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As Lutas No Campo Cinematográfico Brasileiro No Século XXI

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Ana Paula da Silva e Sousa

Dos conflitos ao pacto: as lutas no campo cinematográfico brasileiro no século XXI

CAMPINAS
2018

ANA PAULA DA SILVA E SOUSA

Dos conflitos ao pacto: as lutas no campo cinematográfico brasileiro no século XXI

Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da


Unicamp como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em
Sociologia.

Orientador: Marcelo Siqueira Ridenti

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE


À VERSÃO FINAL DE TESE DEFENDIDA
POR ANA PAULA DA SILVA E SOUSA
E ORIENTADA PELO PROF. DR.
MARCELO SIQUEIRA RIDENTI.

CAMPINAS
2018

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES, 2014/330030-17

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Sousa, Ana Paula da Silva e, 1973-


So85d SouDos conflitos ao pacto : as lutas no campo cinematográfico brasileiro no
século XXI / Ana Paula da Silva e Sousa. – Campinas, SP : [s.n.], 2018.

SouOrientador: Marcelo Siqueira Ridenti.


SouTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

Sou1. Agência Nacional do Cinema (Brasil). 2. Política cultural. 3. Política no


cinema. 4. Cinema e Estado. I. Ridenti, Marcelo Siqueira, 1959-. II.
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: From conflicts to compact : the struggles in the Brazilian cinema
field in the 21st century
Palavras-chave em inglês:
Cultural policy
Politics in motion pictures
Cinema and State
Área de concentração: Sociologia
Titulação: Doutora em Sociologia
Banca examinadora:
Marcelo Siqueira Ridenti [Orientador]
Anita Simis
Arthur Autran Franco de Sá Neto
Luzi Gonzaga de Lucca
Renato José Pinto Ortiz
Data de defesa: 05-07-2018
Programa de Pós-Graduação: Sociologia

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos


Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 05 de Julho de 2018
considerou a candidata Ana Paula da Silva e Sousa aprovada.

Profa. Dra. Anita Simis


Prof. Dr. Arthur Autran Franco de Sá Neto
Prof. Dr. Luiz Gonzaga Assis De Luca
Prof. Dr. Marcelo Siqueira Ridenti
Prof. Dr. Renato José Pinto Ortiz

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão examinadora, consta do processo de vida acadêmica da
aluna.

Em memória de Gustavo Dahl (1938-2011)


e Roberto Farias (1932-2018)

Agradecimentos

A jornada até aqui foi longa. Mas, apesar das dificuldades e desafios inerentes a uma
tese de doutorado, posso dizer que o caminho foi, sobretudo, prazeroso e enriquecedor. Foram
muitos os que estiveram por perto ao longo destes quase cinco anos, e não foram poucos os
que me aguentaram falando sobre a política do cinema. Mas, nesta página, eu gostaria de
agradecer especialmente:
Ao meu orientador, Marcelo Ridenti, pela suave e constante presença e pela confiança
depositada em mim. Sempre que surgiram pedras no caminho, Ridenti, com generosidade e
solidez intelectual, me ajudou a afastá-las e seguir.
A cada um daqueles que aceitou conversar comigo, em entrevistas tanto para a tese
quanto para reportagens (todas citadas na bibliografia), e me possibilitou construir esta
narrativa. Aos professores Arthur Autran e Anita Simis pelos comentários e luzes na banca de
qualificação.
Àqueles que, neste tempo de pesquisa, me mantiveram profissionalmente perto do
cinema brasileiro, possibilitando que eu o visse a partir de diferentes janelas: Amir Labaki,
Hermes Leal, Julie Tseng, Laís Bodansky, Luciana Branco, Luiz Bolognesi, Margarida
Oliveira, Paulo Sergio Almeida, Pedro Butcher, Renata de Almeida e Robinson Borges.
Voltando para trás no tempo, agradeço ao Bob Fernandes, que acreditou que uma
repórter policial de rádio podia cobrir cultura da CartaCapital; ao Mauricio Stycer, que me
pautou para fazer a matéria Lobbies em Fúria (2001), minha primeira incursão no universo que
se tornaria meu objeto de pesquisa, e me ensinou a desconfiar do que me diziam os
entrevistados; ao Mino Carta, que nos deixava voar.
Ao Tito Montenegro que, ao me propor um livro sobre cinema brasileiro, em 2011, me
jogou nesta enrascada que, espero, logo vire livro. Aos amigos Alysson Oliveira, Amanda
Queirós, Laura Mattos e Marcy Junqueira pelo interesse e pelo apoio.
À minha mãe, Isabel, que soube me mostrar o que o estudo vale; e ao meu irmão Luís,
que me ensinou a ler.
Ao Rodrigo, com quem divido, além da vida, a paixão pelo cinema brasileiro. Suas
sugestões, sua leitura e seu companheirismo e estímulo estão em cada linha aqui impressa. E,
por fim, ao pequeno Tomás, por existir e nos fazer transbordar de amor. Sem amor, afinal, nada
se faz. Nem uma tese.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - Brasil(CAPES) - Código de Financiamento 001.

Resumo

Esta tese faz uma radiografia, a partir de um enquadramento sociológico, da política


audiovisual brasileira no período que vai do III Congresso Brasileiro de Cinema (2001), marco
da chamada repolitização do setor, à aprovação da Lei 12.485 (2011), que impôs cotas de
programação para a tevê fechada e incorporou, ao cinema, recursos advindos das empresas de
telefonia.
Apesar de a legislação criada no período estudado servir de esteio à pesquisa, são os
discursos dos personagens que participaram dos embates legislativos que alinhavam esta tese.
No centro do trabalho, estão os atores sociais que influenciam o poder público no
estabelecimento das políticas do setor e que tendem a adotar uma política de conveniência com
os governos. A pesquisa teve, como fonte primordial, as entrevistas qualitativas, que refletem
a experiência dos atores, suas motivações e estratégias. O trabalho, além disso, utiliza livros,
artigos, entrevistas já publicadas, depoimentos, projetos de leis e textos com regulamentações
diversas.
Ao mesmo tempo em que demonstra os avanços ocorridos no sistema de financiamento
à produção audiovisual, a tese problematiza a política da Ancine, que guarda relação direta
com a política mais ampla em curso no país no período estudado. O sistema criado entre 2001
e 2011 garantiu uma vasta produção, mas não alcançou a meta da sustentabilidade, estabelecida
pela MP 2228-1 (2001), e não avançou na conquista de mercado em relação ao cinema
estrangeiro.

Palavras-chave: 1. Políticas culturais. 2. Política audiovisual. 3. Cinema e Estado. 4. Ancine.

Abstract

The present thesis aims to perform an X-ray of the Brazilian audiovisual policies, from
a sociological standpoint, in the period spanning from the III Congresso Brasileiro de Cinema
of 2001 (III Brazilian Congress of Cinema), a milestone calling to re-politicize the industry, to
the passing of Act 12,485 of 2011 that provides for a mandatory screen quota for paid TV, and
assigned to the film industry, resources coming from telecoms.
Although the act that passed during the studied period served as a mainstay to the
research, the speeches of the stakeholders involved in the legislative discussions is what sews
the thesis together. At the core of the work are the social stakeholders who influence the public
power to develop policies for the industry and who tend to adopt a policy of convenience with
the governments. As a primary source of information, the research made use of qualitative
interviews, which reflect the experience of the stakeholders, their motivations, and strategies.
In addition, books, articles, published interviews, testimonies, draft bills, and texts with various
regulations were researched.
While showing the advances in the financing of audiovisual production, the thesis
challenges Ancine's policy, which has a direct relationship with the broader political situation
in the country during the studied period. Despite system created between 2001 and 2011
ensured a vast production, it did not reach the goal of the sutainability, as provided by MP
2228-1 (2001), and did not advance in the pursuit of market share vis-à-vis the foreign film
industry.

Keywords: 1. Cultural policy. 2. Audiovisual policy. 3. Cinema and State. 4. Ancine

Lista de gráficos e tabelas

GRÁFICO 1. A presença da tevê paga nos lares brasileiros ....................p. 198


GRÁFICO 2. O avanço no número de canais na tevê fechada .................p. 199
GRÁFICO 3. Número de obras licenciadas para a tevê paga ...................p. 201
GRÁFICO 4. Percentual de veiculação de longas-metragens ..................p. 208
GRÁFICO 5. Número de lançamentos X market share do filme naciona. p. 216
GRÁFICO 6. Títulos lançados no circuito comercial (2001-2016) ............p. 219
GRÁFICO 7. Público de cinema no Brasil (2001-2016) ............................p. 219
GRÁFICO 8. Renda das salas de cinema no Brasil (2001-2016) ...............p. 220
GRÁFICO 9. Número de filmes por faixa de público ...............................p. 245
GRÁFICO 10. Número de salas do circuito exibidor brasileiro ................p. 259
GRÁFICO 11. Quantidade de salas por habitante no país .........................p. 260
GRÁFICO 12. Quantidade de ingressos per capital no Brasil ...................p. 260
TABELA 1. Condecine: valores arrecadados de 2006 a 2016 ...................p. 190
TABELA 2. O campeão de cada ano de 2001 a 2016 ..............................p. 223
TABELA 3. Valores arrecadados por mecanismo (em milhões de reais) ..p. 236
TABELA 4. As 20 maiores bilheterias de 2001 a 2016 ..............................p. 239
TABELA 5. Os dez maiores sucessos de 2016 por distribuidora .......................p. 239

Lista de abreviaturas e siglas

ABD - Associação Brasileira de Documentaristas


Abbots - Associação Brasileira Over-the-top
ABPI-TV - Brasileira dos Produtores Independentes de Televisão
Abrace - Associação Brasileira de Cineastas
ADI - Ação Direta de Inconstitucionalidade
Anatel - Agência Nacional de Telecomunicações
Ancinav - Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual
Ancine - Agência Nacional de Cinema
ANP - Agência Nacional de Petróleo
Apaci - Associação Paulista de Cineastas
Apro - Associação Brasileira de Produtores de Audiovisual
Cade - Conselho Administrativo de Defesa Econômica
CBC - Congresso Brasileiro de Cinema
CNC - Centre Nacional de Cinématographie
CSC - Conselho Superior de Cinema
DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda
EBC - Empresa Brasileira de Televisão
FAC - Fórum do Audiovisual e Cinema
Fistel - Fundo de Fiscalização das Telecomunicações
FSA - Fundo Setorial do Audiovisual
Funcines - Fundos de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional
GATT - Acordo Geral de Tarifas e Comércio
Gedic - Grupo Executivo para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica
Geic - Grupo de Estudos Indústria Cinematográfica
Geicine - Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica
Ince - Instituto Nacional de Cinema Educativo
INCAA - Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales
MinC - Ministério da Cultura
MiniCom - Ministério das Comunicações
MPAA - Motion Picture Association of America
Unesco - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
OCA - Observatório do Cinema e do Audiovisual

OMC - Organização Mundial de Comércio


PAR - Prêmio Adicional de Renda
PIB - Produto Interno Bruto
PDM - Plano de Diretrizes e Metas do Audiovisual
Procult - Programa para o Desenvolvimento da Economia da Cultura
SAv - Secretaria do Audiovisual
Sicav - Sindicato da Indústria Audiovisual
Sicesp - Sindicato da Indústria Cinematográfica do Estado de São Paulo
SindiTeleBrasil - Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel
Celular e Pessoal
STF - Supremo Tribunal Federal

SUMÁRIO

Introdução .........................................................................................................................p.14

Capítulo 1.
Cinema e Estado: uma relação tão necessária quanto delicada

1.1 O que é uma política audiovisual .................................................................................p.26


1.2 Origens e modelos da política audiovisual no mundo .................................................p.27
1.3 As relações entre cinema e Estado no Brasil ................................................................p.39
1.4 Tevê aberta e cinema: dois mundos apartados ..............................................................p. 57

Capítulo 2.
A volta do Estado: os limites de uma política regulatória no século XXI

2.1 III CBC: unidos pela criação de um órgão estatal ........................................................p.62


2.2 MP 2228-1/01: os players em luta................................................................................p.79
2.3 A chegada do PT ao poder: uma nova cultura.................................................................p.98
2.4 As incompatibilidades entre MinC e a Ancine ............................................................p.108
2.5 Projeto da Ancinav: o campo em disputa .....................................................................p.118
2.6 Enterro da Ancinav: as razões de uma morte anunciada...............................................p.142

Capítulo 3.
Em busca do consenso: novas leis e novos players em cena

3.1 O rescaldo da Ancinav e a reconfiguração de forças .................................................p.148


3.2 Manoel Rangel: da redação da Ancinav à presidência da Ancine..............................p.159
3.3 Lei nº 11.437/06: um atalho legislativo fundamental ................................................p.164
3.4 Lei nº 12.485/11: o pacto com o capital estrangeiro...................................................p.173
3.5 O pós-lei: começa a guerrilha judicial.........................................................................p.190
3.6 Cota de tela na tevê fechada: nasce um novo mercado ..............................................p.198

Capítulo 4.
A década revista: os resultados da política pós-Embrafilme

4.1 Ancine, 15 anos: avanços e dilemas............................................................................p.211


4.2 Produção: muito filme, pouco público........................................................................p.215

4.3 A distribuição: fortalecimento da empresa nacional...................................................p.237


4.4 A exibição: um mundo em desconstrução..................................................................p.250
4.5 VoD: o novo front de batalha ....................................................................................p.264

Considerações finais........................................................................................................p.270

Bibliografia......................................................................................................................p.280


14

Introdução

A política do cinema: um terreno híbrido

O historiador britânico Edward Thompson (1964) foi um dos que defendeu que
qualquer teoria a respeito de cultura deve incluir a interação dialética entre cultura e
algo que não é cultura. Por quê? Porque a cultura e os embates culturais sempre dizem
respeito ao todo social. Não é à toa, portanto, que existe certa tradição de estudos
relativos ao cinema feitos no âmbito das Ciências Sociais.
Existem duas possibilidades para se abordar o cinema sob essa perspectiva: a
análise interna, que se detém sobre a estrutura das obras e pode usar, para isso,
ferramentas da semiologia e da estética, e a análise externa, que procura desvendar as
determinantes sociais da produção, os mecanismos que a engendram. Esta pesquisa
insere-se na linhagem de trabalhos que se debruçam sobre os elementos exteriores ao
fazer cinematográfico – mais especificamente, sobre a política feita para que os filmes
sejam produzidos e vistos.
Houve, de saída, a preocupação de se tecer uma narrativa que incluísse, em
seus detalhes, aspectos da sociedade brasileira e o esforço de se integrar diferentes bases
teóricas. Um estudo sobre a política cinematográfica implica, necessariamente, na
multidisciplinaridade. O tema, afinal de contas, congrega cultura, política e economia e
nos leva a um terreno híbrido, que envolve tanto a visão do filme como produto quanto
a visão do filme como arte e manifestação cultural.
Um desafio que se impôs ao longo da pesquisa foi o de não abandonar o
instrumental sociológico. É o enquadramento sociológico que me permite, ao falar das
políticas de cinema, fazer também uma crítica às práticas sociais e mostrar que esse
setor espelha a política e a economia do período. Tal recorte atende, inclusive, a um
velho chamado de Paulo Emílio Salles Gomes:

Ainda não foi feita a análise crítica pormenorizada da legislação


cinematográfica brasileira (...), mas é muito pouco plausível que ela
revele uma ação corruptora permanente. Urge que alguém, cujo gosto o
leve a esse gênero de estudos e que possua a indispensável formação
sociológica, empreenda a análise histórica deste aspecto particular de
nossa legislação (...) Um trabalho dessa ordem se constituiria


15

certamente num instrumento de muito valor para um empreendimento
atualíssimo que é o de compreender, para agir em consequência, toda
as facetas econômicas, sociais, legislativas e psicológicas das barreiras
que impedem o florescimento do cinema nacional (Gomes, 2016, p. 75).

Do texto de Paulo Emílio para cá, alguns foram os pesquisadores que


encararam esse desafio. O que este trabalho faz, ao tentar tirar os véus dos processos
que conduziram à feitura e à aprovação dos marcos legais da política contemporânea de
cinema, é acrescentar alguns tijolos nessa construção coletiva.
Partindo da premissa de que no audiovisual as políticas públicas quase sempre
tiveram origem na articulação feita por artistas e profissionais do setor e que elas dão
origem e legitimam determinadas formas de produção, esta tese busca compreender
como os agentes se unem ou se enfrentam na defesa de seus interesses – sejam eles
financeiros ou artísticos.
Um dos objetivos deste trabalho é, justamente, compreender os jogos de poder,
as motivações e as estratégias dos atores envolvidos na construção da política voltada
ao cinema brasileiro. São os discursos dos personagens que participaram dos embates
legislativos que alinhavam esta tese. As vozes dos atores sociais e os detalhes dos
trâmites da legislação audiovisual do século XXI explicitam, às vezes de forma direta,
às vezes de forma subliminar, as visões de mundo, as razões para tomadas de posição e
as motivações dos agentes privados e públicos. Nesse sentido, e de maneira modesta,
este trabalho procura inserir o cinema brasileiro nos quadros da compreensão do Brasil.
A pesquisa desenrola-se a partir da tríade legal composta pela MP 2228-1
(2011) e pelas leis 11.437 (2006) e 12.485 (2011). A narrativa tem início no III
Congresso Brasileiro de Cinema (III CBC), que ocorreu no ano 2000, em Porto Alegre,
e é o marco da chamada repolitização do cinema brasileiro. Nesse encontro foi gestada
a Agência Nacional de Cinema (Ancine), estrutura institucional que reinaugurou, no
século XXI, a relação direta entre o setor cinematográfico e o governo.
Criada em 2002, a Ancine restabeleceu o vínculo mais profundo entre cinema
e Estado que a extinção da Embrafilme rompera, em 1990. Tal vínculo começou a ser
refeito ainda sob o governo Itamar Franco, quando, em 1992, se criou a Secretaria do
Audiovisual (SAv), no âmbito do Ministério da Cultura (MinC), e, logo na sequência,
o Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro, viabilizado a partir dos recursos que haviam
sobrado da extinta Embrafilme. Esses movimentos anunciavam a retomada da relação


16

entre a atividade e o poder público. Foi, porém, com a Ancine que o cinema voltou a ter
um órgão só para si, como acontecia com a Embrafilme, e que a produção foi crescendo.
O marco final da pesquisa, no que diz respeito à constituição legal do cinema
brasileiro, é o ano de 2011, quando foi aprovada a Lei 12.485/11. Essa lei regulou o
mercado de televisão por assinatura, permitiu a entrada do capital estrangeiro na tevê
paga, criou cotas de programação nacional e propiciou a injeção de volumosos recursos
no setor. Tais medidas levaram à incorporação de diferentes atores ao jogo do
audiovisual e propiciaram um salto quantitativo importante na produção independente.
Apesar desta tese ter a legislação como esteio – na medida em que ela é a
materialização dos embates e do atendimento das demandas –, cabe sublinhar que meu
objeto de estudo não são as leis em si, mas os caminhos e articulações que levaram à
efetivação – ou não – das mesmas. O que importa aqui, mais do que a especificidade
das políticas audiovisuais, é, como diz Marcelo Ridenti a respeito de seu Em busca do
povo brasileiro (2014, p. 5), “a compreensão do movimento contraditório da
sociedade”. Mais do que esmiuçar os mecanismos legais – cuja gênese está disponível
tanto em documentos oficiais quanto em livros1 –, eu procuro destrinchar os aspectos
políticos e a trama social por trás da evolução dos mecanismos estatais de apoio ao
desenvolvimento da indústria do audiovisual.
O que eu busquei fazer foi: (1) reconstituir o contexto político e social no qual
se construiu o aparato institucional existente; (2) explorar o processo de dominação de
um discurso, ou de um modelo de cinema, sobre outro; (3) entender até que ponto as
políticas refletiram o grau de proximidade de determinados atores do campo
cinematográfico com os governos; (4) e descortinar os pactos sociais, econômicos e
políticos que permitiram que essa política se estruturasse.
Nesse percurso, procurei investigar também a relação entre as políticas feitas
para o audiovisual e a política mais ampla em curso no país. A política de cinema
adquiriu prominência a partir da chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder,
em 2003. Nesse momento, o MinC ganhou relevância e o país começou a trabalhar com
um conceito ampliado de cultura. Tratou-se, além disso, de um período no qual o Estado

1
Boas e precisas análises a respeito da legislação que entrou em vigor no período que esta pesquisa abarca
podem ser encontradas no site da Ancine (https://www.ancine.gov.br) e nos livros de Rafael dos Santos e
Angélica Coutinho (orgs.). Políticas públicas e regulação do audiovisual. Curitiba: CRV, 2012; e de
Marcelo Ikeda. Cinema brasileiro a partir da retomada: aspectos econômicos e políticos. São Paulo:
Summus, 2015.


17

voltou a ter um perfil desenvolvimentista (Bresser-Pereira, 2011) e a defender as
indústrias e as empresas nacionais – algo que havia sido abandonado na fase neoliberal.
No entanto, a volta de um papel mais ativo do Estado não significou, como em
momentos do passado, a adesão a um discurso pautado pela ideia de nação e pela
interpretação anti-imperialista. Ao contrário. O discurso que passou a servir de norte é
aquele da economia, que implica na ênfase sobre os números e sobre o mercado. Mas,
ao contrário do que pregava a ortodoxia liberal, não se acreditava mais num mercado
autorregulado. Para defender-se o interesse nacional, era preciso contar com a regulação
estatal. Mas o Estado, no cinema, não era mais guiado pela ideia de nação e de
identidade nacional, e sim pela ideia de mercado.
Sabe-se que, já nos anos 1970, na época da Embrafilme, a questão do cinema
como mercado fez com que intelectuais e artistas adotassem um discurso que, de forma
um tanto esquizofrênica, tentava amalgamar cultura e mercado e se mostrar coerente
com as perspectivas de desenvolvimento econômico. Mas a política de Estado tinha
então como alvo os realizadores, ou seja, os “artistas” ou os produtores. A Embrafilme
chegou, ela própria, a distribuir filmes – mas jamais beneficiou com financiamento os
empresários do setor de distribuição.
Mesmo as leis de incentivo fiscal (Lei Rouanet e Lei do Audiovisual), nos
liberais anos 1990, sempre estiveram voltadas à produção de longas-metragens,
espelhando os atores envolvidos no processo de sua construção: produtores e cineastas.
Resolvia-se a demanda de um grupo de pressão cuja voz se fazia ouvir na mídia e no
setor cultural, mas não se pensava no destino desses filmes.
Uma mudança identificada na pesquisa é que, especialmente a partir de 2007,
sob a gestão de Manoel Rangel na Ancine, expande-se o rol de beneficiários das ações
governamentais. O Estado levou a cabo políticas para fortalecer as empresas
distribuidoras nacionais e ofereceu crédito subsidiado para os exibidores que quisessem
abrir salas voltadas à chamada classe C – cuja ascensão foi um dos pilares do lulismo
(Singer, 2012) e que era identificada, pelo próprio PT, como uma nova classe média.
No mercado de produção, apesar de ter se ampliado de forma significativa o número de
empresas atuando, houve uma concentração de recursos nas grandes empresas, numa
política que remete ao capitalismo de Estado.
A primeira hipótese desta pesquisa é que, no processo descrito acima, a questão
da identidade nacional, central até a década de 1970, é substituída pela razão econômica.
A política cinematográfica brasileira, refletindo um movimento mais amplo da cultura


18

e da sociedade, adere, no século XXI, ao discurso da economia e do mercado, mas sem,
com isso, abrir mão das medidas protecionistas. O valor da cultura deixa de ser
meramente intangível e simbólico e passa a ser também aquele medido pela
contribuição para o Produto Interno Bruto (PIB), pelo geração de empregos, pelos
números – pelo mantra da economia criativa, enfim 2 . A atividade vai, com isso,
ganhando contornos individualistas, ainda que a ideia de coletivo ressoe nos discursos.
Como escreve Ismail Xavier (2011, p. 123), “não havendo movimentos aglutinadores,
como no Cinema Novo, quando o cineasta estava convicto de sua posição de porta-voz
de uma imaginada nação”, dissolveu-se o senso de urgência história e o cineasta passou
a falar em seu nome.
A segunda hipótese sobre a qual a pesquisa trabalha é a de que esses mesmos
cineastas e produtores exercem uma influência direta sobre governantes e gestores,
acabando por determinar os rumos das políticas públicas. Esse grupo social tende a
desenvolver uma política de conveniência com os governos e, havendo recursos para a
produção, haverá sempre a conciliação. Em outras palavras – estas tiradas de A
produção da crença: contribuição para uma teoria dos bens simbólicos (Bourdieu,
2001) –, por trás da luta pelo poder simbólico está sempre, não sem a mediação do
simbólico, a luta pelo poder econômico.

Teoria e pesquisa

Como explicitado acima, um pressuposto desta tese é que, no cinema,


determinados grupos e agentes se articulam em função de interesses particulares e, por
meio de suas ações, acabam por determinar as políticas de Estado. Nesse sentido,
Bourdieu, que explora a relação entre sistemas de pensamento, instituições e formas de
poder material e simbólico, foi um autor importante como base teórica desta pesquisa.
O conceito de habitus me ajudou a compreender o quanto as condutas, por
vezes, podem ser explicadas pela busca de determinados fins sem que, com isso, se
tenha ideia das consequências gerais de determinadas escolhas. Transferida para o

2
A economia criativa é um conceito criado na Inglaterra, durante o governo trabalhista de Tony Blair, em
meados dos anos 1990, e exportado para os mais diversos países. A equipe de Blair mapeou as indústrias
produtoras de “bens simbólicos” e passou a enfatizar o potencial “econômico” da cultura. Nos anos 2000,
surgiu, nos Estados Unidos, um conceito mais preciso de economia criativa, como sendo aquela cuja
principal fonte de riqueza é a propriedade intelectual. Ver: John Howkins. The creative economy. Londres:
Penguin, 2001; e Hesmondhalgh (2007).


19

cinema brasileiro, essa ideia me permitiu visualizar o quanto em busca de recursos, os
produtores fizeram determinados pactos sem medir seus custos efetivos. Os agentes do
campo cinematográfico, assim como os agentes desenhados por Bourdieu, incorporam,
a suas práticas e estratégias, suas necessidades. E a necessidade principal de um
produtor de cinema é obter verbas para a realização de seus filmes.
Outra ideia bourdieusiana que se mostrou útil como instrumental de análise foi
a de senso prático, ou senso do jogo – que é o conhecimento de regras que se adquire
durante a prática. As escolhas dos atores levam em conta, de maneira mais ou menos
consciente, as determinações do sistema. Enlaçada ao conceito de habitus, a ideia de
senso prático ajuda a explicar como se dá a mobilização de variados tipos de capital –
simbólico, cultural, social etc. – para impor determinadas categorias de pensamento.
O conceito de campo, por sua vez, foi o recurso metodológico que me permitiu,
no início do trabalho, analisar a ação dos agentes dentro de determinadas fronteiras,
contribuindo para a compreensão de que eles não agem num vácuo, mas sim em
situações concretas e governados por relações sociais objetivas:

É somente com referência ao espaço de disputa que as define e que elas


visam manter ou redefinir, enquanto tal, quase completamente, que se
pode compreender as estratégias individuais ou coletivas, espontâneas
ou organizadas, que visam conservar e transformar para conservar.”
(Bourdieu, 2006, p. 151).

Um dos meus objetivos foi estabelecer a relação entre a posição no campo e a


tomada de posição política. É dentro do campo, afinal de contas, que se estabelecem as
concorrências e os conflitos entre agentes que ocupam posições diferentes no mercado
de cinema. Realizadores, distribuidores e exibidores agem juntos, mas também
concorrem; eles são, como diz Bourdieu (2001, 1977, p. 26), “adversários cúmplices”.
Para a compreensão das formas de ação do governo também me foram úteis,
como ponto de partida, os escritos do cárcere de Antonio Gramsci, organizados por
Carlos Nelson Coutinho (2011). Os conceitos de guerra de posições, sociedade civil,
hegemonia e consenso me ajudaram a compreender a evolução da política de cinema.
No que diz respeito, especificamente, ao entrelaçamento entre a política econômica do
audiovisual e a conjuntura nacional, me fiei nas reflexões do cientista política André
Singer (2012) e do economista Luiz Carlos Bresser-Pereira (2015).


20

Por fim, me serviram de apoio, na fase inicial das leituras sociológicas, o
interacionismo simbólico de Herbert Blummer (1969) e o agir comunicativo de
Habermas (2012). Apesar de não serem referenciados de forma direta na tese, ambos os
autores me ajudaram na análise da mudança nas formas de ação dos agentes conforme
novas situações iam surgindo, e na própria conceituação do que é um ator social.
No que diz respeito ao cinema, especificamente, fui muito influenciada por
Laurent Creton, pesquisador francês que estuda o cinema a partir de um olhar
econômico e sociológico; e foram inspiradores, pela relação mais direta com os fatos
no momento em que eles acontecem e pela fluidez, os textos de Paulo Emílio Salles
Gomes.
Em termos gerais, esses são alguns dos autores com os quais esta tese
estabelece um diálogo explícito e, sobretudo, implícito. Há ainda dezenas de autores
que são utilizados como esteio para os mais variados temas que percorrem o trabalho –
da economia criativa à economia política do cinema, passando pela política de
telecomunicações. Apesar de a teoria ter balizado meu pensamento e norteado minha
pesquisa, foi de seu cotejamento com a realidade que nasceu esta tese.
No que diz respeito ao método, um diferencial importante em relação às
pesquisas que precedem este estudo, todas fundadas principalmente em pesquisa
bibliográfica, é a preferência pelas entrevistas qualitativas como fonte primordial.
Obviamente, foram amplamente utilizados também livros, artigos, entrevistas já
publicadas, depoimentos, projetos de leis e textos com regulamentações diversas. São,
porém, as entrevistas – 35 exclusivas para a pesquisa e algumas realizadas por mim em
trabalhos de cunho jornalístico – que me permitem, com maior acuidade, compreender
as divisões no meio cinematográfico, os interesses envolvidos e os lobbies que foram
mobilizados no período estudado.
As entrevistas, além de servirem para preencher as lacunas da documentação e
dos relatos já escritos, refletem a experiência dos atores, suas motivações e seu olhar
sobre cada episódio. Acredito que, por meio das vozes aqui reproduzidas, será possível
ampliar a compreensão a respeito dessas políticas e de seu significado social.
Procurei, inspirada por aquilo que Xavier (2016, p. 23) define como sendo uma
marca do pensamento de Paulo Emílio, fazer o “corpo a corpo não dogmático com a
ordem social e cultural que nos cerca”. Por uma questão de viabilidade, não tive a
pretensão de ouvir todos os agentes que se envolveram diretamente com a formulação
da política. Isso não seria possível no contexto deste doutorado.


21

As opções tomaram por base, principalmente, o grau de influência que cada
um dos agentes exerceu em cada momento e/ou política abordada. Não descarto que
figuras importantes deixem de ser citadas e tampouco desconsidero que as entrevistas
acabem, elas próprias, por espalhar o jogo de forças existente no setor audiovisual,
talvez desconsiderando, assim como faz a política, vozes excluídas do campo. O
desequilíbrio de gênero e raça, por exemplo, apenas reflete o setor e, dado o objetivo
desta pesquisa, não seria pertinente equalizá-lo aqui. Também ficaram excluídos do rol
de entrevistas as grandes empresas de telecomunicações e as televisões abertas.
Dentre as entrevistas que me propus a fazer, a única que não consegui realizar
foi com Manoel Rangel, figura central do período estudado. Apesar de ter conversado
com ele diversas vezes ao longo do tempo de pesquisa – sobre a tese, inclusive – , a
prometida entrevista para depois de sua saída da presidência da Ancine não se
concretizou. Uso, aqui, trechos de entrevistas que me concedeu para propósitos
jornalísticos e não acadêmicos.
Cabe sublinhar ainda que, sem ignorar que existem vários cinemas brasileiros
e que são variadas as formas de produção e acesso, esta pesquisa, dado seu propósito,
fecha o foco sobre os filmes produzidos pelos caminhos oficiais – ou seja, que recebem
o Certificado de Produto Brasileiro – e feitos para ter, como primeira janela, as salas de
cinema.

Sobre os capítulos

No que se refere à organização do texto, enfrentei, de início, o impasse


recorrente: seria ela temática ou cronológica? Conforme os dois primeiros capítulos
foram sendo redigidos, ambos os caminhos se mostraram compatíveis com a proposta.
Após a conclusão do capítulo 2, ficou, porém, claro que a cronologia iria se impor, pois
a sequência dos acontecimentos é ilustrativa do processo social e econômico mais amplo
no qual o cinema se incluiu.
Antes de detalhar a estruturação da tese, por meio da descrição de cada
capítulo, cabe mencionar outra escolha que foi preciso fazer: deixar de lado os filmes.
Fazer a análise dos filmes que esse modelo de produção gerou é tentador, e certamente
traria resultados riquíssimos. Mas essa reflexão que, inevitavelmente, roça o estético, é
empreendimento para um trabalho futuro – seja ele meu seja de outro pesquisador. Outra
opção que merece ser explicitada é que eu procuro sempre vincular a ação dos


22

indivíduos ou do grupo ao lugar que ocupam no campo. Para isso, utilizo breves
referências biográficas dos personagens citados. Elas incluem, em alguns casos, a
menção aos filmes realizados. Acredito que a citação dos filmes ajude alguns leitores a
localizar esses realizadores no espectro cinematográfico. Para quem não conhece as
obras, fica apenas como menção.
A tese está dividida em quatro capítulos. O capítulo 1, Cinema e Estado: uma
relação tão necessária quanto delicada, funciona como uma introdução ao tema. Esse
capítulo mostra, primeiro, o que é uma política audiovisual, oferecendo uma revisão
bibliográfica das origens e modelos de regulação ao redor do mundo. A genealogia da
política audiovisual amplia a compreensão do que se seguirá e também deixa claro que
algumas das dificuldades enfrentadas pelo cinema brasileiro são comuns a muitos
cinemas nacionais. Na sequência, faz-se um apanhado histórico e bibliográfico da
política cinematográfica e das relações entre o audiovisual e o Estado no Brasil entre
1930-1999. Tal retrospecto contribui para que se perceba o quanto algumas
problemáticas do século XXI aparecem desde sempre. Ele demonstra, ainda, o quanto
o pacto que esta pesquisa identificou foi também uma marca da Embrafilme.
O capítulo 2, A volta do Estado: os limites de uma política regulatória no
século XXI, é o início da pesquisa empírica propriamente dita. O capítulo inicia-se na
chamada repolitização do cinema brasileiro, durante a realização do III CBC, evento
que serviu como radiografia daquele momento. Aborda-se, na sequência, a criação de
uma nova legislação, a MP 2228-1/01, que originou a Ancine, as mudanças trazidas
pela passagem do governo FHC para o governo Lula e, por fim, o projeto da Agência
Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) – a mais ampla política de regulação
já proposta por um governo brasileiro para o setor, cuja divulgação provocou um abalo
de proporções sísmicas. O episódio da Ancinav pode ser considerado, no todo desta
tese, como o último momento no qual discutiu-se de fato a política e no qual os conflitos
foram escancarados. A partir daí, com o aumento dos recursos disponíveis, começou a
ser forjado o grande pacto hoje em vigor.
O capítulo 3, Em busca do consenso: novas leis e novos players em cena,
começa em 2005, ano do rescaldo da Ancinav e ano no qual Manoel Rangel, redator do
projeto da Ancinav, tornou-se diretor da Ancine, e vai até a aprovação e os
desdobramentos da Lei 12.485, aprovada em 2011. Essa lei, chamada de Lei da TV
Paga, impõe pela primeira vez obrigações relativas à televisão – mas apenas à televisão
fechada – e muda o patamar da produção. No arco temporal coberto pelo capítulo 3, o


23

setor vive um processo de institucionalização e passa por algumas transformações
importantes. A partir da lei 11.437, de 2006, são criados novos mecanismos de
financiamento ao cinema e nasce o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que rompe
com a lógica dos incentivos fiscais. Com a lei 12.485/11, o cinema brasileiro entra num
novo ciclo de desenvolvimento e a visão do cinema enquanto economia se impõe.
No quarto e último capítulo, A década revista: os resultados da política pós-
Embrafilme, eu procuro fazer uma homologia do campo, oferecendo números e dados
que mostram a reconfiguração do setor e dimensionam as transformações ocorridas de
2001 até aqui. Concentram-se nesse capítulo as tabelas e gráficos. Para efeitos de análise
desses resultados, o capítulo se divide em três partes, que representam os três elos da
cadeia cinematográfica: produção, distribuição e exibição. Apesar de a pesquisa
qualitativa centrar-se no período que vai de 2001 a 2011, o capítulo final contempla
dados que vão até 2016. Essa liberdade metodológica se justifica por duas razões: (1)
só assim foi possível incorporar à tese os resultados preliminares da Lei 12.485/11,
fundamental para a análise do campo; (2) tendo em vista que a escrita da tese foi
concluída no primeiro semestre de 2018, não faria sentido ignorar dados que contribuem
para uma análise mais acurada da política estudada. A extensão temporal de 2001 a
2017 resume-se, porém, aos dados. O jogo político do setor é analisado apenas até a
aprovação da Lei da TV Paga, ou seja, o estudo não contempla a reconfiguração de
forças do setor cinematográfico após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em
2016, ou após o encerramento do mandato de Manoel Rangel, em maio de 2017.
Cabe, finalmente, ponderar que o que eu pretendi construir não foi uma análise
das políticas do período, e sim uma narrativa ampla e articulada a respeito delas, com
ênfase na ação dos atores. O olhar estendido no tempo fez com que se perdesse em
especificidade, mas se ganhasse em amplitude. A mecânica do setor, a sincronicidade
entre o cinema e o país e a maneira como os agentes vão modificando suas ações e
discursos – às vezes para manter tudo igual – só a perspectiva temporal fornece.

O interesse no tema

Minha aproximação com a política cinematográfica brasileira remonta,


precisamente, a 2001. Nesse ano, trabalhando como repórter da revista CartaCapital,
escrevi uma reportagem chamada Lobbies em Fúria, que tratava dos trabalhos que


24

estavam sendo realizados pelo Grupo Executivo para o Desenvolvimento da Indústria
Cinematográfica (Gedic).
O grupo, que respondia a Pedro Parente, ministro-chefe da Casa Civil do
governo Fernando Henrique Cardoso, reunia velhos nomes do cinema brasileiro, como
o produtor Luiz Carlos Barreto, o cineasta Cacá Diegues, o exibidor Luiz Severiano
Ribeiro Neto, e dois ex-diretores da Embrafilme, o cineasta e pensador Gustavo Dahl e
o executivo Rodrigo Saturnino Braga, então gerente-geral da Columbia Pictures3. Na
apuração da reportagem, complicada pelo pacto de silêncio firmado entre os integrantes
do Gedic, tomei contato com um cinema brasileiro que até então desconhecia: não o dos
filmes em si, mas o dos profissionais que se articulam junto ao poder para engendrar
políticas e apoios.
Com a obstinação da jovem repórter que, até por desconhecer aquelas figuras,
tinha cara-de-pau suficiente para importuná-las incessantemente, passei cerca de dois
meses telefonando semanalmente para a produtora de Gustavo Dahl, o porta-voz do
grupo. Quem costumava atender o telefone era o produtor de cinema Diogo Dahl, filho
de Nelson Pereira dos Santos e da atriz Ana Maria Magalhães, e criado como filho por
Dahl. Um dia, Diogo resolveu me dar o telefone da casa de seu pai de criação. Dahl
atendeu e, não sem ironizar minha insistência, topou falar sobre o Gedic. Começava a
nascer assim a primeira das muitas reportagens que eu faria sobre a política
cinematográfica brasileira.
Ainda em 2001, fui escalada para acompanhar o IV Congresso Brasileiro de
Cinema, no Rio de Janeiro. Ali, as disputas se materializaram por meio de discursos
inflamados, assinatura de acordos jamais cumpridos e também em forma de rostos e
vozes. Foi durante o IV CBC que ouvi, pela primeira vez, um discurso de Manoel
Rangel, que estava ali como diretor da Associação Brasileira de Documentaristas
(ABD) e que falava, com a ênfase de quem fora moldado pela política estudantil, contra
o cinema hegemônico – atualizando, para os anos 2000, o discurso anti-imperialista dos
anos 1960.
De 2001 a 2012, cobri sistematicamente a política audiovisual brasileira,
primeiro na CartaCapital e depois no caderno Ilustrada, do jornal Folha de S.Paulo. A
partir de 2012, segui escrevendo periodicamente sobre o assunto, na Revista de Cinema,

3
A partir de 2005, a Columbia Pictures é incorporada à Sony no Brasil.


25

nas revistas especiais do Filme B e no caderno Eu, do jornal Valor Econômico. Calculo
que, ao longo destes 17 anos, tenham sido uns 300 textos sobre o cinema brasileiro.
Foi inescapável, ao me aproximar da vida acadêmica, por meio de um mestrado
feito no King’s College, em Londres, entre 2012 e 2013, que esse tema me
acompanhasse. Minha dissertação de mestrado analisa o projeto de criação da Agência
Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), de 2004, sob a ótica das políticas
internacionais de cultura e dos acordos de comércio envolvendo o audiovisual. Após a
escrita da dissertação, mudou meu olhar sobre o objeto. Mas não meu interesse. Esta
pesquisa condensa, aprofunda e dá novos significados ao tema sobre o qual me debruço
há quase 20 anos e que, para mim, continua parecendo inesgotável.


26

Capítulo 1

Cinema e Estado: uma relação tão necessária quanto delicada

“A política cultural, do ponto de vista dos estudos sobre cultura, sempre diz
respeito a cultura e poder.” (McGuigan, 2004, p.5)

1.1 O que é uma política audiovisual

Àqueles que desejam enveredar pelo caminho da política cinematográfica


brasileira, recomenda-se um primeiro passo: entender o que é e que origens tem a
política pública destinada a regulamentar a produção e o consumo de filmes. Só assim
será possível, primeiro, escapar da armadilha de se enxergar como tipicamente
brasileiras medidas e dificuldades comuns a diversos países e, segundo, compreender
as nuances culturais, políticas, econômicas e sociais que marcam a atividade
audiovisual.
Segmento específico, e talvez o mais complexo, no âmbito das políticas
culturais, a política audiovisual diz respeito às medidas governamentais criadas para se
promover e se disciplinar as produções de cinema e televisão. Se, nas políticas voltadas
para a cultura, o que está em jogo é sempre uma relação entre cultura e Estado, no caso
do audiovisual acrescenta-se a isso, inevitavelmente, a questão do mercado e da
indústria. O cinema é um fenômeno da sociedade industrial e mercantil e requer, em
geral, altos investimentos para sua viabilização. Ele diferente bastante, nesse sentido,
de outras manifestações artísticas, como a literatura ou as artes plásticas.
No Brasil, o termo política audiovisual começou a ser empregado no século
XXI. Até então, falava-se apenas em política cinematográfica. Não se trata de mera
questão de terminologia. É que, à parte a outorga de concessões, os governos no país
nunca regularam a televisão. As políticas públicas de fomento e regulação estatal,
portanto, sempre disseram respeito apenas ao cinema – deixando a televisão de fora.
Apesar de, em variados países, a política do cinema caber aos ministérios da cultura e a
televisão ser regulada pelo equivalente ao Ministério das Comunicações, é comum que
as leis que regem o cinema estabeleçam obrigações a serem cumpridas pelas tevês.


27

Aqui, nunca foi assim. A adesão ao termo audiovisual é, portanto, não apenas técnica,
mas também política. Quando se começa a falar em audiovisual, amplia-se o horizonte
de ação.
Na revisão bibliográfica que se segue, serão abordados, inicialmente, os
argumentos que estão por trás das políticas voltadas a esse setor ao redor do mundo e
também os modelos mais usuais de regulação e apoio. Na segunda parte do capítulo
serão recuperados, de forma sumarizada, os principais momentos e características da
política cinematográfica brasileira no decorrer do século XX.

1.2 Origens e modelos de regulação ao redor do mundo

É consenso, na literatura especializada, que os filmes, produto-chave da


indústria de entretimento de massa, não são nem simples atividade comercial nem pura
expressão artística; eles são tanto arte quanto indústria, tanto mercadoria quanto bem
cultural (Moran, 1996; Creton, 1997; Roselfeld, 2003; Miller et. al, 2005; Flibbert,
2007). Esse dualismo, constituinte da própria ideia de cinema, está na origem dos
principais dilemas enfrentados pela política que procura impulsionar e regular essa
atividade. A fábrica de sonhos e de mitos depende de uma lógica industrial para
continuar existindo. E é por isso que a política cultural, no caso do cinema, insere-se,
em vários países, numa lógica industrial. Na França, argumenta-se, desde a primeira
metade do século XX, que assim como o Estado foi crucial na construção das indústrias
nuclear, automobilística e militar, ele tem um papel a desempenhar no desenvolvimento
da indústria de filmes.
É que, de fato, por mais que um filme possa ser considerado arte, sua existência
material depende de condições técnicas – desde a sua produção até a sua difusão – que
acabarão por defini-lo também enquanto produto a ser consumido. Cabe ponderar que
tal premissa, presente no influente ensaio “A obra de arte na era da reprodutibilidade
técnica” (1955), do filósofo frankfturtiano Walter Benjamin, não será aqui explorada do
ponto de vista da teoria crítica, mas apenas à luz da política cinematográfica. Esta
revisão bibliográfica parte do princípio de que, mesmo quando considerado arte, um
filme não escapa de sua condição de produto industrial e, como tal, estará sempre
cercado pelos embates arte versus indústria e cultura versus mercado.
Se isso acontece é porque, como diz McGuigan (2004, pp. 13-14) em seus
artigos sobre os discursos que dão sentido às políticas culturais, o cinema traz em seu


28

bojo questões relativas a “comunicação, prazer e identidade”, algo que faz com que
extrapole a relação produtor-artista-espectador e interesse também aos governos.
Tornaram-se célebres, inclusive, as declarações do presidente norte-americano Franklin
Delano Roosevelt a respeito da importância do cinema hollywoodiano para a política e
a identidade norte-americanas. Em seu governo (1933-1945), parte do cinema
hollywoodiano estava em consonância com as políticas públicas do país e contribuiu
para a disseminação do american way of life (Pereira, 2013).
Apesar de as relações entre cinema e Estado terem, ao redor do mundo,
diferentes feições e funções, há uma série de elementos comuns às políticas de proteção
e/ou estímulo à produção de filmes. Fora do EUA, foi com base na ideia de que os filmes
carregam consigo elementos de identidade nacional, diversidade cultural e aspectos de
bem público que os Estados passaram a intervir na atividade audiovisual. Pelo fato de
serem bens de interesse público, os produtos culturais diriam respeito a toda a sociedade
e não apenas a seus produtores e consumidores. A premissa central dessas políticas é
que cabe aos governos ajudar a garantir a sobrevivência de produtos locais e corrigir
aquilo que os economistas definem como “falhas de mercado” 4 . Há, além disso, o
argumento da indústria infante, segundo o qual os governos devem estimular o cinema
local até que ele atinja um determinado grau de sustentabilidade.
Miller et. al (2005, p. 3) defendem que existem, basicamente, dois modelos de
governança na economia do cinema – sendo que cada um deles reflete uma determinada
visão a respeito do papel do Estado. O primeiro é o que eles chamam de laissez-faire,
adotado em países como Índia, Hong Kong e, primus inter pares, Hollywood. O
segundo modelo, adotado sobretudo nos países da Europa Ocidental, da África e da
América Latina, é o que os autores chamam de dirigista e que prevê, em maior ou menor
medida, a intervenção estatal.
A indústria baseada no laissez-faire tem, entre outras características, a não-
intervenção estatal na produção, distribuição ou exibição, uma orientação exportadora
e ênfase na ideologia do prazer. A indústria pautada pelo dirigismo conta com
subvenção estatal para a produção, um suporte mínimo – ou nulo – para a distribuição
e exibição, substituição de importações e preponderância da ideologia de nação sobre a
do lazer. Uma política cultural baseada no dirigismo engloba um suporte ativo à

4
Terminologia utilizada nas teorias econômicas sobre regulação. O conceito de “falha de mercado” diz
respeito, basicamente, a situações nas quais o Estado deve agir em defesa do interesse público, seja
facilitando a concorrência seja intervindo em monopólios.


29

indústria por meio de taxas sobre importação ou sobre venda de ingressos, subvenção
estatal para incentivar a produção nacional e cota de tela – que estipula a obrigatoriedade
de exibição de determinada quantidade de obras nacionais na tevê e/ou nas salas de
cinema.
Os dois modelos, baseados em tipos-ideais engendrados a partir de conceitos
da economia, oferecem um bom panorama de como os governos podem, em linhas
gerais, posicionar-se em relação ao audiovisual. Cabe, no entanto, observar que esse
esquema desconsidera nuances e não é perfeitamente aplicável ao caso brasileiro. O
país, apesar de inclinado em direção ao modelo dirigista no que diz respeito ao cinema
– e, mesmo assim, sem encaixar-se em todas as características – migra para o laissez-
faire quando o que está em jogo é a televisão.
Uma alternativa interessante a esse modelo são os indicadores desenvolvidos
por Flibbert (2007). Na tentativa de delinear a direção geral das políticas de Estado para
o audiovisual, o autor criou uma tabela que enumera sete características: cotas de tela,
financiamento estatal para a produção, festivais nacionais de cinema, requerimentos
relativos ao idioma no qual são falados os filmes e escolas públicas para a formação de
profissionais. Quanto maior a “pontuação”, mais estatizante é a política. Ele usa o
mesmo método para definir o grau de intervenção econômica no setor, utilizando-se de
índices como barreiras tarifárias, cotas de importação, taxas sobre ingressos de filmes
importados, licenças de importação e proteção à propriedade intelectual. Como se verá
adiante, vários desses indicadores perpassam a política cinematográfica brasileira desde
a década de 1930.
A fim de justificar a adoção de medidas dessa natureza, os governos utilizam
uma ampla variedade de justificativas, que vão da busca pela diversidade cultural e do
valor da cultura local até argumentos de ordem econômica. A partir de fins do século
XX, foi ganhando força a ideia de que o cinema, para além de sua importância cultural,
contribui para o desenvolvimento dos países e tem um potencial de geração de empregos
que não pode ser desprezado.
Outro argumento forte é o dos “benefícios externos” (Hoskins, McFadyen e
Finn, 1997, p. 81). O que se leva em conta, nesse caso, é o quanto determinadas medidas,
como os subsídios para a produção doméstica, são benéficas para a sociedade como um
todo e para o espectador, em particular. A política, de acordo com essa teoria, terá sido
malsucedida caso “os custos da ação governamental tenham excedido seus benefícios”
(Brown, 1996, p. 10, apud Hoskins, McFadyen and Finn, 1997, p. 86) ou caso os


30

objetivos culturais não tenham sido alcançados (Guerriere e Iapadre, 2005). Do ponto
de vista de Guerriere e Iapadre (2005, p. 5), a ideia de diversidade cultural, que comporta
princípios políticos como “pluralismo e liberdade de expressão”, tem se mostrado
essencial para a defesa das políticas que regulam o audiovisual.
De acordo com Guerriere e Iapadre (2005) e Footer e Graber (2000), os
principais instrumentos adotados pelos países em suas tentativas de proteger o conteúdo
local são: (1) investimento na rede pública de televisão; (2) regulações que incluem a
normatização da exportação de produtos e restrições de propriedade na prestação de
serviços; (3) requisitos mínimos relativos a conteúdo, baseados em nacionalidade,
idioma ou tipo de conteúdo, tanto para as salas de cinema quanto para a televisão; e (4)
suporte financeiro à produção e acordos internacionais de coprodução.
Apesar de a maioria das nações usar uma combinação dessas alternativas, o
foco aqui será fechado sobre os exemplos que guardam maior proximidade com as
políticas que foram discutidas – e/ou implementadas – no Brasil ao longo dos anos
pesquisados. Documentos e entrevistas dão conta de que uma das principais inspirações
para o país, durante o período abordado, foi a política cinematográfica francesa, que
tende a ser mais protecionista do que a média da Europa. Mas exemplos vindos do
Canadá, da Itália e da Espanha também foram frequentemente citados pelos agentes que
defendiam medidas de proteção por parte do Estado.
Na França, além do subsídio estatal, outras duas importantes fontes de recursos
para o cinema são a taxa de 10% sobre os ingressos, que deve ser reinvestida na
produção de filmes, e um imposto pago pelas redes de televisão abertas (Creton, 2005).
Os canais de televisão, além disso, são obrigados a investir 3,2% do faturamento do ano
fiscal anterior na produção de filmes europeus, sendo que, desse percentual, 2,5% deve
ser investido na produção de filmes franceses; além disso, 60% de todos os filmes
veiculados na televisão devem ser europeus e 40% devem ser franceses (European
Audiovisual Observatory, 2002).
A obrigatoriedade imposta às emissoras, introduzida em 1986, colocou as
televisões abertas numa posição preponderante na estrutura de financiamento da política
cinematográfica francesa. É importante sublinhar que, na França, o conceito de exceção
cultural é central e bem absorvido pela sociedade e que a política cultural não defende
os produtos “culturais” ou inovadores em detrimento dos “comerciais”. O objetivo do
Estado é defender a identidade cultural francesa e a economia nacional contra o


31

monopólio hollywoodiano (Creton, 1997). Um princípio importante dessa política é que
o dinheiro para o financiamento do cinema venha da própria atividade.
Essa ideia de um ecossistema audiovisual no qual a televisão é compreendida
não só como um importante meio de difusão como também um financiador-chave para
o cinema nacional está longe de ser uma particularidade francesa. A exigência legal de
que as TVs apoiem o cinema estende-se para Itália, Alemanha e Austrália. Na Itália, a
Lei 122, de 1988, impôs que, no mínimo, 10% da renda publicitária das emissoras seja
reservada para a aquisição de produtos audiovisuais europeus, incluindo produção
infantil e obras de produtores independentes. Na Austrália, um conjunto de regras
estabelecidas em 2005, exige que toda televisão comercial que funciona com uma
licença governamental reserve uma cota anual de, ao menos, 55% de seu tempo de
transmissão para conteúdo nacional entre as 6 da manhã e a meia-noite. Outros países,
como a África do Sul e o Canadá têm leis que requerem que uma porcentagem mínima
da programação seja reservada ao conteúdo nacional. Na Espanha, os canais são
obrigados a investir 5% de seu faturamento no cinema e, na Argentina, as tevês
transferem 1% do faturamento para um fundo público de financiamento ao cinema.
Por trás dessas exigências está o conceito de que a televisão, mais do que uma
simples mídia a ser comercialmente explorada, é uma importante ferramenta na
construção de “uma democracia baseada na educação e na participação” (Williams,
1974, p. 151). O público, de acordo com esse princípio, deve ser visto como cidadão e
não como simples consumidor. As televisões públicas são muito baseadas nessa ideia.
Esse conceito é, no entanto, pouco ou nada aplicado na América Latina, onde a televisão
é eminentemente comercial. No Brasil, não só a rede pública foi sempre frágil como a
relação entre os dois meios, cinema e televisão, praticamente inexistiu até o final do
século XX.
O que quase não muda, ao redor do mundo, é a relação dos cinemas nacionais
com o poder exercido por Hollywood5. Exceção feita à Índia e a regimes que impõem
regras rígidas para a entrada de produtos culturais estrangeiros, como a Coreia do Norte
e a China, não há país cuja política cinematográfica não se faça em contraponto ao
domínio do cinema norte-americano. A centralidade do cinema hollywoodiano, que se

5
Quando se fala em cinema hollywoodiano não está se falando da totalidade do cinema norte-americano.
Há filmes feitos nos Estados Unidos que não são hollywoodianos.


