exemplo em que nos podemos inspirar, (...) a sua influência reveste
a significação de um apelo de ser, que exorta à edificação da personalidade. (...) a
autoridade do mestre exerce uma acção que a um tempo constrange e suscita a
aspiração.” ( p. 255).
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É precisamente nesta referência ao ser - ao mesmo tempo princípio orientador e


fim a atingir - que se encontra a especificidade da tarefa educativa, aquela que lhe
confere a dimensão ética e, nessa medida, formativa.

DEONTOLOGIA DA PROFISSÃO DOCENTE


Dada, então, a natureza ética da profissão docente, atestada por vários
pensadores desde a antiguidade até à contemporaneidade, é legítimo que se pergunte de
que modo - ou modos - será possível passar do nível da normatividade ideal para o da
conduta prática; isto é: como passar dos princípios éticos, válidos para a acção em geral,
para uma deontologia específica da profissão que encontre neles o seu fundamento.
No momento presente, parece justificar-se plenamente o crescente interesse da
investigação educacional pelos assuntos de natureza deontológica. Estrela (1993)
justifica este interesse não só pelas perspectivas teóricas que tal reflexão abre, mas
também pelas aplicações práticas que pode vir a ter. E dada a multiplicação e
complexificação dos problemas que afectam as sociedades contemporâneas, cuja
repercussão a escola não pode deixar de sentir, a reflexão deontológica não só se
justifica como se mostra realmente necessária. Ao mesmo tempo, determinados
conflitos gerados na escola, relacionados com práticas menos correctas por parte de
alguns professores, parecem exigir que algo seja feito para minorar, se não prevenir, os
seus efeitos.
Lembra ainda a autora que entre os vários aspectos que permitem caracterizar o
profissionalismo se conta o “ (...) exercício correcto e autónomo de uma função
socialmente reconhecida como altruísta, de que o código ético constitui uma
expressão”, como se fosse uma espécie de “imagem de marca da profissão.” (p. 188)
As principais vantagens de um código adviriam da incrementação de uma identidade
profissional, que se reflectiria na imagem interna e externa da profissão e na afirmação
de autonomia relativamente à heteronomia dos regulamentos provenientes das
instâncias governamentais.

MODELOS DE CÓDIGOS DEONTOLÓGICOS


Em vários países, associações profissionais de professores tomaram a iniciativa
de elaborar códigos de deveres; em Portugal, contudo, nunca as associações de
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professores deram corpo a qualquer código deontológico que fosse expressão de luta
pela autonomia ou de um ideal de profissionalismo.
Reflectindo sobre este tema, D’Orey da Cunha (1996) começa por comparar o
estado da reflexão deontológica em vários grupos profissionais, colocando de um lado
médicos, juristas e jornalistas e, do outro, professores. Enquanto os primeiros terão
desenvolvido reflexões sistemáticas em torno da deontologia e, na sequência desse
processo, elaborado códigos deontológicos, os segundos, reconhecendo embora a
natureza ética da profissão docente, não consubstanciaram os princípios éticos numa
deontologia codificada.
O autor justifica esta diferença recorrendo aos paradigmas que, no seu entender,
suportam os respectivos procedimentos: o paradigma deontológico de médicos e
juristas, dada a natureza liberal de ambas as profissões que estabelecem com o cliente
uma relação directa, é um “paradigma de responsabilidade”; aqui, são as necessidades
do cliente que determinam os deveres tornando-se estes, por sua vez, critérios de
controlo da qualidade profissional. Os professores, em contrapartida, dada a sua
situação de empregados por conta de outrem, seja o empregador o estado ou uma
entidade privada, tomam como referência um “paradigma deontológico de direitos” e
os deveres, de origem administrativa, são-lhes impostos ou, em certos casos,
negociados, sistematizados sob a forma de estatutos ou de contratos; é o caso do
Estatuto da Carreira Docente que consigna os direitos e os deveres dos professores, na
sequência de um processo negocial.
D’Orey da Cunha considera, todavia, que os referidos paradigmas não têm
necessariamente de ser vistos como contraditórios e que, no caso dos professores, por
serem simultaneamente profissionais e empregados, seria pertinente “conciliar dois
paradigmas numa integração criativa” (p. 114). Para esse fim apresenta três sugestões:
que, em todos os actos educativos, o professor coloque sempre o bem dos alunos à
frente do seu próprio “interesse pessoal ou corporativo” (p.114); que, com vista ao bem
educativo do aluno, reivindique empenhadamente as condições óptimas para a
realização do seu trabalho e que, sempre dando a primazia ao bem educativo do aluno,
este possa ter precedência sobre normas emanadas dos empregadores.
Alargando o âmbito do seu estudo, Cunha (1996) dá conta de um projecto de
código deontológico, integrado num seminário da Universidade Católica sobre
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Deontologia da Profissão Docente, cujas natureza e estrutura se propõe analisar nos


seus aspectos “mais sensíveis ou mais controversos” (p. 116). Quanto à natureza, depois
de referir que um código não é “uma escritura que narre uma história de salvação e
inspire a acção moral dos fiéis”, nem “um regulamento até ao pormenor daquilo que
as pessoas devem fazer”, apresenta o seu ponto de vista sobre o que ele deve ser: “
cristalização da experiência ética dos educadores e professores”, tradução de um
consenso sobre as soluções consideradas mais equilibradas e justas face a algumas
situações dilemáticas, “para consideração de todos os profissionais” (p.118). E
admitindo que mesmo esta cristalização possa ser contestada por quem defenda a
liberdade de decidir em função dos seus próprios valores, conclui que o código não
deve ser mais do que “um instrumento de consulta à tradição antes de uma deliberação
que tenha em conta todas as exigências da situação” (p. 119).
Quanto à estrutura, propõe cinco pontos organizadores: (1) Preâmbulo; (2)
Deveres para com os alunos: na ordem do seu desenvolvimento integral, do saber, da
relação pedagógica e da isenção; (3) Deveres recíprocos dos docentes; (4) Deveres dos
docentes para com a comunidade educativa e (5) Deveres para com a sociedade.
Também Estrela (1993), depois de ter analisado alguns códigos provenientes de
vários países, pensa ser possível inferir aspectos caracterizadores e distintivos que
poderiam ser resumidos no seguinte quadro:

