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BALCONI, Deleuze, Política e Estado (2018)

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CAPÍTULO 29

TEORIA CRÍTICA DE GILLES


DELEUZE: DIREITO E ESTADO
PELA PERSPECTIVA PÓS-
ESTRUTURALISTA

Lucas Ruíz Balconi


Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP - Largo São Francisco). Mestre em Direito Político e
Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM – São Paulo). Bacharel
em Direito. Professor Universitário. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia do
Direito: crítica da subjetividade jurídica (FDUSP). Advogado e sócio do escritório Balconi
Moreti Advocacia.

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE GILLES DELEUZE

O autor, Gilles Deleuze, nasceu no dia 18 de janeiro de 1925, e é


considerado, atualmente, um dos principais pensadores do século passado.
Cursou filosofia na Universidade de Sorbonne, Paris, entre 1944 a 1948, neste
local conseguiu, de um modo invejável, ter o privilégio de estudar, debater
e aprender com diversos intelectuais de renome de sua época como Sartre,
Georges Canguilhem, Jaques Lacan, Michel Foucault, entre outros. Após sua
formação, dedicou-se ao estudo da história da filosofia, tornando-se professor
da matéria na Universidade de Sorbonne em 1957, antes disso atuou como
docente em liceus de Paris e, posteriormente, em outras universidades1. O
pensador, por sua potência filosófica e estilo de ensino, foi mal visto em sua
época e chegou a ser acusado de corromper a juventude (ROUDINESCO,
2007, p. 204). É que, de um modo controverso, “Deleuze deixava seus
interlocutores e leitores perturbados com uma atitude paradoxal que parecia
sempre estar na contracorrente do discurso racional” (Ibid., p. 205). Faleceu,
após diversas complicações de saúde, no dia 04 de novembro de 1995.
1. Atuou, também, como professor de História da Filosofia, entre 1964 e 1969, na Universidade de
Lyon. Bem como, promoveu diversos cursos na Univesidade de Vincennes.
372 FILOSOFIA DO DIREITO

Ainda que tenha surgido no concorrido período de enorme fomento


de pensadores franceses, as ideias deleuzianas conseguiram se destacar,
tornando-o um dos fenômenos intelectuais mais significativos de sua geração.
Na luta contra a corrente majoritária, reagiu à situação contemporânea
opondo-se, radicalmente, contra “à morte da filosofia”2 e retornou ao
conceito mais clássico do ofício intelectual dando ao seu pensamento um
caráter sistemático. Para tanto, Deleuze “parte da simples definição de
conceitos até novas abordagens da filosofia da Natureza, perpassa pela
filosofia política, pela ética e por quase todos os outros campos possíveis do
filosofar” (BALCONI, 2018, p. 30). Deste modo, o autor vai criando, através
de diversas interlocuções, não apenas um novo pensamento, mas um novo
sistema filosófico: uma máquina de guerra a favor do múltiplo, anti-estrutura
e anti-identidade.
A filosofia cria conceitos, que por sua vez devem estar em
relações formando uma totalidade. Deleuze explica que sua
filosofia é, em última análise, um sistema de relações entre
conceitos criados de duas maneiras diferentes: por um
lado, conceitos oriundos, provenientes, extraídos da própria
filosofia, isto é, de filósofos privilegiados em suas leituras
– principalmente Espinosa, Nietzsche e Bergson – e, por
outro lado, conceitos suscitados, sugeridos, pela relação
entre conceitos filosóficos e elementos não conceituais
provenientes de domínios exteriores à filosofia. (Ibid., p. 70).
Importa esclarecer que a experiência intelectual de Gilles Deleuze
leva uma tarefa filosófica principal, a de pensar a Diferença como diferença
pura e, consequentemente, retirar da teoria crítica contemporânea a ideia da
Identidade3. Ressalta-se que diversos outros pensadores estavam com este
mesmo empreendimento (Derrida, Foucault, Adorno, entre outros), ocorre
que o autor se diferencia4 destes, pois utiliza-se de diversos recursos filosóficos
2. “Critica a versão Hegeliana, que identifica o fim da filosofia ao término da metafísica, e sua
versão positivista ‘vulgar’ que quer que as ciências da natureza, e as ciências humanas em último
lugar, por seu avanço inexorável, privem a filosofia de todo objeto específico, toda significação,
para o tempo presente e o que está por vir”. (GUALANDI, 2003, p. 14).
3. Em uma entrevista Deleuze recapitula e reafirma os principais temas de seu pensamento, todos
vinculados, necessariamente, a filosofia da Diferença - uma renovada filosofia da natureza; o
problema da imagem do pensamento; a construção de uma ciência do problema e de uma nova
metafísica; a batalha contra a neurose e a tipologia das multiplicidades. Ler mais em: DELEUZE,
Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2008.
4. Ademais, vale ressaltar que o filósofo é classificado erroneamente de pós-moderno, pois
é geralmente visto como um relativista. Ocorre que, ao contrário, o pensamento de Deleuze
"produziu uma sonoridade filosófica pouco sintônica com a música enlutada do pós-moderno,
ou com algumas de suas fontes" (PELBART, 2006. p. 54). Isso porque, ressalta Suely Rolnik, “em
inúmeras passagens da obra e das entrevistas tanto de Deleuze como de Guattari eles se colocam
radicalmente contra a onda pós-moderna. Colocá-los no mesmo saco do pós-modernismo ou
dos ‘novos filósofos’ (que aliás não chegaram a envelhecer pois sumiram com a mesma velocidade
com que apareceram) é considerar que basta problematizar o contemporâneo para ser da mesma
Teoria crítica de Gilles Deleuze: Direito e Estado pela perspectiva pós-estruturalista 373