32

traduz naquilo que Creton (1997) chama de “cinéma-monde”6, faz com que reste, para
os cinemas nacionais, um espaço que pode ser considerado de nicho. A assimetria
começa pelo fato de que o cinema saído de Hollywood pode amortizar os seus custos
no mundo todo. Os cinemas nacionais apenas em uns poucos e raros casos têm um
mercado que ultrapasse suas fronteiras territoriais.
Para fazer frente aos filmes produzidos pelas majors, os países tomam variadas
medidas. Dentre as mais comumente adotadas estão a cota de tela para o cinema, os
incentivos fiscais e os subsídios estatais. A cota de tela, entendida pelos Estados Unidos
como a menos indesejada dentre as formas de proteção, é adotada, por exemplo, na
Coreia do Sul, na Espanha e na Itália; as barreiras tarifárias para a entrada de
blockbusters é prática na Índia, na Turquia e no Canadá; a cobrança de uma taxa sobre
os ingressos vendidos (revertida em investimentos em produção nacional) existe na
Alemanha e na Itália.
Guback (1969), pioneiro no olhar sociológico sobre a economia do cinema,
relata que em 1925 a Alemanha já havia determinado que se produzisse um filme
nacional para cada filme estrangeiro lançado. Sadoul (apud Simis, 2008), em seus três
volumes sobre a história do cinema mundial, registra que a Inglaterra, em 1927,
estipulou que 5% de tudo o que fosse exibido tivesse origem local e traçou, como meta,
a produção de 50 filmes ingleses por ano.
Foi também na década de 1920 que os produtores da Alemanha, da França e
da Itália começaram a buscar formas de proteger suas indústrias contra os competidores
norte-americanos (Guback, 1969; Flibbert, 2007). É, no entanto, imediatamente a partir
do fim da Segunda Guerra que a indústria audiovisual ganha prominência internacional
e que a Europa passa, de maneira mais ampla, a restringir a importação de filmes e
adotar uma série de outras medidas.
O primeiro capítulo da história dos filmes na França do pós-Guerra é o acordo
Blum-Byernes, assinado em maio de 1946 por James Byrne, secretário de Estado norte-
americano, e Léon Blum, representante do governo francês. O acordo liquidou uma
parte das dívidas que a França tinha com os Estados Unidos. Uma das contrapartidas
para isso foi o fim do regime de interdição dos filmes norte-americanos em território
francês – em 1939, o país tinha estipulado um teto para a exibição de produções vindas

6
Inspirado no conceito de “economia-mundo”, o conceito cinéma-monde (cinema-mundo) é utilizado com
frequência por Laurent Creton. Quem propôs pela primeira vez esse termo foi Charle Albert Michalet, no
livro Le Drôle de drama du cinéma mondial (Éditions La Découverte, Paris, 1987).


33

dos Estados Unidos nas salas de cinema. Durante a negociação do acordo, um slogan
dizia: “Coca-Cola, c’est la mort du vin de Bourgone”, revelando a lógica em torno da
dominação estrangeira que marcaria dali em diante os embates sobre cinema (Forest,
1998, p. 134). Os detratores do acordo diziam que ter um país invadido pelo cinema
hollywoodiano era, de alguma forma, ter o país invadido pelo american way of life.
Nesse mesmo ano ( 1946), a França cria o Centre National de Cinématographie
(CNC)7, cuja missão é proteger e promover o cinema francês. No ano seguinte, em 1947,
os negociadores franceses, sentados à mesa do Acordo Geral de Tarifas e Comércio
(GATT)8, solicitaram a criação de uma exceção ao Artigo III do acordo internacional.
O artigo em questão recomendava, basicamente, que os produtos importados fossem
tratados em pé de igualdade com aqueles de origem nacional (Cocq e Messerlin, 2005;
Pauwels, De Vinck e Rompuy, 2007). A exceção solicitada pela França dizia respeito
aos produtos culturais. Na visão do governo francês, tais produtos, que carregavam em
si sistemas de representação, não podiam receber tratamento idêntico àquele reservado
a sapatos ou veículos automotores. Os Estados Unidos reagiram contra essa ideia,
pontificando que os filmes eram mercadorias como quaisquer outras e deveriam estar
sujeitos às regras gerais do comércio internacional e à lógica da oferta e da demanda.
Inaugurava-se assim o dilema até hoje não solucionado. A despeito do
desacordo em torno do tema e da recusa norte-americana em partilhar da ideia dos
filmes como um produto “particular”, todos os membros do GATT concordaram em
assinar, em 1947, o Artigo IV, que estabelece, como legítima, a criação de uma cota de
tela para as produções nacionais.
A cota de tela, comumente definida como reserva de mercado, estabelece que,
dentro da programação de uma sala de cinema ou de um canal de televisão, destine-se
uma porcentagem de horas ou um mínimo de títulos para produções nacionais. Os
Estados Unidos propuseram, por sua vez, que os países membros contrabalançassem
qualquer tipo de regulação relativa à reserva de mercado para conteúdo nacional com a
garantia de acesso a programas estrangeiros (Voon, 2007). A assinatura do acordo não
foi, porém, garantia de uma real aceitação de tal medida. Ao contrário.

7
A instituição se chama hoje Centre national du cinéma et de l'image animée, mas mantém a sigla CNC.

8
A sigla GATT vem do inglês General Agreement on Tariffs and Trade. O acordo foi firmado em 1947,
no pós-Guerra, tendo 23 países como signatários. Trata-se de um conjunto de normas e concessões
tarifárias destinados a regular as relações comerciais internacionais e combater práticas protecionistas.
Está na base da criação da Organização Mundial de Comércio (OMC).


34

Desde aquela época até os dias de hoje, são comuns as ações promovidas pela
Motion Picture Association of America (MPAA)9, que congrega os maiores estúdios de
Hollywood, e pelos donos de cinemas para contestar a legalidade da cota de tela nos
mais diversos países – Brasil incluído.
Internacionalmente, a primeira grande ofensiva contra o Artigo IV se deu na
Rodada do Uruguai do GATT (1986-1994), que aconteceu durante a onda liberalizante
que teve início na década de 1980, com as eleições de Margaret Thatcher no Reino
Unido e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e prosseguiu até meados anos 1990.
Na ocasião, o governo norte-americano decidiu abrir fogo contra a “exceção cultural”
(Matellard, 2006), noção que ganhou força nesse período. A difusão da ideia de que os
bens e serviços culturais deveriam ser tratados como “exceção” dentro dos acordos de
comércio atingiu, sobretudo, o terreno audiovisual. Como relata o produtor britânico
David Puttnam (1997), cineastas como Steven Spielberg e Martin Scorsese assinaram à
época um manifesto apoiando a postura dos EUA, em defesa da “liberdade de
expressão”. Do lado europeu, os diretores Pedro Almodóvar, Bernardo Bertolucci e
Wim Wenders reagiram com a afirmação de que o que se estava fazendo era tentar,
simplesmente, defender o cinema europeu da completa aniquilação.
Em 1993, o então presidente francês, François Miterrand, encampando essa
batalha, afirmou, na plenária do GATT, que criações do espírito não são apenas
commodities. Ficava claro, naquele momento, que a Europa não cederia tão facilmente
às pressões (Guerriere, Iapadre e Koopmann, 2005). Enquanto isso, do lado dos EUA,
Bill Clinton prometia aos chefões dos estúdios de Hollywood que não cederia às
tentativas de se enquadrar a produção de seu país em regras rígidas.
Em seu detalhado estudo sobre o GATT e a Organização Mundial de Comércio
(OMC), Blustein (2009) conta que, no mesmo ano em que Miterrand fez seu discurso
enfático, Jack Valenti, presidente da MPAA, liderou um pequeno exército que foi de
Hollywood a Genebra para deixar claro o quanto a indústria de cinema norte-americana
estava interessada no debate. O autor relata que, uma noite antes da assinatura do
acordo, Mickey Kantor, representante comercial dos EUA, ligou para o presidente
Clinton para tentar convencê-lo de que os problemas relativos aos filmes não deveriam

9
Fundada em 1922, a MPAA era, originalmente, formada pelas seguintes companhias: Metro-Goldwin-
Mayer, Columbia, Universal, Walt Disney, Fox, Allied Artists, Paramount e United Artists. Desde o seu
surgimento, o organismo está apto a negociar com os governos de outros países em nome dos grandes
estúdios de Hollywood e, em alguns casos, em nome do próprio governo norte-americano. Atualmente, a
MPAA é composta por Walt Disney, Paramount, Sony, Fox, Universal e Warner Bros.


35

ser um obstáculo para a assinatura do acordo. Clinton pediu para que Kantor ligasse
para Lew Wasserman, uma poderosa figura da indústria do entretenimento. Kantor
(apud Blustein, 2009) relembra o conteúdo da ligação:

Telefonei para Lew (...). Contei-lhe o que estava acontecendo. Ele me


disse: “Mickey, esse não é o maior acordo comercial de todos os
tempos?” Respondi: “É, sim.” Ele replicou: “É do interesse do nosso
país?”. Respondi: “É, sim.”. Ele disse: “Essa coisa [de cinema] não
importa. Vamos dominar esse mercado de qualquer jeito. Eles não
podem nos manter afastados da Europa. A tecnologia [como as fitas de
vídeo] vão tornar impossível para eles fazer isso.” Então ele disse: “Vá
com Deus...” (Blustein, 2009, p. 35).

E o que aconteceu, na prática, é que o amplo acordo comercial foi assinado em


1994 sem que Europa e EUA chegassem a um consenso sobre o audiovisual. Como
defende Voon (2006), os resultados da Rodada do Uruguai deixavam claro, de uma vez
por todas, que a estrutura do GATT era absolutamente inadequada para discussões sobre
especificidades culturais.
E se o cinema, a despeito de suas características de comércio, foi sempre
tratado como cultura no âmbito do GATT e da OMC, o mesmo não se pode dizer da
televisão. Em 1961, foi estabelecido um grupo de trabalho para examinar a aplicação
das regras do GATT sobre programas de tevê e os EUA assinalaram que, sob a
perspectiva do GATT de 1947, os programas de televisão constituíam mercadoria,
fazendo objeção à inclusão dos produtos destinados à tevê no Artigo IV, pensado para
os filmes. O argumento era o de que a natureza da indústria televisiva não era a mesma
da cinematográfica. O Grupo de Trabalho formalizou uma série de propostas, mas a
questão jamais foi resolvida. Ainda em 1994, o GATT atestou que os produtos culturais
entregues via broadcasting, satélite ou internet tinham elementos tanto de mercadoria
quanto de serviços.
Em 1995, quando a OMC substituiu o GATT, nada mudou em relação ao
assunto. Apesar de a OMC reconhecer como legítimo o direito de os países buscarem a
promoção ou a preservação de sua cultura, os membros do grupo não chegaram a um
acordo a respeito dos métodos que podem ser adotados para que tais objetivos sejam
cumpridos e para que se alcance o delicado equilíbrio entre a possibilidade de existência


36

da produção doméstica e o acesso às formas de expressão estrangeiras (Grant e Wood,
2004). Ou seja, ao longo de toda a segunda metade do século XX, Estados Unidos e
Europa falharam na tentativa de encontrar o meio-termo e chegar a um consenso sobre
o comércio de produtos audiovisuais.
Mas, na virada do século XX para o século XXI, houve uma mudança
importante: a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco) substituiu a OMC como fórum internacional para a legitimação de políticas
voltadas à cultura. Foi já sob a Unesco que em 2005, após dois anos de negociações,
representantes de 190 países, liderados por França e Canadá, assinaram a Convenção da
Unesco Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, que
trazia em seu bojo, sem ressalvas, aquilo que no GATT e na OMC sempre foi motivo
de discórdia.
O documento traz embutida a ideia de que a cultura não deve ser tratada como
uma mercadoria qualquer – doutrina que remete ao GATT de 1947 e que é derivada do
conceito de exceção cultural – e enfatiza o direito de os Estados signatários
estabelecerem políticas que atendam às necessidades particulares de cada país. A
convenção passou, ao menos em tese, a servir de amparo para o estabelecimento de
subsídios públicos para a produção local, para a taxação de filmes estrangeiros e para a
implantação de medidas protecionistas. Enquanto a Unesco enfatizava que, no caso
específico do audiovisual, a profusão de imagens importadas pode “erodir a textura
social e a soberania e a identidade cultural de um país” (Unesco, 2005, p. 18), o governo
norte-americano afirmava que o documento trazia ameaças ao livre fluxo de
informação. Japão, Austrália, Nova Zelândia e Cingapura, além dos Estados Unidos,
posicionaram-se contrariamente à Convenção da Unesco.
A nova resolução, efetivada em março de 2007, fez com que a Unesco
substituísse, de uma vez por todas, a OMC como arena central de discussão das políticas
culturais (Benhamou, 2004). Ela marcou uma mudança semântica: o conceito de
exceção cultural foi substituído pelo de diversidade cultural. É que, ao longo do
processo da globalização, o tema da diversidade foi se consolidando. Nesse contexto,
passou a se valorizar o que é específico e o local foi ganhando relevância (Ortiz, 2015).


37

O discurso da diversidade, que ordena o diferente (Nicolau Netto, 2014), é muito
marcado também pela ideia da cultura como um direito10.
Alguns autores ponderam, no entanto, que, pelo fato de a convenção não ser
100% clara na definição do conceito de diversidade cultural, seu papel, mais do que
promover uma real diversidade, é apenas proteger os países contra o domínio da
produção cultural norte-americana. Outra questão levantada pelos críticos da convenção
é: até que ponto as medidas protecionistas garantem a diversidade interna? Além disso,
certos autores argumentam que, uma vez que não há sanções previstas, o documento
não assegura aos membros nenhum grau de liberdade que eles não tivessem antes
(Acheson e Maule, 2004).
É fato, contudo, que apesar das alegadas incoerências, a Convenção passou a
ser levada em consideração no estabelecimento das políticas destinadas a regulamentar
a comercialização de produtos culturais. O Brasil, como se demonstrará no Capítulo 3,
usou a Convenção, internalizada por meio do Decreto nº 6.177, de 2007, como
instrumento de legitimação da lei que estabeleceu de cotas de programação nacional na
tevê a cabo.
É importante lembrar que, se o dilema entre cultura e comércio no setor
audiovisual mostrou-se insolúvel ao longo do século XX, no século atual os impasses
talvez sejam ainda maiores – a despeito da Convenção e do discurso em prol da
diversidade. Houve, primeiro, a concentração da produção cultural em pouquíssimos
impérios corporativos administradas por grupos bancários globais; essas
megacorporações dominam o mercado mundial de livros, filmes e música (Epstein,
2008).
Em 2005, Miller et. al (2005) mostraram que as companhias norte-americanas
são detentoras dos direitos de até 90% dos filmes exibidos em boa parte do mundo e
que, em 2001 e 2002, todos os filmes mais vistos no mundo eram norte-americanos. Na
Comunidade Europeia, a participação de mercado dos cinemas nacionais é inferior a
15% em metade dos países; em todos os 27 integrantes do bloco, o cinema recebe
subsídio do Estado e é beneficiado por medidas protecionistas. Outro fenômeno é a
chamada “glocalização”, termo usado para definir a atuação de empresas que

10
O direito cultural faz parte do que se chama de segunda geração de direitos: direitos econômicos, sociais
e culturais. Até então, falava-se basicamente em direitos civis e políticos. Um dos textos seminais sobre
os direitos culturais e sociais é La Politique des droits de l’homme, do filósofo e sociólogo francês
Raymond Aron, publicado em 1983.


38

descentralizam sua produção, e adaptam-na às características locais, para mais
facilmente conquistar os mercados globais.
Esse domínio mercadológico e econômico acabou se solidificando, com o
passar do tempo, como um domínio também estético – traduzido pelo que Paul Virilio
chama de darwinismo das imagens. Não há cinema nacional na Europa, América Latina
ou África – as poucas exceções estão no continente asiático – que tenha escapado à
influência de Hollywood (Epstein, 2008; Bakker, 2008). É importante sublinhar ainda
que, a partir das décadas de 1960 e 1970, o mercado interno deixou de ser suficiente
para que a indústria norte-americana recuperasse seus investimentos em grandes
produções. Em decorrência disso, já nos anos 1980, os mercados estrangeiros se
tornaram sua principal fonte de arrecadação do cinema hollywoodiano.
Hoje, sob a perspectiva da revolução tecnológica global, que impõe novas
formas de se produzir e consumir cultura, o processo de concentração econômica no
mercado do entretenimento só tem feito crescer. E as tradicionais fronteiras entre os
diferentes acordos do GATT e da OMC ficaram ainda mais borradas, complexas e
vagas. Como apontam Guerriere e Iapadre (2005), é muito difícil, no contexto atual,
fazer a distinção entre mercadoria e produto no terreno da produção audiovisual,
especialmente no que diz respeito ao video sob demanda (que será tratado no capíutlo
4.5). Os autores também estão convencidos de que, com a disponibilidade de serviços
multimídia oferecidos por meios eletrônicos, o custo do cumprimento das cotas de tela
tende a exceder seus potenciais benefícios.
Hesmondhalgh (2007, p. 2) é outro que argumenta que, numa economia
globalizada, marcada por uma cultura transnacional, uma ampla política de Estado
talvez não possa mais ser tolerada e justificada. Justamente por isso, de acordo com ele,
“velhas tradições relativas à propriedade pública dos meios e medidas regulatórias já
foram desmanteladas” no século XXI. Para McGuigan (2004), outro complicador é o
próprio enfraquecimento da ideia de Estado-nação. Segundo ele, toda ideia de
intervenção carrega consigo a ambição de proteger a identidade nacional; e, para que
isso tenha algum sentido, é preciso que a sociedade, como um todo, partilhe de certa
ideia de identidade.
Tal visão, no entanto, está longe de ser unanimidade. Garcia-Canclini (1995),
considera, ao contrário, que no contexto contemporâneo e global, a cidadania está se
esgarçando e, especialmente por isso, precisa ser protegida. Bernier (2006, p. 10)
ressalta ainda que, no caso específico dos países em desenvolvimento, onde os recursos


39

públicos disponíveis para a cultura tendem a ser menores, a total liberalização do fluxo
de produtos e serviços pode comprometer, de forma grave, seu “desenvolvimento
cultural”. No que diz respeito a tais países, portanto, o advento das novas tecnologias
tornaria ainda mais prementes as políticas de defesa da produção local.

1.3 As relações entre cinema e Estado no Brasil

A chamada historiografia clássica do cinema brasileiro narrou,


especialmente, uma história de cineastas e de filmes. Como aponta Bernardet (2009), as
questões de mercado e de legislação foram quase sempre tratadas de forma lateral e
alusiva, tomando por base, sobretudo, fontes secundárias. Paulo Emílio Salles Gomes,
nome-farol do pensamento cinematográfico nacional, mais de uma vez fez apelos para
que economistas e sociológicos se dispusessem a contar a história do cinema brasileiro
a partir da legislação e de dados. Pareciam palavras jogadas ao vento.
Tal cenário começou a mudar a partir de fins dos anos 1980, quando uma grave
crise se abateu sobre a produção nacional e a busca por explicações econômicas,
políticas e sociais para o que havia acontecido revelou-se essencial. Foram surgindo, de
lá para cá, trabalhos que nos permitem compreender o cinema brasileiro para além dos
filmes em si. E é o conjunto de estudos levados a cabo por autores como José Inácio de
Mello Souza, Tunico Amâncio, Arthur Autran, Randal Johnson, Afrânio Mendes
Catani, Anita Simis, José Mário Ortiz Ramos e Marcelo Ikeda que compõe o quadro
teórico no qual esta tese se insere. Exceção feita a Amâncio, Autran e Ikeda, cujas
pesquisas estiveram abrigadas em escolas de cinema, os demais autores desenvolveram
seus trabalhos – ou parte deles – no âmbito das Ciências Sociais, indicando ser esse um
caminho bastante adequado a estudos que buscam enlaçar política e cinema.
Apesar de os trabalhos de Souza (1981) e Catani (2002) terem caráter
secundário nesta revisão bibliográfica, eles foram fundamentais para elucidar pontos
específicos da pesquisa. Souza jogou luz sobre os Congressos de Cinema, essenciais
para que se compreenda a maneira pela qual o setor cinematográfico estruturou-se como
grupo e estabeleceu vínculos diretos com o Estado. Catani, por sua vez, deteve-se sobre
a trajetória da Companhia Cinematográfica Maristela (1950-1958) e, por meio do estudo
de caso, desvendou a natureza de alguns dos impasses de um cinema periférico que se
deseja industrial.


40

Com os outros autores mencionados, esta tese estabelece um diálogo mais
direto e se propõe a ser, a despeito das diferentes nuances e ênfases, a sequência
temporal e temática das pesquisas por eles empreendidas. As pesquisas que mais longe
avançam cronologicamente são as de Autran (2013), que abrange o período de 1924 a
1990, e de Ikeda (2015), que se concentra, como esta pesquisa, nas duas últimas décadas
– com a diferença de que o foco de Ikeda é mais a política e menos a trama social por
trás de sua implantação.
A leitura dessas obras revela, essencialmente, que as questões enfrentadas pelo
cinema brasileiro ao longo do período abordado são quase todas recorrentes. Exceção
feita a problemáticas características do século XXI, em especial aquelas ligadas à
convergência tecnológica, as demais já haviam se apresentado em outros momentos. As
interpretações feitas por cada um dos autores – mais convergentes que divergentes entre
si – fornecem, portanto, o necessário pano de fundo para a abordagem do tema de fundo
desta investigação: as relações entre cinema e Estado e a forma pela qual o setor se
articula para ter suas reivindicações atendidas e influenciar no estabelecimento de
políticas públicas.
A fim de escapar do risco de fazer um histórico excessivamente detalhado, a
opção foi a de se traçar um panorama geral dessas relações, focando no macro, e não
nos detalhes de cada política. Algumas questões específicas – como a participação das
subsidiárias hollywoodianas na produção nacional e o papel da televisão – serão
retomadas no decorrer dos demais capítulos, de acordo com sua relevância e
aproximação com o objeto da pesquisa. Em linhas gerais, o objetivo desta sessão é
apontar as particularidades da relação entre cinema e Estado no país e elencar as
principais medidas regulatórias e protecionistas adotadas ao longo do século XX.
A primeira coisa a ser pontuada é que, como sublinha Johnson (1987), as
políticas desenvolvidas nos país foram, historicamente, menos fruto de um pensamento
claro dos governos e mais soluções engendradas para resolver crises ou atender a
demandas dos representantes do setor. A intervenção do Estado, nesse sentido, limita-
se a refletir a “guerra de posições” entre os diversos interesses envolvidos, ou seja, a
política cinematográfica nacional, mesmo guardando semelhanças com algumas
políticas internacionais, origina-se do intercâmbio entre decisões governamentais e
demandas de grupos de interesse.
Ramos (1983) defende que, ao longo do século XX, as lutas e tensões presentes
no campo cinematográfico brasileiro foram marcadas pelo conflito entre dois polos: o


41

nacionalista e o industrialista-universalista, que carregam em si a dicotomia local versus
global, arte versus indústria. Os integrantes do primeiro polo defendem a independência
cultural e enxergam no cinema um potencial de desalienação; o segundo grupo assume
que o cinema brasileiro deveria absorver os moldes de produção estrangeiros,
conectando-se a valores definidos como universais e procurando adotar um modelo
industrial.
Enquanto Ramos trata essa dicotomia como um conceito-chave para a
compreensão das relações entre cinema e Estado no Brasil, Autran defende que o fio a
atar todas essas políticas é o pensamento industrial. De acordo com ele, tal pensamento
é recorrente no cinema brasileiro desde os anos 1920. Também muito cedo, defende
Autran, fica claro para a corporação que a industrialização só pode se dar com o auxílio
do Estado. Ou seja, a revisão bibliográfica deixa claro que, apesar de haver nuances
interpretativas no que diz respeito à genealogia das relações entre cinema e Estado, essa
relação, com tudo o que ela carrega de contraditória e conflituosa, é uma marca
indelével do cinema nacional.
Historicamente, o Estado brasileiro serviu como “patrão, garantidor, regulador,
repressor e, de tempos em tempos, como produtor de cultura” (Johnson, 1987, p. 3),
desempenhando um papel ao mesmo tempo econômico e cultural. No caso específico
do cinema, o Estado também tem sido visto como uma “tábua de salvação” à qual
produtores e realizadores podem sempre recorrer (Autran, 2013, p. 168) em busca de
apoio financeiro e de políticas específicas.
Apesar de a intervenção estatal na arena da cultura remontar aos tempos
coloniais, é no século XX que ela é sistematizada e ganha corpo. Na primeira década do
século, surgiram pedidos para que o governo aumentasse os impostos das salas que não
exibissem filmes brasileiros (Bernardet, 2009); a partir dos anos 1920, a defesa de tal
ideia começa a ganhar contornos mais nítidos. É, no entanto, a partir da Revolução de
1930, que o potencial pedagógico do cinema bem como suas possibilidades como
veículo de propaganda e difusão do nacionalismo ganham realmente força.
A correspondência entre o potencial do cinema e a política nacionalista
adotada, sobretudo, no primeiro governo de Getúlio Vargas (1937-1945), marcado pelo
11
nacional-desenvolvimentismo , vai, na concepção de Simis, abrir um novo

11
Na definição de Bresser-Pereira (2015), o nacional-desenvolvimentismo combina o nacionalismo
econômico com razoável grau de intervenção do Estado na economia. É, ainda segundo o autor, a partir


42

relacionamento do cinema com o poder. No período ditatorial getulista, o Estado chama
para si a mediação de interesses opostos e se dispõe a regular a atividade, projetando-
se, segundo a autora, como “árbitro acima dos interesses particularistas” (Simis, 2008,
p. 93), assumindo um papel que, como se verá, se perpetua até o tempo presente – se
não na prática, ao menos no discurso. A atividade deixava nesse momento de ser
regulada apenas pelas leis do mercado e passava a ser tratada como algo de interesse
público.
A intervenção do Estado na indústria cinematográfica tem como marco o ano
de 1932, quando foi assinado o Decreto 21.240/32, que criou a taxa cinematográfica
para a educação popular, estabeleceu a obrigatoriedade de exibição de curtas-metragens
e reduziu as taxas alfandegárias para a importação de filmes. O texto outorgava ainda
ao Ministério da Educação e Saúde o poder de estabelecer a metragem de filmes
nacionais a serem exibidos mensalmente. As justificativas para o decreto passavam pelo
poder educativo do cinema e por seu potencial de transmitir uma imagem positiva do
país. Havia, por trás das medidas, um projeto de construção de uma identidade nacional
e de integração nacional. Mas colocava-se, já então, a problemática que Galvão e
Bernardet (1983) exploram: o que é o caráter nacional do “nosso” cinema? O nacional,
para além da questão da nacionalidade, vai se desenhando como aquilo que se opõe ao
estrangeiro.
O decreto, segundo Simis (2008, p. 93), “constituiu a base de um padrão
ideológico e político da relação Estado/sociedade” e traz o germe da política que será
colocada em prática nos anos posteriores. O Estado assumia, nesse momento, o papel
de mediador de interesses e de centralizador de decisões e normas. Dois anos depois,
em 1934, um novo decreto estabeleceria a primeira medida que pode ser, de fato,
considerada protecionista: o aumento da taxa de importação do filme impresso e a
redução daquela cobrada sobre o filme virgem que seria usado pelo produtor brasileiro.
Ou seja, a nova regra oferecia vantagens para o produtor nacional em detrimento do
produtor estrangeiro. Getúlio Vargas explicita então que vê o cinema como ferramenta
auxiliar no processo de integração nacional:

O cinema será, assim, o livro de imagens luminosas, no qual as nossas


populações praieiras e rurais aprenderão a amar o Brasil (...) Ele

de 1930, sob Getúlio Vargas, que o Brasil começa a se constituir como um verdadeiro Estado-nação e a
se industrializar.


43

aproximará (...) os diferentes núcleos humanos dispersos no território
vasto da República (Simis, 2008, p. 30 e p. 43).

Foi também sob Vargas que nasceu o primeiro departamento governamental


voltado especificamente às questões cinematográficas: o Instituto Nacional de Cinema
Educativo (Ince), criado por Edgard Roquette-Pinto em 1937. Como o próprio nome
explicita, o que interessava ao órgão era o potencial educativo dos filmes – no caso,
documentários. Apesar de Roquete-Pinto já então apontar o potencial do cinema como
negócio, era seu viés cultural que motivava o governo a colocá-lo sob sua tutela. Dois
anos depois, com a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o cinema
passa a integrar uma concepção mais ampla de propaganda, que incluía os cinejornais
governistas. Sobre esses primeiros movimentos associativos dos produtores brasileiros,
Paulo Emílio escreve:

Esses homens da classe média (...) representavam apenas a si próprios


e os seus pequenos interesses profissionais, não tinham atrás de si
amparos financeiros sólidos, não podiam arguir a respeito do interesse
do público pelas suas produções, não tinham, sequer autoridade para
avançar argumentos de ordem cultural, e sobretudo não estavam
capacitados para estimular a imaginação modorrenta dos governantes
com largas perspectivas industriais e econômicas. Os primeiros
entendimentos entre os produtores cinematográficos e os poderes
públicos assumiram a foram de uma troca de favores, da qual é exemplo
típico a lei da obrigatoriedade do complemento nacional (...)
Satisfazendo pequenos interesses e não perturbando os grandes, isto é,
não alterando o statu quo do mercado, a obrigatoriedade (...)
estabilizou-se (Gomes, 2016, p. 59-60).

Estabelecia-se assim o ritual de trocas de interesses e de pequenos – ou grandes


– pactos que marcaria a aliança entre o cinema nacional os dirigentes governamentais
de diferentes épocas.
Após esses primeiros movimentos da década de 1930, outra mudança
significativa aconteceria em 1947, quando foi criado, dentro do DIP, o Conselho
Nacional de Cinematografia (CNC), composto por representantes do cinema brasileiro
e por exibidores e distribuidores estrangeiros. O Estado continuaria centralizando as


44

decisões, mas caberia ao CNC a regulação do setor. Cabe lembrar que esse período não
só coincide com as discussões sobre política cultural levadas a cabo no âmbito do GATT
como marca, no Brasil, o surgimento de uma incipiente indústria cultural, com um
mercado de bens simbólicos em formação (Ortiz, 1988). No projeto inicial, o CNC
propunha subvenções à produção, por meio de empréstimos e prêmios, mantinha a cota
de tela12 e previa a criação de um estúdio-modelo para a formação de profissionais
(Simis, 2008). No entanto, apesar de ter sido pensado como autarquia, o conselho
acabou por tornar-se dependente dos recursos estatais e, logo, do próprio Estado –
antecipando algo que seria recorrente na história do cinema do país.
A busca pela institucionalização teria prosseguimento na década de 1950,
quando Vargas encomendou a Alberto Cavalcanti o projeto do Instituto Nacional de
Cinema (INC). A década de 1950 é marcada ainda pela realização dos dois primeiros
Congressos Brasileiros de Cinema (1952 e 1953) e pela criação do Grupo de Estudos
da Indústria Cinematográfica (1956), já dentro de um projeto de industrialização
(Autran, 2013). Citando os documentos preparados por Jacques Deheinzelin e
Cavalheiro Lima, Paulo Emílio relatava, em 1956:

Na fase atual, a luta pelo cinema nacional em São Paulo assumiu um


aspecto novo, caracterizada pela clareza das intenções e pelo horror às
frases feitas. Ficou provado que um único estudo econômico objetivo é
mais útil e eficaz do que cem denúncias vagas ao imperialismo (...)
Durante anos a fio, ninguém teve ideia de como as coisas se passavam;
os dados nos quais se assentava a produção e o comércio dos filmes
brasileiros eram bem mais fantasiosos do que o enredo das fitas
(Gomes, 2016, p. 34 e. p. 57).

Apesar de a primeira versão do projeto do INC – que tomava por base o centro
de cinematografia francês – ter sido enviado à Câmara dos Deputados em 1952, a
criação do órgão, pontuada por disputas e desentendimentos entre diferentes grupos, só
se efetivaria em 1966.

12
Para um histórico das transformações pelas quais a cota de tela, a mais conhecida forma de reserva de
mercado nas salas de cinema, passou até a década de 1990 consultar: Autran (2013, p. 75) e Anita Simis.
Legislação (verbete). In: RAMOS, Fernão e MIRANDA, Luiz Felipe A. (orgs.). Enciclopédia do cinema
brasileiro. São Paulo: Editora Senac, 2000, p. 321-323.


45

O INC marca uma efetiva intervenção estatal no cinema. Se até então o Estado
tinha funcionado apenas como legislador e sua presença no mercado se fazia sentir,
essencialmente, por meio da reserva de mercado, com o INC ele passa a atuar também
como financiador de filmes (Ramos, 1983; Simis, 2008). Como frisa Autran (2013, p.
164), a partir dos anos 1950, “não se tratava mais de pedir o mínimo necessário para a
garantia da produção, mas sim exigir apoio financeiro e legislação protecionista que
viabilizassem o predomínio do cinema brasileiro no mercado interno”.
O INC, especialmente quando nasceu, foi duramente criticado pelo pólo
nacionalista e, em especial, pelos diretores do Cinema Novo13 – Glauber Rocha, Nelson
Pereira dos Santos e Luiz Carlos Barreto à frente. O grupo, que sentiu-se marginalizado
nas discussões para a criação do INC, chamava o órgão de autarquia fascistóide (Simis,
2008) e acusavam-no de ser dirigita e de ter feito uma aliança com o capital estrangeiro.
Oponentes ferozes da ideia do cinema como objeto de consumo, esses cineastas ficavam
apreensivos diante do fato de que velhas reivindicações de cunho nacionalista
passassem a ser “encampadas pelo Estado ditatorial” (Ramos, 1983, p. 52).
O polo mais ligado ao cinema industrial 14, por outro lado, apesar de desgostar
da ideia do Estado interferindo em uma atividade privada, apoiou o instituto por meio
de algumas associações de São Paulo, como o sindicato dos produtores e das empresas
exibidoras. Futuramente, no entanto, os exibidores reagiriam contra as taxas e
cobranças. E os cinemanovistas, por sua vez, a despeito das críticas iniciais, não tiveram
outra alternativa que não continuar tendo no Estado um apoiador. Houve, no fim, uma
conciliação camuflada pela defesa de um Estado neutro (Ramos, 1983).

13
Influente movimento cinematográfico brasileiro que teve início na década de 1950. Seus integrantes,
representantes do chamado cinema de autor, defendiam um cinema que fosse mais colado à realidade e
que não procurasse reproduzir o modelo dos grandes estúdios norte-americanos. São emblemáticos do
Cinema Novo filmes como Rio 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e o diabo na terra
do sol (1964), de Glauber Rocha.

14
O termo cinema industrial pode aqui ser compreendido em oposição ao dito cinema artesanal. Trata-se
da mesma oposição criada por Ramos (1983): nacionalistas versus industrialistas-universalistas. Ao longo
da pesquisa, os termos cinema artesanal e industrial serão substituídos por variações dessa mesma
dicotomia, como arte/indústria, cultura/entretenimento, autoral/comercial. Como escreve Xavier (2001, p.
80), “na política de produção e no debate cultural, o dado mais evidente é a consolidação da polaridade
entre o “cinemão”, projeto de mercado ajustado aos protocolos de comunicação dominantes, e os estilos
alternativos presentes no curta e no longa-metragem. Essa polaridade, embora referência útil,
principalmente para se entenderem as rasteiras de grupo, os conchavos, presentes na relação
cineastas/Estado, é muito genérica como baliza estética e não pode ser tomada como dicotomia absoluta
entre filisteus do comércio e virtuosos da cultura”. Com a revolução tecnológica, que possibilita que se
produza um longa-metragem com uma só câmera digital, não tem, inclusive, muito sentido manter a
terminologia cinema artesanal.


46

O caminho rumo a uma presença estatal mais ampla, iniciado com o INC, seria
completado sob o signo do Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 1968, que trouxe consigo o
agravamento da censura e das práticas de tortura. Pois foi exatamente nesse ano que se
criou a Empresa Brasileira de Filmes S/A, a Embrafilme, que marcará a “definitiva
aproximação entre cineastas e agências estatais” (Amâncio, 2000, p. 123).
Formalizada em setembro de 1969, a empresa faz parte de uma política de
“conveniência com as oposições” e integrada numa forma de capitalismo de Estado que
não excluía os setores da indústria cultural” (Amâncio, 2000, p. 123). O relacionamento
da empresa com o regime militar, “submisso algumas vezes, conflitante outras”
(Amâncio, 2000, p. 25) será marcado por diferentes fases e motivações. Ao longo de
sua existência, a empresa despertou resistências tanto por parte da direita quanto da
esquerda. 15 Concretamente, o Estado deixava, de uma vez por todas, de ser mero
mediador e passava a ter ampla atuação no setor, estabelecendo uma relação bastante
próxima com a classe cinematográfica16:

Tanto o coronel Jarbas Passarinho quanto o coronel Ney Braga, que o


sucedeu no ministério da Educação e Cultura, lideravam grupos de
pressão bastante influentes junto aos órgãos encarregados do
planejamento dos recursos da União. E ambos foram os autores de
inúmeras iniciativas na área cultura. O reconhecimento deste empenho
por parte de alguns representantes da área cinematográfica faz selar
simbolicamente um pacto firmado entre o cinema e o Estado (Amâncio,
2000, p. 39).

Simbólico desse pacto é o fato de, em 1974, o produtor e cineasta Roberto


Farias, então presidente do Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica, e o
produtor Luiz Carlos Barreto, representante da Associação dos Produtores

15
Para melhor compreensão dos anos Embrafilme e das diferentes fases vividas pela empresa ver Tunico
Amâncio, Ely Azeredo e Carlos Fonseca. Roberto Farias em ritmo de artindústria. Filme Cultura, n.° 15,
jul./ago. 1970, pp. 6-17; André Piero Gatti. Embrafilme e o cinema brasileiro. Cadernos de pesquisa, vol.
6. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2007; Sergio Santos e Tunico Amâncio. Pacto cinema-Estado:
os anos Embrafilme. Alceu, Vol. 8, nº 15, jul./dez. 2007, pp. 173-184; e Jorge (2002).
16
O termo “classe cinematográfica” será usado, ao longo desta tese, no sentido corrente, ou seja, no
sentido empregado pela mídia e pelo próprio setor. Sabe-se que na Sociologia o conceito de classe é um
conceito-chave – e complexo –, mas a opção pela manutenção da palavra “classe” deve-se ao fato de que
ela integra o vocabulário do objeto de pesquisa e é recorrente na fala dos entrevistados.


47

Cinematográficos, terem pedido a mudança do nome do Prêmio Embrafilme – oferecido
aos filmes baseados em obras literárias – para Prêmio Ministro Jarbas Passarinho
(Amâncio, 2000). Cabe lembrar que, também durante a Era Vargas, a aproximação entre
o cinema e o poder teve contornos de natureza semelhante. Simis (2008) relata as
homenagens feitas pelos cineastas a Getúlio Vargas – entre elas, a outorga do título de
presidente de honra da Associação Cinematográfica de Produtores Brasileiros.
No entanto, se na Era Vargas havia produções voltadas à defesa e à propaganda
do governo, no período da Embrafilme, apesar de haver registros de casos de ingerência
para a viabilização de determinados filmes, não se tratava de buscar uma produção
oficial ou que fizesse louvações ao regime. Segundo Ramos (1983), apregoava-se, ao
contrário, uma ideia de liberdade cultural:

[O Estado] pretendia (...) articular um projeto que atraísse para o seu


campo os cineastas com preocupações mais críticas e políticas, e por
isso acenava com esta ilusória “independência cultural” (...), movendo-
se no plano estritamente simbólico. A PNC [Política Nacional de
Cultura] estabelecia premissas para uma estratégia cultural muito mais
sofisticada que a simples indução dos cineastas para uma produção
oficial, ultrapassando a fase em que Independência ou Morte era o
paradigma do cinema desejado (Ramos, 1983, p. 131).

A despeito de ter sido criada com o intuito de promover o filme brasileiro no


exterior, a Embrafilme, rapidamente, ampliou seu foco de atuação, passando a atender
a outras demandas dos produtores nacionais. Em 1973, foi criada a Embrafilme
Distribuidora, que deveria contribuir para que o filme brasileiro tivesse sua existência
assegurada no mercado de salas, tradicionalmente dominado pelo filme estrangeiro.
A solidificação de uma distribuidora estatal – algo que, como se viu na tópico
1.1, não é corriqueiro em outros países – somada à regulamentação da exibição de um
número mínimo de filmes nacionais no circuito fez com que, na década de 1970, a
conquista do mercado pelo cinema nacional chegasse à casa dos 30% e deixasse de
parecer quimera distante.
Nessa fase, a Embrafilme perseguiu objetivos que chamam a atenção pela
proximidade com algumas metas da Ancine: a conquista do mercado interno, o
implemento de recursos para a produção, com a empresa assumindo os riscos como


48

coprodutora, o fortalecimento dos setores produtivos e a ampliação da máquina estatal
para maior eficiência no controle do mercado (Amâncio, 2000). Para que se pudesse
complementar os recursos vindos da subvenção direta, institui-se o empréstimo
bancário com juros subsidiados e o modelo de avanço sobre a receita dos filmes – no
qual o governo adiantava até 30% do orçamento e era ressarcido com a renda gerada
nas bilheterias.
A empresa teria seu auge durante o governo Geisel (1974-1978). Em 1974,
Geisel, pela primeira vez, colocou alguém não ligado ao regime no comando da
empresa, o produtor e cineasta Roberto Farias.17 Na visão de Amâncio (2000), a gestão
Roberto Farias (1974-1979) marca o período áureo das relações entre cinema e Estado
e representa uma fase de ebulição e otimismo. Em seu discurso, Barreto não apenas
confirma essa visão como evidencia a influência direta do grupo cinemanovista sobre a
empresa:

As chamadas leis de proteção ao cinema brasileiro vinham evoluindo


desde Getúlio Vargas e passaram muito bem pela ditadura militar.
Muito bem. Por mais que se queira tapar o sol com a peneira, a verdade
é que o período de ouro do cinema brasileiro foi durante o governo
Geisel, no período de 1974 a 1979. O governo Geisel tinha como chefe
do Departamento de Assuntos Culturais o Dr. [Manuel] Diegues
[Júnior], pai do Cacá18, que pediu a ele indicações para a Embrafilme e
o INC. Então aí tivemos o Roberto Farias como presidente da
Embrafilme. E tinha também o [João Paulo] Reis Velloso [amigo de
Nelson Pereira dos Santos], Ministro do Planejamento e cinéfilo. Essa
conjuntura colocou o cinema brasileiro, através do modelo institucional
do governo, formado pela Embrafilme, pelo Conselho Nacional de
Cinema [Concine] e pela Fundação do Cinema Brasileiro, numa

17 Em setembro de 1970, o diretor geral era Carlos Guimarães de Mattos Jr., filho de um Brigadeiro da

Aeronáutica, assim como o diretor administrativo era o vice-Almirante Boris Markenson; em 1972, o
Brigadeiro Armando Troia foi o diretor geral, sucedido por Walter Borges Graciosa (1972), amigo do
Ministro Jarbas Passarinho (Amâncio, 2000).

18
A adoção do primeiro ou do último nome ao longo do texto respeitará o nome que os agentes do
mercado, nas entrevistas à autora, usam para se referir à pessoa citada. Enquanto Luiz Barreto é chamado
de Barreto, Carlos Diegues e Nelson Pereira dos Santos, por exemplo, são sempre chamados de Cacá e
Nelson. A opção se deve à tentativa de respeitar a fala corrente no campo e também à busca por uma maior
fluência na leitura entre aqueles que conhecem ou integram o campo cinematográfico. Acredita-se ainda
que tal escolha em nada compromete a compreensão dos leitores que desconhecem esses agentes.


49

posição privilegiada. Inclusive, na história do cinema mundial, nunca


houve um cinema nacional, a não ser o americano19, que ocupasse 40%
mais de de seu mercado 20 , o que aconteceu naqueles anos da
Embrafilme, administrada pelo Roberto e, naturalmente, seguindo as
políticas do grupo do Cinema Novo (Barreto, em entrevista à autora,
2014).

Farias, que assumiu com o apoio de produtores e cineastas ligados ao Cinema


Novo, levou ao estreitamento dos laços da empresa com o grupo hegemônico que
articulava a política setorial. Mas, como escreve Pontes (1987, p. 21), ele soube “puxar
de um lado e calar do outro, procurando estabelecer o mínimo de equilíbrio”. O que
havia então eram só as sementes do conflito que eclodiria após a saída de Farias. Um
exemplo é o manifesto da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD), escrito em
1976, liderado pelo então jovem cineclubista Lucio Aguiar (em depoimento à autora,
2018), que pleiteava a democratização das verbas da Embrafilme e que motivou Cacá
Diegues a fazer um discurso em favor da Embrafilme durante o Festival de Brasília
daquele ano.
Apesar dos ruídos que causaram alguma interferência no discurso do sucesso,
é fato que o cinema, naquele período, gozava de prestígio político e de recursos e que a
Embrafilme tinha cada vez mais poder. Cabe registrar que em 1975, logo após a chegada
de Farias, o INC foi extinto, levando à ampliação dos poderes da Embrafilme. Em 1976,
foi criado o Concine, que recebe atribuições do INC, e torna-se o órgão responsável
pela regulação e fiscalização do mercado, aí incluídas questões de preço e cota de tela
(que impunha então 140 dias de exibição de filmes nacionais durante o ano). O fomento,
por sua vez, manteve-se sob a Embrafilme. O cinema, tal como caminhava, ao mesmo
tempo em que atendia aos interesses de um projeto nacional do governo, satisfazia os
integrantes do setor que mais voz tinham:

Embora permanecessem algumas medidas coercitivas, como no caso da


censura, a expectativa da classe cinematográfica era a da obtenção de

19
Outros cinemas nacionais, como o francês, o sul-coreano e o japonês já chegaram a ultrapassar essa
faixa.
20
O cinema brasileiro não chegou a ocupar mais de 40% do mercado; a taxa de ocupação, mesmo nos
anos 1970, não ultrapassou os 35%.


50

sua independência econômica, uma vez que a gestão da atividade se
encontrava em mãos próximas (Amâncio, 2000, p. 56).

Nesse momento, muitos acreditaram que o sonho da indústria autossustentável


estava se concretizando. Trabalhando tanto com a perspectiva de um cinema autoral
quanto de um cinema comercial, a empresa, durante certo período alcançou resultados
expressivos. Entre 1969 e 1972, 25 filmes brasileiros venderam mais de 1 milhão de
ingressos; em, 1978, ano em que estrearam 133 longas-metragens brasileiros, Dona flor
e seus dois maridos vendeu mais de 10 milhões de ingressos. A década de 1970 seria,
nos anos que se seguiram, comumente relembrada como o lugar aonde o cinema
brasileiro, se devidamente apoiado, poderia chegar.
Em 1979, o diplomata Celso Amorim sucedeu Roberto Farias na direção da
Embrafilme. Apesar de a participação de mercado do filme nacional ainda se manter em
bons patamares, o quadro geral, já no início dos anos 1980, começava a deteriorar-se.
Havia, primeiro, uma crise institucional da Embrafilme, acusada de praticar o
clientelismo e de funcionar como um “balcão” marcado por “certa promiscuidade”
(Dahl e Autran, 2012, p. 268) e, depois, a crise da dívida externa que começava a se
desenhar no país e que afundaria o Estado brasileiro. Tal conjuntura seria fatal para o
cinema. Em 1982, pouco após o lançamento de Pra frente Brasil, de Roberto Farias,
Amorim foi demitido. Ia chegando ao fim do pacto que manteve a instituição de pé nas
décadas anteriores:

A escassez de recursos, o afunilamento da produção, as investidas dos


exibidores contra as fontes de receita da empresa e contra a
obrigatoriedade de exibição do curta-metragem criam uma pulsão
nevrálgica que converge para o rompimento de uma certa unidade entre
as lideranças dos grupos que mantinham apropriada proximidade com
o aparelho do Estado (Amâncio, 2000, p. 102).

É preciso lembrar ainda que, mundo afora, o entretenimento doméstico – que


passou por uma grande mudança com a popularização do videocassete, na década de
1980 – ia mudando os hábitos de consumo (Epstein, 2008). No Brasil, entre 1975 e
1984, o número de salas de exibição caiu 48%. Aquele era, para Escorel (2005), o
começo de um profundo desencontro entre o cinema brasileiro e seu público:


51

Não tendo conseguido formar um público cativo, nem sabido preparar


a transição para um novo modelo adequado à crise financeira do Estado,
ao regime democrático e à voga neoliberal, o nosso cinema chegou ao
final dos anos 80 sem qualquer legitimidade social (Escorel, 2005, p.
18).

Escorel (2005) insiste que, por mais que a culpa sobre o fim da Embrafilme
tenha recaído, historicamente, sobre Collor, a imagem da empresa estava em
“frangalhos” e seu fim era inevitável:

Que isso possa ter acontecido dessa forma, indica a fragilidade e a


artificialidade da base sobre a qual o cinema estava apoiado (...) Mas
cegos pelo favorecimento estatal, os profissionais não captaram os
sinais claríssimos de que os subsídios estatais haviam deixado de ser
reconhecidos como socialmente legítimos” (Escorel, 2005, p. 19).

Para Cacá Diegues, o episódio deixava duas coisas claras: a possibilidade de uma
indústria que se sustentasse nunca foi real e a Embrafilme tinha se descolado da
realidade brasileira:

Esse negócio de indústria nunca existiu. A Embrafilme foi uma


organização de economia, que atendeu às reivindicações culturais que
vinham do Paulo Emílio. A Embrafilme que a gente conhece foi aquela
que existiu no governo Geisel, que foi um governo nacionalista,
estatista, um governo que retomou a questão do desenvolvimento
econômico através da intervenção do Estado. Mas isso gerou uma
grande dívida externa, a moratória, o empobrecimento... Isso acabou
com a Embrafilme. A Embrafilme, nesse momento, se descolou da
realidade econômica do país. A economia brasileira estava indo para
um lado, encolhendo, e a Embrafilme funcionava como se aquilo ainda
existisse. Eu nem acho que as más administrações tenham sido os
coveiros da Embrafilme... O coveiro da Embrafilme foi a economia
brasileira. Não cabia mais aquele tipo de coisa no país (Diegues, em
entrevista à autora, 2012).


52

À altura, como relata Marco Aurélio Marcondes (Marcondes, em entrevista à
autora, 2012), que trabalhava na distribuidora, havia até uma marchinha da Embrafilme:
“A festa tá muito boa, mas a conta que vem aí...”. A redução dos recursos públicos
destinados ao cinema também evidenciou que, sem o Estado, a atividade não tinha
condições de manter-se. A utopia da indústria autossustentável ia se desvanecendo. Na
visão de Autran (2013), o Estado insolvente e o modelo de financiamento desgastado
armaram a cama para o que se seguiria. Como escreve Autran (2013, p.114), o medo de
perder a Embrafilme, “paralisou a corporação cinematográfica tanto do ponto de vista
do pensamento industrial como da própria ação política institucional ou ainda em
relação ao diálogo com a sociedade”.
A pá de cal na empresa já cambaleante e parcialmente paralisada seria jogada
pelo presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992), que tomou posse em março de
1990. Alinhado à orientação liberal, antiestatizante e antirregulatória, que varreu a
América Latina no início dos anos 1990 (Kingstone, 2011), Collor, um mês após
assumir o cargo, promoveu, por meio da Lei nº 8.029, a dissolução ou privatização de
oito entidades da administração pública federal. Entre elas estavam a Embrafilme, o
Concine e a Fundação do Cinema Brasileiro (FCB). Ruía assim o tripé sobre o qual se
apoiava todo o cinema brasileiro:

Tudo o que a gente tinha erguido teve uma interrupção muito grave no
Collor. Mas diga-se: o Collor não destruiu a Embrafilme; ele enterrou
o moribundo. Quando o Collor assume, ele muda a agenda, e isso pode
até ter dado certo em outras áreas. O que foi grave é que ele acabou com
a Embrafilme e não substituiu por outra coisa. Isso é que é o grave. Ele
não só destruiu o que existia, como também impediu que outras coisas
fossem feitas nesse lugar. Porque nós tínhamos vários projetos nesse
sentido, de mudança. A discussão já estava correndo. Eu tinha escrito
um artigo na Folha21, o Gustavo [Dahl] já tinha falado sobre filmes que
não eram mais relevantes... (Diegues, em entrevista à autora, 2014).

21
Carlos Diegues. Chega de Choro. Folha de S.Paulo. São Paulo, 22 de junho de 1988,
Ilustrada, p. A44.


53

A fala de Cacá Diegues, além de demonstrar o quanto esse grupo se
considerava dono da empresa, ajuda a desfazer alguns mitos em torno de seu fim. Um
deles, repetido até hoje por Luiz Carlos Barreto, é o de que a MPA tinha colaborado
com US$ 5 milhões para a campanha de Collor com compromisso de que, se ele
ganhasse a eleição, extinguiria a Embrafilme. Barreto diz ainda que Harry Stone, lobista
da MPAA no Brasil por quatro décadas22, foi o cicerone de Collor em sua primeira
viagem a Nova York como presidente. O que ele não se diz mais é que ele próprio, no
fim dos anos 1980, criticava duramente a empresa.
Como se vê, a Embrafilme tinha se tornado economicamente inviável e
politicamente insustentável, mas seu desaparecimento abrupto foi realmente traumático
para o cinema brasileiro. A demolição da estrutura governamental e a extinção dos
instrumentos de regulação fizeram com que os dois primeiros anos da década de 1990
fossem catastróficos. Em 1992 e 1993, foram lançados, respectivamente, dois e quatro
longas-metragens. A partir daí a história foi sendo recontada pelo setor com um roteiro
baseado na figura do vilão. E a figura de Collor, que sofreu um processo de
impeachment e renunciou ao cargo em dezembro de 1992, caiu como uma luva para o
papel de antagonista. Com esse roteiro na ponta da língua, aqueles que mais criticavam
a Embrafilme passaram a bater às portas dos gabinetes de Brasília.
Após o colapso, o cinema viu uma primeira fresta institucional abrir-se em
dezembro de 1991, quando Sérgio Paulo Rouanet, secretário de Cultura de Fernando
Collor, instituiu o Programa Nacional de Cultura (Pronac), que inclui a Lei Rouanet
(Lei nº 8.313/91), baseada no mecenato empresarial 23 . O mecanismo previa o
investimento privado em cultura por meio da renúncia fiscal, ou seja, o empresário
poderia abater do imposto de renda devido aquilo que aplicasse em produções culturais.
O grande salto, contudo, seria dado um ano depois, quando já estava na presidência da
República o mineiro Itamar Franco (1992-1994), vice de Collor. O Ministro da Cultura

22
Harry Stone chegou ao Brasil no final da década de 1940 para instalar o escritório brasileiro da Motion
Picture Association of America. “Na tarefa incessante de preservar os privilégios do cinema americano
em nosso país, Harry Stone venceu Dutra, driblou Getúlio Vargas (fase nacionalista) e Café, enterrou
Juscelino, Jânio e Jango, deu um nó nos ditadores militares de 64 – Castello Branco, Costa e Silva, Médici,
Geisel e Figueiredo – e está no momento cozinhando o Sarney e muito provavelmente neutralizará, pelo
menos até o final do século, os Ulysses e Brizolas da vida” (Pontes, 1987, p. 76).
23
O Pronac contempla três mecanismos: o Fundo Nacional de Cultura (FNC), que deveria responder pelos
investimentos diretos do Estado, os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) e o incentivo
fiscal, que acabou se tornando sinônimo da Lei Rouanet, mas que é apenas uma de suas faces.