Quadro 1 - Tipos de Códigos Deontológicos

Origem  Associações sindicais


 Escolas de formação de professores

Estrutura  Com ou sem Preâmbulo


 Com ou sem fórmula de juramento
 Enunciação das normas reguladoras, em blocos ou em capítulos,
seguida ou não da explicitação das condutas incorrectas

Extensão  10 ou 12 normas
 Várias dezenas de normas

Orientação  Relativas aos alunos, pais e colegas


das normas  Relativas à escola, ao público em geral, à profissão, às práticas de
emprego, à associação profissional
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 Salvaguarda dos direitos fundamentais do Homem e do cidadão


 Salvaguarda dos valores cuja universalidade se pretende assegurar

A autora não deixa, contudo, de chamar a atenção para as fraquezas dos códigos
elaborados pelas associações de docentes, e que são sobretudo de três tipos: (1)
vinculam apenas os seus membros; (2) possibilitam a coexistência de códigos diferentes
numa mesma escola, o que pode ter efeitos contraproducentes na união da classe
justificando, assim, as intenções de muitos professores de se constituírem como ordem;
(3) não possuem força legal, mas apenas força moral, com todas as limitações daí
decorrentes. Em todo o caso, parece ser convicção de M. T. Estrela que as sanções
aplicáveis pelas associações aos seus membros, embora “de carácter moral e
psicológico (...) atingem o infractor no seu bom nome profissional (...) concorrendo
para que o exercício profissional se processe dentro dos limites circunscritos pelas
normas veiculadoras de um determinado conceito de profissionalismo.” (1993, p. 190).
Outra grande vantagem dos códigos deontológicos, explicitamente reconhecida
por muitos investigadores da deontologia docente (Strike e Soltis, 1985; Soltis, 1986;
Blázquez, 1986; Watras, 1986; Nash, 1991; Estrela, 1991, 1993; Cunha, 1996) reside
no facto de proporcionarem um ponto de partida e um pretexto para a reflexão e o
debate em torno dos valores e dos deveres inerentes ao exercício da profissão docente.
Cunha (1996), por exemplo, pensa que o código “pode constituir um instrumento de
formação, tanto de formação contínua de professores já formados, como de formação
inicial daqueles que se prepararam para serem professores”. Blázquez (1986) acentua
outro aspecto, o da “ chamada constante a um sentido mais profundo de
responsabilidade por parte de todas as pessoas implicadas no trabalho educacional.”
(p. 495)

FORMAÇÃO ÉTICA DOS PROFESSORES: ESTRATÉGIAS E


PERSPECTIVAS
Dada a responsabilidade moral e social inerente ao trabalho educativo, não seria
desejável dotar os professores de competências que os habilitassem a resolver
fundamentada e eficazmente os dilemas e conflitos profissionais que, certamente,
encontram? “Todos os dias, nas nossas escolas, há professores que cometem actos
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deontologicamente discutíveis (...). Todos os dias, nas salas de aula, há professores que
revelam princípios morais diferentes conforme se trate de avaliar a sua conduta ou a
conduta dos alunos.” - são afirmações de Estrela (1991: 585) que justificam plenamente
a necessidade de uma cuidada formação ética dos professores, se não de formação
moral, sobretudo se se atender à transformação dos valores sociais no sentido de uma
crescente indiferenciação.
Este ponto de vista está longe de ser pacífico e a autora recorda, a propósito, as
posições tradicionais da Psicologia, que parecem corroborar o senso comum, segundo
as quais as aprendizagens se fazem num tempo próprio, o sujeito estabiliza e torna-se
cada vez mais difícil mudar comportamentos e hábitos. Porém, as novas correntes
desenvolvimentistas da Psicologia desafiam este conceito de estabilidade e mostram que
o adulto também é um aprendente e também se desenvolve como pessoa, abrindo as
portas à possibilidade da formação contínua dos professores, nela incluindo a formação
ética.
Sejam quais forem as estratégias2 adoptadas com vista à formação moral e ética
dos professores, o respectivo valor só pode ser realmente apreciado quando essas
estratégias são integradas num programa global de formação e no modelo que o
enforma. Mas é de admitir que as estratégias mistas sejam as mais frutuosas, por
abarcarem as múltiplas dimensões do comportamento moral e permitirem articular “a
ética da intenção e da acção”. Ao mesmo tempo, qualquer programa de formação
moral ou ética deveria pressupor investigação acerca do pensamento moral dos
professores, de modo a compreender que princípios norteiam as suas condutas
profissionais, que regras se auto-impõem, como solucionam os conflitos de valores que
caracterizam qualquer situação profissional e, ainda, que valores pretendem transmitir
ou promover.
De tudo o que ficou dito, tanto pela natureza polémica do tema como pelo seu
manifesto interesse e pertinência, pretendeu-se conhecer, ainda que de forma
inevitavelmente parcial e contingente, o que pensam os professores sobre princípios
éticos e deontologia prática, sobre códigos deontológicos e formação profissional no
campo da ética. Ao mesmo tempo, procurou-se encontrar resposta para a seguinte
questão: estarão os professores conscientes da essência ética da sua profissão e das
implicações daí decorrentes?
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INVESTIGAÇÃO
Foi a questão acima formulada que presidiu à realização deste estudo e para cuja
resposta se recolheram, analisaram e interpretaram opiniões de alguns professores;
resultou, então um trabalho de natureza empírica e exploratória que pretende fornecer
um contributo para a caracterização do pensamento dos mesmos no campo da Ética e
Deontologia da Profissão Docente.

PROBLEMA E OBJECTIVOS
Este estudo tem como objectivos compreender quais os fundamentos das regras
de conduta adoptadas no exercício da profissão, conhecer a opinião dos professores
sobre a eventual necessidade de um código deontológico e o possível conteúdo do
mesmo e saber o que pensam sobre a pertinência do treino de competências éticas no
âmbito da formação profissional.
A investigação teve como ponto de partida o seguinte problema: haverá
diferenças, quanto à concepção da prática docente e dos deveres profissionais, entre
professores em fases distintas da carreira (início e meio /fim)?
Pensou-se que, a haver tais diferenças, elas seriam reveladas, no discurso dos
docentes, pela discrepância da frequência dos indicadores, principalmente nas áreas da
concepção dos deveres e da dimensão axiológica da prática docente e foi esta a hipótese
orientadora do trabalho, objecto da verificação empírica para a qual foi criado um
instrumento de recolha de opiniões.

