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Autobiografia Santo Antonio Maria Claret

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Santo Antônio Maria Claret

AUTOBIOGRAFIA

Edição para Língua Portuguesa (Brasil)


preparada por
Brás Lorenzetti, cmf
Oswair Chiozini, cmf

Para a Família Claretiana,


herdeira do espírito e missão
de Santo Antônio Maria Claret,
no bicentenário do seu nascimento.
APRESENTAÇÃO

Abrir o coração ao relato da vida de outra pessoa é sempre uma experiência


enriquecedora, com freqüência apaixonante. Os fatos narrados e as diversas ressonâncias
encontradas no coração desta pessoa vão se transformando em mensagens de vida para
quem acolhe, com grande respeito, o testemunho que lhe é oferecido gratuitamente.

Antônio Maria Claret escreveu este memorial da sua vida porque lhe pediu alguém que
se sentia inspirado por ela e desejava ardentemente que continuasse sendo inspiração para
muitos. Custou-lhe aceitar e somente decidiu acatar este pedido porque quem lhe solicitava
era o Padre José Xifré, Superior Geral da Congregação de Missionários que ele mesmo
tinha fundado. Antônio Maria Claret nos deixou em sua Autobiografia um testemunho vivo
daqueles fatos e experiências que marcaram sua vida e orientaram seu incansável trabalho
apostólico.

A vida de Claret, como a de todo ser humano, teve seus momentos de luzes e de trevas.
A leitura da Autobiografia os irá descobrindo. É importante, no entanto, fazer-se
“companheiro de caminho” para poder recolher toda a força do testemunho que nos é
oferecido.

É de capital importância descobrir as coordenadas que orientaram sua vida e aparecem,


de modos diversos, nas distintas etapas da mesma. A leitura da Autobiografia nos
introduzirá na experiência espiritual de um homem que se deixou questionar e guiar pela
palavra de Deus, que sentiu com intensidade muito grande o chamado a dedicar sua vida ao
anúncio do Evangelho e que soube implicar a muitos outros nessa obra. A Autobiografia
nos permite penetrar no interior da pessoa e ver como o Espírito do Senhor vai guiando
Claret para novos horizontes de santidade e compromisso apostólico.

A Autobiografia de Santo Antônio Maria Claret tem já várias edições em diversas


línguas. São numerosas as pessoas de países e culturas bem diversas que puderam
aproximar-se destas páginas nascidas do coração de alguém que viveu apaixonado por
Cristo e pelo anúncio do Evangelho. O padre Jesus Bermejo, profundo conhecedor de santo
Antônio Maria Claret e a equipe do Centro de Espiritualidade Claretiana, estabelecido em
Vic (Espanha), fizeram uma revisão do texto anterior e suas notas que poderão facilitar uma
compreensão mais profunda das páginas da Autobiografia. Espero que o contato com o
testemunho de Claret toque sua vida e faça crescer o amor por Jesus e o desejo ardente de
trabalhar pelo Reino.

Coloco esta edição nas mãos, melhor ainda, no Coração de Maria, por quem Santo
Antônio Maria Claret se sentiu tão amado e acompanhado em seu crescimento na fé e em
seu compromisso missionário.
Roma, 2 de abril, 2007
Josep Maria Abella, CMF.
Superior Geral dos Missionários Claretianos
APRESENTAÇÃO
DA EDIÇÃO BRASILEIRA DA AUTOBIOGRAFIA

“Anda em minha presença e sê perfeito”, disse Deus a Abraão (Gn 17,1).

A leitura da Autobiografia de Santo Antônio Maria Claret deixa-nos a impressão exata


de um homem que andou na presença do Senhor. E andou muito, por sinal, percorreu os
caminhos da Catalunha, Ilhas Canárias, Cuba, Espanha toda, com um único objetivo: levar
a Palavra de Deus a todos que encontrava, em qualquer lugar e situação. A Autobiografia
proporciona-nos a possibilidade de conhecer Claret na sua interioridade, ver o espírito que
impulsionava sua vida e sua atividade incansável.

Quem foi Claret?


– Um homem simples, descomplicado, às vezes até ingênuo, que sentiu e vivenciou
com força as grandes realidades da fé: Deus nosso Pai, o amor, a urgência da
evangelização, a salvação necessária e, por conseguinte, a possível perdição.

– Foi um homem prático, que entendia de fábricas e técnicas de tecelagem, mas que
aplicou o seu talento empresarial à construção do Reino de Deus. Se pensava em algo que
poderia ser útil e eficaz, mas não existia, ele o criava. Foi um desbravador. Deu vida a uma
editora de livros, cooperativa, caixa econômica, associação de artistas e intelectuais,
congregações religiosas e de leigos consagrados, que hoje formam a Família Claretiana.

– Foi, finalmente, um homem de grande sensibilidade, que considerava a Virgem Maria


sua “mestra”, de quem aprendia o amor e a entrega a Deus e aos irmãos e irmãs; via no
Coração de Maria uma fornalha acesa, e entendia a evangelização como um inflamar o
mundo todo no fogo do divino amor.

Nós claretianos do Brasil, recebemos esta herança como um grande desafio. Desde a
sua chegada no país, há mais de cem anos, os missionários percorreram amplas regiões em
campanhas de evangelização popular, criaram uma editora, divulgam a Palavra de Deus
através de uma conhecida edição da Bíblia, espalham a devoção ao Coração de Maria por
meio de uma revista de ampla divulgação, tem estabelecido escolas e faculdades, auxiliam
os bispos na pastoral diocesana e na formação do clero. Aqui no Brasil nasceu uma nova
Congregação claretiana feminina, hoje espalhada pelo mundo. Tudo aparece como
prosseguimento daquele afã de Claret de trabalhar pelo evangelho “usando todos os meios
possíveis”.

Mas o desafio não é apenas quantitativo. A celebração do segundo centenário de Claret


é uma ótima ocasião para aprofundar no seu espírito, e para isto a presente edição da
Autobiografia, acompanhada das notas dos melhores conhecedores de Claret, deverá ser a
referência principal.

Como todos os Fundadores, Claret teve e tem o carisma da comunicação e da partilha,


que não se esgota na continuação e crescimento das obras empreendidas pelos seus filhos e
filhas. A Igreja brasileira sente hoje a necessidade de contar com o empenho e participação
dos apóstolos leigos na obra missionária. Muitos já se identificam com o carisma de Claret
e formaram grupos de Leigos Claretianos, mas acreditamos que muitos mais poderão se
sentir estimulados a participar na obra missionária da Igreja pelo testemunho e pela
intensidade espiritual de Claret.

Que a leitura da Autobiografia de Santo Antônio Maria Claret faça com que sintamos,
com força, como nossa, a expressão de São Paulo que Claret assumiu como lema de sua
vida: “O amor de Cristo nos impele”.

São Paulo, 22 de agosto de 2007


Jaime Sánchez Bosch, CMF.
Superior Provincial
AO LEITOR

A leitura da Autobiografia de santo Antônio Maria Claret é um mergulho no tempo; é


como aceitar uma carona no trem da história e fazer uma longa viagem ao lado de alguém
que vai contando sua vida passo a passo: da infância à idade adulta, das pequenas e grandes
alegrias às decepções e aos sofrimentos extremos, da simplicidade a uma projeção de
alcance universal no mundo católico. Em companhia de um personagem tão ilustre e de
personalidade tão rica, vamos conhecendo mais profundamente seu humanismo, seu
espírito empreendedor, seu anseio de homem evangelizador, sua alma inquieta e criativa na
busca de soluções para os problemas espirituais e sociais de sua época. Sua ânsia de ver um
mundo melhor fez com que, em alguns aspectos, se antecipasse um século em relação aos
seus contemporâneos.

A obra que apresentamos ao público de língua portuguesa, especialmente do Brasil,


abrange o texto autobiográfico original, introduções e estudos, notas explicativas
atualizadas e anexos. Foi a melhor forma de proporcionar um conhecimento abrangente do
homem multifacetado que foi Claret.

Queira o santo abençoar este esforço da Família Claretiana no Brasil. Conhecendo


melhor sua vida, temos a oportunidade de beber da fonte da espiritualidade claretiana e
assim buscar a fidelidade à missão a nós confiada.

Com relação à tradução, houve uma preocupação em manter ao máximo a simplicidade


e a coloquialidade da linguagem. Algumas expressões foram atualizadas, outras, no
entanto, foram mantidas no seu original, como as citações latinas. A abundância de notas
pode ser um valioso auxílio para quem deseja se aprofundar ainda mais na compreensão do
texto.

A alegria de dar à luz a Autobiografia de Claret é a mesma de alguém que consegue


devolver a vida e a fala a alguém que a havia perdido.

Finalmente, publicar a Autobiografia é a melhor forma de lhe manifestar nosso carinho


e prestar-lhe nossa homenagem na celebração dos duzentos anos de seu nascimento.

Brás Lorenzetti, CMF.


INTRODUÇÃO À AUTOBIOGRAFIA

O gênero literário autobiográfico foi freqüente ao longo da história, desde a


antigüidade. Muitas pessoas, sobretudo filósofos, pensadores, teólogos, homens de ciência,
pessoas pertencentes à nobreza, santos e santas que viveram profundas experiências
místicas, quiseram deixar à posteridade um relato mais ou menos amplo e mais ou menos
profundo de suas vidas. Pensemos, por exemplo, nas Confissões de Santo Agostinho, na
Vida de Santa Teresa de Jesus, em Santo Inácio de Loyola, em Santa Maria Micaela do
Santíssimo Sacramento e, é claro, em Santo Antônio Maria Claret. Todos eles tinham muito
a dizer sobre suas próprias experiências, deixando transparecer - com freqüência freados
pela discrição e pela humildade - só uma parte ínfima das muitas maravilhas que o Senhor
se dignou operar em seus humildes servos e servas.

Como se sabe, a autobiografia é o relato, controlado pelo próprio escritor ou escritora, e


determinado pelos possíveis destinatários, do conjunto de experiências vividas ao longo da
própria vida, desde a infância até um ponto de maturidade que normalmente coincide com a
última etapa da existência e que, por isso mesmo, não abrange nem pode abranger toda a
existência do personagem.

São Gregório Magno parece fazer alusão de algum modo ao que seria este gênero
literário quando escrevia: “Aos olhos dos demais, na parte secreta da mente, estamos como
que por detrás da parede do nosso corpo; mas quando desejamos nos manifestar, saímos
como que pela porta da língua para mostrar o que somos em nosso interior”. (1)

Não vamos entrar aqui na polêmica surgida nos últimos tempos sobre o que, sobretudo,
um grande especialista francês chamou de “o pacto autobiográfico”, que em sua opinião,
viria a ser uma decisão própria, calculada e programada, que guia a pena do escritor ao
longo do relato da própria vida, para contar tudo e só o que possa redundar em benefício
próprio e em própria glória, aproximando-se assim daquilo que acontece com o gênero da
novela e distanciando-se do que tenta fazer um biógrafo que, com a maior liberdade e
objetividade e bem-documentado, abre uma brecha profunda na alma e na vida íntima do
biografado. O perigo do que escreve uma autobiografia está na decisão de pecar por
parcialidade e, por isso mesmo por falta de sinceridade. Por isso no leitor se produz, quase
que de forma automática, uma suspeita, mais ou menos fundada, que pode acompanhá-lo ao
longo da leitura do relato autobiográfico. (2)

Acontece isto também com santo Antônio Maria Claret? Acontece com santo
Agostinho e santa Teresa, etc.? Vamos tentar responder ponderadamente mais adiante à
primeira pergunta.

À medida que se estuda a história da Igreja no século XIX, a figura de santo Antônio
Maria Claret vai adquirindo maior relevo, porque, de um modo ou de outro, está
relacionado com os sucessos mais relevantes, com as pessoas de Igreja - membros da
hierarquia ou fundadores - e com os movimentos mais característicos do seu século. Por
isso vai crescendo também, cada vez mais, o desejo de conhecer sua verdadeira identidade,
o secreto da sua personalidade, aparentemente feita de contrastes. E a este desejo se une a
felicidade sem igual de possuir, escrita de seu próprio punho, sua BIOGRAFIA, que com
todo direito podemos chamar e costumamos chamar AUTOBIOGRAFIA.

Para quem somente conhece a vida externa de santo Antônio Maria Claret, é uma
revelação encontrar na Autobiografia, tão vivamente apresentada, a gênese interna da
consciência do seu carisma-missão, da sua vocação para servir na Igreja como
evangelizador. A graça que mantinha a vida do grande apóstolo aparece aqui livre e
espontaneamente, sem esquemas preconcebidos, sem artifícios.

É este um valor notável e talvez original, na literatura autobiográfica. Não são


abundantes os relatos autobiográficos de homens apostólicos, especialmente com o caráter
do presente, em que ressalta tão clara e fortemente a razão interior da sua vida de
apostolado.

Se por sua ação exterior é modelo do missionário apostólico, não deixa de sê-lo em sua
vida íntima, como tipo e intérprete de uma espiritualidade apostólica.

Santo Antônio Maria Claret, como fundador de famílias religiosas na Igreja, como
iniciador de movimentos de santificação e apostolado, como promotor de tantas obras de
Igreja, recebeu plenitude de graça correspondente à sua missão e ninguém está em
condições de interpretar este dom como ele, que recebeu uma luz interior especial e foi o
primeiro a percorrer o caminho. Em ambos os aspectos - realização e interpretação - são
muito notáveis a vida e a confissão do santo.

Juntamente com esta faceta, que constitui o corpo do relato, há alguns pontos
fundamentais. De tudo isto, falaremos nestas notas introdutórias, com as quais queremos
ajudar a rápida e adequada compreensão. Oferecemos os dados que julgamos
imprescindíveis como guia para que o leitor possa entrar no coração do apóstolo, tão
fielmente refletido nas páginas da Autobiografia.

Dados Históricos

Chegaram até nós dados suficientes para reconstruir, em suas linhas gerais, a história
externa da Autobiografia, embora fique obscuro algum ponto fundamental e em algum
outro gostaríamos de mais explicitação por parte dos transmissores. O ponto sobre o qual
mais claramente falam os testemunhos dos contemporâneos - e o mesmo autor já adverte
em uma nota prévia - é que Claret escreveu a Autobiografia por mandato do padre José
Xifré, seu diretor espiritual e superior-geral da Congregação de Missionários fundada pelo
mesmo santo.(3)

Antes deste mandato, houve um outro pedido do padre Paládio Curríus, confessor do
santo e seu confidente espiritual. Currius ia-se convencendo cada vez mais de que Claret
era uma pessoa chave na Igreja do seu tempo, não só pelas obras que realizava, mas pela
intensidade de sua vida em Cristo, tanto em níveis ascéticos como de experiência mística,
especialmente desde que lhe confiou um conhecimento da sua missão sob os signos
apocalípticos da águia e do anjo. Para conhecer mais claramente o assunto, conseguiu que o
santo escrevesse um resumo das intervenções do Senhor em sua vida desde a infância até o
atentado de Holguín, em 1856. Este escrito leva o título de Resenha e contém, de um modo
ainda muito embrionário, a autobiografia posterior. (4)

O padre Xifré tinha outro motivo. Como superior-geral da Congregação, acreditava que
o conhecimento da experiência espiritual do fundador, da sua vocação e sua missão, deveria
contribuir muito no esclarecimento da vocação dos missionários, na sua formação e na
edificação da Congregação.

Alguma coisa semelhante ao que o padre Jerônimo Nadal dizia sobre a vida de Inácio,
que era o fundamento da Companhia e que contá-la era verdadeiramente fundar a
Companhia. (5)

Como diretor espiritual e como superior, o padre Xifré pediu-lhe muitas vezes, de
palavra e por escrito, que escrevesse o relato da sua vida, sem conseguir que se decidisse a
fazê-lo. Mas, já que pelas vias da insistência não conseguiu, resolveu, com a decisão que
lhe caracterizava, impor-lhe o mandato explícito de obediência. O santo confessa que não
se teria resolvido a escrever, “se não tivesse mandado. Assim, unicamente por obediência o
faço e por obediência revelarei coisas que gostaria muito fossem ignoradas”. (6) São várias
as testemunhas que no processo de beatificação retificam o fato de que a Autobiografia foi
escrita obedecendo a um mandato expresso do seu diretor. (7)

Diante do preceito formal, Claret obedeceu sem titubear, embora nem por isso
diminuísse a enorme repugnância que para sua modéstia e humildade supunha ter que
revelar coisas tão íntimas e extraordinárias. Para isso diz na carta de 17 de fevereiro de
1862 ao padre Xifré: “Vou cumprir a obediência do senhor, escrevendo aquilo, embora com
muita repugnância”. (8)

Não existe somente este testemunho. Seus familiares nos falam da grande fadiga que
experimentava o santo em escrever coisas e como eles não poucas vezes intervieram
animando-o a continuar a escrever. (9)

Podemos reconstruir a cronologia da composição, graças ao testemunho do padre


Paládio Curríus. Ele, que fez com que o santo escrevesse a Resenha, lhe pediu agora que o
deixasse copiar, pelas mesmas razões, a “Biografia”. Na cópia, figura o seguinte título:
“Biografia do Exmo. e Ilmo. Sr. D. Antônio Maria Claret y Clará, copiada do original que
escreveu de próprio punho o mesmo senhor no ano de 1861 e concluiu em maio de 1862
estando em Madri e entregou pessoalmente à Congregação de Missionários Filhos do
Coração de Maria”. Ainda são mais precisos os testemunhos que nos trazem as cartas de
santo Antônio Maria Claret ao padre Paládio. Diz desde Madri no dia 30 de janeiro de
1862: “Eu vejo o que me diz da “Biografia”; eu deixarei copiar, como também os
apontamentos de coisas interiores”. (10). E em carta de 21 de maio do mesmo ano:
“Quando tiver oportunidade, enviarei a “Biografia”, pois, já está escrita”. (11)

Mas, se podemos precisar a época em que terminou - 21 de maio de 1862 -, não é tão
fácil precisar a data em que a começou. A única referência - a de Curríus - fixa o ano de
1861, e nada mais. Verificando a suposição que fez o Curríus de que o mandato de escrevê-
la lhe fora imposto pelo padre Xifré na entrevista que teve com o santo em outubro ou
novembro de 1861, podemos concluir que a data aproximada são os últimos meses de dito
ano. (12)

Sobre a entrega aos seus missionários de Vic, escrevia o próprio autor ao padre Paládio,
com data de 26 de maio de 1862: “Igualmente vai a Biografia, que você terá até 28 de
junho, e me deverá devolvê-la para que possa levar a Catalunha no dia 30”. (13). Sabemos,
no entanto, por meio da vida do santo, que no verão de 1862 fez uma breve viagem a
Catalunha, saindo de Madri no dia 1º de julho e chegando a Vic no dia 4. (14)

Santo Antônio Maria Claret escreveu uma “Continuação” da Biografia, que chega até o
ano de 1865. Não sabemos se os capítulos que fazem parte da “Continuação” foram escritos
conforme aconteciam os fatos ou se foram escritos todos juntos no verão de 1865. Santo
Antônio se retirou da corte por causa do reconhecimento do reino da Itália -15 de julho de
1865 -, permanecendo com seus missionários de Vic até o dia 25 de outubro, data em que
partiu para Roma a fim de pedir orientações ao Santo Padre. Naqueles meses teve tempo
para escrever a “Continuação”. Desde o capítulo 18, narra fatos acontecidos na Catalunha.
A mudança de tipo de papel, já desde o caderno 14, deu motivo ao padre João Postíus supor
com fundamento que estes capítulos foram escritos já na casa de Vic. (15). Pôde, pelo
menos, escrever estes últimos capítulos e ordenar o resto do material recolhido, pois esta
parte foi escrita em folhas soltas, que logo depois foram coladas em um tomo encadernado,
diferentemente da Biografia que foi escrita toda seguida em cadernos que o próprio autor
enumerou antes de serem encadernados. (16)

Pode ser interessante deter-nos um pouco na consideração da época em que foi escrita a
Autobiografia, porque realça bastante seu valor interno. Em não poucas autobiografias se
lamenta o fato de que não abranjam a época de maior maturidade do autor. Faltam as
experiências mais fundamentais e perde força a interpretação do resto dos fatos, que, à luz
daquelas, toma clareza e unidade totalmente novas. Não acontece assim, felizmente, com
santo Antônio Maria Claret; as datas da redação da Autobiografia correspondem à plenitude
da sua vida. O santo morreu aos sessenta e três anos não completos e começou a escrevê-la
aos cinqüenta e quatro e a terminou aos cinqüenta e oito. Fazia já cinco anos que estava em
Madri, abrangendo as três etapas fundamentais do seu apostolado: missionário apostólico,
arcebispo de Cuba, confessor real. Era o tempo da plenitude espiritual. Naquela época havia
recebido já as maiores graças místicas; havia empreendido as últimas e mais atrevidas
iniciativas apostólicas, estava sofrendo as mais refinadas perseguições. Estas circunstâncias
lhe davam a oportunidade de interpretar genuinamente o sentido da sua vida interior.

Das demais circunstâncias externas referentes à redação da Autobiografia, convém


notar, antes de tudo, a relação que com ela têm vários escritos autobiográficos que serviram
ao autor como material prévio para a redação ampla e definitiva. Resenha, ou breve resumo
da sua vida, e as Luzes e Graças, breves escritos nos quais consigna comunicações
extraordinárias do Senhor. Padre Paládio Curríus nos explica a conexão destes escritos com
a Autobiografia. Fidelíssimo compilador de tudo quanto o arcebispo se referia, copiou na
íntegra toda a Autobiografia em um caderno particular, junto com estes papéis soltos, aos
que acrescentou estas duas Notas:
 Tudo o que está anotado aqui desde a página 217 é copiado dos papeizinhos
pessoais que o Exmo. e Ilmo. me facilitava para este fim antes de escrever ele
sua Biografia, que concluiu no mês de maio de 1862. Ditas locuções e
conhecimentos mos dizia de palavra e por causa da confiança que tinha em mim,
sem eu merecê-la, a meu pedido, os escrevia e mos entregava para que os
copiasse, com a obrigação de devolver a ele os originais, e assim o fiz sempre.
 Quando ele escreveu sua Biografia anotou o conteúdo de vários destes
papeizinhos no capítulo 19 e no último capítulo da terceira parte; alguns foram
aumentados, outros omitidos (talvez por terem sido extraviados), e acrescentou
os que estão anotados na página 329 (isto é, os favores recebidos do dia 7 de
junho de 1860 a 1862).

O código autobiográfico

Relatamos já as circunstâncias externas da composição da Autobiografia. Para


completar estes aspectos externos damos uma breve idéia das vicissitudes, descrição do
código e algumas questões críticas a ele relacionadas.

O manuscrito constava originariamente de dois tomos, que foram entregues à


comunidade de Missionários de Vic em 1862 e 1865 respectivamente. Ali permaneceram
no arquivo local, depois de encadernados cuidadosamente, até que, expulsos os
missionários pela revolução de setembro de 1868, os levaram consigo à França. Assim
consta expressamente numa advertência que o padre Jaime Clotet colocou em papel solto
na primeira página. Esta nota leva a data: “Thuir, 1º de fevereiro de 1880”. De volta à
Espanha, trouxeram consigo a Autobiografia, fazendo parte do Arquivo Claretiano, que,
depois da morte do Fundador, começou a ser formado na casa de Vic a fim de introduzir o
processo de beatificação.

A Autobiografia foi salva providencialmente na guerra de 1936, graças ao zelo da sra.


Dolores Lletjós, que a guardou cuidadosamente em sua casa e conseguiu escondê-la.
Reorganizada a comunidade de Vic, voltou também a Autobiografia para Arquivo
Claretiano até o ano de 1954, em que o padre Pedro Schweiger, superior-geral, determinou
que fosse transladada ao Arquivo Geral de Roma, onde atualmente se conserva junto com a
maior e mais notável parte dos manuscritos de santo Antônio Maria Claret.
Para a sua conservação os manuscritos foram submetidos a um tratamento técnico, e nesta
ocasião a Autobiografia foi encadernada em um só volume, consta de 540 páginas
numeradas. A Biografia vai até à página 424 e a “Continuação” da página 433 a 540, este é
o primeiro dos volumes manuscritos do santo. (17)

No código, falta o capítulo 17 da “Continuação” e a numeração original dos cadernos


passa do nº 18 ao 20, e a numeração dos capítulos, do 16 ao 18, o que indica que o autor ou
o escreveu ou teve intenção de escrevê-lo. No seu lugar, o padre Clotet colocou um papel
com uma nota que diz assim: “O abaixo assinado, superior desta casa-missão de Vic,
certifica que a folha correspondente à página 19 e capítulo 17 da “Continuação” da
Biografia do senhor arcebispo dom Antônio Maria Claret se perdeu; não sabemos como
nem o conteúdo dela. E para que conste, firmo na mesma casa-missão, aos oito de abril de
mil oitocentos oitenta e nove”. Jaime Clotet, presbítero superior (Rubricado e carimbado).

A falta deste capítulo deu muito trabalho no processo de beatificação. O padre João
Postíus, que estudou longamente este problema, conjetura que este capítulo, seguindo a
disposição de matérias dos anos anteriores, deveria corresponder à conta de consciência de
1865.(18) Esta não havia sido feita ainda ou, se havia sido entregue, pôde ter sido
extraviada pelo padre Xifré, com quem se dirigia o santo. Quando o padre Paládio Curríus
copiou esta parte, passou do capítulo 16 ao 18 sem a menor advertência, o que prova que,
quando fez a cópia, o autor não tinha escrito ou não tinha sido entregue.

Esta é a maior dificuldade de crítica interna que oferece o código. No demais, o texto é
claríssimo. Nota-se sem dificuldade que as correções são do mesmo autor, podendo ser
lidas, muitas vezes, as palavras apagadas. Os acréscimos ou correções de mão estranha - do
padre Jaime Clotet, se vêem pela letra - respeitam sempre a frase original e são tão poucas e
tão claras, que não oferecem a menor confusão.

Forma literária

Pelas circunstâncias e modo como se escreveu a Autobiografia, sabemos que santo


Antônio Maria Claret considerou seu manuscrito um rascunho, que deveria ser corrigido e
retocado antes da sua publicação. Isto explica por que o autor não revisou o escrito nem
reparou nas repetições e falhas acontecidas pela rapidez com que escreveu o texto e a
dificuldade em escrever em castelhano, por ter pregado tanto tempo em catalão.

O estilo da escritura oferece aspectos muito apreciáveis mesmo sob o aspecto literário.
A fogosidade com que se expressa é o reflexo do seu temperamento e nos dá a idéia do que
devia ser sua oratória, que comovia o público mais reacionário. Outras vezes, sua
linguagem se faz contemplativa. Quanto à descrição, há capítulos notáveis pela graça com
que relata alguns casos, como os acontecimentos felizes e os detalhes pitorescos com que
nos narra sua primeira viagem à França ou suas correrias pelas montanhas de Cuba.

A simplicidade dos seus relatos nos dá uma imagem aproximada do autor, quando o
surpreendemos em conversa familiar com seus missionários ou em colóquio íntimo com
Deus e até nos momentos mais espontâneos de soltura para consigo mesmo, em que o santo
se vai fazendo perguntas e observações com uma ingenuidade e naturalidade inimitáveis.

Valor histórico

O que primeiro buscamos em uma autobiografia é sempre a revelação da intimidade, o


secreto da vida de um homem.

Uma pergunta óbvia aparece quanto à veracidade dos fatos narrados ou se há alguma
deformação inconsciente ou pretendida. Não foram pequenas as dificuldades que aos
historiadores apareceram. Recordamos o caso de santo Agostinho sobre a falta de
sinceridade ou deformação histórica que os racionalistas atribuíram às suas Confissões.

Em santo Antônio Maria Claret não existem dificuldades especiais. Sua Autobiografia
está muito perto da nossa história. Sobre os dados, aparece algum erro, muito explicável
particularmente nas datas, sem que, por outra parte, ofereça dificuldade especial, pois a
justificação aparecerá nas notas referentes ao texto. Pode ser muito útil prevenir o leitor
para que o modo de apresentar alguns fatos não o leve a uma falsa interpretação da
realidade.

O que pode representar um triunfo para a expansão do reino de Cristo, conta-se com
certo otimismo; por exemplo, todos se convertiam. Por outro lado, exagera por humildade
os próprios defeitos. Os anos da sua juventude durante sua estadia em Barcelona são
apresentados como uma época de esfriamento na piedade e de falta de atenção para com as
coisas de Deus. No entanto, consta, por não poucas testemunhas dos processos, o heroísmo
com que teve que enfrentar as contínuas provocações ao pecado por parte dos seus
companheiros de fábrica ou a tentação de buscar na vida um mero triunfo humano, que a
ele se oferecia facilmente por suas qualidades e talentos técnicos. Não é por nada que fez
coincidir esta época de Barcelona com a noite dos sentidos, apresentada na vida do santo
neste tempo com as notas ou critérios que coloca são João da Cruz como características da
noite dos sentidos. (19)

Outras vezes, suas normas severas de conduta podem induzir a entender mal suas
qualidades pessoais. Seu caráter e temperamento podem aparecer, sobretudo na infância e
juventude, como retraído e melancólico por seu gosto pela solidão e pela oração.
Testemunhas são concordes em afirmar sua jovialidade, sendo a delícia dos seus
companheiros nas horas de trabalho ou nos momentos de descanso. Em algumas ocasiões,
aparece com temperamento doce e suave por causa da compaixão, em outras demonstra
fogosidade, vivacidade natural, como afirmam os que o conheceram.

Estas considerações podem ajudar bastante como critérios parciais, pois abrangem
somente uma parte reduzida da sua vida e empreendimentos. Qual é então, em seu
conjunto, o valor deste documento para conhecer o santo?

Os silêncios da Autobiografia se explicam nos objetivos com que se propôs o autor, isto
é, a ajudar na formação dos missionários; assim cala sucessos historicamente importantes e
trata com carinho outros parecidos insignificantes, mas que para ele tinham um valor
“significativo” para sua missão ou seu espírito. Por isto, quem quiser ter uma imagem mais
global do santo deve enquadrar a Autobiografia em uma vida dele mesmo.

A humildade não está ausente na causa destes silêncios: “Quem conhecia o servo de
Deus como eu o conhecia - testemunhou seu confessor padre Carmelo Sala - compreende
facilmente, ao ler os mencionados apontamentos, que ele diz menos do que cala, querendo,
sem dúvida, deste modo, cumprir o preceito imposto pela obediência, sem diminuir sua
profunda humildade”. (20)
Nem seria a Autobiografia documento suficiente para um conhecimento perfeito da
vida espiritual do santo. Muito nos revela, mas é bastante o que falta. O caderno de
propósitos e notas, Luzes e Graças pode ajudar a preencher as lacunas. No entanto, não se
deve esperar encontrar em seus escritos análise muito introspectiva dos seus estados de
ânimo; seu modo de ser e seu ardor apostólico não lhe davam sossego nem repouso para
isto.

Uma interpretação da sua vida desde seu carisma missionário

O valor que mais caracteriza a Autobiografia de santo Antônio Maria Claret é revelar-
nos a visão que ele tinha da sua vida, a interpretação que dela faz desde seu carisma de
fundador.

Um fundador não é um organizador ou um legislador. É um homem que viveu uma


peculiar experiência do mistério de Cristo, que teve uma peculiar visão profética dos sinais
dos tempos e deu uma resposta adequada. É um aspecto característico do carisma de
fundador o fato de ter chegado a um esclarecimento não só para si, mas também para seus
discípulos, e poder transmiti-lo, de uma maneira convincente e inteligível, à maneira de
mensagem, aos que o receberam também, mas sem esta plenitude.

Santo Antônio Maria Claret comunica a seus discípulos sua experiência do Espírito não
com elucubrações abstratas, mas na forma direta e existencial de uma autobiografia. Nela,
nos descreve como o dom – carisma - deu sentido a todos os seus dons naturais e de graça:
batismo, sacerdócio e também o episcopado. Com grande fineza de descrição, nos vai
abrindo os diversos momentos da tomada de consciência desta posse e exigência do
Espírito. Para os sucessos mais distantes como para os pequenos detalhes, encontra o santo
uma ressonância nesta nota fundamental. Analisemos os momentos mais destacados.

Na infância de Claret, a graça antecipou a natureza. Nele, o zelo se adiantou à razão.


Diz seu primeiro biógrafo que Antônio foi apóstolo antes de ser homem. (21)

Na primeira infância, teve uma experiência do absoluto de Deus e da fragilidade do


homem, da sua infidelidade e, por isso mesmo, da sua infelicidade, tão profunda que lhe
tirava o sono e o marcou para toda a vida. (22)

Na juventude, se abriu para a vida com uma visão otimista do mundo da criação e do
homem “criador” pela técnica. Experimentou a bondade do trabalho, da amizade, dos
valores humanos, mas também da sua limitação e sua periculosidade quando estão a serviço
do mal. Diante desse desengano, quis fugir do mundo, mas o Senhor que, ao escolhê-lo o
separava do mundo, lhe deixou numa atitude evangélica de distância, mas ia colocá-lo
pouco a pouco em uma proximidade apostólica. (23)

Tudo isto foi como um prelúdio necessário. Nesse momento, começou o chamado
explícito à evangelização; mas com uma exigência tal – que foi a razão de ser da sua vida –,
como o servo, como o Filho, como os apóstolos, através da leitura da Palavra interiorizada
como a voz do Senhor em seu coração. (24) A isto, foi acrescentado o exemplo dos santos
missionários por suas obras ou por seu zelo (25) e, inclusive, o fenômeno extraordinário de
uma visão. (26)

O dia da ordenação de diácono foi para ele um dia de revelação vocacional. A chave foi
a figura de santo Estevão - homem do espírito e da Palavra - e as palavras de são Paulo no
Pontifical: “Não é vossa luta contra a carne e o sangue, mas contra os espíritos do mal”. Na
perspectiva de luta, o bispo lhe entregava como arma o Evangelho e, pela imposição das
mãos, fazia descer sobre ele a força do Espírito e o próprio Espírito, que o ungia para a
evangelização e a missão. (27) Tudo estava claro e para sempre. Era obscuro ainda o modo
de cumprir a missão e lhe faltava, também, uma formação e uma preparação adequada.

A experiência do sacerdócio paroquial se fez estreita e foi a Roma para ser enviado para
as missões. (28). Mas o Senhor converteu esta viagem em uma etapa formativa, a mais
decisiva. Concedeu-lhe o dom e a experiência da pobreza evangélica.(29). Ainda em uns
poucos meses de noviciado na “Companhia de Jesus”, foram-lhe ensinados vários modos
de evangelizar e a experiência de uma vida consagrada em função da missão.(30) Aquele
período formativo terminou com as primeiras investidas missionárias até 1841, ano em que
deixa a estabilidade paroquial pela itinerância da missão. (31)

No começo da sua vida itinerante pela Catalunha e Canárias, a santa Sé concedeu a


Claret o título de missionário apostólico “ad honorem”. Ele viu nisto um reconhecimento
oficial do seu espírito e não o recebeu como honra, mas como uma definição de seu ser.
Enviado, como os apóstolos, aos quatro pontos cardeais até os confins do mundo, ele devia
colocar toda sua vida em função da evangelização, do serviço profético da Palavra,
renunciando, enquanto dele dependesse, a outras funções do sacerdócio ministerial: o
governo e a sacramentalização estável. O qualificativo apostólico o aplicou no sentido da
forma de vida: ao modo dos apóstolos, em pobreza, itinerância e fraternidade, sempre sob o
envio dos pastores ou do sumo pastor. Pensando nos missionários, interrompe a
Autobiografia para comunicar-lhes sua interpretação existencial do ser missionário:
vocação, missão, estímulos, meios, virtudes. (32)

No resto da Autobiografia descreve sua fidelidade à sua vocação de missionário


apostólico em situações de governo ou de estabilidade. Obrigado, por causa de um serviço à
Igreja, a aceitar o episcopado (33) e depois, o ofício de confessor real, (34) viveu aquelas
situações como missionário apostólico tanto pela importância que deu à evangelização
como pelo estilo de vida pobre e fraterna. Em Cuba, deixou, quanto pôde, os serviços
burocráticos para estar livre para a pregação. (35) Em Madri, converteu as viagens reais em
missões e ao se encarregar do “El Escorial”, panteão de reis, pensou em seguida em
convertê-lo em centro de evangelização, como seminário interdiocesano, colégio
universitário e casa-missão e de exercícios de alcance internacional. (36)

Santo Antônio Maria Claret não só descreve o processo de sua assimilação e vivência
do dom que o fez fundador, mas também nos transmitiu o conteúdo teológico místico.

A experiência do Espírito originante foi a vivência intensíssima de Cristo


evangelizador. (37) Considerou-o e o viveu como o Filho, enviado ao mundo como Mestre
e Salvador; como o Filho, preocupado com os desígnios do Pai; servo da vontade salvífica
do Pai. O Filho ungido para evangelizar os pobres, o Filho do homem, que não tem onde
reclinar a cabeça, que ora, evangeliza, sempre fiel à verdade e ao amor, e, por isso mesmo,
colocado como sinal de contradição, perseguido em sua doutrina, em suas obras e em sua
pessoa até a morte de cruz. (38)

Neste mesmo mistério de Cristo evangelizador, viveu Claret o mistério de Maria. O


Filho do Pai é enviado, feito de mulher pelo Espírito. Para Claret, esta mulher é a Mulher
do Gênesis, do Apocalipse, de Caná e do Calvário. É mãe de Cristo missionário, mãe do
discípulo, do apóstolo e de todos os missionários em Cristo. Claret se sentia formado no
coração da que é mãe por sua caridade, para chegar a ser ele mesmo caridade materna no
apostolado, chama que arde e abrasa por onde passa. (39)

O fundador é um dom do Espírito à Igreja e aos homens do seu tempo e do futuro. Por
isso, em Claret a experiência do mistério de Cristo não termina numa contemplação
intimista ou numa memória sem presente. Ao seu coração, se abriram olhos proféticos para
interpretar os sinais de Cristo ressuscitado no tempo. Na infância, predomina a visão
escatológica do mundo e dos pecadores. (40) Na juventude, vê na fábrica e na grande
cidade uma amostra da humanidade vivente, com suas aspirações de triunfo, suas paixões e
suas debilidades. (41) Como missionário popular, vê os pecadores aterrorizados pelo
jansenismo. (42) Em Cuba, descobre as conseqüências sociais dos pecados pessoais: o
homem explorado pelo homem. (43) Em Madri, percebe os príncipes da maldade que
andavam nas trevas, aquelas ideologias que hoje chamamos “humanismo ateu”, e cujas
implicações para o futuro só os olhos proféticos descobriam em seu tempo. (44)

A esta visão profética - não meramente sociológica - das urgências do seu tempo
respondeu com uma evangelização oportuna nos conteúdos e eficaz nos meios, sendo
inovador em muitos deles. (45)

Uma espiritualidade para a missão

Santo Antônio Maria Claret recebeu numa mesma comunicação de graça o carisma e o
espírito: a idoneidade objetiva para cumprir a missão e a capacidade subjetiva de assimilar
o dom e vivê-lo. O Espírito que o consagrou e o enviou é o mesmo que clamava Abbá! em
seu coração, o mesmo que o impelia a seguir Cristo mais de perto e o que o inflamava e o
fazia correr, trabalhar e sofrer para a glória do Pai e a salvação dos homens. Claret vivia a
missão como continuidade da missão de Cristo; por isso, nele não é algo derivado, algo
acrescentado à sua vida espiritual; antes, pelo contrário, a determina profundamente. O
modo de agir da graça sobrenatural e a eficácia que se manifestam nele levam quase sempre
esta marca do dinamismo apostólico: umas vezes é para ele uma força que o faz correr e
gritar, que não o deixa sossegar um momento, mantêm-no em sua atividade sobre-humana,
com a qual tudo pode e tudo se faz fácil e ligeiro. Outras vezes, a compara com o fogo: “um
fogo tão ardente, que não me deixava estar quieto. Tinha que correr e andar de uma parte a
outra pregando continuamente”. (46) Finalmente, é notável a comparação com a força do
instinto, que é tão poderoso na natureza: “Mais poderosa e valente é a graça do que a
natureza. Pois se uma mãe, pelo amor natural que tem para com seu filho, corre, grita,
agarra seu filho e o tira da beira do precipício: eis aqui, pois, o que faz em mim a graça: a
caridade me impele, me faz correr de um povoado a outro”. (47)

A vida sobrenatural, que no contemplativo se desenvolve nos dons passivos, age em


Claret primariamente nos dons ativos. Por isso santo Antônio Maria Claret foi chamado
místico da ação,(48) não só por causa da presença de Deus na ação, mas porque era movido
pelo Espírito de um modo peculiar em sua atividade apostólica.

Não pode haver vida em Cristo sem um encontro pessoal com ele na fé. Claret nos
conta como se encontrou com Cristo vivente, primeiro na eucaristia, (49), depois na
Palavra; (50) também no próximo e nos acontecimentos; finalmente, em seu coração, como
centro de onde lhe vinha a eficácia no apostolado, como fonte e forno de zelo, como
morada: a casa de Marta e Maria, do discípulo e do apóstolo. (51)

Podemos continuar também seu processo de transformação desde o seguimento e a


imitação, do Evangelho até a plena configuração interior com os sentimentos de Cristo.
(52) Claret dedica oito longos capítulos na Autobiografia a descobrir as virtudes do
missionário como exigência do seu ministério e como meios de apostolado. Dá muita
importância às virtudes de relação, já que o evangelizador se encontra entre o Pai que o
envia e os homens a quem é enviado: pela humildade (53) agradará a Deus e pela mansidão
(54) ao próximo. Destas duas virtudes, fez exame de consciência particular; sobre a
primeira, desde estudante até 1861 e sobre a segunda, de 1861 até 1864. Nos sete últimos
anos da sua vida o fez sobre o amor de Deus. Reconhece que a virtude mais necessária ao
missionário é o amor e procura obtê-lo por todos os meios. (55)

Desde o ponto de vista do testemunho, se fixa principalmente na pobreza (56) e na


modéstia, (57) e como condição para todas as virtudes, a mortificação. Cristo nos redimiu
principalmente com sua bem-aventurada Paixão; por isso, a configuração com Cristo
paciente é necessária ao missionário como ponto alto da sua missão. Neste sentido, a
mortificação é mais que uma virtude; é amor de amizade, é testemunho-martírio; é dor que
gera vida para que todos os eleitos alcancem a salvação. (58)

Claret não nos oferece uma teoria da oração apostólica; coloca diante dos missionários
sua experiência. Claret evangelizador ora porque Cristo evangelizador o fez. (59) Além
disso, sua oração é no Filho e, por seu Espírito, clama: Pai. No diálogo com o Pai, encontra
o amor e a força para partilhar a obediência daquele que aceitou a vontade de salvação na
maior prova de amor. A oração apostólica é oração de discípulo, na qual Claret, aos pés do
Mestre, ouvia sua voz na Escritura; (60) é oração profética, que interpreta os desígnios do
Pai nas diversas situações. (61). Para Claret, a oração era luta com Deus em favor do povo
para obter a conversão de todos ao Evangelho. (62) Na oração, finalmente, sua caridade se
convertia em chama de zelo. (63) Temperamentalmente, na oração mental se sentia melhor
que na oração metódica discursiva, se sentia mais livre de mente e de coração. Por outra
parte, seu dinamismo congênito de tecedor se sentia mais apaziguado. (64) Chama a
atenção o muito tempo que dedicava à oração, roubando-o ao sono para não prejudicar a
ação apostólica. (65)
A Congregação dos Missionários

Parece que na Autobiografia se deveria falar mais da Congregação de Missionários. Há


somente um capítulo para narrar a fundação da Congregação (66) e outro a sugerir uma
iniciativa para ter vocações, (67) mas não se fala da sua vida. A resposta poderia ir por esta
linha: A Autobiografia fala à Congregação; ela é o interlocutor, a ela se revela o mais
profundo do seu ser, aquilo que a manterá em vida. O como concreto desta vida, o fundador
apontou nas Constituições; aqui se fala do princípio inspirador, informador e superador das
estruturas. No entanto, se diz o suficiente sobre a natureza do seu ser comunitário e dos
princípios de seu equilíbrio vital entre os diversos elementos do seu carisma, cada um dos
quais poderia constituir uma razão de vida por si mesmo.

Na Autobiografia aparece claramente que a Congregação de Missionários, embora


tenha nascido por causa da necessidade de pregadores, não é uma equipe de pregadores, é
um grupo de vida: “Assim começamos e assim continuamos estritamente numa vida
perfeitamente comum”. (68) Esta vida comum não era conventual, era plenamente
apostólica: “Todos íamos trabalhando no sagrado ministério”. (69) Embora o fundador não
tenha podido viver em uma comunidade “clássica” de missionários (Vic, Gracia ou
Segóvia), procurou, no entanto, que sua casa de bispo fosse uma verdadeira comunidade de
missionários e pediu sempre ter missionários com ele. Neste sentido, a comunidade de
Cuba não deixa de ser típica, e o fundador no-la descreve como uma comunidade-missão:
“Nossa casa era como uma colméia, em que uns saíam, outros entravam”, (70) segundo as
exigências do ministério. Era também uma comunidade fraterna: “Todos nos amávamos
igualmente uns aos outros” (71) e este amor era sustentado pela comunidade de vida.
Comunidade evangélica pelo estilo de vida, o mais conforme à vida do Senhor com os
apóstolos e discípulos na evangelização. Os membros desta comunidade eram “de muito
bom gênio, de solidíssima virtude; desprendidos de tudo o que é terreno, nunca jamais
falavam nem pensavam em interesses próprios, nem em honras; sua única intenção era a
maior glória de Deus e a conversão das almas”. (72) “Todos estavam dispostos ao trabalho
e com gosto se ocupavam no que lhes era confiado”. (73) A causa de tanta paz, alegria e
harmonia “em tantas pessoas e por tanto tempo” era a presença do Espírito: “Esta é uma
graça singular que Deus nos dispensa por sua infinita bondade e misericórdia”. (74) No
entanto, esta comunidade punha os meios adequados para corresponder a este dom. Para a
missão, disponibilidade e formação permanente. Para a fraternidade, uma certa clausura que
fomentasse a intimidade e para a vida evangélica, uma ordenação para a oração e para o
trabalho e tempos fortes de conversão.

A publicação da Autobiografia

O conteúdo da Autobiografia esteve ao alcance de todos por meio das Vidas, escrita por
Francisco de Asis Aguilar, (75) pelo padre Clotet (76) e outros biógrafos; mas a
Autobiografia enquanto tal se considerou um patrimônio espiritual da Congregação, tendo
sido composta com o pensamento do autor diretamente colocado nela. Durante quase cem
anos, foi considerado documento privado. O caráter de doutrina para os missionários, o tom
familiar de muitas reflexões, algumas coisas incorretas por causa da rapidez com que foi
escrita, contribuíram para acentuar este caráter. Até 1915, em que se publicou no “Archivo
Histórico CMF”, dentro da Congregação a Autobiografia se conhecia por meio de cópias
manuais. Em 1951, para comemorar a canonização do fundador, se fez uma edição manual,
como livro pessoal para todos os membros da Congregação.

A canonização abria novos horizontes. O papa Pio XII disse que Antônio Maria Claret
era santo para todos, seus dons eram para a edificação da Igreja; aqueles que ele havia
recebido e vivido com a intensidade própria do seu carisma e sua missão, poderiam ajudar
outros a viverem o que há de comum nestes dons, mas segundo a peculiaridade exigida por
sua própria vocação.

O desejo de fazer conhecido o “santo de todos” e de partilhar com todos, especialmente


com sacerdotes e apóstolos leigos, a riqueza espiritual encerrada em um documento tão
notável, impeliu a Congregação a fazê-lo público.

As primeiras edições (1915, 1951) apresentavam o texto limpo, prescindindo de toda


crítica, porque não o pedia a clareza do original. Na edição de 1981 e na presente,
continuamos com o mesmo critério. Tratando-se, no entanto, de uma edição para todos, se
oferece outra dificuldade: o desejo expresso do santo de que o escrito fosse corrigido e
revisado antes de dá-lo ao público, reservando ainda alguns capítulos de casos delicados
para os confessores mais experimentados. Assim consta expressamente em uma nota que o
padre Jaime Clotet colocou na primeira página do texto: “Advertência. O Exmo. Sr.
Arcebispo Claret nos deixou os manuscritos da sua Biografia em rascunho, não para que
fossem lidos, nem para que fossem publicados do modo como estão, mas que antes fossem
corrigidos na dicção, deixando intacta a substância. Nem foi sua vontade que tudo fosse
dito a todos, mas que algumas coisas ficassem reservadas para os Padres mais antigos e
prudentes”. (Thuir, 1º de janeiro de 1880. Jaime Clotet, CMF (Rubricado)

Por tratar-se de um rascunho, redigido com grande rapidez e não revisado pelo autor,
incorreu em alguns erros e repetições. A tarefa de corrigi-lo, no entanto, não é fácil por se
tratar de um documento tão sagrado. Por isso, preferimos apresentá-lo como saiu das mãos
do autor, limitando-nos às mínimas correções necessárias para a leitura, advertindo em nota
a correção, quando se trata de uma frase.

Quanto aos casos que narra para o esclarecimento dos confessores, foram suprimidos os
mais reservados, publicando o resto. Por esta razão, omitimos a publicação da última parte
do capítulo 12 e todo o capítulo 15 da “Continuação” da Autobiografia. Indicamos as
supressões e em nota remetemos à fonte.

A divisão em parágrafos e sua numeração foram introduzidas na primeira edição da


coleção da “Biblioteca de Autores Cristãos”. (77)

Como ler a Autobiografia

Quem quiser lê-la com interesse técnico, histórico ou psicológico tem já sua metodologia
de leitura. Nós nos referimos aqui ao leitor que quiser ler para sua edificação; a ele vai
dirigido o que segue.
1) Superar a estreiteza. Há mais de um século que foi escrita e mudou a sensibilidade
cultural, passando do romantismo ao existencialismo e tecnicismo. Além disso, santo
Antônio Maria Claret não é um clássico na língua castelhana; por outro lado, não faz
literatura; comunica simplesmente sua vivência com a rapidez de um homem que queria
dedicar todo o seu tempo à missão de pregador.

2) Entrar na intenção do autor. O autor é um fundador e escreve sua experiência original e


originante. Através do testemunho da sua vida, inicia o leitor na formação e consagração de
escolhido para a missão desde o primeiro chamado até à plenitude. Como fundador, esta
ação transformadora teve nele a intensidade daquele que deve ser cabeça e modelo, mas
também por ser fundador tem a graça de transmitir, de ser mensagem, princípio de
identificação para os que receberam, embora em grau menor, a mesma graça.

3) Sintonizar com o espírito do autor. A Autobiografia está escrita em clima de oração; ou


melhor, é uma oração em voz alta. Oração que revela as manifestações do amor do Pai nos
acontecimentos da vida. Santo Antônio Maria Claret confere os fatos à luz da palavra do
Senhor, especialmente à luz daqueles textos nos quais, por moção do Espírito, descobria as
exigências e o sentido da sua vocação. Para que a leitura da Autobiografia sirva de acordo
com os fins do autor deve ser feita em oração, no mesmo clima de oração profética e
providencial.

4) Em comunhão com a pessoa. Um santo canonizado é um modelo vivente, autenticado


pela Igreja. É nosso irmão, amigo e benfeitor. (78) Em se tratando do fundador, une-nos a
ele a comunitariedade do dom vocacional e sua presença viva na família de Deus que o
Espírito suscitou por seu intermédio para a vida e a missão da Igreja.

A edição do bicentenário

Esta edição, da Autobiografia é apresentada à Congregação e à Família Claretiana, como


manual do missionário claretiano, para render homenagem filial a santo Antônio Maria
Claret no bicentenário do seu nascimento.

É verdade que não se trata de uma obra totalmente perfeita e definitiva, porque já se sabe
que no território dos humanos poucas coisas podem alcançar o caráter de definitivo ou
perfeição consumada. Mas também é verdade que colocamos não só amor e carinho filial
que nos vincula ao nosso fundador e pai, mas também os cinco sentidos, para que este
presente oferecido a Claret seja digno da sua pessoa e da sua obra. Neste serviço, nos guiou
em todo momento o desejo de que nosso santo seja cada vez mais amado e mais conhecido
e que, através do grande missionário do século XIX, tal como dizia o mesmo Claret, Deus
nosso Senhor seja cada dia mais conhecido, amado, servido e louvado por todas as
criaturas. (79)

Deus queira que a Autobiografia do nosso santo padre fundador seja para todos os
claretianos e claretianas o que foi para as gerações que nos precederam: um “canteiro
inesgotável” de vida evangélica e de forte compromisso apostólico. (80)

José Maria Viñas, CMF. Jesús Bermejo, CMF.


Resumo cronológico da vida
de Santo Antônio Maria Claret

A seguinte síntese cronológica oferece uma visão de conjunto da vida e obra de santo
Antônio Maria Claret. Com ela será mais fácil enquadrar os fatos autobiográficos, que
depois irão adquirindo relevância e significado.

1807
23 de dezembro:
Nasce em Sallent, província de Barcelona e diocese de Vic. É o quinto dos onze filhos de
João Claret e Josefa Clara, família de tecelões profundamente religiosa.

25 de dezembro:
Recebe o batismo e os nomes de Antônio, Adjutório e João.

1812-1813
Embora criança, preocupa-se com a eternidade infeliz dos pecadores.

1813-1814
Começa a freqüentar a escola de sua terra natal.

12 de dezembro:
É crismado em Sallent por d. Félix Torres Amat.

1817
Recebe a primeira comunhão. Intenso amor pela Eucaristia. Terna devoção a Nossa
Senhora. Faz freqüentes visitas ao santuário da Nossa Senhora de Fusimanha com sua irmã,
Rosa.

1819
Primeiros indícios de vocação sacerdotal. Seu pai o coloca como aprendiz na fábrica de
tecidos da família.

1825
Muda-se para Barcelona para aperfeiçoar-se na arte têxtil. Consegue fama de tecelão a tal
ponto que lhe oferecem a direção de uma indústria, mas ele não aceita.

1827
Livra-se de uma tentação, invocando Nossa Senhora. Um falso amigo lhe rouba grande
quantia de dinheiro.

1828
Nossa Senhora salva-o de um afogamento na praia perto da Barcelona. Um dia, durante a
missa, ouve as palavras do Senhor: “para que serve ao homem ganhar o mundo inteiro se
vier a perder a sua alma?”.Estas palavras mudam o rumo da sua vida.
1829
29 de setembro:
Pensa em entrar na Cartuxa, mas segue o conselho do seu pai, inicia os preparativos ao
sacerdócio no Seminário de Vic, embora vivendo na casa de padre Fortián Brés.

1830
Decide ingressar na cartuxa de Montealegre, mas logo desiste, ao ser comprovado seu
delicado estado de saúde.

1831
Sofre uma forte tentação contra a castidade. Vence-a, invocando Nossa Senhora, que lhe
aparece e põe em sua cabeça uma coroa de rosas.

1832
2 de fevereiro:
Recebe a tonsura das mãos de d. Paulo de Jesus Corcuera, bispo de Vic e um benefício em
Santa Maria de Sallent.

1833
21 de dezembro:
Recebe as Ordens menores na Igreja de São Felipe Neri.

1834
24 de maio:
Ordenação de subdiácono na mesma celebração em que Jaime Balmes recebe o diaconato.

20 de dezembro:
Ordenação de diácono na Igreja da Apresentação

1835
13 de junho:
É ordenado sacerdote em Solsona por d. Frei João José de Tejada.

21 de junho:
Celebra a primeira missa em Sallent, sua terra natal.

1836-1839
Auxiliar e vigário paroquial na Paróquia de Santa Maria de Sallent.

1839
Setembro:
Empreende viagem a Roma para oferecer-se à Propaganda Fide, com o desejo de que o
enviem às missões.
Novembro:
Ingressa no noviciado dos jesuítas.
1840
29 de fevereiro:
Sai do noviciado por enfermidade e regressa à Espanha.

13 de maio:
É nomeado regente da paróquia de Viladrau.

15 de agosto:
Pede exoneração do cargo para dedicar-se às missões populares.

1841
23 de janeiro:
Muda-se para Vic para dedicar-se exclusivamente às missões.

9 de julho:
Recebe de Roma o titulo de “Missionário Apostólico”

1842
As circunstâncias políticas impedem-lhe de pregar as missões populares.

Junho:
É nomeado vigário de São João de Oló.

1843
Publica o Caminho Reto, o livro de piedade mais lido na Espanha no século XIX.
1º de março:
Começa uma intensa atividade missionária por toda a Catalunha.

1844
Maio:
Célebre missão em Santa Maria do Mar, em Barcelona.

Agosto:
Missões em Montanha, Vallés e La Marina.

1845
5 de março:
Funda em Mataró a Sociedade Espiritual de Maria Santíssima contra a Blasfêmia.

Setembro:
Missões nas dioceses de Solsona, Gerona e Tarragona.

Dezembro:
Começa a funcionar a Pia e Apostólica União de orações e obras boas... sob a proteção do
Coração de Maria.
1846
Fevereiro:
Em Tarragona conhece o padre José Caixal, grande colaborador da Livraria Religiosa de
Barcelona.

Maio:
Famosa missão em Lérida.

1847
3 de fevereiro:
Funda a Livraria Religiosa com os padres José Caixal e Antônio Palau.

1º de agosto:
Funda em Vic a Arquiconfraria do Coração de Maria com 10.000 associados.

Outubro:
Escreve os Estatutos da Irmandade do Santíssimo e Imaculado Coração de Maria e amantes
da humanidade obra apostólica composta por sacerdotes e leigos, homens e mulheres.

1848
6 de março:
Embarca em Cádiz para as Canárias com o bispo d. Boaventura Codina para missionar
naquelas ilhas. A palavra do missionário regenerou totalmente a fé cristã naquelas terras.

1849
Continua suas missões extraordinárias nas Canárias.
Maio: Regressa a Catalunha.

16 de julho:
Funda a Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria
(Missionários Claretianos) com os padres Estêvão Sala, Manuel Vilaró, José Xifré,
Domingos Fábregas e Jaime Clotet. No retiro inicial, Claret diz profeticamente: “Hoje se
começa uma grande obra”.

Agosto:
Funda em Vic a Irmandade da Doutrina Cristã, para ensinar o catecismo nas fábricas, nas
ruas e oficinas.

11 de agosto:
Recebe a nomeação de arcebispo de Santiago de Cuba. Pensa ser o episcopado um
obstáculo ao seu ideal missionário.

4 de outubro:
Depois de muita consulta, oração, convencido de ser a vontade de Deus, aceita a nomeação.

Publica o Catecismo da Doutrina Cristã e uma coleção de opúsculos.


1850
Dedica-se intensamente à pregação missionária.

6 de outubro:
Recebe a consagração episcopal em Vic. Acrescenta ao seu nome o de “Maria”.

20 de outubro:
Recebe o sacro pálio de arcebispo em Madri.

28 de dezembro: Embarca, com um grupo de missionários, rumo à ilha de Cuba.

1851
16 de fevereiro:
Desembarca em Santiago de Cuba.

18 de fevereiro:
Toma posse na Catedral da Arquidiocese.

2 de abril:
Inicia a primeira visita pastoral.
Junho:
Funda a Irmandade da Instrução da Doutrina Cristã

1852-1853
Dedica-se à reforma do clero, criação de paróquias, missões, propaganda.

1854
15 de fevereiro:
Funda as Caixas de Poupança nas paróquias.

1855
5 de janeiro:
Inicia uma obra social de grande alcance “Casa de Caridade ou Granja Agrícola de Porto
Príncipe” (hoje Camagüey). Escreve As delícias do campo.

12 de julho:
Termina de escrever a carta pastoral sobre a Imaculada.

25 de agosto:
Decreto de fundação das Religiosas de Maria Imaculada - Missionárias Claretianas, das
quais é fundador junto com a Madre Antônia Paris de São Pedro.

1856
1º de fevereiro:
Sofre um atentado em Holguín, sendo ferido no rosto e num braço.
1857
18 de março:
Recebe a Real Ordem de Isabel II para que regresse a Madri.

12 de abril:
Embarca de regresso à Espanha.

2 de junho:
É nomeado confessor da rainha.

Setembro-dezembro:
Exercícios ao clero, a homens e mulheres e missão em Madri

1858
Fevereiro:
Preside as reuniões das Conferências de São Vicente. Prega missões nos bairros, cárceres,
hospitais às crianças de primeira comunhão.

Maio - junho:
Viagem com a rainha por Levante.

Julho:
Viagem por Castela, Leão, Astúrias e Galícia.

1º de novembro:
Funda a Academia de São Miguel, para escritores, artistas e propagandistas e pessoas
influentes na sociedade.

1859
28 de março:
É nomeado protetor do hospital madrileno de Montserrat.

Maio:
Viagem pela Catalunha e Valência.

28 de maio:
Preside o primeiro capítulo geral da Congregação dos Missionários, fundada por ele em
1849.

9 de julho:
Consegue a aprovação civil da sua Congregação de Missionários.

5 de agosto:
É nomeado oficialmente presidente do Escorial.

1860
7 de junho:
O Senhor aprova sua obra: O Colegial ou Seminarista Instruído foi livro de formação
sacerdotal clássico em todos os seminários da Espanha durante muitos anos.

13 de julho:
Preconizado arcebispo de Trajanópolis.

Setembro-outubro:
Viagem com os reis pelas ilhas Baleares, Catalunha e Aragão.

21 de novembro:
Decreto de louvor da Congregação de Missionários dado pela Sé Apostólica.

1861
Janeiro-março:
Exercícios e missões em Madri.

Julho - agosto:
Viagem por Castela.

26 de agosto:
Na Igreja do Rosário, da Granja, recebe “a grande graça” da conservação das espécies
sacramentais.

Outubro:
Começa a escrever sua Autobiografia

1862
Maio:
Termina a redação da Autobiografia.

7-14 de julho:
Preside o segundo capítulo geral da Congregação de Missionários, em Gracia (Barcelona).

Setembro-outubro:
Importante viagem por Andaluzia e Múrcia

1863
Funda a Associação das Mães Católicas.

1864
Julho:
Preside o terceiro capítulo geral da Congregação, em Gracia (Barcelona).

8 de dezembro: Funda as bibliotecas populares e paroquiais.

1865
Janeiro-fevereiro:
Compila as Constituições da Congregação de Missionários.

15 de julho:
Isabel II reconhece o chamado “Reino da Itália”.

20 de julho:
Sai para a Catalunha, onde prega Exercícios aos missionários.

4 de novembro:
Chega a Roma e no dia 7 é recebido pelo Papa Pio IX.

23 de novembro:
Nova audiência com o Papa.

22 de dezembro:
Regressa a Madri e reassume sua missão de confessor da rainha.

1866
27 de janeiro:
Comunicação oficial da aprovação temporal da Congregação pela Santa Sé, outorgada no
dia 22 de dezembro de 1865.

Agosto-setembro:
Viagem aos Países Bascos.

Dezembro:
Viagem a Portugal. Recebe a condecoração de cavalheiro da Gran Cruz da Ordem Militar
de Nossa Senhora de Villaviciosa.

1867
Maio:
Viagem relâmpago à Extremadura, perto de Portugal.

Junho: Prega um tríduo em Burgos.

Outubro: Prega Exercícios no Escorial.

1868
22 de junho:
Isabel II aceita sua renúncia à presidência do Escorial.

Agosto-setembro:
Viagem a San Sebastián.

30 de setembro:
Juntamente com a rainha, é desterrado pela revolução.
Setembro
A revolução sacrifica o primeiro mártir claretiano, padre Francisco Crusats, em La Selva
del Camp.

Outubro:
Reside em Pau (França).

6 de novembro:
Chega a Paris. Mora no colégio das Irmãs de São José.

1869
Março:
Exercícios espirituais para emigrantes espanhóis na Igreja de São Nicolau, de Paris. Funda
as Conferências da Sagrada Família.

2 de abril:
Chega a Roma. Hospeda-se no convento mercedário de Santo Adriano.

24 de abril:
Audiência com Pio IX.

8 de dezembro:
Assiste à abertura do Concílio Vaticano I.
Publica a vida de São Pedro Nolasco, com o título O egoísmo vencido.

1870
Ocupado nos trabalhos conciliares.

31 de maio:
Pronuncia um discurso no concílio.

23 de julho:
Traslada-se a Prades (França) com os seus missionários.

6 de agosto:
Ao ser perseguido, refugia-se no mosteiro cisterciense de Frontfroide, perto de Narbona
(França).

5 de outubro:
Primeiro ataque de embolia cerebral. Vai piorando progressivamente.

24 de outubro:
Morre na paz do Senhor, rodeado por alguns missionários e pelos monges cistercienses.

27 de outubro:
Seus funerais são celebrados com muita simplicidade. Seu corpo é depositado em um
túmulo do cemitério do mosteiro, pois as autoridades civis tinham negado a licença para
enterrá-lo na igreja. Numa simples lápide são esculpidas as palavras de Gregório VII:
“Amei a justiça e odiei a iniqüidade, por isso morro no desterro”.

1887
Abre-se o processo de sua beatificação em Vic.

1897
Seus restos mortais são trasladados à Igreja das Mercês, em Vic.

1926
Pio XI proclama a heroicidade de suas virtudes.

1934
25 de fevereiro: Beatificação.

1950
7 de maio: Canonização.
PRINCIPAIS ABREVIATURAS

Aut. – Autobiografia de Santo Antônio Maria Claret. Publicada em SAN ANTONIO


MARIA CLARET, Escritos autobiográficos, ed. Preparada por José Maria Viñas e Jesús
Bermejo, BAC, Madri, 1981.

BAC – Biblioteca de Autores Cristianos (Madri).

CMF – Cordis Mariae Filius (Filho do Coração de Maria – Missionário Claretiano).

EA – Escritos Autobiográficos, BAC, Madri, 1981.

EC – Epistolário Claretiano. Epistolário de Santo Antônio Maria Claret. Edição preparada


e anotada por José Maria Gil, Madri, 1970. 2 Volumes.

HD – História Documentada da Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado


Coração de Maria, 1967, de Cristóbal Fernández cmf.

LG Lumen Gentium

LR – Livraria Religiosa, editorial fundado por Santo Antônio Maria Claret em 1848.

MR – Mutuae Relationis.

Mss.Claret – Manuscritos Claretianos: autógrafos de Santo Antônio Maria Claret (volumes


1 a 18).

PAT – Processo Apostólico de Tarragona

PAV – Processo Apostólico de Vic.

PIM – Processo Informativo de Madri

PIT – Processo Informativo de Tarragona.

PIV – Processo Informativo de Vic.

SC – Studia Claretiana. Publicação do Studium Claretianum, Roma-Vic


Orações para a leitura da Autobiografia

Oração Apostólica

Meu Senhor e meu Pai!


Que eu te conheça e te faça conhecido,
que eu te ame e te faça amado,
que eu te sirva e te faça servido,
que eu te louve e faça que todas as criaturas te louvem.
Faze, ó meu Pai, que todos os pecadores se convertam,
todos os justos perseverem na graça
e todos consigam a glória eterna. Amém.

Espírito Missionário

Renova, Senhor, em nossa família claretiana,


o espírito que animou santo Antônio Maria Claret, nosso Pai,
para que, cheios e revigorados por ele,
nos esforcemos em amar o que ele amou
e em levar à prática o que ele nos ensinou.
Por Jesus Cristo, nosso Senhor.
J.M.J.

BIOGRAFIA DO ARCEBISPO ANTÔNIO MARIA


CLARET
Aviso ao leitor

1. Padre José Xifré, superior dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria, 1
por diversas vezes me pediu, oralmente e por escrito, uma biografia de minha insignificante
pessoa. Sempre me escusei. Porém, passo a fazê-lo agora unicamente por obediência. E por
obediência também revelarei coisas que preferia fossem ignoradas; contudo, seja para a
maior glória de Deus e de Maria santíssima, minha doce mãe, 2 e para humilhação deste
mísero pecador. 3

Dividirei esta biografia em três partes

2. A primeira, compreende o que ocorreu desde meu nascimento até minha ida a Roma
(1807-1839). A segunda, refere-se ao tempo das missões (1840-1850). A terceira, ao que de
mais importante aconteceu da sagração de arcebispo em diante (1850-1862).

Primeira parte
Capítulo I
Nascimento e batismo

3. Nasci 4 em Sallent 5, comarca de Manresa, bispado de Vic, província de Barcelona.


Meus pais chamavam-se João Claret 6 e Josefa Clará. Casados, honrados e tementes a
Deus, muito devotos do Santíssimo Sacramento do Altar e de Maria Santíssima.

4. Fui batizado na pia batismal da paróquia de Santa Maria de Sallent, no dia 25 de


dezembro, dia do Natal do Senhor, do ano de 1807. Embora nos livros paroquiais conste
1808, por iniciar a contar o ano seguinte por este dia. Por esta razão meu registro é o
primeiro do livro do ano de 1808.