com a finalidade de criar um sistema que parte da ontologia do ser para a crítica
da sociabilidade presente. Deste modo, aos poucos, Deleuze vai talhando um
longo e complexo trabalho crítico de encontros filosóficos e conceituais que
formam um método próprio e singular. David Hume, por exemplo, fornece
uma teoria crítica da constituição do sujeito através da reflexão sobre o modo
com que os princípios gerais da razão são afetados por paixões no interior
da imaginação. Em Bergson, Deleuze encontra a derradeira ontologia do ser
enquanto ser, dando forma de sujeito à multiplicidade pura. Nietzche ofereceu
operações filosóficas que estabelecem a crítica necessária para a compreensão
do processo de formação das individualidades que ultrapassam a dialética do
pensamento moderno, entre diversas outras aventuras conceituais que serão
melhores detalhadas.
Nesta esteira, por questões meramente didáticas e limitadas a este
ensaio5, pode-se resumir a teoria crítica deleuziana em duas fases distintas. A
primeira fase deleuziana, focada na análise e no estudo da história da filosofia,
o pensador irá estabelecer diversas conexões filosóficas para criar um sistema
de pensamento capaz de reconstruir as condições de pensar as categorias
estruturais da sociabilidade contemporânea. Esta fase começa, grosso modo,
com o lançamento de seu primeiro livro em 1953, Empirismo e Subjetividade,
trata-se de sua dissertação de mestrado sobre David Hume, orientada por
Jean Hyppolite. Após oito anos sem nenhuma publicação, Deleuze lança uma
série de monografias sobre diversos pensadores como Nietzsche, Espinoza,
Kant, entre outros, bem como apresenta ensaios com reflexões a respeito
de questões filosóficas desenvolvidas por escritores literários como Proust,
Kafka e Sacher-Masoch. Por fim, a fase termina com o lançamento dos livros,
em especial os projetos de Diferença e Repetição (1968) e Lógica do Sentido (1969),
que irão concretizar o projeto filosófico daquilo que estava em formação em
suas monografias. Esta primeira fase tem, como finalidade, a crítica da razão
e a desconstrução das categorias lógicas do pensar sustentadas pela filosofia
da razão moderna (identidade, unidade, repetição)6. Deleuze irá criticar,
especialmente, a representação da (na) dialética hegeliana.
tribo. Os que fazem esta confusão provavelmente não tem um trabalho de problematização do
contemporâneo, e por uma questão de sobrevivência tentam desqualificar aqueles que o tem,
colocando-os todos num mesmo saco para em seguida atirá-lo numa vala comum”. Também,
“muitos lêem a obra de Deleuze como uma rejeição do pensamento filosófico ocidental e,
portanto, como a proposição de um discurso pós-filosófico ou pós-moderno" (HARDT, 1996,
p. 20). Ver, também, MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2009.
5. Deixo, por questões específicas, a “última fase” Deleuziana que é centrada no Cinema e na
Imagem de Pensamento. Ademais, reitero que tal divisão é de mero caráter explicativo, não há,
de fato, uma ruptura na obra do autor.
6. O problema deleuziano é justamente demonstrar de que maneira a diferença e a repetição podem
legitimamente contestar a legitimidade de todo fundamento. Ver LAJOUJADE. David. Deleuze:
374 FILOSOFIA DO DIREITO

Em seguida, serão reunidas as críticas deleuziana à forma social e à


forma estado, tendo em vista que, para o autor, a crítica da razão abre espaço
para uma análise mais concreta das formas de vida, visto que o sujeito não
é um ser unicamente cognoscente é, também, átomo das relações sociais e
se constitui nos dados das práticas da sociabilidade. Por isso, para o autor, é
necessário construir uma filosofia renovada que implica, portanto, ser capaz de
desmontar a própria racionalidade em vigor do presente para, posteriormente,
conseguir analisar de forma concreta e completa as formas sociais7. Pode-
se dizer que está é a segunda fase do autor que, em essência, é desenvolvida
em conjunto com Felix Guattari, em 1972, com o início das publicações
de Capitalismo e Esquizofrenia, no caso, a primeira obra da séria intitulada O
Anti-Édipo e, posteriormente (1980), o segundo grande volume chamado de
Mil Platôs8. Como exposto, nessa fase, Deleuze (e Guattari) desenvolve(m)
um novo diagnóstico social a respeito do capitalismo e suas formações,
insistindo, para tanto, na ideia que a própria crítica da razão moderna e suas
categorias lógicas de pensamento são, em última instancia, a própria ideologia
do capital avançado, marcada pela territorialização e produção de identidades
(SAFATLE, 2012, n.p). Assim, a crítica da razão se transforma em crítica das
formas de sociabilidade e de suas instituições, em especial a forma estado e a
forma jurídica.
Por fim, cabe evidenciar, também, que além da vida acadêmica, Deleuze
participou ativamente de movimentos militantes que reivindicavam direitos
sociais e políticos aos grupos excluídos como o movimento de maio de 68
na França9, o GIP (Grupo de Informações Sobre as Prisões), o movimento
Italiano em 1977, entre outros10. Crítico do neoliberalismo, demonstrou

Les mouvements aberrants. Paris: Éditions Du Minuit, 2014.


