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SAFATLE, Vladimir. Uma Arqueologia Do Conceito de Liberdade No Ocidente

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Universidade de São Paulo

Departamento de Filosofia

Uma arqueologia do conceito de liberdade no


ocidente

Curso Integral
14 aulas

Primeiro semestre de 2020


Prof. Vladimir Safatle
Uma arqueologia do conceito de liberdade no ocidente
Aula 1

Se vocês me permitem, eu gostaria de começar esse curso discutindo a ú ltima


palavra de seu título: uma arqueologia do conceito de liberdade “no ocidente”.
Porque há de se perguntar pelo sentido de restringir a discussã o sobre os
desdobramentos do conceito de liberdade ao ocidente. O que afinal significa tal
restriçã o? Estaria eu a dizer que a liberdade é uma invençã o do ocidente, que ela
é o presente do ocidente ao mundo, espalhado através de um contá gio
irresistível de lutas sociais que questionariam estruturas arcaicas e autoritá rias?
Pois comecemos por sermos honestos e admitamos quã o difícil é para nó s
escaparmos dessa narrativa. Nó s fomos formados para repetir e aprofundar tal
histó ria, nossa formaçã o filosó fica nã o nos fornece a capacidade de sair do
ocidente, de nã o começar por sua matriz grega. Nã o sabemos as línguas nã o-
europeias, nã o estudamos os textos de outras tradiçõ es, nã o conhecemos
realmente seus debates, conflitos e histó rias. Quando procuramos sair,
precisamos pedir apoio à antropologia, pois há muito pouco na filosofia que nos
daria segurança para tanto.
Isto tem muito a ver com o que entendemos exatamente por “filosofia”.
Pois nã o deixa de ser sintomá tico, nã o deixa de ser o mais profundo de todos os
sintomas, a maneira com que aprendemos a defender a filosofia como a mais
genuína e ú nica invençã o do ocidente. Podemos admitir que a engenharia
encontrou seu desenvolvimento autô nomo em vá rias localidades geográ ficas, no
Peru dos Incas, no México dos Aztecas e Maias. Podemos admitir que a
administraçã o tem uma longa histó ria na China. Podemos falar o mesmo da
astronomia, da medicina, da matemá tica, da literatura, mas nã o a filosofia. Ela
seria algo como a orquídea singular do logos em uma lamaçal infinito de mitos.
Esta passagem do logos ao mito teria ocorrido em um lugar específico, na Grécia,
um “milagre grego”, como se disse vá rias vezes. Dentre numerosos exemplos,
fiquemos com este enunciado em um coló quio cujo título era exatamente: “O
nascimento da razã o na Grécia”:

Que a ideia e o projeto da racionalidade tenha visto o dia com os gregos,


isto nã o é objeto de dú vida alguma. O tema desse congresso: ‘o
nascimento da razã o na Grécia’ exprime pois uma evidência. Entã o por
que fazer um congresso sobre essa questã o? Se a emergência da razã o na
Grécia interessa nossa época, moderna ou pó s-moderna, é porque talvez
estejamos assistindo a seu declínio, como se o crepú sculo da razã o
produzisse a necessidade de rememorarmos sua aurora 1.

Afirmaçõ es como estas exprimem muito claramente o tipo de evidência que


constitui nossos departamentos de filosofia. Posteriormente, tal milagre
representado pela emergência da razã o teria contaminado todos aqueles que se
1
GRONDIN, Jean; “La renaissance de la raison grecque chez KANT”, In: MATTÉ I, Jean-François
(org.); La naissance de la raison en Grèce, Paris: PUF, 1990, p. 11
deixaram pensar em grego. Com o advento do logos teria vindo a enunciaçã o da
liberdade, teria vindo a luta pela transformaçã o de nossas estruturas sociais em
nome de uma vida racional e livre.
Eu gostaria de lembrar a vocês as consequências que um pensamento
dessa natureza pode produzir. Pois se o ocidente se confunde com a destinaçã o
do logos, entã o nã o haveria razã o alguma para deixar de aplaudir os processos,
normalmente violentos, de “extensã o do ocidente”, de ampliaçã o colonial do
ocidente à queles que precisariam ser acordados de seu sono profundo nos
braços do pensamento mítico. Esta ampliaçã o do ocidente seria o verdadeiro
eixo do que deveríamos entender por “histó ria”, a saber, o irresistível
movimento de nos transformarmos em desdobramentos possíveis de uma
metafísica do logos que nos moldou em suas dicotomias e tensõ es. Assim, a
histó ria começaria lá onde o ocidente consegue enxergar suas raízes, de onde se
seguiria a necessidade de distinçõ es entre sociedades está ticas e dinâ micas,
sociedades desprovidas de histó ria e sociedades histó ricas.
Filó sofos como Hegel, por exemplo, compreenderã o sociedades como a
chinesa, a indiana e as africanas como fora da dinâ mica histó rica, o que significa
sociedades desprovidas de contradiçã o imanente e que, por isto, necessitariam
de intervençõ es externas para entrar em movimento. Marx ainda pressupunha
essa distinçã o entre formas sociais dinâ micas e está ticas. Ao falar, por exemplo,
das sociedades nô mades da Á sia e América, ele afirma:

O ú nico obstá culo que a comunidade pode encontrar em seu


relacionamento com as condiçõ es naturais de produçã o - com a terra –
(se pularmos diretamente para os povos sedentá rios) como suas
condiçõ es é uma outra comunidade, que já a reclamou como seu corpo
inorgâ nico2.

Só a guerra modifica tais sociedades e seu princípio de estaticidade já que,


com a guerra, vem a conquista, a servidã o e a escravidã o. Apenas desta forma
exterior a “construçã o simples é negativamente determinada”. Da mesma forma,
a sociedade indiana, independente de suas transformaçõ es políticas, teria suas
condiçõ es sociais inalteradas desde a antiguidade remota até o século XIX
criando uma “vida estagnada e vegetativa”3. O que levou Marx a ver nos crimes
do colonialismo inglês um duvidoso “instrumento inconsciente da histó ria” que,
através da destruiçã o das antigas bases sociais, permitiria quebrar o torpor do
Hindustã o em direçã o a uma revoluçã o efetiva. Mais uma vez aparece a ideia de
que só graças a intervençõ es externas tais sociedades entrariam em movimento.
Lembro desses dois casos apenas para insistir com vocês no horizonte metafísico
que sustenta certas compreensõ es da histó ria mundial que ainda circulam entre
nó s.
Mas queria lembrar desses casos também para insistir em um peculiar
movimento no interior de nossa tradiçã o. Pensem, por exemplo, no tamanho do
passo dado por um empreendimento filosó fico, como a Dialética do
Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, quando estes partem de uma recusa
clara em aceitar a dissociaçã o entre logos e mito, recusa em aceitar essa fantasia
originá ria do ocidente. Tanto logos, que se converte inexoravelmente em técnica,
2
MARX, Karl; Grundrisse, Sã o Paulo: Boitempo, 2011, p. 402
3
Ver MEGA (Marx Engels Gesammtausgabe), Bande I/12, Berlin: De Gruyter, 2000.
quanto o pensamento mítico estariam assombrados, segundo Adorno e
Horkheimer, por uma dinâ mica de dominaçã o que lhes é imanente. Isto lhes
aproxima de forma inexorá vel:

Enquanto soberanos da natureza, o deus criador e o espírito ordenador se


igualam. A imagem e semelhança divinas do homem consistem na
soberania sobre a existência, no olhar do senhor, no comando (...) O
esclarecimento compo rta-se com as coisas como o ditador se comporta
com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipula-los. O
homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las (...)
A abstraçã o, que é o instrumento do esclarecimento, comporta-se com
seus objetos do mesmo modo que o destino, cujo conceito é por ele
eliminado, ou seja, ela se comporta como um processo de liquidaçã o4.

As afirmaçõ es sã o claras. O fundamento do ocidente como projeto


metafísico, a saber, esta noçã o de que o exercício do logos nos levaria à
emancipaçã o e à liberdade, nã o ocorreu. Nã o é do exterior que o logos encontra
as ameaças contra a liberdade, é do interior. É de sua pró pria dinâ mica de
abstraçã o, de cá lculo, de medida. Dinâ mica que fazem do exercício da razã o uma
forma de dominaçã o. Por isto, a ditadura em relaçã o à s coisas vem do pró prio
esclarecimento, nã o de seu outro.
Alguns hoje se comprazem em associar a Escola de Frankfurt ao projeto
de destruiçã o do ocidente. A ú nica coisa que podemos dizer a eles é: sim, vocês
tem razã o. Talvez esse seja mesmo um dos principais legados da primeira
geraçã o da Escola de Frankfurt. Pois destruir o ocidente transformou-se em um
projeto filosó fico crítico fundamental, talvez o ú nico projeto filosó fico crítico
real, a partir do momento em que fomos capazes de compreender o potencial de
alienaçã o imanente ao nosso pró prio esclarecimento. Compreender como o
exercício da razã o e a violência da dominaçã o estava imbrincado de forma tal
que exigiria uma profunda auto-crítica de nó s mesmo.

Entre o comparatismo e o giro auto-crítico

Na verdade, lembro aqui desta espécie de giro auto-crítico da razã o


ocidental para insistir na existência de, ao menos, duas estratégias possíveis a
reflexã o sobre a arqueologia do conceito de liberdade. Uma poderíamos chamar
de “comparatista”, outra de “auto-crítica”. Todas essas duas parecem estratégias
relevantes para uma reflexã o contemporâ nea sobre a liberdade.
Uma perspectiva comparatista seria a consequência natural de
assumirmos que a histó ria da elevaçã o da liberdade à horizonte social regulador
só poderia ser contada abandonando esse modelo concêntrico e arbó reo de
universalidade pressuposto pela tese do milagre grego. Universalidade que,
mesmo falando em nome da emancipaçã o, guardará necessariamente uma
tonalidade colonial. Pois é fá cil perceber como o modelo da excepcionalidade do
ocidente se baseia na noçã o de histó ria mundial concêntrica e fundada em solo
europeu. Tudo se passa como se as experiências de emancipaçã o e conflitos
sociais que ocorreram na Europa devessem ser paulatinamente repetidas em
4
ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max; Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro: Zahar, pp.
24-27
outras partes do globo, racionalizando a vida social a partir da generalizaçã o de
um modelo cuja origem, cuja matriz será sempre europeia. Ou seja, tudo se passa
como se houvesse um movimento geral de contá gio do centro para as margens,
como uma pedra que cai em um rio.
É claro que este modelo precisa sustentar uma visã o de processo histó rico
marcado pelas dinâ micas de atraso e antecipaçã o. Algumas experiências sociais
encontrariam-se atrasadas, elas preservariam estruturas arcaicas que deveriam
ser ultrapassadas através do contato com sociedades em um tempo avançado,
sociedades que se anteciparam no interior de um processo geral de
desenvolvimento.
Mas uma perspectiva radicalmente comparatista assumiria existir uma
histó ria universal que nã o é a descriçã o irresistível de processos de contá gio de
lutas e experiências políticas que ocorrem inicialmente no ocidente. Na verdade,
haveria uma histó ria mundial que nã o opera de forma concêntrica, mas que
opera sob a forma de ressonâ ncias. Tal perspectiva comparatista partiria do
princípio de que experiências de emancipaçã o e liberdade estã o presentes em
todas as formas de vida dispersas geográ fica e historicamente. Tais formas
podem “entrar em ressonâ ncia”, ou seja, experiências locais podem fazer ressoar
experiências em outras localidades criando uma espécie de constelaçã o. Ou seja,
nã o se trata de contrapor a histó ria mundial a uma perspectiva que libera a força
das localidades e das territorialidades singulares. Trata-se de contrapor uma
falsa histó ria mundial a uma histó ria mundial des-colonial, capaz de colocar em
pé de igualdade mú ltiplas emergências locais de tensõ es em direçã o à liberdade.
O que significa, é claro, assumir que as experiências dispersas de liberdade nã o
sã o indiferentes umas à s outras. Elas se contaminam, mas só podem se
contaminar no interior de uma histó ria mundial, até que elas consigam criar
relaçõ es de ressonâ ncia, permitindo a emergência de um processo global com
mú ltiplos enraizamentos locais.
No entanto, para um trabalho desta natureza, como disse anteriormente,
nos falta muito. Há de se reconhecer que nossa formaçã o, em larga medida, ainda
nã o nos qualifica para tanto. Como toda estratégia comparatista, precisaríamos
ser capazes de trafegar bem em dois mundos, operar bem duas gramá ticas. O que
ainda nã o é o caso.
Por isto, o que gostaria de fazer consiste em partir nã o da histó ria da
elevaçã o da liberdade a horizonte regulador de nossas expectativas de
transformaçã o social, tal como ela se configuraria no Ocidente, mas partir de seu
ponto de esgotamento, de seu giro autocrítico. Eu gostaria de organizar essa
arqueologia a partir do fim, tendo o fim como seu verdadeiro horizonte. Ou seja,
partir do momento em que nosso modelo hegemô nico de liberdade é
reflexivamente questionado no interior da pró pria tradiçã o que o gerou.
Movimento rico e doloroso, um giro autocrítico desta natureza é expressã o de
nosso pró prio descentramento, de nossa pró pria possibilidade de
descentramento.
É claro que tal estratégia exige, por sua vez, a aceitaçã o de certos
pressupostos. O primeiro deles é que poderíamos falar de “modelo hegemô nico”
nesse caso. Como se a multiplicidade dispersa de usos do conceito de liberdade
no ocidente acabasse por partilhar certos traços comuns. Traços estes que
definem os limites dos efeitos pragmá ticos, da força produtiva do uso do
conceito. Obviamente, esta nã o é uma proposiçã o imediatamente evidente. No
entanto, gostaria de mostrar como ela pode ser sustentada.
Já o segundo pressuposto defende que um giro autocrítico da liberdade no
interior do pensamento filosó fico ocidental permite abrir um campo de
ressonâ ncias com possibilidades de emancipaçã o presentes em formas sociais
outras. O que poderia ser um passo importante para o que outros já definiram
antes de nó s como o exercício de descolonizaçã o de nossas formas de pensar e
agir. Ou seja, o pressuposto aqui é: nossas estratégias de auto-crítica nos
aproximam de possibilidades de emancipaçã o nã o organizadas por uma matriz
que se apresenta como colonizadora de pensamento.
Digamos que essas estratégias de auto-crítica partem de duas formas
possíveis do impacto do contato com o outro. Duas formas de metamorfose a
partir da exposiçã o à alteridade. A primeira diz respeito à colisã o com uma
alteridade externa, vinda do contato com outras formas de vida dispersas
geográ fica e historicamente. A segunda é o fruto do desvelamento de uma
alteridade interna que parece habitar nossa pró pria forma de vida, que constitui
prá ticas que produzem contradiçõ es em nosso pró pria forma de vida, invertendo
continuamente à s determinaçõ es valorativas que parecem nos orientar. Na
verdade, gostaria de terminar nosso curso explorando essa segunda estratégia.
Eu gostaria de mostrar como somos habitados por prá ticas que tem a força de
erodir periodicamente o solo de nossa noçã o hegemô nica de liberdade e que,
com isto, nos impulsiona a estratégia de auto-crítica de nó s mesmos. Há um setor
da prá tica estética que tem essa força, produzindo uma noçã o de autonomia e
liberdade radicalmente distinta daquela que circula em nosso horizonte social.

Auto-pertencimento e propriedade de si

Mas antes de falar sobre o fim, gostaria de discorrer sobre o começo e


sobre o trajeto que pretendo fazer neste curso. Eu gostaria de justificar minhas
escolhas na composiçã o de nosso trajeto. Talvez vocês conheçam uma afirmaçã o
polêmica de Hannah Arendt:

Nã o há preocupaçã o com a liberdade em toda a histó ria da grande


Filosofia, desde os pré-socrá ticos até Plotino, o ú ltimo filó sofo da
Antiguidade. E quando a liberdade fez sua primeira apariçã o em nossa
tradiçã o filosó fica, o que deu origem a ela foi a experiência da conversã o
religiosa – primeiramente de Paulo, e depois de Agostinho 5.

Arendt pode fazer uma afirmaçã o desta natureza porque, a seu ver, a filosofia
grega conheceria, principalmente, uma discussã o sobre liberdade onde esta nã o
se encontra em seu terreno natural, a saber, a política. Antes, a liberdade
apareceria principalmente como liberdade interior, como disposiçã o ética de
conformaçã o ao logos. Pois o modo de vida do filó sofo era pensado em oposiçã o
ao bios politikós. Isto permitira o aparente paradoxo filosó fico de um escravo,
Epiteto, considerar-se livre. E apenas quando o cristianismo reconstró i toda a
noçã o política de liberdade a partir da discussã o sobre o livre-arbítrio, sobre a
relaçã o consigo mesmo, a liberdade poderia aparecer como um problema
efetivamente filosó fico.
5
ARENT, Hannah; Entre passado e futuro, Sã o Paulo: Perspectiva, p. 191
Esta aná lise, no entanto, nã o leva em conta o significado efetivo da
eleutheria entre os gregos, significaçã o esta que, como veremos, nã o permite a
dissociaçã o entre liberdade interior e liberdade política. Mas neste curso nã o se
trata de propor uma aná lise exaustiva dos desdobramentos da noçã o de
eleutheria entre os gregos, o que exigiria um trabalho de longo termo. Minha
aná lise é, em larga medida, pontual. Pois trata-se de pensar os gregos a partir de
uma de suas recepçõ es contemporâ neas. A tese que gostaria de defender
consiste em dizer que a experiência grega da liberdade como auto-
pertencimento será recuperada no interior do projeto de um dos filó sofos
contemporâ neos mais importantes para nosso debate, a saber, Michel Foucault.
Pois há uma tese em Foucault, que se explicita em seus ú ltimos trabalhos, que
consiste a defender que a reorientaçã o contemporâ nea das reflexõ es sobre
emancipaçã o deveria partir da recuperaçã o de formas de auto-pertencimento
que os gregos compreenderam como a expressã o fundamental da liberdade. Por
isto, nosso primeiro mó dulo será dedicado à construçã o, entre os gregos, da
noçã o de liberdade como auto-pertencimento. Para tanto, gostaria
principalmente de discutir o conceito de liberdade no cinismo e no estoicismo.
Lembremos inicialmente como o conceito grego de liberdade se constitui
progressivamente sobre o solo de uma experiência negativa de desordem e caos.
Por esta razã o, eleutheria estará sempre vinculada ao crescimento sem entraves
assegurado pelo vínculo ao lugar natal. Basta levar em conta como o termo
eleutheria tem sua raiz no indo-europeu leudh, que significa : crescer,
desenvolver-se. Crescer graça a raízes em um povo ou territó rio que permite a
alguém ser e permanecer quem se é. Daí porque alguns comentadores dirã o:

Contrariamente a uma ideia que se tornou tã o comum quanto difícil a


justificar de forma rigorosa, a liberdade nã o foi inicialmente percebida
pelos gregos como a propriedade jurídica que distingue o homem
eleutheros do escravo, mas como a relaçã o exclusiva e precá ria a um solo
partilhado a respeito do qual deve-se sempre defende-lo da ameaça 6.

Por isto, a experiência da liberdade na Grécia estará ligada ao destino de três


conceitos reguladores: autarkeia (auto-suficiência), autoctonia e autonomia.
A noçã o de autarkeia é central no cinismo grego de Dió genes, de
Antístenes, de Menipo. Neste sentido, lembremos do significado em fundar a
autarkeia cínica através da posiçã o da apatia, da capacidade de nã o se deixar
afetar. Fundar a dominaçã o de si na negaçã o direta dos vínculos privilegiados a
objetos sensíveis equivale a recorrer a um conceito negativo de liberdade.
Digamos que a liberdade cínica nã o é “liberdade de fazer determinadas açõ es”,
mas principalmente “libertaçã o em relaçã o a certos objetos e paixõ es”,
“libertaçã o em relaçã o à s amarras do mundo”. Conhecemos, por exemplo, a
anedota que diz:

Tendo visto um dia um rato que corria sem se preocupar em encontrar


uma morada, sem temer a obscuridade e sem desejo algum de tudo o que
transforma a vida em algo agradá vel, Dió genes o tomou por modelo e
encontrou remédio em seu despojamento7.

6
AVEZ, Peggy; L’envers de la liberté, Paris: Editions de la Sorbonne, 2010, p. 31
Isto permite ao cínico fundar a ideia de virtude na simplicidade dos costumes, na
limitaçã o das necessidades e, principalmente, na negaçã o direta do vínculo aos
objetos sensíveis. Este conceito negativo de liberdade nos demonstra como a
physis, enquanto plano de imanência que permite a orientaçã o da açã o virtuosa,
aparece principalmente como a negação do nomos. Para que a physis fornecesse
um princípio positivo e autô nomo de orientaçã o da açã o, seria necessá rio algo
como uma filosofia da natureza como base para a filosofia moral, mas isto falta
ao cinismo. Vá rias anedotas dã o conta desta orientaçã o moral como negaçã o
simples do nomos. Lembremos, por exemplo, da declaraçã o de Dió genes a
respeito de seu há bito de sempre entrar no teatro pela porta de saída: “Eu me
esforço de fazer na minha vida o contrá rio de todo mundo”8.
Esta autarkeia em relaçã o as estruturas da causalidade externa
desempenhará papel fundamental também no estoicismo. Mas é com os estoicos
que veremos mais claramente essa forma de pensar a liberdade a partir da
definiçã o do que me é pró prio, do que depende e nã o depende de mim, da
restriçã o de minha vontade e da deliberaçã o a respeito do que me cabe. “Desde o
início”, dirá Epiteto:

a que exercerá s a nã o ser a distinguir o que é seu e o que nã o é seu, o que


depende de ti e o que nã o depende de ti, o que encontra obstá culos e o
que nã o encontra? (...) E de que terá s ainda um desejo apaixonado? Pois
tens um desejo bem ordenado e fixo das coisas que dependem de tua
vontade porque elas sã o belas, mas nã o tens o desejo dessas que nã o
dependem de ti, desejo que abriria a porta a desrazã o, ao impulso que
precipita contra toda medida9.

Sã o em afirmaçõ es como essas que vemos a enunciaçã o de um vínculo


fundamental, vínculo esse que é nossa herança grega, entre liberdade e auto-
pertencimento. A liberdade é a capacidade de viver como se quer, de ter
vontades sem obstá culos. Mas isto pressupõ e o exercício de partilha entre o que
me é pró prio e o que nã o me é pró prio, entre o que é allótrios (estrangeiro,
pertencente a outro) e o que é ta ephi emin (o que depende de nó s). Um exercício
que alguns poderiam compreender como suprema resignaçã o, ainda mais
quando Epiteto faz afirmaçõ es como: “nã o procure que o que acontece aconteça
como queres, mas queira o que acontece como acontece e você encontrará dias
felizes”10. Na verdade, o que move esse assentimento estó ico é o reconhecimento
do logos naquilo que acontece. Há uma causalidade estrita no estoicismo, nada
acontece sem razã o. Assim, a apropriaçã o, a oikeiosis estoica em relaçã o ao curso
do mundo pode ser momento da liberdade porque trata-se de querer o que se
afirma como racional, como se assente a uma proposiçã o matemá tica cuja
verdade nã o depende de nó s.
O que gostaria de chamar a atençã o é para o tipo de trabalho sobre si que
tal experiência da liberdade pressupõ e. Um trabalho cujo eixo fundamental
encontra-se na capacidade de saber agir no espaço daquilo que depende de mim,
daquilo que estabelece comigo um horizonte de pertencimento. Eu gostaria de
7
DIÓ GENES LAÉ RCIO, Vie, doctrine et sentences des philosophes illustres, Paris : Flammarion,
1965, p. 14
8
DIÓ GENES LAÉ RCIO, idem, p. 30
9
EPITETO, Entretiens IV, 83
10
EPITETO, Manual, VIII
mostrar como tal horizonte da liberdade como auto-pertencimento chega até
Foucault. É ele que o orienta na compreensã o dessas estratégias de “trabalho
sobre si” que serã o a base para uma soberania sobre si mesmo que será a
expressã o da experiência da liberdade:

Na filosofia antiga a vida soberana é geralmente uma vida que tende a


instauraçã o de uma relaçã o a si que é da ordem do gozo, nos dois sentidos
da palavra: ao mesmo tempo como possessã o e como prazer. A vida
soberana é uma vida em possessã o de si mesma, vida na qual nenhum
fragmento, nenhum elemento escapa ao exercício de seu poder e de sua
soberania sobre si. Ser soberano é acima de tudo ser seu, pertencer-se a si
mesmo11.

Mas eu gostaria de pensar este curso tendo em vista a explicitaçã o de um


impasse nessa estratégia restauradora. Por isto, nosso segundo mó dulo será
dedicado ao conceito de liberdade como propriedade de si. Pois gostaria de
levantar uma questã o que diz respeito à s condiçõ es contemporâ neas para a
realizaçã o de demandas de auto-pertencimento. Para nó s, sujeitos das
sociedades capitalistas e sua fase neoliberal, o que significa ler e tentar recuperar
formas diversas de auto-pertencimento como modelo de realizaçã o da
liberdade?
Se aceitarmos que a liberdade nã o pode ser compreendida apenas como
um exercício de expressã o individual, mas que ela é, na verdade, um modo de
relaçã o social, entã o será importante nos perguntarmos como certos conceitos
filosó ficos vinculados à estruturaçã o normativa da noçã o de liberdade podem ser
atualmente significados. Isto dá a atividade filosó fica um cará ter estratégico que
é constitutivo de sua natureza histó rica. Pois é possível que existam situaçõ es
histó ricas nas quais certos conceitos nã o podem mais ser postos, isto se
quisermos conservar o potencial de emancipaçã o que eles um dia foram capazes
de expressar. Há certas coisas das quais nã o podemos mais falar, se quisermos
realiza-las. É possível que tal pressuposiçã o valha para as mú ltiplas e diversas
formas de liberdade como auto-pertencimento.
Eu gostaria pois de partir da definiçã o da liberdade como propriedade de
si enquanto uma das origens histó ricas da noçã o moderna de autonomia. Todos
conhecemos a afirmaçã o de Locke no Segundo Tratado do Governo, de 1689.

Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os


homens, ainda assim todo homem tem a propriedade em sua pró pria
pessoa. A este ninguém tem direito algum, a nã o ser ele pró prio. Pode-se
dizer que o trabalho do seu corpo e a obra de suas mã os sã o propriamente
seus. Tudo o que ele retire do estado que a natureza providenciou e lá
deixou fica misturado ao seu trabalho, justando-se a algo que lhe pertence
e, por isto, fazendo dele sua propriedade12. 

Ou seja, a propriedade individual do que aparece previamente como um


bem comum (a terra e todas as criaturas inferiores) é baseada no fato do
trabalho ser, ao mesmo tempo, uma expressã o de si e forma de possessã o. O
11
FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérité, p. 245
12
LOCKE, John; Second treatise of government, Cambridge University Press, p. 340
trabalho aparece aqui como a produçã o do que é pró prio a mim, do que é a
confirmaçã o especular de minha pró pria determinaçã o. Como o burguês que tem
dentro de sua casa objetos que contam a histó ria de sua pessoa, de suas
pequenas idiossincrasias, viagens exó ticas e memó rias, a consciência que
trabalha parece querer transformar a natureza em uma grande home decorada
por objetos que sã o a expressã o de sua pró pria histó ria. Pois propriedade é,
acima de tudo, um afeto: o afeto da segurança das coisas que estã o
completamente submetidas ao meu domínio. Esta sobreposiçã o entre expressã o
e possessã o pode ocorrer porque a forma da auto-determinaçã o é
imediatamente a expressã o de relaçõ es de propriedade. Eu sou sujeito porque
tenho a propriedade de minha pró pria pessoa.
A tese que gostaria de defender com vocês consiste em dizer que, no
interior de nossas formas de vida, toda tentativa de pensar a liberdade como
auto-pertencimento será , necessariamente, submetida aos parâ metros da
propriedade de si. Tal tese parte do pressuposto do capitalismo ser algo mais do
que um sistema de trocas econô micas, ser de fato uma gramá tica de relaçõ es
sociais. O que nos obriga a assumir que no seu interior certas operaçõ es tornam-
se gramaticalmente impossíveis. Uma delas será distinguir auto-pertencimento e
propriedade de si. Daí a ideia de insistir na emergência da consciência
revolucioná ria de que só poderia haver liberdade lá onde a gramá tica da
propriedade fosse deposta.
Notem que se trata nã o apenas de dizer que a propriedade deveria ser
melhor partilhada a fim de que a liberdade nã o fosse paralisada pela
desigualdade social. A proposiçã o, como gostaria de mostrar, é mais ontoló gica.
Trata-se de afirmar que a compreensã o das relaçõ es a si, ao outro e ao mundo a
partir de uma gramá tica da propriedade será sempre a forma suprema de
alienaçã o, que a liberdade começa com o colapso gramatical das noçõ es de
“meu”, de “pró prio”.

Liberdade como lei

Dito isto, gostaria de passar ao terceiro mó dulo: este dedicado à noçã o de


liberdade como auto-legislaçã o. Pois nossa concepçã o hegemô nica de liberdade
nã o está apenas vinculada à noçã o de auto-pertencimento, mas ao fato de tal
auto-pertencimento expressar-se de forma privilegiada através da concepçã o de
autonomia, concepçã o de ser capaz de colocar-se como legislador de si mesmo.
Para nó s, até mesmo quando pensamos a liberdade, nos é natural pensá -la sob a
forma da lei, do exercício da lei.
Tal noçã o de auto-legislaçã o, como gostaria de defender, tem uma dupla
matriz no ocidente: uma matriz teoló gica e outra matriz antropoló gica. Esta
dupla matriz estará sempre presente quando o conceito de autonomia tornar-se
nã o apenas o fundamental de uma filosofia moral renovada, como vemos em
Kant, mas também a base de políticas da emancipaçã o.
Por isto, o terceiro mó dulo propõ e algo como uma arqueologia do
conceito de autonomia que parte da constituiçã o da noçã o de livre-arbítrio na
teologia cristã . Noçã o esta que pressupõ e um conflito no interior da pró pria
vontade, como dualidade no interior de uma mesma faculdade. Pois quem fala
em livre arbítrio, fala em escolha entre aquilo que aparece à minha vontade como
possível e desejá vel. Essa escolha apoia-se nã o apenas em uma dualidade da
vontade, mas também em uma hierarquia da vontade. Há uma vontade que se
submete a outra, há um querer e um “querer querer” ou “querer nã o querer”,
como se estivéssemos a tratar de uma voliçã o de duplo nível.
Soma-se a isto o fato de que os séculos XVI e XVII na Europa sã o, acima de
tudo, marcados pelo contato com o dito Novo Mundo. Antropó logos como David
Graeber insistirã o que tal contato teve influência decisiva na constituiçã o do
horizonte conceitual da filosofia política moderna, que começava a engendrar-se
à época: estado de natureza, origem da desigualdade entre os homens,
autonomia sã o apenas alguns termos cuja configuraçã o no interior do debate
europeu é incompreensível se abstrairmos do fato de que eles eram, em larga
medida, respostas e elaboraçõ es a respeito das críticas feitas por ameríndios à s
formas europeias de vida. Lembrem que relatos de jesuítas e viajantes a respeito
das ideias de povos americanos eram uma das literaturas mais prediletas dos
europeus letrados da época. E tais relatos diziam coisas, em 1642, como:

Os Neskapi imaginam que eles devem, por direito de nascimento, gozar da


liberdade dos burros selvagens, sem respeitar a quem quer que seja, salvo
quando sintam vontade. Eles me criticaram cem vezes por termos medo
de nossos capitã es, enquanto eles riem e zombam dos seus. Toda a
autoridade de seus chefes está no domínio da língua, pois eles sã o
potentes na medida em que sã o eloquentes, e mesmo se eles morrem de
falar, eles só serã o obedecidos se agradarem aos selvagens13.

Como disse o padre Lallemant em 1644, a respeito dos Wendats do


Quebec: “nã o creio que existam pessoas sobre a terra mais livres que eles”. Pois
se tratava de povo que desconhecia a obrigaçã o de submissã o à autoridade
paterna, que nã o tinham sistemas individualizados de penas. Um crime era pago
nã o pelo agente, mas por compensaçõ es feitas por sua família, clã ou tribo. E o
elemento mais impressionante destes relatos era a honestidade de reconhecer
que tais sociedades funcionavam melhor que as europeias. Nã o é difícil imaginar
o tipo de desafio que tais afirmaçõ es colocavam para a filosofia política europeia
e seu desejo de legitimar o que entendemos pela superioridade do ocidente.
Eu insistiria em ler a construçã o da autonomia, desta noçã o de liberdade
como capacidade de dar para si mesmo sua pró pria lei, de submeter-se de bom
grado a uma lei transcendente a partir dos moldes da submissã o que devo ter da
palavra revelada, como uma das estratégias maiores da defesa ocidental de que
havia sociedades nas quais ser livre nã o equivalia a submeter-se à autoridade.
Por fim, gostaria de insistir que a noçã o de autonomia irá bifurcar-se a
partir do início do século XIX. No mesmo momento histó rico que tal noçã o de
autonomia se desenvolvia, principalmente a partir de sua dimensã o moral, um
conceito relativamente distinto de autonomia emergia no interior do que
entendemos atualmente por “experiência estética”. Pois esse conceito de
autonomia que emerge com a construçã o propriamente moderna da experiência
estética, a partir do final do século XVIII e começo do século XIX, nã o estava
fundado na expressã o de relaçõ es de auto-pertencimento. Na verdade, ele estava
assentado em operaçõ es de abertura a processos de descentramento e de
implicaçã o com objetos e movimentos nã o redutíveis a predicaçõ es de

13
Rélations jesuites 6, p. 109
pertencimento14. Paradoxalmente, havia uma irredutível dimensã o de
heteronomia nessa experiência estética que, a partir do século XIX, se constituirá
como arte autô noma e cuja primeira figura encontraremos no romantismo.
Heteronomia esta vinda da constituiçã o de um campo de implicaçã o do sujeito
com objetos e movimentos que nã o tinham sua forma, que nã o se configuravam
no interior de espaços egologicamente indexados. Por isto, a forma estética a
partir de entã o será o espaço privilegiado de emergência do fragmentá rio, do
involuntá rio, do contingente, da desmesura pró pria ao que violenta o
esquematismo da imaginaçã o (como vemos, nesse caso, nas temá ticas relativas
ao sublime).
No entanto, essa heteronomia produzida pela experiência estética nã o
poderia, de forma alguma, ser compreendida como figura da servidã o. Antes, ela
se configurava como uma experiência social da liberdade de forte cunho crítico
em relaçã o à s possibilidades que foram paulatinamente se configurando no
interior do horizonte normativo das formas de vida pró prias à emergente
sociedade dos indivíduos com seus modos pró prios de determinaçã o. Primeiro,
ela permitia uma crítica à s pressuposiçõ es de identidade que uma liberdade
como auto-pertencimento necessariamente pressupõ e, com seus problemas para
a configuraçã o dos processos de reconhecimento implicativo com a diferença.
Por isto, ela impedia a reduçã o da liberdade tanto à afirmaçã o da autonomia
individual quanto à integraçã o a um corpo social atual (o que nã o eliminava a
possibilidade de expressar um corpo social por vir). Antes, ela abria espaço à
emergência de figuras da subjetividade nas quais as dimensõ es do inconsciente,
do involuntá rio, do contingente nã o aparecerã o mais como a limitaçã o de minha
liberdade, adiantando um processo que se mostrará fundamental para o
desenvolvimento da estratégias filosó ficas de crítica a partir de entã o. É desta
forma que irá se configurar algo que podemos chamar de “matriz estética da
autonomia” em contraposiçã o à “matriz moral da autonomia”.
Gostaria de terminar nosso curso discutindo nã o apenas a emergência de
tal matriz estética, mas como ela será a expressã o de um giro-autocrítico no
interior do conceito de liberdade. Como se a arte fosse praxis social que nos
mostra algo de irredutível ao horizonte metafísico e gramatical que fundamenta
nossas formas hegemô nicas de vida no ocidente. Espero ainda poder evidenciar
como tal matriz estética traz consequências maiores para o campo da moral e da
política em seus desafios contemporâ neos.

14
Ver, a este respeito, MENKE, Christoph; Kraft: Eine Grundbegriff ästhetischer Antropologie,
Frankfurt: Suhrkamp, 2008. O modelo de tais processos fora fornecido pela articulaçã o entre
estética e força em HERDER, Johann; “Ü bers Erkennen und Empfinden in der menchlichen Seele”,
In: Theoretische Schriften, Berlin: Holzinger, 2013; alem das discussõ es sobre o sublime em
BURKE, Edmund; A philosophical enquiry into our ideas of the sublime and beautiful, Oxford
University Press, 1990. Ele permanecerá , de certa forma, nas discussõ es modernas, como
podemos ver nas reflexõ es a respeito da força de “estremecimento” (Erschütterung) pró pria à
experiência estética em ADORNO, Theodor; Ästhetische Theorie, Frankfurt: Suhrkamp, 2003.
Arqueologias do conceito de liberdade
Aula 2

Na aula passada, eu dissera que o conceito grego de liberdade se constitui


progressivamente sobre o solo de uma experiência negativa de desordem e caos.
Por esta razã o, eleutheria estaria sempre vinculada ao crescimento sem entraves
assegurado pelo vínculo ao lugar natal. Bastaria levar em conta como o termo
eleutheria tem sua raiz no indo-europeu leudh, que significa : crescer,
desenvolver-se. Crescer graça a raízes em um povo ou territó rio que permite a
alguém ser e permanecer quem se é. Daí porque alguns comentadores dirã o:

Contrariamente a uma ideia que se tornou tã o comum quanto difícil a


justificar de forma rigorosa, a liberdade nã o foi inicialmente percebida
pelos gregos como a propriedade jurídica que distingue o homem
eleutheros do escravo, mas como a relaçã o exclusiva e precá ria a um solo
partilhado a respeito do qual deve-se sempre defende-lo da ameaça 15.

Por isto, a experiência da liberdade na Grécia estaria ligada ao destino de


três conceitos reguladores: autarkeia, autoctonia e autonomia. Em todos esses
três casos, é claro como a noçã o de auto-pertencimento é um horizonte comum
fundamental. Autarkeia é normalmente traduzido por auto-suficiência, pela
qualidade de ser independente de condiçõ es externas. Pode ser também
traduzido por auto-contentamento. O termo arkeo que lhe serve de raiz significa,
por sua vez: ser forte, ser satisfeito, defender, velar. Como se a força estivesse
ligada à capacidade de nã o ser afetado por condiçõ es externas. Autoctonia, por
sua vez, é a condiçã o de quem é autó ctone, ou seja, de quem é deste solo, desta
terra, já que khthón é exatamente terra e solo.
Por fim, autonomia indica submetido a sua pró pria lei. Nomos vem ainda
de partilha, parte, dividir. O que deixa claro como trata-se de uma atribuiçã o de
localizaçã o e determinaçã o: qual minha parte, de que lado estou da divisã o. A
primeira vez que encontramos o termo “autonomia” é na peça de teatro Antígona
(línea 917), de Só focles (497/6 - 406/5 a.C.). No texto, o termo se refere à
decisã o de, por vontade pró pria, seguindo a sua pró pria lei, Antígona entrar viva
no interior do Hades, pois ela desobedecera deliberadamente as leis da pó lis,
mesmo sabendo que tal desobediência significava a morte. Vemos assim como a
autonomia aparece enquanto vontade disposta a nã o levar em conta a
integridade física do agente para poder se realizar. Abre-se aqui a dimensã o
pró pria a algo como a “integridade moral”, ou seja, a decisã o de realizar açõ es
que podem, em certas circunstâ ncias, relativizar até mesmo as exigências
pró prias ao princípio de auto-conservaçã o. Esta vontade que submete outras
vontades, aparecendo como um dever intransponível, dever que permite ao
sujeito relativizar as exigências imediatas de auto-conservaçã o, reaparecerá de
maneira decisiva na constituiçã o da noçã o moderna de autonomia.
Claro que, no caso de Antígona, a vontade que expressa a autonomia nã o
pode ser vista como individual, tal como na versã o moderna de autonomia.
Antes, ela é a expressã o do vínculo do sujeito a uma lei que nã o se confunde com
a lei da pó lis, com suas determinaçõ es contextuais tendo em vista a preservaçã o
15
AVEZ, Peggy; L’envers de la liberté, Paris: Editions de la Sorbonne, 2010, p. 31
do laço social. A lei que Antígona sustenta é, como ela dirá em um importante
momento da tragédia, a “lei dos deuses”, ou seja, lei incondicional capaz de
fundar um dever que é marca de adesã o do sujeito a modelos substancialmente
determinados de açã o, modelos nã o apenas formais, mas que prescrevem
claramente o que deve ser feito, que açã o deve ser realizada, que regra prá tica
deve ser seguida. No caso da tragédia, temos, por exemplo, o dever de prestar o
rito funerá rio a todo e qualquer sujeito. O que leva Antígona a enterrar seu irmã o
Polinices e enfrentar a proibiçã o de Creonte.
Ou seja, se autoctonia indica o vínculo de pertencimento a uma terra
comum, autonomia indica para os gregos o pertencimento a uma lei comum.
Nesse dois casos, temos o movimento de compreender o exercício da liberdade
como a apropriação de um comum que fundamenta o que me é próprio. Esta
poderia até mesmo ser uma forma de descrever uma das características
fundamentais da liberdade entre os gregos. Nos dois casos, há o horizonte do que
me leva a precisar afirmar o que me é comum como certa forma de defesa. Neste
contexto, podemos compreender melhor o terceiro termo desta tríade, a saber,
autarkeia. Para tanto, gostaria de partir dos cínicos gregos.

Autarkeia e cinismo

Nã o deixa de ser uma profunda ironia perceber como o termo “cinismo” chegou
até nó s. Seu sentido está normalmente ligado a alguma forma de dissimulaçã o, ao
ato de retirar da enunciaçã o da verdade a força performativa que esperá vamos
encontrar. Por isto, o termo nos designa algo como um ethos em degradaçã o,
como uma franqueza que parece zombar da verdade. Podemos fornecer um
modelo para esta maneira de encaminhar o problema do cinismo. Podemos
partir das exigências de validade de uma norma moral com expectativas
universais de validade como o princípio de tolerâ ncia. Podemos também afirmar
que na significaçã o do princípio já encontramos, aparentemente, a designaçã o de
um modo de açã o: o respeito ao outro em sua singularidade. Mas, “em certas
situaçõ es especiais”, para defender o princípio de tolerâ ncia, eu posso ser levado
a ser intolerante com aqueles que sã o contra o princípio de tolerâ ncia. Em defesa
da tolerâ ncia, eu posso ser levado a expulsar os intolerantes da minha
comunidade. Desta forma, posso continuar sendo tolerante na dimensã o dos
critérios normativos mesmo sendo intolerante na dimensã o da açã o. Por sinal,
este foi o caso da extrema direita holandesa encarnada por Pim Fortuyn, morto
dias antes da eleiçã o que o levaria ao poder neste que é o país formalmente mais
tolerante do mundo. Sua pró pria figura era um exemplo maior do que
procuramos apreender. Tratava-se de um populista de direita cuja grande parte
das características pessoais e opiniõ es eram politicamente corretas : era
homossexual assumido, tinha boas relaçõ es com imigrantes, um senso inato para
a ironia etc. No entanto, o nú cleo do seu discurso era: “Os Países Baixos
alcançaram um alto grau de tolerâ ncia e liberdade. Nã o podemos perder tudo
isto deixando que á rabes intolerantes venham para cá . Em nome da tolerâ ncia,
devemos entã o ser intolerantes contra os intolerantes. Nó s já fomos muito
tolerantes com a intolerâ ncia”.
Esta nã o era a compreensã o que os gregos tinham da escola cínica de
Dió genes, de Antístenes, de Menipo, de Crates, de Hipparchia, entre outros. Tanto
que seu nome aludia a “cã o” , kunos, por se tratarem de filó sofos cuja fala franca
era, via de regra, agressiva, sarcá stica, sem consideraçã o pelas convençõ es
sociais e regras de sociabilidade. Uma verdade nua, crua, resultado de uma vida
também nua e crua, tanto na recusa ao poder, tanto na franqueza em relaçã o à
sexualidade, tanto na procura pela despossessã o dos bens. Uma verdade que
estará mais pró xima de uma rígida ascese corporal que de um exercício de
esclarecimento filosó fico. Nudez esta que pode começar a nos explicar certa
maneira grega de viver a liberdade, de fazer da liberdade o exercício de um
regime de fala e de vida. Essa reversã o do cinismo em seu contrá rio que
conhecemos hoje nos obriga atualmente a falar de “cinismo antigo” e “cinismo
moderno”.
O primeiro filó sofo cínico é Antístenes, discípulo de Só crates, cuja filosofia
é baseada no uso extensivo da enkrateia (auto-domínio) socrá tica, mas é
Dió genes que passará a posteridade como o mais emblemá tico dos filó sofos
cínicos. Posteriormente, o cinismo será uma filosofia extremamente popular no
período do Império Romano. As figuras cínicas serã o recuperadas, nã o por acaso,
pelo Iluminismo. Esta recuperaçã o do cinismo pelo Iluminismo, que chegou a
transformar Dió genes em heró i popular na iconografia da Revoluçã o francesa,
deve ser compreendida no quadro de constituiçã o dos mó biles da crítica
iluminista. A parresia cínica, palavra autêntica com seu sarcasmo em relaçã o aos
preconceitos sexuais, religiosos, morais, políticos e à autoridade aparecerá como
ponto de orientaçã o da crítica no iluminismo. Pelas mã o de Diderot, o cinismo
encontra seu ponto de inversã o em seu contrá rio, como podemos atestar em seu
livro O sobrinho de Rameau. Posteriormente, o cinismo será recuperado pela
filosofia contemporâ nea, seja para indicar uma degradaçã o do ideal iluminista
em “falsa consciência esclarecida” (razã o cínica, em Sloterdijk), seja para pensar
as modalidades de recuperaçã o de sua força crítica como forma de vida e estética
da existência (Foucault). Foucault chegará a definir o cinismo como: “uma
experiência ética fundamental do ocidente” que nos acompanhará durante toda
nossa histó ria, como se fosse possível: “mostrar a existência permanente de algo
que pode aparecer como o cinismo através de toda a cultura europeia”.
Por outro lado, lembremos aqui que falar do cinismo grego é um exercício
mais complexo do que pode parecer pois falta um acesso direto aos textos. Os
textos canô nicos de contato com o pensamento cínico sã o recensõ es feitas por
terceiros, a parte os textos de um cínico menor, Teles. Neste sentido, o sexto livro
do Vida, doutrinas e sentenças de filósofos ilustres de Dió genes Laércio ainda é a
grande referência; mas ele, por sua vez, é um recessã o de anedotas de domínio
pú blico e fragmentos de textos cínicos. Na verdade, os textos cínicos que temos
acesso hoje sã o principalmente da fase romana do cinismo que se inicia a partir
do século I DC, como, por exemplo, os escritos de um sofista, Dion Crisostomos,
de Favorinus, além das sá tiras de Luciano (nas quais Menipo e Dió genes
aparecem frequentemente como protagonistas principais) e dos discursos do
Imperador Juliano. Este estado das fontes impede um estabelecimento mais
preciso dos contornos da filosofia cínica. Por outro lado, ele faz com que: “O
estudo do cinismo, contrariamente ao estudo do platonismo, seja insepará vel do
estudo de sua recepçã o”16.

16
BRACHT BRANHAM, R. e GOULET-CAZÉ , Marie-Oidela; The cynics : the cynic movement in
antiquety and its legacy, p. 14
Se pudermos fornecer uma definiçã o, diremos que, neste momento grego,
o cinismo aparece como uma filosofia eudemonista fundada na crítica ao
convencionalismo da moral que guia o nomos e na tentativa de recuperaçã o de
uma autenticidade do agir que apela ao recurso à physis. Ou seja, o cinismo visava
fornecer a figura privilegiada de uma crítica ao nomos e à cultura através do
programa de retorno à uma moral naturalista que toma a animalidade como
padrã o regulador da conduta. Como se: “a natureza provesse uma norma ética
observá vel nos animais e em comparaçõ es entre culturas”17. Conhecemos, por
exemplo, a anedota que diz:

Tendo visto um dia um rato que corria sem se preocupar em encontrar


uma morada, sem temer a obscuridade e sem desejo algum de tudo o que
transforma a vida em algo agradá vel, Dió genes o tomou por modelo e
encontrou remédio em seu despojamento18.

Isto permite ao cínico fundar a ideia de virtude na simplicidade dos costumes, na


limitaçã o das necessidades e, principalmente, na negaçã o direta do vínculo aos
objetos sensíveis. Sexto Empírico dirá : “Epicuro afirma que o prazer sensível é
um bem. Antístenes, ao contrá rio, diz preferir a loucura ao mal gozo”19. Ou ainda:
“Crates acrescenta ainda a essas palavras o resumo de seu pensamento: Quem
nã o se deixa submeter, mas resiste ao prazer servil, gozará de uma liberdade
soberana e indestrutível”20. E em este “nã o se deixar submeter” encontramos um
conceito de filosofia como disciplina rigorosa (askêsis) tendo em vista o retorno a
um estado natural e à recusa aos falsos valores da vida social. Por isto, para o
cinismo, a virtude era uma questã o de apatia e desafecçã o, ou seja, indiferença
absoluta em relaçã o aos objetos sensíveis que mobilizam os desejos na vida
social. Indiferença que encontramos, por exemplo, na afirmaçã o de Antístenes
presente no Banquete de Xenofonte:

E se, por acaso, meu corpo sentir a necessidade dos prazeres do amor, a
primeira que vier será suficiente, a tal ponto que as mulheres das quais
me aproximo acolhem-me com transporte pela simples razã o de que
ninguém consente em ter comércio com elas21.

Desta forma, o retorno à physis pode fundamentar a autarkeia dos que


compreendem a liberdade como indissociá vel da capacidade de nã o se deixar
afetar, embora esta nã o afecçã o venha associada à denú ncia da inautenticidade
das leis da polis. Denú ncia que faz do cinismo a afirmaçã o do cosmopolitismo e
da recusa do vínculo à territorialidade social da polis. Denú ncia que se realiza
também na rejeiçã o da cultura intelectual (paideia) como horizonte de formaçã o.
No entanto, esta crítica cínica a uma cultura compreendida como
degradaçã o da natureza foi percebida, em vá rias ocasiõ es, como entificaçã o de
um discurso amoralista. Isto fez com que os pró prios cínicos, principalmente à
ocasiã o da recuperaçã o romana, se dedicassem à separaçã o entre um “falso” e
17
Idem, p. 8
18
DIÓ GENES LAÉ RCIO, Vie, doctrine et sentences des philosophes illustres, Paris : Flammarion,
1965, p. 14
19
EMPIRICO, Sexto; Contra os matemá ticos, XI, 73-74
20
PAQUET, Lucien; Les cyniques grecs: fragments et témoignages, p. 135
21
XENOFONTE, Banquete, IV, 38
um “verdadeiro” cinismo (basta lembrar do combate de Luciano contra os falsos
cínicos). O fato é que esta discussã o a respeito de um falso e de um verdadeiro
cinismo atravessou a recepçã o medieval e renascentista do legado cínico. O
elogio da pobreza, da autarkeia, e a crítica ao cará ter heterô nomo das obrigaçõ es
morais da vida social foram motivos para a recuperaçã o do cinismo pela filosofia
moral do cristianismo medieval (Erasmo, Morus). No entanto, nã o foram poucos
os teó logos cristã os que compreenderam como simples figura do amoralismo a
crítica cínica com sua ausência de vergonha (verecundia) e com seu desprezo
pelas regras sociais. A possibilidade de aproximaçã o entre a moralidade cristã e
o cinismo chegou mesmo a ser determinada, em alguns casos, como heresia (vide
o caso dos Turlupins). Nã o deixa de ser desprovido de interesse lembrar ainda
que tal dicotomia na recepçã o do cinismo chegou até a contemporaneidade.
Basta lembrarmos do projeto de Peter Sloterdijk em recuperar o pretenso
potencial disruptivo da crítica cínica aos costumes e á moral, isto a fim de
contrapô -lo ao cinismo pró prio à ideologia do capitalismo contemporâ neo. No
entanto, esta contraposiçã o simples talvez passe ao largo da verdadeira questã o.
Uma explicaçã o possível para o fato desta duplicidade na recepçã o do
cinismo pode ser fornecida se nos atentarmos para certos problemas na
fundamentaçã o de toda moral naturalista. Neste sentido, lembremos do
significado em fundar a autarkeia cínica através da posiçã o da apatia. Fundar a
dominaçã o de si na negaçã o direta dos vínculos privilegiados a objetos sensíveis
equivale a recorrer a um conceito negativo de liberdade. Digamos que a
liberdade cínica nã o é “liberdade de fazer determinadas açõ es”, mas
principalmente “libertaçã o em relaçã o a certos objetos e paixõ es”. Esta libertaçã o
permite a constituiçã o de vínculos fundamentais entre liberdade e auto-
pertencimento. Lembremos do que diz Dió genes, segundo Epiteto:

“Desde que Antístenes me libertou eu nunca mais estive em servidã o”.


Mas como ele o tinha libertado? Escutem o que Dió genes diz: “Ele me
mostrou o que me pertence e o que nã o me pertence. A propriedade nã o
me pertence, pais, domésticos, amigos, reputaçã o, vínculos familiares,
relaçõ es sociais, tudo isso me é estrangeiro”. O que entã o te pertence
propriamente? “O uso das representaçõ es. Antístenes me mostrou que
este uso, eu o tenho inviolá vel e livre de toda restriçã o, ninguém pode me
opor um obstá culo ou me forçar a dispo-las contra a minha vontade 22.

