SAFATLE, Vladimir. Uma Arqueologia Do Conceito de Liberdade No Ocidente
SAFATLE, Vladimir. Uma Arqueologia Do Conceito de Liberdade No Ocidente
SAFATLE, Vladimir. Uma Arqueologia Do Conceito de Liberdade No Ocidente
Departamento de Filosofia
Curso Integral
14 aulas
Auto-pertencimento e propriedade de si
Arendt pode fazer uma afirmaçã o desta natureza porque, a seu ver, a filosofia
grega conheceria, principalmente, uma discussã o sobre liberdade onde esta nã o
se encontra em seu terreno natural, a saber, a política. Antes, a liberdade
apareceria principalmente como liberdade interior, como disposiçã o ética de
conformaçã o ao logos. Pois o modo de vida do filó sofo era pensado em oposiçã o
ao bios politikós. Isto permitira o aparente paradoxo filosó fico de um escravo,
Epiteto, considerar-se livre. E apenas quando o cristianismo reconstró i toda a
noçã o política de liberdade a partir da discussã o sobre o livre-arbítrio, sobre a
relaçã o consigo mesmo, a liberdade poderia aparecer como um problema
efetivamente filosó fico.
5
ARENT, Hannah; Entre passado e futuro, Sã o Paulo: Perspectiva, p. 191
Esta aná lise, no entanto, nã o leva em conta o significado efetivo da
eleutheria entre os gregos, significaçã o esta que, como veremos, nã o permite a
dissociaçã o entre liberdade interior e liberdade política. Mas neste curso nã o se
trata de propor uma aná lise exaustiva dos desdobramentos da noçã o de
eleutheria entre os gregos, o que exigiria um trabalho de longo termo. Minha
aná lise é, em larga medida, pontual. Pois trata-se de pensar os gregos a partir de
uma de suas recepçõ es contemporâ neas. A tese que gostaria de defender
consiste em dizer que a experiência grega da liberdade como auto-
pertencimento será recuperada no interior do projeto de um dos filó sofos
contemporâ neos mais importantes para nosso debate, a saber, Michel Foucault.
Pois há uma tese em Foucault, que se explicita em seus ú ltimos trabalhos, que
consiste a defender que a reorientaçã o contemporâ nea das reflexõ es sobre
emancipaçã o deveria partir da recuperaçã o de formas de auto-pertencimento
que os gregos compreenderam como a expressã o fundamental da liberdade. Por
isto, nosso primeiro mó dulo será dedicado à construçã o, entre os gregos, da
noçã o de liberdade como auto-pertencimento. Para tanto, gostaria
principalmente de discutir o conceito de liberdade no cinismo e no estoicismo.
Lembremos inicialmente como o conceito grego de liberdade se constitui
progressivamente sobre o solo de uma experiência negativa de desordem e caos.
Por esta razã o, eleutheria estará sempre vinculada ao crescimento sem entraves
assegurado pelo vínculo ao lugar natal. Basta levar em conta como o termo
eleutheria tem sua raiz no indo-europeu leudh, que significa : crescer,
desenvolver-se. Crescer graça a raízes em um povo ou territó rio que permite a
alguém ser e permanecer quem se é. Daí porque alguns comentadores dirã o:
6
AVEZ, Peggy; L’envers de la liberté, Paris: Editions de la Sorbonne, 2010, p. 31
Isto permite ao cínico fundar a ideia de virtude na simplicidade dos costumes, na
limitaçã o das necessidades e, principalmente, na negaçã o direta do vínculo aos
objetos sensíveis. Este conceito negativo de liberdade nos demonstra como a
physis, enquanto plano de imanência que permite a orientaçã o da açã o virtuosa,
aparece principalmente como a negação do nomos. Para que a physis fornecesse
um princípio positivo e autô nomo de orientaçã o da açã o, seria necessá rio algo
como uma filosofia da natureza como base para a filosofia moral, mas isto falta
ao cinismo. Vá rias anedotas dã o conta desta orientaçã o moral como negaçã o
simples do nomos. Lembremos, por exemplo, da declaraçã o de Dió genes a
respeito de seu há bito de sempre entrar no teatro pela porta de saída: “Eu me
esforço de fazer na minha vida o contrá rio de todo mundo”8.
Esta autarkeia em relaçã o as estruturas da causalidade externa
desempenhará papel fundamental também no estoicismo. Mas é com os estoicos
que veremos mais claramente essa forma de pensar a liberdade a partir da
definiçã o do que me é pró prio, do que depende e nã o depende de mim, da
restriçã o de minha vontade e da deliberaçã o a respeito do que me cabe. “Desde o
início”, dirá Epiteto:
13
Rélations jesuites 6, p. 109
pertencimento14. Paradoxalmente, havia uma irredutível dimensã o de
heteronomia nessa experiência estética que, a partir do século XIX, se constituirá
como arte autô noma e cuja primeira figura encontraremos no romantismo.
Heteronomia esta vinda da constituiçã o de um campo de implicaçã o do sujeito
com objetos e movimentos que nã o tinham sua forma, que nã o se configuravam
no interior de espaços egologicamente indexados. Por isto, a forma estética a
partir de entã o será o espaço privilegiado de emergência do fragmentá rio, do
involuntá rio, do contingente, da desmesura pró pria ao que violenta o
esquematismo da imaginaçã o (como vemos, nesse caso, nas temá ticas relativas
ao sublime).
No entanto, essa heteronomia produzida pela experiência estética nã o
poderia, de forma alguma, ser compreendida como figura da servidã o. Antes, ela
se configurava como uma experiência social da liberdade de forte cunho crítico
em relaçã o à s possibilidades que foram paulatinamente se configurando no
interior do horizonte normativo das formas de vida pró prias à emergente
sociedade dos indivíduos com seus modos pró prios de determinaçã o. Primeiro,
ela permitia uma crítica à s pressuposiçõ es de identidade que uma liberdade
como auto-pertencimento necessariamente pressupõ e, com seus problemas para
a configuraçã o dos processos de reconhecimento implicativo com a diferença.
Por isto, ela impedia a reduçã o da liberdade tanto à afirmaçã o da autonomia
individual quanto à integraçã o a um corpo social atual (o que nã o eliminava a
possibilidade de expressar um corpo social por vir). Antes, ela abria espaço à
emergência de figuras da subjetividade nas quais as dimensõ es do inconsciente,
do involuntá rio, do contingente nã o aparecerã o mais como a limitaçã o de minha
liberdade, adiantando um processo que se mostrará fundamental para o
desenvolvimento da estratégias filosó ficas de crítica a partir de entã o. É desta
forma que irá se configurar algo que podemos chamar de “matriz estética da
autonomia” em contraposiçã o à “matriz moral da autonomia”.
Gostaria de terminar nosso curso discutindo nã o apenas a emergência de
tal matriz estética, mas como ela será a expressã o de um giro-autocrítico no
interior do conceito de liberdade. Como se a arte fosse praxis social que nos
mostra algo de irredutível ao horizonte metafísico e gramatical que fundamenta
nossas formas hegemô nicas de vida no ocidente. Espero ainda poder evidenciar
como tal matriz estética traz consequências maiores para o campo da moral e da
política em seus desafios contemporâ neos.
14
Ver, a este respeito, MENKE, Christoph; Kraft: Eine Grundbegriff ästhetischer Antropologie,
Frankfurt: Suhrkamp, 2008. O modelo de tais processos fora fornecido pela articulaçã o entre
estética e força em HERDER, Johann; “Ü bers Erkennen und Empfinden in der menchlichen Seele”,
In: Theoretische Schriften, Berlin: Holzinger, 2013; alem das discussõ es sobre o sublime em
BURKE, Edmund; A philosophical enquiry into our ideas of the sublime and beautiful, Oxford
University Press, 1990. Ele permanecerá , de certa forma, nas discussõ es modernas, como
podemos ver nas reflexõ es a respeito da força de “estremecimento” (Erschütterung) pró pria à
experiência estética em ADORNO, Theodor; Ästhetische Theorie, Frankfurt: Suhrkamp, 2003.
Arqueologias do conceito de liberdade
Aula 2
Autarkeia e cinismo
Nã o deixa de ser uma profunda ironia perceber como o termo “cinismo” chegou
até nó s. Seu sentido está normalmente ligado a alguma forma de dissimulaçã o, ao
ato de retirar da enunciaçã o da verdade a força performativa que esperá vamos
encontrar. Por isto, o termo nos designa algo como um ethos em degradaçã o,
como uma franqueza que parece zombar da verdade. Podemos fornecer um
modelo para esta maneira de encaminhar o problema do cinismo. Podemos
partir das exigências de validade de uma norma moral com expectativas
universais de validade como o princípio de tolerâ ncia. Podemos também afirmar
que na significaçã o do princípio já encontramos, aparentemente, a designaçã o de
um modo de açã o: o respeito ao outro em sua singularidade. Mas, “em certas
situaçõ es especiais”, para defender o princípio de tolerâ ncia, eu posso ser levado
a ser intolerante com aqueles que sã o contra o princípio de tolerâ ncia. Em defesa
da tolerâ ncia, eu posso ser levado a expulsar os intolerantes da minha
comunidade. Desta forma, posso continuar sendo tolerante na dimensã o dos
critérios normativos mesmo sendo intolerante na dimensã o da açã o. Por sinal,
este foi o caso da extrema direita holandesa encarnada por Pim Fortuyn, morto
dias antes da eleiçã o que o levaria ao poder neste que é o país formalmente mais
tolerante do mundo. Sua pró pria figura era um exemplo maior do que
procuramos apreender. Tratava-se de um populista de direita cuja grande parte
das características pessoais e opiniõ es eram politicamente corretas : era
homossexual assumido, tinha boas relaçõ es com imigrantes, um senso inato para
a ironia etc. No entanto, o nú cleo do seu discurso era: “Os Países Baixos
alcançaram um alto grau de tolerâ ncia e liberdade. Nã o podemos perder tudo
isto deixando que á rabes intolerantes venham para cá . Em nome da tolerâ ncia,
devemos entã o ser intolerantes contra os intolerantes. Nó s já fomos muito
tolerantes com a intolerâ ncia”.
Esta nã o era a compreensã o que os gregos tinham da escola cínica de
Dió genes, de Antístenes, de Menipo, de Crates, de Hipparchia, entre outros. Tanto
que seu nome aludia a “cã o” , kunos, por se tratarem de filó sofos cuja fala franca
era, via de regra, agressiva, sarcá stica, sem consideraçã o pelas convençõ es
sociais e regras de sociabilidade. Uma verdade nua, crua, resultado de uma vida
também nua e crua, tanto na recusa ao poder, tanto na franqueza em relaçã o à
sexualidade, tanto na procura pela despossessã o dos bens. Uma verdade que
estará mais pró xima de uma rígida ascese corporal que de um exercício de
esclarecimento filosó fico. Nudez esta que pode começar a nos explicar certa
maneira grega de viver a liberdade, de fazer da liberdade o exercício de um
regime de fala e de vida. Essa reversã o do cinismo em seu contrá rio que
conhecemos hoje nos obriga atualmente a falar de “cinismo antigo” e “cinismo
moderno”.
O primeiro filó sofo cínico é Antístenes, discípulo de Só crates, cuja filosofia
é baseada no uso extensivo da enkrateia (auto-domínio) socrá tica, mas é
Dió genes que passará a posteridade como o mais emblemá tico dos filó sofos
cínicos. Posteriormente, o cinismo será uma filosofia extremamente popular no
período do Império Romano. As figuras cínicas serã o recuperadas, nã o por acaso,
pelo Iluminismo. Esta recuperaçã o do cinismo pelo Iluminismo, que chegou a
transformar Dió genes em heró i popular na iconografia da Revoluçã o francesa,
deve ser compreendida no quadro de constituiçã o dos mó biles da crítica
iluminista. A parresia cínica, palavra autêntica com seu sarcasmo em relaçã o aos
preconceitos sexuais, religiosos, morais, políticos e à autoridade aparecerá como
ponto de orientaçã o da crítica no iluminismo. Pelas mã o de Diderot, o cinismo
encontra seu ponto de inversã o em seu contrá rio, como podemos atestar em seu
livro O sobrinho de Rameau. Posteriormente, o cinismo será recuperado pela
filosofia contemporâ nea, seja para indicar uma degradaçã o do ideal iluminista
em “falsa consciência esclarecida” (razã o cínica, em Sloterdijk), seja para pensar
as modalidades de recuperaçã o de sua força crítica como forma de vida e estética
da existência (Foucault). Foucault chegará a definir o cinismo como: “uma
experiência ética fundamental do ocidente” que nos acompanhará durante toda
nossa histó ria, como se fosse possível: “mostrar a existência permanente de algo
que pode aparecer como o cinismo através de toda a cultura europeia”.
Por outro lado, lembremos aqui que falar do cinismo grego é um exercício
mais complexo do que pode parecer pois falta um acesso direto aos textos. Os
textos canô nicos de contato com o pensamento cínico sã o recensõ es feitas por
terceiros, a parte os textos de um cínico menor, Teles. Neste sentido, o sexto livro
do Vida, doutrinas e sentenças de filósofos ilustres de Dió genes Laércio ainda é a
grande referência; mas ele, por sua vez, é um recessã o de anedotas de domínio
pú blico e fragmentos de textos cínicos. Na verdade, os textos cínicos que temos
acesso hoje sã o principalmente da fase romana do cinismo que se inicia a partir
do século I DC, como, por exemplo, os escritos de um sofista, Dion Crisostomos,
de Favorinus, além das sá tiras de Luciano (nas quais Menipo e Dió genes
aparecem frequentemente como protagonistas principais) e dos discursos do
Imperador Juliano. Este estado das fontes impede um estabelecimento mais
preciso dos contornos da filosofia cínica. Por outro lado, ele faz com que: “O
estudo do cinismo, contrariamente ao estudo do platonismo, seja insepará vel do
estudo de sua recepçã o”16.
16
BRACHT BRANHAM, R. e GOULET-CAZÉ , Marie-Oidela; The cynics : the cynic movement in
antiquety and its legacy, p. 14
Se pudermos fornecer uma definiçã o, diremos que, neste momento grego,
o cinismo aparece como uma filosofia eudemonista fundada na crítica ao
convencionalismo da moral que guia o nomos e na tentativa de recuperaçã o de
uma autenticidade do agir que apela ao recurso à physis. Ou seja, o cinismo visava
fornecer a figura privilegiada de uma crítica ao nomos e à cultura através do
programa de retorno à uma moral naturalista que toma a animalidade como
padrã o regulador da conduta. Como se: “a natureza provesse uma norma ética
observá vel nos animais e em comparaçõ es entre culturas”17. Conhecemos, por
exemplo, a anedota que diz:
E se, por acaso, meu corpo sentir a necessidade dos prazeres do amor, a
primeira que vier será suficiente, a tal ponto que as mulheres das quais
me aproximo acolhem-me com transporte pela simples razã o de que
ninguém consente em ter comércio com elas21.
O riso da franqueza
23
DIÓ GENES LAÉ RCIO, p. 10
24
DIÓ GENES LAÉ RCIO, p. 20
25
DIÓ GENES LAÉ RCIO, idem, p. 30
26
HEGEL, Fenomenologia, par. 524, Phä nomonologie, p. 345
Mas tentemos entender melhor a estrutura do falar franco cínico, expressã o
maior da liberdade. A primeira característica que gostaria de salientar é a
articulaçã o entre franqueza e sarcasmo. Como se a liberdade se exercesse de
forma privilegiada na derrisã o e no riso. Ao falar do cinismo como forma
literá ria, Nietzsche lembra:
Faz-se necessá rio, já que utilizamos o logos, que haja uma lexis (uma
maneira de dizer as coisas) e também que tenha um certo nú mero de
palavras que sejam escolhidas em detrimento de outras. Assim, nã o pode
haver logos filosó fico sem esta espécie de corpo de linguagem , corpo de
linguagem que tem suas pró prias qualidades, e que tem seus efeitos,
efeitos patéticos que sã o necessá rios. Mas o que deve ser necessá rio, a
maneira de regular estes elementos (elementos verbais, elementos que
têm por funçã o agir diretamente sobre a alma) nã o deve ser, quando se é
27
NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, p. 88
28
BAKHTIN, The dialogical imagination, p. 23
29
BAKHTIN, idem, p. 38
filó sofo, esta arte, esta tekné presente na retó rica. Deve ser esta outra
coisa que, ao mesmo tempo, é uma técnica e uma ética, que é ao mesmo
tempo uma arte e uma moral e que nó s chamamos de parresia30.