METODOLOGIA
Atendendo às características e aos objectivos do trabalho, a adopção de uma
metodologia qualitativa impôs-se como a mais acertada. Uma vez que aquilo que se
pretende é compreender e interpretar os diferentes pontos de vista dos sujeitos
inquiridos, reduzir estes dados a números não fará muito sentido, ainda que o recurso
aos números (como, por exemplo, na contagem de unidades de enumeração e
respectivas frequências) possa ser um auxiliar precioso para a interpretação. Mas o
procedimento consiste em “analisar os dados em toda a sua riqueza, respeitando, tanto
quanto o possível, a forma em que estes foram registados ou transcritos” (Bogdan e
Biklen, 1994, p.48).
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OS SUJEITOS
Os sujeitos cujas opiniões se recolheram são professores do ensino oficial, níveis
básico e secundário, de vários grupos disciplinares, com percursos académicos e
profissionais diferentes e pertencentes a duas escolas do concelho de Lisboa, a uma
escola do concelho de Loures e a outra do concelho da Amadora.
Dado que se pretende comparar opiniões de professores em duas fases distintas da
carreira, foi este o critério de selecção utilizado. Assim, no campo relativamente restrito
dos contactos pessoais e profissionais do investigador, entre os professores que
manifestaram a sua disponibilidade para colaborar nesta investigação foram escolhidos
4 em fase inicial - pré-carreira, em formação ou recém-formados - com um tempo de
serviço não superior a 5 anos e outros 4 com tempo de serviço igual ou superior a 15
anos.

RECOLHA DE DADOS
O instrumento utilizado na recolha de opiniões foi a entrevista. Optou-se, neste
caso, pela entrevista semidirectiva. As entrevistas foram realizadas de acordo com uma
grelha de temas e perguntas - guia, cuja ordem de apresentação e de resposta não foi
rígida, mas variável e ditada pela dinâmica discursiva do entrevistado.
Algumas das áreas temáticas propostas foram as seguintes: Valores norteadores
das práticas pedagógicas; Práticas pedagógicas e transmissão de valores; Código
deontológico. A própria formulação das questões, cujas clareza e pertinência foram
testadas previamente por meio de uma entrevista de controlo, não foi sempre igual e foi
pedido aos entrevistados que discorressem livremente, pela ordem que entendessem,
com as palavras que desejassem usar e aprofundando e estendendo a resposta tanto
quanto o tema ou a questão lhes sugerissem.
Todas as entrevistas foram feitas individualmente, em locais e ambientes
considerados adequados pelo entrevistador e pelos entrevistados e antecedidas das
respectivas motivação e legitimação. Foram gravadas e posteriormente transcritas.

TRATAMENTO DOS DADOS


Os dados assim recolhidos, pela sua variedade e riqueza informativa, exigiram o
recurso a um processo de tratamento sistemático que foi a análise de conteúdo. O
primeiro passo da análise foi a codificação, enquadrada pelos objectivos traçados para a
15

investigação. Tornou-se, pois, necessário construir um sistema de categorias que veio a


constituir a grelha de análise dos dados recolhidos.
Na presente investigação, as categorias foram concebidas, por um lado, a partir
de um pano de fundo teórico resultante da consulta de bibliografia sobre o tema em
análise e pelas reflexões dela decorrentes (que deram lugar à formulação do problema e
à definição dos objectivos da investigação, bem como ao guião das entrevistas); por
outro lado, a partir dos próprios discursos dos entrevistados, dos quais se fez uma
primeira leitura essencialmente exploratória. Foi também assim que se procedeu para a
construção das subcategorias, isto é, dos vários aspectos pelos quais cada categoria pode
ser compreendida (Bardin, 1994; Estrela, 1994; Ghiglione e Matalon, 1993; Nahoum,
1975; Quivy e Campenhoudt, 1992; Vala, 1986).

RESULTADOS
Os dados recolhidos foram analisados de acordo com um quadro de categorias e
subcategorias (Quadro 2). É a interpretação de alguns dados que seguidamente se
apresenta.
Quadro 2 - Dimensões da Análise de Conteúdo

Categoria Subcategorias

Fundamentação das Práticas Docentes: 1. Princípios orientadores das práticas dos


onde e como encontra o professor as professores com os alunos
razões das suas acções pedagógicas e 2. Princípios orientadores das práticas dos
institucionais; a natureza dessas razões e as professores com os colegas e com a
consequências práticas da ausência de instituição
fundamentos 3. Dimensão axiológica da prática docente
4. Ofensas aos princípios que devem
orientar os professores

Deveres dos Professores: consciência 1. Deveres relativos aos alunos


deontológica do professor; os domínios 2. Deveres relativos aos colegas e à
abrangidos pela deontologia; as violações instituição
mais frequentes da deontologia e seus 3. Deveres relativos aos encarregados de
motivos educação
4. Motivos de incumprimento dos deveres

O Código Deontológico: como concebe o 1. Conteúdo e estrutura do código


professor um possível código em termos de 2. Autoria e proveniência do código
pertinência, efeitos, conteúdo e 3. Efeitos do código
proveniência 4. Utilidade do código
16

Situações de Conflito: o que entende o 1. Conflitos com alunos


professor por situações conflituosas, onde 2. Conflitos com colegas ou com a
as radica e como as soluciona instituição
3. Critérios de resolução de situações
conflituosas

FUNDAMENTAÇÃO DAS PRÁTICAS DOCENTES


São quatro os tópicos de análise desta categoria: (1) Princípios orientadores das práticas
dos professores com os alunos; (2) Princípios orientadores das práticas dos professores
com os colegas e a instituição; (3) Ofensas aos princípios que devem orientar os
professores e (4) Dimensão axiológica da prática docente