5. Deram-me o nome de Antônio Adjutório João. Meu padrinho, um irmão de minha mãe,
que se chamava Antônio Clará, ele quis que me chamasse pelo seu nome de Antônio.
Minha madrinha, irmã de meu pai, que se chamava Maria Claret, casada com Adjutório
Canudas, me pôs o nome de seu marido. O terceiro nome é João, que é o do meu pai.
Depois, por amor à Virgem Santíssima, acrescentei o dulcíssimo nome de Maria 7, porque
ela é minha mãe, minha madrinha, minha mestra, minha diretora e meu tudo, depois de
Jesus. Assim, meu nome é Antônio Maria Adjutório João Claret e Clará.
6. Somos onze irmãos: seis homens e cinco mulheres, que enumerarei por ordem, citando o
ano em que nasceram.
1º Rosa, nascida em 1800, casada, viúva hoje, muito trabalhadeira, honrada e piedosa; foi a
que mais me dedicou carinho; 8
2º Mariana, nascida em 1802, morreu aos dois anos;
3º João, nascido em 1804, herdeiro de todos os bens da família; 9
4º Bartolomeu, nascido em 1806, morto aos dois anos;
5º Eu próprio, nascido em 1807 ( = 1808);
6º Uma irmã, nascida em 1809, falecida após o nascimento;
7º José, nascido em l810, casado; teve duas filhas, que se tornaram Irmãs de Caridade ou
Terciárias; 10
8º Pedro, nascido em 1813, falecido aos quatro anos;
9º Maria, nascida em 1815, tornou-se Irmã Terciária; 11
10º Francisca, nascida em 1820, falecida aos três anos;
11º Manuel, nascido em 1823, morreu aos treze anos, após os estudos de Humanidades em
Vic. 12

Capítulo II
Primeira infância

7. A Providência Divina sempre velou sobre mim de um modo singular, como se verá neste
e em outros casos que relatarei. Minha mãe sempre criou sozinha seus filhos, mas a mim
não lhe foi possível, porque lhe faltava saúde. Por isso me confiou a uma ama-de-leite da
mesma cidade, com a qual permanecia dia e noite 13. O dono da casa fez uma escavação
muito profunda, a fim de ampliar a loja. Uma noite em que eu não estava lá, em
conseqüência da escavação, os alicerces cederam, trincaram-se as paredes e a casa desabou.
Morreram, soterrados pelos escombros, minha ama-de-leite e seus quatro filhos. E, caso lá
me encontrasse, teria tido a mesma sorte dos demais. Bendita seja a Providência de Deus! E
quantas graças devo dar a Maria santíssima que, desde pequeno, preservou-me da morte e
me livrou de outros apuros. Ó, como sou ingrato!...

8. As primeiras idéias que guardo na memória são de quando tinha uns cinco anos. Quando
deitado, em vez de dormir, pois sempre fui de dormir pouco, pensava na eternidade.
Pensava: Sempre, sempre, sempre. Imaginava distâncias enormes. A elas juntava outras e
mais outras. E, ao ver que não alcançava o fim, me arrepiava e pensava: Os que tiverem a
desgraça de ir para a eternidade de sofrimentos será que jamais deixarão de sofrer? Sofrerão
sempre? Sim, sempre, sempre terão que sofrer. 14.

9. Tudo isto me causava uma profunda pena, porque eu, por natureza, sou muito
compassivo. Essa idéia da eternidade de sofrimentos ficou tão gravada em mim, seja pela
ternura que despertou, seja pelas muitas vezes que pensei nela, por isso é o que mais tenho
presente. Este mesmo pensamento é o que mais me fez, me faz e me fará trabalhar,
enquanto viver, pela conversão dos pecadores, no púlpito, no confessionário, por meio de
livros, estampas, folhas avulsas, conversas familiares, etc., etc.
10. Conforme já disse, a razão disso é porque tenho um coração tão terno e compassivo que
não posso ver uma desgraça ou uma miséria, que não a socorra; tiro o pão da minha boca
para dá-lo ao pobrezinho e até deixo de alimentar-me para tê-lo e dá-lo quando alguém o
pede. Tenho escrúpulo de gastar para mim, quando lembro que existem tantas necessidades
para remediar. Pois bem, se estas misérias corporais e momentâneas me afetam tanto,
imaginem o que produzirá em meu coração o pensar na condenação eterna, não para mim e
sim para os demais que voluntariamente vivem em pecado mortal.

11. Eu me digo muitas vezes: A fé nos diz que existe o céu para os bons e inferno para os
maus, e que as penas do inferno são eternas; que basta um único pecado mortal para
condenar uma alma, pela malícia infinita que tem o pecado mortal, pela ofensa a um Deus
infinito. Considerando esses princípios certíssimos, ao ver a facilidade com que se peca, tal
como se bebe um copo de água, como se ri ou se diverte; ao ver a multidão de pessoas que
estão continuamente em pecado mortal e que assim vão caminhando para a morte e para o
inferno, não posso repousar; tenho de correr e gritar, e então digo a mim mesmo:

12. Se eu visse alguém prestes a cair num poço ou numa fogueira, garanto que correria e
gritaria para avisá-lo e afastá-lo do perigo. Por que não farei a mesma coisa para evitar que
caia no poço e na fogueira do inferno?

13. Não posso compreender como os outros sacerdotes que crêem nas mesmas verdades
que eu creio e que todos devem crer, não pregam nem exortam para preservar as pessoas de
caírem no inferno. 15

14. E ainda admiro como os leigos, homens e mulheres, que têm fé, não gritam. E digo a
mim mesmo: Se uma casa pegar fogo e, por ser noite e por estarem todos dormindo e não
virem o perigo, porventura o primeiro que percebesse, não avisaria, não correria pelas ruas,
gritando: Fogo! Fogo, em tal casa? Por que então não gritar: fogo do inferno! para acordar a
tantos que vivem presos na letargia do pecado, sabendo que, ao despertarem, estarão
ardendo no fogo do inferno? 16

15. Essa idéia da eternidade infeliz 17, que muito vivamente começou em mim aos cinco
anos, tenho-a sempre presente e, com a ajuda de Deus, jamais a esquecerei; ela é a mola
propulsora de meu zelo pela salvação das almas.

16. Com o passar do tempo, a esse estímulo se juntou um outro, que depois explicarei: o de
pensar que o pecado não só condena meu próximo, mas que é, acima de tudo, uma ofensa a
Deus, que é meu Pai. 18 Ah! Esta idéia me corta o coração e me faz correr como... E me
digo: se um pecado é de uma malícia infinita, o impedir um pecado é impedir uma injúria
infinita ao meu Deus, ao meu bom Pai.

17. Se um filho tivesse um pai muito bom e visse que, sem motivo, o maltratam, não o
defenderia? Se o visse sendo levado ao suplício, não envidaria todos os esforços para
libertá-lo? Pois, que devo fazer para honra de meu Pai, que é tão facilmente ofendido e,
inocente, levado ao calvário para ser novamente crucificado pelo pecador, como diz São
Paulo? Calar não seria um crime? Não se esforçar ao máximo não seria...? Ó meu Deus! Ó
meu Pai! Dai-me força para impedir todos os pecados, pelo menos um, mesmo que por
causa disso me façam em pedaços.

Capítulo III
Primeiras inclinações

18. Para maior confusão minha, direi as palavras do autor do Livro da Sabedoria: Era um
menino vigoroso, dotado de uma alma excelente (Sb 8,19). Quer dizer: recebi de Deus, por
puro ato de sua bondade, uma boa índole. 19

19. Lembro-me que na guerra da independência, que durou do ano 1808 a 1814, o medo
que os habitantes de Sallent tinham dos franceses era grande, e com razão, pois estes
haviam incendiado a cidade de Manresa e o povoado de Calders, próximo a Sallent. 20
Todos fugiam quando chegava a notícia de que o exército francês estava próximo. As
primeiras vezes que fugi, lembro-me que me levavam nos ombros, porém as últimas, tinha
quatro ou cinco anos e já andava, dava a mão a meu avô, João Clará, pai de minha mãe, 21
e, como era de noite e tinha a visão fraca, advertia-o dos obstáculos com muita paciência e
carinho. O pobre velho ficava muito consolado ao ver que não o deixava nem fugia com os
demais irmãos e primos, que nos deixavam sozinhos. E sempre lhe professei muito amor e
carinho até sua morte; e não somente a ele, mas a todos os idosos e impossibilitados.

20. Não suportava que alguém zombasse de algum idoso, como é comum acontecer entre os
jovens. Lembrava o castigo exemplar de Deus aos que zombavam de Eliseu. 22 Lembro-me
que na igreja, sempre que chegava um idoso, se eu estivesse sentado, levantava-me e, com
muito gosto, cedia meu lugar; na rua sempre os cumprimentava; quando tinha a
oportunidade de conversar com algum deles, era para mim a maior satisfação. Queira Deus
que eu tenha aproveitado bem os conselhos que os idosos me davam... 23

21. Ó meu Deus, como sois bom! Como sois rico em misericórdia para comigo! Oh! Se
tivésseis dado a outro as graças que a mim destes, este teria correspondido melhor que eu!
Piedade, Senhor, pois a partir de agora começarei a ser bom, ajudado por vossa divina
graça!

Capítulo IV
Primeira educação

22. Tinha somente seis anos de idade quando meus queridos pais me mandaram à escola.
Meu professor de primeiras letras foi o padre Antônio Pascual, 24 homem muito ativo e
religioso; nunca me castigou nem repreendeu. Também procurava não lhe dar motivo para
isso; eu era sempre pontual, assistia sempre às aulas, levando as lições sempre bem
estudadas.

23. Aprendi o catecismo com tanta perfeição que o recitava sempre que queria, do início ao
fim, sem nenhum erro. Outros três meninos também o aprenderam; o catequista nos
apresentou ao pároco, padre José Amigó, 25 que fez os quatro recitarem o catecismo em
dois domingos seguidos. Na igreja, na presença do povo, nós o recitamos sem nenhum erro.
Como prêmio deu a cada um de nós um bonito santinho que guardamos com carinho.

24. Depois de ter aprendido bem o catecismo, mandou-me ler Pinton, Compêndio da
História Sagrada. 26 Suas passagens me ficaram tão impressas na memória, que depois as
contava com tranqüilidade.

25. Meus pais eram muito bons, juntamente com o professor de primeiras letras,
trabalharam na minha formação intelectual baseada no amor à verdade, cultivavam também
em meu coração a prática da religião e de todas as virtudes. Meu pai, todos os dias, depois
do almoço, me fazia ler um livro espiritual e à noite ficávamos um tempo juntos, à mesa;
ele sempre nos contava alguma coisa edificante e instrutiva, até a hora de dormir.

26. Tudo que me ensinavam e explicavam meus pais e meu professor eu o entendia
perfeitamente, mesmo sendo muito criança; o que não entendia era o diálogo do catecismo,
que o recitava muito bem, mas como um papagaio. Contudo, reconheço agora o bom que é
sabê-lo de cor. Mais tarde, sem saber como, sem falar daquelas matérias, vinham-me à
mente e compreendia as grandes verdades que eu dizia e recitava sem entendê-las, e me
dizia: Oba! Isto quer dizer isto e isto! Como era ingênuo e não entendia. Do mesmo modo
que os botões das rosas que com o tempo se abrem e, se não há botões, não podem existir
rosas, assim são as verdades da religião: se não houver instrução através do catecismo,
haverá ignorância completa em matéria de religião, mesmo nos homens que se passam por
sábios. Quanto me serviu a instrução do catecismo e os conselhos e ensinamentos dos meus
pais e professores...!

27. Um dia, estando sozinho na cidade de Barcelona, como direi oportunamente, ao ver e
ouvir coisas más, lembrava-me do que aprendera e dizia: Isso é mau, deves evitá-lo. Deves
antes dar crédito a Deus, aos pais e ao professor e não a esses infelizes que não sabem o que
dizem nem o que fazem.

28. Meus pais e meu professor me instruíram, não só nas verdades em que devia crer, mas
também nas virtudes que devia praticar. Com respeito ao meu próximo, diziam-me que
nunca deveria desejar ou pegar o que é de outrem. Quando encontrava algo, faziam-me
devolver ao seu dono. Um dia, ao sair da escola, na rua da minha casa, encontrei no chão
uma moeda de pouco valor, peguei-a pensando em devolvê-la ao dono e, não vendo
ninguém na rua, pensei que tivesse caído de algum balcão da casa em frente; subi à casa,
perguntei pela dono da casa e entreguei-lhe a moeda. 27

29. Educaram-me de tal maneira na obediência e resignação que sempre estava contente
com o que eles me faziam, dispunham e me davam, tanto no vestir como na alimentação.
Não me recordo ter dito alguma vez: Não quero isto, quero aquilo! E estava tão acostumado
que, depois quando sacerdote, minha mãe, que sempre me amou muito, me dizia: Antônio,
gostas disto? Eu lhe dizia: O que a senhora me dá, sempre eu gosto. - Porém, sempre há
coisas que apreciamos mais que outras. - As que a senhora me dá são as de que eu gosto,
mais que todas. Assim morreu sem saber o que materialmente me agradava mais. 28
Capítulo V
Trabalho na fábrica

30. Eu era pequeno, quando ainda estava na fase de alfabetização, ocasião em que um
inspetor, ao visitar a escola, me perguntou o que gostaria de ser. Respondi-lhe que desejava
ser sacerdote. 29 Tendo terminando com perfeição o primário, puseram-me nas aulas de
Latim. O professor era um sacerdote muito bom e sábio, chamado João Riera. 30 Com ele
aprendi ou decorei nomes, verbos, gêneros e alguma coisa mais. Como as aulas foram
encerradas, não pude estudar mais o Latim e fiquei assim.

31. Como meu pai era fabricante de fios e tecidos, colocou-me na fábrica para trabalhar. 31
Obedeci sem dizer uma palavra, sem fazer cara feia e sem manifestar contrariedade. Pus-
me a trabalhar o quanto podia, sem ter jamais manifestado preguiça ou má vontade. 32
Fazia tudo da melhor forma que sabia para não causar aborrecimento em nada a meus
queridos pais, pois os amava muito e eles também a mim.

32. O sofrimento maior era quando meus pais tinham que repreender algum funcionário que
não tinha executado bem o seu trabalho. Estou certo de que sofria muito mais do que o
repreendido, pois tenho um coração tão sensível que, ao presenciar o sofrimento de alguém,
fico profundamente condoído, mais do que a própria pessoa que sofre.

33. Meu pai fez-me passar por todos os tipos de trabalhos da fábrica de fios e tecidos. Por
uma longa temporada, colocou-me, juntamente com outro jovem, para dar a última demão
aos trabalhos que os demais faziam. Quando tínhamos de corrigir alguém, dava-me muita
pena; contudo, antes observava se havia no trabalho executado, alguma coisa que estivesse
bem-feita. Então eu começava por este detalhe e o elogiava, dizendo que tal obra estava
bem feita, só que tinha este e aquele defeito, mas que, uma vez corrigidos esses senões,
teríamos uma obra perfeita.

34. Eu agia assim sem saber o porquê. Com o tempo, soube que era por uma especial graça
e bênção de amabilidade que o Senhor me concedera. Assim os trabalhadores sempre
recebiam com humildade a correção e se emendavam. O outro companheiro, melhor que
eu, mas que não possuía o mesmo espírito de amabilidade, quando tinha que corrigir,
incomodava-se, repreendia-os com aspereza, eles ficavam aborrecidos e às vezes nem
sabiam em que haviam de emendar-se. Ali aprendi o quanto convém tratar a todos com
amabilidade e agrado, mesmo os mais rudes! E é verdade que se tira melhor vantagem
agindo com doçura do que com aspereza e mau humor. 33

35. Ó Deus meu! Como tendes sido bom para comigo! Levei muito tempo até conhecer as
muitas e grandes graças que me confiastes. 34 Fui servo inútil, que não fiz crescer o talento
a mim confiado. Porém, Senhor, dou-vos minha palavra que trabalharei; tende um pouco de
paciência comigo; não me retireis o talento; eu o farei render; dai-me vossa graça e vosso
divino amor, e prometo que trabalharei.
Capítulo VI
Primeiras devoções

36. Desde muito pequeno, me senti inclinado à piedade e à religião. Todos os dias de festa e
de preceito participava da santa missa e nos demais dias sempre que podia. Comumente,
nos dias festivos participava de duas missas: uma rezada e outra cantada. A esta, ia sempre
com meu querido pai. Não me recordo de ter brincado ou conversado na igreja. Antes, pelo
contrário, estava sempre bem recolhido, modesto e tão devoto que, comparando meus
primeiros anos com os dias de hoje, me envergonho, pois com grande humilhação digo que
atualmente não tenho a mesma atenção e o coração tão fervoroso como tinha então...

37. Com que fé participava de todas as celebrações de nossa santa religião! As que mais me
agradavam eram as do Santíssimo Sacramento. Nessas, eu participava com uma devoção
extraordinária e grande satisfação interior. 35 Além do bom exemplo que em tudo me dava
meu querido pai, que era devotíssimo do Santíssimo Sacramento, tive a sorte de que viesse
parar em minhas mãos um livro com o título Finezas de Jesus Sacramentado. Como gostei
dele! Aprendia-o de memória, tamanha a afeição por ele. 36

38. Aos dez anos, deixaram-me comungar. Não consigo explicar o que se passou comigo
naquele dia em que tive a imponderável felicidade de receber pela primeira vez, em meu
peito, o meu bom Jesus… E, desde então, sempre mais freqüentei os santos sacramentos da
penitência e comunhão. Porém, com que fervor, com que devoção e amor! Mais que agora,
sim, mais que agora, digo-o com humilhação e vergonha. Agora que tenho mais
conhecimentos que então, agora que assimilei uma imensidão de benefícios recebidos desde
aqueles primeiros dias, por graça deveria ser um Serafim de amor divino, no entanto sou o
que Deus sabe. Quando comparo meus primeiros anos com os dias presentes, me entristeço
e choro e confesso que sou um monstro de ingratidão.

39. Além da santa missa, da comunhão freqüente e das celebrações do Santíssimo


Sacramento, das quais participava com tanto fervor pela bondade e misericórdia de Deus,
assistia também todos os domingos, sem faltar nenhum dia, mesmo que fosse de festa, ao
catecismo e à explicação do santo evangelho, ministrado pelo próprio pároco. Esses
exercícios terminavam à tarde com a oração do santíssimo rosário.

40. Participava das celebrações de manhã e à tarde. Ao anoitecer, quando já não havia
ninguém na igreja, eu para lá voltava e sozinho me entretinha com o Senhor. Com que fé,
confiança e amor falava eu com o Senhor, com meu bom Pai! Oferecia-me mil vezes a seu
santo serviço, desejava ser sacerdote para consagrar-me dia e noite ao seu ministério.
Recordo-me que lhe dizia: Humanamente não vejo nenhuma esperança, porém vós sois tão
poderoso que, se quiserdes, arranjareis tudo. Lembro-me de que com toda confiança me
abandonei em suas divinas mãos, esperando que ele dispusesse o que deveria ser feito. E
assim foi, como direi mais adiante. 37

41. Também veio parar em minhas mãos um pequeno livro chamado O Bom Dia e a Boa
Noite. 38 Oh! Quão proveitosa me foi a leitura desse livro! Após a leitura de cada pequeno
trecho, apertava-o contra o peito, levantava os olhos rasos de lágrimas ao céu e exclamava
dizendo: Ó Senhor, que coisas tão boas eu ignorava! Ó Deus meu! Ó Amor meu! Quisera
sempre vos ter amado!

42. Ao considerar os grandes benefícios recebidos através da leitura de bons e piedosos


livros, razão pela qual procuro distribuir em grande profusão livros desse estilo, esperando
que meu próximo, a quem tanto amo, alcance tantos benefícios quanto eu na sua leitura.
Quem me dera que todas as almas conhecessem a bondade de Deus e o quanto nos ama! Ó
Deus meu, fazei que todas as criaturas vos conheçam, vos amem e vos sirvam com toda
fidelidade e fervor! Ó criaturas todas, amai a Deus, porque é bom, porque é infinita sua
misericórdia... 39

Capítulo VII
Primeira devoção a Maria santíssima

43. Já na minha infância e juventude, professava uma cordial devoção a Maria santíssima.
Oxalá tivesse agora a devoção de então! Valendo-me da comparação de Rodríguez, 40 sou
como aqueles criados velhos das casas dos grandes que quase não servem para nada,
considerados como trastes inúteis, conservados na casa mais por compaixão e caridade que
pela utilidade de seus serviços. Assim sou eu no serviço da rainha dos céus e da terra: por
pura caridade e misericórdia me agüenta e, para que se veja que é verdade, sem exagero,
para humilhação minha, direi o que fazia em obséquio a Maria santíssima.

44. Ainda pequeno, deram-me um rosário, que agradeci muitíssimo, como se recebesse um
grande tesouro. Com ele rezava, junto com as demais crianças da escola. Ao sair das aulas,
à tarde, formando duas filas, íamos à igreja próxima, e todos juntos rezávamos uma parte
do rosário, dirigida pelo professor. 41

45. Ainda criança, encontrei em minha casa um livro que se intitulava El Roser, o Rosário.
Nele estavam os mistérios do rosário com desenhos e explicações análogas. 42 Aprendi
com aquele livro a rezar o rosário, com seus mistérios, ladainhas e outras orações. Quando
o professor tomou conhecimento disto, ficou contentíssimo e colocou-me a seu lado na
igreja para que eu dirigisse o rosário. Os demais meninos, ao ver que com isso agradava o
professor, o aprenderam também e, a partir daí, íamos alternando por semanas, de modo
que todos aprendiam e praticavam esta santíssima devoção que, depois da missa, é a mais
proveitosa.

46. Daí por diante, rezava, não só na igreja, mas também em casa todas as noites, conforme
dispunham meus pais. Concluída a primeira alfabetização e com trabalho fixo na fabrica,
como disse no capítulo quinto, diariamente rezava três partes e também rezavam comigo os
demais trabalhadores. Eu dirigia e eles respondiam, enquanto trabalhavam. Rezávamos uma
parte às oito, antes do café da manhã, outra antes das doze, hora do almoço, e outra antes
das nove da noite, hora do jantar.

47. Além de rezar o rosário nos dias de trabalho, rezava também uma Ave-Maria a cada
hora do dia e a oração do Angelus Domini (O Anjo do Senhor) em sua devida hora. Nos
dias de festa passava mais tempo na igreja do que em casa, porque quase não brincava com
as demais crianças. Entretinha-me em casa e, enquanto estava assim, inocentemente
entretido em algo, parecia ouvir uma voz; era a Virgem que me chamava para que fosse à
igreja, e eu dizia: Já vou, e ia logo.

48. Nunca me cansava de estar na igreja diante de Maria do Rosário. Falava e rezava com
tanta confiança com a convicção de que a santíssima virgem me ouvia. 43 Tinha a
impressão de que da imagem, diante da qual orava, existia como que um fio de ligação até a
original, que está no céu. Sem ter visto naquela idade o telégrafo elétrico, eu imaginava
como se existisse um telégrafo daquela imagem até o céu. Não sei explicar, mas orava com
mais atenção, fervor e devoção do que agora.

49. Amiúde, desde pequeno, acompanhado de minha irmã Rosa, que era muito devota, ia
visitar um santuário de Maria santíssima, chamado Fusimanha, distante aproximadamente
seis quilômetros de minha casa. Difícil explicar a devoção que sentia nesse santuário.
Avistando a capela ao longe, antes de lá chegar, sentia-me comovido, meus olhos enchiam-
se de lágrimas de ternura. Tomávamos o Rosário e íamos rezando até chegar ao local.
Visitei essa devota imagem de Fusimanha sempre que me foi possível, não somente quando
criança, mas também como estudante, sacerdote e como arcebispo, antes de ir à minha
diocese. 44

50. Meu maior prazer era trabalhar, rezar, ler e pensar em Jesus e em Maria santíssima. Por
isso gostava muito de guardar silêncio. Falava muito pouco. Comprazia-me estar sozinho
para não ser incomodado nos meus pensamentos. 45 Sempre estava contente e alegre. Vivia
em paz com todos. Jamais briguei, nem tive rixas com ninguém, nem de criança nem como
adulto.

51. Enquanto estava muito alegre e ocupado com estes santos pensamentos, eis que, de
repente, tive uma tentação das mais terríveis e blasfemas contra Maria santíssima. Foi o
maior sofrimento de minha vida. Lutava com todas as forças para livrar-me dela. Preferia
estar no inferno para que se afastasse. Não comia, nem dormia, nem podia olhar para sua
imagem. Quanto sofrer! Confessava-me, mas como era muito jovem, não sabia explicar-
me. O confessor passou a não dar importância alguma ao fato, e eu continuava no mesmo
sofrimento. Ó que amargura! A tentação durou até que o Senhor se dignou livrar-me dela.
46

52. Posteriormente, tive outra tentação, esta contra minha mãe, que me amava muito e eu
também a ela. Apoderou-se de mim muito ódio, imensa aversão contra ela. Eu, porém,
procurava tratá-la com carinho e humildade, para poder vencer semelhante tentação.
Lembro-me que ao contar ao diretor espiritual a tentação que sofria e o que fazia para
vencê-la e superá-la, perguntou-me: Quem te disse que praticasse essas coisas? Respondi-
lhe: Ninguém, senhor. Então me respondeu: É Deus quem te ensina, filho; avante, sê fiel à
graça.

53. Diante de mim, meus companheiros não se atreviam a falar palavrões nem manter
conversas maliciosas. Certa vez, por acaso, encontrava-me numa reunião de jovens, pois
geralmente eu me afastava de tais rodinhas, porque conhecia a linguagem que se usa em
tais ambientes. Foi aí que um dos jovens mais velhos me disse: Antônio, afasta-te de nós,
pois queremos falar besteiras. Agradeci-lhes pelo aviso e fui embora sem jamais voltar a
procurá-los.

54. Ó meu Deus! Como tendes sido bom para comigo! Oh! Como tenho correspondido mal
às vossas finezas! Se Vós, Deus meu, tivésseis dado essas graças a outro qualquer, teria
correspondido muito melhor que eu. Que humilhação, que vergonha, no dia do juízo,
quando me disserdes: Redde rationem villicationis tuae? (Presta conta de tua
administração). 47

55. Ó Maria, minha mãe! Quanta bondade tendes tido para comigo e quão ingrato sou para
convosco! Sinto-me confuso e envergonhado: Minha mãe, desejo amar-vos daqui para
diante com todo fervor; e não só eu vos amarei, mas procurarei fazer que todos vos
conheçam, vos amem, vos sirvam, vos louvem, rezem o santíssimo rosário, devoção que
vos é tão agradável. Ó minha mãe! Ajudai-me na minha debilidade e fraqueza, a fim de
cumprir minha resolução.

Capítulo VIII
Mudança para Barcelona

56. Desejoso de progredir nos conhecimentos da arte têxtil, pedi a meu pai que me enviasse
para Barcelona. 48 Meu pai concordou, acompanhou-me até lá. Eu mesmo, a exemplo de
São Paulo, ganhava com minhas próprias mãos o que necessitava para minha alimentação,
vestuário, livros e para pagar os estudos, etc. A primeira coisa que eu fiz foi apresentar uma
solicitação à direção da Casa Lonja a fim de ser admitido nas aulas de desenho; consegui e
aproveitei bastante. 49 Quem diria, o desenho que aprendia para a arte têxtil, Deus queria
que o usasse para a religião! Na verdade, muito me tem servido para ilustrar o catecismo e
assuntos místicos.

57. Além do desenho, comecei a estudar gramática castelhana e francesa, orientando todos
os estudos para o objetivo de progredir no comércio e na fabricação.

58. De tudo que já estudei e de tudo a que me dediquei durante a vida, nada assimilei tão
bem como a arte têxtil. Na casa em que trabalhava, havia livros de amostras que a cada ano
eram publicados em Paris e Londres, e adquiridos para estarem atualizados.50 Deus me
dera tanta inteligência nessa arte que, ao analisar uma amostra qualquer, no mesmo instante
armava o tear com os traços desejados, conseguindo o mesmíssimo resultado; e mais: se o
dono preferisse, fazia outros ainda melhores.

59. No princípio, senti certa dificuldade. Porém, com aplicação dia enoite, tanto em dia de
trabalho como em dia de festa, (no que era permitido, como estudar, escrever e desenhar),
daí tirei muito proveito. Oxalá me tivesse aplicado assim à virtude. Como seria outra
pessoa! Quando depois de muitas tentativas acertava a decomposição e composição da
amostra, sentia uma alegria tão grande, tal satisfação que andava pela casa como louco de
contente. Tudo isso aprendi sem professor; antes, pelo contrário, ocultavam-me o processo,
em vez de me ensinarem o modo de entender as amostras e sua reprodução.
60. Certa vez, perguntei ao gerente da fábrica como se poderia reproduzir a amostra que
tínhamos em mãos, se desta ou daquela maneira. Ele pegou o lápis e determinou a
composição do tear.Silenciei e lhe disse apenas que não levasse a mal, mas estudaria em
casa a amostra e o esquema que traçara. Poucos dias depois, apresentei-lhe o desenho do
esquema necessário para realizar a amostra, fazendo-o notar, simultaneamente, que o
esquema que ele traçara não teria como resultado a produção da amostra, mas outra coisa
que lhe indiquei. O gerente ficou admirado ao ver os desenhos e ao ouvir as razões e
explicações. 51

61. Depois desse dia, valorizou-me muito. Levava-me a passeio junto com seus filhos.
Realmente, muito me ajudaram sua amizade, suas orientações e seus princípios, pois, além
de ser homem bastante instruído, era esposo fiel, bom pai de família, bom cristão, um
monarquista por princípios e convicções. Muito me ajudaram também as lições dadas por
esse senhor, pois em Sallent, minha cidade, até o arque se respirava era constitucional. 52

62. Com relação à fabricação, não só saí bastante habilidoso no domínio das amostras,
como disse, mas também bastante prático na composição do esquema do tear. Assim,
alguns trabalhadores pediam-me o favor de lhes preparar o tear, pois não conseguiam
acertá-lo. Eu os atendia com alegria, por isso me respeitavam e me queriam muito bem.

63. A fama da habilidade para a arte têxtil que o Senhor me dera espalhou-se por toda a
Barcelona. Daí é que alguns senhores chamaram meu pai e lhe apresentaram o plano de
formarmos uma sociedade e instalarmos uma fábrica por nossa conta. Essa idéia agradou
muitíssimo a meu pai, pois seria uma oportunidade para desenvolver a fábrica que já
possuía. Falou-me das vantagens que disso resultaria e a fortuna que me esperava.

64. Porém, como são inescrutáveis os juízos de Deus! Mesmo estando tão entusiasmado
com a fabricação e, mesmo tendo feito muito progresso, não consegui decidir-me. Sentia
interiormente uma repugnância em fixar-me e fazer com que meu pai assumisse
compromissos. Disse-lhe que me parecia um tanto cedo para tal empenho, pois eu era muito
jovem.Além do mais, sendo de baixa estatura, os trabalhadores não me respeitariam.
Respondeu-me que não me preocupasse com isso, pois outro governaria os trabalhadores;
eu teria que me ocupar somente da parte diretiva da fabricação... Também me escusei,
dizendo que depois veríamos, que no momento não me sentia inclinado. Na verdade isto foi
providencial. Francamente, eu nunca me opus aos desígnios de meu pai. Esta foi a primeira
vez em que eu não fiz a sua vontade; e foi porque a vontade de Deus queria outra coisa de
mim: queria que eu fosse sacerdote e não fabricante, embora nessa época não tivesse idéia
clara de tal chamado. 53

65. Nesse momento da minha vida, cumpriu-se em mim aquela passagem do Evangelho na
qual os espinhos sufocaram o bom trigo. 54 O contínuo pensar nas máquinas, nos teares e
nas composições me deixava tão absorto que não conseguia pensar em outra coisa. Ó meu
Deus, quanta paciência tivestes para comigo! Ó virgem Maria, até mesmo de vós havia
momentos em que me esquecia! Misericórdia, minha mãe!
Capítulo IX
Motivos para deixar a fabricação.

66. Nos três primeiros anos em que estive em Barcelona, esfriou muito em mim o fervor
espiritual que sentia quando estava em minha terra natal. 55 É verdade que recebia os
santos sacramentos algumas vezes ao ano, que todos os dias de festa e de preceito
participava da missa e diariamente rezava a Maria santíssima o santo rosário e algumas
outras devoções; porém não eram tantas nem tão fervorosas como antes. Todo o meu
objetivo, todo o meu afã era a arte têxtil. Por mais que o diga, não o salientarei bastante; era
um delírio o que eu sentia pela fabricação. E quem haveria de dizer que essa afeição tão
extremada era o meio de que Deus se havia de valer para arrancar-me do amor à
fabricação?

67. Nos últimos tempos de Barcelona, tal era minha afeição à arte têxtil que, ao participar
da santa missa nos dias de festa e preceito, fazia um grande esforço para afastar estes
pensamentos. Mesmo sentindo prazer em pensar e falar sobre a fabricação, não queria que
isso acontecesse durante a missa e demais devoções. Procurava afastar os pensamentos,
prometia a mim mesmo que depois me ocuparia disso e que no momento queria pensar na
oração. Meus esforços eram inúteis. Era como tentar parar de repente uma roda em alta
velocidade. Durante a missa, para meu maior tormento, surgiam idéias novas, descobertas,
etc. De tal modo que, durante a celebração, tinha mais máquinas na minha cabeça do que
santos no altar. 56

68. Em meio a esta barafunda de coisas, enquanto participava da santa missa, lembrei-me
de ter lido quando pequeno aquelas palavras do Evangelho: Que servirá a um homem
ganhar o mundo inteiro, se vier a prejudicar a sua vida? 57 Esta frase causou-me profunda
impressão; foi para mim uma seta que me feriu o coração. Eu pensava e refletia sobre o que
haveria de fazer, porém não acertava.

69. Encontrei-me como Saulo a caminho de Damasco. Faltava-me um Ananias que me


dissesse o que devia fazer. Procurei o irmão Paulo 58 na“Casa de San Felipe Néri”; relatei-
lhe minha situação. Ele escutou-me com muita paciência e caridade e disse-me com toda
humildade: Meu senhor, sou um simples irmão leigo; não sou eu quem há de aconselhá-lo;
eu o acompanharei a um padre bastante sábio e muito virtuoso e ele lhe dirá o que deve
fazer. Apresentou-me então ao padre Amigó! Este ouviu-me e louvou minha resolução.
Aconselhou-me que estudasse Latim e eu obedeci. 59

70. Despertaram em mim os fervores de piedade e devoção, abri os olhos, e me certifiquei


dos perigos corporais e espirituais pelos quais passara. Relatarei brevemente alguns. 60

71. Naquele último verão, a santíssima Virgem preservou-me do afogamento no mar. Como
trabalhava muito, no verão passava muito mal.Perdia completamente o apetite. Encontrava
algum alívio indo ao mar: lavava os pés, tomava alguns goles de água. Certo dia, fui ao Mar
Velho, depois da Barceloneta. Estando na praia, o mar de repente se agitou e uma série de
grandes ondas me carregou; sem esperar, estava mar adentro. Fiquei admirado ao ver-me
flutuando sobre as ondas, mesmo sem saber nadar. Depois de invocar Maria santíssima,
encontrei-me novamente na praia, sem que em minha boca tivesse entrado uma gota de
água sequer. Enquanto estava na água sentia a maior serenidade; depois, ao encontrar-me
na praia, horripilava-me ao pensar no perigo de que havia escapado por intercessão de
Maria santíssima. 61

72. Maria santíssima me livrou também de outro perigo ainda maior, semelhante ao do
casto José. Encontrando-me em Barcelona, ia alguma vez visitar um conterrâneo meu. Não
falava com ninguém da casa a não ser com ele. Ao chegar, dirigia-me ao seu quarto e
conversava unicamente com ele. Porém, viam-me sempre entrar e sair. Eu era então
jovenzinho e, se bem é verdade que eu mesmo ganhava minha roupa, gostava de vestir, não
digo com luxo, mas sim com bastante elegância, talvez demasiada. Será que Deus me
pedirá conta disso no dia do juízo? Um dia, fui à mesma casa e perguntei pelo amigo. A
dona da casa, que era uma senhora jovem, disse-me que o esperasse, pois estava para
chegar. Esperei um pouco e logo percebi a paixão daquela senhora, que se manifestou com
palavras e ações. Eu, depois de invocar Maria santíssima, e lutando com todas as minhas
forças, escapei de seus braços, saí correndo da casa sem nunca mais voltar e sem dizer a
ninguém o que havia ocorrido, a fim de não prejudicar sua honra. 62

73. Deus dava-me todos esses golpes para me despertar e livrar-me de todos os perigos do
mundo; porém foi preciso ainda um outro mais forte. Aconteceu o seguinte: Um jovem de
minha idade convidou-me para que abríssemos um negócio em sociedade. Concordei com a
proposta.Iniciamos com investimentos na loteria. 63 Tínhamos bastante sorte.Como eu
estava sempre tão ocupado, podia apenas ser o depositário. Ele adquiria os bilhetes e eu os
guardava. No dia do sorteio eu lhe entregava os bilhetes e ele me dizia quanto havíamos
ganhado. E como tínhamos muitos bilhetes, em cada jogada, ganhávamos somas
consideráveis. Separávamos o que era necessário para comprar mais bilhetes e o restante
era colocado a juros nas mãos de comerciantes, as eis por cento, com os recibos
correspondentes. Eu guardava os recibos. Tudo o mais corria por conta do meu
companheiro.

74. Já eram muitos os recibos e a soma era considerável. E eis que, certo dia, veio dizer-me
que um de nossos bilhetes fora premiado com 24.000 duros, mas que, quando ia fazer a
cobrança, perdera o bilhete.E falava a verdade ao dizer que o havia perdido, pois o colocara
no jogo e o perdera. E não só perdeu aquele bilhete, mas também foi ao meu quarto, na
minha ausência, arrombou o meu cofre e levou consigo todos os recibos da sociedade, que
estavam ali guardados. Além disso, carregou todo o meu dinheiro particular. Levou
também consigo os livros e a roupa, e penhorou tudo numa loja de objetos usados. Perdeu
tudo no jogo. Finalmente, desejoso de se ressarcir, não tendo mais o que jogar,
desesperado, foi a uma casa na qual tinha entrada, levou as jóias de uma senhora e as
vendeu. Foi ao jogo e também perdeu.

75. Entretanto, a senhora achou falta de suas jóias e pensou que aquele fulano as havia
roubado. Denunciou à autoridade policial.Prenderam o ladrão, que confessou seu delito; foi
condenado a dois anos de prisão. É impossível explicar o golpe que me deu este
contratempo, não por ter perdido os bens, apesar de muitos, mas pela perda da honra.
Pensava: Que dirão as pessoas? Vão pensar que tu eras cúmplice dos seus jogos e roubos.
Ai! Um companheiro teu na cadeia, na prisão! Era tanta confusão e vergonha que mal me
atrevia sair à rua. Parecia que todos os olhares se voltavam para mim, falavam de mim e se
referiam a mim.

76. Ó meu Deus! Como fostes bom e admirável para comigo!… De que meios tão
estranhos vos valestes para me arrancar do mundo!… Que bebida amarga usastes para
livrar-me da Babilônia! E a vós, minha mãe, como poderei agradecer-vos por me terdes
preservado da morte, tirando-me domar? Se naquele lance me tivesse afogado, como
naturalmente teria acontecido, onde me encontraria agora? Vós o sabeis, ó minha mãe! Sim,
no inferno me encontraria, e em lugar muito profundo, por minha ingratidão. Assim como
Davi, devo exclamar: Misericórdia tua magna est super me, et eruisti animam meam ex
inferno inferiori: Vossa misericórdia foi grande para comigo, arrancastes minha alma das
profundezas da região dos mortos.64

Capítulo X
Fuga para a Cartuxa de Montealegre

77. Desiludido, enfastiado e entediado do mundo, pensei em deixá-lo e fugir para uma
solidão, tornar-me cartuxo. E, com este objetivo e finalidade, realizava meus estudos.
Considerei que faltaria ao meu dever se não comunicasse essa atitude ao meu pai. Contei a
ele meu propósito na primeira ocasião que tive, em uma das muitas vezes que ia a
Barcelona por questões comerciais. Ele sentiu muito quando lhe disseque queria abandonar
a arte têxtil. Fez-me ver as esperanças lisonjeiras que tinha a meu respeito e sobre a
fabricação; o grande negócio que ambos podíamos montar. E seu sofrimento tornou-se
ainda maior quando lhe disse que desejava tornar-me monge cartuxo. 65

78. Como ele era um bom cristão, disse-me: Não quero tirar sua vocação; Deus me livre
disso. Pense muito bem, encomende-se a Deus e consulte seu diretor espiritual e, se ele
disser que esta é a vontade de Deus, eu a acato e aceito, por mais que sinta em meu coração.
Contudo, se for possível, em vez de se tornar monge, seja sacerdote secular, eu gostaria
mais. Contudo, faça-se a vontade de Deus.

79. Dediquei-me ao estudo da gramática latina com toda a aplicação possível. O primeiro
professor foi padre Tomás, sacerdote com um bom Latim. Aos dois meses de aula, teve um
ataque apoplético; perdeu a fala e morreu em poucas horas. Mais um desengano. Depois
tive Francisco Mas y Artigas, 66 que me acompanhou até à minha saída de Barcelona para
Vic, para começar Filosofia, e foi desta maneira:

80. Meu irmão mais velho, João, já estava casado com Maria Casajuana, filha de Maurício
Casajuana, que era encarregado de cobrar o tributo de algumas propriedades e domínios do
bispo de Vic em Sallent, sendo, por isso mesmo, muito admirado por ele e a quem
freqüentemente visitava. Numa dessas visitas, falou-lhe a meu respeito. Não sei o que ele
lhe teria dito, pois o bispo manifestou desejo de me ver.

81. Pediram-me que passasse por Vic. Eu não queria ir, por recear que me atrapalhassem o
pensamento de entrar para a Cartuxa, meu grande desejo. Comuniquei-o a meu professor, e
ele me disse: Eu o acompanharei até um padre de “San Felipe Néri”, padre Cantí, homem
muito sábio, prudente e experiente, e ele dirá o que se há de fazer.Apresentamo-nos e, após
ter ouvido todas as razões para não ir, disse-me: Vá, e se o senhor bispo entender que é
vontade de Deus que entre para a cartuxa, longe de opor-se, com certeza, ainda o protegerá.

82. Calei-me e obedeci. Depois de quatro anos, saí de Barcelona. Nesse período de tempo
esfriou bastante meu fervor, inflando-me demasiadamente de vaidade, elogios e aplausos,
principalmente nos três primeiros anos. Oh! Quanto o sinto e choro amargamente! Porém, o
Senhor já teve o cuidado de humilhar-me e confundir-me. Bendito seja por tanta bondade e
misericórdia que me tem dispensado.

Capítulo XI
Mudança de Barcelona para Vic

83. Nos primeiros dias de setembro de 1829, saí de Barcelona e, apedido de meus pais, fui a
Sallent. Para agradá-los, fiquei em companhia deles até o dia de são Miguel, dia 29, saindo
logo após a santa missa. Foi uma viagem muito triste, devido à chuva que nos acompanhou
quase todo o tempo. À noite, completamente calados, chegamos a Vic. 67

84. No dia seguinte fomos visitar o bispo dom Paulo de Jesus Corcuera. 68 Recebeu-nos
muito bem. E, a fim de ter mais tempo para estudar e poder dedicar-me mais às minhas
devoções particulares, colocaram-me ao lado do padre Fortián Bres, mordomo do palácio e
sacerdote boníssimo, que me estimava muito. 69 Estive com ele durante toda minha
permanência em Vic e, depois, sempre que ia a Vic hospedava-me em sua casa. Ele foi meu
padrinho quando na catedral de Vic fui consagrado Arcebispo de Cuba.

85. Já nos primeiros dias de minha estadia em Vic, pedi que me indicassem um sacerdote
para fazer uma confissão geral. Indicaram-me o padre Pedro Bach, de “San Felipe Néri”.70
Com ele, fiz a confissão geral de toda a minha vida. Depois, continuei me confessando com
ele, a cada semana, e me orientava muito bem. É digno de nota como Deus se valeu de três
padres da “Casa de San Felipe Neri” para me aconselhar e orientar nos três momentos mais
críticos de minha vida espiritual: o irmão Paulo e os padres Antônio Amigó, Cantí e Pedro
Bach.

86. Desde que cheguei a Vic, confessava e comungava semanalmente.Depois de algum


tempo, o diretor pediu que eu confessasse duas vezes e comungasse quatro vezes por
semana. 71 Cada dia, ajudava a missa celebrada pelo padre Fortián Bres. Fazia meia hora
de oração mental diariamente e, por mais que chovesse, visitava o Santíssimo Sacramento
nas Quarenta Horas e a imagem de Nossa Senhora do Rosário na igreja dos padres
dominicanos da mesma cidade. Mesmo que as ruas estivessem cobertas de neve, nunca
omiti as visitas ao Santíssimo Sacramento e à virgem Maria. 72

87. Todos os dias, à mesa, líamos a vida do santo do dia. Com a aprovação do diretor
espiritual, em três dias da semana (segunda, quarta e sexta-feira) aplicava-me a disciplina e
na terça, quinta e sábado, o cilício. 73 Com estas práticas de devoção, retomei todo meu
fervor religioso sem descuidar dos estudos, aos quais me aplicava o máximo que podia,
sempre com a mais pura e reta intenção. 74
88. No decorrer do primeiro ano de filosofia, em meio aos estudos e práticas de piedade,
jamais esqueci de minha almejada Cartuxa e, além do mais, tinha sempre à vista, na mesa
de estudo, uma estampa de são Bruno. Muitas vezes, quando me ia confessar, falava ao
meu diretor do desejo que ainda alimentava de entrar na Cartuxa. Por esse desejo, o diretor
chegou a crer que Deus me chamava para ingressar nela. Escreveu ao padre prior. Ficou
decidido que, ao terminar o curso daquele ano, eu seria encaminhado para a Cartuxa. Com
efeito, o diretor entregou-me duas cartas, uma ao prior e uma a um outro religioso
conhecido meu que lá residia.

89. Eu, muito contente, empreendi a viagem a Barcelona e depois a Badalona e


Montealegre. 75 Pouco antes de chegar a Barcelona, desencadeou-se uma tempestade tão
grande que metia medo. Por ter estudado muito naquele ano, tinha o peito enfraquecido. E,
para proteger-nos da forte chuva que caía, pusemo-nos a correr. Abatido pela fadiga de
tanto correr, e com o mormaço que se levantava da terra seca e quente, me deu forte asfixia,
o que me fez pensar: Talvez Deus não queira que vás à Cartuxa! Esta idéia me alarmou
muito. O certo é que não tive força para empreender o restante da viagem e acabei indo
para Vic. Comuniquei o fato ao meu diretor espiritual e ele se calou; não disse nem bem
nem mal, e o caso ficou assim. 76

90. Dos meus desejos de ser cartuxo só o diretor espiritual estava ciente; os demais o
ignoravam completamente. Naqueles dias, havia em Sallent um benefício vacante
pretendido por um sacerdote que não era natural da população local, ainda que vivesse nela
e, infelizmente, não era o desejável. 77 Quando o vigário-geral viu a solicitação, falou ao
bispo da inconveniência de conceder-lhe o benefício, a fim de impedir sua entrada na
comunidade. Ofereceram-no a mim por ser filho do lugar e por isso deveria ser preferido.
Obtive a graça. No dia 2 de fevereiro de 1831,78 recebi, no mesmo dia, do bispo a tonsura e
do vigário-geral a colação. No dia seguinte, fui a Sallent para tomar posse do referido
benefício. A partir desse, dia vesti os hábitos talares e comecei a rezar o ofício divino.

91. Por ocasião das festas do Natal, Semana Santa e nas férias, ficava em Sallent por causa
do benefício; o resto do ano ficava em Vic, por causa dos estudos. Já falei das práticas de
devoção que fazia em particular. Além dessas práticas, mensalmente me chamavam para
uma comunhão geral da Academia de Santo Tomás, da qual participavam todos os
estudantes. 79 Além disso, o bispo havia determinado na igreja do Colégio da Congregação
da Imaculada Conceição e de São Luís Gonzaga, que todos os seminaristas internos e
externos, recebessem a tonsura e se algum outro aluno quisesse entrar, devia solicitar
diretamente ao bispo. Os congregados comungavam todo terceiro domingo de cada mês. O
próprio bispo celebrava a missa na igreja do seminário. No mesmo dia, à tarde, fazia uma
palestra.

92. Anualmente, por ocasião da Quaresma, na mesma igreja do colégio ou seminário,


fazíamos o retiro espiritual que durava oito dias, de um domingo a outro. O bispo
participava de todos os atos. Lembro-me de que num dos sermões dizia: Se alguém
perguntar por que o bispo dedica tanto tempo aos estudantes, a resposta será: Sei o que
faço! Ah! Se conseguir que os estudantes sejam bons, depois serão bons sacerdotes e bons
párocos. Que sossego terei então!... Muito convém que os estudantes se nutram da piedade
enquanto estudam; do contrário, tornam-se soberbos, que é o pior que pode acontecer, pois
a soberba é a origem do pecado. É preferível que saibam um pouco menos, mas que sejam
piedosos, do que saber muito, mas com pouca ou nenhuma piedade, porque aí se inflam
com o vento da vaidade.

93. Depois do primeiro ano de filosofia, já não pensei mais em ser monge cartuxo e
reconheci que aquela vocação foi passageira. O Senhor levava-me mais longe para afastar-
me das coisas do mundo e, assim, desprendido de todas elas, ficasse no estado clerical,
como o próprio Senhor me deu a entender depois. 80.

94. Durante a época de estudos, entrei na Congregação do Laus perennis (Louvor perene)
do Sagrado Coração de Jesus. Minha hora de louvor é em junho, no dia de Santo Antônio,
das quatro às cinco da tarde.Ingressei nela por meio do padre Ildefonso Valiente, 81 reitor
do Colégio de Manresa, que me fez o convite em uma visita à minha casa.Na mesma
cidade, estou alistado na associação do Rosário perpétuo, com hora para oração no dia de
São Pedro, 29 de junho, das treze às catorze horas. 82 Na cidade de Vic fui alistado na
Confraria do Rosário e na Confraria do Carmo. Alistei-me também e professei na
Congregação das Dores. 83

95. Quando cursava o segundo ano de filosofia em Vic, aconteceu-me o seguinte: No


inverno tive um resfriado ou constipação. Mandaram-me ficar de repouso. Obedeci. Num
daqueles dias em que estava acamado, às dez e meia da manhã, sofri uma tentação terrível.
Recorria a Maria santíssima. Invocava o anjo da guarda. Rogava aos santos de meu nome e
de minha especial devoção. Esforçava-me por fixar a atenção em objetos diferentes,
distrair-me e assim afastar e esquecer a tentação. Persignava-me na fronte a fim de que o
Senhor me livrasse dos maus pensamentos. Porém, tudo em vão.

96. Finalmente, virei-me para o outro lado da cama para ver se assim afastaria a tentação.
Eis que se apresenta Maria Santíssima, formosa e graciosíssima. Seu vestido era carmesim;
o manto azul e, entre seus braços, vi uma enorme grinalda de belíssimas rosas. Em
Barcelona eu tinha visto rosas naturais e artificiais muito bonitas, mas não eram como estas.
Oh! Como tudo aquilo era belo! Ao mesmo tempo em que estava na cama, como que
pasmado, via a mim mesmo como um menino branco formosíssimo, ajoelhado e com as
mãos juntas. Eu não perdia de vista a virgem santíssima, em quem tinha fixos meus olhos.
Recordo-me muito bem de que tive este pensamento: É mulher e não provoca nenhum mau
pensamento; pelo contrário, afastou de mim todos os outros. A santíssima virgem dirigiu-
me a palavra e disse: Antônio, se venceres, esta coroa será tua. Eu estava tão preocupado
que não conseguia dizer-lhe uma palavra sequer. E vi que a santíssima virgem punha em
minha cabeça a coroa de rosas que tinha em sua mão direita (além da grinalda, também de
rosas, entre seus braços e no lado direito). Naquela criança, via-me coroado de rosas. Nem
depois disto disse palavra alguma.

97. Vi também um grupo de santos que estavam à sua direita, em atitude de oração. Não os
conheci. Só um me pareceu ser santo Estêvão. Acreditei então, e ainda agora me convenço
disso, que aqueles santos eram meus protetores, que rogavam e intercediam por mim para
que eu não caísse em tentação. 84 Depois, à minha esquerda, vi uma multidão de demônios,
que se puseram em enfileirados, como soldados em retirada após ter travado uma batalha, e
eu dizia a mim mesmo: Que multidão e como são temíveis! Diante de tudo isto, eu estava
como que surpreendido, nem sabia mais o que me estava acontecendo. E logo que tudo isso
passou, fiquei livre da tentação e com tamanha alegria, que não sabia o que se passara
comigo.

98. Tenho certeza de que não estava dormindo, nem estava em estado febril, nem outra
coisa que me pudesse causar uma ilusão semelhante.Isto me fez acreditar que foi uma visão
real e uma especial graça de Maria, pois a partir daquele momento fiquei livre da tentação
e, por muitos anos, estive livre de qualquer tentação contra a castidade e,se depois tive
alguma, foi tão insignificante que nem merece o nome de tentação. Glória a Maria! Vitória
de Maria!… 85

Capítulo XII
Ordenação Sacerdotal

99. O Bispo somente ordenava os seminaristas que faziam carreira completa e que
estivessem bem adiantados nos estudos. Em geral era assim. Quando os candidatos
concluíam o quarto ano de Teologia, depois de dez dias de retiro espiritual, recebiam as
quatro Ordens Menores.Terminado o quinto ano, recebiam a ordem do subdiaconato,
depois deterem feito vinte dias de retiro espiritual. Concluído o sexto ano de Teologia, após
trinta dias de retiro espiritual, recebiam o diaconato e, finalmente, ao terminarem o sétimo
ano, após quarenta dias de retiro, recebiam o presbiterado.

100. Embora continuasse vigente o costume, comigo aconteceu de forma diferente: o bispo
quis ordenar-me antes, ou porque precisava de alguém para rezar missas, ou porque já tinha
a idade suficiente. Foi assim: 86 Concluído o primeiro ano de Teologia e iniciado já o
segundo, recebi as Ordens Menores, nas têmporas de santo Tomás de Aquino, no ano de
1833. 87 Nas têmporas da Santíssima Trindade de 1834, concedeu-me o subdiaconato; na
mesma cerimônia em que Jaime Balmes recebeu o diaconato. Ele era o primeiro dos
diáconos, e eu o primeiro dos subdiáconos. Ele cantou o evangelho, e eu, a epístola. Ele e
eu íamos lado a lado do sacerdote que presidia, encerrando a procissão no dia da ordenação.
88

101. Nas têmporas de santo Tomás, no mesmo ano de 1834, recebi o diaconato. Na hora da
ordenação, quando o bispo pronunciou aquelas palavras do pontifical, tomadas do apóstolo
São Paulo: Nossa luta não é somente contra seres de carne e sangue, mas também contra os
principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças
espirituais do mal espalhadas no ar”, 89 então o Senhor me revelou claramente o
significado daqueles demônios que vi na tentação, mencionada no capítulo anterior. 90

102. No dia 13 de junho de 1835, fui ordenado presbítero pelo bispo de Solsona, pois o de
Vic estava enfermo e da mesma enfermidade veio a falecer no dia cinco de julho. 91 Antes
da ordenação, fiz os quarenta dias de retiro espiritual. 92 Nunca tinha feito um retiro com
tanto sofrimento e tentação. 93 Mas certamente em nenhuma outra vez obtive tantas e
maiores graças como no dia 21 de junho, festa de são Luís Gonzaga, patrono da
Congregação, 94 em que cantei minha primeira missa. Minha ordenação foi no dia de santo
Antônio, meu patrono.
103. Cantei a primeira missa na minha terra natal, para grande satisfação de meus parentes
e de todo o povo. E como em todas as férias e feriados estudava teologia moral, do mesmo
modo que sabia o catecismo, também conhecia a disciplina de Teologia Moral, 95 assim foi
que prestei exame no dia de são Tiago e obtive licença para pregar e confessar. No dia 2 de
agosto, dia da Porciúncula, iniciei meu ministério de confessor, atendi confissões seis horas
seguidas, das cinco às onze da manhã. O meu primeiro sermão foi no mês de setembro(no
mesmo ano da ordenação), na festa principal da minha cidade.Naquela ocasião, fiz um
panegírico do padroeiro local 96 e, no dia seguinte, fiz outro sermão nas intenções dos
falecidos da cidade, coma admiração de todos os meus conterrâneos.

104. Ao terminar todas essas funções em minha terra natal, voltei para Vic, a fim de
continuar minha carreira e concluí-la. No entanto, por causa da guerra civil, 97 os
estudantes não podiam se reunir no seminário, e por isso tinham que estudar em particular.
Naquela oportunidade, como também o Vigário-geral 98 não tivesse nenhum sacerdote para
mandar como vigário paroquial ao meu povoado, quis insistentemente que eu fosse, e que
lá estudasse em particular os anos que faltavam para concluir a carreira, como teria feito em
Vic. 99 Acedi por obediência, até completar os estudos, como se conclui pelo certificado
que me forneceu o seminário de Vic, cujo teor é o seguinte:

105. O abaixo-assinado, Secretário do Seminário Conciliar da cidade de Vic. Certifico que


o Sr. Antônio Claret, natural de Sallent, desta diocese, cursou três anos de filosofia, neste
Seminário e foi aprovado. No primeiro, estudou Lógica, Ontologia e elementos de
Matemática, de 1829 a 1830; no segundo ano, estudou Física geral e especial, de 1830 a
1831; e, no terceiro, Metafísica e Ética, no curso particular de 1832.Ficou também
habilitado neste mesmo seminário, em quatro anos de disciplinas teológicas nos anos
escolares de 1832 a 1836. Está, também, habilitado no referido Seminário, em três anos de
teologia moral, nos anos de 1836 a 1839. Tudo conforme os livros de matrícula e de
habilitações arquivadas nesta secretaria a meu encargo e aos quais me refiro. Dou
testemunho da verdade e, a pedido do interessado, firmo e carimbo o presente. Vic, 27 de
agosto de 1839. Padre Augustin Alier, secretário.

Capítulo XIII
Vigário paroquial

106. Fixo na paróquia de Santa Maria de Sallent, 100 além de estudar todos os dias,
ocupava-me com as coisas do ministério. Juntamente como pároco, repartíamos as
pregações, alternadamente, em todos os domingos de Advento, Quaresma, Corpus Christi e
demais solenidades, nas quais pregávamos do púlpito na missa cantada. Nos outros dias
festivos, a pregação era à tarde, logo depois de ter ensinado o catecismo. Após dois anos
como coadjutor, o superior quis que eu fosse vigário paroquial. O que antes exercia a
função retirara-se por causas políticas, assim fiquei só no ministério. 101

107. O projeto pessoal de vida que seguia era o seguinte: 102 Todos os anos, fazia os santos
exercícios espirituais de dez dias, prática que segui sempre, desde que entrei no seminário.
Confessava-me de oito em oito dias. Jejuava às sextas e sábados. Três dias por semana
impunha-me a disciplina, a saber: às segundas, quartas e sextas. E noutros três dias, que
eram terças, quintas e sábados aplicava-me o cilício.

108. Todos os dias, antes de sair do meu quarto, fazia oração mental em particular, pois me
levantava muito cedo, e à noite rezava juntamente com minha irmã Maria, hoje terciária
103 e, com o empregado, homem já idoso. Nós éramos as três únicas pessoas da casa
paroquial.Além da oração mental, rezávamos também o Rosário.

109. Em todos os domingos e festas pregava e ensinava o catecismo, conforme disposição


do Concílio de Trento. 104 Nos domingos do Advento, Quaresma, e solenidades, pregava
na missa. Nos demais domingos do ano, sem deixar um sequer, pregava à tarde, depois de
ensinar o catecismo.Além do catecismo na igreja aos domingos, no tempo da Quaresma
ensinava-o diariamente, nos seguintes horários: para meninas, das catorze às quinze horas,
na igreja e, para os meninos, das dezenove às vinte horas, na casa paroquial.

110. Diariamente celebrava a missa bem cedo. Logo em seguida ia ao confessionário e daí
não me levantava enquanto houvesse gente para confessar. Diariamente, ao entardecer,
dava uma volta pelas ruas da cidade, principalmente pelas ruas onde houvesse enfermos,
visitava-os, desde que recebiam o Viático até morrerem ou ficarem sãos. 105

111. Nunca fazia visitas particulares, nem aos meus parentes, que por sinal eram muitos.
Amava e servia a todos igualmente, fossem ricos ou pobres, parentes ou estranhos,
conterrâneos ou estrangeiros, sendo que estes últimos eram muitos por causa da guerra. De
dia e de noite, no Inverno e no Verão, sempre estava pronto para servi-los. Saía com muita
freqüência para visitas aos moradores do campo. Trabalhava o máximo que podia. As
pessoas correspondiam, aproveitavam o máximo e me amavam muitíssimo. 106 Sempre
tive provas de amor, mas de modo especial quando resolvi ausentar-me para ir às missões
estrangeiras, como de fato fui a Roma para ingressar na Congregação de Propaganda Fide,
como direi na segunda parte. 107

112. Ó meu Deus, quão bom tendes sido para comigo e quão suavemente me haveis levado
pelos caminhos que me tínheis traçado! Como a vida de pároco não era minha aspiração,
sentia um grande desejo de deixá-la para ir às missões salvar almas, mesmo que tivesse de
passar por mil tribulações e sofrer a morte. 108

Segunda parte
MISSÕES
Capítulo I
Vocação missionária

113. Passado o desejo de ser cartuxo, que Deus me tinha dado para me arrancar do mundo,
pensei, não só em santificar minha alma, mas também meditava constantemente no que
faria e como faria para salvar a alma do meu próximo. Efetivamente, rogava a Jesus e a
Maria e me oferecia continuamente para ter êxito neste objetivo. As vidas dos santos, que
todos os dias líamos durante as refeições, as leituras espirituais que eu fazia em particular,
tudo me ajudava para isto. 1 No entanto, o que mais me movia e estimulava era a leitura da
santa Bíblia, à qual sempre fui muito afeiçoado. 2

114. Havia passagens que me causavam tão forte impressão, que o que estava lendo parecia
dirigido diretamente a mim. 3 Essas passagens eram muitas, principalmente as seguintes:
Tu, que eu trouxe dos confins da terra, e que fiz vir do fim do mundo, e a quem eu disse:
“Tu és meu servo, eu te escolhi, e não te rejeitei” (Isaías 41,9). Eu te trouxe dos confins da
terra e te chamei de lugares longínquos. (Com estas palavras, conhecia como o Senhor me
chamou sem mérito nenhum de parte de minha pátria, de meus pais e nem minha). A ti eu
disse: Tu és meu Servo, eu te escolhi e não te rejeitei.

115. Nada temas, porque estou contigo, não lances olhares desesperados, pois eu sou teu
Deus; eu te fortaleço e venho em teu socorro, eu te amparo com minha destra vitoriosa (v.
10). Aqui percebi como o Senhor me livrou maravilhosamente de todos os apuros aos quais
me referi na primeira parte, e dos meios de que se serviu para isso.

116. Sabia dos grandes inimigos que teria e das terríveis e espantosas perseguições que se
levantariam contra mim; porém, o Senhor me dizia: Vão ficar envergonhados e confusos
todos aqueles que se revoltaram contra ti; serão aniquilados e destruídos aqueles que te
contradizem (v. 11). Pois eu, o Senhor, teu Deus, eu te seguro pela mão e te digo: Nada
temas, eu venho em teu auxílio (v. 13).

117. Vou fazer de ti um trenó triturador, novinho, eriçado de pontas: calcarás e esmagarás
as montanhas, picarás miúdo as colinas (v. 15).Com estas palavras o Senhor me dava a
conhecer o efeito que haviam de causar a pregação e a missão que ele mesmo me confiava.
As montanhas quer dizer os soberbos, os racionalistas, etc., etc., e com o nome: “colinas”
quer que entenda os que vivem na luxúria, pelos precipícios por onde todos os pecadores
passam. E eu os censurarei e convencerei, e por isso me disse: Tu as joeirarás e o vento as
carregará; o turbilhão as espalhará; entretanto, graças ao Senhor, te alegrarás e te gloriarás
no Santo de Israel (v. 16).

118. O Senhor me fez conhecer que não só tinha de pregar aos pecadores, mas também
catequizar, pregar aos simples dos campos e aldeias, etc., etc. E por isso me disse aquelas
palavras: Os infelizes que buscam água e não a encontram e cuja língua está ressequida
pela sede, eu, o Senhor, os atenderei, eu, o Deus de Israel, não os abandonarei. Sobre os
planaltos desnudos, farei correr água, e brotar fontes no fundo dos vales. Transformarei o
deserto em lagos, e a terra árida em fontes (Is 41,17-18). E, de um modo muito particular,
Deus nosso Senhor me fez entender aquelas palavras: Spiritus Domini superme et
evangelizare pauperibus misit me Dominus et sanare contritos corde. (O Espírito do
Senhor repousa sobre mim, e me enviou para evangelizar os pobres e curar os corações
contritos). 4

119. O mesmo me acontecia ao ler o profeta Ezequiel, particularmente o capítulo terceiro.


Com estas palavras: Filho do homem, estabeleço-te como sentinela na casa de Israel. Logo
que escutares um oráculo saindo de minha boca, tu lho transmitirás de minha parte. Se digo
ao malévolo que ele vai morrer, e tu não o prevines e não lhe falas a fim de o pôr de
sobreaviso devido ao seu péssimo proceder, de modo que ele possa viver, ele há de perecer
por causa de seu delito, mas é a ti que pedirei conta do seu sangue. Contudo, se depois de
advertido por ti,não se corrigir da malícia e perversidade, ele perecerá por causa de seu
pecado, enquanto tu hás de salvar a tua vida (3,17-19).

120. Em muitas partes da Sagrada Escritura, sentia a voz do Senhor que me chamava para
que saísse a pregar. Na oração, ocorria-me o mesmo.Assim foi que decidi deixar a
paróquia, ir a Roma e me apresentar à Congregação de Propaganda Fide (Propagação da
Fé), – hoje “Congregação para a Evangelização dos Povos” – a fim de que me enviasse a
qualquer parte do mundo. 5

Capítulo II
Saída da Espanha (6)

121. Para sair da paróquia, tive de enfrentar muitas e grandes dificuldades, tanto da parte do
superior eclesiástico como da população; mas com a ajuda de Deus consegui deixá-la.
Dirigi-me a Barcelona com a intenção de tirar passaporte para o estrangeiro e embarcar
com destino a Roma. Mas em Barcelona não quiseram conceder-me o passaporte e tive que
voltar. Fui a Olost, onde tinha um irmão, chamado José, fabricante. De lá, me dirigi a Tria
de Perafita, onde se encontrava um padre de são Filipe Néri, chamado padre Matavera,
homem de muita experiência, ciência e virtude. Consultei-o sobre a viagem: o objetivo e os
preparativos para empreendê-la, e as grandes dificuldades por que havia passado. O bom
padre escutou-me com muita paciência e caridade e me animou a continuar. Acolhi sua
orientação como a um oráculo e, imediatamente empreendi viagem. 7 Com documento de
identidade, dirigi-me a Castellar de Nuch, Tosas, Font del Picasó e Ausseja. Este último
povoado já pertencente à França. 8

122. Meu itinerário foi Castellar de Nuch, Tosas, Puerto, Font Del Picasó, Ausseja,
Aulette,9 Prades, Perpignan, Narbona, Montpellier, Nimes, Marselha, onde embarquei no
vapor “Tancrede”; desembarquei em Civitavecchia, chegando finalmente a Roma. 10

123. Agora direi o que aconteceu de mais importante naquela viagem.Saí bem cedo de
Olost e fui dormir na paróquia de Castellar de Nuch. O vigário me recebeu muito bem.
Deus lhe pague. 11 Rezei e fui descansar.Bem que necessitava de repouso, depois de ter
caminhado a pé o dia todo e por lugares bastante desertos. No dia seguinte, bem cedo,
celebrei a missa e parti para Tosas. Aqui nos disseram que em Puerto havia ladrões. 12
Demorei-me ali até que nos informaram que já se tinham retirado. Empreendi a subida a
Puerto e, pouco antes de passar pelo desfiladeiro onde está a Font del Picasó, surgiu um
homem à minha frente e gritou: Alto lá! E apontou-me um fuzil. Aproximou-se de mim,
colocou-se ao meu lado e disse-me para acompanhá-lo até ao comandante.Com efeito,
levou-me até o senhor que chefiava um grupo de dez homens armados. Ele me fez várias
perguntas e lhe respondi com exatidão.Perguntou-me se levava passaporte. Respondi que
sim. Apresentei-o e logo o devolveu. Queria saber por que eu não passara por Puigcerdá.
Respondi-lhe que para mim dava no mesmo ir por Puigcerdá como por qualquer outro
caminho, pois quem está com os documentos de viagem em ordem pode passar por onde
desejar. Percebi que ficaram desconsertados.
124. Ao mesmo tempo observei que, num lugar um pouco mais afastado, havia muita gente
presa e que, a um dado sinal, se puseram em marcha, enquanto os homens armados
conversavam comigo. Finalmente, o comandante disse que me levariam a Puigcerdá e me
apresentariam ao governador. Disse-lhes que não tinha por que temer o governador; no
caso, eles é que deviam temer, por haver detido quem estava viajando bem documentado,
conforme a lei. Postos em fila, começamos a andar rumo a Puigcerdá. Eles andavam
depressa e eu caminhava devagar. Vendo que não ligaram para mim, tive este pensamento:
Se quisessem me levar, eles me teriam colocado na frente ou no meio da fila. Se me
deixaram por último, isto quer dizer que eu posso seguir meu caminho. Desta forma, sem
dizer-lhes coisa alguma, virei para trás e me dirigi para a França. Depois de andar alguns
passos, o mesmo homem que me prendera olhou para trás e me viu, fez sinal para que eu
parasse e pôs-se acorrer. Chegando bem próximo, disse em voz baixa: Não diga isto a
ninguém. E eu lhe disse: Vão com Deus!

125. Oh! Quantas graças devo dar ao Senhor que me libertou a mim e às pessoas que
estavam presas! E, para a maior glória de Deus, devo dizer que poucos dias antes havíamos
combinado, eu e um jovem ordenando, que os dois juntos sairíamos para Roma. Chegado o
dia, o jovem não compareceu. Mandou-me dizer que não iria. Fui sozinho, e aconteceu o
que acabo de narrar. Alguns dias depois, ao passar por esse mesmo lugar, foi atacado pelos
mesmos ladrões. Roubaram-lhe tudo o que possuía. Tiraram-lhe até a camisa, deixando-o
nu. Ele mesmo contou-me o ocorrido, quando nos encontramos no porto de Marselha.
Quantas graças devo dar a Deus! Bendito sejais, meu Pai, pela grande providência e
cuidado que sempre e em toda parte tivestes para comigo!