54

de Itamar, Antonio Houaiss, criou a Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual,
com o objetivo de liberar recursos para a produção de filmes através do Prêmio Resgate
do Cinema Brasileiro, que teve três edições entre 1993 e 1994 e contribuiu para a
finalização de cerca de 50 longas-metragens. Atendendo ao apelo de cineastas e
produtores, a nova secretaria passou a trabalhar também na elaboração do que viria a
ser a Lei do Audiovisual (Lei nº 8.695/93), voltada especificamente para o cinema. Há
quem diga, porém, que a lei foi escrita no escritório do advogado Bulhões Pedreira, do
Rio de Janeiro, tendo como principais mentores Luiz Carlos Barreto, Arnaldo Jabor e
Cacá Diegues.
Promulgada em 1993, durante o governo Itamar Franco (1992-2995), a lei
replicava o modelo de mecenato da Rouanet com duas benesses extras para as empresas:
a participação nos resultados financeiros do filme e o abatimento de 100% dos valores
investidos do imposto de renda. O investidor que usa o Art. 1º da Lei do Audiovisual,
pode ainda incluir o valor investido como despesa operacional, manobra que permite a
redução do imposto a pagar 24 . Encorajando a parceria com o empresariado, o
mecanismo tirou do Estado o poder decisório. Como anota Ikeda, o Estado passou a
atuar de maneira indireta no setor, sem intervir diretamente na cadeia econômica do
audiovisual:

(...) o Estado continuava sendo o indutor do processo de produção


cinematográfica, mas introduzia os agentes de mercado como parte
intrínseca desse modelo. (...) Apesar de os recursos, em última
instância, permanecerem oriundos do Estado, a decisão de investir e a
escolha dos projetos partiam de empresas do setor produtivo, cujo
negócio muitas vezes nem sequer estava relacionado à atividade
audiovisual (...) Esse modelo baseado em renúncia fiscal era, de um
lado, uma reposta às acusações de clientelismo na escolha dos projetos
financiados pela Embrafilme, mas, de outro, representava a busca de
uma aproximação com o setor privado (Ikeda, 2015, p. 15).

Ikeda (2015, p. 29) pontua ainda que o mecanismo, por sua especificidade,
“comprova a influência política do audiovisual em relação aos demais ramos da

24
Para o detalhamento do funcionamento da Lei do Audiovisual ver Fábio de Sá Cesnik. Guia do incentivo
à cultura. Barueri: Manole, 2002.


55

cultura”. Como se viu no resumo a respeito das políticas cinematográficas comumente
adotadas no mundo, o modelo da Lei do Audiovisual não encontra paralelo em outros
países25. Na visão de Carlos Augusto Calil, foi uma artimanha de um grupo que se
considerava (e era) dominante no mercado de cinema:

Depois do desastre Collor, eles se rearticulam da seguinte maneira:


vamos eliminar o cineminha. Como é que se faz isso? Eles pensaram:
as comissões e o ministério sempre vão estar sujeitos a pressões dos
cineastas marginais, dos estreantes, então vamos fazer uma lei na qual
quem decide é o empresário. Eles imaginavam que um rapaz como
aquele que fez Chatô, o Guilherme Fontes, nunca ia conseguir passar
nem pela secretária de uma empresa como a Volkswagen. Mas ele não
só passava como ganhava dinheiro. E isso foi o maior fracasso deles
todos. Por trás dessa lei, está uma ideologia muito clara de que só o
cinemão ia ganhar dinheiro. O cinemão se colocava como indústria,
como mercado, como um cinema que ia gerar renda. O que eles não
entenderam é que, para as empresas, não interessava fazer cinema; o
que interessava era o beneficio fiscal que, na prática, era de mais de
100%. Outra coisa é que, no Brasil, as relações pessoais mandam mais
do que as relações institucionais, então o cara conhece a sobrinha do tio
da vizinha do motorista de não sei quem e vai lá, entra na sala do
presidente da empresa e leva o dinheiro. Uma lei como essa não teria
passado em nenhum outro país do mundo (Calil, em entrevista à autora,
2016).

Apesar de todas as distorções, a Lei do Audiovisual originou o ciclo designado


como retomada (Nagib, 2003)26, que tem início em 1995 e traz, em sua gênese, a parceria

25
Na França, o incentivo fiscal se restringe ao Sofica (Les sociétés de financement de l'industrie
cinématographique et de l'audiovisuel), um fundo específico que responde por uma pequena parte do
financiamento ao cinema fracês. Aqui, a Lei do Audiovisual foi estruturante da política.
26
Lúcia Nagib, quando fala em retomada, trabalha com o período de 1994 a 1998. Há, no entanto, uma
série de divergências quanto ao tempo de duração desse ciclo. Para Oricchio (Luiz Zanin Oricchio. Cinema
de Novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003), a retomada se estende
até 2002, justamente o ano de implantação da Ancine. A revista Filme B – retomada 20 anos depois (2015,
p. 30) utiliza esse mesmo ano, 2002, mas com outro marco: o sucesso de Cidade de Deus. Fernando
Meirelles, diretor de Cidade de Deus, afirmou à revista que esse marco se deve ao fato de que, “dali em
diante, o público havia voltado a ver filmes brasileiros e a confiar neles” . A revista sugere ainda uma
terceira fase da retomada, a partir de 2008, quando é implementado o Fundo Setorial do Audiovisual, que
será explorado no capítulo 3 desta tese.


56

entre Estado e mercado. Naquele ano, 12 produções chegaram às telas. Dentre elas,
estavam o primeiro sucesso do período, Carlota Joaquina - princesa do Brazil 27 , O
quatrilho, que rendeu ao Brasil uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro28, e
Terra estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas, que reafirmava “a capacidade de
invenção de novas formas cinematográficas” (Avellar, 2015, p. 9). Depois de três anos de
agonia 29 , uma nova geração surgia e o setor começava a se reorganizar. Em 1992, a
participação do cinema brasileiro no mercado foi de menos de 1%; em 1999, o market
share tinha saltado para 8% (SAV, 2002).
Mas a onda otimista durou pouco. Apesar do aumento na produção, o novo
modelo, já no final da década de 1990, dava psinais de desgaste. Havia, de um lado,
filmes que não chegavam às telas e/ou eram acusados de superfaturamento ou fraude
financeira – O Guarani, de Norma Bengell, e Chatô, de Guilherme Fontes, tornaram-se
emblemáticos das suspeitas que rondavam a lei 30 – e, de outro, as dificuldades
enfrentadas para se captar recursos junto à iniciativa privada. Os produtores foram
entendendo que, aos patrocinadores, tão mais interessante era um projeto quanto melhor
sua marca pudesse ser exposta.
Se em um primeiro momento produtores e cineastas acreditaram que os 100%
de abatimento no Imposto de Renda (IR) seriam um argumento irresistível, logo foram
se dando conta de que seus produtos não tinham apelo assim tão grande junto aos
diretores de marketing. Eles perceberam, além disso, que haviam se tornado

27
Um dado que ajuda a dimensionar o fenômeno Carlota Joaquina – princesa do Brazil e o tamanho do
mercado para o filme brasileiro naquele momento é que o filme estreou em apenas quatro cinemas, no Rio
e em Niterói, porque não havia dinheiro para se fazer muitas cópias. Mas a demanda foi tão grande que
ele chegou a estar em cartaz em 33 salas, simultaneamente.
28
Antes de O quatrilho, apenas um filme brasileiro tinha sido indicado ao Oscar de Melhor Filme
Estrangeiro: O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte. Depois, apenas dois filmes repetiram
o feito: O que é isso, companheiro (1997), de Bruno Barreto (também produzido, a exemplo de O
quatrilho, por Luiz Carlos Barreto), e Central do Brasil (1998), de Walter Salles.

29 Em 1992, três filmes brasileiros chegaram às telas e apenas 36 mil pessoas foram vê-los; em 1993 foram

quatro as estreias; e em 1994, sete.



30
O “escândalo” envolvendo a superprodução Chatô – o rei do Brasil, dirigida por Guilherme Fontes,
então ator da tevê Globo, teve grande repercussão na mídia. O filme começou a captar recursos em 1995
e só seria lançado comercialmente em 2015. Em 1999, depois de já ter captado R$ 7 milhões, Fontes
interrompeu as filmagens por falta de recursos. No caso de O Guarani, da também atriz Norma Bengell,
a acusação foi de fraude: foram apresentadas notas falsas na prestação de contas do projeto. A partir desses
casos, o Ministério da Cultura instituiu novas regras (como o limite para captação de acordo com o
currículo das produtoras proponentes) procurando evitar a malversação de recursos públicos. Ambos os
casos estão relatados na dissertação de mestrado de Melina Marson (2006).


57

extremamente dependentes da situação macroeconômica e da saúde financeira das
empresas – pois o investimento dependia do imposto sobre lucro real. Ou seja, a
ausência estatal começava a cobrar seu preço. É nesse momento que produtores e
cineastas passam a se articular para clamar por um sistema que, de novo, envolvesse o
Estado de forma mais direta. Porque, na prática, o que a Lei do Audiovisual fazia era,
basicamente, autorizar a captação de recursos. Ela não regulava de fato o mercado.
Naquele momento, não havia sequer dados ou estatísticas oficiais sobre o setor.
Conforme ia ficando claro o esgotamento do modelo em vigor, ganhava força, entre os
articuladores políticos do cinema, a necessidade de se pedir de volta uma estrutura
estatal. A porta para isso se abriu quando Fernando Henrique Cardoso foi eleito
presidente da República e a roda das relações pessoais voltou a girar:

Quando FHC virou presidente, a gente viu ali que tinha uma
possibilidade concreta de mudança. O Gustavo [Dahl], por exemplo,
conhecia o Fernando pessoalmente, tinha alguma relação com ele,
enfim. Havia várias possibilidades de você dialogar com o Fernando,
de encontrar nele um certo interesse pelo cinema. Nessa época, eu e
Gustavo nos encontrávamos muito. A gente ia almoçar toda semana
num restaurante de regime que tem no Rio [Celeiro] com aquela ideia
de fazer alguma coisa. Eu me lembro que a expressão que a gente mais
usava era “repolitizar o cinema brasileiro”. Para quê? Não sei, mas
vamos repolitizar o cinema brasileiro, vamos fazer com que o cinema
brasileiro se reencontre, que as pessoas acreditem que isso existe.
Porque muita gente tinha desistido. Então a gente só pensava nisso
(Diegues, em entrevista à autora, 2014).

Das conversas no restaurante Celeiro – e de muitas outras de Dahl com


diferentes atores – brotou a ideia de se fazer um novo Congresso Brasileiro de Cinema.
Um Congresso que, na visão de Cacá e Dahl, funcionaria como um chamado à união de
um setor ainda trincado pelo fim da Embrafilme e que deveria, pela primeira vez, forçar
uma aproximação do cinema com a televisão.

1.4 Tevê aberta e cinema: dois mundos apartados


58

Enquanto na política cinematográfica o Brasil guarda similaridades com a
Europa, com subvenção e regulações, o cenário é bastante particular no caso da televisão.
Apesar de ser uma concessão pública, a tevê brasileira foi pouco regulada pelo Estado e
firmou-se, desde os anos 1950, como uma atividade eminentemente privada.
Baseando-se no modelo norte-americano, a televisão brasileira estabeleceu,
desde o início, uma relação direta com a publicidade (Ramos, 1995). Mas, ao contrário do
que acontecia nos Estados Unidos, onde a produção externa independente foi estimulada,
as produções locais, aqui, foram rapidamente incorporadas à estrutura interna dos próprios
canais; e, para completar a grade, os canais recorriam aos seriados e filmes norte-
americanos. Com isso, as portas das emissoras estiveram sempre fechadas para os
produtores independentes. Tratava-se, no fundo, de um sistema perfeitamente adequado
ao modelo de capitalismo dependente em vigor no Brasil:

(...) [a televisão] se tornou o principal veículo de comunicação em todo o


país para anunciar novos produtos, manter o interesse nos mais antigos,
lançar tendências, influenciar o gosto do público, etc. Ou seja, a televisão
ocupou o lugar de vetor fundamental no avanço do capitalismo para
integrar o país como mercado (Autran, 2013, p. 332)

Outro dado importante para a compreensão das pecularidades do cenário


televisivo brasileiro é que não são muitos os países no mundo nos quais um único grupo
de mídia concentra tanto “poder mercadológico e político” quanto aqui (Porto, 2012, p.
77). Discutir televisão no Brasil significa falar sobre a tevê Globo, emissora criada em
1965, quatro anos antes de a Embrafilme iniciar sua operação. Segundo Sinclair (1999) e
Lima (2001) foi, inclusive, com o auxílio da aliança com a Globo que o governo militar
colocou em prática a ideia de segurança nacional e desenvolvimento. Em contrapartida,
como defende Hamburger (2005), foi graças à infraestrutura de telecomunicações provida
pelo Estado que a emissora pôde expandir-se:

A indústria televisiva se consolidou em conexão com o Estado sob o


regime militar. O governo investiu em infraestrutura, controlou a
programação através da censura, da propaganda e de ‘políticas culturais’
e, apesar da interferência estatal, a televisão brasileira manteve sua
natureza comercial privada (Hamburger, 2005, p. 35).


59

Cabe sublinhar que a emissora é apenas uma parte das Organizações Globo, um
conglomerado que surgiu a partir do jornal O Globo, lançado em 1925, e que abarca outros
setores das indústrias culturais, como jornais, emissoras de rádio, televisão fechada,
mercado editorial, indústria fonográfica e cinema. Em 2005, a tevê Globo foi ranqueada
como o 26º maior conglomerado de mídia do mundo; as telenovelas realizadas pela
empresa são transmitidas em mais de 130 países, sendo comumente utilizadas, por
estudiosos, como um exemplo bem-sucedido do contrafluxo no comércio internacional de
bens culturais (Thussu, 2007).
Como pontua Ortiz (1988), a televisão, nos anos 1960, quando se deu a expansão
e especialização do mercado de bens culturais no país, não apenas passou a simbolizar o
moderno como possibilitou consolidação da indústria cultural no Brasil. O gigantismo e a
eficácia comercial da televisão contrastavam com o cinema. Enquanto, no início dos anos
1970, a televisão brasileira caminhava para sua “afirmação econômica plena” e
profissionalizava sua relação com a audiência por meio de pesquisas, o “cinema
continuava num passo marcado pela pouca vinculação com as pesquisas empíricas”
(Autran, 2013, p. 329-330). No momento em que a televisão buscava se firmar como
veículo popular, os realizadores ligados ao Cinema Novo davam de ombros para o veículo
e se colocavam como artífices de uma arte revolucionária e transformadora:

Esse discurso acompanhou a história do cinema e televisão no país até o


final dos anos 1990 (...) A perspectiva nacionalista-culturalista que
dominou o pensamento cinematográfico brasileiro afastou as tentativas de
união com a televisão, que foi acompanhada pelo pensamento empresarial
e massivo (Bahia, 2012, p. 81-83).

Enquanto, ao longo das décadas de 1960 e 1970, conforme descrito no tópico


1.1, países como França, Inglaterra e Alemanha faziam pactos destinados a estabelecer
uma relação entre cinema e tevê, os produtores independentes nacionais colocavam toda
a sua energia no cinema. Politicamente, ia assim se adensando o que Bahia (2012) chama
de disputa distintiva, que colocava o cinema no lugar do culto e do artístico e a televisão
no lugar do superficial e comercial. Pedro Butcher (2006) é outro que enxerga essa divisão
dicotômica entre uma suposta cultura de massa, representada pela televisão, e uma cultura
“artística”, representada pelo cinema. Não por acaso, o cinema, em termos de política de


60

Estado, sempre coube ao Ministério da Cultura enquanto a televisão ficava sob as asas do
Ministério das Comunicações.
Ao longo das décadas de 1960, 1970 e 1980, os dois meios caminharam por
trilhas paralelas, pouco olhando um para o outro. No fim dos anos 1980, quando o Estado
fomentador entreou em colapso e o cinema nacional passou a viver uma experiência
catastrófica, a televisão ampliava ainda mais seu espaço. As telenovelas viravam um
“paradigma do que significa sucesso comercial no contexto da dependência econômica no
Terceiro Mundo” (Stam, Vieira e Xavier, 1995, p. 390) e tornavam-se o epicentro da
cultura audiovisual brasileira.
Essa cultura mantinha apartados de seu território não só os profissionais que não
integravam os quadros das emissoras como os próprios filmes por eles produzidos.
Durante muitos anos, os longas-metragens nacionais foram produto raro nas grades
televisivas. Um estudo feito pela Ancine revelou que, no primeiro semestre de 2006, 87%
dos 1.270 longas-metragens exibidos pela televisão aberta eram norte-americanos; os
filmes nacionais representavam 4,3% desse total. Detalhe: apenas Globo e SBT haviam
colocado filmes nacionais em sua grade; sendo que o SBT, apenas um, O dia da caça
(1999), de Alberto Graça.
Diante do cenário de um cinema fragilizado e uma televisão cada vez mais forte,
o distanciamento entre os dois meios, antes naturalizado – e, em certa medida, até
ambicionado –, passou a ser visto, a partir de fins dos anos 1990, como uma problemática
a ser enfrentada.
Foi também nesse momento que a Globo deu vida à GloboFilmes31. A empresa,
que foi formalmente criada em 1997 e passou a atuar em 1998, participa dos filmes por
meio de apoios ou de coprodução32. Na primeira fase, o braço cinematográfico da Globo
trabalhou sempre no modelo de coprodução, com a Globo sendo sócia do projeto. Nesse
primeiro momento – que se estende até 2003 –, eram comuns os títulos derivados de seus

31
Para mais detalhes sobre a criação da GloboFilmes ver: Butcher (2006), Ikeda (2016) e Simis, Anita. A
Globo entra no Cinema. In: Brittos, Valério Cruz e Bolaño, César (Org.). Rede Globo: 40 anos de poder
e hegemonia. São Paulo: Paulus, 2005.

32 A GloboFilmes tem diferentes formas de participar das produções. A menor participação se dá no caso

dos apoios. Nesse caso, a empresa entra quando o filme já está concluído, e sem colocar dinheiro. O apoio
pode ser dar por meio de intervalos comerciais, cross media ou supervisão artística. Receberam apoio
filmes como Jogo Subterrâneo, de Roberto Gervitz, Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes,
e Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo. No caso das coproduções, modelo do qual Cidade de Deus é um
exemplo, o espaço publicitário cedido é maior e mais valioso e a empresa oferece, além disso, supervisão
artística. No modelo de coprodução, a Globo torna-se sócia, ganhando um percentual sobre direitos
patrimoniais. Para mais informações sobre o modelo ver Ikeda (2015) e Butcher (2006).


61

próprios produtos televisivos, que indicavam ter possibilidades comerciais, como Simão,
o fantasma trapalhão (1998) e Zoando na TV (1999), protagonizados por Renato Aragão
e Angélica, e O auto da compadecida (2000) e Caramuru, a invenção do Brasil (2000),
nascidos de minisséries.
A presença da empresa na produção cinematográfica despertou, inicialmente,
dois tipos de reação: empolgação (o produtor independente passou a enxergar a
possibilidade de se juntar à empresa) e temor (pelo risco de o monopólio dramatúrgico de
estender para o cinema). Tanto é assim que durante o III CBC a televisão foi objeto de
vários discursos e demandas e o relatório final do encontro de Porto Alegre menciona a
questão televisiva como uma das matrizes para a consolidação de uma política audiovisual
abrangente.
Na virada do século, tanto pela presença da Globo na paisagem da produção
cinematográfica quanto pela reconfiguração tecnológica – que foi aproximando os dois
meios –, a televisão ganhava um novo lugar nas ações políticas dos cineastas. A partir do
III CBC, como escreve Bahia (2012, p. 88), “a circularidade entre cinema e televisão,
ocultada da narrativa da história do audiovisual durante décadas, é adensada e torna-se
um valor incorporado, inclusive, pela política estatal”.


62

Capítulo 2

A volta do Estado: os limites de uma política regulatória no século XXI

Esta, aliás, é uma constante que se manteve ao longo do período de


implantação da agência: a descoberta de que tudo, sempre, era mais amplo e
complexo do que parecia quando no nível das intenções (Dahl, 2005, p. 22)

2.1 III CBC: unidos pela criação de um órgão estatal

Separando a segunda e a terceira edições dos congressos de cinema há uma


janela de 40 anos. O I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro aconteceu no Rio de
Janeiro, em 1952; o segundo foi realizado no ano seguinte, em São Paulo. Esses
encontros juntaram tanto pequenos produtores quanto gente ligada a um projeto de
cinema industrial. Tinham como propósito principal a formulação de uma política
cinematográfica que tivesse o Estado como instância reguladora e protecionista
(Amâncio, 2000). O III Congresso Brasileiro de Cinema, realizado entre 28 de junho e
1º de julho de 2000, em Porto Alegre, reuniu representantes de todos os matizes do setor
e entrou para a história como a primeira grande articulação do campo do cinema após o
fim da Embrafilme.
Desde o fim da Embrafilme, grupos de produtores e cineastas, sempre os mais
próximos dos governos, vinham se mexendo – tanto que conseguiram ver criadas a Lei
do Audiovisual e a distribuidora RioFilme, empresa pública do Rio de Janeiro33. Mas
foi na capital gaúcha que ganhou corpo o movimento que Gustavo Dahl batizaria de
repolitização do cinema brasileiro (Dahl, Autran, 2012) e que passaria a incluir atores
antes excluídos do campo.

33
A RioFilme, empresa vinculada à Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, foi criada em
1992, a partir de um decreto assinado por Marcello Alencar, então prefeito da cidade. A empresa nasceu
como distribuidora e foi depois encampando ações de estímulo a diferentes áreas do cinema, como
exibição e fomento. Entre 1992 e 1994 foi a única empresa a distribuir filmes brasileiros. Além disso, a
carteira de finalização de projetos, que marcou o início das atividades da empresa, permitiu a conclusão
de filmes interrompidos pela crise pós-Embrafilme, como A terceira margem do rio (1993), de Nelson
Pereira dos Santos. A empresa, ao nascer, incorporou quadros da Embrafilme e teve, como primeira
diretora presidente, a produtora Mariza Leão.


63

Durante o III CBC, os agentes se uniram para pedir algo que era do interesse
de todos: a criação de um órgão gestor da atividade cinematográfica. Em nome desse
bem maior, firmou-se um pacto em torno das convergências – era preciso, afinal de
contas, mostrar união e força. Além desse pedido central, a ata final do encontro
continha 69 proposições cuja intenção era propiciar o desenvolvimento do cinema
brasileiro.
Dada a janela de quase 50 anos que separa os dois primeiros congressos do
terceiro, é difícil trabalhar com a ideia de continuidade. A repetição do nome deve, ao
contrário, ser interpretada muito mais como uma homenagem ou como tentativa de
legitimação histórica. Há, ainda assim, algumas similaridades entre os três eventos. É
interessante notar, por exemplo, que os dois primeiros congressos foram realizados
justamente quando o sonho do cinema industrial, encampado pela iniciativa privada e
cujo principal símbolo é a companhia Vera Cruz, começava a dar sinais de fragilidade34.
Como descreve Paulo Emílio (2016, p. 65), à altura, “o vulto do acontecimento
impressionara os espíritos” e fez com que morresse a indiferença em relação ao cinema
brasileiro. Ou seja, havia uma mistura de fé e desalento.
O III CBC, por sua vez, sucede o esgotamento do modelo de incentivo fiscal,
que implica, necessariamente, na adesão do empresariado ao cinema, e vem a reboque
de uma onda de otimismo em relação à qualidade da produção (motivado pelas
conquistas de Central do Brasil e pelas indicações ao Oscar de O quatrilho e O que é
isso, companheiro?). Ou seja, os três Congressos aconteceram em momentos nos quais
o setor viu esperanças anteriores se desvanecerem e intuiu – ou viu – que o interesse
dos investidores privados naquilo que eles fazem não era tão grande quanto se supunha.
Apoiado em três pilares, o econômico, o técnico e o político-ideológico (Souza,
1981), o I Congresso trouxe à tona o embate que acompanharia o cinema brasileiro pelas

34
Antes mesmo da década de 1950, houve iniciativas privadas ligadas a um cinema industrial, como a
Cinédia, fundada em 1930, a Atlântida, de 1941. Mas a partir de 1949, houve um “surto” de tentativas
industrializantes capitaneadas pela iniciativa privada.. Entre 1949 e 1953, foram abertas, apenas em São
Paulo, cerca de duas dezenas de empresas ligadas à produção de filmes, sendo que apenas três delas, Vera
Cruz (1949), Maristela (1950) e Multifilmes (1952), vingaram de fato. Essas empresas colhiam inspiração
no sistema de estúdios hollywoodiano e estavam ligadas ao desejo da então ascendente burguesia paulista
de, por meio do mecenato, cercar-se de arte e de cultura. O cinema, portanto, passava a interessar não
apenas ao Estado, que via a atividade como uma potencial geradora de divisas para o país, mas a parcela
da sociedade. Para a história da Maristela ver Afrânio Mendes Catani. A sombra da outra: a
Cinematográfica Maristela e o cinema industrial paulista nos anos 50. São Paulo: Panorama do Saber,
2002. Para a saga da Vera Cruz que, entre 1949 e 1953, produziu 18 longas-metragens, ver Maria Rita
Galvão. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira-Embrafilme, 1981.


64

décadas seguintes. No encontro, cineastas ligados ao Partido Comunista Brasileiro
(PCB), como Nelson Pereira dos Santos e Alex Viany, saíram em defesa de um cinema
que, ao contrário do que fazia a Vera Cruz, inspirada em Hollywood, funcionasse como
contraponto à dominação estrangeira. O setor como um todo argumentava que o Estado
tinha um dever patriótico e moral para com a produção nacional (Johnson, 1987).
Os ecos do nacionalismo e o tratamento dos interesses estrangeiros como se
eles fossem a encarnação de espíritos do mal, voltariam a ser ouvidos durante o II
Congresso, mas ali uma nova demanda surgia: a criação de um Banco de Crédito
Cinematográfico. O evento de 1953 deu origem à Comissão Municipal de Cinema. A
Comissão, criada em 1955 pela secretaria de Educação, foi encarregada de preparar um
estudo detalhado que deveria servir de base a uma lei de estímulo ao cinema (Simis,
2008; Autran, 2013). Saiu dessa comissão o detalhado relatório Situação econômica e
financeira do cinema nacional. Esse mesmo caminho – realização de Congresso,
formação de grupo de estudos e rascunho de uma futura lei – se repetiria no século XXI.
Apesar de, no ano 2000, o cinema brasileiro estar recomposto da morte súbita
decorrente do fim da Embrafilme, as leis de incentivo fiscal se mostravam não só
insuficientes para o avanço da produção como incapazes de fazer com que os filmes
chegassem ao público. Cineastas e produtores de diversos matizes – tanto aqueles que
se consideravam grandes e engendraram a lei quanto os assumidamente pequenos –
começavam a se queixar do fato de terem se tornado reféns das decisões tomadas pelos
diretores de marketing. Era o “aparato gerencial” das empresas (Dória, 2003, p. 12),
afinal de contas, que detinha a palavra final sobre o patrocínio feito via renúncia fiscal.
Conscientes de que as leis de incentivo deixavam o cinema dependente dos ânimos
corporativos, os cineastas passaram a clamar por novas formas de apoio. Do fracasso
da Lei do Audiovisual nasciam as novas demandas e a certeza de que o Estado era o
parceiro do qual não se podia prescindir. O setor, mais uma vez, buscava espaço no
Estado para então tentar avançar no mercado.
Foi nesse contexto que algumas das figuras já envolvidas com a política
cinematográfica passaram a organizar o Congresso. O cineasta Augusto Sevá conta que
a semente para o III CBC foi plantada em 1998, em encontros que ele e Gustavo Dahl
organizaram pelo país. Dahl vinha de uma trajetória múltipla e é, até hoje, considerado
um dos grandes pensadores do cinema brasileiro. Dahl dirigiu filmes como o
cinemanovista O Bravo Guerreiro (1968), teorizou sobre cinema em jornais e revistas


65

especializadas e participou da gestão pública.35 Sevá, que havia dirigido dois longas-
metragens até aquele momento, participou da articulação que originou o primeiro
convênio do Estado de São Paulo com a Embrafilme e esteve ligado à Associação
Paulista de Cineastas (Apaci) desde a fundação. Na longa entrevista concedida para esta
pesquisa, Sevá conta que foi parar na política por necessidade. Seu depoimento joga luz
sobre as motivações de dezenas de outros realizadores que, para além de filmes,
dedicaram-se a fazer política:

Você vira diretor e aí como é que você faz? Você é obrigado a virar
produtor de você mesmo e, para conseguir fazer um filme, depende do
governo. Fui à Embrafilme pedir dinheiro para fazer meu primeiro
longa, e aí você começa a se habituar a esse contato com o poder
público. Três anos depois, eu já era do Conselho Consultivo da
Embrafilme. Rapidamente você entende que, além de ser produtor e
diretor, tem que trabalhar para que a atividade exista. Tem que ir no
governo, fazer propostas, brigar por programas de fomento. Tem que
saber falar a língua da administração pública, da articulação política
(Sevá, em entrevista à autora, 2014)

Foi essa proximidade com a política que fez com que Sevá fosse convidado
pelo produtor cultural Nilson Rodrigues, de Brasília, a organizar um encontro que
deveria acontecer no âmbito do Festival de Cinema de Brasília de 1998. Sevá, antes de
aceitar, ligou para Dahl. A primeira reação de Dahl foi de desânimo. Disse, segundo
Sevá, que queria sossego e preferia continuar cuidando de suas plantas do que se meter
de novo com o cinema brasileiro. Mas não demorou a mudar de ideia.
Começou assim a ser montado o evento Cinema brasileiro: Estado ou
mercado, que tinha, como mote principal, a discussão sobre o papel do Estado na
produção nacional. Naquele momento, não havia uma “casa” do cinema dentro do

35
Gustavo Dahl morreu em 2011; nesse momento, trabalhava no Centro Técnico do Audiovisual, ligado
ao MinC. Para conhecer sua trajetória como intelectual e como gestor público, ler: Gustavo Dahl e Arthur
Autran. Gustavo Dahl: ideário de uma trajetória no cinema brasileiro (Entrevista concedida por Gustavo
Dahl a Arthur Autran). Rebeca, São Paulo, Ano 1, Nº 1, 2012, pp. 268-280; André Piero Gatti. Embrafilme
e o cinema brasileiro. Cadernos de Pesquisa, Centro Cultural São Paulo, 2008; Gustavo Dahl. Cinema
Novo e estruturas econômicas tradicionais. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Vol. 1, nº 5 e
nº 6, mar. 1966; e Dossiê Gustavo Dahl. Filme Cultura, Rio de Janeiro, nº 55, 2011.


66

governo. Havia a Secretaria do Audiovisual, abrigada no Ministério da Cultura, mas não
uma “política sistêmica”, para usar a terminologia empregada por Dahl a fim de definir
o que deveria ser buscado. O que havia, então, eram as leis de incentivo, que garantiam
certa quantia de dinheiro para que alguns diretores fizessem seus filmes. No entanto,
não bastasse o volume mobilizado ser baixo36, nem todos os projetos – a depender de
sua natureza temática ou de suas opções de linguagem – se adequavam aos planos de
marketing e comunicação dos potenciais patrocinadores.
O papel da SAv era, basicamente, o de aprovar projetos de longa-metragem
que, uma vez habilitados pelo governo, tinham autorização para tentar captar recursos
no mercado. À altura, o decreto de cota de tela havia sido reduzido ao mínimo e, mesmo
assim, seu cumprimento não era fiscalizado. No ano 2000, foram lançados 22 filmes
brasileiros que, juntos, obtiveram um market share de 8,8%. Apesar de ser um cenário
menos desfavorável do que o de anos anteriores (em 1995, estrearam 13 filmes
brasileiros e a participação de mercado foi de 3,67%), o sistema em vigor deixava muita
gente de fora e, além disso, provinha apenas a realização dos filmes, e não sua existência
no mercado – como demonstra o encolhido market share.
Sevá conta que, conforme entravam em contato com seus pares, ele e Dahl iam
percebendo que a demanda por discussões era enorme. Em comum, havia a fadiga em
relação às leis em vigor e a vontade de propor novos caminhos. O processo foi ganhando
corpo e, no fim, durante o Festival de Brasília, o próprio ministro da Cultura, Francisco
Weffort, apareceu para acompanhar as mesas. “No terceiro dia, no encerramento, o
governo percebeu que havia uma insatisfação muito grande e uma demanda por alguma
ação governamental”, pontua Sevá.
Já em 1999 foi instituída, no Senado Federal, a Comissão Especial do Cinema,
presidida pelo senador Francelino Pereira (PFL-MG). No primeiro discurso na comissão
(Pereira, 1999), o senador usou as conquistas internacionais do filme Central do Brasil
(1988),37de Walter Salles, para falar sobre o quanto a valorização da cultura e do cinema

36
Foram captados, via Art. 1º da Lei do Audiovisual, em 1995, R$ 28 milhões. Nos dois anos seguintes,
o volume cresceu para R$ 75 milhões (1996) e R$ 114 milhões (1997). O salto inicial fez com que os
produtores acreditassem que o interesse dos patrocinadores cresceria de forma exponencial. Mas não foi
o que aconteceu. Em 1998, a captação já havia caído para R$ 73 milhões e, no ano 2000, quando aconteceu
o III CBC, o Art. 1º mobilizou R$ 51 milhões (Fontes: Filme B e OCA)
37
O filme ganhou o Urso de Ouro de melhor filme e Urso de Prata de melhor atriz, em Berlim, além de
prêmios como o da Academia Britânica de Artes e Televisão (Bafta), o César francês e o Globo de Ouro,
além de uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Na visão de Avellar (2015, p. 11), “foi
principalmente o prestígio [de Central do Brasil] conquistado dentro de fora do país, nos festivais e no


67

eram importantes para o país. Dahl e Nelson Pereira dos Santos estavam presentes à
sessão.
Em meio à onda que se formava, Sevá e Dahl passaram a ser convidados para
realizar encontros em diferentes cidades brasileiras que sediavam festivais de cinema.
Eles organizaram seminários nos festivais do Ceará, de Curitiba e do Rio de Janeiro,
entre outros e, conforme os debates aconteciam, “a chama ia se alastrando” (Sevá, em
entrevista à autora, 2014). No entanto, dois anos se passaram até que alguma prefeitura
aceitasse sediar algo maior como um Congresso. Como o evento de Brasília questionava
o governo FHC e o Distrito Federal estava então sob o comando de Cristovam Buarque,
do PT, muitos achavam que o cinema estava sendo usado para atacar a administração
do PSDV. No fim, a cidade que topou receber os cineastas foi Porto Alegre, então
administrada por Olívio Dutra, também do PT – o Rio Grande do Sul era, na época, o
mais importante Estado administrado pelo partido38.
O III CBC reuniu mais de 50 entidades e foi definido, na fala de vários dos
entrevistados, como um momento mágico do cinema brasileiro, no qual todos se
mostravam sensatos, serenos e solidários – as três palavras foram ouvidas repetidas
vezes nas entrevistas concedidas para esta pesquisa. Durante o Congresso, parecia
haver, entre os interlocutores, um esforço racional para que o discurso soasse o menos
dissonante possível. O mais importante, naquele momento, era apresentar um conjunto
de justificativas capazes de convencer governo e sociedade de era preciso criar um órgão
estatal dedicado ao cinema. Em entrevista concedida a Arthur Autran, Dahl diz que
todos os que se articularam em torno do CBC tinham a percepção de que não podiam
se apresentar divididos diante do governo. Fazia-se necessária, naquele momento, uma
“grande composição política” (Dahl e Autran, 2012).
O cineasta Cacá Diegues, conhecido pela incansável disposição para fazer
política, comprar brigas e articular alianças no cinema nacional, enfatiza que a ideia,
naquele momento, era a de que tinha de ir todo mundo, sem “discriminação”:

mercado de salas de exibição, no vídeo doméstico e na televisão, que contribuiu de modo decisivo para
chamar a atenção para o cinema da Retomada e para, direta ou indiretamente, gerar alianças e mecanismos
de produção para novos diretores”. Cabe lembrar que, no ano anterior, O que é isso, companheiro? havia
sido indicado ao Oscar.
38
Em 2001, um ano após a realização do III CBC, a cidade de Porto Alegre sediaria aquela que foi
considerada uma grande iniciativa anticapitalista: o Fórum Social Mundial.


68

Isso significava todo tipo de produtor, todo tipo de diretor e
distribuidores, exibidores, todo mundo junto. Pode ter conflito, pode ter
confronto, mas você recria uma energia que estava perdida. E foi isso
que aconteceu: o Congresso foi um sucesso. A gente chamou todo
mundo. Eu fui atrás do [exibidor] Severiano Ribeiro, a gente fez o
diabo, e todo mundo apoiou – Roberto [Farias], Gustavo [Dahl], [Luiz
Carlos] Barreto. Essa velha guarda entendeu que aquilo era necessário.
Os garotos também, o pessoal da USP toda. É aí que surge essa nova
geração. Porque eles perceberam que aquilo era um renascimento, um
ressurgimento. Foi a primeira vez, em anos, que as pessoas entenderam
que, se não se unissem, desapareceriam. Baixou um espírito de
colaboração mútua. Encontramos ali um jeito solidário de retomar o
cinema brasileiro. Os resultados do Congresso foram um milagre
(Diegues, em entrevista à autora, 2014).

Cacá representava, então, a fração mais influente do cinema carioca, ligada a


um projeto industrialista. Mas sua interpretação daquele momento é muito semelhante,
por exemplo, à de Assunção Hernandez, proprietária de uma pequena empresa
produtora de São Paulo, à época casada com o cineasta João Batista de Andrade e dona
de um discurso anti-imperialista. A produtora, que se tornaria presidente do CBC,
admite (em entrevista à autora, 2014) que imaginava que o encontro seria um “grande
quebra pau”, “que não ia dar em nada” e que se surpreendeu ao ver que os consensos
foram se formando.
As hipóteses para esse comportamento são duas. A mais plausível é a de que
as lutas internas, tão características do cinema brasileiro, foram caladas em nome de
algo considerado maior. Não se pode desconsiderar, porém, a possibilidade de que
alguns agentes tenham evitado o confronto como uma estratégia de dominação, como
forma de se manterem no controle no interior do campo. Ou seja, que Cacá Diegues
sabia que, naquele momento, precisava do apoio dos jovens realizadores e, portanto, fez
a ali a defesa do cinema “cultural”.
Recorrendo a uma ideia bourdieusiana, é possível dizer que se tratou de um
momento no qual agentes que ocupavam diferentes posições no campo suspenderam as
lutas; a trajetória coletiva sobrepôs-se, ali, às trajetórias individuais. No caso do cinema
brasileiro, essa visão pode ser traduzida pela “unidade da classe”, que nunca existe de
fato, mas que é sempre trazida a público quando é preciso mobilizar os governos. Vem


69

daí a frase relembrada por Ipojuca Pontes no livro Cinema cativo (Pontes, 1987, p. 18):
“Quando dois cineastas se encontram, se forma um partido”.
Foi durante o III CBC que se tornaram nacionalmente conhecidas as lideranças
jovens que, ao longo dos anos 2000, teriam influência sobre as politicas para o setor.
Dois dos nomes que despontaram naquele momento foram os de Leopoldo Nunes e
Manoel Rangel, que eram, respectivamente, presidente e diretor ABD. Egressos da
faculdade de cinema da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP), Leopoldo
e Manoel eram amigos. Além do discurso esquerdista, eles tinham em comum a boa
oratória e a disposição para os embates. Inclusive, na contramão da memória coletiva
que guardou do evento a imagem da união – algo que existiu de fato, mas com nuances
–, ambos tiveram ali enfrentamentos com Gustavo Dahl, antecipando a luta geracional
que marcaria os anos que se seguiram.
Parte dos atores que começaram a conquistar espaço nos anos 2000 veio das
escolas de cinema e parte teve origem no cineclubismo (que surgiu nos anos 1960 e foi
muito marcante até o fim da década de 1980) ou no movimento curta-metragista. O
fortalecimento desse movimento se teve origem na Lei do Curta, de 198739, que previa
a exibição de curtas nacionais antes dos longas-metragens estrangeiros. Para fazê-la
valer, muitos jovens cineastas se viram na obrigação de engajar-se politicamente. Foi
esse o caso de Toni Venturi, que foi militante do curta-metragem e do PT. Venturi, que
no único longa-metragem que havia realizado até então tinha abordado a política (O
velho – a história de Luiz Carlos Prestes, de 1997), recorre primeiramente à palavra
utopia para definir o que presenciara no III CBC. No entanto, conforme relembra
aqueles dias, ele vai questionando a validade do próprio discurso. Seria aquela união
verdadeira ou havia muito de jogo de cena ali?

A gente viveu um namoro utópico, com todo mundo junto, de mãos


dadas, se beijando, chorando. Eu nem era tão jovem, já estava com 40
anos, era um outsider, e acreditei muito naquilo. Acho que os cineastas
são meio utópicos. A gente trabalha muito em cima da pulsão, do amor
ao cinema; a gente acreditou mesmo que poderia caminhar juntos. Eu

39
Criada por meio da Resolução 18 do Concine, de 1977, a Lei do Curta exigia que a exibição de longas-
metragens estrangeiros fosse antecedida de curtas nacionais. A Resolução, no entanto, foi marcada por
uma série de ações na Justiça e deu origem a várias novas resoluções ao longo dos anos. A Resolução de
1987 determinou a volta do curta às telas e instituiu um novo sistema de cobrança, dando origem à
chamada “primavera do curta”.


70

nem sabia o que era mercado. O que eu gostaria de saber é o que os
homens que já eram de mercado estavam pensando naquele momento.
A gente acreditou. Mas agora penso: e eles? Será que nos enganaram?
Será que eles iam lá tomar aquele uisquinho blue label e falavam “os
caras são uns idiotas mesmos”. A gente, à época, achou que poderia ter
avançado ainda mais, mas hoje sabemos que esse enfrentamento com a
televisão ou as majors é muito mais complexo (Venturi, em entrevista
à autora, 2014).

Venturi se refere a dois temas que permearam os debates do Congresso: os


caminhos para se minimizar a desigualdade na competição entre os filmes nacionais
independentes e aqueles distribuídos pelas subsidiárias hollywoodianas e as
possibilidades de parceria entre cinema e televisão. Uma diferença marcante entre o III
CBC e os dois congressos que o antecederam é que, ao contrário do que acontecia antes,
quando os representantes dos “interesses externos” eram excluídos das discussões
(Autran, 2013, p. 51), na organização do III CBC achou-se por bem chamar as majors
para se sentarem à mesa. Os estúdios mandaram um representante cuja função era
acompanhar de perto o que estava acontecendo e ficar a postos para defender os
interesses das companhias.
Esse representante era Steve Solot, que trabalhava para a MPAA desde 1995.
Nascido no Arizona, o executivo, formado em economia pela Universidade de Boston,
chegou ao Brasil em 1980, como funcionário do Bank Boston. Cinco anos depois, foi
levado para o escritório da MPAA no Rio de Janeiro. Apesar de representar o “inimigo”,
Solot40, ao falar sobre si, diz que sempre teve uma relação próxima com produtores
brasileiros. Alguns, conta, chegavam a ligar para pedir uma ajudinha no processo de
retirada de visto para os EUA:

40
Em 2005, a MPAA abria, pela primeira vez, um escritório em São Paulo, cidade-sede dos escritórios
regionais de estúdios como Fox, Warner e Sony. Admitindo então que as coproduções tinham se tornado
um negócio “lucrativo”, Solot dizia, inclusive, que estava tentando importar o modelo brasileiro para o
México. “Qual a graça de vir para o Brasil para produzir filmes com cara americana? A diversidade
cultural é uma das novas diretrizes da MPAA. Temos de procurar, fora dos Estados Unidos, filmes locais
para poder mesclar. É uma necessidade comercial (...) Existe uma nova geração de produtores e diretores
mais interessada em construir uma nova realidade de produção, pensando em business. Para eles, nós
somos importantes (...) Já fui hostilizado... Há 20 anos, eu era visto como um inimigo. Hoje, para muitas
coisas, somos considerados um aliado importante" (Solot, apud Ana Paula Sousa. Hollywood é aqui.
Revista CartaCapital, São Paulo, 9 de fevereiro de 2005, pp. 45).


71

Publicamente, era complicado aparecer em qualquer fórum coletivo
porque as pessoas têm um comportamento quando estão em grupo e
outro quando estão sozinhas. Eu fiquei muito envolvido com cinema
nacional, não só aqui, como no México, Colômbia, Argentina, porque
eu conheço as pessoas e eu as ajudo pessoalmente com os projetos.
Então, individualmente, eu tenho uma relação muito boa com os
produtores, mesmo os mais radicais. Eles me pedem coisas, mas eles
sabem que estou cumprindo uma função numa entidade pela qual fui
contratado. Mas, institucionalmente, eu sempre tive um papel claro
(Solot, em entrevista à autora, 2014).

O executivo diz que, quando surgiu o III CBC, a MPA não acreditava que
pudesse sair algo concreto dali.:

Desde o nascimento do [III] CBC, a MPA, sabendo que as raízes eram


de esquerda, acompanhava oficialmente seu desenvolvimento. Era,
basicamente, uma espécie de alerta no sentido de uma possível
tendência protecionista no mercado brasileiro. Ao mesmo tempo, a
participação do Gustavo [Dahl] foi interpretada como sendo totalmente
positiva porque ele, desde a época do Concine, era visto como uma
pessoa equilibrada. Eu acompanhava esse movimento do CBC mais
para ver uma coisa que ia morrer. Mas não morreu (Solot, em entrevista
à autora, 2014).

Da parte da televisão aberta, mais especificamente da Rede Globo, a postura


foi manter um estratégico distanciamento. Evandro Guimarães, diretor de relações
institucionais da emissora e futuro integrante do grupo executivo que se formou após o
Congresso, não foi ao III CBC. Mas o cineasta Roberto Farias, que carregava no
currículo sucessos de bilheteria como O assalto ao trem pagador (1962), que havia
presidido a Embrafilme (1974-1979)41 e que era funcionário da emissora, compareceu

41
Da mesma forma que vieram da Vera Cruz os quadros (Cavalheiro Lima e Jacques Deheinzelin) que
foram capazes de fornecer as bases conceituais e analíticas que marcariam as iniciativas governamentais
que sucederam a derrocada da empresa, vieram da Embrafilme os quadros que dominariam o debate
cinema brasileiro no início dos anos 2000 (Roberto Farias, Gustavo Dahl, Rodrigo Saturnino Braga, Jorge
Peregrino, Marco Aurélio Marcondes).


72

ao encontro. Compareceu e anteviu que se tentava fazer o que ele chama de cerco à
televisão:

Nós estávamos muito acostumados à força do cinema, e nada do que se


pedia ali era diferente das reivindicações históricas. O que se pedia era um
compêndio do que se pedia desde a época do Adhemar Gonzaga [fundador
dos estúdios Cinédia, na década de 1930]. A novidade eram as
reivindicações em relação à televisão. Foi, inclusive, por causa dessas
reivindicações que eu, apesar de ter sido convidado para ser o presidente
do CBC, não aceitei. Conhecendo os meus colegas e amigos cineastas,
achei que haveria uma incompatibilidade entre eu estar na Globo e ao
mesmo estar lutando contra a Globo. Porque muita gente acha que a Globo
é o grande inimigo do cinema brasileiro. Eu disse que não podia aceitar e
sugeri que o Gustavo [Dahl] fosse o presidente (Farias, em entrevista à
autora, 2014).

As falas de Solot e Farias abrigam, nas entrelinhas, aquilo que o cinema


brasileiro como um todo compreenderia nos anos que se seguiram: as brigas com as
majors e a tevê Globo eram mais duras do que, no entusiasmo do III CBC, parte do
setor previu. E se, apesar disso, a sensação dominante era a de que se havia chegado a
consensos é porque havia, de fato, algo objetivo a unir todos os atores: a criação de um
órgão estatal. Em nome disso, as questões relativas à televisão, às medidas
protecionistas e ao tipo de apoio do Estado foram contemporizadas ou, como se diz
popularmente, jogadas para debaixo do tapete.
O consenso em torno da necessidade de se erguer uma estrutura estatal
possibilitou, no III CBC, o estabelecimento de um “novo tipo de pacto entre os diversos
agentes do mercado, buscando a inserção do cinema e do audiovisual brasileiros a [sic]
uma nova conjuntura global” (Reis e Silva, 2012, p. 12). Esse pacto, como se verá
adiante, é desfeito assim que começa a ser trabalhada a regulamentação de aspectos
específicos da atividade.
Um dado importante para que se compreenda a política que estava em gestação
é que, apesar de pedir a volta de uma estrutura estatal, o setor, durante o congresso, não
trabalhou com a possibilidade de se eliminar o uso dos incentivos fiscais. Solicitou-se,
ao contrário, a prorrogação e a ampliação dos recursos da Lei do Audiovisual, que
deveriam se tornar parte de um sistema mais amplo de apoio. Como aponta Ikeda (2015,


73

p. 37-38), o III CBC não propôs uma “crítica sistêmica ao modelo indireto de
participação do Estado”. Propôs, contudo, a criação de novas formas de financiamento
e propiciou a reorganização política do setor.
Um dos pilares dessa reorganização foi a transformação do CBC numa
entidade permanente, que deveria reunir-se com regularidade e que passaria a dar voz
ao setor. Ao fim do encontro de Porto Alegre, Gustavo Dahl foi eleito o presidente da
entidade42. Apesar de haver uma entidade que, oficialmente, passava a representar o
setor, o presidente Fernando Henrique Cardoso, ao ver a repercussão das demandas do
congresso na mídia, chamou para uma conversa não o CBC ou as novas lideranças
surgidas no Congresso, mas, novamente, Cacá e Barreto.
Cacá, realizador que, até então, tinha dirigido 14 longas-metragens era, como
se demonstrou no capítulo anterior, um histórico interlocutor político do cinema
nacional. Filho do advogado, sociólogo e folclorista Miguel Diegues, Cacá, alagoano
de nascença, cresceu envolto no meio cultural. Foi casado com Nara Leão e era amigo
de Glauber Rocha.
Assim como Cacá, Barreto é egresso do Cinema Novo e, já na década de 1960,
fazia política cinematográfica. Apesar de ter começado a carreira como fotógrafo – foi
o responsável pela fotografia de Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, e de
Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha –, Barreto logo se tornou produtor
(inclusive, de Bye Bye Brasil, de Cacá) e, especialmente, articulador. Sua proximidade
com o poder sempre foi notória. Se, nos anos 1970, Barreto elogiava publicamente
Ernesto Geisel e Jarbas Passarinho, nos anos 2000, durante o mandato do presidente
Lula, produziria a biografia Lula, o filho do Brasil (2009), dirigido por seu filho Fábio
Barreto. 43
O fácil acesso a variados governantes é, para o produtor, motivo de orgulho.
No depoimento dado para esta pesquisa, ele desfiou uma lista de políticos com os quais
tinha ou tem contato e fez questão de assinalar seu papel na estruturação das leis e ações
voltadas ao cinema. Disse que Sarney era seu amigo de muitos anos e que o chamou


43
Em janeiro de 2018, a produção foi citada nas investigações da operação Lava Jato. Uma conversa
telefônica entre executivos da Odebrecht e representantes do governo Lula indicaria, segundo os
investigadores, que a empresa tinha, por meio do governo, dado recursos ilegais para a realização do
longa-metragem.


74

para discutir a lei de cultura que estava gestando44. “Ele [Sarney] queria saber da parte
de cinema, o que era bom e o que não era. Aí eu reuni o Cacá, o Zelito [Viana], o Nelson
[Pereira] e fomos lá”, relata. Até mesmo com Fernando Collor, que não queria conversa
com o setor, diz ter trocado alguns telexes. Também afirma ter sido ele o responsável
por entregar ao sucessor de Collor, o presidente Itamar Franco, o documento que daria
origem à Lei do Audiovisual. Os dois primeiros filmes a captarem recursos pelo
mecanismo foram O Quatrilho (1995) e O que é isso companheiro? (1997), ambos
produzidos por Barreto e dirigidos por seus filhos, Bruno e Fábio, respectivamente.
Esses dois longas-metragens têm os certificados de investimento número 1 e número 2
da Lei do Audiovisual. O primeiro investidor da lei foi, segundo Barreto, o banco
Bradesco, que comprou o título de investimento de O Quatrilho.
Não é de surpreender, portanto, que, assim como os governantes anteriores,
Fernando Henrique Cardoso, ao assumir a presidência, tenha chamado Barreto para
conversar:

Ele estava naquele palácio [Palácio Rio Negro]. Era uma tradição dos
tempos de Getúlio, que o presidente da República viesse passar o verão
em Petrópolis. O Fernando Henrique fez questão de cumprir esse ritual
e foi para Petrópolis. Lá nós tivemos uma reunião com ele, em que ele
disse que iria melhorar a lei do cinema (Barreto, em entrevista à autora,
2014).

Outros encontros se seguiram. De acordo com Barreto, iam a essas reuniões


ele, Nelson, Cacá – “a turma do Cinema Novo, né?” –, a produtora Paula Lavigne,
mulher de Caetano Veloso, e a atriz Norma Bengell, que havia participado das
mobilizações pela aprovação da Lei do Audiovisual. Nessas conversas, começou a ser
discutido um novo modelo de apoio ao cinema. Barreto afirma que foi Davi
Zylbersztajn, genro de Fernando Henrique e presidente da Agência Nacional de Petróleo
(ANP), o primeiro a sugerir o modelo de agência. Mas o grupo de Barreto não se
entusiasmou:

44
A Lei nº 7505, de 2 de julho de 1986, conhecida como Lei Sarney, foi a primeira lei brasileira de
incentivo fiscal voltada às atividades artísticas; em 1990, a lei foi suspensa por Fernando Collor de Mello.