PRINCÍPIOS ORIENTADORES DAS PRÁTICAS DOS PROFESSORES COM OS


ALUNOS
No trabalho diário com os alunos e nas relações extra-aulas que com eles
mantêm, o que é que regula os comportamentos dos docentes? Como é que eles
próprios concebem essa regulação? No tema que lhes foi proposto, a totalidade dos
inquiridos salientou o temperamento, o pensamento e a mundividência do professor
como o que, em primeiro lugar, orienta os seus comportamentos e as suas práticas.
A maioria refere também a consciência do dever e valores como razoabilidade e
equilíbrio; as regras básicas de convivência; as reacções dos alunos como feed-back; as
directrizes da política educativa e respectiva legislação.
A especificidade e os interesses dos alunos, o currículo da disciplina e os
conhecimentos especializados de pedagogia e didáctica são ainda mencionados por,
respectivamente, metade, 1/3 e 1/4 dos professores entrevistados. Estas fracções são
constituídas exclusivamente por docentes na fase inicial da carreira.
É possível organizar os referidos princípios orientadores em três classes,
consoante a sua origem ou fonte:
1) Os que provêm do próprio sujeito, na medida em que resultaram de um
processo de interiorização/formação mais ou menos consciente e raciocinado:
temperamento, mundividência, consciência moral, valores, regras de
convivência;
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2) Os que decorrem daqueles a quem o sujeito se dirige: especificidade,


interesses e reacções dos alunos;
3) Os que dependem de normas explícitas: currículos disciplinares, directrizes
da política educativa, conhecimentos específicos de pedagogia e didáctica.
Comparando a frequência das ocorrências - 115 relativas à primeira classe de
princípios, 39 relativas à segunda e 35 relativas à terceira, parece legítimo inferir uma
tendência prioritária dos professores para a autodeterminação no que concerne às suas
acções docentes; que esta autodeterminação admite, também, uma heterodeterminação -
filtrada, porém, pela consciência do dever e pela mundividência do sujeito agente, como
se pode depreender das seguintes afirmações de um dos inquiridos (e 6) 3: “ Pode haver
leis, e há, com certeza, e eu procuro saber: por exemplo, a legislação sobre avaliação
(...) tenho de saber e quero estar dentro (...) todas essas práticas, digamos, com os
alunos, são institucionais, eu estou numa instituição; mas aquilo que me orienta não é
isso ... É (...) a minha consciência é aquilo que eu acho que devo fazer.”

PRINCÍPIOS ORIENTADORES DAS PRÁTICAS DOS PROFESSORES COM OS


COLEGAS E A INSTITUIÇÃO
75% dos entrevistados afirmaram orientar-se por princípios de honestidade,
imparcialidade e transparência nas relações com os colegas e com a instituição; são
também estes os princípios cuja frequência de ocorrências é mais elevada e são os
docentes da fase avançada da carreira quem mais se lhes refere.
Por ordem decrescente de número de ocorrências são mencionados ainda: as
regras comuns de convivência social e as consensualmente estabelecidas por cada
grupo; a disponibilidade total; a abertura às perspectivas dos outros e o temperamento
pessoal; os valores de competência e excelência; a empatia e as afinidades pessoais.
Não são notórias, relativamente aos princípios referidos, discrepâncias entre os
dois grupos de professores e o fundamento das acções parece situar-se no plano mais ou
menos imediato das normas sociais e da personalidade individual. Onde essas
discrepâncias ressaltam é na frequência das ocorrências, que é superior no grupo da fase
avançada da carreira.

OFENSAS AOS PRINCÍPIOS QUE DEVEM ORIENTAR OS PROFESSORES


É inegável a contradição entre os princípios postulados e os comportamentos
práticos de alguns (muitos? poucos?) professores. As ofensas mais frequentemente
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referidas pela maioria dos inquiridos são o excesso de individualismo e a consequente


recusa do diálogo, por um lado; por outro, a displicência na realização das tarefas
escolares. Outros, embora em menor número, mencionam casos de discriminação racial,
nomeadamente anti-semitismo, e de boicote ao trabalho do grupo pela rejeição das
regras mais elementares do seu funcionamento.

DIMENSÃO AXIOLÓGICA DA PRÁTICA DOCENTE


A questão que, neste âmbito, foi proposta aos entrevistados incidiu sobre a
relação entre pedagogia e valores, tal como eles a perspectivavam. Os discursos foram
unânimes: o acto pedagógico é intrinsecamente valorativo. Trata-se de uma afirmação
carregada de sentido. O que parece poder inferir-se a partir dos contextos que a
sustentam é que, por um lado, não há ensino neutro do ponto de vista axiológico, isto é,
toda a palavra e todo o acto, pelo simples facto de serem esses e não outros, já traduzem
uma escolha e, por isso mesmo, uma valoração - com as quais a pessoa do professor se
compromete inteiramente; por outro lado, “se - como diz Gusdorf (1978: 86) - a
educação, no sentido mais amplo do termo, tem por fim promover a instauração da
humanidade no homem”, então o acto pedagógico deve ser necessariamente sustentado
por valores, cuja dimensão ética é visível, uma vez que é a formação do ser humano que
está em jogo e que não é indiferente o sentido dessa formação. Nas palavras de um dos
inquiridos, “Pedagogia e valores ... eu acho que se dizem um ao outro, que as duas
coisas são uma.” (e 6); outro afirma: “(...) não há ninguém que possa ser pedagogo sem
ter valores, os seus valores em jogo.” (e 2) Curiosamente, embora todos os inquiridos se
lhe refiram sem excepção, são os professores na fase inicial da carreira quem alude com
maior frequência ao carácter valorativo do acto pedagógico. Mas são os da fase
avançada que apresentam discursos mais consistentes e reveladores de um nível
profundo de reflexão sobre o tema.
Relativamente ao modo, ou modos, da formação axiológica, todos os
professores consideraram que o exemplo quotidiano é o instrumento privilegiado mas,
da frequência das ocorrências, infere-se que são os da fase avançada da carreira que lhe
atribuem maior importância.
Os professores admitiram também a possibilidade de abordar os valores a
propósito dos conteúdos programáticos e pela discussão dos fundamentos de atitudes e
acções concretas. Diz um dos inquiridos: “É normal e quotidiano trazer casos para a
19

aula. Depois, também surgem entre nós situações concretas e eu gosto de os expor e de
os confrontar com elas. E, no meio disto, debatê-las e tentar averiguar como é que nos
devemos um pouco nortear; obrigá-los a meditar sobre isso.” (e 4)
Os valores e atitudes que principalmente os professores na fase inicial da
carreira afirmaram pretender transmitir são liberdade e responsabilidade, persistência e
esforço de aperfeiçoamento e, genericamente, os implicados na Constituição e na
Declaração dos Direitos do Homem. Esta intencionalidade vem ao encontro do ponto de
vista de Cordero (1986), quando define o propósito do professor como “O de conseguir
a formação de sujeitos responsáveis por si mesmos, sujeitos dotados de estrutura ética,
senhores de si e dos seus actos e capazes de assumir as suas responsabilidades” (p.
473).