A crítica da metafísica
30
FOUCAULT, L´herméneutique du sujet, p. 350
31
DIÓ GENES LAË RCIO, VI, 45
“Eu vejo a taça e a mesa, mas eu nã o vejo a ideia de taça e a ideia de mesa” 32. No
que Platã o respondeu: “Você tem olhos para ver a taça e a mesa, mas nã o a
inteligência para perceber a Taça e a Mesa”.
Percebam que estamos no interior de uma discussã o sobre as relaçõ es
entre sentido e existência. Dió genes critica a estratégia platô nica de vincular o
sentido a uma ideia transcendente, pois acredita que tal transcendência elimina o
enraizamento do sentido na existência. É isto que pode nos explicar, por
exemplo, porque Dió genes poderá afirmar que a mú sica, a geometria, a
astronomia e outras ciências que nã o se baseiam no cá lculo das empirias seriam
inú teis33. Ou ainda, de forma mais exemplar, podemos lembrar da histó ria de
Antístenes que, a fim de provar a existência do movimento contra Zenã o, levanta-
se da sala e começa a andar 34. Ou ainda sua maneira de responder ao silogismo:
“Você nã o perdeu o que tem/ Você nã o perdeu chifres/ Logo, você tem chifres” –
“Eu nã o os vejo”. Uma existência, no entanto, cuja experiência nã o é descritível
sob a forma da predicaçã o. Nã o tenho acesso ao que é a mesa ao dizer: “A mesa é
redonda, feita de madeira, um presente dado por meu pai, etc.”. A discussã o feita
por Platã o no Sofista parece claramente direcionada ao cinismo de Antístenes:
37
LONG, The socratic tradition: Diógenes, Crates and hellenistic tradition, p. 36
38
LONG, idem, p. 37
Arqueologia do conceito de liberdade
Aula 3
39
BRACHT BRANHAM, R. e GOULET-CAZÉ , Marie-Oidela; The cynics : the cynic movement in
antiquity and its legacy, p. 8
40
EMPIRICO, Sexto; Contra os matemá ticos, XI, 73-74
ainda: “Crates acrescenta ainda a essas palavras o resumo de seu pensamento:
Quem nã o se deixa submeter, mas resiste ao prazer servil, gozará de uma
liberdade soberana e indestrutível”41. E em este “nã o se deixar submeter”
encontramos um conceito de filosofia como disciplina rigorosa (askêsis) tendo
em vista o retorno a um estado natural e à recusa aos falsos valores da vida
social. Esta é a base da relaçã o entre liberdade e autarkeia entre os cínicos.
Neste sentido, lembremos do significado em fundar a autarkeia cínica
através da posiçã o da apatia. Fundar a dominaçã o de si na negaçã o direta dos
vínculos privilegiados a objetos sensíveis equivale a recorrer a um conceito
negativo de liberdade. Digamos que a liberdade cínica nã o é “liberdade de fazer
determinadas açõ es”, mas principalmente “libertaçã o em relaçã o a certos objetos
e paixõ es”. Esta libertaçã o permite a constituiçã o de vínculos fundamentais entre
liberdade e auto-pertencimento. Assim, a natureza no cinismo aparece como
restriçã o ao horizonte de necessidades que me permita poder acolher todo e
qualquer acontecimento. Nã o podemos deixar de comer, mas Dió genes nã o verá
problema em comer a carne de qualquer animal, nem verá signo de barbarismo
comer a carne humana. A limitaçã o extrema e a indiferença funcionam aqui como
condiçã o para a afirmaçã o da racionalidade de todo acontecimento, como recusa
à criaçã o de vínculos de dependência.
Por outro lado, vimos como a autoctonia cínica é pensada. Eu afirmara
que os cínicos se contrapõ e à polis em nome do retorno à natureza enquanto
plano de imanência que permite a orientaçã o da açã o virtuosa. Essa ética da
virtude nã o é apenas fruto da crença de que as consideraçõ es exclusivas sobre o
cará ter moral dos agentes podem definir as condiçõ es para a felicidade. Trata-se
de, na verdade, naturalizar as virtudes morais. A natureza é o nome do espaço do
pertencimento de si no cinismo. O que nã o devia nos estranhar já que, como nos
lembra Heidegger, a physis aparece como uma palavra grega fundamental para
ser. Isto dá uma declinaçã o cínica singular a respeito da noçã o de autoctonia. O
cosmopolitismo cínico vem do fato da autoctonia nã o estar vinculada à
comunidade da qual venho, mas a natureza que me faz em casa em toda parte. O
que explica porque Antístenes afirmava que: “o sá bio nã o vive respeitando as leis
da sua pá tria, mas respeitando a virtude”42. Lembremos ainda de como Dió genes
se definia como: “sem cidade (apolis), sem casa (aoikos), sem pá tria (apatris), um
mendigo e vagabundo, vivendo cada dia” 43. Por fim, a autonomia cínica está
vinculada ao exercício de submeter-se si mesmo ao princípio de virtude e
contençã o.
Determinismo e acontecimento
Dito isto, podemos entrar de maneira mais sistemá tica nas discussõ es a
respeito da liberdade entre os estoicos. Tal como o cinismo, o estoicismo será
uma corrente filosó fica extremamente popular no mundo greco-romano,
desdobrando sua hegemonia durante cinco séculos. Seu nome deriva de Stoa, que
significa “pó rtico” em grego e indicava o local de reuniã o, fundado em torno de
300 a.c., dos primeiros discípulos de Zenã o de Cítio (nã o confundir com o filó sofo
pré-socrá tico Zenã o de Eleia). É a respeito deste momento que falamos de um
41
PAQUET, Lucien; Les cyniques grecs: fragments et témoignages, p. 135
42
DIÓ GENES LAÉ RCIO, p. 10
43
DIÓ GENES LAÉ RCIO, p. 20
estoicismo antigo, cujos nomes principais seriam o pró prio Zenã o, além de de
Cleanto e Crisipo. Segue a ele um estoicismo médio (as vezes chamado de
“romano”), cujos nomes mais conhecidos sã o Panécio e Posidô nio. Por fim, fala-
se de um ú ltimo estoicismo ou estoicismo imperial, no qual encontramos os
nomes mais conhecidos dessa escola, a saber, Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio. De
Zenã o e Crisipo temos apenas alguns fragmentos e citaçõ es, enquanto as obras
de Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio foram, em larga medida, preservadas.
O estoicismo é, juntamente com o epicurismo, uma das duas escolas que
marcarã o o período de influência da cultura helênica no ocidente. Elas trazem as
características histó ricas do momento de colapso das cidades-estados e da
propagaçã o imperial da cultural grega.
A articulaçã o cerrada entre ló gica, física e ética (os estoicos chegavam a
comparar a filosofia a um ovo sendo a ló gica a casca, a ética a clara e a física a
gema) mostrava como nenhuma procura pela orientaçã o da conduta em direçã o
à felicidade pode ocorrer sem a compreensã o da racionalidade do universo.
A princípio, o estoicismo seria a mais refratá ria das perspectivas
filosó ficas à liberdade. Logos é o nome da existência em sua integralidade. Nã o há
nada que desconheça as amarras da necessidade, nã o há espaço para a
desordem, o acidente ou para a contingência. Como dirá Cleanto, em seu Hino a
Zeus: “você sabe reduzir o que é sem medida. Ordenar a desordem; em ti a
discó rdia é concó rdia”44. Afinal, estamos a falar de uma filosofia caracterizada
pelo extremo determinismo. O que significa que a racionalidade do mundo nã o
está em seus elementos imutá veis, mas sua pró pria racionalidade imanente, suas
modificaçõ es, sã o a expressã o da racionalidade em ato. Lembremos do que nos
diz Emile Bréhier:
44
CLEANTO; “Hino a Zeus”, In: Les stoïciens I, p. 7
45
BRÉ HIER, Emile; Histoire de la philosophie – L’antiquité et le moyen â ge, p. 208
46
DIÖ EGENES LAÉ RCIO, Vida e opiniã o de filó sofos ilustres, p. 44
Instruir-se é aprender a querer cada acontecimento tal como ele se
produziu. Como ele se produziu? Segundo a ordem estabelecida por
aquele que ordena tudo. Segundo esse ordem, há verã o e inverno,
fecundidade e esterilidade, virtude e vício, e todos os contrá rios que
servem à harmonia do universo. A cada um de nó s ele doou um corpo com
seus ó rgã os, bens e companheiros47.
Ou bem a moral nã o tem sentido algum ou bem é isto que ela quer dizer,
ela nã o tem nada a mais a dizer: nã o ser indigno do que nos acontece. Ao
contrá rio, apreender o que acontece como injusto e nã o merecido (é
sempre a culpa de alguém), eis o que faz nossas feridas repugnantes, o
ressentimento em pessoa, o ressentimento como acontecimento (...) Que
significa dizer entã o querer o acontecimento? É aceitar a guerra quando
ela acontece, a ferida e a morte quanto elas acontecem? É bem prová vel
que a resignaçã o ainda seja uma figura do ressentimento, ele que possui
tantas figuras. Se querer o acontecimento é inicialmente extrair dele a
verdade eterna, como o fogo do qual ele se alimenta, este querer alcança o
ponto no qual a guerra é feita contra a guerra, a ferida, traçada viva como
a cicatriz de todas as feridas, a morte revirada contra todas as morte 49 .
47
EPITETO, Entretiens I, XII
48
EPITETO, Manual, VIII
49
DELEUZE, Gilles; Logique des sens, p. 174
O que atormenta os homens nã o sã o as coisas, mas os julgamentos
relativos à s coisas: assim a morte nã o tem nada de aterrorizante, pois se
assim fosse Só crates teria também achado assim, mas que julguemos a
morte aterrorizante, eis o que é realmente aterrorizador50.
50
EPITETO, Manual, V
51
BRÉ HIER, Emile; A teoria dos incorporais no estoicismo antigo, p. 23
52
Idem, p. 45
extensã o no espaço e no tempo de uma força interna que se desdobra. De certa
forma, nã o estamos diante da descriçã o de um ser, mas de uma maneira de ser.
Mas o elemento complicador encontra-se na noçã o de incorporal. Para os
estoicos, os incorporais sã o: o espaço, o tempo, o vazio e o exprimível ().
Que tempo, espaço e vazio sejam incorporais, eis algo que nossa sensibilidade
contemporâ nea pode tacitamente aceitar. Ha algo do tempo e espaço como
condiçã o transcendental de possibilidade da experiência a animar tal teoria dos
incorporais. Tempo, espaço e vazio nã o sã o corpó reos, mas nã o podem ser
classificados como nã o-existentes, pois subsistem na mente. Eles sã o “algo” (tó
ti), quase seres que expressam o movimento na natureza, condiçõ es necessá rias
para o pensamento sobre os corpos. Mas o problema se complexifica em demasia
quando definimos o exprimível, ou a expressã o, como incorporal.
Os estoicos diferenciam a representaçã o () do exprimível. A
primeira é como a marca de um sinete na cera quente. Represento um carro
como um sistema de impressõ es que atinge meu corpo pela visã o, pela audiçã o,
etc. A representaçã o é um corpo me afetando. É uma impressã o na alma (que
também é corpo). Já o exprimível é a dimensã o dos acontecimentos e fatos que
ocorrem quando corpos coexistem, Quando dois corpos agem um sobre o outro
(como quando a faca corta a carne) algo ocorre aos corpos (a carne permite a
faca cortar, o que o nã o seria o caso do má rmore; a faca nã o corta no absoluto,
cortar é um atributo relacional) e isto que ocorre é incorporal. Pois: “o que
acontece a um corpo e que se diz dele (o atributo) quando um outro corpo age
sobre ele só tem realidade na ‘expressã o’, no discurso sobre ele”53. O exprimível é
um processo, nã o um objeto. Um processo de transformaçã o dos corpos, por isto
incorporal.
Esta teoria exige assim abandonar uma concepçã o de ser baseada na
definiçã o de propriedades, na distinçã o entre propriedades necessá rias e
acidentais, para assumirmos uma dinâ mica de corpos em contínua relaçã o e
produçã o de efeitos sob o fundo da racionalidade imanente do mundo. Daí
porque a afirmaçã o estoica do mundo exige uma moralidade de afirmaçã o do
acontecimento.
Liberdade e autopertencimento
É livre aquele que vive como quer, que nã o se pode nem restringir nem
impedir nem forçar, cujas vontades sã o sem obstá culos, cujos desejos
alcançam seus objetivos, cujas aversõ es nã o encontram o objeto
detestado54.
É necessá rio começar por aí, faz-se necessá rio destruir essa acró pole e
expulsar os tiranos, deixar os corpos, suas partes e faculdades, os bens, a
fama, as magistraturas, as honras, as crianças, os irmã os, amigos e pensar
que tudo isso nos é estrangeiro57.
56
Idem, IV, I, 59
57
Idem, IV, I, 87
58
DIOGENES LAÉ RCIO; Vida e opiniã o de filó sofos ilustres, p. 53
59
Idem, I, I, 16
60
Idem, IV, I, 83
Dependem de nó s a opiniã o, a tendência, o desejo, a aversã o, em uma
palavra todas nossas obras pró prias ( ). Nã o dependem de nó s
o corpo, a riqueza, as manifestaçõ es de consideraçã o, os altos encargos,
em suma, todas as coisas que nã o sã o obras pró prias61.
Sou responsá vel pelo uso de minhas representaçõ es. A primeira funçã o da
filosofia consiste em examinar as representaçõ es. Vontade e pensamento
aparecem como o fundamento do que me define em meu auto-pertencimento.
Esta é a verdadeira autoctonia do estoicismo. Nã o o solo do qual faço parte
enquanto cidadã o da polis, nã o a territorialidade, mas o ponto no qual a vontade
se encontra na universalidade do logos. Só crates nunca dizia ser de Atenas ou de
Coríntio, mas do mundo. Pois tal dimensã o da vontade só pode ser inabalá vel por
querer o logos, por querer a racionalidade do mundo e a necessidade do
acontecimento. O que nã o poderia ser diferente para alguém que dirá : “você é
ator de um drama que o autor quis como tal (...) o que é seu, é de desempenhar
corretamente o personagem que te foi confiado, quanto a escolhe-lo isto é de
outro”62.
Mas isso significa reconhecer que nã o estamos em um teatro do absurdo,
o que implica no exercício ativo de extrair do que ocorre a força de
transformaçã o do acontecimento. Livre é aquele que quer o logos, será a
proposiçã o fundamental a ser extraída do estoicismo. Um querer que exige um
profundo trabalho sobre si. Trabalho esse cujo eixo fundamental encontra-se na
capacidade de saber agir no espaço daquilo que depende de mim, daquilo que
estabelece comigo um horizonte de pertencimento. Trabalho de liberaçã o das
coisas exteriores e de cultivo do que é pró prio à minha natureza. Trabalho que
me leva a nunca estar fora de mim. Foi pensando nisto que Michel Foucault
afirmou:
64
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
65
Dió genes LAÉ RCIO, Vida e lenda de filósofos ilustres- Zenão
66
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
67
HEGEL, Fenomenologia, par. 198
68
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
69
HEGEL, Fenomenologia, par. 199
70
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
Mas Hegel nã o deixa de lembrar que uma des-alienaçã o que se realiza
apenas através do formalismo de um pensar que se retira do movimento do
Dasein só pode aparecer como conformaçã o à quilo que nã o pode, por mim, ser
modificado. Hegel apresenta assim uma crítica que será , em vá rias situaçõ es,
dirigida contra ele pró prio:
O que podemos pensar dessa crítica? De fato, ela procura insistir no fato
da liberdade ser uma experiência social que exige instituiçõ es específicas e
procedimentos legais para tanto. Ou seja, liberdade é um modo de relaçã o social.
Hegel nã o tem a sua disposiçã o um modelo estoico de fundamentaçã o da razã o
na physis. Por isto, ele precisa da noçã o eminentemente moderna da liberdade
como uma invençã o social e política resultante do reconhecimento da razã o no
interior da vida humana em comunidade. Isto explica sua necessidade de criticar
o estoicismo. Há uma dimensã o política do estoicismo, nã o haveria como negar.
Mas ela está na modificaçã o do modo de adesã o ao poder social, nã o em uma
transformaçã o institucional dele.
Neste sentido, nã o deixa de ser interessante como um anti-hegeliano por
excelência, como Deleuze, procura recuperar o estoicismo para pensar a noçã o
de liberdade na filosofia contemporâ nea. Pois o estoicismo fornece uma forma de
atividade e de vontade que nã o será exatamente aquela que crescerá de forma
hegemô nica entre nó s. Essa atividade passa muito mais pela destituiçã o das
formas do poder do que pela instauraçã o institucional. Ela passa pelo exercício
de definir os limites da capacidade do poder constituir sujeitos.