Este conceito negativo de liberdade permite, no entanto, a constituiçã o de


um campo daquilo que me é pró prio, permite a constituiçã o de um campo de
pertencimento. Mas notemos que nã o temos, neste momento do pensamento
grego, algo como um pertencimento fundado na prevalência da individualidade.
A individualidade como indexador da liberdade nã o existe entre os gregos.
Mesmo quando personagens do mundo grego se contrapõ em à lei social, nunca
isto é feito em nome dos direitos da individualidade. Como foi lembrado no início
da aula, Antígona, por exemplo, contrapõ e-se à polis em nome da lei dos deuses.
Os cínicos se contrapõ e à polis em nome do retorno à natureza enquanto plano
de imanência que permite a orientaçã o da açã o virtuosa. Essa ética da virtude
nã o é apenas fruto da crença de que as consideraçõ es exclusivas sobre o cará ter
moral dos agentes podem definir as condiçõ es para a felicidade. Trata-se de, na
22
EPITETO, Entretiens, III, 24, 67
verdade, naturalizar as virtudes morais. A natureza é o nome do espaço do
pertencimento de si no cinismo. O que nã o devia nos estranhar já que, como nos
lembra Heidegger, a physis aparece como uma palavra grega fundamental para
ser.
Isto dá uma declinaçã o cínica singular a respeito da noçã o de autoctonia.
O cosmopolitismo cínico vem do fato da autoctonia nã o estar vinculada à
comunidade da qual venho, mas a natureza que me faz em casa em toda parte. O
que explica porque Antístenes afirmava que: “o sá bio nã o vive respeitando as leis
da sua pá tria, mas respeitando a virtude”23. Lembremos ainda de como Dió genes
se definia como: “sem cidade (apolis), sem casa (aoikos), sem pá tria (apatris), um
mendigo e vagabundo, vivendo cada dia”24.
Se a realizaçã o como ser social é para o cinismo expressã o de perda de si,
de submissã o a um mundo de aparência, a despossessã o e recomposiçã o do
comportamento humano a partir do animal (há relatos de cínicos que transavam
e se masturbavam na rua) é a forma do retorno a si que permite a realizaçã o da
liberdade.
No entanto, muitas foram as críticas aos cínicos que insistiram no fato da
natureza no cinismo aparecer principalmente como a negação do nomos. Ou seja,
ela aparece como princípio meramente negativo. Para que a physis fornecesse um
princípio positivo e autô nomo de orientaçã o da açã o, seria necessá rio algo como
uma filosofia da natureza como base para a filosofia moral, mas isto falta ao
cinismo. Seria necessá rio o desenvolvimento extensivo do conceito de physis.
Vá rias anedotas dariam conta desta orientaçã o moral como negaçã o simples do
nomos. Lembremos, por exemplo, da declaraçã o de Dió genes a respeito de seu
há bito de sempre entrar no teatro pela porta de saída: “Eu me esforço de fazer na
minha vida o contrá rio de todo mundo” 25. Mas, se a physis é apenas o Outro da
vida social, entã o ela será apenas uma abstraçã o capaz de englobar disposiçõ es
muitas vezes contraditó rias entre si, pois variá veis de acordo com a modificaçã o
subjetiva da perspectiva de avaliaçã o do que pode se pô r como negaçã o simples
do nomos. Impasse que Hegel tinha em vista ao lembrar que: “Dió genes no seu
tonel está condicionado pelo mundo que procura negar” 26, ou seja, que a
verdadeira essencialidade de sua conduta é fornecida por aquilo que aparece
como limite à sua dominaçã o de si.
No entanto, podemos dizer que a natureza no cinismo aparece como
restriçã o ao horizonte de necessidades que me permita poder acolher todo e
qualquer acontecimento. Nã o podemos deixar de comer, mas Dió genes nã o verá
problema em comer a carne de qualquer animal, nem verá signo de barbarismo
comer a carne humana. A limitaçã o extrema e a indiferença funcionam aqui como
condiçã o para a afirmaçã o da racionalidade de todo acontecimento, como recusa
à criaçã o de vínculos de dependência. Algo que veremos recuperado pelos
estoicos.

O riso da franqueza

23
DIÓ GENES LAÉ RCIO, p. 10
24
DIÓ GENES LAÉ RCIO, p. 20
25
DIÓ GENES LAÉ RCIO, idem, p. 30
26
HEGEL, Fenomenologia, par. 524, Phä nomonologie, p. 345
Mas tentemos entender melhor a estrutura do falar franco cínico, expressã o
maior da liberdade. A primeira característica que gostaria de salientar é a
articulaçã o entre franqueza e sarcasmo. Como se a liberdade se exercesse de
forma privilegiada na derrisã o e no riso. Ao falar do cinismo como forma
literá ria, Nietzsche lembra:

Se a tragédia havia absorvido em si todos os gêneros de arte anteriores,


cabe dizer o mesmo, por sua vez, do diá logo platô nico, o qual, nascido por
mistura do todos os estilos e formas precedentes, paira no meio, entre
narrativa, lírica e drama, entre prosa e poesia, e com isto infringe
igualmente a severa lei antiga da unidade da forma linguística; caminho
este por onde os escritores cínicos foram ainda mais longe, atingindo, na
má xima variegaçã o do estilo, na constante variaçã o entre formas métricas
e prosaicas, também a figura literá ria do “Só crates furioso” que eles
costumavam representar em vida27.

Ou seja, esta escrita que ri de todas as coisas sérias é fruto da ironizaçã o do


gênero trá gico colocada em marcha pelos cínicos. Bakhtin vê, na forma
humorística dos filó sofos cínicos, as marcas do humor popular contra as
instauraçõ es do gênero épico: “ É precisamente o humorista que destró i o gênero
épico, e geralmente destró i toda distâ ncia hierá rquica”28. Neste processo de
destruiçã o, até mesmo a fixidez da imagem de si, imagem construída no gênero
épico através da identificaçã o com um missã o simbó lica que deve ser assumida
pelo sujeito, é abalada. Isto permite que o sujeito: “adquira a iniciativa ideoló gica
e linguística necessá ria para mudar a natureza de sua pró pria imagem”29, uma
iniciativa que estaria claramente figurada na imagem de Dió genes e na imagem
de Menipo fornecida por Luciano.
Isto demonstra como nã o estamos apenas diante de uma questã o
estilística, mas de uma questã o que toca a pró pria articulaçã o cínica sobre os
modos de dizer a verdade. Modos de dizer a verdade tematizados pelos cínicos
através da parresia, ou seja, a franqueza da liberdade de palavra e da enunciaçã o
direta da verdade que o cínico usa contra as imposturas do poder, contra a
lisonja e contra os falsos problemas filosó ficos.
Michel Foucault, em seu curso sobre A hermenêutica do sujeito, retoma o
problema da parresia à ocasiã o de suas reflexõ es sobre o advento de uma relaçã o
de cuidado de si que nã o seria mera figura da dominaçã o de si (maîtrise de soi).
Foucault resume claramente o problema da parresia ao afirmar:

Faz-se necessá rio, já que utilizamos o logos, que haja uma lexis (uma
maneira de dizer as coisas) e também que tenha um certo nú mero de
palavras que sejam escolhidas em detrimento de outras. Assim, nã o pode
haver logos filosó fico sem esta espécie de corpo de linguagem , corpo de
linguagem que tem suas pró prias qualidades, e que tem seus efeitos,
efeitos patéticos que sã o necessá rios. Mas o que deve ser necessá rio, a
maneira de regular estes elementos (elementos verbais, elementos que
têm por funçã o agir diretamente sobre a alma) nã o deve ser, quando se é

27
NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, p. 88
28
BAKHTIN, The dialogical imagination, p. 23
29
BAKHTIN, idem, p. 38
filó sofo, esta arte, esta tekné presente na retó rica. Deve ser esta outra
coisa que, ao mesmo tempo, é uma técnica e uma ética, que é ao mesmo
tempo uma arte e uma moral e que nó s chamamos de parresia30.

Neste sentido, a parresia refere-se, de um lado, a uma qualidade moral, a um


ethos, e, de outro, a um procedimento técnico, a uma tekné necessá ria para a
transmissã o do discurso verdadeiro. Neste sentido, ela tem dois inimigos
maiores: a degradaçã o da qualidade moral através da linguagem da lisonja e a
degradaçã o da transmissã o do discurso verdadeiro através da retó rica (o que
nã o significa que a parresia nã o possa fazer uso de figuras da retó rica).
Mas uma aná lise detalhada dos usos cínicos da parresia nos mostra uma
articulaçã o absolutamente prenhe de consequências: nas mã os dos cínicos, a
parresia está sempre vinculada ao riso. Pois o falar franco cínico é indissociá vel
dos usos corrosivos do sarcasmo, do escá rnio, da sá tira, da paró dia e da diatribe.
O humor aparece assim como a maneira correta de dizer aquilo que é da ordem
da verdade, humor que inverte designaçõ es e que esvazia significaçõ es. Isso
explica porque Dió genes era lembrado pelos gregos por ser um “falsificador de
moedas”, pois ao que parece ele e seu pai teriam de fato falsificado dinheiro em
sua juventude. Falsificar moeda significa recusar as determinaçõ es de valores e
garantias tais como circulam na vida social, significa inverter as relaçõ es de
valores, como Dió genes faz segundo tal relato: “Ao perceber uma vez guardas de
um templo levando com eles alguém que roubou um vaso, propriedade do
tesouro, afirmou: ‘Eis grandes ladrõ es levando um pequeno”31.
O que nos explica porque as formas da transmissã o filosó fica dos cínicos
estã o todas vinculadas a modos humorísticos. Sabemos por exemplo que Crates e
Menipo deram à sá tira (ao ponto de falarmos da sá tira menipéia como gênero),
tanto ao mito quanto à filosofia, uma funçã o central como gênero filosó fico.
Podemos dizer que Dió genes eleva o chiste e os jogos de palavras a modos
privilegiados de enunciaçã o da verdade. Assim, se é certo, como diz Foucault, que
a parresia é indissociá vel de uma prá tica de formaçã o daquele a quem o falar da
verdade se endereça, entã o devemos tirar as consequências do fato deste
processo de formaçã o dar-se pelas vias do riso. Este riso é dirigido contra as
figuras do poder. Lembremos, por exemplo, da anedota segundo a qual
Alexandre queria conhecer Dió genes e ao encontrá -lo estirado no chã o pergunta-
lhe: “Diga-me o que queres e farei tudo o que quiser”, ele teria respondido: “Saia
da frente do meu sol”.

A crítica da metafísica

Mas a principal figura do poder é a metafísica, é a separaçã o entre a


universalidade da ideia, como horizonte fundamental de produçã o do sentido, e a
existência. Como se a experiência da liberdade exigisse o destronamento da
metafísica. E é neste ponto que ganha relevâ ncia o que podemos chamar de
“teoria cínica da linguagem”. Ela se encontra sumarizada na afirmaçã o canô nica
de Antístenes contra a filosofia platô nica : “Eu vejo bem um cavalo, mas nã o vejo
a cavalidade”. Afirmaçã o repetida por Dió genes ao encontro do pró prio Platã o:

30
FOUCAULT, L´herméneutique du sujet, p. 350
31
DIÓ GENES LAË RCIO, VI, 45
“Eu vejo a taça e a mesa, mas eu nã o vejo a ideia de taça e a ideia de mesa” 32. No
que Platã o respondeu: “Você tem olhos para ver a taça e a mesa, mas nã o a
inteligência para perceber a Taça e a Mesa”.
Percebam que estamos no interior de uma discussã o sobre as relaçõ es
entre sentido e existência. Dió genes critica a estratégia platô nica de vincular o
sentido a uma ideia transcendente, pois acredita que tal transcendência elimina o
enraizamento do sentido na existência. É isto que pode nos explicar, por
exemplo, porque Dió genes poderá afirmar que a mú sica, a geometria, a
astronomia e outras ciências que nã o se baseiam no cá lculo das empirias seriam
inú teis33. Ou ainda, de forma mais exemplar, podemos lembrar da histó ria de
Antístenes que, a fim de provar a existência do movimento contra Zenã o, levanta-
se da sala e começa a andar 34. Ou ainda sua maneira de responder ao silogismo:
“Você nã o perdeu o que tem/ Você nã o perdeu chifres/ Logo, você tem chifres” –
“Eu nã o os vejo”. Uma existência, no entanto, cuja experiência nã o é descritível
sob a forma da predicaçã o. Nã o tenho acesso ao que é a mesa ao dizer: “A mesa é
redonda, feita de madeira, um presente dado por meu pai, etc.”. A discussã o feita
por Platã o no Sofista parece claramente direcionada ao cinismo de Antístenes:

- Enunciamos ‘o homem’ aplicando-o mú ltiplas denominaçõ es. Nó s


lhe atribuímos cores, formas, grandezas, vícios e virtudes. Em
todas essas atribuiçõ es, como em milhares de outras, nã o é
apenas o homem que afirmamos ser, mas ainda ‘bom’ e outras
qualificaçõ es em nú mero ilimitado. É assim com todo objeto.
Igualmente, pomos cada um deles como um para dize-los
também mú ltiplos e para designá -los por uma multiplicidade de
nomes.
- Você fala a verdade
- E é, penso, servir aos que chegaram tarde à escola um belo
presente. A resposta imediata que encontramos é que é
impossível que o mú ltiplos seja um e que o um seja mú ltiplo. Eles
se comprazem a nã o permitir que o homem seja dito bom. Mas
apenas que o bom seja dito bom, e o homem seja dito homem 35.

A este respeito, conhecemos, por exemplo, a afirmaçã o presente na


Metafísica, de Aristó teles a respeito da “ingenuidade” da doutrina de Antístenes:
“que acreditava nada poder ser atribuído a um ser a nã o ser sua noçã o pró pria
( )”36. Mas é prová vel que Antístenes sustente a proposiçã o
ontoló gica de que o ser nã o pode estar submetido a transformaçõ es que lhe sã o
exteriores. Na forma proposicional: “O homem é bom” estabeleço uma relaçã o
entre sujeito e predicado na qual o predicado nã o está contido no sujeito. A
relaçã o S é P exige assim uma transformaçã o em S cuja causa lhe é exterior. Mas
uma teoria naturalista da linguagem, como a que anima o cinismo, afirmarã o:
“que há , ou deve haver, uma conexã o entre nomes e coisas de forma tal que os
32
DIÓ GENES LAÉ RCIO, idem, p. 26
33
Cf. DIÓ GENES LAÉ RCIO, idem, p. 34
34
“Um dos cínicos recebeu uma objeçã o a encontro da existência do movimento; sem nada
responder, ele levantou-se e pô s-se a andar, mostrando assim pelos fatos e pela evidência que o
movimento pode existir” (SEXTO EMPÌRICO, Hypotyposes, III, 66
35
PLATÃ O, Sofista, 251b
36
ARISTÓ TELES, Metafísica, 1024b, 32
nomes denominam seus nominatas em virtude de afinidade ou de propriedades
partilhadas”37. Mas como se trata de uma teoria da linguagem que é, ao mesmo
tempo, uma ontologia, admitir que algo tem mais do que sua noçã o pró pria
implica admitir que algo está submetido a causalidade do que inicialmente nã o
lhe é pró prio.
Mas isto implica também que a noçã o pró pria é a portadora do sentido do
ser referido. Caberá ao filó sofo questionar o desvirtuamento da noçã o pró pria,
mostrando o que é de fato pró prio a um referido ser. Daí porque, Epicuro lembra
que, para Antístenes, o começo da verdadeira educaçã o estaria no aprendizado
dos nomes. Isto nos explica também porque: “Algumas das prá ticas linguísticas
de Dió genes mostra-o invertendo nomes que sã o primariamente descritivos em
nomes que pertencem apenas à queles que merecem a descriçã o”38. Ou seja, trata-
se de submeter o uso descritivo dos nomes a um uso que vise apenas a
determinaçã o da essencialidade. Talvez o exemplo mais célebre desta estratégia
crítica seja a anedota na qual Dió genes sai à luz do dia, com uma lanterna na mã o,
gritando: “Procuro um homem”. Ou seja, Dió genes aceita a conotaçã o ordiná ria
das palavras (o que significa um homem), mas insiste que sua denotaçã o deve
ser invertida (o que cai sob a extensã o do termo “homem”). Ao que parece,
Dió genes vagava sempre a noite, falando ao vazio.

37
LONG, The socratic tradition: Diógenes, Crates and hellenistic tradition, p. 36
38
LONG, idem, p. 37
Arqueologia do conceito de liberdade
Aula 3

Na aula passada, começamos nossa discussã o a respeito do conceito de liberdade


entre os gregos. Vimos como a liberdade grega funda-se na articulaçã o entre três
conceitos fundamentais: autoctonia, autonomia e autarkeia. Lembrei a vocês
como, em todos esses três casos, é claro como a noçã o de auto-pertencimento é
um horizonte comum fundamental. Autarkeia é normalmente traduzido por
auto-suficiência, pela qualidade de ser independente de condiçõ es externas. Pode
ser também traduzido por auto-contentamento. Autoctonia, por sua vez, é a
condiçã o de quem é autó ctone, ou seja, de quem é deste solo, desta terra, já que
khthón é exatamente terra e solo. Por fim, autonomia indica submetido a sua
pró pria lei. Nomos vem ainda de partilha, parte, dividir. O que deixa claro como
trata-se de uma atribuiçã o de localizaçã o e determinaçã o: qual minha parte, de
que lado estou da divisã o.
Tendo tal articulaçã o em mente, nó s vimos alguns traços maiores da
filosofia cínica. A escolha em começar nossa discussã o sobre liberdade pelo
cinismo grego tem duas razõ es. Primeiro, o cinismo foi uma verdadeira filosofia
popular que atravessa o mundo greco-romano. Sua influência será
extremamente significativa na constituiçã o das modalidades de crítica a partir do
iluminismo, devido ao conceito de parresia (fala franca), devido à crítica ao
convencionalismo do nomos e ao recurso à moral naturalista. Dió genes chegou a
aparecer como figura heroica para os revolucioná rios franceses. Atualmente, o
cinismo como horizonte de uma prá tica e pensamento crítico reapareceram
pelas mã os de Peter Sloterdijk e Michel Foucault.
Segundo, o cinismo foi um eixo importante de influência também no
interior do pensamento grego. Neste sentido, minha ideia era explorar a relaçã o
maior entre cinismo e estoicismo, constituindo assim um eixo importante para
compreendermos as discussõ es sobre a eleutheria entre os gregos. Por isto,
vamos recapitular alguns pontos da aula passada para darmos sequência a nossa
discussã o.
Na aula passada, afirmei que o cinismo aparece como uma filosofia
eudemonista fundada na crítica ao convencionalismo da moral que guia o nomos
e na tentativa de recuperaçã o de uma autenticidade do agir que apela ao recurso
à physis. Ou seja, o cinismo visava fornecer a figura privilegiada de uma crítica ao
nomos e à cultura através do programa de retorno à uma moral naturalista que
toma a animalidade como padrã o regulador da conduta. Como se: “a natureza
provesse uma norma ética observá vel nos animais e em comparaçõ es entre
culturas”39.
Isto nã o levava, no entanto, a alguma forma de hedonismo naturalista.
Antes o cínico procurava fundar a ideia de virtude na simplicidade dos costumes,
na limitaçã o das necessidades e, principalmente, na negaçã o direta do vínculo
aos objetos sensíveis. Sexto Empírico dirá : “Epicuro afirma que o prazer sensível
é um bem. Antístenes, ao contrá rio, diz preferir a loucura ao mal gozo” 40. Ou

39
BRACHT BRANHAM, R. e GOULET-CAZÉ , Marie-Oidela; The cynics : the cynic movement in
antiquity and its legacy, p. 8
40
EMPIRICO, Sexto; Contra os matemá ticos, XI, 73-74
ainda: “Crates acrescenta ainda a essas palavras o resumo de seu pensamento:
Quem nã o se deixa submeter, mas resiste ao prazer servil, gozará de uma
liberdade soberana e indestrutível”41. E em este “nã o se deixar submeter”
encontramos um conceito de filosofia como disciplina rigorosa (askêsis) tendo
em vista o retorno a um estado natural e à recusa aos falsos valores da vida
social. Esta é a base da relaçã o entre liberdade e autarkeia entre os cínicos.
Neste sentido, lembremos do significado em fundar a autarkeia cínica
através da posiçã o da apatia. Fundar a dominaçã o de si na negaçã o direta dos
vínculos privilegiados a objetos sensíveis equivale a recorrer a um conceito
negativo de liberdade. Digamos que a liberdade cínica nã o é “liberdade de fazer
determinadas açõ es”, mas principalmente “libertaçã o em relaçã o a certos objetos
e paixõ es”. Esta libertaçã o permite a constituiçã o de vínculos fundamentais entre
liberdade e auto-pertencimento. Assim, a natureza no cinismo aparece como
restriçã o ao horizonte de necessidades que me permita poder acolher todo e
qualquer acontecimento. Nã o podemos deixar de comer, mas Dió genes nã o verá
problema em comer a carne de qualquer animal, nem verá signo de barbarismo
comer a carne humana. A limitaçã o extrema e a indiferença funcionam aqui como
condiçã o para a afirmaçã o da racionalidade de todo acontecimento, como recusa
à criaçã o de vínculos de dependência.
Por outro lado, vimos como a autoctonia cínica é pensada. Eu afirmara
que os cínicos se contrapõ e à polis em nome do retorno à natureza enquanto
plano de imanência que permite a orientaçã o da açã o virtuosa. Essa ética da
virtude nã o é apenas fruto da crença de que as consideraçõ es exclusivas sobre o
cará ter moral dos agentes podem definir as condiçõ es para a felicidade. Trata-se
de, na verdade, naturalizar as virtudes morais. A natureza é o nome do espaço do
pertencimento de si no cinismo. O que nã o devia nos estranhar já que, como nos
lembra Heidegger, a physis aparece como uma palavra grega fundamental para
ser. Isto dá uma declinaçã o cínica singular a respeito da noçã o de autoctonia. O
cosmopolitismo cínico vem do fato da autoctonia nã o estar vinculada à
comunidade da qual venho, mas a natureza que me faz em casa em toda parte. O
que explica porque Antístenes afirmava que: “o sá bio nã o vive respeitando as leis
da sua pá tria, mas respeitando a virtude”42. Lembremos ainda de como Dió genes
se definia como: “sem cidade (apolis), sem casa (aoikos), sem pá tria (apatris), um
mendigo e vagabundo, vivendo cada dia” 43. Por fim, a autonomia cínica está
vinculada ao exercício de submeter-se si mesmo ao princípio de virtude e
contençã o.

Determinismo e acontecimento

Dito isto, podemos entrar de maneira mais sistemá tica nas discussõ es a
respeito da liberdade entre os estoicos. Tal como o cinismo, o estoicismo será
uma corrente filosó fica extremamente popular no mundo greco-romano,
desdobrando sua hegemonia durante cinco séculos. Seu nome deriva de Stoa, que
significa “pó rtico” em grego e indicava o local de reuniã o, fundado em torno de
300 a.c., dos primeiros discípulos de Zenã o de Cítio (nã o confundir com o filó sofo
pré-socrá tico Zenã o de Eleia). É a respeito deste momento que falamos de um

41
PAQUET, Lucien; Les cyniques grecs: fragments et témoignages, p. 135
42
DIÓ GENES LAÉ RCIO, p. 10
43
DIÓ GENES LAÉ RCIO, p. 20
estoicismo antigo, cujos nomes principais seriam o pró prio Zenã o, além de de
Cleanto e Crisipo. Segue a ele um estoicismo médio (as vezes chamado de
“romano”), cujos nomes mais conhecidos sã o Panécio e Posidô nio. Por fim, fala-
se de um ú ltimo estoicismo ou estoicismo imperial, no qual encontramos os
nomes mais conhecidos dessa escola, a saber, Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio. De
Zenã o e Crisipo temos apenas alguns fragmentos e citaçõ es, enquanto as obras
de Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio foram, em larga medida, preservadas.
O estoicismo é, juntamente com o epicurismo, uma das duas escolas que
marcarã o o período de influência da cultura helênica no ocidente. Elas trazem as
características histó ricas do momento de colapso das cidades-estados e da
propagaçã o imperial da cultural grega.
A articulaçã o cerrada entre ló gica, física e ética (os estoicos chegavam a
comparar a filosofia a um ovo sendo a ló gica a casca, a ética a clara e a física a
gema) mostrava como nenhuma procura pela orientaçã o da conduta em direçã o
à felicidade pode ocorrer sem a compreensã o da racionalidade do universo.
A princípio, o estoicismo seria a mais refratá ria das perspectivas
filosó ficas à liberdade. Logos é o nome da existência em sua integralidade. Nã o há
nada que desconheça as amarras da necessidade, nã o há espaço para a
desordem, o acidente ou para a contingência. Como dirá Cleanto, em seu Hino a
Zeus: “você sabe reduzir o que é sem medida. Ordenar a desordem; em ti a
discó rdia é concó rdia”44. Afinal, estamos a falar de uma filosofia caracterizada
pelo extremo determinismo. O que significa que a racionalidade do mundo nã o
está em seus elementos imutá veis, mas sua pró pria racionalidade imanente, suas
modificaçõ es, sã o a expressã o da racionalidade em ato. Lembremos do que nos
diz Emile Bréhier:

Nã o se trata de eliminar o dado imediato e sensível, mas ao contrá rio de


ver a Razã o nele tomar corpo. Nã o há progresso algum que nos leve do
sensível ao racional, já que nã o há diferença de um a outro. Lá onde Platã o
acumula diferença para nos levar para fora da caverna, o estoico só vê
identidades. Da mesma forma que nos mitos gregos as lendas dos deuses
ficam exteriores à histó ria dos homens, enquanto na Bíblia a histó ria
humana é ele mesma um drama divino, no platonismo, o inteligível está
fora do sensível, enquanto que no estoicismo sã o nas coisas sensíveis que
a razã o adquire a plenitude de sua realidade45.

A colocaçã o é pedagó gica. O logos estoico encontra-se integrado ao


mundo sensível, os acontecimentos do mundo sensível sã o a expressã o mesma
do logos. Os corpos sã o plenos de razã o, até porque as ú nicas coisas que existem
sã o os corpos e suas forças. Assim, nã o é possível que a compreensã o da
racionalidade em marcha nos acontecimentos do universo seja dissociada da
compreensã o do horizonte de orientaçã o da conduta virtuosa. Como dirá Crisipo:
“viver segundo a virtude significa a mesma coisa que viver segundo a experiência
dos acontecimentos que ocorrem segundo a natureza” 46. Daí uma afirmaçã o
como:

44
CLEANTO; “Hino a Zeus”, In: Les stoïciens I, p. 7
45
BRÉ HIER, Emile; Histoire de la philosophie – L’antiquité et le moyen â ge, p. 208
46
DIÖ EGENES LAÉ RCIO, Vida e opiniã o de filó sofos ilustres, p. 44
Instruir-se é aprender a querer cada acontecimento tal como ele se
produziu. Como ele se produziu? Segundo a ordem estabelecida por
aquele que ordena tudo. Segundo esse ordem, há verã o e inverno,
fecundidade e esterilidade, virtude e vício, e todos os contrá rios que
servem à harmonia do universo. A cada um de nó s ele doou um corpo com
seus ó rgã os, bens e companheiros47.

Querer cada acontecimento como ele se produziu pode parecer para


alguns como exercício de suprema resignaçã o, ainda mais quando Epiteto faz
afirmaçõ es como: “nã o procure que o que acontece aconteça como queres, mas
queira o que acontece como acontece e você encontrará dias felizes”48. Mas,
insistamos: na verdade, o que move esse assentimento estoico é o
reconhecimento do logos naquilo que acontece. Há uma causalidade estrita no
estoicismo, nada acontece sem razã o. Assim, a apropriaçã o, a oikeiosis estoica em
relaçã o ao curso do mundo pode ser momento da liberdade porque trata-se de
querer o que se afirma como racional, como se assente a uma proposiçã o
matemá tica cuja verdade nã o depende de nó s ou como se assente à necessidade
de ficar em quarentena diante de uma pandemia.
Tal perspectiva será recuperada pela filosofia contemporâ nea. Assim, por
exemplo, encontraremos alguém como Gilles Deleuze a tentar integrar o
estoicismo dentro de um projeto contemporâ neo de elevaçã o do acontecimento a
processo fundador da moral:

Ou bem a moral nã o tem sentido algum ou bem é isto que ela quer dizer,
ela nã o tem nada a mais a dizer: nã o ser indigno do que nos acontece. Ao
contrá rio, apreender o que acontece como injusto e nã o merecido (é
sempre a culpa de alguém), eis o que faz nossas feridas repugnantes, o
ressentimento em pessoa, o ressentimento como acontecimento (...) Que
significa dizer entã o querer o acontecimento? É aceitar a guerra quando
ela acontece, a ferida e a morte quanto elas acontecem? É bem prová vel
que a resignaçã o ainda seja uma figura do ressentimento, ele que possui
tantas figuras. Se querer o acontecimento é inicialmente extrair dele a
verdade eterna, como o fogo do qual ele se alimenta, este querer alcança o
ponto no qual a guerra é feita contra a guerra, a ferida, traçada viva como
a cicatriz de todas as feridas, a morte revirada contra todas as morte 49 .

Esta afirmaçã o apresenta uma interpretaçã o correta sobre pontos


fundamentais do estoicismo. Deleuze procura sublinhar que a apropriaçã o
estoica nã o é resignaçã o porque trata-se de querer algo no acontecimento, algo
que modifica o sentido usual das representaçõ es que temos dele. Há uma
atividade nesta aparente passividade devido à açã o consciente de modificaçã o de
significaçã o das representaçõ es. Esta é uma afirmaçã o que se encontra em vá rios
momentos de Epiteto: o que nos faz sofrer nã o é exatamente a morte, mas a
representaçã o que temos dela:

47
EPITETO, Entretiens I, XII
48
EPITETO, Manual, VIII
49
DELEUZE, Gilles; Logique des sens, p. 174
O que atormenta os homens nã o sã o as coisas, mas os julgamentos
relativos à s coisas: assim a morte nã o tem nada de aterrorizante, pois se
assim fosse Só crates teria também achado assim, mas que julguemos a
morte aterrorizante, eis o que é realmente aterrorizador50.

Nã o é a morte e o sofrimento que devemos temer, mas o temor da morte e


do sofrimento. Mudar as representaçõ es que temos, permitir que algo no que
ocorre, algo que nã o se esgota nas representaçõ es que normalmente temos,
possa incorporar-se modificando a estrutura de nossas experiências, eis o que
devemos entender, de fato, por acontecimento. Ou seja, o verdadeiro
acontecimento é isto que na morte age contra a morte e que nos faz abandonar
todo ressentimento. Isto, é sempre bom lembrar, nada tem a ver com a ausência
de prudência tendo em vista a realizaçã o do que nos seria natural, do que nos
seria signo de excelência. Cabe a cada um examinar os antecedentes e
consequentes de toda empresa, examinar seu pró prio projeto, sua pró pria
natureza e só depois assumir a açã o. O que nada tem a ver com aceitar de forma
temerá ria toda inclinaçã o e apetite como motivaçã o para a açã o.
Entender isto nos obriga a lembrar algumas características da ló gica
estoica. Pois os estoicos insistem, mesmo afirmando existir apenas corpos, que
há o incorporal. Corpos sã o ativos por essência e nã o tem seu princípio de
transformaçã o em forças externas. Nã o existe para os estoicos a inercia da
matéria: “A afirmaçã o de que tudo é corpo quer dizer unicamente que a causa, tal
como nó s a definimos, é um corpo, e o que sofre a açã o dessa causa também é um
corpo”51. Isto nos ajuda a compreender a recusa dos estoico em pensar a ló gica
sob sua forma proposicional (S é P). Seguindo os megá ricos, os estoicos insistiam
que nã o devíamos pensar os juízos sob sua forma habitual, nã o se deve dizer “A
á rvore é verde”, mas “A á rvore verdeja”; nã o mais “O humano é mortal”, mas “O
humano morre”.
Desta forma, o que se exprime vinculado ao sujeito nã o é um conceito
(objeto ou classes de objeto), mas um fato ou um acontecimento. O juízo nã o
exprime a penetraçã o entre dois objetos independente. Ela exprime certo
aspecto de um objeto na medida em que realiza ou sofre uma açã o. Esse aspecto
é o resultado de sua atividade ou da atividade de outro objeto sobre ele. Assim:
“o que é expresso no juízo nã o é uma propriedade como ‘um corpo está quente’,
mas um acontecimento como ‘um corpo se esquenta’” 52. Esta é a maneira estoica
de afirmar que devemos admitir apenas as proposiçõ es de fato. Note-se ainda
que neste acontecimento expressa-se a proposiçã o estoica da mistura entre os
corpos. O fogo que se aproxima do corpo para esquentá -lo coexiste com ele em
toda sua extensã o.
O que interessa aos estoicos é distinguir as diversas maneiras pelas quais
pode o acontecimento se exprimir. Isto porque um ser nã o se descreve a partir
daquilo que ele tem de permanente, de está vel, nã o o que ele tem de idêntico a
um princípio capaz de constituir unidades superiores. Lembremos como, para os
estoicos o mundo era corruptível, como um ser vivo. Um ser se descreve no
desdobramento no tempo e no espaço em um campo de acontecimentos. Ele é a

50
EPITETO, Manual, V
51
BRÉ HIER, Emile; A teoria dos incorporais no estoicismo antigo, p. 23
52
Idem, p. 45
extensã o no espaço e no tempo de uma força interna que se desdobra. De certa
forma, nã o estamos diante da descriçã o de um ser, mas de uma maneira de ser.
Mas o elemento complicador encontra-se na noçã o de incorporal. Para os
estoicos, os incorporais sã o: o espaço, o tempo, o vazio e o exprimível ().
Que tempo, espaço e vazio sejam incorporais, eis algo que nossa sensibilidade
contemporâ nea pode tacitamente aceitar. Ha algo do tempo e espaço como
condiçã o transcendental de possibilidade da experiência a animar tal teoria dos
incorporais. Tempo, espaço e vazio nã o sã o corpó reos, mas nã o podem ser
classificados como nã o-existentes, pois subsistem na mente. Eles sã o “algo” (tó
ti), quase seres que expressam o movimento na natureza, condiçõ es necessá rias
para o pensamento sobre os corpos. Mas o problema se complexifica em demasia
quando definimos o exprimível, ou a expressã o, como incorporal.
Os estoicos diferenciam a representaçã o () do exprimível. A
primeira é como a marca de um sinete na cera quente. Represento um carro
como um sistema de impressõ es que atinge meu corpo pela visã o, pela audiçã o,
etc. A representaçã o é um corpo me afetando. É uma impressã o na alma (que
também é corpo). Já o exprimível é a dimensã o dos acontecimentos e fatos que
ocorrem quando corpos coexistem, Quando dois corpos agem um sobre o outro
(como quando a faca corta a carne) algo ocorre aos corpos (a carne permite a
faca cortar, o que o nã o seria o caso do má rmore; a faca nã o corta no absoluto,
cortar é um atributo relacional) e isto que ocorre é incorporal. Pois: “o que
acontece a um corpo e que se diz dele (o atributo) quando um outro corpo age
sobre ele só tem realidade na ‘expressã o’, no discurso sobre ele”53. O exprimível é
um processo, nã o um objeto. Um processo de transformaçã o dos corpos, por isto
incorporal.
Esta teoria exige assim abandonar uma concepçã o de ser baseada na
definiçã o de propriedades, na distinçã o entre propriedades necessá rias e
acidentais, para assumirmos uma dinâ mica de corpos em contínua relaçã o e
produçã o de efeitos sob o fundo da racionalidade imanente do mundo. Daí
porque a afirmaçã o estoica do mundo exige uma moralidade de afirmaçã o do
acontecimento.

Liberdade e autopertencimento

Nesse contexto, podemos entender melhor o que está no fundamento do


conceito estoico de liberdade. Partamos de uma definiçã o canô nica de Epiteto:

É livre aquele que vive como quer, que nã o se pode nem restringir nem
impedir nem forçar, cujas vontades sã o sem obstá culos, cujos desejos
alcançam seus objetivos, cujas aversõ es nã o encontram o objeto
detestado54.

Esse exercício livre da vontade nã o se submete a nada, sequer as


imposiçõ es produzidas pela tirania e pelo poder. Pois: “chamemos de livres os
seres que nã o suportam serem capturados e que, desde que sã o cativos, fogem
para a morte”55. No que a reflexã o ética se transforma em uma meditaçã o sobre o
53
MULLER, Robert; Les stoiciens, p. 71
54
EPITETO, Entretiens, IV, I, 1
55
Idem, IV, I, 28
que significa, de fato, “ser escravo”. Em que condiçõ es podemos dizer que alguém
é escravo? Quando está submetido à vontade de um outro? Mas: “quando
amamos, odiamos ou tememos as coisas, temos necessariamente como mestres
esses que tem o poder sobre elas; também nos os adoramos como deuses”56. É
pensando nisto que Epiteto associará a liberdade à crítica da “acró pole interior”,
ou seja, da tirania que se encontra em nó s, que se faz sentir em nó s a cada
instante:

É necessá rio começar por aí, faz-se necessá rio destruir essa acró pole e
expulsar os tiranos, deixar os corpos, suas partes e faculdades, os bens, a
fama, as magistraturas, as honras, as crianças, os irmã os, amigos e pensar
que tudo isso nos é estrangeiro57.

Isto significa que a liberdade estará vinculada à capacidade de afirmar a


autonomia da vontade. Pois ninguém poderia me obrigar a querer o que nã o
quero, a querer aquilo que vai contra minha vontade. A vontade é, para os
estoicos, uma “tendência racional”58. Neste sentido, cabe à luta pela liberdade
realizar a vontade a partir da definiçã o do que me é pró prio, do que depende e
nã o depende de mim, da restriçã o de minha vontade e da deliberaçã o a respeito
do que me cabe. Nã o encontra nunca obstá culos aquele que nã o deseja nada que
lhe seja estrangeiro. Nã o é em nos satisfazendo com as coisas desejadas que nos
preparamos à liberdade, mas em suprimindo tais desejos. Daí esse exercício de
despossessã o como condiçã o para a liberdade: “Só perdemos o que possuímos,
só sofremos por aquilo que possuímos”59. Nã o se pode perder o que nã o se tem.
Epiteto chega a comparar a relaçã o com o que temos ao habitar um quarto de
hotel. No que percebemos a articulaçã o profunda entre autarkeia e autonomia no
estoicismo, recuperando um princípio de ascetismo que já havíamos visto no
cinismo. É neste sentido que devemos entender proposiçõ es como:

Desde o início, a que exercerá s a nã o ser a distinguir o que é seu e o que


nã o é seu, o que depende de ti e o que nã o depende de ti, o que encontra
obstá culos e o que nã o encontra? (...) E de que terá s ainda um desejo
apaixonado? Pois tens um desejo bem ordenado e fixo das coisas que
dependem de tua vontade porque elas sã o belas, mas nã o tens o desejo
dessas que nã o dependem de ti, desejo que abriria a porta a desrazã o, ao
impulso que precipita contra toda medida60.

Sã o em afirmaçõ es como essas que vemos a enunciaçã o de um vínculo


fundamental, vínculo esse que é nossa herança grega, entre liberdade e auto-
pertencimento. A liberdade é a capacidade de viver como se quer, de ter
vontades sem obstá culos. Mas isto pressupõ e o exercício de partilha entre o que
me é pró prio e o que nã o me é pró prio, entre o que é allótrios (estrangeiro,
pertencente a outro) e o que é ta ephi emin (o que depende de mim). E se nos
perguntarmos sobre o que depende de nó s teremos como resposta:

56
Idem, IV, I, 59
57
Idem, IV, I, 87
58
DIOGENES LAÉ RCIO; Vida e opiniã o de filó sofos ilustres, p. 53
59
Idem, I, I, 16
60
Idem, IV, I, 83
Dependem de nó s a opiniã o, a tendência, o desejo, a aversã o, em uma
palavra todas nossas obras pró prias ( ). Nã o dependem de nó s
o corpo, a riqueza, as manifestaçõ es de consideraçã o, os altos encargos,
em suma, todas as coisas que nã o sã o obras pró prias61.

Sou responsá vel pelo uso de minhas representaçõ es. A primeira funçã o da
filosofia consiste em examinar as representaçõ es. Vontade e pensamento
aparecem como o fundamento do que me define em meu auto-pertencimento.
Esta é a verdadeira autoctonia do estoicismo. Nã o o solo do qual faço parte
enquanto cidadã o da polis, nã o a territorialidade, mas o ponto no qual a vontade
se encontra na universalidade do logos. Só crates nunca dizia ser de Atenas ou de
Coríntio, mas do mundo. Pois tal dimensã o da vontade só pode ser inabalá vel por
querer o logos, por querer a racionalidade do mundo e a necessidade do
acontecimento. O que nã o poderia ser diferente para alguém que dirá : “você é
ator de um drama que o autor quis como tal (...) o que é seu, é de desempenhar
corretamente o personagem que te foi confiado, quanto a escolhe-lo isto é de
outro”62.
Mas isso significa reconhecer que nã o estamos em um teatro do absurdo,
o que implica no exercício ativo de extrair do que ocorre a força de
transformaçã o do acontecimento. Livre é aquele que quer o logos, será a
proposiçã o fundamental a ser extraída do estoicismo. Um querer que exige um
profundo trabalho sobre si. Trabalho esse cujo eixo fundamental encontra-se na
capacidade de saber agir no espaço daquilo que depende de mim, daquilo que
estabelece comigo um horizonte de pertencimento. Trabalho de liberaçã o das
coisas exteriores e de cultivo do que é pró prio à minha natureza. Trabalho que
me leva a nunca estar fora de mim. Foi pensando nisto que Michel Foucault
afirmou:

Na filosofia antiga a vida soberana é geralmente uma vida que tende a


instauraçã o de uma relaçã o a si que é da ordem do gozo, nos dois sentidos
da palavra: ao mesmo tempo como possessã o e como prazer. A vida
soberana é uma vida em possessã o de si mesma, vida na qual nenhum
fragmento, nenhum elemento escapa ao exercício de seu poder e de sua
soberania sobre si. Ser soberano é acima de tudo ser seu, pertencer-se a si
mesmo63.

Uma crítica: Hegel

Neste contexto, seria interessante terminar nossa aula de hoje lembrando


de uma crítica ao estoicismo que fará histó ria na filosofia moderna. Trata-se da
crítica hegeliana. Ela é interessante por mostrar a distinçã o entre um conceito
moderno de liberdade e um conceito grego. Hegel compreende o estoicismo
como, no fundo, uma filosofia da resignaçã o. Como vimos, o estoicismo
compreende a razã o (logos) como princípio que rege uma Natureza identificada
com a divindade. O curso do mundo obedece assim um determinismo racional. A
virtude consiste em viver de acordo com a natureza racional aceitando o curso
61
EPITETO, Manual, I, 1
62
Idem, XVII
63
FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérité, p. 245
do mundo, ou seja, aceitando o destino, despojando-se de suas paixõ es a fim de
alcançar a apatia e a ataraxia. Para Hegel, a autarkeia estó ica aparece como:
“liberdade, este momento negativo de abstraçã o da existência”64. Mesmo que a
liberdade apareça definida como “a possibilidade de agir a partir de sua
vontade”65, a vontade virtuosa é aquela que se reconcilia com o determinismo
racional do curso do mundo. O que explica como é indiferente para o estoico ser
Escravo (Epíteto) ou Senhor (Marco Aurélio). Seu agir é livre “no trono como nas
cadeias e em toda forma de dependência do Dasein singular”. Uma indiferença
que nã o pode levar a outra coisa que uma “independência e liberdade
interiores”66 que, para Hegel, é sinal do aparecimento do princípio de
subjetividade.
Ou seja, Hegel compreende o estoicismo como figura larvar da
individualidade moderna, que nesse momento histó rico aparece como resposta
compensató ria à impossibilidade de transformaçã o efetiva das condiçõ es
concretas de existência. Sua esfera de auto-pertencimento seria uma abstraçã o
que preservaria aquilo que trava a realizaçã o social da liberdade.
Isto talvez nos explique porque Hegel compreende o estoicismo a partir
de duas determinaçõ es complementares. Primeiro:

Seu princípio é que a consciência é essência pensante e que uma coisa só


tem essencialidade, ou só é verdadeira e boa para ela à medida que a
consciência ai se comporta como essência pensante67.

Nota-se como esta afirmaçã o parece corroborar a exigência hegeliana de que a


consciência-de-si seja posta como essência da verdade. Ainda mais se
lembrarmos da afirmaçã o hegeliana segundo a qual a elevaçã o estoica ao plano
do pensamento:

consiste em que nã o seja a natureza imediata o conteú do nem a forma do


verdadeiro ser da consciência, mas que a racionalidade da natureza seja
aceita pelo pensamento de tal modo que tudo seja verdadeiro e bom na
simplicidade do pensamento68.

No entanto, Hegel está mais interessado, ao menos nesta parte da


Fenomenologia, nos impasses estoicos a respeito da determinaçã o da
racionalidade em sua dimensã o prá tica. Sobre a autarkeia estoica de uma
consciência que se compreende como essencialidade, Hegel dirá : “Seu agir é
conservar-se na impassibilidade que continuamente se retira do movimento do
Dasein, do atuar como do padecer, para a essencialidade simples do
pensamento”69. A este respeito, Hegel chega a afirmar que: “ a grandeza da
filosofia estoica consiste que nada pode quebrar a vontade se esta se mantém
firme (...) e que sequer o afastamento da dor pode ser considerado um fim” 70.

64
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
65
Dió genes LAÉ RCIO, Vida e lenda de filósofos ilustres- Zenão
66
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
67
HEGEL, Fenomenologia, par. 198
68
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
69
HEGEL, Fenomenologia, par. 199
70
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
Mas Hegel nã o deixa de lembrar que uma des-alienaçã o que se realiza
apenas através do formalismo de um pensar que se retira do movimento do
Dasein só pode aparecer como conformaçã o à quilo que nã o pode, por mim, ser
modificado. Hegel apresenta assim uma crítica que será , em vá rias situaçõ es,
dirigida contra ele pró prio:

A liberdade da consciência é indiferente quanto ao Dasein natural; por


isto igualmente o deixou livre, e a reflexã o é a reflexã o duplicada. A
liberdade do pensamento tem somente o puro pensamento por sua
verdade, e verdade sem a implementaçã o da vida71.

O que podemos pensar dessa crítica? De fato, ela procura insistir no fato
da liberdade ser uma experiência social que exige instituiçõ es específicas e
procedimentos legais para tanto. Ou seja, liberdade é um modo de relaçã o social.
Hegel nã o tem a sua disposiçã o um modelo estoico de fundamentaçã o da razã o
na physis. Por isto, ele precisa da noçã o eminentemente moderna da liberdade
como uma invençã o social e política resultante do reconhecimento da razã o no
interior da vida humana em comunidade. Isto explica sua necessidade de criticar
o estoicismo. Há uma dimensã o política do estoicismo, nã o haveria como negar.
Mas ela está na modificaçã o do modo de adesã o ao poder social, nã o em uma
transformaçã o institucional dele.
Neste sentido, nã o deixa de ser interessante como um anti-hegeliano por
excelência, como Deleuze, procura recuperar o estoicismo para pensar a noçã o
de liberdade na filosofia contemporâ nea. Pois o estoicismo fornece uma forma de
atividade e de vontade que nã o será exatamente aquela que crescerá de forma
hegemô nica entre nó s. Essa atividade passa muito mais pela destituiçã o das
formas do poder do que pela instauraçã o institucional. Ela passa pelo exercício
de definir os limites da capacidade do poder constituir sujeitos.

71
HEGEL, Fenomenologia, par. 200
Arqueologia da liberdade
Aula 4

Na aula de hoje, gostaria de terminar nosso primeiro mó dulo voltando-se para a


filosofia contemporâ nea. Nó s vimos nessas primeiras aulas como emerge o
conceito de liberdade entre os gregos. Eu insistira que ele resultava de uma
articulaçã o entre três noçõ es fundamentais: autonomia, autarkeia e autoctonia.
Vimos como tais noçõ es se desdobravam no interior do pensamento cínico e do
pensamento estoico. O objetivo central era mostrar como, em todos os casos,
víamos a consolidaçã o de uma noçã o de liberdade como auto-pertencimento, no
interior de uma reflexã o sobre as condiçõ es fundamentais de territorialidade de
si, de controle das afecçõ es externas e de auto-legislaçã o. Tal auto-pertencimento
visava a emergência de um solo comum no qual o logos se encontrava com a
physis, fundando as condiçõ es para o agir livre. Agir livre que nã o é exatamente a
afirmaçã o dos sistemas individuais de interesse, mas a remissã o a uma relaçã o
de concordâ ncia com a racionalidade do acontecimento e do destino.

O que Foucault procura nos gregos

É a partir de meados da década de setenta que Foucault se volta a leitura


dos gregos. Exemplo maior dessa guinada é História da sexualidade, além de seus
cursos no Collège de France como: A hermenêutica do sujeito, A coragem da
verdade, Subjetividade e verdade, O governo de si e dos outros e O governo dos
vivos. O que Foucault procura nos gregos? O que um dos filó sofos mais
emblemá ticos da filosofia contemporâ nea procura em um retorno ao
pensamento greco-romano?
A hipó tese que gostaria de defender com vocês é: um conceito de
liberdade capaz de servir como horizonte de orientaçã o para a praxis. Notemos
que, antes de chegar aos gregos, Foucault tem um problema fundamental
referente aos modos de relaçã o entre sujeito e poder. Lembremos como esse
problema aparece em História da sexualidade. Digamos que o ponto de partida do
projeto de Foucault é a pergunta: ter uma sexualidade seria expressã o de uma
liberaçã o do meu corpo em relaçã o à s pretensas amarras repressivas do poder?
A sociedade ocidental teria assumido a importâ ncia da sexualidade na definiçã o
das individualidades a partir do momento em que o poder teria perdido suas
amarras repressivas? Ou a sexualidade seria uma forma insidiosa de sujeiçã o que
demonstraria como a natureza do poder nã o é exatamente repressiva, como se
estivesse a reprimir uma natureza sexual, uma energia libidinal primeira e
selvagem, mas produtiva, como se ela produzisse os sujeitos nos quais o poder
opera?
A partir desse problema da produçã o da individualidade, Foucault
defendia que a sexualidade era um modo de assujeitamento a estruturas do
poder disciplinar. A hipó tese do poder disciplinar fora desenvolvida para
mostrar como devíamos compreender o poder presente de maneira hegemô nica
nas sociedades modernas. Diferente do poder soberano, hegemô nico em
sociedades pré-modernas, o poder disciplinar tinha um conjunto de
características pró prias. Primeiro, ele nã o era um poder que vinha de um centro
no qual encontrá vamos a vontade do soberano. Antes, ele era desprovido de
centro e disseminado por parecer vir de todos os lugares, operar em vá rias
instâ ncias e níveis; um poder horizontal. Por nã o ter centro, ele apareceria como
impessoal, como nã o exercido em nome de alguém, mas em nome de “saberes”
que fundamentam sua legitimidade na força irresistível do que se coloca como
discurso científico ou prá tica social necessá ria. Um poder de estruturas que
submetem todos, como o poder que se exerce nos hospitais, nas escolas, nas
prisõ es, nas empresas, na burocracia estatal.
Segundo ponto, este poder era individualizador. Através do seu exercício,
individualidades eram constituídas, o que nos levava a uma fó rmula importante:
ser indivíduo é sujeitar-se a um conjunto de disciplinas que legislam sobre meu
modo de organizar o tempo, de hierarquizar meus desejos e vontade, de regular
minhas paixõ es, de proibir e desqualificar certos pensamentos, de determinar
minha identidade e interesses.
Tal poder disciplinar era composto de uma anatomo-política dos corpos e
de uma bio-política das populaçõ es, ou seja, ele visava regular os corpos e seus
regimes de desejos e afetos, assim como regular os fenô menos populacionais de
crescimento, de saú de social e de reproduçã o de costumes. Por isto, a
sexualidade podia aparecer como um dispositivo central do poder disciplinar, já
que dizia respeito tanto à experiência dos corpos quanto a questõ es de gestã o
populacional (como aquelas questõ es ligadas a aná lise da taxa de natalidade, a
idade do casamento, aos nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a
frequência das relaçõ es sexuais, ao efeito do celibato e das interdiçõ es, a
incidência de prá ticas contraceptivas). Neste sentido, a reflexã o filosó fica sobre a
sexualidade expunha a maneira com que um determinado regime de poder teria
produzido um acontecimento maior, a saber, a transformaçã o disciplinar da vida.
Foucault procurou mostrar como essa transformaçã o disciplinar da vida
foi o resultado da sobreposiçã o de vá rios discursos, como o discurso científico, o
jurídico-moral e o religioso. A este respeito, ele era sensível à maneira com que
os saberes científicos que fundamentam prá ticas disciplinares nos levavam a
“falar de sexo”. A fala ouvida pelas ciências da sexualidade nã o era apenas
quantificadora, ela também era exaustiva. Este era seu ponto central: a ciência da
sexualidade produzida no ocidente nos levou a falar de sexo de forma tal a
procurar, através desta fala, a linha de partilha entre o normal e o patoló gico, a
exaurir tal fala no interior de um sistema classificató rio capaz de escutar cada
fantasia, capaz de incitar confissõ es e, com isto, a nos levar a nos inscrever no
interior de uma gramá tica, escolher histó rias possíveis, controlando assim toda
produçã o possível de identidades.
Mas ficamos aqui com uma questã o maior. Pois se somos todos indivíduos
constituídos no interior de sociedades disciplinares, de onde vem o mal-estar
que sentimos no interior da vida social e que nos leva à crítica do que nos
tornamos? De onde vem o mal-estar com este regime de fala que constitui nossa
sexualidade, assim como a esperança de outra forma de relaçã o entre discurso,
verdade e sexo? Pois Foucault vincula a força crítica ao desvelamento desses:
“momentos nos quais nossas identificaçõ es parecem de uma contingência e de
uma violência das quais nã o tínhamos consciência”. Por isto: “a experiência
subjetivante do pensamento crítico nascerá desses momentos nos quais nã o se
trata mais de nos “descobrirmos”, mas de “ultrapassar o limite” em direçã o a
uma identidade nova e imprová vel”72. Ou seja, se há crítica social, para Foucault,
72
RACHJMAN, John; Érotique de la vérité, p. 22
é porque nossas identidades aparecem, em certos momentos, como dotadas de
uma violência da qual nã o tínhamos consciência. Mas por que elas aparecem
assim?
Nesse ponto que os gregos aparecem. Foucault precisa mostrar que
somos marcados por experiências histó ricas que fundamentam o mal-estar com
os descaminhos da nossa relaçã o a nó s mesmos. Um histó ria do prazer e do
desejo que deve ainda parecer como potencialidade latente do presente. Pois a
genealogia nã o é apenas a reconstituiçã o do processo histó rico de formaçã o do
que aparece a nó s como necessá rio. Ela é a recuperaçã o das alternativas que
permaneceram esquecidas no interior da formaçã o de campos hegemô nicos. Se
assim nã o fosse, a genealogia nã o poderia aspirar consolidar-se como um
pensamento crítico. Pois: “Nã o há outro ponto, primeiro e ú ltimo, de resistência
ao poder político do que a relaçã o de si a si”73. Assim, Foucault distinguirá a
sexualidade dos modernos do erotismo das sociedades pré-modernas. Ou seja,
haveria ao menos duas formas de falar de sexo e esta vinculada ao erotismo
poderia permitir ao sexual encontrar sua força política. Este erotismo é, na
verdade, o resultado de prá ticas de cuidado de si que nos remetem à autarkeia e
a autonomia dos gregos. Pois:

Nó s sabemos que é possível fazer uma pesquisa em ética, de construir uma nova ética, de
dar lugar ao que chamaria de imaginaçã o ética, sem referência alguma à religiã o, à lei e à
ciência. É por tal razã o que a aná lise da ética greco-romana como estética da existência
pode ter interesse74.

Ser soberano de si mesmo

Neste sentido, lembremos como Foucault compreende a especificidade


histó rica da experiência grega referente a relaçã o dos sujeitos aos prazeres.
Trata-se de:

uma maneira de viver cujo valor moral nã o está vinculado à sua


conformidade a um có digo de comportamento, nem à um trabalho de
purificaçã o, mas à certas formas, ou melhor, à certos princípios formais
gerais no uso dos prazeres, na distribuiçã o que deles fazemos, nos limites
que observamos, na hierarquia que respeitamos75.

Os gregos desconheceriam a conformidade a um có digo geral, a


determinaçã o das condutas através de có digos gerais que definem a norma dos
atos, descrevendo exaustivamente o proibido e o permitido, como se toda a
criaçã o no campo dos prazeres estivesse esgotada e normatizada. Por isto, ao
invés de interdiçõ es e tabus, a moral dos gregos se preocuparia com as
intensidades e com a maneira de definir os melhores momentos, circunstâ ncias,
idades para o uso dos prazeres. Mesmo as prá ticas de abstinência nã o seriam
justificadas a partir da desqualificaçã o dos prazeres, mas como um exercício,
uma prá tica de fortalecimento de si. Seu verdadeiro propó sito é: “fazer da vida

73
FOUCAULT, Michel; L’hermeneutique du sujet, p. 241
74
FOUCAULT, Michel; Qu’est-ce que la critique? suivi de La culture de soi, op. cit., p. 143
75
FOUCAULT, Michel ; Histoire de la séxualité II, op. cit., p. 120.
uma obra de arte”76. Daí a definiçã o de tal erotismo como uma arte da existência
composta por:

prá ticas refletidas e voluntá rias através das quais os homens nã o apenas
fixam para si mesmos regras de conduta, mas procuram se transformar,
modificar-se em seu ser singular e a fazer de suas vidas uma obra que
porta certos valores estéticos e responde a certos critérios de estilo77.