75

O Gustavo, eu, o Glauber – não, o Glauber já tinha morrido –, o Nelson,
o Cacá, o que a gente pensava era fazer um organismo vinculado à
Presidência da República, diretamente vinculado, por se tratar de uma
questão estratégica. Aí essa coisa ficou no ar, e um dia o Davi
[Zylbersztajn] disse “O presidente está me cobrando de vocês uma
solução, um modelo”. Mas aí tinha acabado de acontecer o Congresso
Brasileiro de Cinema em Porto Alegre (...) Passados dez dias do
Congresso, Fernando Henrique convocou uma reunião à qual
deveríamos ir eu e Cacá. E aí o Cacá, um bom político, falou: ‘Escuta,
vamos convidar o Gustavo [Dahl] para ir junto porque ele acabou de
presidir o Congresso, e assim também não acham que é uma coisa
pessoal, só eu e você’. Então fomos nós três. Era uma reunião de manhã;
10 horas da manhã, no Palácio da Alvorada (Barrreto, em entrevista à
autora, 2012).

O presidente chamou para a reunião o ministro da Cultura, Francisco Weffort,


e o secretário do audiovisual, José Álvaro Moisés. Pedro Parente, ministro-chefe da
Casa Civil, ficou numa sala ao lado e foi chamado depois da conversa ter avançado.
FHC defendia a criação de um organismo que transcendesse o Ministério da Cultura;
Weffort se opunha, defendendo que o lugar do cinema era o MinC. “Aí o Pedro Parente
entrou na sala e o Fernando Henrique disse que era para ele preparar um decreto, criando
o Grupo de Estudos da Indústria Cinematográfica [sic], e para a gente combinar que
ministérios iam participar”, relata Barreto (em entrevista à autora, 2014).
Nasceu assim o Grupo Executivo para o Desenvolvimento da Indústria
Cinematográfica. Criado por decreto presidencial em setembro de 2000, o Gedic tinha
como objetivo principal “articular, coordenar e supervisionar as ações para o
desenvolvimento do projeto estratégico para a indústria do cinema no Brasil” (Gedic,
2001).
O Gedic repetia, até na similaridade dos nomes, experiências de décadas
anteriores. Em 1958, sob a presidência de Juscelino Kubistchek (1956-1961), foi criado
o Grupo de Estudos Indústria Cinematográfica (Geic), cuja missão era a proposição de
medidas destinadas a incentivar e proteger o cinema nacional. Sua capacidade de
atuação era, no entanto, limitada pelo fato de não possuir poderes executivos (Johnson,
1987).
Já em 1961, sob o governo Jânio Quadros, foi criado o Grupo Executivo da


76

Indústria Cinematográfica (Geicine). Jânio dizia então que o impressionava a
“formidável ausência federal no setor do cinema brasileiro (Gomes, 2016, p. 98) e
atacava o privilégio que o filme estrangeiro tinha no território nacional. Formado por
ex-integrantes das comissões municipal, estadual e federal de cinema, o Geicine,
presidido por Flávio Tambellini (1925-1976), foi o primeiro de muitos grupos formados
para estudar os problemas da indústria cinematográfica a ter um poder executivo.
Inicialmente ligado à presidência da República, o grupo foi depois transferido para o
Ministério da Indústria e do Comércio. Assim como o Gedic, tinha composição
interministerial.
Seu poder, conforme assinala Johnson (1987, p. 87), derivava “não tanto de
atributos legais, mas de sua grande articulação junto a ministros-chave e agências
governamentais”. O objetivo primordial do Geicine era equilibrar as condições de
competição entre o cinema nacional e o estrangeiro. Vivia-se então o
desenvolvimentismo e a ideia de substituição de importações era estendida para o
cinema (Simis, 2008); o grupo, segundo a autora, foi inspirado na estrutura de outros
Grupos Executivos, como o da indústria automobilística ou da construção naval. O
Geicine deu origem, em 1966, ao Instituto Nacional de Cinema (INC), uma autarquia
com função legislativa, de fomento, incentivo e fiscalização (Amâncio, 2007). O Gedic,
por sua vez, originou a Agência Nacional de Cinema (Ancine).
Os trabalhos do Gedic tiveram início em dezembro de 2000, cinco meses após
a realização do III CBC. O grupo era composto por quatro ministros (da Fazenda, do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio, das Comunicações e da Cultura), pelo
secretário-geral da presidência da República e por representantes de todos os elos da
cadeia cinematográfica e também da televisão. Eram eles: Luiz Carlos Barreto
(produção), Cacá Diegues (direção), Gustavo Dahl (pesquisa), Rodrigo Saturnino Braga
(distribuição), Luiz Severiano Ribeiro Neto (exibição) e Evandro Guimarães
(televisão). Braga, ex-funcionário da Embrafilme, era o diretor-geral da Columbia
Pictures. Ribeiro Neto é dono do maior grupo exibidor nacional.
O grupo deveria se reunir em Brasília uma vez por semana. No primeiro
encontro, havia sete ministros presentes – entre eles, Pimenta da Veiga, ministro da
Comunicações, e Pedro Malan, ministro da Fazenda. No segundo encontro, como relata
Barreto, metade deles ausentou-se. Na terceira, só havia dois ministros – algo bastante
revelador da importância que as demais instâncias do governo dão ao cinema e, ao
mesmo tempo, do quanto o cinema quer se colocar como assunto estratégico:


77

Até tinha lá representantes dos ministros, mas era o terceiro escalão. Aí


eu fiz uma brincadeira e disse: ‘Olha, se essa reunião já está assim, na
próxima vai vir o porteiro’. O Pedro Parente falou para não exagerar,
mas eu disse: ‘Vamos fazer o seguinte? Nós temos 120 dias para
apresentar isso para o presidente. Dá metade desses dias para que o
grupo profissional que está aqui faça o projeto. Fazemos e trazemos
aqui, para apresentar para os ministros reunidos’. Eles concordaram.
Fizemos o projeto, com a formação da Agência de Cinema, do Conselho
Superior de Cinema e da Secretaria do Audiovisual. Era um tripé, mais
ou menos uma reprodução do que dava certo lá atrás (Barreto, em
entrevista à autora, 2014).

A referência de Barreto ao que “dava certo lá atrás” diz respeito ao tripé


formado pela Embrafilme, pelo Concine e pela Fundação do Cinema Brasileiro.
Em termos de propostas e preocupações, o Gedic guarda semelhanças ainda
com o I Congresso da Indústria Cinematográfica Brasileira, realizado em 1972 e do qual
Barreto foi um dos líderes. O produtor, deste então, pedia a inclusão do cinema
brasileiro no desenvolvimento econômico do país. Mas enquanto o Congresso da
Indústria reiterava a dicotomia distribuidores de filmes estrangeiros/exibidores de um
lado e produtores brasileiros de outro (Ramos, 1983), no Gedic ambos se sentavam lado
a lado e buscavam acordos. Tanto que Cacá e Barreto tiveram em Saturnino Braga um
parceiro importante. A Columbia foi coprodutora dos filmes que ambos fizeram desde
o início da retomada – Tieta (1996) e Deus É Brasileiro (2003), de Cacá Diegues, e O
quatrilho, O que é isso companheiro? e Bossa Nova (2000), produzidos por Barreto e
dirigidos por seus filhos.
Após seis meses de trabalho, o Gedic apresentou o sumário executivo do Pré-
projeto de Planejamento Estratégico (Gedic, 2001), propondo a criação de um órgão
gestor de normatização, fiscalização e controle. O relator do texto foi Dahl. Ali, ele
desenvolvia seu axioma de que mercado é cultura, que se tornara conhecido nos anos
1970 e enfatizava a importância de se pensar a cadeia econômica do cinema (Dahl,
2001). Isso significava levar em conta não apenas o filme, mas as formas pelas quais
ele é distribuído e exibido.
A meta, como outras vezes na história, era a auto sustentabilidade; o combate,
era contra a hegemonia do cinema norte-americano. O pré-projeto sugeria alterações na


78

Lei do Audiovisual, ampliava o conceito de produção independente, previa a taxação
sobre novas tecnologias de distribuição e transmissão de conteúdo (tevê a cabo, satélite,
DVD, Internet) e sobre a venda de aparelhos eletroeletrônicos e estabelecia uma taxa de
10% sobre as remessas de lucro para o exterior provenientes de exploração de obras
audiovisuais no Brasil. O texto frisava a necessidade de se pensar o cinema brasileiro
dentro do contexto da convergência tecnológica.45
Além da incorporação de outros elos do mercado (como os fabricantes de
eletroeletrônicos) à política cinematográfica, o que também era totalmente novo no
projeto era a tentativa de se pensar uma efetiva relação entre cinema e televisão. O Gedic
propunha a destinação de 4% do faturamento publicitário das tevês para a coprodução
e aquisição de direitos de filmes brasileiros independentes, algo que, como se viu no
capítulo 1, é corriqueiro em diversos países, mas inédito no Brasil. A reivindicação –
que já havia surgido no III CBC, com a taxa de 3% – apoiava-se no artigo 221 da
Constituição Federal, que prevê a presença da produção independente na comunicação
eletrônica de massa. O texto previa ainda a instituição de uma cota de tela para os filmes
nacionais na grade das emissoras
No entanto, como se verá no tópico 2.2, nem tudo o que foi proposto pelo Gedic
virou realidade. A MP 2228-1/01, que resultou do trabalho do grupo e criou a Agência
Nacional do Cinema (Ancine), seria reveladora dos princípios do funcionamento do
campo cinematográfico e da maneira como os conflitos rapidamente podem se
transformar em pactos. A Medida Provisória evidenciou ainda os limites impostos à
ação do Estado no século XXI. Muitos dos artigos do pré-projeto caíram por terra ao
longo do processo de discussão com o governo. Um deles, sobre a televisão, foi retirado
do texto na véspera da edição do texto que restabeleceu o vínculo direto entre o cinema
brasileiro e o governo.

2.2 Medida Provisória 2228-1: nasce a Ancine

Publicada no dia 6 de setembro de 2001, a Medida Provisória 2228-1 pôs fim


a um ano de suspense. É que o trabalho do Gedic, mesmo tendo sido pontualmente
discutido com diferentes segmentos do mercado audiovisual, foi deixando, em parcela

45 As propostas todas do Gedic estão descritas na dissertação de mestrado Cineastas e a Formação da

Ancine - 1999-2003 (Alvarenga, 2010).


79

do setor, a sensação de que estava sendo feito entre quatro paredes e que podia, por isso,
atender preferencialmente aos grupos considerados mais influentes.
Durante os meses em que foi preparado o projeto que daria origem à medida
provisória, o clima de solidariedade e consenso que marcou o III CBC foi, pouco a
pouco, se desfazendo. Três meses antes da publicação da MP 2228-1/01, Leopoldo
Nunes, então presidente da ABD, afirmava que o Gedic era feito em forma de “caixa-
preta” e que se a classe cinematográfica não fazia mais críticas em público é porque
tinha “medo de sofrer retaliações no momento de buscar recursos no fundo financeiro”
(Sousa, 2001). Ou seja, a ideia de “balcão”, marca da Embrafilme que a nova política
queria superar, não tinha sido apagada.
Cacá Diegues tinha consciência disso. Buscando dissipar a ideia de que se
tramava, no âmbito do Gedic, um projeto que defendia determinados grupos de interesse
(aqueles mais ligados à ideia de cinema industrial) em detrimento de outros, o cineasta
procurou os seus pares para minimizar as impressões negativas deixadas pelo trabalho
feito em sigilo:

Me lembro que fui a São Paulo para falar e pedir esse voto de confiança.
Fui prestar contas, falar que ninguém estava fazendo nada escondido,
mas que se a gente botasse as coisas publicamente ia ser uma confusão.
As televisões vão chiar, os americanos vão intervir, vai ser uma
maluquice. Pedi o voto de confiança, que nos foi dado. Fiz a mesma
coisa no Rio (Diegues, em entrevista à autora, 2014).

Quando a MP veio a público foi mesmo uma confusão. E não porque os


pequenos produtores tenham se sentido prejudicados. Os ataques vieram de outras – e
variadas – frentes. No grupo dos satisfeitos estavam, basicamente, produtores e
cineastas – que era quem teria acesso aos recursos prometidos. No grupo dos
insatisfeitos estavam todos aqueles que teriam de contribuir para que esses recursos
existissem. Antes de se destrinchar os interesses atingidos é importante, contudo,
explicar a estrutura institucional à qual a medida provisória deu origem.
A MP estabeleceu um tripé composto pelo Conselho Superior de Cinema
(CSC), cujo papel é formular e monitorar políticas; pela Ancine, a quem cabe executar
a política, regular o mercado, fiscalizar o cumprimento da legislação e fomentar o longa-
metragem; e pela Secretaria do Audiovisual, cujas atribuições estão relacionadas ao


80

cinema de baixo orçamento, aos curtas-metragens, aos festivais, mostras e acervos.
Como aponta Ikeda (2015), a complementaridade dos órgãos é reforçada pelo fato de
que, no texto original, cada um deles está subordinado a um ministério – Casa Civil,
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic) e MinC,
respectivamente.
Apesar de contemplar o cinema “menor”, o projeto repete a divisão entre os
polos culturalista e industrialista que, na visão de Ramos (1983), marcou a história do
cinema brasileiro. Pela nova configuração, um órgão cuidaria do cinema “cultural” e
outro do cinema “comercial”. Para atualizar tal terminologia, poderíamos falar em
“cinemão” e “cineminha” ou, reproduzindo Pontes (1987), em “golfinhos” e “tubarões”.
Esses termos, apesar de reducionistas e imprecisos são, ao mesmo tempo úteis
para a compreensão do que está em jogo e revelam certa percepção a respeito do que é
o cinema autoral 46 e aquele feito nos moldes industriais, mimetizando o modo de
produção hollywoodiano.
A opção de deixar cada um dos modelos subordinado a um órgão diferente
pressupõe, na avaliação de Ikeda (2015, p. 48-49), uma dificuldade de convivência entre
dois tipos de obra; essa divisão acabou por gerar várias “tensões” e “criar áreas de
sombra”. A pouca integração entre Ancine e SAV passou a refletir, sem que essa fosse
a intenção, os rachas históricos do cinema brasileiro. Os conflitos entre os dois órgãos,
como se verá no tópico 2.3, se agravariam a partir de 2003, com a chegada do PT ao
poder. A lei, de toda forma, direcionava a atuação da Ancine para o mercado,
estabelecendo que os objetivos centrais da agência eram (MP 2228-1/01, cap. IV, Art.
6º):
- Promover a cultura nacional e a língua portuguesa por meio de filmes;
- Aumentar a competitividade e promover a auto-sustentabilidade da
indústria cinematográfica nacional;
- Fortalecer a produção independente e as produções regionais;

46
O conceito de cinema de autor é um conceito-chave das teorias sobre cinema, que tem como semente
teórica o artigo “Uma certa tendência do cinema francês”, de François Truffaut, publicado na revista
Cahiers du Cinéma, na década de 1950. Uma das leituras mais aceitas é a que define o cinema de autor
como aquele que atende aos anseios de um diretor-autor e não a um sistema de produção industrial. O
cinema de autor também pode ser entendido em contraponto ao cinema comercial ou de entretenimento.
Para entender conceitualmente a autoria no cinema ver Jean-Claude Bernardet. O autor no cinema: a
política dos autores na França e Brasil anos 50 e 60. São Paulo: Brasiliense, 1994; e Dudley J. Andrew.
As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.


81

- Estimular a universalização do acesso às obras cinematográficas,
sobretudo, nacionais;
- Garantir a presença de obras nacionais em todos os segmentos do
mercado.

A receita da agência é composta pela arrecadação da Contribuição para o


Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), por até 3% dos
recursos do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel) e por dotações da
União. A Condecine incide sobre a “veiculação, a produção, o licenciamento e a
distribuição de obras cinematográficas e vídeo-fonográficas com fins comerciais, por
segmento de mercado a que forem destinadas” (MP 2228-1, Cap. VI, Art. 32, 2001).
47
A ideia por trás dessa contribuição é que, quanto maior o volume de recursos
movimentado pelo setor, maior a arrecadação. Já o Fistel é um imposto cobrado sobre
o setor de telecomunicações que só viria a ser incorporado ao orçamento da Ancine em
2011. A MP criou ainda o Art. 39, os Fundos de Financiamento da Indústria
Cinematográfica Nacional (Funcines) e o PAR – mecanismos que serão detalhados nos
capítulos 3 e 4.
Reside justamente na cobrança da Condecine a “confusão” que, de antemão,
Cacá sabia que viria. A contribuição incidiria não apenas sobre filmes de longa-
metragem mas sobre todo o tipo de conteúdo audiovisual transmitido por qualquer meio.
A medida tinha um impacto particularmente grande sobre a televisão por assinatura e
sobre as majors, que trabalhavam, basicamente, com produtos estrangeiros.
A medida provisória estabeleceu que os canais de televisão fechada passariam
a pagar R$ 2 mil para cada filme estrangeiro exibido. A Associação Brasileira de
Televisão por Assinatura (ABTA) dizia, à época, que as medidas seriam a pá de cal no
setor. Alguns meses depois, como se verá abaixo, a forma de contribuição das tevês
pagas seria alterada. Tratava-se, na verdade, do primeiro round de uma luta que se
arrastaria pelos dez anos seguintes e que iria terminar na Lei 12.485/11, que será
detalhada e explorada no capítulo 3.

47
Existiam, então, dois tipos de Condecine, a Condecine Título e a Condecine Remessa. A Condecine
Título é devida pelos detentores dos direitos de exploração comercial ou de licenciamento de uma obra
estrangeira e pelos detentores dos direitos de obra brasileira que venha a ser licenciada. A Condecine
Remessa incide sobre a remessa ao exterior de valores ganhos com a exploração ou aquisição de obras.


82

No caso das majors, o que houve foi um aumento no valor de importação de
cada título – de R$ 1,2 mil para R$ 3 mil. O aumento, pensado incialmente para atingir
apenas as subsidiárias de Hollywood, acabou valendo para todos os distribuidores. Ou
seja, o filme de arte que chegava ao país com uma só cópia passou a pagar os mesmos
R$ 3 mil de Condecine Título que um blockbuster. Isso fez com que os distribuidores
dos filmes de arte também viessem a público dizer que quebrariam.
As majors foram impactadas ainda por uma nova taxa criada para fazer com
que passassem a aplicar recursos em filmes nacionais. Essa possibilidade de coprodução
entre as distribuidoras estrangeiras e os produtores nacionais existia desde 1993, quando
foi aprovada a Lei do Audiovisual. O Art. 3º da lei toma por base o imposto que as
majors são obrigadas a pagar no momento de remeter, para a matriz, os lucros sobre
filmes aqui lançados. Esse artigo faculta às empresas o direito utilizar até 70% do
imposto devido na produção de filmes brasileiros – obtendo, de quebra, a garantia de
distribuí-los.
O que mudou a partir da MP 2228-1/01? As distribuidoras norte-americanas
que optassem por não utilizar o Art. 3º teriam de arcar com uma taxa extra de 11% sobre
o imposto pago sobre a remessa de lucros. O governo chamava essa taxa de
contribuição; as majors, de multa. Steve Solot adotou a expressão chantagem fiscal
(Alvarenga, 2010) para se referir à medida. O chefe da MPAA no Brasil chegou a repetir
a cantilena de que, dada a pressão, as companhias talvez reconsiderassem e até
cancelassem seus planos de investimento na produção e distribuição de filmes
brasileiros.
Jorge Peregrino, que havia sido dirigente da Embrafilme e nesse momento era
vice-presidente da Paramount no Brasil, foi, dentre os dirigentes das majors do Brasil,
o que mais radicalmente se colocou contra a medida:

As pessoas sabiam que a exploração do filme estrangeiro podia ser


levada em conjunto com a do filme brasileiro. Eu briguei contra o
Artigo 3º. Mas a Paramount foi a única companhia que brigou. O Artigo
3º foi uma artimanha do Everardo Maciel [secretário da Receita
Federal]; ele não se sustenta do ponto de vista financeiro. A gente
entrou com mandato de segurança, a gente brigou durante dois ou três
anos, mas a gente perdeu. A nossa tese era a de que se o estúdio quiser
pagar imposto, ele não pode ser obrigado, a partir de uma penalidade


83

financeira, a investir numa coisa na qual não quer investir. Isso não faz
sentido numa economia de mercado. A Paramount e a Universal eram
totalmente contra isso, pelo princípio. E a equação é a seguinte: a não
ser que o filme seja muito bom, é melhor pagar 11% de multa por não
usar Artigo 3º do que arriscar dinheiro bom em P&A [sigla em inglês
para print and advertising, que diz respeito aos custos com cópias e
marketing de lançamento]. Na Paramount, eu perdi US$ 2 milhões ou
US$ 3 milhões em P&A de filme brasileiro (Peregrino, em entrevista à
autora, 2014).

Todo esse enredo parecia um remake do que havia sido vivenciado nos anos
1960, quando uma lei estipulou que as majors podiam aplicar 40% do Imposto de Renda
em produções nacionais. A medida, de 1962, apesar de festejada por parte dos
produtores, gerou temores de que o capital estrangeiro ameaçasse o cinema de autor,
inflasse os custos da produção e tirasse do cinema brasileiro as características nacionais.
Mas, assim como aconteceu na década de 1990, as distribuidoras estrangeiras “não
penetraram na produção com o ímpeto esperado” (Ramos, 1983, p. 30).
Apenas em 1966, com uma mudança na lei estabelecendo que, caso não
aplicassem os recursos em filmes brasileiros, as empresas deveriam depositar parte do
imposto nos cofres do INC, é que o cinema norte-americano se tornou coprodutor de
um número significativo de obras.48 Ou seja, a história se repetiu. Enquanto, em 2002,
o Art. 3º da Lei do Audiovisual mobilizou recursos da ordem de R$ 17 milhões, em
2003 esse volume havia saltado para R$ 35 milhões e, em 2004, atingiu a marca dos R$
46 milhões (a presença das majors na produção e distribuição de filmes nacionais
voltará a ser tratada nos tópicos 4.1 e 4.2).
Se a questão da participação das majors não era nova, o mesmo não se pode
dizer da busca pela parceria com a televisão. O chamado casamento entre cinema e tevê
era a grande novidade da Medida Provisória gestada dentro do Gedic. Mas enquanto as
majors, apesar das ações judiciais e do trabalho junto à opinião pública, não

48
Entre 1962 e 1966, a Lei 4.131/62 foi responsável pela produção de sete longas-metragens. A partir de
1967, com a mudança no funcionamento da lei, esse número deu um grande salto. Entre 1967 e 1972,
foram 38 as coproduções – Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, e As Amorosas, de Walter
Hugo Khouri, entre elas. A partir de 1969, com a criação da Embrafilme, os recursos das majors passaram
a ir direto para a estatal, que tinha a primazia na seleção dos projetos a serem beneficiados. Para mais
detalhes sobre o funcionamento desse mecanismo nos anos 1960 ver Johnson (1987) e Simis (2008). Para
entender o Art. 3º da Lei do Audiovisual, consultar Ikeda (2015) e Fábio de Sá Cesnik. Guia do incentivo
à cultura. Barueri: Manole, 2002.


84

conseguiram se livrar das novas taxas, com a televisão, a história foi outra. É que, apesar
de tanto majors quanto redes televisivas possuírem capital econômico, o capital político
da televisão aberta é incomparavelmente maior.
A participação da televisão no fomento ao cinema vinha sendo oficialmente
demandada desde o III CBC. E se havia alguma chance de que isso se efetivasse é
porque havia uma disputa maior em curso: estava sendo definido, naquele momento, o
pedaço que caberia às empresas de telefonia no latifúndio das comunicações e da
produção de conteúdo. O início dos anos 2000, afinal de contas, marca o início da
materialização da convergência digital – cenário no qual celular, tevê, rádio e internet
convergem para um mesmo lugar e têm funções sobrepostas e cruzadas. O novo órgão
nascia num ambiente mais complexo que a aquele da Embrafilme, com a tecnologia e
as novas mídias à espreita.
Em 2001, no mesmo ano em que era preparada a Medida Provisória do cinema,
o Ministério das Comunicações retomava a discussão de uma nova legislação para a
radiodifusão. Além da sombra das teles, empresas controladas pelo capital financeiro
internacional, os donos das emissoras de televisão enfrentavam a discussão sobre o
padrão de tevê digital a ser adotado pelo país 49 . Em menos palavras: as questões
colocadas sobre a mesa eram complexas, milionárias e deixavam as empresas
brasileiras, todas controladas por grupos familiares, numa situação de insegurança
econômica e jurídica.
Foi em meio a essa realidade que, um dia, ao chegar ao hotel em que ficavam
habitualmente hospedados em Brasília, os integrantes do Gedic receberam um recado
da Casa Civil da Presidência da República, convidando-os para um almoço no Palácio
da Alvorada. Eles pensaram que o encontro seria com o presidente Fernando Henrique.
Mas não. A conversa era com Pedro Parente. O ministro-chefe da Casa Civil perguntou
se eles se incomodariam se a nova medida contivesse “alguma coisa” sobre a televisão
paga. Em off, um dos integrantes do Gedic relatou que, durante a conversa, Evandro
Guimarães, diretor de relações institucionais da Globo e integrante do grupo, tirou de
sua pasta de couro um anúncio do portal Terra, que estava então lançando a TV Terra,
na internet. O anúncio trazia impressa a frase “Agora mais um campeão de audiência”,

49
Para saber mais sobre a disputa envolvida na escolha do padrão para a tevê digital no Brasil ver
Informativo Intervozes: TV Digital, nº 1. Revista Caros Amigos, Nov. 2005; e Informativo Intervozes: TV
Digital, nº 2. Revista Caros Amigos, Maio 2006.


85

em referência direta ao slogan da Globo. “Era como se ele dissesse: ‘Olha o que esses
filhos da puta [da internet] estão fazendo com a gente!’. Não podemos permitir!”, afirma
um dos presentes (em entrevista à autora, 2014).
Foi nesse contexto que a Globo, que já vinha discutindo o assunto com o
Ministério das Comunicações, passou a olhar com especial interesse para a lei do
cinema. O texto em elaboração foi visto pela emissora como uma brecha por meio da
qual talvez fosse possível inserir regras relativas ao que realmente importava para eles:
a exclusão do capital estrageiro do serviço de banda larga50 e o impedimento de que as
teles produzissem conteúdo.
Foi em busca de uma possível “troca de favores”, para usar a expressão do
integrante do Gedic, que Guimarães concordou com o artigo, presente na primeira
versão da MP 2228-1/01, que previa que as televisões abertas destinassem 4% do
faturamento publicitário para o cinema – 2% disso iria para a aquisição de filmes a
serem exibidos nas emissoras e 2% para produção. A agência, que passaria a regular
cinema e tevê, deveria se chamar Ancinav.
Cacá Diegues que, na divisão de tarefas dentro do grupo, ficou responsável
pela redação inicial do capítulo sobre tevê, relembra que, simplesmente, copiou a lei
francesa. Ou seja, os 4% não tomaram por base qualquer estudo de impacto, mas sim
um exemplo internacional. Barreto relembra (em entrevista à autora, 2014) que, ao
serem apresentados à possibilidade de participar da elaboração de uma lei tão ampla, os
integrantes do Gedic chegaram a se perguntar se aquilo tudo não era “areia demais para
o caminhãozinho” deles. Mas sua fala indica que, no fundo, Barreto acreditou que o
poder do cinema era maior do que a prática mostraria:

A gente falou isso para o Pedro Parente. Aí ele perguntou: “E se eu


dissesse que isso é uma questão de Estado? Você acha que o Estado
pode bancar isso?”. Daí eu disse: “Se você acha que é questão de Estado
e que não somos nós que teremos de enfrentar a televisão e as
telefônicas, tudo bem, ótimo. Mas que nós vamos virar um grão de areia

50
O termo “banda larga” diz respeito aos serviços de acesso à internet de alta velocidade. Antes do
surgimento da banda larga, os serviços existentes eram baseados nas tecnologias de conexão discada via
linha telefônica (dial up), caracterizadas pela baixa velocidade do tráfego de dados. Há dois tipos de
serviço de banda larga: fixa (cabo de cobre de telefonia, cabo coaxial de tevê por assinatura, fibra ótica,
satélite ou rádio) e móvel (rede celular de terceira ou quarta gerações de padrões da telefonia móvel – 3G
ou 4G). De acordo com os dados do Suplemento de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2014, o acesso à internet por computador nos
domicílios brasileiros cresceu de 6,3 milhões (12,2 %) em 2004 para 28,2 milhões (42,1%) em 2014.


86

dentro dessa agência, nós vamos.” Eu achava melhor a gente primeiro
melhorar a economia do cinema e depois, lá na frente, faz algo em
conjunto. Mas eles preferiram fazer imediatamente, e fizeram (Barreto,
em entrevista à autora, 2014).

A primeira versão da medida provisória trazia artigos que restringiam toda a


operação de banda larga a companhias genuinamente brasileiras, de brasileiros natos, e
outros que limitavam a empresas nacionais a produção de conteúdo. Em ambos casos,
excluía-se da atividade, de forma peremptória, as empresas de telefonia. Quando a
minuta contendo essas propostas foi enviada para organismos técnicos e jurídicos e para
a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a análise foi consensual: o texto
trazia grandes impropriedades.
Uma delas dizia respeito ao fato de que os contratos de privatização do setor
de telecomunicações previam que as telefônicas poderiam, sim, operar em banda larga
e até atuar no mercado de televisão por assinatura. Como aquilo que se pleiteava no
texto figurava, inclusive, quebra de contrato, a Anatel recomendou que todos os artigos
que diziam respeito à regulamentação do serviço de televisão paga fossem retirados da
lei do cinema. Assim foi feito.
Ao saber que aquilo que pleiteavam tinha caído por terra, as televisões deram
um passo atrás, recuando na possibilidade de contribuir de forma direta com a produção
cinematográfica independente. A história que variadas fontes contam – e que outras já
reputam como lenda – é que, às vésperas da cerimônia da apresentação do texto legal,
alguém de família Marinho pegou um helicóptero e aterrissou no Palácio do Planalto
para uma reunião com Fernando Henrique. Orlando Senna, que se tornaria secretário do
Audiovisual no governo seguinte, diz que essa noite passou a ser chamada de “noite do
delete” – em referência ao veloz desaparecimento de todos os artigos relativos à
televisão do texto.
Se houve mesmo helicóptero, não se sabe, mas é fato que, na manhã seguinte,
Pedro Parente telefonou para os integrantes do Gedic para informá-los de que o
conteúdo da medida provisória teria de ser modificado:

Ele fez a gentileza de nos avisar porque a gente ia a Brasília para a


cerimônia de assinatura e tomaríamos um susto se tivéssemos chegado
lá e visto aquilo [...] Ele não disse porquê, disse só que o presidente


87

tinha vetado, que o presidente não queria. Aí nos fuxicos e nas fofocas,
a gente descobriu que os diretores de televisão procuraram o Fernando
[Henrique Cardoso] e pressionaram ele (Diegues, em entrevista à
autora, 2014).

Barreto, por sua vez, conta uma versão na qual a “noite do delete” vira uma
“manhã do delete”:

O Pedro Parente ligou pra mim, pro Cacá e pro Gustavo [Dahl] de noite.
Era a véspera da solenidade [de apresentação da MP 2228-1]. Pegamos
o avião e fomos para Brasília. Ficamos lá revendo o texto, que já estava
pronto. Trabalhamos das 7h às 10h30 da manhã; a solenidade era às
11h. Ficamos refazendo, tirando tudo que era de televisão. Foi aí que a
Ancinav [Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual] virou Ancine
[Agência Nacional do Cinema] (Barreto, em entrevista à autora, 2012).

Caía a terminação “av”, que dizia respeito ao audiovisual (que engloba as


televisões aberta e fechada, a propaganda, os videoclipes, etc.), e entrava no lugar a
terminação “cine”, de cinema, para que não restassem dúvidas a respeito das atribuições
do novo órgão. Segundo Barreto, quando questionado sobre a necessidade de se alterar
tudo daquela maneira apressada, Parente teria dito: “Ou fazemos isso ou nada”. Todos
os envolvidos no episódio se lembram da economista e diplomata Tatiana Rosito
sentada em frente ao computador para fazer as alterações. Tatiana, então assessora
especial do ministro, foi quem teve de apertar seguidas vezes a tecla delete. Foi dessa
maneira que a Condecine ficou concentrada em cinema, vídeo e tevê a cabo e que
quando a MP 2228-1/01 foi oficializada, em 18 de outubro, todos os artigos referentes
à televisão tinham desaparecido. Mas a MP trazia a oficialização daquilo que cineastas
e produtores mais desejavam: um órgão destinado a cuidar do cinema.
Para Carlos Augusto Calil, o episódio, com seus conchavos e trapalhadas,
evidencia a forma de agir do grupo que, historicamente, se habituou a ter conquistas “no
grito”:

Em termos de poder, em que lugar do mundo, você viu o pequeno


mandar no grande? O cinema brasileiro é pequeníssimo perto da
televisão. A televisão é uma indústria poderosa, o cinema brasileiro


88

nunca chegou lá. Mas os cineastas acharam que iam conseguir
surpreender a Abert. Mesmo a medida provisória que saiu, sem
mencionar a TV, é frágil [as contestações da MP 2228-1 na Justiça se
estendem até hoje, como será relatado no tópico 3.4], imagine se por
descuido ela regulasse a TV. Haveria uma turbulência terrível, com
recuo certo e desmoralização do governo. Pelo lado institucional e pelo
lado, digamos, legal, tudo era sempre uma armação para que
conseguisse levar as coisas a um determinado resultado. Uma postura
como essa revela uma maneira de se fazer política, de uma tentativa de
assaltar o comando do poder de uma maneira sempre... – como dizer
isso de forma elegante? –... de uma maneira oblíqua, nunca aberta,
sempre com alguma coisa de teoria da conspiração, sempre com base
nas relações pessoais (Calil, em entrevista à autora, 2016).

Um dado que contribui para a retirada dos véus desse processo de criação da
“lei do cinema” é que a MP 2228-1/01 foi publicada no Diário Oficial da União no dia
10 de setembro, ao lado de outras duas MPs, uma delas já revogada. No dia 11, foi
publicada a Emenda Constitucional nº 32, que tinha o objetivo de acabar com as
sucessivas edições de medidas provisórias pelo Presidente da República51. Ou seja, a
pressa para a finalização da medida provisória tinha uma justificava prosaica: caso não
fosse publicado naquele dia, o texto teria de ser submetido ao Congresso Nacional. Tal
episódio, além de ser revelador dos atalhos legislativos existentes no País, é indicativo
de uma certa forma de agir dos cineastas e produtores enquanto corporação: se for pelo
“bem” do cinema, os caminhos importam menos que os resultados.
Apesar de ter resolvido a situação imediata, a instituição das bases políticas do
cinema via MP teve, com o passar do tempo, consequências práticas. Em 2016, o
SindiTelebrasil impetrou uma ação judicial (que será abordada no tópico 3.4) contra o
pagamento da Condecine. Um dos argumentos utilizados foi o de que um tributo dessa
natureza só pode ser criado por lei complementar e não por Medida Provisória.
Foi, portanto, sem a anuência do poder legislativo e com uma redação
concluída às pressas que nasceu o marco legal do cinema contemporâneo brasileiro. A

51
A Medida Provisória é um artifício legislativo que tem o aspecto da excepcionalidade. É um instrumento
com força de lei, adotado pelo presidente da República, com prazo de vigência de 60 dias, prorrogáveis
por outros 60 dias. Apesar de passar a vigorar tão logo seja assinada, depende de aprovação do Congresso
Nacional para se transformada numa lei definitiva.


89

própria opção pelo formato de agência não foi fruto de uma reflexão mais profunda.
Como ficou claro nas discussões do III CBC e do Gedic, o que o cinema brasileiro
queria era ter novamente uma instituição de governo a apoiá-lo; que instituição seria
essa importava menos que sua efetivação. Os integrantes do setor cinematográfico não
tinham clareza do que significa aderir ao formato de agência, mas, ao perceber que era
isso que o governo queria, não pensaram duas vezes:

Nós pensávamos em um instituto, fundação, algo assim. Nem


falávamos o nome, falávamos mais no modelo, que podia ser o
espanhol, o argentino. Mas, do jeito que veio, a gente falou: “É isso aí,
vamos que vamos. O Governo assumiu, né? Não tem o que pensar”
(Hernandez, em entrevista à autora, 2014).

O formato escolhido foi, portanto, aquele que marcaria a administração de


Fernando Henrique Cardoso e seu projeto de redução do papel do Estado: o das agências
reguladoras, que podem ser consideradas um meio de caminho entre o Estado
interventor e o Estado totalmente liberal (Thatcher, 2002). O setor, mais uma vez, se
ajustava “às necessidades e desejos do governo” – como disse Amâncio (2000) a
respeito da Embrafilme.
O papel das agências é, grosso modo, fiscalizar a prestação de serviços
públicos praticados pela iniciativa privada e estabelecer regras para o setor, garantindo
a preservação dos direitos do consumidor. A primeira a ser criada foi a Agência
Nacional de Energia Elétrica (Aneel), autarquia instituída em 1996; outras nove se
seguiriam.52
A Ancine foi, no entanto, um órgão atípico dentro desse modelo. E se isso
acontece é porque o setor audiovisual tem características que o afastam de uma área
tipicamente regulada por uma autarquia especial, como as telecomunicações ou o setor
de energia elétrica (Ikeda, 2015). Além de não se configurar como serviço, o
audiovisual, ao contrário dessas outras áreas, não havia passado por um processo de
privatização; as demais agências tampouco cuidam das políticas de desenvolvimento.53

52
Para compreender o papel das agências reguladoras ver: Alexandre Santos de Aragão. Agências
reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2004; e Floriano
de Azevedo Marques Neto. Agências reguladoras independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo
Horizonte: Fórum, 2005.

53
Apesar de a função das agências ser regular, a Ancine, desde sua criação, tem também o objetivo de


90

A agência nasce, portanto, sob o signo da contradição e do paradoxo, tendo sido criada
muito mais dentro de uma “lógica assistencialista” do que por uma política estratégica
de governo (Ikeda, 2015, p. 60).
Esse modelo híbrido, que atribui ao Estado um poder limitado e mantém a
submissão às leis de incentivo fiscal, decorre, como se disse, das próprias características
do governo FCH. Mas não só. Havia, entre os cineastas, o medo de que, de uma hora
para a outra, novamente se extinguisse todo o apoio estatal ao cinema. Supostamente, a
dependência relativa do Estado dava ao setor a segurança de que haveria sempre outras
portas nas quais bater – no caso, as portas das empresas, potenciais apoiadores via Lei
do Audiovisual. Havia, além disso, “o fantasma das acusações de clientelismo e
corrupção que vitimaram a Embrafilme” (Ikeda, 2015, p. 147). Na definição de Dahl, o
que o Gedic procurou fazer foi “reintroduzir o Estado sem cometer os erros do passado”
(Sousa, 2001).
Para o governo, a opção mostrou-se interessante: sem aumentar o tamanho do
Estado54, algo que iria contra o projeto neoliberal em vigor, ele atendia um grupo de
pressão influente. Para o cinema, foi a opção possível. A produtora carioca Mariza Leão,
casada com o cineasta Sérgio Rezende e então próxima do grupo de Luiz Carlos Barreto,
diz que foram necessários alguns anos até que o setor entendesse o que significava o
modelo escolhido:

A gente foi aprendendo. Mas o que a gente queria era um teto, uma
parede, um chão, onde a gente pudesse se inserir e se sentir parte de
alguma coisa. Porque, até então, do ponto de vista institucional, éramos
apátridas. Não tínhamos um terreno nosso porque as instituições tinham
acabado. A gente estava um pouco como judeu errante e, de repente,
sentiu que era importantíssimo ter esse pedaço organizado, essa cerca
onde a gente ia ficar. Não importava muito a natureza dessa cerca (Leão,
em entrevista à autora, 2014).

desenvolver o setor e cuidar do fomento. Para mais detalhes sobre os impasses decorrentes dessa dupla
função e sobre os limites da Ancine como agência reguladora consultar Ikeda (2015, pp. 61-69 e pp. 73-
74).
54
Como se verá nos capítulos que se seguem, a ideia de que o formato agência evitaria um aumento muito
grande no tamanho do Estado comprovou-se errada. A Ancine possuía, até 2016, 380 funcionários
concursados e comissionados, além de 305 terceirizados (http://www.ancine.gov.br/acesso-a-
informacao/servidores; acesso em 16 mar.17). Os salários dos concursados são altos para os padrões do
governo federal – há remunerações que alcançam os 27 mil reais mensais.


91

Se o modelo em si pouco importava, o mesmo não se pode dizer de quem


assumiria o comando do novo órgão. Dentro do setor, foi se fechando um consenso em
torno do nome de Gustavo Dahl, que circulava bem entre os diferentes espectros do
cinema – ele nem alarmava os representantes do cinema de mercado nem desagradava
aqueles que pendiam para o lado autoral. Dahl tinha sido, além do mais, o grande nome
do Gedic. Barreto lembra, porém, que o ministro-chefe da Casa Civil, ao ouvir a
sugestão, ponderou que seria difícil efetivar a indicação, uma vez que a escolha do
comando das agências, por mais que tivesse de levar em conta aspectos técnicos, era
também uma decisão política:

O Pedro Parente disse que tinha muita disputa política pelo cargo e que
nossa única chance era se a gente mobilizasse um apoio grande da
classe. Começamos então a mobilizar todas as entidades, e o Gustavo
era o presidente do Congresso [Brasileiro de Cinema]. Todo mundo
apoiou o nome dele. Daí o FHC não teve outra saída: nomeou o Gustavo
(Barreto, em entrevista à autora, 2012).

Dahl, além de ser bem aceito pelos pares, tinha no currículo a superintendência
de comercialização da Embrafilme (1976-1979) e a presidência do Concine (1985-
1986). Logo após a indicação, perguntado sobre o significado de ele, Barreto e Cacá
continuarem à frente da política de cinema, Dahl respondeu: “Isso é feito exército: você
é promovido por antiguidade ou merecimento” (Sousa, 2001).
Uma vez escolhido Dahl, se iniciava a disputa em torno da diretoria colegiada
que comporia a agência, cuja estrutura prevê quatro diretores, sendo que um deles é o
diretor-presidente. Foi essa disputa pautou muitas das reuniões e articulações do IV
CBC. Realizado entre os dias 14 e 18 de novembro no Rio Othon Palace, em
Copacabana, o evento reuniu cerca de 400 pessoas vindas de 18 Estados brasileiros; 29
entidades estavam ali representadas. Aos produtores de cinema de curta-metragistas se
juntaram representantes das produtoras de publicidade – indicando uma mudança
importante na configuração do campo. Andréa Barata Ribeiro, a O2 Filmes, e Paulo
Schmidt, da Academia de Filmes, foram alguns dos recém-chegados que tiveram
participação bastante ativa; suas empresas, nos anos seguintes, passariam a atuar
fortemente no entretenimento.


92

Enquanto o III CBC de Porto Alegre foi o momento da primeira grande
articulação, o IV CBC foi o momento da reorganização do campo e do início de uma
tomada de posição mais clara por parte dos atores. Como diz André Sturm, que se
aproximou da política cinematográfica por meio do cineclubismo e foi uma das
lideranças do IV CBC, ali o clima de consenso começava a se dissipar:

No CBC do Rio se tinha, pela primeira vez, uma coisa concreta. A MP


que criava a Ancine já tinha sido aprovada, mas a Ancine ainda não
tinha sido instalada e a diretoria da agência ainda não tinha sido
escolhida. Havia uma disputa selvagem. Em Porto Alegre era só um
“nos amamos todos”; não havia porque brigar porque era muito uma
coisa geral, de princípios. Mas, apesar das disputas, saíram também
propostas concretas do Rio, como a de exibição de curtas no cinema
(Sturm, em entrevista à autora, 2014)

Sturm refere-se à Carta de Compromisso do Curta-Metragem, assinada durante


o encontro. Por meio do documento, Cinemark e UCI, redes internacionais de exibição,
se comprometeram a exibir curtas nacionais antes dos longas-metragens. A ABD
estimava que o projeto abrangesse ao menos 1,2 mil salas e contemplasse cerca de 100
filmes. O compromisso jamais foi colocado em prática. Ficaria claro, com o passar dos
anos, que a suposta disposição de negociar demonstrada pelos chamados inimigos
históricos do cinema brasileiro, as majors e os exibidores, era, sobretudo, um trabalho
em busca da minimização de danos. Uma vez que a agência havia sido criada, era
preciso, da parte dos outros players, garantir que ela não se tornasse uma agência de
produtores.
Entre acordos jamais cumpridos e disputas pela demarcação de espaços na
nova configuração que a política cinematográfica assumia, a votação para a elaboração
do documento final do IV CBC levou quase dez horas. No último dia, para substituir
Gustavo Dahl na presidência da entidade, foi eleita Assunção Hernandez. Para compor
a diretoria com ela foram convidados um exibidor e um distribuidor.
Da parte dos exibidores, foi eleito Valmir Fernandes, então diretor-presidente
da Rede Cinemark, que havia se instalado no Brasil alguns anos antes, importando, dos


93

Estados Unidos, o modelo dos multiplex 55 . Da parte dos distribuidores, o nome
escolhido foi o de Bruno Wainer, diretor da Lumière – então o braço brasileiro da norte-
americana Miramax.
Fernandes relembra, na entrevista para esta pesquisa, seu primeiro contato com
Luiz Carlos Barreto. Seu relato é revelador de uma face do produtor que, apesar de
conhecida, foi sendo apagada das falas mais atuais do cinema brasileiro:

Meu primeiro contato com o Barretão foi na pré-estreia daquele filme


[Bella Dona] com o Du Moscovis e uma loira estrangeira [Natasha
Henstridge], em junho de 1998. A gente [Cinemark] estava começando.
Ele fez uma pré no [Cinemark Barra] Downtown [no Rio de Janeiro], e
eu lembro até hoje. Foi uma cortesia. Fechamos o cinema pra eles e, na
minha cabeça, eu estava fazendo uma gentileza em fechar todas as salas
pra ele. Mas em uma das salas ele achou que o som não estava adequado
e fez um escândalo. Eu fiquei numa saia justíssima porque, de certa
forma, ele era meu convidado e, como convidado, não podia se colocar
como se fosse dono da minha casa. Se tem um problema, você fala, eu
tento corrigir... Mas você não pode destruir a casa da pessoa que está te
recebendo. Ali eu entendi quem era ele. Logo depois, entendi que ele
era dono da política cinematográfica e que o exibidor era visto sempre
como inimigo. Mas, com o tempo, isso tudo foi mudando também.
Foram surgindo produtores novos, com outra cabeça, outras
características (Fernandes, em entrevista à autora, 2014).

Wainer, por sua vez, conhecia bem Barreto, pois havia trabalhado como
assistente de produção em Índia, a filha do sol (1982), de Fábio Barreto. Mas, apesar
de ser sobrinho de Cacá Diegues – sua mãe, Danuza Leão, era irmã de Nara – e de ter
estagiado, no início dos anos 1980, em sets de Joaquim Pedro de Andrade (O homem
do pau-Brasil) e Arnaldo Jabor (Eu te amo), o distribuidor diz que, ao se aproximar da
política de cinema, foi colocado num lugar marginal:

55
Os multiplex reúnem várias salas num mesmo complexo, oferecendo ao espectador a possibilidade de
escolher, na hora, o filme que vai ver. O negócio dos multiplex inclui não apenas a bilheteria dos filmes,
mas a publicidade na tela e as vendas da bomboniere, responsáveis pelo que Epstein (2008, p. 198)
denomina “economia da pipoca”. O modelo praticamente pôs fim aos cinemas de rua, que funcionavam
com apenas uma ou duas salas.


94

Quando comecei a mexer com política de cinema, buscando meios para
poder fazer as coisas, me deparei com a má vontade geral. Ninguém
queria saber de distribuidor. A política era feita por uma panela, e a de
sempre. Mas essa turma fazia política também porque não tinha
ninguém disposto a fazer política no lugar deles. Aí era aquela briga de
produtores – os produtores sempre foram os que conduziram os
processos. Então, na verdade, quando comecei a ir reivindicar meu
pedaço, me senti mal recebido em tudo que é lugar. Eu era um intruso
na festa. E olha que eu não era um cara desconhecido do cinema
brasileiro porque, antes de ser distribuidor, trabalhei anos como técnico,
diretor de produção, assistente de direção. Mas, quando passei a querer
dialogar, senti um incômodo geral (Wainer, em entrevista à autora,
2014).

Valmir Fernandes, assim como Wainer, não foi ao CBC de Porto Alegre, mas
diz ter se arrependido. Ao ver o resultado, percebeu que tinha de participar. Por isso,
para surpresa de muitos cineastas e produtores, apareceu no IV CBC do Rio de Janeiro:

Era importante a gente estar lá para exercer um certo controle. Alguns


exibidores e algumas majors achavam que era melhor deixar sair o que
saísse e brigar depois. A nossa estratégia era diferente: se tiver que
brigar mais adiante, vou brigar, mas vou, pelo menos, tentar impedir
que a coisa já nasça dentro de um conceito totalmente equivocado. Para
mim, se puder fazer o damage control [controle de danos] antes,
melhor. A gente estava vivendo uma época em que a gente não tinha
noção de até onde aquilo podia ir (Fernandes, em entrevista à autora,
2014).

Ao contrário do que fizeram o maior exibidor estrangeiro do país e o maior


distribuidor, as majors optaram por ficar de fora. Jorge Peregrino, por sua vez,
acreditava que o melhor era ficar de fora e brigar depois, na Justiça:

Eu consegui articular para as majors não participarem do CBC porque


eu sabia que se a gente fosse pelo Sindicato ou mesmo se fosse como
major, ia legitimar uma coisa sobre a qual a gente não teria controle. As
majors só participaram uma vez, e nem foi uma participação completa.


95

E ali a gente viu que de tudo que a gente tinha dito nada tinha sido
aproveitado no relatório final. Então pra que a gente ia legitimar aquilo?
Eu não quero aparecer como participante de um negócio no qual eu não
sou ouvido. O negócio era louco, né? As teses eram as mais absurdas
possíveis lá dentro (Peregrino, em entrevista à autora, 2014).

Foi também no IV CBC que foi costurada, em meio a outros tantos debates, a
composição da agência recém-criada. Ali se definiu o nome de Augusto Sevá como
representante dos cineastas e que se tirou do páreo Vera Zaverucha, que havia
participado da articulação para a criação da Lei do Audiovisual e era considerada
próxima a Barreto. Para o lugar de Vera, foi indicada a advogada Lia Gomensoro Lopes,
que era da assessoria jurídica do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) e,
deveria, de alguma forma, “vigiar” a agência. O quarto diretor era João da Silveira,
indicação do senador Francelino Pereira (PFL-MG), que encampou, no Congresso, a
luta pela criação da Ancine. Pereira dizia então que o cinema brasileiro sabia bater às
portas do MinC, mas não tinha se empenhado em criar uma convivência no Congresso
Nacional (Pereira, 1999). A presença de Silveira, assessor do senador, de fato, facilitou
o processo de alterações na medida provisória – concretizado alguns meses após a
instalação da agência – e abriu portas para a interlocução da Ancine com o Congresso.
Dois meses após a realização do IV CBC, em janeiro de 2002, aconteceu, na
Casa Civil, em Brasília, a posse da diretoria. Cerimônia encerrada, os diretores
perguntaram a Pedro Parente o que deveriam fazer. Como relata Sevá, eles ouviram,
simplesmente: “Agora vocês são os diretores da Ancine”. Mas a Ancine não era nada:

A gente queria saber onde era sala na qual tralharíamos, se tínhamos


telefone. Não tivemos resposta. Saímos os quatro diretores pelo
Planalto. Estava um dia lindo. Ficamos olhando para aquela grama
verde, e aí uma das diretoras, a Lia Gomensoro, disse: “Ali é a
representação do BNDES em Brasília”. Ela ligou pra lá, explicou o que
estava acontecendo, disse que a gente não tinha onde ficar, e conseguiu
que nos autorizassem a usar uma sala de reuniões do BNDES. O
presidente ainda nos emprestou a secretária particular dele para que a
gente pudesse começar a trabalhar. Ficamos lá uns 20 dias até o ministro
da Indústria e Comércio [o diplomata Sergio Amaral] nos dizer que
tinha uma sala destinada aos assessores que ele podia emprestar para a


96

gente. Mudamos de sala emprestada. Ele nos arrumou um pedaço de
um andar no prédio da Cassex, no Rio. De meio andar, passamos para
três andares (Sevá, em entrevista à autora, 2014).

Mesmo a agência estando ainda absolutamente desestruturada, foi feita, nessa


fase, a transferência da gestão dos processos referentes aos mecanismos de incentivo da
SAv para a Ancine. Do dia para a noite, desembarcou na agência um caminhão, vindo
de Brasília, com mil e quatrocentos processos ativos. “Não havia pessoal suficiente, mas
era uma obrigação e uma questão de honra dar conta deste movimento”, relata Dahl
(2005), em seu relatório de gestão. Se a agência não desse conta desses processos,
antevia Dahl, o setor reagiria imediatamente à institucionalização que a Ancine se
propunha a trazer.
Apesar de apenas os casos envolvendo Chatô – o rei do Brasil, de Guilherme
Fontes, e O Guarani, de Norma Bengell56, terem ficado famosos, entre a aprovação da
Lei do Audiovisual e a criação da Ancine houve uma série de problemas envolvendo a
captação de recursos – muitas vezes mais por inabilidade de se gerir o montante captado
do que por falcatrua. Sevá conta que, diante de um passivo desordenado e volumoso, a
equipe recém-empossada teve de fazer um trabalho de formiga:

O MinC não tinha um acompanhamento dos estágios em que estava


cada projeto. Muitos deles estavam há quatro anos tentando captar
recursos e tinham só 10% [do orçamento] captado. Chamamos as
produtoras e nos propusemos a concentrar esforços nos projetos viáveis
financeiramente, como previa a legislação. Ou seja, orientamos os
produtores a realocar recursos dispersos em vários projetos no projeto
mais viável. Com isso, zeramos os processos inviáveis, realocando seus
recursos, sem mandar ninguém para a Justiça ou para o Tribunal de
Contas da União (Sevá, em entrevista à autora, 2014).