71
HEGEL, Fenomenologia, par. 200
Arqueologia da liberdade
Aula 4
Nó s sabemos que é possível fazer uma pesquisa em ética, de construir uma nova ética, de
dar lugar ao que chamaria de imaginaçã o ética, sem referência alguma à religiã o, à lei e à
ciência. É por tal razã o que a aná lise da ética greco-romana como estética da existência
pode ter interesse74.
73
FOUCAULT, Michel; L’hermeneutique du sujet, p. 241
74
FOUCAULT, Michel; Qu’est-ce que la critique? suivi de La culture de soi, op. cit., p. 143
75
FOUCAULT, Michel ; Histoire de la séxualité II, op. cit., p. 120.
uma obra de arte”76. Daí a definiçã o de tal erotismo como uma arte da existência
composta por:
prá ticas refletidas e voluntá rias através das quais os homens nã o apenas
fixam para si mesmos regras de conduta, mas procuram se transformar,
modificar-se em seu ser singular e a fazer de suas vidas uma obra que
porta certos valores estéticos e responde a certos critérios de estilo77.
Auto-pertencimento
82
FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérité, Paris: Gallimard/Seuil, 2009, p. 149
83
FOUCAULT, Michel; Histoire de la séxualité III, p. 94 ou ainda p. 316
84
FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérité, p. 245
pontos, recuperaria temas da individualidade liberal. Nã o foram poucos os
comentadores que aludiram a uma espécie de guinada liberal no pensamento
tardio de Foucault85. No entanto, esta leitura é equivocada.
De fato, há indicaçõ es textuais que poderiam parecer nos levar a tal
caminho. Por exemplo, lembremos, inicialmente, como Foucault compreende
claramente o contexto histó rico no qual sua ideia de soberania aparece. As
transformaçõ es políticas do mundo greco-romano e a paulatina decadência da
estrutura institucional do mundo romano levaram a um fortalecimento da
dimensã o individual:
O prazer e o fora
88
Idem, p. 1051
89
Idem, p. 1129
90
Idem, Dits et écrits II, p. 984. Ou ainda: “Contra o dispositivo da sexualidade, o ponto de apoio
do contra-ataque nã o deve ser o sexo-desejo, mas o corpo e os prazeres” (FOUCAULT, Michel;
Histoire de la séxualité I, Paris: Gallimard, 1976, p. 208).
91
A este respeito, ver SABOT, Phillipe; “Foucault, Sade e as luzes” Redisco, vol 2, n. 2, 2013, pp
111-121
92
Ver DELEUZE, Gilles; Présentation de Sacher-Masoch, Paris: Minuit, 1965
93
Ver MENDELSOHN, Sophie; “Foucault et Lacan: le sujet en acte”, in: Filozofski Vestnik, vol.
XXXI, 2010, p. 147
anos oitenta. Neste sentido, há um ponto que deve ser explorado. Pois a temá tica
do cuidado de si e do uso dos prazeres pressupõ e a possibilidade de
reconstituição de relações de auto-pertencimento, tã o presentes na aná lise
foucaultiana dos estoicos e dos cínicos. Dentre vá rios exemplos, quando Foucault
fala de Sêneca:
97
BALIBAR, Etienne; “L’anti-Marx de Foucault”, in: LAVAL, Christian et alli; Marx et Foucault:
Lectures, usages, confrontations, Paris: La decouverte, 2015
Arqueologia da liberdade
Aula 5
A gênese da propriedade de si
106
OVERTON, Richard; An arrow against all tyrants, p. 55
o indivíduo nã o tem apenas a propriedade em sua pró pria pessoa e
capacidade, uma propriedade no sentido de um direito a usufruir e usa-
las e excluir outros deste usufruto. Na verdade, é esta propriedade, esta
exclusã o dos outros que faz de um homem um ser humano107.
107
MACPHERSON, C.R.; The theory of possessive individualism, Oxford University Press, 1993, p.
142
108
OVERTON, p. 55
109
OVERTON, p. 63
plenos direitos políticos. Eles aceitaram pertencer a seus mestres. No que se nota
como a proposiçã o teó rica da propriedade de si universal é praticamente
limitada tendo em vista a exclusã o das classes pobres do direito de decidir,
enquanto maioria, o destino do país. Na verdade, enquanto Cromwell defende
que só é homem livre quem for proprietá rio de terras ou de uma letra patente
que lhe confere o direito de comerciar, os Levellers parecem defender que é livre
todo o homem que tem a propriedade de sua força de trabalho.
No entanto, lembremos que, em 1647, Levellers mais radicais como
Thomas Rainborough e Edward Sexby defenderã o o sufrá gio universal. Muitos
defenderã o a igualdade radical de propriedades ou, como os Diggers, a
propriedade comunal. No que se vê a tensã o extrema que a noçã o de propriedade
de si conjuga no momento de sua emergência.
110
Ver, a este respeito: ESPOSITO, Roberto; Le persone e le cose, Roma: Einaudi, 2014
Arqueologia da liberdade
Aula 6
112
LOCKE, John; Second treatise of government, Cambridge University Press, p. 340
113
MACPHERSON; La théorie de l’individualismo possessif, p. 332
114
BALIBAR, Etienne; Citoyen-sujet, p. 140
minha pró pria determinaçã o. Nã o apenas uma estrutura de reconhecimento, ele
é sobretudo uma estrutura de auto-determinaçã o. Minha atividade determina a
forma da minha existência e o campo do que me é pró prio. Tudo o que o ser
humano removeu do estado de natureza foi misturado ao trabalho e, desta
forma, algo que é seu agora se encontra no objeto trabalhado. Por isto, ele é sua
propriedade. Ele é seu espelho. Por isto: “o trabalho, no início, dá o direito de
propriedade”115.
Como o burguês que tem dentro de sua casa objetos que contam a histó ria
de sua pessoa, de suas pequenas idiossincrasias, viagens exó ticas e memó rias, a
consciência que trabalha parece querer transformar a natureza em uma grande
home decorada por objetos que sã o a expressã o de sua pró pria histó ria. Pois
propriedade é, acima de tudo, um afeto: o afeto da segurança das coisas que estã o
completamente submetidas ao meu domínio, que perderam seu estranhamento.
Esta sobreposiçã o entre expressã o e possessã o pode ocorrer porque a forma da
auto-determinaçã o, o campo de nossa ipse é imediatamente a expressã o de
relaçõ es de propriedade. Eu sou sujeito porque tenho a propriedade de minha
pró pria pessoa.
Por outro lado, segundo Locke, Deus forneceu um horizonte de riquezas
aparentemente inesgotá veis que permite a todos serem proprietá rios. E se nos
perguntarmos pelos limites de tal direito de propriedade, encontraremos
afirmaçõ es como: “o quanto de terra um homem é capaz de lavrar, plantar,
melhorar, cultivar e usar seu produto é o quanto de sua propriedade” 116. Ou seja,
a restriçã o a apropriaçã o está ligada a capacidade de cada um cultivar para sua
satisfaçã o. Haverá ainda a obrigaçã o de deixarmos aos outros o que é suficiente,
em quantidade e qualidade, além da restriçã o moral ao gasto desnecessá rio e a
destruiçã o suntuá ria.
Por outro lado, importante lembrar que o estado de natureza é um estado
de liberdade, já que conhece a propriedade, mas nã o um estado de licença. A
liberdade incontrolada de dispor de sua pessoa e posses nã o significa liberdade
de destruir a si ou as criaturas de sua posse como bem entender. Locke fala de
um “uso nobre”. Ninguém tem o poder absoluto arbitrá rio sobre si para destruir
sua pró pria vida ou tomar a vida e propriedade dos outros. Cada um está ligado a
auto-preservaçã o e, em segundo momento, a preservaçã o da humanidade. Note-
se que este ponto é importante por mostrar uma articulaçã o entre propriedade e
moral que submete a propriedade a um uso moral.
Ou seja, o horizonte de conflito, tã o presente no estado de natureza
hobbesiano, no qual todos tem um desejo ilimitado em relaçã o a tudo, o que leva
necessariamente a relaçõ es belicistas e concorrenciais, nã o se coloca da mesma
forma para Locke. Há terras na Inglaterra, mas haverá terras também na
América, prontas para serem trabalhadas e apropriadas. “Terras virgens” (e
poderemos colocar questõ es importantes a respeito desta fantasia originá ria da
“terra virgem”, a respeito de quanto tal teoria pressupõ e a deposiçã o colonial do
outro).
115
LOCKE, John; Idem, p. 299
116
Idem, p. 290
Neste sentido, podemos entender melhor outra passagem canô nica do
Segundo Tratado do Governo:
117
Idem, p. 324
118
Idem, p. 360
119
Idem, p. 284
120
Idem, p. 350
possibilidade do desregramento da vontade do outro que funda o governo. Locke
fala da ambiçã o, da concupiscência que pode quebrar a harmonia pressuposta no
estado de natureza. Devemos notar assim que volta um afeto político que já
aparece em Hobbes como instaurador da vida social, a saber, o medo. É o medo
do outro que leva à formaçã o do governo. É o medo que nos faz sair do estado de
natureza. No que podemos sempre nos perguntar sobre quanto a manutençã o do
governo depende da perpetuaçã o do medo, perpetuaçã o da lembrança de que
sem governo, voltará a pretensa situaçã o de vulnerabilidade.
Esse medo da vulnerabilidade é o que sustenta minha adesã o à lei, pois se
mesmo sob a lei eu nã o estou submetido a vontade de um outro, é porque a
funçã o da lei é fornecer os aparatos necessá rios para que a vontade do outro nã o
submeta a minha naquilo que é minha propriedade. É só através da lei regulada
por um estado que a paz e a calma podem pois ser alcançados. Isso pressupõ e, é
claro, a imagem de povos no pretenso estado de natureza em contínua
insegurança e vulnerabilidade.
Por outro lado, sendo objeto de consenso, aqueles que nã o queiram mais
se submeter a lei de um governo podem abandona-lo, sob certas condiçõ es:
Mas como o governo tem uma jurisdição direta apenas sobre a terra, e só
atinge seu dono (antes dele se incorporar à sociedade), quando ele reside nela
e goze dela, a obrigação que qualquer indivíduo tem de se submeter ao
governo, em virtude deste gozo, começa e termina com ele; de forma que
quando o dono, que deu apenas seu consentimento tácito ao governo, quiser,
seja por doação, venda ou outro modo qualquer, deixar a possessão em
questão, tem liberdade de partir e se incorporar a qualquer outra comunidade
social ou se unir a outras pessoas para iniciar uma nova comunidade, in vacuis
locis, em qualquer parte do mundo onde encontrem um local livre e sem dono.
Entretanto, aquele que por um acordo propriamente dito e qualquer declaração
expressa deu seu consentimento para fazer parte de qualquer comunidade
social (Commonwealth) está perpétua e indispensavelmente obrigado a ser e
permanecer seu súdito, e nunca poderá ficar de novo na liberdade do estado de
natureza; a menos que alguma calamidade provoque a dissolução do governo a
que ele estava submetido ou que qualquer ato público o impeça de continuar
sendo um de seus membros121.
Qualquer um que use força sem direito, como se faz em uma sociedade na
qual nã o exista lei, coloca a si em um estado de guerra contra aqueles que
ele usa a força e, neste estado, todos antigos vínculos estã o cancelados,
121
Idem, p. 349
todo outro direito cessa e todos tem o direito de defender a si mesmo e de
resistir contra o agressor122.
Aquilo que a noçã o de pessoa representa e que, penso eu, é o pró prio
pensamento, é a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares; o
que é consciência apenas por isto, que é a meu ver essencial ao
pensamento e insepará vel dele e essencial a ele. É impossível para alguém
perceber sem perceber que está percebendo124.
122
LOCKE, idem, p. 419
123
Ver a este respeito ELIAS, Norbert; A sociedade dos indivíduos, Rio de Janeiro; Jorge Zahar,
1994, p. 133
124
LOCKE, John: Essays concerning human understanding, p. 302
É a partir de entã o que “consciência” será , acima de tudo, o nome que damos
para esta identidade pessoal suposta que me faz, em cada açã o ou pensamento
passado, me ver me vendo, submeter a multiplicidade à unidade do meu olhar,
como se meu olhar fosse um instrumento de posse. Eu possuo o que consigo
enxergar, um pouco como possuo as terras que sou capaz de cultivar, e a esta
possessã o, a esta apropriaçã o chamamos “reflexã o”. Nã o por acaso, o pró prio
termo “reflexã o” é uma metá fora escó pica e Locke é praticamente o primeiro a
usa-la para dar conta da maneira com que as operaçõ es da mente sã o refletidas
na pró pria mente, tal como um espelho refletindo um objeto. Vejam como o
termo é usado no original:
Men come to be furnished with fewer or more simple ideas from without,
according as the objects, they converse with, afford greater or less variety;
and form the operation of their minds within, according as they more or
less reflect on them125.
Assim, posso considerar que o que é ‘eu’, ‘eu mesmo’ (myself) ou ‘meu si’
(my self) é como uma ‘coisa’ que possuo (own) ou que reconheço (own
novamente) ou que reconheço que possuo efetivamente porque foi eu que
a fiz ou que a pensei127.
125
LOCKE: Essay concerning the human understanding, livro II, cap. I, par. 7
126
Ver RORTY, Richard; A filosofia como espelho da natureza, Sã o Paulo: Relume Dumará
127
BALIBAR, Etienne; Citoyen-sujet, p. 133
nascerá desta discussã o, ganhando força principalmente na filosofia do século
XX. Que lembremos, entre tantos outros, de Heidegger e sua compreensã o da
representaçã o como um Vor-stellen que é ao mesmo tempo Vor-sich-stellen, a
saber, um por diante de si, como coloco uma coisa diante de mim para me
apropriar dela. Crítica que visa o fato de que pensar é compreendido e reduzido a
condiçã o de representar.
Isto nos explica, entre outras coisas, porque tudo o que é acessível à
minha reflexã o e que diz respeito aos pensamentos e açõ es de minha pró pria
pessoa me sã o imputá veis. Afinal, eles sã o minha propriedade. Sendo minha
propriedade, eles sã o minha identidade. E sendo expressã o de minha identidade,
eles sã o minha responsabilidade. A identidade de consciência define os regimes
de imputabilidade e de responsabilizaçã o da açã o, mostrando assim como tais
discussõ es sobre a constituiçã o da identidade psicoló gica tem, em seu horizonte,
problemas ligados à imputibilidade jurídica. Daí uma definiçã o fundamental de
Locke:
128
Idem, p. 313
Arqueologia da liberdade
Aula 7
O estado neoliberal
130
Para uma discussã o sobre o coló quio, ver AUDIER, Serge e REINHOUDT, Jurgen; The Walter
Lippmann Colloquium: the birth of neo-liberalism, Pallgrave, 2018
131
In: AUDIER, Serge e REINHOUDT, Jurgen; The Walter Lippmann Colloquium: the birth of neo-
liberalism, Pallgrave, 2018, p. 160
Assim, a ideia de que o advento do neoliberalismo seria solidá rio de uma
sociedade com menos intervençã o do Estado, ideia tã o presente nos dias de hoje,
é simplesmente falsa. Em relaçã o ao liberalismo clá ssico, o neoliberalismo
representava muito mais intervençã o do Estado. A verdadeira questã o era: onde
o Estado efetivamente intervia? De fato, nã o se tratava mais da intervençã o na
esfera da coordenaçã o e regulaçã o da atividade econô mica. Para os neoliberais,
mesmo a regulaçã o de moldes keynesianos era tã o insuportá vel quanto qualquer
forma de Estado socialista, embora valha a pena lembrar que o nível de
regulaçã o econô mica aceito pelo ordoliberalismo alemã o e sua “economia social
de mercado” é maior do que aquele pregado, por exemplo, pela Escola austríaca
que dará o tom do neoliberalismo norte-americano. Na verdade, o que o
neoliberalismo pregava era intervençõ es diretas na configuraçã o dos conflitos
sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um modelo
econô mico, o neoliberalismo aparecia assim como uma ativa engenharia social.
Neste sentido, podemos dizer que ele se vê como a engenharia social em direçã o
a liberdade.
Mas, de forma prá tica, isto implica que o neoliberalismo apareça como um
modo de intervençã o social profundo nas dimensõ es produtoras de conflito. Pois,
para que a liberdade como empreendedorismo e livre-iniciativa possa reinar, o
Estado deve intervir para despolitizar a sociedade, ú nica maneira de impedir que
o dissenso político intervenha na autonomia necessá ria de açã o da economia. O
neoliberalismo deve bloquear principalmente um tipo específico de conflito, a
saber, aquele que coloca em questã o a gramá tica de regulaçã o da vida social
baseada na generalizaçã o da forma-propriedade. Isto significa, por exemplo,
retirar toda a pressã o de instâ ncias, associaçõ es, instituiçõ es e sindicatos que
visassem questionar tal noçã o de liberdade a partir da consciência da natureza
fundadora da luta de classe.