O que há de estético nesta maneira de pensar o uso dos prazeres é o tratar


a vida como uma obra que se submete nã o apenas a valores estéticos, como
“harmonia”, “equilíbrio” e “simetria”, mas também e principalmente a critérios
estéticos de produçã o, como a ideia de que a açã o nã o é expressã o imediata de si,
mas relaçã o agonística e singular com materiais (impulsos, inclinaçõ es) com o
qual devemos negociar, que devem ser conformados sem serem totalmente
negados. Esta ideia da singularidade dos modos de relaçã o a impulsos e
inclinaçõ es é o que aproxima tais prá ticas de uma estilística individualizadora
ligada ao cá lculo do momento, da situaçã o, do contexto e a afastam da
normatividade do direito.
Tal estética greco-romana de si nos explica porque a virtude principal no
uso dos prazeres é a temperança. A imoralidade nos prazeres do sexo nã o é
ligada a objetos proibidos ou a prá ticas sexuais impossíveis. Ela é sempre da
ordem do exagero, do excesso e da passividade. Pois a atividade sexual: “porta
em si uma força, uma energeia que é, por ela mesma, dirigida ao excesso (...) a
questã o moral consistirá em saber como afrontar tal força, como dominá -la
assegurando uma economia conveniente”78. O sexo é o mais violento de todos os
prazeres, mais custoso do que a maioria das atividades físicas e sempre
referindo-se ao jogo da vida e da morte. No ato sexual, o sujeito pode ser levado
passivamente pelos mecanismos do corpo e pelos movimentos da alma. De onde
se segue a necessidade dele restabelecer seu domínio, exercendo sobre os
prazeres: “um domínio suficientemente completo para nã o se deixar nunca levar-
se pela violência”79 do desejo.
A insistência neste tó pico é compreensível se lembrarmos como, para os
gregos, a liberdade estará profundamente associada ao domínio que os
indivíduos serã o capazes de exercer sobre si mesmos. Neste contexto, a
temperança aparece como modo de elaboraçã o a si em direçã o à virilidade, já
que a ausência de temperança diria respeito à passividade e (construçã o
misó gina clá ssica) à feminilidade: “o que constitui, aos olhos dos gregos,
negatividade ética por excelência, nã o é evidentemente amar os dois sexos, nem
é preferir seu sexo ao outro, é ser passivo em relaçã o aos prazeres”80. Neste
sentido, a verdade na relaçã o ao sexo nã o é uma questã o de conhecimento, de
classificaçã o exaustiva e de descriçã o minuciosa, mas de instauraçã o do
indivíduo como sujeito caracterizado pela temperança. A verdade está ligada nã o
à certeza, mas à beleza. Por isto, é possível dizer que o critério de verdade é mais
estético do que epistêmico. Trata-se de “estilizar uma liberdade”81.
76
FOUCAULT, Michel; Qu’est-ce que la critique? suivi de La culture de soi, op. cit., p. 154
77
Idem, p. 18
78
Idem, p. 69
79
Idem, p. 93
80
Idem, p. 116
81
Idem, p. 29
Neste contexto, aparece um peculiar conceito de soberania, vinculado à
leitura que Foucault faz dos estoicos e de sua askesis, assim como à sua crítica ao
cuidado de si tal como aparece no Alcebíades, referido a Platã o. Foucault recusa
esta submissã o do cuidado de si, tal como vemos no Alcebíades, à condiçã o de
prolegô meno para o aprendizado do governo da cidade e à condiçã o de exercício
ligado a uma metafísica da alma. Alcebíades deve governar a si mesmo para
poder governar os outros, seu exercício de cuidado de si é por isto submetido a
uma praxis gestioná ria.
No entanto, contrariamente a tal posiçã o, há uma “autonomia” do cuidado
de si nos estoicos que claramente interessa a Foucault e que já aparece em outro
diá logo de Platã o, Laques. Tal autonomia permite o cultivo de uma “soberania do
indivíduo sobre si mesmo” que aparece como horizonte ético ligado
exclusivamente à capacidade de estilizar a liberdade, de compreender que a
liberdade se realiza como afirmaçã o da dimensã o estética da existência. Este
caminho nos levaria a uma “histó ria da estilística da existência, uma histó ria da
vida como beleza possível”82. Por outro lado, tal soberania de si forneceria um
horizonte do uso dos prazeres que nos levaria a: “um gozo sem desejo e sem
transtorno (trouble)”83. Soberania que nos livra do fantasma do excesso, que
permite o aparecimento da liberdade como regulaçã o singular dos corpos sem
transtornos, que é intensificaçã o do cuidado a si.
Mas há de se perguntar sobre o que devemos entender por “soberania”
neste contexto e que, a meu ver, está pressuposta no horizonte do pensamento
de Foucault. Notemos inicialmente como, expulsa da condiçã o de qualidade de
quem detém o poder do Estado, a soberania aparece aqui como uma qualidade
que pode ser exercida por todo sujeito em emancipaçã o. Quando falar sobre a
vida dos cínicos, Foucault mais uma vez sublinhará seu cará ter de soberania, de
“vida soberana”. Neste momento, ele nã o deixará de salientar algumas de suas
características maiores:

Na filosofia antiga a vida soberana é geralmente uma vida que tende a


instauraçã o de uma relaçã o a si que é da ordem do gozo, nos dois sentidos
da palavra: ao mesmo tempo como possessã o e como prazer. A vida
soberana é uma vida em possessã o de si mesma, vida na qual nenhum
fragmento, nenhum elemento escapa ao exercício de seu poder e de sua
soberania sobre si. Ser soberano é acima de tudo ser seu, pertencer-se a si
mesmo84.

Auto-pertencimento

Notemos a incidência fundamental da temá tica da liberdade como


possessã o de si, como auto-pertencimento no interior do projeto de Michel
Foucault, isto graças a construçã o das relaçõ es de gozo-possessã o e de gozo-
prazer. Muito haveria a ser dito a respeito deste ponto, mas gostaria de me
restringir a indicar um foco de tensã o desse projeto. Pois tais temá ticas da
possessã o de si e do prazer como orientaçã o da conduta podem parecer a
primeira vista procurar reconstruir um conceito de indivíduo que, em vá rios

82
FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérité, Paris: Gallimard/Seuil, 2009, p. 149
83
FOUCAULT, Michel; Histoire de la séxualité III, p. 94 ou ainda p. 316
84
FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérité, p. 245
pontos, recuperaria temas da individualidade liberal. Nã o foram poucos os
comentadores que aludiram a uma espécie de guinada liberal no pensamento
tardio de Foucault85. No entanto, esta leitura é equivocada.
De fato, há indicaçõ es textuais que poderiam parecer nos levar a tal
caminho. Por exemplo, lembremos, inicialmente, como Foucault compreende
claramente o contexto histó rico no qual sua ideia de soberania aparece. As
transformaçõ es políticas do mundo greco-romano e a paulatina decadência da
estrutura institucional do mundo romano levaram a um fortalecimento da
dimensã o individual:

No espaço político no qual a estrutura política da cidade e as leis à s quais


ela se dotou certamente perderam sua importâ ncia, ainda que elas nã o
tenham desaparecido, e no qual os elementos decisivos estã o cada vez
mais nas mã os dos homens, em suas decisõ es, na maneira com que eles
desempenham sua autoridade, na sabedoria que eles manifestam no jogo
de equilíbrios e transaçõ es, aparece que a arte de se governar advém um
fator político determinante86.

Ou seja, o colapso da noçã o de “poder comum” apareceria enquanto


condiçã o para a consolidaçã o da soberania como governo de si. O que poderia
parecer como uma saída de compressã o do laço social a partir de uma
perspectiva individualista. Dada a impossibilidade de um espaço comum geral,
nos restaria a estilizaçã o de dimensõ es relacionais restritas. Levando em conta
que Foucault desenvolve este aspecto de sua teoria no início dos anos oitenta, no
momento da retraçã o final dos horizontes de transformaçã o global (as ú ltimas
revoluçõ es populares ocorrem no final dos anos setenta) e emergência de lutas
localizadas de reconhecimento que darã o a tô nica das açõ es políticas no interior
da consolidaçã o de sociedades multiculturais, a tentaçã o é grande de construir
um amá lgama.
Mas notemos como tal conceito de soberania de si é recuperado nã o
apenas como resistência a toda e qualquer forma de poder estatal, mas
principalmente como crítica aos regimes de individualizaçã o que o pró prio
poder estatal é capaz de produzir. Ou seja, a crítica nã o é feita através da
contraposiçã o liberal entre poder estatal e liberdade individual. Ela é feita
através do reconhecimento da solidariedade profunda entre indivíduo e
aparelhos disciplinares que convergem para o Estado. Uma solidariedade que o
discurso liberal tenta sistematicamente nã o tematizar. Daí uma afirmaçã o
esclarecedora como:

Nã o creio que devamos considerar o “Estado moderno” como uma


entidade que se desenvolveu a despeito dos indivíduos, ignorando quem
eles sã o e até suas existências, mas ao contrá rio como uma estrutura
muito elaborada, na qual os indivíduos podem ser integrados a uma
condiçã o: que forneçamos a essa individualidade uma forma nova que a
submetamos a um conjunto de mecanismos específicos87.
85
Ver, por exemplo, GARO, Isabelle; Foucault, Deleuze, Althusser et Marx: la politique dans la
philosophie, Paris: Démopolis, 2011 ou DE LAGASNERIE, Geoffroy; A última lição de Foucault, Sã o
Paulo: Três estrelas, 2013
86
FOUCAULT, Michel; Histoire de la séxualité III, p. 123.
87
Idem, Dits et écrits II, p. 1049
Sendo o Estado compreendido como um modo genérico de
individualizaçã o, com formas e mecanismos específicos juridicamente
totalizados, já que ele fornece o quadro institucional necessá rio para as outras
instituiçõ es sociais operarem, nã o haveria outra tarefa política do que “nos
liberar do Estado e do tipo de individualizaçã o que a ele se vincula” 88 a fim de
promover novas formas de subjetividade ou, ainda, de “criar um novo direito
relacional que permitiria a todos os tipos possíveis de relaçã o existirem e nã o
serem impedidos, bloqueados ou anulados por instituiçõ es relacionais
empobrecedoras”89. Nã o encontraremos proposiçõ es liberais que caminhem no
sentido desta decomposiçã o das determinaçõ es dos indivíduos e desta deposiçã o
da regulaçã o biopolítica do Estado através da afirmaçã o de uma plasticidade do
direito contra as pró prias instituiçõ es, em especial contra a família e o Estado.
Mas há um ponto que merece maior problematizaçã o. Tal criatividade é
compreendida por Foucault a partir da temá tica do redimensionamento do
espaço dos prazeres. Liberado das amarras jurídicas de nossa identidade estatal,
poderíamos nos abrir à construçã o contínua de novos espaços de prazeres. A
este respeito, dirá Foucault: “devemos trabalhar nã o exatamente à liberaçã o de
nossos desejos, mas a permitir que nó s mesmos sejamos infinitamente mais
suscetíveis aos prazeres”90. Ou ainda quando ele afirmar que deveríamos
inventar, com o corpo, um erotismo nã o-disciplinar91. Foucault chega a dar como
exemplo a dissociaçã o entre prazer e sexo pró prio a ritualizaçã o das formas de
prazer nas subculturas S/M, seguindo uma via aberta por Deleuze em seu estudo
sobre o masoquismo92. Neste sentido, apareceria aqui uma via para uma
“sexualizaçã o outra do corpo”, assim como o uso do que Foucault chama de “boas
drogas” poderia abrir o espaço a uma dessexualizaçã o do prazer93. Em todos
estes casos, temos reconfiguraçõ es da experiência sensível, reconfiguraçõ es de
suas velocidades, intensidades e dinâ micas através de prá ticas muitas vezes
relacionais que aparecem como condiçã o para a emancipaçã o em relaçã o a
formas de repetiçã o de formas hegemô nicas de vida. A ideia pressuposta parece
apontar para uma dimensã o propriamente sensível da experiência que só pode
ser modificada através da pró pria sensibilidade e que teria a força de reinstaurar
formas renovadas de laços sociais, mesmo que laços inicialmente restritos.

O prazer e o fora

Talvez a melhor maneira de compreender o que isto implica para a noçã o


de liberdade seja se perguntando se a estratégia de reconfiguraçã o da
experiência sensível através do cultivo e uso dos prazeres pode ter, de fato, forte
potencia atual política de transformaçã o, como apostava Foucault no início dos

88
Idem, p. 1051
89
Idem, p. 1129
90
Idem, Dits et écrits II, p. 984. Ou ainda: “Contra o dispositivo da sexualidade, o ponto de apoio
do contra-ataque nã o deve ser o sexo-desejo, mas o corpo e os prazeres” (FOUCAULT, Michel;
Histoire de la séxualité I, Paris: Gallimard, 1976, p. 208).
91
A este respeito, ver SABOT, Phillipe; “Foucault, Sade e as luzes” Redisco, vol 2, n. 2, 2013, pp
111-121
92
Ver DELEUZE, Gilles; Présentation de Sacher-Masoch, Paris: Minuit, 1965
93
Ver MENDELSOHN, Sophie; “Foucault et Lacan: le sujet en acte”, in: Filozofski Vestnik, vol.
XXXI, 2010, p. 147
anos oitenta. Neste sentido, há um ponto que deve ser explorado. Pois a temá tica
do cuidado de si e do uso dos prazeres pressupõ e a possibilidade de
reconstituição de relações de auto-pertencimento, tã o presentes na aná lise
foucaultiana dos estoicos e dos cínicos. Dentre vá rios exemplos, quando Foucault
fala de Sêneca:

Esta relaçã o é pensada normalmente sob o modelo jurídico da possessã o:


se está “a si”, se é “seu” (suum fieri, suum esse sã o expressõ es que
aparecem constantemente em Sêneca), só dependemos de nó s mesmos, se
é sui juris; exerce-se sobre si um poder que nada limita ou ameaça, detem-
se a potestas sui94.

O que nã o poderia ser diferente, já que o prazer é o índice fundamental do


pertencimento de si, do estar sob a jurisdição de si mesmo em uma confirmação de
sua própria potência. Dissociado da relaçã o à Lei, o uso dos prazeres poderia
aparecer como uma heterotopia nã o mais socialmente restrita à dimensã o da
anormalidade, mas a dimensã o de uma auto-produçã o de si singular.
Pode parecer estranho que um conceito de liberdade como auto-
pertencimento apareça nas mã os de um filó sofo que se notabilizou por pensar o
fora (penser le dehors). Como lembra Deleuze, a respeito de Foucault:

O apelo ao lado de fora é um tema constante em Foucault e significa que


pensar nã o é o exercício inato de uma faculdade, mas deve suceder ao
pensamento. Pensar nã o depende de uma bela interioridade a reunir o
visível e o enunciá vel, mas se dá sob a intrusã o de um lado de fora que
aprofunda o intervalo e força, desmembra o interior95.

Mas há de se lembrar que a temá tica do fora é, em larga medida,


dependente de uma defesa da transgressã o que Foucault relativizará com o
passar do tempo ou que, ao menos, terá que conviver com o problema da
instauraçã o de uma dimensã o de relaçã o a si que se funda na possibilidade de se
pertencer a si mesmo, constituindo um circuito de imanência instaurada, ou
ainda constituindo um “poder de se afetar a si mesmo” 96. Ou seja, poder que nã o
sai de si mesmo, que é a instauraçã o de um espaço no qual a força se dobra sobre
si mesma, sendo sua pró pria causa e efeito.
No entanto, no caso de Foucault, nã o há como deixar de notar que vemos
a emergência de uma ipse vinculada à dimensã o das prá ticas e do cultivo dos
prazeres, ipse que é resultado de uma subjetivaçã o que determina o nome para a
constituiçã o de procedimentos de imanência. Se esta subjetivaçã o é um “cultivo”,
se ela é um “cuidado” é porque ela instaura um espaço no qual nã o se pensa mais
o si sob a forma do conflito e do descentramento. Subjetivaçã o na qual a ipse se
funda sobre o espaço possível de uma decisã o ou mesmo, se quisermos, de um
94
FOUCAULT, Michel; Histoire de la séxualité III, op. cit., p. 90
95
DELEUZE, Gilles; Foucault, Sã o Paulo: Brasiliense, 1990, p. 94
96
Idem, p. 108. Foucault, de fato, compreende este poder de se afetar a si mesmo dentro de uma
chave nitezscheana que reverbera a temá tica do amor fati. Basta lembrar de afirmaçõ es como:
“esta soberania [cínica] se manifesta na felicidade deste que aceita seu destino e nã o conhece,
por consequência, nenhuma falta, nenhum remorso e nenhum medo. Tudo o que é dureza de
existência, todo o que é privaçã o e frustraçã o, tudo isto se retorna em um exercício positivo da
soberania de si sobre si” (FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérite, op. 282)
projeto voluntá rio e refletido, o que nos permite nos perguntarmos que tipo de
agência voluntá ria é esta, o que ela implica, se ela nã o exigiria estruturas da
subjetividade que o pró prio Foucault gostaria de recusar.
No entanto, se é verdade, como dirá Balibar, que Foucault procura
constituir uma: “ética da ultrapassagem de uma individualidade normal e
normalizada através de uma ‘sobreindividualidade’ que a supera (como
Nietzsche falava do ‘sobrehumano’ que superava o humano)” 97 entã o há de se
reconhecer que ela se desdobra a partir das possibilidades de fazer valer formas
de auto-pertencimento que nã o sejam imediatamente compreendidas como
internalizaçã o de relaçõ es de propriedade, tã o pró prias do indivíduo moderno ao
qual Foucault nã o cessa de criticar.
Aqui, a questã o central pode enfim se apresentar: é possível, nas
condiçõ es histó ricas que sã o as nossas, afirmar o projeto de uma ética
fundamentada na noçã o de liberdade como auto-pertencimento, sem com isto
sermos reconduzidos ao princípio liberal da liberdade como propriedade de si?
Esta questã o é, a meu ver, decisiva para discutir a atualidade possível das
estratégias de Michel Foucault. O que nada tem a ver com a acusaçã o equivocada
de um certo liberalismo do filó sofo francês, mas com a reflexã o sobre a
possibilidade ou nã o de realizar, nas condiçõ es histó ricas atuais, um conceito de
liberdade como auto-pertencimento que tenha forte potencial emancipató rio e
crítico em relaçã o à s dinâ micas reificadas do capitalismo contemporâ neo. É certo
que Foucault assumiu esta possibilidade, nos deixando a questã o de saber se ela
é a melhor estratégia conceitual para pensar o problema da liberdade no interior
de nossa condiçã o histó rica.

97
BALIBAR, Etienne; “L’anti-Marx de Foucault”, in: LAVAL, Christian et alli; Marx et Foucault:
Lectures, usages, confrontations, Paris: La decouverte, 2015
Arqueologia da liberdade
Aula 5

Na aula de hoje, iniciaremos nosso mó dulo dedicado à aná lise do conceito de


liberdade como propriedade de si (self ownership). O movimento central do
curso consiste em compreender as mudanças, para a noçã o de liberdade como
auto-pertencimento, resultantes do aparecimento da concepçã o de liberdade
como propriedade de si. O que acontece quando a forma privilegiada de auto-
pertencimento é a propriedade de si? A partir do momento que tal noçã o de
liberdade como propriedade de si emerge historicamente, o que acontece com
todas as outras formas de auto-pertencimento? Ficam elas impossibilitadas ou
permanecerã o possíveis?
Para tanto, partiremos de uma genealogia que irá procurar definir as
condiçõ es de emergência da propriedade de si no interior de lutas populares que
ocorreram neste turbulento século XVII inglês. Isto nos levará aos debates
levados a cabo pelos Levellers contra o absolutismo e contra a consolidaçã o
oligá rquica do Parlamento britâ nico. Feito isto, passaremos à maneira com que
John Locke representará a articulaçã o filosó fica e normativa da propriedade de si
como característica fundamental da noçã o liberal de liberdade.
Daremos entã o um salto no tempo e passaremos da Inglaterra do século
XVII aos EUA do século XX com a atualizaçã o da noçã o de liberdade de si no
interior do anarcocapitalismo de Robert Nozick. Este salto será feito tendo em
vista medir as mudanças de contextos diante da consolidaçã o da sociedade
capitalista como sociedade de generalizaçã o da forma-mercadoria, assim como
compreender o impacto de tais mudança nas potencialidades imanentes ao
conceito de propriedade de si. Pois nossa questã o nã o é apenas o que a noçã o de
propriedade de si significou no momento de sua emergência, mas como o que ela
significa nas condiçõ es sociais atuais.
Por fim, voltaremos ao horizonte histó rico da Revoluçã o Francesa a fim de
mostrar que a contestaçã o política da noçã o de propriedade nã o deve ser
compreendida simplesmente como demanda política de redistribuiçã o justa de
bens. A propriedade é claramente concebida por setores importantes do
processo revolucioná rio como fundamento de uma forma específica de vida
incapaz de permitir a realizaçã o social da liberdade. Neste sentido, eu gostaria de
explorar de maneira sistemá tica a ideia, presente em Graco Babeuf, segundo a
qual nã o pode haver liberdade lá onde imperam as relaçõ es de propriedade.
Neste sentido, nosso mó dulo será organizado a partir da seguinte questã o: como
passamos da defesa da propriedade como garantia de minha autonomia contra o
poder do Estado e das oligarquias para a compreensã o da propriedade como o
eixo fundamental das formas de servidã o e alienaçã o social?
Esta discussã o sobre a liberdade como propriedade de si é central para o
nosso curso pois gostaria de defender a tese de que este modelo irá generalizar-
se entre nó s, colonizando de maneira hegemô nica o que poderíamos chamar de a
gramá tica dos enunciados e das demandas por liberdade. Para nó s, e de forma
hegemô nica, mesmo sem nos darmos conta, ser livre é ser proprietá rio de si
mesmo.
Se necessitarmos de uma definiçã o operacional, poderemos definir
propriedade de si como a afirmaçã o de que:
a toda pessoa é moralmente assegurada a total propriedade privada de
sua pessoa e capacidades. Isto significa que toda pessoa tem um conjunto
extensivo de direitos morais (que a lei de seu país pode ou nã o
reconhecer) sobre o uso e usufruto de seu corpo e capacidades,
compará vel em conteú do aos direitos gozados por alguém que tem uma
posse privada irrestrita de uma peça física de propriedade98.

Ou seja, a relaçã o a si mesmo e a suas capacidades é pensada a partir do


modelo das relaçõ es de possessã o sobre objetos do mundo. Posso gozar de mim
mesmo e de meus atributos, das minhas capacidades e habilidades da mesma
forma que posso gozar de um objeto que está submetido à minha posse. O ú nico
limite é que este gozo nã o interfira no gozo da propriedade do outro. Ou seja, a
propriedade de si visa impedir que outro (seja ele outro sujeito, ou uma
instituiçã o como o estado, a igreja, a empresa) tenha um acesso nã o consentido à
minha pessoa.
Quando digo, por exemplo “meu corpo, minhas regras” exerço claramente
uma demanda de reconhecimento de minha liberdade baseada no exercício de
uma propriedade de si. Meu corpo é uma propriedade minha e defino, por isto, as
regras que lhe cabem. Quando falo “meus filhos, minhas regras” amplio o
domínio de minha propriedade aos filhos, um pouco como víamos no interior do
direito romano com sua figura do pater familia. Quando digo: “Eu falo o que
quero”, “Se eu quiser me jogar em um buraco, é problema meu”, “Este é o meu
jeito”, “Vendo minha força de trabalho para quem quiser, se nã o estou gostando,
vou embora” e tantas outras afirmaçõ es com as quais nos deparamos
diariamente, é sempre do exercício da noçã o de propriedade de si que é questã o.
Mesmo quando entramos em embates a respeito, por exemplo, da possibilidade
ou nã o de vender ó rgã os do meu corpo, de vender ou nã o relaçõ es sexuais
consensuais, é da noçã o de liberdade como propriedade de si que é sempre
questã o.
Importante salientar como, para nó s, tornou-se absolutamente natural
compreender a pessoa socialmente reconhecida enquanto tal como uma pessoa
proprietá ria. Como se a propriedade fosse a expressã o natural de sua existência
reconhecida. O que simplesmente explicita um traço definidor que determina o
conceito de persona desde sua emergência no direito romano. É pessoa quem
pode ser reconhecido em suas relaçõ es de propriedade, como capaz de contrair
relaçõ es de propriedade. Nã o sã o pessoas os escravos, filhos, devedor em débito,
ou seja, todos aqueles que nã o podem mais ou nã o podem ainda contrair
relaçõ es de propriedade.
Por outro lado, lembremos como a relaçã o entre proprietá rios é
necessariamente a relaçã o sob a forma do contrato. Sendo a liberdade um modo
de exercício social, devemos nos perguntar sobre a forma que as relaçõ es sociais
tomam neste paradigma. Elas tomam preferencialmente a forma de relaçõ es
contratuais.
O contrato se torna a forma fundamental de reconhecimento, pois ele
define as condiçõ es para o respeito ao gozo dos objetos que estã o em meu poder.
É pelo contrato que eu passo a posse de um objeto a um outro, que eu reconheço
minha posse e os limites de tal possessã o. Em uma sociedade de proprietá rios, as
98
COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom and equality, p. 117
relaçõ es sociais tendem a se organizar como relaçõ es contratuais. O casamento
será visto como um contrato, as relaçõ es de trabalho serã o vistas como um
contrato, as relaçã o das cidadã s e dos cidadã os ao estado serã o vistas como um
contrato, as relaçõ es afetivas serã o vistas como um contrato. Liberdade estará
profundamente vinculada à capacidade de assumir, construir e realizar formas
cada vez mais mú ltiplas e singulares de contratos. Tenhamos tal horizonte em
mente a partir de agora, pois veremos uma emergência da propriedade de si que
apenas paulatinamente irá mostrar sua verdadeira extensã o.

Uma era de contestações

Nã o é por acaso que a definiçã o que temos de propriedade de si vem de um texto


que é, na verdade, o panfleto político de um dos primeiros movimentos no
Ocidente a se organizar em torno da noçã o de soberania popular. Trata-se de
Uma flecha contra todos os tiranos e tiranias, escrito por Richard Overton em
1646, na prisã o de Newgate.
Estamos em meio à s guerras civis na Inglaterra. Entre 1642 e 1651, a
Inglaterra será atravessada por três guerras civis que opunham, de um lado, os
monarquistas apoiadores do rei Carlos I e, posteriormente, de Carlos II e, de
outro, os defensores do Parlamento. A guerra terminará com a vitó ria do
Parlamento, com o fim da monarquia e a instauraçã o da Commonwealth of
England (1649-1653) que dará lugar, posteriormente, ao protetorado de Oliver
Cromwell (1653-1658). Como o fim do Protetorado e do rá pido governo de seu
filho, a monarquia retorna para continuar até os dias de hoje.
Lembremos que desde a proclamaçã o da magna carta em 1215, o rei
britâ nico reconhecia limitaçõ es em seu poder e a necessidade de negociar com o
Parlamento, representante dos interesses da nobreza e de proprietá rios de
terras. Desde entã o, o rei necessitava reunir o Parlamento para aprovar
demandas financeiras e tributá rias. Ou seja, o Parlamento funcionava de forma
intermitente a pedido do rei.
Carlos I procurou evitar negociaçõ es com o Parlamento, passando mais de
dez anos sem convoca-lo. Mas diante da crise financeira provocada por uma
guerra perdida contra os escoceses, que temiam que o rei estivesse a reinstaurar
o catolicismo, o Parlamento é convocado em 1640. Conhecido como Longo
Parlamento, ele tentará limitar os poderes do monarca, o que levará à primeira
guerra civil de 1642-1646. Finda a guerra, a Inglaterra estará dividida e com as
facçõ es em contínua disputa. Uma segunda guerra civil terminará com a
condenaçã o e enforcamento de Carlos I, em 1649, declarado como “tirano,
traidor, assassino e inimigo pú blico”. Será o primeiro regicídio da histó ria
inglesa, e o ú nico. O ato abre o caminho para a ascensã o de Cromwell que
precisará ainda vencer uma terceira guerra civil contra uma aliança entre
cató licos irlandeses e monarquistas.
Neste contexto, a Inglaterra conhecerá vá rios movimentos que
advogavam maior participaçã o popular nas decisõ es do estado, liberdade de
expressã o e de culto a todas as seitas protestantes, ampliaçã o do sufrá gio, direito
de silêncio, entre outros. Eles se aproveitam da singular liberdade de expressã o
que ocorrerá na Inglaterra entre 1641 e 1660 quando nã o haverá censura estrita.
Dentre esses movimentos, o mais importante será dos Levellers, nome
inicialmente pejorativo que indicava o desejo igualitá rio de nivelamento que será
o eixo de suas lutas por liberdade. Seus principais líderes serã o John Lilburne,
Richard Overton e William Walwyn. Utilizando-se de panfletos dirigidos à
opiniã o pú blica, os Levellers terã o influência em setores da New Model Army (o
exército regular nacional formado em 1645 pelos defensores do Parlamento,
composto de membros regulares vindos, principalmente, das classes populares;
tratava-se do primeiro exército de recrutas majoritariamente voluntá rios) e,
juntamente com outros grupos e movimentos (como os Diggers com seu
comunismo agrá rio) procurarã o realizar um outro caminho para as
transformaçõ es esperadas pela Inglaterra. De certa forma, podemos dizer que
Oliver Cromwell saberá como se servir da energia de transformaçã o social
produzida por essa miríade de movimentos para limitar suas consequências
reais.
A importâ ncia desses movimentos populares nã o pode ser menosprezada,
pois eles davam expressã o política a uma longa histó ria de sediçã o popular no
interior da Inglaterra. Levando isto em conta, o historiador Christopher Hill dirá :

Houve duas revoluçõ es na metade do século dezessete na Inglaterra.


Aquela que foi bem-sucedida estabeleceu o direito sagrado da
propriedade (aboliçã o das posses feudais, nã o mais taxaçõ es arbitrá rias),
deu poder político ao proprietá rio (soberania do Parlamento e da
common law, aboliçã o da prerrogativa das cortes) e aboliu todos os
impedimentos para o triunfo da ideologia dos homens de propriedades –
a ética protestante. Houve, no entanto, outra revoluçã o que nunca
ocorreu, ainda que de tempos em tempos ela ameaçou ocorrer. Esta
deveria estabelecer propriedade comunal, uma democracia muito maior
nas instituiçõ es políticas e legais. Ela teria desestabilizado a igreja estatal
e rejeitado a ética protestante99.

Os Levellers estã o, de certa forma, no meio do caminho entre duas


revoluçõ es. Deles, vem a generalizaçã o da propriedade e da condiçã o de
proprietá rio como estratégia de afirmaçã o das liberdades políticas e sociais. Ela
aparece como estratégia para barrar o absolutismo e exigir igualdade de todos
perante as leis. Neste sentido, a generalizaçã o da propriedade como forma geral
de relaçã o a si aparece como uma maneira de consolidaçã o da liberdade civil
para além das determinaçõ es de classe, o que abriria espaço ao que Hill chama
de “democracia muito maior nas instituiçõ es políticas e legais”. Sendo todos
proprietá rios, todos terã o direitos iguais.
Tal generalizaçã o nasce do espírito de insubordinaçã o de classe que
atravessa esse momento da histó ria inglesa. Ela será a forma inicial de uma
recusa à servidã o e à naturalizaçã o das relaçõ es de subordinaçã o. Tal consciência
era tã o presente neste momento da histó ria inglesa que os exemplos sã o legiã o. A
nobreza de Buckinghamshire, por exemplo, só conseguirá coletar menos de dez
por cento dos impostos devidos pela populaçã o do condado entre 1643 e
1645100.
Os Levellers sã o apenas uma superfície mais visível de movimentos
políticos e religiosos contestatá rios que crescem por toda a Inglaterra e seus
puritanos. Neste momento, o radicalismo político é incompreensível sem a
99
HILL, Christopher; The world upside down, p. 15
100
GARDINER, S.; The great civil war III, p. 209
remissã o à s sediçõ es religiosas. A reforma protestante nã o é apenas o horizonte
religioso de justificaçã o das aspiraçõ es de liberdade de uma burguesia em
ascensã o. Ela também libera uma potência de sediçã o popular que será elemento
importante para os movimentos políticos de contestaçã o do poder. Muitos foram
os movimentos que queriam realizar, na Terra, a pretensa retidã o da vida
anterior à queda em comunidades que deveriam ser sem possessã o, hierarquia e
sujeiçã o.
Por exemplo, se seguirmos Engels em As guerras camponesas na Alemanha. tudo se passa
como se a Reforma tivesse uma dupla face. Lutero e Calvino significariam a consolidaçã o de um
quadro social de burguesia em ascensã o contra o poder central do papado. Mas reformadores
radicais como Thomas Mü ntzer seriam a vertente protoproletá ria da Reforma. Daí porque
poderíamos afirmar que as revoltas dos anabatistas exprimiriam a energia negativa das classes
subalternas que recusam as estruturas prévias do poder a fim de estabelecer como princípio uma
nova forma de existência, uma realizaçã o imediata do Reino de Deus na Terra, na qual “toda
propriedade deve ser comum e distribuída a cada um de acordo com suas necessidades, de
acordo com o que a ocasiã o requeira”101. As exigências camponesas de fim das relaçõ es feudais e
de servidã o, diminuiçã o dos impostos sobre a terra e a liberdade para caçar nas florestas da
nobreza exprimiam um horizonte claramente revolucioná rio de igualdade radical baseada na
ressurgência do modelo das primeiras comunidades cristã s102.
Grupos como os anabatistas serã o bastante presentes na Inglaterra. E se a
Inglaterra chegará rapidamente ao regicídio, é porque a reforma protestante,
com a noçã o de que os valores maiores presentes na vida social podem ser objeto
de problematizaçã o e crítica, o que exige a institucionalizaçã o da liberdade,
levará ao direito de resistência. Já em Calvino encontramos uma afirmaçã o como:
“Os governantes de um povo devem envidar todo esforço a fim de que a
liberdade do povo, do qual sã o responsá veis, nã o desvaneça de modo algum em
suas mã os. Mais do que isso: quando dela descuidarem, ou a enfraquecerem,
devem ser considerados traidores da pá tria”103. É fato que Calvino evita
generalizar tal consideraçã o sob a forma de um direito geral de resistência. No
entanto, a noçã o calvinista expõ e claramente a articulaçã o entre
institucionalizaçã o da liberdade e crítica do poder incapaz de garantir tal
institucionalizaçã o que será radicalizada por setores do pensamento reformado,
como John Ponet, John Knox e, principalmente, Thomas Mü nzer. A partir deles, o
direito de resistência aparece como fundamento da vida social.
Esta abertura do pensamento reformado ao problema da resistência
alcançará o pensamento político. Entre calvinistas mais radicais, como George
Buchanan, o direito de resistência nã o é mais completamente compreendido
como um gesto teoló gico de defesa da supremacia da lei divina sobre a lei civil.
Ao justificar a deposiçã o da rainha cató lica Maria Stuart, em 1567, Buchanan
serve-se basicamente de argumentos políticos ligados a quebra do pacto entre o
povo e o rei. Sendo o povo aquele que institui o rei, ele guarda para si o direito de
a ele se contrapor quando o rei governa apenas em causa pró pria. Já John Milton
chegará a utilizar a definiçã o do tirano como aquele que ignora “a lei e o bem
comum” a fim de justificar o direito de resistência104. Dirá Milton: “a lei de
natureza autoriza qualquer homem a se defender, mesmo do pró prio rei”105.
101
Cf. MÜ NTZER, Thomas; Sermon to the princes, Londres; Verso, 2010, p. 96
102
Para a compreensã o da potência comunista revolucioná ria das revoltas camponeses, ver
BLOCH, Ernst; Thomas Münzer: teólogo da revolução, Rio de Janeiro, tempo Brasileiro, 1973
103
CALVINO, Joã o; A instituição da religião cristã, Sã o Paulo: Unesp, 2009, p. 882
104
MILTON, John; “A tenência de reis e magistrados” In: Dzelzainis, Martin (org.); John Milton:
Escritos Políticos, Sã o Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 4
105
Idem, p. 63
Notemos ainda que será apenas com Locke que o direito de resistência será
enquadrado como peça importante da defesa liberal do primado político do
indivíduo.

A gênese da propriedade de si

Richard Overton está na prisã o, em Newgate. O ano é 1646 e os Levellers se


levantam contra o arbítrio do Parlamento. Os principais líderes do movimento
estã o presos. Neste contexto, Overton inicia um panfleto no qual critica a açã o do
Parlamento:

Para todo indivíduo na natureza é dada uma propriedade individual por


natureza que nã o pode ser invadida ou usurpada por ninguém. Para
todos, na medida em que é si mesmo, haverá a propriedade de si, senã o
ele nã o poderia ser si mesmo; e a este respeito nenhum terceiro pode
privá -lo sem uma violaçã o manifesta e uma afronta ao princípio bá sico da
natureza e das regras de equidade e justiça entre homens. Meu e teu só
podem existir desta forma. Nenhum homem tem poder sobre meus
direitos e liberdade, e nã o tenho poder sobre direitos e liberdade de
homem algum. Posso ser apenas um individuo, gozar de mim mesmo e de
minha propriedade de si, mas nã o tenho o direito de ser mais do que mim
mesmo; se faço isto entro e invado os direitos de outro homem, o que nã o
tenho direito de fazer. Pelo nascimento natural todos os homens sã o
iguais e identicamente nascidos para gozar da propriedade, da liberdade e
como somos entregues por deus, por intermédio da natureza, neste
mundo, todos tem uma liberdade inata, natural e propriedade – como está
escrito nas tá buas do coraçã o de todos os homens106.

As colocaçõ es aqui sã o exemplares. Na aurora do conceito moderno de


democracia, Overton proclama a liberdade como reconhecimento de uma relaçã o
de propriedade da qual nã o posso ser privado, da qual nenhum poder pode me
alienar. Daí a noçã o da propriedade de si como um direito natural, e nã o uma
convençã o social. Ou seja, a natureza inscreve no coraçã o dos homens o desejo
de propriedade e é este direito que garante um princípio de equidade. Overton
fala de um direito pró prio aos “filhos de Adã o” que sã o “direitos e prerrogativas
da humanidade” e que, por isto, vale tanto para os povos da Inglaterra quanto os
de outras naçõ es.
A astú cia da formulaçã o vem do fato de Overton se apoiar em um direito
legalmente constituído (o direito à propriedade), universalizando assim direitos
já garantidos pela legislaçã o. Nã o se trata de dizer imediatamente: “todos os
homens nascem livres”, “todos os homens nascem iguais”, mas “todos os homens
nascem proprietá rios”. Esta é a grande inovaçã o formal, criada no interior de
estratégias de obrigaçã o de limitaçã o do poder do estado contra os indivíduos.
Este direito natural de propriedade deve assim fundamentar a
institucionalidade da vida social garantindo um espaço no qual a açã o social é
pensada como o exercício das demandas de reconhecimento da minha condiçã o
de proprietá rio. Como Macpherson afirmou:

106
OVERTON, Richard; An arrow against all tyrants, p. 55
o indivíduo nã o tem apenas a propriedade em sua pró pria pessoa e
capacidade, uma propriedade no sentido de um direito a usufruir e usa-
las e excluir outros deste usufruto. Na verdade, é esta propriedade, esta
exclusã o dos outros que faz de um homem um ser humano107.

Sendo a propriedade privada o fundamento da liberdade, é a


generalizaçã o da condiçã o de proprietá rio, com a generalizaçã o da condiçã o de
cidadã o pleno de direitos políticos que pode, de fato, realizar tal direito natural.
Se perguntarmos o que devemos entender por “propriedade” encontraremos em
Overton sua definiçã o como “o direito que tenho de fazer o que quero com meus
bens”. “Bens” sã o aquilo que pode se submeter ao exercício de minha vontade.
Para que a vontade se exerça, é necessá rio que existam objetos que dependem da
minha vontade para determinar suas formas de existência. Faz-se necessá rio
também que minha vontade nã o seja submetida à vontade do outro.
Note-se ainda que Overton fala de “afronta aos princípios de equidade e
justiça”. Ou seja, a igualdade como princípio social enfim emerge. Ela é uma
novidade no pensamento político e é ela que dará nome ao grupo: os niveladores.
Ela implica a recusa de uma ordem natural e hierarquizada da vida social, o que
leva Overton a afirmar: “todo homem sendo por natureza um rei, pastor e profeta
em seu pró prio circuito natural e sua pró pria bú ssola, ninguém pode disto
partilhar a nã o ser por delegaçã o, comissã o e livre consentimento vindo desses
cujos direitos naturais e liberdade aí estã o”108. Se todo homem é um rei, entã o é
só por livre consentimento que permito a partilha de minha propriedade de si.
Nenhum poder sobre ele pode se exercer sem que ele pró prio tenha sido o autor
da delegaçã o.
O direito natural de propriedade de si nã o pode ser transferido, o
representante deste poder nã o pode querer se valer pelo representado. De onde
se segue que o poder soberano nã o pode ser o rei, o clérigo, o papa ou mesmo o
parlamento. Toda soberania que nã o seja a popular, que nã o seja a soberania do
reino, soberania do corpo social do reino, é : “usurpaçã o, ilegítima e ilegal” 109. Por
outro lado, se todo homem (o termo tem aqui, inclusive, uma determinaçã o clara
de gênero) é proprietá rio, entã o só pode haver poder legítimo quando tal
igualdade for respeitada.
É fato que a extensã o de tal equidade será objeto contínuo de debate.
Machpherson insiste que as proposiçõ es de sufrá gio do Levellers nã o eram
exatamente universais. Se voltarmos aos debates de Putney, um momento
extremamente significativo de intenso debate a respeito das mú ltiplas visõ es
sobre a reconstruçã o institucional do país, veremos alas hegemô nicas dos
Levellers defendendo, em sua maioria, o sufrá gio para todos os homens, a
exceçã o dos serviçais, aprendizes e indigentes. Isto concerniria 417.000
cidadã os. Um sufrá gio universal masculino representaria, neste momento,
1.170.000 cidadã os. No que se vê uma diferença considerá vel. A justificativa para
a exclusã o de serviçais, aprendizes e indigentes é que, dependendo da vontade
de outros, eles temeriam ir contra seus mestres. Ou seja, aqueles que vivem em
um vida de extrema dependência nã o podem ser considerados cidadã os com

107
MACPHERSON, C.R.; The theory of possessive individualism, Oxford University Press, 1993, p.
142
108
OVERTON, p. 55
109
OVERTON, p. 63
plenos direitos políticos. Eles aceitaram pertencer a seus mestres. No que se nota
como a proposiçã o teó rica da propriedade de si universal é praticamente
limitada tendo em vista a exclusã o das classes pobres do direito de decidir,
enquanto maioria, o destino do país. Na verdade, enquanto Cromwell defende
que só é homem livre quem for proprietá rio de terras ou de uma letra patente
que lhe confere o direito de comerciar, os Levellers parecem defender que é livre
todo o homem que tem a propriedade de sua força de trabalho.
No entanto, lembremos que, em 1647, Levellers mais radicais como
Thomas Rainborough e Edward Sexby defenderã o o sufrá gio universal. Muitos
defenderã o a igualdade radical de propriedades ou, como os Diggers, a
propriedade comunal. No que se vê a tensã o extrema que a noçã o de propriedade
de si conjuga no momento de sua emergência.

Ser proprietário de si ou ser propriedade de si?

Mas notemos como esta maneira de afirmar a experiência da liberdade


nã o poderia deixar de sentir as consequências de um paradoxo. Pois lembremos
que ser proprietá rio de si é, também e de forma paradoxal, ser propriedade de si.
Será este paradoxo que levará , como veremos nas pró ximas aulas, os
igualitaristas séculos depois a assumirem claramente a crítica do direito de
propriedade como condiçã o para a realizaçã o da liberdade social.
Pois será o caso de insistir que as relaçõ es de propriedade sã o,
normalmente, relaçõ es entre pessoas e coisas, ou seja, elas sã o exatamente o
contrá rio do que entendemos por relaçõ es capazes de produzir a afirmaçã o da
condiçã o de sujeitos. Relaçõ es de propriedade pressupõ em esta distinçã o
fundamental entre o que se submete a um direito de uso (coisas) e o que nã o se
submete (pessoa)110. Por isto, elas sã o dissimétricas e baseadas em submissão, o
proprietá rio tem direito de uso sobre sua propriedade. O que é propriedade está
em relaçã o de dependência existencial em relaçã o a seu proprietá rio. Ou seja, a
causalidade de uma propriedade lhe é necessariamente exterior. Ela se encontra
na vontade de seu proprietá rio. No entanto, por estar no interior do domínio de
seu proprietá rio, a propriedade tem uma peculiar identidade ao seu proprietá rio.
Por ser propriedade, o que lhe ocorre, ocorre imediatamente também ao
proprietá rio.
Neste sentido, pode-se sempre perguntar qual é o objeto de uma vontade
por propriedade de si. O estabelecimento de relaçã o a si baseada na forma da
propriedade exige, em algum nível, tomar a si mesmo como objeto, ou melhor,
clivar-se entre o possuidor e a posse, o que parece nos levar a alguma forma de
divisã o entre o que, em mim, submete-se à condiçã o de objeto, e o que, em mim,
eleva-se à condiçã o de pessoa. Ou seja, esta concepçã o de liberdade acaba por
pressupor uma divisã o interna do sujeito, como se a linha divisó ria entre pessoa
e coisa passasse no interior do pró prio indivíduo proprietá rio. Esta concepçã o de
liberdade parece sustentar-se sobre uma concepçã o teoló gica de subjetividade
clivada. Pois nã o seria difícil remontar tal concepçã o clivada da natureza humana
à teologia. A temá tica da afirmaçã o dos “motivos constantes da moralidade”
contra os “afetos”, isto a fim de educar o sujeito como uma personalidade, era
elemento fundamental da ascese puritana.

110
Ver, a este respeito: ESPOSITO, Roberto; Le persone e le cose, Roma: Einaudi, 2014
Arqueologia da liberdade
Aula 6

Na aula de hoje, daremos continuidade a nosso mó dulo sobre a liberdade como


propriedade de si. Na aula passada, vimos a emergência de tal concepçã o de
liberdade no interior das lutas políticas da Inglaterra do século XVII. Forneci,
inicialmente, um conceito operacional de propriedade de si:

a toda pessoa é moralmente assegurada a total propriedade privada de


sua pessoa e capacidades. Isto significa que toda pessoa tem um conjunto
extensivo de direitos morais (que a lei de seu país pode ou nã o
reconhecer) sobre o uso e usufruto de seu corpo e capacidades,
compará vel em conteú do aos direitos gozados por alguém que tem uma
posse privada irrestrita de uma peça física de propriedade111.

Ou seja, a relaçã o a si mesmo e a suas capacidades era pensada a partir do


modelo das relaçõ es de possessã o sobre objetos do mundo. Posso gozar de mim
mesmo e de meus atributos, das minhas capacidades e habilidades da mesma
forma que posso gozar de um objeto que está submetido à minha posse. O ú nico
limite é que este gozo nã o interfira no gozo da propriedade do outro. Ou seja, a
propriedade de si visa, sobretudo, impedir que outro (seja ele outro sujeito, ou
uma instituiçã o como o estado, a igreja, a empresa) tenha um acesso nã o
consentido à minha pessoa.
Eu havia insistido que tal conceito de liberdade como propriedade de si é
um eixo hegemô nico de nossa experiência social contemporâ nea de liberdade. O
que nã o poderia ser diferente, já que o sistema capitalista sustenta-se, entre
outros, através da generalizaçã o da forma-propriedade para todas as esferas da
experiência social. Insistiria mesmo que vivemos atualmente em meio a um
embate em torno de concepçõ es de liberdade e o conceito de propriedade de si
desempenha um papel fundamental. Por exemplo, quando vemos, em meio a
uma pandemia, pessoas manifestando-se em varias partes do mundo contra
regras de confinamento, chegando mesmo apelar a um “direito de seu infectar”
(como vimos em manifestaçã o recente na Alemanha), podemos inicialmente
procurar ridicularizar tais fenô menos como expressã o de desvario. Mas gostaria
de insistir que eles sã o uma consequência absolutamente possível se vocês
admitem que ser livre é ser proprietá rio de sua pró pria pessoa. Pois sendo meu
corpo algo que posso gozar como uma propriedade que uso e consumo, ninguém
pode obrigar-me a nã o me infectar sem meu consentimento, ninguém pode me
obrigar a usar algo em meu corpo (mesmo que seja uma má scara médica) sem
meu consentimento.
Claro que vocês podem alegar neste contexto a noçã o de “risco ao outro”,
“invasã o do direito do outro a nã o ser infectado” e argumentos parecidos. Mas
aceitar argumentos dessa natureza nos obriga a uma mudança de paradigma.
Pois pressupõ e que a propriedade de si nã o se aplica a tudo que passa em meu
corpo e que tal direito de usufruto da propriedade nã o seria um valor absoluto.
Haveria alguma instâ ncia fora de mim que poderia decidir os limites desse
direito, do que significa “risco ao outro”, já que o critério nã o é imediatamente
111
COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom and equality, p. 117
evidente (carregar um bebê no colo, por exemplo, pode ser um ‘risco ao outro’ já
que posso deixa-lo cair e ele se ferir gravemente). Esta instâ ncia, dirã o alguns, é o
estado e sua sanha de controle, e sua tendência de desrespeito a condiçã o de
mero guardiã o da propriedade.
Mas para entender como essa noçã o de liberdade se constituiu, eu sugeri
voltarmos os olhos a sua emergência no campo das lutas políticas por soberania
popular. Por isto, insisti em partir da noçã o de propriedade de si entre os
Levellers. Lembrei a vocês como havia uma astú cia nessa formulaçã o inicial da
liberdade como propriedade de si extensiva a todos proposta pelos Levellers na
Inglaterra do século XVII. Pois tratava-se de apoiar-se em um direito legalmente
constituído e entã o reconhecido (o direito à propriedade), universalizando
assim direitos já garantidos pela legislaçã o. Essa era uma operaçã o de subversã o
na qual um direito constituído para garantir o reconhecimento político a apenas
uma classe (a classe dos proprietá rios de terra e de bens) era conjugado de
forma tal a permitir a emergência de relaçõ es de igualdade perante a lei, já que
todos sã o proprietá rios ao menos de sua pró pria pessoa. Por isto, nã o se tratava
de dizer imediatamente: “todos os homens nascem livres”, “todos os homens
nascem iguais”, mas “todos os homens nascem proprietá rios”. Esta era a grande
inovaçã o formal, criada no interior de estratégias de obrigaçã o de limitaçã o do
poder do estado contra os indivíduos.
Mas eu lembrara também que a estratégia implicava riscos. Pois o uso da
noçã o de propriedade para generalizar a experiência da liberdade social trará , no
seu bojo, um paradoxo. Ser proprietá rio de si é, também e de forma paradoxal,
ser propriedade de si. O estabelecimento de relaçã o a si baseada na forma da
propriedade exige, em algum nível, tomar a si mesmo como objeto, ou melhor,
clivar-se entre o possuidor e a posse, o que parece nos levar a alguma forma de
divisã o entre o que, em mim, submete-se à condiçã o de objeto, e o que, em mim,
eleva-se à condiçã o de pessoa. Ou seja, esta concepçã o de liberdade acaba por
pressupor uma divisã o interna do sujeito, como se a linha divisó ria entre pessoa
e coisa passasse no interior do pró prio indivíduo proprietá rio. Será este
paradoxo que levará , como veremos nas pró ximas aulas, os igualitaristas séculos
depois a assumir claramente a crítica do direito de propriedade como condiçã o
para a realizaçã o da liberdade social.

A constituição do liberalismo e a prevalência da propriedade

Na aula de hoje, gostaria de falar sobre como a noçã o de propriedade de si


se desenvolverá no interior do pensamento de John Locke. Isto nos leva a
compreensã o profunda, estabelecida por Locke, entre propriedade, identidade e
consciência. A propriedade nã o será apenas um modo de relaçã o aos objetos
juridicamente constituída. Ela será uma forma de relaçã o a si que garantirá a
possibilidade de minha pró pria identidade. Por outro lado, essa noçã o de
propriedade fundará um horizonte de governo no qual o estado estará limitado
em suas pretensõ es absolutistas, abrindo espaço a um regime liberal de governo.
Para analisar como Locke compreende tal ideia de liberdade, partamos desta
definiçã o canô nica presente no Segundo Tratado do Governo, de 1689:

Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os


homens, ainda assim todo homem tem a propriedade em sua pró pria
pessoa. A esta ninguém tem direito algum, a nã o ser ele pró prio. Pode-se
dizer que o trabalho do seu corpo e a obra de suas mã os sã o propriamente
seus. Tudo o que ele retire do estado que a natureza providenciou e lá
deixou fica misturado ao seu trabalho, justando-se a algo que lhe pertence
e, por isto, fazendo dele sua propriedade112. 