Mas esse era apenas um dos desafios. Antes mesmo de ter uma sede própria, a
Ancine teve de lidar com pressões, ações judiciais e reviravoltas. Nos primeiros meses,
enquanto esperava que as novas taxas impostas ao setor virassem realidade, a agência
sofreu um cerco jurídico. A Warner Bros. chegou a conseguir uma liminar que a livrou,

56
Os casos estão relatados na nota de rodapé 23, do tópico 1.3.


97

temporariamente, da taxação de 11% sobre a remessa de lucros para o exterior; outras
16 empresas entraram com mandado de segurança com o mesmo pedido, levando a cabo
o que, à altura, foi chamado de guerrilha dos mandados de segurança.
O escritório Pinheiro Neto Advogados, de São Paulo, chegou a propor uma
ação conjunta, em nome das majors, para suspender o pagamento da Condecine Título.
O questionamento dizia menos respeito ao valor e mais ao significado da cobrança. “Por
que uma empresa estrangeira tem de ajudar a financiar filmes brasileiros?”,
perguntavam os advogados (Sousa, 2001). A resposta para essa pergunta é consensual
entre os defensores desse tipo de cobrança: porque essas empresas exploram o mercado
nacional de maneira tal que impedem o florescimento de uma indústria local. Devem,
portanto, dar sua parcela de contribuição ao setor do qual fazem parte. As empresas
também alegavam que a Condecine só poderia ser regulada por Lei Complementar, e
não por Medida Provisória.
Antes que a Justiça decidisse qualquer coisa, foi aprovado, em maio de 2002,
um projeto de conversão (Lei nº 10.454) que fazia alguns ajustes legais e revia parte das
cobranças. Uma das taxas era a Condecine que incidia sobre os títulos exibidos na
televisão fechada. Em seu lugar, entrou a taxação sobre a remessa de lucros das
programadoras estrangeiras para o exterior (a Condecine Remessa); e os canais que
aplicassem o dinheiro do imposto em produções nacionais ficariam isentos da taxa.57 A
Lei 10.454/02 trouxe ainda uma redução das taxas a serem cobradas sobre a exibição
de comerciais na tevê. As agências de publicidade e os anunciantes tinham ficado
indignados com os valores previstos na primeira versão da MP 2228-1/01 mas, ao
contrário das majors, preferiram, ao invés de entrar na Justiça, buscar uma negociação
direta com a Ancine.
Tais alterações, se foram capazes de apaziguar os ânimos, fizeram também
com que a Ancine nascesse bem menor do que se vislumbrava. Quando apresentou o
projeto ao governo, o Gedic previa que as taxas e cobranças injetassem de R$ 400
milhões no setor. Quando foi editada a MP, estimava-se uma arrecadação da ordem de
R$ 70 milhões por ano. No ano da implantação da agência, essa previsão já havia caído
para R$ 40 milhões.

57
O mecanismo, instituído pela lei nº 10.454, tornou-se a redação final do Art. 39 da MP 2228-1. Essa
regra, que reproduz a lógica do Art. 3º da Lei do Audiovisual, será detalhada no tópico 3.3.


98

Apesar de a diretoria ter tomado posse em janeiro, foi apenas no segundo
semestre de 2002 que os recursos começaram a chegar e que a agência pôde se instalar
efetivamente. A questão é que, no momento em que a agência podia realmente começar
a trabalhar, o Estado começava a mudar. No segundo semestre de 2002, as pesquisas
eleitorais já indicavam que o governo Fernando Henrique Cardoso perderia as eleições
presidenciais. E a especulação que rondava o setor cinematográfico era: terá um
governo petista a intenção de manter intacto um projeto pensado pelo governo
peessedebista? Quando, após três derrotas consecutivas, Lula, candidato do Partido dos
Trabalhadores (PT), venceu as eleições, em outubro de 2002, a pergunta hipotética
tornou-se uma questão concreta. Pela primeira vez, um candidato de esquerda era eleito
no país. A partir de janeiro de 2003, novas interpretações e visões de Estado e de cultura
entraram em vigor, e o cinema e a Ancine não passaram ao largo disso.

2.3 A chegada do PT ao poder: uma nova cultura

O documento Imaginação a serviço do Brasil, de 2002, reservado às políticas


públicas de cultura dentro do programa da Coligação Lula Presidente, contém 20
páginas marcadas pelo tom reflexivo e pela ideia de democratização da cultura. O texto
defendia, em primeiro lugar, a cultura como sendo um direito social básico e sublinhava,
depois, o caráter econômico da produção cultural.
No caso do audiovisual, especificamente, o texto defendia que era preciso
estabelecer, a exemplo do que se faz em outros países, um vínculo direto e concreto
entre a produção e sua difusão nas redes de cinemas e nas televisões aberta e fechada.
Para isso, deveriam ser efetivadas, inclusive, as necessárias modificações na legislação.
A legislação em vigor quando o programa foi escrito era aquela estabelecida pela MP
2228-1/01, editada no ano anterior. A Ancine mereceu um parágrafo específico:

A criação da Ancine é positiva, na medida que fornece um mecanismo


concreto para a atuação do poder público numa área que consideramos
estratégica na formação do imaginário cultural do país. Porém, o seu
lugar no governo e a sua operação como instrumento de política pública
devem manter sintonia com a estratégia do novo Projeto Nacional
Democrático e Popular e ser objeto de um amplo debate com os setores


99

interessados (Programa de governo coligação Lula presidente, 2002, p.
24).

Ficava claro, nesse trecho, que a Ancine, tal e qual fora pensada, não estava
totalmente alinhada com o novo projeto em curso. É interessante notar que, entre os
colaboradores creditados no documento, não havia sequer um cineasta. O cinema,
portanto, apesar de ser tratado como um setor importante para o partido, não tinha um
representante no grupo de coordenação do programa. Segundo Meira (em entrevista à
autora, 2016), foi estabelecido um diálogo com o setor por meio de consultas feitas a
cineastas do Rio de Janeiro e de São Paulo e também de representantes da ABD, em
todas as regiões. Mas aqueles que tomaram a frente do III CBC ou integraram o Gedic
não foram chamados a contribuir formalmente para o programa.
A feitura do programa coubera, essencialmente, à ala cultural do partido,
formada por nomes como os dos atores Antonio Grassi e Sergio Mamberti, do poeta
Hamilton Pereira e dos professores Alfredo Bosi e Albino Rubim. A força da ala cultural
do partido e o apoio público de vários artistas e intelectuais a Lula fizeram com que, no
momento da composição ministerial, muito se especulasse a respeito dos nomes que
assumiriam a pasta.
Seria o MinC entregue a um quadro do partido ou a um artista ou intelectual
que havia se engajado na campanha? Nem uma coisa nem outra. A escolha de Lula,
tornada pública em dezembro de 2002, surpreendeu: o comando da cultura foi entregue
ao cantor baiano Gilberto Gil, filiado ao PV, partido da base aliada. A nomeação de Gil
causou certo desconforto na ala cultural do partido; a filósofa Marilena Chauí chegou a
definir a escolha como uma “burradinha” de Lula (Moreira, 2003). Gil, por sua vez,
disse ao presidente Lula que aceitava o convite desde que tivesse autonomia para montar
o ministério. E assim foi feito.
Apesar de alguns dos cabeças do programa, como Mamberti e o antropólogo
Márcio Meira, terem sido integrados ao MinC, passando a ocupar as secretarias de
Músicas e Artes Cênicas e Articulação Institucional, respectivamente, o coração do
ministério não passava pelo PT, e sim pelo PV e pela Bahia. Eram conterrâneos de Gil
os assessores especiais Antonio Risério, Roberto Pinho e Paulo Miguez, o secretário-
executivo, Juca Ferreira (que, além de ser baiano, era do PV), o secretário do Livro e
Leitura, Wally Salomão (1943-2003), e o secretário do Audiovisual, Orlando Senna.


100

A falta de vínculo direto do MinC com os integrantes do PT estendeu-se,
portanto, para a política do cinema. Jornalista, roteirista e cineasta, Orlando Senna é
baiano como Gil e foi muito amigo Glauber Rocha. Apesar de ter filmado durante os
anos de Embrafilme (o documentário Iracema – uma transa amazônica, de 1974, feito
em parceria com Jorge Bodanzky e censurado pelo regime militar, e a ficção Diamante
Bruto, de 1977), jamais fez parte do grupo que tinha influência sobre a empresa. Na
década de 1990, tornou-se diretor da Escuela Internacional de Cine Y TV de San
Antonio de los Baños, em Cuba e, de volta ao Brasil, passou a dar aulas no Instituto
Dragão do Mar, em Fortaleza. Sua proximidade com os estudantes de cinema seria
definidora na ocupação dos quadros da secretaria e, consequentemente, na formação
dos gestores que, nos anos seguintes, estariam à frente da política audiovisual do país.
Senna tornou-se, ao lado de Juca, um dos nomes de destaque da pasta. Eram
os dois que, na mídia e nos encontros com o setor cultural, defendiam as ações que o
ministério pretendia colocar em prática e tentavam imprimir novos significados ao
discurso sobre a cultura. Um dos esteios do discurso era a defesa de um novo
protagonismo para a pasta que, historicamente, nunca teve nem verba nem importância.
Apesar de ter sido criado em 1985, por um decreto assinado pelo presidente
José Sarney (1985-1990), o MinC, até então, tivera uma atuação pálida e errática. Em
sua primeira década de existência, a pasta teve nada menos que dez ministros. A
descontinuidade somada ao pequeníssimo orçamento inviabilizaram, nessa fase,
qualquer política continuada. Afirma-se, inclusive, que na passagem do primeiro para o
segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso teria oferecido o Ministério para alguns
partidos, mas que nenhum tinha se interessado (Calil, 2004). O cargo coube então ao
professor Francisco Weffort, que fora colega de FHC na Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, da USP (FFLCH-USP).
Sob Weffort, viveu-se a preponderância das leis de incentivo fiscal, que
colocam o Estado mais no papel de intermediário do que de agente central na definição
de políticas públicas de cultura. É que o espírito, desde a Lei Sarney, era “livrar” o setor
da tutela do Estado, transferindo para a sociedade civil “a iniciativa dos projetos, a
mobilização dos recursos e o controle da aplicação” (Furtado, 2012, p. 84).
Já no discurso de posse, em janeiro de 2003, Gil assinalou o desejo de mudar
essa lógica e fazer diferente: o Estado retomaria seu papel de agente provocador. O
ministério, segundo ele, passaria a ocupar-se da sociedade, e não apenas dos artistas –
o que significava dizer que a política não se limitaria a repassar verbas, via incentivo


101

fiscal, para que os criadores fizessem seus filmes, suas peças de teatro, etc. Sua fala era
moldada pela ideia de que a cultura vai muito além dos produtos culturais e que diz
respeito não apenas aos bens materiais, mas também aos bens simbólicos e aos saberes
de um povo. O discurso de Gil ia na contramão da visão elitista e conservadora da
cultura, derivada de um pensamento que foi dominante na primeira parte do século XX
– na Europa e no Brasil – e que teve em T.S. Elliot (1948) um de seus faróis. A fala de
Gil aproximava-se muito mais das definições de cultura de Raymond Williams e de
Clifford Geertz, autores para os quais a cultura era “ordinária” (Williams, 1958) e
representava um modo “total” de vida e o sistema simbólico de um povo (Geertz, 1973):

[Entenderemos] cultura como tudo aquilo que, no uso de qualquer


coisa, se manifesta para além do mero valor de uso. Cultura como aquilo
que, em cada objeto que produzimos, transcende o meramente técnico.
Cultura como usina de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de
signos de cada comunidade e de toda a nação. Cultura como o sentido
de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos. Dessa
perspectiva, as ações do Ministério da Cultura deverão ser entendidas
como exercícios de antropologia aplicada (...), no sentido de que
formular políticas públicas para a cultura é, também, produzir cultura
(Gil, 2013, p. 230-231).

A adoção dessa noção antropológica fez com que o ministério deixasse, em sua
plataforma política, de estar circunscrito à cultura erudita, expandido suas fronteiras
para as culturas populares, afro-brasileiras, indígenas, das periferias e etc. (Rubin, 2010).
Gil e sua equipe alinharam-se, desde o primeiro momento, à noção de diversidade
cultural e passaram a vocalizar duas palavras de ordem: descentralização e
democratização. A intenção era apoiar projetos que saíssem dos centros financeiros do
país e que, mais do que simplesmente dar acesso às obras produzidas por artistas já
conhecidos e aceitos, dessem voz a novos protagonistas, estimulando não só a fruição,
mas a criação. A cultura passava a ser entendida a partir de três dimensões: a simbólica,
a econômica e a cidadã.
O alargamento do conceito de cultura implicava ainda numa nova relação entre
Estado e mercado. Não seria mais possível, segundo Gil, deixar que as decisões a
respeito dos investimentos no setor ficassem, essencialmente, nas mãos de empresas
privadas que apoiavam a cultura por meio da renúncia fiscal. O ministério, defendia ele,


102

precisava sair de seu lugar de instituição periférica e esvaziada e retomar as rédeas da
política pública:

Como é possível que uma nação tão rica e plural em manifestações e


valores culturais tenha um Estado tão omisso e tão medíocre em sua
visão do papel da cultura e das políticas culturais? O Ministério da
Cultura tem clareza do principal desafio que a realidade brasileira
impõe: resgatar o papel do Estado, para ampliar o acesso da população
brasileira à produção e à fruição de bens e valores culturais, como forma
de universalizar o direito à expressão cultural, que constitui um dos
aspectos vitais do que chamamos cidadania (Gil [2], 2013, p. 281).

Se há uma tendência natural no capitalismo à hipertrofia entre Estado, mercado


e comunidade, com a tensão sendo sempre decidida em favor do mercado (Santos, 2010),
cabia ao Estado, na visão dos novos ocupantes do MinC, corrigir tal desequilíbrio. Esse
discurso, que implicava também numa distribuição mais equânime dos recursos
disponíveis, fez com que, já no primeiro ano do governo Lula, a pasta ganhasse um
protagonismo inédito. O ministro Gilberto Gil, pelo espaço midiático que a carreira de
cantor lhe assegurava e pelos apelos que vocalizava, tirou a pasta da invisibilidade à
qual era antes relegada.
Dentre as propostas que vieram à tona já no primeiro mês de governo e que
causaram barulho – apesar de, na prática, jamais terem se efetivado – estavam a reforma
da Lei Rouanet, a criação de uma loteria para engordar o Fundo Nacional de Cultura58
e a formulação de uma política integrada que unisse todos os órgãos e secretarias da
pasta. À medida em que foi trazendo essas propostas a público, a pasta, dona de parco
0,25% do orçamento da União, começou a acender debates. O primeiro deles foi sobre
a Lei Rouanet.

58
Instituído pelo Pronac (ver: nota de rodapé 23), o FNC deve ser responsável pela “oferta de apoios
financeiros em linhas de incentivo que se comprometam com a descentralização regional, setorial e
estética, abarcando as mais variadas expressões culturais brasileiras, potencializando toda a rede produtiva
e promovendo a liberdade de criação” (Ministério da Cultura. Fundo Nacional de Cultura. Disponível em:
cultura.gov.br/noticias-destaques/-/asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/fundo-nacional-de-cultura.
Acesso em 20 jul. 2016) O Fundo, a ser composto por recursos orçamentários e outras fontes de receita a
serem definidas, deveria responder pelo fomento direto do Estado. O FNC, no entanto, só passou a ter
recursos significativos quando passou a receber os recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (tema do
Capítulo 3).


103

Enquanto, em 2002, a lei de incentivo à cultura havia movimentado R$ 280
milhões, o orçamento do MinC tinha sido de R$ 132 milhões – ou seja, descontado o
custeio, não sobrava nada para investimento direto. Isso significa que a pasta tinha
pouquíssima ou nenhuma capacidade financeira para implementar políticas. Dada a
falta de recursos orçamentários, a ambição da equipe de Gil era passar a controlar o
destino dos recursos de incentivo fiscal. O argumento central era o de que o dinheiro de
renúncia era, em última análise, dinheiro público. Esse argumento toma por base o fato
de que, não fosse a lei, esse dinheiro iria para o Tesouro Nacional. Dentre os objetivos
dos novos ocupantes da pasta estava a tentativa de reverter a concentração dos
investimentos feitos via lei nas regiões sul e sudeste – onde estavam alocados 84% dos
recursos – e em espetáculos dos chamados artistas consagrados. 59
Apesar de o desejo manifesto ser o de alterar amplamente as formas pelas quais
o incentivo era usado, sabia-se que, no caso das decisões tomadas por empresas privadas,
não era simples imprimir uma mudança de curso. A própria lei, afinal de contas, entrega
à iniciativa privada o poder de escolha. No caso de estatais, contudo, a possibilidade de
mudança parecia estar ao alcance das mãos.
No mesmo momento em que o MinC tentava ampliar seu poder de ação por
meio das leis de incentivo, o setor de comunicação do governo revia a distribuição das
verbas da publicidade estatal. No governo FCH, a decisão de onde colocar os recursos
de publicidade e patrocínio cabia aos diretores de marketing de cada empresa. O
governo Lula decidiu, de saída, centralizar as decisões da Secretaria de Comunicação e
Gestão Estratégica (Secom), então comandada por Luiz Gushiken (1950-2013).
Em maio de 2003, já sob essa nova lógica, as estatais Eletrobras e Furnas
Centrais Elétricas publicaram seus editais de patrocínio, tornando públicos os novos
critérios para a concessão de apoios. Entre as exigências para o patrocínio havia a
menção a trabalhos e obras que oferecessem alguma contrapartida social – como a
exibição gratuita de filmes – e que estivessem em sintonia com a política governamental.

59
Passados 13 anos do documento Imaginação a Serviço do Brasil, Juca Ferreira, ao tomar posse como
ministro da Cultura no segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, em 2015, retomava o mesmo
discurso, prometendo brigar pela reforma da lei que voltava a adjetivar como “engodo” e “o ovo da
serpente neoliberal”. Ensaiada desde 2004 e objeto de um Projeto de Lei (PL) em tramitação Congresso,
a grande reforma da Lei Rouanet não havia sido efetivada até 2018.


104

Os textos traziam menções ao programa Fome Zero60 e à reafirmação da identidade
nacional.
A publicação dos editais fez com que no dia 5 de maio o jornal O Globo desse,
no alto da primeira página, a manchete para um assunto que, habitualmente, se restringia
ao Segundo Caderno: política cultural. À noite, o principal telejornal das Organizações
Globo, o Jornal Nacional, também repercutiu as novidades das estatais. Apesar de a
questão do cinema ser pequena diante da disputa que se desenrolava naquele momento
– a dos gastos do governo com propaganda – e de as mudanças na cultura dizerem
respeito a vários setores, foram os cineastas e produtores que fizeram estardalhaço e
protagonizaram os embates.
Cacá Diegues afirmou à TV Globo que os filmes brasileiros estavam prestes a
virar panfleto governamental e definiu os critérios como dirigistas; Barreto se
autoproclamou socialista e alertou que a democracia estava em xeque; Arnaldo Jabor,
na coluna que assinava nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, gritou contra as
“patrulhas ideológicas” originadas num “stalinismo difuso”. Jabor relembrou ainda,
saudoso, os anos 1960, quando ele e seus amigos eram “comunistas” e “fascinados por
operários” Outros que contestaram os novos critérios foram Caetano Veloso, casado
com a produtora Paula Lavigne (que nesse ano estava lançando o sucesso Lisbela e o
Prisioneiro), Andrucha Washington, um dos sócios da Conspiração Filmes, grande
produtora que nasceu fazendo publicidade, mas começava a atuar no cinema, e Hector
Babenco (1946-2016) e Zelito Viana, ambos habituados a conseguir recursos para
grandes produções desde a Embrafilme. Exceção feita a Babenco, todos eram do Rio.
Dias depois, 50 cineastas – Nelson Pereira dos Santos, Beto Brant, Eduardo
Coutinho (1933-2014), Fernando Meirelles e Jorge Furtado entre eles – vieram a
público para mostrar que a fala do grupo que se manifestou inicialmente não os
representava. Eles afirmaram que, ao contrário do que se veiculou na mídia, o grupo
capitaneado por Barreto e Cacá não falava em nome da totalidade dos cineastas
brasileiros e assinaram uma carta na qual se diziam favoráveis a uma redistribuição de
incentivos fiscais afinada com uma distribuição mais justa dos próprios bem culturais.
O diretor e roteirista Luiz Bolognsei, que havia acabado de estrear no longa-metragem
como roteirista de O Bicho de Sete Cabeças (2000), dirigido por Laís Bodanzky, foi um

60
O programa Fome Zero foi instituído pelo governo federal em 2003, para o combate à fome e à miséria,
e está na origem do Bolsa Família, uma das principais marcas do governo Lula.


105

dos articuladores da carta que, em alguma medida, explicitava o racha que levaria à
polarização que marcou a política cinematográfica nos anos de 2003 e 2004:

A militância de quem estava chegando era para democratizar o acesso


aos recursos públicos. Uma vez que o cinema é feito com recursos
públicos, os mecanismos de utilização e distribuição desses recursos
devem seguir princípios republicanos. E quando eu comecei a fazer
cinema, curtas-metragens, não era isso que acontecia. A Lei do
Audiovisual, num primeiro momento, significou uma concentração
muito grande dos recursos entre quem já estava estabelecido e era
poderoso, no caso, basicamente, o cinema mainstream da zona sul do
Rio de Janeiro. Essa turma, que antes mandava na Embrafilme, pegava
todos os recursos. E o que era mais chocante para nós, jovens que
estávamos querendo fazer o primeiro longa-metragem: eles pegavam os
recursos mesmo das empresas estatais. As decisões eram tomadas pelos
diretores de marketing ou pelo presidente dessas empresas, que
conheciam essa turma do Leblon. Eles decidiam o destino do dinheiro
em reuniãozinhas fechadas. Um grupo de uns dez cineastas e produtores
pegava 90% dos recursos e aí eles davam uma esmola para o resto se
matar entre si (Bolognesi, em entrevista à autora, 2016).

Bolognesi e outros jovens realizadores pregavam, nesse momento, a


redistribuição de recursos voltados ao cinema. Eles repunham a luta dos anos 1970,
quando os mesmos Barreto, Cacá e Zelito, que defendiam a distribuição de recursos
entre produtoras de filmes grandes, eram confrontados por Nelson, Joaquim Pedro de
Andrade, Miguel Faria Jr. e Leon Hirszman. Os primeiros queriam uma política
concentracionista, baseada na ideia de que o cinema brasileiro só vingaria se investisse
em poucos e grandes filmes; os outros, uma política distributiva, que defendia a divisão
dos mesmos recuros por um número maior de filmes de pequeno orçamento. Foi mais
ou menos isso que os cineastas reunidos em torno da ABD e da Apaci passaram a
reivindicar no início dos anos 2000.
Antes de encontrar eco junto a Gilberto Gil, esse grupo organizado desde o III
CBC, deu com a cara na porta dos gabinetes de Brasília algumas vezes. Desde o governo
FHC, eles clamavam pela instituição de regras públicas para a distribuição de recursos
das empresas estatais:


106

Chegamos a ter reuniões com [Francisco] Weffort e o José Álvaro


[Moisés]. Mas, com eles, essa ideia não colou. E quando entrou o Gil,
tivemos a percepção, inicialmente, de que não ia mudar nada porque,
imediatamente, esse grupo do Rio se aproximou dele, inclusive via
Flora Gil. Mas aí um grupo de entidades protestou, dizendo que o
diálogo com a Secretaria do Audiovisual e com o MinC tinha que ser
pelas entidades e não por pequenos grupos de pessoas que têm
relacionamento com o Gil. O Gil tomou um susto. Dissemos que o
Barreto não nos representava, que ele não falava por todos nós. A gente
começou a falar em público, soltar nota, dizendo que quem formula
políticas públicas são as entidades, e não indivíduos, e que as entidades
representativas tinham de ser ouvidas (Bolognesi, em entrevista à
autora, 2016).

Após os protestos, esse grupo foi recebido por Gil. O encontro se deu em um
pequeno auditório do MinC. Luiz Carlos Barreto compareceu:

A gente falou que respeitava o Barreto, e ele falou que não tinha
nenhum problema com as entidades e tal. Mas ficou claro, ali, que a
briga era pelos editais, e que a política não podia mais ser feita em
diálogo com meia dúzia de grandes cineastas que nós respeitávamos,
mas que não representavam o novo cinema brasileiro que estava
chegando. Desse encontro começaram a nascer as mudanças nas regras
de patrocínio (Bolognesi, em entrevista à autora, 2016).

Se, como afirma Bourdieu (2001, p. 88), a história do campo e “é a história da


luta pelo monopólio da imposição das categorias de percepção e apreciação legítimas”,
o campo cinematográfico brasileiro começava a escrever, nesse momento, mais um
capítulo da sua história. A política concentracionista deixava de ser vista como legítima
pelo governo e parecia realmente “ameaçada”. Essa sinalização governamental fez com
que o apoio à pasta de Gil explodisse, sobretudo, entre aqueles de fora do eixo Rio-São
Paulo que, mesmo admitindo que havia problemas na redação dos editais da Eletrobras
e de Furnas, se posicionaram a favor das mudanças propostas.
O cineasta gaúcho Jorge Furtado, um dos fundadores da Casa de Cinema de
Porto Alegre, mesmo trabalhando para a TV Globo, escreveu um texto chamado


107

“Cultura em cheque”, com “ch” mesmo, em alusão às questões financeiras em jogo; o
mineiro Helvécio Ratton declarou que os problemas contidos nos editais serviram de
pretexto para que “alguns cariocas” que, há anos, recebiam mais verbas das estatais que
todas as outras pessoas, se mobilizassem com o objetivo de não perder seu quinhão
(Stycer e Sousa, 2003).
Apesar de o patrocínio das estatais beneficiar diferentes manifestações
culturais, o cinema ficava com a maior fatia do bolo: dos R$ 38,6 milhões que a BR
investiria na área cultural em 2003, 80% foram para o cinema e os 20% restantes se
dividiram entre teatro, artes visuais, música, etc. Naquele ano, BR Distribuidora,
Petrobras, Correios e Banco do Brasil foram responsáveis por pelo 60% dos
investimentos em longas-metragens. Tratava-se, contudo, de um balcão ao qual nem
todos tinham acesso; Barreto, que liderou a grita contra as mudanças, estava entre
aqueles que tinham. A Petrobras e a BR Distribuidora financiaram, entre 1995 e 2000,
cinco filmes do produtor: O quatrilho (1995), O que é isso companheiro? (1997), Uma
aventura de Zico (1998), Bossa Nova (2000) e A paixão da Jacobina (2002).
Outro detalhe é que, enquanto boa parte dos filmes patrocinados pela BR e pela
Petrobras não recebia mais do que R$ 500 mil, Cacá e Babenco, dois dos que atacaram
frontalmente as mudanças, haviam sido beneficiados com valores superiores a isso.
Cacá recebera R$ 1,5 milhão da BR para fazer Deus é brasileiro (2003) e Babenco, R$
1,15 milhão da BR e mais R$ 1,1 milhão da Petrobras para a realização de Carandiru
(2003). Cabe registrar que ambos os filmes foram sucessos e tiveram rendas de R$ 11
milhões e R$ 28 milhões, respectivamente – valores que superaram seus orçamentos de
R$ 2,3 milhões (Carandiru) e R$ 2 milhões (Deus é brasileiro). Petrobras e BR tinham,
além disso, apoiado vários projetos da GloboFilmes 61 , braço cinematográfico das
Organizações Globo criado em 1998 – Cidade de Deus (2002), Deus é brasileiro,
Carandiru, Cazuza: o tempo não para (2004), A dona da história (2004) e Olga
(2004)62.
As reações negativas que ecoaram na mídia fizeram com que o presidente Lula
mandasse Gushiken e Gil se reunirem para resolver o impasse. Gushiken garantiu que
apenas as verbas de patrocínio esportivo e ambiental ficariam na Secom, e afirmou:

62 A data dos filmes corresponde ao lançamento dos títulos nas salas de cinema. Mas cabe observar que
os apoios a um longa-metragem são firmados ao longo de sua produção que se estende, habitualmente,
por pelo menos três ou quarto anos.


108

“Vocês [cineastas] são mais difíceis que o PT e ainda mais divididos” (Stycer e Sousa,
2003). O destino da verba da cultura – e do cinema em especial – voltava, portanto, a
ser definido pelas empresas. A mudança é que os editais das estatais deveriam estar em
consonância com as políticas definidas pelo MinC.
No caso da Petrobras, foi criado o Programa Petrobras Cultural, que integrava
todos os patrocínios da companhia e passava a trabalhar com consultores independentes
para garantir um processo transparente e um acesso mais democrático aos recursos.
Enquanto em 2002 tinham sido nove os projetos de cinema contemplados, em 2003
foram 28 os ganhadores. Ao longo da década seguinte, a empresa seria a principal
mantenedora do cinema nacional.63

2.4 As incompatibilidades entre MinC e a Ancine

Paralelamente à disputa nas estatais, se desenrolava uma outra disputa política


no cinema, que dizia respeito à Ancine. Se no caso das estatais a trégua foi rapidamente
alcançada, no caso da Ancine o cabo-de-guerra estava apenas começando. Como já
estava claro no plano de governo, a agência, apesar de ser vista como positiva, teria de
passar por modificações para se adequar às políticas que começavam a ser desenhadas.
Assim que chegou ao poder, o PT passou a questionar o papel das agências
reguladoras. Havia, em primeiro lugar, o entendimento de que se tratava de um modelo
neoliberal e que, portanto, apesar de adequado ao governo anterior, não estava alinhado
às diretrizes petistas. Outra questão é que, como os presidentes das agências têm
mandatos, o governo eleito não podia colocar à frente dos órgãos alguém de seu agrado
e confiança. A estratégia do governo foi, na medida do possível, retirar atribuições das
agências e ir fortalecendo os ministérios. A pressão sobre os diretores das agências era
tal que, ao longo de 2003, alguns deles chegaram a renunciar aos cargos – foi o caso de
Lia Gomenssoro, da Ancine.

63
Entre 1996 e 2014, a Petrobras destinou à cultura, via Lei Rouanet, cerca de R$ 1,5 bilhão – valor que
transformou a empresa no maior investidor em cultura do país. A partir de 2013, quando a empresa já
estava sendo investigada por irregularidades, os investimentos foram caindo. Em 2014, a petrolífera
deixou de figurar entre os dez maiores investidores em cultura. No caso específico do cinema, a Petrobras
apoiou, entre 2004 e 2011, a realização de 500 longas-metragens. Durante a euforia da descoberta do pré-
Sal, em 2006, a empresa era a principal patrocinadora do cinema brasileiro, investindo não apenas em
filmes como em festivais. Durante os festivais de cinema, assistia-se, antes das sessões, às peças
publicitárias que festejavam o pré-Sal. A diminuição dos investimentos da Petrobras no cinema brasileiro
só não foi catastrófica para o setor porque, quando a crise da empresa se agravou, os recursos do Fundo
Setorial do Audiovisual já estavam sendo distribuídos regularmente.


109

A Ancine, portanto, mal tinha sido instalada, se viu no meio de um debate mais
amplo, relativo às funções do Estado e ao papel dos ministérios na formulação de
políticas. E havia, além disso, questões específicas do setor cultural. Para os novos
ocupantes do MinC, ter o comando do cinema mostrava-se essencial para o
fortalecimento político e econômico de uma pasta ainda frágil. O cinema, afinal de
contas, era politicamente importante: tinha recursos e podia, quem sabe, contribuir para
a construção de um novo imaginário do país64.
Havia, dentro do MinC, um grupo com o entendimento de que não tinha sentido
a Ancine permanecer com a diretoria nomeada por FHC. Esse grupo tinha em mente
um outro projeto: retomar a ideia da Ancinav, a agência que morreu no nascedouro, em
2001, e que passaria a regular o audiovisual como um todo, e não só o cinema. Volta-
se, neste ponto, ao significado da indicação de Gil para o ministério e da consequente
escolha de Senna para a SAv. Gil, mesmo sendo próximo da turma dos “cardeais” do
cinema 65 , escolheu, para a pasta, um nome alheio a esse circuito. E concedeu ao
secretário carta branca:

Já na primeira conversa, eu disse a ele que queria trabalhar com gente


jovem e neófita na política de governo. Eu achava que era importante
haver a superação de uma liderança que estava há 40 anos em atividade.
Não havia nenhuma intenção de prejudicar ou arranhar a imagem dos
velhos líderes, ao contrário. Achava apenas que precisávamos de
sangue novo, que podia se juntar aos antigos líderes que estavam há
meio século ditando o que devia ser o cinema brasileiro. O que
aconteceu é que muitos dos antigos líderes não quiseram isso. Mas essa

64
A análise dos longas-metragens produzidos nos 14 anos em que o PT manteve-se no poder renderia, por
si, uma nova pesquisa – essa baseada nos aspectos internos dos filmes. É possível, de forma não empírica
e apenas a título de ilustração, mencionar vários longas-metragens que tematizaram a nova cara do
nordeste brasileiro e a ascensão econômica e social da chamada classe C: Era uma vez eu, Verônica
(2012), de Marcelo Gomes, Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert, Casa grande (2015), de
Fellipe Barbosa, e Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho. Houve, ainda, os filmes que se
debruçaram sobre Lula ou sobre o significado de sua eleição: os documentários Entreatos (2004), de João
Moreira Salles e Peões (2004), de Eduardo Coutinho, e a biografia Lula, o filho do Brasil (2009), de Fábio
Barreto; de forma metafórica e indireta, Dois filhos de Francisco (2005) foi outro filme a tratar da chegada
do homem pobre ao “poder”.


65
Gil conheceu Barreto ainda nos tempos do Cinema Novo; sua música Drão está na origem de uma das
histórias de Veja esta canção (1994), de Cacá Diegues; e Paula Lavigne, naquele momento influente no
cinema carioca, é casada com Caetano, parceiro artístico de Gil.


110

turma jovem foi muito importante no sopro de vitalidade que
movimentou aquele ministério (Senna, em entrevista à autora, 2014).

Foram levados, entre outros, Alfredo Manevy, que havia feito cinema na ECA
e era um dos editores da revista Sinopse, da USP; Manoel Rangel, também editor da
Sinopse, dirigente da ABD e integrante do PCdoB; e Leopoldo Nunes, presidente da
ABD, que tivera aulas de roteiro com Senna em Cuba. Em outras palavras: o secretário
que assumia tinha mais proximidade com a ABD, entidade de posições fortes contra o
cinema hegemônico e defensora da presença dos curtas-metragens nas salas de cinema,
do que com os caciques que integraram o Gedic e que estiveram à frente da criação da
Ancine. Outra diferença em relação aos velhos líderes é que os novos gestores eram
muito mais ligados à reflexão e à gestão do que à feitura de filmes. Apesar de terem
estudado cinema e dirigido curtas-metragens, não tinham o ímpeto de se tornaram
cineastas. Tinham, porém, o ímpeto da mudança.
Senna, influenciado inicialmente sobretudo por Leopoldo, nomeado chefe de
gabinete, chegou à SAv com uma ideia clara do que queria fazer. Esse grupo tinha, até
certo ponto, mais clareza programática do que o próprio Ministério. A turma da SAv já
chegou com um projeto, que não era o mesmo do Gedic, e também com um impulso
realizador. Sergio Sá Leitão, então assessor especial de Gilberto Gil e tão jovem quanto
os ocupantes da SAv, oferece uma descrição que contriui para a compreensão do que se
seguiria:

Essas pessoas que chegaram à SAV se mostraram pessoas competentes


e capazes, enquanto outras equipes daquele ministério mostraram ser
equipes muito boas no discurso, mas não realizadoras. A equipe do
Orlando era boa de discurso e boa de fazer. Justamente por ser uma
equipe, no geral, sem o fardo da política, ela carregava um desejo de
fazer, uma potência realizadora. A turma da secretaria do audiovisual
começou a fazer muita coisa e, como eles estavam mostrando resultado
e mostrando que sabiam o que pretendiam fazer, conseguiram um
respaldo interno. Eles passaram logo a gozar de um prestígio muito
grande no ministério. O Gil e o Juca não tinham uma ideia formada
sobre a questão do audiovisual, então todos compramos o discurso e a
prática da secretaria. Eu acho que o que mais encantou, neles, foi a


111

capacidade que eles tinham de fazer as coisas acontecerem (Leitão, em
entrevista à autora, 2014).

E a primeira mudança pela qual eles lutaram foi a ida da Ancine para o MinC.
Cabe aqui assinalar que, a despeito da movimentação inicial para que o papel das
agências fosse revisto, o governo foi, aos poucos, se dando conta de que isso não seria
possível. Primeiro porque a extinção dessas estruturas teria de passar pelo Congresso
Nacional; segundo porque o desmonte poderia colocar em risco a estruturação de setores
complexos, como energia e transportes. Pois se não era possível extinguir ou interferir
na Ancine, restava ao MinC puxar a agência para si, evitando que ela fosse para onde
tinha sido pensada: o Mdic.
Acontece, porém, que o desejo de se vincular o cinema à cultura não só rompia
com o que estava previsto na MP 2228-1/01 como desmontava a estrutura
interministerial defendida no próprio programa do PT:

Partimos da convicção de que o governo tem um papel fundamental a


cumprir no estímulo à produção, distribuição e exibição do produto
audiovisual brasileiro. Pelos fatores que envolve, pela complexidade do
processo de elaboração, que conjuga a dimensão propriamente artística
e cultural e a necessária dimensão industrial e comercial – o que exige
um tratamento interministerial – e pelas relações com o mercado, o
produto audiovisual deve merecer um tratamento em outros capítulos
do Programa de Governo (Programa de governo coligação Lula
presidente, 2002, p.23)

Como explicado anteriormente, a MP 2228-1/01 definia que a agência ficaria


vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic),
devendo permanecer, apenas em seu primeiro ano (de setembro de 2001 a setembro de
2002), vinculada à Casa Civil. A ideia de atrelar o cinema ao Mdic e não ao MinC,
capitaneada por Dahl, tomava por base a defesa do cinema como uma atividade
econômica, que gera empregos, tem necessidade de infraestrutura, envolve importação
e exportação, etc. Acreditava-se, além disso, que o vínculo com um ministério grande,
e de natureza eminentemente econômica contribuiria para o fortalecimento da atividade.


112

No entanto, na data prevista para a vinculação da Ancine ao Mdic, as pesquisas
eleitorais já indicavam que haveria uma alternância partidária 66 e os integrantes do
governo FHC determinaram que a agência de cinema ficasse sob a alçada da Casa Civil
até 31 de dezembro de 2002, quanto terminava o mandato presidencial.
Logo em janeiro, mal o PT assumiu, uma publicação no Diário Oficial manteve
a agência na Casa Civil. E já em seus primeiros pronunciamentos públicos, Juca
Ferreira, secretário-executivo do MinC e braço-direito de Gilberto Gil, passou a dizer
que o governo não devia estimular a dicotomia ente “indústria e produto cultural”, entre
“filme industrial e filme de arte”; para ele, era um “erro” achar que o MinC não podia
pensar “uma política industrial para o cinema” (Sousa, 2003). O cinema, afinal de
contas, era fundamental para que se fortalecesse a haste econômica do tripé pensado
para a cultura – as outras duas hastes eram representadas pela cultura como bem
simbólico e como exercício da cidadania.
Três meses após essas primeiras declarações, viria a público a oficialização de
que a Ancine, diferentemente do que previa a MP 2228-1/01, passaria a estar vinculada
ao MinC. Orlando Senna, em meio ao fogo cruzado, chegou a dizer então que a ideia
de que o cinema é indústria é falsa, reforçando, entre aqueles que eram contra a
mudança, que o projeto de cinema industrial seria enterrado (Sousa [2], 2003):

Ele [o cinema] tem duas faces, sem dúvida, mas os filmes são,
basicamente, um bem cultural (...) Como a Ancine foi criada sob um
governo neoliberal, tivemos que reavaliar seu papel à luz do novo
projeto de governo (Senna, em entrevista à autora, 2014).

Além de reiterar a dicotomia entre arte e indústria (Rosenfeld, 2003), Senna


criticava a supervalorização dos orçamentos, defendendo que fossem feitos mais filmes
no valor de até R$ 1 milhão. Ou seja, retomava-se a ideia da política distributiva em
oposição à política concentracionista. E vinham à tona, mais uma vez, as tensões entre
as diferentes visões de cinema. O que deveria prevalecer? A cultura ou a indústria? O
MinC ou o Mdic?

66
O primeiro turno das eleições presidenciais aconteceu no dia 06 de outubro de 2002 e o segundo turno
no dia 27 de outubro de 2002.


113

Durante o Gedic, Barreto, Cacá e Dahl defenderam ardorosamente a ida da
Ancine para o Midic. Parte do grupo que apoiava essa ideia era ligado ao Sindicato
Interestadual da Indústria Audiovisual (Sicav)67 e trabalhava com a concepção de que o
cinema deveria ter uma área para os “grandes” – sendo eles os “grandes” – e outra para
os “pequenos”. O “cinemão” ficaria no Mdic e o “cineminha”, no MinC. Um dos então
recém-chegados ao MinC relata, em off, a primeira reunião de Gil com esse grupo:

O Gil, com aquele jeito dele, disse assim: “Mas vocês vão para o Mdic
pra quê? Lá é um deserto afetivo. Aqui vocês vão ser prioritários, lá
vocês vão ser mais um setor, um segmento”. Eles não gostaram. Acho
que essa foi a primeira estocada nesse grupo. E talvez fosse a primeira
vez, em muitos anos, em que eles eram desalojados do poder, no sentido
de que não eram mais eles a propor uma política. Eles continuaram
sendo ouvidos, mas passaram a ser menos ouvidos. E foi isso que abriu
as brechas para que uma nova política começasse a ser construída
(Anônimo, em entrevista à autora, 2014).

Se, inicialmente, muitos cineastas foram a público defender a permanência da


Ancine no Mdic, com o passar dos meses o tom das vozes contrárias à mudança de
prumo foi baixando. O Sindicato da Indústria Cinematográfica do Estado de São Paulo
(Sicesp), então presidido por André Sturm, foi uma das poucas entidades de classe a
manter o posicionamento contrário. Já as entidades do Rio, o Sindicato da Indústria
Audiovisual (Sicav) e a Associação Brasileira de Cineastas (Abrace), logo passaram,
seguindo Barreto, a apoiar a ida para o MinC. Mas Barreto queria mais. E, seguindo
uma sugestão do próprio Gil, preparou um abaixo-assinado referendando a mudança.
No entanto, o documento que continha cerca de 40 assinaturas foi, rapidamente, tirado
de circulação. Vários cineastas – Cacá Diegues entre eles – negaram ter colocado o

67
Em 1945, foi criado o Sindicato das Empresas Cinematográficas do Rio de Janeiro, com forte presença
dos exibidores em sua composição; em 1952, a entidade tornou-se nacional e passou a chamar-se Sindicato
Nacional da Indústria Cinematográfica (SNIC). Na década de 1960, o SNIC chegou a ser ocupado por
integrantes do Cinema Novo. No entanto, conforme a pornochanchada foi ganhando força, o grupo mais
“cultural” formou outra entidade, a Associação Brasileira de Produtores de Cinema (ABPC), que manteve
relações estreitas com a Embrafilme. Em 1975, surgiram duas associações de cineastas: a Associação
Brasileira de Cineastas (Abraci), que congregava profissionais de várias categorias, mas que tem o Rio de
Janeiro como recorte geográfico, e a Associação Paulista de Cineastas (Apaci), que já tinha, entre as
demandas, a descentralização de verbas da Embrafilme (Amâncio, 2000). No ano 2000, o SNIC passou a
chamar-se Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual (SICAV).


114

nome ali. As explicações para o empenho de Barreto vão desde a incontornável vocação
do produtor para alinhar-se com quem está no poder até a tentativa de obter, por
intermédio do MinC, o perdão de uma dívida de R$ 6 milhões contraída com o Banco
do Brasil68. Instado a falar sobre a mudança repentina de opinião, o produtor diz que,
simplesmente, “amoleceu”:

Eu defendia a ida para o Mdic. O Gustavo [Dahl] permaneceu


defendendo isso. Mas eu amoleci. Pensei: “O Mdic é bom e tal, mas o
Celso Amorim69 tinha me dito para termos cuidado com o Mdic porque
lá os caras só iam pensar em frango e agroindústria”. Então a gente ia
virar uma sementinha pequena. Fiquei pensando naquilo. Daí em uma
solenidade que teve lá no Palácio eu falei que o Mdic era bom, mas que
o Ministério da Cultura era melhor, porque pelo menos lá tem alegria e
tal. Não tem dinheiro, mas tem alegria. Aí me rendi ao negócio (Barreto,
em entrevista à autora, 2012).

A produtora Mariza Leão conta a versão de que havia, entre cineastas e


produtores, o receio de que, no Mdic, fossem cobrados apenas do ponto de vista do
resultado comercial dos filmes. O que se colocava também é se a Ancine “pretendia ser
um órgão pequeno em um ministério grande (o Mdic) ou um órgão grande em um
ministério pequeno (o MinC)” (Ikeda, 2015, p. 112). Mariza acredita que, mesmo sendo
relevantes essas questões, o fiel da balança foi Gil:

68
No ano 2000, a Secretaria do Audiovisual lançou, em conjunto com o BNDES e o Banco do Brasil, o
Mais Cinema, programa de empréstimos destinado a ajudar o setor combalido. O programa previa que o
MinC daria a cada produtor um “prêmio” correspondente a 20% do valor tomado. Ao todo, 21 produtores
fizeram o empréstimo; ao fim de três anos, apenas sete tinham quitado a dívida. Barreto era um dos
endividados e, na mudança de governo, liderou o grupo que procurou o novo secretário do Audiovisual,
Orlando Senna, para tentar a anistia. A confusão envolvendo a dívida viria a público em 2004, quando
Barreto, Zelito Viana, Aníbal Massaini, Paulo Thiago, Bruno Stroppiana e Murilo Salles – todos do Rio
de Janeiro, exceção feita a Massaini, que é de São Paulo – engendraram a venda de 115 filmes para a
Cinemateca do MAM. A compra do acervo seria feita com patrocínio do próprio Banco do Brasil, por
meio da Lei Rouanet. Com o dinheiro da venda, os produtores quitariam as contas com o Mais Cinema.
A proposta causou desconforto porque dava aos inadimplentes um benefício do qual se viram furtados os
que haviam quitado a dívida. O estratagema, além disso, reforçava a ideia de que um mesmo grupo, de
novo, teria vantagens sobre os demais. Uma vez tornada pública, a negociação não se efetivou. O episódio
está relatado em: Mônica Bergamo. Alguém bate à porta. Folha de S. Paulo, 23 de junho de 2004, p. E2,
e Ana Paula Sousa. O Proer das telas. Revista CartaCapital, 6 de julho de 2004, pp. 48-50.
69
Ministro das relações exteriores do governo Lula, Celso Amorim foi também presidente da Embrafilme
entre 1979 e 1982.


115

Existiam as polarizações arte versus indústria, mas eu não sei como isso
teria sido encaminhado se não fosse o fascínio pela figura do Gil e tudo
aquilo que a gente estava sentindo no início daquele governo. Vivíamos
a utopia com a chegada da esquerda ao poder. Você pode imaginar o
que era? Gente, nós estávamos inebriados! Chegamos ao poder. Depois
de 200 anos batendo tambor na rua, a gente estava subindo a rampa do
Planalto com o cara em quem a gente votou tantas vezes antes. O
ministro desse cara, que também é uma figura mítica, nos chama, vira
para a gente e diz assim: “Eu quero vocês”. A gente vai dizer que vai
para o Ministério da Indústria e Comércio? Não tinha condições, não
tinha convencimento emocional – racional podia ter – que nos
mantivesse no Mdic (Leão, em entrevista à autora, 2014).

Cacá Diegues, que havia tido o primeiro conflito com o governo por causa dos
editais de Eletrobras e Furnas, foi um dos que não “amoleceram”:

Essa aparente bobagem quebrou a espinha da Ancine. Porque na hora


em que você desfaz esse equilíbrio que a gente criou, você quebra a
espinha de autoridade da Ancine: ela passa ser uma Embrafilme sem ser
empresa, né? A Ancine não é uma agência de regulação e fiscalização,
como tínhamos elaborado; é uma agência de regulação, fomento e
fiscalização, o que é um conflito. Você não pode regular aquilo que
você fomenta, não é verdade? O Gil sempre viu o ministério como
sendo da cultura e da indústria cultural, como é o modelo francês. Ele,
afinal de contas, é um cara de música, que é a única indústria cultural
no Brasil. Entre os cineastas, tinha uma parte que já era a favor, outra
parte foi convencida e uma minoria foi atrás quando viu que não tinha
mais jeito (Diegues, em entrevista à autora, 2014).

É interessante notar que, apesar de, ao menos em tese, a ida para o Mdic
beneficiar o cinema industrial, foram os grandes produtores os principais defensores da
migração para o MinC. Ou seja, é possível argumentar que quis ir para o MinC quem,
de alguma maneira, acreditava no poder da interlocução e da proximidade com os
administradores públicos e as falas de Barreto e Mariza corroboram essa hipótese. Foi
sobretudo o cinema carioca que saiu em defesa da mudança, deixando para trás o projeto
que eles próprios tinham idealizado. Tanto é assim que vários produtores de São Paulo


116

mantiveram a posição favorável à permanência da agência no Mdic. Assunção
Hernandez (em entrevista à autora, 2014) diz que a ida da Ancine para o MinC foi a
primeira derrota da nova política do cinema. Toni Venturi, próximo do PT e “pequeno”,
usa a palavra barganha para definir o acordo:

O Gil falou: “Eu vou para o Ministério da Cultura se o cinema ficar com
a gente”. A gente tinha feito todo um trabalho de dois anos, capitaneado
pelo Barreto e, de uma hora para a outra, ele disse: “Não vamos mais
[para o Mdic]”. Foi o primeiro grande embate entre esse grupo e o
pessoal mais ligado ao cinema independente. O José Dirceu [ministro-
chefe da Casa Civil] escutou nossa argumentação, mas acabou indo para
o lado mais forte, que era o capitaneado pelo Barreto. Penso que esse
grupo fez esse acordo porque, de alguma forma, achou que, no MinC,
ia fazer o que queria. Mas não. O Gil teve uma postura autônoma
(Venturi, em entrevista à autora, 2014).

Se a ida para o MinC foi vista, pelo grupo capitaneado por Barreto, como a
garantia de que seguiriam sendo amigos do rei, o tempo mostraria que eles não detilham
mais a exclusividades nessa relação com o poder. Outras vozes e outras ideologias
foram ganhando espaço. Tanto é assim que, já no ano seguinte, parte dos cineastas e
produtores que apoiaram a ida da Ancine para a Cultura entraram em confronto direto
com os integrantes da pasta.
A ida da Ancine para o MinC, oficializada no dia 13 de outubro de 2003, teve
efeitos diretos sobre a estruturação do setor. E não foi só a Ancine que o MinC puxou
para si. Em decreto publicado nessa mesma data, estabeleceu-se que a presidência do
Conselho Superior de Cinema passaria a ser exercida pelo secretário-executivo do MinC
e não mais pelo diretor-presidente da Ancine.
Apesar de a MP 2228-1/01 outorgar ao Conselho a formulação das políticas do
setor, o que aconteceu na prática foi outra coisa. No primeiro ano do governo Lula, o
Conselho sequer se reuniu. A atuação da Ancine, por sua vez, se resumia basicamente
à “publicação de instruções normativas” e à gerência dos incentivos fiscais (Ikeda, 2015,
p. 70). A Secretaria do Audiovisual, por outro lado, passou a concentrar a formulação e
os discursos relativos à política de cinema. Conforme a SAV, na figura de Orlando
Senna, ia ganhando força, Gustavo Dahl ia deixando de ser o nome central da política


117

de cinema. Leopoldo Nunes70 avalia que, para além da alternância partidária, o que se
vivia era uma mudança geracional que ia se desenhando a partir da composição dos
segundo e terceiros escalões do MinC:

O Gustavo foi uma pessoa estratégica, generosa, mas as nossas


diferenças geracionais começaram a aparecer. A Ancine foi criada a
partir da lógica dos grandes produtores brasileiros. Aquilo era uma
coisa de uma geração analógica. O Gustavo foi um cara que transmitiu
muito saber pra gente. Mas nós tivemos que romper com ele. A Ancine
foi toda pensada para ficar dentro do Mdic. Mas a gente precisava tornar
o MinC um ministério de verdade, e a Ancine era importante. Quando
a Ancine foi para o MinC, o Gustavo não quis se alinhar (Nunes, em
entrevista à autora, 2014).

Assim que foi publicado o decreto que vinculou a Ancine ao MinC, começou
a circular a informação de que a equipe do ministério tinha a ideia de pôr fim à agência
tal e qual ela era para criar um órgão chamado Ancinav. As informações sobre esse novo
órgão eram difusas e fizeram com que o grupo que girava em torno de Luiz Carlos
Barreto se mobilizasse e organizasse, no Rio de Janeiro, uma reunião na casa da cineasta
e produtora Helena Solberg, ligada ao Cinema Novo. Barreto diz que o setor queria não
só entender o projeto que estava sendo gestado mas queria, primeiramente, pôr fim à
disputa entre Dahl e Senna:

O Orlando Senna entrou em luta de poder com o Gustavo, invadindo as


atribuições da Ancine. Isso chegou a um ponto que tivemos de fazer
uma reunião na casa da Helena Solberg, com um grande número de
cineastas e produtores, para falar que eles eram dois homens do cinema
brigando por poder político e que isso não podia acontecer (Barreto, em
entrevista à autora, 2014).

70 Em 2004, Leopoldo Nunes assumiria a diretoria de patrocínios da Secretaria de Comunicação de

Governo e Gestão Estratégica do Governo Federal (Secom). A mudança fez com que aumentasse a
percepção de que o cinema estava “cada vez mais influente nas decisões sobre os patrocínios culturais do
governo federal” (TelaViva, 25 de junho de 2004:
http://convergecom.com.br/telaviva/25/06/2004/leopoldo-nunes-assume-diretoria-de-patrocinios-da-
secom. Acesso: 11 de julho de 2016).


118

A fala de Barreto indica o quanto o produtor ainda acreditava em seu poder de
colocar “ordem” no meio cinematográfico. O resultado da reunião mostrou, porém, que
os novos atores em luta no campo estavam dispostos a fazer valer suas aspirações e
visões de mundo. Senna, ao invés de acatar o pedido de pacificação de Barreto, explicou
que havia, sim, a intenção de modificar o modelo em vigor, de renovar a diretoria da
Ancine e de retomar o assunto televisão. Informou ainda que tudo seria resolvido em
menos de um mês, por meio de uma Medida Provisória que seria enviada ao Congresso.
Se o grupo de Barreto imaginava que o que estava em jogo era uma simples
briga por espaço e poder envolvendo Senna e Dahl, os meses mostrariam que, dentro
dos gabinetes do Ministério da Cultura, o que estava sendo gestado era algo muito
maior. O projeto de criação da Ancinav, que viria a público em agosto de 2004, era a
mais ampla política de regulação já proposta por um governo brasileiro para o
audiovisual e “a primeira tentativa sistêmica (...) de regulação do conteúdo e promoção
da diversidade cultural nas comunicações” (Ikeda, 2015, p. 107). Sua divulgação
provocaria um abalo de proporções sísmicas no setor.