Capítulo III
Entrada e travessia pela França

126. Naquela mesma tarde, em que Deus nosso Senhor e a santíssima virgem me livraram
dos ladrões, por ser sábado, 13 entrei no primeiro povoado da França que se chama
Ausseja. Fui muito bem recebido. Como levasse um documento espanhol, ficaram com ele
e me deram um passaporte de refugiado. E, com este, empreendi viagem. Passei por uma
vila chamada Aulette. Insistiram para que ficasse lá, mas meu desejo era ir para Roma. De
Aulette passei a Prades, onde também encontrei pessoas que me receberam com toda a
caridade. Daí, me dirigi a Perpignan, onde trocaram meu passaporte, dando-me um outro
com que pudesse chegar a Roma. Em Perpignan, a exemplo das outras cidades, fui bem
recebido por pessoas que nunca tinha visto nem conhecido. Passei por Montpellier, Nimes e
demais povoações e, enquanto caminhava, sozinho e sem cartas de recomendação, em todas
as partes encontrava pessoas desconhecidas que pareciam estar me esperando. Bendita seja
a providência de Deus por todas as suas criaturas e particularmente por mim!

127. Ao chegar a Marselha, um sujeito acompanhou-me pelo caminho. 14 Levou-me a uma


casa na qual passei muito bem durante os cinco dias em que lá permaneci para esperar a
embarcação. No dia seguinte, ao sair de casa para uma visita ao cônsul espanhol, e como
tinha necessidade de que me visasse o passaporte, ao primeiro que encontrei, perguntei pela
rua onde residia o cônsul. Aquele senhor não só me indicou a rua como também, ao me ter
visto sozinho, teve a amabilidade de me acompanhar. Apresentou-me e me atenderam
muito bem. Voltou comigo e acompanhou-me até a hospedagem. Naqueles cinco dias, pela
manhã e à tarde, vinha buscar-me e me acompanhava para visitar as igrejas, cemitério e
tudo o que havia de mais precioso naquela cidade em matéria de religião; edifícios e casas
profanas nem sequer mencionou.

128. Finalmente chegou a hora do embarque, que foi às treze horas. Um pouco antes,
apresentou-se em meu quarto, a todo custo quis carregar minha trouxa. E assim, nós dois
sozinhos nos dirigimos ao porto e, em frente ao barco nos despedimos. Naqueles cinco dias
em que esteve comigo, o indivíduo foi tão educado, amável, atento e preocupado comigo,
que parecia que o seu senhor o tinha enviado para que cuidasse de mim com todo o esmero.
Parecia mais anjo que homem: tão modesto, alegre, mas ao mesmo tempo, tão sério,
religioso e devoto que sem preme levava aos templos, o que, por sinal, muito me satisfazia.
Nunca me falou de entrar em nenhum café ou coisa semelhante, nem jamais o vi comer ou
beber, porque à hora apropriada ia, deixava-me e logo voltava.

Capítulo IV
No navio para Roma

129. Embarquei às treze horas. 15 Já tinha rezado as Vésperas e as Completas para não me
expor a rezar mal, devido às manobras nas primeiras horas de viagem e talvez a
possibilidade de não poder rezá-las em caso de enjôo. Ao chegar ao navio, no qual havia
muitas pessoas de várias nacionalidades que faziam a mesma travessia, ouvi alguns que
falavam castelhano. Tive uma grande alegria e perguntei-lhes: Vocês são espanhóis?
Responderam-me afirmativamente e me explicaram que eram religiosos beneditinos que
haviam saído de Navarra por causa do que havia feito o general Maroto, 16 e que iam a
Roma. Contaram-me o sofrimento e trabalho que haviam passado e a miséria atual em que
se achavam. Disseram-me também que no mesmo navio havia outro espanhol, catalão, que
estava muito aflito, porque ao passar a fronteira o haviam roubado. Certamente aquele
homem era o que prometera vir comigo e tinha-me faltado com a palavra. Avistei-o e ele
estava num estado lamentável. Consolei-o como pude. Nessa conversação, passamos a
tarde e o início da noite.

130. Como minha viagem a Roma não era a passeio, mas para trabalhar e sofrer por Jesus
Cristo, achei que devia procurar o lugar mais humilde, mais pobre e no qual tivesse mais
oportunidade de sofrer. Com efeito, comprei uma passagem no convés, na parte da proa,
que era o lugar mais pobre e barato da embarcação. Depois de retirar-me sozinho para rezar
o rosário e algumas devoções, procurei onde descansar um pouco e não encontrei outro
lugar mais apropriado que um monte de cordas enroladas. Lá, me sentei e apoiei a cabeça
num canhão de artilharia que estava na bombardeira, numa das laterais do navio.

131. Naquela posição, meditava como Jesus descansava quando estava no barco com seus
discípulos. E a meditação foi tão apropriada, que o Senhor quis se assemelhasse também na
tempestade. Enquanto descansava, levantou-se uma tempestade tão forte que a água entrava
no navio. Eu, sem me mexer e sentado sobre aquele montão de cordas, pus o capote sobre a
cabeça, a trouxa com a provisão e o chapéu encostados ao corpo, a cabeça um pouco
inclinada para frente, a fim de que escorresse a água das ondas que batiam contra o navio e
caíam sobre mim. Assim, ao ouvir o embate de uma onda, inclinava a cabeça, dava as
costas e a água caía.

132. Assim passei a noite inteira até o amanhecer, quando, com achegada da chuva, a
tempestade amainou. Se antes me havia molhado coma água do mar, agora me molhava
com a água doce da chuva. Toda a minha bagagem consistia numa camisa, um par de
meias, um lenço, uma navalha para barbear e um pente, o breviário e a santa Bíblia, em
tamanho pequeno. Tudo isso levava sempre dentro de uma trouxa. Como não era fornecida
comida aos viajantes da segunda classe, era preciso que cada um providenciasse sua
provisão. Como eu já sabia disso, antes de embarcar, fiz em Marselha a minha reserva que
consistia num pão recheado e um pedaço de queijo. Esta foi toda a minha alimentação nos
cinco dias de viagem, de Marselha a Civitavecchia, com as escalas que fizemos e a
tempestade que tivemos. 17 A tempestade foi demorada e forte. Caiu muita água e fiquei
muito molhado. Tanto o capote quanto a provisão ficaram encharcados. Para me alimentar,
não tive outro jeito senão comer o queijo e o pão molhado, e muito salgado; no entanto,
como a fome era muita, me pareciam saborosos.

133. No dia seguinte, acalmada a tempestade e passada a chuva, peguei o breviário e rezei
as Matinas e as Horas menores. Concluída a oração, aproximou-se de mim um senhor
inglês que me disse ser católico e que amava os sacerdotes católicos. Depois de
conversarmos um pouco, foi ao seu camarote e, sem demorar muito, vi que retornava com
um prato no qual trazia uma porção de moedas. Ao vê-lo vir, pensei: Que farei?Aceitarei ou
não esse dinheiro?…E pensei comigo mesmo: Tu não tens necessidade, mas precisam dele
esses infelizes espanhóis; desta forma tu aceitarás e repartirás entre eles. Efetivamente
assim o fiz.Aceitei aquelas moedas e agradeci ao senhor inglês, indo imediatamente repartir
entre aqueles infelizes, que no mesmo instante foram à cozinha ou ao restaurante,
compraram e comeram do que necessitavam.

134. Outros passageiros também fizeram doações. E eu repartia tudo entre eles, de maneira
que não fiquei com nenhum centavo, e nem cominada do que eles compraram para comer.
Contentei-me com meu pão molhado com água do mar. Aquele senhor inglês, ao ver-me
tão pobre e desprendido, pois os infelizes compravam e comiam com o dinheiro que eu
distribuía entre eles, e que eu não comia nada, mostrou-se muito edificado, veio dizer-me
que desembarcaria em Liorna, 18 mas que depois, por terra, iria a Roma; e num papel me
deu por escrito o seu nome e endereço onde ia viver. Pediu que eu fosse vê-lo e lá me daria
do que precisasse.

135. Toda aquela aventura me persuadiu uma vez mais de que, para edificar e mover as
pessoas, o melhor e mais eficaz é o exemplo, a pobreza, o desprendimento, o jejum, a
mortificação, a abnegação. Este senhor inglês, que andava com luxo asiático, levava dentro
do navio o carro, criados, pássaros, cachorros. Aparentemente o meu aspecto deveria
provocar o desprezo, porém, ao ver um sacerdote pobre, desprendido, mortificado, ficou de
tal modo comovido que ele mesmo não sabia como manifestar o seu apreço. E não somente
ele, mas também todos os viajantes, que não eram poucos, todos me manifestaram respeito
e veneração. Quem sabe se me tivessem visto na mesa alternando com eles e se me fizesse
de rico e garboso, com certeza teriam murmurado e olhado com desprezo, como vi que
fizeram com outros. Assim, a virtude é tão necessária ao sacerdote, que até mesmo os maus
querem que sejamos bons.

136. Depois de cinco dias de viagem, chegamos a Civitavecchia. De lá, nos dirigimos a
Roma, aonde chegamos sem novidades, pela bondade e misericórdia de Deus. 19 Ó meu
Pai, quanto sois bom! Quem conseguiria servir-vos com toda a fidelidade e amor! Dai-me
continuamente vossa graça para conhecer o que é de vosso agrado. Dai-me força de
vontade para viver tudo isso na prática! Ó Senhor e Pai meu, não desejo outra coisa senão
conhecer vossa santa vontade para cumpri-la. Não quero outra coisa senão amar-vos com
todo fervor e servir-vos com toda a fidelidade. Ó minha mãe, mãe do amor formoso, ajudai-
me!

Capítulo V
Chegada a Roma e entrada no Noviciado da Companhia de Jesus

137. Chegamos a Roma aproximadamente às dez horas da manhã. Os religiosos foram a


uma das casas de sua Ordem e nos separamos. O clérigo catalão e eu fomos à casa mais
próxima de religiosos para perguntar onde encontraríamos clérigos catalães. 20
Aproximamo-nos da portaria do convento da Traspontina, 21 dos religiosos carmelitas, e
perguntamos ao irmão porteiro se naquele convento havia algum religioso espanhol.
Respondeu-nos que sim. O superior da comunidade chamava-se Frei Comas, era espanhol
catalão. 22 Fomos à sua cela e nos recebeu muito bem. Perguntamos se sabia onde havia
catalães clérigos, e ele nos indicou o convento de São Basílio. Teve a caridade e a
amabilidade de acompanhar-nos, não obstante distar cerca de uma hora da Traspontina. 23

138. Os clérigos catalães nos receberam muito bem, mesmo sem nos conhecer.
Prontamente comecei a cuidar dos meus negócios, segundo o objetivo que me havia
proposto nessa viagem. Não levava nada mais do que uma carta de recomendação a dom
Vilardell, catalão, bispo do Líbano, 24 recém-consagrado. Ao chegar a Roma, porém, já
havia saído para o seu destino. Dirigi-me ao Prefeito da Propaganda Fide. 25 Também
havia saído justamente naqueles dias; informaram-me que estaria ausente durante todo o
mês de outubro. Passei a crer que tudo isso era providencial, a fim de que tivesse tempo
para fazer os exercícios espirituais que todos os anos fazia desde quando era estudante; e
nesse ano ainda não os tinha feito por causa da viagem.

139. Dirigi-me a um padre da Casa dos Professos da Companhia de Jesus; 26 esse padre
elogiou a idéia de fazer os exercícios, entregou-me o livro dos Exercícios de Santo Inácio,
através do qual deveria fazer meu retiro. 27 Deu-me os conselhos que achou necessário se
iniciei os exercícios. Nos dias marcados prestava conta de minha vivência espiritual. Nos
últimos dias disse-me: Já que Deus nosso Senhor te chama para as missões estrangeiras,
melhor seria que entrasses na Companhia de Jesus; por meio dela serias enviado,
juntamente com outros, pois andar sozinho é algo muito perigoso.Respondi-lhe que para
mim seria muito melhor; mas que posso fazer para ser admitindo na Companhia?

140. Jamais sonhara ser admitido na Companhia, em vista da idéia elevada que fazia de
seus membros. Considerava-os grandes em virtude e ciência e em ambas as coisas me
analisava como sou na verdade: nada mais que um verdadeiro pigmeu. Assim falei ao padre
que me dirigia.Mas ele me animou. Pediu que eu escrevesse uma carta ao Superior-Geral
que vivia na mesma Casa dos Professos. 28

141. Fiz tudo conforme combinado e, um dia após ter entregado a solicitação, o padre-geral
quis ver-me. Fui. Ao chegar ao seu quarto, saía o padre provincial. 29 Falou comigo um
bom tempo e me disse: Aquele padre que saiu agora é o padre provincial, que reside em
santo André de Montecavallo; vá até ele, diga-lhe que eu te enviei, e o que ele fizer, estará
bem feito. Fui logo falar com ele. Recebeu-me muito bem. E no dia 2 de novembro já
estava no noviciado… De tal forma queda noite para o dia me tornei jesuíta.30 Ao
contemplar-me vestindo abatina da Companhia, quase não acreditava no que via. Parecia-
me um sonho, um encanto.

142. Como fazia pouco tempo que terminara os exercícios, encontrava-me muito fervoroso.
Todo meu desejo era buscar a perfeição e, como no noviciado via tantas coisas boas, tudo
me chamava a atenção. Tudo me agradava muito e o gravava no coração. De todos, podia
aprender algo e o aprendia de fato, auxiliado pela graça de Deus. Eu me confundia muito
quando via a todos tão adiantados na virtude e eu tão atrasado.Mais confundido e
envergonhado ainda fiquei na noite antes da festa da Imaculada Conceição, quando era lido
o relatório das obras boas praticadas em preparação à festa e em favor de Maria santíssima.

143. A preparação era feita assim: Quando se aproximava uma festa do Senhor, da
santíssima virgem ou de um santo especial, cada um, com permissão do diretor espiritual,
propunha-se à prática de algum a virtude, segundo a inclinação ou necessidade particular.
Cada um fazia seus atos correspondentes e continuava assim, praticando e anotando tudo o
que fazia e como fazia. Na véspera da festa, encerrava-se alista do que cada um havia feito,
em forma de carta, e eram colocadas na caixa que havia na porta do quarto do reitor. 31
Recolhidas as listas, organizava-se uma relação em forma de ladainha, que era lida na
capela, à noite, com a presença de todos.

144. A lista era encabeçada pelas seguintes palavras: Virtudes que os padres e irmãos desta
casa praticaram em homenagem a Maria santíssima e como preparação à festa da
Imaculada Conceição. Houve quem, a cada dia, fizesse uma porção de atos de tal virtude
dessa ou daquela maneira. E assim ia seguindo o relatório de todos. Quantas virtudes
praticadas vi naquela casa santa! Era essa uma das práticas de que mais gostava. Como não
aparecia o nome de quem praticava aquela virtude, não havia perigo de vaidade e todos
aproveitavam ao saber como a havia praticado para fazer uma coisa parecida em outra
ocasião.Quantas vezes dizia a mim mesmo: Como ficaria bem para ti tal virtude! Deves
praticá-la. E assim o fazia, ajudado pela graça de Deus.

145. Por regra não há exigência de mortificação. Porém, em nenhuma ordem religiosa são
mais praticadas do que na Companhia de Jesus. Algumas são públicas, outras não. Porém,
todas são realizadas sob a orientação do diretor espiritual. Às sextas-feiras, todos jejuavam,
aos sábados, quase todos. À noite, além da salada, oferecia-se um ovo a cada um, porém,
ninguém o comia. As sobremesas eram deixadas pela maioria, ou poucos comiam. Dos
pratos restantes, pouco se comia, era deixado de lado o que mais parecesse apetitoso. Todos
comiam pouquíssimo diariamente, e os padres mais rigorosos eram sempre os que menos
comiam.

146. O diretor espiritual, 32 padre Giovanni Maria Ratti, quase só comia pão e bebia água,
menos aos domingos. Ajoelhava-se diante de uma mesa mais baixa, no centro do refeitório.
Permanecia assim durante todo o almoço ou jantar da comunidade. Quem visse aquele
homem tão venerável ajoelhado diante de uma mesa de pão e água, se envergonharia de
estar sentado comendo fartamente!

147. Havia um padre, encarregado da portaria, chamado de “portinaro” 33 que, às quartas,


sextas, sábados e vigílias das solenidades, passava um caderno no qual cada um colocava o
que desejaria fazer. Por exemplo, o padre ou o irmão deseja comer no chão, beijar os pés,
permanecer com os braços em cruz durante a bênção da mesa e ação de graças, servir à
mesa, lavar os pratos, etc. Tudo era feito em silêncio e da seguinte maneira: quando
chegava a hora, o encarregado passava, batia e abria a porta do quarto e ficava do lado de
fora; saía o padre à porta, pegava o caderno, escrevia o que desejava praticar e o devolvia;
assim passava por todos os quartos. O caderno era apresentado ao reitor e este dizia: Fulano
e fulano, sim; os outros não. Retornava o encarregado aos quartos, batia à porta, fazia um
gesto com a cabeça indicando a aprovação, ou não, da penitência.

148. Além das mortificações exteriores havia as interiores, como o uso do cilício, correntes
finas de braço, de coxas, flagelações, etc., etc.: lavar copos, banheiros, lanternas,
candeeiros, lampiões, etc.,etc.; porém, para tudo se precisava de permissão.

149. Havia certas mortificações impostas sem serem solicitadas ou quase despercebidas.
Direi algumas que couberam a mim. Eu nunca fui afeiçoado ao jogo, mesmo assim me
faziam jogar todas as quintas-feiras, mandando-nos para um campo. Eu, com toda a
simplicidade, supliquei ao reitor que tivesse a bondade de me deixar estudar ou orar, em
vez de jogar, mas ele me respondeu energicamente que jogasse e que jogasse bem.
Empenhei-me de tal maneira que ganhava todas as partidas.

150. Notei que um sacerdote da casa celebrava missa muito tarde. O fato de ter de ficar
tanto tempo em jejum, deixava-o aborrecido, embora não se queixasse. Movido de
compaixão, eu disse ao superior que, se o permitisse, poderíamos fazer uma troca, e eu
celebraria a missa mais tarde, pois para mim não era problema tomar café mais tarde e para
ele seria mais cômodo. Disse-me que depois veria. E o resultado foi que daí por diante,
sempre me fizeram celebrar a missa cada vez mais cedo.

151. Como já disse, na viagem que fiz a Roma só levava o breviário de todo o ano e uma
Bíblia de letra pequena, para lê-la todos os dias, mesmo em viagem, porque sempre fui
muito afeiçoado à leitura da santa Bíblia. Pois bem, quando cheguei ao noviciado,
colocaram-me num quarto que tinha todos os livros que me fossem necessários, menos a
Bíblia, que eu tanto apreciava. Com a roupa de uso pessoal, levaram também a Bíblia que
eu trouxera. Pedi que a devolvessem e me disseram: Está bem. Mas não a vi até que, por
motivo de doença, tive de sair do noviciado e então ma devolveram. 34
152. Ao conduzir-me para Roma o Senhor me fez um grande favor: colocou-me, ainda que
por pouco tempo, entre aqueles padres e irmãos tão virtuosos. Oxalá tivesse aproveitado!
35 Porém, se não houve proveito para mim, pelo menos muito me serviu para fazer o bem
ao próximo. Ali aprendi o modo de pregar os exercícios espirituais de santo Inácio, o
método de pregar, catequizar e confessar com grande utilidade e proveito. 36 Ali aprendi
ainda outras coisas que, com o passar do tempo, muito me serviram. 37 Bendito sejais,
Deus meu, que tão bom e misericordioso haveis sido para comigo! Fazei que vos ame, que
vos sirva com todo o fervor e que vos faça amado e servido por todas as criaturas. Ó
criaturas todas, amai a Deus, servi a Deus!Provai e vede por experiência quão suave é amar
e servir a Deus. Ó meu Deus! Ó bem meu!

Capítulo VI
Orações escritas no Noviciado

153. Como nos recreios não se falava de outra coisa senão de virtudes, da devoção a Maria
santíssima e do modo de conquistar almas para o céu, nesses dias acendeu-se em mim tão
fortemente a chama do zelo para a maior glória de Deus e salvação dos homens, que estava
inteiramente inflamado. A Deus eu me oferecia todo inteiro, sem reservas. Pensava e
meditava continuamente no que faria para o bem do próximo e empenhava-me na oração
enquanto aguardava a hora do trabalho. Entre outras coisas, escrevi estas duas orações: 38

154. Primeira oração – Ó Maria santíssima, concebida sem pecado original, virgem e mãe
do Filho de Deus vivo, rainha e Imperatriz dos céus e da terra! Já que sois mãe de piedade e
misericórdia, dignai-vos voltar vossos ternos e compassivos olhos para este infeliz
desterrado neste vale de lágrimas, angústias e misérias que, embora infeliz, tema ditosa
sorte de ser vosso filho. Ó minha mãe, quanto vos amo! Quanto vos aprecio! Confio
plenamente que me concedereis a perseverança em vosso santo serviço e a graça final!

155. Em tempo oportuno, minha mãe, eu vos suplico e vos peço pelo fim de todas as
heresias que devoram o rebanho de vosso Filho. Lembrai-vos, piedosíssima virgem, de que
tendes poder de acabar com todas elas. Fazei isso por caridade, pelo grande amor que
professais a Jesus Cristo, vosso Filho. Olhai para as almas redimidas com o preço infinito
do sangue de Jesus, impedi que voltem de novo ao poder do demônio, desprezando vosso
Filho e a vós.

156. Eia, pois, minha mãe, o que falta? Desejais, por acaso, um instrumento para remediar
tão grande mal? Aqui tendes um; ao mesmo tempo em que se reconhece o mais vil e
desprezível, considera-se o mais útil para esse fim; para que resplandeça mais vosso poder
e se veja mais visivelmente que sois vós quem operais e não eu. Eia, mãe amorosa, não
percamos tempo: aqui me tendes, fazei de mim o que quiserdes, bem sabeis que sou todo
vosso. Sei que assim o fareis, por vossa grande bondade, piedade e misericórdia. Rogo-vos
pelo amor que tendes ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Amém.

157. Mais uma oração - Ó imaculada virgem e mãe de Deus, rainha e senhora da graça!
Dignai-vos, por caridade, lançar um olhar compassivo para este mundo perdido. Reparai
como todos abandonaram o caminho ensinado por vosso santíssimo Filho; esqueceram-se
de suas santas leis e perverteram-se tanto, que se pode dizer: Non est qui faciat bonum, non
est usque ad unum (Não há mais ninguém que faça o bem, nem um, nem mesmo um só).39
Extinguiu-se neles a santa virtude da fé, de modo que apenas vegetam. Ah! Extinguiu-se a
divina luz, tudo é escuridão e trevas e não sabem por onde andam, e desorientados, andam
apressadamente pelo largo caminho que conduz à eterna perdição.

158. E quereis, minha mãe, que eu, sendo um destes infelizes, olhe com indiferença sua
fatal ruína? Ah, não! Nem o amor que tenho a Deus nem o amor ao próximo podem tolerar
semelhante coisa. Que caridade é a minha se vendo meus irmãos em tantas dificuldades,
não os socorrer? 40 Que caridade é a minha se sabendo que num caminho há ladrões e
assassinos que roubam e matam, e não aviso os que para lá se dirigem? Que caridade é a
minha, sabendo que o lobo devora as ovelhas do meu senhor, eu me calo? Que caridade é a
minha se fico calado ao ver como roubam as jóias da casa de meu Pai, jóias tão preciosas
que custaram o sangue e a vida de um Deu, e ao ver que atearam fogo à casa e à herança de
meu amantíssimo Pai?

159. Ah! Não é possível ficar calado, minha mãe, em tais ocasiões; não, não calarei,
embora saiba que me farão em pedaços. Não quero ficar calado. Clamarei, gritarei, darei
ordens aos céus e à terra, afim de se remediar tão grande mal. Não calarei. E, se de tanto
gritar, se enrouquecer ou emudecer minha voz, levantarei as mãos ao céu,arrancarei os
cabelos e os golpes no chão com os pés suprirão a falta de palavras.

160. Por isso, minha mãe, começo desde agora a falar e a gritar. Acudo a vós, sim, a vós,
que sois mãe de misericórdia, dignai-vos prestar socorro a tão grande necessidade. Não
digais que não podeis, porque sei que, na ordem da graça, sois onipotente. Dignai-vos,
conceder a todos a graça da conversão, eu vos suplico, porque, sem ela, nada faríamos e,
então, enviai-me e vereis como se converterão. Sei que concedereis essa graça a todos os
que a pedirem verdadeiramente; porém, se não a pedem, é porque não sabem de sua
necessidade e, tão fatal é seu estado, que não conhecem o que lhes convém, o que me move
ainda mais à compaixão.

161. Portanto, eu, como primeiro e principal pecador, peço-vos por todos os demais,
oferecendo-me como instrumento de sua conversão.Ainda que esteja destituído de
qualidades para semelhante missão, não importa, mitte me: (envia-me) 41, assim melhor se
notará que, gratia Dei sum id quod sum: (Pela graça de Deus, sou o que sou). 42 Talvez
medireis que eles, como enfermos inconscientes, não queiram escutar quem os quer curar,
antes me desprezarão e me perseguirão de morte, não importa, mitte me, porque, cupio esse
anathema pro fratribus méis (Envia-me, porque desejo ser anátema por amor de meus
irmãos). 43 Ou ainda direis que não poderei sofrer tantas intempéries como o frio, calor,
chuvas, nudez, fome, sede, etc., etc. Não há dúvida de que por mim mesmo nada posso
suportar, porém confio em vós e digo: Omnia possum in ea quae me confortat (Tudo posso
naquela que me conforta).44

162. Ó Maria, minha mãe e minha esperança, consolo de minha alma e objeto de meu
amor! Lembrai-vos das muitas graças que vos tenho pedido, e todas mas concedestes.
Justamente agora verei esgotado esse manancial perene? Não. Não se ouviu nem se ouvirá
jamais que nenhum devoto vosso tenha sido rejeitado por vós. 45 Vede, senhora, tudo que
peço se dirige à maior glória de Deus e vossa, e para o bem das pessoas, por isso espero
alcançar e alcançarei, e para que o concedais ainda mais rápido, não alegarei méritos meus,
porque não tenho senão deméritos; direi, sim, como a filha que sois do eterno Pai, mãe do
Filho e esposa do Espírito Santo, é muito bom que zeleis pela honra da santíssima
Trindade, da qual é viva imagem a alma do homem e, além disso, essa mesma imagem é
banhada com o sangue do Deus humanado.

163. Se Jesus e vós tendes feito tanto por minha alma, agora a abandonareis? É verdade que
é merecedora desse abandono. Porém, por caridade vos suplico, não a abandoneis. Peço-
vos, pelo que há de mais santo e sagrado no céu e na terra, peço-vos por aquele mesmo que
eu, ainda que indigno, hospedo todos os dias na minha casa, falo-lhe como amigo, mando e
me obedece, descendo do céu à minha voz. Este é o mesmo Deus que vos preservou da
culpa original, que se encarnou em vossas entranhas, que vos encheu de glória no céu e vos
fez advogada dos pecadores; e este, não obstante ser Deus, me ouve, me obedece cada dia.
Ouvi-me, pois, ao menos esta vez e dignai-vos conceder-me a graça que vos peço. Tenho
certeza de que o fareis, porque sois minha mãe, meu alívio, meu consolo, minha fortaleza e
meu tudo depois de Jesus. Viva Jesus, viva Maria. Amém.

164. Jaculatória - Ó Jesus e Maria! O amor que vos tenho faz-me desejar a morte para
poder estar unido a vós no céu; porém, tão grande é o amor, que me faz pedir longa vida,
para ganhar almas para o céu! Ó amor! Ó amor! Ó amor! Estas duas orações, como já disse,
as escrevi no Noviciado de Roma. O padre ecônomo viu-as e gostou delas. 46 Tudo seja
para a maior glória de Deus e a salvação das almas.

Capítulo VII
Saída de Roma e chegada à Espanha

165. Eu estava muito contente no noviciado, sempre ocupado na catequese, 47 na pregação


e nas confissões. Além do mais, todas as sextas-feiras íamos ao hospital de San Giácomo
confessar os enfermos, 48 e aos sábados íamos ao cárcere pregar aos presos. Ingressei no
noviciado no dia 2 de novembro de 1839, dia de finados, e no dia da festa da purificação de
Maria santíssima, 2 de fevereiro de 1840, quatro meses 49 depois de meu ingresso,
iniciamos os Exercícios de Santo Inácio com a duração de um mês. Iniciei-os com
muitíssimo gosto e com grandes desejos de aproveitar bem deles.

166. Assim ia eu progredindo quando, de repente, fui acometido de uma dor tão forte na
perna direita que não podia caminhar. Foi necessário ir à enfermaria. Aplicaram-me os
remédios oportunos, o que me aliviou um pouco, mas não totalmente. Eles temiam que eu
ficasse paralítico. 50 Ao ver-me nesse estado, disse o padre reitor: O que acontece com
você não é natural, pois sempre estava tão contente, alegre, saudável; e agora, de um
momento para outro, aparecem essas novidades. Isto me faz pensar que o Senhor quer outra
coisa de você. E disse-me: Se achar conveniente, poderá consultar o padre geral (ou o
consultaremos), ele que é muito bom e tem tantos conhecimentos de Deus. Respondi que
achava muito bom e me apresentei a ele. Escutou-me com muita atenção e, depois de ter
ouvido a narrativa dos acontecimentos, disse-me com muita resolução, sem titubear: É
vontade de Deus que você volte imediatamente para a Espanha. Não tenha medo, ânimo!
167. Depois desta irrevogável resolução, não tive outro remédio senão voltar para a
Espanha. Com o tempo, vim a entender que o superior geral estava inspirado quando me
disse aquelas palavras. 51 Em uma de suas cartas que me escreveu dizia: Deus o levou à
Companhia, não para que ficasse nela, mas para que aprendesse a ganhar almas para o céu.
52 Em meados de março, saí de Roma em direção à Catalunha. 53 Os padres da Companhia
queriam que eu fosse morar na cidade de Manresa, 54 e o padre Fermín de Alcaraz 55
queria que eu fosse a Berga, onde estavam pregando missões, deixando-me, não obstante
com inteira liberdade de escolha, segundo as circunstâncias daqueles tempos.Estudei a
possibilidade de fixar-me em Olost, depois Vic, mas o meu superior 56 disse-me que não
poderia ir a nenhum desses pontos e sim a Viladrau. De fato, no dia 13 de maio nomeou-me
auxiliar daquela paróquia. 57 Aí acabei de me restabelecer da enfermidade.

168. Na paróquia de Viladrau havia um pároco residente, idoso e inválido. Havia também,
no mesmo povoado, um vigário paroquial. A paróquia ficava por conta do padre vigário. A
mim, dava-me o sustento mínimo necessário e eu cuidava da parte espiritual. Em minha
ausência, ele se encarregava também de toda a parte espiritual. 58 Isso foi bom para mim,
pois foi uma boa oportunidade para começar as missões.

169. Quão admirável é a providência do Senhor por me ter livrado de ira Berga. Estaria
comprometido pelo simples fato de ir até lá, pois acidade era também reduto de realistas
(que eram a favor do rei). 59 Bendito sejais, meu Deus, porque tudo dispusestes da melhor
maneira possível para vossa glória e salvação das almas!

Capítulo VIII
Início das missões e cura de doenças

170. Estabelecido em Viladrau como auxiliar, fazia o melhor possível para o bem espiritual
de todos. Aos domingos e festas, explicava o evangelho de manhã na missa paroquial e, à
tarde, ensinava o catecismo às crianças e adultos de ambos os sexos. Diariamente visitava
os enfermos. E como Viladrau não era um povoado fortificado, continuamente vinham
pessoas de diferentes facções partidárias. Os médicos, por serem comumente pessoas de
prestígio e destaque, acabavam sendo vítimas de todos os partidos. Conclusão: a população
ficou sem nenhum médico. 60

171. E assim tive de fazer de médico corporal e espiritual, tanto pelos conhecimentos que
tinha como pelos estudos que fazia nos livros de medicina que arranjei. Quando me
apresentavam algum caso duvidoso, pesquisava-o nos livros, e o Senhor de tal modo
abençoava os remédios que não morreu nenhum dos que mediquei. Foi assim que começou
a correra fama de que eu curava, e vinham enfermos dos mais diversos lugares. 61

172. No dia 15 de agosto de 1840, com a novena da Assunção da Virgem Maria, 62 iniciei
as missões na paróquia de Viladrau. Depois preguei outra missão na paróquia de
Espinelvas, distante uma hora de Viladrau. Logo depois, passei à paróquia de Seva. Esta já
foi mais movimentada.Participou muita gente, muitos se converteram e fizeram confissão
geral. Aqui comecei a ter fama de missionário.
173. No mês de novembro, preguei a novena das almas em Igualada e Santa Coloma de
Queralt, com grande aceitação. E assim, durante oito meses, saía e voltava a Viladrau. Mas
não foi possível continuar por mais tempo, porque, como já disse, enquanto me encontrava
no povoado, visitava diariamente todos os doentes e todos se curavam. Morriam somente
aqueles que ficavam doentes em minha ausência. Quando eu retornava, seus parentes me
procuravam e diziam como Marta e Maria ao Salvador: Domine, si fuisses hic, frater meus
non fuisset mortuus (Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido). 63
Como não podia ressuscitar os mortos, como Jesus, mortos ficavam. Isto me afligia muito,
ao ver as lágrimas daquelas pessoas e ouvir as razões alegadas para que não saísse da
paróquia a pregar missões.

174. Todos estes acontecimentos obrigaram-me a pedir ao superior que me exonerasse do


cargo de auxiliar e me deixasse livre de paróquias e contasse comigo para pregar onde fosse
preciso. E ele atendeu ao meu pedido. Afastei-me de Viladrau com grande sentimento de
todo o povo, devido às diversas curas que Deus nosso Senhor operava por mim, pois
reconheço que tudo aquilo estava além do natural. 64 Eu não curava os enfermos para
ganhar dinheiro ou outra coisa que o valha, pois nada aceitava. Só o fazia por necessidade e
por caridade.

175. Na época do verão, crianças adoeciam e, com uma única aplicação do remédio,
ficavam boas. Numa madrugada, visitei um jovem de 25 anos, já inconsciente e às portas da
morte. Dei-lhe um simples remédio.Recuperou os sentidos e, dois dias depois, estava
completamente curado.

176. Na periferia do povoado de Viladrau, havia uma mulher casada que sofria de dores
reumáticas. Sofria tanto que a violência da dor lhe havia encolhido os nervos, de tal forma
que a coitada se havia tornado uma bola. Apesar do lastimoso estado, ficou grávida, e o
problema maior foi aos nove meses, na hora do parto. Chegara a hora de dar à luz. Eu
estava na paróquia de Seva pregando a novena das almas. Como sabiam que eu ia voltar,
saíram ao meu encontro. Disseram-me que a mulher estava em trabalho de parto e sem
esperança de vida. O vigário paroquial tinha-lhe ministrado os sacramentos da penitência, o
viático e a unção dos enfermos. Ela estava realmente à morte. Ela e todos da casa
desejavam ver-me. Imediatamente, antes de chegar à casa paroquial, fui visitá-la. Vi seu
estado crítico e o remédio que deveria ser aplicado. Porém, convenci o marido de que era
necessário ir ao povoado de Taradell buscar um médico cirurgião. Foram procurá-lo com
uma carta minha, na qual explicava a situação da mulher. Ao ler a carta, o médico percebeu
que o caso era realmente desesperador e se recusou a vir. Diante da resposta negativa, pedi
então aos de casa que colhessem certas ervas e as fervessem. O resultado foi que o parto se
deu muito bem. E ainda mais, com o tratamento curou-se do reumatismo e ficou boa.
Alguns dias depois começou a freqüentar a missa.

177. Ao passar pela rua, vi um rapaz de dezesseis anos, na porta de casa, completamente
tolhido e para o qual já não havia remédio.Perguntei à sua mãe o que tinha e quanto tempo
estava assim. Ela me respondeu... E eu lhe disse: faça isso e aquilo. Alguns dias depois,
estava curado, na igreja, participando da missa.
178. Naquele povoado e arredores, havia muitas jovens de quinze a dezenove anos que
sofriam de uma doença chamada “espatlladas” ou de“la naurella”, causada pelo esforço
repetido no trabalho de amassar pão, carregar lenha, água e outros serviços pesados. O
esforço físico excessivo provoca pequenas fístulas que, ao se romperem, causam um
sofrimento horrível. Como não encontram remédio na medicina, procuram certos
curandeiros que, com suas charlatanices dizem que curam, mas não é bem assim. Cobram
dinheiro, e muito comumente nada fazem e ainda abusam dos enfermos. Sabendo disto,
entreguei o problema a Deus nosso Senhor. Ocorreu-me a idéia de que o remédio seria um
emplastro e repouso por alguns dias. Com a aplicação, todos, sem exceção, ficavam
curados. Porém, para me precaver e como eram conhecidos os expedientes pouco decentes
que utilizavam com o pretexto de curar, valia-me do seguinte meio: Havia no povoado uma
viúva muito velha e piedosa.Combinei com ela que, quando viesse alguma jovem
acompanhada de sua mãe, queixando-se do mal de “espatllada”, que ela mesma fizesse as
aplicações dos emplastros. Assim foi feito. Todas as jovens que vinha ma mim por causa
daquela enfermidade, eu as remetia à viúva, ela lhes aplicava o emplastro e todas ficavam
curadas. Assim eu não me comprometia.

179. Aquela povoação fora muito maltratada, por ter sido palco da guerra civil. Havia sido
saqueada pelo menos treze vezes. Ataques de surpresa de um lado e de outro, incêndios,
mortes, cujas conseqüências eram espanto, tristeza e desgosto. Muitas pessoas vinham pedir
consolo, especialmente mulheres, pois sofriam de enfermidades histéricas que as faziam
sofrer horrores. Preparei óleo comum com algumas coisas que nele fervia. As pessoas
tomavam e se ungiam comesse óleo e todas ficavam curadas.

180. Enquanto permaneci em Viladrau, todos os enfermos do povoado,como também


muitos outros vindos de fora, ficaram curados. Como a fama se espalhasse, em todos os
lugares aonde ia, apresentavam-me muitos doentes dos mais diversos tipos de
enfermidades. Como eram tantos os enfermos e tão diferentes os males e, por outro lado, eu
me encontrava tão ocupado em pregar e confessar, achei conveniente não mais indicar
remédios físicos. Dizia apenas que os encomendava a Deus, traçava sobre eles o sinal-da-
cruz e lhes dizia estas palavras: Super aegros manus imponent et bene habebunt (Imporão
as mãos sobre os enfermos e eles ficarão curados). 65 E diziam que ficavam curados.

181. Estou certo de que ficavam curados pela fé e confiança com que se apresentavam, e
Deus nosso Senhor lhes premiava a fé com a saúde corporal e espiritual, porque eu os
exortava a que confessassem bem todos os seus pecados, e eles obedeciam. Além do mais,
o Senhor agia dessa forma, não por meus méritos, que não os tinha, mas para dar
importância à palavra divina que eu lhes pregava, pois como tivesse passado tanto tempo
ouvindo maldades, blasfêmias e heresias, Deus nosso Senhor chamava-lhes à atenção com
estas coisas corporais. E, na verdade, o povo se reunia em massa, ouvia a divina palavra
com grande fervor, fazia confissão geral, na mesma povoação ou em outras, porque muitas
vezes era impossível atender a todos aqueles que queriam se confessar.

182. Ó meu Deus, como sois bom! Vós vos servis das doenças do corpo para curar as da
alma. Vós vos valeis deste miserável pecador para curar corpos e almas. Evidentemente,
via-se então o que dizia o profeta: Domini est salus (Do Senhor provém a salvação). 66
Sim, Senhor, vossa é a saúde, e vós a concedeis.
Capítulo IX
Os falsos possessos e a cura dos verdadeiros

183. Uma categoria de doenças mais perturbadora e que exigia mais tempo era a dos
possessos e perturbados. 67 No início das missões, apareciam muitos, dizendo estarem
possessos, e os parentes me pediam que os exorcizasse. Como era autorizado a fazer o
exorcismo, eu o fazia. Porém, de mil, apenas um era, com certeza, possesso; os outros
sofriam de manias físicas, morais, que não cabe aqui especificar.

184. Como percebi que perdia tempo com os supostos endemoninhados, em detrimento das
confissões e da pregação, concluí: é mais importante tirar os demônios das almas que estão
em pecado mortal e não dos corpos, se é que eram possessos. Pensei que aquilo podia ser
uma armadilha do próprio demônio e assim resolvi deixar os exorcismos e tomar outro
caminho, que a seguir veremos.

185. Quando se me apresentava alguém que se dizia possesso, perguntava-lhe se queria


ficar curado... Se realmente desejava ser curado, se acreditava que, fazendo o que lhe
ordenasse, ficaria curado... Se me garantisse que sim, pedia-lhe três coisas: primeira, que
encarasse tudo com paciência, que não se irritasse jamais, pois havia observado que alguns
sofriam de histeria, resultante de mau gênio ou de raivas reprimidas e, com paciência, podia
acalmá-los.

186. Segunda, pedia que não bebessem nem vinho nem outra bebida alcoólica e que isso
era necessário para que se expulsasse essa espécie de demônios, pois havia observado que
alguns bebiam muito e,para disfarçar seus disparates, punham a culpa nos demônios.

187. Terceira, fazia-os rezar diariamente sete vezes o Pai-nosso e a Ave Maria a Nossa
Senhora, em honra às suas sete dores; que fizessem uma confissão geral e que
comungassem fervorosamente. Seja como for, o certo é que alguns dias depois vinham
contar que estavam libertos e curados. Não digo que não haja possessos. Sim, existem, e
conheci alguns, porém muito poucos.

188. No decorrer das missões, tinha encontrado alguns que se haviam convertido mediante
a pregação e diziam, com toda a franqueza, que não eram portadores de possessões, nem
doenças físicas, mas mania, com a finalidade de chamar a atenção, para serem mimados ou
merecerem compaixão, para obterem ajuda e com muitos outros objetivos.

189. Alguém me dizia que fazia tudo com conhecimento e malícia da vontade, mas fazia
coisas tão estranhas e extraordinárias, que se admirava de si mesmo, e que, com certeza, o
diabo cooperava e o ajudava, não por possessão diabólica, mas por causa da malícia do
coração, pois reconhecia que não poderia fazer tudo isso naturalmente.

190. Uma outra pessoa que vivia numa cidade grande disse-me que fingia tão bem estar
possessa que com muita freqüência exorcizavam-na e que, por um bom tempo de sua
mania, enganara a vinte sacerdotes, tidos como os mais sábios, virtuosos e zelosos da
cidade.

191. Estes e outros casos que poderia referir de pessoas que, verdadeiramente arrependidas
e movidas pela graça, confessavam com humildade e clareza seus feitiços e ficções
diabólicas, fizeram-me ter muita cautela nessa matéria, e por isso valia-me grandemente da
estratégia mencionada. Ó meu Deus! Quantas graças devo dar-vos por meter feito conhecer
os ardis de satanás e das pessoas fingidas! Esse conhecimento é um dom de vossa santa
mão. Iluminai-me, Senhor, para que não me engane jamais na orientação das almas. Eu
bem sei, Senhor, que vós concedeis com generosidade a sabedoria a quem dela tem
necessidade, sem considerar sua indignidade. Porém, às vezes, por nossa soberba e talvez
por nossa fraqueza, não a pedimos e então nos privamos dela, mesmo aqueles homens que
se arvoram em sábios e grandes teólogos.

Capítulo X
O missionário deve ser enviado pelo bispo

192. Eu procurava que o bispo sempre me enviasse a pregar. Tinha convicção da


necessidade que o missionário tem de ser enviado para produzir fruto. 68

193. Em meados de janeiro de 1841, depois de ter sido vigário paroquial de Viladrau
durante oito meses, cuidando da paróquia e saindo de tempo em tempo para pregar em
diferentes paróquias, por disposição do bispo, saí finalmente a pregar continuadamente
onde o bispo me enviasse, sem fixar-me em nenhum lugar. 69 Minha residência era Vic,
ainda que ali parasse pouco tempo, daí saía com uma lista de povoações por onde devia
pregar. 70

194. Não poucas vezes os bispos de outras dioceses pediam para que fosse pregar missões
em suas dioceses. O bispo aprovava e eu ia. Eu tinha por princípio inalterável não ir jamais
a nenhuma paróquia ou diocese, se não tivesse a ordem expressa do meu bispo, isto por
razões muito fortes: uma, porque assim me conduzia pela virtude da santa obediência,
virtude que o Senhor premia a cada momento, pelo muito que lhe agrada. Assim estava
ciente de que fazia a vontade de Deus, que era ele que me enviava e não meu capricho e,
além disso, via claramente a bênção de Deus pelo fruto que se produzia. Em segundo lugar,
a conveniência, porque como me pediam de todas as partes com grande insistência, eu os
satisfazia só com estas palavras: se o bispo me mandasse, iria de muito boa vontade. Desta
forma me deixavam em paz; entendiam-se com o bispo e ele me enviava. 71

195. Cheguei à conclusão de que o missionário jamais deve ser intrometido. Deve, sim,
estar à disposição do bispo e dizer: Ecce ego, mitte me (Aqui estou, envia-me); 72 porém,
não deve ir enquanto o bispo não o mandar, pois será um mandato do próprio Deus. Todos
os profetas do Antigo Testamento foram enviados por Deus. O próprio Jesus Cristo foi
enviado por Deus e Jesus enviou seus Apóstolos. Sicut misit me Pater et ego mitto vos
(Como o Pai me enviou, assim também eu envio avós). 73
196. Nas duas pescas milagrosas, figura das missões, se vê a necessidade da missão,
quando e onde pregar para pescar almas. A primeira, narrada por São Lucas, (c. 5),
manifesta a necessidade da missão, pois sem ela não se faz nada. Segundo o evangelista,
Jesus disse aos apóstolos: Lançai vossas redes para pescar. Simão respondeu: Mestre,
trabalhamos a noite inteira e nada apanhamos; mas por causa de tua palavra, lançarei a
rede. 74 Tendo lançado a rede, apanharam uma quantidade tão grande de peixes que a rede
se rompia, por isso fizeram sinal aos companheiros de outro barco para ajudá-los. Vieram
logo e encheram os dois barcos de peixes a ponto de quase afundarem. Pedro admirou-se, e
Jesus lhe disse: Não te admires nem te espantes; doravante serás pescador de homens. 75
Assim se vê como esta pesca é figura da missão e a necessidade que tinham de ser enviados
e quando deviam pregar.

197. A segunda pesca milagrosa foi a que fizeram após a ressurreição de Jesus, como se
refere São João (c. 21): Jesus apareceu-lhes como desconhecido, após terem pescado em
vão, pois nada tinham pescado.Assim, pois, Jesus perguntou-lhes se tinham alguma coisa
para comer; ao que eles responderam: Nada pegamos e nada temos. Disse-lhes Jesus então:
Lançai a rede ao lado direito da barca e achareis. 76 Lançaram a rede e já não podiam tirá-
la pela quantidade de peixes que havia.Contaram os peixes, eram cento e cinqüenta e três
peixes grandes.Nessa segunda pesca, nota-se, não só a necessidade de ser enviado, mas
também quando e onde pregar, bem como a retidão que devem ter para pescar almas de
grandes pecadores; não só cento e cinqüenta e três, mas muitíssimas, porque cem, cinqüenta
e três são números misteriosos. 77

198. A necessidade de ser enviado, e que o próprio bispo me indicasse o lugar, foi o que
Deus me fez conhecer desde o princípio. Mesmo senas povoações às quais me enviava
houvesse pessoas más e desmoralizadas, sempre se obtinham grandes frutos, pois era Deus
que me enviava; que dispunha e preparava os lugares. Entendam, portanto, os missionários
que sem obediência não devem ir a nenhuma parte, por melhor que seja; porém, com a
obediência não temam ir a qualquer povoação ou cidade, por pior que seja, ou pelas
perseguições que se levantem. Deus os enviou, ele cuidará de vocês. 78

Capítulo XI
Objetivos ao ser enviado em missão

199. Quando ia a uma povoação, nunca visava motivações terrenas, mas o fazia para a
maior glória de Deus e salvação das almas. 79 Não poucas vezes via a necessidade de
advertir as pessoas sobre esta verdade; era o argumento que mais convencia os bons e os
maus.

200. Vós sabeis que os homens quase sempre agem por alguma destas três finalidades: 1)
por interesse ou dinheiro; 2) por prazer; 3) pela honra. Por nenhum desses três motivos
estou pregando missão nessa cidade. Não por dinheiro, porque não quero um centavo de
ninguém, nem nada levarei. Nem por prazer: que prazer teria fatigando-me todo o dia,
desde de manhã, e bem cedo, até à noite? Se algum de vocês, pelo fato de estar esperando
sua vez para chegar ao confessionário, deve aguardar três ou quatro horas, se cansa;
também eu que fico todas as horas da manhã, todas da tarde e, de noite, em vez de
descansar, tenho que pregar, e isto não um dia só, mas dias e dias, semanas, meses e anos.
Ah! meus irmãos, pensando bem!...

201. Será, talvez, por honrarias? Não. Tampouco por honrarias. Vós bem sabeis a quantas
calúnias se está exposto: haverá quem me elogie, ou quantos não proferirão contra mim
toda espécie de insultos, como faziam os judeus contra Jesus, falando mal de sua pessoa,
das suas palavras, das obras que fazia, até que, finalmente, o prenderam, açoitaram e lhe
tiraram a vida num doloroso e vergonhoso suplício. Digo, porém, com o apóstolo Paulo,
que não temo nenhuma destas coisas, nem aprecio mais minha vida que minha alma,
contanto que termine a contento minha carreira e cumpra o ministério que recebi de Deus
nosso Senhor para pregar o santo Evangelho. 80

202. Não, vo-lo repito, não é por nenhum fim terreno, mas por um fim mais nobre. O fim a
que me proponho é que Deus seja conhecido, amado e servido por todos. Quem dera tivesse
todos os corações dos homens para com todos eles amar a Deus. Ó meu Deus! As pessoas
não vos conhecem!Se conhecessem vossa sabedoria, vossa onipotência, vossa bondade,
vossa formosura, todos vossos divinos atributos! Todos seriam Serafins abrasados em
vosso divino amor. Isto é o que pretendo: Tornar Deus conhecido para que seja amado e
servido por todos.

203. Também me proponho impedir que se cometam pecados e ofensas a Deus. Ah! Aquele
Deus que é amado pelos Serafins, servido pelos anjos, temido pelas potestades e adorado
pelos principados, pois este Deus é ofendido por um vil verme da terra, o homem! Pasmai,
ó céus, por isto!Ah! Se um nobre cavalheiro visse uma dama inocente e virtuosa injuriada e
ultrajada, não poderia conter-se, tomaria suas dores e a defenderia. Pois, como não agir
vendo Deus ofendido e ultrajado?

204. Se vísseis vosso pai levando pauladas e facadas, não correríeis para defendê-lo? Não
seria crime ver com indiferença o pai em tal situação? Não seria eu o maior criminoso se
não procurasse impedir os ultrajes feitos pelos homens a Deus, que é meu Pai? Ah, meu
Pai! Eu o defenderei, mesmo que me custe a vida. Eu me abraçarei a vós e direi aos
pecadores: Satis est vulnerum, satis est (Basta de feridas, já basta), como dizia Santo
Agostinho. 81 Alto lá, pecadores! Não açoiteis mais meu Pai. Já descarregastes bastantes
açoites, muitas chagas haveis aberto. Se não vos quereis deter, açoitai-me a mim, que bem
o mereço; porém, não açoiteis nem maltrateis mais a meu Deus e meu Pai, a meu amor. Ó
meu amor! Ó amor meu!

205. Igualmente obriga-me a pregar sem parar, ao ver a multidão de almas que caem nos
infernos, pois é verdade de fé que todos os que morrem em pecado mortal se condenam.
Ah! a cada dia, morrem oitenta mil pessoas (segundo cálculo aproximado de então).
Quantas morrerão em pecado e se condenarão! Pois que talis vita, finis ita (tal vida, tal
morte).

206. Vejo o modo como vivem as pessoas, muitíssimas acomodadas e habitualmente em


pecado mortal e não há dia em que não aumente o número de seus delitos. Cometem a
iniqüidade com a facilidade com se bebe um copo de água; por simples brincadeira e para
fazer graça praticam a iniqüidade. Esses desafortunados, pelos próprios pés, dirigem-se
para o inferno, como diz o profeta Sofonias: Ambulaverunt ut caeci quia Domino
peccaverunt (Andaram como cegos, porque pecaram contra o Senhor). 82

207. Se vísseis um cego em perigo, prestes a cair num poço, ou num precipício, não o
advertiríeis? É o que eu faço e o que em consciência devo fazer: advertir os pecadores para
que vejam o precipício do inferno em que vão cair. Ai de mim, se assim não agisse! Eu me
sentiria réu de sua condenação! 83

208. Talvez me advertireis que irão insultar-me, que os deixe, que não me meta com eles.
Ah!, não, meus irmãos! Não posso abandoná-los; são meus queridos irmãos. Dizei-me: se
vós tivésseis um irmão muito querido doente e que, por causa da doença entrasse em
delírio, e se por causa da febre alta vos insultasse e vos dissesse todas as ofensas do mundo,
vós o abandonaríeis? Estou certo que não. Por isso mesmo, teríeis mais consideração e
faríeis todo o possível para que recuperasse a saúde. Este é o caso em que me encontro com
os pecadores. Os coitados estão como que em delírio. Por isso mesmo são mais dignos de
compaixão. Não posso abandoná-los. Trabalho por eles para que se salvem. Rogo a Deus
por eles, dizendo com Jesus Cristo: Pai, perdoai-os, pois não sabem o que fazem nem o que
dizem. 84

209. Quando vedes um réu caminhando em direção ao suplício, ficais compadecidos. Se o


pudésseis libertar, o que não faríeis? Ah! Meus irmãos, quando vejo alguém em pecado
mortal e vejo que a cada passo se aproxima do suplício do inferno, vendo-o em tão infeliz
estado e tendo eu nas mãos os meios para libertá-lo – que é converter-se a Deus, pedir-lhe
perdão e fazer uma boa confissão –, ai de mim se não fizer isso!

210. Quem sabe me direis que o pecador não pensa no inferno, nem mesmo crê que ele
exista. Tanto pior. Por ventura julgais que por isso não será condenado? Não, com certeza.
Antes, pelo contrário, é o mais claro indício de sua fatal condenação, como diz o
Evangelho: qui non crediderit, condemnabitur (O que não crê será condenado). 85 No dizer
de Bossuet, 86 esta verdade existe independente de sua crença. Mesmo que não creia nem
pense no inferno, não deixará, por isso, de ir para lá, se tiver a desgraça de morrer em
pecado mortal.

211. Confesso com franqueza que, ao ver os pecadores, não tenho sossego, não posso
acomodar-me. Não tenho consolo. Meu coração me leva até eles. Para que entendais o que
se passa comigo, valho-me de uma comparação. Se uma mãe, terna e carinhosa, visse seu
filho prestes a cair de uma janela muito alta ou em uma fogueira, não correria, não gritaria:
Meu filho, meu filho, não vês que vais cair? Não o pegaria e o puxaria para trás se o
pudesse alcançar? Ah, meus irmãos! Deveis saber que mais poderosa e valente é a graça
que a natureza. Pois seu ma mãe, pelo amor natural que tem a seu filho, corre, grita, segura-
o e o tira do precipício, eis o que a graça divina faz em mim.

212. A caridade me impele, 87 faz-me correr de uma povoação a outra, obriga-me a gritar:
Meu filho, pecador, olha que vais cair nos infernos! Alto lá! Não dês mais um passo
adiante! Quantas vezes peço a Deus o que pedia santa Catarina de Sena: Dai-me, Senhor,
poder colocar-me à porta do inferno para poder deter a quantos se dirigem a ele e dizer a
cada um: Aonde vais, infeliz? Volta para trás, faz uma boa confissão, salva tua alma e não
venhas aqui para este lugar de perdição eterna! 88

213. Outro motivo, entre os muitos que me impelem a pregar e confessar, é o desejo que
tenho de tornar feliz o meu próximo. Que alegria tão grande é devolver a saúde ao enfermo,
liberdade ao preso, consolo ao aflito e fazer feliz o desafortunado! Pois tudo isto e muito
mais se faz, ao procurar para meu próximo a glória do céu. É preservá-lo de todos os males
e fazer com que desfrute de todos os bens e por toda a eternidade. Agora não entendem os
mortais, porém, quando estiverem na glória, então conhecerão o bem tão grande que lhes
foi oferecido e que felizmente conseguiram. Então, cantarão as eternas misericórdias do
Senhor e as pessoas misericordiosas serão abençoadas.

Capítulo XII
Estímulos para pregar missões

214. Além do amor que sempre tive pelos pobres pecadores, o que também me move a
trabalhar por sua salvação é o exemplo dos profetas, de Jesus Cristo, dos apóstolos, dos
santos e das santas, cujas vidas e histórias tenho lido com freqüência, anotando as
passagens mais interessantes, para meu uso, proveito e mais me estimular. Vou referir aqui
alguns desses fragmentos: 89

215. O profeta Isaías, filho de Amós, da real família de Davi, profetizava e pregava. Seu
objetivo principal era alertar o povo de Jerusalém e demais hebreus para suas infidelidades,
anunciando-lhe o castigo de Deus, que viria dos assírios e dos caldeus, como de fato
aconteceu. Seu cunhado, o ímpio rei Manassés, matou-o, fazendo serrar seu corpo ao meio.

216. O profeta Jeremias profetizou por 45 anos. Seu principal objetivo foi exortar o povo à
penitência, anunciando-lhe os castigos que o Senhor lhe enviaria. Foi levado ao Egito e, em
Taphnis, cidade principal, foi morto, apedrejado pelos próprios judeus. Seu distintivo
principal: uma terníssima caridade para com o próximo; caridade cheia de compaixão, não
só por seus males espirituais, mas também pelos materiais; caridade que não lhe permitia
descanso. E assim, em meio ao tumulto da guerra, em meio à deterioração do reino, que se
arruinava a olhos vistos, no cerco de Jerusalém, durante a própria mortandade do povo,
trabalhou sempre com muito ardor pelo bem público de seus concidadãos, por cujo motivo
recebeu o apelido de Amante de seus irmãos e do povo de Israel.

217. O profeta Ezequiel profetizou e pregou durante vinte anos e teve a glória de morrer
como mártir da justiça. Foi morto próximo à Babilônia, pelo príncipe de seu povo, por tê-lo
repreendido por causado culto que tributava aos ídolos.

218. O profeta Daniel foi dotado de incríveis dons, como um dos grandes profetas. Não só
predisse as coisas do futuro, como o fizeram os demais profetas, mas determinou a época
em que haveriam de acontecer. Por inveja, foi lançado à cova dos leões, mas Deus o
libertou.
219. O profeta Elias foi homem de fervorosa e eficacíssima oração, de enorme e
extraordinário zelo. Foi perseguido de morte, embora não tenha morrido, pois um carro de
fogo o arrebatou.

220. O Eclesiástico, ao falar dos doze profetas menores, assim chamados porque os escritos
que nos deixaram são curtos, diz que restauraram Jacó e eles se salvaram a si mesmos
mediante a virtude da fé. 90

221. O que mais e mais me estimulava era contemplar a maneira como Jesus Cristo se
deslocava de uma povoação a outra, pregando em todas as partes, não só nas grandes
cidades, mas também nas aldeias, até para uma única mulher, como fez com a samaritana,
ainda que estivesse cansado da caminhada, abatido pela sede, numa hora inoportuna, tanto
para ele como para a mulher.

222. Desde o princípio fiquei empolgado com o estilo da pregação de Jesus. Que
comparações! Que parábolas! Eu me propus imitá-lo nas comparações, metáforas e estilo
simples. 91 Mas também, quantas perseguições!… Foi sinal de contradição, perseguido por
causa de sua doutrina, de suas obras e de sua pessoa, até lhe tirarem a vida à força de
injúrias, de tormentos e de insultos, sofrendo a mais vergonhosa e dolorosa morte que se
pode padecer sobre a terra.

223. Sinto-me também muito animado ao ler o que fizeram e o quanto sofreram os
Apóstolos. O apóstolo Pedro, no primeiro sermão, converteu três mil homens e, no
segundo, cinco mil. 92 Com que zelo e fervor terá pregado! Que direi de Tiago, de João e
de todos os demais? Com que solicitude, com que zelo corriam de um reino a outro! Com
que zelo pregavam, sem temor nem respeito humano, considerando que antes se deve
obedecer a Deus que aos homens. E assim responderam aos escribas e fariseus quando os
proibiam pregar. 93 Se os açoitavam, nem por isso se amedrontavam e se abstinham de
pregar; ao contrário, sentiam-se felizes e ditosos por terem sido achados dignos de padecer
por Jesus Cristo. 94

224. Porém, o que me entusiasma é o zelo do apóstolo Paulo. Como corre de um lugar a
outro, levando, como precioso tesouro, a doutrina de Jesus Cristo! Ele prega, escreve,
ensina nas sinagogas, nos cárceres e em todos os lugares. Trabalha e faz trabalhar oportuna
e inoportunamente. É açoitado, apedrejado; sofre perseguições de toda espécie, e calúnias,
as mais atrozes. Ele, porém, não se espanta, pelo contrário, compraz-se nas tribulações e
chega a dizer que não quer gloriar-se a não ser na cruz de Jesus Cristo. 95

225. Animava-me também sobremodo a leitura das vidas e das obras dos santos Padres:
santo Inácio, mártir; são Justino, filósofo mártir; santo Irineu, são Clemente, presbítero de
Alexandria; Tertuliano, Orígenes, são Cipriano, mártir; santo Eusébio, santo Atanásio,
santo Hilário, são Cirilo, santo Efrém, são Basílio, são Gregório Nazianzeno, são Gregório,
bispo de Nissa; santo Ambrósio, santo Epifânio, são Jerônimo, são Paulino, são João
Crisóstomo, santo Agostinho, são Cirilo de Alexandria, são Próspero, Teodoreto, são Leão
o Grande, são Cesário, são Gregório Magno, são João Damasceno, santo Anselmo, são
Bernardo.
226. Eu lia freqüentemente a vida dos santos que se distinguiram no zelo pela salvação das
almas, e senti que me causaram ótimos benefícios, porque me aplico as palavras de santo
Agostinho: Tu non eris sicut isti et istae? (Tu não serás, tu não trabalharás para a salvação
das almas como trabalharam estes e estas?) 96 As vidas dos santos que mais me movem são
os seguintes: são Domingos, são Francisco de Assis, santo Antônio de Pádua, são João
Nepomuceno, são Vicente Ferrer, são Bernardino de Sena, santo Tomás de Vilanova, santo
Inácio de Loyola, são Filipe Néri, são Francisco Xavier, são Francisco de Borja, são Camilo
de Lélis, são Carlos Borromeu, são Francisco Regis, são Vicente de Paulo, são Francisco de
Sales.

227. Eu meditava nas vidas e obras desses santos, e nessa meditação acendia-se em mim
um fogo tão ardente que me deixava inquieto. Tinha que andar e correr de um lugar a outro,
pregando continuamente. Não consigo explicar o que sentia dentro de mim. Não sentia
cansaço, não me amedrontavam as calúnias mais atrozes, tampouco temia as perseguições
mais violentas. Tudo me era prazeroso, conquanto pudesse ganhar almas para Jesus Cristo,
para o céu e evitar que caíssem no inferno.

228. Antes de concluir este capítulo, refiro-me aqui a dois modelos de zelo
verdadeiramente apostólico, que sempre me animaram muito. O primeiro é do venerável
padre José Diego de Cádiz, e o segundo é do venerável padre mestre Ávila. Do primeiro,
lê-se em sua Vida: “O servo de Deus, motivado pelo zelo de ganhar almas para Cristo,
consagrou-se durante toda a vida ao ministério apostólico, sem nunca descansar.
Empreendia continuamente longas e cansativas viagens, sempre a pé, sem se importar com
os incômodos das intempéries na passagem de um lugar a outro; tudo para anunciar a
divina palavra e conseguir o fruto desejado. Impunha-se cilícios, disciplinava-se duas vezes
ao dia e observava um rigoroso jejum. Seu repouso à noite, depois de um dia fatigante, era
colocar-se diante do Santíssimo Sacramento, cuja devoção lhe era tão agradável, a ponto de
lhe consagrar o mais terno e apaixonado amor”. 97

229. Da vida do venerável Ávila. 98 Sua equipagem consistia em um jumento para


transporte de alfaias, dele e de seus companheiros, contendo o alforje com uma caixa de
hóstias para celebrar a santa missa nas capelas, cilícios, rosários, medalhas, estampas,
arame e alicates para fazer rosários. Não carregava comida, confiado na divina providência.
Raramente comia carne, normalmente comia pão e frutas.

230. Seus sermões, na maioria das ocasiões, duravam duas horas. Era tanta a afluência e a
abundância de temas propostos que seria difícil ocupar menos tempo. Pregava com tanta
clareza que todos o entendiam e nunca se cansavam de escutá-lo. Procurava sempre, noite e
dia, a maior glória de Deus, a transformação dos costumes e a conversão dos pecadores.
Para compor seus sermões não buscava muitos livros, não usava muitos conceitos, nem
procurava enriquecer o que dizia com argumentos da Escritura, exemplos e outros enfeites.
Com um argumento que propunha, abrasava os corações dos ouvintes.

231. Estiveram juntos para pregação, em Granada, o padre Ávila e outro, o mais famoso
pregador daquele tempo. Ao saírem do sermão deste último, todos os ouvintes se
persignavam admirados por tantas e tão belas coisas, de tão bem faladas e proveitosas;
quando, porém, falava o padre mestre Ávila, saíam todos de cabeça baixa, calados, sem que
dissessem uma só palavra uns aos outros, recolhidos e compungidos pela simples força da
verdade, da virtude e da excelência do pregador. 99

232. A principal finalidade de seus sermões era tirar as almas do infeliz estado da culpa,
mostrando a feiúra do pecado, a indignação de Deus e o horroroso castigo preparado para
os pecadores impenitentes, e o prêmio oferecido aos verdadeiramente contritos e
arrependidos. O Senhor concedia muita eficácia às suas palavras. Diz o padre frei Luís de
Granada: Um dia ouvi-o argumentar em um sermão sobre a maldade dos que, por um
deleite bestial, não hesitam em ofender a Deus nosso Senhor, alegando para isto aquela
citação de Jeremias: Obstupescite coeli super hoc (Ó céus, pasmai por causa disto); 100
essa verdade foi pronunciada com tão grande espanto e vivacidade de espírito que me
parecia tremerem as paredes da Igreja”.

233. Ó meu Deus e meu Pai! Fazei que eu vos conheça e vos faça conhecido; que eu vos
ame e vos faça amado; que eu vos sirva e faça que vos sirvam; que eu vos louve e vos faça
louvado por todas as criaturas. Fazei, ó meu Pai, que todos os pecadores se convertam, que
todos os justos perseverem na vossa graça e todos nós consigamos a glória eterna. Amém.

Capítulo XIII
Exemplos e estímulos tomados de algumas santas

234. Se os exemplos dos santos me motivavam tanto, conforme disse no capítulo anterior,
mais ainda me motivava o exemplo das santas. Oh!que tamanha impressão estes causavam
em meu coração! E eu me dizia: Se a mulher assim sente, assim deseja e assim faz para a
salvação das almas, que devo fazer eu como sacerdote, mesmo que indigno? Tanto me
impressionava a leitura de suas vidas, que às vezes copiava trechos de suas palavras e atos.
Aqui quero recordar alguns.

235. Da vida de santa Catarina de Sena 101 – “Tinha singular devoção e amor pelos santos
que em vida mais se empenharam e trabalharam pela conversão das almas. Tinha
considerável veneração por são Domingos por ter instituído sua Ordem Religiosa em vista
do aumento da fé e da salvação das almas. Quando via algum religioso de sua Ordem,
notava o lugar onde punha os pés e depois, com toda humildade, beijava as suas pegadas”
(Gisbert, p. 9).

236. “Madalena, aos pés de Jesus, escolheu a melhor parte; porém, não o melhor, diz santo
Agostinho, porque o melhor é unir as duas partes que são a vida ativa e a vida
contemplativa; foi o que fez santa Catarina de Sena” (p. 14). “Olhava o próximo banhado
com o sangue precioso de Jesus Cristo. Ao considerar a imensidade de pessoas para as
quais a redenção foi um fracasso, chorava e se lamentava com singular ternura, em especial
quando estava em êxtase. Ouviam-na rogar pela conversão dos infiéis e repetir esta súplica:
Ó Deus eterno, volve os olhos de misericórdia, como bom pastor, para tantas ovelhas
perdidas que, mesmo separadas do aprisco de tua Igreja, são tuas, pois as compraste com
teu sangue!” (p. 66).
237. “Certo dia, o Senhor fez-lhe ver a felicidade do céu, dizendo-lhe: Observa de quantos
bens se privam para sempre os que desrespeitam minha lei para fazer seu gosto. Reconhece
que a minha justiça exige dos pecadores impenitentes os mais rigorosos castigos. Repara
com que cegueira as pessoas, com uma vida dominada pelas paixões, arriscam um bem que
encerra todos os bens... Minha providência colocou a salvação de muitas almas em tuas
mãos. Dar-te-ei palavras e inspirarei doutrina às quais não poderá resistir nem contradizer
nenhum de teus adversários” (p. 75).

238. “O exercício da pregação é o mais importante bem que Jesus deixou à sua Igreja. É a
arma dos doze apóstolos. É este o sagrado ministério, próprio dos bispos que, como
pastores, devem apascentar suas ovelhas. Os bispos, porém, podem subdelegá-lo a pessoas
que os auxiliem a alimentá-las. Gregório XI mandou-a pregar em sua presença, e na de todo
consistório de cardeais e outros príncipes. Falou das coisas celestiais com tal autoridade que
a ouviam como estátuas, arrebatados por seu admirável espírito. Pregou diante de sua
santidade e cardeais muitas outras vezes e sempre a ouviam com admiração e fruto,
venerando nela um novo apóstolo poderoso em obras e palavras. Pregava também ao povo,
e como seu coração ardia em fogo de santo zelo, espargia chamas vivas nas palavras que
dizia, e eram tantos os pecadores que se enterneciam e mudavam de vida, que levava
muitos confessores em sua companhia, e alguns deles com autoridade pontifícia para
absolver casos reservados” (p. 174).