Assim, em um primeiro nível, o estado neoliberal agia de forma direta
para desregular a vida associativa e sua força de pressã o na partilha dos bens e
das riquezas. Este ponto foi explicitado de maneira precisa nas pesquisas de
Gregoire Chamayou a respeito dos vínculos entre neoliberalismo e fascismo132.
Por exemplo, pode parecer estranho para alguns que um dos pais do
neoliberalismo, o economista Frederick Hayek, seja defensor explícito da tese da
necessidade da ditadura provisó ria como condiçã o para a realizaçã o da liberdade
neoliberal. No entanto, devemos lembrar de um significativo trecho de uma
entrevista dada ao jornal chileno El Mercurio, em 1981:
“As vezes” aparece aqui como indicaçã o de uma possibilidade de uso sempre
iminente, desde que a sociedade nã o se conforme à s injunçõ es econô micas
neoliberais de forma passiva. Neste sentido, notemos como 1981 era o ano em
132
Ver CHAMAYOU, Grégoire, La société ingouvernable, Paris: La fabrique, 2019
que a ditadura de Augusto Pinochet estava no auge. Hayek estava entusiasmado
com a transformaçã o do Chile no laborató rio mundial das ideias que ele, Milton
Friedman, Gary Becker, Ludwig von Mises e outros pregavam com afinco.
Neste sentido, o uso da noçã o de ditadura provisó ria nã o será um desvio
de rota. Hayek já havia deixado claro seu receio de uma democracia sem
restriçõ es, de onde se seguia suas diatribes contra uma pretensa “democracia
totalitá ria” ou uma “ditadura plebiscitá ria”133 que nã o respeitaria a tradiçã o do
império da Lei (Rule of Law). O respeito a tal Rule of Law, no qual encontraríamos
a enunciaçã o dos fundamentos liberais da economia e da política, do cará ter
inviolá vel da propriedade privada, seria o melhor remédio contra a tentaçã o de
sucumbir a um processo de barganha através do qual o estado se transformaria
na mera emulaçã o de interesses mú ltiplos da sociedade, na mera coalizaçã o de
interesses organizados. Fato que impediria o Estado de defender a liberdade
(que, no caso, nã o é nada mais que a liberdade econô mica de empreender e de
possuir propriedade privada) contra os mú ltiplos interesses das corporaçõ es da
vida social, o que equivaleria assim a submeter a maioria ao interesse de
minorias organizadas. Contra essa forma de submissã o de meus interesses pelos
interesses de um outro, seria necessá rio que todos se submetessem a regras
racionais e as forças impessoais do mercado, como se fosse questã o de assumir
uma experiência de auto-transcendência, uma Lei produzida pelos humanos e
que os transcende. Neste sentido:
É fá cil dizer porque Hayek pode afirmar que tal submissã o a regras
abstratas e a forças que nos ultrapassam, mesmo quando as
engendramos, é a condiçã o da justiça e da paz social. É que ela cala a fonte
do ressentimento, da inveja, das paixõ es destruidoras. Este que o mercado
lhe retirou seu emprego, seu negó cio ou mesmo sua subsistência sabe
bem, segundo Hayek, que nenhuma intençã o quis isto. Ele nã o foi
submetido a humilhaçã o alguma134.
Liberdade e autoritarismo
135
HAYEK, Frederick, Law, legislation and liberty vol III, p. 194
136
MARCUSE, Herbert; Cultura e sociedade, vol. I, Sã o Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 61
137
Ver SCHMITT, Carl; “Starker Staat und gesunde Wirtschaft. Ein Vortrag fü r Wirtschaftsfü hren”,
in Volk und Reich Politische Monatshefte für das junge Deutschland, 1933, tomo 1, caderno 2, pp.
81-94
fiador da liberdade individual no â mbito da economia”138. Schmitt não quer um
estado planificador, mas um estado capaz de garantir uma intervenção
autoritária no campo político a fim de liberar a economia em sua atividade
autônoma. Esta noção era extremamente presente no debate alemão do final
dos anos vinte e início dos anos trinta e vem daí a perspectiva política de
Hayek139.
Esse modelo distingue-se do “capitalismo de estado” de Friedrich
Pollock, na medida em que não se trata de uma regulação direta da atividade
econômica visando a substituição do primado da economia pelo da
administração, mas de uma regulação direta no campo político a fim de liberar
a ação econômica de entraves. No entanto, ele se aproxima do modelo de
Pollock na compreensão de que o eixo dos processos de gestão social estarão
baseados na procura em eliminar as contradições sociais através da gestão do
campo econômico. Esse mesmo modelo poderá tanto operar em chave de
democracia liberal quanto de regime autoritário. Se pudermos completar, essa
indiferença vem do fato dos dois polos estarem menos longe do que se gostaria
de imaginar. Na verdade, tanto em um caso como em outro os fundamentos da
racionalização liberal, com sua noção de agentes econômicos maximizadores
de interesses individuais, permanecia como a estrutura da vida social e dos
modos de subjetivação, justificando toda forma de intervenção violenta contra
tendências contrárias.
Robert Nozick é um dos teó ricos mais relevantes do que poderíamos chamar de
“teoria do estado mínimo” organicamente associada ao horizonte de reflexã o
pró prio ao neoliberalismo e a sua concepçã o de liberdade como propriedade de
si. É tendo isto em vista que podemos entender as primeiras colocaçõ es de seu
livro Anarquia, estado, utopia:
142
NOZICK, idem, p. 358
Arqueologia do conceito de liberdade
Aula 8
Ninguém pode ser privado da menor porçã o de sua propriedade sem seu
consentimento, salvo quando a necessidade pú blica legalmente
constituída exige e sob condiçã o de uma indenizaçã o justa e prévia.
Todos os males estã o no auge; eles nã o podem piorar mais: eles só podem
ser consertados por uma convulsã o total! ... Que tudo se confunda entã o!...
que todos os elementos se misturem e se entrechoquem! ... que tudo entre
no caos, e que do caos saia um mundo novo e regenerado. Venhamos,
apó s mil anos, mudar tais leis grosseiras149.
147
Idem, p. 329
148
AQUINO, Tomas; Suma teoló gica, Petró polis: Vozes, 1998, vol. I, Q. 29, art. 1. Para um
desenvolvimento importante deste ponto, ver ESPOSITO, Roberto; Due: la macchina della
teologia politica e il posto del pensiero, Roma: Einaudi, 2013, p. 113
149
BABEUF, idem, p. 337
A igualdade real aparece assim como esse espaço capaz de produzir nã o
exatamente uma homogeneidade absoluta, mas um caos criador, no qual as
hierarquias, os lugares estabelecidos, a distinçõ es grosseiras se misturem e se
entrechoquem. Para Babeuf, essa é a condiçã o real para a liberdade e para a
criaçã o de uma sociedade livre.
Em direção a Marx
É neste contexto que ganha importâ ncia um dos primeiros textos publicados por
Marx, a saber, Sobre a questão judaica. Trata-se de um texto publicado nos Anais
franco-alemães visando o texto A questão judaica, de Bruno Bauer. Ele deve ser
lido como uma espécie de complemento à s críticas de Marx sobre a possibilidade
de confundir a emancipaçã o humana como emancipaçã o política enquanto
cidadã o do Estado.
Marx parte da proposta de Bruno Bauer, para quem a emancipaçã o
política dos judeus deveria ser feita à condiçã o do abandono de sua religiã o, pois:
“Enquanto o Estado for cristã o e o judeu judaico, ambos serã o igualmente
incapazes tanto de conceder quanto de receber a emancipaçã o”150. Nosso Estado
ainda é cristã o, por isto nã o faz sentido esperar emancipaçã o política no seu
interior, da mesma forma como nã o faria sentido esperar emancipaçã o política
de quem conserva a centralidade de seu envolvimento religioso. Bruno Bauer
exige, pois, que os judeus renunciem ao judaísmo e que o homem em geral
renuncie à religiã o para tornar-se emancipado como cidadã o.
Marx nã o concorda com a soluçã o apresentada por Bauer. Pois ao invés de
se perguntar se os judeus tem o direito à emancipaçã o política, há de se
perguntar se a emancipaçã o política tem o direito de exigir dos judeus a
supressã o do judaísmo e de exigir do homem a supressã o da religiã o. Ou seja, o
primeiro ponto a destacar aqui é a maneira com que Marx lembra que nã o se
coloca uma questã o sobre se uma comunidade específica tem o direito à
emancipaçã o política. De certa forma, a questã o é desprovida de sentido por
naturalizar os pressupostos no qual ela se assenta. A pró pria forma de colocar a
questã o esconde o verdadeiro problema, a saber, se a emancipaçã o política
atualmente configurada é, de fato, uma emancipaçã o humana. Neste sentido, há
de se lembrar que, pensada a emancipaçã o política como cidadania: “a presença
da religiã o nã o contradiz a plenificaçã o do Estado”151. Pois a emancipaçã o política
que conhecemos até agora, através da constituiçã o de um Estado de tolerâ ncia
religiosa, é uma emancipaçã o que, ao menos aos olhos de Marx, merece ser
profundamente criticada.
Esta situaçã o específica é uma ocasiã o para Marx lembrar como a forma
geral de superaçã o das contradiçõ es entre liberdade e restriçã o no interior do
Estado moderno consiste em conservar as restriçõ es através da constituiçã o de
modelos formais de liberdade que escondem novas formas de alienaçã o. Assim:
150
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, p. 34
151
Idem, p. 38
152
Idem, p. 38
Estado e religioso como membro da sociedade civil, laico como cidadã o e
religioso como indivíduo vivo. Tal reconciliaçã o clivada impede o advento do que
Marx chama de “estado político pleno” no qual seja possível atualizar a essência
humana pensada como “vida do gênero” (Gattungsleben), advindo assim uma
existência real do gênero. Até porque, o verdadeiro Estado cristã o é aquele que
constitui a “religiã o da vida privada” ao apontar à religiã o um lugar entre os
demais elementos da sociedade burguesa. No entanto, Marx insistirá que
emancipar nã o consiste em emancipar politicamente, mas em se emancipar do
modo atual de emancipaçã o política, emancipar das clivagens atualmente
produzidas e geridas pelo Estado.
Antes de tentarmos definir este conceito central de vida do gênero como
horizonte de emancipaçã o e reconhecimento, vamos tentar entender melhor o
que está em jogo neste texto que foi objeto de tanta polêmica. Na verdade, Marx
está a criticar a compreensã o da determinaçã o social da liberdade através da
realizaçã o do homem como indivíduo abstrato. Neste contexto, “abstrato” deve
ser compreendido como: submetido a um modo disciplinar de constituiçã o de si
no qual ele é constituído como indivíduo que tem um conjunto de propriedades
que lhe sã o inerentes e pró prias (sua religiã o, suas tradiçõ es, sua cultura, etc.). A
discussã o da transposiçã o da religiã o, da esfera pú blica para a esfera da
constituiçã o da vida privada, é apenas um modo privilegiado para apreender os
modos de privatizaçã o de si, de constituiçã o de si a partir da produçã o da esfera
do privado, do que me é pró prio, do que é minha predicaçã o. Daí porque Marx
pode fazer aproximaçõ es como:
153
Idem, p. 41
154
Idem, p. 49
(…) A aplicaçã o prá tica do direito humano à liberdade equivale ao direito
humano à propriedade privada”155.
Gattungsleben
Esta caracterizaçã o do ser humano como “ser sem espécie definida”, “ser sem
medida adequada”, de onde se segue sua possibilidade de produzir segundo a
medida de qualquer espécie, abre a possibilidade para uma indiferença genérica
em relaçã o à determinaçã o pró pria a toda espécie nas suas relaçõ es de
transformaçã o do meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida inerente
ao pró prio objeto157. Liberado da condiçã o de ser apenas objeto para-um-outro, o
objeto pode ser expressã o daquilo que, no sujeito, nã o se reduz à condiçã o de ser
para-um-outro. Daí porque encontrar a medida inerente ao objeto é, ao mesmo
tempo, superar a alienaçã o do sujeito. E o que, no sujeito, nã o se reduz a tal
condiçã o de ser para-um-outro, é o que nele nã o se configura sob a forma de
espécie alguma, nã o tem imagem de espécie alguma pois é sua “vida do gênero”
(Gattungsleben) que se objetifica no objeto trabalhado. O termo vem de
Feuerbach que, ao procurar estabelecer distinçõ es entre humanidade e
animalidade, dirá que:
155
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.
156
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
157
Não será a última vez que Marx usará a potência de indeterminação do sujeito para construir um
espaço de reconhecimento não-alienado. De certa forma, tal “ser sem espécie definida” adianta, do
ponto de vista ontológico, a “classe dos desprovidos de classe” na qual Marx encontrará o proletariado,
como veremos de maneira mais articulada na terceira parte deste livro.
De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto ele tem
sentimento de si – mas nã o como gênero – por isto, falta-lhe a consciência,
cujo nome deriva de saber. Onde existe consciência existe também a
faculdade para a ciência. A ciência é a consciência dos gêneros. Na vida,
lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser
para o qual seu pró prio gênero, sua quididade, torna-se objeto , pode ter
por objeto outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial
deles 158
Desenvolvi melhor esta ideia, a propósito da leitura adorniana de Hegel, em SAFATLE, Vladimir:
160
“Os deslocamentos da dialética” In: ADORNO, Theodor; Três estudos sobre Hegel, São Paulo: Unesp,
2013
Arqueologia da liberdade
Aula 9
Retornando a Antígona
Mas Zeus nã o foi o arauto delas [as leis enunciadas por Creonte] para
mim, nem essas leis sã o as ditadas entre os homens pela justiça,
companheira de morada dos deuses infernais; e nã o me pareceu que tuas
determinaçõ es tivessem força para impor aos mortais até a obrigaçã o de
transgredir normas divinas, nã o escritas, inevitá veis; nã o é de hoje, nã o é
de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que
ninguém possa dizer quando surgiram162.
164
LUTERO, Martinho. Da liberdade do cristã o. Trad. Erlon J. Paschoal. Sã o Paulo: Unesp, p. 43
165
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de
Macedo. Sã o Paulo: Companhia das Letras, p. 95
vontade de Deus) nã o é acessível ao meu entendimento. Perspectiva esta que
devemos chamar de “voluntarista” por insistir na incomensurabilidade entre o
entendimento humano e a vontade de Deus. Assim, uma questã o maior
impunha-se a cada fiel individualmente: “Serei eu um dos eleitos? E como eu vou
poder ter certeza dessa eleiçã o?”. A resposta era apenas uma: devemos nos
contentar em tomar conhecimento do decreto divino e perseverar na confiança
em Cristo operada pela verdadeira fé.
Tal perseverança traduzia-se na exigência de uma profunda unidade
coerente das condutas mobilizada pelo exame contínuo de si, pela auto-inspeçã o
sistemá tica em cada instante, além da recorrência compulsiva da certeza
subjetiva da pró pria eleiçã o. Como nã o havia para os protestantes sacramentos
como a confissã o, que servia como reparaçã o de momentos de fraqueza e
leviandade, a pressã o de uma unidade coerente das condutas acabava sendo
entificada em uma vida pensada como sistema:
166
WEBER, A ética protestante e o espírito do capitalismo, op. cit., p. 107
167
SCHNEEWIND, J. B. A invençã o da autonomia: uma histó ria da filosofia moral moderna. Trad.
Magda França Lopes. Sã o Leopoldo: Editora Unisinos, 2005, pp. 554-555
que se age, já que posso, a todo momento, apoiar-me em meus princípios morais
para me contrapor à s tendências internas aos afetos. O que transforma a
liberdade fundamentalmente em livre-arbítrio, capacidade de deliberaçã o e
escolha a partir de vá rios modelos possíveis de açã o. O resultado, no entanto, nã o
poderá ser muito diferente do que dizia um poema popular da literatura
puritana, Auto-machia, escrito por George Goodwin em 1607:
168
cf. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropoló gica da ideologia moderna.