DEVERES DOS PROFESSORES


A abordagem do tema dos deveres procura dar conta do modo como os
professores se posicionam relativamente às tarefas e aos comportamentos que julgam
próprios do bom desempenho profissional e às respectivas regras orientadoras.
Pretende-se, igualmente, compreender a articulação entre estas regras - práticas,
empíricas - e os princípios fundamentadores que os mesmos professores enunciam.
Todos os inquiridos enfatizaram a existência de deveres: uns como uma
necessidade inquestionável - “Claro que têm deveres, então não têm que ter deveres?”
(e 4); outros, como exigências um tanto escamoteadas - “Às vezes esquecemo-nos disso,
mas temos muitos deveres.” (e 7); outros ainda, como uma presença constante e
premente - “ (...) têm montes de deveres! Acima de tudo, têm deveres! Têm deveres,
pois têm.” (e 5).
Esta categoria foi dividida em subcategorias, correspondentes a áreas temáticas:
(1) Deveres relativos aos alunos e (2) Deveres relativos aos colegas e à instituição

DEVERES RELATIVOS AOS ALUNOS


Esta foi a área que mais referências suscitou aos entrevistados, tanto os da fase
inicial como os da fase avançada da carreira, mas a frequência das ocorrências é
ligeiramente superior nos primeiros.
Os deveres mais vezes referidos são, por ordem decrescente: promover o
desenvolvimento pessoal e a autonomia dos alunos, educando-os ou formando-os no
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respeito pelos valores fundamentais; respeitar-lhes a individualidade enquanto pessoas e


estabelecer com eles uma boa relação, assente sobre critérios de transparência,
imparcialidade e objectividade; ser cientificamente competente, actualizar-se e adaptar
o ensino às características dos alunos; ser bom profissional independentemente das
condições de trabalho.

DEVERES RELATIVOS AOS COLEGAS E À INSTITUIÇÃO


A grande maioria dos docentes considera que tem deveres a cumprir no seu
relacionamento com a escola como instituição e, mais particularmente, com os colegas;
não há aqui diferenças significativas entre os dois grupos inquiridos. Onde as diferenças
se acentuam é na frequência das ocorrências, que é substancialmente superior no grupo
da fase inicial da carreira.
O dever mais vezes referido é o de dignificar a profissão, corrigindo o que nela
está mal, o que vem na mesma linha do dever de ser bom profissional em quaisquer
circunstâncias, indicado no ponto anterior. Seguem-se os deveres de auto e hetero-
avaliação, e troca e partilha de experiências com os colegas, de os alertar sobre
possíveis erros que tenham cometido, de lhes prestar atenção e apoio em caso de
dificuldades, de os respeitar como pessoas e como profissionais.
Parece, contudo, que estes deveres não possuem todos o mesmo alcance;
enquanto os dois primeiros incidem sobre o professor entendido como sujeito individual
duma prática cujos efeitos se repercutem na instituição, afectando a sua imagem
exterior, os restantes supõem-no membro da comunidade escolar e visam a coesão do
grupo profissional pela manutenção ou pelo reforço dos laços de solidariedade interna.

O CÓDIGO DEONTOLÓGICO
Caberá agora perguntar se, do reconhecimento da omnipresença de deveres nas
práticas docentes e da função orientadora que possuem, os professores inferem a
necessidade de proceder à organização formal dos mesmos num código que vincule as
acções às regras estabelecidas.
A grande maioria dos docentes inquiridos manifesta-se a favor da criação de um
código deontológico da profissão e a razão que todos consideram, mais ou menos
explicitamente, é a vantagem de ficar na posse de um critério uniforme que permita
aferir a correcção dos actos dos professores.
21

Procedeu-se à análise da categoria segundo quatro dimensões: (1)Conteúdo e


estrutura do código; (2) Autoria e proveniência do código; (3) Efeitos do código; (4)
Utilidade do código

CONTEÚDO E ESTRUTURA DO CÓDIGO


Maioritariamente, os professores entrevistados consideram que um código
deontológico, a ser criado, deveria estruturar-se em torno de princípios muito gerais,
sem entrar na enunciação de deveres específicos. Quando solicitados no sentido de
explicitarem esses princípios, referem os direitos humanos fundamentais, os
consignados na Constituição e as regras comuns de convivência. 50% dos inquiridos, no
entanto, pensam que o código deveria estabelecer claramente quais as práticas docentes
julgadas correctas e quais as incorrectas - consequentemente condenáveis; 25%, ainda,
julgam que o código deveria organizar-se segundo áreas deontológicas distintas: alunos,
colegas e instituição, encarregados de educação.
A primeira opinião é manifestada igualmente pelos dois grupos de professores;
os que pertencem ao grupo de início da carreira são os principais defensores das duas
últimas, o que vem ao encontro das diferenças já encontradas na área da enunciação dos
deveres.