239. Vida de santa Rosa de Lima (Ribadeneira, p. 649). 102 – “De quem mais se
compadecia era dos que viviam em pecado mortal, porque sabia, com a luz que Deus lhe
comunicava, quão miserável era seu estado. Chorava continuamente sua miséria e rogava a
Deus que convertesse a todos os pecadores e ainda dizia que padeceria ela sozinha os
tormentos do inferno, mesmo sem culpa, para que ninguém se condenasse. Por isso,
desejava muito que se pregasse o Evangelho aos infiéis e a penitência aos pecadores. A um
confessor seu foi oferecida a possibilidade de ir às missões. Temia a viagem pelos perigos
que poderia encontrar. Confiou a dificuldade à santa e ela lhe disse: “Vá, padre, e não tema;
vá converter esses infiéis e veja que o maior serviço que os homens podem fazer a Deus é
converter as almas e esta é obra própria dos apóstolos. Quer felicidade maior do que
batizar, ainda que seja a um indiozinho, e oferecer-lhe a possibilidade de entrar no céu pela
porta do batismo?”

240. Convencia todos os dominicanos a que se servissem desse ministério apostólico,


dizendo-lhes que o estudo da sagrada Teologia não era mais importante que o espírito de
sua profissão de pregadores; antes, a teologia destinava-se a isso como a um fim. Dizia
também: Se lhe fosse permitido, pregaria a fé de um reino a outro até converter todos os
infiéis, e sairia pelos caminhos com o crucifixo nas mãos, vestida de cilício, dando gritos,
para despertar os pecadores elevá-los à penitência. Tinha decidido adotar um menino órfão,
oferecer-lhe estudo, ordená-lo sacerdote, só para enviá-lo a converter infiéis e dar a Cristo
um pregador, já que ela não podia pregar.

241. Sentia muito porque os pregadores não procuravam o proveito das almas em seus
sermões. A um frade do convento do Rosário, da ordem de são Domingos, que pregava em
Lima e com grande aplauso, mas, com linguagem bastante enfeitada, a santa virgem lhe
disse um dia com grande modéstia e eficácia: “Padre, olhe que Deus o fez seu pregador, a
fim de que converta as almas; não gaste seu talento em flores, que é trabalho inútil; já que é
pescador de homens, lance a rede para que caiam os homens, não para conseguir elogios,
que é vento e vaidade; lembre-se da conta de tão grande ministério que deve prestar a
Deus”. Mas já que não lhe era permitido pregar, procurava, com uma divina eloqüência que
Deus lhe havia comunicado, convencer as pessoas a amarem as virtudes e afastarem-se dos
vícios.

Capítulo XIV
Continuação da mesma matéria

242. Da vida de santa Teresa 103 “Também tentei fazer com que outras pessoas tivessem
oração. 104 Eu percebia que elas gostavam de rezar e lhes dizia como meditar, e lhes dava
livros”. Vida Cap., VII 13.

243. “Quem pode ver o Senhor coberto de chagas e aflito por perseguições sem que as
abrace, ame e deseje? Quem vê algo da glória que ele dá aos que O servem e não reconhece
que de nada vale tudo o que se pode fazer e padecer quando esperamos esse prêmio? Quem
vê os tormentos que passam os condenados e não considera deleites os sofrimentos daqui
nem reconhece o muito que deve ao Senhor por ter sido libertado tantas vezes daquele
lugar?” Vida, XXVI. 5

244. “Que glória acidental será, e que contentamento, a dos bem-aventurados que já gozam
disso quando virem que, embora tarde, não deixaram de fazer por Deus o que puderam, e
nada lhe negaram, dando-lhe de todas as maneiras que puderam, de acordo com as suas
forças e o seu estado. E quem mais tiver feito tanto mais receberá! Quão rico ficará quem
deixou todas as riquezas por Cristo. Que honrado será quem não quis honra por amor a ele,
mas se comprazia em ver-se muito abatido! Quão sábio quem folgou por ver que o tinham
por louco, pois o levaram à própria Sabedoria! Quão poucos assim há agora, devido aos
nossos pecados! Sim, parece que se acabaram aqueles que as pessoas tinham por loucos ao
vê-los realizar façanhas heróicas de verdadeiros amantes de Cristo. Ó mundo, mundo, como
tens ganhado honras por haver poucos que te conheçam!” Vida, XXVII. 14.

245. “E, no entanto, pensamos que se serve mais a Deus se se é considerado sábio e
discreto! Sem dúvida assim é, a julgar pela moda da discrição. Desse modo, parece-nos
pouco edificante não ter muita compostura e dignidade, cada qual em seu estado. Até o
frade, o clérigo e a monja têm a impressão de que usar hábitos velhos e remendados é uma
novidade, um escândalo para os fracos, ocorrendo o mesmo com o recolhimento e a oração.
O mundo está de tal maneira, e estão tão esquecidas as coisas da perfeição e os grandes
fervores que os santos tinham, que não se vê que o pretenso escândalo causado por
religiosos que mostrem em obras o que dizem com palavras - a pouca importância que se
deve dar ao mundo - não contribui tanto para as desventuras desta época quanto o desejo de
ser tido por sábio e discreto. Desses pretensos escândalos o Senhor obtém grandes
proveitos. E, se uns se escandalizam, outros se arrependem. Quem dera houvesse ao menos
um esboço do que Cristo e os seus apóstolos passaram nesta nossa época, que mais do que
nunca precisa disso!” Vida, XXVII.15.
246. “Estando um dia em oração, vi-me de repente, sem saber como, no inferno. Entendi
que o Senhor queria que eu visse o lugar que os demônios tinham preparado para mim ali e
que eu merecera pelos meus pecados. Isso durou muito pouco tempo, mas, mesmo que eu
vivesse muitos anos, parece-me impossível esquecer. A entrada me pareceu um longo e
estreito túnel, semelhante a um forno muito baixo, escuro e apertado; o solo dava a
impressão de conter uma água igual a uma lama muito suja e de odor pestilento, havendo
nele muitos répteis daninhos;havia no fundo uma concavidade aberta numa parede,
parecida com um armário, onde fui colocada, ficando bastante apertada. Tudo isso é
agradável em comparação ao que senti ali. Isto que digo está muito aquém da verdade”.
Vida, XXXII.1.

247. “O que senti parece ser impossível de definir de fato e de entender; mas senti um fogo
na alma que não sei como explicar. As dores corporais eram tão insuportáveis que mesmo
os tantos sofrimentos que tive nesta vida, que foram graves e, segundo os médicos, os
maiores que se podem passar aqui (por exemplo, quando se encolheram todos os meus
nervos e fiquei paralítica, sem falar de outros tantos padeceres de diversas espécies, alguns,
como eu disse, causados pelo demônio), não foram nada em comparação com elas, ainda
mais que percebi que elas seriam sem fim, incessantes. Na verdade, em comparação com a
agonia da alma, que é um aperto, um afogamento, uma aflição tão intensa, unida a um
descontentamento tão desesperado e angustioso, que as palavras não podem descrever, tudo
isso é insignificante. Porque dizer que é igual à sensação de que estão sempre arrancando a
alma é pouco, pois isso seria equivalente ater a vida tirada por alguém; nesse caso, no
entanto, é a própria alma que se despedaça. Não sei como fazer jus com palavras ao fogo
interior e ao desespero que se sobrepõem a gravíssimos tormentos e dores. Eu não via quem
os provocava, mas os sentia queimando-me e retalhando.Mesmo assim, tenho a impressão
de que aquele fogo e aquele desespero interiores são o pior”. Vida, XXXII. 2.

248. “Quando se está num lugar tão pestilento, sem poder esperar consolo, não se pode
ficar sentado nem deitado, nem há lugar para isso, pois me puseram naquela espécie de
buraco feito na parede; entre essas paredes, que espantam a visão, somos apertados e
ficamos como que sufocados. Não há luz, mas sim trevas escuríssimas. Não entendo como
pode ser que, não havendo luz, vê-se tudo que possa causar padecimento. Nessa ocasião, o
Senhor não quis que eu visse mais coisas do inferno; mais tarde, tive outra visão de coisas
assombrosas sobre o castigo de alguns vícios. Vê-las me mostrou quão espantosas eram,
mas,como não sentia o sofrimento, não tive tanto temor. Na visão referida,no entanto, foi
vontade do Senhor que eu sentisse verdadeiramente os tormentos e aflições no espírito
como se o corpo os estivesse padecendo. Não sei como isso aconteceu, mas bem entendi ser
um grande favor e que o Senhor desejava que eu visse com os meus próprios olhos aquilo
de que a sua misericórdia me livrara. Porque uma coisa é ouvir dizer ou ter pensado sobre
os diferentes tormentos (o que eu fizera poucas vezes, já que pelo temor a minha alma não
era levada muito bem), ou saber pelos livros que os demônios supliciam e infligem outras
torturas, e outra é passar por isso. Em uma palavra, saber disso e vivê-lo são tão diferentes
quanto o desenho o é da realidade; queimar-se aqui na terra é dor muito leve em
comparação com o fogo de lá”. Vida, XXXII. 3.

249. “Fiquei tão abismada, e ainda o estou quando escrevo, apesar deterem passado quase
seis anos, que me parece ter o corpo enregelado de medo. A partir de então, não me lembro
de ocasiões em que padeça sofrimentos ou dores e não considere um nada tudo o que se
pode passar na terra, o que me dá a impressão de que, em parte, nos queixamos sem razão.
Por isso, repito ter sido essa uma das maiores graças que o Senhor me concedeu, pois me
trouxe grandes proveitos, tanto para que eu perdesse o temor das tribulações e contradições
desta vida como para que me esforçasse por padecê-las e dar graças ao Senhor por ter me
livrado, como é agora minha convicção, de males tão perpétuos e terríveis”. Vida, XXXII.
4.

250. “Desde então, como eu disse, tudo me parece fácil diante de um momento em que se
tenha de sofrer o que lá padeci. Fico aturdida ao pensar que, tendo lido muitas vezes livros
onde se explica algo das penas do inferno, eu não as temesse nem as tomasse pelo que são.
Onde estava eu? Como podia ter descanso estando num caminho que me conduzia a lugar
tão ruim? Bendito sejais, Deus meu, para sempre! E como me tem parecido que me
amáveis muito mais do que eu a mim mesma! Quantas vezes, Senhor, me livrastes de
cárcere tão tenebroso e quantas eu, contra a vossa vontade, voltava para ele!” Vida, XXXII.
5.

251. “Isso também criou em mim uma grande compaixão pelas muitas almas que se
condenam (em especial dos luteranos, que já eram, pelo batismo, membros da Igreja) e
intensos ímpetos de salvar almas, pois tenho a impressão de que, para livrar uma só delas
de aflições tão graves, eu voluntariamente enfrentaria muitas mortes. Se vemos aqui uma
pessoa de quem gostamos de modo especial passar por um grande sofrimento ou dor, a
nossa própria natureza nos impele à compaixão e, se a sua aflição for grande, tanto maior
será a opressão do nosso coração. Assim sendo, ver uma alma imersa eternamente no sumo
sofrimento, quem o pode suportar? Não há coração que veja isso sem compadecer-se,
porque, se aqui, sabendo que a vida um dia vai acabar e que de qualquer maneira não é
longa a sua duração, ainda assim somos movidos a tanta compaixão, quão maior não será o
nosso desassossego diante dessa dor que não se acaba, infligida às tantas almas que o
demônio leva consigo a cada dia!”.Vida, XXXII, 6.

252. “Isso também me faz desejar que, numa coisa tão importante, não nos contentemos
com fazer menos que tudo o que pudermos; não deixemos nada por fazer, e que o Senhor
seja servido de nos dar graças para isso”. Vida, XXXII, 7.

253. “Certa feita, fiquei nesse estado por mais de uma hora, tendo o Senhor me mostrado
coisas admiráveis, dando-me a impressão de não se afastar de mim. Ele me disse: Vê filha,
o que perdem os que são contra mim; não deixes de lhes dizer isso”. Vida, XXXVIII, 3

254. “Estando uma vez em oração, fui invadida por tamanha felicidade que, sendo indigna
de tal bem, comecei a pensar que merecia muito mais estar naquele lugar que eu tinha visto
preparado no inferno para mim, porque, como venho dizendo, nunca me sai da memória a
sensação que ali tive. Ao considerar isso, senti a alma inflamar-se mais, vindo-me um
arroubo de espírito que não sei descrever. Eu parecia ter o espírito imerso naquela
Majestade que de outras vezes percebi. Compreendi nessa Majestade uma verdade que é a
plenitude de todas as verdades; mas não sei descrever como, porque nada vi. Disseram-me
(não sei quem, mas percebi que era a mesma Verdade): Não é pouco o que faço por ti,
sendo uma das coisas em que muito me deves; porque todo mal que vem ao mundo decorre
de não se conhecerem as verdades da Escritura com clareza, da qual nem uma vírgula ficará
por cumprir. Pareceu-me que eu sempre tinha acreditado nisso e que todos os fiéis o crêem.
O Senhor me disse: Ai, filha, quão poucos me amam de verdade! Se me amassem, eu não
lhes encobriria meus segredos. Sabes o que é amar-me com verdade? Entender que tudo o
que não é agradável a mim é mentira.Verás com clareza isso que agora não entendes pelo
fruto que sentirá sem tua alma”. Vida, XL, 1.

255. “Nessa época, chegaram a mim notícias sobre os danos e estragos causados na França
pelos luteranos, e sobre o grande crescimento que essa seita experimentava. Isso me deixou
muito pesarosa, e eu, como se pudesse fazer alguma coisa ou tivesse alguma importância,
chorava como Senhor e lhe suplicava que corrigisse tanto mal. Eu tinha a impressão de que
daria mil vidas para salvar uma só alma das muitas que ali se perdiam. E, vendo-me
mulher, imperfeita e impossibilitada de trabalhar como gostaria para servir ao Senhor, fui
tomada pela ânsia, que ainda está comigo, tendo Deus tantos inimigos e tão poucos amigos,
de que estes fossem bons. Decidi-me então a fazer o pouco que posso: seguir os conselhos
evangélicos com toda a perfeição e ver que essas poucas irmãs que aqui estão fizessem o
mesmo. Depositei a minha confiança na grande bondade do Senhor, que nunca deixa de
ajudar a quem se determina, por ele, a abandonar tudo. Eu pensava que sendo elas como eu
as via em meus desejos, os meus defeitos não teriam força em meio às suas virtudes, e eu
poderia contentar o Senhor em alguma coisa. Assim, ocupadas todas em orar pelos que são
defensores da Igreja, pregadores e letrados que a sustentam, ajudaríamos no que
pudéssemos a este Senhor meu, tão atribulado por aqueles a quem fez tanto bem. Pode-se
dizer que esses traidores querem pregá-lo na cruz outra vez, privando-o de onde reclinar a
cabeça”. Caminho de Perfeição, I, 2.

256. “O Redentor meu! Meu coração não pode chegar aqui sem se afligir muito! Que se
passa agora com os cristãos? Será que sempre os que mais vos devem mais vos afligem?
Aqueles a quem concedeis mais graças, a quem escolheis para vossos amigos, entre os
quais andais e com os quais vos comunicais mediante os sacramentos? Não estão satisfeitos
com os tormentos que por eles padecestes?” Caminho de Perfeição, I, 3.

257. “E certo, Senhor meu, que nada faz quem agora se afasta do mundo. Sendo vós tratado
nele com tão pouco respeito, que esperamos nós? Por acaso merecemos ser tratados
melhor? Porventura fizemos mais por eles para que nos tenham amizade? Que é isso? Que
mais esperamos nós, que,pela bondade do Senhor, não estamos contaminados por essa
sarna pestilenta, se esses inimigos já pertencem ao demônio? Bom castigo obtiveram com
suas próprias mãos, tendo merecido, com seus deleites, o fogo eterno. Que eles mesmos
escapem dos perigos em que se puseram,embora não deixe de me partir o coração ver como
se perdem tantas almas. Mas, para que o mal não seja tão grande, seria bom que não se
perdessem mais almas a cada dia”. Caminho de Perfeição, I, 4.

258. “Ó irmãs minhas em Cristo! Ajudai-me a suplicar isso ao Senhor, pois foi com esse
fim que ele vos reuniu aqui. Essa é a vossa vocação; esses devem ser os vossos cuidados e
os vossos desejos; empregai aqui as vossas lágrimas e para isso dirigi vossos pedidos”.
Caminho de Perfeição, I, 5.
Capítulo XV
Continuação

259. Da vida de santa Maria Madalena de Pazzi. 105 “Seria difícil encontrar homem
apostólico que tivesse zelo mais ardoroso pela salvação das almas. Interessava-se viva e
ternamente pelo bem delas; parecia-lhe não amar suficientemente o Senhor se todos não o
amassem também. Vendo os progressos que em nome da fé se fazia no seu tempo nas
Índias, dizia que, se pudesse ir pelo mundo todo salvar almas sem prejuízo de sua vocação,
suas asas teriam causado inveja aos pássaros do céu. Oh, quem me dera, dizia, poder ir até
as Índias e pegar aquelas crianças indianas e instruí-las em nossa fé para que Jesus tomasse
conta de suas almas e elas possuíssem a Jesus!”

260. “A seguir, falando de todos os infiéis em geral, dizia: Se eu pudesse, acolheria a todos
e os reuniria no grêmio de nossa santa mãe Igreja. Faria com que ela os purificasse de todas
as infidelidades e os regenerasse, fazendo deles seus filhos e os guardasse em seu coração
amoroso, alimentando-os com o leite de seus santos sacramentos. Como seriam bem
nutridos e aleitados por seus peitos! Oh, se eu pudesse fazer isto, com que prazer o faria!”

261. “Reconhecendo o dano que tão dilatadas heresias causavam às almas, dizia: Ah! Seria
necessário que nossas almas fossem como rolas, sempre gementes, que continuamente
lamentassem a cegueira dos hereges! E contemplando quanto se havia afrouxado a fé dos
católicos, exclamava: Derrama-a, ó Verbo, derrama-a viva e ardente no coração dos teus
fiéis, reaquecida e acesa na fogueira do teu coração e da caridade infinita, para que fé e
obras se conformem! E outras vezes,pedindo a conversão dos pecadores, dizia ao Senhor
com palavras de fogo, que não ouvisse a ela, mas aos gemidos de seu divino sangue”.

262. “Desejava que o ardente zelo pela salvação penetrasse em todos os corações, e assim
dizia continuamente às religiosas a ela confiadas que sempre rezassem a Deus pelas almas.
Peçamos tantas, repetia,quantos forem os nossos passos no convento; peçamos tantas
quantas forem nossas palavras pronunciadas na oração diária. Semelhantes ao ardor de seus
afetos eram suas obras enquanto o permitia sua condição de religiosa, de modo que o autor
de sua biografia encheu catorze capítulos com as provas e argumentos de seu zelo pela
salvação das almas: disciplinas, jejuns, vigílias, prolongadas orações, exortações,correções:
nada, absolutamente nada omitia; impunha a si própria,durante meses, a mais rígida
penitência, por qualquer pecador que se lhe recomendasse”.

263. Sabemos que muitas almas se salvaram pelas orações de santa Teresa do Menino Jesus
e de santa Maria Madalena de Pazzi; e muitas outras, ainda hoje, continuam se salvando
pelas orações de religiosas boas e fervorosas. Por isso sempre fui inclinado a pregar retiros
e afazer práticas espirituais às religiosas (mas não a confessá-las,porque me tomavam muito
tempo), a fim de que me encomendassem a Deus. 106 Algumas vezes dizia que elas deviam
fazer como Moisés no monte e eu como Josué 107 no campo de luta: elas orando e eu
lutando com a espada da divina palavra. E assim como Josué alcançou a vitória pelas
orações de Moisés, eu a espero pelas orações das religiosas. E, para estimulá-las ainda
mais, dizia-lhes que depois repartiríamos o mérito. 108
Capítulo XVI
Meios de que me valia para produzir frutos

Primeiro meio:
A oração 109

264. Estimulado a trabalhar para a maior glória de Deus e pela salvação das almas, como
venho dizendo, falarei agora dos meios que me servi para alcançar este objetivo, conforme
o Senhor me revelou, como sendo os mais apropriados e adequados. O primeiro meio que
sempre utilizei e de que sempre me valho é a oração. Acho que este é o melhor meio que se
deve usar para obter a conversão dos pecadores, a perseverança dos justos e o alívio das
almas do purgatório. Por isso, na meditação, na missa, oração, devoções, jaculatórias que
praticava, sempre pedia a Deus e à santíssima virgem estas três coisas.

265. Não somente eu rezava, mas pedia também a outros que rezassem, como as monjas, as
Irmãs de Caridade, Terciárias 110 e a todas as pessoas virtuosas e zelosas.111 Com este
objetivo, pedia-lhes que participassem da santa missa e recebessem a sagrada comunhão;
que durante a santa missa e depois da comunhão apresentassem ao Pai eterno e a seu Filho
santíssimo esses pedidos; que em seu nome e por seus méritos lhe pedissem estas três
graças de que falei: a conversão dos pecadores, a perseverança dos justos e o alívio das
pobres almas do purgatório. Também lhes dizia que se valessem da visita ao Santíssimo
Sacramento e das estações da Via-Sacra. 112

266. Exortava também a que se encomendassem muito a Maria santíssima, rogassem e lhe
pedissem o mesmo, que se valessem da devoção ao santíssimo rosário, que sempre pregava
e ensinava o modo prático de rezá-lo, e eu mesmo o rezava com todas as pessoas presentes,
antes de iniciar o sermão; fazia isto para que as pessoas aprendessem a rezá-lo e também
para que, rezando-o todos juntos, alcançássemos essas três graças acima mencionadas. 113
Ensinava ainda às pessoas o modo de serem devotas das dores de Maria e que cada dia da
semana meditassem uma dor, de modo que assim as sete dores seriam meditadas nos sete
dias da semana, uma de cada dia. 114

267. Rogava e fazia com que as pessoas rogassem aos santos do céu, afim de que
intercedessem junto a Jesus e a Maria e nos alcançassem estas mesmas graças. Invocava
especialmente aqueles santos que, durante sua vida terrena, tinham manifestado maior zelo
pela glória de Deus e pela salvação das almas.

268. Jamais, em ocasião alguma, esquecia-me de invocar o glorioso são Miguel e os anjos
da guarda, especialmente o de minha proteção, o do reino, o da província, o do povoado em
que pregava e o de cada pessoa em particular. 115

269. Senti visivelmente a proteção dos anjos da guarda. 116 Desejo apresentar aqui,
algumas das jaculatórias que rezo diariamente e, ao mesmo tempo, tenho aconselhado a
outros que as façam. De resto, têm-me garantido que lhes fazem muito bem: 117 Quem
como Deus? Quem como Jesus Cristo? Quem como Maria santíssima, virgem e mãe de
Deus? Quem como os anjos do céu? Quem como os santos da glória? Quem como os justos
da terra? Viva Jesus! Viva Maria santíssima! Viva a santa lei de Deus!Vivam os santos
conselhos evangélicos! Vivam os santos sacramentos da Igreja! Viva o santo sacrifício da
Missa! Viva o Santíssimo Sacramento do altar! Viva o santo rosário de Maria! Viva a graça
de Deus! Vivam as virtudes cristãs! Vivam as obras de misericórdia! Morram os vícios,
culpas e pecados!

270. Oração que rezava no princípio de cada missão. 118 Ó virgem e mãe de Deus, mãe e
advogada dos pobres e infelizes pecadores! Bem sabeis que sou vosso filho e ministro,
formado por vós mesma na forja de vossa misericórdia e amor. Sou como uma flecha
colocada em vossa mão poderosa. Lançai-me, minha mãe, com toda a força de vosso braço
contra o ímpio, sacrílego e cruel Acab, casado com a vil Jezabel. 119 Quero dizer, lançai-
me contra satanás, príncipe deste mundo, que tem estabelecido aliança com a carne.

271. Para vós, minha mãe, seja a vitória. Vós vencereis. Sim, vós que tendes poder para
acabar com todas as heresias, erros e vícios. E eu, confiado em vossa poderosíssima
proteção, empreendo a batalha, não só contra a carne e o sangue, mas também contra os
príncipes das trevas, como disse o apóstolo Paulo, 120 empunhando o escudo do santíssimo
rosário e armado com a espada de dois gumes da palavra divina. 121

272. Vós sois rainha dos anjos. Ordenai-lhes, minha mãe, que venham em meu socorro.
Vós bem conheceis a minha fraqueza e as forças de meus inimigos. Vós sois rainha dos
santos. Pedi que eles roguem por mim e dizei-lhes que a vitória e o triunfo conseguidos
serão para a maior glória de Deus e salvação de seus irmãos. Reprimi, senhora, por vossa
humildade, a soberba de lúcifer e seus sequazes, audaciosos em usurparas almas remidas
com o sangue de Jesus, Filho de vossas entranhas virginais. 122

273. Além do mais, proferia o seguinte exorcismo: 123 Satanás com todos os seus
seguidores: como ministro que sou de Jesus Cristo e de Maria santíssima, embora indigno,
ordeno-te que saias daqui e vás para teu lugar. Ordeno-te em nome do Pai, + que nos criou;
em nome do Filho, +que nos livrou de teu domínio, e do Espírito Santo, + que nos consolou
e nos santificou. Amém. Ordeno-te também, em nome de Maria santíssima, virgem e mãe
de Deus vivo, + que te esmagou a cabeça. Vai-te, satanás; vai-te, soberbo e invejoso; nunca
mais impeças a conversão e a salvação das almas.

Capítulo XVII
Outros meios para produzir frutos
Segundo meio: O catecismo às crianças

274. Sempre me lembrava daquele provérbio que diz: “A Dios rogando y con el mazo
dando”. (A Deus rogando e com o martelo batendo). Assim é que tinha tal cuidado e
trabalhava com tal afã, como se tudo dependesse de minha habilidade e, ao mesmo tempo,
depositava toda a minha confiança em Deus, pois dele tudo depende, principalmente
quando se trata da conversão de um pecador, que é ação da graça e obra máxima de Deus.

275. O catecismo às crianças – A primeira coisa que procurava era instruir as crianças na
doutrina cristã, tanto pelo gosto que sempre tive por esse tipo de ensino, como também
porque julgava algo de suma importância pelo fato de o catecismo ser o fundamento da
instrução religiosa e moral. 124 Além do mais, porque as crianças têm muito mais
facilidade em aprendê-lo e gravá-lo; assim elas se preservam do erro, do vício e da
ignorância, e mais facilmente podem ser formadas na virtude por serem mais dóceis que os
adultos. Com as crianças só se tem o trabalho de plantar, ao passo que com os adultos é
preciso arrancar e depois plantar. 125 Com as crianças há também outra vantagem: com
elas se conquistam os adultos e, com os filhos, os pais; pois os filhos são partes do coração
dos pais. E ainda mais: dando-lhes uns santinhos como prêmio pelo bom aproveitamento no
ensino, os pais e os adultos os lêem por curiosidade e não poucas vezes se convertem, como
sei por experiência própria.

276. Uma das coisas que mais me levou a ensinar às crianças é o exemplo de Jesus Cristo e
dos santos. Cristo disse certa vez: Deixai vir a mim os pequeninos e não os impeçais;
porque o Reino de Deus é daqueles que se lhes assemelham. Abraçando-as ele as abençoou,
impondo-lhes as mãos (Mc 10, 14.16). Sem dúvida alguma, uma criança preservada na
inocência por uma boa educação é, aos olhos de Deus, um tesouro mais precioso do que
todos os reinos do mundo.

277. Os apóstolos, doutrinados por Jesus, catequizavam tanto os pequeninos como os


adultos, de tal maneira que seus sermões eram declarações dos mistérios da fé. Foram
catequistas são Dionísio, são Clemente de Alexandria, homem muito erudito, mestre de
Orígenes; o mesmo Orígenes também foi catequista; são João Crisóstomo, santo Agostinho,
são Gregório de Nissa. São Jerônimo, ao mesmo tempo em que era consultado de todas as
partes como o oráculo do universo, não deixava de ser catequista de crianças, empregando
nessa humilde ocupação o resto de seus dias, que tão utilmente havia empregado a serviço
da Igreja. Enviai-me vossos filhos, dizia o santo a uma viúva, eu balbuciarei com eles, terei
menos glória diante dos homens, porém serei mais glorioso diante de Deus. 126

278. São Gregório Magno foi superior em zelo a são Jerônimo nesse particular, e Roma,
capital do mundo de então e o centro da religião, pôde ver com admiração que o grande
papa, já bastante doente, destinava todo o tempo que podia à instrução da juventude.
Depois de haver dado um manjar sólido aos fortes, se comprazia em dar leite às crianças.

279. O célebre chanceler de Paris, João Gerson entregava-se incansavelmente ao catecismo


das crianças. Alguns o criticavam por isto, mas ele lhes respondia dizendo que não podia
ocupar-se em coisa melhor do que em apartar essas almas do dragão infernal e em regar
essas tenras plantas da horta da Igreja. 127

280. O venerável mestre João de Ávila, apóstolo da Andaluzia, dedicava-se à instrução das
crianças. Seus discípulos faziam o mesmo.Ele recomendava-o insistentemente aos
professores da escola infantil, dizendo: Conquistada a infância, ganha-se e recupera-se toda
a república, porque as crianças passam a ser grandes e a governam. A boa educação, dizia,
e o ensino da doutrina cristã são a fonte e raiz de todos os bens e de toda a felicidade de
uma república, ao passo que educar mal a juventude é envenenar as fontes comuns. 128

281. O presbítero Diego de Guzmán, filho do conde de Bailén, discípulo do venerável


Ávila, exerceu o papel de mestre do ensino da doutrina cristã por toda a sua vida de 83
anos. Percorreu a Espanha e a Itália com admirável zelo e fruto, com ingentes esforços e
sofrimento e, para que a obra prosseguisse após sua morte, fundou em Sevilha uma
congregação para o ensino da doutrina cristã às crianças, como ele havia praticado.

282. Dedicaram-se também à instrução da doutrina cristã para crianças: santo Inácio, são
Francisco Xavier, são Francisco de Borja, Laínez e Salmerón; enviados ao concílio de
Trento, trabalhavam na catequese das crianças por ordem de santo Inácio. São José de
Calasanz. O venerável César de Bus fundou uma congregação destinada ao ensino da
doutrina cristã: 129 Os Irmãos da Doutrina cristã. 130

283. O padre Inácio Martínez, orador eloqüente e pregador do rei de Portugal, deixou de
pregar a fim de dedicar-se exclusivamente à instrução das crianças, por espaço de mais de
17 anos. 131 O padre Edmundo Augerio, pregador apostólico, apelidado de Trombeta do
Evangelho, tendo convertido 40.000 hereges na França, dedicou-se de tal modo ao ensino
do catecismo que, quando morreu, Deus quis que fosse visto subindo ao céu, acompanhado
de um exército de anjos e de crianças. 132 À pergunta feita pelo profeta Isaías: Ubi est
doctor parvulorum? (Onde está o médico das crianças?) 133 pode-se responder: Está aqui.

284. Em vista, pois, destes e de outros exemplos, que eu conheço e que aqui omito, sentia-
me fortemente estimulado à catequese de meninos e meninas. Sempre procurei praticá-la,
desde o tempo de estudante, como sacerdote, como auxiliar na paróquia, depois como
vigário paroquial, como missionário e mesmo mais tarde como arcebispo. 134

285. Pelo amor que tinha às crianças e, ao mesmo tempo, pelo desejo de que se instruíssem
na doutrina cristã, escrevi quatro catecismos: um para as criancinhas, desde que começam a
falar até aos sete anos; outro para os camponeses; um terceiro, mais extenso, e, finalmente,
um catecismo explicado e ilustrado. 135

286. O método usado e o que a experiência me ensinou ser o melhor, está desenvolvido no
segundo tomo da obra intitulada: O Colegial ou Seminarista instruído. Seção V, c. IV. 136

Capítulo XVIII
Terceiro meio: Catequese para os adultos

287. O catecismo para os adultos é o meio mais eficaz, conforme constatei. Através dele
arrancava-se da ignorância, que por sinal é maior do que se pensa, até mesmo entre aquelas
pessoas que ouvem os sermões com freqüência, pois os pregadores supõem o auditório
instruído, e exatamente esta é a instrução que falta aos católicos.Além disso, os ouvintes
são instruídos nas respectivas obrigações e no modo de cumpri-las. 137

288. Instruía diariamente, menos no primeiro dia, destinado a outro assunto, no exórdio do
sermão, antes da Ave Maria; como estava sozinho, tinha de fazer tudo sozinho. O exórdio
durava vinte minutos, e a matéria compreendia sempre os mandamentos da lei de Deus,
explicados mais longa ou brevemente, conforme os dias que durava a missão.
Efetivamente, levava em meu vade-mécum os mandamentos explicados e também algumas
folhas soltas para cada mandamento e explicações referentes àquele mandamento. 138
Usava-as conforme os dias que havia de pregar naquela cidade e também segundo os
costumes ou vícios que havia de repreender e virtudes que havia de plantar ou fomentar;
para isso certificava-me antes e, pelo que me diziam, e pelo que eu mesmo sabia, ia
aplicando os remédios.

289. Não obstante estes conhecimentos, eu não abordava de imediato os vícios


predominantes; ao contrário, deixava para mais tarde. Esperava ter domínio sobre o
auditório e, então sim, ainda que lhes denunciasse os vícios, os ídolos, não se ofendiam,
antes, ao contrário, arrependiam-se. Havia observado que no começo vinham muitos,
movidos pela novidade, mas prevenidos para ver de que se falava e, se ouviam reprimendas
a seus queridos vícios, era como tocar a ferida na carne viva. Irritados, alvoroçavam-se, não
voltavam mais, além de falarem mal do missionário, da missão e daqueles que dela
participavam.

290. Assim dizia que nesses calamitosos tempos o missionário devia portar-se como o que
cozinha caracóis. Coloca-os a cozer na panela com água fria. Com a frescura da água o
caracol sai da casca. Como a água vai esquentando imperceptivelmente até ferver, ficam
assim mortos e cozidos. Porém se algum imprudente os joga na panela com água fervendo,
recolhem-se para dentro da casca e ninguém os pode tirar.Assim procurava proceder com
toda classe de vícios e erros, blasfêmias e impiedades. Nos primeiros dias apresentava a
virtude e a verdade com cores vivas e atraentes, sem dizer uma palavra sequer contra os
vícios e viciados. Desta forma, ao verem que eram tratados com indulgência e benignidade,
voltavam mais vezes, e então se lhes falava claramente dos erros a serem corrigidos, todos
aceitavam bem, convertiam-se e se confessavam. Encontrei a muitos que iam à missão só
por curiosidade, outros por maldade, para ver se me surpreendiam em alguma expressão,
mas por fim se convertiam e se confessavam bem.

291. Em 1840, ao iniciar as missões, estando em plena guerra civil entre realistas e
constitucionalistas, procurava, então, andar com o máximo cuidado, evitando falar em
política, tanto a favor como contra um ou outro partido, principalmente porque pregava à
população de todas as facções. 139 E como pregava em povoados de todos os partidos,
devia andar com muito cuidado, pois, como já disse, alguns vinham ouvir-me para
surpreender-me em alguma expressão, como se diz de Jesus, nosso divino Redentor: Ut
caperent in sermone (Com a finalidade de surpreendê-lo em alguma palavra). 140 Graças a
Deus, nunca puderam me pegar.

292. Naquela época cheia de calamidades, não só se devia ter cuidado, mas também não se
podia dar ao trabalho missionário o nome de missão, mas de Novena das Almas, da Virgem
do Rosário, do Santíssimo Sacramento, deste ou daquele santo, para não chamar a atenção
dos constitucionalistas, que tinham a autoridade e governavam as cidades e povos onde eu
pregava. Se o povo afluía em grande número, estendiam-se as funções por mais dias. No
primeiro dia era preciso tratar do assunto principal da missão; no segundo dia tratava da
doutrina; assim nos demais dias; no terceiro dia fazia uma breve recapitulação da doutrina
que havia tratado no dia anterior, dizendo, por exemplo:

293. Ontem vos falei disto e disto... Resumia assim os pontos principais, por três motivos:
l) Porque assim, escutando novamente o mesmo assunto, embora resumidamente, fixava-se
melhor o aprendido, pois, como diz santo Afonso de Ligório, os camponeses têm a cabeça
de‘madeira dura’ e, para que guardem bem essas coisas, são necessários muitos golpes de
repetição. 141 2) Porque, se não estavam presentes no dia anterior, por terem ficado em
casa guardando as casas, filhos, etc., etc., escutavam-no e sabiam de que se havia falado e
assim sabiam melhor a doutrina do dia anterior. Além disso, se os que tinham estado no
sermão anterior tivessem contado mal em casa, assim podiam retificar, pois não poucos
entendiam mal as coisas e as referiam ainda pior e, em coisas de doutrina, convém que seja
entendida com exatidão. 3) Assim, pois, o resumo servia de introdução ao assunto do dia,
tornando-se mais fácil para o pregador e de mais proveito para o auditório do que buscar
uma idéia geral e própria para o exórdio.

Capítulo XIX
Quarto meio: os sermões

294. Os pontos doutrinais servem para instruir e os sermões para exercitar a vontade. Os
sermões devem ser escolhidos conforme o auditório. Há alguns que santo Afonso de
Ligório chama de necessários, como é o caso dos novíssimos, e outros à escolha.

295. Eu regularmente os distribuía assim: O 1º era sobre as almas, a respeito de Maria


santíssima, etc., conforme o objetivo da missão. 2º A importância da salvação. 3º A
gravidade do pecado mortal. 4º A necessidade da confissão e o modo de fazer a confissão
geral. 5º A morte. 6º Juízo. 7º Inferno. 8º Eternidade. 9º Glória. 10º Perseverança.

296. Se a missão se prolongasse, acrescentava, ou intercalava alguns outros, por exemplo, o


filho pródigo ou a misericórdia de Deus, a impenitência final, o juízo universal, a morte do
justo, a conversão de santo Agostinho, o escândalo, a conversão da Madalena, os danos que
o pecado causa ao próprio pecador, o pecado venial, a ocasião próxima, a devoção do
rosário, a oração mental, a esmola, a paixão de Cristo, as dores de Maria santíssima, etc.

297. O estilo que me propus desde o princípio foi o do santo Evangelho: simplicidade e
clareza. Para isso, valia-me de comparações, semelhanças, exemplos históricos e
verdadeiros; o mais era tomado da sagrada Escritura. 142 Havia observado que uma das
coisas que mais chamava a atenção de todos, sábios e ignorantes, crentes ou incrédulos,
eram as comparações tiradas da natureza.

298. Recordo-me de que no ano de 1841, pregando num Setenário das Dores da Santíssima
Virgem num ambiente de pessoas bastante más, nomeio do sermão, disse uma verdade
realmente transcendental, provada com a sagrada Escritura. Os ouvintes faziam silêncio
profundo, e do silêncio saiu uma voz que proferia uma frase bastante depreciativa: Olha o
engodo em que nos metes! 143 Eu fiz como se não tivesse ouvido e disse: Para que fique
mais clara esta verdade importantíssima, valho-me de uma comparação. Expliquei-a, e o
mesmo respondeu com voz alta: “Tens razão” 144 e no dia seguinte fez uma confissão
geral.

299. Poderia referir este e muitíssimos outros casos que confirmaram a utilidade das
comparações tiradas da natureza. Neste particular, Deus nosso Senhor me favoreceu de tal
maneira que, ao tratar qualquer assunto, ocorrem-me comparações, sem premeditar e
sempre muito oportunas, como se de muito tempo antes as tivesse preparado. Bendito
sejais, meu Deus, por me terdes enriquecido com este dom, que é vosso e não meu, pois
reconheço que de mim nem uma palavra posso dizer, nem um pensamento bom posso ter!
Tudo seja para vossa glória.

300. Sempre tive muito desejo de ler autores de sermões missionários.Li são João
Crisóstomo, santo Afonso de Ligório, Siniscalqui, Barcia e o venerável João de Ávila. 145
Da leitura deste último, notei que pregava com tanta claridade que era entendido por todos
e nunca se cansavam de ouvi-lo, mesmo que às vezes seus sermões durassem duas horas.
Tal era a fluência e o número de idéias que lhe ocorriam que era muito difícil ocupar menos
tempo.

301. Diuturnamente não pensava senão na expansão da glória de Deus através da renovação
dos costumes e conversão dos pecadores. A finalidade primordial a que dirigia sua
pregação era tirar as almas do infeliz estado de culpa, manifestando a feiúra do pecado, a
indignação de Deus e o horrendo castigo preparado para os pecadores impenitentes, e o
prêmio oferecido aos verdadeiros arrependidos, concedendo-lhe o Senhor tanta eficácia a
suas palavras que, segundo Luís de Granada: “Um dia ouvi-o, em um sermão, falar da
maldade dos que por luxúria ofendem a Deus nosso Senhor, citando Jeremias:
Obstupescite, coeli, super hoc (Pasmai, ó céus, por causa disto); 146 a verdade é que o
pronunciou com tão grande expressão e espanto que pareciam tremer as paredes da
Igreja”.147

302. Na época em que pregava em Granada o venerável Ávila, pregava também outro
pregador, o mais famoso da época. Quando este pregava, as pessoas saíam do sermão
admiradas por tantas e tão lindas coisas, proferidas com tanta eloqüência. Porém, quando
saíam do sermão do venerável Ávila, saíam em silêncio, cabeças baixas, sem um
comentário sequer, recolhidos e compungidos pela força da verdade e excelência do
pregador. Com uma simples palavra que dizia e um grito que dava, comovia e abrasava os
corações e as entranhas dos ouvintes.

303. Quis referir-me aqui ao venerável Ávila, por causa do seu estilo.Adaptei-me muito
bem a ele e percebi que era o que dava melhores resultados. Glória seja a Deus nosso
Senhor que me fez conhecer os escritos e obra deste grande mestre de pregadores e pai de
bons e zelosos sacerdotes!

304. Quando ia a um povoado, não só pregava diariamente os sermões correspondentes à


função, mas procurava também pregar aos sacerdotes(a não ser que estivessem em retiro,
pois então lhes pregava de manhã cedo e à tarde, cada dia). Pregava também em todos os
conventos de contemplativas, das Irmãs da Caridade, das Terciárias, e aos membros das
Conferências de São Vicente de Paulo, 148 às senhoras, aos presos, aos meninos e às
meninas, aos enfermos. Em suma, não me esquecia de visitar e pregar em nenhuma
instituição de piedade ou beneficência. O tempo que me sobrava, passava-o no
confessionário, ouvindo confissões pela manhã e à tarde.

305. Bendito sejais vós, meu Deus, por me haverdes dado saúde e força para que eu
sustente tão grande e contínuo trabalho! Tenho plena certeza de que sem o auxílio especial
do céu seria impossível suportar tão árduo e prolongado trabalho, 149 desde 1840 até 1847,
época em que fui às Ilhas Canárias, juntamente com o bispo d. Boaventura Codina, homem
cheio de virtudes e zelo. 150 Além de todo trabalho missionário,pregava retiros ao clero, às
religiosas, aos leigos, aos meninos e às meninas que se preparavam para a primeira
comunhão.

Capítulo XX
Quinto meio: Exercícios Espirituais de Santo Inácio

306. Já comentei em outro lugar 151 que, desde a época de estudante, sempre fiz os
exercícios espirituais, através dos escritos de santo Inácio. Em Roma, os fiz por duas vezes,
uma vez sozinho, ao chegar, e outra, pertencendo à Companhia de Jesus, antes de sair por
causa de uma enfermidade. Os próprios padres o pregaram; foram os que mais me fizeram
bem.

307. Quando tive que deixar a Companhia por causa da enfermidade, deram-me um
exemplar dos Exercícios de Santo Inácio, explicados pelo padre Diertins. Através dele,
sempre pregava a outros. O clero de Vic pediu-me o livro para reimprimi-lo, e foi impresso
por Trullás. 152

308. Os Exercícios de Santo Inácio são um meio muito poderoso que sempre utilizei para a
conversão dos sacerdotes, que por certo é atarefa mais difícil. Contudo, sempre constatei
resultados muito positivos da parte de muitíssimos sacerdotes que verdadeiramente se
converteram e não poucos se tornaram zelosos e fervorosos pregadores.Preguei ao clero de
Vic, Barcelona, Tarragona, Gerona, Solsona,Canárias, Mataró, Manresa, Pobla-Bagá,
Ripoll, Campdevánol, SanLlorens dels Piteus, etc., etc. 153

309. Preguei várias vezes esses exercícios aos leigos, separando homens e mulheres em
diversas turmas e, pelo que pude observar, produzem frutos mais sólidos do que a pregação
de missões. 154 A esse respeito escrevi um livro intitulado Exercícios de Santo Inácio. Foi
muito bem aceito. Os exercícios produziram e produzem maravilhosos efeitos. Quando bem
feitos, os pecadores se convertem, os justos se conservam ou se aperfeiçoam na graça. 155
Que tudo seja para a maior glória de Deus. Devo dizer que por este livro sua majestade a
rainha faz anualmente os exercícios espirituais e aconselha às camareiras que os façam
também através dele. 156

Capítulo XXI
Sexto meio: Livros e folhetos

310. A experiência me ensinou que um dos meios mais poderosos para a propagação do
bem é a imprensa, ao mesmo tempo em que é a arma mais poderosa para se propagar o mal,
quando dela se abusa. Por meio da imprensa podem-se produzir muitos livros bons e
folhetos para o louvor de Deus. Nem todos querem ou podem ouvir a divina palavra, mas
todos podem ler ou ouvir a leitura de um bom livro. Nem todos podem ir à igreja ouvir a
palavra divina, porém o livro irá à sua casa. Nem sempre o pregador pode estar pregando,
porém o livro sempre estará repetindo a mensagem, sem nunca se cansar, sempre disposto a
repetir a mesma coisa, quer seja lido pouco ou muito, lido ou não uma ou mil vezes, não se
ofende por isso, permanece o mesmo, sempre se acomoda à vontade do leitor.

311. Sem dúvida, a leitura de bons livros sempre foi considerada de grande utilidade, hoje,
porém, é de suma necessidade. Digo isto porque vejo que há como que um delírio para ler
e, se as pessoas não têm bons livros, lerão os maus. Os livros são alimento para a alma. Se
ao corpo faminto se oferece uma comida sadia, será nutrido, mas se a comida está
deteriorada, prejudicará o organismo. O mesmo ocorre com a leitura. Os que lerem livros
bons e oportunos, adequados a si e às próprias circunstâncias, se sentirão nutridos e
fortalecidos. Porém, se nutridos com livros perniciosos, jornais e folhetos heréticos, verão
corrompidas suas crenças e pervertidos seus costumes, extravia-se o pensamento,
corrompe-se o coração e, do coração corrompido, saem os males, como disse Jesus, 157 até
chegar à negação da verdade primeira e do princípio de toda verdade, que é Deus: Dixit
insipiens in corde suo: non est Deus (Disse o insensato em seu coração: não há Deus). 158

312. Em nossos dias, há uma dupla necessidade de fazer circular bons livros; estes, porém,
devem ser pequenos pelo fato de as pessoas andarem apressadas e com mil e uma coisas
para fazer por toda parte e, como a concupiscentia oculorum et aurium (concupiscência dos
olhos e dos ouvidos) 159 aumentou ao extremo, todos querem ver e ouvir tudo,além de
viajar. Assim o livro volumoso não será lido, servirá unicamente para sobrecarregar as
estantes das livrarias e as das bibliotecas. Por isso, convencido dessa verdade
importantíssima e ajudado pela graça de Deus, publiquei inúmeros livretos e folhas soltas.

313. O primeiro livreto que publiquei contém conselhos ou avisos espirituais, dirigido às
religiosas de Vic, a quem acabara de pregar os exercícios espirituais; para que recordassem
melhor o que lhes havia pregado, pensei deixar-lhes por escrito o conteúdo. Antes de
entregar o escrito a elas, para que cada uma o copiasse, mostrei-o ao querido amigo doutor
Jaime Passarell, cônego penitenciário daquela catedral. Ele sugeriu que o imprimisse e
assim evitaria às religiosas, o trabalho de copiar e seria utilizado por elas e por outros
mais.Acatei a sua sugestão que tanto respeitava e amava por sua virtude, e o livro foi
impresso. E assim foi que veio à luz meu primeiro livro.

314. Percebendo os bons resultados do primeiro livro, decidi escrever o segundo: Avisos às
moças. Depois escrevi aos Pais; Às crianças; Aos jovens e outros, como se pode ver no
catálogo. 160

315. À medida que ia missionando, percebia as necessidades e, conforme o que via e ouvia,
escrevia um livrinho ou um folheto. Se na cidade houvesse o costume de cantar cantos
desonestos, fazia imprimir logo um folheto com um cântico espiritual ou moral. Por isso
quase todos entre os primeiros folhetos que imprimi eram de cânticos. 161

316. Desde o começo, publiquei um folheto contendo orientações contra as blasfêmias.


Naqueles dias em que comecei a pregar era coisa horrorosa a quantidade e a gravidade das
blasfêmias que se ouvia porto da parte. Parecia que os demônios do inferno se haviam
disseminado pela terra a fim de provocar os homens a blasfemarem. 162
317. Também a impureza já ultrapassara seus limites e por isso resolvi escrever mais dois
folhetos. Como a devoção a Maria santíssima é remédio muito poderoso contra todos os
males, escrevi no início do folheto aquela oração que assim se inicia: Ó virgem e Mãe de
Deus… que se acha em quase todos os livros e folhetos. 163 Estas duas palavras, virgem e
mãe de Deus, coloquei-as porque ao escrevê-las lembrava que,quando estudante, nas férias
de verão, li a vida de são Filipe Néri,escrita pelo padre Conciencia, na qual dizia que o
santo gostava muito que se juntassem sempre estas duas palavras, e que com elas se honra
muito a Maria santíssima e ela se sente obrigada a atender.164 As demais palavras são uma
consagração que se faz a Nossa Senhora.

318. Sentindo eu mesmo os bons resultados que esse folheto estava produzindo, resolvi
escrever outros, segundo as necessidades que observava na sociedade e distribuía com
profusão, não somente aos adultos, mas também às crianças que se aproximavam para
beijar-me a mão e me pediam um santinho, como era costume, e eu procurava levar os
bolsos sempre bem abastecidos. Para maior glória de Deus, quero aqui registrar um caso
entre os muitos que poderia referir. É o seguinte:

319. Certa tarde, ao passar pela rua de uma das maiores cidades da Espanha, um menino
aproximou-se de mim e beijou-me a mão, pedindo-me um santinho; eu lho dei. No dia
seguinte, muito cedo, dirigi-me à igreja para a celebração da missa. Costumava ir antes ao
confessionário, pois sempre me aguardavam muitas pessoas. Após a missa, fiquei no
presbitério em ação de graças. Passado algum tempo, aproximou-se de mim um homem
alto, gordo, de bigode e barba grandes, tão encoberto por uma capa de gola grande e peluda,
que quase não se via senão o nariz e a fronte: olhos meio fechados, bigode, barba,costeletas
encobriam o restante do rosto. Com voz trêmula e rouquenha, pediu-me o favor de atendê-
lo em confissão. Disse-lhe que sim, que entrasse na sacristia, e logo iria atendê-lo, assim
que concluísse a ação de graças. Embora houvesse outras pessoas esperando ao lado do
confessionário, pensei em atendê-lo separadamente, pois por seu aspecto pareceu que assim
convinha; de fato assim foi. A sós na sacristia foi atendido.

320. Sentei-me, e ele pôs-se a chorar tão convulsivamente, que eu não sabia o que fazer
para consolá-lo. Fiz-lhe várias perguntas para saber a causa. Finalmente, entre lágrimas,
suspiros e soluços, ele respondeu: Padre, o senhor passou ontem à tarde pela minha rua e,
ao passar pela porta de casa onde moro, um menino saiu para beijar-lhe a mão, fez-lhe um
pedido e o senhor deu-lhe um santinho. O menino ficou muito contente e, após tê-lo
examinado por um espaço de tempo, deixou-o em cima da mesa e foi para a rua brincar
com as outras crianças. Fiquei só em casa e, tocado de curiosidade e para passar o tempo,
peguei o santinho e o li. Padre, não posso explicar o que senti naquele momento; cada
palavra era como que um dardo que se cravava em meu coração. Resolvi confessar-me e
pensei: uma vez que Deus se valeu dele para fazer-te conhecer a verdade, com ele irás
confessar-te.Passei a noite chorando e examinando minha consciência. Agora estou aqui
para confessar-me. Padre, sou um grande pecador. Tenho cinqüenta anos e, desde criança,
não me confesso, e chefiei bandos de pessoas más. Padre, haverá perdão para mim? - Sim,
senhor, sim! Ânimo, confiança na bondade e misericórdia de Deus. O bom Deus chamou-o
para que se salve, e o senhor fez muito bem em não endurecer o coração e colocar em
prática a decisão de fazer uma boa confissão. Confessou-se.Absolvi-o e ficou muito
contente e tão alegre que nem conseguia expressar-se.
321. Pois bem, mesmo que os folhetos e santinhos não tivessem produzido senão esta
conversão, já me sentiria satisfeito pelo trabalho e pelos gastos com as impressões. Porém,
não foi esta a única conversão pela leitura dos folhetos e dos santinhos já publicados.

322. Em Villafranca del Panadés havia quatro criminosos condenados. Há três dias estavam
esperando a execução da pena de morte e não queriam confessar-se. Com a leitura de um
santinho, começaram a refletir e se confessaram. Receberam o santíssimo Viático e tiveram
morte edificante. 165 São muitíssimos os que se converteram pela leitura de um santinho. Ó
meu Deus, como sois bom! De tudo tirais proveito para derramar vossa misericórdia sobre
os pobres pecadores. Bendito sejais para sempre. Amém!

Capítulo XXII
Sétimo meio: Publicações, diálogos familiares, rosário e objetos religiosos

323. Graças sejam dadas a Deus, pois todos os livrinhos produziram bons resultados. De
todos esses livros, os que mais têm convertido almas são: O Caminho Reto e o Catecismo
Explicado. 166 Da leitura destes dois livros, encontrei muitas conversões e, mesmo estando
na corte, não passa um dia sem que se apresentem pessoas determinadas a mudar de vida
por ter lido esse livro. Todos o procuram e não se contentam enquanto não o possuem.
Todos, sem distinção de classes, desejam tê-lo. Esse desejo geral me obrigou a fazer uma
impressão de luxo para as pessoas mais abastadas. Procuraram-no a rainha, o rei, a infanta,
damas do palácio, cavalheiros e toda classe de nobreza. Pode-se dizer que na classe alta não
há casa alguma ou palácio em que não se encontre um ou mais exemplares de O caminho
reto de luxo e, nas demais classes, outros mais simples. 167

324. Não sei como foi que escrevi tantos e tão diversos livros. Vós o sabeis, meu Deus.
Digo mal. Sim, eu sei. Não sou eu que os escrevo.Sois vós, meu Deus que, para realizar tal
obra vos servis deste miserável instrumento, pois não teria capacidade, nem talento, nem
tempo para realizar tudo isso. Mas vós me proporcionastes tudo, mesmo sem eu
compreender como. Bendito sejais, meu Deus! 168

325. A finalidade disso tudo era a maior glória de Deus, a conversão dos pecadores e a
salvação das almas. Por isso escrevi em forma de avisos para todas as classes sociais;
porém, minha predileção eram as crianças. Para tanto publiquei quatro catecismos, além de
livros e folhetos.

326. Outra camada da sociedade que me chamava a atenção era a dos clérigos. Se todos os
que seguem a carreira eclesiástica fossem homens com verdadeira vocação, virtude e
aplicação ao estudo, que bons sacerdotes seriam todos. Quantas almas se converteriam!
Para eles publiquei, em dois volumes, O Colegial ou o Seminarista instruído, obra que
agradou a quantos a leram. 169 Tudo seja para a maior honra e glória de Deus.

327. Somos criados para conhecer, amar, servir e louvar a Deus. E para que um clérigo
desempenhe todos os seus deveres, precisa saber canto eclesiástico. Com essa finalidade
publiquei um caderno bastante resumido e fácil sobre o modo de cantar e louvar a Deus.
170

328. Em qualquer um dos livros publicados não busquei nenhum lucro, senão somente a
maior glória de Deus e o bem das almas. Nunca cobrei sequer um centavo de direitos
autorais daquilo que mandei imprimir, 171 antes ao contrário, dei gratuitamente milhares e
milhares de exemplares e até hoje continuo distribuindo e, se Deus quiser, continuarei
espalhando esses impressos até à hora da morte, pois tenho plena certeza de que é a melhor
esmola que se pode dar hoje em dia. 172

329. A fim de poder dar e vender a um preço o mais barato possível, pensei em fundar uma
Imprensa Religiosa, 173 sob a proteção de Maria Santíssima de Montserrat, padroeira da
Catalunha e também do glorioso são Miguel. Comuniquei este pensamento a Caixal 174 e a
Palau, 175 então cônegos de Tarragona e agora bispos, um de Seo de Urgel e o outro de
Barcelona. Atualmente ainda cuidam dela sob a direção direta de um administrador. 176

330. Para ver o que fez e o que está fazendo a Livraria Religiosa basta visitar a editora ou a
gráfica e ler o catálogo do que se imprimiu. Ainda assim é difícil conhecer bem, pois
algumas obras aí catalogadas tiveram muitas reimpressões. Há obras que já atingiram a
trigésima oitava edição; as tiragens são de muitos milhares cada uma. 177

331. Por meio da Livraria Religiosa, o clero e os leigos já adquiriram e estão adquirindo
bons livros, os melhores de que se tem conhecimento, e a um preço realmente
insignificante. Em nenhuma gráfica espanhola se vendem livros tão baratos, de boa
qualidade quanto na Livraria Religiosa. Quanto deveria agradecer a Deus por ter-me
inspirado tão grande e proveitosa iniciativa!

332. Agora que me refiro aos livros, também direi do reforço vindo à Livraria Religiosa
através da Academia de São Miguel, aprovada pelo sumo pontífice Pio IX, e pelo governo
de sua majestade com estatuto real, pertencendo suas majestades ao primeiro dos Coros. A
academia é constituída por uma equipe de direção em Madri, que se reúne todos os
domingos e procura cumprir o estabelecido no regulamento. Há muitos coros em Madri e
nas principais cidades da Espanha e é incalculável o bem que faz. 178

333. Os bons livros e os folhetos sempre produzem bons frutos, porém esses frutos são
mais copiosos quando os impressos são distribuídos durante as missões. Ajudam a pregação
e confirmam o que se ouviu de viva voz, além de fazerem com que os frutos sejam mais
perseverantes. É por isso que nas pregações e missões procuro distribuí-los em grande
quantidade. 179

334. Outro meio que faz muito bem é ter conversas familiares. Que bem tão grande
produzem! Entre os primeiros membros da Companhia havia um irmão leigo que fazia
compras todos os dias e era tão feliz nas conversas com as pessoas com quem negociava,
que conseguiu converter mais pessoas do que qualquer um dos missionários. Este fato eu o
li era ainda estudante e me agradou tanto que o imitava conforme as circunstâncias. 180
335. Ao se falar da morte ou ao se ouvir o toque dos sinos, aproveitava a oportunidade para
falar da fragilidade e da inconstância do nosso ser, como havemos de morrer e da conta que
devemos prestar a Deus. Se havia uma tempestade de raios e trovões, pensava no juízo e
falava daquele grande dia. Se estivesse ao lado do fogo, falava do fogo do inferno. Uma vez
falava com um pároco, ao lado do fogo de sua cozinha. Da conversação que tive com ele,
como que por passatempo, comoveu-se tanto que, no dia seguinte, fez comigo uma
confissão geral de coisas que nunca se havia atrevido a confessar. Aquela conversa
motivou-o ao arrependimento.

336. Quando viajava, não perdia a oportunidade de falar às pessoas que estavam perto de
mim, segundo as circunstâncias. Se visse flores, chamava-lhes a atenção e dizia-lhes que,
assim como as plantas produziam flores tão formosas e perfumadas, também nós
deveríamos produzir virtudes; por exemplo, a rosa ensina a caridade, a açucena, a pureza, a
violeta a humildade, e daí por diante. Temos de ser, como disse o apóstolo Paulo, bonus
odor sumus Christi Dei in omni loco (somos o bom odor de Cristo Deus em todo lugar).
181 Vendo uma árvore frutífera, falava às pessoas de como devemos dar frutos de boas
obras, porque, do contrário, seríamos como aquelas duas figueiras de que nos fala o
Evangelho. 182 Ao passar perto de um rio, falava-lhes como a água nos lembra que
caminhamos rumo à eternidade. Ao ouvir o canto dos pássaros, de uma música, etc., falava-
lhes do cântico eterno e novo do céu; e, assim, de outras coisas. Observei que com essas
conversas familiares se fazia muitíssimo bem, pois acontecia coisa semelhante àquilo que
ocorreu com os discípulos de Emaús; 183 e, além do mais, evitavam-se conversas inúteis e,
quem sabe, até murmurações. 184

337. Outro meio muito poderoso do qual me valia para conquistar as almas é o da
distribuição de terços, ao mesmo tempo em que ensinava como se devia rezar. Dava
medalhas, ensinava como levá-las e beijá-las pela manhã e à noite. Oferecia escapulários,
explicando o que significam e como usá-los. 185

338. Muito bom também para estimular a piedade é benzer imagens, medalhas, terços e
escapulários. Trazem-nos, assim, no dia marcado para a bênção que fazia desde o púlpito.
Isso os entusiasmava e afervorava. Levavam-nos como piedosa recordação das missões e
de tudo que nelas fora dito e praticado.

339. Escrevi também um pequeno livro sobre a origem do escapulário azul-celeste; das
graças e indulgências que se obtêm, e muitas pessoas o receberam na corte de Madri,
especialmente a rainha, o rei, o príncipe e as princesas, as criadas e camareiras. 186

Capítulo XXIII
Virtudes necessárias para se obter frutos
Primeira virtude: A humildade

340. Até aqui falei dos meios mais comuns de que me valia para produzir frutos. Agora
tratarei das virtudes conhecidas que deve ter um missionário para produzir frutos. Cícero,
quando fala do orador, diz que deve ser instruído em toda arte e ciência: In omnibus artibus
et disciplinis instructus debet esse orator: (O orador deve ser instruído em todas as artes e
disciplinas). 187 Eu digo que o missionário apostólico deve ser exemplo de todas as
virtudes. Deve ser a própria virtude personificada. À imitação de Jesus Cristo, deve
começar por fazer e praticar, para depois ensinar. Coepit facere et docere: (Fez e ensinou
desde o princípio). 188 Com as obras deve poder dizer como o Apóstolo Paulo: Imitadores
mei estote, sicut et ego Christi (Tornai-vos meus imitadores, como eu o sou de Cristo). 189

341. Tenho a convicção de que a aquisição das virtudes necessárias para ser um verdadeiro
missionário apostólico, começa pela humildade, fundamento de todas as virtudes. 190
Desde minha entrada no seminário de Vic para cursar filosofia, decidi fazer da virtude da
humildade matéria de meu exame particular. Bem que o necessitava, pois em Barcelona,
com todos aqueles desenhos, máquinas e demais tolices, ficara com a cabeça cheia de
vaidades e, quando alguém me elogiava,meu coração contaminado comprazia-se todo
naqueles elogios. Ó meu Deus, perdoai-me, pois me arrependo de verdade! A recordação de
minha vaidade faz-me derramar muitas e amargas lágrimas. Porém, vós, meu Deus, me
humilhastes, e assim não posso senão dar graças por isso e dizer com o profeta: Bonum
mihi quia humiliasti me: (Chegou em boa hora a humilhação). 191 Vós, Senhor, me
humilhastes, e eu também me humilhava, ajudado com vosso auxílio.

342. Ao iniciar os meus estudos em Vic, sucedia-me algo parecido com o que se passa
numa forja, na qual o ferreiro coloca na fornalha uma barra de ferro e quando ela está em
brasa retira-a, coloca-a em cima da bigorna e começa a dar golpes com o malho. O ajudante
faz o mesmo e os dois vão alternando compassadamente marteladas e vão moldando o ferro
até que adquira a forma desejada pelo ferreiro. Vós, meu Senhor e meu mestre, pusestes
meu coração na forja dos exercícios espirituais e dos sacramentos, e assim, aquecendo meu
coração no fogo de vosso amor e no de Maria santíssima, começastes a dar golpes de
humilhações, alternando com meus próprios golpes, desferidos através do exame particular
que eu fazia sobre tão necessária virtude. 192

343. Com muita freqüência, repetia a prece de santo Agostinho: Noverim te, noverim me,
193 e a de São Francisco de Assis: Quem sois vós? Quem sou eu? 194 E como se o Senhor
me dissesse: Eu sou o que sou 195 e tu és o que não és. Tu não és nada e ainda menos que
nada, pois o nada não pecou, e tu sim. 196

344. Sei clarissimamente que de mim nada tenho senão o pecado. Se sou algo, se tenho
algo, tudo recebi de Deus. O ser físico não é meu, é de Deus; ele é meu criador, meu
conservador, meu motor, pelo concurso físico. Da mesma forma que um moinho que, por
melhor que esteja montado, se não existe a água não se movimenta, assim também sou eu
no ser físico e natural.

345. O mesmo digo, e muito mais, relativamente ao espiritual e sobrenatural. Reconheço


que não posso invocar o nome de Jesus nem ter um único pensamento bom sem o auxílio
de Deus. 197 Sem ele, absolutamente nada posso. Para pesar meu, quantas distrações
tenho!

346. Na ordem da graça, assemelho-me a um homem que se lança num poço profundo, mas
que sozinho não pode sair. Assim sou eu. Posso pecar, porém não posso me livrar do
pecado senão com os auxílios de Deus e os méritos de Cristo. Posso condenar-me, porém
não posso salvar-me, a não ser pela misericórdia e bondade de Deus.

347. Cheguei à conclusão de que a virtude da humildade consiste em reconhecer que nada
sou, que nada posso senão pecar, que em tudo dependo de Deus: ser, conservação,
movimento, graça. Por outro lado, fico muito contente por esta dependência de Deus, pois
prefiro contar com ele que somente com minhas possibilidades. Não suceda comigo o que
aconteceu a Luzbel. Ele conhecia muito bem que todo seu ser, natural e sobrenatural, estava
totalmente dependente de Deus, mas foi soberbo, pois como o conhecimento era meramente
especulativo e a vontade descontente, desejou semelhar-se a ele, não pela graça, mas por
sua própria virtude.

348. Há muito tempo percebi que o conhecimento de tudo isso é prático; sinto que em nada
me hei de gloriar nem envaidecer, porque nada sou, nada tenho, nada valho, nada posso e
nada faço. Simplesmente sou como o serrote nas mãos do serrador.

349. Compreendi que não devo sentir desprezo algum por tudo isso, porque, nada sendo,
nada mereço. Na prática procuro agir da melhor forma possível, pois em nada devo
ensoberbecer-me, como nenhuma ignomínia ou desonra devem entristecer-me.

350. Tenho para mim que a pessoa verdadeiramente humilde deve ser como a pedra. Ainda
que esteja colocada no mais alto de um edifício, sempre gravita para baixo. Li muitos
autores ascéticos que tratam desta virtude da humildade, a fim de entender bem em que
consiste e os meios assinalados para consegui-la. Lia as vidas dos santos que mais se
distinguiram nessa virtude para ver como a praticavam, pois eu desejava alcançá-la.

351. Efetivamente propus-me o exame particular sobre esta virtude. Escrevi os propósitos
sobre este assunto e os ordenei tal como se encontram no opúsculo chamado La Paloma.
198 Durante quinze anos fiz esse exame particular ao meio-dia e à noite, e ainda não sou
humilde. 199 Quando menos esperava, notava em mim algum rebento de vaidade. No
mesmo instante, propunha-me podá-lo, por sentir alguma complacência ao conseguir um
bom êxito ou por alguma palavra frívola. Por essa atitude, depois tinha que chorar,
arrepender-me, confessar-me e fazer penitência.

352. Tinha absoluta certeza de que Deus nosso Senhor queria que eu fosse humilde, e me
auxiliava muito para isso, dando-me motivos para humilhar-me. Naqueles primeiros anos
de missões era muito perseguido por toda parte e isto na verdade é muito humilhante.
Levantavam as mais feias calúnias a meu respeito, diziam até que havia roubado um burro,
e outras coisas mais que contavam. No início de uma missão ou função nos povoados, pelo
menos até a metade dos dias, era muito caluniado: farsas, mentiras, calúnias de toda espécie
diziam a meu respeito. Tinha aí muito sofrimento para oferecer a Deus e, ao mesmo tempo,
matéria para exercitar a humildade, a paciência, a mansidão, a caridade e demais virtudes.

353. Tudo isso durava até a metade da missão e era comum em todas as povoações. 200 Da
metade da missão em diante, as coisas mudavam completamente. Aí o diabo se valia do
expediente oposto. Todos diziam, então, que eu era um santo, para que eu me enchesse de
soberba e vaidade. Mas Deus nosso Senhor não descuidava de mim. Naqueles últimos dias
da missão em que acudia tanta gente para ouvir as pregações, para confessar-se, comungar
e para assistir a todas as demais devoções, naqueles últimos dias em que se viam os
copiosíssimos frutos colhidos e em que se ouviam os elogios que todos, bons e maus, de
mim faziam; naqueles dias, pois, o Senhor me permitia uma tamanha tristeza que só posso
explicar, dizendo que era a especial providência de Deus que ma permitia como um lastro,
a fim de que o vento da vaidade não me derrubasse.