Notemos o ponto de partida. Ele se encontra na noçã o de que há um


horizonte de bem comum a fundar a existência social. Mas tal horizonte é
quebrado pela possibilidade da propriedade individual, que aparece nã o apenas
como um direito natural, mas como uma espécie de fato natural: desde o
momento em que trabalha, o ser humano constitui o regime da propriedade
privada. A propriedade nã o é uma espécie de forma social de produçã o
historicamente constituída e determinada. Na verdade, ela é uma expressã o
imanente da natureza. Sua realidade é assim transhistó rica. O que significa
defender que o estado de natureza já é um estado de pequenas propriedades
individuais de terra, de bens e de si mesmo.
Essa noçã o de propriedade é expressã o imediata da natureza ativa do ser
humano, do fato das mediaçõ es entre ser humano e natureza serem realizadas
pelo trabalho. É isto que permite a Locke afirmar: “Pode-se dizer que o trabalho
do seu corpo e a obra de suas mã os sã o propriamente seus”. A afirmaçã o é clara
na defesa da existência humana ser existência ativa, uma atividade que é, ao
mesmo tempo, apropriaçã o e reduçã o da diferença do que se contrapõ e a mim
sob a forma do objeto a ser trabalhado. Por isto: “deve existir um meio legítimo
de apropriaçã o individual, quer dizer, um direito do indivíduo a apropriaçã o” 113.
Neste sentido, a centralidade do trabalho denuncia que nã o estamos diante de
uma identidade de substâ ncia, ou seja, da identidade de uma substâ ncia que se
desdobra a partir de si mesma. Estamos diante de uma identidade de atividade,
de uma identidade como produto continuamente ampliado e revisto. Neste
sentido, devemos lembrar como Locke defende nã o haver consciência sem um
desejo: “que ao mesmo tempo a perturba e a leva em direçã o a novos conteú dos
ou novas ideias”114, como se estivéssemos diante de um fluxo perpétuo. Essa
tensã o é o fruto de um conceito de trabalho que aparece, ao mesmo tempo, como
modalidade de expressã o de si e forma de possessã o.
Mas notemos que esta apropriaçã o nã o é a oikeiosis estoica que vimos em
aulas passadas. Pois, como vimos, os estoicos compreendiam a apropriaçã o como
uma espécie de operaçã o passiva. Tratava-se de ser capaz de se apropriar do
processo dos acontecimentos, de estar em condiçã o de querer o logos que se
afirma através do curso do mundo. Ora, e isto é o que faz de Locke um autor
moderno, e nã o um grego, o que temos aqui é a atividade de uma consciência que
opera a partir de sua vontade de submissã o do mundo a sua imagem. O
movimento é quase que inverso. Da liberdade como auto-pertecimento estoico a
liberdade como propriedade de si, uma mudança fundamental ocorre. Ela
concerne o lugar da vontade. Uma vontade de apropriaçã o do mundo através do
trabalho e uma vontade de reconciliaçã o com um logos encarnado no mundo.
Por isto, o ponto fundamental é como o trabalho emerge a partir de agora
como a produçã o do que é pró prio a mim, do que é a confirmaçã o especular de

112
LOCKE, John; Second treatise of government, Cambridge University Press, p. 340
113
MACPHERSON; La théorie de l’individualismo possessif, p. 332
114
BALIBAR, Etienne; Citoyen-sujet, p. 140
minha pró pria determinaçã o. Nã o apenas uma estrutura de reconhecimento, ele
é sobretudo uma estrutura de auto-determinaçã o. Minha atividade determina a
forma da minha existência e o campo do que me é pró prio. Tudo o que o ser
humano removeu do estado de natureza foi misturado ao trabalho e, desta
forma, algo que é seu agora se encontra no objeto trabalhado. Por isto, ele é sua
propriedade. Ele é seu espelho. Por isto: “o trabalho, no início, dá o direito de
propriedade”115.
Como o burguês que tem dentro de sua casa objetos que contam a histó ria
de sua pessoa, de suas pequenas idiossincrasias, viagens exó ticas e memó rias, a
consciência que trabalha parece querer transformar a natureza em uma grande
home decorada por objetos que sã o a expressã o de sua pró pria histó ria. Pois
propriedade é, acima de tudo, um afeto: o afeto da segurança das coisas que estã o
completamente submetidas ao meu domínio, que perderam seu estranhamento.
Esta sobreposiçã o entre expressã o e possessã o pode ocorrer porque a forma da
auto-determinaçã o, o campo de nossa ipse é imediatamente a expressã o de
relaçõ es de propriedade. Eu sou sujeito porque tenho a propriedade de minha
pró pria pessoa.
Por outro lado, segundo Locke, Deus forneceu um horizonte de riquezas
aparentemente inesgotá veis que permite a todos serem proprietá rios. E se nos
perguntarmos pelos limites de tal direito de propriedade, encontraremos
afirmaçõ es como: “o quanto de terra um homem é capaz de lavrar, plantar,
melhorar, cultivar e usar seu produto é o quanto de sua propriedade” 116. Ou seja,
a restriçã o a apropriaçã o está ligada a capacidade de cada um cultivar para sua
satisfaçã o. Haverá ainda a obrigaçã o de deixarmos aos outros o que é suficiente,
em quantidade e qualidade, além da restriçã o moral ao gasto desnecessá rio e a
destruiçã o suntuá ria.
Por outro lado, importante lembrar que o estado de natureza é um estado
de liberdade, já que conhece a propriedade, mas nã o um estado de licença. A
liberdade incontrolada de dispor de sua pessoa e posses nã o significa liberdade
de destruir a si ou as criaturas de sua posse como bem entender. Locke fala de
um “uso nobre”. Ninguém tem o poder absoluto arbitrá rio sobre si para destruir
sua pró pria vida ou tomar a vida e propriedade dos outros. Cada um está ligado a
auto-preservaçã o e, em segundo momento, a preservaçã o da humanidade. Note-
se que este ponto é importante por mostrar uma articulaçã o entre propriedade e
moral que submete a propriedade a um uso moral.
Ou seja, o horizonte de conflito, tã o presente no estado de natureza
hobbesiano, no qual todos tem um desejo ilimitado em relaçã o a tudo, o que leva
necessariamente a relaçõ es belicistas e concorrenciais, nã o se coloca da mesma
forma para Locke. Há terras na Inglaterra, mas haverá terras também na
América, prontas para serem trabalhadas e apropriadas. “Terras virgens” (e
poderemos colocar questõ es importantes a respeito desta fantasia originá ria da
“terra virgem”, a respeito de quanto tal teoria pressupõ e a deposiçã o colonial do
outro).

Gênese do estado liberal

115
LOCKE, John; Idem, p. 299
116
Idem, p. 290
Neste sentido, podemos entender melhor outra passagem canô nica do
Segundo Tratado do Governo:

O homem, tendo nascido com o título à liberdade perfeita, e a um gozo


incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza,
igualmente a outros homens ou nú meros de homens no mundo, tem por
natureza um poder nã o apenas de preservar sua propriedade, ou seja, sua
vida, liberdade e bens contra as injú rias e atentados de outros homens,
mas julgar e punir as violaçõ es da lei pelos outros, como a ofensa merece,
mesmo com a morte diante de crimes para os quais, em sua opiniã o, o
cará ter odioso do fato requeira117.

Notem inicialmente como aparece a propriedade, ou seja, englobando “a vida, a


liberdade e os bens”. Esse três termos serã o indissociá veis. Por outro lado, é
claro como a defesa de sua propriedade aparecerá pois como o fundamento da
lei social, da puniçã o e das penas. Em suma, ela será a razã o fundamental da
existência do governo. O que exige limites claros à açã o do governo. Ele nã o
poderá despossuir os sujeitos de suas propriedades sem com isto quebrar o
pacto a que está submetido: “o poder supremo nã o pode tomar de homem algum
parte alguma de sua propriedade sem o seu consentimento” 118. Ele também nã o
poderá arrogar para si prerrogativas absolutas, já que sua funçã o nã o é limitar
ou abolir, mas preservar e alargar a liberdade dos sujeitos. Poder absoluto nã o se
encontra sequer na família. Nó s nascemos livres e racionais, por isto a
autoridade paterna nã o pode ser um direito de posse e ela se exerce apenas
enquanto a minoridade da criança impede-lhe de gerir sua propriedade. No que a
liberdade dos sujeitos sob o governo será : “liberdade para seguir minha pró pria
vontade em todas as coisas nas quais a lei nã o prescreve, e nã o ser sujeito a
vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrá ria de outro homem”119.
Notemos que as leis que prescrevem limites a açã o sã o resultantes de
consentimento. Elas devem ser leis consentidas por todos tendo em vista a
preservaçã o da liberdade. É isto que cria o corpo político e sua ló gica de decisã o
da maioria. Locke chega a usar exemplos dos povos ameríndios para mostrar
como sã o povos que vivem na liberdade do estado de natureza, só constituindo
chefias através da livre-escolha.
Mas diante dessa liberdade suposta, como entã o justificar nosso sistema
de governo? Ele deverá ser um consentimento visando impedir a violaçã o da
liberdade. No estado de natureza, mesmo sendo senhor absoluto de sua pró pria
pessoa e possessõ es, o gozo deste domínio é incerto e inseguro, constantemente
exposto a invasã o do outro. Ou seja, este estado é “muito inseguro”, levando os
sujeitos a procurarem a “preservaçã o mú tua de suas vidas, liberdades e bens” 120,
ou seja, aquilo que Locke chama de “liberdade”. O estado de natureza é marcado
pela liberdade e insegurança. Nele, todos sã o juízes e executores, o que marca
todo julgamento com a parcialidade e a paixã o. O governo da Commonwealth, ao
contrá rio, pode instaurar um horizonte marcado pela liberdade e pela segurança,
garantindo a avaliaçã o neutra dos conflitos. O que explica porque é a

117
Idem, p. 324
118
Idem, p. 360
119
Idem, p. 284
120
Idem, p. 350
possibilidade do desregramento da vontade do outro que funda o governo. Locke
fala da ambiçã o, da concupiscência que pode quebrar a harmonia pressuposta no
estado de natureza. Devemos notar assim que volta um afeto político que já
aparece em Hobbes como instaurador da vida social, a saber, o medo. É o medo
do outro que leva à formaçã o do governo. É o medo que nos faz sair do estado de
natureza. No que podemos sempre nos perguntar sobre quanto a manutençã o do
governo depende da perpetuaçã o do medo, perpetuaçã o da lembrança de que
sem governo, voltará a pretensa situaçã o de vulnerabilidade.
Esse medo da vulnerabilidade é o que sustenta minha adesã o à lei, pois se
mesmo sob a lei eu nã o estou submetido a vontade de um outro, é porque a
funçã o da lei é fornecer os aparatos necessá rios para que a vontade do outro nã o
submeta a minha naquilo que é minha propriedade. É só através da lei regulada
por um estado que a paz e a calma podem pois ser alcançados. Isso pressupõ e, é
claro, a imagem de povos no pretenso estado de natureza em contínua
insegurança e vulnerabilidade.
Por outro lado, sendo objeto de consenso, aqueles que nã o queiram mais
se submeter a lei de um governo podem abandona-lo, sob certas condiçõ es:

Mas como o governo tem uma jurisdição direta apenas sobre a terra, e só
atinge seu dono (antes dele se incorporar à sociedade), quando ele reside nela
e goze dela, a obrigação que qualquer indivíduo tem de se submeter ao
governo, em virtude deste gozo, começa e termina com ele; de forma que
quando o dono, que deu apenas seu consentimento tácito ao governo, quiser,
seja por doação, venda ou outro modo qualquer, deixar a possessão em
questão, tem liberdade de partir e se incorporar a qualquer outra comunidade
social ou se unir a outras pessoas para iniciar uma nova comunidade, in vacuis
locis, em qualquer parte do mundo onde encontrem um local livre e sem dono.
Entretanto, aquele que por um acordo propriamente dito e qualquer declaração
expressa deu seu consentimento para fazer parte de qualquer comunidade
social (Commonwealth) está perpétua e indispensavelmente obrigado a ser e
permanecer seu súdito, e nunca poderá ficar de novo na liberdade do estado de
natureza; a menos que alguma calamidade provoque a dissolução do governo a
que ele estava submetido ou que qualquer ato público o impeça de continuar
sendo um de seus membros121.

Ou seja, nã o posso levar minhas terra comigo para outra comunidade,


pois isto implicaria no risco perpetuo de dissoluçã o territorial da comunidade.
Mas tenho o direito de derrubar o governo quando este deixou de ser um poder
político ligado ao pacto da preservaçã o da propriedade e respeito da liberdade
para se tornar uma tirania, inclusive através do tiranicídio. A funçã o do governo
é garantir a liberdade. Quando os legisladores se esforçam em tirar e destruir a
propriedade do povo ou reduzi-los a escravidã o sob um poder arbitrá rio, eles se
colocam em estado de guerra contra o povo que nã o tem mais obrigaçã o alguma
de obediência e podem se servir da força e da violência para se defende:

Qualquer um que use força sem direito, como se faz em uma sociedade na
qual nã o exista lei, coloca a si em um estado de guerra contra aqueles que
ele usa a força e, neste estado, todos antigos vínculos estã o cancelados,
121
Idem, p. 349
todo outro direito cessa e todos tem o direito de defender a si mesmo e de
resistir contra o agressor122.

Personalidade, propriedade, pessoa

Mas é importante lembrar como, em Locke, a propriedade nã o será


apenas uma forma de organizaçã o social com claras consequências na
organizaçã o da racionalidade da esfera política e jurídica. Ela será também e
principalmente o fundamento ontoló gico da identidade. Encontramos assim uma
ontologia da propriedade que será fundamental para a definiçã o mesma da
identidade pessoal e da consciência. Ou seja, na aurora da emergência do sujeito
moderno (se aceitarmos que Locke e Descartes sã o os nomes fundamentais
desse processo) a propriedade aparecerá como o modo de relaçã o que me
permitirá ser eu mesmo (my self), criando assim uma relaçã o profunda entre my
self e my own. Nessa natureza constituinte da propriedade, nasce um individuo
que será confundido pelo liberalismo como a expressã o mais acabada da
liberdade.
Neste sentido, lembremos como é nesse momento histó rico que veremos
a generalizaçã o do uso do termo “indivíduo” para descrever seres humanos.
Lembremos como “indivíduo” significava, inicialmente, o que nã o pode ser
dividido. Este é, ao menos, o sentido dos termos individualis ou individuus no
latim medieval. Já no latim clá ssico, encontramos o termo individuum. No
entanto, ele nã o era aplicado normalmente a uma pessoa. Os filó sofos
escolá sticos serviam-se dele para expressar o caso singular numa espécie – nã o
apenas a humana, mas qualquer espécie123.
O uso cada vez mais sistemá tico de relacionar “indivíduo” e “pessoa” deve
ser compreendido no interior do desenvolvimento das sociedades modernas que
fundamentam sua auto-compreensã o como associaçõ es contratuais de sujeitos
providos de sistemas de auto-propriedade. É neste contexto que a compreensã o
do indivíduo será cada vez mais vinculada à noçã o de identidade pessoal. Pois a
relaçã o de propriedade é indivisível, ou deveria ser. Neste contexto, lembremos,
por exemplo, do que fala John Locke a respeito da noçã o de “identidade pessoal”
como:

Aquilo que a noçã o de pessoa representa e que, penso eu, é o pró prio
pensamento, é a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares; o
que é consciência apenas por isto, que é a meu ver essencial ao
pensamento e insepará vel dele e essencial a ele. É impossível para alguém
perceber sem perceber que está percebendo124.

Ou seja, a identidade pessoal está vinculada diretamente à capacidade de


ser a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares, o que significa
entender-se como o mesmo agente consciente na dispersã o do tempo e do
espaço, conservar-se em sua dimensã o pró pria. É Locke quem insistirá em
compreender a identidade pessoal como inerência entre consciência e memó ria.

122
LOCKE, idem, p. 419
123
Ver a este respeito ELIAS, Norbert; A sociedade dos indivíduos, Rio de Janeiro; Jorge Zahar,
1994, p. 133
124
LOCKE, John: Essays concerning human understanding, p. 302
É a partir de entã o que “consciência” será , acima de tudo, o nome que damos
para esta identidade pessoal suposta que me faz, em cada açã o ou pensamento
passado, me ver me vendo, submeter a multiplicidade à unidade do meu olhar,
como se meu olhar fosse um instrumento de posse. Eu possuo o que consigo
enxergar, um pouco como possuo as terras que sou capaz de cultivar, e a esta
possessã o, a esta apropriaçã o chamamos “reflexã o”. Nã o por acaso, o pró prio
termo “reflexã o” é uma metá fora escó pica e Locke é praticamente o primeiro a
usa-la para dar conta da maneira com que as operaçõ es da mente sã o refletidas
na pró pria mente, tal como um espelho refletindo um objeto. Vejam como o
termo é usado no original:

Men come to be furnished with fewer or more simple ideas from without,
according as the objects, they converse with, afford greater or less variety;
and form the operation of their minds within, according as they more or
less reflect on them125.

É bastante claro como Locke descreve um processo físico de reflexã o


ó tica, mas agora aplicado à mente. Filó sofos como Richard Rorty falarã o da
“essência vítrea” da consciência126. Mas gostaria de insistir que essas operaçõ es
de reflexã o definem a estrutura do pensamento como forma de apropriaçã o.
Refletir as operaçõ es da mente implica estabelecer uma relaçã o profunda entre
consciência e consciência de si. Pois reflito as operaçõ es e a forma com que algo
aparece à consciência. De direito, nã o há nenhuma consciência que nã o seja
consciência de si. Neste sentido, e este ponto é fundamental, se todos os fatos da
consciência sã o, de direito, acessíveis à reflexã o, podem se transformar em
representaçã o para a reflexã o, é porque esta é a forma da consciência tomar
posse de si mesma. Ou seja, a consciência nasce como um princípio de
apropriaçã o. Nã o será estranho que valerá , para Locke, a noçã o de que:

Assim, posso considerar que o que é ‘eu’, ‘eu mesmo’ (myself) ou ‘meu si’
(my self) é como uma ‘coisa’ que possuo (own) ou que reconheço (own
novamente) ou que reconheço que possuo efetivamente porque foi eu que
a fiz ou que a pensei127.

A consciência é o que me permite apropriar-me da memó ria, assim como


me apropriar dos objetos, compreendidos agora sob a forma da representaçã o,
da mesma maneira que os sujeitos que trabalham se apropriam do mundo. O
pensamento é compreendido sob o mesmo horizonte que o trabalho. Na verdade,
o pensamento será uma forma possível de trabalho, talvez mesmo a forma a mais
importante. Isto ficará ainda mais claro quando Kant insistir que a representaçã o
é, de fato, um trabalho de ligaçã o do diverso da intuiçã o sensível. Pois a
essencialidade dos objetos está em sua condiçã o de poderem ser representados
por mim. Esta representaçã o é uma espécie de “made in England” posto sob o
mundo. Mesmo na estrutura da consciência, encontramos claramente as marcas
disto que um dia Macpherson chamou de “individualismo possessivo”. De toda
forma, uma longa tradiçã o de crítica ao cará ter apropriativo da consciência

125
LOCKE: Essay concerning the human understanding, livro II, cap. I, par. 7
126
Ver RORTY, Richard; A filosofia como espelho da natureza, Sã o Paulo: Relume Dumará
127
BALIBAR, Etienne; Citoyen-sujet, p. 133
nascerá desta discussã o, ganhando força principalmente na filosofia do século
XX. Que lembremos, entre tantos outros, de Heidegger e sua compreensã o da
representaçã o como um Vor-stellen que é ao mesmo tempo Vor-sich-stellen, a
saber, um por diante de si, como coloco uma coisa diante de mim para me
apropriar dela. Crítica que visa o fato de que pensar é compreendido e reduzido a
condiçã o de representar.
Isto nos explica, entre outras coisas, porque tudo o que é acessível à
minha reflexã o e que diz respeito aos pensamentos e açõ es de minha pró pria
pessoa me sã o imputá veis. Afinal, eles sã o minha propriedade. Sendo minha
propriedade, eles sã o minha identidade. E sendo expressã o de minha identidade,
eles sã o minha responsabilidade. A identidade de consciência define os regimes
de imputabilidade e de responsabilizaçã o da açã o, mostrando assim como tais
discussõ es sobre a constituiçã o da identidade psicoló gica tem, em seu horizonte,
problemas ligados à imputibilidade jurídica. Daí uma definiçã o fundamental de
Locke:

A personalidade se estende para além da existência presente em direçã o


ao passado apenas através da consciência, pelo que ela se torna
concernida e imputá vel (accountable), possui e imputa a si mesma açõ es
passadas, apenas através do mesmo fundamento e pelas mesmas razõ es
que ela faz isto no presente128.

A este respeito, lembremos como Walter Freeman, popularizador das


tecnicas de lobotomia para pacientes esquizofrênicos, vinculará a funçã o dos
ló bulos frontais à continuidade de si, que pode ser definida como “a qualidade
que o indivíduo porta para reconhecer sua responsabilidade nos atos realizados
no passado e estes que serã o realizados no futuro”. A lobotomia seria assim uma
modalidade de intervençã o tendo em vista a regulaçã o da continuidade de si. O
que demonstra a resiliência da definiçã o de Locke.
Mas insistamos ainda em outro ponto. Eu só sou imputá vel daquilo que é
meu, daquilo que é marca da minha vontade consciente. Nesta discussã o sobre
imputabilidade, há a aurora de uma forma de existência na qual a vontade pode
ser minha, a vontade pode ser a expressã o daquilo que aparece como “meu”. A
vontade, uma certa noçã o de vontade, aparece como modo fundamental de
existência. A vontade do proprietá rio é aquela que faz do objeto a confirmaçã o de
mim mesmo.

128
Idem, p. 313
Arqueologia da liberdade
Aula 7

Na aula de hoje, gostaria de dar continuidade a nossa discussã o sobre o


conceito de liberdade como propriedade de si, caminhando em direçã o ao século
XX. Nó s vimos, nas aulas passadas, como o conceito apareceu no interior das
lutas políticas da Inglaterra do século XVII, principalmente através dos Levellers.
Vimos como ele era estratégia política de se basear em um direito já
juridicamente reconhecido para universaliza-lo e, com isto, limitar radicalmente
sua natureza classista. Depois, vimos como John Locke aparecia como um teó rico
fundamental desta noçã o de propriedade, transformando-a em um eixo maior
tanto para a teoria política quanto para sua teoria do sujeito. Ao mesmo tempo
que a propriedade de si aparecia como fundamento de uma concepçã o liberal de
estado e de pacto social, estado que aparecia agora como instituiçã o responsá vel
pela defesa e garantia da propriedade privada de seus cidadã os, ela também
servia de fundamento para o nascimento moderno da noçã o de identidade
pessoal, com seu primado da consciência de si. My self e my own apareciam como
termos profundamente correlatos. Neste sentido, compreendemos que a noçã o
de propriedade nã o dizia respeito apenas a uma forma de relaçã o social, mas
também a um regime de relaçã o a si e de constituiçã o de formas de identidade.
Isto mostrava sua força na constituiçã o de formas de vida que serã o
hegemô nicas em nosso horizonte social.
A tese que gostaria de defender com vocês é que tal noçã o de liberdade
como propriedade de si chega até nó s e se transforma em uma peça fundamental
de uma das correntes mais influentes da contemporaneidade, a saber, o
neoliberalismo. Creio ser importante lembrar, neste contexto, que o
neoliberalismo nã o é apenas uma ideologia de políticas econô micas. Trata-se
principalmente de um horizonte ético que visa submeter todas as exigências de
justiça a imperativos de liberdade. De fato, a liberdade aparece como eixo
fundamental de legitimaçã o tanto de açõ es governamentais quanto de modos de
relaçã o a si. Exigências de justiça, sejam elas exigências de justiça redistributiva
ou justiça de reparaçã o social, devem se submeter à defesa intransigente da
liberdade, dirã o os neoliberais. De certa forma, podemos mesmo dizer que a
racionalidade das açõ es econô micas nã o é analisada em termos de maior
produçã o de riqueza e bens a um maior nú mero de pessoas, de segurança social,
de equidade, mas a partir de sua capacidade de realizar socialmente a liberdade.
E se nos perguntarmos a respeito do que se entende por liberdade, neste
contexto, encontraremos a liberdade como expressã o de indivíduos
proprietá rios.
É possível falar desta maneira porque o sujeito neoliberal “possui” a si
mesmo. Ele nã o é apenas o empresá rio de si, como se diz atualmente
principalmente depois do impacto de trabalhos como os de Christian Laval e
Pierre Dardot. Pois essa noçã o empresarial pressupõ e que, nas relaçõ es a si,
estamos a tratar com capitais dos quais sou proprietá rio, usufruo e rentabilizo da
forma como melhor me convier. A tó pica do “capital humano”, desenvolvida pelo
economista Gary Becker, implica que minhas habilidades, relaçõ es
intersubjetivas, interesses, força de trabalho devem ser avaliadas e
compreendidas como “capitais” que procuram a rentabilizaçã o. Mas ve-los como
capitais implica, por sua vez, que eles possam ser pensados como
“propriedades”, mesmo que, diferentemente do capital que circula na esfera
empresarial, este capital é inaliená vel, passa-lo para o usufruto do outro sem
retorno para mim seria algo como o consentimento a escravidã o.
Por isto, gostaria de, nesta aula, inicialmente discutir o horizonte geral do
pensamento neoliberal a respeito da liberdade e de seus usos. Ao final, gostaria
de me voltar a um autor que desenvolve até as ú ltimas consequências os
postulados de tal concepçã o de liberdade, mesmo que ele nã o se assuma
claramente como neoliberal. Trata-se do filó sofo libertá rio ou do
anarcocapitalista Robert Nozick.

Uma crise moral

Gostaria de começar lembrando a vocês como se iniciava o texto que


apresentava os objetivos da Sociedade Mont Pélérin: primeiro grupo formado
nos anos quarenta para a difusã o dos ideais neoliberais:

Os valores centrais da civilizaçã o estã o em perigo ... O grupo defende que


tal desenvolvimento tem sido impulsionado pelo crescimento de uma
visã o da histó ria que nega todo padrã o moral absoluto e por teorias que
questionam a desejabilidade do império da lei129.

De onde se seguia a exortaçã o para explicar a pretensa crise atual a partir


de suas “origens morais e econô micas”. Esta dupla articulaçã o é extremamente
significativa. A referida visã o da histó ria que negaria todo padrã o moral absoluto
e que estaria em crescimento seriam as ideologias coletivistas e socialistas que
recusam o primado da propriedade privada. Estamos nos anos quarenta, o
comunismo está em expansã o e mesmo os países capitalistas adotam modelos
híbridos, como o modelo escandinavo, ou caracterizados por fortes doses de
intervencionismo estatal de natureza keynesiana.
O trecho acima é interessante porque ele mostra como a recusa do
primado da propriedade privada e da competividade nã o é compreendido
apenas como um equívoco econô mico que poderia trazer ineficiência e atraso,
mas principalmente como uma falta moral capaz de colocar em perigo os valores
centrais da civilizaçã o ocidental. Por isto, sua defesa deverá ser nã o apenas
assentada em sua pretensa eficá cia econô mica diante dos imperativos de
produçã o de riqueza. Ela deverá se dar através da exortaçã o moral dos valores
imbuídos na livre iniciativa, na “independência” em relaçã o ao Estado e na
pretensa auto-determinaçã o individual. Devemos realizar a obrigaçã o moral de
uma sociedade de indivíduos livres da tutela de quem quer que seja, capazes de
usufruir de sua propriedade como bem entender e seguros de que violaçõ es a tal
direito fundamental serã o prontamente punidos. Pois o direito a propriedade
privada seria: “a mais importante garantia para a liberdade”, como dirá Hayek.
Isto nos explica porque na “sociedade livre” o individuo teria sempre a
possibilidade de escolha (econô mica), ao contrá rio dos chamados modelos
“coletivistas”, onde se “isenta o indivíduo da responsabilidade” e “nã o pode
deixar de ser antimoral nos seus efeitos, por mais elevados que sejam os ideais
129
Apud MIROWSKI, Phillip; The road from Mont Pelerin: the making of the neoliberal thought, p.
25
que o geram” (HAYEK, 2010, p. 199). Como vemos, as decisõ es sã o justificadas
em termos de “responsabilidade”, de “maioridade”, de “independência”. Quer
dizer, os termos sã o todos morais, e nã o econô micos. O que nã o poderia ser
diferente, já que a discussã o é claramente ética.
Com isto em mente, nã o será difícil entender porque economistas como
Ludwig von Mises, procurarã o explicar as motivaçõ es para a crítica ao
liberalismo através de uma “atitude mental patoló gica”, como se tratasse da
expressã o de uma incapacidade psicoló gica de alcançar o está gio de maturidade,
a saber: “o ressentimento e uma condiçã o neurastênica que se poderia chamar
de ‘Complexo de Fourier’”. O ressentimento viria do fato de que a base
motivacional da crítica à s premissas liberais seria o desejo , moralmente
reprová vel, do infortú nio do outro que alcançou maiores realizaçõ es que eu
mesmo. Já o dito complexo de Fourier seria, segundo Mises: “doença séria do
sistema nervoso” que sequer Freud teria sido capaz de perceber. Ele expressaria
certos tipo de fuga em direçã o à ilusã o devido a uma sequência de frustraçõ es
diante das expectativas da vida. A ilusã o suprema seria aquela produzida pelo
“psicó tico” Fourier e consistiria em negar a finitude dos recursos naturais e o
fardo necessá rio do trabalho. Ou seja, a “realidade” negada é a pretensa realidade
da escassez e do sacrifício necessá rio.
Como vemos, este vocabulá rio psicoló gico visava reconstruir aquilo que
um dia foi chamado de “natureza humana” a partir da ló gica da racionalidade
econô mica. Isto significa que a economia aparecia como a continuaçã o da
psicologia por outros meios. Por exemplo, é o pró prio Mises quem dirá , a
respeito da noçã o de lucro:

lucro, no sentido mais amplo, é o ganho decorrente da açã o; o aumento de


satisfaçã o (reduçã o de desconforto) obtido; é a diferença entre o maior
valor atribuído ao resultado obtido e o menor valor atribuído aos
sacrifícios feitos para obtê-lo; em outras palavras, é rendimento menos
custo. Realizar um lucro é invariavelmente o objetivo de toda açã o. Se
uma açã o nã o atinge os objetivos visados, o rendimento ou nã o excede os
custos, ou lhes é inferior. Neste ú ltimo caso, o resultado é uma perda, uma
diminuiçã o de satisfaçã o. Lucro e perda, neste sentido original, sã o
fenô menos psíquicos e, como tal, nã o sã o suscetíveis de mediçã o nem
podem ser expressos de uma maneira tal que informe a outras pessoas
quanto à sua intensidade. Uma pessoa pode dizer que a lhe convém mais
do que b; mas nã o pode informar a outra pessoa, a nã o ser de maneira
vaga e imprecisa, em que medida a satisfaçã o obtida de a excede a obtida
de b (MISES, 2010, p. 349).

Para Mises, lucro nã o é o eixo de uma certa racionalidade econô mica,


historicamente situada e pró pria ao que nó s chamamos de relaçõ es capitalistas.
Antes, lucro é um fenô meno psíquico, é o objetivo de toda e qualquer açã o, seja
ela açã o social, formas de relaçã o intersubjetiva ou relaçã o a si. Colocaçõ es desta
natureza sã o apenas a consequência necessá ria das relaçõ es a si serem pensadas
a partir do paradigma da auto-propriedade. Sendo a propriedade o eixo das
relaçõ es a si, nada mais natural do que o lucro, aquilo que justifica o cará ter
mercantil da propriedade, aparecer como o fundamento de toda açã o livre. Por
eu ser o proprietá rio de mim mesmo, nada mais racional do que agir como quem
procura lucrar com o exercício do gozo dessa propriedade.

O estado neoliberal

Gostaria de partir do tom de exortaçã o moral de tais colocaçõ es porque


creio que elas explicitam elementos fundamentais do que serã o as consequências
políticas do pensamento neoliberal. Neste sentido, voltemos um instante os olhos
para o ano de 1938. No ano anterior à eclosã o da Segunda Grande Guerra, vá rios
economistas, soció logos, jornalistas e mesmo filó sofos se reuniram a fim de
discutir o que aparecia à época como o ocaso do liberalismo. A reuniã o passou à
histó ria como Colóquio Walter Lippmann, nome de um influente jornalista norte-
americano que havia escrito um dos mais discutidos livros de entã o, A boa
sociedade, e um dos responsá veis pela organizaçã o do evento130. Em seu livro,
Lippmann insistia que o mundo via a derrocada do liberalismo devido à ascensã o
do comunismo, de um lado, e dos fascismos de outro. Mesmo o capitalismo
estaria sob a hegemonia do intervencionismo keynesiano. Havia entã o de se
perguntar porque isto estava a ocorrer e o que fazer para reverter a situaçã o.
Um diagnó stico que se impô s no Coló quio fora o equívoco da crença,
pró pria ao liberalismo manchesteriano do século XIX, de que livre-iniciativa,
empreendedorismo e competitividade seriam características que brotariam
quase que espontaneamente nos indivíduos, caso fossemos capazes de limitar
radicalmente a intervençã o econô mica e social do Estado.
No entanto, o neoliberalismo sustentava que a liberdade liberal teria que
ser produzida e defendida. Como dirá décadas depois Margareth Thatcher:
“Economia é o método. O objetivo é mudar coraçõ es e mentes”. E essa mudança
dos coraçõ es e mentes teria que ser feita através de doses maciças de
intervençã o e de reeducaçã o. Como dirá Alexander Rü stow, um dos pais do
ordoliberalismo, a corrente alemã do neoliberalismo:

a coincidência do interesse egoista individual com o interesse geral que o


liberalismo descobre e proclama com entusiasmo como o mistério da
economia de mercado aplica-se apenas no interior de uma livre
competiçã o de serviços e, como resultado, apenas na medida em que o
Estado, encarregado de policiar o mercado, observa que os atores
econô micos respeitem cuidadosamente esses limites. Mas o Estado da era
liberal era desprovido do conhecimento e da força necessá ria para
desempenhar tal tarefa 131.

Ou seja, Rustö w insiste na noçã o de que o interesse individual seja a expressã o


do interesse social no liberalismo como um “resultado”. Um resultado produzido
pela açã o do estado. Isto até o momento em que os indivíduos começassem a ver
a si mesmos como “empreendedores de si”. Isto até o momento em que eles
internalizassem a racionalidade econô mica como a ú nica forma de racionalidade
possível.

130
Para uma discussã o sobre o coló quio, ver AUDIER, Serge e REINHOUDT, Jurgen; The Walter
Lippmann Colloquium: the birth of neo-liberalism, Pallgrave, 2018
131
In: AUDIER, Serge e REINHOUDT, Jurgen; The Walter Lippmann Colloquium: the birth of neo-
liberalism, Pallgrave, 2018, p. 160
Assim, a ideia de que o advento do neoliberalismo seria solidá rio de uma
sociedade com menos intervençã o do Estado, ideia tã o presente nos dias de hoje,
é simplesmente falsa. Em relaçã o ao liberalismo clá ssico, o neoliberalismo
representava muito mais intervençã o do Estado. A verdadeira questã o era: onde
o Estado efetivamente intervia? De fato, nã o se tratava mais da intervençã o na
esfera da coordenaçã o e regulaçã o da atividade econô mica. Para os neoliberais,
mesmo a regulaçã o de moldes keynesianos era tã o insuportá vel quanto qualquer
forma de Estado socialista, embora valha a pena lembrar que o nível de
regulaçã o econô mica aceito pelo ordoliberalismo alemã o e sua “economia social
de mercado” é maior do que aquele pregado, por exemplo, pela Escola austríaca
que dará o tom do neoliberalismo norte-americano. Na verdade, o que o
neoliberalismo pregava era intervençõ es diretas na configuraçã o dos conflitos
sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um modelo
econô mico, o neoliberalismo aparecia assim como uma ativa engenharia social.
Neste sentido, podemos dizer que ele se vê como a engenharia social em direçã o
a liberdade.
Mas, de forma prá tica, isto implica que o neoliberalismo apareça como um
modo de intervençã o social profundo nas dimensõ es produtoras de conflito. Pois,
para que a liberdade como empreendedorismo e livre-iniciativa possa reinar, o
Estado deve intervir para despolitizar a sociedade, ú nica maneira de impedir que
o dissenso político intervenha na autonomia necessá ria de açã o da economia. O
neoliberalismo deve bloquear principalmente um tipo específico de conflito, a
saber, aquele que coloca em questã o a gramá tica de regulaçã o da vida social
baseada na generalizaçã o da forma-propriedade. Isto significa, por exemplo,
retirar toda a pressã o de instâ ncias, associaçõ es, instituiçõ es e sindicatos que
visassem questionar tal noçã o de liberdade a partir da consciência da natureza
fundadora da luta de classe.
Assim, em um primeiro nível, o estado neoliberal agia de forma direta
para desregular a vida associativa e sua força de pressã o na partilha dos bens e
das riquezas. Este ponto foi explicitado de maneira precisa nas pesquisas de
Gregoire Chamayou a respeito dos vínculos entre neoliberalismo e fascismo132.
Por exemplo, pode parecer estranho para alguns que um dos pais do
neoliberalismo, o economista Frederick Hayek, seja defensor explícito da tese da
necessidade da ditadura provisó ria como condiçã o para a realizaçã o da liberdade
neoliberal. No entanto, devemos lembrar de um significativo trecho de uma
entrevista dada ao jornal chileno El Mercurio, em 1981:

Eu diria que, enquanto instituiçã o de longo termo, sou totalmente contra


ditaduras. Mas uma ditadura pode ser um sistema necessá rio durante um
período de transiçã o. As vezes, é necessá rio para um país ter, durante
certo tempo, uma forma de poder ditatorial. Como vocês sabem, é possível
para um ditador governar de maneira liberal. E é possível que uma
democracia governe com uma falta total de liberalismo. Pessoalmente,
prefiro um ditador liberal a um governo democrá tico sem liberalismo.

“As vezes” aparece aqui como indicaçã o de uma possibilidade de uso sempre
iminente, desde que a sociedade nã o se conforme à s injunçõ es econô micas
neoliberais de forma passiva. Neste sentido, notemos como 1981 era o ano em
132
Ver CHAMAYOU, Grégoire, La société ingouvernable, Paris: La fabrique, 2019
que a ditadura de Augusto Pinochet estava no auge. Hayek estava entusiasmado
com a transformaçã o do Chile no laborató rio mundial das ideias que ele, Milton
Friedman, Gary Becker, Ludwig von Mises e outros pregavam com afinco.
Neste sentido, o uso da noçã o de ditadura provisó ria nã o será um desvio
de rota. Hayek já havia deixado claro seu receio de uma democracia sem
restriçõ es, de onde se seguia suas diatribes contra uma pretensa “democracia
totalitá ria” ou uma “ditadura plebiscitá ria”133 que nã o respeitaria a tradiçã o do
império da Lei (Rule of Law). O respeito a tal Rule of Law, no qual encontraríamos
a enunciaçã o dos fundamentos liberais da economia e da política, do cará ter
inviolá vel da propriedade privada, seria o melhor remédio contra a tentaçã o de
sucumbir a um processo de barganha através do qual o estado se transformaria
na mera emulaçã o de interesses mú ltiplos da sociedade, na mera coalizaçã o de
interesses organizados. Fato que impediria o Estado de defender a liberdade
(que, no caso, nã o é nada mais que a liberdade econô mica de empreender e de
possuir propriedade privada) contra os mú ltiplos interesses das corporaçõ es da
vida social, o que equivaleria assim a submeter a maioria ao interesse de
minorias organizadas. Contra essa forma de submissã o de meus interesses pelos
interesses de um outro, seria necessá rio que todos se submetessem a regras
racionais e as forças impessoais do mercado, como se fosse questã o de assumir
uma experiência de auto-transcendência, uma Lei produzida pelos humanos e
que os transcende. Neste sentido:

É fá cil dizer porque Hayek pode afirmar que tal submissã o a regras
abstratas e a forças que nos ultrapassam, mesmo quando as
engendramos, é a condiçã o da justiça e da paz social. É que ela cala a fonte
do ressentimento, da inveja, das paixõ es destruidoras. Este que o mercado
lhe retirou seu emprego, seu negó cio ou mesmo sua subsistência sabe
bem, segundo Hayek, que nenhuma intençã o quis isto. Ele nã o foi
submetido a humilhaçã o alguma134.

Se servidã o significa submeter-se a vontade de um outro, aqueles que se


submetem à s leis do mercado nã o se submetem à vontade de ninguém, ele nã o
aliena sua liberdade. No entanto, submeter-se à pretensa racionalidade das leis
da economia exige uma despolitizaçã o radical da sociedade, uma recusa violenta
de seus questionamentos a respeito da autonomia do pró prio discurso
econô mico em relaçã o aos interesses políticos. Ou seja, tal submissã o exige
assumir a economia como a figura mesma de um poder soberano, provido de
uma violência propriamente soberana.

Liberdade e autoritarismo

Neste ponto, podemos encontrar a expressã o da natureza política


autoritá ria da economia neoliberal e aqui se desenha o mesmo modelo de gestã o
social que podemos encontrar em teó ricos do nazismo como Carl Schmitt. E nã o
deverá ser objeto de surpresa encontrarmos afirmaçõ es de Hayek como:

A fraqueza do governo em uma democracia onipotente foi claramente


133
HAYEK, Frederik; Law, legislation and liberty vol III, p. 4
134
DUPUY, Jean-Pierre; L’avenir de l’économie, Paris: Flammarion, 2014, p. 37
vista pelo extraordiná rio estudante alemã o de política Carl Schmitt, que
nos anos vinte entendeu provavelmente melhor que ninguém o cará ter da
forma desenvolvida do governo e posteriormente caiu naquilo que, para
mim, aparece como o lado moralmente e intelectualmente errado 135 .

Hayek pode fazer tal elogio a Schmitt porque é possível encontrar a


gênese da noçã o de despolitizaçã o da sociedade, tã o necessá ria à implementaçã o
do neoliberalismo, na noção fascista de “estado total”. Noção que, como
compreendera Herbert Marcuse já nos anos trinta, nunca havia se contraposto
ao liberalismo. Antes, era seu desdobramento necessário em um horizonte de
capitalismo monopolista. Compreendendo como o fundamento liberal da
redução da liberdade à liberdade do sujeito econômico individual em dispor da
propriedade privada com a garantia jurídico-estatal que esta exige permanecia
como a base da estrutura social do fascismo, Marcuse alertava para o fato do
“estado total” fascista ser compatível com a ideia liberal de liberação da
atividade econômica e forte intervenção nas esferas políticas da luta de classe:
Daí porque:

Os fundamentos econô micos desse trajeto da teoria liberal à teoria


totalitá ria serã o assumidos como pressupostos: repousam essencialmente
na mudança da sociedade capitalista do capitalismo mercantil e
industrial, edificado sobre a livre concorrência dos empresá rios
individuais autô nomos, ao moderno capitalismo monopolista, em que as
relaçõ es de produçã o modificadas (sobretudo as grandes ‘unidades’ dos
cartéis, dos trustes etc.) exigem um Estado forte, mobilizador de todos os
meios do poder136.

Esta articulação entre liberalismo e fascismo fora tematizada por Carl


Schmitt, pois vem de Schmitt a noção de que a democracia parlamentar com
seus sistemas de negociações tendia a criar um “Estado total” 137. Tendo que dar
conta das múltiplas demandas vindas de vários setores sociais organizados, a
democracia parlamentar acabaria por permitir ao estado intervir em todos os
espaços da vida, regulando todas as dimensões do conflito social,
transformando-se em mera emulação dos antagonismos presentes na vida
social. Contra isto, não seria necessário menos estado, mas pensar uma outra
forma de estado total: um estado total “qualitativo”, como dirá Schmitt. Neste
caso, um estado capaz de despolitizar a sociedade, tendo força suficiente para
intervir politicamente na luta de classes, eliminar as forças de sedição a fim de
permitir a liberação da economia de seus pretensos entraves sociais. “Este
Estado Total Qualitativo é um Estado Forte, total no sentido da qualidade e da
energia (“total im Sinne der Qualität und der Energie”), além de autoritá rio no
domínio político, para poder decidir sobre a distinçã o entre amigo e inimigo, e

135
HAYEK, Frederick, Law, legislation and liberty vol III, p. 194
136
MARCUSE, Herbert; Cultura e sociedade, vol. I, Sã o Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 61
137
Ver SCHMITT, Carl; “Starker Staat und gesunde Wirtschaft. Ein Vortrag fü r Wirtschaftsfü hren”,
in Volk und Reich Politische Monatshefte für das junge Deutschland, 1933, tomo 1, caderno 2, pp.
81-94
fiador da liberdade individual no â mbito da economia”138. Schmitt não quer um
estado planificador, mas um estado capaz de garantir uma intervenção
autoritária no campo político a fim de liberar a economia em sua atividade
autônoma. Esta noção era extremamente presente no debate alemão do final
dos anos vinte e início dos anos trinta e vem daí a perspectiva política de
Hayek139.
Esse modelo distingue-se do “capitalismo de estado” de Friedrich
Pollock, na medida em que não se trata de uma regulação direta da atividade
econômica visando a substituição do primado da economia pelo da
administração, mas de uma regulação direta no campo político a fim de liberar
a ação econômica de entraves. No entanto, ele se aproxima do modelo de
Pollock na compreensão de que o eixo dos processos de gestão social estarão
baseados na procura em eliminar as contradições sociais através da gestão do
campo econômico. Esse mesmo modelo poderá tanto operar em chave de
democracia liberal quanto de regime autoritário. Se pudermos completar, essa
indiferença vem do fato dos dois polos estarem menos longe do que se gostaria
de imaginar. Na verdade, tanto em um caso como em outro os fundamentos da
racionalização liberal, com sua noção de agentes econômicos maximizadores
de interesses individuais, permanecia como a estrutura da vida social e dos
modos de subjetivação, justificando toda forma de intervenção violenta contra
tendências contrárias.

Nozick e o estado mínimo

Robert Nozick é um dos teó ricos mais relevantes do que poderíamos chamar de
“teoria do estado mínimo” organicamente associada ao horizonte de reflexã o
pró prio ao neoliberalismo e a sua concepçã o de liberdade como propriedade de
si. É tendo isto em vista que podemos entender as primeiras colocaçõ es de seu
livro Anarquia, estado, utopia:

Indivíduos tem direitos. E há coisas que nenhuma pessoa ou grupo podem


fazer com indivíduos (sem lhes violar os direitos). Tã o forte e tã o alto
alcance sã o esses direitos que colocam a questã o do que o Estado e seus
servidores podem, se é que podem, fazer. Que espaço os direitos
individuais deixam ao Estado?140

O ponto de partida é bastante claro em seus propó sitos. Começamos da noçã o de


que o fundamento da vida social sã o os indivíduos e seus direitos, resultado de
certa leitura proposta por Nozick do estado de natureza lockeano. Trata-se de
partir da situaçã o na qual todos sã o livres para dispor de seus atos e de seus
bens da maneira que achar conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, e
sem depender da vontade de ninguém. Tais leis da natureza versariam sobre a
138
BERCOVICI, Gilberto; Entre o Estado Total e o Estado Social (tese de livre-docência, USP, 2003
139
Ver, por exemplo, a distinçã o entre Estado total e Estado autoritá rio em ZIEGLER, Heinz;
Autoritärer oder totaler Staat, Tü bigen: Mohr, 1932. Aqui, o estado autoritá rio aparece como um
“estado neutro”, despolitizado, capaz de se impor a despeito dos mú ltiplos interesses de classes e
corporaçõ es.
140
NOZICK, Robert; Anarquia, estado, utopia, p. 9
impossibilidade de alguém prejudicar o outro em sua vida, saú de, liberdade ou
propriedade.
Note-se que o ponto de partida já define muito a respeito do ponto de
chegada. Partimos do que é “meu”, do que me é “pró prio”. Esta é uma relaçã o
pré-política que, na verdade, funda o campo político. Mais uma vez vemos esta
operaçã o que consiste em afirmar que a propriedade é o fundamento pré-político
da política. Só mesmo se houver algo “meu” pode haver liberdade. A questã o toda
irá girar entã o em torno de como preservar o que é meu e como garantir que
existam fronteiras estritas entre o que é meu e o que é do outro, fronteiras cujo
desrespeito legitima formas mú ltiplas de puniçã o e reparaçã o.
Pode parecer que neste ponto, a emergência do estado se faz necessá ria
para que as fronteiras sejam respeitadas. Nozick lembra que, no entanto, grupos
de indivíduos podem formar associaçõ es de proteçã o mú tua baseados em laços
de amizade e de comprometimento a defesas futuras. Ou seja, a emergência do
estado nã o é necessá ria. No entanto, problemas de litígios internos sobre
interpretaçõ es distintas de direitos podem inviabilizar a associaçã o. O que pode
nos levar a ideia de que: “algumas pessoas sã o contratadas para exercerem
funçã o de proteçã o e alguns empresá rios ingressam no negó cio de vender
serviços de proteçã o”141. Esta é uma maneira de evidenciar um conjunto de
possibilidades de realizaçã o de necessidades sociais evitando a todo momento a
emergência do estado.
Dentro desse processo, é possível que uma agência de proteçã o acabe por
paulatinamente construir uma hegemonia obedecendo as leis de mercado,
fornecendo segurança a quem está disposta a pagar por ela. Por fim, ela pode
impedir que outras agência façam o mesmo, fornecendo em troca proteçã o
gratuita. Dessa forma, aparece um estado mínimo a partir do respeito as leis do
mercado. Um estado que acabará por se restringir a segurança, proteçã o e
garantia de respeito de contratos.
Trata-se assim de admitir o princípio de que nada nem ninguém pode
exigir ou impor princípios gerais de planejamento e de açã o coletiva, nem mesmo
em nome de uma sociedade melhor e mais justa. Daí sua recusa a uma estado
redistributivo e suas discussõ es com a teoria da justiça distributiva de John
Rawls. Essa recusa, e esse é o ponto principal, é feita por razõ es morais. Ou seja,
Nozick defende que a defesa da justiça distributiva é imoral. Uma aquisiçã o justa
(seguindo os princípios lockeanos) pode ser objeto de usufruto, de troca nã o
coercitiva. Qualquer taxaçã o a essas operaçõ es seria injusta pois impede os
sujeitos de gozarem daquilo que possuem da forma como acharem necessá rio.
No entanto, Nozick tem uma posiçã o singular porque reconhece que o
estado mínimo é uma utopia. No seu caso, trata-se de colocá -lo submetido à força
de uma carga utó pica. A utopia aparece assim como o espaço social no qual nã o
posso ser submetido ao horizonte utó pico de um terceiro que se apoia em
estruturas estatais para me impor o que posso nã o querer. O estado mínimo
aparece como o ú nico moralmente sustentá vel e o ú nico capaz de realmente
realizar conteú dos utó picos efetivos:

O estado mínimo trata-nos como indivíduos inviolá veis que nã o podem


ser usados de certas maneiras por outros como meios, ferramentas,
instrumentos ou recursos. Trata-nos como pessoas que tem direitos
141
NOZICK, idem, p. 28
individuais, com a dignidade que isso pressupõ e. Trata-nos com respeito
ao acatar nossos direitos, ele nos permite, individualmente ou em
conjunto com aqueles que escolhermos, determinar nosso tipo de vida,
atingir nossos fins e nossas concepçõ es de nó s mesmos, na medida em
que sejamos capazes disso, auxiliados pela cooperaçã o voluntá ria de
outros indivíduos possuidores da mesma dignidade. Como ousaria
qualquer Estado ou grupo de indivíduos fazer mais, ou menos? 142

Mais uma vez, é extremamente claro que o estado mínimo nã o é


simplesmente peça de uma racionalidade econô mica. Ele é um operador moral
que permitiria a emancipaçã o social através do respeito a minha capacidade de
auto-determinaçã o e um horizonte social de mú ltiplas formas possíveis de vida.
Com esta ideia, o horizonte neoliberal encontra sua melhor realizaçã o através de
uma aproximaçã o significativa com perspectivas libertá rias. O que uma
perspectiva que, ao contrá rio, recusa o primado da propriedade de si e esse
modelo de implosã o de obrigaçõ es de solidariedade poderia dizer a este
respeito?

142
NOZICK, idem, p. 358
Arqueologia do conceito de liberdade
Aula 8

Na aula de hoje, gostaria de introduzir algumas características da crítica à


liberdade como propriedade de si que se desdobram no interior das lutas sociais
do século XVIII, em especial na Revoluçã o Francesa, e posteriormente chega a
Marx. Haveria um caminho mais natural para abordar tal questã o e ele passaria
pela exploraçã o dos textos de Jean-Jacques Rousseau sobre a crítica da
propriedade e seus desdobramentos no interior do debate pró prio à Revoluçã o
Francesa. Todos vocês certamente conhecem esta passagem célebre do Discurso
sobre a origem da desigualdade:

O primeiro que cercou um terreno, dispô s-se a dizer: isso é meu, e


encontrou pessoas suficientemente simpló rias para acreditar, foi o
verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras,
assassinatos, miséria e horror poderia ter evitados ao gênero humano
aquele que tivesse gritado a seus semelhantes: “Nã o escutem este
impostor. Vocês estarã o perdidos se esquecerem que os frutos sã o de
todos e que a terra é de ninguém”143.

Como vocês percebem, contrariamente a perspectiva lockeana de


naturalizaçã o da propriedade, Rousseau compreende a emergência da
propriedade como uma forma de catá strofe que funda a sociedade civil como
forma maior de alienaçã o, ou ainda, como dirá Rousseau, de “decrepitude da
espécie”144. O Estado de natureza é um momento desprovido de toda forma de
propriedade, baseado em um uso sem propriedade feito por indivíduos isolados
e nô mades. Nó s veremos este ponto como mais calma no pró ximo mó dulo,
quando teremos uma aula dedicada ao problema da relaçã o entre liberdade e
igualdade em Rousseau.
Mas, neste momento, gostaria de insistir como esta compreensã o da
propriedade nã o exatamente como uma forma de liberdade, mas como a forma
fundamental da alienaçã o social, ganhará setores importantes da Revoluçã o
Francesa e alimentará lutas politicas fundamentais no século XIX e XX. Na aula de
hoje, eu gostaria de lembrar como este ponto aparece na Revoluçã o Francesa, e
para tanto gostaria de falar do comunismo de Graco Babeuf. Depois, gostaria de
articular tal perspectiva com algumas consideraçõ es de Karl Marx. A articulaçã o
se justifica porque Babeuf será um dos líderes da chamada “conspiraçã o dos
iguais” de 1796: uma tentativa de intervir no curso da Revoluçã o Francesa
através de um golpe contra o Diretó rio visando realizar uma repú blica
radicalmente igualitá ria. Marx e Engels verã o, nesse caso: “a primeira apariçã o
de um partido comunista realmente ativo”.

A conspiração dos iguais

A Revoluçã o Francesa, depois da vitó ria, é atravessada pelo conflito entre a


grande burguesia e os setores populares, conflito este expresso na polarizaçã o
143
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Discours sur l’origine de l’inégalité, p. 164
144
Idem, p. 171
entre girondinos e jacobinos. Na base desse conflito, encontra-se a emergência
paulatina de uma noçã o de liberdade que se afirma como experiência nã o mais
ligada ao exercício da propriedade.
A segunda constituiçã o revolucioná ria, de 1793, constituiçã o que nunca
entrará em vigor, já que o governo jacobino que virá a seguir será um governo
de estado de exceçã o, apresentará inovaçõ es formais importantes. A primeira
delas, diz respeito a definiçã o dos direitos naturais: “igualdade, liberdade,
segurança, propriedade”. Que a igualdade apareça como um direito natural, eis
algo que deve nos chamar a atençã o. Ela é pensada aqui como condiçã o para a
formaçã o da vontade geral e para a soberania popular. Esse conceito de
soberania popular dá ao povo tanto o poder instituinte quanto o poder
destituinte. Como podemos ver no artigo 28: “ Um povo tem sempre o direito de
rever, reformar e mudar sua Constituiçã o. Uma geraçã o nã o pode assujeitar com
suas leis as geraçõ es futuras”.
Essa força destituinte vem, entre outras coisas, da natureza largamente
indeterminada da noçã o de liberdade. Notemos que, ao invés de definir a
liberdade como o exercício da propriedade que tenho sobre a minha pessoa, o
que seria algo cuja extensã o normativa é relativamente clara, a constituiçã o de
1793 prefere aborda-la a partir de um princípio, ao mesmo tempo, igualitá rio e
indefinido. Como vemos no artigo 6:

A liberdade é o poder pertencente ao homem de fazer tudo o que nã o


interfere no direito do outro. Ela tem por princípio a natureza, por regra a
justiça, por salvaguarda a lei. Seu limite moral está na má xima: nã o faça ao
outro o que nã o queira que seja feito a ti.

Nã o deixa de ser sugestivo uma norma jurídica constitucional que faça


apelo a um preceito moral subjetivo para a definiçã o de seu exercício. Podemos
dizer que isto vem do fato da propriedade e de seu usufruto estar em processo
de limitaçã o normativa de seu exercício. Vejamos, por exemplo, o que diz o artigo
19:

Ninguém pode ser privado da menor porçã o de sua propriedade sem seu
consentimento, salvo quando a necessidade pú blica legalmente
constituída exige e sob condiçã o de uma indenizaçã o justa e prévia.