7. “Desta maneira não bastava operar uma crítica da racionalidade que obedece ao princípio de
razão suficiente para estabelecer e legitimar um pensamento construtivo e criativo da diferença,
o exame do capitalismo evidencia outro modo de funcionamento da razão que independe de
um fundamento, que não opera reproduzindo um fundamento legitimador, mas deslocando
limites, uma racionalidade que mesmo infundada é capaz de criar e controlar diversos modos de
vida. (...) Um exame crítico do funcionamento do capitalismo contemporâneo se mostra como
passagem obrigatória para definir uma lógica, outro modo de pensar que não opere a partir de
um fundamento e da reprodução deste, mas também não se restrinja ao deslocamento provisório
de limites e a criação de zonas de indeterminação que continuam obedecendo à lógica e os limites
impostos pelo próprio liberalismo”. (AGOSTINHO, 2018, online).
8. No Brasil, o segundo volume de Capitalismo e Esquizofrenia, Mil Platôs, foi dividido em cinco
livros.
9. “Deleuze e Guattari disseram, a propósito do maio de 68, ocasião em que se utilizou amplamente
dessa dinâmica do acontecimento político: É preciso que a sociedade seja capaz de estabelecer
agenciamentos coletivos que correspondam à nova subjetividade, de tal maneira que ela queira a
transformação." (LAZZARATO, 2006, p. 13)
10. Para saber mais sobre os embates políticos de Deleuze ver: DOSSE, Fraçois. Os Engajamentos
Políticos de Gilles Deleuze. In. Curitiba: UFPR. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 53, p.
Teoria crítica de Gilles Deleuze: Direito e Estado pela perspectiva pós-estruturalista 375

sua aversão a toda forma de poder e opressão. Com um saber e um estilo


de filosofia original e através de uma rara reflexão reinventou conceitos de
grande alcance para a transformação da prática política, da sociabilidade e da
cidadania.
A importância da filosofia deleuziana reside, portanto, na sua capacidade
de realizar diagnósticos precisos sobre a multiplicidade dos processos em
jogo no interior da vida social, salientando a natureza linear das múltiplas
racionalidades em vigor no campo político-social, realizando a crítica de uma
visão materialista11 e transversal da política e do direito.

1 TEORIA DA IMANÊNCIA: AS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO, A


POLÍTICA E A FORMA-ESTADO

Em termos gerais, pode-se ressaltar que, para Deleuze, o Estado


(Urstaat) contemporâneo é perverso e, pelo seu aparelho repressivo,
reduz e limita a cidadania à um direito formal, impossibilitando o acesso
à liberdade concreta e a igualdade material dos sujeitos12. A partir de uma
leitura material das determinações econômicas do Estado e direito13, em
especial na contemporaneidade - ainda que com suas diferenças em termos
de regulação14 -, as ações políticas como forma de efetivação dos direitos
fundamentais são, em sua maioria, de identificação, de normatização
(disciplinares) e de controle. Não há, de fato, um olhar para a efetividade
das garantias fundamentais, mas apenas para a inclusão do sujeito em
alguma categoria jurídico-estatal. Em termos de micropolíticas tais práticas
estão sempre acompanhadas de narrativas que evidenciam os princípios do
“Estado Democrático de Direito”, mas, no entanto, o referido discurso é
vazio, são “retóricas da diversidade que atravessam os discursos políticos, (...)
e que não fazem outra coisa a não ser garantir a boa consciência das práticas

151-170, jul./dez. 2010.


11. Ver mais sobre o “novo materialismo”, em COOLE, DIANA; FROST, SAMANTHA. New
Materialisms: Ontology, Agency, and Politics. Durham: Duke University Press, 2010.
12. O essencial do Estado, portanto, é a criação de uma segunda inscrição pela qual o novo corpo
pleno, imóvel, monumental, imutável, se apropria de todas as forças e agentes de produção; mas
esta inscrição de Estado deixa subsistir as velhas inscrições territoriais, como “tijolos” sobre a
nova superfície”. (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p. 263).
13. Para ver o debate da materialidade do Estado em Deleuze ver SIBERTIN-BLANC, Guillaume.
Politique et État chez Deleuze et Guattari. Paris: Presses Universitaires de France, 2012.
14. Sobre o debate das modulações e (re)configurações da regulação do Estado contemporâneo ver
MASCARO, Alysson. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013 e CALDAS, Camilo
Onoda. A teoria da Derivação do Estado e do Direito. São Paulo: Outras Expressões, 2015.
Ver, também, MENGUE, Philippe. Deleuze et la question de la democratie. Paris: L’Harmattan,
2013.
376 FILOSOFIA DO DIREITO

institucionais e criar a ilusão de que estão se produzindo transformações


substanciais” (LARROSA e SKLIAR, 2001, p. 12).
Em outras palavras, as ações políticas (governabilidade) são
unicamente voltadas para a “inclusão” do indivíduo em algum modo de
subjetivação jurídica-estatal, seja de modo positivo ao gerar efeitos jurídicos
que positivam, ainda que lateralmente, algum direito (dever de prestação do
estado) ou, caso não seja possível tal associação, de forma negativa ao manter
o indivíduo inscrito no aparelho repressor do Estado pela exclusão ou pelo
dever constante da dívida social infinita15. A própria Constituição Federal de
1988 abre caminho para tal empreitada16. Assim, a identificação do “outro”
já evidencia a sua inclusão ou exclusão, que fazem parte da mesma norma
jurídica. Desta feita, tudo perpassa à prática da política jurídico-estatal que
constitui, inexoravelmente, o sujeito em objeto17: identificado e controlado.
O “outro” como a totalidade das anormalidades e dependente das traduções
oficiais que insistem em aprisionar/integrar a diferença a discursos e práticas
institucionais, identificando-a, petrificando-a.
Nesta linha, o filósofo salienta que a política não é um campo específico
da atividade humana, muito menos uma criação genérica do desenvolvimento
racional, mas sim um imperativo prático e que, por tanto, para sua compreensão
mister se faz um engajamento social em sua totalidade pois, para o autor,
é inconcebível a separação de social e político. Por conseguinte, “a análise
deleuziana da política leva a uma reelaboração dos problemas nodais do
pensamento contemporâneo, que culminam na análise da forma-Estado”
(PACHUKANIS, 2017, p. 117).
Esta nova visão desenvolve uma teoria da forma-Estado, obviamente,
construída como uma operação de “desidealização” do estado social-
capitalista keynesiano (SIBERTIN-BLANC, 2012, p. 9-10). Tal torção impõe
para a renúncia de elucidar as funções do Estado como resultante de um corpo
social, mas sim redireciona o exame, as condições das nações modernas e o