354. Bendito sejais, meu Deus, por tanto cuidado para comigo! Quantas vezes teria perdido
o fruto de meu trabalho se vós não me tivésseis protegido! Eu, Senhor, teria feito como a
galinha que, depois de botar o ovo, fica sem ele, e, mesmo que num ano ponha muitos,
acaba ficando sem nenhum, por ter cacarejado. Ah! Meu Deus! Se vós não me tivésseis
imposto silêncio, com a vontade que às vezes eu tinha de falar dos sermões, etc., teria
cacarejado como a galinha, perdido todo fruto e merecido castigo, porque vós dissestes:
Gloriam meam alteri non dabo (Não cedo minha glória a nenhum outro). 201 E eu, por ter
falado, teria cedido ao demônio da vaidade, por vós castigado e, com justiça, Senhor, por
tê-lo referido, não a vós e sim ao diabo, vosso principal inimigo. Contudo, vós sabeis se
alguma vez o diabo beliscou algo, não obstante os poderosíssimos auxílios que me dáveis,
misericórdia, Senhor!

355. A fim de não me deixar arrastar pela vaidade, procurava ter presente os doze graus da
virtude da humildade ditos por são Bento, aceitos e aprovados por santo Tomás (2-2 q. 161
a.1), e que são os seguintes: 1) Manifestar humildade interior e exterior, isto é, no coração e
no corpo, baixando os olhos para a terra, por isso se chama humi-litas; 2) Falar pouco, de
conformidade com a razão e em voz baixa; 3) Não rir pronta e facilmente; 4) Ficar calado
até ser perguntado; 5) Não fugir das obras normais que fazem todos; 6) Ter-se e reputar-se
como o mais vil de todos e, sinceramente, expressar-se assim; 7) Considerar-se indigno e
inútil para tudo; 8) Reconhecer os próprios defeitos e confessá-los singelamente; 9)
Obedecer prontamente nas coisas duras, e muita paciência nas espinhosas; 10) Obedecer e
sujeitar-se aos superiores; 11) Nada fazer por sua própria vontade; 12) Ter Deus e sua santa
lei sempre na memória. 202

356. Além da doutrina contida nesses doze graus, procurava imitar a Jesus que a mim e a
todos nos diz: Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque sou manso e
humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas. 203 E assim contemplava
continuamente Jesus no presépio, no trabalho, no calvário. Meditava suas palavras, seus
sermões, suas ações, sua maneira de comer, vestir, andar de uma povoação a outra… Com
este exemplo me animava e sempre me dizia: Em casos como esse, como é que Jesus se
portaria? Procurava imitá-lo com muito gosto e alegria, convicto de que imitava meu Pai,
meu mestre e meu Senhor, agradando-o com isto. Ó meu Deus, como sois bom! Estas
inspirações santas me eram dadas para que vos imitasse e fosse humilde. Bendito sejais,
meu Deus! Se a outro tivésseis concedido as mesmas graças e auxílios que a mim, como
este outro seria melhor do que eu! 204
Capítulo XXIV
Segunda virtude: A pobreza 205

357. Vendo que Deus nosso Senhor, sem nenhum mérito meu, mas unicamente por seu
beneplácito, me chamava para fazer frente à torrente de corrupção e me escolhia para curar
as enfermidades do corpo meio morto e corrompido da sociedade, pensei que devia dedicar-
me a estudar e conhecer bem as enfermidades deste corpo social. Efetivamente fiz essa
análise. Dela, concluí que tudo o que há no mundo não passa de amor à riqueza, à honra e
ao prazer. Sempre o gênero humano teve inclinação para esta tríplice concupiscência, 206
mas, hoje em dia a sede de bens materiais está secando o coração e as entranhas da
sociedade moderna.

358. Vejo que estamos num século em que não só se adora o bezerro de ouro, a exemplo
dos hebreus, 207 mas se dedica um culto tão grande ao ouro, que as virtudes mais
generosas foram derrubadas dos seus pedestais sagrados. Todos somos imagens de Deus,
filhos de Deus, remidos com o sangue de Jesus Cristo e destinados para o céu, no entanto,
vejo que estamos em uma época em que o egoísmo faz os homens esquecerem os seus
deveres mais sagrados para com seus semelhantes e irmãos.

359. Considerei que para enfrentar este gigante que os mundanos chamam de onipotente,
tinha de fazer-lhe frente com a santa virtude da pobreza. Da forma como entendi também,
coloquei em prática. Nada tinha, nada queria e tudo recusava. 208 Estava contente com a
roupa que levava e a comida que me davam. Levava tudo numa pequena trouxa. Minha
bagagem consistia em um livro da Liturgia das Horas do todo o ano, um vade-mécum em
que levava os sermões, um par de meias e uma camisa para trocar. E nada mais.

360. Nunca levava dinheiro comigo, nem queria. Certa ocasião levei um susto. Meti a mão
no bolso do jaleco e pensei ter encontrado uma moeda. 209 Fiquei espantado, tirei-a do
bolso e olhei; para meu consolo vi que não se tratava de uma moeda, mas de uma medalha,
que muito tempo antes me haviam dado. Tamanho era o horror que tinha ao dinheiro que
foi como se tivesse voltado da morte à vida.

361. Não tinha dinheiro, tampouco dele necessitava. Não precisava para andar a cavalo, de
condução ou trem, porque sempre andava a pé, embora tivesse de fazer viagens longas,
como direi noutro lugar. Dele não necessitava para comer, pois pedia de esmola aonde
chegava. Não necessitava de roupa, nem de calçado, pois nosso Senhor conservava aquelas
que tinha, de modo admirável, como aos hebreus no deserto. 210 Sabia claramente que era
vontade de Deus que eu não tivesse dinheiro, que nada aceitasse, a não ser a comida
necessária nas horas habituais de refeição, sem jamais querer provisão para levar de uma
parte a outra.

362. Sentia que este desprendimento causava boa impressão a todos e por isso procurava
ser fiel aos propósitos feitos. Para animar-me, meditava assiduamente a doutrina de Cristo,
especialmente naquelas palavras que dizem: Bem-aventurados os que têm um coração de
pobre, porque deles é o Reino dos céus! 211 - Se queres ser perfeito, vai, vende tudo que
tens, dá-o aos pobres… Depois vem e segue-me! 212 Ninguém pode ser discípulo de Jesus
se não renunciar a todas as coisas. 213
363. Sempre considerava que Jesus se tornou pobre, quis nascer, viver e morrer
pobremente. Não me esquecia também de Maria santíssima, que sempre quis ser pobre. E
tinha presente também que os apóstolos deixaram tudo para seguir a Cristo. Algumas vezes,
o Senhor fazia sentir os efeitos da pobreza, porém era por pouco tempo, logo me consolava
dando-me o necessário. Nesses momentos, a alegria que eu sentia com a pobreza era maior
que a dos ricos no meio de todas assuas riquezas. Os ricos com todas as suas riquezas não
desfrutam do que eu desfruto com minha mui amada pobreza. 214

364. Observei uma coisa que não posso deixar de registrar aqui: quando se é pobre
voluntária e não forçosamente, mais se saboreia a doçura da virtude da pobreza e, além do
mais, pode-se dizer que Deus auxilia de duas maneiras: ou movendo os corações dos que
têm a dar qualquer coisa; ou conservando a vida daquele que assume generosamente a
pobreza, mesmo que fique sem comer. De modo particular eu já pude vivenciar essas duas
experiências.

365. Citarei alguns casos acontecidos comigo. Certa vez ia de Vic a Campdevánol, a fim de
pregar um retiro espiritual a alguns sacerdotes que, com o senhor Cônego Soler, tinham-se
reunido naquela paróquia.Era nos últimos dias de julho. Fazia muito calor. 215 Estava com
fome e sede e, ao passar em frente ao restaurante de San Quirico de Besora, a dona do
estabelecimento convidou-me para comer e beber. Respondi que não tinha dinheiro para
pagar. 216 Ela respondeu-me que comesse e bebesse quanto necessitasse que tudo seria
oferecido de graça. Eu aceitei.

366. Certo dia, indo de Igualada a Barcelona, passando em frente ao restaurante de Molins
del Rey, um pobre teve pena de mim, fez com que entrasse na Pousada e pagou-me um
prato de feijão que lhe custou quatro quartos (moeda antiga de cobre de pouco valor);
alimentei-me muito bem, chegando com folga a Barcelona, naquela mesma tarde. 217

367. Em outra ocasião, voltando da missão ao povo de Bagá, passei por Badella, Montanha
de Santa Maria, Espinalbert, Pla d’en Llonch, até San Lourenzo dels Piteus, sem nada
comer durante o dia todo, caminhando sempre pelas mais escabrosas estradas, atravessando
riacho se rios bastante caudalosos. Atravessar os rios era o que mais me dava medo. Era-me
mais penoso do que não ter o que comer, embora nisso também o Senhor me favorecesse.
218

368. Certa ocasião em que deveria atravessar o rio Besós, bastante caudaloso, quando já ia
tirando os sapatos, aproximou-se de mim um menino desconhecido, que me disse: - Não
tire os sapatos, que eu o carregarei. - Você me carregar? Você é muito pequeno; nem
mesmo pode me suportar nas costas, quanto mais atravessar o rio. - Você verá, respondeu-
me o menino, como o carregarei. Realmente, carregou-me, e atravessou o rio sem que me
molhasse.

369. Num riacho do outro lado de Manresa, as águas tinham subido tanto que as pedras
estavam totalmente cobertas e, para não tirar os sapatos, resolvi passar pelas pedras aos
pulos. Ao pular, batendo os sapatos, a água recuava, e, assim, pulando de pedra em pedra,
atravessei o riacho, sem me molhar. 219
370. Observei que a santa virtude da pobreza servia, não só para a edificação de muitas
pessoas, como também para derrotar o ídolo do ouro, além de auxiliar-me muitíssimo no
progresso da humildade e avançar no caminho da perfeição. Além da experiência,
procurava fortalecer-me com esta comparação: as virtudes são como as cordas de uma
harpa ou de um instrumento de cordas. Entre elas, a pobreza é acorda mais fina e mais
curta, pois, quanto mais curta, mais agudo é o som. Assim, quanto menores os interesses,
vantagens, riquezas da vida, tanto mais alta será a perfeição alcançada. Vemos o exemplo
de Cristo que ficou quarenta dias e quarenta noites no deserto sem comer nada.Quando
estava com os apóstolos comia pão de cevada e ainda assim às vezes faltava. Andavam tão
abnegados que, certa vez, por colherem e debulharem espigas, em dia de festa, para matar a
fome que os afligia, acabaram sendo repreendidos pelos fariseus. 220

371. Além disso, a condição de pobreza abate o orgulho, desterra a soberba, abre caminho à
santa humildade, dispõe o coração para receber novas graças e faz progredir de modo
admirável na perfeição. Do mesmo modo que os fluidos, quanto mais finos e leves forem,
mais depressa sobem, ao passo que os espessos são mais lentos e rasteiros. Ó Salvador
meu! Fazei, vos suplico, que vossos ministros conheçam o valor da virtude da pobreza, que
a amem e a pratiquem como vós nos haveis ensinado com palavras e obras! Ó que perfeitos
seríamos se todos a praticássemos bem! Que frutos tão grandes produziríamos! Quantas
almas se salvariam! Ao contrário, porém, não praticando a pobreza, não há salvação. Como
Judas, as pessoas se condenam por causada cobiça.

Capítulo XXV
Terceira virtude: A mansidão

372. Depois da humildade e pobreza, a virtude mais necessária a um missionário apostólico


é a mansidão. 221 Por isso o próprio Jesus dizia a seus amados discípulos: Aprendei de
mim que sou manso e humilde decoração e assim achareis repouso para vossas almas. 222
A humildade é a raiz da árvore, a mansidão é o fruto. Como dizia são Bernardo: 223 “Com
a humildade se agrada a Deus e com a mansidão, ao próximo”. No sermão da montanha,
Jesus disse: Bem-aventurados os mansos, porque eles possuirão a terra, 224 não só a terra
prometida, a pátria dos viventes, que é o céu, mas também os corações humanos.

373. Não há virtude que atraia tanto as pessoas como a mansidão. Um tanque cheio de
peixes dá-nos uma idéia desse poder. Se, por exemplo, jogarmos migalhas de pão no
tanque, os peixes afluirão de todos os lados até se aproximarem da margem e chegarem
perto de nossos pés. Se, porém, em vez de pão lhes atiramos uma pedra, todos eles fogem e
se escondem. O mesmo acontece com os homens: se os tratarmos com mansidão, acorrem
para ouvir a palavra de Deus e para se confessarem: se forem tratados com aspereza,
perturbam-se, não ouvem a palavra de Deus, além de ficarem em suas casas murmurando
contra o ministro do Senhor.

374. A mansidão é um sinal de vocação para o ministério de missionário apostólico.


Quando Deus escolheu Moisés, concedeu-lhe a graça e a virtude da mansidão. Cristo era a
mansidão personificada, tanto que o chamam de Cordeiro de Deus: Será tão manso, diziam
os profetas, que não quebrará o caniço rachado, não extinguirá a mecha que ainda fumega.
225 Será perseguido, caluniado e repleto de opróbrios e, como “se não tivesse língua, nada
dirá”. 226 Quanta paciência! Quanta mansidão! Trabalhou e sofreu em silêncio e, morrendo
na cruz, nos redimiu, ensinando-nos como devemos fazer para salvar as almas, missão que
ele mesmo nos confiou. 227

375. Doutrinados pelo divino Mestre, os apóstolos viviam, praticavam e recomendavam a


mansidão a todos, especialmente aos sacerdotes. Por exemplo, são Tiago dizia: Quem
dentre vós é sábio e inteligente? Mostre com um bom proceder as suas obras repassadas de
doçura e de sabedoria. Mas, se tendes no coração um ciúme amargo e gosto pelas
contendas, não vos glorieis, nem mintais contra a verdade. Esta não é a sabedoria que vem
do alto, mas é uma sabedoria terrena, humana, diabólica” (Tg 3,13-15).

376. A primeira vez que li estas palavras do santo apóstolo Paulo, fiquei assustado ao ver
que ele chama de diabólica a ciência sem doçura, sem mansidão. Jesus, diabólica!... Sim, é
diabólica e, tenho por experiência que o zelo amargo é uma perigosa arma a serviço do
demônio, daí que o sacerdote que trabalha sem mansidão, serve ao diabo e não a Cristo. Se
pregar, afugenta os ouvintes; se for confessar, afasta os penitentes, e, se estes se
confessarem, confessarão mal,porque o temor os perturba e os leva a ocultar os pecados.
Tenho certeza disso, porque já ouvi muitíssimas confissões gerais de penitentes que em
vezes passadas ocultaram os pecados por causa da aspereza dos confessores com quem se
confessavam.

377. Certa ocasião, no mês de Maria, muitas pessoas acorriam aos sermões e às confissões.
Na mesma capela em que eu atendia confissões, atendia também um sacerdote muito zeloso
e sábio. Fora missionário, porém, por causa da idade e da doença, tornara-se tão iracundo e
de tão mau gênio que não fazia outra coisa senão repreender os penitentes. Assim, eles
ficavam tão envergonhados e confusos que não completavam a confissão. Ficavam tão
desconsolados que, para se tranqüilizarem, vinham confessar-se comigo. 228

378. Como freqüentemente o mau gênio e a ira ou falta de mansidão acobertam-se com a
máscara do zelo, estudei muito detidamente em que consistiam uma e outra coisa, a fim de
não passar pelo equívoco em algo tão importante. Concluí que a função do zelo é detestar,
desprezar, combater e abater, se é possível, tudo o que é contrário a Deus, à sua vontade e
glória e à santificação de seu santo nome, conforme Davi que dizia: Iniquitatem odio habui
et abominatus sum; legem autem tuam dilexi (Odeio o mal, eu o detesto, mas amo a vossa
lei). 229

379. Observei que o verdadeiro zelo nos transforma em pessoas ardentemente zelosas pela
pureza das almas, que são esposas de Cristo, conforme os dizeres do apóstolo Paulo aos
coríntios: Eu vos consagro um carinho e amor santo, porque vos desposei com um esposo
único e vos apresentei a Cristo como virgem pura. 230 Por certo Elieser se teria enchido de
zelo se tivesse visto a casta e bela Rebeca correndo risco de ser violada, ele que a levava
para esposa do filho de seu Senhor.Sem dúvida, diria a esta santa donzela: Sou zeloso por
vós com o mesmo zelo que tenho por meu Senhor, porque vos apresentarei como virgem
casta ao filho de meu amo Abraão. Com esta comparação se entenderá melhor o zelo do
apóstolo Paulo e dos varões apostólicos. Dizia o mesmo em outra carta: Eu morro todos os
dias por vossa glória. 231 Quem está enfermo, que eu não o esteja também? Quem sofre
escândalo, que eu não me consuma de dor? 232

380. Para elucidar esta questão, os santos Padres recorrem à comparação da galinha 233 e
dizem: olhem o amor, o cuidado e o zelo que a galinha tem pelos pintinhos. Normalmente é
um animal tímido, covarde, medroso, enquanto não cria; porém, quando é mãe, passa a ter
um coração de leão: a cabeça sempre erguida, os olhos atentos, olhando para todos os lados,
ao menor sinal de perigo para os pintinhos. Não há inimigo que não ataque para defendê-
los. Vive em constante cuidado, fazendo-a cacarejar sem parar. É tão grande a força do
amor aos seus filhotes, que anda sempre doente e descorada. Que lição tão interessante de
zelo nos dais, Senhor, pelo exemplo da galinha!

381. Compreendi que o zelo é um ardor e veemência de amor que precisa ser sabiamente
governado. De outra forma violaria os termos da modéstia e da discrição; não porque o
amor divino, por veemente que seja, possa ser excessivo em si mesmo, nem pelos
movimentos ou inclinações que impõe ao espírito, mas porque o entendimento não escolhe
os meios mais aptos ou os ordena mal, tomando caminhos muito ásperos e violentos; e,
provocada a cólera, não podendo conter-se nos limites da razão, impele o coração em
alguma desordem, fazendo com que o zelo por este meio se manifeste de maneira indiscreta
e desregradamente, tornando-o mau e repreensível.

382. Quando Davi enviou o exército de Joab contra seu desleal e rebelde filho Absalão,
recomendou-lhe que não o tocasse; porém Joab, estando em batalha, com um furioso desejo
de vitória, matou o pobre Absalão com suas próprias mãos. 234 Deus pede ao missionário
que combata os vícios, faltas e pecados. Recomenda-lhe, porém, que perdoe o pecador e
que apresente a Deus esse filho rebelde, para que se converta, viva em graça e alcance a
eterna glória.

383. Ó meu Deus, dai-me um zelo discreto e prudente, a fim de executar todas as coisas
fortiter et suaviter, 235 com fortaleza, mas ao mesmo tempo suavemente, com mansidão e
bons modos! Em tudo espero portar-me com uma santa prudência, lembrando que a
prudência é uma virtude que nasce naturalmente com o homem, se cultiva com a instrução,
se fortifica com a idade, se elucida na convivência com os sábios e se consuma com a
experiência dos acontecimentos.

Capítulo XXVI
Quarta virtude: A modéstia 236

384. Digo a mim mesmo: O missionário é o espetáculo de Deus, dos anjos e dos homens,
237 e, por isso mesmo, deve ser muito prudente e delicado nas suas palavras, obras e
atitudes. Foi daí que tomei a resolução de, tanto em casa como fora, falar pouco e pensar
bem nas palavras que dizia, visto a facilidade de as tomarem em sentido diferente do que
sequer dizer.

385. Propus-me ao falar, não gesticular, pois em alguns lugares é considerado ridículo.
Resolvi que, quando tivesse de falar, falaria pouco, breve, de modo calmo e grave, sem
entreter-me em tocar o rosto, a barba, a cabeça e, muito menos o nariz, nem fazer trejeitos
com aboca, nem falar coisas de zombaria ou de desprezo, nem ridicularizar, pois percebi
que isso leva a perder muito a autoridade, o respeito e aveneração. O missionário que, por
sua leviandade, pouca mortificação e pouca modéstia, incorre em semelhantes grosserias,
dá prova de pouca virtude e manifesta pouca ou nenhuma educação.

386. Reconheci que o missionário devia estar em paz com todos, como disse o apóstolo
Paulo. 238 Baseando-me neste princípio, nunca tive desavença com ninguém, pelo
contrário, procurava ser benigno com todos e com ninguém fazia brincadeiras. Não gostava
de piadas grosseiras nem caçoava de ninguém. Não gostava de rir, embora sempre
manifestasse alegria, doçura e benignidade, pois lembrava-me que a Jesus jamais o viram
rir, mas chorar sim algumas vezes. Também lembrava daquelas palavras: Stultus in risu
exaltat vocem suam; vir autem sapiens vixtacite ridebit (O insensato eleva a voz quando ri,
mas o homem sábio sorri discretamente). 239

387. Como se sabe, a modéstia é a virtude que nos ensina a fazer todas as coisas do melhor
modo possível e, mais especificamente, tal como as fazia Jesus. Assim, em cada coisa me
perguntava e pergunto com as fez Jesus Cristo: com que cuidado, com que pureza e retidão
de intenção.Como pregava! Como comia! Como descansava! Como tratava com todas as
classes de pessoas! Como orava! E assim em tudo, de tal forma que, coma ajuda do Senhor,
me propunha imitá-lo em tudo, a fim de poder dizer, se não com palavras, ao menos com
obras, como o Apóstolo: Tornai-vos meus imitadores, como eu o sou de Cristo. 240

388. Ó meu Deus, entendi o quanto importa, para produzir fruto, que o missionário, não só
seja irrepreensível, mas claramente virtuoso, pois as pessoas valorizam mais o que vêem no
missionário do que aquilo que dele ouvem. Por isso, de Jesus, modelo dos missionários, se
diz:Coepit facere et docere (primeiro fazer, depois ensinar) 241.

389. Vós sabeis, ó meu Deus, que, não obstante meus propósitos e resoluções, as vezes que
faltei contra a santa virtude da modéstia!Vós sabeis se acaso alguém se escandalizou por
minha inobservância nesta virtude! Perdoai-me, ó meu Deus. Dou minha palavra que,
colocando em prática as palavras do apóstolo Paulo, procurarei que minha modéstia seja
notória a todos os homens; 242 será a mesma modéstia de Cristo, como tanto exorta o
Apóstolo. 243 Meu Jesus, dou-vos a minha palavra: imitarei também o humilde são
Francisco de Assis, que pregava com sua modéstia e com seus bons exemplos e convertia
as pessoas. Ó Jesus do meu coração, eu vos amo e quisera atrair todos ao vosso santíssimo
amor!

Capítulo XXVII
Quinta virtude: A mortificação 244

390. Conheci que não podia ser modesto sem a virtude da mortificação.Procurarei, pois,
com todo empenho, ajudado pela graça de Deus, adquiri-la custe o que custar.

391. Assim, antes de mais nada, procurei privar-me de tudo de que gostava, a fim de
oferecê-lo a Deus. Sem saber como, senti-me como que obrigado a cumprir o que era
apenas um propósito. Colocavam-se diante do entendimento as duas porções, a saber: a que
se refere ao meu gosto e a que se refere a Deus. Como, mediante o entendimento, percebia
essa incompreensível desigualdade, embora fosse coisa pequena, obrigava-me a seguir o
que era do agrado de Deus. Assim, com muito prazer, abstinha-me daquele gosto para dá-lo
a Deus. E isto acontece ainda hoje com todas as coisas: com a comida, bebida, descanso, no
falar, olhar, ouvir, ir a algum lugar, etc. 245

392. A graça de Deus muito me serviu para que alcançasse êxito na prática da mortificação,
tanto no serviço às almas como para bem rezar.

393. Animaram-me, sobretudo, os exemplos de Jesus, de Maria e dos santos, cujas vidas
estudei com muita atenção neste particular; e,para meu uso, fiz algumas anotações como as
de são Bernardo, de são Pedro de Alcântara. De são Filipe Néri, li que, em Roma, após ter
atendido, por trinta anos, as confissões de uma senhora célebre por sua rara beleza, ainda
não a conhecia de vista. 246

394. Posso garantir que das muitas mulheres que se confessaram comigo, conheço-as mais
pela voz que pela fisionomia, porque nunca olho para o rosto de uma mulher: ruborizo-me e
fico envergonhado. Não que me causem tentações. Não as tenho, graças a Deus. 247 É um
certo rubor que eu mesmo não sei explicar. Daí que, naturalmente, quase sem saber como,
observo aquele documento tão repetido pelos santos padres que diz: Sermo rigidus et brevis
cum muliere est habendus (Com mulher deve-se manter conversa séria e breve) 248 et
óculos humi dejectos habe: e conserva os olhos abaixados, 249 pois não consigo sustentar
uma conversação com uma mulher, por melhor que seja. Com palavras breves e sérias,
digo-lhe o que convém e imediatamente a libero, sem olhar se é pobre, rica, bonita ou feia.

395. Quando pregava missões pela Catalunha, ficava hospedado nas casas paroquiais e
nelas permanecia durante a missão; não me lembro de ter olhado jamais para o rosto de
uma mulher, governanta, empregada ou parenta do pároco. Por isso, às vezes, acontecia
que, achando-me em Vic, ou em algum outro lugar, alguém que me dissesse: Padre Claret,
não me conhece? Eu sou a empregada ou a governanta da casa paroquial em que o Senhor
esteve tantos dias pregando missões. Porém, eu não a conhecia, não a olhava e, com os
olhos baixos, perguntava-lhe: O senhor pároco está bem?

396. Ainda mais: reconheço que, sem uma graça especial, não seria possível; porém, assim
foi. Durante a época em que permaneci em Cuba, seis anos e dois meses, crismei mais de
trezentas mil pessoas, mais mulheres que homens, e mais jovens que idosas. Se me
perguntarem qual o tipo de fisionomia que têm as mulheres da Ilha, diria que não sei,
embora tenha crismado tantas, pois olhava rapidamente a fronte,baixava os olhos e, com os
olhos fechados as confirmava.

397. Além desse rubor natural que experimento na presença das mulheres, que me impede
de fixá-las, há o desejo de produzir frutos nas almas. Lembro-me de ter lido há anos que um
pregador muito famoso pregou e deu muito fruto naquele povoado. Depois as pessoas
diziam: Ó que santo! E um homem mau respondeu: Poderá ser santo, mas afirmo que gosta
das mulheres, porque olhava para elas. Bastou essa observação para neutralizar todo o
prestígio do bom pregador naquele povoado e apagar todo o fruto que havia produzido sua
pregação. 250

398. Observei igualmente que se faz péssimo conceito do sacerdote que não mortifique a
vista. Tenho lido que Jesus Cristo conservava sempre a vista mortificada e modesta e nas
vezes que a levantou, os evangelistas consideraram algo extraordinário. 251

399. Também o ouvido sempre procurava mortificá-lo, fugindo das conversas supérfluas e
das palavras ociosas. Não tolerava as conversas que feriam a caridade: quando surgisse
conversa desse tipo, retirava-me, mudava de assunto ou fazia cara feia. Também não queria
saber de conversas relacionadas com comidas, bebidas, riquezas, coisas do mundo, notícias,
políticas, evitando desde logo as leituras de jornais. Preferia ler um capítulo da santa Bíblia,
pois sei que estou lendo a verdade, ao passo que nos jornais comumente há mentiras e
coisas supérfluas. 252

400. Procurava também mortificar-me continuamente na fala. Daquilo que eu disse que não
gostava de escutar, tampouco me era agradável falar. Tinha como propósito não comentar
sobre o que havia pregado no sermão ou palestra, 253 pois assim como me desgostava que
os outros falassem do que havia perorado, pensei que também seria desagradável aos
demais se falasse daquelas coisas, por isso, fiz o propósito de jamais comentar; procurava
fazê-lo da melhor forma possível e o colocava nas mãos de Deus. Procurava ser grato às
pessoas que me exortavam, nunca procurava justificar ou escusar, mas corrigia-me no que
fosse possível.

401. Observei que alguns fazem como as galinhas que cacarejam depois de ter botado o ovo
e o acabam perdendo. Observei que acontece o mesmo a alguns sacerdotes imprudentes:
logo após terem ouvido confissões, pregado um sermão, dado uma palestra, ou feito
qualquer boa obra, vão à procura da vaidade, falando com satisfação do quê e como
disseram. Como já não gosto disso, penso que também seria desagradável a outros se
falasse dessas mesmas coisas. E assim havia feito o propósito de nunca falar dessas coisas.

402. O que absolutamente não aceitava era que falassem de coisas ouvidas em confissão;
em primeiro lugar, devido ao perigo de profanar o sigilo sacramental e, depois, pela má
impressão que causa às pessoas que ouvem falar dessas coisas. Assim, tinha como
propósito nunca falar de coisas nem de pessoas que se confessam, seja de pouco ou muito
tempo, se fazem ou não confissão geral; em uma palavra, repugna-me ouvir sacerdotes
falarem de pessoas que se confessavam, do que elas confessavam e desde quando não se
confessavam. Quando alguém me consultava, não admitia que me dissesse: Encontro-me
neste caso, que faço? Respondia sempre que propusessem o caso na terceira pessoa. Por
exemplo: Suponhamos que um confessor se encontrasse em uma situação dessa ou daquela
natureza, que resolução se deveria tomar?

403. Uma das coisas que o Senhor me fez compreender é a conveniência de que o
missionário se mortifique na comida e na bebida. Os italianos dizem: Não se dá crédito aos
santos que comem. O povo em geral julga que os missionários são homens mais celestes
que terrenos, como as imagens dos santos que não têm necessidade nem de comer nem de
beber.Deus nosso Senhor, nesse particular, concedeu-me uma graça muito especial, de
poder passar sem comer ou comendo muito pouco.

404. Três razões me levavam a não comer. A primeira era a falta de apetite ou de tempo,
sobretudo antes de pregar ou quando havia muita gente para confessar. Em segundo lugar,
para não ter o estômago pesado, mormente quando ia viajar. E, finalmente, abstinha-me de
comer para edificar, pois observava que todos reparavam. Assim comia muito pouco,
pouquíssimo, mesmo às vezes sentindo fome.

405. Quando me ofereciam algo, procurava pegar o menos possível e o inferior. Se


chegasse a uma casa paroquial fora de hora, dizia-lhes que não preparassem nada mais que
uma sopa e um ovo. Nunca comia carne e nem mesmo agora a como, embora eu goste, pois
vejo ser uma abstinência bastante edificante. Digo o mesmo quanto ao tomar vinho.Apesar
de gostar, faz bom tempo que não o provo, a não ser para celebrar missa. Aguardente e
licores, jamais os bebo, embora goste deles, pois já os experimentei em outros tempos.
Reconheço que a abstinência de comida e bebida é muito edificante e, hoje em dia,
necessária para fazer frente aos excessos que se cometem nas mesas.

406. No dia 4 de setembro de 1859, achava-me em Segóvia. Por volta das quatro e vinte e
cinco da manhã, estava eu meditando, disse-me Jesus: Antônio, ensinarás a teus
missionários a mortificação na comida e na bebida. Poucos minutos depois, a santíssima
Virgem acrescentou: Assim produzirás fruto, Antônio. 254

407. Naqueles dias, em Segóvia, preguei missões para o clero, para as religiosas e para o
povo na Catedral. Certo dia, à mesa, disseram-me que o bispo anterior, 255 muito zeloso,
tinha pedido a alguns sacerdotes que saíssem em missão, como de fato aconteceu. Após boa
caminhada, tiveram fome e sede; como levassem comida e bebida, pararam para comer.
Enquanto comiam, chegou a comitiva e pessoas da cidade para recepcioná-los. Por estarem
comendo, ficaram tão desprestigiados que não obtiveram fruto algum. Assim me contaram.
Nem sei por que motivo isso veio à tona, porém, para mim foi uma confirmação do que me
haviam dito Jesus e Maria.

408. Sei que isto é muito edificante para um missionário e ainda agora tiro proveito. No
palácio, freqüentemente há convites, antes havia muito mais e, entre os convidados, eu
sempre sou um deles. Na medida do possível, procuro esquivar-me; porém, se não posso
evitá-los, aceito-os. No entanto, é a ocasião em que como menos. Costumo comer uma
concha de sopa e uma fruta, nada mais; vinho também não tomo, só água. Certamente os
presentes reparam nesta minha atitude, ficando sumamente edificados.

409. Antes que eu estivesse em Madri, conforme percebi, cometiam-se algumas


extravagâncias, e realmente havia motivos para tanto, ao ver a grande quantidade de pratos
tão apetitosos, tantas comidas deliciosas, tanto vinho à vontade; tudo convidava ao excesso.
Porém, desde que comecei a estar presente, não notei nenhum tipo de exagero; pelo
contrário, parece-me que se limitam a tomar apenas do que necessitam, ao verem que eu me
abstenho. Freqüentemente, na própria mesa, os que me ladeiam, falam de coisas espirituais
e perguntam-me onde poderei atendê-los em confissão. 256
410. A fim de edificar cada vez mais as pessoas, sempre me abstive defumar e de cheirar
rapé. Também nunca manifestei nenhuma forma de preferência entre uma e outra coisa.
Isto vem de longe. E o Senhor já me cumulou com esta bênção celestial, tanto é que minha
querida mãe (I.P.R.) morreu sem saber do que eu mais gostava. Como mamãe me amava
muito, para agradar-me, alguma vez perguntava do que eu mais gostava, e eu respondia que
gostava do que ela me preparasse e me desse. E ela me respondia: Eu sei disso, mas sempre
gostamos mais de umas coisas que de outras. E eu tornava a responder-lhe que as coisas
que ela me dava eram das que eu mais gostava. Como todo mundo, há coisas de que gosto
mais que outras, isto é natural, porém era tanto o gozo espiritual que sentia em fazer a
vontade alheia que sobrepunha o gosto físico particular; assim não faltava com a verdade
nas palavras que dizia sobre isto. 257

411. Além de mortificar a vista, o ouvido, a língua, o gosto e o olfato, também procurava
fazer alguns atos de mortificação. Por exemplo, às segundas, quartas e sextas-feiras tomava
disciplina; às terças, quintas e sábados colocava cilício. Se o lugar era inadequado para a
disciplina, fazia outra coisa equivalente. Por exemplo, rezava com os braços em cruz ou
com os dedos debaixo dos joelhos.

412. Sei muito bem que os mundanos, aqueles que não têm o espírito de Jesus Cristo,
desprezam e até censuram estas mortificações. Eu, porém, fico com aquilo que ensina são
João da Cruz, que diz: “Se alguém afirmar que pode ser perfeito sem a mortificação
externa, não lhe deis crédito, nem mesmo que faça milagres para comprovar, pois é pura
ilusão”. 258

413. Observo que são Paulo mortificava-se e dizia publicamente: Castigo corpus meum et
in servitutem redigo, ne forte cum aliis praedicaverim ipse reprobus efficiar (Castigo meu
corpo e o mantenho em servidão, de medo de vir, eu mesmo a ser excluído depois de ter
pregado aos outros). 259 Todos os santos que viveram até aqui, todos agiram assim.
Segundo o venerável Rodríguez a santíssima Virgem teria dito a santa Isabel de Hungria
que nenhuma graça espiritual vem à alma, regularmente falando, senão por meio da oração
e da mortificação do corpo. 260 Há um princípio que diz: Da mihi sanguinem et dabo tibi
spiritum (Dá-me sangue e eu te darei espírito). 261 Ai daqueles que são inimigos dos
açoites e da cruz de Cristo! (Cf. Fl 3, 18).

Capítulo XXVIII
A mortificação (continuação) 262

414. Cheguei à conclusão de que, com um só ato de mortificação, podem-se praticar muitas
virtudes, segundo os mais diversos fins a que a pessoa se propõe. Por exemplo: 1. O que
mortifica seu corpo com a finalidade de refrear a concupiscência, faz um ato de virtude da
temperança. 2. Se o faz com a finalidade de ordenar bem a vida, será um ato de virtude da
prudência. 3. Se o faz com a finalidade de reparação por faltas da vida passada, realizará
um ato de justiça. 4. Se o faz para vencer as dificuldades da vida espiritual, será um ato de
fortaleza. 5. Se o faz com a finalidade de oferecer um sacrifício a Deus, privando-se do que
lhe agrada e praticando o que lhe custa e repugna, será um ato da virtude da religião.
415. 6. Se o faz com a finalidade de receber maior luz para conhecer os divinos atributos,
será um ato de fé. 7. Se o faz com a finalidade de assegurar sua salvação, será um ato de
esperança. 8. Se o faz com a finalidade de ajudar à conversão dos pecadores e em sufrágio
das almas do purgatório, será um ato de caridade para com o próximo. 9. Se o faz com a
finalidade de ter mais com que socorrer os pobres, será um ato da virtude da misericórdia.
10. Se o faz com a finalidade de agradar mais a Deus, será um ato de amor a Deus. Em cada
ato de mortificação, poderei exercitar todas estas dez virtudes, segundo a finalidade a que
me proponha.

416. A virtude tem tanto mais mérito, mais brilha e mais arrebata quanto mais
acompanhada de sacrifícios.

417. O homem mesquinho, fraco, pusilânime e covarde nunca faz sacrifício algum, nem é
capaz de fazê-lo, pois não resiste a nenhum desejo ou apetite da concupiscência. Concede
tudo o que a concupiscência lhe pede, nada nega à sua paixão, porque é um covarde e
mesquinho que se deixa vencer e se rende. A exemplo do que acontece numa luta, na qual o
valente vence o covarde, assim é o vício e o viciado, pois este fica vencido e aprisionado
pelo vício. Aí está a razão por que a castidade e a continência são tão louvadas, pois fazem
com que o homem se abstenha dos prazeres e deleites que a sua natureza e paixão lhe
oferecem.

418. Segue-se daí que, quanto maior o prazer de que se abstenha; quanto mais intensa e
extensa a dor que tiver de tolerar; quanto maior o respeito humano ou a repugnância que
tiver de vencer; ou quantos maiores sacrifícios tiver de fazer, maior será o mérito, por fazer
e sofrer tudo por amor à virtude e para a maior glória de Deus.

419. Exteriormente, propus-me a modéstia e o recolhimento e,interiormente, uma contínua


e ardente ocupação com Deus, nos trabalhos, na paciência, no silêncio e no sofrimento.
Além disso, procuro o cumprimento exato das leis de Deus e da Igreja e as obrigações do
meu estado, como Deus manda: fazer o bem a todos, fugir dos pecados, das faltas e
imperfeições e praticar as virtudes.

420. Em todos os acontecimentos desagradáveis, dolorosos e humilhantes que me ocorrem,


sempre penso que são permitidos por Deus, para meu próprio bem. Portanto, no mesmo
instante em que me vêm os momentos desagradáveis, em silêncio e com resignação, dirijo-
me à sua santa vontade, lembrando aquilo que o Senhor disse: Não cairá nenhum cabelo da
cabeça, se não for da vontade do Pai celestial, que tanto me ama. 263

421. Reconheço que uma hora de sofrimento que o Senhor me permite equivale a trezentos
anos de fiel serviço a Deus, tão grande é o seu valor. Ó meu Jesus e meu mestre! O
atribulado, perseguido e desamparado de amigos, o crucificado por trabalhos exteriores e
por cruzes interiores, o desamparado de consolo espiritual, que cala, sofre e persevera com
amor, este é vosso amado e o que vos agrada e a quem mais estimais. 264

422. Por esse motivo é que fiz o propósito de jamais me escusar nem de me defender das
calúnias, das censuras e perseguições que lançarem contra mim, pois isso acarretaria perda
diante de Deus e dos homens. Estes se valeriam de meus próprios argumentos como armas
para se voltarem contra mim.

423. Creio que tudo vem de Deus e que ele me pede esse obséquio: suportar com paciência
e por seu amor, os sofrimentos do corpo, da alma e da própria honra. Creio que, ao me calar
e sofrer a exemplo de Jesus abandonado na cruz, estarei agindo para a maior glória de
Deus.

424. O agir e o sofrer são as grandes provas do amor.

425. Deus se fez homem. Porém, que homem? Como nasce? Como vive? Como morre!
Ego sum vermis, et non homo, et abjectio plebis (Eu sou um verme, não sou homem, o
opróbrio de todos e a abjeção da plebe). 265 Jesus é Deus e homem, porém a divindade não
ajuda a humanidade em seus sofrimentos e dores, como a alma do justo que está no céu,
não ajuda o corpo que apodrece na terra.

426. Deus protegia os mártires de modo todo particular; Jesus, porém, o homem das dores,
Deus o abandonou aos seus sofrimentos e penas. O corpo de Jesus era mais delicado que o
nosso e, por isso mesmo, mais suscetível de dores e sofrimentos. Quem é capaz de imaginar
o tanto que Jesus sofreu? O sofrimento esteve presente em toda a trajetória de sua vida.
Quanto haveria de sofrer por nosso amor! Oh, que sofrimento tão prolongado, tão intenso e
extenso!

427. Ó Jesus de minha vida! Pelo que pude constatar, sei que os sofrimentos, as dores e os
trabalhos são as características do apostolado. Com vossa graça as abraço, delas me revisto.
266 Meu Senhor e meu Pai, estou pronto para beber este cálice de purificação interior e
decididamente disposto a receber este batismo de provações externas.E digo: Longe de
mim gloriar-me em outra coisa a não ser em vossa cruz, na qual estais pregado por mim, e
eu também quero estar pregado por vós. 267 Assim seja.

Capítulo XXIX
Virtudes de Jesus que procurarei imitar. 268

428. 1. Humildade, obediência, mansidão e caridade: estas virtudes brilham singularmente


na cruz e no Santíssimo Sacramento do Altar. Ó meu Jesus, fazei que vos imite!

429. 2. Roupa: Jesus, durante toda a sua vida, teve somente uma túnica, feita por sua mãe e
um manto ou capa, 269 mesmo assim, na hora de sua morte despojaram-no, morrendo nu,
descalço e sem chapéu nem gorro. 270

430. 3. Alimentação: Pão e água durante os trinta anos de vida oculta.No deserto, após
quarenta dias de rigoroso jejum, os anjos levaram-lhe pão e água, como a Elias. 271 Nos
anos restantes da sua vida pública, comia o que lhe davam e se conformava. O alimento que
tomava com os apóstolos era pão de cevada e peixe assado e, ainda assim, nem sempre,
pois tinham que colher espigas em dia de sábado e ainda serem criticados. 272 Na cruz, no
momento em que disse ter sede, não lhe deram senão fel e vinagre, aumentando ainda mais
o seu tormento. 273

431. 4. Morada: Não possuía. As aves têm seus ninhos, as raposas, suas tocas, Jesus,
porém, não tem sequer uma pedra onde reclinar a cabeça. 274 Nasce num presépio; para
morrer, uma cruz. Para viver, escolhe o desterro no Egito. Reside em Nazaré e em qualquer
outra parte.

432. 5. Viagens: Anda sempre a pé, com exceção daquela vez em que monta num jumento
para entrar em Jerusalém, cumprindo as profecias. 275

433. 6. Dinheiro: Não teve. Para pagar o imposto, manda Pedro tirar o necessário da boca
de um peixe. 276 Se pessoas piedosas lhe dão alguma esmola, quem a guarda é Judas, o
único apóstolo infiel.

434. 7. Durante o dia, pregava e curava, à noite rezava. Et erat pernoctans in oratione Dei
(e passou toda a noite orando a Deus). 277

435. 8. Jesus era amigo das crianças, dos pobres, dos enfermos e dos pecadores.

436. 9. Não buscava sua própria glória, mas a do Pai celeste. 278 Fazia tudo para cumprir a
vontade do Pai e salvar a humanidade, suas queridas ovelhas, e, como bom pastor, deu a
vida por elas. 279

437. Ó meu Jesus! Dai-me vossa santíssima graça, a fim que vos imite fielmente na prática
de todas as virtudes. Vós bem sabeis que convosco tudo posso e sem vós não consigo,
absolutamente nada.

Capítulo XXX
A virtude do amor a Deus e ao próximo 280

438. A virtude mais necessária é o amor. Sim, digo-o e o repetirei mil vezes: a virtude mais
necessária ao missionário apostólico é o amor. Deve amar a Deus, a Jesus Cristo, a Maria
santíssima e ao próximo. Sem esse amor, suas mais belas qualidades são inúteis, mas, se
acompanhadas de grande amor, tudo possui.

439. Para o que prega a divina palavra, o amor é como o fogo em um fuzil. Se um homem
atirar uma bala com a mão, pouco estrago faz, mas, se essa mesma bala for arremessada
com o fogo da pólvora, mata. Assim é a palavra de Deus. Se for dita naturalmente, sem
espírito sobrenatural, pouco bem faz, mas se for dita por um sacerdote cheio do fogo da
caridade, do amor a Deus e ao próximo, extirpará vícios, destruirá pecados, converterá
pecadores, operará prodígios. Vemos isto em são Pedro, ao sair do cenáculo, ardendo no
fogo do amor, que havia recebido do Espírito Santo, e o resultado foi a conversão de oito
mil pessoas em dois sermões: três mil no primeiro e cinco mil no segundo. 281
440. O Espírito Santo, aparecendo sob a forma de línguas de fogo pousando sobre os
apóstolos no dia de Pentecostes, dá-nos a entender claramente esta verdade: que o
missionário apostólico precisa carregar chamas do fogo divino da caridade na língua e no
coração. Certa vez, um jovem sacerdote perguntou ao venerável Ávila o que era preciso
para se tornar um bom pregador, e ele respondeu muito oportunamente: Amar muito. 282 A
experiência ensina, e a história da Igreja confirma, que os melhores e maiores pregadores
foram os que mais fervorosamente souberam amar.

441. Na verdade, o fogo da caridade num ministro do Senhor produz o mesmo efeito que o
fogo numa locomotiva de trem, e a máquina em um navio a vapor: arrasta-os com a maior
facilidade. 283 Para que serviria toda aquela máquina se não tivesse o fogo e o vapor? Para
nada serviria. De que valeria um sacerdote ter feito uma carreira brilhante, ter-se formado
em teologia e em direito, se não tem o fogo da caridade? De nada. Para ninguém serviria
porque seria uma máquina de trem sem fogo, antes, pelo contrário, talvez pudesse até
estorvar. Não serviria nem para ele pessoalmente, como diz são Paulo: Ainda que eu falasse
as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como o bronze que soa, ou
como o címbalo que retine. 284

442. Estou muito convencido da utilidade e necessidade do amor para ser um bom
missionário: empenhei-me em buscar este tesouro escondido, ainda que fosse preciso
vender tudo para comprá-lo. Depois de muito pensar, cheguei à conclusão de que os meios
mais adequados para consegui-lo eram os seguintes: 1º Guardando bem os mandamentos da
lei de Deus; 2º Praticando os conselhos evangélicos; 3º Correspondendo com fidelidade às
inspirações internas; 4º Fazendo bem a meditação. 285

443. 5º Pedindo-o e suplicando-o, contínua e incessantemente, sem jamais desfalecer ou


cansar, por mais que tarde em alcançá-lo. 286 Orando a Jesus e a Maria santíssima e
pedindo, sobretudo, a nosso Pai que está nos céus (pelos méritos de Jesus e Maria
santíssima), certo de que o bom Pai dará o divino Espírito àquele que assim o pede. 287

444. 6º O sexto meio é ter fome e sede deste amor. Assim como aquele que tem fome e
sede corporais, sempre pensa em como poderá saciar-se; e pede ajuda a todos os
conhecidos; assim também eu procuro, ansiosa e ardentemente, dirigir-me ao Senhor e
dizer-lhe de todo o meu coração: Ó meu Senhor, vós sois meu amor! Vós sois minha honra,
minha esperança, meu refúgio! Vós sois minha vida, minha glória, meu fim! Ó amor meu!
Ó bem-aventurança minha! Ó conservador meu! Ó alegria minha! Ó reformador meu! Meu
mestre! Meu Pai! Meu amor!

445. Não busco, Senhor, nem quero saber outra coisa senão vossa santíssima vontade e
cumpri-la com toda a perfeição. Não amo senão avós. Em vós, unicamente por vós, e para
vós são todas as demais coisas. Sois para mim mais que suficiente. Senhor, vós sois meu
Pai, meu amigo, meu irmão, meu esposo, meu tudo. Eu vos amo, meu Pai, fortaleza minha,
meu refúgio e meu consolo. Fazei, meu Pai, que vos ame como vós me amais e como
quereis que eu vos ame. Ó meu Pai! Bem sei que não vos amo o quanto deveria amar-vos,
porém, estou certo de que virá o dia em que vos amarei o quanto desejo amar-vos, porque
vós me concedereis o amor que vos peço por Jesus e por Maria. 288
446. Ó Meu Jesus! Peço-vos uma coisa e sei que quereis concedê-la.Sim, meu Jesus, peço-
vos amor, grandes chamas desse fogo que fizestes baixar do céu à terra. Vem, fogo divino!
Vem, fogo sagrado, incendeia-me, abrasa-me, derrete-me e funde-me para que assuma o
molde da vontade de Deus.

447. Ó mãe minha Maria! Mãe do divino amor, não posso pedir outra coisa mais agradável
nem mais fácil de conceder que o divino amor, concedei-o, ó minha mãe! Minha mãe,
amor! Minha mãe, tenho fome e sede de amor, socorrei-me, saciai-me! Ó Coração de
Maria, frágua e instrumento de amor, inflamai-me no amor de Deus e do próximo! 289

448. Ó querido próximo, eu te amo por mil razões. Amo-te porque Deus assim o quer.
Amo-te porque Deus me manda que te ame. Amo-te porque Deus te ama. Amo-te porque
Deus te criou à sua imagem e te destinou para o céu. Amo-te porque foste redimido pelo
sangue de Jesus Cristo. Amo-te pelo muito que Jesus fez e sofreu por ti. E, como prova de
meu amor por ti, suportarei por ti todas as dificuldades e trabalhos, até a morte, se for
necessário. Amo-te porque Maria santíssima, minha queridíssima mãe, te ama. Amo-te
porque és amado pelos anjos e santos do céu. Amo-te e, por este amor, te livrarei dos
pecados e das penas do inferno. Amo-te e, por este amor, te instruirei e te mostrarei os
males que deves evitar e as virtudes que deves praticar; enfim, te acompanharei nos
caminhos das boas obras rumo ao céu.

449. Ouço uma voz que me diz: “O homem necessita de alguém que lhe esclareça quem ele
é, que o instrua acerca de seus deveres, que o dirija para a virtude, renove seu coração, que
o restabeleça em sua dignidade e em seus direitos; e isto tudo se faz por meio da palavra”.
290 A palavra foi, é, e sempre será a rainha do mundo.

450. A palavra de Deus tirou do nada todas as coisas. A palavra divina de Jesus restaurou
todas as coisas. Jesus Cristo disse aos Apóstolos: Euntes in mundum universum, praedicate
evangelium omni creaturae (Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda criatura). 291
São Paulo disse a seu discípulo Timóteo: Predica verbum (Prega a palavra). 292 A
sociedade perece porque privou a Igreja de sua palavra, que é palavra de vida, palavra de
Deus. As sociedades estão desfalecidas e famintas por não receberem o pão cotidiano da
palavra de Deus. Todo propósito de salvação será estéril se não se restaura, em toda a
plenitude, a grande palavra católica.

451. O direito de falar e de ensinar as pessoas que a Igreja recebeu do próprio Deus, na
pessoa dos apóstolos, foi usurpado por uma turba de jornalistas obscuros e de
ignorantíssimos charlatães.

452. O ministério da palavra, sendo, ao mesmo tempo, o mais nobre e invencível de todos,
e por ele foi conquistada a terra, está se convertendo, em todas as partes, de ministério de
salvação em ministério abominável de ruína. Assim, como nada e ninguém puderam frear
seus triunfos nos tempos apostólicos, também nada e ninguém poderão conter, hoje, seus
estragos, se não se fizer frente, por meio da pregação dos sacerdotes e mediante a
distribuição abundante de bons livros e de outros escritos santos e salutares.
453. Ó Meu Deus! Prometo-vos que o farei. Pegarei, escreverei e farei circular livros bons e
folhetos em abundância, a fim de sufocar o mal com a abundância do bem. 293

Capítulo XXXI
Pregação e perseguições

454. Até aqui falei dos meios através dos quais me valia e das virtudes que deveria cultivar
para produzir fruto nos povoados aos quais era enviado pelos bispos, já que sem obediência
não queria ir a nenhum lugar. Agora falarei dos povoados em que estive e do que fazia
nesses lugares. 294 Desde o início de 1840, quando voltei de Roma, até começo de 1848,
época em que fui a Madri e ocasião em que me dirigi às Ilhas Canárias em companhia de d.
Codina, bispo daquelas ilhas,preguei em Viladrau, Seva, Espinelvas, Artés, Igualada, Santa
Coloma de Queralt, Prats del Rey, Calaf, Calldetenas, Vallfogona, Vidrá, San Quirico,
Montesquieu, Olot, Olost, Figueras, Bañolas, San Feliu de Guíxols, Lloret, Calella,
Malgrat, Arenys de Mar.

455. Preguei também em Arenys de Munt, Mataró, Teyá, Masnou, Badalona, Barcelona,
San Nadrés, Granollers, Hospitalet, Villanueva, Manresa, Sampedor, Sallent, Balsareny,
Horta, Calders, Moyá, Vic, Gurb, Santa Eulália, San Feliu, Estany, Oló, San Juan de Oló,
295 Pruit, San Feliude Pallarols, Piera, Pobla de Lillet, Bagá, San Jaime de Frontanyá,
Solsona, Anglesola, San Lorenzo dels Piteus, Lérida, Tarragona, Torredembarra, Altafulla,
Constantí, La Selva, Valls, Alforja, Falset, Pont de Armentera, Barberá, Montblanch,
Vimbodí, Vinaixa, Espluga de Francolí, Cornudella, Prades, Villanueva de Prades e outros
e outros... 296

456. Não me deslocava imediatamente de uma povoação a outra. Ao contrário, ia a uma,


concluída aquela, ia a outra bem longe, ou porque o pediam a meu superior, o bispo de Vic,
ao qual sempre obedecia com espírito de submissão, ou porque o exigiam as circunstâncias
daqueles tempos tão turbulentos, em que os ministros da religião e do bem sofriam muitas
perseguições.

457. Em cada lugar em que pregava, até a metade da pregação era muito perseguido e
caluniado. Mas do meio em diante, todos se convertiam e passavam a me elogiar; e então
começavam as perseguições por parte das autoridades, do governo e demais dirigentes. Eis
aí, portanto, por que meu bispo me fazia passar de um local a outro bem distante. Deste
modo burlava a perseguição que o governo movia contra mim, pois, quando se tomavam
providências contra mim em uma província da Catalunha, eu já tinha terminado a missão e
passado a outra província; e quando me perseguiam nesta, passava para outra, e assim por
diante. Desta forma, o governo que me perseguia a fim de prender-me, jamais conseguiu
nada. 297

458. O general Manzano 298 disse-me pessoalmente depois, estando os dois em Cuba, eu
como arcebispo e ele como governador da cidade de Santiago, que ele tinha ordem de
prender-me, não porque suspeitasse de alguma coisa minha contra o governo, pois todos os
governantes sabiam que eu jamais me metia em política, mas porque tinham medo ao ver a
multidão de pessoas que de todas as partes se reuniam quando eu pregava; temiam também,
devido ao prestígio que eu tinha, que à menor insinuação minha, todos se sublevassem. Por
isso buscavam prender-me, porém jamais o conseguiram, seja pela estratégia de mudar para
lugares distantes, e também porque Deus nosso Senhor não o quis, e esta é a razão
principal. Deus nosso Senhor quis que a palavra fosse anunciada a todos os povos,
enquanto o demônio procurava corromper as pessoas por meio de bailes, teatros, exercícios
militares, guardas, maus livros, revistas e jornais licenciosos, etc., etc.

459. Aos domingos e dias santos, em muitas povoações, como os homens viviam armados,
faziam-nos participar dos exercícios militares. Desta forma não podiam participar da missa
e aos demais deveres religiosos, como era seu costume. Impedia-se o bem e fomentava-se
toda espécie de males. Por toda parte não se via senão escândalos e horrores e não se
ouviam senão blasfêmias e disparates. Parecia que o inferno estava solto.

460. Quanto a mim, durante estes sete anos ia de um lugar a outro. 299 Viajava sozinho e a
pé. Levava comigo um mapa da Catalunha, forrado com tecido e dobrado, através do qual
me orientava. Media as distâncias e marcava os lugares de pousada. Viajava cinco horas
pela manhã e outras cinco à tarde, às vezes debaixo de chuva, outras vezes com neve e, no
verão, sob um sol abrasador. Este era o tempo que mais me fazia sofrer. Como andava
sempre com batina e capote, o mesmo traje de inverno, no verão sentia calor; além disso, os
sapatos e meias de lã provocavam bolhas nos pés, de modo que, às vezes, me faziam andar
mancando. A neve também me deu ocasião de exercitar a paciência, especialmente quando
nevava muito e cobria tudo e o caminho ficava oculto, por isso ladeava o caminho e, às
vezes, caía dos barrancos cheios de neve. 300

461. Como sempre andava a pé, procurava juntar-me aos tropeiros e demais viajantes, a fim
de falar-lhes alguma coisa de Deus e instruí-los nas coisas da religião, e com isso
percorríamos sem perceber o caminho e nos sentíamos confortados. Certa ocasião ia de
Bañolas a Figueras 301 para pregar uma missão. Ao passar por um rio havia uma grande
pedra, duas vigas faziam de ponte: uma das margens à pedra e outra, da pedra à outra
margem. Atravessava o rio, juntamente com outras pessoas. Ao chegar à pedra no meio do
rio, soprava um vento tão forte que deslocou a viga que estava à minha frente e o homem
que andava nela. De modo que o homem e a viga caíram na água. Eu fiquei nomeio do rio,
em cima da pedra, firmando-me com um pau e resistindo ao embate do vento, até que um
homem desconhecido, carregando-me nos ombros, atravessou o rio e me deixou na outra
margem. Continuei a viagem, porém sempre com um vento tão forte que, não poucas vezes,
me tirava do caminho. Os que viajaram por Ampurdán sabem que por lá sopra um vento tão
forte a ponto de transportar de lugar as montanhas de areia de Begú.

462. Não enfrentei somente o frio e o calor, neves e lamas, chuvas eventos, rios e mares
como aconteceu no caminho de São Feliu a Tossa, quando tivemos que enfrentar, não
somente a correnteza e a tempestade, 302 mas, também os demônios que me perseguiam
muitíssimo. Certa ocasião, rolaram uma pedra no caminho por onde eu passava. Outra vez,
num domingo à tarde, pregava num lugar chamado Sarreal, com a igreja repleta de gente,
quando, de repente, o demônio fez cair do arco principal uma grande pedra que se
despedaçou no meio do auditório. No entanto, para admiração e todos, ninguém ficou
ferido. 303
463. Às vezes acontecia que, durante a pregação, e muita gente ouvindo-me piedosamente,
aparecia satanás sob a figura de um aldeão assustado e punha-se a gritar que a aldeia estava
pegando fogo; como já conhecia toda essa trama e vendo que o auditório se alarmava com a
notícia, do púlpito, dizia: Calma! Não há fogo nenhum. É uma cilada do inimigo. No
entanto, para maior tranqüilidade vossa, que vá alguém ver onde há fogo e, se for verdade,
todos nós iremos apagá-lo. Porém, digo-vos que não há fogo. Não passa de uma invenção
do diabo para impedir vosso aproveitamento. E era assim mesmo. Quando pregava ao ar
livre, ameaçava-nos com tempestades. 304 A mim pessoalmente chegou a provocar
enfermidades terríveis e, quando estava ciente de que era obra do inimigo, logo ficava
completamente curado, sem necessitar de remédio algum. 305

464. Se a perseguição que o inferno movia contra mim era grande, a proteção do céu era
bem maior. Percebia visivelmente a proteção da santíssima Virgem, dos anjos e santos que
me guiavam por caminhos desconhecidos, livravam-me de ladrões e assassinos e, sem eu
saber, me levavam a porto seguro. Deus lhes pague. Muitas e muitas vezes correu a notícia
de que me haviam assassinado, fazendo com que pessoas piedosas me aplicassem sufrágios.
Deus lhas pague.

465. Em meio a todas essas vicissitudes, passava de tudo. Alguns momentos bons, outros
amargos, a ponto de me tirarem o gosto pela vida; daí minha única preocupação era pensar
e falar do céu, e isto me consolava e me animava muito. Habitualmente não recusava os
sofrimentos; ao contrário, amava-os e desejava morrer por Jesus Cristo. Não me expunha
temerariamente aos perigos, mas gostava que o superior me enviasse a lugares perigosos, a
fim de ter a felicidade de morrer mártir por Jesus Cristo.

466. Na província de Tarragona, o governo regional e todo o povo me queriam muito bem;
todavia, alguns queriam assassinar-me. O arcebispo 306 sabia disso e, um dia conversando
com ele sobre os perigos, eu lhe disse: Excelentíssimo senhor arcebispo, eu não me afasto
nem me detenho por isso. Mande-me a qualquer ponto da sua diocese e irei com gosto,
mesmo sabendo que no caminho haja duas filas de assassinos com o punhal na mão à
minha espera. Não recuarei, caminharei sempre em frente. Lucrum mori (Morrer é lucro
para mim). 307Esse meu “lucro” é o desejo de morrer assassinado por causa de Jesus
Cristo.

467. Todas as minhas aspirações sempre foram morrer num hospital como um pobre ou
num patíbulo como mártir, ou assassinado pelos inimigos da sacrossanta religião que
felizmente professamos e pregamos. Quisera eu selar, com meu sangue, tanto as virtudes
como as verdades que tenho pregado e ensinado. 308

Capítulo XXXII
O que pregava e como pregava

468. Em todos os povoados mencionados no capítulo anterior e em outros que não


mencionei, organizei iniciativas religiosas com diferentes nomes. Embora não lhes desse o
nome de missões, porque as circunstâncias daqueles tempos não o permitiam, contudo os
assuntos eram propriamente de missão: Quaresma, Mês de Maria, Quinzenário do Rosário,
Novenário das Almas, Oitavário do Sacramento, Setenário das Dores. Estes eram os nomes
que dávamos comumente às funções e, embora o nome fosse de novena, se conviesse,
aumentavam-se os dias segundo as necessidades. 309

469. Em cada uma das referidas povoações houve uma ou mais dessas pregações em um ou
mais anos, e sempre com grande fruto. Em todas as partes, houve conversões, algumas
comuns, outras grandes e extraordinárias. No início, todos vinham para me ouvir, uns com
boa vontade, outros por curiosidade e ainda os mal-intencionados, no mínimo para me
pegarem em flagrante.

470. Ao iniciar minhas atividades, jamais fazia referências aos vícios e falhas daquela
povoação. Sempre lhes falava de Maria Santíssima, do amor de Deus, etc.; desta forma,
como os maus e os corruptos percebiam que eu não os maltratava, e que tudo era amor,
doçura, caridade, fazia com que eles se interessassem em voltar mais vezes. E, tratando
progressivamente dos novíssimos, atingia a todos, sem que se sentissem ofendidos, até que
finalmente mudavam totalmente de vida. Desta maneira, nos últimos dias da missão já se
podia falar abertamente dos vícios e falhas predominantes. 310

471. Pensava que certa classe de pecadores deve ser pega com o mesmo método de
cozinhar caracóis. Colocados na água fresca, que eles gostam, se esticam e saem o mais
possível de sua casca. Entretanto, quem os cozinha tem o cuidado de aquecer a água pouco
a pouco e os caracóis insensivelmente vão morrendo e cozinhando. Porém, se o que cozinha
os caracóis cometesse a imprudência de jogá-los na água quente, eles se recolheriam em
sua casca e por nada se poderia tirá-los de lá. Assim acontece com os pecadores. Se no
início de uma função se investe com violência, os que estiverem assistindo por curiosidade
ou por malícia, ao ouvir aquela descarga, escondem-se na casca da própria obstinação e
malícia e, longe de converterem-se, não farão mais que desacreditar o missionário e
ridicularizar quantos estejam dispostos a ouvi-lo e a confessar-se. Porém, ao agir com
doçura, delicadeza e amor se deixam atingir muito bem.

472. Entre a multidão de pecadores convertidos, merece especial menção a conversão do


senhor Miguel Ribas, homem abastado de Alforja, povoação do arcebispado de Tarragona.
311 Esse senhor tinha uma vida bastante moderada: fazia anualmente retiro espiritual no
convento ou no colégio dos Missionários dos Padres de São Francisco de Escornalbou.
Nele, vivia um cunhado seu religioso. Os padres, prevendo a aproximação de tempos
difíceis para a comunidade, confiaram-lhe os documentos que julgaram convenientes. Ele,
porém, usou-os de forma tão inoportuna, que os referidos padres perderam o crédito na
praça. E fez seus seguidores que, em pouco tempo, ficaram piores que o mestre.

473. Seu dogma e sua moral consistiam em não obedecer a ninguém. Os filhos não deviam
obediência aos pais; as mulheres, a seus maridos; os súditos, a seus superiores. Deviam
comungar diariamente, mas sem jejum, etc., etc. O senhor Miguel converteu-se e, tendo
resolvido retratar-se, a fez através de escritura pública passada em cartório, na casa do
pároco, na presença de onze testemunhas tiradas dentre os homens mais distintos da
comunidade, conforme disposição do bispo de Tarragona. 312
474. Por todos os lugares onde ia pregar, não me dirigia somente ao povo em geral, mas
também aos sacerdotes, estudantes, religiosos e religiosas, aos doentes dos hospitais, aos
encarcerados, e demorava mais ou menos tempo, segundo a oportunidade. Costumava,
porém, dedicar-me aos sacerdotes durante uns dez dias, com pregação pela manhã e à tarde,
além de pregar-lhe exercícios espirituais.

475. Enquanto ia pregando de uma povoação a outra, tentava encontrar meios para tornar
mais duradouros os frutos das missões e dos retiros que pregava. Cheguei à conclusão de
que o meio mais eficaz para atingir tal objetivo era distribuir por escrito tudo aquilo que
lhes tinha falado. Eis a razão pela qual comecei a escrever livrinhos e folhetos para as mais
diversas categorias de pessoas, intitulando-os Avisos aos sacerdotes, aos pais de família,
etc., etc.

476. Tanto os opúsculos como os folhetos deram um bom resultado. Para melhor propagá-
los resolvi fundar a Livraria Religiosa. Ajudado pela graça de Deus, pela proteção de nossa
Senhora de Montserrat, e acompanhado pelos senhores José Caixal e Antônio Palau, então
cônegos de Tarragona e atualmente o primeiro é bispo de Urgel e o segundo, de Barcelona.
Como naqueles tempos estivesse pregando missões naquela diocese, consultei-os sobre este
assunto e eles, como homens sábios e zelosos da maior glória de Deus, ensino e salvação
das almas, me ajudaram muitíssimo, de modo que, em dezembro de 1848, encontrando-me
nas Ilhas Canárias, já começou a sair a primeira publicação que a Livraria Religiosa
imprimiu, o Catecismo Explicado. Até o presente continua produzindo. As obras impressas
já formam um grande catálogo.Algumas delas ampliam sua tiragem a cada reimpressão.
Um bom exemplo é o livro O caminho reto; a impressão atual é a de número trinta e
nove.Que tudo seja para a maior glória de Deus e de Maria santíssima e pela salvação das
almas. Amém.

Capítulo XXXIII
Missionário nas Ilhas Canárias 313

477. O mundo sempre procurou criar-me dificuldades e perseguir-me. Mas Deus nosso
Senhor cuida de mim e frustra todos os seus planos de iniqüidade. Em agosto de 1847,
alguns chefes de um certo grupo chamado Matinés ou Os madrugadores, começaram a
aparecer em diversos pontos da Catalunha. Os jornais que falavam desses chefes afirmavam
que eles nada faziam sem antes consultar Mosén Claret. 314 Diziam isto unicamente para
comprometer meu nome e ter um pretexto para prender-me e impedir a pregação; Deus
nosso Senhor, porém, conduziu as coisas de uma tal forma que me livrou de suas garras e
enviou-me a pregar nas Ilhas Canárias. Os fatos aconteceram da seguinte maneira:

478. Estando de passagem por Manresa, fui pregar às Irmãs de Caridade, residentes no
hospital daquela cidade. 315 Lá a superiora me informou que o padre Codina havia sido
eleito bispo das Canárias. 316 Ela me perguntou, então: Você gostaria de ir pregar naquelas
Ilhas? Respondi-lhe que não tinha gosto nem vontade. Gostava, sim, de ir para onde meu
prelado de Vic me enviasse. Portanto, se ele me enviasse para Canárias, iria com tanto
gosto como a qualquer outro lugar. 317 E a nossa conversa ficou nisso.
479. A boa irmã, por própria iniciativa, escreveu ao bispo Codina, narrando-lhe minha
resposta. Este, por sua vez, escreveu imediatamente ao bispo de Vic, do qual recebi ordens
de ficar à disposição do bispo eleito das Canárias. Dom Codina encontrava-se em Madri e
daí mesmo, no início de janeiro de 1848, chamou-me e eu fui. Em Madri hospedei-me na
casa do padre José Ramírez y Cotes, 318 sacerdote exemplar e muito zeloso. Fiquei naquela
casa durante os dias em que se ajeitava a viagem. Assisti à sagração episcopal do bispo
eleito, dom Codina. Todos os dias que aí permaneci, ocupei-me em pregar e confessar os
pobres enfermos do Hospital Geral. 319

480. De Madri, fomos a Sevilha, Jerez e Cádiz; aí preguei enquanto esperávamos o navio
para as Ilhas Canárias. 320 Chegamos a Tenerife no início de fevereiro. 321 Aí aproveitei
para fazer uma pregação no domingo e, na segunda-feira, partimos para a Gran Canária.
Preguei retiro aos sacerdotes num salão do palácio, enquanto o bispo presidia a todos os
atos. Preguei também retiro aos seminaristas e missões em todas as paróquias da Ilha Gran
Canária.

481. Com muita freqüência tinha de pregar nas praças, porque as igrejas não comportavam
tanta gente vinda das mais diversas povoações para ouvir a santa missão. Quando havia
muita gente, eu preferia muito mais pregar nas praças do que nas igrejas, isto por muitas
razões que facilmente se explicam.