O apelo ao conceito de “necessidade pú blica”, que se sobrepõ e, ao direito


de usufruto da propriedade, pode parecer que se está a dizer que, em condiçõ es
excepcionais, a preservaçã o do comum se sobrepõ e ao exercício da liberdade.
Mas é pró prio de uma situaçã o revolucioná ria a compreensã o de que situaçõ es
excepcionais sã o a verdadeira regra. Seja porque a revoluçã o precisa lutar contra
inimigos que estã o a todo momento a sua espreita, seja porque ela necessita
debelar algo ainda mais grave e profundo, a saber, a distorçã o social de um
princípio fundamental para a felicidade comum. Os setores mais radicais da
revoluçã o compreenderã o que esta distorçã o social será a pró pria noçã o de
propriedade. É neste ponto que encontramos Graco Babeuf.
O nome de Babeuf ganha importâ ncia apó s a queda do governo jacobino,
em 1795. Neste momento, a reaçã o burguesa procura reinstaurar sua hegemonia
através da instauraçã o do Diretó rio, que suspende tanto a constituiçã o de 1793
quanto vá rias conquistas dos jacobinos. A este respeito, como normalmente se
associa os jacobinos apenas ao momento do terror, valeria a pena lembrar como
só os jacobinos foram sensíveis à escravidã o, já que foi apenas graças a eles que
ela foi abolida. Só os jacobinos recensearam os indigentes e forneceram a todos
eles uma renda vinda dos confiscos de bens dos “traidores da pá tria”. Só eles
organizaram cuidados médicos aos pobres em domicílio.
Babeuf nã o é exatamente um jacobino, pois está disposto a dar um passo
que os jacobinos nã o tentaram, a saber, nã o apenas a igualdade diante da lei, mas
a crítica radical da propriedade como modo de organizaçã o da vida social. Neste
momento, aparece a noçã o de que a liberdade nã o é apenas a igualdade perante a
lei, mas “igualdade real”, o direito mais primitivo que deve fundar a nova
realidade social. Daí a ideia de que: “a Revoluçã o Francesa que a pré-execuçã o de
outra revoluçã o, muito maior”145. Esta revoluçã o nã o tocará apenas o direito de
herança, de alienabilidade da propriedade. Ela nã o apernas denunciará a
“distinçã o de mérito” como uma “loucura assassina”, já que as produçõ es do
gênio e da indú stria do presente sã o, na verdade, uma compensaçã o à s invençõ es
e genialidades precedentes das quais os inventores e gênios do presente se
aproveitaram na vida social. Essa revoluçã o da qual fala Babeuf será fundada no
“bem comum ou na comunidade de bens. Nã o mais propriedade individual de
terra, a terra é de ninguém. Nó s reclamamos, nó s queremos o gozo comum dos
frutos da terra: os frutos sã o de todos”.
Notem aqui a sobreposiçã o significativa entre todos/ninguém. Há um
“ninguém” que é condiçã o para a realidade de “todos”. A terra é de ninguém, o
que significa que há uma dimensã o de impropriedade. Babeuf dirá claramente:
“façam muitos improprietá rios”. O termo nã o existe como tal em francês e em
nenhuma língua latina. Mas sua ideia é clara. Trata-se de reconhecer que vivemos
em um mundo no qual há coisas que nã o estã o submetidas ao regime de posse,
cujo usufruto comum pressupõ e uma disjunçã o radical entre uso e posse. Daí
uma colocaçã o como:

O direito de propriedade! Mas qual é pois esse direito de propriedade!


Entende-se por isso a faculdade ilimitada de dispor da propriedade o
quanto quiser? Se compreendemos assim, digo claramente, entã o estamos
a admitir a lei do mais forte. Ë enganar o voto de associaçã o; é chamar os
homens ao exercício dos direitos da natureza e provocar a dissoluçã o do
corpo político. Se, ao contrá rio, nã o se compreende dessa forma, eu
pergunto qual será pois a medida e o limite desse direito? Pois, afinal, é
necessá rio um. Ou vocês acreditam que esse limite virá da moderaçã o do
proprietá rio? Vocês querem de boa fé a felicidade do povo? Vocês querem
tranquiliza-lo, vocês querem vinculá -lo de maneira indissolú vel ao
sucesso da revoluçã o e ao estabelecimento da repú blica? Vocês querem
cessar as inquietudes e as agitaçõ es intestinas, declarem hoje que a base
da constituiçã o republicana dos franceses será o limite do direito de
propriedade146.

Limitar o direito de propriedade é, neste caso, liberar a dimensã o do impró prio,


do que é objeto de limite a toda possessã o. Babeuf fala de “despropriarizar” a
145
Manifeste des égaux
146
BABEUF; É crits, p. 328
França. Pois é necessá rio “fazer nas coisas a mesma revoluçã o que foi feita nos
espíritos”147.
Eis um ponto central que acaba por tocar em uma das distinçõ es
metafísicas mais bem estabelecidas entre nó s: a distinçã o entre pessoas e coisas.
Pois estamos profundamente colonizados pela ideia lockeana de que o trabalho
produz o direito de possessã o. Aquilo no qual eu trabalho é meu. Um povo, como
um sujeito político coletivo, como um trabalhador coletivo, deveria também
aparecer como o proprietá rio dos objetos nos quais ele trabalha. Seguindo tal
esquema, a emancipaçã o social só poderia se compreender como o ato de tomar
possessã o dos objetos cuja fonte de existência sã o o meu trabalho ou o trabalho
do povo do qual faço parte.
Ou seja, “coisas” aparece aqui como o que está a serviço de “pessoas”,
como o que pode ser submetido a uma relaçã o de propriedade personalizada.
Vemos aqui uma forma de emancipaçã o que nã o escapa da generalizaçã o das
relaçõ es de propriedade e de usufruto conectado à propriedade. Neste sentido,
podemos dizer que apenas em uma sociedade de proprietá rios, em uma
sociedade na qual o estatuto fundamental de membro confunde-se com o
estatuto de proprietá rio, podem existir “coisas”. Nas sociedades nas quais
“pessoas” sã o livres, o preço a pagar por tal liberdade é que as “coisas” estejam
sujeitas à servidã o. Assim, se Sã o Tomas afirmava que “pessoa” era o espaço no
interior do qual a razã o podia expressar o domínio de seus pró prios atos148, como
o autor de seus pró prios atos, nã o sendo levado por outro, é porque, para nó s, as
coisas nã o agem, elas sã o ativadas por nó s.
Mas podemos perguntar, seguindo esta noçã o de que a terra é de
ninguém, de que devemos fazer improprietá rios, se o verdadeiro conceito de
emancipaçã o social nã o seria exatamente a noçã o de uma sociedade de sujeitos
livres, mas uma sociedade de sujeitos e coisas livres. Pois é possível que a
emancipaçã o das coisas seja a primeira condiçã o para a emancipaçã o dos
sujeitos. Estamos a falar de uma sociedade na qual as coisas seriam
inapropriá veis, na qual elas nã o seriam nem propriedade individual nem
propriedade coletiva, mas a expressã o de que vivemos em um circuito de objetos
que nos afetam e nã o nos sã o pró prios. Isto nos mostra como a reconstituiçã o da
biopolítica que nos governa nã o pode se realizar sem começar pela destituiçã o
da centralidade das relaçõ es de propriedade na definiçã o da vida social.
Nesta deposiçã o do meu e o do teu, das pessoas e das coisas, do pró prio e
do impró prio é que se funda a verdadeira revoluçã o capaz de realizar uma
liberdade que nã o é apenas liberdade dos sujeitos, mas constituiçã o de um
mundo livre. Daí uma afirmaçã o como:

Todos os males estã o no auge; eles nã o podem piorar mais: eles só podem
ser consertados por uma convulsã o total! ... Que tudo se confunda entã o!...
que todos os elementos se misturem e se entrechoquem! ... que tudo entre
no caos, e que do caos saia um mundo novo e regenerado. Venhamos,
apó s mil anos, mudar tais leis grosseiras149.

147
Idem, p. 329
148
AQUINO, Tomas; Suma teoló gica, Petró polis: Vozes, 1998, vol. I, Q. 29, art. 1. Para um
desenvolvimento importante deste ponto, ver ESPOSITO, Roberto; Due: la macchina della
teologia politica e il posto del pensiero, Roma: Einaudi, 2013, p. 113
149
BABEUF, idem, p. 337
A igualdade real aparece assim como esse espaço capaz de produzir nã o
exatamente uma homogeneidade absoluta, mas um caos criador, no qual as
hierarquias, os lugares estabelecidos, a distinçõ es grosseiras se misturem e se
entrechoquem. Para Babeuf, essa é a condiçã o real para a liberdade e para a
criaçã o de uma sociedade livre.

Em direção a Marx

Alguém que nã o deixará de ser influenciado pelas açõ es e problemas levantados


pela ala mais radical da Revoluçã o Francesa será Karl Marx. É em Babeuf e nos
ditos enragés que Engels e Marx encontrarã o as fontes do comunismo no interior
da Revoluçã o Francesa, e nã o nos jacobinos. Um dos elementos centrais será a
crítica da propriedade e a defesa da igualdade real.
O recurso a Marx nesse contexto é relevante porque há , em Marx, a junçã o
entre três níveis de exigências que muitos gostariam de dissociar: uma reflexã o
sobre a liberdade e seu exercício, uma reflexã o sobre a emergência de novos
sujeitos políticos e sua força revolucioná ria, uma crítica à vida possível no
interior das sociedades capitalistas e em outros formas sociais incapazes de nã o
se fundar em estruturas de exploraçã o e violência. O que Marx mostrou é como
nenhum destes três níveis de exigência caminham separados.
Que Marx seja um pensador da liberdade e da emancipaçã o, eis algo que
vale sempre a pena lembrar. Sua pergunta fundamental nã o é apenas pelas
condiçõ es sociais para a realizaçã o da liberdade, já que nã o posso ser livre em
uma sociedade nã o-livre, mesmo que acredite que me exilar em minha
interioridade seria possível. A questã o de Marx gira em torno de uma crítica a
outros modelos de liberdade, em especial este no interior do qual liberdade e
propriedade estã o associados. Pois temos a ilusã o de podermos ser livres
quando somos proprietá rios de nó s mesmos, quando possuímos a nó s mesmos. A
base material, jurídica e política das sociedades capitalistas encontra-se na
generalizaçã o da estrutura da propriedade, até mesmo para as relaçõ es a si. Mas
uma liberdade sem possessã o é a ú nica liberdade concreta real, lembrará Marx.
Esta liberdade exige uma transformaçã o radical dos modos de reproduçã o
material da vida. Ela exige que a atividade humana seja liberada da forma do
trabalho produtor de valor, trabalho que faz da atividade uma açã o
unidimensional, disciplinar e alienante. Ela exige que as relaçõ es à natureza
deixem de ser uma possessã o para ser um “metabolismo”. Ela exige que as
relaçõ es humanas nã o sejam mais pensada como relaçõ es entre proprietá rios
que passam entre si contratos. Ao movimento desta transformaçã o, Marx dá um
nome: comunismo.
Esta experiência comunista, experiência da emergência de um comum que
nã o será posse de ninguém exige a reflexã o sobre como sujeitos que nã o tem
mais nada que os vincule à vida mutilada das sociedades capitalistas afirmam seu
desejo de transformaçã o e agem de forma revolucioná ria. Uma revoluçã o nã o
apenas da estrutura do poder e de sua base econô mica, mas da forma do
exercício do poder e de desativaçã o da exploraçã o econô mica. Insisto neste
ponto porque um dos teó ricos fundamentais do pensamento econô mico pensa,
na verdade, como permitir a emergência de uma sociedade pó s-econô mica, para
além das injunçõ es disciplinares que fizeram da economia a verdadeira forma de
produçã o de subjetividades.
A questão judaica

É neste contexto que ganha importâ ncia um dos primeiros textos publicados por
Marx, a saber, Sobre a questão judaica. Trata-se de um texto publicado nos Anais
franco-alemães visando o texto A questão judaica, de Bruno Bauer. Ele deve ser
lido como uma espécie de complemento à s críticas de Marx sobre a possibilidade
de confundir a emancipaçã o humana como emancipaçã o política enquanto
cidadã o do Estado.
Marx parte da proposta de Bruno Bauer, para quem a emancipaçã o
política dos judeus deveria ser feita à condiçã o do abandono de sua religiã o, pois:
“Enquanto o Estado for cristã o e o judeu judaico, ambos serã o igualmente
incapazes tanto de conceder quanto de receber a emancipaçã o”150. Nosso Estado
ainda é cristã o, por isto nã o faz sentido esperar emancipaçã o política no seu
interior, da mesma forma como nã o faria sentido esperar emancipaçã o política
de quem conserva a centralidade de seu envolvimento religioso. Bruno Bauer
exige, pois, que os judeus renunciem ao judaísmo e que o homem em geral
renuncie à religiã o para tornar-se emancipado como cidadã o.
Marx nã o concorda com a soluçã o apresentada por Bauer. Pois ao invés de
se perguntar se os judeus tem o direito à emancipaçã o política, há de se
perguntar se a emancipaçã o política tem o direito de exigir dos judeus a
supressã o do judaísmo e de exigir do homem a supressã o da religiã o. Ou seja, o
primeiro ponto a destacar aqui é a maneira com que Marx lembra que nã o se
coloca uma questã o sobre se uma comunidade específica tem o direito à
emancipaçã o política. De certa forma, a questã o é desprovida de sentido por
naturalizar os pressupostos no qual ela se assenta. A pró pria forma de colocar a
questã o esconde o verdadeiro problema, a saber, se a emancipaçã o política
atualmente configurada é, de fato, uma emancipaçã o humana. Neste sentido, há
de se lembrar que, pensada a emancipaçã o política como cidadania: “a presença
da religiã o nã o contradiz a plenificaçã o do Estado”151. Pois a emancipaçã o política
que conhecemos até agora, através da constituiçã o de um Estado de tolerâ ncia
religiosa, é uma emancipaçã o que, ao menos aos olhos de Marx, merece ser
profundamente criticada.
Esta situaçã o específica é uma ocasiã o para Marx lembrar como a forma
geral de superaçã o das contradiçõ es entre liberdade e restriçã o no interior do
Estado moderno consiste em conservar as restriçõ es através da constituiçã o de
modelos formais de liberdade que escondem novas formas de alienaçã o. Assim:

O limite da emancipaçã o política fica evidente no fato de o Estado ser


capaz de se libertar de uma limitaçã o sem que o homem realmente fique
livre dela, no fato de o Estado ser capaz de ser um Estado livre sem que o
homem seja um homem livre152.

Como cidadã o do Estado, o homem nã o se liberta da religiã o. Ele ganha a


liberdade de ter uma religiã o que lhe seja privada, pró pria. Ele leva assim uma
vida dupla nã o só mentalmente, mas na vida concreta: laico como cidadã o do

150
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, p. 34
151
Idem, p. 38
152
Idem, p. 38
Estado e religioso como membro da sociedade civil, laico como cidadã o e
religioso como indivíduo vivo. Tal reconciliaçã o clivada impede o advento do que
Marx chama de “estado político pleno” no qual seja possível atualizar a essência
humana pensada como “vida do gênero” (Gattungsleben), advindo assim uma
existência real do gênero. Até porque, o verdadeiro Estado cristã o é aquele que
constitui a “religiã o da vida privada” ao apontar à religiã o um lugar entre os
demais elementos da sociedade burguesa. No entanto, Marx insistirá que
emancipar nã o consiste em emancipar politicamente, mas em se emancipar do
modo atual de emancipaçã o política, emancipar das clivagens atualmente
produzidas e geridas pelo Estado.
Antes de tentarmos definir este conceito central de vida do gênero como
horizonte de emancipaçã o e reconhecimento, vamos tentar entender melhor o
que está em jogo neste texto que foi objeto de tanta polêmica. Na verdade, Marx
está a criticar a compreensã o da determinaçã o social da liberdade através da
realizaçã o do homem como indivíduo abstrato. Neste contexto, “abstrato” deve
ser compreendido como: submetido a um modo disciplinar de constituiçã o de si
no qual ele é constituído como indivíduo que tem um conjunto de propriedades
que lhe sã o inerentes e pró prias (sua religiã o, suas tradiçõ es, sua cultura, etc.). A
discussã o da transposiçã o da religiã o, da esfera pú blica para a esfera da
constituiçã o da vida privada, é apenas um modo privilegiado para apreender os
modos de privatizaçã o de si, de constituiçã o de si a partir da produçã o da esfera
do privado, do que me é pró prio, do que é minha predicaçã o. Daí porque Marx
pode fazer aproximaçõ es como:

A diferença entre o homem religioso e o cidadã o é a diferença entre o


mercador e o cidadã o, entre o diarista e o cidadã o, entre o proprietá rio de
terras e o cidadã o. A contradiçã o que se interpõ e entre o homem religioso
e o homem político é a mesma que existe entre o burgeois e o citoyen,
entre o membro da sociedade burguesa e sua pele de leã o político153.

Os exemplos de Marx servem para lembrar que a esfera da liberdade


individual é compreendida como a esfera na qual posso ser respeitado como
proprietá rio. Daí porque ele afirma, em uma colocaçã o decisiva: “A aplicaçã o
prá tica do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à propriedade
privada”154. O que equivale também: a tratar todas as suas expressõ es e
exteriorizaçõ es como o que pode ser submetido à condiçã o de coisa da qual sou
proprietá rio, coisas de uma pessoa. Assim, Marx insistirá , por exemplo, que a
noçã o de liberdade pressuposta pela Declaraçã o dos direitos do homem e do
cidadã o, de 1793, era calcada em larga medida na absolutizaçã o do indivíduo
proprietá rio. Daí uma colocaçã o como:

“o limite dentro do qual um [cidadã o] pode mover-se de modo a não


prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o limite
entre dois terrenos é determinado pelo estaca da cerca. Trata-se da
liberdade do homem como mô nada isolada recolhida dentro de si mesmo

153
Idem, p. 41
154
Idem, p. 49
(…) A aplicaçã o prá tica do direito humano à liberdade equivale ao direito
humano à propriedade privada”155.

A liberdade, para Marx, passa pela liberaçã o do sujeito de sua condiçã o de


indivíduo que se relaciona a outro indivíduo tal como dois terrenos separados
pelo estaca da cerca. O que deixa clara como a propriedade nã o é apenas um
problema econô mico, mas um problema disciplinar de modos de relaçã o à si.

Gattungsleben

É neste contexto que devemos tentar compreender melhor o sentido de


um conceito central para o jovem Marx, a saber, a noçã o de “vida do gênero”
(Gattungsleben). Este é um conceito maior para compreendermos o sentido do
que Marx entende por emancipaçã o e alienaçã o. Vimos como Marx insiste que
um Estado político pleno é aquele no qual seria possível atualizar a essência
humana pensada como “vida do gênero”. Estado no qual os indivíduos nã o sã o
clivados em uma abstraçã o política de cidadã os e a atribuiçã o privada de
predicaçõ es (como ter sua pró pria religiã o), mas no qual tal clivagem é superada
a partir do momento em que os seres humanos podem se encontrar na vida do
gênero. Esta vida nã o é mais uma abstraçã o, como é o caso da abstraçã o do
cidadã o, pois ela é a expressã o da vida em sua condiçã o de nã o apropriada.
Tentemos inicialmente entender melhor este ponto a partir do comentá rio do
seguinte trecho dos Manuscritos econômico-filosóficos:

O animal forma (formiert) apenas segundo a medida e necessidade da


espécie a qual ele pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a
medida de qualquer espécie, e sabe considerar, por toda a parte, a medida
inerente ao objeto; o homem também forma, por isso, segundo as leis da
beleza156.

Esta caracterizaçã o do ser humano como “ser sem espécie definida”, “ser sem
medida adequada”, de onde se segue sua possibilidade de produzir segundo a
medida de qualquer espécie, abre a possibilidade para uma indiferença genérica
em relaçã o à determinaçã o pró pria a toda espécie nas suas relaçõ es de
transformaçã o do meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida inerente
ao pró prio objeto157. Liberado da condiçã o de ser apenas objeto para-um-outro, o
objeto pode ser expressã o daquilo que, no sujeito, nã o se reduz à condiçã o de ser
para-um-outro. Daí porque encontrar a medida inerente ao objeto é, ao mesmo
tempo, superar a alienaçã o do sujeito. E o que, no sujeito, nã o se reduz a tal
condiçã o de ser para-um-outro, é o que nele nã o se configura sob a forma de
espécie alguma, nã o tem imagem de espécie alguma pois é sua “vida do gênero”
(Gattungsleben) que se objetifica no objeto trabalhado. O termo vem de
Feuerbach que, ao procurar estabelecer distinçõ es entre humanidade e
animalidade, dirá que:
155
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.
156
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
157
Não será a última vez que Marx usará a potência de indeterminação do sujeito para construir um
espaço de reconhecimento não-alienado. De certa forma, tal “ser sem espécie definida” adianta, do
ponto de vista ontológico, a “classe dos desprovidos de classe” na qual Marx encontrará o proletariado,
como veremos de maneira mais articulada na terceira parte deste livro.
De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto ele tem
sentimento de si – mas nã o como gênero – por isto, falta-lhe a consciência,
cujo nome deriva de saber. Onde existe consciência existe também a
faculdade para a ciência. A ciência é a consciência dos gêneros. Na vida,
lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser
para o qual seu pró prio gênero, sua quididade, torna-se objeto , pode ter
por objeto outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial
deles 158

No entanto, diferente do que encontramos em Aristó teles, o gênero do


qual o homem faz parte é desprovido de toda e qualquer archai. Por isto, ele nã o
pode constituir uma “natureza humana” como sistema de normas a definir a
orientaçã o da praxis. Um gênero desprovido de archai, sem origem nem destino.
Um gênero sem naturalidade, desapropriado. Mas, e há de se salientar isto com
toda força, esta monstruosidade de um gênero que se objetifica sem ser espécie
alguma definida, gênero que imediatamente se determina e que prenuncia a
produçã o pró pria aos “indivíduos histó rico-universais” de A ideologia alemã, nã o
é simplesmente a afirmaçã o de que o homem só age de maneira nã o alienada
apenas quando age conscientemente como “ser social”, ou seja, reconhecendo
que sua essência, por nã o ser essência natural alguma, só poderia ser sua pró pria
auto-produçã o, ou seja, seu “ser social” genérico e historicamente determinado.
Se assim fosse, a afirmaçã o da vida do gênero nã o seria nada mais que uma
apropriação reflexiva da universalidade situada de minhas condiçõ es histó ricas,
assim como da substâ ncia comum à s relaçõ es intersubjetivas que me
constituíram e que se expressa silenciosamente nos objetos que trabalho. O que
nos levaria a uma especularidade muito bem descrita involuntariamente por
Feuerbach ao falar, nã o por acaso, da especificidade da Gattungsleben humana:

“A bela imagem é contente de si mesma, tem necessariamente alegria de si


mesma, reflete-se necessariamente em si mesma. Vaidade é apenas
quando o homem namora sua pró pria forma individual, mas nã o quando
ele admira a forma humana. Ele deve admirá -la; nã o pode conceber
nenhuma forma mais bela, mais sublime que a humana. Certamente, todo
ser ama a si mesmo, a sua essência, e deve amá -la”159.

A vida do gênero é, nesta leitura, o que permitiria ao ser humano olhar-se no


espelho e nã o ver sua forma individual, mas descobrir a beleza universal da
forma humana, a substancialidade da forma. A analogia é sugestiva e dificilmente
nã o seria atualmente completada com a pergunta: mas o que dizer se
insistíssemos que, ao contrá rio, o ser humano é exatamente este ser que se perde
ao olhar-se no espelho, que estranha sua imagem como quem vê algo prestes a se
deformar, que nã o reconhece sua pró pria imagem por nã o ter uma forma
158
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35
159
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, op. cit., p. 39. Neste sentido, devemos assumir
a crítica de Zizek, para quem “o sujeito tem de reconhecer em sua alienação da substância a separação
da substância de si mesmo. Essa sobreposição é o que se perdeu na lógica feuerbachiano-marxiana da
desalienação na qual o sujeito supera sua alienação reconhecendo-se como o agente ativo que pôs o que
aparece para ele como seu pressuposto substancial” (ZIZEK, Slavoj; Menos de que nada, op. cit., p.
101).
essencial que lhe seja pró pria? O que dizer se aceitarmos que a experiência do
espelho é confrontaçã o com algo do qual nã o nos apropriamos por completo,
mas que nos atravessa produzindo o sentimento de uma profunda
impropriedade?
Esta é apenas uma maneira figurada de afirmar que a universalidade que
passa à existência nã o pode existir como mais uma espécie, nã o pode se
determinar tal como se determinam espécies particulares, como se disséssemos
algo como: “existem cavalos, bois, abelhas e ... animais”. Pois nã o estamos diante
de uma universalidade por partilha de atribuição. De certa forma, “animais” só
podem vir à existência através da desarticulaçã o do campo de determinaçõ es
que permite a organizaçã o das diferenças predicá veis responsá veis pela
particularizaçã o dos existentes. Neste sentido, estamos diante de uma
universalidade por excesso em relação ao espaço de manifestação de
particularidades. Esta é outra maneira de dizer que a universalidade não deve ser
compreendida como determinação normativa capaz de definir, por si só, o sentido
daquilo que ela subsume, mas como a força de descentramento da identidade
autárquica dos particulares160. A universalidade é, neste contexto, apenas a
generalizaçã o da impossibilidade do particular ser idêntico a si mesmo e a
transformaçã o desta impossibilidade em processo de constituiçã o de relaçõ es.
Aceitando tal conceito de universalidade, deveremos dizer que o trabalho que
expressa a “vida do gênero” deve ser compreendido como a fonte inesgotá vel dos
possíveis que passa à existência, mas sem nunca determinar-se por completo em
um valor particular de uso totalmente funcionalizado. Por isto, ela pode
impulsionar os objetos trabalhados a uma processualidade sempre aberta sob a
forma de devir contínuo.

Desenvolvi melhor esta ideia, a propósito da leitura adorniana de Hegel, em SAFATLE, Vladimir:
160

“Os deslocamentos da dialética” In: ADORNO, Theodor; Três estudos sobre Hegel, São Paulo: Unesp,
2013
Arqueologia da liberdade
Aula 9

Na aula de hoje, iniciaremos nosso mó dulo dedicado à noçã o de liberdade como


autonomia. Trata-se de, na verdade, compreender como consolida-se, para nó s, a
definiçã o de que a liberdade está profundamente vinculada a processos de auto-
legislaçã o. Até agora, vimos, a partir a aná lise da filosofia grega, a configuraçã o
de um eixo no interior do qual a liberdade aparece como uma forma de auto-
pertencimento. Posteriormente, vimos como tal auto-pertencimento se desdobra
em propriedade de si, principalmente através da ascensã o do capitalismo como
modo geral de organizaçã o de nossas formas de vida. Na ú ltima aula, foi possível
entrar em contato com algumas modalidades de crítica a tal noçã o de liberdade
como propriedade de si.
Agora, iniciaremos um trajeto composto de dois momentos. Primeiro,
trata-se de compreender a gênese da noçã o de liberdade como auto-legislaçã o.
Isto nos obrigará a voltarmos os olhos à teologia cristã , em especial Agostinho e
os reformadores protestantes. Veremos, posteriormente, como esse tema da
auto-legislaçã o será peça fundamental daquilo que poderíamos chamar de
“dispositivo colonial”. Ou seja, a auto-legislaçã o, com seu horizonte cristã o de
luta interna contra os vínculos aos bens temporá rios em nome da redençã o da
culpabilidade através da graça divina, será elemento decisivo na ló gica da
dominaçã o colonial. Pois para que tal dominaçã o seja moralmente justificada, ela
precisa aparecer como pedra angular do processo civilizató rio. O que, por sua
vez, pressupõ e que povos colonizados e suas culturas precisem ser
compreendidos como expressã o de regressã o e atraso. A medida do atraso será
fornecida pela distâ ncia em relaçã o à realizaçã o institucional da liberdade como
auto-legislaçã o, com sua pressuposiçã o psicoló gica da constituiçã o de uma
subjetividade marcada pela experiência da culpabilidade e da consciência do
pecado original. Ou seja, os povos colonizados nã o sã o efetivamente livres
porque eles nã o sã o cristã os.
Feito isto, nó s analisaremos dois modelos fundamentais de autonomia na
modernidade, a saber, este fornecido por Rousseau e este fornecido por Kant. A
aná lise de Rousseau nos permitirá melhor desdobrar as consequências políticas
da noçã o moderna de autonomia. Já Kant nos permitirá analisarmos melhor sua
configuraçã o moral através da constituiçã o da ruptura na filosofia moral
produzida pela emergência de uma ética deontoló gica, com sua definiçã o
procedural da açã o moral.
No entanto, no mesmo momento histó rico que tal noçã o de autonomia se
desenvolvia, principalmente a partir de sua dimensã o moral, um conceito
relativamente distinto de autonomia emergia no interior do que entendemos
atualmente por “experiência estética”, e é em direçã o a tal debate que
terminaremos o curso com nosso ú ltimo mó dulo. Pois esse conceito de
autonomia que emerge com a construçã o propriamente moderna da experiência
estética, a partir do final do século XVIII e começo do século XIX, nã o estava
fundado na expressã o de relaçõ es de auto-legislaçã o e auto-pertencimento. Na
verdade, ele estava assentado em operaçõ es de abertura a processos de
descentramento e de implicaçã o com objetos e movimentos nã o redutíveis a
predicaçõ es de pertencimento161. Paradoxalmente, havia uma irredutível
dimensã o de heteronomia nessa experiência estética que, a partir do século XIX,
se constituirá como arte autô noma e cuja primeira figura encontraremos no
romantismo. Heteronomia esta vinda da constituiçã o de um campo de implicaçã o
do sujeito com objetos e movimentos que nã o tinham sua forma, que nã o se
configuravam no interior de espaços egologicamente indexados. Por isto, a forma
estética a partir de entã o será o espaço privilegiado de emergência do
fragmentá rio, do involuntá rio, do contingente, da desmesura pró pria ao que
violenta o esquematismo da imaginaçã o (como vemos, nesse caso, nas temá ticas
relativas ao sublime).
No entanto, essa heteronomia produzida pela experiência estética nã o
poderia, de forma alguma, ser compreendida como figura da servidã o. Antes, ela
se configurava como uma experiência social da liberdade de forte cunho crítico
em relaçã o à s possibilidades que foram paulatinamente se configurando no
interior do horizonte normativo das formas de vida pró prias à emergente
sociedade dos indivíduos com seus modos pró prios de determinaçã o. Primeiro,
ela permitia uma crítica à s pressuposiçõ es de identidade que uma liberdade
como auto-legislaçã o necessariamente pressupõ e, com seus problemas para a
configuraçã o dos processos de reconhecimento implicativo com a diferença. Por
isto, ela impedia a reduçã o da liberdade tanto à afirmaçã o da autonomia
individual quanto à integraçã o a um corpo social atual (o que nã o eliminava a
possibilidade de expressar um corpo social por vir). Antes, ela abria espaço à
emergência de figuras da subjetividade nas quais as dimensõ es do inconsciente,
do involuntá rio, do contingente nã o aparecerã o mais como a limitaçã o de minha
liberdade, adiantando um processo que se mostrará fundamental para o
desenvolvimento das estratégias filosó ficas de crítica a partir de entã o. É desta
forma que irá se configurar algo que podemos chamar de “matriz estética da
autonomia” em contraposiçã o à “matriz moral da autonomia”. Terminaremos
nosso curso com tal discussã o.

Retornando a Antígona

Partamos de uma consideraçã o propriamente arqueoló gica, já que este


curso se propõ e a ser uma arqueologia da liberdade. Já foi dito neste curso que a
primeira vez que encontramos o termo “autonomia” é em um texto grego: a peça
de teatro Antígona (línea 917), de Só focles (497/6 - 406/5 a.C.). No texto, o
termo se refere à decisã o de, por vontade pró pria, seguindo a sua pró pria lei,
Antígona entrar viva no interior do Hades, pois ela desobedecera
deliberadamente as leis da pó lis, mesmo sabendo que tal desobediência
significava a morte. Vemos assim como a autonomia aparece enquanto vontade
disposta a nã o levar em conta a integridade física do agente para poder se
realizar. Abre-se aqui a dimensã o pró pria a algo como a “integridade moral”, ou
161
Ver, a este respeito, MENKE, Christoph; Kraft: Eine Grundbegriff ästhetischer Antropologie,
Frankfurt: Suhrkamp, 2008. O modelo de tais processos fora fornecido pela articulaçã o entre
estética e força em HERDER, Johann; “Ü bers Erkennen und Empfinden in der menchlichen Seele”,
In: Theoretische Schriften, Berlin: Holzinger, 2013; alem das discussõ es sobre o sublime em
BURKE, Edmund; A philosophical enquiry into our ideas of the sublime and beautiful, Oxford
University Press, 1990. Ele permanecerá , de certa forma, nas discussõ es modernas, como
podemos ver nas reflexõ es a respeito da força de “estremecimento” (Erschütterung) pró pria à
experiência estética em ADORNO, Theodor; Ästhetische Theorie, Frankfurt: Suhrkamp, 2003.
seja, a decisã o de realizar açõ es que podem, em certas circunstâ ncias, relativizar
até mesmo as exigências pró prias ao princípio de auto-conservaçã o. Esta
vontade que submete outras vontades, aparecendo como um dever
intransponível, dever que permite ao sujeito relativizar as exigências imediatas
de auto-conservaçã o, reaparecerá de maneira decisiva na constituiçã o da noçã o
moderna de autonomia.
Claro que, no caso de Antígona, a vontade que expressa a autonomia nã o
pode ser vista como individual, tal como na versã o moderna de autonomia.
Antes, ela é a expressã o do vínculo do sujeito a uma lei que nã o se confunde com
a lei da pó lis, com suas determinaçõ es contextuais tendo em vista a preservaçã o
do laço social. A lei que Antígona sustenta é, como ela dirá em um importante
momento da tragédia, a “lei dos deuses”, ou seja, lei incondicional capaz de
fundar um dever que é marca de adesã o do sujeito a modelos substancialmente
determinados de açã o, modelos nã o apenas formais, mas que prescrevem
claramente o que deve ser feito, que açã o deve ser realizada, que regra prá tica
deve ser seguida. No caso da tragédia, temos, por exemplo, o dever de prestar o
rito funerá rio a todo e qualquer sujeito. O que leva Antígona a enterrar seu irmã o
Polinices e enfrentar a proibiçã o de Creonte. Daí sua fala central:

Mas Zeus nã o foi o arauto delas [as leis enunciadas por Creonte] para
mim, nem essas leis sã o as ditadas entre os homens pela justiça,
companheira de morada dos deuses infernais; e nã o me pareceu que tuas
determinaçõ es tivessem força para impor aos mortais até a obrigaçã o de
transgredir normas divinas, nã o escritas, inevitá veis; nã o é de hoje, nã o é
de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que
ninguém possa dizer quando surgiram162.

O fundamental, nesta afirmaçã o, é que a açã o nã o é legitimada simplesmente em


nome do vínculo natural ao sangue e do cará ter insubstituível do irmã o, mas
principalmente ela é legítima porque a lei divina entrega, aos membros da
família, a obrigaçã o de realizar o reconhecimento da incondicionalidade da
posição dos sujeitos, para além das determinaçõ es contextuais de açõ es.
Incondicionalidade expressa na obrigaçã o do rito funerá rio. Como dirá Lacan:
“Antígona representa, por sua posiçã o, este limite radical que, para-além de todo
conteú do, para-além de tudo o que Polinices pô de fazer de bem e de mal, de tudo
o que pode lhe ser infligido, mantém o valor ú nico de seu ser”163.
Esta figura da legislaçã o a partir da lei divina estará presente também no
cristianismo, mas em um contexto estruturalmente distinto. Pois se, em
Antígona, a lei divina é reclamada para justificar o vínculo privilegiado a um
objeto empírico, a saber, o corpo morto do irmã o, no cristianismo a lei divina
aparecerá como empuxo radical de transcendência em relaçã o a todos “bens
materiais e temporá rios”, como dirá Agostinho. Devemos estar atentos a maneira
como o cristianismo se constró i a partir de dispositivos e preceitos de controle e
cuidado de si já em circulaçã o no mundo greco-romano. No entanto, tais
dispositivos serã o ressignificados de forma tal a operar no interior de uma ló gica
da submissã o da vontade à consciência da culpa e da falibilidade. Desta forma, a
pró pria noçã o de autonomia ganhará outro sentido e funçã o.
162
SÓ FOCLES, Antígona, op. cit., p. 219.
163
LACAN, Jacques; idem, p. 325.
A teologia da autonomia

Mas gostaria de discutir a relaçã o entre autonomia e teologia cristã de


trá s para frente. Na verdade, gostaria de partir dos reformadores protestantes
para voltar, posteriormente, a uma das bases de seus pressupostos, a saber, a
filosofia de Agostinho.
Primeiro, é certo que tal descolamento em relaçã o ao princípio de auto-
conservaçã o, pró prio a essa noçã o de autonomia, reaparecerá , séculos depois,
nos pressupostos de teses de teó logos protestantes como Martinho Lutero
(1483-1546) e Joã o Calvino (1509-1564). Esta é uma discussã o importante, pois
nã o é completamente verdade que a filosofia moral moderna rompe
radicalmente com horizontes teoló gicos de justificaçã o da açã o, em especial
aqueles presentes na Reforma Protestante. Uma dependência silenciosa
permanecerá .
É lugar comum a afirmaçã o de que o protestantismo foi decisivo para a
constituiçã o da noçã o moderna de indivíduo e de autonomia individual.
Lembremos, por exemplo, de como diversas seitas protestantes entendiam que
cada igreja era particular e deveria se fundar sobre um pacto ou uma aliança na
qual cada membro se engaja a partir de sua vontade pró pria. Ou seja, a igreja é
uma aliança entre fieis, a todo momento renovada. Esta era uma consequência
natural de duas ideias centrais de Lutero: a salvaçã o é dada pela fé (e nã o pelas
obras) e a afirmaçã o da livre interpretaçã o da Bíblia. Assim, Lutero poderá dizer:
“fica evidente que um cristã o é livre de todas as coisas e está acima delas,
portanto, nã o necessita de boas obras para ser justo e bem aventurado, pois a fé
lhe dará tudo em abundâ ncia”164. Notemos como o reformador retoma um tema
filosó fico maior que já vimos desde nosso mó dulo sobre a filosofia grega: a
liberdade como libertaçã o em relaçã o à s determinaçõ es empíricas do mundo (as
obras) e retorno à interioridade (a fé).
Por defender tais posiçõ es, a reforma faz com que a mediaçã o
institucional da Igreja perca importâ ncia, dando força ao exame individual de si e
de suas motivaçõ es. Como percebeu o soció logo Max Weber (1864-1920),
aparece com isto uma interioridade marcada pelo sentimento de forte solidã o
interior do indivíduo. Pois:

No assunto mais decisivo da vida nos tempos da Reforma – a bem-


aventurança eterna - o ser humano se via relegado a traçar sozinho sua
estrada ao encontro do destino fixado desde toda eternidade. Ninguém
podia ajudá -lo165.

No caso do pensamento reformado, em especial no calvinismo, esta


solidã o interior era aumentada devido ao dogma da predestinaçã o. Segundo tal
dogma, os salvos já estã o predestinados por Deus. No entanto, nã o sabemos qual
a vontade divina pois há uma incomensurabilidade entre sua vontade e a ciência
do homem. Se há predestinaçã o, se Deus já decidiu se serei ou nã o salvo antes de
minhas pró prias açõ es, entã o a verdadeira causa ú ltima das minhas açõ es (a

164
LUTERO, Martinho. Da liberdade do cristã o. Trad. Erlon J. Paschoal. Sã o Paulo: Unesp, p. 43
165
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de
Macedo. Sã o Paulo: Companhia das Letras, p. 95
vontade de Deus) nã o é acessível ao meu entendimento. Perspectiva esta que
devemos chamar de “voluntarista” por insistir na incomensurabilidade entre o
entendimento humano e a vontade de Deus. Assim, uma questã o maior
impunha-se a cada fiel individualmente: “Serei eu um dos eleitos? E como eu vou
poder ter certeza dessa eleiçã o?”. A resposta era apenas uma: devemos nos
contentar em tomar conhecimento do decreto divino e perseverar na confiança
em Cristo operada pela verdadeira fé.
Tal perseverança traduzia-se na exigência de uma profunda unidade
coerente das condutas mobilizada pelo exame contínuo de si, pela auto-inspeçã o
sistemá tica em cada instante, além da recorrência compulsiva da certeza
subjetiva da pró pria eleiçã o. Como nã o havia para os protestantes sacramentos
como a confissã o, que servia como reparaçã o de momentos de fraqueza e
leviandade, a pressã o de uma unidade coerente das condutas acabava sendo
entificada em uma vida pensada como sistema:

Nem pensar no vaivém cató lico e autenticamente humano entre pecado,


arrependimento, penitência, alívio e, de novo, pecado, nem pensar
naquela espécie de saldo da vida inteira a ser quitado seja por penas
temporais seja por intermédio da graça eclesial166.

Temos assim uma situaçã o religiosa que produz necessariamente a


experiência da interioridade (apenas a certeza da minha fé individual é o
caminho para minha salvaçã o, apenas eu posso interpretar o sentido da escritura
divina, o tribunal que avalia minhas condutas sou eu mesmo, ele está em mim) e
da unidade coerente das condutas (apenas a perseverança de minha conduta é o
sinal de minha predestinaçã o, eu devo ser tã o regular quanto uma norma). Estas
duas experiências serã o fundamentais para o desenvolvimento da noçã o
moderna de autonomia. Para chegarmos a tal noçã o, basta, principalmente,
recusar a perspectiva voluntarista. É tal incomensurabilidade entre consciência e
causa da açã o que Kant recusa ao constituir sua teoria da autonomia. Pois:

Uma moralidade composta de tirania e servilismo só pode ser evitada se


Deus e o homem formarem uma comunidade moral cujos membros sejam
mutuamente abrangentes por aceitarem os mesmos princípios. Assim, os
oponentes do voluntarismo tinham de mostrar que a moralidade envolve
princípios que sã o vá lidos tanto para Deus quanto para nó s167.

Mas notemos como tal noçã o de autonomia pressupõ e uma clivagem


subjetiva fundamental. Uma das consequências de tal concepçã o clivada da
natureza humana será , assim, a compreensã o do indivíduo como espaço de um
conflito incessante entre vontade autô noma que comanda o dever e desejos
ligados aos impulsos “irracionais” dependentes em relaçã o à natureza. A
temá tica da afirmaçã o dos “motivos constantes da moralidade” contra os
“afetos”, isto a fim de educar o sujeito como uma personalidade, era elemento
fundamental da ascese puritana. Ela permitiu o desenvolvimento de um conceito
de autonomia compreendido como a possibilidade de se agir de outra forma do

166
WEBER, A ética protestante e o espírito do capitalismo, op. cit., p. 107
167
SCHNEEWIND, J. B. A invençã o da autonomia: uma histó ria da filosofia moral moderna. Trad.
Magda França Lopes. Sã o Leopoldo: Editora Unisinos, 2005, pp. 554-555
que se age, já que posso, a todo momento, apoiar-me em meus princípios morais
para me contrapor à s tendências internas aos afetos. O que transforma a
liberdade fundamentalmente em livre-arbítrio, capacidade de deliberaçã o e
escolha a partir de vá rios modelos possíveis de açã o. O resultado, no entanto, nã o
poderá ser muito diferente do que dizia um poema popular da literatura
puritana, Auto-machia, escrito por George Goodwin em 1607:

Eu canto meu Eu, minhas guerras civis internas


As vitó rias que perco e ganho
O duelo diá rio, a luta contínua
A guerra que nunca termina, até o fim de minha vida
E ainda, nã o apenas minha, nã o minha somente,
Mas de todos que, sob o honroso signo
Do estandarte de Cristo, irã o seu nome sustentar
Com votos sagrados de corpo e alma

Tal concepçã o nã o esperou os puritanos para aparecer. Ela pode ser


facilmente identificada nos exercícios espirituais de ascetismo pró prio dos
monges da Idade Média. Ela, por sua vez, é peça fundamental da concepçã o de
livre-arbítrio legada por Agostinho. No entanto, a novidade aqui é que tal guerra
civil interna nã o levava a alguma forma radical de rejeiçã o religiosa do mundo,
de uma figura possível daquilo que o antropó logo Louis Dumont (1911-1998)
chamava de “indivíduo fora do mundo”168. Na verdade, tínhamos, contrariamente
à prá tica monacal, uma forma de estar no mundo onde os ideais ascéticos
podiam guiar até mesmo a vida profissional mundana através, por exemplo, de
uma ética protestante do trabalho. É tica para a qual o trabalho será visto como
vocaçã o ascética, trabalho feito nã o tendo em vistas o acú mulo e fruiçã o de bens,
mas que aparece como resposta a uma vocaçã o que define minha identidade e se
impõ e a mim como dever. Desta forma, as formas da vida, seja na dimensã o do
desejo, seja na dimensã o do trabalho, eram organizadas a partir da necessidade
constante do exame de si, da guerra que só termina com o fim de minha vida e,
com isto, da afirmaçã o da autonomia da vontade.
Notemos ainda como tal clivagem subjetiva permanece como referência
na filosofia moral contemporâ nea. Por exemplo, o filó sofo Harry Frankfurt
(1929-), em um importante texto de filosofia moral, insistirá que uma diferença
essencial entre os seres humanos e outras criaturas seria a existência, nos
primeiros, de “desejos de segundo nível”169. Além de ter desejos e motivar-se, os
seres humanos poderiam também desejar (ou nã o) ter certos desejos e
motivaçõ es, ou seja, terem “desejo de segundo nível”. Desta forma, eles poderiam
desejar ser diferentes do que sã o, usando o que Frankfurt chama de “capacidade
de auto-avaliaçã o reflexiva”.
Mas é possível pensar em ao menos duas formas de desejar ter certo
desejo. Posso querer que este desejo seja um dentre outros desejos que tenho ou
posso querer que ele seja absolutamente determinante na constituiçã o da minha
vontade e da eficiência de minha açã o. Há uma importante diferença de

168
cf. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropoló gica da ideologia moderna.
Trad. Á lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1993
169
cf. FRANKFURT, Harry. “Freedom of the Will and the concept of a person”. In: The Journal of
Philosophy, n. 68, 1971
intensidade aqui. É possível, por exemplo, desejar ter o desejo de se concentrar
no trabalho mas, dependendo da intensidade deste desejo, ele pode perder sua
eficiência e ser anulado por outro desejo mais forte. Quando certo desejo
constitui a vontade, temos nã o apenas um desejo de segundo nível, mas uma
“voliçã o de segundo nível”. Tal capacidade de determinar a vontade através de
uma voliçã o de segundo nível seria o verdadeiro atributo determinante de um
ser dotado de autonomia. Pois é através deste segundo nível que determino se
meus desejos sã o ou nã o desejá veis. Ou seja, percebemos novamente como a
liberdade da vontade consiste em poder desejar outra coisa do que se deseja de
maneira irreflexiva, ou seja, ela aparece como figura do livre-arbítrio.

O livre-arbítrio

Essa compreensã o do livre-arbítrio tem uma matriz que nos leva diretamente a
Agostinho. Tentemos entender este ponto a partir daquilo que, em filosofia,
chamaríamos de “compatibilismo” pró prio à reflexã o de Agostinho sobre a
liberdade. Uma posiçã o compatibilista é aquela que afirma ser, de alguma forma,
compatível determinismo e livre-arbítrio, enquanto incompatibilista afirmará , ao
contrá rio, que a aceitaçã o de alguma forma de determinismo retira por completo
a possibilidade de existência da liberdade.
É claro que isto nos exige definir melhor o que podemos entender, ao
menos neste contexto, por “determinismo”. No caso de Agostinho, a funçã o do
determinismo é preenchida pela presciência divina, ou seja, o fato de deus saber
todas as coisas antes delas acontecerem. O que lhe leva a enunciar:

Convencidos da existência de um Deus supremo e verdadeiro,


confessamos também que possui potestade, vontade e presciências
soberanas. E nã o tememos por isso, fazer sem vontade o que
voluntariamente fazemos, porque de antemã o sabe Ele, cuja presciência
nã o pode enganar-se, o que tem de fazer170.

Ou seja, o fato de Deus saber de antemã o o que ocorrerá , o fato de nada


ocorrer para além da soberania de sua vontade é uma forma de determinismo, de
se estar submetido a uma vontade outra, mas que nã o implica limitaçã o ao livre-
arbítrio humano, nã o coloca limitaçõ es ao cará ter voluntá rio da açã o humana.
Afirmaçã o que, a princípio, poderia parecer colocar, na conta da vontade de
Deus, o pecado e o mal que derivam das escolhas que realizo através de meu
livre-arbítrio. Por que entã o permitir a existência do pecado se nada pode
subsistir fora da vontade divina?
Um eixo fundamental do argumento de Agostinho se encontrará no
primado dado por Agostinho à vontade. Só a vontade pode destronar a alma do
caminho reto. Por outro lado, só através da vontade a boa açã o pode ser boa. Se
nã o houver vontade para o bem, nã o existiria bem. O compatibilismo de
Agostinho se justifica através da afirmaçã o da necessidade da açã o voluntá ria,
caso contrá rio nã o haveria julgamento, responsabilizaçã o ou pecado. O ser
humano tem o poder de se tornar bom através de sua pró pria vontade. Um bem
agir desprovido de vontade nã o pode ser um bem agir, mas apenas uma reaçã o
mecâ nica e externamente determinada:
170
AGOSTINHO; A cidade de Deus, parte I, p. 230
Se o homem carecesse do livre-arbítrio da vontade, como poderia existir
esse bem, que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados
premiando as boas açõ es? Visto que a conduta desse nã o seria pecado
nem boa açã o, caso nã o fosse voluntá ria171.

De fato, só pode haver culpa e pecado se houver vontade, mas


paradoxalmente só pode haver liberdade se houver a possibilidade do pecado,
pois nã o havendo pecado, todas as açõ es humanas sã o igualmente necessá rias.
Nã o sendo a manifestaçã o do querer de Deus, o pecado é um exercício inerente à
liberdade humana. Nã o é possível introduzir o livre-arbítrio sem introduzir a
possibilidade de pecar. O paradoxo é que a possibilidade de perder a liberdade
aparecer como uma contraprova da liberdade. Uma liberdade caracterizada pela
possibilidade da vontade se desviar do bem imutá vel para caminhar em direçã o
ao querer dos bens mutá veis, para caminhar em direçã o a esta libido descrita por
Agostinho como a pior forma de desgoverno:

A libido é tã o forte que nã o apenas domina o corpo inteiro nem só dentro


e fora, mas também põ em em jogo o homem todo, reunindo e misturando
entre si o afeto do â nimo e o apetite carnal, produzindo desse modo a
voluptuosidade, que é o maior dos prazeres corporais. Tanto é assim que
o momento preciso em que voluptuosidade chega ao cú mulo, se ofusca
quase por completo a razã o e surge a treva do pensamento172.

Como vemos, estamos no interior de uma relaçã o política, baseada na relaçã o de


domínio. Aqui fica bastante claro porque a liberdade deve aparecer como uma
relaçã o de auto-legislaçã o. A marca do pecado original se expressa por uma
libido que aparece como força de sediçã o e queda. Sob o pecado, o ser humano
nã o legisla mais a si mesmo. Ao se deixar guiar pela razã o, a vontade é levada
à quilo que nã o é apenas objetos de sentidos corporais, o que implica escapar do
horizonte moral de queda e culpa. Por isto:

Quando a açã o, a mente ou o espírito governa os movimentos irracionais


da alma, é que está a dominar na verdade no homem aquilo que
precisamente deve dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos
como sendo a lei eterna173.

Este governo se torna necessá rio a partir do momento que o pecado


original produz a vergonha de se descobrir atravessado por uma libido que se
manifesta como desobediência. Ela impõ e uma compreensã o da libido nã o
apenas como excesso e a impureza a se regular através de prá ticas de contençã o
visando o fortalecimento de si. Ela é, por um lado, a expressã o da culpabilidade
no interior da vida humana. Mas, principalmente, ela é a marca do involuntá rio
no interior do voluntá rio. Ela é a vontade submetida ao que ofusca quase
completamente a razã o e impõ e as trevas ao pensamento. Essa insubmissã o
expressa no humano a insubmissã o original à lei divina. Deus colocou no humano

171
AGOSTINHO; Do livre-arbítrio, p. 75
172
Idem, A cidade de Deus, XIV, 16, J
173
Idem; Do livre arbítrio, p. 47
a marca dessa insubmissã o primeira para que ela possa ser superada através do
exercício autô nomo da vontade e do governo, para que dessa forma ela nã o mais
ocorra. Como lembrará Foucault:

O homem caído nã o caiu sob uma lei ou uma força que o subjuga
inteiramente: uma cisã o marca sua pró pria vontade que se divide,
retorna-se contra si e escapa ao que ela mesma pode querer. É o princípio,
fundamental em Agostinho da inoboedentia reciproca, da desobediência
em retorno. A revolta no homem reproduz a revolta contra Deus 174.