Trad. Á lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1993
169
cf. FRANKFURT, Harry. “Freedom of the Will and the concept of a person”. In: The Journal of
Philosophy, n. 68, 1971
intensidade aqui. É possível, por exemplo, desejar ter o desejo de se concentrar
no trabalho mas, dependendo da intensidade deste desejo, ele pode perder sua
eficiência e ser anulado por outro desejo mais forte. Quando certo desejo
constitui a vontade, temos nã o apenas um desejo de segundo nível, mas uma
“voliçã o de segundo nível”. Tal capacidade de determinar a vontade através de
uma voliçã o de segundo nível seria o verdadeiro atributo determinante de um
ser dotado de autonomia. Pois é através deste segundo nível que determino se
meus desejos sã o ou nã o desejá veis. Ou seja, percebemos novamente como a
liberdade da vontade consiste em poder desejar outra coisa do que se deseja de
maneira irreflexiva, ou seja, ela aparece como figura do livre-arbítrio.
O livre-arbítrio
Essa compreensã o do livre-arbítrio tem uma matriz que nos leva diretamente a
Agostinho. Tentemos entender este ponto a partir daquilo que, em filosofia,
chamaríamos de “compatibilismo” pró prio à reflexã o de Agostinho sobre a
liberdade. Uma posiçã o compatibilista é aquela que afirma ser, de alguma forma,
compatível determinismo e livre-arbítrio, enquanto incompatibilista afirmará , ao
contrá rio, que a aceitaçã o de alguma forma de determinismo retira por completo
a possibilidade de existência da liberdade.
É claro que isto nos exige definir melhor o que podemos entender, ao
menos neste contexto, por “determinismo”. No caso de Agostinho, a funçã o do
determinismo é preenchida pela presciência divina, ou seja, o fato de deus saber
todas as coisas antes delas acontecerem. O que lhe leva a enunciar:
171
AGOSTINHO; Do livre-arbítrio, p. 75
172
Idem, A cidade de Deus, XIV, 16, J
173
Idem; Do livre arbítrio, p. 47
a marca dessa insubmissã o primeira para que ela possa ser superada através do
exercício autô nomo da vontade e do governo, para que dessa forma ela nã o mais
ocorra. Como lembrará Foucault:
O homem caído nã o caiu sob uma lei ou uma força que o subjuga
inteiramente: uma cisã o marca sua pró pria vontade que se divide,
retorna-se contra si e escapa ao que ela mesma pode querer. É o princípio,
fundamental em Agostinho da inoboedentia reciproca, da desobediência
em retorno. A revolta no homem reproduz a revolta contra Deus 174.
174
FOUCAULT, Michel; Les aveux de la chair, p. 334
Arqueologia da liberdade
Aula 10
175
GRAEBER, David; La critique indigène, le mythe du progrès et la naissance de la gauche, p. 4
176
MACPHERSON, C.B.; The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke, Oxford
University Press, 1962, p. 26.
177
HOBBES, Thomas; Do cidadão, p. 14.
natural, nã o possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos
dias daquela maneira brutal que antes referi178.
Ou ainda:
sabemos disso também tanto pela experiência das naçõ es selvagens que
existem hoje, como pelas histó rias de nossos ancestrais, os antigos
habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde
encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e
comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela
paz e pela sociedade179.
178
Idem, p. 110.
179
HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, Sã o Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70
180
LOCKE, John; Segundo tratado do governo, par. 68
181
LOCKE, John; idem, par. 103
182
Idem, p. 350
funda o governo. Locke fala da ambiçã o, da concupiscência que pode quebrar a
harmonia pressuposta no estado de natureza.
Notemos, com isto, a defesa de que a emergência do estado é a marca do
desenvolvimento social e da efetivaçã o concreta da liberdade. Pois sem estado
nã o haveria a impessoalidade da lei vinda da centralizaçã o da decisã o e da
interpretaçã o da lei. É claro que tal compreensã o é uma abstraçã o ideal. Nenhum
estado paira acima dos interesses sociais, como uma força que nã o expressa a
predominâ ncia de forças outras que lhe controlam. Mas é fundamental insistir
que tal teoria tem uma funçã o colonial maior, a saber, constituir a narrativa do
atraso dos povos colonizados e de sua liberdade frá gil, sem garantias
institucionais necessá rias.
De toda forma, notem que Locke se serve do princípio da “igualdade
perante a lei” como expressã o fundamental da justiça social e da liberdade
institucionalmente assegurada. De fato, nã o há a noçã o de “igualdade perante a
lei” entre os ameríndios porque a igualdade nã o é algo que se diz da relaçã o a um
poder soberano, que nã o existe, mas que se diz do modelo mutualista de decisõ es
e deliberaçõ es.
Nã o será por outra razã o que jesuítas como Gabriel Segard reconhecerã o que a
capacidade de argumentaçã o média de um membro Wendats (tribo do Quebec)
era maior do que dos franceses. O que nã o deveria nos surpreender já que, como
se tratam de povos submetidos a autoridade nã o-coercitiva, o uso contínuo da
argumentaçã o é traço social trivial. Como disse o padre Lallemant em 1644, a
respeito dos mesmos Wendats do Quebec: “nã o creio que existam pessoas sobre
a terra mais livres que eles”. Pois se tratava de povo que desconhecia a obrigaçã o
de submissã o à autoridade paterna, que nã o tinham sistemas individualizados de
penas. Um crime era pago nã o pelo agente, mas por compensaçõ es feitas por sua
família, clã ou tribo. E o elemento mais impressionante destes relatos era a
honestidade de reconhecer que tais sociedades funcionavam melhor que as
europeias. Nã o é difícil imaginar o tipo de desafio que tais afirmaçõ es colocavam
para a filosofia política europeia e seu desejo de legitimar o que entendemos pela
superioridade do ocidente.
Ou seja, a colocaçã o de Locke a respeito da insegurança reinante em tais
sociedades dificilmente se sustenta. Ao contrá rio, vemos sociedades nas quais a
funçã o efetiva do poder em tempos de paz consiste em dirimir conflitos através
do que chamaríamos, entre nó s, de “argumentaçã o racional”, o que leva outro
antropó logo, David Graeber, a afirmar que estamos diante de sociedades onde
seus membros sã o dotados de grande capacidade de argumentaçã o e
questionamento, ou seja, dotados daquilo que chamaríamos, entre nó s, de
“capacidade crítica”. É isto o que permite Clastres afirmar:
183
CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o estado, p. 48
184
Rélations jesuites 6, p. 109
185
Idem, p. 27
sociedades como “sociedades sem conflitos” 186, o que coloca uma série de
problemas a respeito das formas internas de violência de tais sociedades. Pois
compreender que inexiste o poder como coerçã o do estado ou da hierarquia nã o
implica necessariamente que normas sociais se imponham sem restriçõ es
sentidas como fonte de sofrimento, mesmo que tais restriçõ es funcionem de
outra maneira.
Clastres tenta afirmar que se tratam de normas sustentadas pela
sociedade inteira, e nã o por grupos particulares. Sã o normas da pró pria
sociedade, que todos respeitam, nã o imposta por ninguém. Isto lhe leva a
afirmaçã o de que:
O mínimo que podemos dizer é que tal proposiçã o é dificilmente sustentá vel.
Relaçõ es de poder visam a perpetuaçã o de modelos de reproduçã o social. Nesse
sentido, relaçõ es de gênero e familiares sã o absolutamente integradas ao
processo de funcionamento do poder político. Ainda mais porque nã o admitem
contestaçã o e passam por expressã o da totalidade da sociedade até mesmo para
um antropó logo advertido como Clastres. No entanto, como se trata de criar a
visã o de sociedades sem conflitos, chega-se a essa definiçã o do cará ter nã o-
político do poder paterno e marital.
De toda forma, há de se reconhecer que Clastres é sensível a um ponto
fundamental, a saber, a amplitude da liberdade política de tais sociedades
demonstra a limitaçã o da liberdade política das sociedades ocidentais.
Guerra e fuga
188
CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o estado, Sã o Paulo: Cosac e Naify, 2003, p. 233.
189
FAUSTO, Ruy; Marx: ló gica e política II, p. 197
190
CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violência, p. 154
social de liberdade. A razã o para tanto, ao menos para Clastres, é que a divisã o
política engendra a divisã o econô mica, e nã o o contrá rio como sustenta o
marxismo para o qual o estado é um instrumento de classe. Neste sentido, as
sociedades ameríndias lutam para impedir a consolidaçã o de divisõ es sociais que
serã o a quebra da igualdade e a marca fundamental do fim da liberdade, pois nã o
pode haver liberdade lá onde a sociedade é organizada sob a forma da submissã o
ao poder de um outro.
Este que ousa instituir um povo deve se sentir em estado de mudar, por
assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si
mesmo é um todo perfeito e solitá rio, em parte de um todo maior do qual
tal indivíduo recebe de certa forma sua vida e seu ser; de alterar a
constituiçã o do homem para reforça-la; de substituir uma existência física
e independente que todos recebemos da natureza por uma existência
parcial e moral194.
192
ROBESPIERRE, Maximilian; Pour le bonheur et pour la liberté: discours, p. 8
193
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Du contrat social, Pleiade vol. III, p. 351
194
idem, p. 381
A radicalidade das afirmaçõ es é explícita. Primeiro, notemos como Rousseau
afirma ser um povo o resultado de uma instituiçã o. Ou seja, ele é uma criaçã o,
cria-se um povo através de uma forma de instauraçã o institucional. De certa
forma, é possível dizer que a instituiçã o nã o é uma emanaçã o do povo. Há uma
invençã o política do povo que equivale a uma transformaçã o na pró pria natureza
de cada indivíduo, a uma alteraçã o da constituiçã o humana e à criaçã o de uma
outra forma de existência.
A emergência do povo é uma criaçã o política. Na verdade, é a criaçã o
política por excelência. Ela faz da sociedade nã o uma associaçã o de indivíduos,
como gostariam os pensadores liberais, nem um pacto entre soberano e a
populaçã o que ele governa. Pois a soberania é um pacto que o povo passa
consigo mesmo, nã o com outro. A sociedade será um corpo. Para ser mais
preciso, ela será um corpo político. Este corpo será o suplemento possível a
relaçõ es perdidas no estado de natureza. Ele é um artifício, por isto só poderá ser
fruto de um tempo de ruptura.
Por isto, como veremos, esta invençã o do povo nã o é resultado da simples
recusa do fato natural devido a uma teoria do progresso e da perfectibilidade
humana. Seu tempo nã o é o da ruptura linear. Ela é fruto de um suplemento a
uma perda, de um retorno impossível mas cuja impossibilidade, longe de
paralisar a açã o, é condiçã o para a criaçã o de uma açã o política possível.
Assombrado pelo contato com a liberdade ameríndia, o pensamento de Rousseau
produzirá nã o exatamente alguma forma de “retorno” ao que os europeus
compreendiam como formas arcaicas de vida social, mas uma aceleraçã o em
direçã o à ruptura. Para tanto, o estado de natureza deverá aparecer como
anterior até mesmo à quilo que encontraríamos na América, como inacessível,
mas podendo ser suplementado através da invençã o da autonomia política.
Assim, para entender a estrutura de tal tempo, e por consequência
entender como a noçã o moderna de autonomia encontrará em Rousseau uma de
suas principais fontes, precisamos voltar a sua teoria do estado de natureza e do
processo de alienaçã o vinculado à emergência da socialidade.
História da queda
Isto faz da histó ria da técnica a histó ria do afastamento do sentido, uma histó ria
da alienaçã o no sentido mais forte do termo, a saber, tomar-se por um outro,
estar preso ao olhar de um outro.
197
Idem, p. 142
198
STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36
199
Idem, p. 23
Neste ponto, lembremos de outro fenô meno responsá vel pela saída do
estado de natureza, um fenô meno ligado ao exercício da faculdade de
perfectibilidade, a saber, a emergência do trabalho cooperativo. Em Rousseau, o
trabalho cooperativo nã o é fonte de emancipaçã o, mas uma das principais fontes
de alienaçã o. Pois o trabalho cooperativo é expressã o de relaçõ es de
dependência e com tais relaçõ es de dependência aparecem a necessidade do
artifício, da conquista do olhar e da estima do outro:
Um corpo político
Neste ponto, fica claro como o povo é simplesmente o nome que damos
para a imanência da vontade consigo mesma no interior de um corpo. Já a
metá fora do corpo político é instrutiva neste contexto. Um corpo nunca é “meu”
no sentido que posso dizer que esta cadeira é minha o que este terreno é meu.
Um corpo nã o se submete à minha vontade como esta cadeira se submete
enquanto objeto. Mesmo sendo espaço da minha subjetividade, um corpo sempre
me faz me confrontar com o que nã o controlo e com o que me constitui sem me
ser imediatamente pró prio. No entanto, esta exterioridade do corpo ao sistema
de afirmaçõ es individuais é a instituiçã o da aderência a uma generalidade que
206
ROUSSEAU; Du contrat social, op. cit., p. 392
207
ROUSSEAU; Du contrat social, p. 429
208
Idem, p. 429
constitui outra forma de existência. Existir como um corpo é sempre existir como
mais do que mim mesmo.
Música e reconhecimento
O que acontece com esta natureza humana deixada para trá s? Ela ainda
terá alguma força de implicar o campo de experiência humana? Pois podemos
nos perguntar se esta transformaçã o produzida pelo legislador, se esta mudança
da pró pria natureza humana nã o seria sem produzir uma certa nostalgia social. A
vida política parece nã o poder dar conta desta nostalgia. No má ximo, ela
transmuta a experiência de auto-pertencimento pró pria ao estado de natureza
em desejo de igualdade (forma ú nica de impedir a servidã o) e de autonomia. Por
isto, em algum nível, ela ainda fala aos humanos como indivíduos marcados pela
experiência da individualidade possessiva.
No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz
da natureza, no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma
linguagem de pura presença. A política procura uma linguagem da pura
presença, ela procura dar à voz sua força de direito. Tal linguagem, Rousseau a
encontra na mú sica e no uso da mú sica como paradigma para a reinstauraçã o da
ordem social.
A fim de compreender a configuraçã o do paradigma musical em Rousseau,
lembremo-nos do sentido de uma das querelas mais importantes das quais ele
participou, a saber, a chamada querela dos bufõ es. Grosso modo, trata-se de uma
contraposiçã o entre, de um lado, uma noçã o de modernidade musical vinculada
ao primado da harmonia e das regras estritas de uma progressã o harmô nica
derivada da teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas para uma
polifonia contrapontística controlada pelo centro harmô nico e para uma
definiçã o de estruturaçã o da forma musical absolutamente autô noma em relaçã o
a tudo o que seria extra-musical (Jean-Phillipe Rameau); de outro, uma reaçã o
que insistia no primado da melodia e da simplicidade monofô nica inspirada no
canto.
Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da
melodia, sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo
que nã o se refere aos modos de imitaçã o no interior da vida social, mas no
vínculo exterior entre sociedade e natureza. Vínculo que se faz sentir na relaçã o
entre mú sica e a expressã o natural da linguagem com suas entonaçõ es e acentos.
Isto o permitia vincular a mú sica à uma pedagogia da arte capaz de servir de
veículo de formaçã o moral por recuperar o vínculo entre natureza e cultura.
Lembremos do que diz Rousseau :
209
Idem, p. 381
Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma
mú sica e um canto, os europeus sã o os ú nicos que têm uma harmonia,
acordes, achando esta mistura agradá vel ; quando pensamos que o modo
durou tantos séculos sem que, em todas as naçõ es que cultivaram as
belas-artes, nenhuma tenha conhecido esta harmonia, que nenhum
animal ou pá ssaro, nenhum ser na natureza produziu outro acorde que o
uníssono ou outra mú sica que a melodia ; que as línguas orientais, tã o
sonoras, tã o musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram estes
povos voluptosos e apaixonados em direçã o à nossa harmonia ; que sem
ela suas mú sicas tiveram efeitos tã o prodigiosos ; que com ela a nossa
tenha efeitos tã o fracos ; que, enfim, estava reservado aos povos do norte,
cujos ó rgã os duros e grosseiros sã o mais tocados pelos ruídos e explosõ es
de vozes do que pela doçura dos acentos e melodias das inflexõ es,
fazerem esta grande descoberta e definí-la como princípio a todas regras
da arte ; quando, digo eu, levamos tudo isto em consideraçã o, é muito
difícil nã o desconfiar que toda nossa harmonia é uma invençã o gó tica e
bá rbara a respeito da qual nunca seríamos avisados se fô ssemos mais
sensíveis as verdadeiras belezas da arte e à mú sica realmente natural 210.