15. “É que a lei, digamos uma vez mais, antes de ser uma fingida garantia contra o despotismo, é a
invenção do próprio déspota: ela é a forma jurídica tomada pela dívida infinita. Até junto aos
últimos imperadores romanos, ver-se-á o jurista no cortejo do déspota, e ver-se-á a forma jurídica
acompanhar a formação imperial, o legislador com o monstro, Gaio e Cômodo, Papiniano
e Caracala, Ulpiano e Heliogábalo, ‘o delírio dos doze Césares e a idade de ouro do direito
romano’”. (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p. 281).
16. Ver MASCARO, Alysson. Crítica da legalidade e do direito brasileiro. São Paulo: Quartier Latin,
2010. Também, sob outra perspectiva, VIANA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e
das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
17. Ora, “toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica.
O elemento mais simples e indivisível, que não pode mais ser descomposto”. (PACHUKANIS,
2017. p 117).
Teoria crítica de Gilles Deleuze: Direito e Estado pela perspectiva pós-estruturalista 377

papel do Estado no modo de produção capital. Deste modo, ressalta Sibertin-


Blanc (ibid, p. 38) que:
Construída retrospectivamente de acordo com a “civilização”
capitalista, a história universal do Anti-Édipo teve, então,
o desafio de perverter a teologia histórica, sublinhando as
contingencias, as destruições e, finalmente, o impossível
(o “inominado”) que tinha que ser produzido para que
uma formação social pudesse vir a ser esta decodificação
generalizada, o que significou a morte de todas as
formações sociais anteriores, seu "motor" imanente. Isso
explica a importância atribuída as análises marxistas de
acumulação ampliada de capital, singularmente o das crises
de superprodução do Livro III do Capital e o conceito de
"limite imanente" que Marx introduziu. Considerando que as
formações não capitalistas encontraram fluxos decodificados
como um extrínseco “limite real”, as formações capitalistas
fazem deles seu limite estrutural interno que elas
continuamente destroem para redescobrir em uma nova
escala.
Para Deleuze, portanto, o desenvolvimento das condições materiais do
Estado pressupõe a existência de uma forma que não se identifica, a priori,
com o automovimento de sua ideia, de sua temporalidade, muito menos de
sua estruturação. Primeiro, a forma-Estado exige uma compreensão mais
complexa, de modo a dar conta de sua materialidade (os seus “dispositivos”)
e, também de seu próprio idealismo (sua ideia ou conceito de automovimento,
ou seja, sua representação). É nesta linha de pensamento que, para Deleuze
(e Guattari), o ápice desse processo se dará no Capitalismo. Os dois tomos
de Capitalismo e Esquizofrenia são dedicados a esse empreendimento, o ensaio
vai elaborando o plano de imanência sobre o qual pode, em seguida, avaliar-
se o deslizamento de um regime social de "codificação" para um regime
de "axiomatização" do capital; ou, segundo uma avaliação mais recente, o
deslizamento das "sociedades de disciplina" definidas por Foucault para as
"sociedades de controle" definidas pelo próprio Deleuze (ZOURABICHVILI,
2004. p. 41).
Segundo, a concretude do Estado como instrumento burocrático
e aparelho de força só se deu através da correlação entre a materialidade
produtiva e as necessidades regulatórias de organizar os fluxos inerentes
a sociedade capitalista18, visto que “a produção e troca de mercadorias,
características deste modo de produção, tornariam indispensável uma
instância – o Estado – que atendesse aos interesses da classe burguesa na

18. Deleuze e Guattari, aqui, dialogam com a Teoria da Regulação. Para ver este debate ler ARNOLDI,
Jakob. Derivatives: Virtual Values and Real Risks Theory. Culture & Society, December 2004, p.
23-42.
378 FILOSOFIA DO DIREITO

forma de um interesse geral, sem se confundir com nenhum dos capitalistas


em particular”(CALDAS, 2015, p. 134). Este é um dos pontos centrais do
pensamento deleuziano, já que “o Estado não está a serviço da dominação de
classe” (GARO, 2011. p. 204), pois, como dito acima, ele “exerce uma função
de planejamento através dos axiomas regulatórios que tendem por natureza a
se multiplicar” (Ibid, p. 224).
Neste sentido, Guillaume Sibertin-Blanc (2010, p. 51), em uma
monografia sobre o tema explica que, para Deleuze (e Guattari), o ponto
central da teoria das formações sociais repousa numa “concepção marxista
da totalidade social como articulação de uma pluralidade de instâncias
(determinadas) em última instância pelas relações de produção”. Assim,
dentro da teoria política de Deleuze e Guattari, um ponto fundamental é
a compreensão da natureza central da relação, imanente e necessária, entre
capitalismo e Estado. Este diagnóstico fornece a ossatura dos volumes de
Capitalismo e Esquizofrenia, pois “tem-se a impressão de que os fluxos de
capitais voltar-se-iam de bom grado à lua, se o Estado capitalista não estivesse
lá para reconduzi-los à terra” (DELEUZE e GUATTARI. Op. Cit. p. 307).
O axioma capitalista opera, em suma, “ esvaziando os fluxos de
seu significado específico em seu contexto codificado (sexo como o ato do
casamento, a refeição como o centro da vida familiar, e assim por diante)
e impondo uma lei de equivalência geral na forma de valor monetário”
(PARR, 2010. p. 41). Portanto, a axiomática capitalista é a única capaz de
demonstrar a falsa pretensão do Estado. Pretensão esta que é, justamente,
a de funcionar como fundamento ou polo legislador autônomo capaz de
organizar a totalidade da vida social, mas sim que trabalha como aparelho
reprodutivo (ideológico e repressivo) da universal equivalência da forma valor
(cambio, contrato, etc.). É, por esta razão, que “a força do pensamento de
Deleuziano está, acima de tudo, em sua capacidade de construir um trabalho
filosófico erudito que preserve a possibilidade de uma crítica concreta do
mundo, enquanto mantém o horizonte luminoso de uma subversão” (GARO,
Isabelle. Op Cit. p. 204).
Deleuze e Guattari vão, deste modo, deixando evidente a necessidade de
análise da complexidade da forma econômica para compreender as regulações
da vida social. O capitalismo é dotado de relações causais complexas, de
desterritorialização dos fluxos desejantes, de criação de novas subjetividades
e, por conseguinte, a “historicidade” do capital não se restringe ao seu aspecto
puramente econômico19, mas, ao contrário, começa a se desenvolver, como já
apontava Marx, a partir de formas de organização estatal e despótica.
19. Ressalta-se que “os axiomas do capitalismo não são evidentemente proposições teóricas, nem
fórmulas ideológicas, mas enunciados operatórios que constituem a forma semiológica do
Teoria crítica de Gilles Deleuze: Direito e Estado pela perspectiva pós-estruturalista 379