174
FOUCAULT, Michel; Les aveux de la chair, p. 334
Arqueologia da liberdade
Aula 10

Na aula passada, vimos a emergência de um conceito de autonomia vindo do


pensamento teoló gico cristã o. Ele se consolida como livre-arbítrio e manifesta
uma concepçã o clivada de subjetividade baseada na hierarquia entre formas de
vontade, entre vontade e desejo. Essa clivagem seria, como vimos em Agostinho,
marca de uma concepçã o teoló gica de queda e pecado, pois a insubmissã o da
libido à vontade lembra ao ser humano sua pró pria insubmissã o perante deus,
seu descaminho no mundo, assim como a necessidade de uma forte auto-
legislaçã o com poder de auto-coerçã o.
Na aula de hoje, gostaria de falar um pouco sobre como tal concepçã o
teoló gica de autonomia será politicamente assumida. Mas para tanto gostaria de
começar pela maneira com que tal concepçã o de autonomia será peça
fundamental daquilo que nó s poderíamos chamar de “dispositivo colonial”. Pois
as relaçõ es coloniais nã o sã o apenas relaçõ es de dominaçã o e coerçã o. Para se
consolidarem, elas devem ser relaçõ es de produçã o. Elas devem, de certa forma,
produzir os sujeitos que a elas estã o submetidos. Isto significa que o colonizado
deve ter o colonizador em seu interior, como uma instâ ncia a todo momento lhe
observando. O colonizador deve julga-lo, expor a dependência e atraso do
colonizado, demonstrar como sua concepçã o de si é expressã o de algo que deve
ser superado, que deve ser submetido a um processo de desenvolvimento. E nã o
haveria forma mais perfeita neste sentido do que levar os colonizados a crerem
que, no fundo, eles nã o sã o livres e nunca foram livres. Só haveria uma maneira
possível de ser livre, a saber, ser como o colonizador. Tornar-se o colonizador de
si mesmo.
Pois a liberdade que o colonizado tinha antes da colonizaçã o era uma falsa
liberdade. No má ximo, era alguma forma de licenciosidade ou de liberdade sem
segurança alguma, como se estivéssemos submetidos ao risco da lei do mais
forte. Um forte dispositivo filosó fico-conceitual deverá ser mobilizado para que
esse “processo civilizató rio” seja bem sucedido. Isto é o que permitiu a
antropó logos como David Graeber insistirem que o contato com povos
ameríndios teve influência decisiva na constituiçã o do horizonte conceitual da
filosofia política moderna, que começava a engendrar-se à época: estado de
natureza, origem da desigualdade entre os homens, autonomia sã o apenas alguns
termos cuja configuraçã o no interior do debate europeu é incompreensível se
abstrairmos do fato de que eles eram, em larga medida, respostas e elaboraçõ es a
respeito das críticas feitas por ameríndios à s formas europeias de vida. Críticas
essas que poderiam ser expressamente formuladas ou fruto da mera existência
outra que tais sociedades implicavam. E certamente, para o olhar europeu, as
sociedades que mais pareciam dizer algo a respeito da situaçã o originá ria de
estado de natureza eram aquelas sociedades desprovidas de estado, como as que
encontrá vamos no Brasil e na América do Norte, já que diante de sociedades
como os maias, astecas e incas, os europeus se viam mais pró ximos de uma
estrutura conhecida.
Tomemos, por exemplo, esta explosã o filosó fica de interesse pela
descriçã o do “estado de natureza” a partir do século XVII. Notemos como antes
de Hobbes, Locke, Spinoza, Montesquieu, Rousseau nó s podemos até encontrar
algumas elaboraçõ es sobre o que chamaríamos hoje de “estado de natureza”.
Elas estã o lá em Epicuro, Platã o, mas sã o elaboraçõ es absolutamente regionais
que nã o tem a funçã o pró pria à s teorias do estado de natureza, a saber, legitimar
as formas políticas atuais ou potenciais através de uma descriçã o filosó fico-
antropoló gica da gênese dos laços sociais. Ou seja, o estado de natureza aparece
como fundamento do político.
Nã o será por acaso que muitas descriçõ es do estado de natureza darã o
espaço para consideraçõ es antropoló gicas vindas do contato com o dito Novo
Mundo. Como se a América fornecesse a imagem de uma “humanidade em estado
bruto”175. Tomemos, por exemplo, o que encontramos em Thomas Hobbes. No
seu caso, fica claro como a fundamentaçã o do estado de natureza é, ao mesmo
tempo, psicoló gica e antropoló gica. Por um lado, nã o sendo uma hipó tese
histó rica, o estado de natureza é uma inferência feita a partir da aná lise das
paixõ es atuais. Isto leva Macpherson a afirmar que, longe de ser uma descriçã o
do ser humano primitivo, ou do ser humano aparte de toda característica social
adquirida, o estado de natureza seria: “a abstraçã o ló gica esboçada do
comportamento dos homens na sociedade civilizada” 176. Hobbes pede que
lembremos como “todos os países, embora estejam em paz com seus vizinhos,
ainda assim guardam suas fronteiras com homens armados, suas cidades com
muros e portas, e mantém uma constante vigilâ ncia”. Lembra ainda como os
“particulares nã o viajam sem levar sua espada a seu lado, para se defenderem,
nem dormem sem fecharem – nã o só as portas, para proteçã o de seus
concidadã os – mas até seus cofres e baú s, por temor aos domésticos”177. Mas
notemos um ponto central. A espada que carrego, as trancas na minha porta e em
meus baú s, os muros da cidade na qual habito sã o índices nã o apenas do desejo
excessivo que vem do outro. Eles sã o índices indiretos do excesso do meu
pró prio desejo. Como se Hobbes afirmasse: “olhe para suas trancas e você verá
nã o apenas seu medo em relaçã o ao outro, mas o excesso de seu pró prio desejo
que lhe desampara por querer lhe levar a situaçõ es nas quais imperam a
violência e o descontrole da força”. A retó rica apela aqui a uma universalidade
implicativa.
De toda forma, como nã o se trata de permitir que configuraçõ es atuais
sejam, de maneira indevida, elevadas à condiçã o de invariante ontoló gica, faz-se
absolutamente necessá rio também a produçã o contínua dessas construçõ es
antropoló gicas do exterior caó tico e do passado sem lei. Ou seja, mesmo nã o
sendo uma hipó tese histó rica, nã o há como deixar de recorrer à antropologia
para pensar o estado de natureza. Assim, aparecem construçõ es como esta que
leva Hobbes a acreditar que:

os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceçã o do


governo de pequenas famílias, cuja concó rdia depende da concupiscência

175
GRAEBER, David; La critique indigène, le mythe du progrès et la naissance de la gauche, p. 4
176
MACPHERSON, C.B.; The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke, Oxford
University Press, 1962, p. 26.
177
HOBBES, Thomas; Do cidadão, p. 14.
natural, nã o possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos
dias daquela maneira brutal que antes referi178.

Ou ainda:

sabemos disso também tanto pela experiência das naçõ es selvagens que
existem hoje, como pelas histó rias de nossos ancestrais, os antigos
habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde
encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e
comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela
paz e pela sociedade179.

Este é apenas um exemplo. Poderíamos lembrar aqui também da maneira com


que o continente americano aparece como a prova antropoló gica do estado de
natureza para John Locke. Contrariamente a Hobbes, Locke nã o compreende o
estado de natureza como uma guerra de todos contra todos, mas como o
fundamento social da liberdade. Pois: “nó s nascemos livres, assim como
nascemos racionais”180. Isto significa afirmar que a liberdade, como horizonte de
racionalizaçã o social do ocidente, pode ser também encontrada entre povos nã o-
ocidentais que ainda estariam em um estado anterior ao advento do estado:

Em muitas partes da América nã o há nenhum governo. Há grandes e


aparentes conjecturas, diz Acosta, que tais homens, falando sobre esses
do Peru, nã o tiveram por muito tempo nem reis nem comunidades civis,
mas viveram em tropas, como fazem hoje os Cheriquanas, na Fló rida,
assim como os que vivem no Brasil e em vá rias outras naçõ es que nã o tem
reis, mas que nas ocasiõ es de guerra e paz, escolhem seus capitã es como
querem181.

Esses homens sem reis, parlamentos e outras instituiçõ es políticas desta


natureza, diz Locke, sã o livres e iguais. O que produz um problema político
fundamental, a saber, como justificar a existência do estado e da hierarquia. Pois
diante dessa liberdade suposta, como entã o justificar nosso sistema de governo?
Como vimos anteriormente, ele deverá ser um consentimento visando impedir a
violaçã o da liberdade. No estado de natureza, mesmo sendo senhor absoluto de
sua pró pria pessoa e possessõ es, o gozo deste domínio é incerto e inseguro,
constantemente exposto a invasã o do outro. Ou seja, este estado seria “muito
inseguro”, levando os sujeitos a procurarem a “preservaçã o mú tua de suas vidas,
liberdades e bens”182, ou seja, aquilo que Locke chama de “liberdade”. O estado de
natureza é marcado pela liberdade e insegurança. Nele, todos sã o juízes e
executores, o que marca todo julgamento com a parcialidade e a paixã o. O
governo da Commonwealth, ao contrá rio, pode instaurar um horizonte marcado
pela liberdade e pela segurança, garantindo a avaliaçã o neutra dos conflitos. O
que explica porque é a possibilidade do desregramento da vontade do outro que

178
Idem, p. 110.
179
HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, Sã o Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70
180
LOCKE, John; Segundo tratado do governo, par. 68
181
LOCKE, John; idem, par. 103
182
Idem, p. 350
funda o governo. Locke fala da ambiçã o, da concupiscência que pode quebrar a
harmonia pressuposta no estado de natureza.
Notemos, com isto, a defesa de que a emergência do estado é a marca do
desenvolvimento social e da efetivaçã o concreta da liberdade. Pois sem estado
nã o haveria a impessoalidade da lei vinda da centralizaçã o da decisã o e da
interpretaçã o da lei. É claro que tal compreensã o é uma abstraçã o ideal. Nenhum
estado paira acima dos interesses sociais, como uma força que nã o expressa a
predominâ ncia de forças outras que lhe controlam. Mas é fundamental insistir
que tal teoria tem uma funçã o colonial maior, a saber, constituir a narrativa do
atraso dos povos colonizados e de sua liberdade frá gil, sem garantias
institucionais necessá rias.
De toda forma, notem que Locke se serve do princípio da “igualdade
perante a lei” como expressã o fundamental da justiça social e da liberdade
institucionalmente assegurada. De fato, nã o há a noçã o de “igualdade perante a
lei” entre os ameríndios porque a igualdade nã o é algo que se diz da relaçã o a um
poder soberano, que nã o existe, mas que se diz do modelo mutualista de decisõ es
e deliberaçõ es.

Sociedades sem estado, sociedades de liberdade

Nesse ponto, podemos lembrar de algumas elaboraçõ es fundamentais de um


antropó logo para quem a aná lise da liberdade das sociedades sem estado era um
ponto central: Pierre Clastres. Gostaria de lembrar a vocês algumas elaboraçõ es
de Clastres, presentes principalmente em seu “A sociedade contra o estado”.
Seu livro é a defesa de que tais sociedades nã o estavam em alguma forma
de está gio anterior de desenvolvimento social, devido à inexistência do Estado
ou à inexistência de uma ló gica econô mica de produçã o do excedente. Na
verdade, essas eram sociedades que se organizavam de forma deliberada contra
a possibilidade de emergência do Estado, como forma de preservaçã o de sua
liberdade. Para elas, a emergência do poder centralizado, da figura do Um, da
cristalizaçã o da autoridade em lugares no qual o poder e a força de lei se
encarnam em um ponto, era vista como sua pró pria destruiçã o.
Isto significava que o espaço da chefia, em tais sociedades, nã o se
confundia com o lugar do poder. Como diziam os portugueses: “gente sem fé, sem
lei, sem rei”. A tribo nã o possuía um rei, mas um chefe que nã o era chefe de
Estado. Ou seja, o chefe nã o dispunha de nenhuma autoridade, nenhum poder de
coerçã o, nenhum meio de dar ordem. Como dirá um chefe guerreiro da tribo
abipone:

Os Abipones, por um costume recebido de seus ancestrais, fazem tudo de


acordo com sua vontade e nã o de acordo com a do seu cacique. Cabe a
mim dirigi-los, mas eu nã o poderia prejudicar nenhum dos meus sem
prejudicar a mim mesmo; se eu utilizasse as ordens ou a força com meus
companheiros, logo eles me dariam as costas.

Ou seja, a palavra do chefe nã o tinha força de lei e sua autoridade depende da


boa vontade do grupo, dando ao poder uma certa “fragilidade permanente”. Sua
verdadeira funçã o era procurar, pela palavra e sua força retó rica, apaziguar
conflitos entre sujeitos, famílias, linhagens. Ou seja, a funçã o do chefe é
argumentativa. Ele deve regular divergências através das virtudes de sua
palavra. “Mais do que um juiz que sanciona, ele é um á rbitro que busca
reconciliar”183.
Esta descriçã o converge com aquelas que encontramos nos relatos de
viagens de jesuítas do século XVII a respeito dos povos ameríndios. Tais relatos
diziam coisas, em 1642, como:

Os Neskapi imaginam que eles devem, por direito de nascimento, gozar da


liberdade dos burros selvagens, sem respeitar a quem quer que seja, salvo
quando sintam vontade. Eles me criticaram cem vezes por termos medo
de nossos capitã es, enquanto eles riem e zombam dos seus. Toda a
autoridade de seus chefes está no domínio da língua, pois eles sã o
potentes na medida em que sã o eloquentes, e mesmo se eles morrem de
falar, eles só serã o obedecidos se agradarem aos selvagens184.

Nã o será por outra razã o que jesuítas como Gabriel Segard reconhecerã o que a
capacidade de argumentaçã o média de um membro Wendats (tribo do Quebec)
era maior do que dos franceses. O que nã o deveria nos surpreender já que, como
se tratam de povos submetidos a autoridade nã o-coercitiva, o uso contínuo da
argumentaçã o é traço social trivial. Como disse o padre Lallemant em 1644, a
respeito dos mesmos Wendats do Quebec: “nã o creio que existam pessoas sobre
a terra mais livres que eles”. Pois se tratava de povo que desconhecia a obrigaçã o
de submissã o à autoridade paterna, que nã o tinham sistemas individualizados de
penas. Um crime era pago nã o pelo agente, mas por compensaçõ es feitas por sua
família, clã ou tribo. E o elemento mais impressionante destes relatos era a
honestidade de reconhecer que tais sociedades funcionavam melhor que as
europeias. Nã o é difícil imaginar o tipo de desafio que tais afirmaçõ es colocavam
para a filosofia política europeia e seu desejo de legitimar o que entendemos pela
superioridade do ocidente.
Ou seja, a colocaçã o de Locke a respeito da insegurança reinante em tais
sociedades dificilmente se sustenta. Ao contrá rio, vemos sociedades nas quais a
funçã o efetiva do poder em tempos de paz consiste em dirimir conflitos através
do que chamaríamos, entre nó s, de “argumentaçã o racional”, o que leva outro
antropó logo, David Graeber, a afirmar que estamos diante de sociedades onde
seus membros sã o dotados de grande capacidade de argumentaçã o e
questionamento, ou seja, dotados daquilo que chamaríamos, entre nó s, de
“capacidade crítica”. É isto o que permite Clastres afirmar:

Encontramo-nos entã o confrontados com um enorme conjunto de


sociedades nas quais os detentores do poder sã o de fato destituídos de
poder, onde o político se determina como campo fora de toda coerçã o e de
toda violência, fora de toda subordinaçã o hierá rquica, onde, em uma
palavra, nã o se dá uma relaçã o de comando-obediência185.

De onde se segue que nã o seria evidente que coerçã o e poder político


estariam vinculados em todo e qualquer lugar. Clastres chega a falar desses

183
CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o estado, p. 48
184
Rélations jesuites 6, p. 109
185
Idem, p. 27
sociedades como “sociedades sem conflitos” 186, o que coloca uma série de
problemas a respeito das formas internas de violência de tais sociedades. Pois
compreender que inexiste o poder como coerçã o do estado ou da hierarquia nã o
implica necessariamente que normas sociais se imponham sem restriçõ es
sentidas como fonte de sofrimento, mesmo que tais restriçõ es funcionem de
outra maneira.
Clastres tenta afirmar que se tratam de normas sustentadas pela
sociedade inteira, e nã o por grupos particulares. Sã o normas da pró pria
sociedade, que todos respeitam, nã o imposta por ninguém. Isto lhe leva a
afirmaçã o de que:

o ‘poder’ de um pai sobre seus filhos, na sociedade primitiva, ou de um


marido sobre sua mulher ou suas mulheres, se ele tiver vá rias, nada tem a
ver com aquela relaçã o de poder que digo ser a essência do Estado, da
má quina estatal. O poder de um pai sobre seus filhos nada tem a ver com
o poder de um chefe sobre as pessoas que lhe obedecem, nã o é a mesma
coisa187.

O mínimo que podemos dizer é que tal proposiçã o é dificilmente sustentá vel.
Relaçõ es de poder visam a perpetuaçã o de modelos de reproduçã o social. Nesse
sentido, relaçõ es de gênero e familiares sã o absolutamente integradas ao
processo de funcionamento do poder político. Ainda mais porque nã o admitem
contestaçã o e passam por expressã o da totalidade da sociedade até mesmo para
um antropó logo advertido como Clastres. No entanto, como se trata de criar a
visã o de sociedades sem conflitos, chega-se a essa definiçã o do cará ter nã o-
político do poder paterno e marital.
De toda forma, há de se reconhecer que Clastres é sensível a um ponto
fundamental, a saber, a amplitude da liberdade política de tais sociedades
demonstra a limitaçã o da liberdade política das sociedades ocidentais.

Guerra e fuga

As exceçõ es a esse modo de exercício do poder eram quase sempre


ligadas à guerra. A preparaçã o e a conduçã o de expediçõ es militares eram as
ú nicas circunstâ ncias nas quais o chefe aparecia como aquele que exerce a
autoridade. Por ter a guerra como atividade constante, as sociedades ameríndias
sabem do risco permanente do chefe sair do estreito limite determinado à sua
funçã o. Nesta aná lise, aparece a figura de sociedades com estruturas políticas
extremamente complexas e inventivas. Estruturas que demonstram a
consciência de tendências imanentes à degradaçã o da vida social sob o império.
Por isto, elas desenvolverã o dispositivos para impedir a transcendência do
poder, impedir o princípio de uma autoridade exterior e criadora de sua pró pria
legalidade, como um poder soberano exterior aos seus sujeitos.
Pode-se ter a impressã o de que tais descriçõ es nos trazem a imagem de
sociedades está ticas que só poderiam sair de sua relaçã o de estabilidade por
alguma forma de intervençã o externa. No entanto, temos sociedades assentadas
na luta contínua contra a emergência de um estado que elas pressentem a todo
186
Idem, p. 40
187
Idem, p. 244
momento, de uma pressuposiçã o que pode passar ao ato a qualquer momento.
Lembremos, por exemplo, de Clastres falando sobre o desenvolvimento histó rico
dos Tupi-Guaranis.
Apó s defender a impossibilidade de uma gênese do Estado a partir do
interior das sociedades originá rias ameríndias, Clastres depara-se com o caso
complexo dos Tupi-Guaranis com sua alta taxa de densidade demográ fica e seu
processo de concentraçã o do poder político na chefia. Este prenú ncio do Estado
produz, no entanto, uma sublevaçã o comandada por profetas-críticos das
tendências concentracionistas, cujos efeitos seriam destruidores do poder do
chefe. Ou seja, Clastres insiste em uma clara contradiçã o a animar tal sociedade
que levará ao discurso de profetas que organizarã o “loucas migraçõ es” em
direçã o à Terra sem Mal, em uma linha de fuga para fora da iminência do Estado.
Palavra virulenta que levava os índios à destruiçã o de uma sociedade em vias de
se tornar um Estado :

Eis uma sociedade primitiva que, atravessada, ameaçada pela irresistível


ascensã o da chefia, suscita em si mesma e libera forças capazes, mesmo ao
preço de um quase-suicídio coletivo, de fazer fracassar a dinâ mica da
chefia, de impedir o movimento que poderia levar à transformaçã o dos
chefes em reis portadores de leis188.

Como mostrou de forma magistral Ruy Fausto, essas sociedades sã o


organizadas por um impossível (a constituiçã o do poder do estado) que as
mobilizam continuamente e que pode emergir a qualquer momento 189. Qual o
interesse dessa discussã o antropoló gica para nosso debate sobre a liberdade?
Vemos um modo de liberdade social que parece demonstrar a limitaçã o do
quadro institucional ocidental consolidado exatamente para garantir as
condiçõ es institucionais da liberdade. Como se fossemos obrigados a criar,
através das teorias do estado de natureza, a imagem de uma sociedade que nã o
existe nem nunca existiu, apenas para justificar um “dispositivo colonial” que se
demonstrará inacreditavelmente perene entre nó s e para bloquear o impacto de
descentramento que a “descoberta” de tais sociedades pelos europeus poderia
ter em relaçã o a seus pró prios modos de vida.

Se as sociedades primitivas sã o sociedades sem Estado, nã o é por


incapacidade congênita de atingir a idade adulta que a presença do Estado
marcaria, mas sim pela recusa dessa instituiçã o. Elas ignoram o Estado
porque nã o o querem, a tribo se mantém na disjunçã o chefia e poder
porque nã o quer que o chefe se torne detentor de poder, ela recusa que o
chefe seja chefe. Sociedades da recusa da obediência: tais sã o as
sociedades primitivas190.

Isto nos lembra como a ausência de estado nã o é uma falta, nã o estamos a


ver sociedades na infâ ncia do mundo. Estamos diante de processos políticos
complexos que visam impedir que uma pressuposiçã o passe à posiçã o, que uma
possibilidade sempre inscrita se realize por querer preservar uma experiência

188
CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o estado, Sã o Paulo: Cosac e Naify, 2003, p. 233.
189
FAUSTO, Ruy; Marx: ló gica e política II, p. 197
190
CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violência, p. 154
social de liberdade. A razã o para tanto, ao menos para Clastres, é que a divisã o
política engendra a divisã o econô mica, e nã o o contrá rio como sustenta o
marxismo para o qual o estado é um instrumento de classe. Neste sentido, as
sociedades ameríndias lutam para impedir a consolidaçã o de divisõ es sociais que
serã o a quebra da igualdade e a marca fundamental do fim da liberdade, pois nã o
pode haver liberdade lá onde a sociedade é organizada sob a forma da submissã o
ao poder de um outro.

O que falta à liberdade ameríndia?

Mas se o primeiro passo do “dispositivo colonial” é afirmar que a estrutura social


dos povos ameríndios era marcada pelo atraso, o segundo consistirá a defender
que sua liberdade nã o poderia ser a verdadeira autonomia. Haveria algo de
profundamente falho nela, pois ela nã o poderia ser compreendida como
expressã o do livre arbítrio.
Nó s vimos, na aula passada, como o livre-arbítrio aparecia marcado pela
experiência teoló gica da culpabilidade e da queda. Só há livre-arbítrio porque há
a necessidade de explicar a existência do mal e do pecado sem apelar à vontade
divina, mas à vontade humana e sua pretensa incapacidade de se sobrepor à
rebeldia da libido. A auto-legislaçã o pró pria à autonomia é expressã o do
reconhecimento de uma hierarquia que faz da vontade racional, ou seja, esta que
está mais pró xima da lei divina (ao menos para Agostinho) a força que domina o
que ainda se vincula aos bens temporá rios e ao corpo. Neste sentido, nã o será
estranho encontrar relatos de jesuítas que viveram entre os ameríndios a
afirmar que está vamos diante de uma falsa liberdade:

É , sem dú vida, uma disposiçã o absolutamente contrá ria ao espírito da fé,


que nos obrigam a nos submeter nã o apenas nossa vontade, mas também
nosso espírito e todos os sentimentos do homem a uma potência
desconhecida para nossos sentidos, a uma lei que nã o é terrestre, e que é
inteiramente oposta aos sentimentos e leis da natureza corrompida 191.

A colocaçã o é extremamente relevante para nosso debate. Por desconhecer os


preceitos teoló gicos de uma lei divina que se constró i no distanciamento em
relaçã o aos interesses dos sentidos, na oposiçã o à causalidade da natureza e sua
maneira de afetar nossos corpos, a insubmissã o à autoridade nada tem a ver com
a liberdade. Nã o é possível para um europeu a esta época (talvez apenas Spinoza
faça realmente exceçã o nesse momento) pensar uma liberdade que nã o se funde
na negaçã o da corporeidade. A ausência dessa negaçã o aparece como prova da
ausência de livre-arbítrio. E nã o havendo livre-arbítrio, nã o pode haver liberdade
pois a vontade está completamente submetida aos ditames da inconstâ ncia da
libido e da “natureza corrompida”.
Eduardo Viveiros de Castro tem uma bela explicaçã o para essa forma de
recusar qualquer forma de transcendência em relaçã o à corporeidade. Ele insiste
na existência de um perspectivismo ameríndio, mas um perspectivismo que nada
tem de relativista. Tal perspectivismo está claramente expresso na conhecida
pará bola relatada por Lévi-Strauss em Raça e história. Segundo ela, nas Antilhas,
alguns anos apó s o descobrimento da América, enquanto os espanhó is criavam
191
comissõ es para saber se os indígenas possuíam alma ou nã o, estes submergiam
prisioneiros brancos para saber se seus corpos eram iguais aos deles.
Ou seja, nunca foi questã o, para os ameríndios, de duvidar do fato dos
europeus terem uma alma. Nesta cosmopolítica, todo existente, sejam humanos
ou animais, participa da mesma humanidade. Os animais tem almas como nó s,
mesmo um europeu pode ter alma. O que diferem sã o seus corpos, que
estabelecem perspectivas singulares baseadas em sistemas específicos de
afecçõ es. Assim, uma multiplicidade de corpos pressuporá uma multiplicidade de
perspectivas sob a univocidade de uma mesma humanidade. Contrariamente ao
nosso multiculturalismo, aparece pois um peculiar multinaturalismo no qual
vá rios conceitos de natureza cortam o plano de um mesmo campo da cultura.
Esta univocidade da cultura, tã o estranha a nossa sensibilidade atual que
só saberia ver nisto um narcisismo animista, permite, ao contrá rio, uma
operaçã o generalizada de descentramento. Se a mesma humanidade está
presente nos humano e animais, entã o nada é humano inequivocamente. Ser
humano é, na verdade, estar constantemente fora de si, ser um anti-Narciso, já
que, como dizia Lévi-Strauss: “nada de humano deve ser estranho ao homem”.
Arqueologia da liberdade
Aula 11

“O homem nasceu para a felicidade e para a liberdade e em todos os lugares ele é


escravo e infeliz”192. A frase é de Robespierre, enunciada em um discurso no dia
10 de maio de 1793. Ela claramente retoma uma das primeiras afirmaçõ es do
Contrato Social, de Rousseau: “O homem nasceu livre e em todos os lugares ele
está sob grilhõ es”193. Tal relaçã o nã o era um mero acaso: a influência de
Rousseau sobre os revolucioná rios franceses é conhecida e assumida,
principalmente pelos jacobinos. Saint-Just dirá , por exemplo: “Jean-Jacques
Rousseau era revolucioná rio”.
Este viés rousseauista da Revoluçã o Francesa nã o é apenas uma
referência filosó fica mais ou menos utilizada para legitimar açõ es políticas a
partir de um autor que usa o termo “revoluçã o” normalmente de maneira
pejorativa, como alguma forma de degradaçã o a ser evitada. Ela expressa as
consequência prá ticas de uma modificaçã o estrutural na compreensã o dos
horizontes pró prios à política que tem em Rousseau um momento decisivo. Este
horizonte tem relaçõ es profundas com a generalizaçã o do paradigma da
liberdade como autonomia. Ele ainda implica uma filosofia da histó ria que, ao
mesmo tempo, vê o progresso como queda e vê todo retorno à origem como
impossível. No que a experiência será marcada, ao mesmo tempo, por um tempo
de ruptura e por uma suplementaridade em relaçã o a uma origem perdida, mas
que ainda insiste no interior de nossos horizontes de expectativas.
Sobre a generalizaçã o do paradigma da liberdade como autonomia,
lembremos inicialmente como ela implica a consciência da instauraçã o de um
sujeito político dotado de soberania e cujo nome será “povo”. Há uma instituiçã o
do povo que, ao menos para uma grande parte da sensibilidade do final do século
XVIII, parece só poder se realizar como autonomia política. Temos aqui a
equaçã o da autonomia como emergência do povo à cena do político em uma
situaçã o de ausência de representaçã o e mediaçã o. A autonomia é aquilo que
permite a imanência do povo ao poder, uma imanência que precisa da
construçã o do conceito de vontade geral para ganhar realidade. Vejamos entã o
os passos em direçã o a tal resultado.
Primeiro, lembremos da centralidade e da radicalidade de uma afirmaçã o
como esta de Rousseau, a respeito da instituiçã o das leis:

Este que ousa instituir um povo deve se sentir em estado de mudar, por
assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si
mesmo é um todo perfeito e solitá rio, em parte de um todo maior do qual
tal indivíduo recebe de certa forma sua vida e seu ser; de alterar a
constituiçã o do homem para reforça-la; de substituir uma existência física
e independente que todos recebemos da natureza por uma existência
parcial e moral194.

192
ROBESPIERRE, Maximilian; Pour le bonheur et pour la liberté: discours, p. 8
193
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Du contrat social, Pleiade vol. III, p. 351
194
idem, p. 381
A radicalidade das afirmaçõ es é explícita. Primeiro, notemos como Rousseau
afirma ser um povo o resultado de uma instituiçã o. Ou seja, ele é uma criaçã o,
cria-se um povo através de uma forma de instauraçã o institucional. De certa
forma, é possível dizer que a instituiçã o nã o é uma emanaçã o do povo. Há uma
invençã o política do povo que equivale a uma transformaçã o na pró pria natureza
de cada indivíduo, a uma alteraçã o da constituiçã o humana e à criaçã o de uma
outra forma de existência.
A emergência do povo é uma criaçã o política. Na verdade, é a criaçã o
política por excelência. Ela faz da sociedade nã o uma associaçã o de indivíduos,
como gostariam os pensadores liberais, nem um pacto entre soberano e a
populaçã o que ele governa. Pois a soberania é um pacto que o povo passa
consigo mesmo, nã o com outro. A sociedade será um corpo. Para ser mais
preciso, ela será um corpo político. Este corpo será o suplemento possível a
relaçõ es perdidas no estado de natureza. Ele é um artifício, por isto só poderá ser
fruto de um tempo de ruptura.
Por isto, como veremos, esta invençã o do povo nã o é resultado da simples
recusa do fato natural devido a uma teoria do progresso e da perfectibilidade
humana. Seu tempo nã o é o da ruptura linear. Ela é fruto de um suplemento a
uma perda, de um retorno impossível mas cuja impossibilidade, longe de
paralisar a açã o, é condiçã o para a criaçã o de uma açã o política possível.
Assombrado pelo contato com a liberdade ameríndia, o pensamento de Rousseau
produzirá nã o exatamente alguma forma de “retorno” ao que os europeus
compreendiam como formas arcaicas de vida social, mas uma aceleraçã o em
direçã o à ruptura. Para tanto, o estado de natureza deverá aparecer como
anterior até mesmo à quilo que encontraríamos na América, como inacessível,
mas podendo ser suplementado através da invençã o da autonomia política.
Assim, para entender a estrutura de tal tempo, e por consequência
entender como a noçã o moderna de autonomia encontrará em Rousseau uma de
suas principais fontes, precisamos voltar a sua teoria do estado de natureza e do
processo de alienaçã o vinculado à emergência da socialidade.

Isolamento e compaixão no estado de natureza

Guardemos de confundir o homem selvagem com os homens que temos


diante de nossas olhos. A natureza trata todos os animais abandonados a
seus cuidados com uma predileçã o tal que parece assim mostrar como ela
é ciumenta deste direito195.

Esta é uma das primeiras características do estado de natureza, segundo


Rousseau, a saber, a ausência de falta. Rousseau nã o partilha a visã o do estado de
natureza como estado de penú ria no interior do qual seria necessá rio lutar para
sobreviver, pois estaríamos sempre as voltas com a experiência da finitude da
vida. De certa maneira, nã o seria errado dizer que a experiência da falta é uma
criaçã o da vida social. Se a natureza fornece este horizonte de amparo que dá aos
animais e aos humanos o espaço potencial de realizaçã o de seus desejos e
necessidades, entã o a falta nã o pode ser uma condiçã o contínua de um desejo
que está sempre a procura de novos objetos.
195
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Discours sur l’origine de l’inegalité, in: Oeuvres complètes, La
Pléiade, p. 139
Rousseau traz algo do cinismo grego em sua descriçã o do estado de
natureza, e nã o será por outra razã o que Kant chamará Rousseau de “Dió genes
sutil”. Pois, como vimos, eram os cínicos que definiam a liberdade como uma
liberaçã o em relaçã o à s necessidades socialmente produzidas, a liberdade como
autarkeia, pois quanto menos preciso mais livre sou, menos dependente sou de
artifícios e engenhos para encontrar a satisfaçã o. Retornar a uma certa condiçã o
de animalidade é, de certa forma, o horizonte da realizaçã o da liberdade. Assim:

Nã o é uma grande infelicidade a estes primeiros homens, nem mesmo um


grande obstá culo à conservaçã o, a nudez, a falta de habitaçã o e a privaçã o
de todas essas inutilidades que cremos necessá rias. Se eles nã o tem a pele
aveludada, nã o tem por outro lado nenhuma necessidade disto em países
quentes, além de saberem muito bem, em países frios, apropriar-se destas
das bestas que venceram196.

De fato, há um traço distintivo central entre os humanos em estado de natureza e


estes que fazem parte da vida social, um traço que explica em larga medida como
é possível que a falta nã o seja o princípio regulador da experiência do desejo. Se
o humano pode ser “só , despreocupado (oisif) e sempre vizinho do perigo” sem
que isto seja fonte de ansiedade é porque no estado de natureza nã o se conhece a
propriedade. Nã o temos indivíduos vinculados a propriedades, nem indivíduos
vinculados a necessidade e ao desejo de se fazer reconhecer em suas
propriedades. Os humanos sã o só s, seus encontros sã o intermitentes, suas
preocupaçõ es se vinculam a auto-conservaçã o em um espaço natural vasto no
interior do qual eles estã o em contínua mobilidade. Mas para tanto eles podem
contar com sua força e habilidade. Por isto, os humanos aparecem inicialmente
como nô mades solitá rios, mesmo as sociedades ameríndias nã o seriam mais o
estado de natureza.
Notem que, se em Hobbes, o estado de natureza era composto de
indivíduos em relaçã o de concorrência e violência, era porque os desejos eram
compreendidos inicialmente como miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro,
vejo como o outro deseja para saber como desejar, ou seja, há desde o início uma
certa forma de dependência entre os seres humanos, mas esta racionalidade
mimética nã o se traduz em empatia ou tendência à cooperaçã o. Ela se traduz em
rivalidade e violência direta. É a expressã o do desejo que coloca os indivíduos na
rota de uma luta de vida ou morte. Se este mimetismo pró prio ao desejo se
traduz em rivalidade e nã o em empatia é porque Hobbes naturaliza um modo de
relaçã o à s coisas e a si mesmo que se expressa na forma de relaçõ es de
propriedade. Nã o há uma histó ria da emergência das relaçõ es de propriedade em
Hobbes porque elas sã o naturais, elas estã o lá desde o início da existência
histó rica dos seres humanos.
Nã o há esta dimensã o originariamente mimética do desejo em Rousseau,
assim como nã o há uma naturalidade das relaçõ es de propriedade. Os humanos
nã o conservam, eles consomem. Eles nã o se territorializam, mas estã o em
nomadismo. Estes indivíduos isolados nã o conhecem a desigualdade, a nã o ser
esta produzida pela diferença de idade, de saú de, de força do corpo e de
qualidade da alma, a saber, isto que Rousseau chama de “desigualdade física”.
Mas esta desigualdade física nã o se traduz em “desigualdade política ou moral”.
196
Idem, p. 140
No entanto, mesmo estando em nomadismo, os humanos tem um sentimento que
os vinculam, a saber, a piedade ou a compaixã o. Esta piedade é, principalmente, a
impossibilidade de sustentar uma posiçã o de indiferença em relaçã o ao
sofrimento do outro. Ela nã o é uma forma de prá tica cooperativa, mas regime de
implicaçã o afetiva a partir da identificaçã o do sofrimento, mesmo que seja uma
implicaçã o intermitente. Mesmo sendo isolados, os humanos em estado de
natureza nã o sã o indiferentes a sorte de outros humanos.

História da queda

Mas, sendo assim, poderíamos nos perguntar como se dá a saída do


estado de natureza, o que significa a instauraçã o da vida social. Rousseau se
serve de dois fenô menos para descrever a emergência da vida social e da
corrupçã o desta relaçã o imanente à natureza. O primeiro é aquilo que ele chama
de “faculdade de aperfeiçoamento”. Só os humanos teriam esta faculdade que nos
empurra a um aperfeiçoamento constante, enquanto os animais se
desenvolveriam apenas até os limites de seus pró prios instintos. No entanto, se
na aurora do iluminismo a perfectibilidade era vista como a fonte da criaçã o e
felicidade humana, em Rousseau ela é a causa de todos seus males:

Esta faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todos os males do


homem. É ela que o tira, à força do tempo, desta condiçã o originá ria na
qual corriam dias tranquilos e inocentes. É ela que, fazendo eclodir com os
séculos suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o transforma ao fim e ao
cabo em tirano de si mesmo e da natureza197.

Ou seja, Rousseau fornece aqui alguns dos temas fundadores da crítica do


progresso, pois seu Discurso sobre a origem da desigualdade será uma “histó ria
da civilizaçã o como progresso da negaçã o do dado natural”198. O primeiro destes
temas consiste em dizer que o desenvolvimento nã o era apenas uma forma de
conhecimento da natureza e de si, mas de uma dominaçã o técnica de si e do
mundo que nos distancia, que marca com um véu, esta condiçã o originá ria que
seria o espaço de afirmaçã o da emergência do sentido. O advento da vida social é
algo como uma queda:

Porque o homem é perfectível, nã o cessou de acrescentar suas invençõ es


aos dons da natureza. E desde entã o a histó ria universal, embaraçada pelo
peso continuamente crescente de nossos artifícios e de nosso orgulho,
adquire o andamento de uma queda acelerada na corrupçã o: abrimos os
olhos com horror para um mundo de má scaras e de ilusõ es mortais, e
nada assegura ao observador (ou ao acusador) de que ele pró prio seja
poupado pela doença universal199.

Isto faz da histó ria da técnica a histó ria do afastamento do sentido, uma histó ria
da alienaçã o no sentido mais forte do termo, a saber, tomar-se por um outro,
estar preso ao olhar de um outro.

197
Idem, p. 142
198
STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36
199
Idem, p. 23
Neste ponto, lembremos de outro fenô meno responsá vel pela saída do
estado de natureza, um fenô meno ligado ao exercício da faculdade de
perfectibilidade, a saber, a emergência do trabalho cooperativo. Em Rousseau, o
trabalho cooperativo nã o é fonte de emancipaçã o, mas uma das principais fontes
de alienaçã o. Pois o trabalho cooperativo é expressã o de relaçõ es de
dependência e com tais relaçõ es de dependência aparecem a necessidade do
artifício, da conquista do olhar e da estima do outro:

Enquanto os homens se aplicavam apenas a obras que podiam ser


realizadas por um e a artes que nã o necessitavam do concurso de vá rias
mã os eles viveram livres, saudá veis, bons e felizes tanto quanto podia ser
por sua pró pria natureza e continuaram a gozar entre eles das doçuras de
um comércio independente. Mas desde que um homem teve necessidade
do socorro de outro, desde que se percebeu que seria ú til a um ter
provisõ es para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade foi
introduzida, o trabalho se tornou necessá rio e as vastas florestas se
transformaram em campos rudes que deveriam ser arados com o suor
dos homens e nos quais vimos rapidamente a miséria e a escravidã o
germinar e crescer como musgos200.

A indú stria e o trabalho impõ em um regime de atividade baseado na


cooperaçã o dos esforços, na previsã o e calculo, no acú mulo tendo em vista a luta
prévia contra situaçõ es desfavorá veis no futuro. Desta forma, o trabalho quebra
a imanência à natureza, impondo uma atividade que nã o é mais atividade
imediata. Por outro lado, o estabelecimento de relaçõ es de trabalho e produçã o
se funda em tendências imanentes de exploraçã o e dominaçã o. Pois, com as
relaçõ es de produçã o, nã o estamos apenas a falar do advento da propriedade,
mas principalmente do reconhecimento da importâ ncia da sançã o do outro, a
necessidade de reconhecimento do outro como condiçã o para a justificaçã o de
minha atividade. Isto é indissociá vel, para Rousseau, do advento de um ser-para-
outro que implica perda de si. Assim, Rousseau espera articular de forma
profunda problema moral e problema econô mico.
Em suma, o espaço de reconhecimento social é sempre o espaço da perda
de si, já que o advento da vida social é a alienaçã o da potência normativa da
origem, isto devido à indissociabilidade entre vida social e propriedade. A vida
social implica dependência e esta dependência leva os homens a garantir a
estima dos outros, a cultivar a aparência e a sempre preocupar-se com ela. Eles
se tornam entã o: “enganadores e artificiais”201 ao submeterem seus desejos a
demandas de reconhecimento. Notemos como Rousseau descreve a emergência
do desejo de reconhecimento:

Nó s nos acostumamos a nos juntar diante de cabanas ou em volta de uma


grande á rvore. O canto e a dança, verdadeiras crianças do amor e do lazer,
transformaram-se no divertimento ou ainda na ocupaçã o dos homens e
mulheres despreocupados e congregados. Cada um começou a olhar os
outros e a querer ser olhado por eles, e a estima pú blica teve um preço.
Este que cantava ou dançava melhor, o mais bonito, o mais forte, o mais
200
ROUSSEAU, Idem, p. 171
201
Idem, p.173
eloquente se transformou no mais considerado e este foi o primeiro passo
para a desigualdade e, ao mesmo tempo, o primeiro passo em direçã o ao
vício202.

Fica claro assim como Rousseau nã o distingue demandas de


reconhecimento e processos de alienaçã o. Pois o estabelecimento de relaçõ es
sociais nã o é compreendido como constituiçã o de um campo mó vel de
incorporaçã o das singularidades. As relaçõ es sociais sã o solidá rias de dinâ micas
de alienaçã o e contra tal sofrimento social haveria de se retornar à
normatividade natural, se isto fosse possível. As modificaçõ es implicativas
produzidas pelas demandas de reconhecimento sã o sempre compreendidas por
Rousseau como alienaçã o na dimensã o da aparência, o olhar do outro nã o é a
confirmaçã o de si, mas uma forma de aprisionamento. Pois nã o é através do
reconhecimento que o humano realizaria sua essência, mas através do retorno à
voz da natureza, o que só é possível ainda na dimensã o da experiência estética e,
em especial, da expressã o musical.
Isto é resultado direto do ponto de partida de Rousseau. Rousseau aceita
que a célula elementar da vida social sã o os indivíduos, no seu caso, indivíduos
em relaçã o de imanência à natureza. Ou seja, temos primeiro indivíduos isolados
e, em um segundo momento, o artifício da criaçã o de relaçõ es. Neste sentido, a
liberdade natural implica certo modo de relaçã o a si que podemos descrever
como “relaçõ es de auto-pertencimento”, relaçõ es nas quais afirmamos o fato de
se pertencer apenas a si mesmo, o que a vida social nã o pode realizar. No
má ximo, a vida social pode construir uma forma compensató ria de autonomia
baseada na emergência de uma vontade geral. É desta forma compensató ria que
fala O contrato social.

Um corpo político

Rousseau fala da emergência de um corpo político, mas de um corpo que nã o tem


a configuraçã o de um Leviatã no qual o poder soberano se concentra, de maneira
indivisível, nas mã os do detentor do poder executivo. Há uma soberania a animar
o corpo político de Rousseau, mas se trata de uma soberania popular que tem no
espaço da assembleia popular sua expressã o má xima. Esta assembleia é
expressã o de um princípio de igualdade moral ou política fundamental. Desta
forma, Rousseau espera poder instaurar uma totalidade social baseada na
igualdade como virtude que modera os apetites e nos afasta do cará ter egoísta
dos interesses. Como vimos, este corpo político é uma espécie de suplemento a
um outro corpo perdido, a saber, a natureza como uma espécie de corpo nô made
no qual os indivíduos podiam circular em imanência.
Lembremos inicialmente como a condiçã o fundamental para o advento de
um corpo político soberano é a emergência da vontade geral. A vontade geral nã o
é a somató ria de vontades particulares, ou seja, um vontade de todos. Ela é a
expressã o de um desejo de liberdade e de igualdade baseado, inicialmente, na
ideia de auto-legislaçã o. A alienaçã o dos interesses particulares na vontade geral
permite a constituiçã o de um Eu comum, de um corpo político unitá rio capaz de
defender e proteger a pessoa e seus bens. Defender nã o apenas do outro, mas
principalmente defender-se do pró prio poder, defender-se dos efeitos de
202
Idem, p. 169
usurpaçã o do poder quando alienamos a soberania popular a um outro, seja ele
um príncipe, seja qualquer forma de representante. Por isto, Rousseau dirá que o
povo nã o obedece a um soberano, ele nã o passa alguma espécie de contrato com
ele. Na verdade, o povo se manifesta através do exercício da soberania. Ele pode
derrubar governos, ele deve ratificar leis, ele se reú ne em assembleia, ele nã o
tem representantes. Nenhum deputado ou príncipe representa o povo, pois a
soberania nã o é algo que possa ser representado sem ser perdido. Neste sentido,
deputados e príncipes sã o apenas “comissá rios” do povo.
O verdadeiro soberano é assim o corpo composto pelos particulares que
lhe formam e que se associam a fim de garantir a liberdade civil. Pois: “o que o
homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado
a tudo o que lhe tenta e que ele pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil
e a propriedade de tudo o que ele possui” 203. Notemos a estrutura da retó rica de
Rousseau. Sabendo que nã o mais é possível fazer apelo a uma relaçã o à physis
soterrada pelo processo civilizacional, Rousseau quer realizar uma liberdade que
ainda signifique pertencimento de si apelando a uma ló gica pró pria à s
individualidades proprietá rias: veja quanto se perde e quanto se ganha;
deixamos o cará ter ilimitado do desejo, mas ganhamos a segurança da
propriedade. Daí porque Hegel dirá , a respeito de Rousseau:

No entanto, como ele apreendeu a vontade em sua forma determinada


como vontade singular (como fez posteriormente Fichte) e como ele
apreendeu a vontade geral nã o como o que a vontade tem de racional em
si e para si, mas apenas como o elemento comum que surge desta vontade
singular enquanto consciente, a reuniã o dos indivíduos singulares no
Estado se transforma em um contrato204.

Hegel critica Rousseau por pensar a vontade a partir da noçã o de vontade


individual, vontade que, ao menos em sua perspectiva, nã o advém exatamente
vontade geral, mas vontade comum, ou seja, associaçã o de diversas vontades que
nã o desejam um objeto universal, mas que desejam as condiçõ es para a
afirmaçã o de seus sistemas particulares de interesses 205. De fato, como nos
lembra Gérard Lebrun ao insistir na “raiz ultra-individualista do contrato”, no
momento do Contrato social, o homem é ainda “aquele que olha para si mesmo”.
Seu desejo de adquirir a liberdade civil provém de uma reivindicaçã o que nasce
no nível da sua independência natural. Sua entrada na uniã o civil é feita
unicamente em nome de seu amor por si mesmo. Ou seja, as condiçõ es de
estabelecimento do contrato social nã o sã o recuperaçõ es da natureza reprimida,
mas regulaçã o da vida social a partir da realidade de uma alienaçã o de base.
Notemos ainda que este desejo de liberdade civil é também desejo de liberdade
203
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, p. 364
204
Idem,
205
Isto talvez nos explique porque, na justificaçã o do contrato social: “a linguagem de Rousseau
com freqü ência é tã o abertamente utilitarista quanto a de Hobbes. Isto é o que você perde, mas
avalie, em compensaçã o, o que você ganha” (LEBRUN, Gerard; “Contrato social ou negó cio de
otá rio?” In: A filosofia e sua história, Sã o Paulo: Cosac e Naify, 2006, p. 226). Por isto, se aceitamos
entrar no contrato social: “é por ter lido, no segundo livro, que as “pessoas privadas” que
compõ em a “pessoa pú blica” permanecem “naturalmente independentes dela”, que elas
continuam portanto a desfrutar um direito natural enquanto homens e que “o Soberano nã o pode
infligir aos sú ditos nenhuma que seja inú til à comunidade” (idem, p. 230).
moral, de auto-legislaçã o, já que vem de Rousseau a ideia de que liberdade é dar
para si mesmo sua pró pria lei.
No entanto, há de se conceder a Rousseau a crença em uma espécie de
revoluçã o. A instauraçã o da vontade geral é fruto do desejo de ser parte de um
corpo político, mas este desejo nã o é fruto apenas do medo da despossessã o,
como podemos encontrar em Hobbes. Ele nã o é fruto simplesmente da procura
por segurança, mesmo que Rousseau mobilize tais argumentos por consciência
de estar a falar com indivíduos alienados que precisarã o ser também tocados em
seus interesses individuais a fim de assumir a transformaçã o de seus interesses
individuais em vontade geral. Na verdade, o desejo de ser um corpo político é,
acima de tudo, fruto do desejo de igualdade que pulsa como natureza primeira
do humano. Em estado de natureza, os humanos sã o iguais, sua diferença é
meramente física e, por isto, profundamente limitada. Por serem iguais, eles nã o
se submetem uns aos outro, eles sã o livres. O corpo político é o suplemento que
permite a produçã o de uma igualdade social que ressoa a igualdade natural.
“Querem dar ao estado consistência?”, dirá Rousseau “aproximem os graus
extremos o má ximo possível: que nã o sofram nem de pessoas opulentas nem de
mendigos”206.
Este desejo de igualdade transmuta o sistema de interesses em vontade.
Mas só ele cria a verdadeira autonomia enquanto auto-legislaçã o. Daí porque:
“melhor o estado é constituído, mais as questõ es pú blicas sobrepõ em-se à s
privadas no espírito dos homens”207. Pois ele nos abre a estrutura de motivaçõ es
que nã o sã o a expressã o de uma natureza degradada sob a forma do egoísmo, da
concorrência e do medo. Em Rousseau, tal vontade autô noma nã o é expressã o de
um conflito com a voz da natureza em nó s, como vimos em Agostinho, mas é
condiçã o para que a cristalizaçã o de uma falsa natureza seja deposta.
Tal vontade será o predicado fundador da humanidade do humano, isto a
ponto dela ser inaliená vel. Por isto, nã o é possível representar a vontade, nã o há
governo a partir da representaçã o. Quando um povo se dá representantes ele nã o
é mais livre, ele deixa de ser um povo:

A soberania nã o pode ser representada, pela mesma razã o que ela nã o


pode ser alienada. Ela consiste essencialmente na vontade geral, e a
vontade nã o se representa: ela é a mesma ou ela é outra, nã o há meio
termo208.

Neste ponto, fica claro como o povo é simplesmente o nome que damos
para a imanência da vontade consigo mesma no interior de um corpo. Já a
metá fora do corpo político é instrutiva neste contexto. Um corpo nunca é “meu”
no sentido que posso dizer que esta cadeira é minha o que este terreno é meu.
Um corpo nã o se submete à minha vontade como esta cadeira se submete
enquanto objeto. Mesmo sendo espaço da minha subjetividade, um corpo sempre
me faz me confrontar com o que nã o controlo e com o que me constitui sem me
ser imediatamente pró prio. No entanto, esta exterioridade do corpo ao sistema
de afirmaçõ es individuais é a instituiçã o da aderência a uma generalidade que

206
ROUSSEAU; Du contrat social, op. cit., p. 392
207
ROUSSEAU; Du contrat social, p. 429
208
Idem, p. 429
constitui outra forma de existência. Existir como um corpo é sempre existir como
mais do que mim mesmo.

Música e reconhecimento

Mas voltemos a afirmaçã o que abriu esta aula:

Este que ousa empreender a instituiçã o de um povo deve se sentir em


estado de mudar, por assim dizer, a natureza humana; de transformar
cada individuo que, por si mesmo, é um todo perfeito e solitá rio em parte
de um todo maior do qual os indivíduos receberã o de certa maneira sua
vida e seu ser; de substituir uma existência física e independente que
todos nó s recebemos da natureza por uma existência parcial e moral209.

O que acontece com esta natureza humana deixada para trá s? Ela ainda
terá alguma força de implicar o campo de experiência humana? Pois podemos
nos perguntar se esta transformaçã o produzida pelo legislador, se esta mudança
da pró pria natureza humana nã o seria sem produzir uma certa nostalgia social. A
vida política parece nã o poder dar conta desta nostalgia. No má ximo, ela
transmuta a experiência de auto-pertencimento pró pria ao estado de natureza
em desejo de igualdade (forma ú nica de impedir a servidã o) e de autonomia. Por
isto, em algum nível, ela ainda fala aos humanos como indivíduos marcados pela
experiência da individualidade possessiva.
No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz
da natureza, no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma
linguagem de pura presença. A política procura uma linguagem da pura
presença, ela procura dar à voz sua força de direito. Tal linguagem, Rousseau a
encontra na mú sica e no uso da mú sica como paradigma para a reinstauraçã o da
ordem social.
A fim de compreender a configuraçã o do paradigma musical em Rousseau,
lembremo-nos do sentido de uma das querelas mais importantes das quais ele
participou, a saber, a chamada querela dos bufõ es. Grosso modo, trata-se de uma
contraposiçã o entre, de um lado, uma noçã o de modernidade musical vinculada
ao primado da harmonia e das regras estritas de uma progressã o harmô nica
derivada da teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas para uma
polifonia contrapontística controlada pelo centro harmô nico e para uma
definiçã o de estruturaçã o da forma musical absolutamente autô noma em relaçã o
a tudo o que seria extra-musical (Jean-Phillipe Rameau); de outro, uma reaçã o
que insistia no primado da melodia e da simplicidade monofô nica inspirada no
canto.
Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da
melodia, sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo
que nã o se refere aos modos de imitaçã o no interior da vida social, mas no
vínculo exterior entre sociedade e natureza. Vínculo que se faz sentir na relaçã o
entre mú sica e a expressã o natural da linguagem com suas entonaçõ es e acentos.
Isto o permitia vincular a mú sica à uma pedagogia da arte capaz de servir de
veículo de formaçã o moral por recuperar o vínculo entre natureza e cultura.
Lembremos do que diz Rousseau :
209
Idem, p. 381
Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma
mú sica e um canto, os europeus sã o os ú nicos que têm uma harmonia,
acordes, achando esta mistura agradá vel ; quando pensamos que o modo
durou tantos séculos sem que, em todas as naçõ es que cultivaram as
belas-artes, nenhuma tenha conhecido esta harmonia, que nenhum
animal ou pá ssaro, nenhum ser na natureza produziu outro acorde que o
uníssono ou outra mú sica que a melodia ; que as línguas orientais, tã o
sonoras, tã o musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram estes
povos voluptosos e apaixonados em direçã o à nossa harmonia ; que sem
ela suas mú sicas tiveram efeitos tã o prodigiosos ; que com ela a nossa
tenha efeitos tã o fracos ; que, enfim, estava reservado aos povos do norte,
cujos ó rgã os duros e grosseiros sã o mais tocados pelos ruídos e explosõ es
de vozes do que pela doçura dos acentos e melodias das inflexõ es,
fazerem esta grande descoberta e definí-la como princípio a todas regras
da arte ; quando, digo eu, levamos tudo isto em consideraçã o, é muito
difícil nã o desconfiar que toda nossa harmonia é uma invençã o gó tica e
bá rbara a respeito da qual nunca seríamos avisados se fô ssemos mais
sensíveis as verdadeiras belezas da arte e à mú sica realmente natural 210.

A discussã o de Rousseau vincula a expressã o musical à “voz da natureza” que se


expressa sem afetaçã o através da objetividade pró pria à entonaçã o e aos acentos
da fala comum. O que explica porque Rousseau insistirá no canto (raiz de toda
fala) como fundamento da expressã o musical. Esta expressã o musical pró xima da
fala instaura, por sua vez, um regime de presença garantido pela partilha de um
fundamento ancorado no seio da natureza, pensada aqui como polo positivo
doador de sentido, como transparência e proximidade.
Tal proximidade, e este ponto é decisivo, teria a força de instaurar um
espaço político comum baseado na autenticidade dos costumes e na limitaçã o da
disseminaçã o da representaçã o devido ao ideal estético de clareza. Esse
naturalismo musical, que submete a mú sica ao “prazer moral da imitaçã o” 211
enquanto sonha com o advento de uma comunidade política por vir (ou seja, há
uma submissã o completa entre mú sica e moral em Rousseau, tal como houvera
antes em Platã o), faz da expressã o do compositor o uso consciente de efeitos
objetivamente determinados.
Notemos como a crítica da alienaçã o em Rousseau serve-se da mú sica
como horizonte de reconstruçã o da capacidade instauradora da linguagem e
recuperaçã o de dimensõ es sociais de autenticidade. Rousseau é consciente de
que a alienaçã o social é indissociá vel da degradaçã o da linguagem no espaço
político. Lembremos de como termina seu Ensaio sobre a origem das línguas:
“toda língua com a qual nã o nos fazemos escutar pelo povo em assembleia é uma
língua servil; é impossível que o povo seja livre e fale uma língua destas” 212. Uma
língua que o povo em assembleia nã o escuta é aquela desprovida de eloquência,
afastada da persuasã o por separar o povo, por ser apenas uma fala em nome
pró prio, reduzida a sua condiçã o instrumental de descriçã o de interesses. “A
primeira má xima da política moderna”, dirá Rousseau, é: “os sujeitos devem

210
ROUSSEAU, Dictionnaire de musique
211
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208
212
Idem, Essai sur l’origine des langues,
permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensã o instrumental e
comunicacional que os separa. Lembremos do que diz Rousseau: “as
necessidades ditaram os primeiros gestos e as paixõ es arrancaram as primeiras
palavras”213. Ou seja, a fala que expressa apenas sistemas de necessidades é uma
fala muda, mais pró xima da pura gestualidade. Ela separa os humanos pois os
coloca em relaçã o de concorrência e de defesa. Mas:

a força da linguagem nã o reside no poder de fornecer imagens das coisas,


mas no poder de pô r a alma em movimento, de colocá -la numa disposiçã o
que torne visível a ordem da natureza. A linguagem imita a natureza
quando colabora com a ordem, quando restitui, no interior da
humanidade, a ordem que seu nascimento tinha contribuído para
apagar”214.