210
ROUSSEAU, Dictionnaire de musique
211
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208
212
Idem, Essai sur l’origine des langues,
permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensã o instrumental e
comunicacional que os separa. Lembremos do que diz Rousseau: “as
necessidades ditaram os primeiros gestos e as paixõ es arrancaram as primeiras
palavras”213. Ou seja, a fala que expressa apenas sistemas de necessidades é uma
fala muda, mais pró xima da pura gestualidade. Ela separa os humanos pois os
coloca em relaçã o de concorrência e de defesa. Mas:
As paixõ es, por sua vez, sã o implicativas. Elas nunca dizem respeito apenas a
um, elas mudam o outro quando enunciadas. Por isto, a linguagem das paixõ es é
aquela que realmente produz laços. A língua do povo em assembleia é aquela
mais pró xima do canto, da poesia e da mú sica. De certa forma, para Rousseau,
não há assembleia sem música e poesia. Pois o estar em assembleia nã o é apenas o
ato de estar em um mesmo espaço e de procurar um consenso entre interesses
distintos. Estar em assembleia é o ato de falar outra língua, estranha à língua dos
interesses e das estratégias. Por isto, as verdadeiras assembleias sã o algo raro.
Faz parte do poder nã o exatamente mobilizar por paixõ es, e sempre será
o mais profundo dos enganos imaginar que o poder mobiliza uma linguagem das
paixõ es. Na verdade, ele sempre irá procurar esvaziar a língua de sua força de
expressã o, fazer dela ou o mero espaço de descriçã o desafetada ou o mero
espaço de afirmaçã o de minhas propriedades, daquilo que me separa de outros
sujeitos. Por isto, a primeira revolta sempre será uma revolta da linguagem
contra sua degradaçã o, uma procura da linguagem em parar um processo
descrito por Rousseau da seguinte forma:
213
ROUSEEAU; Idem, p. 380
214
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 161
215
ROUSSEAU; Idem, p. 384
Arqueologia da liberdade
Aula 12
217
idem, p. 1389
218
Ver HEGEL, G.W.F.; Grundlinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt: Suhrkamp, 1970. A este
respeito, ver ainda PIPPIN, Robert; Hegel practical philosophy: rational agency and ethical life,
Cambridge University Press, 2008 e HONNETH, Axel; Die zerrissene Welt des Soziale: Sozial-
philosophische Aufsatze, Frankfurt: Suhrkamp, 1990
mesmo que tal potencialidade ainda não tenha se realizado. Assim, a universalidade
não vai para as práticas atualmente em operação, mas para a disposição crítica que
força o presente em direção à sua transformação.
O gozo do dever
Mas, aqui, vale a pena colocar uma pergunta fundamental, a saber, de onde
podem vir as motivações subjetivas que me fazem aquiescer a um sistema de conduta
fundamentado em tal clivagem subjetiva? De onde vem a satisfação com tal liberdade
que faz com que o auto-pertencimento só possa ser afirmado através de certa
clivagem, auto-negação e transformação de si? Se quisermos ser mais precisos, em
uma figura do auto-pertencimento como crítica de si. Pois este auto-pertencimento
não é afirmação de relações imanentes a si. Lembremos mais uma vez, ele é um
trabalho. Se recusarmos argumentos baseados na simples coerção ou no medo de ser
“destruído” pela procura em realizar o desejo, por que sujeitos adeririam a tal modelo
de moralidade no qual preciso, a todo momento, lutar contra meus próprios impulsos,
já que os motivos teológicos não podem ser utilizados neste horizonte? Se não
tivermos medo de pecar por certo anacronismo, há de se perguntar aqui sobre a
“economia libidinal” do dever.
Uma maneira de responder tais perguntas passa pela defesa de que sujeitos não
determinam a totalidade de suas ações através do cálculo do prazer e da satisfação
própria ao bem-estar. Neste sentido, é correto dizer que, para Kant, a vontade
autônoma é vontade que se coloca para além do princípio do prazer, embora não se
trate aqui de elevar a negação do prazer a critério de moralidade de nossas ações. Na
verdade, seria mais correto afirmar que a vontade autônoma é aquela que se afirma
em uma dimensão de indiferença em relação às exigências do prazer.
No entanto, uma afirmação desta natureza tem consequências importantes, já
que ela leva Kant a dissociar a relação, até então necessária, entre ação moral e
felicidade. Pois, ao menos para Kant: “aquilo em que cada um costuma colocar sua
felicidade tem a ver com o seu sentimento particular de prazer e desprazer e, até num
mesmo sujeito, com a carência diversa de mudanças desse sentimento” 219. Ou seja, um
dos impactos fundamentais do advento da individualidade moderna seria a conjugação
da felicidade no particular, já que ela estaria profundamente ligada ao amor próprio e
às exigências egoístas do Eu. Cada um procura alcançar e definir sua felicidade à sua
maneira, levando em conta as experiências contingentes de prazer e desprazer que
teve, experiências que mudam no sujeito através do tempo.
Devido a tal particularismo, Kant não pode admitir que ela apareça como a
aspiração de toda ação moral, como era o caso, por exemplo, em Aristóteles, quando
este podia afirmar que: “a felicidade (eudaimonía) é a atividade conforme a
excelência”220. Ou seja, atividade para a qual convergem todos os que procuram a
excelência que o ser humano pode alcançar como animal racional. Alguns filósofos
contemporâneos, como Alasdair MacIntyre, criticarão Kant por ele pretensamente não
compreender que a obediência a uma máxima moral só se justificaria se esta mostrar
sua capacidade em realizar a felicidade de seres racionais221.
No entanto, é bem provável que Kant seja guiado aqui por uma importante
intuição: com o advento da individualidade moderna, a felicidade advém um conceito
219
KANT, Crítica da razão prática. Trad. Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 43
220
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mario da Gama Kury. Brasília: Edunb, 1992, 1099a
221
MACINTYRE, Alasdair. Depois das virtudes. 2a. edição. Trad. Jussara Simão. Revisão de Hélder
Buenos Aires de Carvalho. Bauru: EDUSC.
problemático. Ligada de maneira constitutiva ao prazer, ela será vista como uma
experiência intermitente. Como os animais, só conhecemos contentamentos por
contraste. Pensando nisto, Kant dirá que é necessário que todo contentamento seja
precedido de uma dor, como um jogo no qual se alternam constantemente medo e
esperança. O domínio da procura da felicidade é, por isto, o domínio da instabilidade.
Por outro lado, conjugada no particular, a felicidade não é um ponto natural de
concórdia, mas fonte de uma experiência social de discórdia. Não apenas devido à
pluralidade de visões que ela comporta, mas também porque, como dirá Kant, nosso
prazer cresce ao compararmos com a dor do outro, assim como nosso sofrimento
diminui ao compararmos ao sofrimento semelhante ou maior do outro. Se aceitarmos
tais colocações de Kant, precisaremos determinar, para além da procura da felicidade,
uma outra forma de contentamento capaz de servir como motivação para a ação. É
neste ponto que poderemos encontrar um certo gozo ligado ao amor pelo dever.
Uma maneira de introduzir tal questão passa pela recuperação do uso kantiano
da distinção entre duas formas de falar “o bem” em alemão: das Gute (que Kant usa
para descrever uma determinação a priori do bem) e das Wohl (ligado ao prazer e ao
bem-estar do sujeito). Já podemos imaginar que os objetos ligados a das Wohl e, por
consequência, ao prazer e ao desprazer serão todos empíricos, pois: "não se pode
conhecer a priori de nenhuma representação de qualquer objeto, seja ela qual for, se
ela se vinculará ao prazer ou desprazer ou se será indiferente a ele”222. O sujeito não
pode saber a priori se uma representação de objeto será vinculada ao prazer ou à dor
porque tal saber depende do sentimento empírico do agradável e do desagradável. E
não há sentimento que possa ser deduzido a priori (exceção feita ao respeito -
Achtung) já que, do ponto de vista do entendimento, os objetos capazes de produzir
satisfação são indiferentes. Logo, a faculdade de desejar é determinada pela
capacidade de sentir (Empfänglichkeit), que é particular à patologia das experiências
empíricas de cada eu e desconhece invariantes universais. Isto permite a Kant afirmar
que não há universal no interior do campo dos objetos do desejo, nem todos desejam
as mesmas coisas, já que aqui cada um segue seu próprio sentimento de bem-estar e
os princípios narcísicos ditados pelo amor de si.
Tal purificação da vontade através da rejeição radical da série de objetos
patológicos nos levaria, no entanto, em direção a um bem para além do sentimento
utilitário de prazer. Esse bem, que Kant chamará de das Gute é, na verdade, "apenas a
maneira do agir (...) e não uma coisa que poderia ser assim chamada" 223. Quer dizer, a
vontade que quer das Gute quer apenas uma forma de agir, uma forma específica para
a ação, e não um objeto empírico privilegiado. A forma já é o objeto para a vontade
livre.
E de qual forma trata-se aqui? Nós a encontramos no imperativo categórico :
"Age de tal maneira que a máxima da tua vontade possa sempre valer como princípio
de uma legislação universal". Estamos aqui diante de uma pura forma vazia e
universalizante, forma que não diz nada sobre as ações específicas legítimas, sobre
quais regras devo seguir, já que ela não enuncia regra alguma. "A lei", diz Kant, "não
pode especificar precisamente de que maneira alguém deve agir e em que medida
deve ser realizada a ação visando o fim que é ao mesmo tempo dever" 224. O que não
invalida o empreendimento moral kantiano, já que o contentamento próprio à vontade
livre vem da determinação desta vontade pela forma da máxima moral.
222
KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 37
223
KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 60
224
KANT, Metafísica dos costumes, op. cit., p. 233
Desta maneira, Kant pode traçar um horizonte regulador de reconciliação
através da determinação perfeita da vontade pela Lei. Horizonte que, mesmo não
alcançável por um ser clivado como nós, deve guiar nossas ações. Horizonte no qual a
vontade aparece como Logos puro. Das Gute se confunde aqui com o amor pela Lei, o
que permite a Kant reintroduzir o conceito aristotélico de Soberano Bem enquanto
síntese entre a virtude e a felicidade, abrindo no entanto o espaço para uma importante
mudança qualitativa no contentamento produzido por tal síntese. Pois ela produziria
um: "agradável gozo da vida (Lebensgenuss) e que, no entanto, é puramente moral"225.
Desta forma, um gozo próprio ao contentamento de si (Selbstzufriedenheit), distinto
da felicidade, pois vindo do sentimento de respeito à Lei, aparece no horizonte
regulador do Soberano Bem. Guardemos esta fórmula: a conformação perfeita da
vontade à Lei, a realização da vontade como dever promete um gozo para além do
prazer. É ele que nos fornece a “economia libidinal” da autonomia.
Entre a culpa e o sublime
Se nos deslocarmos à Crítica da faculdade de julgar, encontraremos um
paralelo que nos fornece indicações importantes a respeito deste gozo produzido pela
conformação perfeita da vontade à Lei moral. Tal paralelo aproxima a autonomia
moral e o sentimento estético do sublime.
Uma das características mais marcantes da estética moderna é o movimento
histórico de dissociação paulatina entre o belo e o sublime, isto a fim de, entre outras
coisas, descrever duas modalidades distintas de sentimentos produzidos pela
contemplação das formas. Na Crítica da faculdade de julgar, Kant parte desta
distinção entre belo e sublime, vendo no primeiro aquilo que concerne à harmonia e
equilíbrio das formas do objeto e que produz um prazer sensível ligado ao livre jogo
da imaginação. Já o sublime sempre indicaria a dimensão do ilimitado, do limite à
representação e, por isto, produziria um prazer negativo ligado à violência contra a
imaginação. Kant chega a falar do sublime como o que constitui um abismo no qual a
imaginação teme se perder.
Duas determinações do sublime são fornecidas por Kant: o sublime
matemático e o sublime dinâmico. O primeiro nomeia o que é absolutamente grande,
isto no sentido de absolutamente desmedido. Daí a afirmação conhecida : “é sublime
aquilo que, do simples fato de o pensarmos, demonstrar um poder (Vermögen) do
espírito que ultrapassa toda medida de sentido”. Kant indica como exemplo o
embaraço daquele que entra na Basílica de São Pedro, em Roma. Nestes casos, se a
violência contra a imaginação produz desprazer, ele é compensado pelo prazer de
descobrir toda medida da sensibilidade inadequada às ideias da razão.
Já o sublime dinâmico estaria ligado à manifestação da força descomunal da
natureza. Uma força que só é sublime se contemplada em situação de segurança. Pois
é sublime esta capacidade de pôr-se diante do perigo, do caráter destrutivo de uma
força, a fim de revelar nossa destinação superior. Diante da força descomunal da
natureza, tenho consciência da finitude de minha resistência física, mas contemplando
tal força como um espetáculo distante venço meus impulsos imediatos de auto-
conservação, o que me abre à descoberta do prazer de não me confundir
completamente com eles. Por isto, Kant dirá : “sublime é o que compraz através da
sua resistência contra o interesse imediato dos sentidos”.
Assim, Friedrich Schiller, profundamente influenciado neste ponto por Kant,
podia afirmar que a contemplação da força da natureza, em segurança, nos abre à
descoberta de uma resistência que não é resistência física, mas resistência vinda de
225
KANT, Metafísica dos costumes, op. cit., p. 485
nossa dissociação entre existência física e personalidade. Desta forma, através do
sublime, encontramos um estado no qual os sentimentos de dor e alegria convergem
para o mesmo objeto. Entusiasmamo-nos com o temível porque podemos querer o que
os impulsos repudiam. Ou seja, no belo, razão e sensibilidade se harmonizam. No
sublime, elas encontram seu ponto de desregramento.
Kant abre tal discussão estética por estar interessado em mostrar como o
sublime é modo de experiência da autonomia, pois o prazer negativo no qual o
sublime se assenta evidencia a existência de algo em nós que coloca entre parênteses
nosso desejo de auto-conservação e quebra a capacidade de apreensão da imaginação.
Por isto, Kant pode afirmar que o julgamento sobre o sublime assenta-se na
disposição humana ao sentimento moral, na disposição em acolher o que resiste aos
interesses dos sentidos. Da mesma forma que o belo nos prepara a amar algo de
maneira desinteressada, o sublime nos prepara a estimar aquilo que vai contra nosso
interesse sensível.
Tal discussão sobre as relações entre autonomia moral e sentimento do
sublime servem para mostrar uma dimensão importante da economia libidinal do
dever. Normalmente, devido à nossa sensibilidade contemporânea, dizemos que o
dever assenta-se sobre um sentimento de culpa que, em si, já é motivo de gozo. Não
há dever sem culpa e a consciência da culpabilidade sempre foi uma maneira
patológica de demanda de amor. Pois a experiência da culpa é indissociável do
sentimento de ser virtualmente observado por alguém a quem reconhecemos
autoridade legítima, a quem esperamos uma forma de amparo por nos fornecer uma
norma capaz de explicar o que devemos fazer para sermos reconhecidos como sujeitos
dotados de dignidade. Saber-se culpado é, assim, uma forma de nos certificarmos que
a Lei é para nós, que temos um lugar assegurado diante da porta da Lei.
Pensando nisto, o psicanalista Sigmund Freud chegou a explorar a maneira que
uma modalidade de sofrimento psíquico, como a neurose obsessiva, era na verdade
uma forma de “patologia da moralidade” capaz de mostrar como o dever estava
necessariamente vinculado à transgressão. Pois, neste caso, haveria uma articulação
profunda entre transgressão do dever e gozo culpado, já que a culpa seria a única
forma que o neurótico obsessivo conheceria de confessar seu amor por aqueles que
representam a Lei moral. Em um livro como O mal estar na civilização, Sigmund
Freud generalizará tal estrutura para a condição de modelo privilegiado de adesão
social na modernidade, não se restringindo mais aos casos de neurose obsessiva. Isto a
ponto de afirmar que o sentimento de culpa seria o problema mais importante do
processo civilizatório. Tudo se passa assim como se um caso patológico simplesmente
fornecesse a lente de aumento para um processo presente em todos sujeitos.