Assim, a forma-Estado no pensamento deleuziano pode ser resumido


no seguinte sentido:
A forma-Estado é uma imagem do pensamento, ela se
organiza a partir dos dois polos da soberania, das suas funções
e operações constitutivas: fundação e legitimação. No entanto,
o ato que funda a soberania, o Estado, é tautológico, mágico
ou mítico, como no interior do pensamento platônico. Ou
seja, o Estado funda a si mesmo, há uma relação não causal
entre o Estado e a vida social por ele instaurada, em outras
palavras, o Estado opera e funciona sem fundamento, sem
causa ou razão ou ele é o próprio fundamento da vida social.
Há, portanto, uma relação retroativa entre o fundamento e o
fundado, o fundamento só pode ser legitimado pelo que ele
mesmo instaura. Esse mecanismo justifica a segunda função
atribuída ao Estado, a função legisladora que deve legitimar
o processo de captura ou a constituição e manutenção do
próprio Estado. (AGOSTINH, Op. Cit. p. 8).
Desta feita, o Estado (Urstaat), por sua derivação e dependência
ao axioma das relações de produção (materiais e sociais) possui uma
forma isomorfa que, por consequência, faz com que todos os “Estados”,
independentemente das relações de regulação, satisfação a forma-mercadoria.
A forma (do Estado) pode apresentar e aparecer, ao longo da história, de
modo heterogêneo e variável (imperialista, autoritário, social-democrata,
entre outros), pois a regulação é apenas o conteúdo que abstrai o fundamento
central do desenvolvimento das formas sociais, reifica as relações de produção
em uma “autofundamentação” (o Estado funda a si mesmo) e legitima sua
função legisladora (pois, como acima exposto, “a função legisladora que deve
legitimar o processo de captura ou a constituição e manutenção do próprio
Estado”)20.

Capital e que entram como partes componentes nos agenciamentos de produção, de circulação
e de consumo. Os axiomas são enunciados primeiros, que não derivam de um outro ou não
dependem de um outro. Nesse sentido, um fluxo pode constituir o objeto de um ou vários
axiomas (sendo que o conjunto dos axiomas constitui a conjugação dos fluxos); mas pode também
não haver axiomas próprios, e seu tratamento ser apenas a consequência dos outros axiomas; ele
pode, enfim, permanecer fora do campo, evoluir sem limites, ser deixado no estado de variação
“selvagem” no sistema. Há no capitalismo uma tendência de adicionar perpetuamente axiomas”.
(DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 143).
20. “A capacidade da axiomática capitalista de estabelecer relações e conexões entre fluxos
decodificados que são incomensuráveis e não relacionados, e de subordinar esses fluxos a uma
isomorfia geral (ou seja, todos os sujeitos devem produzir para o mercado) leva Deleuze e
Guattari a postular um ressurgimento - para além da cidadania soberania e legitimação - de uma
escravidão maquínica que, não mais se referindo a um imperador ou a uma figura transcendente,
torna-se ainda mais cruel por sua impessoalidade. Na medida em que seu modo de operação
pode ignorar inteiramente a crença subjetiva ou a codificação do comportamento humano, tal
axiomática nos move de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle, onde o poder
age diretamente sobre uma (eternal) ‘dividida’ decodificada.” (PARR, Adrian. Op. Cit.. p. 22-23).
380 FILOSOFIA DO DIREITO

2 TEORIA DELEUZIANA E SEU EFEITO PARA A FILOSOFIA DO


DIREITO

Inicialmente é importante ressaltar que não há uma filosofia do direito


de Deleuze, mas uma filosofia do direito que poderá ser concebida através
do pensamento deleuziano. O autor pouco se debruçou sobre o tema, seu
foco de crítica e análise sempre foi a totalidade das relações sociais. Neste
sentido, compreende-se que “Deleuze não representa uma identidade para a
filosofia do direito, mas um possível efeito, o ‘Efeito Deleuze’ para a filosofia
do direito” (BALCONI, Op Cit., p. 106).
A ideia é que a filosofia, neste caso a jurídica, não deve se manter presa
a uma identidade e não pode ser concebida em termos de representação,
porque um sistema filosófico deve remeter à classe dos “efeitos”: “estes
não são uma simples dependência das causas, mas o preenchimento de
um domínio, a efetuação de um sistema de signos”. E, completa o autor,
“vê-se bem isso em física, em que os nomes próprios designam tais efeitos
destes em campos de potenciais (efeito Joule, efeito Seebeck, efeito Kelvin)”
(DELEUZE e GUATTARI. Op. Cit., p. 40). Neste sentido, assevera Balconi
que “a filosofia deleuzeana deve funcionar, para o direito, como um operador
de desentranhamento da filosofia contemporânea diante de um mundo
filosófico que decerto, por muito tempo, se acomodou a uma divisão geo-
histórica em dois blocos (fenomenológico e analítico) (BALCONI, Op Cit., p.
106). Este ensaio visa, então, uma iniciação à reflexão sobre a natureza eclética
dos conceitos filosóficos de Deleuze e seus possíveis efeitos ao pensamento
jurídico.
Desta feita, retomando a questão da imanência e da produção das
formas sociais, ressalta-se que o direito também deve ser analisado como uma
forma social derivada das relações de produção pois, como expõe os autores,
tudo é produção:
“De modo que tudo é produção: produção de produções, de
ações e de paixões; produções de registros, de distribuições
e de marcações; produções de consumos, de volúpias, de
angústias e de dores. Tudo é de tal modo produção que os
registros são imediatamente consumidos, consumados, e os
consumos são diretamente reproduzidos” (DELEUZE e
GUATTARI, Op. Cit., p. 40)
As consequências dessa análise materialista da totalidade das relações de
produção que fazem, pelas suas conexões imanentes, emergir determinadas
Teoria crítica de Gilles Deleuze: Direito e Estado pela perspectiva pós-estruturalista 381