As paixõ es, por sua vez, sã o implicativas. Elas nunca dizem respeito apenas a
um, elas mudam o outro quando enunciadas. Por isto, a linguagem das paixõ es é
aquela que realmente produz laços. A língua do povo em assembleia é aquela
mais pró xima do canto, da poesia e da mú sica. De certa forma, para Rousseau,
não há assembleia sem música e poesia. Pois o estar em assembleia nã o é apenas o
ato de estar em um mesmo espaço e de procurar um consenso entre interesses
distintos. Estar em assembleia é o ato de falar outra língua, estranha à língua dos
interesses e das estratégias. Por isto, as verdadeiras assembleias sã o algo raro.
Faz parte do poder nã o exatamente mobilizar por paixõ es, e sempre será
o mais profundo dos enganos imaginar que o poder mobiliza uma linguagem das
paixõ es. Na verdade, ele sempre irá procurar esvaziar a língua de sua força de
expressã o, fazer dela ou o mero espaço de descriçã o desafetada ou o mero
espaço de afirmaçã o de minhas propriedades, daquilo que me separa de outros
sujeitos. Por isto, a primeira revolta sempre será uma revolta da linguagem
contra sua degradaçã o, uma procura da linguagem em parar um processo
descrito por Rousseau da seguinte forma:

A medida que as necessidades crescem, que os negó cios se confundem,


que as luzem se estendem a linguagem muda de cará ter, ela se torna mais
ajustada e menos apaixonada; ela substitui os sentimentos por ideias, ela
nã o fala mais ao coraçã o, mas à razã o. Por isto, o acento se apaga, a
articulaçã o se estende, a língua se torna mais exata, mais clara, mas mais
surda e fria215.

A recuperaçã o da força expressiva da linguagem é assim a condiçã o para a


política pois ela permite a emergência da proximidade e o fim da separaçã o.
Neste sentido, podemos dizer que a forma fundamental de sujeiçã o é a
eliminaçã o da força expressiva da linguagem. Pois o progresso natural das
“línguas letradas” consiste em perder a força a fim de ganhar clareza, o que só
pode significar para Rousseau uma forma de sujeiçã o.

213
ROUSEEAU; Idem, p. 380
214
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 161
215
ROUSSEAU; Idem, p. 384
Arqueologia da liberdade
Aula 12

Na aula de hoje, iremos analisar a consolidação da autonomia moral através de Kant.


O papel de Kant é fundamental nessa consolidação, já que será ele o responsável por
dar à forma da liberdade como auto-legislação a figura de uma disposição moral
secularizada, cortando as raízes que ainda permaneciam da matriz teológica da
autonomia. Quase todos os temas desta matriz teológica da autonomia estão presentes
em Kant, a saber, a clivagem subjetiva entre vontade e desejo, a tópica do amor à Lei
que determina minha destinação moral superior, o caráter sublime da Lei moral. No
entanto, modifica-se a exterioridade da Lei, que não está mais fundada no horizonte
da vontade divina, mas na capacidade de auto-determinação do ser humano.
Tal auto-determinação se exerce através de um modelo de liberdade expresso
através do dever. A centralidade da noção de dever como fundamento para a
liberdade, e não como limitação para a liberdade é uma operação moderna
fundamental e expressa um dos eixos maiores do conceito de autonomia. Ela resulta
da afirmação de que liberdade e obrigações vinculantes não são opostos, mas a mesma
coisa. Lei auto-imposta e liberdade seriam a mesma coisa, o que só pode mesmo ser
compreendido quando retornamos à matriz teológica da Lei como forma de liberação
em relação à libido. No entanto, este tema se modifica em Kant. Não se tratará
diretamente da luta contra a heteronomia imposta pela libido, embora o tema esteja
presente. Trata-se da recusa em aceitar uma perspectiva utilitarista própria à
emergente sociedade dos indivíduos.
De fato, todo organismo age operando escolhas a partir de normatividades
capazes de definir valores. No entanto, apenas os seres humanos conheceriam
deveres. Isto se explica por haver um modelo específico de funcionamento da norma
próprio à maneira moderna de definir o que é o dever. Primeiramente, na filosofia
moral kantiana, o dever é indissociável de uma divisão. Apoiando-se no dever, posso
tomar distância de minhas próprias ações, descrevendo-as como se estivesse diante de
um objeto na terceira pessoa. Posso operar uma divisão subjetiva na qual sou uma
espécie de juiz de mim mesmo, dividindo-me entre uma consciência que julga e uma
consciência que é julgada. Divisão que, por sua vez, se apoia no uso extensivo de
vocabulário jurídico, como nos mostra a metáfora da consciência moral como um
tribunal.
Mas a partir de quais valores opera esta consciência que julga tendo como base
a noção de dever? Eis um ponto importante: a vontade que ama o dever é uma
vontade que quer uma determinada forma de julgar. Assim, se todo organismo age a
partir de normatividades capazes de definir valores, só os seres humanos poderiam
agir tendo em vista a realização de procedimentos formais que não são encontrados na
natureza. Tal caracterização do dever a partir de um conjunto limitado de
procedimentos formais é uma das grandes peculiaridades de certa tradição
hegemônica da filosofia moral moderna, tradição deontológica que tem Kant o nome
principal.
Chamemos de “estratégia procedural” tal modelo de definição do dever, pois
ela se funda na determinação de um conjunto limitado de procedimentos formais que,
por si só, seriam capazes de definir o que devo ou não fazer. Tal estratégia procedural
tinha duas grandes finalidades. Primeiro, ela visava fornecer as bases práticas para a
emancipação da capacidade reflexiva do indivíduo moderno em relação à
normatividade dos laços comunitaristas. Há assim um problema político na base dessa
noção moral. Pois, contra certas tendências que definiam o dever a partir da
necessidade de internalizar hábitos, crenças e autoridades presentes nos costumes
legados pela tradição, ou seja, que viam o dever como simples modo de adesão social,
essa estratégia procedural fornecia um critério para o questionamento do caráter
limitado de práticas comunitárias. Eu julgo não apenas como membro de uma
comunidade com seus sistemas de crenças, mas como membro de uma espécie de
comunidade universal virtual na qual os seres humanos estariam ligados pela razão.
Um “reino dos fins”, como dirá Kant.
A princípio, isto parecia garantir as bases para uma crítica ao relativismo
presente em afirmações segundo as quais meu dever simplesmente estaria referido
àquilo que devo fazer para reproduzir formas de vida da qual faço parte. Pois, por trás
do respeito a laços comunitários, pode-se esconder a reprodução silenciosa de práticas
de violência social e de autoridade não legítima. Por isto, podemos dizer que tal
estratégia procedural é a expressão de uma época que já não confia inteiramente nos
hábitos e em princípios tradicionais de autoridade legados pelo passado. Época que
deve retirar do próprio presente o critério do que é válido e merece meu assentimento.
Ou seja, época assombrada por aquilo que filósofos como Jürgen Habermas chamam
de “problema de auto-certificação”.
Kant havia estabelecido três procedimentos formais para a definição do dever.
Primeiro, uma ação que é a realização do dever é universalizável, ou seja, ela é válida
em toda e qualquer situação. Por isto, ela ignoraria espaço e tempo para afirmar sua
necessidade para além de todo e qualquer contexto. Juízos universais valem sem
exceção e tem, com isto, a força de explodir contextos. Segundo, ela deveria ser
incondicional, isto no sentido de não ser condicionada por alguma finalidade outra.
Por exemplo, se deixo de contar mentiras não por consciência do dever moral, mas
por medo de ser descoberto, ou seja, se minha ação é condicionada por outro fim que
não o amor pelo dever, então ela não poderia ser moral. Por fim, sendo incondicional,
a ação que é realização do dever será também necessariamente categórica, isto no
sentido de ser enunciada de forma absoluta, de não poder ser realizada de outra forma.
Deste modo, se quiser saber o que devo fazer, preciso perguntar se minha ação pode
ser universalizável sem contradição, se ela é incondicional e categórica.
Desta forma, Kant produz uma estratégia radicalmente anti-aristotélica, na
medida em que não espera fundar a normatividade moral em práticas sociais capazes
de definir, ao mesmo tempo, virtudes privadas e sociais. A estratégia procedural é
constituída como consequência de um princípio já presente em Rousseau, a saber, a
medida da correção deve ser procurada na pressão em direção a um vínculo social que
ainda não existe. A autonomia aparece mais uma vez como pressão em direção a
processos de emergência de um corpo social que coloca em questão os vínculos
sociais tais como eles se encontram atualmente.
Neste sentido, se a primeira finalidade da estratégia procedural era garantir as
condições de possibilidade para a emancipação dos julgamentos em relação aos
limites impostos à reflexão por práticas comunitaristas, a segunda, por sua vez, será a
peça central para um processo de constituição de si, de trabalho sobre si que Kant
descreve como “maioridade”. Uma maioridade que, como compreendeu Foucault,
equivale: “à modificação da relação preexistente entre a vontade, a autoridade e o uso
da razão”216. Neste modificação, o uso da razão se sobrepõe a toda forma de
obediência exterior, a autoridade é dada por uma lei que expressa minha própria
essência e vontade. Isto demonstra como a questão fundamental aqui não é
simplesmente: “O que devo fazer?”, mas “Como devo ser?” ou ainda “Que tipo de
216
FOUCAULT, Qu’est-ce que les Lumières?, In: Dits et écrits II, p. 1383
transformação de si procuro realizar?” Pois, ao instaurar uma dimensão de “dever ser”
inauguro um processo no qual a vontade se transmuta em uma força normativa ideal.
Como dirá Foucault comentando Kant: “Ser moderno não é aceitar a si mesmo tal que
se é no fluxo dos momentos que passam; é tomar a si mesmo como objeto de uma
elaboração complexa e dura”217. Elaboração esta feita através da afirmação de nossa
autonomia.
Mas notemos os paradoxos e desafios decorrentes da articulação entre nomos e
autos, entre lei e eu pressuposta pela compreensão da autonomia como a capacidade
de dar para si mesmo sua própria lei, de ser o legislador de si mesmo. Pois, no interior
das discussões sobre autonomia, a relação entre nomos e autos, ou ainda, entre nomos
e ipse deveria ser pensada como uma profunda relação de auto-pertencimento.
Relação esta que permite a sujeitos reconhecerem e se reconhecerem em um campo
de normas cuja determinação imanente seria a expressão imediata de sua própria
liberdade. Daí porque alguém como Kant falará, na aurora das discussões modernas
sobre autonomia, de “causalidade pela liberdade” (Kausalität durch Freiheit), de
relação não de submissão, mas de “amor” à lei.
Ou seja, a relação entre lei e ipseidade no interior da autonomia não poderia
em hipótese alguma ser pensada como uma relação exterior, como se tratasse da
internalização de uma causalidade externa. Como disse anteriormente, é desta forma
que a matriz teológica da autonomia pode ser relativizada. Pois estaríamos diante de
uma relação de expressão pensada, neste caso, como identidade imanente. Relação na
qual a realização da liberdade não entra em conflito com o caráter vinculante do que
se realiza sob a forma de normas que visam dar atualidade à humanidade enquanto
princípio de universalização. É devido à centralidade de tal operação de expressão que
podemos afirmar que liberdade como autonomia não consistiria apenas em se afirmar
para além da causalidade da natureza e das disposições mecanicistas que
aparentemente submeteriam tudo o que é objeto, tudo o que é coisa. Liberdade como
autonomia seria estar em possessão de si mesmo, em possessão de meus atos e de
minhas razões para agir. Possessão esta que se realiza em uma relação imanente de
auto-pertencimento.
Notemos como tal noção de liberdade como auto-pertencimento será
preservada até mesmo após deslocamentos produzidos no interior do horizonte de
compreensão da estrutura da autonomia. Ou seja, ela ainda será preservada mesmo
quando vermos a insistência em pensar a realização da autonomia através da
implicação não exatamente com leis, mas com práticas sociais, em uma chave que
nos remeteria inicialmente a Hegel218. Tais práticas, expressas em potencialidades
racionais próprias a formas de vida que são também nossas, vinculariam a realização
da autonomia à apropriação reflexiva do processo histórico que as produziu (ou ainda,
que de alguma forma está em vias de as constituir). Apropriação reflexiva que, desta
forma, seria auto-reflexão de uma concepção não-mentalista de sujeito que se
confunde com a experiência histórica de afirmação de práticas sociais nas quais os
participantes não se veem mais como objetos de coação ou de sujeição. Mas note-se
que, neste modelo, precisamos admitir que as práticas sociais que constituem nossa
forma de vida são racionais e universalizáveis. Ou, e esta me parece a interpretação
correta, que há uma potencialidade racional no interior de nossas práticas sociais,

217
idem, p. 1389
218
Ver HEGEL, G.W.F.; Grundlinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt: Suhrkamp, 1970. A este
respeito, ver ainda PIPPIN, Robert; Hegel practical philosophy: rational agency and ethical life,
Cambridge University Press, 2008 e HONNETH, Axel; Die zerrissene Welt des Soziale: Sozial-
philosophische Aufsatze, Frankfurt: Suhrkamp, 1990
mesmo que tal potencialidade ainda não tenha se realizado. Assim, a universalidade
não vai para as práticas atualmente em operação, mas para a disposição crítica que
força o presente em direção à sua transformação.

O gozo do dever
Mas, aqui, vale a pena colocar uma pergunta fundamental, a saber, de onde
podem vir as motivações subjetivas que me fazem aquiescer a um sistema de conduta
fundamentado em tal clivagem subjetiva? De onde vem a satisfação com tal liberdade
que faz com que o auto-pertencimento só possa ser afirmado através de certa
clivagem, auto-negação e transformação de si? Se quisermos ser mais precisos, em
uma figura do auto-pertencimento como crítica de si. Pois este auto-pertencimento
não é afirmação de relações imanentes a si. Lembremos mais uma vez, ele é um
trabalho. Se recusarmos argumentos baseados na simples coerção ou no medo de ser
“destruído” pela procura em realizar o desejo, por que sujeitos adeririam a tal modelo
de moralidade no qual preciso, a todo momento, lutar contra meus próprios impulsos,
já que os motivos teológicos não podem ser utilizados neste horizonte? Se não
tivermos medo de pecar por certo anacronismo, há de se perguntar aqui sobre a
“economia libidinal” do dever.
Uma maneira de responder tais perguntas passa pela defesa de que sujeitos não
determinam a totalidade de suas ações através do cálculo do prazer e da satisfação
própria ao bem-estar. Neste sentido, é correto dizer que, para Kant, a vontade
autônoma é vontade que se coloca para além do princípio do prazer, embora não se
trate aqui de elevar a negação do prazer a critério de moralidade de nossas ações. Na
verdade, seria mais correto afirmar que a vontade autônoma é aquela que se afirma
em uma dimensão de indiferença em relação às exigências do prazer.
No entanto, uma afirmação desta natureza tem consequências importantes, já
que ela leva Kant a dissociar a relação, até então necessária, entre ação moral e
felicidade. Pois, ao menos para Kant: “aquilo em que cada um costuma colocar sua
felicidade tem a ver com o seu sentimento particular de prazer e desprazer e, até num
mesmo sujeito, com a carência diversa de mudanças desse sentimento” 219. Ou seja, um
dos impactos fundamentais do advento da individualidade moderna seria a conjugação
da felicidade no particular, já que ela estaria profundamente ligada ao amor próprio e
às exigências egoístas do Eu. Cada um procura alcançar e definir sua felicidade à sua
maneira, levando em conta as experiências contingentes de prazer e desprazer que
teve, experiências que mudam no sujeito através do tempo.
Devido a tal particularismo, Kant não pode admitir que ela apareça como a
aspiração de toda ação moral, como era o caso, por exemplo, em Aristóteles, quando
este podia afirmar que: “a felicidade (eudaimonía) é a atividade conforme a
excelência”220. Ou seja, atividade para a qual convergem todos os que procuram a
excelência que o ser humano pode alcançar como animal racional. Alguns filósofos
contemporâneos, como Alasdair MacIntyre, criticarão Kant por ele pretensamente não
compreender que a obediência a uma máxima moral só se justificaria se esta mostrar
sua capacidade em realizar a felicidade de seres racionais221.
No entanto, é bem provável que Kant seja guiado aqui por uma importante
intuição: com o advento da individualidade moderna, a felicidade advém um conceito

219
KANT, Crítica da razão prática. Trad. Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 43
220
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mario da Gama Kury. Brasília: Edunb, 1992, 1099a
221
MACINTYRE, Alasdair. Depois das virtudes. 2a. edição. Trad. Jussara Simão. Revisão de Hélder
Buenos Aires de Carvalho. Bauru: EDUSC.
problemático. Ligada de maneira constitutiva ao prazer, ela será vista como uma
experiência intermitente. Como os animais, só conhecemos contentamentos por
contraste. Pensando nisto, Kant dirá que é necessário que todo contentamento seja
precedido de uma dor, como um jogo no qual se alternam constantemente medo e
esperança. O domínio da procura da felicidade é, por isto, o domínio da instabilidade.
Por outro lado, conjugada no particular, a felicidade não é um ponto natural de
concórdia, mas fonte de uma experiência social de discórdia. Não apenas devido à
pluralidade de visões que ela comporta, mas também porque, como dirá Kant, nosso
prazer cresce ao compararmos com a dor do outro, assim como nosso sofrimento
diminui ao compararmos ao sofrimento semelhante ou maior do outro. Se aceitarmos
tais colocações de Kant, precisaremos determinar, para além da procura da felicidade,
uma outra forma de contentamento capaz de servir como motivação para a ação. É
neste ponto que poderemos encontrar um certo gozo ligado ao amor pelo dever.
Uma maneira de introduzir tal questão passa pela recuperação do uso kantiano
da distinção entre duas formas de falar “o bem” em alemão: das Gute (que Kant usa
para descrever uma determinação a priori do bem) e das Wohl (ligado ao prazer e ao
bem-estar do sujeito). Já podemos imaginar que os objetos ligados a das Wohl e, por
consequência, ao prazer e ao desprazer serão todos empíricos, pois: "não se pode
conhecer a priori de nenhuma representação de qualquer objeto, seja ela qual for, se
ela se vinculará ao prazer ou desprazer ou se será indiferente a ele”222. O sujeito não
pode saber a priori se uma representação de objeto será vinculada ao prazer ou à dor
porque tal saber depende do sentimento empírico do agradável e do desagradável. E
não há sentimento que possa ser deduzido a priori (exceção feita ao respeito -
Achtung) já que, do ponto de vista do entendimento, os objetos capazes de produzir
satisfação são indiferentes. Logo, a faculdade de desejar é determinada pela
capacidade de sentir (Empfänglichkeit), que é particular à patologia das experiências
empíricas de cada eu e desconhece invariantes universais. Isto permite a Kant afirmar
que não há universal no interior do campo dos objetos do desejo, nem todos desejam
as mesmas coisas, já que aqui cada um segue seu próprio sentimento de bem-estar e
os princípios narcísicos ditados pelo amor de si.
Tal purificação da vontade através da rejeição radical da série de objetos
patológicos nos levaria, no entanto, em direção a um bem para além do sentimento
utilitário de prazer. Esse bem, que Kant chamará de das Gute é, na verdade, "apenas a
maneira do agir (...) e não uma coisa que poderia ser assim chamada" 223. Quer dizer, a
vontade que quer das Gute quer apenas uma forma de agir, uma forma específica para
a ação, e não um objeto empírico privilegiado. A forma já é o objeto para a vontade
livre.
E de qual forma trata-se aqui? Nós a encontramos no imperativo categórico :
"Age de tal maneira que a máxima da tua vontade possa sempre valer como princípio
de uma legislação universal". Estamos aqui diante de uma pura forma vazia e
universalizante, forma que não diz nada sobre as ações específicas legítimas, sobre
quais regras devo seguir, já que ela não enuncia regra alguma. "A lei", diz Kant, "não
pode especificar precisamente de que maneira alguém deve agir e em que medida
deve ser realizada a ação visando o fim que é ao mesmo tempo dever" 224. O que não
invalida o empreendimento moral kantiano, já que o contentamento próprio à vontade
livre vem da determinação desta vontade pela forma da máxima moral.

222
KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 37
223
KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 60
224
KANT, Metafísica dos costumes, op. cit., p. 233
Desta maneira, Kant pode traçar um horizonte regulador de reconciliação
através da determinação perfeita da vontade pela Lei. Horizonte que, mesmo não
alcançável por um ser clivado como nós, deve guiar nossas ações. Horizonte no qual a
vontade aparece como Logos puro. Das Gute se confunde aqui com o amor pela Lei, o
que permite a Kant reintroduzir o conceito aristotélico de Soberano Bem enquanto
síntese entre a virtude e a felicidade, abrindo no entanto o espaço para uma importante
mudança qualitativa no contentamento produzido por tal síntese. Pois ela produziria
um: "agradável gozo da vida (Lebensgenuss) e que, no entanto, é puramente moral"225.
Desta forma, um gozo próprio ao contentamento de si (Selbstzufriedenheit), distinto
da felicidade, pois vindo do sentimento de respeito à Lei, aparece no horizonte
regulador do Soberano Bem. Guardemos esta fórmula: a conformação perfeita da
vontade à Lei, a realização da vontade como dever promete um gozo para além do
prazer. É ele que nos fornece a “economia libidinal” da autonomia.
Entre a culpa e o sublime
Se nos deslocarmos à Crítica da faculdade de julgar, encontraremos um
paralelo que nos fornece indicações importantes a respeito deste gozo produzido pela
conformação perfeita da vontade à Lei moral. Tal paralelo aproxima a autonomia
moral e o sentimento estético do sublime.
Uma das características mais marcantes da estética moderna é o movimento
histórico de dissociação paulatina entre o belo e o sublime, isto a fim de, entre outras
coisas, descrever duas modalidades distintas de sentimentos produzidos pela
contemplação das formas. Na Crítica da faculdade de julgar, Kant parte desta
distinção entre belo e sublime, vendo no primeiro aquilo que concerne à harmonia e
equilíbrio das formas do objeto e que produz um prazer sensível ligado ao livre jogo
da imaginação. Já o sublime sempre indicaria a dimensão do ilimitado, do limite à
representação e, por isto, produziria um prazer negativo ligado à violência contra a
imaginação. Kant chega a falar do sublime como o que constitui um abismo no qual a
imaginação teme se perder.
Duas determinações do sublime são fornecidas por Kant: o sublime
matemático e o sublime dinâmico. O primeiro nomeia o que é absolutamente grande,
isto no sentido de absolutamente desmedido. Daí a afirmação conhecida : “é sublime
aquilo que, do simples fato de o pensarmos, demonstrar um poder (Vermögen) do
espírito que ultrapassa toda medida de sentido”. Kant indica como exemplo o
embaraço daquele que entra na Basílica de São Pedro, em Roma. Nestes casos, se a
violência contra a imaginação produz desprazer, ele é compensado pelo prazer de
descobrir toda medida da sensibilidade inadequada às ideias da razão.
Já o sublime dinâmico estaria ligado à manifestação da força descomunal da
natureza. Uma força que só é sublime se contemplada em situação de segurança. Pois
é sublime esta capacidade de pôr-se diante do perigo, do caráter destrutivo de uma
força, a fim de revelar nossa destinação superior. Diante da força descomunal da
natureza, tenho consciência da finitude de minha resistência física, mas contemplando
tal força como um espetáculo distante venço meus impulsos imediatos de auto-
conservação, o que me abre à descoberta do prazer de não me confundir
completamente com eles. Por isto, Kant dirá : “sublime é o que compraz através da
sua resistência contra o interesse imediato dos sentidos”.
Assim, Friedrich Schiller, profundamente influenciado neste ponto por Kant,
podia afirmar que a contemplação da força da natureza, em segurança, nos abre à
descoberta de uma resistência que não é resistência física, mas resistência vinda de
225
KANT, Metafísica dos costumes, op. cit., p. 485
nossa dissociação entre existência física e personalidade. Desta forma, através do
sublime, encontramos um estado no qual os sentimentos de dor e alegria convergem
para o mesmo objeto. Entusiasmamo-nos com o temível porque podemos querer o que
os impulsos repudiam. Ou seja, no belo, razão e sensibilidade se harmonizam. No
sublime, elas encontram seu ponto de desregramento.
Kant abre tal discussão estética por estar interessado em mostrar como o
sublime é modo de experiência da autonomia, pois o prazer negativo no qual o
sublime se assenta evidencia a existência de algo em nós que coloca entre parênteses
nosso desejo de auto-conservação e quebra a capacidade de apreensão da imaginação.
Por isto, Kant pode afirmar que o julgamento sobre o sublime assenta-se na
disposição humana ao sentimento moral, na disposição em acolher o que resiste aos
interesses dos sentidos. Da mesma forma que o belo nos prepara a amar algo de
maneira desinteressada, o sublime nos prepara a estimar aquilo que vai contra nosso
interesse sensível.
Tal discussão sobre as relações entre autonomia moral e sentimento do
sublime servem para mostrar uma dimensão importante da economia libidinal do
dever. Normalmente, devido à nossa sensibilidade contemporânea, dizemos que o
dever assenta-se sobre um sentimento de culpa que, em si, já é motivo de gozo. Não
há dever sem culpa e a consciência da culpabilidade sempre foi uma maneira
patológica de demanda de amor. Pois a experiência da culpa é indissociável do
sentimento de ser virtualmente observado por alguém a quem reconhecemos
autoridade legítima, a quem esperamos uma forma de amparo por nos fornecer uma
norma capaz de explicar o que devemos fazer para sermos reconhecidos como sujeitos
dotados de dignidade. Saber-se culpado é, assim, uma forma de nos certificarmos que
a Lei é para nós, que temos um lugar assegurado diante da porta da Lei.
Pensando nisto, o psicanalista Sigmund Freud chegou a explorar a maneira que
uma modalidade de sofrimento psíquico, como a neurose obsessiva, era na verdade
uma forma de “patologia da moralidade” capaz de mostrar como o dever estava
necessariamente vinculado à transgressão. Pois, neste caso, haveria uma articulação
profunda entre transgressão do dever e gozo culpado, já que a culpa seria a única
forma que o neurótico obsessivo conheceria de confessar seu amor por aqueles que
representam a Lei moral. Em um livro como O mal estar na civilização, Sigmund
Freud generalizará tal estrutura para a condição de modelo privilegiado de adesão
social na modernidade, não se restringindo mais aos casos de neurose obsessiva. Isto a
ponto de afirmar que o sentimento de culpa seria o problema mais importante do
processo civilizatório. Tudo se passa assim como se um caso patológico simplesmente
fornecesse a lente de aumento para um processo presente em todos sujeitos.
De fato, não é possível negligenciar o peso de tal crítica, principalmente
quando Kant insiste que a dor em relação ao abandono de nossas inclinações e a
humilhação de nosso amor-próprio são sentimentos necessariamente produzidos pela
consciência da Lei moral. Dor e humilhação ligadas à consciência da culpabilidade
diante da Lei. Kant insiste, por exemplo, que a forma do dever é intransponível. Ela
sempre aparecerá como uma obrigação que quebra nossa presunção. Querer ignorar
nossa clivagem subjetiva, retirando o caráter de norma exterior do dever e
transformando o que tem a forma necessária da obrigação em algum regime de
impulso natural, de inclinação espontânea e entusiasmada para o bem é, para Kant,
arrogância e fanatismo moral de quem acredita, erroneamente, poder alcançar a
santidade da conformação absoluta entre imperativo moral e inclinações. Kant fala
que tal conformação absoluta só pode ser objeto de um “progresso que avança ao
infinito”226. Mas, como sabe o velho Zenão de Eleia, um progresso ao infinito é, na
verdade, a perpetuação de uma distância infinita, isto se não quisermos apelar à
imortalidade da alma. Quem anda em direção ao infinito continua, a partir da
perspectiva do infinito, no mesmo lugar. Desta maneira, o auto-pertencimento
pressuposto pela relação entre vontade livre e Lei moral é, ao mesmo tempo,
postulado e infinitamente adiado. O paradoxo da forma do dever se encontra no fato
dele abrir o espaço a um processo de transformação de si que, ao mesmo tempo que
funda a possibilidade de minha auto-determinação, impede que ela ganhe a forma de
uma relação imanente à si. Isto pode nos explicar porque:

O conceito de liberdade, é um conceito puro da razão que, precisamente por


isso, é transcendente para a filosofia teórica, isto é, um conceito tal que não e
pode ser dado nenhum exemplo adequado em qualquer experiência possível.
Ele não constitui, portanto, objeto de nenhum conhecimento teórico possível
para nós, e absolutamente não pode valer como um princípio constitutivo, mas
unicamente como regulador e, na verdade, apenas como um princípio
meramente negativo da razão especulativa227.

No entanto, é certo que uma crítica de moralidades centradas no dever


necessita refletir sobre um espectro mais amplo de motivações que levam os sujeitos a
assumir tal modelo de normatividade. Uma destas motivações é, certamente, o fato da
enunciação moderna do dever estar vinculada à procura de uma experiência de
contentamento ou, ainda, de gozo marcada pela superação em relação à finitude de
nossa determinação sensível, assim como superação em relação ao sistema de
interesses do indivíduo. A tal contentamento, Kant dá o nome de “respeito”,
elevando-o à condição de único sentimento moral.
É interessante sublinhar como, no interior da sociedade dos indivíduos, o ideal
de formação subjetiva baseado na consciência do dever aparece necessariamente
ligado à vontade de não agirmos apenas como indivíduos. O que explica porque
perspectivas sociais fortemente individualistas sempre estiveram mais à vontade no
interior da moral utilitarista, que vincula a ação moral à procura da maior felicidade
para o maior número, entendendo aqui “felicidade” a partir do cálculo de
maximização do prazer e afastamento do desprazer. Para além de tal perspectiva
utilitarista, o dever aparece como forma de ultrapassagem da finitude, descoberta
daquilo que “eleva o homem sobre si mesmo”228 permitindo-lhe descobrir a
“sublimidade de nossa existência supra-sensível”229. Ao falar de “sublimidade”, Kant
acaba por afirmar que, à sua maneira, há um importante prazer estético no
reconhecimento do dever, como se estivéssemos diante de um projeto moral assentado
em uma peculiar forma de construção estética de si. Por mais paradoxal que isto possa
parecer, foi Nietzsche quem melhor compreendeu este ponto, ao afirmar:

No fundo é a mesma força ativa, que age grandiosamente naqueles


organizadores e artistas da violência e constrói Estados, que aqui,
interiormente, em escala menor e mais mesquinha, dirigida para trás, no
“labirinto do peito”, como diz Goethe, cria a má consciência e constrói ideais
negativos, é aquele mesmo instinto de liberdade (na minha linguagem, a

226
KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 198
227
KANT, Metafísica dos costumes, p. 27
228
KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 141
229
idem, p. 143
vontade de poder): somente que a matéria na qual se extravasa a natureza
conformadora e violentadora dessa força é aqui o homem mesmo, o seu velho
Eu animal – e não, como naquele fenômeno maior e mais evidente, o outro
homem, outros homens. Essa oculta violentação de si mesmo, essa crueldade
de artista, esse deleite em dar uma forma, como a uma matéria difícil,
recalcitrante, sofrente, em se impor a ferro e fogo uma vontade, uma crítica,
uma contradição, um desprezo, um Não, esse inquietante e horrendamente
prazeroso trabalho de uma alma voluntariamente cindida, que a si mesma faz
sofrer, essa “má consciência” ativa também fez afinal – já se percebe - , como
verdadeiro ventre de acontecimentos ideais e imaginosos, vir à luz uma
profusão de beleza e afirmação nova e surpreendente, e talvez mesmo a
própria beleza230.

Como construção estética de si, o dever guarda o desejo de não limitarmos


nossa existência àquilo que atualmente somos, àquilo que atualmente nos determina.
Ele é a expressão de que nada nos obriga a nos contentar com a imagem atual do
homem, com suas configurações locais e suas determinações antropológicas.
Expressão de um desejo do que ainda não tem imagem e figura. Pois: “Estamos
cultivados em alto grau pela arte e pela ciência. Somos civilizados até ao excesso, em
toda classe de maneiras e na respeitabilidade sociais. Mas falta ainda muito para nos
considerarmos já moralizados”231.
Fica a questão de saber se o dever seria a única forma possível de tal elevação
em direção ao sublime, que aparece como motor silencioso para a formação de certo
conceito moderno de sujeito. Trata-se de uma questão relevante porque conceitos
filosóficos tem a característica de serem, muitas vezes, feixes de determinações
contrárias, o que faz, inclusive, com que funcionem de maneiras distintas de acordo
com a situação na qual se inserem. Com o conceito de dever não poderia ser diferente.
Podemos distinguir, ao menos, quatro determinações que lhe produziram:

a) a expectativa política de liberar os indivíduos de vínculos comunitaristas


fortemente enraizados sob a forma de hábitos ritualizados e autoridades
tradicionais;
b) a crítica da pretensa heteronomia de desejos e impulsos vistos como
“naturais” e animalizados;
c) a procura em superar o sistema particular de interesses atomizados dos
indivíduos modernos;
d) a tentativa de garantir uma segurança ontológica para a ação moral através
da fundamentação de critérios para a definição de normatividades justas.

O conceito moderno de dever é uma espécie de dispositivo que unifica esses


quatro processos autônomos entre si. Ao desmontá-lo, cada um desses processos
poderá seguir um destino diferente. Alguns poderão ser simplesmente recusados
(como o segundo ponto, com sua concepção de natureza compreendida como o
“avesso da liberdade”, ou mesmo o quarto ponto), outros poderão ser recuperados em
outra chave.

230
NIETZSCHE, Friedrich; Genealogia da moral, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 76
231
KANT. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita In: KANT, I. A paz
perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 34
Arqueologia da liberdade
Aula 13

Antes de começar a aula de hoje e, por consequência, antes de começar nosso


ú ltimo mó dulo, gostaria de fazer uma espécie de recapitulaçã o do trajeto que
desenvolvemos nas ú ltimas seçõ es. Ela será importante para explicar melhor o
sentido desta guinada final em direçã o ao debate referente a autonomia estética.
Acho importante explicar o melhor possível porque um curso sobre a
arqueologia do conceito de liberdade acabe por terminar em uma discussã o
sobre as potencialidades imanentes ao conceito estético de autonomia. Ou seja,
porque depositar na experiência estética a tarefa de impulsionar nossa
imaginaçã o social em direçã o à quilo que, em nossa primeira aula, foi definido
como um giro auto-crítico do ocidente em relaçã o à noçã o de liberdade?
Quando começamos a discutir a liberdade como auto-legislaçã o, como
essa pretensa capacidade de dar para si mesmo sua pró pria lei, vimos como tal
operaçã o era a expressã o consequente da pressuposiçã o de certa clivagem no
interior do que poderíamos chamar de “natureza humana”. Ser o legislador de si
mesmo só pode fazer sentido se há um objeto a ser legislado, ou seja, se me
divido entre aquele que julga e aquele que é julgado. Clivagem esta que se
organiza através das polaridades entre razã o e libido, entre vontade e desejo.
Lembremos, mais uma vez, como o livre-arbítrio pressupõ e certa relaçã o na qual
a liberdade se afirma contra a libido:

A libido é tã o forte que nã o apenas domina o corpo inteiro nem só dentro


e fora, mas também põ e em jogo o homem todo, reunindo e misturando
entre si o afeto do â nimo e o apetite carnal, produzindo desse modo a
voluptuosidade, que é o maior dos prazeres corporais. Tanto é assim que
o momento preciso em que voluptuosidade chega ao cú mulo, se ofusca
quase por completo a razã o e surge a treva do pensamento232.

Como vimos anteriormente, o exercício da liberdade se configura como uma


relaçã o política baseada na efetivaçã o de relaçõ es de domínio. Ficava entã o
bastante claro porque a liberdade devia aparecer como uma relaçã o de auto-
legislaçã o. Pois se tratava de exercer uma relaçã o de domínio sobre uma
afetividade insubmissa e sempre pronta à deriva. Dessa forma, a marca do
pecado original acabava por se expressar através de uma libido que aparece
como força de sediçã o e queda. Sob o pecado, o ser humano nã o legislaria mais a
si mesmo, sendo entã o necessá rio sustentar a existência de uma vontade que
ama a lei divina. Por isto:

Quando a açã o, a mente ou o espírito governa os movimentos irracionais


da alma, é que está a dominar na verdade no homem aquilo que
precisamente deve dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos
como sendo a lei eterna233.

232
Idem, A cidade de Deus, XIV, 16, J
233
Idem; Do livre arbítrio, p. 47
Mas lembremos como o afastamento da libido era produzido nã o apenas pelo
sentimento de culpabilidade e pelo desejo de submissã o de toda corporeidade
que aparece como espaço do involuntá rio. Há ainda e principalmente o desejo de
comunhã o com o divino, de fortalecimento de si que promete um tipo de gozo e
contentamento de outra natureza, que promete o advento de um mundo
purificado de tudo o que é estranho e insubmisso.
Vimos como a constituiçã o do conceito moderno de autonomia poderia
ser compreendido como a recomposiçã o dessa força de transformaçã o de si, mas
agora sem o apelo à ascese em direçã o à lei divina. O voluntarismo de quem
defende a incomensurabilidade entre a vontade divina e a razã o humana deve
ser abandonado em prol da concepçã o de que a lei moral nã o se aplica apenas
aos homens, mas a todos os seres racionais, deus incluso. Dessa forma, a
concepçã o moderna de autonomia poderá constituir, a partir do desejo de auto-
determinaçã o, o nú cleo das motivaçõ es em relaçã o ao afastamento dos impulsos
e inclinaçã o. A auto-legislaçã o nã o aparece mais como uma estratégia de ascese
religiosa, mas como uma estrutura de auto-determinaçã o.
Vimos em Rousseau como tal auto-determinaçã o só poderia se realizar
através de um novo corpo social. Corpo esse que se expressa através da vontade
geral e realiza, assim, as exigência normativas da soberania popular:

Este que ousa instituir um povo deve se sentir em estado de mudar, por
assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si
mesmo é um todo perfeito e solitá rio, em parte de um todo maior do qual
tal indivíduo recebe de certa forma sua vida e seu ser; de alterar a
constituiçã o do homem para reforça-la; de substituir uma existência física
e independente que todos recebemos da natureza por uma existência
parcial e moral234.

O topos da auto-legislaçã o como transformaçã o de si, esta estranha


relaçã o de auto-pertencimento projetada para um corpo por vir, está aqui mas
vinculado à emergência política de um corpo social igualitá rio no qual os
interesses individuais paulatinamente se transmutam em vontade (geral). Este
desejo de igualdade transmuta o sistema de interesses em vontade, só ele cria a
verdadeira autonomia enquanto auto-legislaçã o. Daí porque: “melhor o estado é
constituído, mais as questõ es pú blicas sobrepõ em-se à s privadas no espírito dos
homens”235. Pois ele nos abre a estrutura de motivaçõ es que nã o sã o a expressã o
de uma natureza degradada sob a forma do egoísmo, da concorrência e do medo.
Em Rousseau, tal vontade autô noma nã o é expressã o de um conflito com a voz da
natureza em nó s, como vimos em Agostinho, mas é condiçã o para que a
cristalizaçã o de uma falsa natureza seja deposta.
Por fim, na ú ltima aula, vimos como Kant constituía a autonomia moral
através de um movimento também marcado por essa estrutura paradoxal do
auto-pertencimento como transformaçã o de si, como abertura a um trabalho
sobre si, mas agora impulsionado pelo dever (sollen). No entanto, quando foi
questã o de analisar o que poderíamos chamar de estrutura motivacional do
dever, percebemos que nos depará vamos com um complexo de figuras e
metá foras jurídicas. Pois, por um lado, a dinâ mica do amor a lei nã o poderia ser
234
idem, p. 381
235
ROUSSEAU; Du contrat social, p. 429
pensada sem a naturalizaçã o da consciência como um tribunal interno, como um
juiz cuja força da lei nos humilha e provoca dor. Ou seja, toda a dinâ mica libidinal
de culpabilizaçã o que encontrá vamos na matriz teoló gica da autonomia parecia
novamente em açã o.
Esse modelo jurídico consolidou certa compreensã o da liberdade como
jurisdiçã o de si, como afastamento do horizonte da vida sensível através da
conformaçã o da vontade à forma geral de uma lei auto-imposta, universal,
categó rica e incondicional. No que poderemos sempre nos perguntar a respeito
desta estranha característica de certa noçã o hegemô nica de liberdade no
ocidente que nos leva a acreditar ser natural pensar a liberdade como o exercício
de uma lei. Mesmo quando pensamos liberdade, pensamos o exercício de uma lei.
No entanto, eu insistira que havia algo a mais nesse modelo kantiano de
autonomia moral. O binô mio moralidade-gozo culpado é apenas uma parte da
gênese dos sentimentos morais. Há ainda uma promessa de superaçã o de si que
nos levava em direçã o a tematizaçã o da relaçã o entre lei moral e experiência do
sublime. A vontade que quer a lei moral procura algo para além do princípio do
prazer, para além do cá lculo de maximizaçã o do prazer e afastamento do
desprazer que regula os desejos patoló gicos e os espaços da sensibilidade. Um
para além que nã o é apenas mortificaçã o de si. Vimos inclusive como Kant chega
a falar de “gozo” nessa relaçã o entre lei moral e sublime. Mas se quiséssemos
aprofundar este ponto, seria necessá rio compreender o tipo de prazer negativo,
de desregramento entre razã o e sensibilidade, de impulso para fora dos limites
das exigências de auto-preservaçã o, produzido pelo sublime.
Desta forma, um certo contentamento estético entrava no horizonte das
dinâ micas motivacionais da autonomia moral. Contentamento este que nã o era
produzido pelo belo e sua harmonia das faculdades, mas pelo sublime e seu
empuxo para fora do sistema de conservaçã o da imagem atual do humano. E,
neste ponto, encontrá vamos algo que nã o era exatamente uma lei que o sujeito
dá para si mesmo. Na verdade, encontrá vamos o impacto de uma força que
violenta o esquematismo do entendimento e as formas da imaginaçã o.
Eu diria que certa maneira de compreender a autonomia estética partirá
desse ponto de imbricaçã o entre lei e força deixado por Kant. E tal compreensã o
da autonomia estética será decisiva porque irá abrir outro espaço para o que
poderemos entender por liberdade. Um espaço no qual as temá ticas do auto-
pertencimento estarã o definitivamente afastadas. E é sobre isto que nos
debruçaremos agora, a saber, sobre essa concepçã o de liberdade que nasce da
experiência estética e que coloca em questã o nossa tradiçã o ocidental, para a
qual a liberdade é uma questã o de autonomia, de autarkeia e de autoctonia, ou
seja, de definiçã o do exercício contínuo de um autos, de uma ipse. Se o maior
atentado contra a liberdade era o involuntá rio, como vimos por exemplo em
Agostinho, agora teremos a emergência de uma liberdade pensada como
capacidade de se abrir ao involuntá rio e fazer dessa força que parece decompor
minhas exigências de controle e ordenamento o fundamento de uma agência
radicalmente aberta à alteridade e ao que nã o tem a imagem atual do humano.
Na primeira aula de nosso curso eu dissera que gostaria de partir nã o da
histó ria da elevaçã o da liberdade a horizonte regulador de nossas expectativas
de transformaçã o social, tal como ela se configuraria no Ocidente, mas partir de
seu ponto de esgotamento, de seu giro autocrítico. Eu dissera que gostaria de
organizar a arqueologia da liberdade no ocidente a partir do fim. Ou seja, partir
do momento em que nosso modelo hegemô nico de liberdade é reflexivamente
questionado no interior da pró pria tradiçã o que o gerou. Movimento rico e
doloroso, um giro autocrítico desta natureza é expressã o de nosso pró prio
descentramento, de nossa pró pria possibilidade de descentramento.
Eu dissera ainda que esse giro auto-crítico era fruto do desvelamento de
uma alteridade interna que parece habitar nossa pró pria forma de vida, que
constitui prá ticas que produzem contradiçõ es em nossa pró pria forma de vida,
invertendo continuamente as determinaçõ es valorativas que parecem nos
orientar. Isso significava admitir que somos habitados por prá ticas que tem a
força de erodir periodicamente o solo de nossa noçã o hegemô nica de liberdade e
que, com isto, nos impulsiona a estratégia de auto-crítica de nó s mesmos. Agora,
gostaria de mostrar como esse setor se consolida inicialmente na prá tica estética.
Vem da prá tica estética a emergência de um conceito de liberdade radicalmente
distinto daquela que circula em nosso horizonte social. Essa experiência estética
irá paulatinamente influenciar e impulsionar outros setores da prá xis social,
como a política, a clínica, entre outros. Pois tudo se passa como se fossemos
habitados por um conceito de liberdade que é estético, como se a arte fosse uma
prá tica de liberdade que nos aproximaria de outras matrizes de liberdade
estranhas à linha hegemô nica tradiçã o ocidental.
Na verdade, essa noçã o de liberdade estava assentada em operaçõ es de
abertura a processos de descentramento e de implicaçã o com objetos e
movimentos nã o redutíveis a predicaçõ es de pertencimento. Paradoxalmente,
havia uma irredutível dimensã o de heteronomia nessa experiência estética que, a
partir do século XIX, se constituirá como arte autô noma e cuja primeira figura
encontraremos no romantismo. Heteronomia esta vinda da constituiçã o de um
campo de implicaçã o do sujeito com objetos e movimentos que nã o tinham sua
forma, que nã o se configuravam no interior de espaços egologicamente
indexados. Por isto, a forma estética a partir de entã o será o espaço privilegiado
de emergência do fragmentá rio, do involuntá rio, do contingente, da desmesura
pró pria ao que violenta o esquematismo da imaginaçã o (como vemos, nesse caso,
nas temá ticas relativas ao sublime).

A autonomia estética, entre auto-referencialidade e força

A fim de desenvolver tais pontos, insistamos como uma reflexã o sobre o


sentido da expectativas pró prias à autonomia estética deve partir das questõ es
presentes na autonomia da forma musical. É a partir a mú sica que o problema da
autonomia adentra o campo das artes. A escolha em privilegiar o campo musical
no interior das discussõ es sobre a natureza da autonomia estética nã o pode ser
vista como gratuita. Primeiro, porque há de se insistir na anterioridade histó rica
da autonomizaçã o da forma musical em relaçã o a processos simétricos em outras
linguagens artísticas. É atualmente aceita por vá rios teó ricos e críticos de arte, a
tese de que a autonomia da forma musical é nã o apenas historicamente anterior,
mas decisiva na constituiçã o do debate estético em geral sobre a autonomia 236.

236
Ver o clá ssico estudo de WEBER, Max; Fundamentos racionais e sociológicos da música, Sã o
Paulo: Edusp, 1994 assim como o mais recente KIVY, Peter; Antithetical arts: on the ancient
quarrel between literature and music, Oxford University Press, 2009 e NEUBAUER, John; The
emancipation of music from language: departure from mimesis in Eighthenn- Century aesthetics,
Yale University Press, 1986
Lembremos, a este respeito, do que diz o crítico de artes visuais Clement
Greenberg:

Em razã o de sua natureza ‘absoluta’, da distâ ncia que a separa da


imitaçã o, de sua absorçã o quase completa na pró pria qualidade física de
seu meio, bem como em razã o de seus recursos de sugestã o, a mú sica
passou a substituir a poesia como a arte-modelo (...) Norteando-se, quer
conscientemente quer inconscientemente, por uma noçã o de pureza
derivada do exemplo da mú sica, as artes de vanguarda nos ú ltimos
cinquenta anos alcançaram uma pureza e uma delimitaçã o radical de seus
campos de atividade sem exemplo anterior na histó ria da cultura237.

De fato, como vimos em aulas passadas, o problema da forma autô noma


aparece já no século XVIII, no interior de uma querela entre Jean Jacques
Rousseau e Jean-Phillipe Rameau a respeito da possibilidade de sustentar uma
perspectiva naturalista em mú sica baseada na conservaçã o de afinidades
miméticas fundamentais entre forma musical e linguagem natural. Afinidades
estas pretensamente quebradas pela insistência no vínculo entre racionalizaçã o
do material musical e advento da harmonia moderna com suas regras de
progressã o e de organizaçã o do contraponto238.
No entanto, o adjetivo “absoluta” denuncia como Greenberg pensa no
paradigma da “mú sica absoluta” do século XIX resultante da elevaçã o da mú sica
instrumental, desprovida de textos, programas e funçõ es sociais derivadas à
mais absoluta das artes (como vemos tanto na estética dos româ nticos quanto na
de Schopenhauer e de Nietzsche, entre outros) 239. O que Greenberg está a dizer é
que a mú sica teria fornecido à s artes no século XX um vetor de desenvolvimento,
um princípio definidor de constituiçã o da forma a partir da distâ ncia em relaçã o
à mimesis, isto a partir da tematizaçã o de sua pró pria estrutura, enfim, a partir
de certa “pureza” que é purificaçã o da esfera da arte em relaçã o à esfera das
formas enraizadas na vida prosaica.

Tal estratégia de purificaçã o acaba, no entanto, por corroborar a forma


hegemô nica com que o problema da autonomia estética ainda é tratado, ou seja,
como vinculado a um processo de autonomizaçã o das esferas sociais de valores
no interior do qual os julgamentos estéticos teriam sua “legalidade pró pria”
(Eigengesetzlichkeit)240. Lembremos como a temá tica da legalidade pró pria da
237
GREEENBERG, Clement; “Rumo a um mais novo Laocoonte”, In: COTRIN, Cecília e FERREIRA,
Gló ria; Clement Greenberg e o debate crítico, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, pp. 52-53.
238
Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; Écrits sur la musique, la langue et le théatre, Gallimard, 1995. Ver
também: MASUDA, Makoto; "Musique et société. Anthropologie et théorie musicale chez J.J.
Rousseau", Etudes de langue et littérature française, Tokyo, n° 60, 1992, pp. 57-69. MOFFAT,
Margaret; Rousseau et la Querelle du théâtre au XVIIIe siècle, Bordeaux: Brière et Paris: E. de
Boccard, 1930 e PRADO Jr., Bento; A retórica de Rousseau e outros ensaios, Sã o Paulo: Cosac Naify,
2008
239
Como encontramos nas discussõ es de DAHLHAUS, Carl; Die Idee der absoluten Musik, Kassel:
Bä renreiter Verlag, 1978
240
WEBER, Max; Os fundamentos racionais e sociológicos da música, op. cit. A respeito da
perspectiva de Weber sobre a música, ver ADORNO, Theodor; Introdução à sociologia da música, São
Paulo : Unesp, 2010 ; BRAUN, C. Max Webers “Musiksoziologie”. Laaber: Laaber-Verlag, 1992;
BRAUN, C. ‘Grenzen der Ratio, Grenzen der Soziologie. Anmerkungen zum “Musiksoziologen” Max
Weber, Archiv für Musikwissenschaft, 51(1): 1-25. 1994 e PEDLER, E.; ‘Les sociologies de la
musique de Max Weber et Georg Simmel : une théorie relationnelle des pratiques musiciennes’
esfera estética submete a autonomia estética a um modelo baseado na
capacidade de dar para si mesmo sua pró pria lei, em consonâ ncia com os
modelos de jurisdiçã o de si que encontramos na tradiçã o da filosofia moral. Isto
está presente, por exemplo, em definiçõ es como estas de Arthur Danto, para
quem: “com o modernismo, as pró prias condiçõ es de representaçã o tornaram-se
centrais, de modo que a arte se tornou de certa forma seu pró prio assunto”241.
Esta estrutura de auto-legislaçã o, ao ser aplicada ao campo da estética,
nos leva normalmente a compreender o problema da autonomia como uma
questã o de imposiçã o de padrõ es pró prios de validaçã o e regulaçã o, como se a
esfera estética fosse animada por exigência internas de validaçã o de seus
fenô menos que nã o levam em conta os modos de organizaçã o e expectativa de
outras esferas sociais de valores. No que reencontramos aqui a temá tica maior
da sociologia weberiana da modernidade como “autonomizaçã o das esferas
sociais de valores” depois do colapso do poder unificador dos mitos teoló gico-
religiosos. Isto fez com que a produçã o estética aparecesse como destinada a
instaurar processos de auto-tematizaçã o no interior dos quais trata-se da arte
“falar de si mesma”, tematizar sua pró pria forma, afirmando-se como espaço de
auto-referencialidade.
Do ponto de vista de suas consequências sociais, esta afirmaçã o de uma
esfera de legalidade pró pria, com seus modelos autô nomos de validaçã o, foi em
larga medida, compreendida a partir de uma ló gica compensató ria. Tal esquema
afirma que a experiência moderna de auto-tematizaçã o da forma seria herdeira
de uma certa decepçã o histó rica. Ou seja, o que temos aqui é uma leitura
melancó lica da autonomia estética. Diante da incapacidade histó rica da arte ser
motor de transformaçã o social, isto a partir principalmente da segunda metade
do século XIX, nã o lhe teria restado outra coisa senã o falar de si mesma, ser uma
mera art pour l’art. Nã o podendo transformar o mundo através da realizaçã o de
ideais reformadores que viam na circulaçã o das obras de arte um potencial
“educador” e de reforma moral, ela teria se voltado a uma reflexã o sobre si
mesma. Lembremos, por exemplo, do que fala Pierre Bourdieu a respeito da
formaçã o do campo literá rio e artístico, com suas exigências de autonomia da
arte e dos artistas, na França da segunda metade do século XIX:

Como nã o supor que a experiência política desta geraçã o, com o fracasso


da revoluçã o de 1848 e com o golpe de estado de Luis-Napoleã o
Bonaparte, além da longa desolaçã o do Segundo Império, nã o tenha
desempenhado um papel na elaboraçã o da visã o desencantada do mundo
político e social que segue o culto da arte pela arte? Esta religiã o exclusiva
é o ú ltimo recurso dos que recusam a submissã o e a demissã o242.