De fato, não é possível negligenciar o peso de tal crítica, principalmente
quando Kant insiste que a dor em relação ao abandono de nossas inclinações e a
humilhação de nosso amor-próprio são sentimentos necessariamente produzidos pela
consciência da Lei moral. Dor e humilhação ligadas à consciência da culpabilidade
diante da Lei. Kant insiste, por exemplo, que a forma do dever é intransponível. Ela
sempre aparecerá como uma obrigação que quebra nossa presunção. Querer ignorar
nossa clivagem subjetiva, retirando o caráter de norma exterior do dever e
transformando o que tem a forma necessária da obrigação em algum regime de
impulso natural, de inclinação espontânea e entusiasmada para o bem é, para Kant,
arrogância e fanatismo moral de quem acredita, erroneamente, poder alcançar a
santidade da conformação absoluta entre imperativo moral e inclinações. Kant fala
que tal conformação absoluta só pode ser objeto de um “progresso que avança ao
infinito”226. Mas, como sabe o velho Zenão de Eleia, um progresso ao infinito é, na
verdade, a perpetuação de uma distância infinita, isto se não quisermos apelar à
imortalidade da alma. Quem anda em direção ao infinito continua, a partir da
perspectiva do infinito, no mesmo lugar. Desta maneira, o auto-pertencimento
pressuposto pela relação entre vontade livre e Lei moral é, ao mesmo tempo,
postulado e infinitamente adiado. O paradoxo da forma do dever se encontra no fato
dele abrir o espaço a um processo de transformação de si que, ao mesmo tempo que
funda a possibilidade de minha auto-determinação, impede que ela ganhe a forma de
uma relação imanente à si. Isto pode nos explicar porque:
226
KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 198
227
KANT, Metafísica dos costumes, p. 27
228
KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 141
229
idem, p. 143
vontade de poder): somente que a matéria na qual se extravasa a natureza
conformadora e violentadora dessa força é aqui o homem mesmo, o seu velho
Eu animal – e não, como naquele fenômeno maior e mais evidente, o outro
homem, outros homens. Essa oculta violentação de si mesmo, essa crueldade
de artista, esse deleite em dar uma forma, como a uma matéria difícil,
recalcitrante, sofrente, em se impor a ferro e fogo uma vontade, uma crítica,
uma contradição, um desprezo, um Não, esse inquietante e horrendamente
prazeroso trabalho de uma alma voluntariamente cindida, que a si mesma faz
sofrer, essa “má consciência” ativa também fez afinal – já se percebe - , como
verdadeiro ventre de acontecimentos ideais e imaginosos, vir à luz uma
profusão de beleza e afirmação nova e surpreendente, e talvez mesmo a
própria beleza230.
230
NIETZSCHE, Friedrich; Genealogia da moral, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 76
231
KANT. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita In: KANT, I. A paz
perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 34
Arqueologia da liberdade
Aula 13
232
Idem, A cidade de Deus, XIV, 16, J
233
Idem; Do livre arbítrio, p. 47
Mas lembremos como o afastamento da libido era produzido nã o apenas pelo
sentimento de culpabilidade e pelo desejo de submissã o de toda corporeidade
que aparece como espaço do involuntá rio. Há ainda e principalmente o desejo de
comunhã o com o divino, de fortalecimento de si que promete um tipo de gozo e
contentamento de outra natureza, que promete o advento de um mundo
purificado de tudo o que é estranho e insubmisso.
Vimos como a constituiçã o do conceito moderno de autonomia poderia
ser compreendido como a recomposiçã o dessa força de transformaçã o de si, mas
agora sem o apelo à ascese em direçã o à lei divina. O voluntarismo de quem
defende a incomensurabilidade entre a vontade divina e a razã o humana deve
ser abandonado em prol da concepçã o de que a lei moral nã o se aplica apenas
aos homens, mas a todos os seres racionais, deus incluso. Dessa forma, a
concepçã o moderna de autonomia poderá constituir, a partir do desejo de auto-
determinaçã o, o nú cleo das motivaçõ es em relaçã o ao afastamento dos impulsos
e inclinaçã o. A auto-legislaçã o nã o aparece mais como uma estratégia de ascese
religiosa, mas como uma estrutura de auto-determinaçã o.
Vimos em Rousseau como tal auto-determinaçã o só poderia se realizar
através de um novo corpo social. Corpo esse que se expressa através da vontade
geral e realiza, assim, as exigência normativas da soberania popular:
Este que ousa instituir um povo deve se sentir em estado de mudar, por
assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si
mesmo é um todo perfeito e solitá rio, em parte de um todo maior do qual
tal indivíduo recebe de certa forma sua vida e seu ser; de alterar a
constituiçã o do homem para reforça-la; de substituir uma existência física
e independente que todos recebemos da natureza por uma existência
parcial e moral234.
236
Ver o clá ssico estudo de WEBER, Max; Fundamentos racionais e sociológicos da música, Sã o
Paulo: Edusp, 1994 assim como o mais recente KIVY, Peter; Antithetical arts: on the ancient
quarrel between literature and music, Oxford University Press, 2009 e NEUBAUER, John; The
emancipation of music from language: departure from mimesis in Eighthenn- Century aesthetics,
Yale University Press, 1986
Lembremos, a este respeito, do que diz o crítico de artes visuais Clement
Greenberg:
244
SCHILLER, Friedrich; A educação estética do homem, Sã o Paulo: Iluminuras, 1997
245
HOFFMANN, E.T.A.; Kresleriana, Reclam, 1986
Aqui, Hoffmann apresenta alguns dos traços fundamentais que
acompanharã o o conceito de sublime durante todo o século XIX. Primeiro,
Hoffmann afirma nã o apenas que Beethoven é puramente româ ntico, mas que a
mú sica é talvez a ú nica arte puramente româ ntica, como se devessemos assumir
uma aproximaçã o, cheia de consequências, entre “româ ntico” e “musical”.
Beethoven é româ ntico por ser eminentemente “musical”. Seria interessante
perguntar-se, no entanto, o que o adjetivo “musical” pode significar neste
contexto. Seguindo as discussõ es a respeito da noçã o de mú sica absoluta,
podemos dizer que “musical” significa, primeiramente, expressã o do que se
conserva em uma certa vagueza, daí o desconforto relativo de Beethoven com a
mú sica vocal. Pois o que é musical nã o tem a precisã o do que se define no
interior de um regime espacial de imagens ou do que se define pela capacidade
de categorizaçã o das palavras. Neste sentido, o que é musical desconhece a
“determinaçã o dos afetos”. Por isto, aquilo provido de qualidades musicais tem a
força de provocar em nó s uma “nostalgia infinita” por apresentar o que nunca
está completamente presente.
Mas o vocá bulo “infinito” nã o está aqui por acaso. Ele é importante por
expressar o desconforto dos artistas do começo do século XIX com as convençõ es
formais da linguagem e com a ordem social que elas representavam. Recorrer ao
infinito era a maneira româ ntica de se compreender em um tempo de mutaçã o
no qual a ordem social nã o podia mais aspirar fundamentaçã o que outrora teve,
no qual as normas que forneciam a funcionalidade da forma estética devia ser
sistematicamente questionada por parecerem “finitas”. Neste sentido, é
interessante lembrar como escritores como Hoffmann diziam que a mú sica era
talvez a ú nica arte realmente româ ntica por ter por ú nico objeto a expressã o do
infinito. “Expressar o infinito”, neste caso, significa: expressã o do que desarticula
nossa capacidade de estabelecer relaçõ es de identidade e diferença e que, por
isto, nega constantemente as aspiraçõ es construtivas da forma. O que é “musical”
é pois indeterminado, dispõ e-se em um jogo constante com o informe, nã o por
deficiência em relaçã o à prosa do conceito (como o anti-româ ntico Hegel
defendia), mas por proximidade com a experiência do infinito.
Hoffmann lembra como, para um certo ouvinte médio da época, a mú sica
de Beethoven nã o seria desprovida de fantasia. No entanto, ela seria
desorganizada, como se a fantasia subjugasse a forma, o que faria de suas
sinfonias uma sucessã o inconstante de sentimentos e caracteres. Como disse um
crítico da época, os ouvintes de Beethoven eram: “massacrados por uma massa
de ideias sobrecarregadas e sem relaçã o umas com as outras, assim como pelo
tumulto incessante de todos os instrumentos” 246. Mú sica composta por temas
fragmentados por serem, em sua maioria, pequenas ideias musicais de nã o mais
do que quatro compassos, ideias cujas transiçõ es sã o muitas vezes abruptas,
cortadas, marcadas por pausas e interrupçõ es.
Hoffmann precisa lembrar das opiniõ es deste “populacho musical”
(musikalischen Pöbel) para afirmar que tal desarticulaçã o dos princípios
construtivos da forma, que tal desregulaçã o das normas, produzida pela mú sica
de Beethoven, nã o era simples maneirismo, mas modo de trazer para o interior
da forma a tensã o entre a expressã o do infinito e a regularidade das convençõ es.
Este que reclamam de Beethoven procuram a unidade através do respeito à s
246
Apud ROSEN, Charles; Le style classique, p. 497
regras gramaticais da linguagem musical hegemô nica247. Mas eles deveriam
procurá -la na força unificadora da ideia. Nesta tensã o entre expressã o do infinito
e regularidade das convençõ es, a obra nã o se desagregaria em um mero jogo com
o informe porque a mú sica de Beethoven seria capaz de fornecer novos
processos construtivos.
Contra a comunidade
247
Por tal razã o, Charles Rosen lembrará que: “antes de Beethoven, nenhum compositor tinha tã o
claramente ignorado o limite de seus intérpretes e de seu auditó rio” (ROSEN, Charles; Le style
classique, Paris: Gallimard, p. 488)
duas notas serve de base construtiva. Tal polaridade nunca se resolve, mas é
simplesmente cortada e suspensa antes de se completar (como no final deste
primeiro motivo) ou aumenta por acumulaçã o e intensidade. Ela é o melhor
exemplo de como: “em Beethoven, ideias formais e detalhes meló dicos vem à
existência simultaneamente; o motivo singular é relativo ao todo. Ao contrá rio,
no final do século XIX a ideia meló dica funciona como um motivo no sentido
literal da palavra, colocando a mú sica em movimento e providenciando a
substâ ncia de desenvolvimento na qual o tema em si foi elaborado” 248. No caso da
Abertura Coriolano, podemos dizer que o motivo é a pró pria ideia musical.
Esta permanência extensiva da ideia musical permite integrar
acontecimentos que poderiam ser compreendidos como negaçõ es radicais da
funcionalidade da obra. Um exemplo maior encontra-se na forma com que a
polaridade dinâ mica entre notas se transforma em polaridade conflitual entre
motivos e temas. A peça toda é atravessada pelo antagonismo entre os motivos,
associados a Coriolano e organizados basicamente através de polaridades entre
duas notas e um tema meló dico sinuoso associada à s vozes femininas da mã e e
da mulher. A primeira apresentaçã o do motivo, pelo primeiro grupo de violinos e
pelo grupo de violas, é na tô nica de dó menor. A segunda é sob uma modulaçã o
para a tô nica de si bemol menor. Nã o por acaso a construçã o da melodia
feminina é baseada em um acorde perfeito de dó maior quando tocada pelos
violinos e em um acorde perfeito de si maior quando tocada pelos clarinetes. A
ideia de contraposiçã o e distensã o é evidente, embora nã o seja possível dizer que
exista aí alguma organizaçã o baseada, por exemplo, no esquema antecedente-
consequente ou mesmo em algum princípio de transiçã o. Poderíamos pensar em
uma relaçã o de contraste, mas tal contraste nã o segue nenhuma forma de
desenvolvimento orgâ nico. Em certos momentos, ele opera por simples
justaposiçã o ou se serve de longas pausas e suspensã o da dinâ mica para a
melodia “feminina” ser reapresentada. É possível dizer que a peça se move por
antíteses, já que os momentos, tomados individualmente, parecem contradizer
uns aos outros. Ou seja, tomados isoladamente, cada um dos momentos musicais
contradiz o que lhe segue. Esse cará ter irresoluto do conflito chega até o final da
peça, onde a transposiçã o musical da ideia do suicídio de Coriolano ganha forma
de um final sem superaçã o, mú sica que simplesmente dissolve sem cadência
conclusiva ou promessa de reconciliaçã o teleoló gica. Ela nã o se resolve, ela
simplesmente para.
Nesse ponto, encontramos uma ideia fundamental. A impossibilidade de
resoluçã o do conflito, a contínua luta contra a organicidade, nã o nos leva, como
poderíamos inicialmente esperar, a uma forma sem força sintética. Pois a
processualidade da ideia já fornece a unidade no nível construtivo. Este é o ponto
central: a contradição entre os momentos, potencializada pela eliminação de
processos visíveis de transição, não chega a eliminar a univocidade produzida pela
relação de cada momento à ideia. A ideia tem a força de se refratar em
atualizaçõ es contraditó rias, sem com isto perder sua univocidade. Pois ela
desenvolve, ao mesmo tempo, o antagonismo entre a finitude de seus momentos
e a univocidade de sua processualidade infinita que absorve a multiplicidade das
determinaçõ es.
Mas se a ideia musical está , no caso de nossa obra, ao mesmo tempo na
voz de Coriolano e na voz de suas mulheres, se ela está , ao mesmo tempo, no
248
DAHLHAUS, Between romanticism and modernism, p. 42
reconhecimento da individualidade expulsa da comunidade e na voz da
comunidade que pede para ser poupada é porque a ideia expressa a inexistência
de um solo comum, na efetividade, no qual essas duas vozes poderiam nã o entrar
em contradiçã o. Por isto, ela só pode aparecer como o que constitui os temas e
motivos e o que os dissolve em um puro devir que expõ e exatamente a
fragilidade do enraizamento de todos os momentos. Tanto a comunidade quanto
a individualidade sã o momentos a serem dissolvidos. Em Abertura Coriolano,
Beethoven mostra de forma clara como a essência do que constitui as vozes já é o
que as dissolve como momentos de um devir.
De certa forma, essa é uma interpretaçã o que fundamenta boa parte da
compreensã o feita por Theodor Adorno a respeito de Beethoven. Tal
compreensã o parte da defesa de que a unidade da obra é fornecida pela
exploraçã o sistemá tica do cará ter da forma como processo. Tomemos, por
exemplo, uma afirmaçã o a respeito da conhecida comparaçã o adorniana entre
Beethoven e Hegel:
249
ADORNO, Beethoven, p. 24
Arqueologia da liberdade
Aula 14
Esta é a ú ltima aula de nosso curso. Apesar das dificuldades desse semestre
atípico, conseguimos chegar ao fim. Antes de entrar no assunto específico de
nosso ú ltimo encontro, gostaria de recompor rapidamente nosso trajeto nesse
semestre a fim de esclarecer os problemas centrais que, a meu ver, devem guiar
toda discussã o contemporâ nea a respeito do tema da liberdade.
Primeiro, eu comecei lembrando a vocês que nossas discussõ es sobre o
conceito de liberdade normalmente partem de certa limitaçã o: elas falam do
desenvolvimento dos debates e lutas no ocidente. Infelizmente, ainda nã o somos
formados para desenvolver uma verdadeira perspectiva comparatista que nos
permitisse sair da ilusã o de que a liberdade é uma invençã o ocidental e construir
assim articulaçõ es fortes entre processos histó ricos. Mais do que qualquer outro
conceito filosó fico, a noçã o de liberdade transformou-se, entre outras coisas, em
peça fundamental do que chamamos de “dispositivo colonial”. Pois se trata de
dar a impressã o de que a liberdade é uma produçã o da modernidade ocidental
com suas instituiçõ es, modos de vida e espaços pú blicos. O que faria com que a
histó ria mundial devesse necessariamente ser a irresistível histó ria do “devir
ocidental do mundo”, com toda a violência e destruiçã o que sabemos muito bem
que isto implica.
Contra isto, nã o foram poucos aqueles que insistiram na necessidade
urgente de abandonar toda perspectiva de histó ria global, o que implica, a meu
ver, uma estratégia equivocada e catastró fica. Pois temos uma histó ria mundial,
no seu centro encontra-se o capital e seus processos de auto-valorizaçã o. Nossas
vidas estã o completamente conectadas no interior dessa falsa universalidade que
produz processos que fazem com que tudo o que seja só lido se desmanche no ar.
Contra essa histó ria mundial baseada em uma falsa universalidade, só mesmo
outra histó ria universal baseada em uma universalidade concreta por vir, na qual
a experiência da liberdade desempenhará papel central.
No entanto, esta experiência nã o se construirá sem antes abandonarmos o
modelo de universalidade concêntrica, com sua crença na existência de
localizaçõ es privilegiadas nas quais emergem os processos de liberdade que
depois deverã o se espalhar por todo o mundo. Localizaçõ es que, nã o por acaso,
estariam em solo europeu. Nó s tivemos uma aula sobre o impacto da experiência
ameríndia de liberdade no pensamento europeu exatamente para mostrar quã o
colonial era esta ideia, ainda fortemente presente entre nó s, de que o destino dos
que procuram a liberdade é se tornarem “bons europeus”.