formas sociais - dentre elas, de modo mais nítido, a forma-estado e a forma-


direito – é que Deleuze (e Guattari) recuperam uma potência crítica que
influenciariam um novo paradigma a teoria do direito. Está é, inclusive, uma
leitura altamente específica (mas não única) do pensamento francês do século
XX em que a “lei” deixa de ser pensada apenas como atos normativos positivos
dentro de um certo conjunto de (auto-)validade, e passa a ser estudada como
uma condição para a possibilidade da experiência em geral de submissão à
um sistema de ordem. Esta expansão do conceito tradicional do direito pode
ser evidenciada em obras como a de Jacques Derrida, em Força da Lei, e em
várias passagens de obras de Jacques Lacan, nas quais foi assumido que “lei”
pode referir-se tanto para a condição geral de ser submetido a algum sistema
de ordem21.
Ou seja, na perspectiva deleuziana o direito deve ser analisado como
parte integrante desse sistema de ordem, dessa totalidade. Uma forma que
expressa um dos aparelhos de poder, ou um dos aparatos do aparelho de
Estado, para apropriação dos corpos para fazer dos indivíduos e dos seus
órgãos peças e engrenagens da máquina social. É este conceito de direito/
lei como uma condição de habilitação para a subjetividade e constituição do
“sujeito de direito” que pode ser encontrada na crítica do direito de Deleuze-
Guattari. O indivíduo (assujeitado) é aquele “determinado pelas instituições
legais e legalizadas, nas quais ele ‘se imagina’, a tal ponto que, até mesmo
em suas perversões, o Eu se conforma com o uso exclusivo das disjunções
imposta pela lei” (DELEUZE e GUATTARI, Op. Cit., p. 89). O direito, é,
assim, um uma forma registradora que inscreve, dentre de seu sistema de
ordem, o sujeito e “atribui a si próprio as forças produtivas e distribui os
agentes de produção” (Ibid., p. 41).
A forma jurídica não se explica por sua tendência parcial (interesse de
classe, burocracia estatal, partidos políticos) nem pela sua (aparente) utilidade
(coesão social, segurança pública ou privada, ordem estabelecida, entre
outros), mas sim pela sua relação direta com a forma social do capital que,
em última instancia, deriva da forma mercadoria. O direito, deste modo, para
manutenção da sociabilidade do capital, é importante pois permite integrar os

21. Conforme Derrida: “Leis não escritas – sejam as primeiras representadas pela lei da castração,
isto é, a lei do interdito do incesto e do parricídio, que nos obriga à dívida com a linguagem
que nos fez humanos, sejam as leis divinas das quais fala Antígona –, e da sua tensão com
as leis particulares do direito, sempre insuficientes e, por isso mesmo, transformáveis (porque
desconstruíveis, reinterpretáveis). Lacan no Seminário da Ética – é a tragédia da justiça como
experiência impossível, uma vez que na experiência da aporia encarnada por Antígona e
Creonte, através do embate entre as Leis não escritas defendidas por Antígona e as leis da cidade
sustentadas por Creonte, inaugurando o direito da polis grega, pratica-se o indecidível entre
duas posições. Neste indecidível mora apenas o apelo infinito por justiça”. (DUNLEY, 2011, pp.
7-15).
382 FILOSOFIA DO DIREITO

fatores internos da forma mercadoria em um sistema de regras que impõe aos


assujeitados, mesmo em suas estruturas individuais e involuntárias, uma série
de modelos e categorias que torna possível uma antecipação, uma previsão
e uma projeção dos comportamentos sociais, assim como uma limitação a
esses comportamentos. Assim, para a teoria crítica do direito, “as formas de
dominação do capitalismo correspondem as formas de dominação jurídica”
(MASCARO, 2013, p. 43).
A crítica ao Direito de Deleuze se faz patente, portanto, com a crise do
capitalismo em meados da década de 70, em que o “positivismo ético” começa
a tomar forma. O fenômeno jurídico é invadido pelas teorias neoliberais, que
buscam “através de uma moralidade intrínseca, ou, pelo menos, extrínseca,
mas provável e objetivamente calculáveis” engendrar uma ética-moral que
legitime o ordenamento normativo22. O Direito, por conseguinte, ganha forte
influência desta perspectiva de identificação, esta prática surge justamente
naquelas instituições criadas para disciplinar os homens, tratando de reeducá-
los, adestrá-los, adequá-los a certas normas que apreendem o tempo, a vida
e a força de seus corpos no jogo econômico do qual nem se quer são atores,
mas simplesmente servidores.
Ainda, o direito, como forma de conteúdo, desenvolve no indivíduo
social uma determinada inteligência, um saber-jurídico, que limita, através
da unidade e da identificação, a crítica ao próprio sistema de sociabilidade
do capital. Como seria possível, por exemplo, pensar o mundo e as formas
de vida sem as categorias do direito (lei, contrato, punição)? Como estariam
os sujeitos sem a proteção do Estado? É assim que pode-se compreender a
conclusão deleuziana de que “o homem não tem instintos, ele faz instituições”
(DELEUZE, 1991. p. 137).
Ora, para os autores, já não existe o “Ser déspota”23 que punirá
violentamente o sujeito pela desordem da máquina social, ao invés disso, o