2.5 Projeto da Ancinav: o campo em disputa

Nos anos 1950, quando começou a ser elaborado o projeto do Instituto


Nacional de Cinema (INC), o campo cinematográfico estava contaminado pela euforia
da industrialização e do desenvolvimentismo. Em 2003, quando foi gestado o projeto
da Ancinav, vivia-se a euforia da eleição de Lula para a presidência da República.
Nesse momento, parte do meio cinematográfico tinha a sensação de que havia,
enfim, chegado ao poder um governo que talvez tivesse mais disposição para enfrentar
interesses financeiros internacionais. Era sabido que, historicamente, a régua usada para
medir o quanto valia a pena enfrentar Hollywood era a da política internacional e que a
conclusão sempre foi a mesma: os dividendos do cinema não compensavam possíveis
perdas em outras frentes. Em 2003, no entanto, a questão da dominação estrangeira no
audiovisual tinha voltado com mais força e novos contornos.
A despeito de os dois mandatos do presidente Lula (2003-2010) serem
descritos como uma mistura difusa entre conservadorismo e mudança, entre ordem
neoliberal e discurso esquerdista (Singer, 2012), a chegada de um ex-líder sindical ao
poder alimentou expectativas de que o país pudesse dar uma guinada à esquerda – o que
podia significar, entre outras coisas, enfrentar alguns monopólios.


119

Singer (2012, p. 126) compara a eleição de 2002, no Brasil, com a eleição de
Franklin Delano Roosevelt em 1932, nos EUA: uma eleição de alternância marcada pela
formação de uma nova maioria; na visão do autor, o “lulismo introduziu o New Deal no
imaginário nacional, funcionando como sintoma ideológico”. Não deixa de ser
interessante pensar que, como apontado no tópico 1.1, foi Roosevelt quem disse que
onde os filmes norte-americanos fossem iriam também os produtos e a cultura do país.
O presidente Lula, durante o lançamento do “Programa brasileiro de cinema e
audiovisual: Brasil um país de todas as telas” mencionou os efeitos da política
roosevelteana sobre o cinema:

Passamos a nos espelhar no que nos é dado ou imposto de fora. A troca


é saudável, a dominação não. Bloqueamos os nossos produtos, demos
de presente os nossos mercados. Estávamos fazendo isso na contramão
da história, no momento em que os países desenvolvidos mais
protegiam as suas [produções] (Agência Brasil, 2003).

O programa “Brasil um país de todas as telas” – cujo lançamento teve a atriz


Maria Fernanda Cândido como mestre de cerimônias – estava estruturado a partir de
quatro eixos: produção, difusão, formação/memoria e politica externa. Ou seja, estava
entre os objetivos do governo fazer com que, por meio dos filmes, o Brasil exportasse
sua cultura71. Não por acaso, a política externa foi definida como um dos pilares do
programa.
Nesse momento, já havia, em parte do eleitorado de Lula, a percepção de que,
como indicava a Carta ao Povo Brasileiro, de junho de 2002, o PT estava decidido a
adotar uma política econômica conservadora e a fazer concessões à burguesia. Lula,
como escreve Bresser-Pereira (2015, p. 343), sabia que a “política é a arte do
compromisso” e que não seria possível “governar o capitalismo sem os capitalistas”.
Para parte do eleitorado, no entanto, o “simbolismo do gesto” da Carta passara
despercebido, sendo interpretado como uma mera “decisão de campanha” (Singer,
2012, p. 96-97). O meio cinematográfico parecia integrar esse segundo grupo. O que
contribuía para a crença de que o enfrentamento com o capital viria é que, na cultura, o
desejo reformista que marcava o PT até 2002, manteve-se intacto no programa.

71
O programa: “Brasil: um país de todas as telas” foi mantido até 2010; em 2014, foi lançado o programa
“Brasil de Todas as Telas”.


120

No caso do cinema, especificamente, havia ainda uma outra razão para a
euforia. Em 2003, a produção nacional obteve resultados expressivos, atingindo
números que não voltariam a se repetir nos 15 anos seguintes. Nesse ano, os títulos
nacionais venderam 22 milhões de ingressos, atingido um market share de 21,62%. Para
se ter clareza do que isso significava basta dizer que, entre 1995 e 2000, o market share
tinha ficado entre 1% e 8%. Em 2002, 28 longas-metragens somaram 7 milhões de
ingressos, respondendo por 7,77% do total das bilheterias; em 2003, apenas Carandiru
totalizou 4,6 milhões de espectadores, marca que não era atingida pelo cinema nacional
desde a década de 198072. A produtora Assunção Hernandez, então presidente do CBC,
ecoando mais uma vez a divisão entre os diferentes tipos de cinema, sublinha que a
comemoração se devia não apenas aos números:

O que nos animou também é que, desde a década de 1970 e até então,
todos os blockbusters eram cópias da televisão. Era aquela coisa bem
Xuxa, Trapalhões73, coisas realmente sem conteúdo cultural, digamos
assim. E em 2003, não74. A gente comemorou demais (Hernandez, em
entrevista à autora, 2014).

O desempenho excepcional fez com que se acreditasse que o cinema nacional


estava entrando em uma nova etapa de desenvolvimento e que o market share dos anos
1970 não era mais um sonho inatingível. Como a fala de Assunção demonstra, as
produções lançadas encaixavam-se, além disso, nas expectativas dos defensores do
cinema como arte e cultura. Apesar de o segundo e o terceiro filmes mais vistos no ano,
Lisbela e o prisioneiro e Os normais, terem sido realizados por diretores da TV Globo
(Guel Arraes e José Alvarenga Jr., respectivamente) e de todos os filmes com mais de
um milhão de espectadores terem sido coproduzidos pelas majors, criou-se o
sentimento, em parte do setor, de que era chegada a hora não só do cinema comercial
como do cinema de autor nacional. Contribuiu para essa sensação o fato de filmes de
feitio autoral terem obtido destaque. Foi esse o caso, por exemplo, das ficções O homem
que copiava, de Jorge Furtado, e Amarelo Manga, de Cláudio Assis, que tiveram


73
Nos anos 1980, oito filmes protagonizados pelos personagens Dedé, Didi, Mussum e Zacarias, Os
Trapalhões, atingiram ou superaram a marca do 4 milhões de espectadores; Os saltibancos trapalhões
(1981) foi visto por 5,2 milhões de espectadores. No período de 1995 a 2002, dos 12 filmes que fizeram
mais de um milhão de espectadores, seis foram protagonizados por Xuxa ou Renato Aragão.


121

repercussão crítica e venderam, respectivamente, 664 mil e 130 mil ingressos; e do
documentário Nelson Freire foi visto por 61 mil pessoas nos cinemas.
O tempo mostraria, porém, que se tratou muito mais de um ano excepcional do
que de um novo momento75. Ao fim de 2004, a venda de ingressos já tinha caído para
16,4 milhões (uma queda de 25% em relação a 2003) e, em 2008, o pior ano da primeira
década dos anos 2000, o número de espectadores do cinema brasileiro foi de pouco mais
de 9 milhões. Mas esse futuro ainda não havia chegado quando, dentro dos gabinetes da
Secretaria do Audiovisual, começou a ser escrito o projeto de criação da Agência
Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav).
O anteprojeto de lei que criava a Ancinav começou a ser elaborado logo no
primeiro ano de governo, tendo Manoel Rangel como o principal responsável pela
redação; a supervisão cabia a Orlando Senna, secretário do audiovisual. A primeira
versão do projeto foi concluída no fim do primeiro semestre de 2004. O texto, de 59
páginas, continha 141 artigos e estabelecia novas regulações em três áreas principais:
(1) propriedade estrangeira nas atividades cinematográficas e audiovisuais; 76 (2)
direitos autorais; 77 e (3) cotas, taxas e subsídios para o cinema e a produção
independente.
A despeito de fazer referência ao projeto como um todo, este capítulo fechará
o foco sobre o terceiro aspecto do texto que criava taxas e obrigações para exibidores,
distribuidores estrangeiros e televisões abertas. A opção se deve, primeiro, ao fato de
que os limites impostos à propriedade estrangeira e as mudanças no sistema de direitos
autorais não são aprofundados no projeto, o que tornaria difícil uma análise precisa. Em
segundo lugar, os debates públicos e a cobertura midiática recaíram basicamente sobre

75
Um dado a não ser desconsiderado quando se fala no market share excepcional de 2003 é que, nesse
ano, o cinema hollywoodiano não teve uma safra tão forte quanto em outros anos. Enquanto, em 2002, os
filmes das franquias Harry Potter, Senhor dos Aneis e Homem-Aranha foram imensos sucessos, em 2003,
o filme mais visto, O todo poderoso, ficou na casa dos 5 milhões de ingressos ante os 8 milhões de Homem-
Aranha. É claro que a principal explicação para o alto market share reside, em primeiro lugar, nos filmes
brasileiros; mas esta nota tem o propósito de chamar a atenção para as nuances do mercado de cinema.

76
O Art. 8 do texto dizia: “O poder público, levando em conta os interesses do país no contexto de suas
relações com os demais países, poderá estabelecer limites, mediante lei, à participação estrangeira no
capital da exploração de atividades cinematográficas e audiovisuais”. Esse é um dos artigos que, à época,
foi considerado inconstitucional; o texto não levava em conta a definição de empresa nacional presente na
Constituição.

77 De acordo com o projeto, o pagamento de direitos autorais sobre músicas executadas em filmes deixaria
de ser controlado pelo Escritório Central de Arrecadação de Direitos (Ecad) e passaria para a tutela da
Ancinav. O Ecad argumentava que a submissão dos direitos de autor a uma autarquia federal era
inconstitucional.


122

a terceira área. Foram os artigos relativos à regulação do cinema e da televisão e às
medidas protecionistas que motivaram os grandes embates e mostraram como os
agentes se unem ou se enfrentam na defesa de seus interesses e crenças.
A maior disputa envolvendo o cinema brasileiro no século XXI – alguns
entrevistados defendem que foi a maior da história – foi desencadeada no dia 2 de agosto
de 2004, quando o site Converge.com, que abrigava a TelaViva, publicação
especializada nos setores audiovisual e de telecomunicações, divulgou o projeto de lei
que previa a criação da agência. Apesar de o governo afirmar que o texto era apenas um
rascunho, o vazamento provocou, nas palavras de um dos integrantes do ministério, um
verdadeiro terremoto.
Do dia para a noite, o MinC passou a ser chamado de “xenofóbico”,
“autoritário”, “stalinista”, “autocrático”, “frívolo”, “estatizante”, “dirigista”,
“controlador”, “intervencionista”, “chavista”, “soviético” (Gil, 2004 [3], p. 299). Na
descrição de Alfredo Manevy, então um dos assessores da SAV, um “edifício desabou”
sobre a cabeça deles:

De um lado, foi como se tivesse vindo uma chuva de canivetes em nossa


direção. De outro, foi uma injeção de adrenalina porque, se fosse tão
ruim ou inofensivo, o projeto não teria sido levado às altas cúpulas das
empresas e não teria gerado uma reação tão orquestrada (Manevy, em
entrevista à autora, 2014).

Manevy refere-se especialmente à reação da mídia. O projeto motivou a


primeira reportagem virulenta da revista Veja e o primeiro editorial do Jornal Nacional
contra o governo Lula. Em linhas gerais, o que se procurava difundir era que o governo
havia mostrado sua face autoritária e que, por trás da nova lei, estava o desejo de
censurar o cinema nacional e de aumentar a presença do Estado na economia. Manevy
(em entrevista à autora, 2014) reputa como irônico o fato de uma polêmica no setor
audiovisual dar origem a uma crise política do governo: “De repente, você tinha, em um
ministério pequeno, do qual certamente não se esperava muita coisa, um projeto que
ganhava atenção da mídia e da esquerda”.
Outros dos ouvidos para esta pesquisa atribuem o tamanho da polêmica a certo
oportunismo. A Ancinav teria servido de deixa para que se procurasse enfraquecer o
governo Lula e colar a ele e sua equipe a pecha de autoritários e ditatoriais. O jornal O


123

Globo chegou a usar uma foto do então ministro José Dirceu para ilustrar a reportagem
“Nova lei para o audiovisual é duramente criticada” (O Globo, 2004), deixando
subentendido que, por meio da Ancinav, Dirceu e Lula controlariam a mídia e a
produção audiovisual no Brasil e, com isso, se perpetuariam no poder. Poucos dias
depois do vazamento do projeto da Ancinav, outro movimento do governo contribuiria
para a construção desse imaginário. No dia 6 de agosto, o presidente Lula encaminhou
ao Congresso Nacional um projeto de lei que previa a criação do Conselho Federal de
Jornalismo (CFJ) que teria poderes para o orientar, disciplinar e fiscalizar a atividade
de jornalística. O projeto foi tratado pelos veículos das Organizações Globo e dos
grupos Folha e Estado como uma ameaça à imprensa livre. Dez anos após o episódio,
Dirceu citaria o “fantasma da Ancinav” (Dirceu apud Rodrigues, 2013) para dizer que,
no Brasil, qualquer tentativa de regulação da mídia é tratada, indevidamente, como
censura.
O vazamento do texto é atribuído ao Ministério das Comunicações, pasta então
comandada por Eunício Oliveira (PMDB-CE). Mas essa é apenas uma das versões.
Outras versões, como a do ex-secretário do audiovisual, dão conta de que o próprio
vazamento é falacioso. Orlando Senna pondera que é inconcebível a ideia de um projeto
sendo gestado secretamente, até porque, inevitavelmente, ele teria de ser discutido no
Congresso Nacional:

Houve uma jogada muito suja de dizer que o projeto só tinha chegado
às mãos das pessoas porque houve o vazamento. Tinha toda uma agenda
para esse projeto. Na véspera do dia em que eu ia distribuir para todo
mundo, mandei cópias para Barreto e para quem deveria ser mandado
– lideranças que eu achava que deveriam estudar isso com mais
profundidade. Ou seja, a gente mandou cópias apenas para algumas
pessoas e, no outro dia, ia mandar para todo mundo. Mas aí falaram que
vazou. É uma coisa meio maluca, foi uma jogada. Como pudemos ser
acusados de estar fazendo uma coisa secreta se estávamos conversando
com o presidente da Globo? Se eu quisesse fazer uma coisa secreta, não
ia procurar Roberto Irineu Marinho [presidente das Organizações
Globo]. Como é que você está fazendo uma coisa secreta conversando
com o cara que pode destruir aquilo? Ou seja, apesar de a ideia de
projeto secreto ter se espalhado, ela é uma informação histórica


124

absolutamente truncada. Eu não te diria que me senti traído, mas me
assustei com o tamanho da reação (Senna, em entrevista à autora, 2014).

Entre aqueles que receberam o projeto após a divulgação pelo site Tela Viva,
a memória é outra:

Eu me lembro bem de quando eu recebi aquilo. Eu sei que foram dias


complicados de articulação. Todo mundo se telefonando, uma puta
confusão. Era engraçado até. Mas aí a gente já sabia que, como tinha
vazado, não tinha mais como continuar daquele jeito. O vazamento só
apressou o enterro. Eu reportei para a Paramount, claro, mas eles não
entenderam porra nenhuma [risos]. E tinha a MPAA. O Steve Solot só
ficava traduzindo pra eles. Os estúdios foram informados, mas eles, por
definição, acham que têm tanto poder que, na prática, não se preocupam
muito com isso. Eles se preocupam com o mercado. As majors só
participaram dessas confusões todas porque tinha eu e o Rodrigo
[Saturnino Braga], que viemos da Embrafilme com esse vício de fazer
política de cinema (Peregrino, em entrevista à autora, 2014).

Um detalhe que chama a atenção nessa quesão do vazamento é o quanto, até


mesmo nas pequenas reviravoltas e tramas, a história do cinema brasileiro parece ir se
repetindo – de forma quase farsesca. O projeto do INC também teve algumas de suas
ideias centrais divulgadas pela imprensa de maneira extraoficial e que, por conta disso,
passou por modificações78.
Dois dias após o vazamento do projeto da Ancinav houve uma reunião na Casa
Civil, durante a qual o projeto foi apresentado para José Dirceu. O então ministro disse
aos integrantes do MinC que não era necessário arquivar a proposta, mas que, para levá-
la adiante, era preciso debatê-la com a sociedade e limar possíveis excessos e
inconstitucionalidades – o texto tratava de matérias regidas pela Lei Geral de

78
O projeto do INC previa a taxação sobre filmes estrangeiros. A ideia já aparecia no projeto de
Jorge Amado e foi explorada na tese Limitação de importação e taxação de filme estrangeiro por metro
linear, de Alex Viany. José Inácio de Souza (1981) atribui ao vazamento do texto escrito por Jorge Amado,
inclusive, o surgimento da Associação Paulista de Cinema (APC), criada para defender o cinema nacional.
Temia-se, à altura, o excesso de poder nas mãos do INC, a censura temática e ainda a dominação do
cinema nacional pelo capital estrangeiro.


125

Telecomunicações (lei nº 9.472/97) e invadia as áreas de ação da Anatel e do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Nesse momento, o MinC contratou uma
grande empresa de relações públicas e assessoria de imprensa, a InPress, para dialogar
com os grandes meios de comunicação e tentar aplacar a repercussão negativa.
Senna, olhando para trás no tempo, admite que o texto era “exagerado” em suas
ambições. Mas insiste que os excessos eram intencionais:

Eu achava que não deveríamos deixar faltando nada, que poderíamos


colocar coisas para depois tirar. Me lembro até do termo que usei:
“Deixe gordo”. No processo, ele iria emagrecendo. A primeira versão
da Ancinav, a que assustou, era gorda mesmo. Eu sabia que ela trazia
coisas que deveriam ser profundamente discutidas e que,
possivelmente, algumas delas cairiam. Mas por que deixar o documento
magrinho? Para ser chamado de tímido? Quisermos ser exagerados,
porque o exagero se conserta. Aquilo ainda ia passar por um processo
enorme de discussão, inclusive, no Congresso. Mas, em vez de haver
discussão, houve uma explosão (Senna, em entrevista à autora, 2014).

Fora dos quadros do MinC, e sobretudo entre os detratores do projeto, uma


versão que o tempo tornou corrente é que nem o próprio Gil tinha a exata noção do que
estava escrito naquele calhamaço:

Naquele momento, eu vinha conversando muito com Gil sobre tudo


isso, sobre as coisas que estavam sendo feitas. Então, assim que li o
negócio da Ancinav, eu liguei pra ele e disse que tinha acabado de ler
uma coisa que era o oposto de tudo que ele tinha me dito. E, Ana Paula,
eu não posso jurar, seria uma irresponsabilidade minha garantir isso,
mas eu fiquei com a nítida impressão de que ele não tinha lido o projeto.
Fiquei com a nítida impressão. Pode ser que eu esteja desvairado, pode
ser que eu esteja sendo muito injusto, mas ele não leu esse projeto Aí
eu disse assim: “Gil, eu vou ter que escrever, eu vou para o jornal, eu
não posso deixar de fazer isso” (Diegues, em entrevista à autora, 2014).

O plano original, segundo o MinC, era que o texto, tal e qual chegou a público,
fosse submetido ao Conselho Superior de Cinema no dia 6 de agosto – data para a qual


126

já estava agendada uma reunião. No entanto, depois do vazamento, os ataques
atropelaram a agenda. Cacá avisou foi para o jornal. Mas não só. O Jornal Nacional
afirmou que o projeto era revelador da tendência stalinista da administração Lula; no
jornal O Globo, Arnaldo Jabor escreveu que o projeto de lei estava prestes a transformar
o cinema brasileiro em algo “bolchevique” e “soviético” (Jabor, 2004); a jornalista
Miriam Leitão fez uma coluna intitulada “Adeus Lênin” (Leitão, 2004); e o cineasta
Zelito Viana disse que o projeto parecia ter sido escrito pelas Organizações Tabajara79
(Viana, 2004). Sob o título “Um desastre de lei”, a revista Veja (Veja, 2004), escreveu:
“O projeto que cria a Ancinav é tão autoritário que não adianta tentar reformá-lo: o
melhor mesmo é jogá-lo fora”.
Na visão de Alfredo Manevy, a tática dos opositores era colocar na proposta
um carimbo de revolução démodé. E houve, de fato, uma reiteração na mídia de ideias
que ecoavam a tese do imperialismo cultural80 e ressuscitavam o fantasma da censura.
Entre os dias 6 e 30 de agosto, as palavras “intervencionismo” e “censura” foram citadas
18 vezes na Folha de S.Paulo e 21 vezes no jornal O Globo. O termo “proteção” [da
produção nacional e da produção independente e regional], adotado pelo governo para
justificar as medidas, apareceu três vezes na Folha de S.Paulo e duas em O Globo. A
acusação de dirigismo cultural, difundida quando as estatais Furnas e Eletrobras
divulgaram seus novos editais de patrocínio, também voltou a rondar o MinC.
Apesar de as reações estarem associadas a aspectos específicos da proposta,
parte do problema residia em divergências ideológicas mais amplas. O projeto da
Ancinav colocou em evidência, entre outras coisas, duas visões distintas a respeito do
papel do Estado no que diz respeito à cultura. Para usar as tipologias citadas no tópico
1.2, é possível dizer que os defensores da Ancinav eram partidários que uma política
mais próxima do dirigismo enquanto seus detratores defendiam o laissez-faire. A reação
dos adversários se pautava, sobretudo, pelo princípio de que o Estado não deve regular
o audiovisual, que é uma atividade privada; para esse grupo, a presença do Estado era

79
As Organizações Tabajara são uma empresa fictícia, criada pelo grupo humorístico Casseta&Planeta,
que tinha um programa na Globo. As Organizações Tabajara trabalhavam com produtos falsos e que não
tinham muito sentido, beirando o absurdo.

80
A inquietação dos latino-americanos diante da questão da identidade nacional se materializou,
nos anos 1960 e 1970, por meio da tese do imperialismo cultural, que funcionava com uma reflexão a
respeito da situação colonial, ou seja, da assimetria entre o cinema realizado nos países centrais e
periféricos.


127

vista como inoportuna e indevida e, nesse sentido, quanto maior o tamanho da
regulação, pior.
O projeto defendia que a adequada regulação das atividades audiovisuais era
essencial para que os brasileiros tivessem o direito de assistir e produzir as próprias
imagens e para que se garantisse a diversidade cultural. O papel da Ancinav seria, assim
como o da Ancine, regular, promover e fiscalizar o setor:

(...) promover e preservar a soberania, a língua, a cultura e os valores


brasileiros; criar condições para que a evolução do setor seja harmônica
com as metas de desenvolvimento social do País; promover a
universalização do acesso às obras cinematográficas e combater o abuso
do poder econômico e zelar pela independência dos exploradores de
atividades cinematográficas e audiovisuais; fortalecer a produção
independente e a produção regional de obras cinematográficas e de
outros conteúdos audiovisuais brasileiros; estimular a presença e a
viabilidade das obras cinematográficas e de outros conteúdos
audiovisuais brasileiros em todos os segmentos dos mercados interno e
externo; proteger os valores éticos e sociais da pessoa e da família
(Anteprojeto da Ancinav, 2004, Art. 4º)

Fora as questões específicas – que serão tratadas adiante –, o projeto, no macro,


era pontuado pelas ideias de proteção da indústria nacional, preservação do local – aqui
entendida como valorização da diversidade –, defesa da identidade nacional pela cultura
e constituição de uma imagem nacional. Durante as discussões sobre o projeto, a
senadora Ideli Salvatti (SC), líder do PT no Senado, chegou a propor, num discurso no
Congresso, uma campanha chamada “A tela é nossa”, inspirada na campanha “O
petróleo é nosso”, da década de 1950. A partir da ênfase na oposição entre nacional e
estrangeiro, o que se pretendia com a Ancinav, no entendimento de Calil (2004, p. 135),
era “claramente proteger o mercado em face do estrangeiro, sob pena de promover a
alienação da nacionalidade”.
Acontece, porém, que o embate não se dava apenas contra o estrangeiro, mas
também contra a hegemonia local, representada pela Rede Globo que, já então, tinha
seyu braço cinematográfico, a GloboFilmes. Ao longo das discussões a respeito do
projeto, o secretário-executivo do MinC, Juca Ferreira (Roda Viva, 2004), reiterou que
tanto a regulação da televisão quanto a cobrança de taxas do circuito exibidor e dos


128

distribuidores internacionais eram práticas comuns em países como França, Austrália,
Espanha, Canadá e Coreia do Sul. O assessor especial Sergio Sá Leitão Leitão
(Medeiros, 2004) dizia que a lei proposta podia, inclusive, ser considerada leve se
comparada com outras ao redor do mundo.
Não era o que pensavam os opositores do projeto. Para eles, os possíveis
benefícios de uma produção cinematográfica mais forte não justificavam o custo que os
agentes de mercado teriam de pagar (Hoskins, McFadyen and Finn, 1997).
As medidas de regulação econômica mais polêmicas e debatidas da Ancinav
podem ser divididas em dois grupos: aquelas que atingiam distribuidores e exibidores,
e aquelas que atingiam a televisão. Para o cinema estrangeiro se previa:
- A criação de uma taxa de 10% sobre o preço dos ingressos vendidos nas salas
de cinema.
- Um escalonamento na taxa a ser paga pelos distribuidores na importação de
títulos – quanto mais cópias, maior a taxa – com o intuito de limitar o número de cópias.
- Um aumento na cota de tela.

Para a televisão aberta:


- Uma cota de tela, a ser posteriormente quantificada, para a exibição de
longas-metragens brasileiros, de obras destinadas ao público infanto-juvenil e para a
produção regional e independente.
- Uma taxa (Condecine) de 4% sobre o faturamento publicitário a ser
depositada num fundo e utilizada para prometer a produção regional e independente.
- Três minutos diários, e descontínuos, destinados à publicidade e à promoção
de trabalhos cinematográficos brasileiros.

As propostas do primeiro grupo atingiam, basicamente, o cinema estrangeiro.


A taxa sobre o ingresso trazia um percentual idêntico àquele adotado na França (Creton,
2005), o que fez com que os opositores da cobrança ressaltassem que o projeto apenas
copiava uma medida estrangeira, sem levar em consideração as especificidades da
realidade local.
O dinheiro arrecadado com essa taxa deveria ser reinvestido na produção de
filmes. Apesar de os ingressos serem taxados em países como Argentina e França, as
companhias argumentavam que a medida seria muito arriscada no Brasil, porque nosso
mercado exibidor não estava totalmente desenvolvido. Em 2004, 93% das cidades


129

brasileiras não possuíam uma sala de cinema e o país era o 60º no ranking dos países
com o menor índice de salas por habitante. Valmir Fernandes, do Cinemark, diz que se
tal medida tivesse sido aprovada, algumas companhias teriam revisto seus
investimentos:

Eles diziam que esses 10% eram equivalentes ao que a gente dá de


gorjeta. Mas você começa com 10% e não sabe onde termina. De
repente, vão dizer que 10% não é suficiente e que tem de ser 20%. Em
alguns países, a taxa chega a ser de 25%. Em um país como o Brasil,
onde a carga tributária é altíssima e a importação de equipamentos é das
mais caras do mundo, você não pode falar em novas taxas. E o país
ainda tem a questão da meia entrada: eu não posso oferecer o ingresso
mais barato para o público do cinema nacional – o motorista de táxi, o
garçom, a empregada doméstica – porque se eu colocar o ingresso a R$
2, eu tenho de oferecer meia a R$ 1. Como poderíamos ter concordado
com uma coisa que onerava ainda mais os ingressos? (Fernandes, em
entrevista à autora, 2014)

A taxa sobre a importação de títulos recaía, por sua vez, sobre os distribuidores
de filmes estrangeiros. Tal disputa remonta, mais uma vez, à década de 1950, quando
as forças do mercado se colocavam frontalmente contra a cobrança de taxas ou a
imposição de obrigações para o filme importado. Com o passar do tempo, no entanto, a
repetição do discurso nacionalista e dos argumentos em favor da proteção da indústria
brasileira contra o domínio de Hollywood (Bernardet, 2009) fez com que, já na década
de 1960, fosse criado um mecanismo para forçar as subsidiárias de Hollywood a apoiar
a produção nacional. Mas a proposta feita no século XXI não dizia respeito à
coprodução, e sim à limitação no tamanho dos lançamentos. O objetivo, dessa vez, era
coibir a superocupação do circuito por um mesmo filme.
O projeto criava uma escala crescente que estabelecia que, quanto maior o
número de cópias de um filme, maior a taxa a ser paga. À altura, qualquer título lançado
nos cinemas tinha de pagar uma taxa de R$ 3 mil – fosse esse filme uma pequena
produção iraniana lançada em uma só sala fosse ele um blockbuster. O projeto
determinava que filmes lançados com mais de 200 cópias – o país possuía então cerca


130

de 1,9 mil salas de cinema – passariam a arcar com um custo de R$ 600 mil.81
Os distribuidores estrangeiros usaram o mesmo argumento dos exibidores: a
proposta comprometeria o desenvolvimento do setor. De acordo com Rodrigo Saturnino
Braga, da Columbia, se a proposta tivesse sido aprovada, o país, hoje, teria um circuito
monopolizado e concentrado nas regiões mais ricas. A explicação dele para isso é que
os distribuidores, caso a proposta avançasse, passariam a lançar filmes com, no máximo,
200 cópias:

Se isso tivesse sido aprovado, teríamos hoje um circuito como o do


México, que tem os dois maiores exibidores com 75% do mercado.
Aqui, 50% do mercado é ocupado por vários exibidores e outros 50%
por grandes grupos multinacionais. Com aquela proposta, vários dos
exibidores pequenos teriam deixado de existir porque eles,
simplesmente, não iam receber as cópias dos filmes. Nós não íamos dar.
Eu ia fazer 200 cópias, atender os principais exibidores e, conforme o
filme fosse saindo de cartaz, ia passar para os pequenos – mas aí, com
internet e pirataria, o filme já teria ficado velho. Para a indústria, é bom
ter cidades do interior, mas se tiver de pagar uma taxa maior para entrar
no interior, não entra. Só quem ia perder eram os espectadores dos
circuitos populares. Uma vez eu disse para o Manoel Rangel que muito
me espantava um partido comunista apoiar uma lei assim elitista. A
exigência deveria ser que a gente fizesse cópia para cinemas do interior,
e não o contrário (Braga, em entrevista à autora, 2014).

Os argumentos iam, porém, muito além do “alerta” feito por Braga. Steve
Solot, representante local da MPA, afirmou que o Brasil poderia sofrer sanções
econômicas caso a lei fosse aprovada (Almeida, 2004). A ameaça reeditava os mitos
que sempre rondaram o acordo do GATT e colocava em evidência os contornos que a
batalha em torno da proteção aos produtos locais tende a adquirir, sobretudo, nas nações
menos favorecidas (Bernier, 2006).
Cacá Diegues que, nos anos 1960, advogou a favor da proteção aos filmes
nacionais no circuito exibidor, explica o que o fez, em 2004, mudar de posição:

81
Atualmente, com a projeção digital, não se fala mais em número de cópias, mas em número de salas.
Além disso, um lançamento em 200 salas, hoje, diz respeito a um filme de médio porte.


131

Com o tempo, eu passei a entender que o Estado não pode nem obrigar
as pessoas a irem ao cinema nem o contrário, ou seja, proibi-las de ir.
Esse é um velho problema. Essa questão, inclusive, dividiu muito o
cinema brasileiro no final da Embrafilme. Muita gente reclamava que
Dona Flor [e seus dois maridos, produzido por Luiz Carlos Barreto e
dirigido por seu filho Bruno Barreto], que sempre admirei, era um filme
comercial e fora protegido pela Embrafilme. Mas foi o público que quis
ver Dona Flor; o Estado não pode obrigar ninguém a ver ou a não ver
tal filme (Diegues, em entrevista à autora, 2014).

Esse é, justamente, o argumento do qual os Estados Unidos lançavam mão na


década de 1970 (Bernier, 2012): qualquer forma de restrição à livre circulação de
conteúdo opõe-se a outro direito fundamental, que é o da liberdade de opinião e de
expressão. Solot seria outro a repetir esse arrazoado. Uma década após o episódio, Solot,
já então trabalhando na RioFilme, reafirmou (em entrevista à autora, 2014) que aquela
gestão do MinC era marcada por uma retórica nacionalista e anti-imperialista.
Um dado que não pode ser desprezado quando se fala das majors é que, em
decorrência do Art. 3º da Lei do Audiovisual, essas empresas eram, naquele momento,
importantes parceiras do cinema brasileiro. Em 2003, o Art. 3º mobilizou R$ 41,7
milhões ante R$ 50,5 milhões do Art. 1º (aquele utilizado por patrocinadores privados).
Dentre os filmes mais vistos em 2003 e 2004, vários foram coproduzidos pelas
subsidiárias norte-americanas – Carandiru (Columbia), Lisbela e o Prisioneiro (Fox),
Cazuza (Columbia) e Xuxa Abracadabra (Warner.Bros) entre eles. E como o dinheiro
do Art. 3º advém da remessa de lucros para o exterior, quanto mais dinheiro os filmes
norte-americanos fizerem no Brasil, mais dinheiro sobra para a coprodução de obras
nacionais. Em menos palavras: o inimigo era também aliado. Tal questão é outra que
remete aos tempos da Embrafilme – naquela época, à medida que o cinema estrangeiro
perdia mercado, a Embrafilme perdia receita.
Mas, apesar de intensa e intricada, a briga com as distribuidoras internacionais
não era a maior. Enquanto as discussões em torno das taxas a serem cobradas das majors
são reveladoras das contradições abrigadas na política cinematográfica nacional,
aquelas relativas à televisão são reveladoras dos limites para a implantação de uma
política audiovisual ampla e sistêmica. As estratégias empregadas para se estabelecer


132

novas regras para o setor televisivo – incluindo exigências de conteúdo regional e de
apoio financeiro à produção independente – se mostraram inadequadas e pouco
realistas. E é unânime, entre os entrevistados, que as medidas que recaíam sobre a
televisão foram as principais responsáveis pela derrocada do projeto.
A primeira observação a ser feita no que diz respeito à regulação proposta é
que o projeto apresentava um entendimento do sistema de concessões de radiodifusão
como sendo um bem público que, como tal, deveria contemplar os interesses públicos.
Mas as novas regulações, além disso, trombavam com uma barreira legal: parte
das operações da televisão são regidas pelo Código Brasileiro de Telecomunicações, de
1962, que regula a concessão do espectro de frequência, aspecto que a Ancinav não teria
competência para regular. Esse ponto mostra a frágil natureza do anteprojeto e levanta
uma questão que, do ponto de vista político, é ainda mais complexa. Como escrevem
Lima (2001) e Calil (2004), se existe um vácuo regulatório da televisão brasileira que
se estende há mais de 40 anos é menos porque o governo nunca tenha desejado regulá-
la e mais porque os concessionários sempre conseguiram escapar de qualquer forma de
controle.82
Levando-se em conta a histórica dificuldade de se criar novas regulações para
a televisão, duas perguntas devem serem feitas: (1) Por que o governo Lula acreditou
que poderia levá-las a cabo em 2004? (2) Por que os integrantes do SAV acreditaram
que o cinema, economicamente frágil, poderia liderar esse movimento e “enquadrar” a
televisão, economicamente grande e politicamente forte, sem que à tevê fosse oferecida
qualquer vantagem?
As respostas para tais perguntas nos transportam para o cenário da
convergência digital, que permite que os produtos audiovisuais sejam distribuídos e
consumidos não apenas por meio da televisão, do vídeo ou do cinema, mas também por
meio dos telefones celulares. Nesse contexto, como se mencionou no tópico 2.3, os
radiodifusores brasileiros passaram a se sentir ameaçados pelas empresas de
telecomunicações.
Na visão de Calil (2004), a esperteza do governo, naquele momento, era

82
Trata-se de um tópico vasto e complexo, que extrapola o escopo desta tese. A relação entre cinema e
televisão será explorada no capítulo 3, mas o tema da regulação, que inclui a discussão a respeito da Globo,
especificamente, já foi tratado em um grande número de estudos. Para saber mais sobre a influência
política da Rede Globo ler: Lima (2001), Porto (2012), e Roberto Mader. Globo village: television in
Brazil. In: Dowmunt, T. Channels of resistance: global television and local empowerment. Londres:
British Film Institute, 1993, pp. 67-89.


133

perceber que havia um conflito entre as televisões e as operadoras de telecomunicações.
Mas se a primeira tentativa de se criar uma Ancinav, em 2001, havia fracassado, porque
voltar à carga? As hipóteses para isso são quatro: (1) em 2003 e 2004, os detalhes dos
acontecimentos que se desdobraram dentro do Palácio do Planalto durante o Gedic não
eram tão conhecidos como hoje; (2) o governo, ou talvez só a SAV, acreditava (por
ingenuidade e/ou arrogância) contar com um apoio maior da parte do setor
cinematográfico do que aquele que efetivamente tinha; (3) os novos ocupantes do MinC
acreditaram que, ao contrário de FCH, Lula estava disposto a um enfrentamento com a
chamada “grande mídia”83; e (4) a Globo, no ano 2000, adquiriu uma grande dívida e,
de 2001 para 2003, a situação econômica da empresa se fragilizara.
É importante explicar que, um ano antes do início da redação do anteprojeto,
uma crise de liquidez levou as Organizações Globo a entrar em default; em outubro de
2002, foi declarada a moratória da empresa. Isso aconteceu porque, na década de 1990,
aproveitando-se da paridade entre real e dólar, alguns grupos de comunicação tomaram
empréstimos no exterior. A capitalização tinha por objetivo, justamente, a preparação
para o cenário de convergência tecnológica.84 Acontece que, com o aumento do dólar,
as empresas passaram a ter dificuldades para quitar suas dívidas. Apenas na Globo, o
endividamento era de 1,7 bilhão de dólares (o equivalente, na época, a R$ 6,5 bilhões).
A empresa, além de ter sido a que maior dívida contraiu, apostara em negócios que não
deram o retorno esperado, como a tevê a cabo.
Foi por isso que, em 2003, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e
TV (Abert), entidade representativa do setor de mídia, solicitou vultosos empréstimos
ao BNDES, com juros inferiores aos praticados pelo sistema financeiro e com prazos
alongados. Dada a polêmica que o pedido gerou, foi realizada, em março de 2004, uma
audiência pública no Senado Federal sobre o assunto. Globo e Bandeirantes queriam
um financiamento para a reestruturação das empresas; Record, Rede TV e SBT
defenderam que o crédito fosse aberto apenas para investimentos. “Diante das diferentes


83 Expressão usada para designar os veículos de comunicações ligados aos principais grupos empresariais
do setor, como Globo, Folha e Abril.
84
O Grupo Folha criou o UOL; o grupo Estado investiu na BCP, de telefonia celular; a RBS se associou
à Telefônica de Espanha. O grupo Globo foi o que mais diversificou seu cardápio de empreendimentos,
indo da eletrônica (NEC) à transmissão de dados (Viacom), passando por pager, tevê a cabo e internet.
Muitos destes negócios não se tornaram lucrativos e tiveram de ser vendidos por valores que não foram
suficientes sequer para recuperar o que foi investido.


134

visões, a linha de crédito para o setor jamais foi aprovada”, afirma a própria Globo, em
sua página de memória (Globo, 2004).
O que se tinha, portanto, era um governo considerado forte – Lula tinha sido
eleito com 46 milhões de votes – diante de uma Globo enfraquecida pelas dívidas. Em
meio a esse cenário marcado pela insegurança financeira, pelas tentativas de acordo e
pelos sinais de que o governo preparava uma nova lei, a empresa, no primeiro semestre
de 2004, pediu a Roberto Farias que convidasse alguns de seus pares do cinema para
visitar o Projac, os estúdios da Globo no Rio de Janeiro.
Farias era funcionário da Globo 85 e, para cumprir a missão da qual fora
incumbido, convidou 45 diretores e produtores de cinema para visitar seu local de
trabalho – entre eles, Cacá, Sturm, Barreto, Walter Lima Jr., Alain Fresnot, Sandra
Werneck, Flávio Tambelini e Aníbal Massaini. Apesar de haver, no grupo,
representantes de entidades de classes, como Sturm, Farias fez questão de dizer que
estavam ali individualmente, e não em nome de um ou outro grupo.
Ao chegar, os convidados fizeram uma visita guiada pelos estúdios e, na
sequência, almoçaram com a diretora-geral, Marluce Dias, com o responsável pela
Central Globo de Comunicação, Luiz Erlanger, e com diretor da GloboFilmes, Cadu
Rodrigues:

A Globo, mesmo que cause amor ou ódio, é uma coisa meio


inalcançável. Então eu lembro que os caras ficaram impactados. O
Projac impressiona todo mundo. E ser recebido pela Marluce também.
Nesse encontro, a Marluce me indicou como sendo o responsável por
receber e encaminhar propostas de filmes e se colocou à disposição de
todos para conversas futuras (Rodrigues, em entrevista à autora, 2014).

Pouco tempo depois, em julho de 2004, a emissora organizou, em parceria com


a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), um encontro chamado
Conteúdo Brasil – Seminário de Valorização da Produção Cultural. A palestra de
abertura coube a Ariano Suassuna (1927-2014), que falou sobre cultura popular; vários
jornalistas e artistas da emissora compareceram ao evento. Ao fim do encontro, foi
distribuído um material que sublinhava o papel da empresa como propagadora e

85
Roberto Farias é também sócio do Canal Brasil, no qual a Globo é sócio, e, à altura, seu filho Maurício
Farias dirigia, na Globo, a série A Grande Família.


135

incentivadora do conteúdo nacional e trazia sugestões relativas à valorização da cultura
brasileira – expressões próximas de algumas que apareceriam no texto da Ancinav.
A visita à emissora e o evento “Conteúdo Brasil” podem ser considerados os
primeiros movimentos em busca da mobilização da opinião pública e da conquista de
aliados para uma guerra inevitável: aquela que teria, do outro lado do campo de batalha,
as empresas de telefonia, que, com a convergência tecnológica, se tornariam
concorrentes da televisão. À altura, a ideia da tevê num celular ainda tinha algo de
futurista e a muita gente ainda não tinha clareza do que estava em jogo. Mas a Globo
sabia que o futuro chegaria rápido e, enquanto gestava o projeto, a própria SAV,
segundo Senna, chamou Roberto Irineu Marinho para conversar. Um mês depois do
seminário feito com a PUC, veio à tona o projeto da Ancinav.
Assim como no caso da exibição e da distribuição, as medidas propostas para
a televisão passavam pela cobrança de taxas. E assim como aconteceu com
distribuidores e exibidores, os radiodifusores argumentaram que a taxa a ser cobrada
era uma grave ameaça à saúde financeira das empresas, além de significar uma
ingerência indevida num negócio privado. Os requisitos de conteúdo para a exibição de
filmes brasileiros e a veiculação de peças publicitárias eram, por sua vez, apontados
como uma inadmissível interferência no conteúdo. Para Roberto Farias, o que o governo
propunha era um ataque à própria ideia de conteúdo nacional:

O que a Globo faz e eu admiro é que ela investiu no produto brasileiro,


ela percebeu que o investimento em produto brasileiro dava mais
audiência. A hegemonia é fruto de quem apostou no investimento num
produto que custa mais caro, no produto nacional e não naquele que
vem pronto, de fora. As outras emissoras não apostaram, não
acreditaram. A Globo contratou os melhores atores, os melhores autores
e foi crescendo de uma maneira que é difícil de ser interrompida. Por
que você vai destruir isso? (Farias, em entrevista à autora, 2014).

Uma questão interessante que se colocava no caso brasileiro, quando


comparado aos exemplos de exigências de conteúdo feitas internacionalmente, é que as
cotas propostas não diziam respeito apenas ao conteúdo nacional, mas sim ao conteúdo
feito por produtores independentes. Porque, como aponta Farias, na Globo, em
particular, 90% do conteúdo exibido era nacional. A questão é que se tratava de


136

produção interna. Em outras palavras: as exigências não poderiam tomar por base
apenas a questão do “nacional”, algo usual no mundo; a argumentação deveria ser
construída a partir da defesa da produção independente e da presença do cinema
brasileiro na grade da emissora.
Tais imposições deram origem a duas opiniões diferentes e aparentemente
irreconciliáveis. A primeira, contra o projeto, enxergava uma intervenção inaceitável na
atividade. A segunda defendia que, sem a imposição de cotas, a produção independente
e o cinema brasileiros jamais teriam lugar na televisão, espaço essencial de difusão; o
principal argumento em favor da regulação era o de que o espectro da radiodifusão é
público e que a televisão é uma concessão do Estado.
Tais embates alimentaram e foram alimentados pela mídia ao longo de todo o
mês de agosto. E a guerra de informações, liderada pela Globo, teve prosseguimento
quando o projeto foi mandado para a instância que, de acordo com a MP 2228-1/01,
deveria responder pela formulação da política setorial: o Conselho Superior de Cinema.
O primeiro encontro do Conselho aconteceu no dia 30 de Agosto. Os conselheiros –
nove ministros e nove representantes do setor – deveriam analisar a proposta e sugerir
as alterações necessárias em três meses. Ao fim desse prazo, o projeto deveria ser
mandado para o Congresso Nacional. Logo de saída, estabeleceu-se que, por uma
questão de viabilidade, apenas os nove representantes da sociedade civil se reuniriam
quinzenalmente, pelo período de dois dias, em Brasília. As discussões, mesmo assim,
se arrastaram por seis meses.
Os integrantes do conselho eram: Cadu Rodrigues, Roberto Farias, André
Sturm, Luiz Severiano Ribeiro Neto, a empresária Cosette Alves, o professor e ex-
dirigente da Embrafilme Carlos Augusto Calil, o montador Giba Assis Brasil, o
jornalista Gabriel Prioli e diretor e técnico de som Silvio Da-Rin. Esse grupo havia sido
empossado pelo presidente Lula em fevereiro de 2004.
No Conselho, cada um dos agentes foi obrigado a atuar em conformidade com
suas instâncias de pertencimento. A posição de cada um no campo ficou logo evidente.
Brasil, Priolli e Da-rin alinhavam-se invariavelmente ao governo; Cosette, apesar de
não querer brigar com o MinC, tinha uma posição mais privatista e sempre votava contra
quando a criação de qualquer taxa ou imposto; Rodrigues e Farias eram contra tudo o
que o governo propunha e Severiano Ribeiro era contra quase tudo. As reuniões
aconteciam numa mesa em forma de U; Rodrigues, Farias e Ribeito estavam sempre


137

sentados lado a lado. Sturm e Calil não tinham posições fechadas e seus votos mudavam
de acordo com o tema.
Partindo-se do princípio de que a ação dos agentes está diretamente ligada às
estruturas sociais e às relações de poder (Johnson, 1993), a guerra estava
matematicamente perdida. Nas questões relativas à cobrança de taxas Rodrigues, Farias,
Severiano e Cosette iriam sempre se alinhar – contando, algumas vezes, com a aderência
de Sturm. Mesmo sabendo dessa vantagem, a Globo contratou um grupo de advogados
para dar suporte à argumentação de seus aliados dentro do Conselho construiu uma base
de apoio fora dele:

Criamos duas instâncias de atuação: uma que analisava e discutia


estratégias, e outra, mais ampla, que era para fazer lobby com
cineastas. A gente lançava, por exemplo, ideias que nos interessavam
e que conflitavam com o projeto da Ancinav. Ao mesmo tempo, o
Barretão estava escrevendo um outro projeto de lei. Isso criava uma
coisa difusa. A carga de trabalho que nós tivemos foi enorme:
tínhamos de controlar os cineastas e tínhamos de tomar cuidado
porque a opinião pública não podia ficar contra a gente. Para mim,
80% da derrota da Ancinav se deve à Marluce. Na nossa estratégia, ao
Roberto cabia a credibilidade; a mim, o controle e operação das ações;
e à Marluce, a estratégia de ação. Num determinado momento, a gente
jogou pesado. Era para implodir mesmo (Rodrigues, em entrevista à
autora, 2014).

Enquanto Rodrigues corresponde ao ator racional de Touraine (1984), que age


em busca de fins específicos, Farias parecia agir movido por uma mistura de pressões e
estímulos externos e de desejos e sentimentos íntimos:

Havia uma tentativa hábil de começar a estender os tentáculos. Houve


uma reunião em que o ministro começou a falar da televisão e a dizer
que a televisão brasileira tinha de ser impedida de fazer redes nacionais.
Ali eu comecei a perceber que havia uma tentativa de refrear uma coisa
que é importantíssima para o país. Ele disse: “Eu vou colocar a Globo
de joelhos”. Eu, que estou lá dentro, saiba que se esse mercado fosse
fragmentado a Globo acabaria. E quem ocuparia o espaço não seria o


138

cinema brasileiro, mas o cinema estrangeiro, como acontece nas
televisões no mundo todo. Era tudo uma agressão tão grande... (Farias,
em entrevista à autora, 2014).

Terminada essa reunião específica, Farias reproduziu a frase sobre a Globo dita
por Juca Ferreira num grupo de cinema, chamado Cinema do Brasil, mantido na
Internet. No encontro seguinte, o secretário-executivo do MinC, de acordo com o relato
de mais de um dos presentes, reclamou da atitude de “um dos conselheiros” e negou
que aquela frase tivesse sido dita por ele. Farias recorda a reação de Juca ao ser
confrontado por ele:

Eu disse que [o conselheiro] era eu, e que ele tinha dito isso e que todo
mundo tinha ouvido. Aí ele perdeu a cabeça e falou: “A única coisa que
eu gosto de joelhos na minha frente é mulher”. Aí a Mariza Leão
[suplente de Farias86] saiu da sala. Foi um vexame horroroso. Nesse
momento, deixei de ser candidato à diretoria da Ancine87 (Farias, em
entrevista à autora, 2014).

Não foi a única vez, durante o embate, que alguém do “velho grupo” saiu
batendo a porta. Cacá foi outro que teve um embate direto com Ferreira:

Aquilo tudo começou a me cansar muito, a me cansar fisicamente. Eu


tinha acabado de fazer Deus é Brasileiro, eu estava feliz e, com a
Ancinav, comecei a ficar irritado. Olha que eu sou sertanejo de Alagoas
e que é difícil perder a paciência, mas um dia eu briguei realmente com
Juca Ferreira. Ele puxou a conversa para a história do cinema brasileiro,
e eu disse que eles tinham destruído o Gedic. Aí ele começou a dizer
que foi a classe que quis isso. Começou com uma coisa meio enviesada,
com mentiras, sabe? De repente, fiquei muito irritado. Eu virei as costas
e disse: “Vou embora, não vou ficar mais aqui não”. O Barreto estava

86
Apesar de só terem direito a voto em caso de ausência do titular, os suplentes podiam acompanhar todas
as reuniões.
87
No mesmo momento em que se desenrolava a discussão sobre o projeto da Ancinav, o setor se articulava
em torno das indicações de dois novos diretores da Ancine. Uma das cadeiras da diretoria colegiada estava
vaga desde outubro de 2003, quando Lia Gomensoro Lopes renunciou ao cargo; a outra ficaria vaga a
partir de 16 de dezembro de 2004, quando terminava o mandato de Augusto Sevá.


139

presente e achou que eu tinha tido um enfarto [risos]. Parece, segundo
o Barreto, que eu dei um murro na mesa. Mas eu só me lembro do que
eu disse: “Não aguento mais isso, é uma arrogância totalitária o que
vocês estão fazendo. Está a imprensa brasileira inteira contra essa porra
desse projeto, as televisões todas estão todas contra esse projeto, a
sociedade se manifesta contra esse projeto diariamente e vocês insistem
em não discutir, em não ceder”. Porque eles não cediam! Fui-me
embora (Diegues, em entrevista à autora, 2014).

Os espíritos à flor da pele, marca indelével do episódio da Ancinav, revelam


que a ação, como defende Blummer (1969), fundamenta-se também na forma pela qual
os indivíduos se relacionam em diferentes contextos, mediados por símbolos através
dos quais deve ser interpretada a interação. E havia, ali, de um lado, a simbologia de
uma esquerda totalitária e, de outro, a simbologia do cinema norte-americano e da Rede
Globo como inimigos a serem combatidos. A fala de Saturnino Braga é indicativa das
micro-relações e da simbologia envolvidas no processo de discussão da Ancinav:

Foi um racha total. Até eu, que nunca briguei com ninguém, fiquei
nervoso.88 Eu cheguei a dizer: “Não sou bandido. Portanto, não me
tratem como bandido. Eu começo até a achar que quem me trata como
bandido é que é bandido”. Me lembro de dizer isso para o Manoel
Rangel e para o Sergio Sá Leitão. Eles diziam que eu representava os
americanos. Represento os americanos o cacete! Quando ninguém
distribuía filme americano eu distribuía [pela Columbia Pictures]. Eu
me sentia incomodado com o jeito como eu era tratado e também
porque eu via que aquilo ia ser um desastre (Braga, em entrevista à
autora, 2014)

A tensão presente nos embates vivenciados via mídia estendeu-se para as


reuniões do Conselho Superior de Cinema. De acordo com os relatos ouvidos pela
autora, os dois momentos nos quais os ânimos mais se exaltaram se deram quando foram
colocadas em votação as taxas a serem cobradas sobre os ingressos e sobre os intervalos

88
O momento descrito por Rodrigo Saturnino Braga aconteceu durante uma entrevista com Juca Ferreira
no programa Roda Viva, da TV Cultura, no dia 16 de agosto de 2004, na qual houve um bate-boca, ao
vivo, entre Ferreira e Braga. A origem do desentendimento foi o tamanho do lançamento do filme O
Homem Aranha (2004), que ocupou um terço do circuito comercial.


140

comerciais da televisão. No momento em que foi colocada em análise a taxa dos
ingressos, Rodrigues, Farias, Ribeiro e Sturm levantaram a mão para votar pela
eliminação do artigo; na sequência, todos os olhos se voltaram para Calil que, após
alguns segundos, ergueu a mão também, completando os cinco votos necessários – Giba
Assis Brasil, Gabriel Prioli, Silvio Da-Rin e o crítico Amir Labaki (suplente de Cosette
Alves) posicionaram-se favoravelmente ao governo.
O assunto seguinte era a criação da taxa para a tevê aberta. Num jogo que
envolveu variados estímulos e respostas, os integrantes do Conselho acabaram agindo
como grupo: cada indivíduo levou em conta a interpretação da ação dos outros e, com
isso, todos foram se alinhando. Em meio a uma dinâmica que nenhum dos entrevistados,
passados anos do episódio, soube explicar de forma racional, construiu-se, naquela
situação face a face, um improvável consenso. Até mesmo Roberto Farias e Cadu
Rodrigues votaram a favor da taxa sobre o faturamento publicitário das televisões. Ao
saber do resultado, Marluce Dias exigiu que Roberto e Cadu voltassem atrás no seu voto
– o que aconteceu de fato, mas não mudou o resultado.
Enquanto no Conselho a relação de forças ia levando a modificações no texto
do anteprojeto, fora dali os aliados de um e de outro lado iam se organizando de forma
a pressionar o próprio Conselho e a influenciar a opinião pública. Se, dentro das
reuniões realizadas no MinC, ainda era possível tergiversar ou mudar de opinião, fora
delas era preciso aderir, de forma incondicional, a um lado:

Não tinha jeito, tínhamos que ser a favor [do governo]. Havia problemas
no projeto, mas íamos fazer o quê? A grande mídia acabou usando as
nossas bandeiras, assumindo a nossa posição. Porque a gente dizia que
queria a democratização da informação, a liberdade de expressão, a
regulação. E eles diziam: ‘Isso não pode porque nós somos a favor da
liberdade, da democratização’. O que a Globo falava, o jornal O Globo
escrevia e o Brasil inteiro repetia. Uma vez, peguei um táxi e ouvi:
“Nossa, o governo está querendo censurar o cinema, né?” Olha que
loucura: passou essa ideia. Era como se a Globo estivesse do nosso lado.
Como explicar que não? Então o CBC teve que apoiar o projeto, mesmo
vendo que havia problemas nele (Hernandez, em entrevista à autora,
2014).