AUTORIA E PROVENIÊNCIA DO CÓDIGO


Supondo que a criação de um código deontológico era não só pertinente, mas
mesmo necessária para a profissão docente, caberá agora discutir a questão da sua
autoria e das suas fontes. A este propósito, o ponto de vista de todos os inquiridos é o
de que ele deve ser a expressão de um consenso entre os professores e a manifestação
de uma vontade colectiva, embora alguns se mostrem cépticos relativamente à
possibilidade de tal consenso, atitude que não será injustificada, se se atender à natureza
do assunto, por um lado, e à heterogeneidade do próprio corpus profissional, por outro.
Ainda no que concerne à autoria e à proveniência do código, outras sugestões
são apresentadas, embora por um número menor de entrevistados: o código deve
resultar de um “núcleo duro” de deveres já respeitados, isto é, deve nascer das práticas
já existentes; deve ter em conta o que a sociedade espera dos professores e deve
beneficiar de experiências já realizadas, nomeadamente em códigos de outras
profissões.
22

EFEITOS E UTILIDADE DO CÓDIGO


Ao exporem os seus pontos de vista sobre a possível pertinência de um código
deontológico, os professores entrevistados, na sua quase totalidade, consideraram que
um código seria não só pertinente, mas útil e, segundo alguns, indispensável.
Simultaneamente, abordaram a questão dos efeitos benéficos que dele poderiam
decorrer. De acordo com a frequência das ocorrências, a maior vantagem do código
seria a de alertar, prevenir contra o erro e salvaguardar o professor em caso de conflito,
seguindo-se-lhe outras, como a de promover a competência profissional e,
consequentemente, a credibilidade dos professores enquanto grupo; reforçar-lhes a
unidade, conferindo-lhes, assim, maior força; melhorar a qualidade do ensino. Na
perspectiva de um dos professores (e 1)“(...) esse código também já seria mais uma
aliança, qualquer coisa que todos comungavam, que todos partilhavam, e de alguma
forma podia conferir não só maior credibilidade, mas maior unidade aos seus
profissionais.”
Alguns dos entrevistados, no entanto, manifestaram dúvidas quanto a uma real
utilidade do código. Em primeiro lugar porque, só por si, o código não tem qualquer
eficácia prática garantida: é sempre necessária a vontade dos sujeitos para dele fazerem
decorrer as acções. Logo, concluem, é toda a formação axiológica do professor, já
profundamente interiorizada, que determina os comportamentos docentes, de forma
bem mais directa do que qualquer código de deveres. Em segundo lugar porque, mesmo
possuindo uma deontologia informal, “em todas as escolas há sempre alguém que não
cumpre coisíssima nenhuma” (e 7).

SITUAÇÕES DE CONFLITO
Num meio dominado por complexas teias de relações interpessoais, como é o
das escolas, é natural que ocorram por vezes situações conflituosas entre os vários
interlocutores em presença. Procurou-se compreender que tipos de situações são
consideradas portadoras de conflitualidade e se existe alguma espécie de nexo entre
estas e o modo como os professores encaram as regras da sua profissão. Os
entrevistados distinguiram dois grupos de conflitos: com os alunos e com os colegas e a
instituição; e relataram casos em que eles próprios estiveram envolvidos ou casos de
que tiveram conhecimento, mas sem envolvimento pessoal.
23

CONFLITOS COM ALUNOS


As situações narradas permitem ordenar, por ordem decrescente, os seguintes
conflitos com alunos: Agressão verbal mútua e indisciplina em geral (da parte do
aluno); Autoritarismo, rispidez e inflexibilidade; Assédio sexual Discriminação (sexual,
racial) e favorecimento.
Os dois primeiros tipos de casos podem ser compreendidos à luz das teses sobre
o ciclo de vida dos professores (Huberman, 1989, por exemplo); os dois últimos
remetem para o plano dos fundamentos das condutas, isto é, para o plano ético. Ora se é
de esperar que, mais tarde ou mais cedo, à medida que as atitudes e perspectivas dos
professores sobre a relação de ensino - aprendizagem se vão modificando, os dois
primeiros tipos de conflitos tendam a diminuir, talvez já não se possa esperar o mesmo
dos dois últimos, que não parecem dependentes de idênticos factores, mas antes da
formação ética do professor enquanto pessoa.

CONFLITOS COM OS COLEGAS E COM A INSTITUIÇÃO


Os maiores conflitos nesta área são provocados por intrigas, falta de
transparência nas relações interpessoais e acusações infundadas de que, por vezes,
alguns professores são vítimas. Há ainda referências a casos de discriminação e
prepotência, tanto por parte de colegas como dos órgãos directivos das escolas.
Torna-se claro, em situações desta natureza ou da natureza das apresentadas no
ponto anterior, que os regulamentos internos das escolas não são suficientes para lhes
fazer face; é na sequência desta convicção que se começa a pensar nas possíveis
vantagens de um conjunto de normas sistematizadas que viessem a funcionar como
princípios de acção e julgamento para todos os implicados no processo educativo, em
especial os professores (Blázquez, 1986).

CRITÉRIOS DE RESOLUÇÃO DE SITUAÇÕES CONFLITUOSAS


Quando descrevem situações de conflito, os inquiridos formulam
simultaneamente juízos de valor sobre as soluções encontradas. Assim, consideram que
situações com mais probabilidades de serem bem resolvidas são aquelas cujos
mediadores se pautam por critérios de objectividade, imparcialidade e flexibilidade ou,
de acordo com os casos, proporcionam ajuda ou intervenção terapêutica aos sujeitos
envolvidos.
24

Pelo contrário, marginalizar colegas ou alunos na sequência de qualquer conflito


ou não intervir ao nível das suas causas significa não só que se enfrentou a situação do
modo menos correcto mas também que o conflito não foi resolvido, apenas foi
camuflado ou adiado. Ora, como sugerem dois dos professores entrevistados, “(...)
talvez um código deontológico fosse mais normativo nessas situações.” (e 4) e “Um
código seria como que uma autoridade a que se recorre nesses casos...” (e 8).
Esta perspectiva está em sintonia com o que ficou escrito acima a propósito dos
efeitos e da utilidade de um possível código deontológico. No entanto, no contexto
agora em análise e com excepção das entrevistas citadas, as potencialidades do mesmo
não se tornam evidentes para a maioria dos professores.