22. Guillaume Sibertin-Blanc (2012, p. 10-11), expõe que as obras de Deleuze, e de outros pensadores
da época devem ser lidas como sinais de um período político-econômico em transição, que
analisam a complexidade da forma-capital. O pressuposto do capital como “axiomático
global” deleuzo-guattariano de 1972, registra a sequência da crise “keynesiano-fordista”, dando
ao programa uma nova crítica sistêmica do poder capitalista em todo o mundo, ao contrário
do pensamento político-econômico que imperava até então sobre o período fordista e suas
contradições que, de maneira geral, idealizava o crescimento autocentrado de países ocidentais,
inocentando as crises sistêmicas e os conflitos de classes.
23. “O significante, terrível arcaísmo do déspota em que ainda se procura o túmulo vazio, o pai
morto e o mistério do nome. E talvez seja isto que anima hoje a cólera de certos linguistas contra
Lacan, assim como o entusiasmo dos adeptos: a força e a serenidade com que Lacan reconduz
o significante à sua origem, à sua verdadeira origem, a idade despótica, e monta uma máquina
infernal que solda o desejo à lei, porque refletindo bem, pensa ele, é certamente sob esta forma
que o significante convém ao inconsciente e aí produz efeitos de significado” (DELEUZE e
GUATTARI, Op Cit., p. 276).
Teoria crítica de Gilles Deleuze: Direito e Estado pela perspectiva pós-estruturalista 383

próprio sujeito imagina que não há nenhuma outra possibilidade além de


sua submissão aos sistemas. Portanto, “o sistema da subordinação ou da
significação substituiu o sistema da conotação” (DELEUZE e GUATTARI,
Op Cit., p. 277). É a submissão por vontade própria. Além do sistema
normativo de regulamentação, existe o pesadelo do caos do diferente. É este
deslocamento que faz o sujeito depender das estruturas das leis transcendentes.
A lei não designa algo ou alguém (a concepção democrática da
lei fará disso um critério). A relação complexa de designação,
tal como a vimos elaborar-se no sistema de conotação
primitiva, que punha em jogo a voz, o grafismo e o olho,
desaparece aqui na nova relação de subordinação bárbara.
(...) É a nova relação de significação, é a necessidade desta
nova relação fundada na sobrecodificação, que remetem as
designações ao arbitrário (ou, então, que as deixam subsistir
nos tijolos mantidos do antigo sistema). (Idem., p. 283).
A desconstrução do direito como tal (aparelho de inscrição e registro)
é medida que se impõe para a filosofia do direito através do pensamento
deleuziano24. Contra isto, uma verdadeira crítica social deveria começar como
clínica capaz de produzir um curto-circuito nesta forma de socialização
normativa (SAFATLE, 2015. n. p.). Para tanto, a crítica deve ser dirigida à
própria forma jurídica e não ao conteúdo normativo e, deste modo, a ação
política radical deve ser realizada fora da luta política da forma-Estado e,
principalmente, da forma jurídica, pois são dispositivos que estabelecem,
justamente, a lógica própria capitalismo.
Desta feita, segundo a filosofia de Deleuze e Guattari é necessário
pensar num modelo renovado que fuja da lógica (capturada) da forma jurídica.
Será, em Mil Platôs, que os autores irão descrever tal forma de ação política
que estabelece, de maneira impositiva, uma relação entre a indecidibilidade
constitutiva de todo momento histórico, da atualidade política, e as decisões
revolucionárias que justamente por essa razão encontram lugar na vida social.

CONCLUSÃO

Para Deleuze, pode-se concluir que tanto Estado quanto direito


possuem formas específicas na sociedade contemporânea. Ambos são dotados
de subjetividade próprias, são derivados das relações sociais de produção
e correspondem, no tempo presente, à forma mercantil. A necessidade de
equivalência entre os sujeitos no capitalismo, para a manutenção de sua forma
de produção específica, é a chave da mercadoria e, também, da forma pela qual

24. Ver BRAIDOTTI, Rose; COLEBROOK, Claire; HANAFIN, Patrick. Deleuze and law: forensic
futures. Londres: Ed. Palgrave Macmillan, 2009.
384 FILOSOFIA DO DIREITO