Do outro lado do campo de batalha, a sensação de que “não tinha jeito” e de


141

que era preciso aderir a um discurso uníssono, mesmo havendo discordâncias, não era
muito diferente. Cadu Rodrigues observa que muitos daqueles que não eram
diretamente atingidos pelas medidas se alinharam à Globo como forma de se posicionar
contra o governo. Em entrevista concedida à autora desta tese (2014), quando já não
trabalhava na empresa, o executivo confidenciou, reforçando a posição de “dono do
jogo” que então ocupava, que a Globo mobilizou sua “máquina de mídia” e seu
“exército de advogados” para lutar contra o projeto. Orbitando em torno da Globo, os
opositores do projeto criaram, em novembro de 2004, o Fórum do Audiovisual e
Cinema (FAC). O FAC reunia 17 associações que representavam 13 mil empresas do
setor audiovisual – aí incluídos publicidade, serviços de infraestrutura e de tecnologia.
Em dezembro, com o apoio da Globo, o Fórum realizou, no Hotel Gran Meliá, no World
Trade Center São Paulo, um ciclo de debates pautado pelo tema da liberdade de
expressão. A abertura coube a Arnaldo Jabor; Roberto Farias foi o mediador de uma das
mesas.
Ali esteve reunido, nas palavras de Cadu Rodrigues (em entrevista à autora,
2014), o “PIB do audiovisual brasileiro”. O evento do FAC rendeu reportagens em todos
os veículos do grupo Globo, na Folha de S. Paulo e no Estado de S. Paulo, contribuindo
para a consolidação do senso comum em torno do tema:

A Ancinav buscou algo tão amplo que aglutinou setores que,


tradicionalmente, não estariam do mesmo lado, como exibidores e
distribuidores. O próprio FAC, criado para fazer frente ao CBC, tinha
sérios desentendimentos. A tevê por assinatura e a Globo, por exemplo,
tinham posições divergentes. A única coisa comum entre todas as
entidades é que sabíamos que se qualquer uma delas se desalinhasse,
perderíamos a força. Então dizíamos: “O meu discurso não é
exatamente esse, mas vamos lá”. Tanto que assim que o projeto foi
enterrado, o grupo se desfez. Acho que o governo subvalorizou a reação
que o setor teria (Fernandes, em entrevista à autora, 2014).

A artilharia, contudo, nem precisava ter sido tão pesada. Naquele momento, o
projeto já estava absolutamente enfraquecido.
Uma década depois do episódio, os atores que se envolveram diretamente na
discussão, dentro e fora do MinC, são unânimes em dizer que, ao fim de 2004, o governo


142

Lula havia chegado a um consenso: a controvérsia criada pelo projeto e as acusações de
dirigismo cultural e intervencionismo tinham arranhado a imagem da administração
Lula, criando uma crise política cujo preço a pagar era alto demais. Os custos dos
enfrentamentos no campo audiovisual se mostravam, mais uma vez, incompatíveis com
os dividendos que poderiam trazer.

2.6 Enterro da Ancinav: as razões de uma morte anunciada

As amplas modificações e as negociações feitas com os diversos elos da cadeia


ao longo do ano de 2004 não foram suficientes para que o projeto da Ancinav recobrasse
o fôlego. No dia 14 de janeiro de 2005, na reunão final do Conselho Superior de Cinema,
diante de um projeto todo retalhado, o próprio governo, pela voz do então ministro da
Fazenda Antonio Palocci, disse que o projeto era inconstitucional.89
Definiu-se que seriam excluídos do texto todos os artigos relativos à regulação
e que, posteriormente, seria submetido ao Congresso o projeto de uma agência voltada
ao fomento e à fiscalização – algo que a Ancine já fazia. A nova proposta prometida
pelo governo jamais foi enviada ao Congresso. Apesar de a regulação poder ser
entendida, simplesmente, como uma ação que estabelece uma relação direta entre poder
público e iniciativa privada, ela foi, no caso da Ancinav, interpretada como apetite
controlador do Estado (Xavier, 2004).
O episódio também comprovava, de uma vez por todas, como afirma Xavier
(2004), que a tônica da relação entre tevê e cinema no Brasil é o divórcio, com as tensões
geradas pelas reivindicações dos cineastas por espaço (quando o assunto é exibição) ou
pelas discussões acerca do papel que a tevê poderia (e deveria) ter como financiadora de
longas-metragens, a exemplo do que fazem o Channel Four inglês, a RAI italiana, o Canal
Plus francês e o canal franco-alemão Arte.
Para além das dificuldades de se regular o setor de mídia, o projeto também foi
inviabilizado em decorrência de incongruências e exageros do texto e de um erro de
encaminhamento – a proposta, afinal de contas, não foi submetida a consultas públicas
enquanto estava sendo gestada. Como se sabe, o fracasso de uma política não é
necessariamente causado pela política em si; às vezes, ele decorre da incapacidade de os

89
A tese da inconstitucionalidade havia sido defendida dias antes pelos advogados Ives Gandra Martins e
Marcos Bitelli no artigo intitulado “A Ancinav e a Constituição”, publicado no jornal Folha de S.Paulo
de 3 de Janeiro de 2004, pág. 3.


143

atores agirem racionalmente ou do cenário particular no qual a política foi construída
(Hugoson, 1997). No caso da Ancinav, o MinC avaliou mal o campo cinematográfico e a
conjuntura – menos favorável do que se imaginou dentro da pasta. Esse conjunto de
fatores acabou fazendo com que o processo deixasse, em boa parte do setor, um gosto de
derrota:

Foi um processo muito desgastante e, no fim, tirando a TV Globo e os


grandes exibidores, ficou todo mundo com a sensação de derrota. Era
um projeto que impactava tudo e que trazia propostas importantes. A
meu ver, ele fazia o diagnóstico certo, mas propunha o remédio errado.
Com isso, ele uniu, contra o governo, inimigos históricos, como os
grandes produtores e a televisão, ou os distribuidores e exibidores.
Houve muita inabilidade. Com isso, perdeu-se uma chance histórica de
mudar as coisas (Sturm, em entrevista à autora, 2014).

O que para Sturm foi inabilidade, traduz-se, para Sergio Sá Leitão, em


voluntarismo:

A gente tinha a sensação de estar inventando um país, um ministério,


uma cultura. Havia muito voluntarismo. Mas um desejo imenso de
fazer o bem, de transformar as coisas. Isso talvez tenha acontecido
porque nós éramos noviços, sabe? Havia uma ingenuidade grande.
Ninguém fazia cálculo político. O projeto da Ancinav se explica nesse
contexto. Para compreendê-lo, você precisa saber o que era o ministério
do Gil, o que as pessoas que estavam ali viviam e imaginavam. A gente
se deixava levar pelo entusiasmo e, por conta disso, colheu derrotas;
mas colheu também um monte de vitórias e avanços. Sem entusiasmo,
não se vai muito longe. Para mim, o projeto da Ancinav era muito à
frente do seu tempo: ele tratava de questões que ainda não faziam parte
da agenda; falava de convergência digital numa época em que quase
ninguém falava disso. Outro problema foi o gigantismo: ao tratar de
tanta coisa, ele mobilizou vários inimigos (Leitão, em entrevista à
autora, 2014).

A ideia da inexperiência e da inabilidade ronda várias das análises sobre a


derrota. Os jovens integrantes do MinC não tiveram a capacidade de compreender tudo


144

o que estava em jogo e de enxergar o tamanho da dificuldade de se pensar e, depois, se
negociar uma proposta tão ampla, definida pelo próprio governo como regulação social.
A força do projeto era também sua fraqueza. Se o desejo de dar conta de tudo fez com
que o projeto se tornasse paradigmático, esse mesmo desejo fez com que se tornasse, na
prática, irrealizável.
Os defensores do projeto assinalam, porém, que o episódio teve consequências
positivas. Para esse grupo, o projeto não foi totalmente fracassado porque, a partir de
suas proposições, ele problematizou os principais nós da indústria cinematográfica
brasileira. Seus artífices defendem, inclusive, que a Ancinav pavimentou o caminho
para mudanças futuras. Alfredo Manevy define a da Empresa Brasileira de Televisão
(EBC)90 e a Lei 12.485/11 como filhos pródigos da Ancinav:

Ancinav foi um acerto de contas tardio com uma regulação abrangente


que pensasse o conteúdo em todas as janelas, propondo uma relação que
o Brasil não travou no passado. Nunca ninguém tinha peitado esse tema.
O barulho que ela causou, a polêmica que abriu, os conflitos que
exacerbou e as possibilidades que vislumbrou, mesmo que sem
problematizá-las o bastante, criaram o lastro, o campo político e a
musculatura para que o Ministério da Cultura trabalhasse em dois
projetos que deram certo: a construção da rede pública de televisão e a
Lei da televisão a cabo, que enxerga a convergência entre várias janelas
e traz dentro de si vários mecanismos que a Ancinav previa (Manevy,
em entrevista à autora, 2014).

Mas a outra face dessa moeda é que o episódio da Ancinav delimitou a área de
atuação do Estado, indicando até onde é possível ir. Numa era na qual os limites para o
tamanho do Estado são grandes e a razão econômica domina a esfera cultural
(McGuigan, 2004), as medidas protecionistas, mesmo aquelas que podiam antes ser
consideradas benéficas, tendem a ser compreendidas como interferência indevida. Cabe
lembrar que a ideia da constituição de um espaço audiovisual latino-americano91, forte

90
A EBC, lançada em 2007, é uma empresa nacional de serviço de broadcasting que inclui um canal de
televisão, a TV Brasil, várias estações de rádio e uma agência de notícias. Apesar de a EBC ter sido
pensada inicialmente pelo MinC, seu comando acabou sendo entregue ao Ministério das Comunicações.
91
No que diz respeito ao cinema e às políticas cinematográficas, os realizadores latino-americanos
ambicionavam, nas décadas de 1960 e 1970, uma revolução estética e narrativa e abraçavam a busca por
um padrão alternativo, independente e anti-imperialista, que os livrasse da situação colonial. Nesse


145

na década de 1960, estava fortemente ligada às prioridades do Estado-nação, conceito
que se tornou problemático no mundo globalizado (McGuigan, 2004; Appadurai, 1997).
No século XXI, com a economia e a cultura globalizadas, a associação entre Estado,
cultura e identidade perdeu a centralidade (Ortiz, 2000) e, como a disputa da Ancinav
demonstrou, não é mais possível – e nem teria sentido – construir uma política
audiovisual nos moldes do que a Europa fez no século passado. O projeto, além disso,
propunha algo bem menos “sistêmico” do que se apregoava.
E por que, a despeito das incongruências e impossibilidades, o projeto segue
sendo útil como instrumento para a compreensão da política que se estruturou na década
seguinte?
Primeiro, porque alguns dos temas centrais da Ancinav, como o domínio do
mercado de cinema por Hollywood, a maior presença do filme brasileiro na tevê e as
possibilidades para a produção independente (não só a do eixo Rio-São Paulo)
continuaram em pauta. Além disso, a situação de dissenso e desacordos fez com que as
partes em conflito buscassem mobilizar o maior número possível de atores em favor de
suas causas, obrigando os envolvidos a mostrar sua verdadeira posição no tabuleiro do
audiovisual, reatualizando e respondendo à indagação de Ramos:

Como se processam as relações de força no interior do cinema


brasileiro, como se comportam os grupos produtores culturais diante do
Estado, como se dá, enfim, no campo cultural, a busca da hegemonia –
tentada até mesmo por um Estado ditator.ial –, que tem sua origem nas
relações entre classes sociais? (Ramos, 1983, p. 13).

O episódio da Ancinav obrigou os agentes a revelar, sem os véus habituais, a


posição que cada um ocupava no campo e a reafirmar os “valores que se encontram na
origem de seu encobrimento” (Bourdieu, 2001, p. 26). A vitória coube àqueles que já
dominavam o campo graças ao capital econômico, político e social acumulado no
decorrer das lutas anteriores. Ainda assim, por mais que esse grupo tenha demonstrado

período, desenrolaram-se, nos países latino-americanos, movimentos nacionais populares específicos que
tiveram reflexo nas respectivas indústrias culturais locais. A questão do cinema nos países periféricos é
tratada por: Ella Shohat e Robert Stam. The third wordlist film. In: Shohat, E. e Stam, R. (orgs.).
Unthinking eurocentrism: multiculturalism and the media. Londres: Routledge, 1994, pp. 248-291; Toby
Miller e George Yudice. Cultural Policy. Londres: Sage, 2002; e Gomes (2016).


146

dominar as capacidades exigidas pela lei do campo, os novos pretendentes também
conseguiram, em alguma medida, fazer valer novas posições e desetabilizar o jogo que,
antes, sempre parecia ganho de antemão.
Como diz Calil (2004, p. 126), essa iniciativa ambiciosa e “eventualmente
insensata” do governo superou a tradição brasileira de “se resolver as questões entre
quatro paredes” e deslocou, do centro da discussão, os “caciques”, ampliando “a
interlocução para um grupo mais diversificado”. Nesse momento, o pacto, modus
operandi mais tradicional do cinema brasileiros, teve de ser suspenso. Se os pequenos
produtores não conseguiram efetivar a “revolução parcial” com a qual sonharam,
tampouco os grandes produtores conseguiram, através de sua posição defensiva,
“conservar a posição antes ocupada”, ou “perpetuar o status quo” (Bourdieu, 2001, pp.
32-33).
Os movimentos ocorridos dentro do campo durante esse episódio permitiram
que novos produtores e novos agentes da política cinematográfica se fizessem
reconhecer, pontuando suas diferenças em relação aos produtores estabelecidos. Assim
como a disputa entre os jovens gestores e Gustavo Dahl teve um quê de geracional, a
Ancinav carregou algo de querela entre antigos e modernos, velhos e jovens. Como diz
Bourdieu (2013, p. 57), os conflitos de geração colocam em posições opostas não
necessariamente agentes de idades diferentes, mas agentes que trabalham com
diferentes definições do “impossível, do possível, do provável ou do certo”; essas
diferentes visões fazem com que alguns indivíduos sintam como “naturais ou razoáveis
práticas ou aspirações que outros sentem como impensáveis ou escandalosas”:

No meio de todo aquele entusiasmo da turma da SAV, tinha o


Gustavo[Dahl]. O Gil o recebeu algumas vezes, mas ninguém
conseguia se identificar com ele, sabe? Ele era a voz da realpolitik, da
vida como ela é... A gente não queria saber daquilo. Você está saltando
do céu e chega o tio chato para falar que aquilo não daria certo. “Já
parou para pensar que pode dar errado?”. E a gente: “Não! Deixa eu
fazer, deixa eu me ferrar sozinho”. Agora, o Gustavo sempre foi 100%
correto, sempre disse o que achava e teve uma postura muito respeitosa.
Acho que ele nunca fez nada contra o que estava acontecendo ali,
embora o que estava acontecendo ali fosse contra ele (Leitão, em
entrevista à autora, 2014)


147

Depois de superado o trauma da derrota política da Ancinav, derivada do que


Gramsci chama de ataque frontal, sairia de cena o “tio chato” e entraria, em seu lugar,
Manoel Rangel. Rangel, que tinha sido chamado para fazer a “revolução”, parece ter
extraído, desse conflito, dois aprendizados gramscianos (Coutinho, 2011):

1- A brecha no setor audiovisual encontrava-se na fratura entre as empresas


de radiodifusão e as de telefonia. Era no novo ambiente de convergência digital que se
deveria, portanto, buscar a artilharia para a guerra de posições.
2- As rupturas possíveis eram as parciais, ou seja, aquelas que permitiam
uma continuidade orgânica do todo. E mesmo para estas, o único caminho possível era
o da busca do consenso.


148

Capítulo 3

Em busca do consenso: novas leis e novos players em cena

A luta política é muitíssimo mais complexa: em certo sentido, pode ser


comparada às guerras coloniais ou às velhas guerras de conquista, quando o exército
vitorioso ocupa ou se propõe ocupar permanentemente todo ou uma parte do
território conquistado. Então o exército vencido é desarmado e dispersado, mas a luta
continua no terreno político e da “preparação” militar
(Gramsci, 2011, p. 295)

3.1 O rescaldo da Ancinav e a reconfiguração de forças

Ainda sob efeito do desgaste provocado pelo projeto da Ancinav, o setor


cinematográfico brasileiro entrou no ano de 2005 mais silencioso. E, literalmente,
encolhido. A produção fechou 2004 com uma queda de cerca de 30% de participação
de mercado em relação a 2003, ano no qual, momentaneamente, acreditou-se que ocupar
de forma significativa o mercado dominado por Hollywood não era um sonho
impossível.
Tais resultados, somados à ressaca advinda da Ancinav, contribuíam para a
sensação de que a cisão do cinema brasileiro se dava entre dois grupos: o dos que
produziam com o apoio da GloboFilmes e das majors, que lhes asseguravam recursos
para a produção e a distribuição, e o daqueles que, privados dessas parcerias, ficavam à
margem do circuito. A divisão entre os “sem major” e os “com major” surgia como a
versão cineminha/cinemão ou culturalistas/industrialistas (Ramos, 1983) do início do
século XXI. Para aqueles que haviam defendido o projeto da Ancinav, como a
pesquisadora Ivana Bentes, ficava a sensação de que o cinema brasileiro era um hábito
cultural ainda frágil e de que o público, de forma geral, não se interessava por ele:

O cinema brasileiro não é popular, o que não tem nada a ver com
linguagem difícil ou cinema autoral. Cultura de massa quem vem
fazendo é a televisão, que é de graça e atinge um número infinitamente
maior de pessoas (Bentes, apud Sousa, 2005, p. 60).


149

O que Ivana queria dizer é que a suposta “massa” – conceito já então


desatualizado – só se dirigiria ao cinema para ver produções que estabelecessem um
diálogo estético direto com a televisão. É que, em 2004, mais de 80% dos 16,4 milhões
de espectadores que compraram ingressos de filmes nacionais, foram ver títulos que
tinham a GloboFilmes como parceira – como Cazuza e Olga.
Em meio a esse cenário, também as esperanças em torno de um real
fortalecimento do Ministério da Cultura (MinC) haviam esmaecido. Apesar de, após
assumir, Gilberto Gil ter conseguido fazer a pasta saltar do parco 0,25% para o 0,4% do
Orçamento Geral da União, a conquista foi logo tungada pelo contingenciamento,
deixando o país mais uma vez distante da recomendação da Unesco, que é a de que os
recursos orçamentários para a Cultura não sejam inferiores a 1% do total.
No cenário político mais amplo, quatro meses após o arquivamento do projeto
da Ancinav, estourou o escândalo do mensalão92, que marcaria de forma importante o
governo Lula. O mensalão veio à tona no mês de maio. Em julho, Hélio Costa, ex-
funcionário da Rede Globo e ele próprio detentor de uma concessão de rádio, foi
nomeado ministro das Comunicações, com apoio da emissora que esteve à frente dos
ataques ao projeto da Ancinav.
A Ancine, enquanto isso, ia tentando colocar em prática suas primeiras
políticas. Como foi relatado no capítulo anterior, a efetiva implantação da Ancine e do
Conselho Superior de Cinema se deu entre 2001 e 2003. Nos primeiros anos de
atividade, a agência funcionou, essencialmente, como uma gestora dos mecanismos de
incentivo fiscal. Apesar de, como sublinha Ikeda (2015, p. 62), haver no setor
cinematográfico a expectativa “de que a Ancine resgatasse o ciclo de desenvolvimento
da época áurea da Embrafilme” e “até o superasse”, a agência, nessa primeira fase, “viu
limitadas suas possibilidades de intervir no mercado cinematográfico de forma decisiva,
tornando-se meramente uma gestora de mecanismos indiretos cujas limitações eram
cada vez mais visíveis”.
A fragilidade institucional estendia-se, inclusive, para a diretoria, que entrou

92
O chamado escândalo do Mensalão, que ocorreu entre 2005 e 2006, diz respeito às denúncias de compra
de votos de parlamentares no Congresso Nacional que atingiram, em sua primeira fase, integrantes do
governo Lula.



150

em 2005 com apenas dois nomes em seus quadros – Gustavo Dahl e João da Silveira.
As outras duas vagas estavam desocupadas. O mandado de Augusto Sevá havia se
encerrado no final de 2004 e Lia Gomensoro Lopes renunciara ao cargo em outubro de
2003. Detalhe: todas as decisões da agência têm de ser aprovadas por pelo menos três
diretores. Ou seja, nenhuma medida podia ser tomada naquele momento.
Ainda em 2004, o MinC tentou indicar, para essas duas vagas, Manoel Rangel
e Leopoldo Nunes. Havia, no entanto, a pressão do PT para que alguém do partido
integrasse o quadro de comando da agência. O então ministro-chefe da Casa Civil, José
Dirceu, teria chegado a dizer: “Mas os dois têm até o mesmo endereço!”. É que Rangel
e Nunes, de fato, dividiam um apartamento em Brasília. No fim, foram indicados Rangel
e o produtor cultural Nilson Rodrigues, ligado ao PT do Distrito Federal. Apesar de as
indicações de Rangel e Rodrigues terem sido feitas em janeiro, apenas em junho a
diretoria colegiada da agência voltou a estar completa, com a aprovação, pelo
Congresso, dos nomes indicados pela presidência.
Parecia que, enfim, a instabilidade institucional que marcou os primeiros anos
da Ancine, tinha possibilidades de ser superada. O período desde a criação da agência
no papel até sua efetiva instalação no antigo prédio da Cacex, na Praça Pio X, no centro
do Rio de Janeiro, foi um período, nas palavras de Dahl (2005), durante o qual não
houve escolha se não “morar na obra, trocar o pneu com o carro em movimento”:

Ao longo dos seus anos de instalação, a Agência teve que primeiro


dotar-se de computadores pessoais, ligar-se à internet e depois
constituir um centro de processamento. Em seguida levantou os
processos operacionais para elaborar programas e sistemas, bem como
constituir um banco de dados. Aparentemente considerada como uma
atividade-meio, de suporte ao processo decisório, sempre houve o
entendimento de que a gestão da informação era um dos pilares da
Ancine, da qual a regulamentação era outro (Dahl, 2005, p. 22).

Manoel Rangel, mal chegou, chamou para si a organização de processos e


procedimentos que requeriam, além da vontade política, o ímpeto de enfrentar os
labirintos burocráticos e regulatórios e a disposição para o trabalho de formiguinha. Já
no segundo semestre de 2005, Rangel estruturou e comandou a operação do Prêmio
Adicional de Renda (PAR), previsto na MP 2228-1/01, mas até então inexistente. O


151

PAR, destinado a produtores, distribuidores e exibidores, premia as empresas de acordo
com a renda obtida pelos filmes no mercado de salas de exibição, e o dinheiro recebido
deve ser aplicado em novos projetos.
O PAR reeditava um mecanismo criado nos anos 1950 e posteriormente
ampliado. Nos anos 1970, o adicional de renda contribuiu, de maneira significativa,
para que o cinema brasileiro aumentasse sua presença no mercado. À altura, o prêmio
restringia-se à produção; nos anos 2000, ele passou a beneficiar também os setores da
distribuição e da exibição93.
Já no ano seguinte, em 2006, na tentativa de conciliar as duas frentes que,
historicamente, marcam o setor, a do cinema comercial e a do cinema de autor, foi
criado o Programa de Incentivo à Qualidade do Cinema Brasileiro (PAQ). O PAQ
contempla aqueles produtores que, mesmo não tendo conseguido obter bons resultados
nas bilheterias, realizaram obras com relevância cultural e artística. O principal critério
para aferir a “qualidade” é a participação em festivais nacionais e internacionais
considerados relevantes pela agência – Cannes, Veneza e Berlim à frente. O prêmio é
entregue ao produtor, que deve, obrigatoriamente, investir o dinheiro em novas
produções nacionais. Com isso, a Ancine visa estruturar empresas tradicionalmente de
pequeno porte.
Ambos os prêmios fazem parte do que se chama, na política cinematográfica,
de mecanismos automáticos – em oposição aos seletivos que, como o próprio nome diz,
implicam num processo de seleção. Tanto os recursos do PAR quanto do PAQ são
distribuídos de acordo com uma grade de pontos, ou seja, ganha mais quem mais pontos
fizer. Tais mecanismos estão isentos das sombras de clientelismo que, por vezes, turvam
os processos de seleção. São, além de tudo, mais ágeis e menos custosos – uma vez que
não implicam em longos processos de análise ou na constituição de comissões.
Manoel Rangel esteve à frente ainda da formulação e estruturação do
curso de formação dos servidores aprovados no concurso da Ancine. Tal concurso, que
foi concorrido como costumam ser os concursos públicos no país, significou uma
mudança importante na estrutura da agência. Entre 2002 a 2004, a Ancine havia
funcionado com um quadro de pessoal provisório e insuficiente. O concurso levou para

93
Para conhecer a metodologia de quantificação do PAR e do Programa de Incentivo à Qualidade do
Cinema Brasileiro (PAQ) e para uma análise mais detalhada de seu funcionamento ver Ikeda (2015, pp.
213-226).


152

a agência 50 Especialistas em Regulação da Atividade Cinematográfica e Audiovisual
e 20 Técnicos em Regulação da Atividade Cinematográfica e Audiovisual.
A chegada dos concursados somada às novas responsabilidades que vinham
sendo assumidas pela agência levou à mudança de sede. A agência saiu da Praça Pio X
para um edifício na avenida Graça Aranha, também no centro do Rio. A mudança, de
acordo com Dahl, era mais do que uma simples ampliação das instalações e de boas
condições de trabalho:

[a mudança de endereço] representa a institucionalização, a


permanência da Ancine no tempo futuro, sua capacidade de implantar-
se e evoluir dentro da administração pública do país. A discreta vitória
da visão de futuro, da capacidade, da tenacidade, da vontade de servir
(...) Pela primeira vez, o Estado brasileiro constitui uma burocracia, no
melhor sentido da palavra, a serviço do cinema e do audiovisual, mais
além da instabilidade dos cargos providos em confiança (Dahl, 2005, p.
27).

A Ancine, ao mesmo tempo em que se inseria na modernidade capitalista,


aderia aquilo que, nos termos weberianos recuperados por Ridenti (2014, p. 11), é
chamado de “espírito de cálculo, o desencantamento do mundo, a racionalidade
instrumental e a dominação burocrática (...) inseparáveis do advento do espírito do
capitalismo”. A atuação da agência, como se verá nos próximos capítulos, será pautada
pela lógica burocrática.
Enquanto a agência se estruturava, criando novos mecanismos regulatórios e
preparando um quadro administrativo apto a dar conta do fomento, da regulação e da
fiscalização, os embates, fora dali, iam sendo retomados. Mas o alvo principal nesse
momento era o MinC, e não mais diretamente a Ancine, que passava a ser vista como
um órgão adjacente à Secretaria do Audiovisual. Gustavo Dahl ia sendo posto de
escanteio e quem assumia o protagonismo da política, lançando editais e programas e
sendo porta-voz das questões do setor, era o secretário Orlando Senna.
Paralelamente às questões envolvendo a Ancine e o cinema como mercado, a
SAv ia colocando na rua ações que tinham o objetivo de democratizar o acesso aos
meios de produção audiovisual: ou seja, não bastava que os filmes feitos pelas
produtoras estabelecidas fossem vistos; era preciso que outros e mais fizessem. Os dois


153

principais programas que se inserem no conceito de “democracia cultural”94 são o Doc-
TV e o Revelando os Brasis.
Lançado em 2003, o Doc-TV é um projeto de viabilização de documentários
feito em parceria com as televisões públicas. O projeto, idealizado por Mário Borgneth
e coordenado por Paulo Alcoforado95 e Mauricio Hirata, viabilizou, em seus primeiros
quatro anos, a produção e a veiculação de 115 documentários produzidos Brasil afora.
Em 2006, o Doc-TV expandiu sua atuação para a América Latina. O Revelando os
Brasis, criado em 2004, é um programa destinado a moradores de municípios com até
20 mil habitantes. O concurso, que existe até hoje, prevê a realização de vídeos sobre
as próprias localidades.96
Não só em decorrência desses programas, mas também em decorrência dos
resultados dos prêmios de cinema dados pelas empresas estatais, menos de seis meses
depois de enterrado o projeto da Ancinav, os grandes produtores, liderados por Luiz
Carlos Barreto, vieram mais uma vez a público contestar a “politica regionalista” do
MinC. Enquanto Gil vocalizava a intenção de atender setores periféricos antes
desatendidos, Barreto criticava a pulverização de recursos. Esse sistema, alegavam os
concentracionistas, criava um sistema no qual um diretor atravessa anos recolhendo
dinheiro de edital em edital e nunca finaliza o projeto.
O argumento do grupo era que, ao dividir os recursos entre um número cada
vez maior de pessoas, se criou uma situação na qual eram muitos os premiados, mas
poucos os filmes realizados – e menos ainda os filmes grandes. Cabe lembrar que a

94
A política cultural pode trabalhar a partir de dois paradigmas: o da democratização cultural e o da
democracia cultural. A democratização cultural visa, basicamente, dar acesso àquilo que é produzido por
artistas e produtores culturais; ela, em geral, está ligada à educação e carrega consigo um julgamento de
gosto e valor. A democracia cultural, por outro lado, vê toda e qualquer manifestação como legítima e
como valiosa. O papel do Estado, no caso da democracia cultural, é oferecer a possibilidade de que todos
se manifestem culturalmente e apoiar as escolhas individuais, o que significa, por exemplo, apoiar o funk
numa comunidade na qual o funk é a manifestação cultural dominante. Ver: Yves Evrard. Democratizing
culture or cultural democracy? In: The journal of arts management, law and society, Vol. 27, 2007, pp.
167-175

95
Paulo Alcoforado foi diretor da Ancine entre maio de 2009 e dezembro de 2010 e tornou-se um nome
central da gestão de Manoel Rangel, tendo sido um dos responsáveis pela elaboração de editais voltados
ao desenvolvimento da produção regional, muitos deles claramente inspirados no Doc-TV, como o Prodav
destinado à produção de programas para a rede pública de televisão.

96
Para maiores detalhes sobre os dois primeiros anos do programa Revelando os Brasis ver: Lia Calabre.
Revelando os Brasis: o projeto. Políticas Culturais em Revista, 2 (4), 2011, pp.67-79. O projeto é
tematizado, de forma ficcional, no longa-metragem Saneamento Básico, o Filme (2007), de Jorge Furtado.


154

divisão do bolo das estatais entre mais realizadores e produtores vinha motivando
ataques à política cultural levada a cabo pelo governo Lula desde 2003, conforme relato
no tópico 2.2. A demora para a conclusão dos filmes premiados – na melhor das
hipóteses, eram cinco anos entre o primeiro prêmio e a finalização – fez com que se
começasse a discutir, inclusive, a pertinência de se lançar certos títulos nas salas
comerciais.
Foi em meio a esse embate que o poeta Ferreira Gullar 97 , numa sabatina
realizada pela Folha de S. Paulo, acusou o ministro Gilberto Gil de centralizador. Numa
carta publicada no Painel do Leitor, no mesmo jornal, Sérgio Sá Leitão, então secretário
de Políticas Culturais do MinC, devolveu (Leitão, 2005): “Não deixa de ser curioso um
comunista criticar algo ou alguém por uma suposta ‘centralização’. A ‘centralização’
não era a marca registrada dos finados regimes stalinistas dos quais Gullar foi e segue
sendo um defensor?”. No MinC, atribiuía-se a reação ao “fim da política de balcão”.
“Essas pessoas não se conformam com regras republicanas e tratamento democrático,
porque agora elas são tratadas como todos os outros produtores culturais deste país”,
dizia Leitão (Leitão, apud Arantes, 2006).
Zelito e Barreto, com o apoio de Caetano Veloso e Fernanda Montenegro,
enviaram ao ministro Gilberto Gil uma carta na qual pediam a cabeça do secretário. A
fala de Leitão gerou uma carta aberta de Caetano Veloso. Na Folha de S. Paulo, o cantor
afirmou que se sentia “a um passo do totalitarismo” e ressuscitou o fantasma da
Ancinav:

E que história é essa de “ex-privilegiados do cinema”? Estamos de volta


à retórica demagógica dos tempos da Ancinav? Num país em que o que
mais se vê é filme de diretor estreante? E chamar os produtores e
diretores consagrados (pelas bilheterias, pelo pioneirismo, pelo
prestígio internacional) de “ex-privilegiados”! Esse “ex” é uma
sentença de condenação aos que produziram cinema por anos ou
décadas? (Veloso, 2006)

Essa confusão, que colocou em fronts opostos os grandes e pequenos


produtores e, em alguma medida, Rio e São Paulo, era o preâmbulo de outra mais

97
Em 2014, o diretor Zelito Viana, em parceira com Gabriela Gastal, começaria a produzir o documentário
Um maranhense chamado Ferreira Gullar. A produção cabe à Mapa Filmes, fundada em 1965 por Zelito,
Glauber Rocha, Walter Lima Jr. e Paulo César Sarraceni.


155

objetiva: aquela que se seguiu ao resultado do prêmio cinematográfico do BNDES. No
dia 11 de janeiro, o editorial do jornal O Globo sentenciou: “Há no BNDES R$ 10
milhões para financiar filmes. O edital seria dirigido para, salvo exceções, alijar grandes
nomes, punir o sucesso” (Sanches, 2006). Tratava-se de uma referência ao concurso
público, lançado em 2005, que destinou R$ 10 milhões para a produção de longas-
metragens. Dentre os 178 inscritos, 30 foram pré-selecionados para a defesa oral – o
chamado pitching. Todos os que ficaram de fora aceitaram a derrota em silêncio. A
exceção ficou por conta dos produtores Luiz Carlos Barreto (que apresentou três
projetos) e Paula Lavigne, e dos diretores Paulo Thiago, Tisuka Yamazaki e Daniel
Filho. Uma coisa em comum entre eles é que todos tinham um histórico de proximidade
com o BNDES.
Barreto produziu, com a ajuda do banco, O casamento de Romeu e Julieta, A
Paixão de Jacobina e O que é isso companheiro?; Paula Lavigne tinha sido premiada
com O coronel e o lobisomen (2005), Lisbela e o prisioneiro (2003) e Benjamin (2003);
tinham saído também dos cofres do banco os recursos para a realização de todos os
filmes recentes de Paulo Thiago: três documentários e as ficções O vestido (2003) e
Policarpo Quaresma (1998); Daniel Filho tinha recebido verba para A dona da história
(2004); e, por fim, Tisuka Yamazki obteve recursos do banco para fazer Gaijin – Ama-
se Como Sou (2005). É preciso aqui fazer uma observação a respeito dessa lista e da
acusação de que a nova política em curso punia o sucesso. Daniel Filho vinha, de fato,
de dois sucessos – A Partilha e A dona da história – e que lançaria, em 2006, o
fenômeno Se Eu Fosse Você. Barreto, ao contrário, vinha de uma sucessão de fracassos:
A paixão de Jacobina (2002) vendeu 146 mil ingressos; Bella Dona (1998), fez 68 mil
espectadores; e mesmo sua produção embalada como possível blockbuster, O
casamento de Romeu e Julieta (2005), não chegou a um milhão de espectadores. Os
filmes de Paulo Thiago e de Tisuka tampouco fizeram sucesso.
O que os incomodava, portanto, era menos a sensação de punição pelo sucesso
e mais a percepção de que aquela estava deixando de ser uma festa privativa, para a qual
poucos eram convidados. Passar os olhos pela curta lista de premiados pelo BNDES
uma década antes, no ano de 1996, contribui para a compreensão não só desse episódio
específico como do que estava sendo alterado na política cinematográfica brasileira.
Em 1996, oito filmes foram beneficiados pelo prêmio do BNDES. Entre eles,
estavam projetos produzidos pelos cariocas Barreto (com O que é isso companheiro?),
Paulo Thiago (com Policarpo Quaresma), Zelito Viana (com Villa Lobos, uma vida de


156

paixão) e Sergio Rezende (A guerra de Canudos e Mauá – o imperador e o rei).
Nenhum desses nomes estava na lista de vencedores do edital de 2005. Entre os 18
ganhadores (o resultado foi divulgado no dia 19 de janeiro de 2006) estavam, porém,
nomes que tinham despontado nos anos 1990 ou início dos anos 2000: Eliane Café
(Narradores de Javé, 2003), Tata Amaral (Um céu de estrelas, 1996, e Através da
Janela, 2000), José Padilha (Ônibus 174), Laís Bodanzky (Bicho de sete cabeças, 2000)
e estreantes no longa-metragem, como Sandra Kogut e Alê Abreu, que venceram com
os projetos de Mutum (2007) e Garoto Cósmico (2007).
O resultado, que incluía filmes autorais e era atípico para os padrões antigos
do banco decorria, entre outras coisas, do novo formato do edital, que vigorava desde
2004: institui-se uma comissão externa e criou-se a etapa de defesa oral. Antes, a
decisão sobre investimento ficava a cargo de funcionários de carreira do BNDES.
Depois de divulgados os resultados e tornado público o queixume, o grupo que
se sentiu prejudicado foi recebido por Élvio Gaspar, chefe de gabinete de Guido
Mantega, presidente do BNDES. A audiência foi solicitada pelos presidentes dos
sindicatos da indústria cinematográfica do Rio de Janeiro, Paulo Thiago, e de São Paulo,
André Sturm. Como acompanhantes, integraram-se à comitiva Luiz Carlos Barreto e
Daniel Filho. Um dos questionamentos dizia respeito ao sigilo em torno dos nomes que
integravam a comissão. Gaspar respondeu que o sigilo visou, única e exclusivamente,
evitar a pressão sobre aqueles que escolheriam os vencedores: “No ano anterior, foram
incontáveis – e quase sempre incontornáveis – os telefonemas”, afirmou então (Gaspar,
apud Sousa, 2006, p. 53). Enquanto os velhos contemplados enxergavam no resultado
um alijamento, os que estavam chegando viam ali um processo democratização.
O ator Matheus Nachtergaele, premiado com A festa da menina morta (2008),
produzido por Vânia Catani, que se tornaria uma produtora-símbolo dos anos Lula-
Dilma, disse: “Há, nesse resultado, um olhar para o futuro. A gente perdeu esse mesmo
prêmio duas vezes e nem por isso saiu por aí atacando ninguém” (Nachtergaele, apud
Sousa, 2006, p.52). Para Toni Venturi, uma das principais vozes de defesa da Ancinav
e dirigente da Apaci, todo o barulho tinha sido causado por um grupo que vinha sendo
beneficiado há anos e que, de repente, passou a temer um deslocamento das verbas.: “O
questionamento estava sendo feito pelas oligarquias que durante anos se beneficiaram
do sistema de lobby político” (Venturi, apud Sousa, 2006, p. 53). Não foi muito
diferente o que disse, oficialmente, o secretário Orlando Senna:


157

Não há privilégios ou retaliações ou qualquer disfunção institucional, o
que há é uma política audiovisual em marcha. A origem da polêmica,
como detectou o ministro Gilberto Gil, é a mudança de eixo que foi
imprimida às políticas públicas para o audiovisual (Senna, apud Sousa,
2006, p. 51).

A mudança de eixo não era, porém, tão definitiva assim. Demonstrando que a
sociedade civil, como prega a teoria de Gramsci, não é “uma zona neutra situada ‘para
além do Estado e do mercado’”, mas uma “decisiva arena (...) na qual os diferentes
grupos sociais lutam para conservar ou conquistar hegemonia” (Coutinho, 2011, p. 25),
a pressão teve efeitos. Em 2006, o BNDES voltou a agraciar grandes produtores do Rio
de Janeiro, ligados à Globo, como Daniel Filho, Guel Arraes, Miguel Falabella, Wolf
Maia e Diler Trindade, produtor dos filmes da Xuxa e do Didi.
Foi então a vez de os integrantes da Apaci reclamarem. A entidade dizia que,
apesar do discurso oficial em contrário, estava em curso uma política de concentração,
na qual os projetos das grandes distribuidoras estrangeiras, associadas à Globo, sempre
com altos orçamentos, eram beneficiadas com valores inclusive maiores que os demais
diretores. Nesse ano, comprovando o movimento pendular da política cinematográfica
brasileira e sua sujeição às pressões que chegam via gabinetes ou mídia, o BNDES
distribuiu R$ 1 milhão para os projetos comerciais e R$ 400 mil para diretores de viés
“cultural”, como Jorge Bodanzky ou Roberto Moreira.
Ia ficando evidente que era até aceitável, para os atores estabelecidos, que a
política incluísse novos beneficiários, mas desde que isso não os atingisse. Como
escreve Ricardo Silva (2017, p. 178), em sua disssertação de Mestrado sobre a política
cinematográfica brasileira “o tipo de relacionamento que ocorre entre as pessoas é
determinado por suas expectativas e, na política, as expectativas são determinadas por
ações governamentais ou políticas públicas”. Para estudar a arena política do cinema,
Silva partiu da tipologia de Theodore Lowi, que divide as políticas públicas em quatro
categorias: distributivas, regulatórias, redistributivas e constitutivas. E conclui:

Nesse diapasão, as políticas (e arenas) distributivas e redistributivas se


diferenciam pelo nível de conflito e grau de polarização. Enquanto as
políticas distributivas se referem a decisões alocativas, geram pouco
conflito e envolvem grande número de pessoas, tentando contemplar


158

todos os interesses, as políticas redistributivas são bastante conflituosas
e mais polarizadas. Estas costumam ser definidas como “jogos de soma
zero”, em que para que um ganhe, o outro tem que perder (Silva, 2017,
p. 178).

Ia sendo riscada assim a linha que separa o sonho do possível. Ou o conflito


do pacto. A Ancinav tinha evidenciado os limites regulatórios do Estado e os custos da
guerra frontal. As políticas pontuais, por sua vez, iam mostrando que era até viável
colocar em prática uma política que atendesse mais atores, mas desde que isso não
implicasse em sacrifício dos “grandes” – que são, em geral, os mais dotados de capital
social e político.
Não deixa de ser curioso – ou premonitório – que, nesse momento, Sérgio Sá
Leitão já tivesse deixado o MinC para se tornar assessor cultural do BNDES. Seu
discurso, em 2006, guardava pouco do discurso de 2005 e antecipava muito do que seria
seu discurso no futuro: a defesa do filme como produto e a crença no liberalismo
econômico como o caminho para o sucesso no mercado audiovisual.
Ia ficando claro que, no início século XXI, sob um governo petista, a política
cinematográfica brasileira, refletindo um movimento mais amplo da cultura e da
sociedade na era neoliberal (Harvey, 2008), também aderiria ao discurso da economia
e do mercado. É sabido que, já nos anos 1970, a questão do cinema como mercado e
indústria exigiu “dos intelectuais do INC e da Embrafilme um discurso que fosse
coerente com as perspectivas de desenvolvimento econômico” (Ortiz, 1985, p. 110).
Mas se antes havia uma tensão entre o projeto de revolução e o ideário industrial
(Bernardet, 1978; Viany, 1999), na atualidade as discussões sobre interesse público e
defesa da identidade nacional (Miller e Yúdice, 2002) parecem ter sido de uma vez por
todas substituídas pela lógica econômica que, como diz McGuigan (2004), passou a
dominar todas as esferas da vida.
Em meio a esse cenário, que repunha as disputas históricas, mas reembalava-
as sob a nova ordem mundial, Rangel foi indicado pelo presidente Lula, em dezembro
de 2006, para assumir a presidência da Ancine, em substituição a Gustavo Dahl. A
mesma publicação no Diário Oficial da União trazia a nomeação de Leopoldo Nunes,
ex-colega de ABD de Rangel, para diretor da agência, com mandato até dezembro de
2010.


159

Para aqueles que começaram no cinema após a extinção da Embrafilme,
Manoel Rangel, filiado ao PCdoB, representava uma passagem de bastão geracional e
ideológica: ele não tinha trabalhado na Embrafilme e era abertamente de esquerda.
Nesse momento, seu discurso estava “suavizado” e os compromissos políticos e
econômicos do governo Lula estavam mais claros. Apesar disso, sua chegada ao
comando da agência foi bem aceita pelos jovens cineastas e produtores mais
identificados com o espectro da esquerda. Tanto que Luiz Bolognesi, que conheceu
Rangel nos tempos de ABD, fala dele um pouco como se falasse de si:

A Ancine nasceu de duas forças principais: a velha guarda que vinha do


Cinema Novo e que eram os mandachuvas da Embrafilme e a turma da
ABD. A geração da ABD, da qual Manoel Rangel e Leopoldo Nunes
fazem parte, foi o que reconfigurou o projeto de Ancine pensado pelo
pessoal da Embrafilme. O que a Ancine é hoje se deve muito a essa
geração de abedistas. Os interesses dessa turma eram absolutamente
opostos aos da turma da Embrafilme, que estava sentada no poder e não
abria espaço para ninguém mais entrar. A gente militou por um conceito
geral de democratizar o acesso aos recursos públicos. E foi isso que a
Ancine fez. A chegada do Manoel significou a transformação de um
órgão diplomático de fachada num órgão efetivo. Significou o acesso
de uma nova geração à realização de longas-metragens (Bolognesi, em
entrevista à autora, 2016).

Começava a se desenhar assim, no campo do cinema, um novo consenso,


assentado num paradoxo: a defesa da “razão econômica” levada a cabo por uma geração
que chegou a poder defendendo postulados anticapitalistas. A partir de 2006, Manoel
Rangel, que tentara a guerra de movimento gramsciana durante o episódio da Ancinav,
ia dando início à guerra de posição, na qual é apenas “parcial o elemento do movimento
que antes constituía ‘toda’ guerra (Coutinho, 2011, p. 294).

3.2 Manoel Rangel: da redação da Ancinav à presidência da Ancine

Nascido em Brasília e criado na Bahia, Manoel Rangel mudou-se para São


Paulo aos 17 anos, tendo como destino a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas
(Ubes), entidade que presidiria de 1988 a 1990. Depois de concluir o Ensino Médio


160

numa escola pública, Rangel entrou no curso de letras da Faculdade de Filosofia Letras
e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e, dois anos depois, em 1995, prestou novamente
vestibular, dessa vez para o curso de cinema da Escola de Comunicações e Artes (ECA-
USP). Retorcia nesse momento não apenas o seu destino, mas também o do cinema
brasileiro. Apesar de, ao buscar a nova faculdade, ter a mesma intenção de todos os seus
colegas, ou seja, virar cineasta, Rangel fez apenas três curtas-metragens. Logo a política
o fisgou novamente:

Na ECA, aprendi a ver o cinema como processo social. O marco da


minha entrada na militância cinematográfica foi um ciclo que celebrava
os 80 anos de nascimento do Paulo Emílio Salles Gomes e mobilizou
gente como Antonio Candido, Ismail Xavier e Carlos Augusto Calil98.
Procuramos, nesse ciclo, discutir o Brasil a partir do Brasil que os filmes
mostravam (...) Estávamos [e e meus amigos] lastreados nesse
pensamento que articula as duas dimensões do cinema: a estética e
também a política, de ocupação do mercado (Rangel, apud Sousa,
2007).

Ao lado dos colegas Alfredo Manevy, Mauricio Hirata, Newton Cannito e


Leandro Saraiva99, Rangel participou da criação de publicações como o jornal Cine e
Debate e a revista Sinopse, onde os jovens estudantes começaram a refletir sobre coisas
que alguns deles colocariam em prática – fosse fazendo filmes fosse fazendo política. E
muito desse movimento se explica pelo fato de, naquele momento, ser quase impossível
fazer longas-metragens:

98
O evento “Paulo Emílio Ano 80”, realizado em 1996 na USP, incluiu mostra de filmes, debates,
palestras e depoimentos. A organização do evento coube a de alunos do Centro Acadêmico de Filosofia
da USP e do curso de cinema da ECA, com o apoio dos professores Carlos Augusto Calil e Maria Dora
Mourão. Foi o primeiro grande resgate da obra e do pensamento de Paulo Emílio após sua morte, em 1977.

99
Alfredo Manevy, que estava no MinC durante a criação do projeto da Ancinav, tornou-se secretário de
Política Culturais (2006) e secretário-executivo do MinC (2008), secretário-adjunto do município de São
Paulo (2013) e presidente da SP Cine (2013). Mauricio Hirata, que integrava os quadros da ABD, fez parte
da primeira equipe do DOC-TV, trabalhou na SAV (2008-2009) e, em 2009, juntou-se a Manoel Rangel
na Ancine, onde chegou a Secretário Executivo e permaneceu até o início de 2018. Newton Cannito, que
atua como diretor e roteirista (9mm, Quanto vale ou é por quilo), foi secretário do Audiovisual (2010-
2012). Da turma da Sinopse, Leandro Saraiva foi o único a não assumir cargos públicos na política
audiovisual. Saraiva, que é roteirista (Cidade dos Homens, 9mm), colaborou, por meio de oficinas e
consultorias, em projetos do governo (DOC-TV, Prodav das televisões públicas), mas sempre “de fora”.


161

Quando entrei na faculdade de cinema, em 1996, fazer cinema no Brasil
era uma guerra. Nós estávamos vindo de uma retomada da produção
cinematográfica que aconteceu em 1993, ano da Lei do Audiovisual. E
a coisa que eu e meus amigos – que se tornaram meus parceiros de
aventura cinematográfica, intelectual e, inclusive, de política
cinematográfica – mais rapidamente descobrimos na faculdade é que,
no Brasil, querer fazer cinema estava indissociavelmente ligado a ter
que lutar pelas condições para fazer cinema (Rangel, apud Sousa, em
entrevista à autora, 2016).

Foi a militância acadêmica e política que levou Rangel aos quadros do governo.
Chamado para a assessoria do secretário do Audiovisual, Orlando Senna, em 2003, e
convidado depois para ser assessor especial do ministro Gil, recebeu a missão de revisar
a Medida Provisória que criou a Ancine e fazer o planejamento estratégico da política
nacional de cinema e audiovisual. Nasceu dessa incumbência o projeto da Ancinav. Nas
declarações nervosas dos donos de emissoras de televisão e de detratores do projeto,
como Arnaldo Jabor, atacava-se Lula, mas citava-se também, não sem laivos de
dedurismo, um “assessor comunista do ministro” como autor das “barbaridades” do
texto. O assessor era Rangel, que, durante a crise, ficou resguardado, sob a proteção fiel
de Gil. Aplacada a grita, foi integrado à diretoria colegiada da Ancine. Dois anos e meio
depois, afirmaria:

O anteprojeto da Ancinav nunca passou de um anteprojeto interno do


governo, debatido por alguns ministérios durante um ano. Um ministro
vazou aquela versão. Alguém quis matar aquela discussão logo de cara,
alguém não teve paciência para enfrentar o debate de fundo que estava
sendo proposto” (Rangel, apud Sousa, 2007).

Sobre quem o tachava de assessor comunista, comentou, logo que assumiu a


Ancine:

Isso é fruto dos preconceitos que o País vive, de longa data. O país tem
preconceito contra negros, mulheres, homens de esquerda, comunistas,
trabalhadores. O país deseja a democracia, mas tem dificuldade de
realizar o debate democrático das ideias. Deseja a liberdade de


162

expressão, mas tem dificuldade de respeitar a liberdade de expressão do
outro. Se houve algum crime cometido naquele momento pelo governo,
foi um crime de opinião. E, numa sociedade democrática, crimes de
opinião não deveriam existir (Rangel, apud Sousa, 2007).

Rangel, ecoando Paulo Emílio Salles Gomes, dizia então que o desprezo pelo
cinema brasileiro, quando ainda existe, vem sobretudo de quem tem acesso a um tipo
de cultura europeizante e tende a olhar nossas dificuldades e fragilidades por um viés
equivocado. Rangel defendia que desistir do cinema brasileiro é desistir do Brasil. Sua
postura, no entanto, não era mais a de enfrentamento com o capital ou com as grandes
empresas. Ainda como diretor da agência, entre 2005 e 2006, Rangel, nas poucas vezes
em que se manifestou em entrevistas e eventos – um pouco por temperamento, um
pouco por conta da experiência da Ancinav, ele privilegiava o silêncio – começou a
falar em “choque de capitalismo”:

A cadeia produtiva do cinema deve se remunerar na bilheteria e não no


investimento público. É preciso mudar o modelo de produção, passar a
enxergar a distribuidora como qualificadora de projetos e adotar
mecanismo que reintroduzam o fator risco. E é preciso, sobretudo, criar
um fundo de financiamento público (Rangel, apud Sousa, 2005b, p. 82).

A fala de Rangel, apesar de específica do setor, não deixava de ter uma


aproximação com o pensamento que conduzia a ala econômica do PT. Como anota
Singer (2012), no programa Coligação Lula Presidente, divulgado no final de julho de
2002, há uma evidente mudança de tom em relação ao capital:

Em lugar do confronto com os ‘humores do capital financeiro


globalizado’, que havia sido aprovado em dezembro de 2001, o
documento afirmava que o ‘Brasil não deve prescindir das empresas, da
tecnologia e do capital estrangeiro’ (...). Sustenta que não vai ‘romper
contratos nem revogar regras estabelecidas’ (Singer, 2012, p. 96).