CONCLUSÃO
Os dados recolhidos por meio de entrevistas semidirectivas revelaram-se
bastante ricos e permitiram, uma vez submetidos a análise, obter uma perspectiva
multifacetada das concepções dos professores inquiridos acerca do tema em
investigação. Assim, em cada categoria destacam-se as seguintes conclusões:
Fundamentação das práticas docentes
 As referências aos valores e à consciência do dever são feitas pelos dois grupos de
professores, mas são mais numerosas entre os que estão em fase avançada da
carreira; os que estão em fase inicial parecem mais preocupados com os programas
das disciplinas e os conhecimentos teóricos de pedagogia e didáctica específica, o
que poderá justificar-se pela proximidade temporal da formação profissional e do
que nela habitualmente se valoriza.
 As prioridades dos docentes parecem ter sofrido um deslocamento e ao longo da
carreira, acompanhado de uma crescente consciência da natureza ética da profissão,
consciência essa que não deixa nunca de estar presente, mesmo no início, quando
parece submetida ao peso da heteronomia.
 Uma maior experiência profissional, provavelmente acompanhada de reflexão,
parece ter conduzido à convicção de que um bom exemplo vale mais do que muitas
palavras, como se pode depreender das afirmações de um dos entrevistados (e 6): “
Ser educador é ser exemplar (...) não vale a pena eu dizer isto, dizer aquilo...não
tenho que dizer coisa nenhuma; eu tenho que fazer, tenho que ter atitudes. (...) eu
25

posso estar a defender teoricamente muitas coisas mas, de facto, os miúdos têm uma
grande percepção disto: «Ah, está bem, dizes isso mas não é o que tu fazes!»”.
 Delineia-se um ideal de comportamento profissional pautado por valores
essencialmente éticos (honestidade, solidariedade, tolerância...), exigindo
profissionais dotados de “competência” e “excelência” e capazes de “disponibilidade
total”; no entanto, é notória a discrepância entre realidade e idealidade da profissão:
os princípios são elevados mas o mesmo não acontece, necessariamente, com os
actos.
 Os professores na fase inicial da carreira mostram-se menos sensíveis ao tema das
ofensas aos princípios: embora se lhe refiram, fazem-no de modo mais abreviado e
menos veemente, excepto no que respeita à realização displicente das tarefas
escolares. É certo que a posse ou o conhecimento de bons princípios não é garantia
da bondade da acção, isto é: deles não se deduz necessária e automaticamente uma
acção correcta, nem do ponto de vista moral, nem do profissional. Contudo, é ainda
mais certo que nenhuma acção educativa consistente se pode realizar sem
fundamentos que a sustentem e que a aprendizagem desses fundamentos deveria ser
preocupação prioritária de todos os professores.
 Todos os professores inquiridos, independentemente dos anos de prática, estão
conscientes da natureza intrinsecamente formativa da profissão, embora nem todos
abarquem, com a mesma amplitude, o sentido teleológico da educação e as
dificuldades daí decorrentes. Ora, é o compromisso do professor com os seus valores
e com o projecto educativo que constitui o seu telos que confere eticidade à profissão
docente.

Deveres dos Professores


 O professor regula-se por deveres consentâneos com os princípios de
responsabilidade e autonomia e tem como objectivo último a formação de pessoas,
sem esquecer que a formação também passa pela informação, já que não parece
viável transmitir valores - éticos ou outros - sem mobilizar, para esse fim,
conhecimentos relativos ao mundo em que se vive e à sua história, ou a si mesmo na
sua condição de ser vivo de determinada espécie e num dado contexto; do mesmo
26

modo, transmitir conhecimentos científicos (ou estéticos, ou filosóficos ...) é, só por


si, revelador do respeito que merecem valores como verdade, saber, ou cooperação
(Savater, 1997). É, pois, esta unidade do acto educativo que lhe confere a capacidade
formativa.
 O professor deve esforçar-se por conseguir boas condições de trabalho, mas a
ausência delas não pode ser pretexto para o mau desempenho. Mais uma vez, a
tónica é colocada nos princípios e na finalidade, não nos meios. Mais uma vez,
ainda, a distância entre representação e realidade é considerável.
 Uma análise atenta dos discursos dos inquiridos permite destacar dois aspectos
interessantes do conceito de avaliação dos professores: trata-se de uma avaliação a
que se poderia chamar “endógena”, como se infere das palavras de um dos docentes
entrevistados (e 6): “(...) só os meus próprios pares é que me podem julgar; o que eu
sou como professora, só na minha escola os meus colegas, sobretudo os de grupo, é
que poderão dizer alguma coisa ...”. Em segundo lugar, será uma avaliação em
sentido alargado, não apenas das competências científicas, mas também das
capacidades psicológicas do professor e que visa mais a formação e menos a
classificação.
 Consequentemente, o dever de avaliação revelar-se-ia de duplo efeito: no interior do
“corpo” docente, ao permitir reforçar-lhe a “saúde” e a unidade; no exterior, no
contexto social, pela renovação da imagem profissional, tornada mais credível mercê
desse esforço interno de controlo e correcção.
 Comparando a posição dos dois grupos de professores na área dos deveres e na área
dos princípios reguladores da relação professor/colegas e instituição, constata-se uma
curiosa inversão: o grupo que mais referências faz aos princípios é o que menos se
refere aos deveres (o dos professores da fase avançada da carreira); o que manifesta
menor interesse pelos princípios privilegia depois os deveres (professores na fase
inicial).
 Há aqui como que uma alternância de interesses cuja regularidade levanta
dificuldades de interpretação. Se se considerassem os princípios não só como
declarações de intenções, mas também como realmente vinculativos, ou seja, como
fundamentos das regras práticas - os deveres - que deles decorreriam naturalmente,
então poderia compreender-se a escassez das referências a estes últimos. Seria como
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se os deveres estivessem contidos nos princípios; e quem conhece os princípios sabe,