482. O que me metia em apuros era ouvir as pessoas em confissão geral, como desejavam
fazê-la. De fato, pedi ajuda aos demais sacerdotes. Dava-lhes instruções práticas sobre
como atender bem e prontamente as pessoas. A fim de evitar confusão e discussão entre os
penitentes, mandava-os formar fila à proporção que iam chegando. Em grupos de oito,
sendo quatro homens e quatro mulheres, pedia-lhes que fizessem o sinal da cruz, se
persignassem e rezassem comigo o Eu pecador…; isto me poupava tempo; do contrário
tinha que esperar muito até que fizessem o sinal da cruz e rezassem o que costumavam
antes de confessar-se, só ficava em particular a confissão dos pecados de cada um. Evitava-
se assim perda de tempo, tumulto e que as pessoas ficassem muito perto do confessionário.

483. Quando terminava a missão, o povo acompanhava-me em massa até me encontrar com
o pessoal da outra missão que vinha me receber. Os primeiros despediam-se com lágrimas,
os outros me recebiam cheios de alegria. Não vou narrar tudo o que me aconteceu nesses
povoados, pois seria interminável. Só quero assinalar um fato para que sirva de exemplo
aos missionários. 322

484. Ao terminar as missões na Gran Canária, o bispo quis que eu fosse a outra ilha
chamada Lanzarote. 323 Como naquela ilha houvesse pouco clero, 324 mandou que seu
irmão, o padre Salvador 325 religioso capuchinho, me acompanhasse e para que me
ajudasse ouvir confissões. Do porto da ilha até a capital tínhamos de percorrer umas duas
léguas e, como meu companheiro (o padre Salvador) era bastante gordo, disse-me: - Como
faremos? Você quer ir a pé ou montado? Eu lhe respondi: - Você sabe que eu nunca monto;
ando sempre a pé. - Se você não quer ir montado, tampouco eu quero montar, respondeu-
me. Disse-lhe eu, então: - Veja bem, será bastante difícil e custoso para você ir a pé até lá.
Eu não posso permitir isso. Se você vai a pé por minha causa, mudo de idéia e assim nós
iremos montados.
485. Na ocasião nos trouxeram um grande camelo e nós dois montamos nele. Pouco antes
de chegarmos à cidade, apeamos e, logo que chegamos ao povoado, dei início à missão.
Depois que terminamos a missão, ao nos despedir do povo, um cavalheiro me perguntou: -
Você é aquele missionário que pregou missões na Gran Canária? Respondi-lhe que sim.-
Então fique sabendo que por aqui ficaram duvidando se era você, porque o da Gran Canária
andava a pé e você chegou montado. Houve até quem chegasse a dizer: Eu não vou ouvi-lo
porque não é o missionário da Gran Canária.

486. Deixei as Ilhas Canárias no início do mês de maio de 1849. 326 O bispo quis dar-me
um chapéu e capote novo, mas eu não os aceitei.Assim sendo, não tive outro proveito
material senão os cinco rasgões no meu capote velho por causa da multidão que se lançava
sobre mim quando ia de uma povoação a outra. Naquelas ilhas fiquei durante quinze meses
e, ajudado pela graça de Deus, pude trabalhar todos os dias. Comia pouco devido à falta de
apetite. Suportei algumas dificuldades, mas alegremente porque estava convicto de que era
a vontade de Deus e de Maria Santíssima e que serviriam para a conversão e salvação de
tanta gente.

487. Ó meu Deus, quão bom sois! Quão imprevistos são os meios de que vos servis para
converter os pecadores! Homens mundanos queriam comprometer-me na Catalunha. Vós
vos valestes desse fato e me levastes às Ilhas Canárias. 327 Assim me livrastes das prisões
e me levastes àquelas Ilhas, a fim de apascentar as ovelhas de vosso Pai celestial, por quem
doastes com satisfação a vida para que vivam na graça.Bendita seja a vossa caridade.
Bendita seja vossa grande providência para comigo. Agora e sempre cantarei vossas eternas
misericórdias. Amém. 328

Capítulo XXXIV
A Congregação do Imaculado Coração de Maria

488. Cheguei a Barcelona 329 em meados de maio e me dirigi a Vic. Falei com meus
amigos, os cônegos Jaime Soler 330 e Jaime Passarell 331 sobre o projeto que tinha de
fundar uma congregação de sacerdotes que fosse me se chamassem Filhos do Imaculado
Coração de Maria. Ambos acolheram calorosamente a idéia. O cônego Soler, que era reitor
do seminário de Vic, ofereceu o seminário e, tão logo os seminaristas entrassem em férias,
poderíamos nos reunir no seminário, ocupar seus quartos, enquanto Deus nosso Senhor nos
dispusesse outro local. 332

489. Apresentei esse mesmo plano ao bispo de Vic, dom Luciano Casadevall, pelo qual era
muito estimado. Ele muito aplaudiu esta minha iniciativa. Aproveitando a oportunidade,
resolvemos que durante as férias nos instalaríamos no seminário. Enquanto isso, ele
mandaria preparar o Convento das Mercês que o governo pusera à sua disposição.E assim
se fez. 333 Com o local das Mercês já à disposição, fui falar com alguns sacerdotes a quem
Deus nosso Senhor havia dado o mesmo espírito de que eu me sentia animado. Eram eles:
Estêvão Sala, 334 José Xifré, 335 Domingos Fábregas, 336 Manuel Vilaró, 337 Jaime
Clotet, 338Antônio Claret, eu, o mais insignificante de todos. Sim, isso é verdade, pois
todos eles são mais instruídos e mais virtuosos do que eu; mesmo assim, porém, sentia-me
bastante feliz, considerando-me servidor de todos. 339

490. No dia 16 de julho de 1849, reunidos no seminário, com a aprovação do bispo e do


reitor, iniciamos, nós sozinhos, o retiro espiritual, com todo rigor e fervor. 340 Como
justamente nesse dia se comemora a festa da Santa Cruz e de Nossa Senhora do Carmo,
tomei como tema da primeira prática as palavras do Salmo 22,4: Virga tua et baculus tuus
ipsa me consolata sunt (Tua vara e teu cajado me consolarão), frisando a devoção e a
confiança que devemos ter na Santa Cruz e em Maria santíssima, além de aplicar o salmo a
nosso objetivo. 341 Saímos desse retiro muito fervorosos, resolvidos e determinados a
perseverar. Graças a Deus e a Maria Santíssima todos perseveraram muito bem. Dois
morreram e se acham neste momento na glória celeste gozando de Deus e do prêmio de
seus trabalhos apostólicos e intercedendo por seus irmãos. 342

491. Assim iniciamos e assim continuamos vivendo uma vida perfeitamente comum, todos
entregues aos trabalhos do sagrado ministério. 343 Ao terminar o retiro que pregara à
pequena e nascente comunidade, pediram que, na igreja do seminário, eu pregasse um retiro
ao clero da cidade de Vic. No dia 11 de agosto, descendo do púlpito, ao concluir o último
ato, disseram-me que o bispo desejava falar comigo. Fui ao palácio episcopal. Quando lá
cheguei, entregou-me um decreto real com data de 4 de agosto, nomeando-me arcebispo de
Cuba. Tal notícia me deixou como morto. Disse que não aceitava de modo alguma
nomeação. Supliquei ao bispo que se dignasse transmitir a decisão dizendo que não
aceitaria de maneira nenhuma.

492. Ó meu Deus, bendito sejais, pois vos dignastes escolher vossos humildes servos para
se tornarem Filhos do Imaculado Coração de vossa santíssima mãe!

493. Ó mãe, mil vezes bendita! Infinitos louvores vos sejam dados pelas finezas de vosso
Imaculado Coração e por nos terdes adotado como vossos filhos! Fazei, minha mãe, que
correspondamos a tanta bondade.Que sejamos cada dia mais humildes, mais fervorosos e
mais zelosos pela salvação das almas.

494. Digo a mim mesmo: Um filho do Imaculado Coração de Maria é um homem que arde
em caridade e abrasa por onde passa; que deseja eficazmente e procura por todos os meios
inflamar o mundo no fogo do divino amor. Nada o detém. Alegra-se nas privações.
Enfrenta os trabalhos. Abraça os sacrifícios. Compraz-se nas calúnias e se alegra nos
tormentos. Seu único pensamento é seguir e imitar a Jesus Cristo, no trabalho, no
sofrimento, procurando sempre e unicamente a maior glória de Deus e da salvação das
almas. 344

Capítulo XXXV
Nomeação e aceitação do Arcebispado de Santiago de Cuba

495. Fiquei atônito com a nomeação para arcebispo. Não quis aceitar, por me considerar
indigno e incapaz de tão grande dignidade, por não ter nem a ciência nem as virtudes
necessárias para tal. Depois, refletindo melhor, pensei que, mesmo se tivesse ciência e
virtude, não devia abandonar a Livraria Religiosa e a Congregação que acabavam de
nascer. 345 Assim é que, por todos os meios, rejeitava as instâncias do núncio apostólico,
excelentíssimo senhor Brunelli, 346 e do Ministro de Graça e Justiça, senhor Lourenço
Arrazola. 347 Tanto o núncio como o ministro, vendo baldados todos os seus esforços,
recorreram ao bispo de Vic, ao qual obedecia cegamente. Ele ordenou taxativamente que
aceitasse. 348

496. Esta ordem fez-me estremecer. De um lado, não me atrevia a aceitar e, por outro,
queria obedecer. Pedi que me desse alguns dias para eu refletir, antes de responder, e ele
me atendeu. Procurei logo os padres Jaime Soler, Jaime Passarell, Pedro Bach e Estêvão
Sala, sacerdotes muito sábios, virtuosos e de minha total confiança.Supliquei que me
encomendassem a Deus, pois esperava de sua bondade que até o último dia de retiro, que ia
começar, me dissessem o que deveria fazer: obedecer ao bispo ou recusar terminantemente
a nomeação. No dia marcado e, depois de terem conversado entre si, vieram a mim e foram
unânimes ao me dizer que era vontade de Deus que eu aceitasse a ordem do bispo. Aceitei
no dia 4 de outubro, dois meses depois de ter sido eleito.

497. Uma vez aceita a nomeação de minha pobre pessoa, indicada por sua majestade,
processaram-se as formalidades de praxe e assim todo o processo foi enviado a Roma.
Entrementes, continuei a desempenhar o meu apostolado habitual, pregando retiros ao
clero, aos religiosos, religiosas, aos estudantes e leigos. Ainda nessa época, preguei retiro
ao clero e missão ao povo de Gerona, falando todos os dias da varanda da Casa Pastors à
multidão, que ocupava a praça, as escadarias e o átrio da catedral, ruas imediatas e às
demais pessoas que se colocavam nas varandas, janelas e sacadas de todas aquelas casas.
349

498. O Senhor revelou-me, durante esses dias, coisas muito especiais para a sua maior
glória e salvação das almas. 350 Fui nomeado; 351 as bulas vieram de Roma a Madri e
remetidas a Vic, sob a responsabilidade dos padres Firmin de la Cruz 352 e Andrés Novoa,
353 sacerdotes exemplares. Nesse meio tempo, procurei me preparar, fazendo um retiro
espiritual de muitos dias, durante os quais elaborei um plano de vida para o meu governo.
354 Assim preparado e predisposto, recebi a consagração em Vic, como direi na terceira
parte, se Deus quiser.

Terceira parte
SAGRAÇÃO EPISCOPAL
Capítulo I
Sagração, viagem, chegada e primeiros trabalhos

499. No dia seis, primeiro domingo do mês de outubro de 1850, dia de são Bruno, fundador
dos Cartuxos, a cuja ordem desejara pertencer (1); dia do Santíssimo Rosário, de cuja
devoção sempre tive grande inclinação, nesse dia recebi, na catedral de Vic, (2) a sagração
episcopal juntamente com d. Jaime Soler, bispo de Teruel. Foi meu bispo consagrante d.
Luciano Casadevall, que teve como assistentes d. Domingos Costa y Borrás, bispo de
Barcelona, (3) e d. Fulgêncio Lorente, bispo de Gerona. (4)

500. Na terça-feira, dia oito, saí de Vic a Barcelona e Madri onde d. Brunelli, núncio de Sua
Santidade, me impôs o pálio no dia 13 do mesmo mês. Apresentei-me a sua majestade e aos
ministros do governo e,enquanto despachavam os documentos oficiais, dediquei-me à
pregação e a confessar etc.5 Concluídos meus afazeres, voltei à Catalunha.Cheguei a
Igualada no último dia de outubro e ali preguei sobre o tema de todos os santos e, no dia
seguinte, fui a Montserrat, onde também preguei. 6 Passei por Manresa onde se fazia o
novenário das almas (pelo livro) do padre Mach. 7 À noite preguei e, na manhã seguinte,
distribuía sagrada comunhão a muitas pessoas que, sabendo de minha presença,haviam-se
preparado para tal oportunidade.

501. À tarde passei por Sallent, minha terra natal. Todos vieram receber-me. À noite
preguei de um balcão, na praça, pois não coube todo mundo na igreja. 8 No dia seguinte,
pela manhã, celebramos uma missa solene e à tarde saí para Santmartí, passando por nossa
Senhora de Fusimanha, à qual dedicava grande devoção desde criança. E ali, nesse
santuário, celebrei e preguei sobre a devoção a Maria Santíssima. 9 De lá segui para Artés
e,em seguida, para Calders onde preguei pela manhã; depois almoçar em Moyá, ali a
pregação foi à noite. No dia seguinte, passei por Collsuspina, onde também preguei;
almocei em Vic e, à noite, fiz uma pregação. Saindo de Vic, passei por Barcelona, onde
preguei todos os dias em diferentes igrejas e conventos, 10 até o dia 28 de dezembro, data
em que embarcamos na fragata La Nueva Teresa Cubana, que tinha como capitão o senhor
Manuel Bolívar.

502. Faziam parte de minha comitiva: padre João Lobo, presbítero e provedor, com um
jovem chamado Telésforo Hernández; os padres Manuel Vilaró, Antônio Barjau, Lourenço
San Martí, Manuel Subirana, Francisco Coca, Felipe Rovira, Paládio Curríus, João
Pladebella e os leigos Inácio Betríu, Felipe Vila e Gregório Bonet. 11

503. No mesmo navio iam dezoito Irmãs de Caridade, destinadas a Havana e um sacerdote
que as acompanhava, chamado Pedro Planas, 12 da Congregação de São Vicente de Paulo,
além de alguns outros passageiros.

504. Todos saímos saudáveis e alegres de Barcelona para Cuba. Porém, ao chegar ao
Penhasco de Gibraltar, tivemos de esperar o tempo melhorar para a travessia do estreito.
Como o mar se agitasse cada vez mais, fomos obrigados a retornar ao porto de Málaga,
onde ficamos três dias, esperando que o tempo melhorasse. Durante a estadia, aproveitei o
tempo; preguei quinze sermões, na catedral, no seminário, aos estudantes, em casas
religiosas, etc. 13

505. Finalmente o tempo melhorou e continuamos a viagem rumo às Ilhas Canárias, onde
esperávamos poder visitar aqueles queridos insulares, que por seu lado também nos
esperavam. Mas o mar estava tão agitado que foi impossível atracar, para tristeza de ambas
as partes.
506. Continuamos a viagem até Cuba, por sinal com suma felicidade e uma tranqüilidade
admirável. As acomodações estavam divididas em duas partes. Do mastro-mor até a popa
estava eu com todos os meus companheiros, e do mastro-mor até a proa estavam todas as
irmãs. Para que houvesse privacidade foi colocada uma divisória para separar uma parte da
outra. Pela manhã, todos os dias nós nos levantávamos no mesmo horário 14 e tínhamos
meia hora de oração mental em comum. As irmãs faziam o mesmo em seus aposentos.
Terminada a oração mental, eu celebrava a santa missa em um altar improvisado, tanto para
os meus companheiros e sacerdotes como para as irmãs. Cada qual participava da mesma
sem sair de suas repartições. Para isso abriam-se as portas situadas na linha divisória. Todos
comungavam, com exceção de um dos sacerdotes, já marcado para celebrar uma segunda
missa em ação de graças. Celebravam-se, pois, diariamente no navio, duas missas: uma eu e
outra um dos sacerdotes, que se iam revezando.

507. Concluídas estas primeiras devoções, íamos à cobertura e tomávamos chá. Em seguida
cada um estudava o que queria. Às oito horas, nos reuníamos novamente e rezávamos em
comunidade as Horas menores e, logo após, tínhamos conferência de moral até as dez
horas, momento em que íamos almoçar. Depois do almoço descansávamos um pouco e
estudávamos até as três; em seguida rezávamos Vésperas, Completas, Matinas e Laudes e
depois havia outra conferência até as cinco, depois do que, íamos jantar. 15 Às oito da noite
rezávamos o rosário e demais devoções; tínhamos uma conferência de ascética, tomávamos
uma xícara de chá e, em seguida, cada um se dirigia para seu camarote. 16

508. Estas eram as atividades de todos os dias úteis. Em dias de festa celebrávamos a
segunda missa numa hora mais apropriada para que a tripulação pudesse participar. Nesses
dias, à tarde, havia sermão. Os sacerdotes, por turno, a começar por mim, o provedor, etc.,
fazíamos a pregação.

509. Chegando ao Golfo das Damas, comecei a pregar uma missão no convés do navio. 17
Todos participaram, confessando e comungando no dia da comunhão geral, tanto os
passageiros quanto a tripulação, desde o capitão ao último dos marinheiros. Isto colaborou
para que ficássemos cada vez mais amigos, de tal forma que todas as vezes que o navio
fazia escala em Santiago, os marinheiros vinham-me visitar. No dia 16 de fevereiro de
1851, desembarcamos sem o menor incidente. Fomos muito bem recebidos, com as maiores
demonstrações de alegria e boa vontade.E, no dia seguinte à chegada, fizemos a entrada
solene na cidade, conforme os costumes e rituais daquela capital. 18

510. Quinze dias depois de nossa chegada, visitamos a imagem de Nossa Senhora da
Caridade na cidade de Cobre, situada a vinte e quatro quilômetros da capital, à qual os
habitantes da Ilha dedicam muita devoção. Prova é que a capela é muito rica de donativos
que continuamente os devotos de toda parte lhe trazem. 19

511. Regressamos novamente a Santiago, capital da diocese, e iniciei a missão que se


prolongou até o dia 25 março. Nesse dia houve comunhão geral. É inexplicável o número
de pessoas que vieram, tanto aos sermões como à participação na comunhão. Enquanto eu
pregava na catedral, o padre Manuel Vilaró pregava na igreja de São Francisco, maior
templo da cidade depois da catedral. Nela, no domingo após a festa da Anunciação,
distribuí a comunhão. 20
512. Preguei também retiro espiritual a todo o clero, cônegos, párocos, beneficiários etc.,
fato que se repetiria a cada ano enquanto eu estive naquela Ilha. E para maior comodidade,
reunia-os nas principais cidades da diocese. 21

513. Eu e todos os da minha comunidade também fazíamos esse retiro anualmente; antes
dos outros e somente nós, fechados no Palácio e guardando um rigoroso silêncio. Nesses
dez dias não recebíamos cartas, nem incumbência de trabalho, não se atendia o público e,
como todos sabiam disso, deixavam-nos em paz.

514. Concluídas as missões na cidade principal e encerradas as celebrações da Semana


Santa e da Páscoa, aproveitei para distribuir os sacerdotes pela Ilha. Enviei os padres
Manuel Subirana e Francisco Coca para a cidade do Cobre, e Paládio Curríus e Estêvão
Adoain, capuchinho, ao povo de Caney, a doze quilômetros de Santiago. Este religioso
capuchinho apresentou-se logo que cheguei e me auxiliou muito, como direi depois. 22 Os
demais foram distribuídos desta maneira: o padre. João Lobo, na Provedoria, e na minha
ausência como vigário-geral; o padre Felipe Rovira no seminário para ensinar gramática
latina aos jovens, e o padre João Pladebella para ensinar teologia moral. Os padres
Lourenço San Martí e Antônio Barjau mandei-os à cidade de Porto Príncipe para ensinarem
o catecismo até a minha chegada.

515. Quanto a mim, fiquei em Santiago. Dei início à vista pastoral, começando pela
catedral e, em seguida, pelas demais paróquias; todos os dias administrava o sacramento da
confirmação. Como houvesse muita gente para confirmar e, a fim de evitar confusão,
mandei imprimir fichas para isso, repartindo nas paróquias, um dia antes, o número exato
de pessoas que poderiam ser confirmadas. 23 Na ficha constava o nome do crismando, dos
pais e do padrinho. Assim evitava-se confusão e aglomeração de gente. Com mais
tranqüilidade e sossego os nomes eram copiados nos livros paroquiais. Assim fazia sempre.
Nunca houve confusão em todas as confirmações e certamente não devem ter sido menos
que trezentas mil nos seis anos e dois meses que estive naquela Ilha.

516. Além da visita pastoral e das crismas, pregava todos os domingos e festas de guarda
do ano. Jamais me omiti de tal função, onde quer que me encontrasse na diocese. 24 Nos
primeiros dias de junho, saí de Santiago e fui a Caney para encerrar a missão que os padres
Estêvão e Curríus tinham começado e continuado com grande proveito. Crismei a todos e
fiz o encerramento da missão. 25

517. Em seguida dirigi-me à cidade do Cobre, onde estavam pregando missões os padres
Manuel Subirana e Francisco Coca. Trabalharam muitíssimo naqueles dias e o fruto foi
abundante. Basta dizer que quando chegaram lá, não havia mais do que oito casais
legitimados. Ao terminar a missão, o número de legitimações matrimoniais foi de
quatrocentas. Permaneci ali alguns dias para ministrar o sacramento da crisma e dar uma
colaboração à missão e, ao mesmo tempo, dispensar alguns casos de parentesco, pois o
Sumo Pontífice me havia facultado a possibilidade de conceder essa dispensa.
Capítulo II
Perseguições na cidade do Cobre: vicissitudes em Porto Príncipe

518. Foi na cidade do Cobre que começaram os desgostos e as perseguições. 26 Na


verdade, o demônio não podia olhar com indiferença a multidão de pessoas que cada dia se
convertiam ao Senhor. Além disso, Deus devia permitir alguma tribulação ao lado da
grande satisfação que sentíamos diante do bom andamento das coisas. O desgosto começou
deste modo: encontrando-me naquele povoado, faltavam alguns casamentos para
regularizar. Os interessados não haviam conseguido. Eu, nas melhores das intenções,
chamei o comandante do povoado e disse-lhe: O senhor que conhece o povo mais que
ninguém, diga-me se as pessoas que constam nesta lista e que vivem mal podem ou não
realizar um matrimônio feliz, ou se existe algum impedimento de raça, pois eu quero
acertar e não quero fazer coisa alguma que com o tempo acarrete tristeza.

519. O comandante vinha diariamente à minha casa e informava-me sobre os pretendentes.


O pároco fixava em público os proclamas, conforme as possibilidades de realizá-los. Certo
dia apresentou-se um europeu, natural de Cádiz, que vivia ilegitimamente com uma mulata
e com a qual tinha nove filhos. Eu não o vi, mas ouvi que falava com meu secretário e dizia
com toda insistência que desejava casar-se com aquela mulher para poder cuidar bem dos
filhos que tinha com ela e assim criá-los devidamente. O secretário disse-lhe que falaria
comigo sobre o caso e pediu-lhe que voltasse outra hora, pois àquela hora não se
encontrava o comandante e nós não possuíamos informações a respeito dele. O assunto
parou aí.

520. Naquela mesma noite o comandante mandou um ofício ao pároco, dizendo-lhe que
soube que ele realizava casamentos de pessoas de classes distintas, aludindo ao mencionado
europeu. O pároco veio a mim com o ofício, o que me deixou muito admirado. Chamei o
comandante e lhe perguntei como agira daquela maneira, pois a atitude não era contra o
pároco e sim contra mim e que aquele ofício não só contrariava a verdade, como também a
cortesia. Mostrei-lhe como sempre procedera com a devida consideração, não permitindo
que se fizessem proclamas de quem quer que fosse sem antes falar com ele, a fim de evitar
choques e aborrecimentos. No entanto, agora vinha ele com essa inexatidão caluniosa. E
como no mesmo ofício dizia que daria queixa ao comandante-geral de Cuba, perguntei-lhe
se realmente havia dado queixa, a fim de prevenir-me para os primeiros passos; respondeu-
me ele, então, com outra falsidade, dizendo que não. Eis que o comandante-geral, sem nada
mais saber além do que lhe havia informado o comandante da cidade do Cobre e, mal
aconselhado pelo secretário do governo, começou a fazer as diligências mais furibundas,
das quais resultaram muitíssimas contestações e grandes desgostos. 27

521. Não obstante, com a ajuda do Senhor, o fruto que se colhia era muito grande.
Enquanto despachava em Cobre, o general Lemery, que ocupava o cargo de comandante-
geral do departamento do centro na cidade de Porto Príncipe, 28 escreveu-me encarecendo
que fosse, o mais breve possível, até lá, pois convinha apaziguar os ânimos que estavam
muito exaltados. Ao mesmo tempo em que o general do centro chamava-me com urgência,
o capitão-geral de Havana, José de la Concha, 29 escrevia-me que não fosse, porque eu
com meus pedidos de clemência, o impediria de praticar justiça e fazer as punições
indispensáveis. Eu lhe respondi, informando-o da insistência do general do centro; então ele
aquiesceu que eu fosse para lá.

522. Fui a Porto Príncipe nos últimos dias de julho do mesmo ano. 30 Como todos da
cidade estavam, ou contaminados e comprometidos com a Revolução de Narciso López, 31
ou amotinados ao norte contra os europeus, por isso receberam-me com muita prevenção.
Iniciei a missão. Muitos vinham ver se eu falaria das revoltas políticas em que estava
mergulhada toda a ilha de Cuba e, mais particularmente, a cidade de Porto Príncipe.
Observando que eu jamais falava uma palavra de política, nem em público, nem no
confessionário, nem em particular, aquilo lhes chamou muitíssimo a atenção e lhes inspirou
confiança.

523. Justamente naqueles dias, quatro revolucionários, filhos da mesma cidade, foram
surpreendidos pelas tropas com armas nas mãos, e condenados à morte. Tamanha era a
confiança que em mim depositavam os réus e seus familiares que me chamaram para que
fosse ao cárcere confessá-los. Fui e confessei-os. 32 A confiança em mim depositada foi
crescendo muito. Propuseram-me que entrasse em entendimento com o general, a fim de
que os envolvidos em armas as deixassem e voltassem dissimuladamente para as suas
casas, sem que se lhes dissesse nada e sem que constassem seus nomes. Consegui isso do
general, e assim toda aquela sublevação acabou. Desfeita a provisão de armas, munições e
dinheiro, a paz voltou a reinar. Após dois anos, os americanos do norte fizeram outra
tentativa, mas não encontrou eco como a anterior.Fizeram ainda uma terceira, sem
resultado algum.

524. Durante a minha permanência, ocorreram três tentativas contra a Ilha. A primeira foi
muito forte e a desfiz completamente com a ajuda do Senhor. A segunda foi menor. 33 A
terceira foi nula. 34 Assim, os inimigos da Espanha viam-me com maus olhos. Diziam que
o arcebispo de Santiago causava mais prejuízo do que todo o exército, e afirmavam que,
enquanto eu estivesse na Ilha, seus planos não poderiam ter resultados. Por causa disso
tentaram tirar-me a vida. 35

Capítulo III
Missões em Porto Príncipe, Manzanillo, São Frutuoso e Bayamo

525. Ao chegar a Porto Príncipe, a primeira coisa que fiz foi pregar exercícios espirituais ao
clero. Para que as paróquias não ficassem desprovidas, dividi os padres em duas turmas.
Aluguei uma casa grande.Na mesma casa em que vivia, reuni vinte na primeira turma e, na
segunda, dezenove sacerdotes. Conviviam comigo dia e noite. O tempo foi distribuído com
leituras, meditações, recitação do Ofício divino e reflexões que eu dirigia. Todos fizeram
sua confissão geral, escreveram seu plano de vida e tudo se acertou. 36

526. Depois do clero, dirigi-me ao povo. A missão realizou-se em três diferentes pontos
para facilitar a participação, pois a cidade tem mais de uma légua de comprimento. Dispus
que os padres Lourenço San Martí e Antônio Barjau fizessem a missão na igreja de Nossa
Senhora da Caridade, situada em um dos extremos da cidade; na igreja de Sant’Ana, situada
no extremo oposto, estava o padre Manuel Vilaró; eu me encarreguei da missão do centro,
na igreja de Nossa Senhora das Mercês, a maior da cidade. Essa missão durou dois meses:
agosto e setembro. É inexplicável o fruto realizado por Deus. Visitei as seis paróquias da
cidade e as outras igrejas.

527. De Porto Príncipe, desloquei-me para Nuevitas, 37 onde pregamos missão em Bagá,
São Miguel e São Jerônimo e logo regressamos a Porto Príncipe para as festas do Natal.
Cantamos Matinas e a Missa do Galo com toda a solenidade na igreja da Soledade. O padre
Antônio Barjau adoeceu de febre amarela. Chegou muito mal, mas recuperou-se
perfeitamente, graças a Deus. 38 Continuamos a missionar e crismar até a semana da
Paixão. Percorrendo paróquia por paróquia, chegamos a Santiago de Cuba. Realizamos
todas as funções da Semana Santa com grande solenidade, ensaiando bem antes com todos
os sacerdotes que tomariam parte na consagração dos santos óleos e demais celebrações. 39

528. Nos últimos dias de abril saí de Santiago e fui para a cidade de Manzanillo, juntamente
com dois sacerdotes. Os demais seguiam pregando missões em diferentes pontos. Em
Manzanillo comecei no mês de maio. 40 Diariamente pregava, com grande afluência de
povo. Sem saber como, pregando, escapavam-me da boca palavras que prediziam a
ocorrência próxima de grandes terremotos. 41 De Manzanillo passamos à paróquia de São
Frutuoso. Em todos os lugares, fazia sempre o mesmo: confessava, pregava, confirmava e
ministrava o sacramento do matrimônio. De lá, passamos para a cidade de Bayamo. Iniciei
a missão fazendo o mesmo que em outras localidades. Preguei exercícios ao clero. Pregava
diariamente, confessava; crismei até o dia 20 de agosto de 1852. Às dez da manhã, estava
na capela do Sacramento ou das Dores, quando senti o terremoto, que se foi repetindo todos
os dias. 42

Capítulo IV
Os tremores em Santiago de Cuba

529. Horrendos foram os estragos que os tremores de terra causaram em Cuba. Todo o
povo se apavorou. O senhor Provedor 43 disse-me que era conveniente que eu fosse a
Santiago. 44 Deixei a missão de Bayamo e fui a Santiago. Fiquei espantado ao ver tantas
ruínas. Mal se podia transitar pelas ruas devido aos escombros. A catedral estava
completamente danificada. Para se ter uma idéia dos abalos que aquele templo sofreu,
limito-me a dizer que em cada ângulo do frontispício da catedral há duas torres iguais. Em
uma delas está o relógio e na outra, os sinos. As torres têm quatro cantos e no último deles
está um vaso como ornato. Pois bem, com as sacudidas, um desses vasos se desprendeu e
entrou por uma das janelas do campanário. Imagine que curva não deve ter descrito aquele
vaso para enfiar-se pela janela adentro! O Palácio ficou em ruínas. Com as demais igrejas,
aconteceu mais ou menos o mesmo. Por isso, nas praças ergueram-se capelas onde se
celebrava a missa, administravam-se os sacramentos e se pregava. Todas as casas, algumas
mais outras menos, sofreram as conseqüências do terremoto.

530. Quem não experimentou o que são os grandes tremores, não pode fazer idéia deles.
Não consistem somente na oscilação ou ondulação da terra e deslocamento dos móveis da
casa, de um lado para outro. É mais que isso, mais que a experiência dos navegadores no
navio em dia de mar agitado. Mas, não é só isso. Há algo mais num terremoto.
531. Observando os camelos e demais quadrúpedes, eles são os primeiros que o
pressentem; ficam hirtos, dali não saindo nem mesmo a poder de chicotadas e riscos de
esporas. A seguir, observa-se como as aves:galinhas, perus, pombos, periquitos, dão gritos,
grasnidos, chilros, sinais de grande espanto. Ouve-se depois um grande estrondo
subterrâneo e, logo tudo balança. Ouvem-se os estalos da madeira, portas, paredes; e
começam a cair partes dos edifícios; mas o que mais impressiona são as faíscas elétricas em
meio a tudo isso. Vê-se nos escritórios que o ímã em contato com o ferro, na hora do
tremor, sede compõe completamente.

532. Além disso, cada um sente os efeitos em si mesmo. Todas as pessoas, no momento do
estrondo, gritam com voz espantosa e espavorida: Misericórdia! E, por instinto de
conservação, põem-se acorrer para algum pátio, praça ou rua, pois ninguém se sente seguro
em sua própria casa. Assim que cessa o ruído, todos param, calam-se e se olham como
bobos e se lhes assoma uma lágrima nos olhos. É inexplicável o que se passa. Em meio a
esta multiplicidade de sobressaltos, presenciamos em Santiago um fato muito grato e
surpreendente. Todos os enfermos de casas particulares e hospitais civis e militares, todos
enrolados em cobertores, se levantaram, saíram de seus aposentos, como os demais, e
disseram que se encontravam curados e que por nada voltariam às suas camas.

533. Restaram muitas ruínas; tivemos que lamentar algumas desgraças pessoais. Um
número muito grande de pessoas referiam os prodígios da misericórdia de Deus. Muitos
saíram miraculosamente ilesos, embora tivessem sofrido com a destruição de suas casas e
elevadas despesas para reconstruí-las. A mim a reparação da catedral custou 24 mil duros; o
colégio ou seminário, 7 mil; o palácio, 5 mil. 45

Capítulo V
O cólera na diocese de Cuba

534. Os tremores duraram de 20 de agosto até os últimos dias de dezembro, com breves
interrupções. Por outro lado, havia dias em que se sentiam até cinco tremores. Todos os
cônegos e demais sacerdotes, em prece e em procissão, fomos à avenida da praia onde foi
erguida uma capela de tábuas, coberta com um grande toldo. Pela manhã participavam as
autoridades e o povo da cidade. 46

535. Além das ladainhas cantava-se uma missa de intercessão. À tarde, além do rosário e
preces, preguei uma missão exortando à penitência, dizendo-lhes que Deus havia feito o
mesmo que a mãe faz com um filho dorminhoco: balança a cama para que acorde e se
levante e, se isto não basta, castiga-lhe o corpo. O mesmo faz Deus com os filhos que são
pecadores empedernidos. Agora moveu-lhes o catre, a cama, a casa e, se ainda não
despertam, passará a castigá-los no corpo com a peste ou o cólera, pois Deus concedeu-me
conhecer tudo isto. Alguns ouvintes não aceitaram as minhas palavras e murmuraram
contra mim. Mas eis que, passado apenas um mês, manifestou-se o cólera morbo de um
modo espantoso. Em certas ruas, no espaço de menos de dois dias, morreram todos os seus
moradores. 47
536. Um grande número de pessoas, que não se tinha confessado durante a missão,
confessou-se por causa dos tremores e da peste. A verdade é que existem alguns pecadores
que são como nogueiras; pois só dão frutos quando seu tronco leva pauladas. Não posso
senão bendizer ao Senhor e continuamente dar-lhe graças por ter enviado a peste em hora
tão oportuna, pois compreendi de forma evidente e clara que ela era um efeito de sua
adorável misericórdia: por causa da peste, muitos se confessaram para morrer e não o
haviam feito na missão; outros que na missão se haviam convertido e confessado bem, se
teriam outra vez precipitado nos mesmos pecados; assim Deus levou-os naquela peste e
estão no céu. Se não fosse pela peste, teriam recaído e morrido em pecado e se teriam
condenado. Bendita e louvada seja a bondade e misericórdia de Deus, nosso bom Pai de
toda clemência e de toda consolação. 48

537. Durante a peste ou cólera, todo o clero se portou muito bem, dia e noite. Juntamente
com todos os sacerdotes estávamos sempre entre os enfermos, socorrendo-os espiritual e
corporalmente. Somente um morreu, vítima da caridade, o pároco da cidade do Cobre.
Sentia-se já um pouco atacado, mas com a medicação tinha esperanças de se curar. Estava
acamado. Avisaram-no para atender a um enfermo, ele respondeu: “Se for, sei
perfeitamente que morrerei, porque se agravará o meu mal; mas como aqui não há outro
sacerdote, irei. Prefiro morrer a deixar de atender a um enfermo que me chama”. Foi; ao
voltar, deitou-se na cama e morreu. 49

Capítulo VI
Viagem a Baracoa, Mayarí e Santiago. Resultado da primeira visita

538. Não obstante os tremores e o cólera, nos dois primeiros anos, visitamos todas as
paróquias do arcebispado, pregando missões, tanto eu como meus companheiros. E
pregamos em muitas paróquias rurais de grande extensão. Em cada duas ou três léguas
fazia-se uma missão em algum barracão de tabaco, que consiste numa grande cobertura. Ali
se montava um altar e um púlpito e, com cadeiras, armavam-se confessionários, com grades
que levávamos para isso.

539. Naqueles dois primeiros anos choveu muitíssimo. Em uma ocasião choveu durante
nove meses sem falhar um só dia. Houve ocasião em que choveu dia e noite sem parar, de
modo que tínhamos dificuldade para viajar; mas, apesar disso, eu e meus companheiros não
deixávamos de ir, e o povo estava sempre presente, contente e alegre, e, às vezes, nem
tínhamos o necessário para a sobrevivência.

540. Lembro-me de que no segundo ano em que nos achávamos naquelas terras, desejei ir
por terra à cidade de Baracoa, já que por mar não houve condições. Fui com meus
companheiros. 50 Acompanhou-nos um empregado que levava comida, porque os lugares
eram despovoados e as poucas pessoas que por aquela região existiam, tinham abandonado
o local por causa do cólera. O bom do empregado ficou para trás, pois o animal não podia
caminhar. Chegamos muito tarde da noite a uma casa; nela nada mais encontramos que
uma bolacha de soldados, pequena e dura; repartirmo-la em quatro pedaços, um para cada
sacerdote. 51 No dia seguinte, em jejum, tivemos de percorrer o pior caminho que jamais
havia andado em minha vida.
541. Tivemos de passar trinta e cinco vezes o rio chamado Jojó; pelo fato de correr entre
duas altas montanhas, quando dá passagem por um lugar, não a dá pelo outro. Depois do
rio, tivemos de subir às altas montanhas, chamadas “Cuchillas de Baracoa”, nome
perfeitamente adequado, pois têm a forma de lâmina. Por cima do corte ou do ponto mais
elevado, passa o caminho. Quando se passa por ele, há trechos que se faz soar um caracol
marinho, para que não haja encontro do que vai com o que vem. Caso contrário, o cavalo de
um ou do outro teria de rolar para baixo, pois o caminho é tão estreito que o cavalo não tem
como dar volta para trás. E são tão altas as montanhas, que se vê o mar dos dois lados da
ilha, pois se situam no meio da ilha, além disso, possuem uma extensão de umas quatro
léguas. Depois de cruzarmos o rio, em jejum, tivemos de subir por essas montanhas. A
descida é tão íngreme, que eu resvalei e caí duas vezes, embora não me tenha machucado
muito, graças a Deus. 52

542. Ao meio-dia, chegamos a uma casa de campo, onde pudemos comer e, à tarde,
chegamos felizmente à cidade de Baracoa, justamente o ponto da ilha onde o descobridor
Colombo pôs os pés ao chegar à terra.Conserva-se ainda a cruz que levantou ao chegar.
Havia sessenta anos que nenhum prelado visitava a cidade, e conseqüentemente, não fora
ministrado o sacramento da confirmação. 53 Quando cheguei, dois companheiros meus já
haviam pregado a missão. Não obstante, preguei todos os dias em que lá permaneci,
ministrei o sacramento da crisma a todos, visitei-a; passei depois à paróquia de
Guantánamo e também a de Mayarí. Estas duas paróquias foram missionadas pelos meus
companheiros e fiz o mesmo que em Baracoa.

543. De Mayarí voltamos para Santiago, a capital, distante quarenta léguas. Como o
caminho é ermo, tivemos de levar comida. Saímos segunda-feira santa. Levamos uma sopa
de bacalhau com grão-de-bico e batatas, e uma panela de barro. Depois de muito caminhar,
decidimos comer. Paramos. Acendemos o fogo e, para proteger-nos do vento, encostamo-
nos a um tronco de uma grande árvore de mogno. Todos íamos por lenha. O calor do fogo
foi tão intenso que a panela estourou.Procuramos uma palmeira-real, pois naquela mata
havia muitas, para dela tirar uma folha chamada “yágua”, (as yáguas são folhas grandes que
caem das palmeiras-reais, como peles de carneiro). Numa yágua despejamos a sopa, porque
a panela se havia quebrado, devido ao excesso de calor do fogo. Acontece que não
tínhamos nem colher nem garfo. Apanhamos então uma cabaça, com a qual tomamos nossa
sopa.Tivemos sede e, para beber, apanhamos outra folha de yágua, atamos as pontas,
formando assim um recipiente que enchemos de água. Todos bebemos abundantemente.
Todos estávamos tão contentes e alegres que era uma maravilha. No dia seguinte chegamos
a Santiago para celebraras funções da Semana santa, que sempre celebrei todos os anos.

544. Nos primeiros anos, tivemos os tremores e o cólera, como já disse. Não obstante as
dificuldades, eu e meus companheiros realizamos missões em todas as paróquias do
arcebispado. Em todas realizei a visita pastoral, ministrei o sacramento do crisma durante
quantos dias fossem necessários para que ninguém ficasse sem o sacramento. 54 Casavam-
se ou se separavam os que viviam maritalmente. A todos distribuíamos livros, santinhos,
medalhas, terços; e todos ficavam muito contentes e nós também.
545. Durante a primeira visita e missão, tivemos o cuidado de contar o que distribuíramos.
Só em livros distribuímos 98.217, que dávamos de graça ou trocávamos por outros
considerados nocivos. Foram muitos os livros que destruímos. Além disto, distribuímos
89.500 estampas, 20.663 terços, 8.931 medalhas. Depois da primeira visita já não se
anotava o que era distribuído, por ser muitíssimo o que mandava vir da Península, da
França e de outros lugares. Tudo era distribuído dentro e fora da diocese. Que tudo seja
para a maior glória de Deus e salvação dos homens que Jesus Cristo redimiu.

546. Escrevi muitas circulares durante o tempo em que permaneci à frente da diocese. Não
quis escrever nem uma carta pastoral antes deter visitado primeiro toda a diocese e
constatado a realidade, para que as palavras não fossem atiradas ao vento, mas aproveitadas
verdadeiramente.

547. A primeira carta pastoral que escrevi e assinei foi no dia 20 de setembro de 1852. Foi
dirigida ao clero. Essa mesma carta foi reimpressa 55, com os seguintes acréscimos: 1.
Sobre o hábito clerical. 2. Deveres dos vigários episcopais. 3. Deveres dos párocos e
demais sacerdotes. 4. Determinações para sacerdotes e coadjutores. 5. Método de vida. 6.
Sobre as capelanias. 7. Sobre os matrimônios. 8. Sobre dispensas matrimoniais.

548. Além disso, escrevi sete apêndices: 1. Sobre ornamentos e livros paroquiais; 2. Sobre
o cemitério; 3. Sobre formulários; 4. Sobre a elaboração dos orçamentos paroquiais; 5.
Sobre as conferências; 6.Sobre a Irmandade da Doutrina Cristã; 7. Sobre a maneira de
evitar os escândalos. 56

549. A segunda carta pastoral dirigida ao povo, com data de 25 de março de 1853, recorda
o que havíamos ensinado nas missões e na visita pastoral. 57 A terceira foi contra maus
livros que um navio havia trazido para a Ilha. 58 A quarta, foi um convite à oração para
obter a definição dogmática da Imaculada Conceição de Maria. 59 A quinta, foi por motivo
da declaração do dogma da Imaculada Conceição de Maria. Esta carta foi impressa e
reimpressa em Cuba, Barcelona e Paris. 60 Tudo seja para maior glória de Deus, de Maria
santíssima e para o bem das almas, como tem sido sempre minha intenção.

Capítulo VII
Disposições para o bem da diocese

550. Se é verdade que nos dois primeiros anos foram visitadas e missionadas todas as
paróquias da diocese, depois as visitas e missões continuaram. Como manda o sagrado
concílio de Trento, que a cada ano ou dois se faça visita, eu em seis anos e dois meses
visitei quatro vezes cada paróquia. 61

551. Na minha gestão, revisei e melhorei os vencimentos do clero, tanto da catedral como
das paróquias. A cota deles aumentou, a minha diminuiu. Antes o arcebispo de Cuba
recebia 30 mil duros e a quarta parte das arrecadações das funções paroquiais, que somava
6 mil. No meu tempo este valor ficou reduzido a 18 mil duros, sem a quarta parte das
arrecadações. 62
552. Os vigários recebiam uma mesquinharia. Só como exemplo: os quatro de Santiago
recebiam trinta e três duros, mais as ofertas da igreja, das quais tinham que dar a metade ao
prelado e ao que era chamado sacristão, que nada fazia. No meu tempo, estabeleceu-se que,
nas paróquias menores, os párocos, no começo, receberiam 700 duros, os de meia carreira
1,2 mil, e os de fim de carreira 2 mil. Para os gastos do culto: 200 duros para os iniciantes,
400 para os de meia carreira, e 700 para os de fim de carreira. Também os cônegos tiveram
seus ordenados aumentados. Foi reformada uma capela, muito bem provida e montada, com
a finalidade de acolher bons músicos e organistas, vindos da Península; nela se realizavam
celebrações brilhantes.

553. Tanto os cônegos como os párocos e demais sacerdotes eram convidados a fazer
anualmente dez dias de exercícios espirituais. Fiz-lhes vestir sempre o hábito talar.
Determinei por um edito; o que faltasse teria uma multa de dez duros. Somente um faltou.
Fiz com que comparecesse vestido de leigo e exigi que pagasse a multa e como foi visto em
casa suspeita de mulheres, cancelei as licenças e o deixei em reclusão. A um cônego e
prebendado que reincidiu na falta depois deter sido avisado, tirei-lhe parte de suas rendas,
segundo disposição do Concílio de Trento. Quando algum sacerdote caía em alguma
fragilidade, exigia que fizesse retiro espiritual e, se via que de fato se havia emendado,
tirava-o do local e o enviava a outro ponto bem distante, a fim de afastá-lo do perigo.

554. Instituí as Conferências em todos os povoados, três cada semana: uma sobre rubricas e
duas sobre moral. Eu sempre as presidia. A primeira de cada mês era uma conferência para
o dia de retiro, que consistia num tempo de leitura, oração e pregação.

555. Reestruturei o Seminário Conciliar. Há mais de trinta anos que não se ordenava
nenhum seminarista interno. Todos começavam a carreira dizendo que tinham vocação.
Instruíam-se às custas dos seminários, no último ano diziam não ter vocação para o
sacerdócio e graduavam-se em Direito. Em Santiago existe um enxame de advogados
formados às custas do seminário, e os poucos párocos vinham de fora. 63

556. Com a ajuda de Deus, a situação mudou completamente. Nomeei como reitor o padre
Antônio Barjau, sacerdote dotado de zelo para educar crianças e jovens. Este bom
sacerdote, com suas boas maneiras e, tendo ele mesmo boa formação, educava bem os
candidatos, religiosa e cientificamente. Deste modo progrediram, tanto nas virtudes como
nas ciências. Muitos se ordenaram e outros ainda se preparam.

557. Como necessitava logo de sacerdotes, e o seminário não podia oferecê-los senão após
longos anos, recorri ao seguinte recurso: convidei estudantes da Catalunha em final de
curso, para que o concluíssem em Santiago, e se ordenavam com o estipêndio de
sacristão.Eles colocavam-se à disposição dos párocos e depois tornavam-se candidatos a
pároco. Foram ordenados por mim trinta e seis.

558. Juntamente com o provedor, acabamos com muitos e gravíssimos abusos existentes
nas capelanias. Estas, que eram de direito devoluto, eu procurava dá-las a bons seminaristas
do lugar, que eram internos e davam esperança de que, com o tempo, seriam bons párocos.
559. Aumentei o número de paróquias e determinei que os párocos ensinassem a doutrina
cristã e que em todos os domingos fizessem pregação ou leitura ao povo. 64

560. Implantei a Irmandade da Doutrina Cristã e, desde que nos instalamos na Ilha, todos os
estudantes tinham de ensinar a doutrina, distribuídos pelas diversas igrejas. Aos domingos
fazíamos procissão com as crianças. Parávamos na frente das igrejas. Nos átrios ou nas
praças dispunham-se duas mesas, os meninos, de dois em dois, subiam nelas e, em voz alta
e clara, se faziam perguntas mutuamente. E o povo que se aglomerava, motivado pela
novidade, aprendia a doutrina de que tanto necessitava. 65 Visitava sempre e em todos os
povoados as escolas primárias, as escolas de meninos e de meninas e instruía os professores
e alunos.

561. Abri um Convento de Monjas do Ensino para a educação das meninas.Adquiri para
elas uma casa que custou cerca de doze mil duros. 66

562. Com ajuda do Senhor, cuidei dos pobres. Toda segunda-feira do ano, durante toda a
minha permanência na Ilha, reunia todos os pobres da povoação em que me encontrava.
Como às vezes são mais pobres de alma que de corpo, dava uma peseta a cada um, depois
de eu mesmo lhes ensinar a doutrina cristã. Sempre, após o ensino do catecismo, fazia uma
exortação para que participassem dos santos sacramentos da confissão e eucaristia.
Muitíssimos se confessavam comigo, porque conheciam o amor que lhes dedicava.
Realmente, o Senhor deu-me um amor entranhável pelos pobres. 67

563. Para os pobres, comprei uma fazenda na cidade de Porto Príncipe.Quando saí da Ilha,
havia gastado vinte e cinco mil duros de minhas próprias economias. 68 O presbítero
Palácio Curríus, que recebera do Senhor um dom especial para isso, dirigia a obra de
construção da casa. Ele comia e dormia na mesma fazenda, junto com os trabalhadores, a
fim de melhor coordenar as atividades.

564. O plano da obra era recolher meninos e meninas pobres, muitas dos quais vivem
perambulando pelas ruas a pedir esmola. Ali recebiam comida e roupa, teriam aulas de
religião, aprenderiam a ler e escrever, etc., e uma arte ou ofício que quisessem. Uma hora
diária era dedicada ao trabalho na fazenda para produção de alimentos e a própria
manutenção. Todo o excedente que ganhassem devia ser colocado na caixa de poupança.
De modo que, quando saíssem daquela casa, além da instrução e aprendizagem de algum
ofício ou arte, receberiam o que tivessem ganhado.

565. A casa era dividida em dois grandes pavilhões: um para as meninas e outro para os
meninos; a capela ficava no meio. Nas funções religiosas, os meninos ficavam no centro da
capela, e as meninas ocupavam as tribunas ao lado. Assim ficavam completamente
separados. A casa tinha dois andares, no primeiro estavam as oficinas e, no segundo, os
dormitórios, etc.

566. Na parte da frente do estabelecimento ou casa, no pavilhão dos meninos, haveria um


pequeno laboratório de física e química, instrumentos de agricultura e uma biblioteca. Esta
seria aberta ao público duas horas pela manhã e duas à tarde. Três dias por semana, as aulas
de agricultura poderiam ser franqueadas por todos que se interessassem. O restante era
reservado aos internos.

567. Mandei cercar e amurar toda a extensão da fazenda. Depois dividi o terreno em
quadras diferentes; tanto ao redor como nas linhas divisórias das quadras, mandei plantar
árvores nativas e vindas de fora e que lá pudessem aclimatar-se e ser utilizadas, formando
uma espécie de jardim botânico; eram identificadas por números registrados num livro em
que explicava a natureza de cada uma, sua procedência, sua utilidade, o modo de ser
propagada e de ser melhorada, etc., etc. Para tanto, eu pessoalmente, com minhas próprias
mãos, plantei mais de 400 laranjeiras que cresciam admiravelmente. Na fazenda haveria um
lugar destinado aos animais da Ilha e de fora, cujas raças podiam ser utilizadas e
melhoradas. 69

568. Enquanto a obra ia-se desenvolvendo, escrevi um pequeno livro intitulado Delícias do
Campo, que contém, em embrião, o projeto da Casa de Beneficência começada. A pequena
obra Delícias do Campo, tem sido de grande utilidade na Ilha, pois os donos das fazendas a
entregavam aos administradores e pediam que se instruíssem por ela. 70 Os generais de
Havana e de Santiago, incentivadores da prosperidade no país, eram os que mais
divulgaram a obra. O general Vargas, que então vivia em Santiago e atualmente está em
Porto Rico, fez nova edição para Porto Rico e Santo Domingo. 71

569. Criei também na diocese a Caixa Econômica, cuja regulamentação e aprovação estão
na mesma obra, para auxiliar as necessidades dos pobres, porque percebi que os pobres,
quando são bem orientados e se lhes proporciona um modo digno de ganhar a vida, são
pessoas honradas e virtuosas; caso contrário, se aviltam. Por isso eu me empenhava por
cultivar tanto o espiritual como o corporal. Assim, com a ajuda de Deus, tudo me saiu
muito bem. Que tudo seja para a glória de Deus. 72

570. Visitava também os presos dos cárceres, catequizava-os, pregava-lhes a palavra de


Deus com muita freqüência. Dava a cada um uma peseta, pois assim me ouviam com prazer
e atenção.

571. Com a mesma freqüência, visitava os enfermos pobres do hospital, dava-lhes alguma
ajuda, particularmente quando recebiam alta e enquanto se restabeleciam. Eu era o
presidente da Junta dos Amigos do País. Nós nos reuníamos no palácio para tratar dos
assuntos em prol do desenvolvimento da Ilha. Procurávamos empregos para os rapazes
pobres.Cuidávamos para que no cárcere os presos recebessem alfabetização, religião e
alguma profissão. No presídio, tínhamos um bom número de oficinas. A experiência nos
ensinava que muitos se entregavam ao crime porque não tinham nenhuma profissão nem
sabiam como conseguir honestamente a sua subsistência.

572. Facilitei a regulamentação dos matrimônios aos pobres e daqueles que não dispunham
dos documentos de batismo, a fim de acabar com os concubinatos. Opus-me aos raptos e
aos matrimônios entre parentes. Só os aceitava e dispensava quando não havia outra
solução, pois via o resultado mau que produziam semelhantes uniões. 73
Capítulo VIII
Ferimento e cura no atentado 74

573. Encontrava-me em Porto Príncipe, realizando a quarta visita pastoral. Era o quinto ano
de minha permanência naquela Ilha. 75 Terminada a visita às paróquias da cidade, dirigi-
me a Gibara, passando por Nuevitas que também visitei de passagem. De Gibara, porto do
mar, dirigi-me à cidade de Holguín. Havia dias que me sentia muito fervoroso e desejoso de
morrer por Jesus Cristo. Não sabia falar de outra coisa a não ser do divino amor, tanto com
meus irmãos de comunidade como com os de fora que me visitavam. Tinha fome e sede de
sofrer dificuldades e derramar meu sangue por Jesus e Maria. Dizia no púlpito que desejava
confirmar com o sangue as verdades que pregava.

574. No dia primeiro de fevereiro de 1856, 76 tendo chegado à cidade de Holguín, iniciei a
santa visita pastoral. Sendo véspera da festa da purificação da santíssima virgem Maria,
preguei sobre este adorável mistério, fazendo ver aos ouvintes o grande amor que a
santíssima virgem nos manifestou ao oferecer seu Filho Santíssimo à paixão e morte por
todos nós. As coisas que eu disse e como as disse, não sei.Diziam-me, porém, que nunca
fora tão feliz assim. O sermão durou uma hora e meia.

575. Desci do púlpito vibrando de fervor. Terminada a função, saímos da igreja em direção
à casa aonde iria dormir. Acompanhavam-me quatro sacerdotes, 77 meu acompanhante
Inácio, 78 um sacristão, com uma lanterna para iluminar o caminho, pois a noite estava
escura e eram oito e meia da noite. Saíramos da igreja e já estávamos numa rua larga e
espaçosa. Nos dois lados da rua havia muita gente, todos me saudavam. Aproximou-se de
mim um homem, como que desejando beijar-me o anel. Inesperadamente, porém, estendeu
o braço empunhando uma navalha de barbear e desfechou um golpe com toda a sua força.
Como, porém, eu estivesse com a cabeça inclinada e, na mão direita um lenço com o qual
tapava a boca, em lugar de cortar-me o pescoço, como tencionava, fez-me um corte no
rosto, na face esquerda, desde a frente até a orelha, onde começa a barba e, na pressa,
agarrou-me e feriu-me o braço direito com o qual tapava a boca. 79

576. Por onde passou a navalha, a carne abriu-se até fender o osso dos maxilares superior e
inferior. O sangue escorria por dentro e por fora da boca. Imediatamente, segurei a
bochecha para conter o jorro de sangue e, com a mão esquerda, apertava a ferida do braço
direito. Felizmente, perto do local havia uma farmácia, e eu disse: Entremos aqui, pois
teremos mais à mão os remédios. 80 Como os médicos da cidade e do regimento tinham
assistido ao sermão e saíam da igreja com o povo, logo souberam do acontecido, acudiram-
me imediatamente. Ficaram espantados ao ver um bispo todo ensangüentado, vestido de
capa e peitoral, pois, além de bispo, era amigo e, como tal, me estimavam e me queriam
muito bem. Olhando-me, ficaram tão estupefatos que eu tive de animá-los e dizer-lhes o
que tinham que fazer; eu mesmo estava tranqüilo e sereno. Os médicos disseram que o
sangue saído pelos cortes equivaleria a quatro libras e meia. Devido à forte hemorragia,
sofri um pequeno desmaio. Logo tornei a mim, assim que me deram vinagre para cheirar.

577. Feitos os primeiros curativos, levaram-me em uma maca para casa onde estava
hospedado. 81 Não sei como explicar o prazer e a alegria que minha alma sentia por ter
alcançado o que tanto desejava: derramar o meu sangue por amor de Jesus e de Maria e
poder selar com o sangue das minhas veias as verdades evangélicas. Sentia mais intensa
alegria em mim ao pensar que isto era uma amostra daquilo que com o tempo alcançaria:
derramar todo o sangue e consumar o sacrifício com a própria morte. Parecia-me que estas
feridas eram como que a circuncisão de Jesus e depois, com o tempo, teria a ditosa e
incomparável sorte de morrer, ou na cruz em um patíbulo, ferido por um punhal de
assassino, ou coisa semelhante.

578. A alegria e gozo duraram todo o tempo em que estive acamado.Alegrava a todos os
que me visitavam. 82. Aos poucos essa alegria foi passando, à medida que as feridas
cicatrizavam. 83

579. Na cura das feridas, aconteceram três coisas prodigiosas que consignarei aqui
brevemente. A primeira foi a cura instantânea de uma fístula, que os médicos me tinham
dito que duraria. Com o ferimento romperam-se completamente os ductos das glândulas
salivares, de modo que a saliva, líquida como a água, escoava por um orifício no meio da
cicatriz da face, próximo à orelha. Os médicos pensavam fazer uma cirurgia dolorosa e
pouco vantajosa. Tendo deixado para o dia seguinte, encomendei-me à santíssima virgem
Maria e me ofereci e resignei-me à vontade de Deus e, no mesmo instante, fiquei curado.
De maneira que, no dia seguinte, quando os médicos viram o prodígio, ficaram
assombrados.

580. O segundo prodígio foi que da cicatriz do braço direito apareceu como que uma
imagem, em relevo, de Nossa Senhora das Dores, de meio corpo e, além do relevo, tinha
cores branca e roxa. Nos primeiros anos podia ser vista perfeitamente, de modo a constituir-
se motivo de admiração por parte dos amigos que a viram. Aos poucos, porém, foi se
apagando e agora pouco se percebe.

581. O terceiro foi o pensamento de fundar a Academia de São Miguel, ainda nos primeiros
dias em que me achava acamado. Logo que me levantei, comecei a desenhar a estampa e a
escrever o regulamento, atualmente aprovado pelo governo, com estatuto real, além de
elogiado e recomendado pelo sumo pontífice Pio IX.

582. A rainha e o rei foram os primeiros a se filiarem. Depois, muitos aderiram em Madri e
nas principais povoações da Espanha, e é incalculável o bem que fazem. Que tudo seja para
a maior glória de Deus e o bem das almas. 84

583. O agressor foi detido no ato da agressão. Foi aberto contra ele um processo e o juiz
deu sentença de morte. 85 Em meu depoimento, no entanto, disse que como cristão,
sacerdote e arcebispo, o perdoava. Logo que o capitão-geral de Havana, José de la Concha,
tomou conhecimento, fez uma viagem expressamente para me visitar. Supliquei que lhe
fosse dado o indulto e que o tirassem da Ilha para que ninguém o linchasse, como se temia,
por ter-me agredido; tal era a dor e a indignação do povo ao ver-me ferido e, ao mesmo
tempo, criou-se um sentimento de vingança pelo fato de que no seu país se houvessem
ferido o seu bispo.

584. Ofereci-me para pagar-lhe a passagem a fim de que voltasse à sua terra, à Ilha de
Tenerife, nas Canárias. Ele se chamava Antônio Pérez. 86 Era o mesmo que no ano anterior
havia tirado da prisão, sem conhecê-lo, simplesmente atendendo a um apelo dos seus
parentes. Na época supliquei às autoridades que o soltassem, as quais aquiesceram e o
soltaram. No ano seguinte, fez o favor de agredir-me. Digo favor porque tenho na conta de
grande favor o que o céu me fez. Disso estou sumamente agradecido e continuamente louvo
a Deus e a Maria Santíssima.

Capítulo IX
Chamado a Madri

585. Jesus disse aos que iam prendê-lo, no horto: Haec est hora vestra et potestas
tenebrarum (esta é a vossa hora e o poder das trevas). 87 O mesmo deveria dizer eu, pois
aquela era a hora em que Deus dava permissão aos maus e aos demônios para que me
ferissem. No instante em que fui ferido, vi o próprio demônio que o ajudava e dava forças
para desferir o golpe. Ocorreu-me a idéia sobre aquelas palavras que dizemos Cânones: Si
quis suadente diabolo. 88 Pensei: Este infeliz homem, cooperante diabolo (com a
cooperação do diabo), põe suas mãos violentas sobre tua miserável pessoa. É bem verdade
que és um pobre pecador, um indigno sacerdote, contudo, sacerdote, um bispo da Igreja,
um ministro de Jesus Cristo. 89 Meu Pai!, perdoa-lhe pois não sabe o que faz. 90

586. Assim que me restabeleci, dirigi-me à igreja para dar graças a Deus. 91 Ministrei o
sacramento da crisma a todos os que deveriam ser crismados e depois iniciei a caminhada
de regresso a Santiago de Cuba. Administrava a crisma em todas as paróquias que estavam
no caminho. Pernoitamos em uma fazenda chamada Santo Domingo. Acreditando os
inimigos que estivéssemos em outra fazenda chamada Altagracia, durante a noite a
incendiaram. 92 Ao anoitecer do dia seguinte, chegamos a Santiago. 93 A cidade inteira
saiu para nos receber, com grande demonstração de alegria ao ver-me, pois julgavam que
estivesse morto. O dia seguinte à minha chegada era sexta-feira das Dores. Fui à igreja da
Virgem das Dores para agradecer. Celebrei missa e distribuí comunhão a muitas pessoas;
também assisti à missa solene e ao sermão; depois fiz a celebração da bênção do Domingo
de Ramos e presidi todas as celebrações da Semana Santa e Páscoa.

587. Em conseqüência do atentado, meu rosto ficou muito desfigurado; a voz não muito
clara e a articulação comprometida. Nos primeiros meses depois do retorno a Santiago, não
podia pregar como de costume. Dedicava a práticas particulares o tempo que o
confessionário e demais ocupações do ministério me deixavam livre. Depois de alguns
meses, porém, já trabalhava como antes e, na Quaresma do ano seguinte, iniciei uma
missão na igreja de São Francisco, de Santiago. Já havia pregado alguns dias de missão
quando recebi um decreto real para regressar a Madri, pois havia falecido o arcebispo de
Toledo, que era confessor da rainha, e sua majestade me havia escolhido para substituí-lo.
94

588. No dia 18 de março recebi o Decreto Real e, no dia 20 95 do mesmo mês, saí de
Santiago para Havana, onde embarquei no navio-correio que ia para Cádiz. Todo o povo
veio se despedir no porto, manifestando tristeza e sentimento. Com a minha saída, os meus
companheiros de comunidade ficaram dispersos. Contudo, deixei o padre Dionísio
González, como meu representante, para que continuasse até receber nova ordem, e aos
padres Antônio Barjau e Galdácano que continuassem à frente do seminário até que
chegasse meu sucessor, a fim de que não ficasse no abandono.

589. Desde o dia em que cheguei a Havana até 12 de abril, dia da minha partida, preguei
diariamente e ouvi confissões de pessoas importantes da cidade. Dei a primeira comunhão à
filha do capitão-geral e à sua esposa, no mesmo ato. 96

590. Na viagem arrostamos grandes perigos que nos punham em risco a vida, porém o
Senhor nos salvou a todos. 97 Fizemos escala nas Ilhas Terceiras que são portuguesas e
fomos muito bem tratados.Contristou-nos a morte acidental de dois artilheiros, ao retribuir
as saudações recebidas, na cidade de Fayal. Desembarcamos todos e fizemos as exéquias.
98 Continuamos a viagem e, nos últimos dias de maio, chegamos a Cádiz. 99

Capítulo X
Breve biografia dos sacerdotes colaboradores

591. Padre João Nepomuceno Lobo: Conheci-o quando estive na Corte (Madri), de
passagem para as Ilhas Canárias. Gostei muito dele por seu saber e virtude. Quando fui
nomeado arcebispo, convidei-o para o cargo de provedor. Depois de ter-se encomendado a
Deus, aceitou o cargo de tesoureiro e decano. Era encarregado responsável pelo cabido,
cargo que cumpriu muito bem. Desempenhou igualmente a função de provedor e, na minha
ausência, substituía-me. É um sacerdote de muita virtude, saber e zelo, e me ajudou muito.
Pouco depois, renunciou a tudo que possuía e entrou para a Companhia de Jesus. 100
Substituiu-o o Pe. Dionísio González, pessoa de agradável convivência; tendo ele passado à
península por causa da saúde, nomeei-o vice-presidente do Escorial. 101

592. Padre Manuel Vilaró: Este sacerdote me acompanhava e me ajudava nas missões na
diocese de Tarragona. Ingressou na Congregação do Imaculado Coração de Maria. Quando
fui para Cuba, teve a bondade de acompanhar-me. Nomeei-o secretário; desempenhou
muito bem o seu cargo. Além de trabalhar na secretaria, pregava e confessava sempre.
Bastante culto, virtuoso e zeloso. Trabalhou muitíssimo. Adoecendo em Cuba, e não tendo
esperança de cura, foi enviado à península, morreu em Vic, sua terra natal. 102

593. Padre Manuel Subirana: Nascido em Manresa, meu colega; ordenamo-nos juntos,
ainda que com alguma diferença. Muito virtuoso, sábio e zeloso, primeiro na Catalunha,
depois em Cuba. Foi depois para a Guatemala e Honduras, onde se encontra atualmente e
faz maravilhas, sempre pregando de um povoado a outro como fazia na minha diocese. 103

594. Padre Francisco Coca: Nascido em Capellades, diocese de Barcelona. Conheci este
sacerdote quando fui pregar o mês de Maria em Villanueva, onde trabalhava como vigário
coadjutor. Ao saber de minha nomeação, ofereceu-se. Aceitei-o e veio comigo. Era um
sacerdote muito bom, simples como uma criança, muito zeloso e fervoroso. Sempre
acompanhava o padre. Manuel Subirana, pois entre ambos havia grande e boa simpatia. Os
dois eram muito zelosos e fervorosos e pregavam continuamente, passando de uma
povoação a outra, sem jamais descansar.Os dois possuíam vozes harmoniosas. Todos iam à
missão, mesmo que fosse só para ouvir seus cantos. O sermão, que vinha depois do canto,
pegava-os na armadilha. É inexplicável o fruto que produziram. Depois foi a Guatemala,
entrou na Companhia de Jesus e morreu jesuíta. 104

595. Padre Estêvão (de) Adoain: Capuchinho, este padre, logo que cheguei a Santiago,
procurou-me. Estava fugindo de Havana, por causadas perseguições, pelo muito que
pregava. Ficou em meu palácio e, com outro sacerdote, em dupla, iam às missões. O
primeiro que o acompanhou foi o padre Paládio Curríus, e o segundo, o padre Lourenço
San Martí. Era muito zeloso e prático em organizar missões e sabia, com arte, tirar os
amancebados da vida irregular. Seguiu depois para um convento de capuchinhos, na
Guatemala. 105

596. Padre Felipe Rovira: Logo que chegou a Cuba, destinei-o ao seminário como professor
de latinidade, uma vez que isso era o que fazia quando se juntou a mim, para irmos para a
América. Com a saída do padre Manuel Vilaró, nomeei-o secretário, acompanhando-me
sempre nas visitas e missões da diocese, até vir comigo para Madri. Foi depois para Porto
Rico, com o novo bispo, d. Benigno Carrión. Também era muito zeloso e trabalhava muito,
principalmente no combate aos concubinatos e outros escândalos. 106

597. Padre João Pladebella: Era um padre da diocese e Gerona; grande teólogo. Coloquei-o
no seminário para as aulas de teologia moral. Desempenhou muito bem o seu cargo. Era
muito virtuoso e aplicado. Morreu de febre amarela; os médicos só descobriram após a
morte dele, porque ficou amarelo, como aconteceu com os que morriam dessa doença. 107

598. Padre Paládio Curríus: Natural de Riudaura, diocese de Gerona. Sacerdote muito
piedoso e zeloso. No começo pregava missões com o padre Estêvão, capuchinho. Nas
missões ficou doente. Chegou ao palácio mais morto que vivo. Logo que se restabeleceu,
coloquei-o no seminário para que ensinasse teologia moral em lugar de Pladebella, que
havia falecido. Depois enviei-o a Porto Príncipe, a fim de dirigir a Casa de Beneficência,
em construção. Quando Felipe Rovira veio comigo à Europa, ele ficou como secretário em
Santiago. Depois de algum tempo chamei-o a Madri, onde me ajudou nas obras do hospital
e igreja de Montserrat. Finalmente, enviei-o ao Mosteiro do Escorial. 108

599. Padre Lourenço San Martí: Natural de Curríu, diocese de Solsona. Iniciou as missões
com o Pe. Antônio Barjau. Depois, coloquei-o em companhia do Pe. Estêvão Adoain e,
finalmente, enviei-o a Porto Príncipe como vigário forâneo, tarefa que desempenhou muito
bem. Foi sempre muito fervoroso e desprendido de tudo. Por fim, ingressou na Companhia
de Jesus. Atualmente se encontra em Fernando Pó. 109

600. Padre Antônio Barjau: Natural de Manresa, diocese de Vic; iniciou pregando missões
com o padre Lourenço San Martí. Como possui um dom especial para instruir e educar
crianças, coloquei-o como reitor do seminário. Desempenhou muito bem o seu cargo. Ficou
ali até a chegada do meu sucessor. Voltou, então, e nomeei-o reitor do Colégio do Real
Mosteiro do Escorial. É um sacerdote muito desprendido das coisas terrenas e muito zeloso
pela glória de Deus e da salvação das almas. 110

601. Padre Antônio de Galdácano: Capuchinho, dos países bascos. Juntou-se a mim após
dois anos de minha estada em Cuba. Exclaustrado pela revolução, foi para os Estados
Unidos. Esteve depois em Porto Rico como pároco. Como ali não se deu muito bem, veio
para Cuba, onde se adaptou melhor. É um religioso muito instruído e muito zeloso.
Acompanhou-me algumas vezes nas missões, ajudando-me nas confissões. Nomeei-o
depois catedrático no seminário. Logo que chegou meu sucessor, veio (à Espanha) e
destinei-o para o cargo professor de teologia no seminário do Escorial. 111

602. Telésforo Hernández: Jovem trazido pelo padre João Lobo. Destinei-o a trabalhar na
secretaria como escrevente. Morreu de febre amarela. 112

603. Gregório Bonet: Foi cozinheiro, porém não se deu bem com o clima.Como fora
soldado e ferido, com o calor, os ferimentos pioraram e teve de voltar para Majorca, de
onde era natural. 113

604. Felipe Vila: Jovem, natural da cidade de Vic. Levei-o como meu criado. Cuidava
muito bem dos doentes e dos pobres, a quem dava esmola e ensinava a doutrina cristã e os
exortava à virtude. Fazia reflexões tão belas, oportunas e enérgicas que os párocos do país,
ouvindo-o, ficavam admirados. Diziam-lhe que melhor seria que estudasse para padre e não
fosse simples criado. Ele lhes deu ouvido e quis estudar.Eu, porém, dizia-lhe que não
fizesse isso, pois Deus não o tinha destinado ao sacerdócio, embora tivesse ótimos
costumes. Apesar disso, quis estudar. Pouco tempo depois, porém, acometido de angina,
voltou à Europa e morreu. 114

605. Ignácio Betríu: Jovem, natural de Arreu, diocese de Seo. Foi o mais perseverante. De
bons costumes, muito amigo dos pobres e bastante zeloso. Ensinava catecismo aos pobres
e, nas missões, catequizava as outras pessoas, a quem distribuía livros, medalhas, santinhos
e terços mandados por mim. Veio comigo da América e atualmente ainda está comigo. 115

606. Estes são os colaboradores que me acompanharam nos trabalhos apostólicos naquela
diocese, tão cheia de ervas daninhas e espinhos.Devo agradecer muitíssimo a Deus por ter
colocado ao meu lado companheiros tão bons. Todos tiveram exímia conduta. Jamais me
causaram desgosto. Ao contrário, todos me serviam de grande consolo e alívio. Todos
tinham bom caráter e eram de virtude muito sólida.Desprendidos de tudo o que era terreno,
não falavam nem pensavam em interesses nem distinções honrosas. Seu único desejo era a
maior glória de Deus e salvação de todos.