Anteriormente, eu havia dito que deveríamos assumir uma histó ria
universal que nã o é a descriçã o irresistível de processos de contá gio de lutas e
experiências políticas que ocorrem inicialmente no ocidente. Na verdade, haveria
uma histó ria mundial que nã o opera de forma concêntrica, mas que opera sob a
forma de ressonâ ncias. Isto significava partir do princípio de que experiências de
emancipaçã o e liberdade estã o presentes em todas as formas de vida dispersas
geográ fica e historicamente. Tais formas podem “entrar em ressonâ ncia”, ou seja,
experiências locais podem fazer ressoar experiências em outras localidades
criando uma espécie de constelaçã o. Ou seja, nã o se tratava de contrapor a
histó ria mundial a uma perspectiva que libera a força das localidades e das
territorialidades singulares. Tratava-se de contrapor uma falsa histó ria mundial
a uma histó ria mundial des-colonial, capaz de colocar em pé de igualdade
mú ltiplas emergências locais de tensõ es em direçã o à liberdade. O que
significava assumir que as experiências dispersas de liberdade nã o sã o
indiferentes umas à s outras. Elas se contaminam, mas só podem se contaminar
no interior de uma histó ria mundial, até que elas consigam criar relaçõ es de
ressonâ ncia, permitindo a emergência de um processo global com mú ltiplos
enraizamentos locais.
Como havia dito anteriormente, ainda nã o somos formados em nossos
departamentos de filosofia para tal tarefa. Mas há algo que podíamos fazer e que
consistia em recuperar a arqueologia da experiência da liberdade levando em
conta com tal operaçã o faz parte de certa crítica de nó s mesmo, crítica daquilo
que nos tornamos. Ou seja, tratava-se de uma arqueologia que nã o visava
explicitar o processo histó rico de constituiçã o dos fundamentos normativos dos
conceitos hegemô nicos de liberdade presentes em nossas formas de vida. Nã o se
tratava de confundir gênese e validade, mas de procurar entender como
desenvolvemos a auto-crítica das nossas formas de vida.
Tendo este espírito em vista, partimos da constituiçã o da noçã o de
liberdade como auto-pertencimento entre os gregos. Tentei demonstrar o que
significava pertencer a si mesmo em um horizonte social no qual “si mesmo” nã o
indicava a presença de uma individualidade fortemente determinada. De nada
adianta dizermos que a liberdade entre os gregos se funda na articulaçã o
conjunta entre operadores de autonomia, de autarkeia e autoctonia se nã o está
claro o que devemos entender por “autos” neste contexto. Primeiro, eu recusei a
ideia, presente em autores como Hannah Arendt, de que a liberdade entre os
gregos era fundamentalmente uma questã o de liberdade interior e apolítica.
Liberdade como afastamento do horizonte da política, mesmo que a política seja
o campo de açã o de homens que nã o sã o servos, ou seja, homens livres. O
afastamento em relaçã o à comunidade, como vemos nos cínicos e nos estoicos,
era feito em nome de uma recuperaçã o da força normativa da physis. Vimos, por
exemplo, como os cínicos se contrapõ em à polis em nome do retorno à natureza
enquanto plano de imanência que permite a orientaçã o da açã o virtuosa e a
constituiçã o de um noçã o específica de “si pró prio”. Essa ética da virtude nã o é
apenas fruto da crença de que as consideraçõ es exclusivas sobre o cará ter moral
dos agentes poderiam definir as condiçõ es para a felicidade. Trata-se de, na
verdade, naturalizar as virtudes morais. A natureza é o nome do espaço do
pertencimento de si no cinismo e no estoicismo. Isto funda um nomadismo
cosmopolita (no caso do cinismo), uma moralidade do acontecimento que vê o
exercício do logos como apropriaçã o (oikeiosis) do curso do mundo (como no
caso do estoicismo). Este tipo de auto-pertencimento tem consequências
políticas, pois pode alimentar uma força destituinte em relaçã o ao poder, o que
está mais claro no cinismo do que no estoicismo.
Durante o primeiro mó dulo, eu apresentei alguns casos de tentativas
contemporâ neas de recuperaçã o do conceito de liberdade como auto-
pertencimento. Falei um pouco de Deleuze, mas o horizonte fundamental foi
Foucault. Ficou em aberto a possibilidade contemporâ nea de tal recuperaçã o.
Depois disto passamos à discussã o a respeito da liberdade como
propriedade de si. Tentei mostrar como, mesmo nã o nascendo exatamente
dentro de um horizonte liberal, ela se consolidará como pressuposto
fundamental do liberalismo e de um dispositivo maior de consolidaçã o da nossa
forma ocidental de vida a partir de certa “metafísica da propriedade” que serve
de base ao capitalismo. Levando em conta teó ricos do neoliberalismo e de certas
versõ es do liberalismo, como essa defendida por Robert Nozick, procurei
mostrar como consolidou-se as condiçõ es sociais para a generalizaçã o da forma-
propriedade enquanto horizonte regulador da vida social. A meu ver, isto
invalida toda e qualquer tentativa de recuperaçã o da liberdade como auto-
pertencimento.
No interior de nossas sociedades capitalistas, todas as formas de
pertencimento e possessã o foram colonizadas por um regime geral expresso nas
relaçõ es de propriedade. Nã o seria possível a uma reflexã o pró pria a filosofia
política ignorar tal situaçã o. Nã o seria possível ignorar que existe algo como uma
força metafísica do capitalismo, ou seja, um modo de conformaçã o das
possibilidades gerais de existência e de relaçã o através da generalizaçã o de uma
ontologia de propriedades que organiza até mesmo nossas formas de luta e de
resistência. Até mesmo o vocabulá rio de nossas lutas é conjugado no interior de
uma ontologia de propriedades, na qual é questã o sempre de explicitar o que me
seria “pró prio”, o que seria “meu”.
Mesmo quando a democracia liberal foi criticada do ponto de vista da
defesa dos bens comuns, tal crítica foi feita normalmente em nome de outra
forma de propriedade, de outra forma de possessã o, a saber, a propriedade
coletiva250. Raros foram os momentos nos quais tal crítica foi feita em nome da
possibilidade de circulaçã o do que é impró prio, do que nã o é configurado como
propriedade. Isto demonstra como boa parte de nosso esforço crítico
permaneceu no mesmo horizonte normativo que fundamenta o que gostaríamos
de criticar.
Foi tendo isto em mente que procurei explorar a ambiguidade imanente
a uma forma fundamental de auto-pertencimento na filosofia ocidental, a saber, a
ideia de auto-legislaçã o, fundamento das noçõ es modernas de autonomia e livre-
arbítrio. Vimos como a base de nossa noçã o ocidental de auto-legislaçã o era
teoló gica, ela se assentava em uma desqualificaçã o teoló gica das estruturas
motivacionais vinculadas à libido. Por isto, o controle de si pressuposto pela
auto-legislaçã o que aparece com Agostinho tem um cará ter de internalizaçã o da
culpa, de sujeiçã o a uma autoridade exterior (na caso, deus) que difere
radicalmente dos dispositivos de autarkeia dos gregos. A liberaçã o em relaçã o
aos impulsos e inclinaçõ es, a ascese grega é um exercício de fortalecimento de si,
nã o exatamente de submissã o da minha arrogâ ncia, vinda do pecado original, à
vontade de um outro. Ela é a expressã o da distâ ncia contínua de mim em relaçã o
a mim mesmo. Esta identidade de si é uma identidade continuamente diferida.
De certa forma, a noçã o moderna de autonomia irá preservar este modelo
paradoxal de auto-pertencimento, mesmo quando a matriz teoló gica for
relativizada. Nó s vimos isto através de Rousseau e Kant. De formas distintas,
fomos confrontados com uma junçã o singular entre auto-pertencimento e
transformaçã o. Se a vertente liberal da reflexã o sobre a liberdade acaba por
250
Para um modelo de crítica baseado na despossessã o, ver AGAMBEN, Giorgio; Altíssima
pobreza: regras monásticas e formas de vida, Sã o Paulo: Boitempo, 2014
realizar os processos de auto-pertencimento como propriedade de si, essa matriz
que, entre outras características, é nã o-liberal trará no seu bojo o elemento
paradoxal de que só posso ser mim mesmo se me abrir a algo que nã o pode ser
pensado sob a forma dos sistemas individuais de interesses, da propriedade de
sua pró pria pessoa, que o sujeito liberal exerce como fundamento de sua
soberania.
Na aula passada, tentei defender com vocês que esse ímpeto de
transformaçã o de si é o elemento decisivo para a consolidaçã o da autonomia
estética. Para além da temá tica da autonomia como auto-referencialidade, tã o
presente nas críticas ao pretenso “formalismo” da arte moderna e
contemporâ nea, para além da leitura compensató ria da autonomia estética
(Bourdieu, Lukà cs, entre tantos outros) comecei a defender com vocês a
necessidade de compreender o tó pico da autonomia estética como um motor
fundamental do giro auto-crítico do conceito de liberdade no ocidente. Se
liberdade está ligada nã o apenas a jurisdiçã o de si, mas principalmente à
capacidade de nã o agir a partir do medo, e se a forma da auto-legislaçã o sempre
foi assombrada pelo medo da perda de si, da deriva, da insubmissã o, entã o a
experiência estética nos acostuma a nã o temer o que nos aparece como
impró prio, insubmisso, irredutivelmente outro, pois isto vem de nossa pró pria
atividade.
Se na aula passada, começamos a abordar este ponto através da discussã o
sobre o conceito de sublime, eu prometera que essa nossa ú ltima aula seria
dedicado ao conceito de expressã o estética. A escolha obedece a vá rias razõ es,
mas há ao menos uma que gostaria de salientar. O conceito de sublime,
contrariamente ao conceito de belo, permaneceu como horizonte de
compreensã o da racionalidade das obras de arte. Nã o apenas filó sofos
contemporâ neos continuaram a mobiliza-lo (Adorno, Lyotard), mas a arte
contemporâ nea (Barnet Newman, Mark Rothko) e a literatura (Paul Celan,
Wallace Stevens).
Já o conceito de expressã o poderia parecer obsoleto diante de um
momento histó rico no qual operadores como gênio artístico, autoria,
autenticidade, parecem entrar definitivamente em colapso. Mas gostaria de
voltar mais uma vez ao romantismo a fim de demonstrar porque creio que se
trata de um operador decisivo se quisermos compreender a arte como uma
prá tica de liberdade.
251
ADORNO, Theodor: Figuras sonoras, p. 118
252
WELLMER, Albrecht; Versuch über Musik und Sprache, Munique: Carl Hanser Verlag, 2009, p.
17
expressã o estética româ ntica no interior do quadro de afirmaçõ es da
individualidade liberal em ascensã o. Como se a arte fosse reflexo de tal processo,
como se os artistas fossem representantes letrados da ascensã o liberal, e nã o
críticos de suas ilusõ es.
Pensar a expressã o como liberaçã o do sujeito de convençõ es controladas
pela burguesia significa, no entanto, liberar um sujeito até entã o conformado à s
convençõ es da individualidade burguesa e a ilusõ es que, um século mais tarde,
chamaremos de “comunicacionais”. Sem esta liberaçã o nã o será possível haver
política, pois as formas de reproduçã o da vida social estarã o intocadas nas
estruturas da psicologia dos sujeitos, no circuitos de seus afetos, nas crenças de
sua vida interior. É neste sentido que compreender melhor as dinâ micas ligadas
à construçã o do conceito de expressã o estética aparece como momento
fundamental para analisarmos as expectativas de emancipaçã o social que as
obras de arte ainda seriam capazes de fazer circular. Ela marca, e isto temos
dificuldade cada vez maior em pensar, a emancipação do sujeito diante de sua
condição de indivíduo. Assim, se aceitarmos que a especificidade da arte como
experiência é o fato dela ser uma experiência social da liberdade ou, como
querem alguns, uma “prá tica da liberdade”253 capaz de mostrar à sociedade o que
a liberdade pode ser, se aceitarmos que ela funciona nã o apenas como um
discurso compensató rio à ausência efetiva de liberdade na vida social, mas como
uma das fontes principais de um desejo de liberdade que irá impulsionar
transformaçõ es estruturais na vida social, entã o diremos que é a realizaçã o da
arte como linguagem expressiva que permite aos sujeitos fazerem a experiência
da liberdade. A arte, a partir de certo momento histó rico, cria algo até entã o
inédito, algo fortemente associado a constituiçã o de uma nova consciência da
liberdade, a saber, uma linguagem expressiva.
A este respeito, lembremos, por exemplo, como Lessing compreende o
advento da arte dos tempos modernos, entre outros, através de uma dissociaçã o
possível entre expressã o e beleza. Afirmando que a arte nos tempos modernos
conquistara fronteiras incomparavelmente mais largas, ele dirá :
253
Ver a este respeito a bela reflexã o presente em BERTRAM, Georg; Kunst als menschlische
Praxis: eine Ásthetik, Frankfurt: Suhrkamp, 2014
254
LESSING, G.E.; Laocoonte ou Sobre as fronteiras da pintura e da poesia, Sã o Paulo: Iluminuras,
2011, p. 101
questionar a beleza, como se esta nã o participasse das “intençõ es superiores” e
do “desígnio universal” do artista, a expressã o se abre à experiência da
desmesura pró pria ao sublime.
Notemos, no entanto, que o termo “expressã o” mudará de sentido quando
indicar a manifestaçã o da genialidade do artista, isto a partir do final do século
XVIII. Pois a noçã o de gênio é tributá ria daquilo que Adorno entende como a
questã o fundamental do romantismo, a saber: “esta de um estado de consciência
que nã o pode mais se fiar em canon formal objetivo algum e deve objetivar por si
mesmo, a partir de seu pró prio peso, as leis de gravitaçã o de sua pró pria
subjetividade”255. Isto nos auxilia a compreender porque antes do romantismo, a
expressão estava, em larga medida, ligada à mimesis, à capacidade de imitar de
maneira perfeita, um pouco com se espera de um artista de teatro que ele
expresse de maneira perfeita seu personagem. Vínculo entre expressã o e
mimesis que, ao menos sob esta forma, desaparecerá com a noçã o româ ntica de
gênio, isto a ponto de alguém como Lizst afirmar claramente: “A mú sica nã o
imita, ela expressa”. Assim, a genialidade do artista estará ligada à sua
capacidade em quebrar a regularidade da forma sem desestruturá -la
completamente. Quebras que fornecerã o uma tensã o interna à forma, que
mostrarã o à forma que ela sempre será assombrada por algo de informe.
A destituição do território
Para uma peça ser bem resolvida para o piano, conceitos tá teis sã o quase
tã o importantes quanto conceitos acú sticos (...) Um giro meló dico ou uma
figura de acompanhamento chopinesco nã o é apenas ouvido, mas é
também sentido como uma forma tá til, como a sucessã o de excertos
musculares. Uma peça de piano bem formada produz prazer físico257.
Se uma peça pode produzir prazer físico é porque ela esculpe a dinâ mica
dos corpos, ela produz um certo esquema corporal que ganha realidade através
da repetiçã o de movimentos. Esta inscriçã o da corporeidade em um processo de
produçã o de sons é uma forma importante de desvelamento da existência de
uma certa expressã o corporal resultante de uma verdadeira “disciplina de
artista”, ligada a uma trabalho sobre si que faz do corpo o campo de
desdobramento daquilo que Ligeti chama de “conceito tá teis”.
Mas há algo mais do que produçã o de um esquematismo corporal em
Chopin e é este ponto que merece nossa atençã o. Se é verdade que: “nos Estudos
de Chopin, o momento de maior tensã o emocional é geralmente aquele que a
mã o é alongada da maneira mais dolorosa, de maneira que a sensaçã o muscular
se transforme – mesmo sem o som – em uma mimesis da paixã o”258 é porque,
muitas vezes, esta escultura da dinâ mica dos corpos nã o é apenas a constituiçã o
de uma regularidade, mas o aprendizado das paixõ es naquilo que elas tem de
mais amedrontador, ou seja, na confrontaçã o com o ponto no qual tensã o
emocional e limite corporal se tocam.
257
LIGETI, Etudes,
258
ROSEN, Charles; The romantic generation, p. 383
Esta gramá tica que nã o é apenas o ensino da regularidade, mas o
desenvolvimento da confrontaçã o com o limite, nã o se contenta em ser o
conjunto de condiçõ es para o desenvolvimento da virtuose pianística. Ela é o
desenvolvimento da forma como passagem em direção ao limite, como se
realizaçã o da forma e sua pró pria dissoluçã o fossem processos indissociá veis.
Por isto, tal gramá tica nã o é apenas um exercício de virtuose, mas a conquista da
expressividade através da reversã o da normatividade em princípio de
desconstituiçã o da pró pria forma. Esta dialética é uma das características
maiores da expressã o româ ntica e diz muito a respeito da maneira com que a
experiência estética poderá a partir de entã o ser elevada à condiçã o de modelo
social de liberdade. Pois liberdade aqui é indissociável da capacidade de operar o
manejo de uma dialética rigorosa entre constituição e desconstituição.
260
Ver, por exemplo, WELLMER, Albrecht; Versuch über Musik und Sprache, Munique: Carl Hansen
Verlag, 2009, pp. 7-14