por inerência, quais são os deveres. (Se os realiza ou não, já é de outra ordem ...)
Pelo contrário, uma maior insistência nos deveres, isto é, nas regras práticas
significaria, possivelmente, um entendimento diferente dos princípios ou da relação
entre estes e aqueles, que já não seria, então, percebida como vinculativa. Além
disso, dada a natureza abstracta dos princípios, são os deveres que se intuem em
primeiro lugar, como aquilo que está mais próximo das práticas e com elas se liga.
 O lugar que o tema dos deveres ocupa na organização dos vários discursos sugere a
posse de uma deontologia que, embora tácita, se apresenta como um corpo de regras
unificador das diversas praxis docentes.
O Código Deontológico
 Os professores que iniciam a actividade profissional parecem sentir, mais do que os
outros, a premência de deveres específicos que, por não terem sido ainda
interiorizados, carecem de organização formal, com carácter normativo, a que se
apele sempre que necessário. Ainda que o conhecimento das regras não seja garantia
da sua aplicação.
 Os professores falam em consenso e em vontade colectiva a propósito da autoria do
código, o que significa que as práticas consideradas correctas são não só conhecidas
como assumidas espontaneamente pela maioria dos professores e que aqueles que as
violam se colocam, de certo modo, nas margens do corpo profissional.
 O grupo dos professores principiantes nunca menciona uma deontologia fundamental
e tácita ( o núcleo duro) como ponto de partida e fio condutor de um código
deontológico; o escasso tempo de permanência na profissão não será alheio a este
facto, condicionando o modo como o professor compreende e aplica os deveres.
 Por seu turno, o grupo dos professores instalados na profissão nunca se refere à
necessidade de ter em conta as expectativas sociais aquando da eventual criação do
código, o que não só reforça a ideia do consenso, mas também aponta para um
processo exclusivamente interno de criação que confirma - e ilustra - a capacidade de
autodeterminação dos professores.
 Relativamente à utilidade do código, é notória uma situação paradoxal: o código é
visto como útil e vantajoso por quem já possui uma deontologia - o que, em última
análise, o torna dispensável. Para aqueles que a não possuem, também não é certo
28

que o código tenha algum valor prático, uma vez que só o querer do sujeito é
determinante da orientação das suas práticas. A não ser que o código se fizesse
acompanhar de algum sistema de sanções a aplicar aos que o não cumprissem, o que
não levanta menores dificuldades.
 Todavia, há um aspecto em torno do qual se nota consenso: o código teria a
vantagem de defender os professores, enquanto membros de uma classe profissional,
de possíveis conflitos com o exterior e da degradação da sua imagem perante o
público; é que, aceitando submeter-se a deveres que seriam consensuais para a classe
e a julgamento ou a avaliação por parte dos seus pares, os professores estariam a
precaver-se contra qualquer suspeição de que pudessem vir a ser alvos, ao mesmo
tempo que reforçavam a sua unidade e o seu poder de intervenção social. Além disto,
um código deontológico é mais um passo na afirmação do profissionalismo docente,
cujo estatuto permanece ambíguo tanto aos olhos da entidade empregadora como aos
dos próprios profissionais.

Situações de Conflito
 Os professores que se encontram no início da carreira referem, muito mais do que os
outros, conflitos com alunos; a isto não será alheia, provavelmente, uma maior
centração sobre si próprios, nesta fase inicial a que Huberman (1992) chama
entrada, tacteamento e na qual o professor se esforça por marcar a sua autoridade,
nem sempre do modo mais eficaz. Alguns autores consideram mesmo que uma
situação escolar problemática, na qual se inclui a indisciplina na aula, é uma das
causas do “Shock da realidade” (Veenman, 1988), isto é, do processo durante o qual
se confrontam os ideais e a realidade.
 Os professores mais experientes apontam, sobretudo, conflitos com colegas ou com a
instituição. Ultrapassadas as dificuldades iniciais relativas à gestão do binómio
autoridade / flexibilidade na relação pedagógica, é o tempo de o professor alargar e
consolidar as suas relações de trabalho e será este um campo potencialmente
conflituoso.
 A maior parte dos professores avalia como não solucionados os conflitos que narra,
geralmente por não terem sido tomadas as medidas que, de acordo com os seus
critérios, seriam adequadas.
29

No que concerne ao problema que serviu de ponto de partida para a


investigação, a resposta sintética que emerge da análise feita é que os deveres
profissionais, o conceito de professor, os princípios orientadores das práticas docentes,
entre outros aspectos, são formulados em termos muito semelhantes e valorados de
forma idêntica pelos professores, quer estejam a iniciar quer estejam a meio ou perto do
fim da carreira; mesmo tendo em conta os diferentes pesos que alguns aspectos
específicos destes temas possam ter na economia dos respectivos discursos e de que as
diferenças de frequência das ocorrências são indiciadoras.
Neste medida, pensa-se que os objectivos do trabalho terão sido alcançados e
espera-se ter conseguido lançar alguma luz sobre o pensamento dos professores
relativamente aos aspectos éticos - ou a parte deles, pelo menos - que envolvem as
práticas profissionais docentes; isto sem perder de vista, no entanto, que toda a
investigação qualitativa, dado o seu pendor marcadamente interpretativo, se deverá
sempre considerar incompleta e em aberto.
Do mesmo modo, a complexidade do objecto de investigação e o número
restrito de sujeitos sobre o qual incidiu permitem antever as vantagens de um ou vários
estudos mais profundos que incidam sobre cada uma das áreas cujas pistas se abriram
aqui: o pensamento moral dos professores; as suas concepções de deontologia prática
em relação com um eventual código deontológico e a formação ética dos professores,
para a qual se poderia construir um projecto devidamente fundamentado ao nível dos
paradigmas éticos.
Em todo o caso, o que parece realmente importante e, consequentemente,
merecedor de investimento é todo o trabalho de tomada de consciência e de reflexão,
por parte dos professores, da natureza ética da profissão docente e os resultados que daí
possam advir em termos de enriquecimento pessoal e profissional e de melhoria da
qualidade das nossas escolas, tendo em vista a educação que nelas se realiza.

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NOTAS
1
Monografia realizada no âmbito de uma Especialização em Ciências da Educação na área de Supervisão
Pedagógica

2
M. T. Estrela (1991) refere e analisa algumas dessas estratégias: tradicionais de base intelectualista; de tipo
pragmático; inspiradas directamente em correntes cognitivas de desenvolvimento moral; ligadas ao movimento de
clarificação de valores; inspiradas numa concepção mais ampla de formação moral que ultrapassa o campo restrito do
raciocínio e da deliberação moral e estratégias mistas.
3
As entrevistas são citadas, a partir daqui, deste modo: (e1), (e 2) ... até (e 8)

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