607. De todos eles eu tinha muito a aprender; davam-me exemplos de todas as virtudes,
particularmente de humildade, obediência, fervor e desejo de estar sempre trabalhando.
Nunca se percebeu em nenhum deles displicência na hora de serem enviados. Todos
estavam sempre dispostos a trabalhar; com prazer se ocupavam nas tarefas às quais eram
enviados, seja nas missões, que era o mais comum, ou cuidar de alguma paróquia ou
vigararia forânea, para eles era indiferente. Jamais pediram ou recusaram qualquer tipo de
ocupação.

608. Nossa casa era motivo de admiração por parte dos hóspedes que a visitavam. Digo isto
porque dei ordens a todos os sacerdotes que viessem à cidade, que se hospedassem na
minha residência pelo tempo que desejassem, estando eu presente ou não. 116 Houve um
cônego da Ilha de Santo Domingo, chamado Gaspar Hernández que, tendo que abandonar
seu destino por causa da revolução, veio a Cuba e permaneceu três anos em minha
residência, comendo conosco. Vinham eclesiásticos dos Estados Unidos e de outros pontos
e todos encontravam lugar em minha casa e à minha mesa. Parece que Deus os trazia para
que vissem aquele espetáculo tão encantador. Notavam que nossa casa era como que uma
colméia: alguns saíam e outros entravam, segundo as tarefas que lhes eram atribuídas, e
todos sempre contentes e alegres. Assim, os hóspedes ficavam admirados com o que viam e
louvavam a Deus.

609. Às vezes eu ficava imaginando como era possível que reinasse tanta paz, tanta alegria,
tão bela harmonia entre tantas pessoas e por tanto tempo. Eu não podia dar outra explicação
senão dizer: Digitus Dei est hic (o dedo de Deus está aqui). 117 Esta é uma graça singular
que Deus nos dispensa por sua infinita bondade e misericórdia.Reconhecia que o Senhor
abençoava os meios que de nossa parte colocávamos para obter esta graça especialíssima.
Os meios utilizados eram os seguintes:

610. Primeiro meio: Diariamente nos levantássemos a uma hora fixa e determinada, e, em
comunidade, sem faltar ninguém, tínhamos meia hora de oração mental. As refeições eram
em comum e havia sempre leitura durante a refeição, a qual era feita por turno. Depois do
almoço e jantar, todos juntos tínhamos um tempo de recreação, assim todos nos víamos,
conversávamos igualmente, e encerrávamos as atividades do dia com o santo rosário e
demais devoções. 118

611. Segundo meio: Anualmente, em determinada época, nos reuníamos na residência


episcopal e fazíamos dez dias de exercícios espirituais sem interrupção, observando
absoluto silêncio, sem admitir visitas, nem cartas, nem outros assuntos. Por turno, cada dia
um servia à mesa, outro lia, começando por mim. Durante os dias de retiro, por vontade
deles, era eu que pregava. No último ato dos exercícios, eu beijava os pés de todos eles;
depois me pediam permissão para beijar os meus e dos demais. Este gesto expressava
ternura, muito imponente e de ótimos resultados.

612. Terceiro meio: Ninguém nutria amizades particulares. Todos nos amávamos
igualmente uns aos outros. Ninguém tinha amizade fora de casa. Na residência, tínhamos de
tudo. Sendo assim, não fazíamos visitas, nem éramos visitados pelos de fora. A experiência
nos mostrava a utilidade deste meio necessário para conservar a paz, evitar desgostos,
ciúmes, invejas, suspeitas e murmurações e outros males maiores.

613. Quarto meio: Proibi-lhes, com toda a força da minha autoridade, e lhes pedi com toda
a amabilidade e carinho que lhes dedicava, que jamais lessem cartas anônimas. Estes são os
meios dos quais nos valíamos. O Senhor dignou-se abençoá-los e foram para nós muito
bons.Sempre e por tudo seja o Senhor louvado.

Capítulo XI
O desconforto de estar em Madri 119

614. Chegamos a Madri nos primeiros dias de junho de 1857. 120 Apresentei-me a Sua
Majestade e, no dia cinco do mesmo mês, passou-me e entregou-me o Decreto Real,
nomeando-me seu confessor. 121 Poucos dias depois, encarregou-me da instrução religiosa
da infanta Isabel. Ela tinha então uns cinco anos. Ministrei-lhe sempre as lições. No dia
onze de abril de 1862, com dez anos de idade, fez sua primeira comunhão em companhia de
sua mãe, a rainha, tendo-se confessado sempre comigo a partir dos sete anos em diante. E
agora, além da instrução e preparação, participou de dez dias de exercícios espirituais. 122

615. A rainha, desde o primeiro ano em que fez os exercícios espirituais, repetia-os
anualmente com muito gosto; concluía-os contentíssima e exortava outras pessoas que
também os fizessem.Manifesta especial apreço pelo livro de exercícios de minha autoria;
pede exemplares, pois ela tem imenso prazer com ele presentear as pessoas e pede que ao
menos o leiam.

616. Todas as camareiras e as criadas da rainha possuem o Caminho reto e o livro de


exercícios. Quem gostou muito do Caminho reto foram suas majestades. Para ambos foram
feitas impressões de luxo pela casa Aguado, de Madri. 123 Cotidianamente suas
majestades, as camareiras e criadas comportam-se de modo edificante. Participam da santa
missa.Diariamente lêem a vida do respectivo santo, recitam o rosário e participam dos
santos sacramentos. A rainha e a infanta confessam-se comigo e confesso também muitas
criadas. Todas estão sempre ocupadas.

617. A rainha, além de suas devoções e atendimento dos assuntos do governo e de conceder
audiências a muitas pessoas durante o dia, ocupa-se também com trabalhos manuais, como
pintar alguma tela, bordar, etc. Nos bordados é que regularmente mais se ocupa. No ano
passado 124 fez uma almofada de tricô, muito bonita, com flores lindas, para meu
genuflexório. Às vezes ocupa-se também em fazer colchas de tricô.

618. A infanta Isabel está também sempre ocupada: além de suas devoções e leituras
espirituais diárias, passa muito tempo nas várias lições que lhe são pedidas. No tempo de
descanso, mais se distrai com passatempos masculinos que femininos; assim, nos cinco
anos que tenho contato freqüente com ela, nunca a vi com brinquedos femininos, mas
sempre com brinquedos próprios de meninos. O brinquedo que mais aprecia é um chapéu
em ponta e uma espada. Além de bordar e costurar muito bem, às vezes entretém-se na
confecção de rosários, com alicates e arames.

619. As amas dos quartos de sua majestade e das princesas estão sem preocupadas, tanto no
cumprimento de suas respectivas obrigações, quanto na leitura de algum bom livro, seja em
fazer tricô com as agulhas ou outras coisas.

620. Mesmo vendo que sua majestade porta-se muito bem na moralidade, na piedade e na
caridade, além de outras virtudes e, a seu exemplo, as demais pessoas do palácio, não me
conformo nem sossego em ter de permanecer em Madri. Percebo que não tenho
temperamento cortesão nem de nobre palaciano. O fato de ter que viver na corte e estar
continuamente no palácio é para mim um contínuo martírio.

621. Disse algumas vezes que Deus me deu este destino para que seja meu purgatório, para
pagar e purificar os pecados de minha vida passada. Outras vezes tenho dito que em minha
vida passada não padeci tanto como no tempo em que me encontro na corte. Sempre estou
suspirando por sair. Sou como um pássaro engaiolado que percorre todos os cantos da
gaiola, procurando por onde escapar. Assim sou eu, que ando de cá para lá, procurando
como sair. Quase me alegraria se estourasse uma revolução, para ser mandado embora.

622. Algumas vezes me pergunto: Que motivo tens para andar tão desgostoso? No palácio
todos te respeitam. Toda a família real te estima e te elogia. Sua majestade, a rainha, gosta
muitíssimo de ti e te quer até o extremo. Então, que motivos tens para andar tão violento?
Nenhum. Eu mesmo não saberia dizer o porquê. Só explico o enigma, dizendo que a
repugnância que sinto é uma graça que Deus me concede para que não me apegue às
grandezas, honras e riquezas do mundo. Estou claramente convencido de que o sentir
continuamente esta repugnância pelas coisas da corte e o desejo perene de fugir me
preservam da inveja e de colocar o coração nas coisas que o mundo aprecia.

623. Vejo que o Senhor fez em mim o que contemplo e se passa nos planetas. Neles
observo duas forças: a centrífuga e a centrípeta. A centrífuga que os força a escapar para
longe, e a centrípeta que os dirige para o centro. Equilibradas estas duas forças, mantém-se
em órbita. É assim que me contemplo. Sinto em mim uma força que chamarei de
centrífuga, a qual me obriga a sair de Madri e de sua corte. Mas sinto que há outra força,
que é a vontade de Deus, que quer no momento que permaneça na corte, mas da qual com o
tempo sairei. Esta vontade de Deus é para mim a força centrípeta que me detém amarrado
como um cão a um poste. 125 Misturadas estas duas forças, a saber, o desejo de sair e o
amor que tenho em cumprir a vontade de Deus, que no momento quer que eu esteja na
corte, estas duas forças assim combinadas, me fazem descrever o círculo que estou fazendo.

624. Nas orações de todos os dias tenho de fazer atos de resignação à vontade de Deus. Dia
e noite tenho de fazer atos de sacrifícios para permanecer em Madri. Porém, dou graças a
Deus por esta repugnância. Reconheço que é um grande bem para mim. Ai de mim se a
corte e o mundo me agradassem! Só isto me agrada: o ver que nada me agrada. Bendito
sejais, meu Deus e Pai, que cuidais tanto de mim! Estou convencido, Senhor, de que, assim
formastes a água salobra e amarga do mar para que se conserve pura, o mesmo concedestes
a mim, o sal do desgosto e da amargura entediante da corte, para que me conserve limpo do
mundo.Graças, muitas graças vou dou, Senhor!

Capítulo XII
Disponibilidade missionária e indiferença diante da política

625. Como sua majestade me estima e me ama muito, sei que seria de seu agrado que lhe
pedisse favores. No entanto, até o momento não lhe fiz nenhum pedido, nem desejo fazê-lo
no futuro. 126 Porém, que estou dizendo? Não me expresso bem. Sim, pedi um favor,
muitas vezes com muita insistência: a permissão para retirar-me de Madri e da corte. Este é
o único favor, que até agora não me foi concedido. O pior de tudo é que, mesmo que tenha
alguma esperança, por enquanto não posso conseguir o que desejo.

626. Aqueles que têm sede e fome, não de justiça por seus méritos, mas sim, de empregos,
cargos e dignidades, assediam minha casa todos os dias e me incomodam com suas
insistências e pretensões. Digo-lhes que sinto profundamente em minha alma não poder
atendê-los, porque fiz um propósito de não me meter nisto. Mesmo depois de estar cinco
anos aqui em Madri e ter observado a mesma conduta, ainda não se desenganaram, pois a
cada dia a cena se repete. A maioria das pessoas que me procura na hora da audiência
diária, das onze às doze horas, é para pedir empregos, favores e dignidades. Isto sem falar
das inúmeras cartas que recebo todos os dias, com o mesmo pedido. Coitado de mim se me
tivesse metido nesse enredo.

627. Por outro lado, vejo que os que tanto insistem, procuram ou solicitam empregos,
favores e dignidades, sem falar nos presentes e outros meios, são os mais indignos de tais
empregos. Deus me livre de cooperar com um mal tão grande que daí resulta: cargos mal
desempenhados, o mérito e a virtude desatendidos, a ignorância, o pedantismo, o vício e a
imoralidade seriam introduzidos através do favor. Sim, digo-o, e o digo bem alto e quisera
que todos me ouvissem e assim me deixassem em paz. Não me ocupo com isto.

628. Mesmo tendo agido com toda a precaução nesse campo, nem por isso escapei das más
línguas: uns por despeito, porque não quis ser instrumento de suas injustas pretensões, e
outros por inveja; uns pelo temor de perder os bens, outros, por malícia e, não poucos, por
ignorância, só pelo que ouviram dizer. Falaram de mim todas as vilezas que se possa
imaginar, levantaram contra mim as mais sórdidas calúnias. Eu me calei, sofri e alegrei-me
no Senhor, por me ter presenteado com um pouco do cálice amargo de sua Paixão.
Recomendei a Deus os caluniadores depois de tê-los perdoado e amado de todo o meu
coração.

629. Em matéria de política jamais quis meter-me, nem quando era simples sacerdote,
tampouco agora, apesar de ter sido várias vezes provocado. 127 Certa pessoa influente, um
dia disse-me que deveria falar à rainha a favor deste ou daquele. Respondi-lhe, então:
Saiba, senhor, que considero a Espanha atual como uma mesa de jogo. Os jogadores são os
dois partidos. 128 Como seria repreensível que um mero espectador fizesse a menor
insinuação a favor de alguém; assim também eu, que sou mero espectador, seria merecedor
de censura, se fizesse alguma indicação a sua majestade a favor deste ou daquele partido.
No final das contas, todos os partidos não passam de jogadores que querem ganhar o jogo e
ter o orgulho de mandar nos demais ou o benefício de maiores vencimentos. De modo que a
mola da política e dos partidos nada mais é do que a ambição, o orgulho e a cobiça. 129

630. Por insistência de sua majestade, minha ocupação maior era a nomeação de bispos.
Direi, pois, como isto acontecia. O ministro de graça de justiça pede, de vez em quando,
aos bispos e a cada um em particular, se sua diocese há algum sacerdote que reúna as
qualidades para ser bispo quando conviesse, e o bispo responde afirmativa ou
negativamente. Se considera que há algum, dá as informações que pode:idade, carreira,
virtude, desempenho do ministério e demais qualidades... O ministro recolhe e guarda essas
notícias e quando alguma diocese fica vacante, reúnem-se esses currículos e são
apresentados a sua majestade. Ela faz a leitura e escuta a inspiração interior e pede a Deus o
discernimento para saber a quem deve escolher. Depois de se formar uma terna, passa-se a
informação aos interessados, são encomendados a Deus e se pede que também se
encomendem. Finalmente, é realizada a escolha, sem considerar outra coisa que a maior
glória de Deus e o bem da Igreja. Posso assegurar que, se alguma vez algum sacerdote
insinuou o desejo de ser eleito, o mesmo gesto foi mais que suficiente para que jamais
tenha sido nomeado bispo. E eu dizia a mim mesmo certa vez: Quando alguém pede ou
procura ser bispo, por si só esse desejo o desqualifica. Talvez em nenhuma coisa na
Espanha se proceda com mais eqüidade e justiça do que nas nomeações de bispos, e
tampouco em nenhuma se age com mais acerto. 130

631. Quanto aos canonicatos, já não se procede com tanto cuidado. Não direi que sua
majestade ou o ministro façam simonias. Mas só Deus sabe se os pretendentes que rodeiam
sua majestade e o ministro não farão alguns pactos, presentes, etc., etc., que não são bem-
vistos por Deus.Por isso jamais quis meter-me nesse setor de pretensões para o canonicato.
Oxalá todos os sacerdotes procurassem ser os últimos entre seus companheiros, como
ensinava o divino Mestre! O melhor canonicato é amar muito a Deus e salvar almas, a fim
de obter um lugar de distinção na glória do céu. Certamente mais validade terá a vida de um
sacerdote ter sido missionário que cônego. Que escolha agora, pois, o que iria escolher na
hora da morte. 131

Capítulo XIII
Desprendimento total 132

632. Há um provérbio popular que diz uma grande verdade: “Abana o rabo o cão, não para
ti, e sim para o pão”. Vejo todos os dias homens e mulheres que fazem mil festas,
bajulações e outras coisas para os reis, só que não para os reis, e sim, para receberem
favores… pois eu não quero nem pretendo nada. Só pretendo sair da corte. Se alguém
disser: – Tens as duas grandes cruzes. – É verdade, mas como as tenho? A grã-cruz de
Isabel a católica, não a pedi, nem a queria quando ma ofereceram. Disseram-me que, pelo
fato de ir a Cuba, seria uma necessidade possuir um título e a designação de excelência, por
ser a primeira dignidade da Igreja, e porque tinha de manter relações amistosas com o
general daquela Ilha. 133

633. A outra de Carlos III não a pedi, nem a desejei. Foi com pesar que a recebi, e desta
maneira: Após o nascimento do príncipe de Astúrias, no mesmo dia em que suas
majestades iam a Atocha, chamaram-me ao palácio. Logo que cheguei, saíram a rainha e o
rei do aposento onde me esperavam e, sem dizer nada, os dois juntos,impuseram-me a cruz
com faixa. 134 Eu não disse nenhuma palavra, porque os dois estavam juntos, e como
naquela época o rei 135 não me inspirava a confiança de agora, pois também me estima
muito, calei-me. Interiormente, porém, experimentei muita aflição. Outro dia em que me
encontrei só com a rainha, disse-lhe que não podia deixar de agradecera distinção com que
me haviam condecorado, com a cruz de Carlos III, mas que para mim fora motivo de
grande aflição e pesar. E, como prova dessa aflição, por muito tempo não usava nenhuma,
só depois de muito tempo comecei a usá-las e, mesmo agora, somente as uso em dias que
exigem uniforme a rigor e grande etiqueta.

634. Além disso, nada mais tenho. Não há prelado na Espanha que não tenha algum
peitoral, ou cálice, ou outros objetos de sua majestade, seja por razão de um batizado, ou
visita à sua catedral, etc., etc.Eu, porém, não tenho nem quero ter nada. Quando batizei a
infanta Conceição, deveriam presentear-me com alguma coisa, como é costume.Porém pedi
com insistência que não me dessem nada, e para não me contrariar, não me deram nada.
136 Minha satisfação consistirá, ao me retirar do palácio, em poder dizer que nada tenho de
sua majestade, sequer um alfinete.

635. Existem pessoas que, ao lado de suas majestades, procuram graduações, honrarias,
maiores ordenados. No entanto eu, como já disse, nada lucrei, ao contrário, perdi. Sua
majestade insistiu para que eu assumisse o cargo de protetor de Montserrat, da igreja e
hospital. Eu resisti. O intendente, muitas vezes, me pediu e insistiu.Finalmente, aceitei
porque constatei que as casas já haviam sido postas à venda através de publicação no
Boletim Oficial. Então, para salvá-las da desamortização, acabei aceitando. Porém, com
que lucro? Desembolsando do meu próprio bolso cinco mil duros para consertar a igreja e o
estabelecimento. 137

636. O mesmo digo do real mosteiro do Escorial, que não me deu e nem me dá lucro
nenhum a não ser desgosto e aflição, acarretando-me perseguições, calúnias e gastos. Por
três vezes desejei renunciar à presidência, em nenhuma foi possível. 138 Seja tudo por
Deus, já que o Senhor quer que eu carregue esta cruz, só me resta conformar-me com a
vontade do Senhor. Ó meu Deus! Nada quero deste mundo. Só quero vossa divina graça,
vosso santo amor e a glória do céu.

Capítulo XIV
Ocupações ordinárias e extraordinárias

637. Todos os dias de inverno comumente costumo despertar-me às três horas, e às vezes
antes, porque me levanto logo quando não consigo dormir, pois nunca permaneço acordado
na cama. 139 Logo inicio a recitação do Ofício divino. Rezo Matinas e Laudes, o
santíssimo triságio. Em seguida, leio a Sagrada Escritura. Preparo-me para a santa missa,
celebro-a e permaneço em ação de graças. 140 Depois vou ao confessionário até as onze
horas; inicio as audiências, atendendo aos que desejam falar comigo. A hora mais pesada é
a das onze às doze, porque vêm os pedidos pretensiosos que não posso atender, como
solicitações para empregos, promoções e coisas semelhantes. Das doze às doze e quinze
faço o exame particular. Às doze e quinze, nos dirigimos ao almoço. Depois rezo Vésperas
e Completas. De tarde e à noite me ocupo visitando doentes, presos e outros
estabelecimentos caritativos. Prego às religiosas contemplativas e a outras irmãs. Ocupo-me
em estudar e escrever opúsculos e folhetos.

638. Além das ocupações ordinárias de cada dia, surgem também as extraordinárias:
exercícios ao clero, a homens e mulheres das Conferências de São Vicente de Paulo, às
irmãs contemplativas e ativas, além de pregar missões ao povo. 141 Estas ocupações não
me esgotam. Todo o meu desejo seria missionar pelos lugares e aldeias.Este é meu sonho
dourado. Tenho uma santa emulação e quase inveja dos missionários que têm a ditosa sorte
de poder ir de uma povoação a outra, pregando o santo Evangelho. 142

639. Em meio às minhas aflições, tenho algum consolo. Quando com suas majestades e
altezas saímos, então tenho oportunidade de pregar ao povo na parte da manhã antes que
suas majestades saiam de casa. 143 Depois prego nos conventos, às irmãs contemplativas e
ativas, aos sacerdotes, aos estudantes, a homens e mulheres das conferências, etc., etc.
Deste modo, passo o dia todo pregando, com exceção do tempo estrito em que devo estar
no palácio com a família real.

640. Uma das maiores ocupações minhas desde que estou em Madri é escrever e imprimir
livros, folhetos; comprar estes e outros livros e fazê-los circular por meio da Academia de
São Miguel: no confessionário, nas ruas, nas escolas e demais estabelecimentos. 144

641. Ó Deus, quem me dera que ninguém o ofendesse! Antes, que todas as criaturas o
conhecessem, o amassem e o servissem! Esse é o meu único desejo. O restante não tem
importância! Ó Sumo Bem, como sois bom! Eu vos amo com todo o afeto do meu coração.

Capítulo XV
Regra de vida e propósitos 145

642. 1. Jesus e Maria são todo o meu amparo e guia, e os modelos que me proponho seguir
e imitar. Além disso, tenho como protetores e exemplos os gloriosos São Francisco de
Sales, São Carlos Borromeu, Santo Tomás de Villanueva e São Martinho.

643. 2. Lembrarei das palavras do Apóstolo escrevendo a Timóteo: Attende tibi et


doctrinae, olha por ti e pela instrução dos outros.Sobre o que diz Cornélio: Haec duo munia
sunt episcopi... qui aliterfaciunt... nec sibi nec aliis prosunt. 146

644. 3. Todo ano farei os santos exercícios espirituais. 4. Todo mês farei um dia de retiro
espiritual. 5. Toda semana, pelo menos uma vez, me confessarei. 6. Três dias por semana
tomarei disciplina e nos demais dias me porei o cilício ou outra coisa equivalente. 7.
Jejuarei toda sexta-feira do ano e na vigília das festas do Senhor e da santíssima virgem.

645. 8. Levantarei diariamente às três horas, ou antes, se não conseguir dormir; irei dormir
às vinte e duas horas. Assim que me levante, rezarei Matinas, Laudes e lerei a santa Bíblia
até a hora da meditação. 9. Farei uma hora de meditação. 10. Celebrarei a santa missa e
empregarei meia hora para ação de graças e para pedir graças para mim e para os outros.

646. 11. Em seguida me dirigirei ao confessionário até as oito horas.Nessa hora tomarei
café da manhã e, em seguida, voltarei ao confessionário. Se não houver penitentes, ocuparei
o tempo com outra coisa até as onze, quando iniciarei a audiência pelo espaço de uma hora.
Às doze horas rezarei Ângelus e farei o exame (de consciência). 12. Às doze e quinze,
almoçarei, ouvindo uma leitura espiritual. 13. Descanso até as treze e trinta. 14. Trabalharei
até às oito e meia, quando rezarei o rosário e outras devoções. 15. Às nove horas janto e, às
dez, descanso.

647. 16. Proponho jamais perder um instante de tempo. Por isso estarei sempre ocupado,
estudando, rezando, pregando ou ministrando os sacramentos, etc.

648. 17. Proponho-me estar sempre na presença de Deus e dirigir a ele todas as coisas, não
buscando jamais elogios, e sim, unicamente a maior glória de Deus, à imitação de Jesus, a
quem procurarei sempre imitar, pensando como ele se portaria em tais ocasiões.
649. 18. Proponho executar bem, e do modo que me parecer melhor, as coisas comuns.
Diante de duas alternativas, procurarei escolher sempre a melhor, mesmo que custe
sacrifício à vontade própria, e particularmente escolherei o que for mais pobre, humilde e
doloroso.

650. 19. Proponho conservar sempre um mesmo humor equilibrado, sem jamais me deixar
dominar pela ira, impaciência, tristeza, nem por demasiada alegria, lembrando-me sempre
de Jesus, de Maria e de José, que também tiveram suas aflições, e maiores que as minhas.
Pensarei que Deus assim o dispôs para o meu bem. Por isso mesmo, não me queixarei, mas
direi: Faça-se a vontade de Deus. Lembrarei do que diz santo Agostinho: Aut facies quod
Deus vult, aut patieris quod tu nonvis (ou fazes o que Deus quer ou padecerás o que tu não
queres). 147 Também recordarei o que Deus recomendou a santa Maria Madalena de Pazzi:
Que sempre mantivesse o mesmo humor inalterável, uma grande bondade no trato com
qualquer tipo de pessoa e que jamais pronunciasse uma palavra de lisonja. 148 Lê-se que
são Martinho nunca foi visto irritado, nem triste, nem dando risadas, e sim, sempre com a
mesma disposição, com celestial alegria. Tamanha era sua paciência que, mesmo sendo
bispo, se algum clérigo o ofendesse, podia ter a certeza de que não seria castigado. 149

Textos escolhidos

651. A perfeição consiste em amar muito a Deus e em desprezar-se a si mesmo (santa


Maria Madalena de Pazzi). 150 Spernere se, spernere nullum, spernere mundum, et
spernere sperni (desprezar-se a si mesmo, não desprezar a ninguém, desprezar o mundo e
desprezar o ser desprezado) (san Luis Bertrán). 151 Faze o que deves e aconteça o que
acontecer. Há grande valor sofrer sem murmurar, e grande sabedoria em ouvir com
paciência. In silentio et spe erit fortitudo vestra (no silêncio e na esperança estará vossa
fortaleza). 152

652. O homem forte não deve temer coisa alguma, nem a própria morte, quando se trata de
cumprir o seu dever. Devemos manter o lugar ou profissão que Deus nos designou, lutando
até morrer, sem temer as conseqüências. A única coisa que devemos temer é agir
injustamente.

653. Se quereis atingir alto grau de virtude, não vos enalteçais sobremodo a vós mesmos.
Crede que nada fazeis e que tudo fareis (são João Crisóstomo). Abstine et sustine. Abstine:
Abstém-te da gula, comodismo e de todo prazer, ainda que lícito. Sustine = Suporta o
trabalho, a enfermidade, as perseguições e calúnias. 153 Spiritus Sanctus docet: Pauca
loqui cum discretione; multa operari cum fervore, ac jugiter laudare Deum (o Espírito
Santo ensina: falar pouco e com devoção, fazer muito e com fervor, e louvar a Deus
continuamente). 154
Capítulo XVI
Algumas devoções particulares

654. Ladainhas 155


Santa Maria, são José, são Joaquim, sant’Ana, santo Antônio, santos Serafim, santos
Querubins, santos Tronos, santas Dominações, santas Virtudes, santas Potestades, santos
Principados, santos Arcanjos, santos Anjos, santos Patriarcas e Profetas, são João Batista,
são Pedro, são Paulo, são Tiago, são João; todos os santos apóstolos e evangelistas, são
Francisco de Sales, são Carlos Borromeu, santo Tomás de Vilanova, santo Antonino, são
João Crisóstomo, santo Ambrósio, santo Agostinho, santo Aloísio, são Gregório, santo
Atanásio, são Jerônimo, são Paulino, são Martinho, são Juliano, são Lourenço Justiniano,
santo Ildefonso, santo Afonso de Ligório, são Bernardo Calvó, 156 são Bernardo doutor,
são Francisco Xavier, são Francisco de Assis, são Francisco de Borja, são Francisco de
Paulo, santo Tomás Doutor, são Domingos, santo Estêvão, são Lourenço, são Vicente, são
Sebastião Mártir, são Sebastião Balfré, 157 são Filipe Néri, santo Inácio Mártir, santo
Inácio, são Luís, santa Teresa, santa Catarina Mártir, santa Catarina Virgem, santa Maria
Madalena, santa Maria Madalena de Pazzi, santa Eulália, santa Tecla, santa Inês, santa
Filomena; todos os santos e santas de Deus.

Petitiones pro me (Preces por mim.) 158

655. Credo, Domine, sed credam firmius. Spero, Domine, sed speram securius. Amo,
Domine, sed amem ardentius. Doleo, domine, sed doleam vehementius (Creio, Senhor,
porém que eu creia com mais firmeza. Espero, porém que espere com mais segurança.
Amo, Senhor, porém que eu ame com mais ardor. Arrependo-me, Senhor, porém que me
arrependa com mais veemência).

656. O, Domine, quia ego servus tuus, et filius ancilae tuae. Ecce servus tuus, fiat mihi
secundum voluntatem tuam. Doce me facere voluntatem tuam, quia Deus meus es tu. Dabis
ergo servo tuo cor docile, ut populum judicare possit et discernere inter bonum et malum
(Ó Senhor, eu sou teu servo, filho de tua serva. Eis aqui teu servo, faça-se em mim segundo
a tua vontade. Senhor, que queres que eu faça? Ensina-me a fazer tua vontade, pois tu és
meu o Deus. Concede, pois,ao teu servo um coração dócil, capaz de fazer justiça ao teu
povo e discernir entre o bem e o mal).

657. Pater, da mihi humilitatem, mansuetudinem, castitatem, patientiam et charitatem.


Pater, bonitatem, et disciplinam et scientiam doce me. Pater, da mihi amorem tuum cum
gratia tua et dives sum satis. Deus meus, Jesus meus et omnia (Ó Pai, dá-me humildade,
mansidão, castidade, paciência e caridade. Ó Pai, ensina-me a bondade, a disciplina e a
ciência. Ó Pai, dá-me teu amor com tua graça e já serei bastante rico. Meu Deus, meu Jesus,
meu tudo).

658. In cruce vivo, et in cruce cupio mori; et non a meis manibus, sed ab alienis spero
descendere a cruce, postquam consummatum fuerit sacrificium. Absit mihi gloriari nisi in
cruce Domini mei Jesu christi, per quem mihi mundus crucifixus est et ego mundo (Vivo na
cruz e na cruz quero morrer; espero descer da cruz, não por minhas mãos, mas por mãos
alheias, depois de ter consumado o meu sacrifício. Livra-me Deus de gloriar-me a não ser
na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está morto e crucificado para
mim, como eu o estou para o mundo).

Petitiones pro populo: Pedidos em favor do povo 159

659. Pater, respice in faciem Christi tui. Pater, respice in faciem Ancillae tuae. Pater,
respice in me, et miserere mei quia unicus et pauper sum ego. Respice in me et miserere
mei, da imperium tuum puero tuo, et salvum fac filium ancillae tuae (Salmo 85). O Domine,
quia ego servus tuus, ego servus tuus et filius ancillae tuae. Parce Domine, parce populo
tuo, per humilitatem, et patientiam Jesus Christus Deus noster et Beatae Virginis Mariae
(Ó Pai, volta a olhar a face de teu Cristo. Ó Pai, volta a olhar a face de tua Serva. Olha para
mim e tem misericórdia de mim, concede a teu servo a tua força, eu que sou teu servo e
filho de tua serva. Senhor, eu sou teu servo; teu servo e filho de tua serva. Perdoa, Senhor,
perdoa teu povo, pela humildade e a paciência de Jesus Cristo nosso Senhor e da bem-
aventurada virgem Maria).

660. Parce Domine, parce populo tuo per amorem et merita Jesus Christus Deus noster et
Beatae Virginis Mariae. Parce, Domine, Jesu fili David, miserere nostri (Perdoa, Senhor,
perdoa teu povo pelo amor e pelos méritos de Jesus Cristo nosso Deus e da bem-aventurada
virgem Maria. Perdoa, Senhor, Jesus filho de Davi, tem compaixão de nós).

661. Te ergo quaesemus tuis famulis subveni, quos pretioso sanguine redemisti. Salvum fac
populum tuum, Domine, et benedic hereditati tuae. Et rege eos, et extolle illos usque in
aetermum. Dignare, Domine, die isto sine peccato nos custodire. Miserere nostri, Domine,
miserere nostri. Fiat misericordia tua, Domine, super nos quemadmodum speravimus in te.
In te, Domine, speravi, non confundar in aeternum (Nós te rogamos, pois, que te lembres
de teus servos, aos quais remiste com teu precioso Sangue. Salva teu povo, Senhor, e
bendize atua herança. Governa-os e exalta-os para sempre. Digna-te, Senhor, guardar-nos
neste dia sem pecado. Tem misericórdia de nós, pois em ti depositamos nossa esperança.
Em ti, Senhor, esperei, nunca serei decepcionado.

662. Ah! meu Deus! Não quisera eu que dissésseis de mim o que dissestes dos sacerdotes
de Israel: Não fizestes frente, não vos colocastes como muro com vossas orações a favor da
casa de Israel para sustentar a luta no dia do Senhor (cf. Ez 13,5). Vós dizeis, meu Deus:
Busquei entre eles um homem justo que se interpusesse entre mim e o povo como um vale,
e que permanecesse no muro diante de mim, com suas orações, a favor da terra, a fim de
prevenir sua destruição, mas não encontrei nenhum (Ez 22,30).

663. Eu nada sou, Senhor, contudo, como Moisés, quero suplicar. Dimite, obsecro,
peccatum populi hujus, secundum multitudinem misericordiae tuae (perdoa, te suplico, o
pecado deste povo segundo a grandeza de tua misericórdia). 160 Peço-vos, ó Pai, pelos
méritos de Jesus Cristo, Filho vosso e redentor nosso, e pelos méritos de Maria santíssima,
mãe de vosso santíssimo filho e mãe nossa. Sim, eu que sou o primeiro e o maior dos
pecadores, peço-vos em nome de todos os que vós quereis que vos peça e sabeis que temos
necessidade.
Capítulo XVII
Exemplos de animais domésticos e a prática das virtudes 161

O galo

664. O Espírito Santo me diz: Preguiçoso, aprende da formiga a prudência. 162 Eu


aprenderei, não somente da formiga, mas também do galo, do burro e do cachorro. Quis
dedit gallo intelligentiam? (Quem deu inteligência ao galo? [Jó 38,36]). 163 Gallus
cantavit (O galo cantou [Mc 14,68]). 164
1º. O galo me chama, e eu, como Pedro, devo lembrar meus pecados para chorá-los.
2º. O galo canta em diversas horas do dia e da noite. Eu devo louvara Deus em todas as
horas do dia e da noite. Devo também exortar a todos para que façam o mesmo.
3º. O galo vigia sua família dia e noite. Eu devo cuidar noite e dia das almas que o Senhor
me confiou.
4º. O galo, ao menor ruído ou ameaça de perigo, dá alarme. Eu devo fazer o mesmo: exortar
as almas ao menor perigo de pecar.

665. 5º. O galo defende seu terreiro quando o gavião ou outro animal ou ave de rapina vem
para atacar. Eu devo defender as almas que o Senhor me confiou, contra os gaviões dos
vícios, erros e pecados. 6º. O galo é muito generoso quando, apenas encontre algo que sirva
de alimento, priva-se dele e chama as galinhas para que comam. Eu devo abster-me de
comodidades e conveniências e ser mais caridoso e generoso com os pobres e necessitados.
7º. O galo, antes de cantar, bate as asas. Eu, antes da pregação, devo agitar e bater as asas
do estudo e da oração. 8º. O galo é muito fecundo. Eu devo sê-lo espiritualmente, a tal
ponto que possa dizer com o Apóstolo: Per evangelium ego vos genui (Eu vos gerei em
Cristo Jesus pelo Evangelho). 165

O burrinho

666. Ut jumentum factus sum apud te, et ego semper tecum (como burro estou diante de ti;
e eu estive sempre contigo). 166 1. O burro é o animal mais humilde por natureza. Seu
próprio nome denota desprezo. Sua habitação é o lugar mais humilde: debaixo da casa. Sua
comida é pobre e pobres são todos os seus arreios. Também eu devo ser pobre na moradia,
na roupa e na comida, a fim de procurar humilhações e até mesmo o desprezo dos homens,
para alcançar a virtude da humildade, uma vez que pela natureza corrompida, sou soberbo e
orgulhoso.

667. 2. O burro é um animal muito paciente; carrega pessoas e carga, sofre pancadas sem
queixar-se. Também eu devo ser paciente no cumprimento de minhas obrigações, sofrer
com resignação e mansidão as aflições, trabalhos, perseguições e calúnias.

668. 3. A santíssima virgem Maria valeu-se do burrinho quando foi para Belém dar à luz
seu filho Jesus e ao fugir para o Egito na perseguição de Herodes. Eu também me ofereço a
Maria santíssima para praticar comprazer e alegria a devoção para com ela e pregar suas
excelências em suas alegrias e dores. Meditarei dia e noite sobre estes santos e adoráveis
mistérios.
669. 4. Jesus montou num burrinho ao entrar triunfalmente em Jerusalém. Também eu me
ofereço alegremente a Jesus a fim de que se valha de mim para entrar nas almas convertidas
e nos povoados, triunfando dos inimigos: mundo, demônio e carne. Que fique bem claro: as
honras e os louvores que me forem tributados não serão para mim, que sou o burrinho, mas
para Jesus, cuja dignidade levo, ainda que indigno. 167

O cachorro

670. Canes muti qui non valuerunt latrare (cachorros mudos, que não podem latir). 168 1.
É um animal tão fiel e tão constante companheiro de seu dono, que nem a miséria, nem a
pobreza, nem os trabalhos nem coisa alguma é capaz de separá-lo de seu dono. O mesmo
devo fazer eu. Hei de ser tão fiel, tão constante no serviço e amor a Deus, que possa dizer
com o apóstolo Paulo: Nem a morte, nem a vida, nem outra coisa qualquer poderá separar-
me dele (Rm 8,37-39).

671. 2. O cachorro é mais leal que um filho, mais obediente que um criado, mais dócil que
uma criança. Não só faz voluntariamente o que seu dono manda, mas olha a fisionomia do
seu senhor para conhecer a sua intenção e vontade, a fim de cumpri-las sem esperar que o
mande, e o faz com a maior prontidão e alegria e ainda se faz participante dos afetos do
dono. De tal maneira que é amigo dos amigos do amo e inimigo dos seus inimigos. Devo
praticar todas estas belas qualidades no serviço de Deus, meu querido Senhor. Sim, com
satisfação farei tudo o que ele me mandar. Procurarei descobrir sua vontade para cumpri-la,
sem esperar que me mande. Cumprirei, com prontidão e alegria, tudo o que ele dispuser por
seus representantes que são os meus superiores. Serei amigo dos amigos de Deus e tratarei
os inimigos de Deus como ele me indicar, ladrando contra suas maldades para que desistam
delas.

672. 3. O cachorro vigia durante o dia e à noite dobra sua vigilância. É guarda da pessoa do
amo e de todas as coisas que lhe pertencem. Late e avança sobre aqueles que ele acha
possam prejudicar seu amo e seus interesses. Devo procurar vigiar continuamente e clamar
contra os vícios, culpas e pecados e contra os inimigos da alma.

673. 4. O maior prazer do cachorro é estar e andar na presença de seu dono. Procurarei
andar sempre com prazer e alegria na presença de Deus, meu querido Amo, e assim não
pecarei nunca e serei perfeito, segundo aquela palavra: Ambula coram me, et esto perfectus
(anda em minha presença e sê perfeito). 169

Capítulo XVIII
Conhecimento de Deus e da Virgem Maria 170

674. 1855. No dia 12 de julho de 1855, às cinco e meia da tarde, quando eu concluía a
Carta Pastoral sobre a Imaculada Conceição, ajoelhei-me diante da imagem de Maria para
agradecer por me ter ajudado a escrever aquela carta. Para minha surpresa, ouvi uma voz
clara da imagem que me disse: Bene scripsisti (escreveste bem). 171 Aquelas ditas palavras
impressionaram-me profundamente, fiquei com grande desejo de ser perfeito.
675. 1857. No dia l5 de janeiro, às cinco da tarde de 1857, estando em contemplação, disse
a Jesus: Que quereis de mim, Senhor? E Jesus me respondeu: Trabalharás logo, Antônio; a
hora ainda não chegou! Nesse aspecto, em alguns dias tenho muita consolação,
especialmente na missa e na meditação.

676. 1857. No dia 8 de outubro, às doze e trinta horas, a santíssima virgem Maria disse-me
o que deveria fazer para ser muito bom: Já sabes: arrepender-te das faltas da vida passada e
vigilância para o futuro… Ouves, Antônio? Repetiu-me: Vigilância para o futuro. Sim, sim,
eu to digo.

677. No dia 9 do mesmo mês, às quatro da madrugada, a santíssima virgem Maria me


repetiu o que dissera outras vezes: que eu deveria ser o são Domingos destes tempos, na
propagação do rosário.

678. No dia 21 de dezembro do mesmo ano recebi quatro avisos: 1º -Mais oração; 2º -
Escrever livros; 3º - Orientar almas; 4º - Ser mais tranqüilo diante do fato de ter de estar em
Madri. Deus assim o dispôs.

679. No dia 25, Deus me infundiu amor às perseguições e calúnias. O Senhor favoreceu-me
com um sonho na noite seguinte. Sonhei que estava preso inocentemente. Eu não disse
nada, julgando ser um presente do céu, por me tratarem como Jesus; por isso, calei-me
também como Jesus. Todos os amigos me abandonaram como a Jesus. E a um que queria
defender-me, como são Pedro a Jesus, eu lhe disse: Não queres que eu beba o cálice que
meu Pai me enviou? 172

680. 1859. No dia 6 de janeiro de 1859, o Senhor revelou-me que sou como a terra.
Efetivamente, sou terra. A terra é pisada e permanece calada. Eu devo ser pisado e ficar
calado. A terra sofre o cultivo: eu devo sofrer a mortificação. A terra tem necessidade de
água para produzir: eu necessito da graça para produzir boas obras.

681. No dia 21 de março, enquanto meditava nas palavras de Cristo dirigidas à samaritana:
Ego sum qui loquor tecum (sou eu que falo contigo), 173 entendi grandes coisas. À
samaritana comunicou a fé e ela acreditou. Deu-lhe pesar por seus pecados e ela se
arrependeu. Deu-lhe a graça para pregar sobre Jesus. Assim para mim: fé, arrependimento e
a missão de pregar.

682. Disse a Moisés: Ego sum (Eu sou aquele que sou). 174 e enviou-o para o Egito. Jesus
disse aos apóstolos à beira do mar: Ego sum (Sou eu!), 175 e animaram-se. Jesus disse a
Saulo: Ego sum (Eu sou Jesus) 176 e ele converteu-se, tornando-se grande pregador. E
assim por diante...

683. No dia 27 de abril, prometeu-me o divino amor e me chamou de Antoñito mio: (meu
Toninho).
684. No dia 4 de setembro, às quatro e vinte e cinco minutos da madrugada, disse-me Jesus
Cristo: Ensinarás a mortificação aos missionários, Antônio. Passados alguns minutos, me
disse a santíssima virgem: Assim produzirás fruto, Antônio.

685. No dia 23 de setembro, às sete e meia da manhã, disse-me o senhor: Voarás pela terra
ou andarás com grande velocidade e pregarás os grandes castigos que se aproximam. O
Senhor deu-me a conhecer grandes coisas sobre aquelas palavras do Apocalipse: Et vidi et
Audivi vocem unius aquilae (então olhei e ouvi a voz de uma águia), 177 que voava nos
altos céus e dizia em alta e clara voz: Ai! Ai! Ai! Dos habitantes da terra por causa dos três
castigos que devem vir. Estes castigos são: 1º O protestantismo, comunismo... 2º Os quatro
arquidemônios, que promoverão de um modo espantoso o amor aos prazeres – o amor ao
dinheiro – a independência da razão – a independência da vontade. 3º As grandes guerras e
suas conseqüências.

686. No dia 24 de setembro, dia de nossa Senhora das Mercês, às onze e meia do dia, o
Senhor fez com que eu entendesse o texto do Apocalipse 10,1: Vi também outro anjo forte
descer do céu, revestido de uma nuvem e sobre sua cabeça o arco-íris; seu rosto brilhava
como o sol, seus pés eram como colunas de fogo.178 Ele trazia em sua mão um livro
aberto, e pôs seu pé direito sobre o mar e o esquerdo sobre a terra (primeiro em sua diocese
da Ilha de Cuba e depois nas demais dioceses). Soltou um grande grito como o leão quando
ruge. E, depois de gritar, sete trovões articularam suas vozes. Aqui vêm os filhos da
Congregação do Imaculado Coração de Maria. Disse sete; o número é indefinido, pois quer
dizer todos. Chama-os de trovões porque, como trovões, gritarão e farão ouvir suas vozes;
também por seu amor e zelo, como são Tiago e são João, que foram chamados filhos do
trovão.E o Senhor quer que eu e meus companheiros imitemos os apóstolos Tiago e João
no zelo, na castidade e no amor a Jesus e a Maria.

687. O Senhor disse a mim e a todos esses missionários meus companheiros: Non vos estis
qui loquimini, sed Spiritus Patris vestri, et Matris vestrae qui loquitur in vobis (não sois
vós que falareis, mas o Espírito de vosso Pai (e de vossa Mãe), o qual fala por vós). 179 De
tal modo que cada um de nós poderá dizer: Spiritus Domini super me, propter quod unxit
me, evangelizare pauperibus misit me, sanare contritos corde (o Espírito do Senhor
repousa sobre mim, pois me consagrou com sua unção divina e me enviou a evangelizar ou
proclamara boa nova aos pobres, a curar os que têm coração contrito). 180

688. No dia 15 de outubro de 1859, dia de santa Teresa, eu seria assassinado. O assassino
entrou na igreja de São José, em Madri, na Rua Alcalá, para passar o tempo, e com má
intenção. Mas acabou se convertendo por intercessão de são José, segundo o Senhor me
revelou. O assassino veio encontrar-se comigo, disse-me que era de uma organização
secreta, mantido por ela, e que fora escolhido para assassinar-me. E que, se não me
assassinasse, dentro de quarenta dias ele seria assassinado, como ele mesmo havia
assassinado outros por não terem cumprido a tarefa. Ele, que tinha de me assassinar,
chorou, abraçou-me e me beijou e foi ocultar-se para que não o matassem por não ter
cumprido sua tarefa.

689. Passei por grandes padecimentos, calúnias e perseguições. Todo o inferno se havia
conjurado contra mim.
690. 1860. Dia 7 de junho, às onze e meia, dia de Corpus Christi, após a missa em Santa
Maria, antes da procissão que eu deveria presidir, estando em oração, diante do Santíssimo
Sacramento, com muito fervor e devoção, de repente, Jesus me disse: É bom e gostei do
livro que escreveste. Refere-se ao primeiro volume do livro do Colegial ou Seminarista,
que eu terminara no dia anterior; percebi nitidamente que se referia a esse livro. Ao
terminar o segundo volume, dignou-se aprová-lo também.

691. No dia 22 de novembro de 1860, estava muito agoniado por ter de arcar com toda a
responsabilidade do Escorial. A preocupação não me deixava descansar durante o dia, nem
dormir à noite. Vendo que não podia dormir, levantei-me, vesti-me e comecei a rezar,
colocando diante de Deus minhas aflições. Ouvi com voz espiritual muito clara e inteligível
o Senhor que dizia: Ânimo, não desanimes, eu te ajudarei.

692. 1861. No dia 2 de março, Jesus dignou-se aprovar o folheto escrito sobre a Paixão.

693. No dia 6 de abril de 1861, recebi um aviso para não perder acalma; que fizesse cada
coisa como se não tivesse nada mais que fazer, sem perder a mansidão. No dia 15 de junho
de 1861 disse-me Jesus: Pren paciencia (Tem paciência, já trabalharás). 181

694. No dia 26 de agosto de 1861, enquanto rezava na igreja do Rosário, na Granja, 182 às
dezenove horas, o Senhor concedeu-me a grande graça da conservação das espécies
sacramentais e de ter sempre, dia e noite, o Santíssimo Sacramento no peito. Por isso, eu
devo estar sempre muito recolhido e devoto interiormente e devo orar e enfrentar todos os
males da Espanha como o disse o Senhor. Com efeito, fez-me recordar uma porção de
coisas: como, sem mérito, sem talento, sem apadrinhamento de pessoas, de plebeu me
elevou até os altos cumes, ao lado dos reis da terra e agora ao lado do Rei do Céu…
Glorificate et portate Deum in corpore vestro (glorificai a Deus e levai-o sempre em vosso
corpo). 183

695. Dia 27 de agosto de 1861, na mesma igreja, durante a bênção do Santíssimo


Sacramento, dada após a missa, o Senhor fez-me conhecer os três grandes males que
ameaçam a Espanha: o protestantismo, melhor, a descatolização; a república e o
comunismo. Deu-me a conhecer que se devem praticar três devoções para combater estes
mesmos males: o Triságio, o Santíssimo Sacramento e o Rosário.

696. O triságio, rezado diariamente; o Santíssimo Sacramento, na missa, recebendo-o


freqüentemente e com devoção, sacramental e espiritualmente; o rosário completo
diariamente, ou pelo menos um terço, meditando os mistérios, aplicando-os aos costumes
próprios.

697. No dia da conversão de são Pedro, o Senhor fez-me saber o que aí se passou: Pedro
falhou, negou a Jesus. O galo cantou, mas Pedro não se converteu. O galo cantou de novo, e
Pedro converte-se, porque Jesus olhou para ele. Jesus é aquele que olha para a terra e a faz
tremer, qui respicit terram et facit eam tremere (o que olha a terra e a faz tremer). 184
Entendi que deveria pregar uma, duas vezes e, ao mesmo tempo orar, a fim de que o Senhor
se dignasse olhar com piedade e clemência para os homens terrenos e os fizesse tremer,
estremecer e se converter.

698. 1862. Dia 11 de maio, achando-me na capela do palácio de Aranjuez, 185 às seis e
meia da tarde, ao fazer a reserva do Santíssimo Sacramento, ofereci-me a Jesus e a Maria
para pregar, exortar, sofrer dificuldades e a própria morte, e o Senhor se dignou aceitar-me.

699. Sinto-me chamado a escolher entre duas coisas de igual glória de Deus: o mais pobre,
o mais humilhante e o mais doloroso. 186

700. No dia 16 de maio de 1862, às quatro e quinze da madrugada, estando em oração,


lembrei do que tinha escrito no dia anterior a respeito do Santíssimo Sacramento, referente
ao dia 26 de agosto do ano passado. Eu estava disposto, e também hoje, a apagar o que
havia escrito. A Santíssima Virgem disse-me que não apagasse. Após a missa, disse-me
Jesus Cristo que me havia concedido esta graça de permanecerem meu interior
sacramentalmente.

Capítulo XIX

701. Etapas mais importantes da vida 187


1807 Fui batizado no dia 25 de dezembro de 1807 3
1813 5 anos Pensava muitíssimo na eternidade 6
1816 9 anos Gostava muito de rezar 25
1818 10 anos Recebi a primeira comunhão 22
1820 12 anos Deus me chamou, eu ouvi e me ofereci 23
1826 18 anos O mar me arrastou, e Maria santíssima me salvou 42
1828 20 anos Maria santíssima livrou-me de uma mulher mal-intencionada 42
1829 21 anos A virgem santíssima livrou-me de uma grande tentação 57
1835 28 anos Fui ordenado sacerdote 62
1838 30 anos Fui nomeado administrador paroquial de Sallent 66
1839 31 anos Fui a Roma para oferecer-me à Propaganda Fide 73
1840 32 anos Voltei de Roma e iniciei as missões 109
1845 37 anos Fundei a Congregação contra a blasfêmia ...
1848 40 anos Fui às Ilhas Canárias 283
1848 40 anos Fundei a Livraria Religiosa 204
1849 41 anos Voltei das Ilhas Canárias 287
1849 41 anos Foi dado início à Congregação dos Missionários 290
1849 41 anos Dia 4 de agosto, fui eleito arcebispo 293
1849 41 anos Dia 4 de outubro, aceitei ser arcebispo 294
1850 42 anos Dia 6 de outubro, fui consagrado 297
1850 42 anos Fui agraciado com a grã-cruz de Isabel, a Católica 381
1850 42 anos Partimos de Barcelona para Cuba 299
1851 43 anos Dia 16 de fevereiro, chegamos a Cuba 303
1856 48 anos Dia 1º de fevereiro, fui ferido em Holguín 345
1856 48 anos Desenhei a estampa da Academia de São Miguel 351
1857 49 anos Dia 12 de março, saí de Havana 188 356
1857 49 anos Dia 5 de junho, fui nomeado confessor de sua majestade 369
1859 51 anos Fui nomeado presidente do Escorial 384
1860 52 anos Dia 13 de julho, fui nomeado arcebispo de Trajanópolis ...

Índice 189
Quarta parte
CONTINUAÇÃO DA BIOGRAFIA
Capítulo I
Viagem com suas majestades e altezas por Andaluzia 1

702. No dia 12 de setembro de 1862 saí com suas majestades e altezas da corte de Madri
para Mudela; no dia 13, estivemos em Andújar; no dia 14 em Córdoba, ali permanecemos
nos dias 15 e 16; no dia 17 chegamos a Sevilha e nela permanecemos de 18 a 25; no dia 26
nos dirigimos a Cádiz, lá permanecemos até o dia 2 de outubro; no dia 3, voltamos para
Sevilla; no dia 5 estivemos em Córdoba; no dia 6, em Bailén; no dia 7, em Jaén; no dia 9,
em Granada; no dia 14 em Loja; no dia 15 em Antequera; no dia 16 em Málaga; no dia 19
em Almería; no dia 20 em Cartagena; no dia 23 em Múrcia; no dia 25 em Orihuela; no dia
27 em Novelda; no dia 28 em Aranjuez e no dia 29, às cinco da tarde, entramos em Madrid.

703. Bendito seja o Senhor, que se dignou valer-se desta miserável criatura para fazer
grandes coisas; a Deus nosso Senhor seja a glória, e a mim a confusão, como mereço. Tudo
é de Deus; ele me deu saúde, forças, palavras e tudo o mais. Sempre reconheci que o
Senhor era muito pródigo comigo, porém nessa viagem, não somente eu reconheci, mas
também os demais. Eles viam que mal comia e bebia; somente provava alguma batata e um
copo de água durante todo o dia. Jamais comia carne, peixe ou ovos. Não bebia vinho.
Sempre estava contente e alegre. Jamais me viram cansado, não obstante em alguns dias ter
pregado doze sermões.

704. Não posso dizer a quantidade de sermões que Deus pregou através deste indigno
ministro e servo inútil durante os 48 dias de viagem. Um membro da comitiva teve a
curiosidade de anotá-los. Diz ele que são 16 ao clero, 9 aos seminaristas, 95 às religiosas,
28 às irmãs da Caridade, 35 aos pobres dos estabelecimentos de beneficência, 8 aos homens
das Conferências de São Vicente de Paula e 14 ao povo em geral nas catedrais e igrejas
grandes. 2

705. Além das pregações, distribuímos muitos milhares de folhetos, opúsculos e livros.
Efetivamente, em cada lugar que chegávamos já havia uma caixa grande de material que
havíamos pedido antecipadamente. Não é possível explicar o afã com que todas as pessoas
buscam ouvir a divina palavra, o efeito que lhes causava, a avidez com que pediam alguma
lembrança, e o amor com que guardavam o que lhe dávamos, ainda que não fosse mais que
uma folha avulsa. 3

706. Houve grandes conversões, ainda que não tenham conseguido confessar comigo por
falta de tempo. Escreveram-me, depois, os mesmos penitentes convertidos. Cito apenas um
dos muitos que poderia referir.Através de carta, dizia: “Excelentíssimo e ilustríssimo
senhor e padre: O que se atreve a escrever a vossa excelência é um grande pecador,
esquecido dos sábios princípios que me haviam transmitido os meus pais, meus mestres e
que eu havia adquirido na longa carreira de meus estudos científicos. Lancei-me com todo
o furor de um coração corrompido à revolução do ano de 1835, e do ano anterior, 1834.
Não me havia aproximado do santo tribunal da penitência, não obstante meus horríveis
temores e devoradores remorsos de minha consciência; graças a Deus e a Maria santíssima,
acabo de me confessar. Ontem, primeiro de setembro de 1862, fiz minha confissão geral.
Meu coração está cheio de júbilo”.

707. “Os males que causei com meus escritos são incalculáveis e os excessos cometidos por
minha posição são indizíveis. Desprezei meu Redentor e ele abandonou-me às minhas
paixões e assim tenho vivido até este momento em que o Senhor teve piedade de mim. O
primeiro chamado de meu Senhor foi o seguinte: Embarquei em Barcelona, no mesmo
vapor em que estava um sacerdote. Este me presenteou com uma estampa da Puríssima
com algumas máximas cristãs. Aceitei e, mesmo não fazendo caso, guardei-a em minha
carteira e lhe recitei uma Salve Rainha. Não sei o que se passou no meu interior. Chega sua
majestade a Andaluzia e vossa excelência com ela. Ao ver vossa excelência, lembrei-me da
estampa de Maria santíssima. Porém, como? Pedindo justiça contra mim!Disseram-me que
vossa excelência pregava. Correndo vou ouvi-lo. Ouço apalavra divina. Saio aterrorizado.
Entro em minha casa e digo: Já tudo está acabado...”.

708. Louvemos todos a Deus e cantemos eternamente suas divinas misericórdias e, ao


mesmo tempo, animemo-nos cada dia mais em colocarem prática os meios de que Deus se
vale para converter os pecadores:como os folhetos, livretes e pregação. Oh! Como é bom
hoje em dia fazer circular bons escritos, a fim de fazer frente à multidão dos maus.

Capítulo II
Trabalho com as Monjas de Andaluzia

709. Por todos os povoados por onde passávamos, nos quais havia monjas, aproveitava para
pregar, a fim de não perder tempo. Enquanto pregava num convento, mandava um
sacerdote a outro para que convocasse as irmãs diante da grade do altar mor. Assim que
chegasse, podia iniciar a pregação e, logo depois de concluída, saía para outro convento.
Desse modo, estando elas do lado de dentro e eu do lado de fora, não podiam deter-me,
como me deteriam se tivesse entrado na clausura, como elas pretendiam sempre. Eu,
porém, mesmo com a permissão dos respectivos bispos, nunca queria entrar para não ter
que falar e perder tempo, coisas contrárias ao silêncio e à ocupação que sempre lhes
inculcava. Não poucas vezes dizia-lhes que, se todas as monjas fossem mudas, seriam mais
santas do que são. 4

710. Em todas as povoações observei que na maioria dos conventos não havia vida comum
e sim particular. Por exemplo: em Sevilha há atualmente vinte conventos de monjas; em
cinco, se observa a vida comum e, em quinze, se vive uma vida particular, nessa mesma
proporção encontram-se os conventos de outras povoações de Andaluzia.

711. Os que conviveram com monjas sabem que é impossível que haja perfeição em uma
comunidade na qual não se guarda a referida vida comum. Não direi eu o que acontece;
deixo que o diga uma noviça de um convento que acaba de me escrever, com data de 18 de
dezembro de 1862:
712. “Encontro-me neste convento e, por amor a Deus e pelo sangue de nosso Senhor Jesus
Cristo, suplico-lhe que me tire deste inferno. Isto não é um convento, mas uma casa de
vizinhos. Aqui não há sossego. Tudo é um puro labirinto. Nada do que aqui existe é do meu
agrado. Se o nosso bispo soubesse o que se passa neste convento, já o teria fechado. Estou
próxima da profissão e serei uma monja para o inferno. Não posso confiar em ninguém.
Somente em vossa excelência espero encontrar remédio e salvação para minha alma, pois
como confessor da rainha, deverá aconselhá-la a expedir uma ordem real para que não
professe nenhuma noviça nos conventos em que não se observa a vida comum. Ai Senhor!
Quanto lhe diga é pouco. Oh! Que vida tão triste! É uma morte. Eu somente sofro e calo.
Espero de vossa excelência algum “remédio” antes que chegue o dia de minha profissão.
Todas as que estão em conventos de vida particular encontram-se na mesma situação que
eu estou. Somente Deus sabe o que se passa nestes conventos de vida particular. Remédio
imediato; o tempo passa, a profissão se aproxima, sinto-me sem forças para remediar a
situação, por compromissos muito grandes de...”.

713. Esta pobre monja está dizendo em geral o que já sabemos em minúcias e que se passa
em semelhantes conventos. Por isso, em todos os conventos de vida particular, pregava-lhes
com tanta energia e com tantas e tão poderosas razões, que se percebia claramente que
Deus nosso Senhor, de um modo muito particular, me inspirava.

714. Fazia-lhes ver a necessidade que tinham de aspirar à perfeição, se desejassem mesmo a
salvação. Não basta que sejam monjas para se salvarem, pois muitas devem ouvir de Jesus,
seu esposo, aquelas palavras: Néscio vos, 5 não vos conheço, como às virgens imprudentes
do evangelho. Pregava-lhes sobre o quanto é necessária a vida comum para a perfeição.
Além disso, fazia-lhes um paralelo entre a vida comum e a vida particular, fazendo-lhes ver
todas as vantagens corporais, espirituais e econômicas da vida comum sobre a particular e,
para confirmar os argumentos, apresentava-lhes os exemplos da vida de Jesus, dos
apóstolos, dos discípulos e de todas as comunidades nas quais existe vida de perfeição, pois
são todas de vida comum.

715. Também lançava mão de outro argumento que, em verdade dava muita força; era uma
oferta de pelo menos dois mil reais que sua majestade dava aos conventos. Dizia-lhe que o
desejo de sua majestade era que todos os conventos tivessem vida comum. Não era uma
ordem, mas um desejo. A oferta era de dois mil reais (em moeda da época) para cada
convento da povoação, depositada nas mãos do bispo, com a obrigação de que fosse
entregue às comunidades de vida comum e, às demais, quando a alcançassem.

716. Também dizia aos bispos e às comunidades que não deixassem entrar noviças nos
conventos onde não houvesse vida comum e, se em alguns já tivessem entrado, que não
professassem até que se houvesse restabelecido a vida em comum. Se não houvesse
consenso de toda a comunidade, bastava que duas ou três começassem, e que as noviças
que ingressaram, todas assumissem este compromisso. E assim, as velhas iriam entrando no
esquema da vida comum. As mais velhas iriam morrendo e assim ficaria a comunidade
reformada. A estas somente se lhe pedia que não fizessem como os fariseus, que não
entravam no céu nem deixavam os outros entrar, como dizia Jesus. 6
Capítulo III
Danos e erros de protestantes e socialistas em Andaluzia

717. Faz alguns anos que nessa parte da Espanha se tem instalado muita apatia, tanto da
parte dos governantes, como de parte dos eclesiásticos. Os socialistas e protestantes
souberam aproveitar bem a ocasião. Enquanto alguns dormiram, outros semearam a cizânia
naquele maravilhoso campo. É conhecida de todos a sublevação de Loja e a multidão de
afiliados: não menos de oitenta mil. Também sabemos que, para sufocá-la foi preciso
derramar sangue e desterrar a muitíssimos. Graças à viagem de sua majestade e ao indulto
geral concedido, puderam retornar ao seio de suas famílias. Através de documentos oficiais
sabe-se que os processados em conseqüência de tais acontecimentos de Loja foram 1.183,
dos quais 387 eram solteiros, 720 casados, 76 viúvos. 7

718. Os meios de que se valeram foram muitos. Os principais, porém, foram: dinheiro,
livros, panfletos e charlatões propagandistas. Valiam-se também da violência, pois os que
não se alistavam eram perseguidos e impedidos de trabalhar, além de fazê-los padecer
fome.Durante o tempo de nossa passagem e permanência, tive a curiosidade denotar alguns
dos erros que por aquelas terras se havia disseminado.Anotarei aqui brevemente. 8 Diziam:

719. 1. “Que o homem não deve reconhecer a outro como pai, nem a outra como mãe na
terra, porque os homens são como fungos e cogumelos, etc.sem contar com Deus para
nada”. 2. “Que os filhos nada devem a seus pais, porque eles somente pretendiam divertir-
se e, se de seu prazer veio o filho, talvez tenha sido contra a sua vontade, talvez tenham
sentido desgosto por isso e, quem sabe se não tentaram abortar?” Essa forma de linguagem
era falada, não somente no seio das famílias, mas também nas ruas, praças, caminhos e
também nos tribunais.

720. 3. “Os reis, os ministros, são uns tiranos. Eles não têm nenhum direito de mandar
sobre os demais homens. Todos são iguais”. 4. “A política é um jogo com a finalidade de
apoderar-se do poder danação, dos homens, dos interesses e tudo mais na sociedade”. 5.
“Não há outra lei senão a do mais forte”.

721. 6. “A terra não é de ninguém. Dela saem todas as coisas. As coisas são para todos e de
todos”. 7. “Os ricos são uns velhacos, zangões, que não fazem mais que folgar, comer e
viver de excessos; que, assim como as abelhas, insurgem-se e tiram a vida a quantos
podem; assim os trabalhadores devem levantar-se e acabar com todos esses zangões da
sociedade”.

722. 8. “Irmãos, somos iguais, todos somos da mesma natureza; porém os ricos nos tratam
como se fossemos de natureza diferente e inferior à sua. Sim, tratam-nos como se somente
eles fossem homens e nós como se fôssemos seus animais de carga e de trabalho. Eles não
trabalham nunca, estão continuamente folgando; andam e se divertem pelos cafés, teatros,
bailes e passeios, enquanto nós estamos continuamente trabalhando. Nem sequer nos
deixam descansar nos dias de festa. Eles escolhem e reservam os lugares mais cômodos, e
assim se livram do calor do verão e do frio no inverno. Nós, além da fadiga do trabalho,
temos que padecer o calor, o frio, os ventos e as chuvas nas intempéries, ou metidos nas
fábricas, porões e minas, respirando ar contaminado, e assim morremos antes do tempo.
Eles, a cada dia colocam em suas mesas muitos e fartos pratos; nós apenas podemos comer
um pedaço de pão velho, que nos fazem pagar muito caro, por causa do monopólio que
detêm...”.