L'Année sociologique 60: 305-330. 2010


241
DANTO, Arthur; Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história, Sã o Paulo:
Edusp, 2010, p. 9
242
BOURDIEU, Pierre; Les règles de l’art: génèse et structure du champ littéraire, Paris: Seuil, 1998,
p. 104. Mas a base da crítica deste “formalismo estético” vem de Lukà cs e sua crítica à literatura
de vanguarda com seu “rousseauismo pervertido, sua recusa do social” (LUKACS, Gyorg;
Realismo crítico hoje, Sã o Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 55)
Afirmaçõ es desta natureza procuram sustentar que a sequência de
decepçõ es histó ricas na Europa do século XIX (1830, 1848, 1871) teriam
mostrado à literatura, em especial, e à arte, em geral, sua impotência em se
colocar como motor do processo de transformaçã o social. Recusar a submissã o
do artista ao gosto jornalístico e à afirmaçã o do modo de vida de uma época de
reino da burguesia só seria possível através da constituiçã o de uma “religiã o
exclusiva” marcada pelo culto da arte pela arte. Este modelo compensató rio, que
fustiga tanto a independência social do artista quanto a independência formal de
sua linguagem, servirá de fundamento para todas as denú ncias que levantarã o a
voz contra os “formalismos” da arte no século XX, assim como contra a pretensa
incapacidade da arte integrar, em seu interior, a relaçã o crítica com o mundo
social. Pois se trata de desqualificar as consequências políticas das demandas de
autonomia estética por estas pretensamente serem a expressã o mais bem
acabada de uma dinâ mica de pura e simples evasã o.
Nesta leitura, a autonomia estética nã o pode ser compreendida, de forma
alguma, como estratégia de emancipaçã o social. Ao contrá rio, ao desqualificar a
procura da autonomia, tal leitura abre espaço à tematizaçã o da experiência social
da linguagem como necessariamente dependente de horizontes enraizados nas
formas de interaçã o e comunicaçã o pró prias ao mundo da vida ordiná ria, mesmo
com o risco de esquecer que tais formas de interaçã o estã o imersas em um
espaço de reificaçã o que toma principalmente as dinâ micas de circulaçã o da arte.
No entanto, podemos aceitar a prevalência dada por Greenberg à mú sica
lembrando, por outro lado, que talvez ele nã o estivesse atento ao fato de que, no
caso da estética musical, tal debate sobre a autonomia escapa do problema
estrito da auto-tematizaçã o da forma. Na verdade, ele se vincula ao
desdobramento de dois conceitos centrais para a estética moderna, a saber,
expressã o e sublime, e gostaria de trabalhar esses dois conceitos: o primeiro na
aula que vem e o segundo na aula de hoje.
A forma autô noma permitirá o advento de uma expressã o capaz de se
colocar como crítica à submissã o da subjetividade à convençã o do estilo e seu
regime estrito de cará teres, assim como à personificaçã o. Por isto, esta expressã o
estética será incompreensível se pensada nos limites da expressã o dos atributos
intencionais de uma individualidade fortemente organizada do ponto de vista
egoló gico. Por outro lado, a presença da temá tica do sublime na estética musical
(desde ao menos os textos de E.T.A. Hoffman sobre Beethoven) visa mobilizar a
força anti-representacional da mú sica como estratégia de crítica a um mundo
social de convençõ es e a uma noçã o social emergente de individualidade
marcada pelo auto-controle, pela determinaçã o através de propriedades e pelas
exigências de auto-preservaçã o. A desmedida do sublime é estratégia de crítica à
medida social imposta pelo horizonte de racionalizaçã o emergente do
capitalismo.

Primeira figura romântica da liberdade: o sublime em Beethoven

Compreendendo o sublime a partir da noção kantiana de “conceito


indeterminado da razão”243; ou seja, uma Ideia da razão que não é adequada a
particularidade de nenhuma determinação sensível, mas que pode ser reavivada pelo
espírito devido exatamente a esta inadequação, o romantismo alemão viu, na ausência
243
KANT, Immanuel; Kritik der Urteilkraft, Hamburg: Felix Meiner, 1988 p. 154
de determinação sensível das representações próprias à música instrumental, o melhor
veículo para a atualização de certa experiência da infinitude. Esta é a temática central
do que devemos entender por “música absoluta”. Lembremos como “música
absoluta” designa a ideia, profundamente romântica, segundo a qual a música
instrumental, desprovida de textos, programas e funções específicas, distante da
mimesis e da representação, realiza a essência absoluta da experiência musical. Trata-
se, com isto, de vincular a racionalidade musical à autonomização da esfera da música
em relação a uma origem na qual o sentido do fato musical não estaria em si mesmo,
sentido advindo dos modos de organização funcional do material, mas seria
dependente da função da música no interior de rituais ou na sua subordinação em
relação a textos recitados ou cantados: subordinação da linguagem musical à palavra.
Desta forma, a música instrumental seria um modo privilegiado de formalização
daquilo que não se deixa expressar diretamente, que seria “qualitativamente contrário
ao conceito”, já que a linguagem musical diria aquilo que a linguagem prosaica não
saberia dizer sem produzir determinações particulares vinculadas à indexação do
mundo dos objetos.

A possibilidade de uma linguagem para além dos limites cognitivos da


representação aparecerá como expressão maior de uma subjetividade capaz de deixar
para trás as convenção, as estruturas de percepção ligadas ao senso comum e ao
hábito. Neste contexto, a crítica da representação impulsionada pela reconfiguração
da categoria do sublime é peça maior de uma estratégia de liberação do sensível das
amarras do ordenamento naturalizado do espaço e do tempo, o que permite o advento
de formas singulares de experiência do sensível. Lida desta forma, a autonomia
estética em sua relação à metafísica do sublime não pode ser o resultado de estratégias
de purificação da linguagem visando constituir uma esfera de valores organizada a
partir de exigências de “legalidade própria”. Antes, ela é a emergência de uma
sensibilidade reconfigurada, ela é motor de uma “revolução na sensibilidade” 244 capaz
de fazer com que a potencialidade de novas formas da vida social, novas formas de
imbricação e síntese possam realizar expectativas emancipatórias de produção de
experiências singulares. Desta maneira, a linguagem musical produzirá a figura
sensível de uma experiência nova de liberdade na qual a emergência de uma força
capaz de reconstituir a forma da experiência para além dos modos de representação da
consciência poderá realizar uma heteronomia sem servidão.
Gostaria de tentar mostrar como isso ocorre musicalmente e para tanto
gostaria de discutir alguns aspectos de uma peça de Beethoven chamada
Abertura Coriolano. Comecemos por lembrar do que diz E.T.A. Hoffmann a
propó sito da mú sica de Beethoven.

“A mú sica de Beethoven suscita o medo, o horror, o terror e a dor, nos


elevando a esta nostalgia infinita (unendliche Senhsucht) que é a pró pria
essência do romantismo. Beethoven é um compositor puramente
româ ntico e nã o seria por isto que ele está menos a vontade na mú sica
vocal, que nã o deixa lugar para as emoçõ es indeterminadas
(unbestimmten Sehnens) por representar tais emoçõ es, que vem do reino
do infinito, apenas através da determinaçã o dos afetos pelas palavras?”245.

244
SCHILLER, Friedrich; A educação estética do homem, Sã o Paulo: Iluminuras, 1997
245
HOFFMANN, E.T.A.; Kresleriana, Reclam, 1986
Aqui, Hoffmann apresenta alguns dos traços fundamentais que
acompanharã o o conceito de sublime durante todo o século XIX. Primeiro,
Hoffmann afirma nã o apenas que Beethoven é puramente româ ntico, mas que a
mú sica é talvez a ú nica arte puramente româ ntica, como se devessemos assumir
uma aproximaçã o, cheia de consequências, entre “româ ntico” e “musical”.
Beethoven é româ ntico por ser eminentemente “musical”. Seria interessante
perguntar-se, no entanto, o que o adjetivo “musical” pode significar neste
contexto. Seguindo as discussõ es a respeito da noçã o de mú sica absoluta,
podemos dizer que “musical” significa, primeiramente, expressã o do que se
conserva em uma certa vagueza, daí o desconforto relativo de Beethoven com a
mú sica vocal. Pois o que é musical nã o tem a precisã o do que se define no
interior de um regime espacial de imagens ou do que se define pela capacidade
de categorizaçã o das palavras. Neste sentido, o que é musical desconhece a
“determinaçã o dos afetos”. Por isto, aquilo provido de qualidades musicais tem a
força de provocar em nó s uma “nostalgia infinita” por apresentar o que nunca
está completamente presente.
Mas o vocá bulo “infinito” nã o está aqui por acaso. Ele é importante por
expressar o desconforto dos artistas do começo do século XIX com as convençõ es
formais da linguagem e com a ordem social que elas representavam. Recorrer ao
infinito era a maneira româ ntica de se compreender em um tempo de mutaçã o
no qual a ordem social nã o podia mais aspirar fundamentaçã o que outrora teve,
no qual as normas que forneciam a funcionalidade da forma estética devia ser
sistematicamente questionada por parecerem “finitas”. Neste sentido, é
interessante lembrar como escritores como Hoffmann diziam que a mú sica era
talvez a ú nica arte realmente româ ntica por ter por ú nico objeto a expressã o do
infinito. “Expressar o infinito”, neste caso, significa: expressã o do que desarticula
nossa capacidade de estabelecer relaçõ es de identidade e diferença e que, por
isto, nega constantemente as aspiraçõ es construtivas da forma. O que é “musical”
é pois indeterminado, dispõ e-se em um jogo constante com o informe, nã o por
deficiência em relaçã o à prosa do conceito (como o anti-româ ntico Hegel
defendia), mas por proximidade com a experiência do infinito.
Hoffmann lembra como, para um certo ouvinte médio da época, a mú sica
de Beethoven nã o seria desprovida de fantasia. No entanto, ela seria
desorganizada, como se a fantasia subjugasse a forma, o que faria de suas
sinfonias uma sucessã o inconstante de sentimentos e caracteres. Como disse um
crítico da época, os ouvintes de Beethoven eram: “massacrados por uma massa
de ideias sobrecarregadas e sem relaçã o umas com as outras, assim como pelo
tumulto incessante de todos os instrumentos” 246. Mú sica composta por temas
fragmentados por serem, em sua maioria, pequenas ideias musicais de nã o mais
do que quatro compassos, ideias cujas transiçõ es sã o muitas vezes abruptas,
cortadas, marcadas por pausas e interrupçõ es.
Hoffmann precisa lembrar das opiniõ es deste “populacho musical”
(musikalischen Pöbel) para afirmar que tal desarticulaçã o dos princípios
construtivos da forma, que tal desregulaçã o das normas, produzida pela mú sica
de Beethoven, nã o era simples maneirismo, mas modo de trazer para o interior
da forma a tensã o entre a expressã o do infinito e a regularidade das convençõ es.
Este que reclamam de Beethoven procuram a unidade através do respeito à s

246
Apud ROSEN, Charles; Le style classique, p. 497
regras gramaticais da linguagem musical hegemô nica247. Mas eles deveriam
procurá -la na força unificadora da ideia. Nesta tensã o entre expressã o do infinito
e regularidade das convençõ es, a obra nã o se desagregaria em um mero jogo com
o informe porque a mú sica de Beethoven seria capaz de fornecer novos
processos construtivos.

Contra a comunidade

Um exemplo privilegiado do procedimento de Beethoven é sua Abertura


Coriolano. A obra é uma abertura para a versã o escrita por Heinrich Joseph von
Collin para a peça “Coriolano”, de Shakespeare. A peça de Shakespeare foca-se no
desterro do general romano Coriolano, heró i romano devido a sua bravura no
comando das tropas contra os Volscos.
Coriolano é a expressã o dos ideais aristocratas de honra, bravura e
arrogâ ncia. Por isto, sua relaçã o com as demandas populares e com os tribunos
sempre foi de completa incompreensã o. Ao ser nomeado cô nsul romano pelo
senado e pedir o voto do povo, Coriolano mostra toda sua inabilidade,
conseguindo despertar a ira popular e ser banido de Roma. Ou seja, Coriolano é,
acima de tudo, aquele que nã o sabe como falar com o povo, ele é aquele que
simplesmente nã o sabe como se expressar.
Na condiçã o de banido, ele acaba por se aliar aos antigos inimigos a fim de
marchar sobre a cidade. À s portas de Roma sitiada a indefesa, Coriolano prepara-
se para o ataque final quando sua mã e e esposa aparecem rogando-lhe que
abandone seu ó dio e nã o invada a cidade. Tomado de tristeza, Coriolano ouve as
mulheres e abandona seus planos, o que lhe levará à morte pelas mã os dos
Volscos.
Ao adaptar a peça de Shakespeare, Collin faz duas mudanças principais.
Primeiro, ele atenua o aristocratismo da peça, retirando muitos dos momentos
no qual o desprezo pela pretensa inconstâ ncia e pela irracionalidade da opiniã o
popular sã o evidentes. Mas, principalmente, o Coriolano de Collin se suicida,
deixando mais clara sua dimensã o de heró i trá gico. Ele é o homem sem
comunidade, sem lugar, cuja certeza de si o exila do contato com os outros
homens. Personagem que representa com clareza a tensã o da individualidade
moderna nascente com sua potência de incomunicabilidade, com sua expressã o
assombrada pela indeterminaçã o. Homem só capaz de parar diante do objeto de
desejo em vias de dissoluçã o. Assim, ao escolher transformar a morte de
Coriolano em suicídio, Collin permite a exploraçã o da consciência da experiência
moderna da desorientaçã o diante da tentativa de ocupar um lugar marcado pelo
desterro.
A composiçã o de Beethoven dá forma à estrutura do conflito já na pró pria
construçã o da ideia musical. Pois a ideia musical, exposta logo nos primeiros
acordes, é baseada nas modulaçõ es possíveis de uma relaçã o de polaridade e
conflito entre dois grupos de notas. Tal polaridade irá estruturar praticamente
toda a mú sica, aparecendo como elemento construtor interno aos motivos (como
podemos ver na partitura em anexo). Já o motivo que aparece nos compasso 15 a
19 demonstra claramente um procedimento no qual a polaridade opositiva entre

247
Por tal razã o, Charles Rosen lembrará que: “antes de Beethoven, nenhum compositor tinha tã o
claramente ignorado o limite de seus intérpretes e de seu auditó rio” (ROSEN, Charles; Le style
classique, Paris: Gallimard, p. 488)
duas notas serve de base construtiva. Tal polaridade nunca se resolve, mas é
simplesmente cortada e suspensa antes de se completar (como no final deste
primeiro motivo) ou aumenta por acumulaçã o e intensidade. Ela é o melhor
exemplo de como: “em Beethoven, ideias formais e detalhes meló dicos vem à
existência simultaneamente; o motivo singular é relativo ao todo. Ao contrá rio,
no final do século XIX a ideia meló dica funciona como um motivo no sentido
literal da palavra, colocando a mú sica em movimento e providenciando a
substâ ncia de desenvolvimento na qual o tema em si foi elaborado” 248. No caso da
Abertura Coriolano, podemos dizer que o motivo é a pró pria ideia musical.
Esta permanência extensiva da ideia musical permite integrar
acontecimentos que poderiam ser compreendidos como negaçõ es radicais da
funcionalidade da obra. Um exemplo maior encontra-se na forma com que a
polaridade dinâ mica entre notas se transforma em polaridade conflitual entre
motivos e temas. A peça toda é atravessada pelo antagonismo entre os motivos,
associados a Coriolano e organizados basicamente através de polaridades entre
duas notas e um tema meló dico sinuoso associada à s vozes femininas da mã e e
da mulher. A primeira apresentaçã o do motivo, pelo primeiro grupo de violinos e
pelo grupo de violas, é na tô nica de dó menor. A segunda é sob uma modulaçã o
para a tô nica de si bemol menor. Nã o por acaso a construçã o da melodia
feminina é baseada em um acorde perfeito de dó maior quando tocada pelos
violinos e em um acorde perfeito de si maior quando tocada pelos clarinetes. A
ideia de contraposiçã o e distensã o é evidente, embora nã o seja possível dizer que
exista aí alguma organizaçã o baseada, por exemplo, no esquema antecedente-
consequente ou mesmo em algum princípio de transiçã o. Poderíamos pensar em
uma relaçã o de contraste, mas tal contraste nã o segue nenhuma forma de
desenvolvimento orgâ nico. Em certos momentos, ele opera por simples
justaposiçã o ou se serve de longas pausas e suspensã o da dinâ mica para a
melodia “feminina” ser reapresentada. É possível dizer que a peça se move por
antíteses, já que os momentos, tomados individualmente, parecem contradizer
uns aos outros. Ou seja, tomados isoladamente, cada um dos momentos musicais
contradiz o que lhe segue. Esse cará ter irresoluto do conflito chega até o final da
peça, onde a transposiçã o musical da ideia do suicídio de Coriolano ganha forma
de um final sem superaçã o, mú sica que simplesmente dissolve sem cadência
conclusiva ou promessa de reconciliaçã o teleoló gica. Ela nã o se resolve, ela
simplesmente para.
Nesse ponto, encontramos uma ideia fundamental. A impossibilidade de
resoluçã o do conflito, a contínua luta contra a organicidade, nã o nos leva, como
poderíamos inicialmente esperar, a uma forma sem força sintética. Pois a
processualidade da ideia já fornece a unidade no nível construtivo. Este é o ponto
central: a contradição entre os momentos, potencializada pela eliminação de
processos visíveis de transição, não chega a eliminar a univocidade produzida pela
relação de cada momento à ideia. A ideia tem a força de se refratar em
atualizaçõ es contraditó rias, sem com isto perder sua univocidade. Pois ela
desenvolve, ao mesmo tempo, o antagonismo entre a finitude de seus momentos
e a univocidade de sua processualidade infinita que absorve a multiplicidade das
determinaçõ es.
Mas se a ideia musical está , no caso de nossa obra, ao mesmo tempo na
voz de Coriolano e na voz de suas mulheres, se ela está , ao mesmo tempo, no
248
DAHLHAUS, Between romanticism and modernism, p. 42
reconhecimento da individualidade expulsa da comunidade e na voz da
comunidade que pede para ser poupada é porque a ideia expressa a inexistência
de um solo comum, na efetividade, no qual essas duas vozes poderiam nã o entrar
em contradiçã o. Por isto, ela só pode aparecer como o que constitui os temas e
motivos e o que os dissolve em um puro devir que expõ e exatamente a
fragilidade do enraizamento de todos os momentos. Tanto a comunidade quanto
a individualidade sã o momentos a serem dissolvidos. Em Abertura Coriolano,
Beethoven mostra de forma clara como a essência do que constitui as vozes já é o
que as dissolve como momentos de um devir.
De certa forma, essa é uma interpretaçã o que fundamenta boa parte da
compreensã o feita por Theodor Adorno a respeito de Beethoven. Tal
compreensã o parte da defesa de que a unidade da obra é fornecida pela
exploraçã o sistemá tica do cará ter da forma como processo. Tomemos, por
exemplo, uma afirmaçã o a respeito da conhecida comparaçã o adorniana entre
Beethoven e Hegel:

“A realizaçã o de Beethoven encontra-se no fato de que em sua obra – e


apenas nela – o todo nunca é externo ao particular, mas apenas emerge de
seu movimento, ou melhor, o todo é este movimento. Em Beethoven nã o
há mediçã o entre temas mas, como em Hegel, o todo como puro devir é a
mediaçã o concreta”249.

Esta é a maneira de dizer que, em Beethoven a ideia musical é o que


constró i uma noçã o de totalidade dinâ mica. Ideia que, pela sua clareza na
apresentaçã o (e por nunca quebrar algumas estruturas elementares de base,
como, por exemplo, a polaridade entre tô nica e dominante), permite ao ouvinte
conservar a percepçã o da processualidade interna da forma, mesmo à despeito
da presença de tudo aquilo que, à época, seria visto como índices de uma forma
em desagregaçã o, em flerte contínuo com o informe. Por isto, nã o há exatamente
mediaçã o entre temas, mas um devir contínuo, que nunca para por parecer ser
capaz de se desdobrar em tudo. Desta forma, a temá tica do sublime pode
aparecer como modo de compreensã o da autonomia das obras em relaçã o à s
regularidades formais e à s convençõ es de estilo.

249
ADORNO, Beethoven, p. 24
Arqueologia da liberdade
Aula 14

Revendo nosso trajeto

Esta é a ú ltima aula de nosso curso. Apesar das dificuldades desse semestre
atípico, conseguimos chegar ao fim. Antes de entrar no assunto específico de
nosso ú ltimo encontro, gostaria de recompor rapidamente nosso trajeto nesse
semestre a fim de esclarecer os problemas centrais que, a meu ver, devem guiar
toda discussã o contemporâ nea a respeito do tema da liberdade.
Primeiro, eu comecei lembrando a vocês que nossas discussõ es sobre o
conceito de liberdade normalmente partem de certa limitaçã o: elas falam do
desenvolvimento dos debates e lutas no ocidente. Infelizmente, ainda nã o somos
formados para desenvolver uma verdadeira perspectiva comparatista que nos
permitisse sair da ilusã o de que a liberdade é uma invençã o ocidental e construir
assim articulaçõ es fortes entre processos histó ricos. Mais do que qualquer outro
conceito filosó fico, a noçã o de liberdade transformou-se, entre outras coisas, em
peça fundamental do que chamamos de “dispositivo colonial”. Pois se trata de
dar a impressã o de que a liberdade é uma produçã o da modernidade ocidental
com suas instituiçõ es, modos de vida e espaços pú blicos. O que faria com que a
histó ria mundial devesse necessariamente ser a irresistível histó ria do “devir
ocidental do mundo”, com toda a violência e destruiçã o que sabemos muito bem
que isto implica.
Contra isto, nã o foram poucos aqueles que insistiram na necessidade
urgente de abandonar toda perspectiva de histó ria global, o que implica, a meu
ver, uma estratégia equivocada e catastró fica. Pois temos uma histó ria mundial,
no seu centro encontra-se o capital e seus processos de auto-valorizaçã o. Nossas
vidas estã o completamente conectadas no interior dessa falsa universalidade que
produz processos que fazem com que tudo o que seja só lido se desmanche no ar.
Contra essa histó ria mundial baseada em uma falsa universalidade, só mesmo
outra histó ria universal baseada em uma universalidade concreta por vir, na qual
a experiência da liberdade desempenhará papel central.
No entanto, esta experiência nã o se construirá sem antes abandonarmos o
modelo de universalidade concêntrica, com sua crença na existência de
localizaçõ es privilegiadas nas quais emergem os processos de liberdade que
depois deverã o se espalhar por todo o mundo. Localizaçõ es que, nã o por acaso,
estariam em solo europeu. Nó s tivemos uma aula sobre o impacto da experiência
ameríndia de liberdade no pensamento europeu exatamente para mostrar quã o
colonial era esta ideia, ainda fortemente presente entre nó s, de que o destino dos
que procuram a liberdade é se tornarem “bons europeus”.
Anteriormente, eu havia dito que deveríamos assumir uma histó ria
universal que nã o é a descriçã o irresistível de processos de contá gio de lutas e
experiências políticas que ocorrem inicialmente no ocidente. Na verdade, haveria
uma histó ria mundial que nã o opera de forma concêntrica, mas que opera sob a
forma de ressonâ ncias. Isto significava partir do princípio de que experiências de
emancipaçã o e liberdade estã o presentes em todas as formas de vida dispersas
geográ fica e historicamente. Tais formas podem “entrar em ressonâ ncia”, ou seja,
experiências locais podem fazer ressoar experiências em outras localidades
criando uma espécie de constelaçã o. Ou seja, nã o se tratava de contrapor a
histó ria mundial a uma perspectiva que libera a força das localidades e das
territorialidades singulares. Tratava-se de contrapor uma falsa histó ria mundial
a uma histó ria mundial des-colonial, capaz de colocar em pé de igualdade
mú ltiplas emergências locais de tensõ es em direçã o à liberdade. O que
significava assumir que as experiências dispersas de liberdade nã o sã o
indiferentes umas à s outras. Elas se contaminam, mas só podem se contaminar
no interior de uma histó ria mundial, até que elas consigam criar relaçõ es de
ressonâ ncia, permitindo a emergência de um processo global com mú ltiplos
enraizamentos locais.
Como havia dito anteriormente, ainda nã o somos formados em nossos
departamentos de filosofia para tal tarefa. Mas há algo que podíamos fazer e que
consistia em recuperar a arqueologia da experiência da liberdade levando em
conta com tal operaçã o faz parte de certa crítica de nó s mesmo, crítica daquilo
que nos tornamos. Ou seja, tratava-se de uma arqueologia que nã o visava
explicitar o processo histó rico de constituiçã o dos fundamentos normativos dos
conceitos hegemô nicos de liberdade presentes em nossas formas de vida. Nã o se
tratava de confundir gênese e validade, mas de procurar entender como
desenvolvemos a auto-crítica das nossas formas de vida.
Tendo este espírito em vista, partimos da constituiçã o da noçã o de
liberdade como auto-pertencimento entre os gregos. Tentei demonstrar o que
significava pertencer a si mesmo em um horizonte social no qual “si mesmo” nã o
indicava a presença de uma individualidade fortemente determinada. De nada
adianta dizermos que a liberdade entre os gregos se funda na articulaçã o
conjunta entre operadores de autonomia, de autarkeia e autoctonia se nã o está
claro o que devemos entender por “autos” neste contexto. Primeiro, eu recusei a
ideia, presente em autores como Hannah Arendt, de que a liberdade entre os
gregos era fundamentalmente uma questã o de liberdade interior e apolítica.
Liberdade como afastamento do horizonte da política, mesmo que a política seja
o campo de açã o de homens que nã o sã o servos, ou seja, homens livres. O
afastamento em relaçã o à comunidade, como vemos nos cínicos e nos estoicos,
era feito em nome de uma recuperaçã o da força normativa da physis. Vimos, por
exemplo, como os cínicos se contrapõ em à polis em nome do retorno à natureza
enquanto plano de imanência que permite a orientaçã o da açã o virtuosa e a
constituiçã o de um noçã o específica de “si pró prio”. Essa ética da virtude nã o é
apenas fruto da crença de que as consideraçõ es exclusivas sobre o cará ter moral
dos agentes poderiam definir as condiçõ es para a felicidade. Trata-se de, na
verdade, naturalizar as virtudes morais. A natureza é o nome do espaço do
pertencimento de si no cinismo e no estoicismo. Isto funda um nomadismo
cosmopolita (no caso do cinismo), uma moralidade do acontecimento que vê o
exercício do logos como apropriaçã o (oikeiosis) do curso do mundo (como no
caso do estoicismo). Este tipo de auto-pertencimento tem consequências
políticas, pois pode alimentar uma força destituinte em relaçã o ao poder, o que
está mais claro no cinismo do que no estoicismo.
Durante o primeiro mó dulo, eu apresentei alguns casos de tentativas
contemporâ neas de recuperaçã o do conceito de liberdade como auto-
pertencimento. Falei um pouco de Deleuze, mas o horizonte fundamental foi
Foucault. Ficou em aberto a possibilidade contemporâ nea de tal recuperaçã o.
Depois disto passamos à discussã o a respeito da liberdade como
propriedade de si. Tentei mostrar como, mesmo nã o nascendo exatamente
dentro de um horizonte liberal, ela se consolidará como pressuposto
fundamental do liberalismo e de um dispositivo maior de consolidaçã o da nossa
forma ocidental de vida a partir de certa “metafísica da propriedade” que serve
de base ao capitalismo. Levando em conta teó ricos do neoliberalismo e de certas
versõ es do liberalismo, como essa defendida por Robert Nozick, procurei
mostrar como consolidou-se as condiçõ es sociais para a generalizaçã o da forma-
propriedade enquanto horizonte regulador da vida social. A meu ver, isto
invalida toda e qualquer tentativa de recuperaçã o da liberdade como auto-
pertencimento.
No interior de nossas sociedades capitalistas, todas as formas de
pertencimento e possessã o foram colonizadas por um regime geral expresso nas
relaçõ es de propriedade. Nã o seria possível a uma reflexã o pró pria a filosofia
política ignorar tal situaçã o. Nã o seria possível ignorar que existe algo como uma
força metafísica do capitalismo, ou seja, um modo de conformaçã o das
possibilidades gerais de existência e de relaçã o através da generalizaçã o de uma
ontologia de propriedades que organiza até mesmo nossas formas de luta e de
resistência. Até mesmo o vocabulá rio de nossas lutas é conjugado no interior de
uma ontologia de propriedades, na qual é questã o sempre de explicitar o que me
seria “pró prio”, o que seria “meu”.
Mesmo quando a democracia liberal foi criticada do ponto de vista da
defesa dos bens comuns, tal crítica foi feita normalmente em nome de outra
forma de propriedade, de outra forma de possessã o, a saber, a propriedade
coletiva250. Raros foram os momentos nos quais tal crítica foi feita em nome da
possibilidade de circulaçã o do que é impró prio, do que nã o é configurado como
propriedade. Isto demonstra como boa parte de nosso esforço crítico
permaneceu no mesmo horizonte normativo que fundamenta o que gostaríamos
de criticar.
Foi tendo isto em mente que procurei explorar a ambiguidade imanente
a uma forma fundamental de auto-pertencimento na filosofia ocidental, a saber, a
ideia de auto-legislaçã o, fundamento das noçõ es modernas de autonomia e livre-
arbítrio. Vimos como a base de nossa noçã o ocidental de auto-legislaçã o era
teoló gica, ela se assentava em uma desqualificaçã o teoló gica das estruturas
motivacionais vinculadas à libido. Por isto, o controle de si pressuposto pela
auto-legislaçã o que aparece com Agostinho tem um cará ter de internalizaçã o da
culpa, de sujeiçã o a uma autoridade exterior (na caso, deus) que difere
radicalmente dos dispositivos de autarkeia dos gregos. A liberaçã o em relaçã o
aos impulsos e inclinaçõ es, a ascese grega é um exercício de fortalecimento de si,
nã o exatamente de submissã o da minha arrogâ ncia, vinda do pecado original, à
vontade de um outro. Ela é a expressã o da distâ ncia contínua de mim em relaçã o
a mim mesmo. Esta identidade de si é uma identidade continuamente diferida.
De certa forma, a noçã o moderna de autonomia irá preservar este modelo
paradoxal de auto-pertencimento, mesmo quando a matriz teoló gica for
relativizada. Nó s vimos isto através de Rousseau e Kant. De formas distintas,
fomos confrontados com uma junçã o singular entre auto-pertencimento e
transformaçã o. Se a vertente liberal da reflexã o sobre a liberdade acaba por
250
Para um modelo de crítica baseado na despossessã o, ver AGAMBEN, Giorgio; Altíssima
pobreza: regras monásticas e formas de vida, Sã o Paulo: Boitempo, 2014
realizar os processos de auto-pertencimento como propriedade de si, essa matriz
que, entre outras características, é nã o-liberal trará no seu bojo o elemento
paradoxal de que só posso ser mim mesmo se me abrir a algo que nã o pode ser
pensado sob a forma dos sistemas individuais de interesses, da propriedade de
sua pró pria pessoa, que o sujeito liberal exerce como fundamento de sua
soberania.
Na aula passada, tentei defender com vocês que esse ímpeto de
transformaçã o de si é o elemento decisivo para a consolidaçã o da autonomia
estética. Para além da temá tica da autonomia como auto-referencialidade, tã o
presente nas críticas ao pretenso “formalismo” da arte moderna e
contemporâ nea, para além da leitura compensató ria da autonomia estética
(Bourdieu, Lukà cs, entre tantos outros) comecei a defender com vocês a
necessidade de compreender o tó pico da autonomia estética como um motor
fundamental do giro auto-crítico do conceito de liberdade no ocidente. Se
liberdade está ligada nã o apenas a jurisdiçã o de si, mas principalmente à
capacidade de nã o agir a partir do medo, e se a forma da auto-legislaçã o sempre
foi assombrada pelo medo da perda de si, da deriva, da insubmissã o, entã o a
experiência estética nos acostuma a nã o temer o que nos aparece como
impró prio, insubmisso, irredutivelmente outro, pois isto vem de nossa pró pria
atividade.
Se na aula passada, começamos a abordar este ponto através da discussã o
sobre o conceito de sublime, eu prometera que essa nossa ú ltima aula seria
dedicado ao conceito de expressã o estética. A escolha obedece a vá rias razõ es,
mas há ao menos uma que gostaria de salientar. O conceito de sublime,
contrariamente ao conceito de belo, permaneceu como horizonte de
compreensã o da racionalidade das obras de arte. Nã o apenas filó sofos
contemporâ neos continuaram a mobiliza-lo (Adorno, Lyotard), mas a arte
contemporâ nea (Barnet Newman, Mark Rothko) e a literatura (Paul Celan,
Wallace Stevens).
Já o conceito de expressã o poderia parecer obsoleto diante de um
momento histó rico no qual operadores como gênio artístico, autoria,
autenticidade, parecem entrar definitivamente em colapso. Mas gostaria de
voltar mais uma vez ao romantismo a fim de demonstrar porque creio que se
trata de um operador decisivo se quisermos compreender a arte como uma
prá tica de liberdade.

Para introduzir o conceito de expressão

Gostaria de partir de uma tese. Longe de ser a insistência no culto a um Eu


excessivo e exaltado, a expressã o estética a partir do romantismo seria marcada
pela tentativa de: “liberar totalmente de suas cadeias um sujeito até entã o
entravado mesmo na expressã o de seu sofrimento pelas convençõ es expressivas
controladas pela burguesia”251. Levar tal colocaçã o a sério implica assumir que
nã o se tratará da consolidaçã o de dinâ micas de “expressã o de si”, como se
estivéssemos diante de: “um processo de ‘subjetivaçã o’ [dos afetos] na ascensã o
da sociedade burguesa”252. Esta leitura corrente visa integrar a formaçã o da

251
ADORNO, Theodor: Figuras sonoras, p. 118
252
WELLMER, Albrecht; Versuch über Musik und Sprache, Munique: Carl Hanser Verlag, 2009, p.
17
expressã o estética româ ntica no interior do quadro de afirmaçõ es da
individualidade liberal em ascensã o. Como se a arte fosse reflexo de tal processo,
como se os artistas fossem representantes letrados da ascensã o liberal, e nã o
críticos de suas ilusõ es.
Pensar a expressã o como liberaçã o do sujeito de convençõ es controladas
pela burguesia significa, no entanto, liberar um sujeito até entã o conformado à s
convençõ es da individualidade burguesa e a ilusõ es que, um século mais tarde,
chamaremos de “comunicacionais”. Sem esta liberaçã o nã o será possível haver
política, pois as formas de reproduçã o da vida social estarã o intocadas nas
estruturas da psicologia dos sujeitos, no circuitos de seus afetos, nas crenças de
sua vida interior. É neste sentido que compreender melhor as dinâ micas ligadas
à construçã o do conceito de expressã o estética aparece como momento
fundamental para analisarmos as expectativas de emancipaçã o social que as
obras de arte ainda seriam capazes de fazer circular. Ela marca, e isto temos
dificuldade cada vez maior em pensar, a emancipação do sujeito diante de sua
condição de indivíduo. Assim, se aceitarmos que a especificidade da arte como
experiência é o fato dela ser uma experiência social da liberdade ou, como
querem alguns, uma “prá tica da liberdade”253 capaz de mostrar à sociedade o que
a liberdade pode ser, se aceitarmos que ela funciona nã o apenas como um
discurso compensató rio à ausência efetiva de liberdade na vida social, mas como
uma das fontes principais de um desejo de liberdade que irá impulsionar
transformaçõ es estruturais na vida social, entã o diremos que é a realizaçã o da
arte como linguagem expressiva que permite aos sujeitos fazerem a experiência
da liberdade. A arte, a partir de certo momento histó rico, cria algo até entã o
inédito, algo fortemente associado a constituiçã o de uma nova consciência da
liberdade, a saber, uma linguagem expressiva.
A este respeito, lembremos, por exemplo, como Lessing compreende o
advento da arte dos tempos modernos, entre outros, através de uma dissociaçã o
possível entre expressã o e beleza. Afirmando que a arte nos tempos modernos
conquistara fronteiras incomparavelmente mais largas, ele dirá :

A sua imitaçã o, diz-se, estender-se-ia a toda natureza visível, da qual o


belo é apenas uma pequena parte. Verdade e expressã o seriam a sua
primeira lei; e assim como a natureza mesma sacrificaria a toda hora a
beleza a intençõ es superiores, do mesmo modo também o artista deveria
subordiná -la ao seu desígnio universal e nã o entregar-se a ela mais do que
verdade e expressã o o permitem. Em suma, graças à verdade e à
expressã o o mais feio da natureza é transformado num belo da arte254.

As colocaçõ es de Lessing sã o exemplares a respeito das mutaçõ es


româ nticas da categoria de expressã o. Por se vincular a um conceito de verdade
elevado à orientaçã o da experiência estética, e nã o a um conceito de fruição, a
expressã o nã o se submete mais à s disposiçõ es normativas da beleza. Suas formas
se alargam em direçã o ao que é indiferente à medida, à proporçã o e à simetria da
beleza. Impulsionada por uma demanda de autenticidade que chega mesmo a

253
Ver a este respeito a bela reflexã o presente em BERTRAM, Georg; Kunst als menschlische
Praxis: eine Ásthetik, Frankfurt: Suhrkamp, 2014
254
LESSING, G.E.; Laocoonte ou Sobre as fronteiras da pintura e da poesia, Sã o Paulo: Iluminuras,
2011, p. 101
questionar a beleza, como se esta nã o participasse das “intençõ es superiores” e
do “desígnio universal” do artista, a expressã o se abre à experiência da
desmesura pró pria ao sublime.
Notemos, no entanto, que o termo “expressã o” mudará de sentido quando
indicar a manifestaçã o da genialidade do artista, isto a partir do final do século
XVIII. Pois a noçã o de gênio é tributá ria daquilo que Adorno entende como a
questã o fundamental do romantismo, a saber: “esta de um estado de consciência
que nã o pode mais se fiar em canon formal objetivo algum e deve objetivar por si
mesmo, a partir de seu pró prio peso, as leis de gravitaçã o de sua pró pria
subjetividade”255. Isto nos auxilia a compreender porque antes do romantismo, a
expressão estava, em larga medida, ligada à mimesis, à capacidade de imitar de
maneira perfeita, um pouco com se espera de um artista de teatro que ele
expresse de maneira perfeita seu personagem. Vínculo entre expressã o e
mimesis que, ao menos sob esta forma, desaparecerá com a noçã o româ ntica de
gênio, isto a ponto de alguém como Lizst afirmar claramente: “A mú sica nã o
imita, ela expressa”. Assim, a genialidade do artista estará ligada à sua
capacidade em quebrar a regularidade da forma sem desestruturá -la
completamente. Quebras que fornecerã o uma tensã o interna à forma, que
mostrarã o à forma que ela sempre será assombrada por algo de informe.

A destituição do território

Gostaria de analisar o problema da expressã o em Chopin através de dois


exemplos. Um diz respeito a essa articulaçã o fundamental no romantismo entre
experiência estética e emergência do povo, ou seja, da arte como forma de
emancipaçã o social através da auto-determinaçã o do povo. O outro diz respeito à
reconstruçã o do corpo.
Seria importante lembrar aqui que há maneiras distintas de se procurar
por um povo. Podemos faze-lo à maneira dos compositores nacionais que
recuperam e catalogam materiais folcló ricos, mú sicas populares a fim de
contribuir para a consolidaçã o da identidade nacional no interior da afirmaçã o
dos estados-naçã o. Dvorak, Janacek e os tchecos, Grieg e os noruegueses, Sibelius
e os finlandeses, Borodin e os russos, Villa-Lobos e os brasileiros. A absorçã o do
folclore pelos compositores era, na verdade, peça maior da estratégia burguesa
de enraizar sentimentos nacionalistas em uma “gramá tica da origem” capaz de
fornecer a ilusã o de uma continuidade identitá ria, de materiais musicais
tipicamente nacionais, como os cristais da Boêmia, o café brasileiro e os queijos
franceses. Mas seria este exatamente o caso de Chopin e os poloneses? Já se
procurou sem grande sucesso traços diretos de materiais folcló ricos em suas
Mazurkas, com resultados extremamente limitados, nã o indo além de referências
ligadas a um imaginá rio popular bastante genérico, até porque, compor danças
polonesas era algo feito pela “mú sica séria” desde a renascença. Eles
praticamente inexistem em suas Polonaises, peças no entanto organicamente
animadas pelo sentimento de procura de um povo em vias de desapariçã o, assim
como inexiste o trabalho temá tico com o mito ou com marcas do Volkgeist.
Por isto, podemos dizer que no caso de Chopin e suas Polonaises, o eixo
principal de sua procura por um povo, é outro. O que encontramos inicialmente é
a reformulaçã o completa de um gênero que, até entã o, aparecia como gênero
255
ADORNO; Figuras sonoras, p. 116
menor ligado à dança, ao divertimento e, por isto, a estereotipia das formas. Um
gênero menor e completamente tipificado advém uma forma-extensa com
desenvolvimento verdadeiramente sinfô nico e força dramá tica. Este novo
desenvolvimento da Polonaise como forma-extensa des-identifica os materiais,
retirando sua tipificaçã o estrita.
Note-se, por exemplo, o sentido de Chopin chamar por um povo
privilegiando operaçõ es musicais como a elevaçã o intensiva de operaçõ es por
contrastes e por diferenciaçã o de sentimentos no interior do mesmo tema,
muitas vezes no interior da mesma frase musical. Notemos como estas
diferenciaçõ es sã o, na verdade, diferenciações em continuidade. Que tenhamos
em mente o exemplo da Polonaise n.5 e suas resoluçõ es através de cortes
abruptos que, no entanto, resolvem a ú ltima nota do tema no início do tema
seguinte de intensidade completamente oposta, criando assim uma continuidade
onde deveria haver apenas ruptura.
Este ponto nos leva a outra característica musical importante. Chopin
chama um povo fazendo apelo a um fluxo constante de desconstituiçõ es e
recontextualizaçõ es semâ nticas que transformam o sentido de peças
normalmente usadas para chamar musicalmente um povo, como hinos, marchas,
danças e uníssonos. Os elementos musicais pró prios a hinos, marchas e danças
estã o lá , mas em um jogo de passagens e instabilidade tal que lhes retira a
capacidade de, digamos, fundamentar um solo. Os hinos se dissolvem em
contrapontos, as marchas viram danças, as danças carregam uma tensã o, vinda
da ressonâ ncia dos momentos musicais anteriores ainda vivos e prestes a
reemergir, que retiram da dança sua funçã o de divertimento. Isto nos permite
dizer que este povo chamado por Chopin, constitui seus vínculos e seus sistemas
de transmissõ es através da partilha de uma expressã o que nã o terá solo,
expressã o que constró i um espaço musical em fluxo contínuo de transformaçã o.
Fluxos muito intensos para fundar um solo.
Neste sentido, se a emancipaçã o política no século XIX esteve tã o
vinculada à construçã o de um territó rio nacional, com seu imaginá rio de
libertaçã o e recuperaçã o de uma origem silenciada, a estratégia de Chopin segue
outra coordenada. Ela é um esforço contínuo de desconstituiçã o de territó rios, de
invasã o de forças heterogêneas que desestabilizam formas e produzem um
espaço de mú ltipla imbricaçã o. Há de se atentar para este modelo de
emancipaçã o através da abertura a forças heterogêneas. Como disse
anteriormente, ela fornece um outro modelo de emancipaçã o, nã o mais ligada à s
ilusõ es autá rquicas de autonomia e jurisdiçã o de si.
De toda forma, nã o é por acaso que tal modelo aparece a respeito dos
poloneses do século XIX. Neste momento, como dirá Engels: “polonês e
revolucioná rio sã o dois termos idênticos”. Afastado do pan-eslavismo e sua
ressureiçã o contra-revolucioná ria de arcaísmos, os poloneses seriam, na
perspectiva de Engels e Marx, o ú nico povo eslavo capaz de aceder a uma
consciência revolucioná ria visando a emancipaçã o coletiva256. Já sua constituiçã o
de 1791 fora acusada de jacobinismo e simpatias revolucioná rias, o que motivara
a guerra russo-polonesa e a posterior partiçã o da Polô nia. Apó s a partiçã o, vá rias
revoltas se sucedem, em especial Varsó via, em 1830, e principalmente Cracó via,
em 1846. Marx e Engels dirã o que a insurreiçã o de Cracó via deveria ser vista
como um modelo por ser o primeiro movimento na Europa a hastear a bandeira
256
Ver ENGELS, Friedrich; “A revolta hú ngara”, In: Nova Gazeta renana, 13 janeiro 1849.
da revoluçã o social, sendo nã o apenas uma revoluçã o nacional, mas uma
revoluçã o de emancipaçã o de classes, o que os fazem defender sua posiçã o de
precursora das revoluçõ es de 1848. Ou seja, o vínculo à causa polonesa tem, no
século XIX, uma complexidade para além do problema da emancipaçã o nacional.

Reconstituir um corpo expressivo

Mas tentemos desenvolver o problema da expressã o musical como


abertura ao heterogêneo através da discussã o de algumas peças paradigmá ticas
dos Estudos para piano. Comecemos por lembrar que uma abordagem do
conjunto dos Estudos de Chopin em seus dois livros, o opus 10 e o opus 25, além
dos três Estudos sem opus publicados posteriormente, demonstra como nã o se
trata no caso de Chopin apenas de apresentar dificuldades técnicas para a
formaçã o das habilidades musicais do interprete. Trata-se de algo mais
audacioso, a saber, reencontrar o corpo, reconstruir seus gestos com suas
intensidades e movimentos, recuperar a mã o através de dedilhados e
movimentos que construam para cada um dos dedos uma sonoridade que lhes
seria pró pria.
Nã o deixa de ser interessante lembrar aqui como a mú sica
contemporâ nea foi sensível a esta natureza fundamental do gesto musical que
anima o princípio construtivo de Chopin e enraíza sua linguagem musical.
Tomemos, por exemplo, a seguinte afirmaçã o do compositor hú ngaro Gyorg
Ligeti à ocasiã o de uma explanaçã o a respeito de seus Estudos para piano:

Para uma peça ser bem resolvida para o piano, conceitos tá teis sã o quase
tã o importantes quanto conceitos acú sticos (...) Um giro meló dico ou uma
figura de acompanhamento chopinesco nã o é apenas ouvido, mas é
também sentido como uma forma tá til, como a sucessã o de excertos
musculares. Uma peça de piano bem formada produz prazer físico257.

Se uma peça pode produzir prazer físico é porque ela esculpe a dinâ mica
dos corpos, ela produz um certo esquema corporal que ganha realidade através
da repetiçã o de movimentos. Esta inscriçã o da corporeidade em um processo de
produçã o de sons é uma forma importante de desvelamento da existência de
uma certa expressã o corporal resultante de uma verdadeira “disciplina de
artista”, ligada a uma trabalho sobre si que faz do corpo o campo de
desdobramento daquilo que Ligeti chama de “conceito tá teis”.
Mas há algo mais do que produçã o de um esquematismo corporal em
Chopin e é este ponto que merece nossa atençã o. Se é verdade que: “nos Estudos
de Chopin, o momento de maior tensã o emocional é geralmente aquele que a
mã o é alongada da maneira mais dolorosa, de maneira que a sensaçã o muscular
se transforme – mesmo sem o som – em uma mimesis da paixã o”258 é porque,
muitas vezes, esta escultura da dinâ mica dos corpos nã o é apenas a constituiçã o
de uma regularidade, mas o aprendizado das paixõ es naquilo que elas tem de
mais amedrontador, ou seja, na confrontaçã o com o ponto no qual tensã o
emocional e limite corporal se tocam.

257
LIGETI, Etudes,
258
ROSEN, Charles; The romantic generation, p. 383
Esta gramá tica que nã o é apenas o ensino da regularidade, mas o
desenvolvimento da confrontaçã o com o limite, nã o se contenta em ser o
conjunto de condiçõ es para o desenvolvimento da virtuose pianística. Ela é o
desenvolvimento da forma como passagem em direção ao limite, como se
realizaçã o da forma e sua pró pria dissoluçã o fossem processos indissociá veis.
Por isto, tal gramá tica nã o é apenas um exercício de virtuose, mas a conquista da
expressividade através da reversã o da normatividade em princípio de
desconstituiçã o da pró pria forma. Esta dialética é uma das características
maiores da expressã o româ ntica e diz muito a respeito da maneira com que a
experiência estética poderá a partir de entã o ser elevada à condiçã o de modelo
social de liberdade. Pois liberdade aqui é indissociável da capacidade de operar o
manejo de uma dialética rigorosa entre constituição e desconstituição.

Violência, dissociações e equilíbrios

Analisemos dois exemplos maiores a este respeito, a saber, o Estudo opus


10 n. 12 (1833) e o opus 25, n. 12 (1837). O que os une é, acima de tudo, uma
mesma caraterística construtiva. Tratam-se de estudos cuja célula elementar é a
repetiçã o de um gesto. De certa forma, é correto afirmar que a ideia musical que
dá unidade e princípio de desenvolvimento à peça é a expressã o de um gesto.
Nos dois casos, toda a peça é baseado em um gesto ascendente e descendente
normalmente desenvolvido para mostrar como o pianista deve “tomar posse” da
extensã o do teclado. O opus 10 n. 12 tem, além destes gestos de arppegios
ascendentes e descendentes, o movimento de escalas descendentes, claramente
ouvido nos oito primeiros compassos e retomado tanto na primeira reexposiçã o
dos temas quanto ao final. Neste sentido, o que ouvimos na peça é simplesmente
a manifestaçã o de um gesto pianístico fundamental que garante coerência de
desenvolvimento e unidade estrutural à obra. Como se o gesto fosse a célula
elementar do nascimento de toda significaçã o possível, a base de toda e qualquer
linguagem expressiva, o “ser bruto” da língua liberado agora de sua condiçã o de
“objeto” potencial.
Mas há dois pontos fundamentais aqui. Primeiro, uma aná lise do opus 10
n. 12 demonstra como o Estudo se estrutura, desde seu início, através de um
esforço de construçã o a partir da desconstituiçã o produzida pela mã o esquerda.
Pois a mã o esquerda nã o pode ser descrita como fornecendo algo que se
assemelha a um acompanhamento que se subordina a melodia. De fato, entre os
compassos 10 e 28 os arpeggios ascendentes e descendentes ainda “mimetizam”
uma estrutura tradicional de subordinaçã o. Podemos encontrar tais figuras de
acompanhamento já no Cravo bem temperado, de Bach. Mas há algo aqui de
completamente diferente.
No Estudo opus 10 n. 12, a velocidade e intensidade a que a mã o esquerda
está submetida, em contraposiçã o à continuidade da mã o direita, funciona como
uma espécie de distorçã o da funçã o inicial das figuras musicais. Ou seja, elas
estã o saturadas e em desconstituiçã o semâ ntica. Há um crescimento por
saturaçã o até os compasso 29 ao 41, onde nã o há mais nada que possa ser
descrito como se referindo a acompanhamento, nem se trata por isto de uma
estrutura tradicional de contraponto, pois nã o há exatamente uma outra “voz” na
mã o esquerda. A submissã o das figuras musicais a um trabalho cada vez mais
extremo de velocidade, intensidade e modulaçã o retira-lhes o cará ter de voz para
aproximar-lhes de algo, de certa forma, anterior à voz de um sujeito. A
continuidade ininterrupta deste trabalho de velocidade e intensidade faz de toda
a sequência da mã o esquerda algo abaixo da incorporaçã o da mú sica à voz,
abaixo do processo de incorporaçã o de frases musicais à intençã o significativa.
Há de se sentir esta impessoalidade, esta despersonalizaçã o em emergência para
interpretar de forma correta a peça. Há de parar, ao menos por um momento, de
se perceber como portador de “vozes” que se agenciam em um diá logo.
Assim, ao invés da subordinaçã o das vozes, ao invés das vozes em
contraponto, temos algo como uma espécie de fluxo intensivo cortado pelo
trabalho da mã o direita com pontuaçõ es que paulatinamente constituem uma
série meló dica extraída da transcriçã o pianística de uma gestualidade em
explosã o. Como se estivéssemos diante de um fundamento que, ao invés de
operar por semelhança ao fundado, é a forma mesma do que nã o permite
construçã o alguma por relaçõ es de semelhanças. O que demonstra quã o errado
estava René Leibowitz ao dizer que, em Chopin, a escritura nã o ultrapassa nunca
o solo da melodia acompanhada.
Tal construçã o através de cortes é pois a expressã o de um segundo
princípio que se descola do princípio meramente gestual da mã o esquerda. A
mã o esquerda apresenta uma intensidade em limite contínuo e uniforme
enquanto a mã o direita é capaz de operar por contrastes, tal como vemos no
contraste que suporta a relaçã o antecendente-consequente das células motívicas
dos compassos 10, 11 e 12. Esta operaçã o por contrastes, que aparecerá em
outros momentos da peça, indica um modelo de construçã o e controle estranho
ao fluxo contínuo e indiferenciado da mã o esquerda. É por levar em conta tal
dinâ mica de agenciamento de contradiçõ es que podemos dizer que poucas foram
as peças musicais que expuseram de forma tã o evidente a estrutura da expressão
romântica como elaboração da contradição posta entre indeterminação e
determinação, como elaboraçã o singular de modalidades de controle do que
aparece como posiçã o enfim exposta do ímpeto (Drang). Como se tratasse de
expor um corpo que parece, a todo momento, confrontar-se com a
desestabilizaçã o produzida por um plano de pura intensidade. Como se
interpretar um Estudo como este exigisse do pianista perceber-se entrar em um
movimento de dissociaçã o, chegar no limiar de um descontrole que, apesar disto,
deverá ser calculado e conscientemente produzido. Esta forma da expressã o
musical como subjetivaçã o de processos que, no interior da linguagem musical,
estã o, de certa maneira, em processo de desconstituiçã o semâ ntica por
expressarem o que força a forma musical em direçã o ao informe fazem da
experiência estética uma relaçã o constitutiva à heteronomia. Nã o haverá depois
disto experiência estética sem o impulso de forçagem da forma para fora de si
mesma. Esta será a maior das contribuiçõ es româ nticas.
Nas notas redigidas para a elaboraçã o de um método de piano, Chopin
escreveu: “A palavra indefinida (indeterminada) do homem é o som”/ “A língua
indefinida: a mú sica”259. Chopin nã o poderia ser mais româ ntico nesta forma de
elevar a indeterminaçã o a condiçã o de processo fundamental da linguagem
musical. No entanto, há de nã o esquecer como tal elevaçã o é peça maior da
estratégia de dar à experiência estética a condiçã o de forma paradigmá tica da
emancipaçã o social. Pois insistamos mais uma vez que essa língua indefinida
pró pria à mú sica será o veículo de uma sensibilidade outra. Se a mú sica a partir
259
CHOPIN, Frédéric; idem, p. 48
do romantismo associa de forma tã o clara a expressã o ao fragmentá rio, à
ruptura, à nã o conformaçã o a princípios construtivos, à exaustã o do limite, à
desconstituiçõ es semâ nticas, à críticas à s formas gerais do classicismo (a ponto
de relativizar o conceito de “belo” em prol do “sublime”) é porque o movimento
do qual a mú sica será , de forma cada vez mais evidente, expressã o da crítica à
linguagem reificada da vida ordiná ria, linguagem esta submetida aos imperativos
comunicacionais e seus modos de constituiçã o de objetos.
Estes processos visíveis no fundamento da estética româ ntica ganharã o
vida pró pria para além do pró prio romantismo, nã o apenas no interior da
Segunda Escola de Viena, mas mesmo para além dela. Há de se salientar este
ponto pois poderia parecer que principalmente a partir do serialismo, a
expressã o musical nã o teria mais lugar. No entanto, nã o é correto dizer que a
expressã o deixaria de ser um conceito estético central depois que, como dizia
Boulez, “Schoenberg morreu”. O recurso ao serialismo, à inexpressã o (como na
mú sica de indeterminaçã o de John Cage ou no objetivismo de Stravinsky) ou
mesmo ao maquinismo em suas versõ es mú ltiplas na histó ria moderna da
mú sica (de Colon Nancarrow, por exemplo) podem significar mudanças radicais
no regime de similitude da mú sica à linguagem (“Sprachä hnlichkeit”), como diria
Adorno260. Mas é possível levantar como hipó tese de que tais estratégias podem,
por sua vez, serem lidas no interior de uma dialética necessá ria para a
recuperaçã o da potencialidade nã o-intencional da expressã o.
É claro que podemos encontrar tendências importantes da mú sica
contemporâ nea que visam transformar a experiência estética em experiência, ao
mesmo tempo, nã o vinculada de maneira estrita a funçõ es sociais exteriores e
nã o dependente de uma estética dos sentimentos pró pria à uma concepçã o de
sujeito fortemente egoló gica. Neste sentido, nã o é mero acaso que momentos
decisivos da arte modernista tenham sido animados pela luta contra a expressã o
e o estilo. Tais momentos denunciaram o estilo como depositá rio de uma
gramá tica reificada de formas, assim como a expressã o musical aparece como a
tentativa de fetichizar uma “segunda natureza” que teria se cristalizado através
de uma gramá tica fixa dos modos de afecçã o.

260
Ver, por exemplo, WELLMER, Albrecht; Versuch über Musik und Sprache, Munique: Carl Hansen
Verlag, 2009, pp. 7-14

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