os sujeitos a trocam. As formações sociais, daí decorrente, advém das práticas


reiteradas de relações mercantis. Nessa dinâmica, a forma social advém das
práticas e, ao mesmo tempo, põe-nas em constrição. “Direito e Estado se
arraigam nas relações sociais capitalistas atravessadas pelas vicissitudes e
contradições de tal socialibidade da mercadoria. Legalidade e política estão
submetidas à dinâmica de acumulação nacional e internacional” (MASCARO,
2018. p. 148).
Portanto, para Deleuze e Guattari, o fundamento do direito é a
forma jurídica e seu ciclo legitimador, na qual a forma-Estado é a parte
instrumentalizadora, mas não fundadora. Ora, para que
o direito se realize em termos processuais e procedimentais,
ele, cuja forma advém diretamente da sociabilidade
capitalista, é também estatal, não porque o Estado seja seu
principal constituinte, mas porque o mesmo encadeamento
de relações sociais do capitalismo demanda um terceiro em
relação aos agentes individuais, como controlador do sistema
de julgamento, politicidade e forma física de tal tipo de
sociedade. (Idem, p. 140)
Esta é uma leitura científica, plena e radical do direito que foge da
análise puramente normativa (juspositivista) e que está presa à auto-validade e
fundamentação da legalidade sendo, assim, uma teoria que apenas reproduz a
instituições estatais e jurídicas postas, bem como vai além do paradigma político
dos filósofos do poder que limitam-se na busca de uma (outra) legitimação
do poder do aparelho estatal25. Ora, quando se problematiza apenas “qual a
validade” ou “quem governa?”, a resposta é buscada no campo simbólico
e conceitual que o próprio Estado (e do direito) cria: legalidade, soberania,
cidadania, representatividade, proteção social, entre outros. Ocorre que, a real
questão a ser enfrentada, deve ser feita ao Estado de Direito e que a linguagem
que ele cria inibe que se faça é outra. Caso se queira entender melhor a força
e a fraqueza do Estado, é: “quem governa quem governa?” (PARRON, 2015.
p. 26). O método deleuziano encontra a resposta a tal questionamento na
materialidade das relações socais das quais erigem-se as formas e instituições
presentes.
Tal perspectiva permite a compreensão mais profunda não apenas
das estruturas sociais, mas também da própria correlação entre economia,
direito e Estado. Isso possibilita, por exemplo, uma análise mais elabora
das próprias transformações ocorridas dentro do “Estado Democrático de
25. Pensamento que se “situa no patamar intermediário das explicações do direito pelo poder.
Esse campo vasto e altamente contrastante entre seus pensadores vai de Carl Schmitt a Michel
Foucault e, insolitamente, congrega boa parte do pensamento jurídico da esquerda (...). A esse
espectro da filosofia contemporânea, denomino-o “não juspositivismo”. (MASCARO, Op. Cit.,
p. 108).
Teoria crítica de Gilles Deleuze: Direito e Estado pela perspectiva pós-estruturalista 385

Direito”26, já que os sistemas jurídicos, políticos e sociais são influenciados


pelas relações de produção nacional e internacional. Assim, a história mostra
que eventos mercantis (globalização, tecnologia, entre outros) refletem a
construção da sociedade a nível global e ecoam modificações nas estruturas
tradicionais do Estado (BALCONI, BENFATTI e MORETI, 2018, p. 101).
O neoliberalismo, por exemplo, “transformou profundamente o capitalismo
que, por sua vez, transformou profundamente a sociedade contemporânea.
Nesse sentido, o neoliberalismo não é somente uma questão ideológica, mas
todo um arcabouço normativo” (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 07-08)
No capital, vale lembrar, as apropriações e expropriações se exercem,
como ressaltam Deleuze e Guattari (Op. Cit., 112), através de um aparelho de
captura que funciona através de três modos de que correspondem ao aspecto
(atualmente) da produção: renda (financeira), lucro e imposto. O que ocorre
é que a intensidade de cada uma destas modulações varia de acordo com
o modo de produção. Até o fim dos anos 60, no período fordista, o lucro
desempenha um papel dominante e central na apropriação. Com o advento
do pós-fordismo, a relação se modifica e “a organização da expropriação da
população e o comando se efetuam primeiramente a partir da renda e do
imposto” (LAZZARATO, 2017, p. 29). Deste modo, é necessário aparelhar
o Estado para alavancar a acumulação por meio das políticas monetária e
fiscal (austeridade) pela própria lógica de evolução do modo de produção
capitalista.
Cria-se, desta forma, um novo processo de subjetivação do sujeito de
direito. O mote regulatório vai explorar os aspectos da economia da dívida.
A crise, sem dúvida, intensifica este controle. É, neste sentido, que Lazzarato
(2012. p. 162) irá afirmar que “a figura do ‘homem endividado’ atravessa
toda a sociedade e exige novas solidariedades e novas cooperações. Devemos
também levar em conta como ela permeia a ‘natureza e a cultura’, uma vez
que o neoliberalismo expandiu a dívida para o planeta, assim como com nós
mesmos como seres vivos.”.
É evidente que se deve analisar a teoria do direito com estas considerações.
O sujeito de direito e a funções sociais não estão, necessariamente, de acordo
apenas com as normas, as regras, e as lei, mas a subjugação, inversamente,
envolve estes protocolos, as técnicas de controle, os procedimentos jurídicos,
as instruções e exigem uma reação em vez da ação.

26. Para saber mais sobre as transformações ver Crise e Golpe de Mascaro. Ver NOHARA, Irene
Patrícia. Regulação da atividade econômica na dissolução das fronteiras entre público e privado.
Scientia Iuris, Londrina, v 19, n 1, p. 29-46, jun. 2015. E, também, STREECK, Wolfgang. As
crises do capitalismo democrático. Novos Estudos, [s.1], n 92, p. 35-56, mar. 2012.
386 FILOSOFIA DO DIREITO

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CAPÍTULO 30

Conflituosidade social e
Filosofia do Direito no Brasil:
a teoria de Miguel Reale,
Tercio Sampaio Ferraz Jr. e
Alysson Leandro Mascaro
sobre Estado e Direito

Camilo Onoda Caldas


Bacharel em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Bacharel em Direito e Mestre em Direito
Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutor em Filosofia e
Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Doutor em Democracia
e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal).
Diretor do Instituto Luiz Gama, entidade que atua na defesa de direitos humanos.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu e do Programa de
Mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Pesquisador da Faculdade 28 de Agosto
em São Paulo. Autor da obra Teoria Geral do Estado (Editora Ideias & Letras) e Manual
de Metodologia do Direito (Editora Quartier Latin).

INTRODUÇÃO

Nos diferentes estágios do desenvolvimento da economia brasileira


no século XX e XXI, podemos observar transformações no campo
da conflitualidade que se refletem não apenas em diferentes formas de
organização do Estado e do Direito, mas também em teorias jurídico-políticas
distintas, pois as reflexões teóricas não se desvinculam do contexto histórico
no qual estão inseridas.
Se considerarmos o capitalismo no Brasil ao longo do século XX
e início do XXI, podemos destacar três momentos distintos em seu
desenvolvimento (sem negar outros recortes possíveis, evidentemente). O

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