723. “Eles vestem roupas bonitas e finas; cada dia trocam de traje e cada vez mais luxuoso.
Nós, mal podemos trocar nossas camisas miseráveis, molhadas do suor de nossas fadigas”.

724. “Eles vivem em grandes e magníficas casas, adornadas com um luxo asiático. Nós já
não podemos viver senão em porões e sótãos, porque subiram o preço dos aluguéis, e já não
conseguimos pagá-los. Nós edificamos as casas, construímos os móveis, confeccionamos
suas roupas, preparamos suas refeições; porém, eles não nos retribuem, antes, nos roubam o
que ganhamos e nos sugam o sangue com aluguéis, impostos e contribuições. Até quando
vão durar esses roubos e injustiças? Levantemo-nos todos contra eles”.

725. 9. Até agora os ricos desfrutaram das terras. Já é tempo de nós também desfrutá-las e
assim dividi-las entre nós. Esta divisão não é só um direito de eqüidade e justiça, como
também de grande utilidade e proveito, pois os terrenos acumulados pelos ricos ladrões são
infrutíferos, porém se divididos em pequenos lotes entre nós e cultivados por nossas
próprias mãos, darão abundantes colheitas”.

726. 10. Além disso, dizia e repetia com muita freqüência o ferrador de Loja, Pérez del
Olmo, o caudilho dos socialistas: “Antes os hospitais, casas de beneficência, as
comunidades religiosas, os cabidos, os beneficiados, etc., etc., tinham fazendas, posses e
rendas, e esses boas-vidas apropriaram-se de tudo e até do que é próprio dos povoados. E
de todas essas coisas não nos deram nada. É justo que reclamemos a parte que nos toca; nós
temos o mesmo direito que eles; e como eles não nos darão nada, estamos a ponto de tomar
posse do que nos pertence. Unamo-nos, pois, todos, e levantemo-nos:mãos à obra”.

727. Com esses discursos e com os demais meios adulatórios, ameaças e insultos aos que
não cediam prontamente, e dessa forma rapidamente foi tomando grandes proporções. Ao
mesmo tempo, foram semeadas doutrinas perversas e destruidoras: disseminava-se a
imoralidade, apartando as pessoas do bem e conduzindo-as para o mal. Já não mais se
recebiam os sacramentos da penitência, eucaristia e matrimônio; nem mesmo se participava
da missa. Nos dias de festa, trabalhava-se até o meio-dia; à tarde e à noite, jogo, baile,
teatro, café, taberna, passeio. Nada de religião. Tudo mundano. Os ministros da religião,
desprezados, caluniados, murmurava-se contra eles, etc., etc.

728. Estando em Madri, ao tomar conhecimento de todas essas iniqüidades, meu coração
partia-se de dor. Desejava dirigir-me até lá para pregar. Porém, sua majestade disse-me que
esperasse, que pregaria quando fôssemos para lá. E foi o que aconteceu. Mas isto não é
suficiente. É necessária a presença de missionários. Conversei com os bispos daquelas
regiões. O senhor núncio apostólico e a rainha falaram e escreveram cartas para que os
missionários fossem para lá. Espero que alguém vá, certamente poucos, pois são poucos ao
todo. Ó pai celestial, enviai missionários!!! 9

Capítulo IV
Calúnias contra sacerdotes católicos

729. Sabem os protestantes, os socialistas e os comunistas que os sacerdotes católicos são


seus maiores inimigos, pois desfazem seus planos. Pois, sendo trevas seus erros, basta os
sacerdotes católicos apresentarem a luz da doutrina católica para que as trevas por si
mesmas desapareçam. Por isso, o remédio mais oportuno que encontraram foi falar mal dos
sacerdotes. Eles sabem muito bem que o que falam são invenções, calúnias e mentiras. Não
importa, pois algo fica. Desprezados e desprestigiados os mestres, imediatamente é
desprezada a doutrina, apaga-se a luz da verdade, fica o povo à mercê das trevas e de seus
erros. É inexplicável o quanto propalaram com palavras e por escritos. Transcreverei aqui
um dos muitos impressos que tenho à vista e que circulam em todas as direções, e procuram
fazer chegar às mãos de todos. Diz assim:

Religião e moral

730. “Que seria da Igreja Católica se tivéssemos de julgá-la pelo procedimento da maior
parte, para não dizer de todos os seus ministros? A degradação moral do clero vai chegando
ao seu auge. Aumenta de um ano a outro, de um dia a outro e de uma hora a outra. Vejam
como esses ministros da religião estão engolfados nos prazeres mundanos; metidos em
intrigas políticas e feitos uns egoístas e comerciantes, completamente esquecidos das
palavras de seu divino Mestre, que diz: “Meu reino não é deste mundo”. 10

731. “Eles não estudam nem ensinam a moral e se entregam à satisfação das suas ambições
e apetites desenfreados. Não pregam o Evangelho e se preocupam incessantemente com os
interesses dos partidos políticos, sendo eles os primeiros urdidores das tramas mais
escandalosas e dos ardis mais iníquos. Quando perceberem alguma intriga infame, uma
calúnia atroz, um vil manejo, digam, sem medo de errar: Isto é obra de um ministro
católico”.

732. “Os párocos abusam de tudo; nada lhes é sagrado. A tudo, profanaram e aviltaram: o
púlpito, o confessionário, a consciência, a família e a sociedade inteira. Puseram tudo a
perder. Alguns parecem austeros, porém cuidado, carregam escondido debaixo da batina o
punhal envenenado para lhes tirar a vida, e o que é mais assombroso, nem mesmo entre si
se perdoam. Esquecidos das palavras de Jesus Cristo: Dai a César o que é de César e a Deus
o que é de Deus, 11 com as quais se pode deduzir a separação entre a política e a religião,
delas não fazem caso, misturam tudo, confundem tudo e com tudo fazem comércio”.

733. “Os sacerdotes católicos traem a si mesmos, a religião e a pátria. Chamam-se


ministros do Deus da paz e são os primeiros a provocar a guerra, às vezes com palavras e,
em outras, com exemplos. Deveriam ser a luz do mundo; porém, enchem-no de trevas, com
sua ignorância e imoralidade. Seduzem as solteiras, enganam as casadas e corrompem as
viúvas. São odiados de todo mundo por causa da vaidade, da ambição e de outras picardias.
Conclusão: Foge, afasta-te deles. São duplamente impostores: são lobos devoradores em
vez de bons pastores”.

734. É inexplicável o prejuízo que os ímpios e socialistas acarretam com as calúnias que
levantam, com as ações que praticam e com o desprezo com que olham e tratam os
sacerdotes, a missa, os sacramentos e as demais funções da religião. A tudo isto,
acrescentam o desprezo, as caçoadas e a mofa que fazem dos fiéis que professam a religião.
Deste modo, cada dia arrebanham novos prosélitos e a sociedade, a passos acelerados,
caminha para a perdição.

735. Algumas vezes, digo melhor, continuamente, penso no remédio que se poderia aplicar
a tão grande mal. Depois de muito refletir, vejo que o remédio reside, de um lado, na
formação de um bom clero, sábio, virtuoso, zeloso e de oração; de outro, catequizar e
pregar às crianças, a todo o povo e distribuir bons livros e folhetos. Trabalhando, ainda há
fé em Israel, o terreno ainda produz. Coragem, digo a mim mesmo; é preciso não
desfalecer. Diante da virtude e firmeza dos bons sacerdotes, os ímpios perdem sua ousadia
e atrevimento. 12

Capítulo V
Realizações desde a chegada a Madri

736. Ao chegar a esta corte, senti-me tão alegre e descansado de todas as minhas fadigas
como se tivesse retornado de uma temporada de folga. Assim é que não duvidei em vir ao
Escorial para dar início a uma novena-missão em honra de Nossa Senhora do Patrocínio.
Preguei, graças a Deus. Muitas pessoas participaram e foram inúmeros os frutos, graças a
Deus. 13

737. Terminada a novena, iniciei os exercícios espirituais à comunidade de sacerdotes e


estudantes do seminário e a alguns sacerdotes de fora; na verdade os resultados foram
muito felizes. 14

738. De volta a Madri, dediquei-me aos exercícios espirituais às Adoradoras; todas


aproveitaram muitíssimo. Todas quiseram fazer confissão geral e ficaram muito fervorosas.
15

739. Durante as festas natalinas preguei exercício às Monjas ou Irmãs Francesas. Por se
ocuparem com o ensino das meninas, que nessa época estão com os familiares para as
festas natalinas, as irmãs ficam desocupadas e todos os anos dedicam-se aos exercícios
espirituais; desde que me encontro em Madri, repetem o mesmo. 16

740. Propósitos dos exercícios espirituais que preguei no Escorial, do dia 10 a 19 de


novembro de 1862: 1º Anualmente farei os santos exercícios. 2º Cada mês farei um dia de
rigoroso retiro, sem conversar com ninguém. 3º Confessarei semanalmente. 4º Jejuarei três
dias por semana, a saber: quarta, sexta e sábado e, em alguns dias, me absterei de
sobremesa. Na segunda, quarta e sexta-feira aplicarei disciplina ou outra penitência
equivalente. Na terça, quinta e sábado usarei o cilício.

741. 5º Durante a oração pensarei nos mistérios do rosário e na Paixão de Cristo. Evitarei a
pressa. Recordarei a repreensão dirigida a santa Catarina de Sena. 17
742. 6º Praticarei o exame particular sobre a mansidão. A experiência diz que mais vale
fazer poucas coisas com mansidão do que fazer muitas precipitadamente e com
aborrecimento, pois as pessoas se escandalizam ao presenciarem tais atitudes, por isso
tenho feito o propósito de jamais aborrecer-me, nem de queixar-me de coisa alguma. Serei
sempre amável com todos, mesmo para com aqueles que me são incômodos. Farei
freqüentemente as meditações dos capítulos 20 e 28 do livro Exercícios. 18

743. 7º Pedirei continuamente a Deus nosso Senhor que faça com que eu o conheça e o
torne conhecido, que o ame e o torne amado, que o sirva e o faça servir. Direi: Senhor, se
vós quereis servir-vos de mim para a conversão dos pecadores, etc., aqui me tendes.

744. 8º Antes do almoço, direi: Senhor, alimento-me para ter forças e para melhor vos
servir. Antes das horas de estudo, direi: Senhor, estudo para melhor conhecer-vos, amar-vos
e servir-vos, e para ajudar meu próximo. Antes de deitar direi: Senhor, faço-o para recobrar
as forças desgastadas e servir-vos melhor; faço-o porque vós, Senhor, meu Pai, assim
ordenastes.

745. 9º - Máximas que me propus guardar: 1ª. Comer pouco e trabalhar muito. 2ª. Dormir
pouco e rezar muito. 3ª. Falar pouco e padecer muitas dores e calúnias, sem queixar-me
nem defender-me; antes alegrar-me.

746. 4ª. Mortificação interna e externa. 5ª. Leitura espiritual pelo texto de Rodríguez. 19 6ª.
Oração mental pelo texto de “La Puente”. 20 7ª. Exame particular sobre a mansidão.

747. 8ª. Agirei em tudo com retidão de intenção, com atenção e com força de vontade para
fazer bem cada coisa.

748. 9ª. Andarei sempre na presença de Deus e lhe direi com freqüência: Domine, pati aut
mori (Senhor, ou morrer ou padecer). 21 Pati non mori (Padecer, não morrer). 22 Pati, et
contemni pro te (Padecer por vós e que eu seja desprezado). 23 Absit mihi gloriari nisi in
cruce Domini nostri Jesu Christi (Livra-me, ó Deus, de gloriar-me anão ser na cruz de
nosso Senhor Jesus Cristo). 24

Lembretes

749. 1. Pedirei a Maria santíssima uma caridade abrasada e uma perfeita união com Deus,
humildade profundíssima e desejos de sofrer desprezo.

750. 2. Terei grande estima pela virtude de todos. A todos terei como meus superiores,
julgando o melhor possível todas as suas obras, repreendendo-me, censurando-me e
julgando somente a mim. Isto servirá para meu proveito; o resto não.

751. 3. Lembrarei o que o Senhor disse a um missionário: que o havia preservado de cair no
inferno a fim de que procurasse a salvação das almas. Recordarei que me salvou das águas
do mar e de outros perigos para que eu buscasse sua maior honra e glória e a salvação das
almas que, com tanto custo, ele redimiu.
752. 4. Que não fez Jesus para a glória de seu Pai e para a salvação das almas? Ah!
Contemplo-o em uma cruz, morto e desprezado. Pois eu, ajudado por sua graça, estou
resolvido a sofrer aborrecimentos, trabalhos, desprezos, mofas, murmurações, calúnias,
perseguições e até mesmo a morte. Já estou sofrendo, graças a Deus, muitas destas coisas;
mas, animado, digo com o apóstolo Paulo: Omnia sustineo propter electos, ut et ipsi
salutem consequantur (Tudo sofro por amor aos escolhidos, a fim de que consigam também
eles a salvação). 25

753. 5. Sei que não posso oferecer a Deus bocado mais saboroso, nem bebida mais suave e
delicada do que almas arrependidas, desde o púlpito e o confessionário. Jesus me convida e
me dá seu corpo em comida e seu sangue em bebida e quer que eu o convide em companhia
de almas convertidas. Sei que é a comida de que mais gosta, como disse aos apóstolos. Para
os reis da terra providenciam-se frutos deliciosos, mesmo que sejam difíceis de conseguir.
Que não devo eu fazer então para o rei celestial?

754. 6. Depois da missa, por meia hora, sinto-me como que aniquilado.Não desejo outra
coisa senão sua santíssima vontade. Vivo com a vida de Jesus Cristo. Ele, possuindo-me,
possui um nada, ao passo que eu, possuindo-o, tudo possuo. Eu lhe digo: Ó Senhor, vós
sois meu amor! Vós sois minha honra, minha esperança e meu refúgio. Vós sois minha
glória e meu fim. Ó meu amor! Bem-aventurança minha! Protetor meu! Alegria minha!
Restaurador meu! Meu mestre! Meu Pai! Esposo de minha vida e de minha alma!

755. Não procuro, Senhor, nem quero saber outra coisa, senão vossa santíssima vontade, a
fim de cumpri-la. Nada mais desejo senão a vós e, unicamente por vós e para vós, as
demais coisas. Vós sois para mim suficientíssimo. Eu vos amo, ó minha fortaleza, meu
refúgio e meu consolo. Sim, vós sois meu Pai, meu irmão, meu esposo, meu amigo e meu
tudo. Fazei que vos ame, como vós me amais e como quereis que vos ame.

756. Ó meu Pai, aceitai este meu pobre coração; devorai-o, assim como eu faço de vós meu
alimento, para que eu me converta inteiro a vós. Com as palavras da consagração, a
substância do pão e do vinho se converte na substância do vosso corpo e sangue. Ó Senhor
onipotente! Consagrai-me, falai para mim e convertei-me todo em vós.

Capítulo VI
Prestação de contas ao meu diretor espiritual: 1862

757. Diariamente, tanto no inverno como no verão, levanto-me às três horas. Enquanto me
visto, vou rezando, apesar de gastar poucos minutos para me vestir. Desejo muito a
permissão para descansar sobre uma tábua e não me deitar na cama. Na cama sinto a cabeça
pesada. 26

758. Logo de manhã, aplico forte disciplina e, quanto mais forte, mais alegria me dá, pois
penso em meus pecados e nos açoites de Jesus e em seu amor. Parece-me ouvir: Da mihi
sanguinem, et dabo tibi spiritum (Dá-me sangue e eu te darei espírito). 27 Segundo meus
propósitos, um dia aplico-me a disciplina, outro dia o cilício. Este me incomoda mais que a
disciplina, mas não o abandono nunca, por mais que repugne ao corpo.
759. A minha maior luta é com a comida. 28 Meu corpo é como o de um péssimo burro,
que muitas vezes me engana e ri-se de mim: sente fome quando à mesa vê a comida. Faço-o
jejuar três dias por semana: quarta, sexta e sábado. Em todos os dias do ano, mesmo nas
festas principais, não me permito comer carne ou peixe. Quero, porém, que se prepare para
os demais da casa para que eles comam, não eu. Para o corpo, isto é um verdadeiro
sofrimento de Tântalo. O mesmo acontece com o vinho. Gosto de carne e de vinho, porém
não quero nem comer nem beber e assim meu corpo e minha alma se sentem melhor.

760. Quanto à abstinência de carne, peixe e vinho, eu me conformo, embora me custe um


pouco. O mais difícil é abster-me das demais comidas. Meu corpo deseja mais que do que
eu quero dar-lhe. No entanto, faz-me cometer falta servir mais do que o projetado. Cometo,
porém, outra falta maior: comer mais apressado do que me proponho.Como eu me sirvo
primeiro e não mais que batata ou verdura, etc., etc., e depois os outros se servem o que
querem; naturalmente, eles necessitam mais tempo para comer o que colocam no prato. Eu
quero esperá-los comendo devagar, a fim de concluir ao mesmo tempo, pois aqui está o
meu desafio. Como me sirvo antes e não me detenho em trinchar e, além disso, como tenho
um apetite muito bom, não consigo conter o burrinho do meu corpo; ele me escapa, e como
mais rapidamente do que desejo. Fora das refeições nada como nem bebo.

761. A abstinência em minha vida tem muitas finalidades: 1) Mortificar o corpo; 2) Edificar
o próximo, o que cada dia me convence que convém; 3) Importunar o menos possível o
próximo, sobretudo quando dele sou hóspede; 4) Economizando, terei mais o que dar.
Ainda mais, especialmente para imitar a Jesus e a Maria. De um tempo para cá, Deus nosso
Senhor, por sua infinita bondade, me revela muitas coisas quando estou em oração. Sinto
profundo desejo de agir e de sofrer para sua maior honra e glória e para o bem das almas.
29

762. Desejo ardentemente sair de Madri para pregar pelo mundo inteiro.Não posso explicar
meu sofrimento ao perceber que não me deixam sair. Só Deus o sabe. Diariamente tenho de
resignar-me, conformando-me com a vontade de Deus, que no momento eu permaneça
neste lugar. Faço propósitos de calar-me, no entanto, não escondo meu desejo de sair. 30

763. Sendo obrigado a permanecer nesta corte, atendo confissões todos os dias até as onze
horas. Dois terços dos penitentes são pessoas que nunca se confessaram comigo e vêm para
fazer uma confissão geral. 31

764. Das onze às doze horas, dou audiência. É a pior hora para mim, porque vêm com
exigências relativas ao palácio e com as quais não posso concordar. Na parte da tarde,
dedico-me a pregar, estudar e a escrever ou em alguma outra coisa; o mesmo acontece à
noite. Procuro em momento algum estar desocupado.

765. Às três horas da manhã, antes da oração mental, rezo o santíssimo Triságio; às doze
horas, antes do almoço, faço o exame de consciência e via-sacra breve. À noite rezo três
partes do rosário, sete pai-nossos e ave-marias a nossa Senhora do Carmo e das Dores e
mais a dezena e o rosário de antífonas marianas. 32
766. Para mim, a oração vocal me satisfaz mais do que a puramente mental, graças a Deus.
Em cada palavra do Pai-nosso, Ave-Maria e Glória, vejo um abismo de bondade e
misericórdia. Deus me concede a graça especial de estar muito atento e fervoroso durante
tais orações. Também na oração mental, na sua bondade e misericórdia, o Senhor me
concede muitas graças, porém na oração vocal o reconheço mais. 33

767. Diante do Santíssimo Sacramento, sinto uma fé tão viva que nem sei explicar. Sinto-a
(sua presença) de modo quase sensível.Continuamente beijo suas chagas. Finalmente fico
abraçado com ele.Custa e tenho que usar de violência sempre que tenho de separar-me de
sua divina presença, sempre que chega a hora. 34

Capítulo VII
Prestação de contas da minha missão no Palácio

768. Já não sei o que dizer sobre este particular. Deus é quem sabe se cumpri minha
obrigação. É bem verdade que sua majestade me estima e aprecia muito meus conselhos.
Porém, em vista de sua posição, às vezes não se arrisca a fazer tudo o que sabe ser o
melhor, principalmente no que concerne a atos públicos e exteriores; o que ela pode fazer,
por si e privadamente, sempre se mostra disposta. Assim é que cotidianamente lê a vida do
santo do dia, reza o santo rosário, participa da missa, visita a imagem da santíssima
Virgem, freqüenta os sacramentos com muito fervor e devoção. Anualmente faz os
exercícios espirituais, quando estamos na Granja, pois ali dispõe de mais tempo livre.
Nunca se cansa das coisas boas. É muito caridosa, faz donativos de boa vontade e
generosamente. É muito compassiva. Interessa-se por todos os sofrimentos que presencia e
conhece. O que mais lhe custa é o que se refere ao exterior, seja pela educação recebida, ou
porque não quer provocar atritos com pessoas mundanas; mesmo assim, aos poucos vai se
corrigindo naquelas coisas que, se bem é verdade que não são faltas graves, porém
reconhece que seria melhor se as fizesse de outro modo. As principais são as seguintes:

769. 1º Os teatros - Quando cheguei a Madrid, a rainha todas as noites ia ao teatro e dava
bons presentes aos artistas. Atualmente, comparece só por formalidade, dando preferência
aos espetáculos que não ferem a moral, ainda assim, cansa-se, sente sono, precisa esforçar-
se para não dormir, como ela mesma me confidenciou.

770. 2º Os bailes - Antes, eram freqüentes no palácio. Hoje em dia são poucos e realizados
com muita ordem, segundo as informações dos que neles estiveram presentes, pois jamais
vou vê-los e desaconselho os que estão ao meu alcance. Porém, os referidos bailes são mais
um pretexto para encontros políticos do que para dançar e por outros fins. Vistos sob este
ponto de vista, devem ser tolerados. E pode até ter havido ocasiões em que, por motivos
estritamente políticos, se tenham tornado necessários.

771. 3º - Os banquetes - Antes eram muitos os banquetes. Hoje são poucos e só se aceitam
os indispensáveis. Nesse mês, por motivos especiais, deveria haver três: por ser a
comemoração do santo onomástico do príncipe, pela comemoração do santo onomástico da
infanta Paz e por outro motivo; estes três convites, no entanto, foram reduzidos a um. Eu
prefiro que se gaste em esmolas aos pobres do que em banquetes, bailes, etc. 35
772. 4º - As reuniões de etiqueta (beija-mãos) - Este é meu principal trabalho, porque
desejo que as senhoras usem vestidos longos e com mais recato. Elas dizem que é o vestido
da moda; que é costume vestir assim em tais cerimônias; que em todas as cortes do mundo,
em tais funções, se vai assim, etc., etc. Não me impressiono com tais queixas, digo e faço o
que entendo ser o meu dever. É verdade que atualmente a rainha é a senhora que se veste
com mais recato e modéstia, mesmo assim não estou satisfeito. Queixo-me e manifesto o
desgosto que sinto pelo fato de estar no palácio; por isso mesmo meu desejo é retirar-me.

773. Castigo contra os blasfemadores – Muitos são os castigos que poderia referir, cito
apenas dois: 36 l. Na corte de Madri, Rua dos Relatores, no ano de 1862, realizavam-se
obras numa casa e a passagem estava um tanto quanto obstruída. Um carroceiro, com a
carroça carregada, devia passar por ali e, tendo encalhado a carroça no meio dos entulhos,
começou a blasfemar contra Deus, chicoteando impiedosamente os animais e,
simultaneamente, blasfemando. Eis senão quando um dos animais deu-lhe forte coice nas
têmporas. O carroceiro caiu morto com a blasfêmia na boca.

774. 2. No mesmo ano de 1862, no mesmo povoado da cidade de Madri, na “Calle del
Viento”, alguns pedreiros e serventes abriam valetas para fazer a ligação de um poço de
esgoto de uma casa para a rede central, no centro da rua. Um deles, enquanto trabalhava
com a picareta, soltava blasfêmias e, entre outras, dizia que se sujava com Deus; porém,
como castigo Deus fez com que ele mesmo se sujasse. O muro de proteção rompeu-se antes
do tempo e, asfixiado pelo forte odor e pela grande avalanche de água suja de esgoto,
morreu com a boca cheia e todo o corpo coberto de sujeira.

Capítulo VIII
Prestação de contas ao meu diretor espiritual: 1863

775. No corrente ano (1863), suas majestades não realizaram nenhuma expedição.
Permaneceram sempre em Madri e nas localidades de Aranjuez e na Granja. Assim tive
mais tempo para dedicar-me à pregação, confessar, escrever livretes, mensagens e produzir
estampas. 37

776. No tocante ao anúncio, preguei os santos exercícios espirituais a todas as senhoras e


senhores da corte, isto tudo com grande fruto. Foi obra de Deus. Na igreja de Montserrat
preguei também a novena de são José, a quem se dedicou um altar novo à nova imagem. A
novena foi muito concorrida e fecundos os frutos. Preguei também retiro às Adoradoras, às
Escolápias e às Terciárias, às meninas e empregadas. 38

777. Em Madri confesso todos os dias, das sete às onze horas, quando me levanto para dar
audiência às pessoas que querem falar comigo. Para mim essa é a hora mais enfadonha,
pois me pedem coisas nas quais não posso me meter.

778. Neste ano, nos Sítios, logo após a missa, atendia confissões todos os dias, pois se
confessam comigo todas as camareiras e servidores mais próximos de suas majestades e
altezas, e como todas freqüentam os sacramentos, todos os dias há gente para confessar. Em
Madri, cada uma tem seu confessor e diretor espiritual; nos Sítios, porém, todas confessam
comigo e todas têm uma conduta muito conveniente. Praticam meditação e leitura espiritual
todos os dias, seja por um desejo espontâneo, mas também pelo bom exemplo de sua
majestade que, além das práticas ordinárias de cada dia, a cada ano,no Real Sítio da Granja,
faz os exercícios espirituais de santo Inácio. As demais fazem seu retiro em Madri.

779. Em Aranjuez escrevi o segundo volume de O Colegial Instruído e produzi também


várias estampas. Na Granja escrevi o livro A Colegial Instruída. Presenteei todos os
seminários da Espanha com duzentos exemplares de O Colegial Instruído e mais cinco
bíblias para serem distribuídas entre os seminaristas mais aplicados. Doei também
muitíssimos livros, estampas e rosários. 39

Capítulo IX
Propósitos por ocasião dos exercícios espirituais

780. Nos últimos dez dias do mês de outubro de 1863, fui ao Escorial para fazer exercícios
espirituais, que duraram de 23 de outubro a 1º de novembro inclusive, nos quais fiz os
seguintes propósitos: 1. Anualmente, farei os santos exercícios. 2. Mensalmente, um dia de
retiro rigoroso. 3. Confessarei uma vez por semana. 4. Jejuarei três dias por semana: quarta-
feira, sexta-feira e sábado. Nesses dias, à noite, me absterei da sobremesa. 5. Na segunda,
quarta e sexta-feira me aplicarei disciplina ou outra prática semelhante. Usarei cilício na
terça, quinta e sábados.

781. 6. Na oração pensarei na repreensão que santa Catarina de Sena recebeu. 40 Lembrarei
de são Luís Gonzaga, que só na recitação das matinas gastava uma hora. 41

782. 7. Farei o exame particular sobre a virtude da mansidão.Recordarei da mansidão de


Jesus, modelo e mestre que disse: Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração.
42

783. Lembrarei da mansidão de Maria santíssima, que por nada se deixou levar pela ira,
nem perdeu a perfeitíssima mansidão, com imutável e inimitável igualdade interior e
exterior, sem que jamais se notasse variação no semblante, nem alteração na voz, nem
expressões que indicassem alguma mudança interior. 43 “Considerarei sua utilidade,
porque com humildade se agrada a Deus e com a mansidão ao próximo”. 44

784. “Melhor é fazer pouco com paciência, mansidão e amabilidade, do que fazer muito
com precipitação, ira, enfado e resmungando. Diante deste modo de proceder, as pessoas se
escandalizam e se afastam”.

785. 8. Jamais me mostrarei indisposto. Calarei e oferecerei a Deus tudo que me fizer
sofrer. 9. Nunca me queixarei. Procurarei resignar-me à vontade de Deus, que assim tudo
dispôs para meu bem: pobreza, humilhações, dores, desprezos, etc.

786. 10. Serei sempre amável com todos, principalmente com aqueles que mais me
importunam.
787. 11. Nunca falarei de mim mesmo, nem sobre minhas obras, nem bem nem mal.

788. 12. Direi ao meu bom Deus: Senhor, se vos quereis servir de mim, miserável
instrumento, para a conversão dos pecadores, aqui me tendes.

789. 13. Antes das refeições, direi: Senhor, é para ter forças e servir-vos melhor que me
alimento; não por prazer, pois não desejo nenhum, mas sim por necessidade. 14. Antes de
deitar, direi: Senhor, faço-o para recuperar as forças gastas e para melhor vos servir. Durmo
porque vós, meu Senhor, o ordenais. 15. Antes de estudar, direi: Senhor, estudo para
melhor vos conhecer,amar, servir e para ajudar meu próximo. As devoções para os dias da
semana serão as mesmas dos propósitos realizados nos outros anos. 45

790. 16. Em todas as coisas vou procurar: em primeiro lugar, pureza e retidão de intenção;
em segundo, grande atenção e cuidado; em terceiro, força de vontade.

791. 17. Terei o máximo cuidado em fazer bem cada coisa, como se não tivesse mais nada
para fazer. Com ajuda de Deus, tenho procurado cumprir estes propósitos.

792. A minha maior dificuldade tem sido a mansidão, devido à multidão de pessoas que
vinham falar comigo a respeito de assuntos relacionados com o palácio e com interesses por
cargos públicos. Por mais que lhes explicasse, não se convenciam e isto me torturava. Na
hora de receber essas pessoas, das onze às doze horas, pedia antes a ajuda da graça de Deus
para não me enervar. Enquanto saía uma pessoa e aguardava a seguinte, elevava os olhos e
o coração para uma imagem de Maria santíssima, pedia-lhe a graça e os auxílios
necessários, e assim suportava melhor e oferecia tudo a Deus. Aos que me procuravam
dava uma palavra de ânimo ou um livro espiritual e assim saíam menos desesperados.

Capítulo X
Capítulo importante para a Congregação 46

793. No dia 14 de novembro de 1863, dia em que devia pregar sobre Maria santíssima nos
santos exercícios espirituais que estava pregando no noviciado das Irmãs Terciárias do
Carmo de Madri, Comunidade de Irmãs, Colégio de meninas e criadas, dia de sábado, no
qual faço a leitura espiritual mariana, dia do patrocínio de Maria santíssima, por ter sido
impossível celebrá-la no domingo anterior por ser a oitava de Todos os Santos. Nesse dia,
pois, estava lendo “que a Ordem dos Cartuxos, angustiada pela falta de quem quisesse
professar sob seu hábito em um instituto de vida de tanta austeridade, solidão, silêncio, não
encontrou melhor solução que consagrar-se a Maria santíssima, com voto público de rezar
diariamente seu ofício (o ofício parvo), e com isto alcançou tão perfeitamente sua
perpetuidade que, desde o ano de 1804, perdura inviolada essa severíssima regra, para
vergonha do tempo que, destruindo todo poder, não pode destruir o que se põe sob a
proteção de Maria”. Este conselho de que se rezasse o ofício parvo foi dado por são Pedro,
que lhes apareceu sob o aspecto de um ancião.
794. Nesse dia, veio-me o pensamento de que, se a Congregação rezasse diariamente, além
do ofício divino, o ofício parvo de Maria santíssima, ela nos proveria de pessoas que
aumentariam, dilatariam e conservariam a Congregação.

795. Durante a oração da manhã do mesmo dia parecia que a imagem da Virgem que está
no altar me dizia que assim se fizesse, mas com discrição, bastando que um só membro o
rezasse: um por obrigação e os demais por devoção, se o desejassem e julgassem oportuno.
Porém, os que estivessem nas missões estariam dispensados, pois teriam ocupação
suficiente com a pregação e no atendimento às confissões. Também se poderia dispor que
este ofício parvo fosse rezado pelos que estivessem no noviciado e que não possuem ainda
as ordens sagradas.

Capítulo XI
Relato espiritual de 1864

796. Oriento-me pelos propósitos que fiz nos últimos exercícios, cumpridos com algumas
imperfeições permitidas por Deus nosso Senhor para mais me humilhar e reconhecer na
prática que eu não sou mais do que miséria e que, se algo de bom existe em mim, tudo é de
Deus; eu não sou mais que um puro nada. No corrente ano, o Senhor concedeu-me
conhecer claramente a necessidade e utilidade desta preciosíssima virtude. Nunca a havia
entendido tão bem. 47

797. Neste mesmo ano li novamente as obras de santa Teresa de Jesus.Através dessa leitura
o Senhor me comunicou grandes conhecimentos. Oh!Como o Senhor é bom! Como sabia
de antemão das grandes provas pelas quais deveria passar, preveniu-me com profundos
conhecimentos e auxílios espirituais.

798. Neste ano tenho sido muito caluniado e perseguido por toda classe de pessoas: pelos
jornais, folhetos, livros plagiados, por fotografias e por muitas outras coisas e até pelos
próprios demônios. Em alguns momentos minha natureza se ressentia, mas logo me
tranqüilizava e me conformava com a vontade de Deus. Contemplava Jesus Cristo e via
como estava longe de sofrer o que ele sofreu por mim. Assim me tranqüilizava. Neste
mesmo ano escrevei um livrete intitulado: O consolo de uma alma caluniada. 48

799. Neste mesmo ano, escrevi o Catecismo para uso em toda Espanha; Avocação das
crianças. Fiz que se reimprimisse o Regulamento dos estudantes, em latim; As Regras dos
Clérigos de vida comunitária; As tardes de verão na Granja e Regulamento das Bibliotecas
populares.Esperam-se ótimos resultados através deste livrinho.

800. Neste mesmo ano, preguei missões aos Servitas em San Andrés e nas Salesas Reais.
Nelas o Senhor e a santíssima Virgem fizeram que houvesse muito fruto. Preguei os
exercícios espirituais às Desamparadas, às Escolápias, às Terciárias e às meninas do
Colégio e às criadas. Preguei na corte outros diferentes sermões e, no Escorial, exercícios
espirituais.
801. Diariamente, às três horas da manhã, o despertador me acorda. Comumente, porém, já
estou acordado a essa hora. Faço logo minhas orações e devoções. Dedico-me à leitura
espiritual até às quatro e meia, hora em que desperto os empregados. Depois me preparo
para a celebração da missa. Às cinco horas começamos a meditação que dura uma hora.
Imediatamente celebro a missa no mesmo oratório; depois permaneço em ação de graças
até as sete horas. Vou para o confessionário até as onze. Em seguida, inicio as audiências
que se estendem até as doze horas, quando então me retiro. Rezo a via-sacra e outras
orações, faço o exame particular sobre o amor de Deus; em seguida, almoço, etc.49 Ocupo-
me com a oração, estudo, pregação, visita ao Santíssimo nas quarenta horas, até as oito e
meia da noite, quando juntos rezamos o terço.

Capítulo XII
Acontecimentos úteis a pregadores, confessores e demais pessoas

802. Desde que sou sacerdote, ainda que indigno, muitos casos aconteceram comigo, os
quais não foram registrados por estar sempre muito ocupado. Porém, com a indicação do
meu diretor espiritual de que seria para a glória de Deus e o bem das almas, relatarei alguns
casos, com singeleza e brevidade, tais quais presenciei ou se passaram comigo.

803. Hoje, 15 de abril de 1864, disseram-me que na paróquia de San Andrés, onde eu
pregara missões na Quaresma, haviam cumprido o preceito pascal quatro mil pessoas a
mais que nos anos anteriores.Bendito seja Deus. Glória seja a Deus. Confessaram-se
homens que não se confessavam há quarenta e mulheres há trinta anos. Non nobis, Domine,
non nobis, sed nomini tuo da gloriam (Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu nome dá
glória). 50

804. Males causados pelo pecado de impureza: Hoje, 30 de abril de 1864, chamaram-me
para atender a um doente. Fui. Era um jovem de dezenove anos. A princípio, quando me
encontrava em Madri, confessava-se comigo, ia muito bem; freqüentava os sacramentos,
encomendava-se a Maria santíssima e seguia em tudo os meus conselhos.Depois começou a
freqüentar más companhias e já não vinha confessar-se comigo. Antes de morrer, porém,
chamou-me. Eu fui e ele me disse: “Morro tísico por ter-me entregado ao vício da
masturbação, por ter abandonado os sacramentos e não mais me ter encomendado a Maria
santíssima”. Morreu poucas horas após ter-se despedido de mim.

805. Relatarei aqui alguns casos bastante escabrosos que tive de resolver e remediar.
Somente poderão lê-los sacerdotes da prudência e tino para precaverem-se e temer. 806-
810. 51

Capítulo XIII
Continuação dos relatos que podem servir de correção

811. Madri, 31 de março de 1864. Um senhor recentemente casado disse à esposa, uma
senhora muito virtuosa: “Nada te proíbo; apenas desejo que te abstenhas de uma coisa: da
confissão, pois não quero que um sacerdote governe minha casa, como a governaria se te
confessasses freqüentemente, pois te deixarias levar pelos conselhos dele”.

812. Acrescentou, para afastá-la dos sacramentos: “Não creio que Deus tenha confiado seus
tesouros e suas graças aos sacerdotes. Sei por experiência própria que, quando um senhor
rico, poderoso, sábio e prudente nomeia um mordomo a quem deseja confiar seus tesouros
e através do qual os quer distribuir, procura alguém que seja probo,instruído e educado, e
nunca alguém que seja imoral, bobo e grosseiro.Isto o diz a razão e o evidencia a
experiência de todos os dias. Como,pois, se pode crer que Deus tenha escolhido servidores
de seus dons,graças e ministros de sua igreja a sacerdotes, homens grosseiros, sem ciência,
sem educação e sem costumes?” Assim falava este ímpio, linguagem antiga dos hereges,
mil vezes refutada pelos santos Padres e doutores da Igreja. É bem verdade que a graça e os
efeitos dos sacramentos não dependem da santidade do sacerdote, embora tenhamos o
dever de ser instruídos, bem educados e de santos costumes.

813. Madri, 1o de abril de 1864. Uma senhora, diretora de um colégio, disse-me: “O mais
bobo de cada casa é que se mete na igreja e se torna padre”.

814. Madri, 15 de abril de 1864. Uma senhora muito piedosa e zelosa, disse-me: “Há muita
ignorância nos clérigos. Seria preferível que em algumas paróquias da zona rural não
houvesse sacerdote e os fiéis rezassem o terço em lugar de ter missa, para não acontecer
que algum sacerdote, atrasado e imoral, não faça mais que escandalizar”.

815. No mesmo dia comentava uma senhora sobre a última vez que fora comungar. O
sacerdote que lhe deu a sagrada comunhão estava com os dedos tão sujos e com cheiro tão
forte de fumo que teve nojo e ânsia.Estando já com a hóstia já na boca, não pôde engoli-la:
sentia o estômago revolto em ânsias de vômito, tudo por causa do nauseabundo sacerdote.
Ai de nós se, em lugar de atrair os fiéis com bons hábitos, os afastamos com modos
grosseiros e paixões não mortificadas! Ai de nós se, em lugar de sermos o bom odor de
Cristo em todo lugar, como diz o Apóstolo, 52 somos a peste que os espanta!...

816. No ano de 1864, Carmelo Sala e Atanásio López foram pregar uma missão em uma
povoação chamada Oche. 53 Uma mulher, ao vê-los chegar, pôs-se a gritar: Menina, prenda
as galinhas, que os missionários estão chegando. Os próprios missionários ouviram-na e me
contaram. A mulher, durante a missão, arrependeu-se e justificou-se aos missionários: o
que havia dito era por causa de outros que haviam passado antes e por causa da boa vida
que levavam. Como convém que os missionários sejam mortificados, muito virtuosos e
exemplares!

817. Primeiro de fevereiro de 1865. Os padres Mon e Sáenz de Cenzano, jesuítas, passaram
da missão de Pamplona para a missão de Zaragoza; tomaram o trem e se sentaram nas
poltronas de primeira classe. De imediato, os ímpios viram ou souberam e comentaram em
conversas e pelos jornais. O que os missionários devem fazer é não viajar de treme, se
alguma vez for necessário, o melhor é ir de segunda ou de terceira classe e, melhor ainda, ir
a pé, como Jesus, montado num jumento.
Capítulo XIV
Castigos advindos por causa de maldições

818. No dia 18 de maio de 1864, encontrando-me, em Madri, aproximou-sede mim uma


mulher de um povoado próximo, muito aflita, pedindo-me consolo e conselho sobre a
forma como deveria agir. Tinha ela um filho de 25 anos, habituado a sair à noite em
companhia de outros. A mãe não queria que saísse de casa à noite; porém, ele não fazia
caso das admoestações da mãe. Certa noite, percebendo que perdera o controle, cansada,
disse-lhe: Já que não posso te sujeitar, a justiça te sujeitará. Com a maldição da mãe, saiu
em companhia dos oito colegas, como de costume. Aconteceu insultarem uma mulher; a
polícia prendeu a todos e foram parar na cadeia. Ao relatar-me o fato, haviam transcorrido
oito meses; nesse tempo todos foram soltos, menos seu filho, condenado a quinze anos de
prisão. A mãe dizia que isso foi castigo de Deus, por dois motivos: primeiro, pela
desobediência do filho e, segundo, pela maldição que lhe lançara.

819. Dia 25 de novembro de 1864, em Madri, uma mãe me disse que tinha uma filha de
oito anos e meio, bastante esperta. Certa ocasião, a menina fez uma travessura própria da
idade e vivacidade; a mãe, encolerizada, disse-lhe: Que morras já! A própria mãe disse que
amenina, bastante sadia, a partir do momento da maldição, adoeceu e morreu. A própria
mãe reconhecia que sua maldição lhe havia causado a morte, por isso estava inconsolável.

820. Madri, 10 de janeiro de 1865. Uma mãe disse-me que tinha duas filhas: uma de vinte
anos e outra de catorze. A mais velha morreu, e ela disse: Seria melhor que tivesse morrido
a mais nova. E esta foi morta. O fato aconteceu assim: um homem raptou-a, levou-a
consigo, estuprou-a, apertou-lhe a garganta para que não gritasse, acabou afogando-a,
jogou-a em um escoadouro e se foi. Este fato foi muito notório em Madri. Eu o ouvi pelo
testemunho da própria mãe.

821. Madri, 25 de março de 1865. Uma moça solteira disse-me que vivera amigada, com
promessa de casamento com três, um após o outro. E que os três a haviam enganado e
abandonado; ela, indignada, amaldiçoara os três e desejara-lhes mal; aos três aconteceu
exatamente o mal que ela lhes havia desejado, conforme a própria maldição que lhes
lançara.

822. Muitos exemplos deste tipo, com maldições que se verificaram, poderiam ser
referidos. Fiquei sabendo e também vi muitos casos cujos desejos do maldizente se
cumpriram nos termos e tempo da predição. Vi-os em todos os estados de vida, porém, os
mais comuns foram os verificados entre mães e filhos, entre pais e filhos, entre maridos e
mulheres; patrões, empregados e empregadas, bem como entre amantes que se enganaram
mutuamente, faltando com a palavra dada.

Capítulo XV
Alguns exemplos de pecados castigados

823 - 826. 54 (Este capítulo não foi publicado por expressa vontade de Claret. Porém, pode
ser lido em seus manuscritos, Mss. Claret, I, 497-499).
Capítulo XVI
Fatos que testemunhei

827. No dia 25 de dezembro, do ano..., às quatro da manhã, começou a nevar e continuou


por dois dias seguidos. Foi tanta a neve como jamais fora visto em Madri. No entanto, uma
mulher, com toda aquela neve, veio de uma cidadezinha a dezoito quilômetros para fazer
sua confissão.

828. Uma senhora de 64 anos veio confessar-se comigo. Durante sua vida não se confessara
mais do que duas vezes. A primeira vez que em que se confessou tinha dez anos e a
segunda, vinte anos, por ocasião de seu casamento. Desde muito pequena sempre foi muito
má. Porém, piorou depois de casada; foi muito escandalosa. Esteve em lugares diferentes e
em todas as partes teve comportamento péssimo. Finalmente regressou a Madri, sua pátria,
e sentiu desejos de confessar-se, pois fazia 44 anos que não se confessava e as duas únicas
confissões não foram bem-feitas. Eu, ao ouvir sua longa e péssima vida e, ao vê-la tão
arrependida e desejosa de iniciar uma vida penitente, perguntei-lhe se praticava alguma
devoção. Respondeu-me que, não obstante sua vida errada, cada dia rezava sete pai-nossos
e sete ave-marias à santíssima Virgem do Carmo, pois desde pequena ouvira dizer que era
uma boa devoção. No mês de novembro de 1864 confessou-se e passou a viver cada vez
melhor. Não duvido que conseguirá a salvação.

829. Madri, 21 de março de 1865. Converteu-se e confessou-se aquele que fazia caricaturas
e fotografias contra mim. Eram muitas, extremamente caluniosas e também foram vendidas
e propagadas por toda parte.

830. Nesse mesmo ano converteu-se uma mulher muito má, que havia cometido toda
espécie de pecados. Converteu-se através da oração Ó Virgem e Mãe de Deus, etc., que
recitávamos depois do sermão. Não obstante sua má vida, todos os dias rezava e,
finalmente, a virgem santíssima tocou-lhe o coração. Ela fez uma boa confissão geral.
Nunca se havia confessado bem. Reservadamente direi que havia feito toda sorte de
pecados. Havia cometido especialmente o pecado de torpeza consigo mesma, com
mulheres, com homens solteiros, viúvos e casados, com seu próprio pai, com seu próprio
filho, com animais e de todas as maneiras. Envenenou o marido, tentou suicídio muitas
vezes, mas não conseguiu acabar com a vida por mais que o procurasse. Ficava semimorta
e era curada. Invocara o demônio muitas vezes e entregara-se a ele para que a levasse, etc.,
etc. Devido a esta pequena devoção que todos os dias rezava a Maria santíssima, o Senhor a
preservou. Finalmente o Senhor a converteu. Ó Maria santíssima, como és misericordiosa!
Esta conversão ocorreu durante a novena do Imaculado Coração de Maria, em 1865.
Capítulo XVII 55

Capítulo XVIII
Saída da Corte 56

831. Às três horas e trinta minutos da tarde do dia sete de maio de 1865, dia do Patrocínio
de São José, Jesus me disse que fosse muito devoto de são José e recorresse a ele com
confiança.

832. No dia 17 de julho de 1865, às sete horas da manhã, estava rezando diante da imagem
de Cristo do Perdão na igreja da Granja, quando Jesus me disse: Antônio, retira-te. Isto foi
conseqüência do ato de sua majestade ter aprovando o chamado Reino da Itália. Já se
suspeitava desta aprovação. Os bispos começaram a enviar seus relatórios, começando pelo
arcebispo de Burgos. 57 A rainha perguntou o que eu achava da posição dos bispos.
Respondi-lhe que me parecia muito boa. Disse que eu faria o mesmo se estivesse no lugar
deles. Eles escrevem porque estão ausentes. Eu não escrevo porque me encontro diante de
vossa majestade e falo pessoalmente, frente a frente. Eles escreveram em nome próprio e
dos seus rebanhos, ao passo que eu não preciso, pois não tenho senão uma ovelha, que o
lobo vai devorá-la.Aludia a sua majestade, que entendeu muito bem e disse-me: Deus nos
livre...

833. Como isto era previsto que iria acontecer, eu a exortava para que fugisse de tal
aprovação, que se afastasse dessa questão. A rainha me prometia que jamais se posicionaria
contra o santo Padre, pois iria contrariar também o rei de Nápoles, seu parente muito
próximo. 58 Algumas vezes chegara a me dizer que antes preferia deixar de ser rainha, que
aprovar tal coisa; outras vezes assegurava que preferia perder a própria vida. Como eu via
que, finalmente, aconteceria a ela o mesmo que ao rei de Nápoles, e dizia isso a ela,
exortava-a a morrer honrada, sem macular-se com tão feia mancha. Além de todas as
exortações que lhe fiz, cheguei até a ameaçá-la, dizendo duas vezes que, se aprovasse o
reino da Itália, sairia da corte. Era o modo de sensibilizá-la porque muito me estimava.

834. Finalmente, a 14 de julho, dia de são Boaventura, data funesta para a rainha e para
todos os católicos. Às nove horas da noite chegaram todos os ministros à Granja. O
presidente O’Donnell foi sozinho ao palácio e falou com sua majestade das nove às onze
horas da noite. Disse que o caso do Reino não é como pensam, que o leão não é tão feroz
como se pinta. Disse ainda que aqui não se trata de aprovar o direito, mas sim meramente o
fato, e isto da parte de Nápoles; porém sem atingir, de nenhum modo, o que pertence ao
pontífice. Além deste engano artificioso, falou-lhe ainda da conveniência econômica,
sobretudo porque o exército poderia se revoltar e forçar a aprovação do chamado reino da
Itália. Dessa maneira, pode-se dizer que ela foi ludibriada e ameaçada. 59

835. No dia seguinte, na hora pré-determinada, apresentaram-se todos os ministros no


palácio. Todos juntos aprovaram o que havia dito o presidente, na noite anterior.

836. Este acordo provocou em mim um sentimento de morte. Apresentei-me a sua


majestade e mostrei-lhe o mal que cometera. Ela não fazia outra coisa a não ser chorar.
Disse-me que desde o momento em que consentiu não a havia deixado a febre.
837. Este acontecimento causou-me tamanho desgosto, que fui acometido de um terrível
desarranjo e, como na Granja são fatais as diarréias por causa da água, pois a cada ano, por
esse motivo morrem alguns da comitiva. Aproveitei este motivo para ir até a Catalunha e
separar-meda corte, apresentando como pretexto a viagem para não causar maior impacto à
rainha, pois ela estava no quarto mês de gravidez e poderia abortar. Suplicava-me e pedia
com gemidos e lágrimas que eu não me retirasse. Eu dizia ser necessário para salvar minha
vida, que havia feito muitos sacrifícios nos oito anos e alguns meses que havia estado ao
seu lado e que, finalmente, não me exigisse o sacrifício da própria vida. 60

838. Saí da Granja e fui a Madri, em seguida a Zaragoza e depois a Barcelona e,


finalmente, a Vic. Ao retirar-me do ambiente da corte, já me sentia um pouco melhor,
porém continuava o desarranjo, que ainda continuou uma porção de dias, mesmo depois de
ter chegado a Vic. 61

839. No dia 14 de agosto deste mesmo ano, às nove e trinta da noite, encontrava-me na
igreja de são Domingos, em Vic, onde se realizavam as Quarenta Horas. Fui visitar o
Santíssimo e o Senhor me disse lá do Santíssimo Sacramento do Altar: Irás a Roma.

840. Carta a mim escrita por sua Majestade a Rainha: Santo Ildefonso, 20 de julho de 1865.
Senhor Claret, meu Pai: A finalidade destas linhas é suplicar-lhe, pelo carinho que nos tem,
que esteja no dia dois do próximo mês, em Valladolid, a fim de nos acompanhar até Zarauz.
O senhor bem compreende o que me aconteceria e o que diriam se me vissem as pessoas
sem a sua presença. Se o senhor, após ter estado em Zarauz, precisar de mais banhos,
poderá daí mesmo afastar-se alguns dias, e voltar em seguida. Faça mais este sacrifício por
sua filha de confissão que tanto lhe deve. Peço-lhe, caso atenda meus pedidos, que me
escreva, e minha alegria será imensa. Peça a Deus e à virgem Maria que a todos nos
conserve a saúde. O rei está enfermiço. Conto com suas preces para que não seja nada.
Confiamos todos nas suas orações, e tudo delas esperamos. Sua respeitosa filha que o ama,
Isabel. 62

Capítulo XIX
A carta de sua Santidade

841. Uma vez reconhecido o reino da Itália, sua majestade a rainha consultou o santo padre,
pedindo conselho para saber como deveria proceder. 63 O santo padre lhe respondeu
dizendo: Majestade: A carta que vossa majestade me dirigiu ultimamente e, através da qual
me pede conselho, se vossa majestade deve ou não reconhecer o estado atual da Itália,
encerra em si graves dificuldades da parte da que pede conselho e, de minha parte, uma
verdadeira impossibilidade de poder dar-lhe uma resposta afirmativa. Não desconsidero a
difícil situação em que se encontra vossa majestade e reconheço que no sistema
parlamentarista o soberano se encontra muitas vezes impedido de executar as resoluções
que sabe deveriam ser tomadas. Contudo, estas resoluções jamais devem nem podem ser
admitidas, se elas são contra a justiça. Por esta razão compreenderá facilmente vossa
majestade que meu conselho será sempre contrário ao reconhecimento de uma usurpação
sempre injusta aos príncipes italianos, pois foram prejudicados, e muito mais ainda pelo
que tange à santa Sé, cujo patrimônio me foi confiado para que o deixe íntegro aos meus
sucessores.

842. Parece impossível à nação espanhola, tão famosa pelo amor à fé católica, e que em
1849 deu ao mundo todo um brilhante exemplo de amora esta santa cátedra, e mesmo à
minha pobre pessoa, 64 pretenda agora obrigar vossa majestade a dar um exemplo
completamente contrário! Espero que isso não aconteça.

843. Verdade é que o desejo por mim manifestado de preencher as sedes episcopais vagas
na Itália, foi motivo para supor por parte de alguns, que esta santa Sé continue as tentativas
de entrar em contato com orei Vitório Manuel e seu governo a ponto de reconhecer o estado
atual da Península. Porém, os que pensaram assim caíram em grande equívoco, pois uma
coisa é satisfazer a um dever de consciência imposto por Jesus Cristo, qual seja o de
ponderar todos os meios possíveis para poder prover às necessidades da Igreja, e outra
coisa é reconhecer as usurpações e sancionar, assim, a falsa doutrina dos fatos
consumados.Busquei o modo de poder cumprir com meu dever e, direi até com esperança
de feliz resultado, nas primeiras tentativas feitas com o negociador piemontês; porém, após
sua volta a Roma, tendo recebido instruções completamente diferentes, essas mesmas
esperanças se desvaneceram completamente, e as coisas voltaram ao seu estado inicial.

844. Quanto ao mais, rogo para que Deus sustente vossa majestade e lhe dê as luzes
necessárias para que acerte fazer o bem que lhe seja possível em seu reino e salvar a
sociedade, exposta em nossos tempos a grandes danos e evidentes perigos. Concedo-lhe a
bênção do fundo do coração e à sua majestade o rei, o príncipe de Astúrias, à augusta
família e a todos os seus súditos. Dada no Vaticano, aos 15 de junho de 1865. Pio IX. Não
obstante a leitura da carta por sua majestade e pelos ministros, o reconhecimento do
chamado reino da Itália acabou acontecendo. 65

Capítulo XX
Carta do Núncio, enquanto eu estava na Catalunha

845. Ao perceber o rumo que as coisas tinham tomado, pedi ao senhor núncio apostólico
que consultasse Roma sobre a maneira de eu devia proceder. 66 A resposta que veio de
Roma, de parte do núncio, constitui-se na seguinte carta: Excelentíssimo e Ilustríssimo
Senhor Dom Antônio Maria Claret Arcebispo de Trajanópolis Estimado Senhor e querido
Irmão Recebi ultimamente a resposta de Roma sobre sua consulta, que é a seguinte: “Não
estranho, escreve-me o senhor Cardeal Antonelli, que o senhor Claret esteja angustiado e
busque sábios conselhos para tomar uma resolução e tranqüilizar seu ânimo. Considerando,
porém, o bem que o mesmo poderia prestar em relação aos interesses religiosos e à boa
causa, mesmo depois do reconhecimento do reino da Itália, não se pode persuadi-lo de que
deixe o posto que tem na Corte, porém tampouco se lhe pode sugerir que continue no
mesmo, se isto lhe ocasiona problemas de ordem espiritual e contraria a sua consciência.
Portanto, não resta outro recurso senão encomendar-se ao Senhor, implorar as luzes
divinas, fazer o que Deus lhe inspire para o bem da Igreja e das almas. Esta é a melhor
solução e este o conselho que o senhor deverá dar ao senhor Claret em nome também do
Santo Padre”.
846. Procurei traduzir literalmente a dita resposta, a fim de que o senhor conheça com toda
a exatidão a opinião do santo Padre. Esta se reduz ao seguinte: rogue a Deus que o ilumine
e, então, conforme a inspiração do Senhor, continue, ou não, no cargo de confessor de sua
majestade. O santo Padre, sem impor nenhum desses dois extremos, não desaprovará a
resolução tomada à luz da especial assistência do Senhor.

847. Permita-me uma observação sobre a resposta do santo Padre. Ele não disse, é verdade,
que o senhor continue no cargo de confessor, porém tampouco diz que o deixe. Portanto, o
Senhor não agiria contra seus deveres, nem desgostaria o santo Padre. Se não houvesse
ambas as possibilidades, o santo padre teria dito para o senhor não continuar no cargo. O
motivo pelo qual não chegou a afirmar a conveniência do senhor continuar no cargo, não é
por ter certeza de que o senhor faria uma ação censurável, mas só porque não deseja que o
senhor a faça se a julga contrária à sua consciência.

848. De tudo isso, o que mais importa é resolver a questão, por isso implore do Senhor as
santas luzes de sabedoria e prudência para decidir se deve ou não, de acordo com a sua
consciência, continuar por mais tempo na Corte. Bem sei que suas aspirações, suas
tendências, seus desejos, seriam de deixar a corte o mais rápido possível e com razões de
sobra para ficar tranqüilo com a decisão. Porém, o senhor me indica que as aspirações, as
tendências, os desejos não são a consciência, e aqui única e exclusivamente se trata da
consciência.

849. A franca e clara declaração publicada tirou toda dúvida sobre seu modo de pensar a
respeito do reconhecimento do reino da Itália. 67 Ninguém, a partir de agora, poderá
suspeitar que o senhor não esteja em conformidade com os bispos e com o sentimento
católico, tão expressivamente manifestado; ou que oculta ou dissimula sua opinião para não
deixar o palácio. Seu afastamento tornaria difícil a prestação de inúmeros serviços à Igreja,
especialmente na eleição de bispos. O fato ocasionaria também, segundo a opinião do povo
fiel e do clero, grave dano à rainha. Estas duas últimas reflexões são de máxima
importância e merecem a mais séria meditação. Quanto à primeira, creio não ser necessário
nenhuma recomendação ao senhor; quanto à segunda,somente recordar-lhe a conspiração
revolucionária contra sua majestade, especialmente porque no fundo de seu coração é
católica e fiel ao papa. E que será se os bons também se tornam inimigos de sua causa
como imprudentemente se procura? Quais serão as conseqüências, seja para o Reino, seja
para a Igreja?

850. O santo padre professa todo afeto à sua majestade; deplora profundamente o
reconhecimento da Itália; porém, como sabe que também a rainha o deplora, se compadece
afetuosamente dela, se não soube ou não pôde dominar as circunstâncias.

851. Espero que, com a graça de Deus sua saúde tenha dado sinais de melhora; que mande
notícias, especialmente sua resolução. Não se esqueça, em suas orações, daquele que
sempre lhe devota especial carinho. Seu caro irmão, Lourenço, arcebispo de Tiana. Madri,
29 de julho de 1865.
852. Vic, 23 de agosto de 1865. Não sabendo o que fazer com relação a voltar para a Corte,
ou não, comuniquei-o ao superior-geral da Congregação do Imaculado Coração de Maria.
Ele confiou o problema aos quatro consultores da Congregação, para que todos o
recomendassem a Deus até que chegasse o dia marcado para uma reunião. 68 Realmente,
encontramo-nos no dia marcado, e os cinco votos foram assim distribuídos: três para que
não voltasse à corte e dois para que retornasse. Em vista disso, resolvi não voltar, mas
dispus-me a continuar pregando retiros espirituais e outras atividades semelhantes. 69

Capítulo XXI
Em minha defesa 70

853. O senhor Claret, arcebispo de Trajanópolis, confessor de sua majestade, estava


resolvido a escutar em silêncio, por tempo indeterminado, as conjeturas, ora errôneas, ora
caluniosas dirigidas a ele há anos, na espera de Deus, a quem orava por seus autores para
que lhes iluminasse o entendimento ou apaziguasse a malícia de seus detratores.

854. Atendendo, porém, a insistentes pedidos de pessoas que, além de respeitá-lo e amá-lo
como merece, julgam importante para a Igreja desmentir ou retificar tais manifestações,
ousamos publicar a seguinte resenha de suas obras; resenha redigida por pessoa fidedigna e
bem informada dos acontecimentos. De nossa parte, somente tomamos a liberdade de
acrescentar uma coisa: que Claret deveria, a todo custo, fugir de tudo que tivesse caráter
político, pois correria o risco de deixar de fazer o bem em favor dos interesses da Igreja,
enquanto apolítica os fere e despreza.

855. Nasceu o excelentíssimo senhor Arcebispo Claret, na vila de Sallent, província de


Barcelona, diocese de Vic; ali mesmo cursou as primeiras letras, sendo depois enviado
pelos pais a Barcelona, onde aprendeu desenho na Lonja, pela qual foi várias vezes
premiado. Estudou química, ciências, francês e, como se sentisse chamado para a carreira
eclesiástica, estudou latim. O bispo, d. Pablo de Jesus de Corcuera, enviou-o para o
seminário de Vic, em cujos livros de matrícula consta sua aprovação com elogios em todos
os anos da carreira.

856. Em 1834, com título de Benefício, foi ordenado in sacris com o senhor Balmes, sendo
este o primeiro dos diáconos e Claret o primeiro dos subdiáconos. Na missa solene de
ordenação, Balmes cantou o evangelho e Claret a epístola. Ambos foram sempre muito
amigos e passavam juntos muitas horas na biblioteca episcopal estudando em uma mesma
mesa.

857. Aos 13 de junho de 1835, foi ordenado presbítero e, no dia 21cantou a primeira missa
em sua própria pátria por ser ali a sede do benefício em vista do qual fora ordenado.

858. De 1835 a 1839, anos em que ali morou, seu superior eclesiástico pediu-lhe que
assumisse o cargo de pároco da mesma paróquia, na qual trabalhou dois anos e mais dois de
ecônomo. Deve-se salientar que a vila de Sallent, naqueles anos, estava a favor de Isabel II.
Estando o padre Claret à frente da paróquia e, ainda mais como superior da comunidade de
beneficiados do lugar, tornou-se muito conhecido e respeitado por todas as autoridades.
Pertenciam a essa mesma corte de Madri o excelentíssimo senhor barão de Meer, então
capitão-geral de Catalunha, e o excelentíssimo senhor marquês de Novaliches, com quem
sempre andava junto, os dois são testemunhas oculares, pois no decurso de quatro anos
estiveram muitas vezes naquela povoação. O capitão-geral hospedava-se na casa Claret,
que é a principal da povoação. Claret ia visitá-lo como autoridade eclesiástica.
Encontravam-se, tanto na casa paroquial na qual vivia, como na que o general se
hospedava. Assim, estas duas autorizadas testemunhas servem de solene desmentido aos
que, por finalidades escusas, dizem que foi faccioso.

859. No início de outubro de 1839, desejoso de entregar-se às missões estrangeiras, foi a


Roma, onde permaneceu até meados do mês de março do ano seguinte, época em que foi
acometido de reumatismo, por causada muita chuva e intensa umidade. Como remédio para
a cura, os médicos o aconselharam a voltar para a Espanha.

860. Há pouco tempo de haver voltado restabeleceu-se completamente, e o superior


eclesiástico enviou-o para a paróquia de Viladrau. Daí começou a pregar missões por toda a
Catalunha. Era conhecido por Mosén Claret, nome normalmente dado aos sacerdotes em
toda Catalunha. Porém, em 1846, durante a pregação do mês de Maria em Lérida,
começaram a chamá-lo de Padre Claret. Vendo-o constantemente em missão, talvez tenham
pensado tratar-se de algum dos religiosos franciscanos do convento de Escornalbou,
homens apostólicos consagrados às missões.Daí vem, sem dúvida, o nome, atribuído pelos
que ignoravam sua história.

861. No começo de 1848, encontrava-se de passagem pela corte. Nela pregou a convite de
d. Buenaventura Codina, bispo das Canárias. Depois levou-o consigo e esteve pregando
missões naquelas Ilhas até meados de 1849.

862. No dia quatro de agosto do mesmo ano, foi nomeado bispo de Cuba, dignidade que
quis a todo custo renunciar, até que, por ordem do bispo de Vic e de seu diretor espiritual,
aceitou, no dia quatro de outubro. Foi sagrado bispo em Vic, no dia seis do mesmo mês do
ano seguinte.Quando d. Brunelli, núncio de sua santidade naqueles anos, chegou a esta
corte, lhe impôs o pálio. Imediatamente dirigiu-se à sua diocese.Em março de 1857, foi
nomeado confessor de sua majestade.

863. Foi caluniado em três pontos, nesses últimos anos: 1o - que fora faccioso “trabucaire”
(antigo rebelde catalão, armado de trabuco) o que se demonstrou ser totalmente falso.

864. 2o - Foi caluniado supondo que se tivesse comprometido com apolítica. Que se
pergunte a todos os ministros desde o ano de 1857 até o presente. Jamais, oralmente ou por
escrito, se comprometeu com política, por seja lá o que fosse. 71

865. 3o - Foi atrozmente caluniado em seus piedosos e instrutivos escritos, chegando-se à


vileza e infâmia extremas de adulterar seus livros, entre os muitos que o senhor Claret
escreveu. Entre eles,encontra-se El Ramillete (O Ramalhete): este opúsculo contém uma
seleção de orações de ação de graças, intercessão e orações com atos de amor; os inimigos
o substituíram por outro com o mesmo título, mas com ilustrações e figuras tão libidinosas
e obscenas jamais vistas,tudo atribuído ao senhor Claret. 72
866. O mesmo fizeram com o folheto chamado Chave de ouro. Estando em sua diocese de
Cuba, dirigindo ele mesmo as conferências aos sacerdotes recém ordenados, a fim de
instruí-los teórica e praticamente na administração dos sacramentos, escreveu um livro
comesse título que, com a maior rapidez, se estendeu por todas as dioceses da Espanha; era
motivo de felicitação por parte dos prelados. Pois bem, que fizeram os inimigos?
Escreveram um opúsculo com esse mesmo nome, com figuras obscenas e as explicações
mais repugnantes, atribuindo a autoria também ao padre Claret. Há mais de dez anos o livro
era usado pelos sacerdotes. No último ano apareceu esta coisa infernal, com o mesmo
nome, para manchar, como se o pudessem, aquele livro e seu autor. 73

867. Os amigos, por várias vezes, disseram ao padre Claret que se defendesse; porém, ele
sempre se negou a fazer isso, dizendo que a melhor maneira de se defender era não fazer
caso e, ao mesmo tempo, rezar por eles, como fez Jesus do alto da cruz, dizendo: Pai,
perdoa-os porque não sabem o que fazem nem o que dizem, 74 pois esses desventurados
não sabem o que fazem nem o que dizem a si mesmos.

868. Respeitamos seu silêncio e sua oração, no entanto, a caridade e a justiça exigem que se
publiquem estas verdades, por dois motivos: primeiramente para confusão dos maus,
tirando-lhes a máscara atrás da qual se escondem; em segundo lugar, para avisar os
incautos, a fim de que não se deixem enganar por semelhantes calúnias e imposturas que
continuamente inventam contra o padre Claret, como fizeram os judeus contra Jesus. 75
Tirado do jornal La Esperanza, do dia 24 de janeiro de 1865, e é verdade o que diz.

Capítulo XXII
1865: Le Monde publica notícias do Escorial 76

869. A revolução e seus “condottieri”, disciplinados sob o nome de franco-maçons,


esforçam-se para apagar o ensino religioso e a fé católica da Espanha e subordinar a
política nacional aos interesses comerciais da Inglaterra. 77 A Igreja espanhola, despojada
dos seus bens e do auxílio valioso das ordens religiosas, demonstrou, no entanto, mediante
a adesão unânime ao soberano pontífice, e por seus perseverantes esforços contra a
imprensa irreligiosa, fortalecer-senas provas e revigorar-se para os combates decisivos que
afirmarão a liberdade soberana da Igreja de Jesus Cristo. Uma das obras mais notáveis do
episcopado espanhol é a reestruturação do seminário do Escorial, levada a efeito pelo
excelentíssimo e ilustríssimo d. Claret, arcebispo de Trajanópolis, sob os auspícios de sua
majestade a rainha Isabel II.

870. Foi este prelado heróico quem, apoiando a rainha em meio à debilidade de seus
ministros constitucionais, resolveu formar um estabelecimento que fosse modelo de ensino
eclesiástico e, através de seus esforços e dos de d. Dionísio González Mendoza, vice-
presidente,o seminário do Escorial oferece as mais brilhantes esperanças. Adotou o plano
de estudos de outros seminários, destinando dois anos à filosofia, um à física e sete à
teologia.
871. O senhor González, versado nas ciências modernas e homem de espírito
eminentemente prático, tendo em conta que os jovens teólogos teriam necessidade de fazer
frente aos erros vindos do exterior e, sobretudo, à filosofia alemã de Strauss, Hegel e
Schelling, a fim de combatê-los, determinou que os jovens alunos de teologia dominassem
a língua alemã. E já setenta alunos lêem com notável facilidade as obras escritas nesta
língua. Estuda-se também, de uma maneira completa, o Francês e o Inglês. Além disso, o
Hebraico e o Grego, por constar no programa. Muitos estudam também o Árabe. Um sábio
professor deste seminário fez uma compilação das gramáticas grega, alemã e inglesa para
uso do próprio seminário. Os teólogos terão, em breve, um curso de arqueologia
eclesiástica e demais ciências afins às ciências sagradas.

872. As excelentes disposições e as notáveis faculdades intelectuais dos estudantes


prometem notáveis frutos do seminário do Escorial regenerado. No caderno chamado
“Apuntes” (anotações) encontram-se notícias mais extensas a respeito do Escorial. 78

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