Parte do cinema brasileiro seria de fato viabilizado a partir do capital de


empresas estrangeiras – primeiro as majors de Hollywood e as programadoras de tevê
por assinatura e depois as empresas de telefonia. Retomava-se também, em alguma


163

medida, a valorização do nacional e do popular, mas não mais nos moldes dos anos
1960, quando a questão do subdesenvolvimento e da estética terceiro-mundista se
colocavam de forma premente.
O nacional e popular, nos anos 2000, passavam pelo consumo. A partir de
meados do primeiro mandato do presidente Lula, a incorporação da chamada classe C
ao consumo passou a ser vista e divulgada como uma das grandes conquistas do
governo. Como diz Singer (2012), o lulismo vivenciava o começo de uma nova ordem:
chegava ao fim a “utopia” de se enfrentar o capital e tinha início um certo pragmatismo.
O mesmo que aconteceu no governo em nível macro será visto no cinema. A diferença
é o que o cinema, ao contrário da economia, cujo crescimento não se mostrou
sustentável, entraria num círculo virtuoso que perduraria até a conclusão desta pesquisa.
Se, no caso de Lula, a desistência do enfrentamento com os poderes
estabelecidos e com o capital se deu ainda no programa de governo, no caso do cinema,
o ponto de inflexão foi o projeto da Ancinav. Numa comparação grosseira, é possível
dizer que o projeto da Ancinav era, mais ou menos, como o Lula da eleição de 1989: os
embates eram diretos e vocalizavam velhas causas da esquerda, como o combate ao
capital estrangeiro. Mais ou menos como o Lula que ganhou a eleição, em 2003, Rangel
chegava ao posto de diretor-presidente transformado: tinha trocado as grandes causas
pela busca pelo consenso; tinha trocado a defesa do curta e do cinema documental,
autoral e experimental (bandeiras da ABD) pela defesa mais ampla do audiovisual
enquanto atividade econômica:

Nessa trajetória, os tempos tempestuosos, conflituosos, como a


Ancinav, em 2004, 2005, foram dando lugar a este momento que a gente
tem hoje, que é um ambiente de grande entendimento. Os conflitos
existem, eles estão instalados, mas há um entendimento e uma
capacidade de diálogo. Eu diria que eu mudei, e mudaram todos, porque
o Brasil mudou (Rangel, apud Sousa, 2016).

Rangel mudou, mas carregou consigo a resiliência, a defesa incondicional do


cinema brasileiro e duas características que vinham desde os tempos de ABD: a
facilidade de lidar com leis e tecnicidades e o apreço pela estrutura estatal. Orlando
Senna (em entrevista à autora, 2012) brincou: “O Manoel sempre foi especialista nessas
leis, acho que já nasceu assim”. O ex-diretor da Embrafilme Roberto Farias, por sua


164

vez, demarcou: “O que me afasta do Manoel é que ele é estatizante”. Para Rodrigo
Saturnino Braga, no entanto, Rangel é pouquíssimo diferente da geração que o
antecedeu no comando da política do cinema:

Uma vez, depois dele chamar a mim, ao Marco Aurélio [Marcondes] e


ao Jorge [Peregrino] de “vocês lá da Embrafilme”, eu falei: “Você só
não está na mesma turma por um mero acidente genético; você nasceu
tarde demais”. E é verdade. O Manoel se encaixaria perfeitamente nessa
turma, mesmo pensando diferente politicamente. Sua ideia de defesa do
cinema brasileiro e de indústria do audiovisual e a predisposição para
discutir e encontrar solução é exatamente igual ao que a gente tinha. O
Manoel é um grande quadro (Braga, em entrevista à autora, 2012).

Algo que indiscutivelmente une Rangel a alguns dos dirigentes da Embrafilme


é a busca por uma institucionalização sólida do setor. Se a estrutura normativa da Ancine
é, em alguns aspectos, o que faz o edifício audiovisual tremer, é também o que o mantém
em pé. Parte das ferramentas legais que marcariam sua gestão e definiriam as feições
do setor na segunda década do século XXI começaram a ser criadas, com a menor dose
possível de conflito, mal Rangel chegou:

Ao longo desse processo, acho que fui me tornando cada vez mais
brasileiro, no sentido de entender a complexidade de um país como o
Brasil, de dimensões continentais, onde nenhuma corrente política tem
maioria, onde nenhum partido tem mais de 14% de presença no
Parlamento. Um país assim exige um grande esforço de construção de
consenso. Então eu fui me dedicando, cada vez mais, a construir
consensos (Rangel, em entrevista à autora, 2016).

O primeiro pilar dessa construção foi a Lei nº 11.437/06, aprovada no


Congresso Nacional em 28 de dezembro de 2006, exatamente dez dias após Manoel
Rangel ter sido indicado pelo presidente Lula para o cargo de diretor-presidente da
Ancine. Apesar de menos comentada, dentro do meio cinematográfico, que a MP 2228-
1/01 (que criou a Ancine), e que a Lei nº 12.485/11 (que normatizou o mercado de tevê
por assinatura), a Lei 11.437/06, ao criar o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e


165

inserir dois novos artigos na Lei do Audiovisual, forneceu as bases para o
estabelecimento da política audiovisual que marcaria a década seguinte.

3.3 Lei nº 11.437/06: um atalho legislativo fundamental

O que diferencia a Lei nº 11.437/06, para fins da análise da trama social


envolvida na construção da política, é que, ao contrário das outras duas medidas
legislativas, ela não causou grande barulho e nem esteve no centro de disputas acirradas.
Isso se deve ao fato de que, mais do que fruto de uma mobilização de determinados
grupos de interesse do setor audiovisual, essa lei foi gestada dentro do governo – para
não dizer dentro da sala de Rangel. Outra razão para não ter a carga “dramática” das
leis de 2001 e 2011 é a que ela não criou novas taxas – sempre motivo para mobilização
daqueles a quem cabe pagar os tributos. A Lei nº 11.437/06 foi, no âmbito das categorias
gramscianas, a conquista de uma posição que, apesar de não decisiva, se revelaria
essencial para a efetivação dos movimentos pretendidos.

A pressão para sua aprovação se deu junto aos parlamentares. O principal líder
desse movimento foi o próprio Rangel, que buscou sensibilizar o Congresso Nacional
para o risco de o cinema brasileiro sofrer um “apagão” caso a lei não passasse. O que
serviu como apelo foi o fato de expirar, no fim de 2006, o mecanismo que autorizava a
captação de recursos para a produção de longas-metragens por meio da Lei Rouanet.
Reportagens publicadas nos principais jornais do país e textos assinados por associações
de cineastas e produtores enfatizavam que essa situação punha em risco a produção de
filmes. Apesar de, em 2006, a captação via Lei Rouanet ter representado menos de 24%
do total de recursos captados via incentivo fiscal para a produção de longas-metragens,
o argumento – um pouco forçado – contribuiu para a sensibilização do Congresso.
Em seu parecer final, o senador Ney Suassuna (PMDB-PB-), relator da Lei nº
11.437/06, fez menção ao Art. 215 da Constituição Federal, que fala em “direitos
culturais”, sublinha a importância da proteção ao cinema nacional e defende o “apoio e
incentivo do Estado à valorização e a difusão das manifestações culturais”:

A partir de 2003, o cinema brasileiro demonstrou um renovado vigor e


consequente potencial de crescimento, ao gerar emprego, renda e


166

divisas para o País (...) Não se pode ignorar que imensa parcela desse
promissor mercado vem sendo ocupada pela produção audiovisual
estrangeira, ampliando os lucros das programadoras estrangeiras em
detrimento das nacionais (...) Entendemos que o projeto de lei vem
atender a anseio semelhante, ao facultar ao audiovisual os mecanismos
que influem diretamente na competitividade do produto nacional,
municiando-o para o crescimento requerido pelas novas mídias e pela
globalização (Suassuna, 2016).

Apesar de, no relatório, haver referências à importância do cinema para a


tessitura simbólica do país e para a construção de uma identidade nacional, os
argumentos econômicos estiveram na linha de frente. Ia se solidificando assim o
discurso que ganharia corpo nos anos seguintes: o econômico, emoldurado pela ideia
das indústrias culturais e criativas como motor dos países no século XXI. A principal
novidade trazida pela lei aprovada no fim de 2006 foi, inclusive, um fundo que
trabalhava com a lógica do investimento e não apenas do financiamento: o Fundo
Setorial do Audiovisual (definido como uma categoria do Fundo Nacional de Cultura)
que prevê a existência de recursos reembolsáveis, que quebram a lógica do investimento
a fundo perdido, marca da política pós-Embrafilme.
Enquanto a Lei do Audiovisual e a Lei Rouanet colocam o Estado como
intermediário – o poder decisório fica nas mãos da empresa patrocinadora –, no caso do
FSA a ação estatal é direta. Outra diferença é que, ao menos no papel, o fundo beneficia
os elos “empresariais” da cadeia e não só os “artísticos”. Em outras palavras: os recursos
públicos que, historicamente, eram endereçados aos realizadores de filmes, passaram a
beneficiar também distribuidores, produtores de séries de tevê e projetos de
infraestrutura. Antes de se detalhar o FSA, cabe, no entanto, discriminar as demais
mudanças trazidas pela nova legislação.
A Lei 11.437/06 criou o Art. 1º A e o Art. 3ºA da Lei do Audiovisual. O Art.
1º A substitui a Lei Rouanet para o investimento em obras audiovisuais. O Art. 3º A
estende, para empresas radiodifusoras, a lógica do Art. 3º, permitindo a aplicação do
imposto sobre a remessa de royalties relativos ao licenciamento de obras em produções
nacionais; a dedução contempla também o imposto que incide sobre a compra de
direitos de exibição de eventos esportivos. A extensão do benefício tributário para
aquilo que não é dramaturgia visava ampliar a presença da televisão no sistema de


167

financiamento. Antes, apenas as programadoras estrangeiras podiam usar incentivos
fiscais para investir em coproduções nacionais (por meio do Art. 39).
A Lei 11.437/06 previu, por fim, o escalonamento para a dedução do Imposto
de Renda dos Funcines, fundos privados, administrados por instituições financeiras, sob
a supervisão da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Implementados em 2004, os
Funcines podiam, inicialmente, se beneficiar de uma dedução de 60% do IR. A lei de
2006 alterou esse percentual para 100%. Ou seja, o investidor tem a possibilidade de,
ao invés de pagar o IR, alocá-lo nesses fundos que têm como destinação final projetos
ligados a cinema – sejam eles de produção ou de distribuição. Se no Art. 1º da Lei do
Audiovisual o interesse dos investidores passa pelo possível ganho de imagem da marca,
os Funcines procuram vender a ideia do cinema como negócio.
Para além dessas correções específicas de rota, a lei de 2006, ao alterar o Art.
18 da MP nº 2.228-1/01, deu à Ancine um efetivo poder regulatório. A partir dessa
mudança, as empresas de vídeo, as salas de cinema e as programadoras de tevê por
assinatura se viram obrigadas a fornecer à agência relatórios periódicos sobre a oferta e
o consumo de obras audiovisuais e receitas. Tal mudança foi essencial para o
posicionamento da Ancine como uma agência de fato reguladora, e não só de fomento.
A obrigatoriedade no fornecimento de informações relativas ao mercado audiovisual
como um todo fez com que, pouco a pouco, fosse se constituindo um verdadeiro
acompanhamento do mercado. Hoje, o Sistema Ancine Digital congrega e organiza
dados e informações relativos a diferentes segmentos do setor.
Cabe, aqui, abrir um parêntese para registrar que o fim da Embrafilme
significou também o fim das informações sobre o cinema. No início da chamada
retomada, coube a uma empresa privada, o Filme B, criada por Paulo Sérgio de Almeida
– que dirigiu, entre outros, Xuxa Popstar (2000), Xuxa e os Duendes (2001) e Xuxa e os
Duendes 2: no caminho das fadas (2002) –, começar a colher informações junto aos
exibidores a fim de construir um banco de dados sobre as bilheterias. O Observatório
do Cinema e do Audiovisual (OCA), que reúne dados sobre o setor, foi criado pela
Ancine em dezembro de 2008, justamente depois da Lei 11.437/06, que previu o
fornecimento de dados:

O simples monitoramento do mercado interno, considerado


constitucionalmente como um patrimônio nacional, isto é, a descrição
da exploração comercial de bens e serviços integrantes da economia


168

cinematográfica e audiovisual no território brasileiro, já seria suficiente
para justificar a existência da Ancine (...) São indispensáveis as
informações que vão dar elementos de realidade e formar o comando
normativo que, no caso da Ancine, se dá através de suas “instruções”.
É a partir da transparência das informações e de uma permanente
interação com o mercado que essas instruções normativas constituirão
um elemento legítimo da ação do Estado. (Ancine, 2005, p. 64-65)

Apesar de cada aspecto da lei ser, no todo, relevante, sua grande novidade foi
o FSA. É sobre o fundo, portanto, que se concentrará o resto do capítulo.
Como diz Ikeda (2015, p. 130), o FSA quebrou a lógica assistencialista, tendo
sido a “primeira tentativa programática do Estado de aportar recursos no setor
audiovisual para além do modelo de mecanismos indiretos, baseados em renúncia
fiscal”. Rangel, ao defender o projeto, dizia querer estimular a disposição das empresas
correrem riscos. Com a Lei do Audiovisual, que prevê o subsídio integral, um produtor
nunca perde dinheiro, mesmo que o filme vá mal nas bilheterias; e mesmo que o filme
vá bem, ele não tem o dever de devolver nada ao erário.
Para Carlos Augusto Calil, o Fundo Setorial do Audiovisual representou o
“retorno da racionalidade”, reestabelecendo a ideia de que a economia do cinema deve
ser administrada de forma a redistribuir recursos dentro dela mesma:

Qual o principal erro da Lei do Audiovisual? Ela investe em filmes e


não numa produtora que tem uma carteira de projetos ou num
distribuidor. Investir em uma obra é como jogar na roleta num número
só. Só o conjunto é capaz de proteger o investimento. A política do caso
a caso, que era também o que acontecia na Embrafilme, é uma política
equivocada. Por que a política francesa de incentivo fiscal deu certo?
Porque ela ficou restrita aos Sofica [Les sociétés de financement de
l'industrie cinématographique et de l'audiovisuel], que são uma empresa
e que existem em função de um agente econômico. No Brasil, até o
Fundo Setorial, o incentivo fiscal ia para uma obra; e se essa obra não
der retorno nenhum, o produtor não tem que ressarcir nada para o
Estado. O Fundo Setorial recupera a ideia de empresas e a ideia de se
retornar valores para o fundo comum. Esse retorno ainda é muito
modesto, mas já é muito melhor do que a lei do Audiovisual. O Fundo


169

Setorial é um caminho conservador, mas é um caminho seguro,
enquanto a Lei do audiovisual é uma liberalidade (Calil, em entrevista
à autora, 2016).

O fundo possui gestão compartilhada entre o governo (dois representantes do


MinC, um da Casa Civil, um do Ministério da Educação e um da Ancine), os agentes
financeiros credenciados (o Banco Nacional de Desenvolvimento e o Banco Regional
de Desenvolvimento do Extremo Sul) e a sociedade civil (três membros do setor100).
Cabe ao comitê gestor do FSA definir as diretrizes e o plano anual de investimentos,
selecionar as áreas prioritárias para a aplicação de recursos e avaliar os resultados
alcançados pelas diferentes linhas de ação.
De saída, estabeleceu-se que os recursos do FSA fossem canalizados para três
programas: Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Brasileiro (Prodecine,
já previsto na MP 2.228/2001), Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual
Brasileiro (Prodav) e Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Infraestrutura do
Cinema e do Audiovisual (Pró-Infra).
Os primeiros recursos do FSA, da ordem de R$ 37 milhões, foram
disponibilizados em dezembro de 2007, numa cerimônia comandada pelo ministro
Gilberto Gil. Em 12 de dezembro de 2007, foi publicado o Decreto 6.304/07, que
regulamentou o FSA.
Uma das principais metas do FSA é alcançar um modelo autossustentável. Ou
seja: a regra é que os valores voltem para o fundo, com base no percentual da receita.
Para isso, as linhas de investimento buscam fortalecer parcerias entre diferentes agentes
do mercado. O Prodecine 02, por exemplo, beneficia longas-metragens, mas seus
proponentes não são os produtores, e sim as empresas distribuidoras. A ideia é, com
isso, estimular produtos mais competitivos, que tenham a garantia de chegar ao circuito.
Outro aspecto importante do fundo é, como se disse acima, que ele quebra com a lógica
do investimento a fundo perdido. O FSA trabalha por meio de investimentos
reembolsáveis (quando o produtor deve devolver parte dos recursos ao fundo) e por

100
Os representantes do setor audiovisual são designados para mandato de dois anos, a partir de lista
tríplice nominal encaminhada pelo Conselho Superior de Cinema e nomeado pelo Ministro da Cultura,
sendo admitida uma recondução.


170

meio de investimentos não reembolsáveis (que repete o modelo usual de financiamento
à cultura).
Alguns dos formatos de apoio previstos são:
- Investimento retornável: prevê a participação do FSA nas receitas advindas
da exploração comercial da obra;
- Financiamento: operações de empréstimo a projetos;
- Equalização de encargos financeiros incidentes em operações financeiras e
em casos excepcionais apoio não reembolsável.

As primeiras chamadas foram lançadas no fim de 2008. As chamadas voltadas


à produção cinematográfica concentraram, de 2008 a 2017, 59% das verbas; a produção
para a televisão ficou com 30% dos recursos e o setor de distribuição, com 4%. Ou seja,
apesar de haver, na origem do fundo, o objetivo de se beneficiar diferentes players, a
produção para cinema continuou recebendo boa parte dos investimentos
Apesar de, inicialmente, os recursos do FSA terem sido direcionados para
projetos de perfil mais industrial, que poderiam, em tese, retornar o capital, o perfil das
linhas foi passando por alterações. Conforme os recursos aumentaram, foram abertas
linhas que, pela própria natureza, não são com compatíveis com a ideia de retorno
financeiro. É esse o caso do Prodav voltado à programação destinada as televisões
públicas ou do Prodecine 05, que contempla projetos com características de inovação
de linguagem. Do R$ 1,2 bilhão desembolsado pelo FSA até 2017, apenas R$ 80
milhões retornaran.
A definição das linhas de financiamento cabe ao Comitê Gestor. É também o
comitê que define que áreas devem ser estimuladas e dá a palavra final sobre o processo
seletivo. A prática foi demonstrando, porém, que o estabelecimento de prioriedades
tende a estar bastante ligado à visão do diretor-presidente da agência e/ou do Ministro
da Cultura – a depender da força de cada um. Cabe, de toda forma, ao Estado identificar
gargalos e induzir eventuais correções no mercado.
O Comitê Gestor, além de definir as linhas do FSA, entra na questão do mérito.
Os projetos são avaliados por servidores da Ancine e por analistas externos contratados
pelo agente financeiro ligado ao fundo – primeiro a Finep e, atualmente, o BRDE. Os
analistas leem os projetos e os roteiros e devem, além das qualidades artísticas, avaliar
viabilidade comercial da obra. Os critérios são, segundo Rangel, públicos e claros:


171

As pessoas, ao construir seus projetos, sabem que estão dialogando com
critérios públicos que condensam uma experiência da agência, mas
também uma experiência internacional. Os profissionais que fazem as
análises e que respondem pela pontuação de cada item têm experiência
profissional e sabem como encontrar os elementos analisados em cada
quesito. Aos critérios bem definidos soma-se uma diversidade de
olhares (Rangel, apud Sousa, 2016).

Mesmo havendo, aqui e ali, queixas relativas aos resultados das chamadas
públicas do FSA – Hector Babenco, ao lançar o último filme, O amigo hindu, em 2015,
disse em entrevistas que não conseguia mais recursos do Estado –, a grita em torno dos
resultados, marca dos anos anteriores, foi aplacada. Contestam-se os critérios de
avaliação e a predominância dos mecanismos seletivos em detrimento dos automáticos
(que dispensariam o trabalho de análise de projetos individuais), mas, de forma geral, o
FSA conseguiu afastar-se do fantasma do clientelismo que rondou a Embrafilme. A
distribuição, mesmo não sendo equânime, faz com que todos – velhos e novos atores –
se sintam ou beneficiados ou aptos a serem beneficiados. Ou seja, o pacto passa muito
pelos recursos que, sendo fartos, se mostram suficientes para todos.
Mas de onde vem, afinal de contas, todo esse dinheiro? Para entender a
natureza da taxa que abastece o fundo é preciso retomar a origem da Condecine e
entender a Lei 12.485/11, que incorpou as empresas de telecomunicações ao sistema de
financiamento do audiovisual.
A Condecine, que já existira na época do INC, foi reintroduzida no Brasil pela
MP 2228-1/01. As batalhas jurídicas em torno de sua cobrança – relatadas no capítulo
2 – fizeram com que, na prática, a arrecadação, durante a primeira década de existência
da taxa, fosse pífia. Em 2006, a Condecine somou R$ 27 milhões; nesse mesmo ano, o
total captado pelo cinema, via incentivo fiscais, foi de R$ 170,2 milhões.
A Condecine baseia-se na ideia de que os recursos do cinema devem ter origem
na própria atividade. Por isso se tentou, sem sucesso, cobrar a Condecine das televisões
abertas; e por isso a taxa incide sobre a exploração de filmes estrangeiros em território
nacional. O que fez a Lei nº 11.437/06? Ela alterou a destinação de receitas provenientes
da aplicação da Condecine; elas deixaram de estar sob tutela da Ancine e passaram a
ser alocadas no FSA. A medida arava o terreno para a colheita que viria depois e que
dependia de um acordo que o governo reputava possível: um acerto que envolvia as


172

empresas de telefonia e que, à altura, atendia pelo nome de PL 29 – que será detalhado
no tópico 3.3.
Durante a cerimônia de lançamento do FSA, no final de 2008, no Rio de
Janeiro, o presidente Lula prometeu se empenhar pessoalmente para a aprovação do PL
29. O PL previa a entrada das teles no mercado de tevê por assinatura e a criação de
cotas de programação nacional na televisão fechada. Lula, em seu discurso,
ressignificou a defesa da cota: não é que o produto brasileiro precisasse mendigar
espaço; ele podia é melhorar a qualidade da televisão paga:

Eu confesso a vocês que, quando a gente perde o sono e liga a televisão


da tevê por assinatura, a gente vê tanto filme mequetrefe, tanto filme
vagabundo. Acho que é uma daquelas coisas feitas em Hollywood que
o cara jogou no lixo, alguém passou, pegou, vendeu, e nós assistimos
aqui (Silva, apud Jobim e Nogueira, 2008).

Ao contrário do que havia acontecido na Ancinav, o novo projeto


encampado pelo governo não saía do MinC para enfrentar o “mundo”. O MinC – e a
Ancine, em particular – é que pegava um projeto existente e tentava adpatá-lo às
necessidades do setor audiovisual. O PL 29 não deixava de ser uma forma, inclusive,
de exorcizar o fantasma da Ancinav, como deixa evidente a fala do ministro da Cultura,
Juca Ferreira:

[A Ancinav] não foi [um deslize]. A Ancinav é um fantasma que ronda


nosso ministério. Em algum momento, vou ter que exorcizá-lo, nem que
seja chamando uma mãe-de-santo na Bahia. O que queríamos era
regular a atividade econômica. Tenho certeza de que, hoje, muitos dos
que foram contra [a Ancinav] concordam que, se nós não regularmos a
atividade audiovisual no Brasil [...] diante da ação predatória do capital
internacional que tenta o monopólio, o que vai acontecer é que as
empresas brasileiras vão sucumbir diante da pressão [...] do
desenvolvimento tecnológico [...] Sou dos que acham que a TV é o fato
cultural mais importante no Brasil e no mundo [...] Agora, a TV está
deixando de ser TV. Dentro de poucos anos, com a convergência
tecnológica, TV, telefone e computador vão ser a mesma coisa [...] A
tendência é a ampliação da TV ao nível da onipresença [...] Então acho


173

que esse é o diálogo principal. Desde que cheguei aqui, tentei
sensibilizar o ministério para o fato de que o cinema é estratégico, mas
o cinema tem que se associar à televisão. Esse diálogo TV-telefone-
internet já está na rua [...] Acredito na força dos fatos. Eles nos levarão
a buscar um projeto grandioso para o audiovisual brasileiro (Ferreira,
apud Arantes, 2008).

Iniciava-se assim uma outra batalha no campo audiovisual. Seu principal


artífice, não por acaso, foi Manoel Rangel, que começou a destrinchar a estrutura legal
do cinema e das telecomunicações, justamente, durante o projeto da Ancinav.

3.4 Lei nº 12.485/11: o pacto com o capital estrangeiro101

Após quase cinco anos de tramitação na Câmara dos Deputado e no Senado, foi
aprovada no Congresso Nacional, no dia 12 de setembro de 2011, a Lei 12.485/11. Como
se viu nos capítulos anteriores, a busca pela criação de uma parceria sistemática entre
cinema e televisão foi uma marca importante da política audiovisual na primeira década
do século XXI. O pré-projeto do Gedic, conforme relatado no tópico 2.2, chegou a prever
medidas como obrigatoriedade de exibição de um número de filmes brasileiros por ano,
reserva de espaço publicitário para a promoção institucional do cinema brasileiro e
destinação de parte do faturamento publicitário para a coprodução e aquisição de direitos
de exibição de filmes brasileiros. Uma nova tentativa de incorporação da televisão à
política pública de cinema aconteceria em 2004, com o projeto da Ancinav, que colocou
as emissoras em pé de guerra contra o governo. No entanto, essa sonhada
institucionalização das relações entre as emissoras e o cinema jamais concretizou-se.
A lei que será objeto desta seção tem duas particularidades: ela não foi criada
para atender a demandas específicas dos grandes produtores de cinema e nem foi, de
início, encampada por eles; e, ao contrário dos movimentos anteriores, deixou de lado a
televisão aberta e passou a mirar um alvo novo, que era a televisão fechada.
É possível defender que a lei da tevê Paga, que exige que os canais por assinatura
exibam 3 horas e 30 minutos semanais de conteúdo nacional e carreguem canais

101
Alguns trechos deste capítulo integraram, de forma literal ou aproximada, o artigo Lei da TV paga: um
novo paradigma para a política audiovisual brasileira, de minha autoria (Ana Paula Sousa. Lei da TV
paga: um novo paradigma para a política audiovisual brasileira. Eptic, Vol. 18, no 2, maio-agosto 2016).


174

brasileiros em seus pacotes, inaugurou uma nova etapa da política cinematográfica
brasileira. São duas as razões para isso:

1. Pela primeira vez, uma regra de conteúdo – a cota de tela – foi aplicada a
um segmento que não o das salas de cinema.
2. Graças à incorporação, ao FSA, de uma taxa paga pelas empresas de
telefonia sobre cada celular ativio no país, a lei possibilitou uma significativa injeção de
recursos no setor.

Mas, afinal de contas, se as cotas e a participação da tevê no fomento ao cinema


já eram consideradas uma batalha perdida, como foi possível que vingasse a Lei
12.485/11, a primeira a prever legalmente a parceria entre televisão e produção
independente? 102 A resposta inicia-se com a própria delimitação de que televisão se está
falando: a televisão fechada, que tem características absolutamentes distintas daquelas da
televisão aberta. O passo inicial para se entender a Lei 12.485/11 é, portanto, recuperar o
histórico da presença da televisão por assinatura no país.
Lançado nos Estados Unidos em 1940, o serviço de tevê paga chegou ao Brasil
nos anos 1990. Os primeiros canais por cabo e satélite foram lançados em 1991 e sua
regulamentação aconteceu em 1995, por meio da Lei do Cabo (Lei 8.977/95). Com o
passar dos anos, foram surgindo, além da lei que regia o serviço a cabo, outras leis
específicas para o DTH (modelo de transmissão digital via satélite, do inglês direct to
home) e para o MMDS (transmissão terrestre por micro-ondas). A legislação
desconsiderava, no entanto, a transmissão por outros meios, como celulares.
Um dos aspectos da Lei do Cabo é que ela limitava a 49% a participação do
capital estrangeiro no negócio. No que diz respeito ao conteúdo doméstico, o marco legal
trazia apenas uma regulamentação: os operadores deveriam oferecer um canal exclusivo
para obras brasileiras. Foi essa regra que deu origem ao Canal Brasil, lançado em 1998 a
partir de uma sociedade firmada entre a Globosat e um grupo de profissionais do setor

102
De acordo com a Lei 12.485/11, uma produtora independente não pode estar ligada a programadoras,
empacotadoras, distribuidoras ou concessionárias de serviço de radiodifusão; e não pode manter vínculo
de exclusividade que a impeça de produzir ou comercializar para terceiros os conteúdos por ela
produzidos.


175

audiovisual – Luiz Carlos Barreto, Zelito Vianna, Roberto Farias, Marco Altberg, Anibal
Massaini, Patrick Siaretta e Paulo Mendonça.
Nas duas primeiras décadas de operação, o serviço de televisão por assinatura
teve resultados decepcionantes, ficando estagnado na casa dos 3 milhões de assinantes.
Apesar da falta de penetração junto à população, a tevê paga era vista, da parte dos
produtores independentes, como uma oportunidade. É que, pelo fato de a televisão aberta
brasileira produzir internamente mais de 90% do conteúdo nacional por ela exibido, a
produção independente quase nunca teve portas nas quais bater.
Para começar a articular a mudança nesse cenário, os produtores criaram, em
1999, a Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Televisão (ABPI-TV)103.
A ABPI-TV teve o apoio da Associação Brasileira de Produtores de Audiovisual (APRO)
e do CBC – mas o CBC, a despeito do apoio, nunca esteve na linha de frente das
articulações.
Marco Altberg, um dos fundadores da ABPI, enfatiza que, naquele momento,
abria-se uma brecha para os produtores que se viam espremidos entre o cinema, que
sempre se articulou politicamente, e a televisão aberta, que produzia quase tudo
internamente. Altberg, líder do movimento para a entrada da produção independente na
televisão vinha, ele próprio, do cinema – e da política do cinema.
Altberg é do Rio de Janeiro e iniciou a carreira nos anos 1970, como assistente
de direção e produtor. Já nessa época, tornou-se presidente da ABD, tendo participado
ativamente da articulação da Lei do Curta-Metragem; depois, presidiu a Associação
Brasileira de Cineastas (Abraci) e o Sindicato Nacional da Indústria do Cinema. Como
boa parte daqueles que lideraram o movimento pela criação da Ancine, Altberg tinha
trabalhado na Embrafilme, como diretor de operações. E foi também o fim da empresa
estatal que acabou por determinar sua mudança de rota.
Quando a Embrafilme foi extinta, Altberg, que tinha uma produtora de cinema e
tevê, se viu sem ter como trabalhar. Foi nesse momento de terra arrasada que ele recebeu
um convite do governo norte-americano para fazer um intercâmbio para conhecer a
indústria audiovisual dos Estados Unidos. Nessa viagem, ele viu de perto o programa da

103
Em 2016, a ABPI-TV mudou seu nome para Brasil Audiovisual Independente (Bravi). A alteração se
deve ao entendimento de que, hoje, a produção audiovisual atua em múltiplas telas e plataformas, e não
mais apenas na televisão. Dado o escopo temporal desta tese, será adotado o nome que valia durante o
período estudado: ABPI-TV.


176

apresentadora Oprah Winfrey e resolveu esmiuçar a legislação norte-americana. Desse
mergulho, emergiu o sonho da ABPI-TV:

O Federal Communications Commission [FCC], dos EUA, determinou


que os canais abertos não podiam produzir mais do que 30% in house;
70% do que era exibido eles tinham de buscar fora. Por que aconteceu
isso? Porque só assim se possibilitou o crescimento da produção
independente. Ela cresceu ao ponto de, hoje, não precisar mais desse
dispositivo. Outra coisa que eu entendi lá é a questão da regionalização: a
TV Broadcast só pode ter quatro horas diárias de rede nacional; as outras
20 horas restantes são locais. O que era o programa da Oprah? Um
programa dela própria, que ela podia vender para “n” tevês. Foi ali que eu
entendi o que é produção independente e falei: “Se eu voltar para o Brasil
e conseguir fazer 10% disso já está bom”. Voltei com essa obsessão. Isso
foi em 1991. Só consegui criar a associação em 1999 (Altberg, em
entrevista à autora, 2016).

Para dar a largada ao projeto, Altberg localizou cerca de 100 produtoras


brasileiras que trabalhavam com televisão. Mais ou menos como acontece no cinema, a
articulação se deu a partir de um encontro entre amigos e conhecidos, realizada na casa
de Altberg, no Rio. Ele chamou produtores que, de diferentes maneiras, trabalhavam com
televisão, como Leonardo Monteiro de Barros, da Conspiração Filmes, Belisário Franca,
da Giros, Nelson Hoineff, criador do programa Documento Especial, exibido na
Manchete, no SBT e na Band, e Clélia Bessa, da Raccord, produtora de Veja esta canção,
de Cacá Diegues, rara parceria entre cinema e tevê. “Tinha uma produção de TV
independente muito incipiente que queria existir”, rememora Altberg (em entrevista à
autora, 2016). Depois de conseguir mobilizar produtores cariocas, ele fez contato com
produtores de São Paulo – entre eles, Fernando Dias, da Grifa, Goulart de Andrade, da
Goulart de Andrade, e Denise Gomes, da Bossa Nova.
Denise, incialmente por meio da Manduri Filmes e depois da Made to Create,
sempre produziu para a televisão – além de fazer muita publicidade. A Manduri
desenvolveu conteúdos para programas como Brasil Rural, Som Brasil e Globo Ciência,
da TV Globo; a Made to Create fez documentários, shows e séries para GNT, Canal
Futura, NatGeo e TV Cultura. O que ela não conseguia era virar detentora dos direitos
sobre esses programas:


177

A gente fazia muita coisa de conteúdo independente para a televisão, mas


isso não significava que a gente tinha, necessariamente, os direitos
patrimoniais. Outra coisa é que, até 2010, eu nunca tinha feito ficção. Por
que a Globo faria ficção fora do Projac? Eles tinham o átomo da estrutura.
No caso do documental, que é filmado fora, fazia mais sentido contratar
um produtor independente. Quando montei a Made, fiz uma parceria com
o [diretor] Lawrece Wahba para o desenvolvimento de documentários de
natureza, que é um nicho muito forte, com possibilidades de inserção no
mercado internacional. Eu comecei a frequentar o Mipcom [principal feira
do mercado de televisão do mundo] e, por esse histórico, quando a ABPI-
TV foi fundada, me chamaram para ser da diretoria. Era uma história
importante que estava começando ali (Gomes, em entrevista à autora,
2016).

É corrente a tese de que uma das características da produção independente, até a


lei da tevê Paga, era o fato de boa parte dos trabalhos serem feitos sob encomenda – ou
seja, os direitos patrimoniais eram da televisão. Mas há quem faça reparos a essa narrativa.
Belisário Franca, na contramão do discurso corrente que trata a televisão como um lugar
no qual o produtor independente não pôde jamais entrar, conta que sua história no
audiovisual resume-se a um só papel: a do produtor independente que, mesmo trabalhando
com a televisão aberta, conseguia ser o detentor dos direitos patrimoniais sobre as obras.
Entre 1989 e 1993, ainda antes da abertura da Giros, ele fez a série African Pop, para TV
Manchete, e os programas Folia na Bahia e Baila Caribe, exibidos, respectivamente, na
MTV e na TV Cultura. Nesse meio tempo, trabalhou para a TV Globo, no Programa Legal
(1991-1992), apresentado por Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães:

Era difícil entrar? Era. Mas não é verdade que não existia nada de
produção independente na televisão brasileira. Eu fiz, o Roberto D’Ávila
fez, a própria Olhar Eletrônico [de Fernando Meirelles] fazia. O que a
gente fez, a partir da chegada da tevê a cabo, foi se organizar para garantir
o nosso espaço. A gente foi entendendo que ou a gente se movimentava
politicamente, como o cinema sempre fez, ou a gente seria engolido
(Franca, em entrevista à autora, 2017).


178

Em busca de dados e argumentos que sustentassem o movimento, a entidade,
para além da legislação norte-americana, passou a buscar esteio na legislação europeia e,
mais especificamente, na Diretiva Televisão sem Fronteiras Europeia. Esse documento,
de 1989, encoraja o livre trânsito de produtos televisivos na Europa por meio da
eliminação de barreiras comerciais, defende a proteção contra a dominação norte-
americana e exige que os países reservem a maioria do horário nobre para a transmissão
de obras europeias – sendo que no mínimo 10% delas devem ser feitas por produtores
independentes (Smaele, 2007). Assim como aconteceu com outras medidas de natureza
semelhante, a Diretiva foi alvo de uma forte pressão dos Estados Unidos para que não
fosse referendada pelos países europeus.
Seis anos após sua criação, a associação brasileira passaria a contar ainda com
outro amparo: a Convenção da Unesco sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das
Expressões Culturais. Como explicado no capítulo 1, a resolução, aprovada em 2005,
defende o direito de os países criarem regras destinadas a proteger seus produtos culturais
contra a dominação estrangeira. O documento não só deu sustentação às demandas da
ABPI como foi usado pelo próprio governo em sua tentativa de dar legitimidade à Lei
12.485/11.
No entanto, nesse arco de uma década, entre a criação da ABPI-TV e a aprovação
da lei, muita coisa aconteceu. A Lei 12.485/11 pode ser compreendida como a linha de
chegada de um longo e tortuoso caminho que inclui o atalho aberto pela ABPI-TV, mas
que tem muitas outras bifurcações. Essa lei é, na verdade, um pequeno fio de um
emaranhado que o país nunca desenrolou: o arcabouço legal da comunicação social
eletrônica.
Para explicar brevemente o contexto mais amplo no qual a legislação de 2011 se
inclui, cabe esclarecer que, do ponto de vista jurídico, televisão aberta e fechada não se
equivalem. A primeira é um serviço de radiodifusão; a segunda, um serviço de
telecomunicação.
Na tentativa de unir esses dois universos, Sérgio Motta, primeiro ministro das
Comunciações do governo FHC encabeçou, em 1997, o Anteprojeto de Lei de
Comunciação de Lei de Comunicação Eletrônica de Massa, que procurava atualizar o
Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, e incluir, sob o mesmo marco legal, as
tevês aberta e por assinatura. A lei continha mecanismos de estímulo à produção regional
e independente, incluía cotas para conteúdo local na tevê paga, criava regras de
propriedade e impunha limitações à publicidade – alguns desses instrumentos normativos


179

estão presentes na Lei 12.485/11. O texto veio a púlbico em 1999, mas jamais foi enviado
ao Congresso. Em 2001, um outro projeto ligado à radiodifusão foi colocado em consulta
pública, mas, mesmo sendo menos abrangente que a Lei Geral, terminou arquivado.
Enquanto o novo marco regulatório ia se mostrando inviável, dado o alto grau de
dissenso, o cinema, que não fora incluído na Lei de Comunicação Eletrônica de Massa,
ia, no âmbito do Gedic, construindo sua nova legislação. Como já se disse, a versão inicial
do projeto, que resultou na MP 2228-1/01, procurava fazer com que a TV se
comprometesse com o financiamento e a difusão de filmes. No entanto, a pressão política
dos radio-difusores fez com que, na véspera da edição da MP, todos os artigos
relacionados à TV fossem retirados do texto.
Mas ao mesmo tempo em que a TV aberta se livrava da regulamentação, a TV
por assinatura era diretamente impactada pela MP 2228-1/01, que previa uma taxação de
11% sobre a remessa de lucros para o exterior. Tal medida, que deixou enfurecido o setor
de televisão por assinatura, seria revista em 2002, originando o Art. 39, tal e qual ele é
hoje: as programadoras de TV por assinatura ficam isentas da cobrança da Condecine
Remessa se investirem parte do imposto em produções nacionais. Uma informação
curiosa sobre esse artigo – e bem ilustrativa do lobby do cinema – é que, no texto original,
previa-se que tais recursos fossem para a produção cinematográfica e não televisiva:

Curiosamente, o recurso se originava na TV, mas não se destinava para a


produção de televisão. Tivemos acesso ao texto e, já no Congresso
Nacional, na última hora, a gente conseguiu sensibilizar o relator e o
Gustavo Dahl, que vinha do CBC e que sabia da importância da questão
televisiva. Acho que foi a partir daí que o segmento [da produção
independente televisiva] passou a ser reconhecido. Mas, nesse momento,
parte do cinema ainda nos enxergava como um incômodo, como um grupo
que podia tirar espaço e recursos deles (Altberg, em entrevista à autora,
2016).

Para quem estava, nesse momento, se iniciando na política audiovisual, a


articulação do cinema em torno do Art. 39 tornou-se uma lição. Ou um paradigma:

Ali ficou claro o modo de ação de parte do cinema brasileiro. E a gente,


que fazia televisão, entendeu que precisava aprender a jogar. Desde então,
temos um ou dois assessores parlamentares trabalhando para a gente.


180

Temos um grupo no qual discutimos todas as medidas, pensamos em todas
as estratégias. Mas a gente não beija mão. E nem tem uma ação que se
resume a buscar recursos (Franca, em entrevista à autora, 2017).

À medida que olhares e falas iam se voltando para a televisão fechada, a televisão
aberta, que havia deixado as barbas de molho após o período de “ameaças”, começava a
se movimentar no sentido de recolocar em pauta suas próprias reivindicações. Em 2005,
seguros de que os projetos acalentados no seio do setor cinematográfico estavam
sepultados e que não havia clima para desenterrá-los, a Globo recolocou a palavra
“regulação” na ordem do dia. Dessa vez, ao invés de refutá-la, clamava por ela.
Em junho de 2005, um ano após a divulgação do documento Conteúdo Brasil
(tópico 2.5), Evandro Guimarães, vice-presidente de relações institucionais da Globo,
presente a dois seminários sobre produção de conteúdo e telecomunicações organizados
pela Converge Eventos, em São Paulo, chegou com a bandeira do Brasil debaixo do braço
e com a Constituição e o discurso nacionalista na ponta da língua:

É fácil falar em tecnologia sem pensar em identidade nacional, conceito


de país e conceito de nação. Comunicação social deve ser reservada a
nacionais. Ou então essa história de país e nação não conta mais. As
empresas de radiodifusão estão preocupadas com a construção de uma
nação de brasileiros para brasileiros (...) Somos os últimos analógicos
(Guimarães, apud Sousa[4], 2005, p. 58).

O que atemorizava a televisão aberta, como se explicou no capítulo 2, era a


convergência digital. As teles, à altura, sequer falavam em conteúdo. Elas usavam a
expressão “valor agregado”. Mas os radio-difusores sabiam exatamente o que esse
eufemismo abrigava. Ao enlaçar, num mesmo sistema, tevês, celulares e internet, a
convergência colocava as teles no terreno que a radiodifusão se acostumou a explorar
sozinha.
Naquele momento, era tão enfática a fala da Globo que os próprios pares da
televisão aberta se encarregaram de dar nuances ao discurso. Johhny Saad, presidente da
Rede Bandeirantes, fez questão de mostrar que, como diria o ditado, em casa de ferreiro,
o espeto é de pau. A Globo, segundo ele, apesar de pregar o nacionalismo, não o praticava


181

na Net e na Sky, serviços dos quais era sócia: na operadora Sky, 59,4% dos canais eram
estrangeiros.
A provocação de Saad tinha uma motivação comercial. É que a Globo, para minar
a concorrência, impedia que o grupo Bandeirantes distribuísse seu conteúdo por meio da
Net e da Sky. Restava como única alternativa, às empresas de Saad, a DirecTV. O que fez
Saad colocar a boca no trombone foi o fato de, em 2005, ter sido anunciada a fusão entre
DirecTV e Sky. A Band temia com isso ficar de fora da TV tevê paga. Nesse ano, Saad
criou uma associação, a Abra (Associação Brasileira de Radiodifusores) para contrapor-
se à Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão)104, historicamente
liderada pela Globo.
Tal cenário demonstra que, ao contrário do que aconteceu nas tentativas prévias
de se regular a televisão aberta, neste caso a relação de forças era mais complexa e
colocava supostos aliados em campos opostos. Não se tratava, como anteriormente, do
cinema tentar “enquadrar” a TV. Era a televisão que pedia novas regras. A corda da
mudança legal tinha sido esticada até o limite. E ia arrebentar. O cenário da convergência
tecnológica, inexorável e já em curso, começava a atropelar os textos jurídicos.
O primeiro nó a ser desatado dizia respeito à definição de atribuições. Como se
explicou acima, as televisões aberta e fechada foram colocadas em lugares diversos pelo
artigo 21 da Constituição. As teles, que entraram no mercado com a privatização do
Sistema Telebrás, em 1998, ficaram sob a tutela da Anatel. A radiodifusão sempre esteve
sob a tutela do Ministério das Comunicações (MiniCom)105.
Esse sistema fazia sentido até a convergência digital, que emarabalhou os papeis
das teles e das TVs. Tanto uma quanto outra estavam aptas a transmitir uma partida de
tênis, um jogo de futebol, uma série dramatúrgica. Com um detalhe nada desimportante:
à medida que as pessoas usam o celular para ver uma partida de tênis, cai a audiência da
TV. Tal possibilidade se tornava especialmente assustadora para as emissoras porque
enquanto a receitas das teles vem da cobrança de assinaturas ou de serviços de telefonia,

104
Em 2015, “por entender que os desafios da radiodifusão só poderão ser enfrentados com a união de
todo o setor”, o grupo Bandeirantes retornou para a Abert. A Abra, desde então, é comandada pelo
presidente da Abert (ABERT, 2015. Band retorna à Abert:
https://www.abert.org.br/web/index.php/notmenu/item/24103-band-retorna-a-abert. Acesso em 10 Mai.
2017.

105
Em 2016, o Ministério das Comunicações foi extinto e, em seu lugar, passou a existir o Ministério da
Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (Mctic). Este tese adotará, no entanto, o nome usado
durante o período da pesquisa, ou seja, Ministério das Comunicações.


182

a das tevês vem da venda de espaço publicitário. Em outras palavras: as teles dependiam
do uso e as televisões, da audiência. Como a roda da tecnologia é irrefreável e a
portabilidade do consumo audiovisual já batia à porta, o que as emissoras queriam era,
pelo menos, evitar que as teles ganhassem o direito de produzir conteúdo. As teles, por
sua vez, se limitavam a dizer que precisavam de conteúdo para ser oferecido aos clientes.
O que estava em disputa, em termos legais, eram os artigos constitucionais que
tratam, especificamente, da responsabilidade social da radiodifusão e do direito de
propriedade – este último, já alterado em 2002, quando se definiu que os canais abertos
poderiam ter até 30% de capital estrangeiro. Um detalhe que evidencia a diferença de
tamanho dos negócios colocados no ringue é que, de acordo com a consultoria Accenture,
o faturamento dos cinco maiores grupos de mídia do Brasil era, em 2005, 30% menor do
que o da operadora que menos faturava. O capital político das televisões era, porém,
incomparavelmente maior. E foi esse o capital mobilizado quando, dentro da Casa Civil,
então comandada por José Dirceu, foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial
encarregado de elaborar o anteprojeto da Lei de Comunicação Eletrônica de Massas, que
regulamentaria dos artigos 221 e 222 da Constituição.
O decreto que criou o grupo foi publicado em abril de 2005, quatro meses após
o engavetamento do projeto da Ancinav e 13 anos o projeto de Sérgio Motta. Acontece
que, antes do início dos trabalhos, José Dirceu perdeu o cargo, em decorrência das
denúncias do mensalão. Foi apenas em setembro de 2005, já com Dilma Rousseff à frente
da pasta, que se definiram os membros do grupo. Sob a coordenação de Luiz Alberto dos
Santos e Israel Bayma, engenheiro que presidiu a Eletronorte e escreveu sobre o
“coronelismo eletrônico”106, o grupo tinha representantes de vários ministérios e contava
com a presença de Manoel Rangel.
Após o decreto de 2005, outro decreto, com uma nova composição para o grupo
foi publicado em janeiro de 2006, revogando o anterior; depois, em 2010, o presidente
Lula assinou outro decreto, que revogava o de 2006, criando uma comissão
interministerial para apresentar propostas de revisão do marco regulatório dos serviços de
telecomunicações e de radiodifusão. Em 2010, o então ministro das comunicações,
Franklin Martins se comprometeu a entregar um anteprojeto de lei à presidenta eleita

106
Entre 1998 e 2001, Israel Bayma desenvolveu, na Universidade de Brasília (UnB), um estudo com
3.315 emissoras de radiodifusão e demonstrou que todas elas tinham ligação com partidos políticos,
notadamente os dito conservadores. A partir desses dados, Bayma desenvolveu a tese do “coronelismo
eletrônico”, que mostra que as concessões de rádio e tevê são, historicamente, uma moeda de troca política
no Brasil.


183

Dilma Rousseff até 31 de dezembro de 2010. Isso jamais aconteceu, reforçando o caráter
imutável das regras que beneficiam a televisão aberta.
Foi, portanto, por uma trilha paralela à da mudança constitucional que andou o
projeto que criou as cotas para a televisão por assinatura. Já cientes de que o xadrez
político que envolvia TV aberta, Executivo e Legislativo inviabilizava a Lei Geral de
Telecomunicações, as teles passaram a defender o PL 29. O projeto de autoria do deputado
Paulo Bornhausen (DEM-SC), apresentado em 2007, abria o mercado de televisão por
assinatura para o capital estrangeiro e, consequentemente, para as empresas de
telefonia107.
Manoel Rangel, sabendo da fissura entre teles e radio-difusores e de detalhes de
todos os projetos que tocavam nessa questão, aproveitou a brecha. Nesse mesmo ano de
2007, outros três projetos sobre o tema surgiram na Câmara dos Deputados, evidenciando
os vários interesses em conflito e, por consequência, as várias possibilidades de pacto. Os
pontos mais polêmicos e sensíveis abordados pelos diferentes projetos diziam respeito à
proibição para empresas de capital estrangeiro atuarem na produção e à criação de cotas
para a produção independente.108
De saída, a ideia das cotas de programação e a obrigatoriedade de os pacotes
carregarem canais brasileiros foram duramente atacadas pela Associação Brasileira de TV
por Assinatura (ABTA), que dizia ver nesses instrumentos ecos do projeto da Ancinav; o
grupo se opunha ainda ao papel de fiscalização a ser desempenhado pela Ancine nessa
nova configuração.
A televisão aberta, por sua vez, não tinha uma posição fechada e ao longo do
processo os próprios canais, individualmente, foram mudando seus discursos. Saad, em
nome da Abra, apontava a inconstitucionalidade do PL e tornava público que um dos
temores dos donos das emissoras era que a regulamentação da publicidade na TV fechada
tirasse delas anunciantes. A Globo, por outro lado, apesar de, incialmente, ter se colocado
contra algumas regras, conforme os debates avançaram, foi aceitando os aspectos da lei

108
O resumo do que propunham o PL 70, do deputado Nelson Marquezelli (PTB/SP); o PL 332, dos
deputados Paulo Teixeira (PT-SP) e Walter Pinheiro (PT-BA); e o PL 1908 Dep. João Maia (PR-RN)
pode ser encontrada na dissertação de mestrado A Lei da TV Paga: impactos no mercado audiovisual.
Ver: Heverton Souza Lima. A Lei da TV Paga: impactos no mercado audiovisual, Dissertação (Mestrado).
Universidade de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, São Paulo, 2015.


184

que contrariavam seus interesses109. Tudo em nome da exclusão das teles do negócio do
conteúdo.
Em dezembro de 2009, após três anos de muitos cabos-de-guerra e dezenas de
emendas, o PL 29 foi aprovado na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e
Informática da Câmara dos Deputados. O embate seguinte se daria no Senado, com o
projeto transformado em PLC 116/2010, sob a relatoria do senador Walter Pinheiro (PT-
BA). A fim de tentar fazer com que o projeto fosse aprovado sem alterações – e, desse
modo, não precisasse voltar à Câmara –, a ABPI-TV liderou a criação da Frente
Parlamentar Mista em Defesa do Audiovisual, composta por 207 deputados e 32
senadores. Os principais opositores políticos do projeto eram os parlamentares do DEM e
do PSDB.
A essa altura, já havia uma ligeira proximidade do setor cinematográfico com o
projeto. O envolvimento de cineastas e produtores de cinema começou a ser ensaiado
quando o deputado Jorge Bittar (PT-RS), que foi o grande articulador do PL na Câmara,
compareceu a uma reunião do Conselho Superior de Cinema, em Brasília, para explicar a
tramitação de seu substitutivo ao PL 29. Na ocasião, estiveram presentes o ministro da
Cultura, Juca Ferreira, e a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, além dos
conselheiros e suplentes – como o cineasta e distribuidor André Sturm, o cineasta Ícaro
Martins, o montador Giba Assis Brasil e o distribuidor Wilson Feitosa.
A adesão do setor cinematográfico era, no entanto, tímida. As explicações de
Marco Altberg para a falta de adesão ao projeto são exemplares das sutilezas que
envolvem os movimentos políticos de realizadores e produtores:

Era bem complexa a situação e eu vou te dizer o porquê. Alguns


produtores foram cooptados por canais internacionais; eles faziam
séries para os canais internacionais e então ficavam num lugar meio
complicado. Depois do Artigo 39, algumas produtoras, parte delas
ligadas à publicidade, passaram a fazer televisão110. Por incrível que

109
Para não estar sujeita às novas regras do mercado de mídia para o segmento de tevê paga, a Globo teve,
por exemplo, de abrir mão do controle da NET. O Art. 5º da Lei 12.485/11 proíbe a verticalização da cadeia
de valor audiovisual e a propriedade cruzada entre produtoras e programadoras e prestadoras de serviços de
telecomunicações


110
Foram feitas, com recursos do Art. 39, séries como Mandrake (2005 e 2007), produção da carioca
Conspiração dirigida por José Henrique Fonseca e Cláudio Torres (ambos haviam estreado no longa-
metragem entre 2003 e 2004, com O homem do ano e O Redentor, respectivamente); Alice (2008), da Gullane


185

pareça, nossos maiores aliados eram as teles porque elas queriam entrar
no mercado e a gente queria aproveitar essa regulamentação para
conseguir a cota. O projeto só foi viabilizado pelo poder econômico das
teles. Da parte do cinema, houve alguma resistência ou desconfiança de
certos setores do cinema; é importante lembrar aqui que, na verdade, o
cinema sempre foi voltado para o seu próprio universo e a TV ainda era
uma coisa muito estranha e desconhecida. Isso só veio a se quebrar a
partir dos efeitos da lei. Hoje todos se beneficiam e comemoram, mas,
naquele momento, muita gente tinha receio de contrariar o poder
econômico. Bom, era tudo tão complexo que teve produtora que fez a
campanha da Sky contra a lei (Altberg, 2016, em entrevista à autora).

Altberg se refere a uma campanha levada ao ar em junho de 2010. Na peça


publicitária, a empresa dizia: “Querem intervir na sua TV por assinatura (...) Que tal House
às 16h00 ou Two & a Half Man à meia noite?”, dando a entender que a lei obrigaria os
canais a exibir tais programas nesses horários – o que não era verdade. A campanha
também atribuía um falso sentido à palavra “qualificado”, jargão técnico destinado a
definir conteúdos com ingredientes de teledramaturgia, ou seja, não jornalísticos111. Na
peça, afirmava-se que caberia à Ancine definir “o que é ou não ‘qualificado’ para que a
sua família assista”.
Em meio à disputa de narrativas – que, como sempre, tinha como motes um
suposto intervencionismo e uma ameaça à liberdade de escolha –, muitos cineastas e
produtores, com receio de desagradar os canais, mantiveram o silêncio. Não havia nem os
tradicionais artigos em jornais nem os abaixo-assinados ou manifestos. Uma exceção, em

Filmes, assinada por Karim Aïnouz e Sérgio Machado, nomes fortes do cinema autoral nordestino; e Filhos
do Carnaval (2006, 2009), da O2 Filmes, que teve episódios dirigidos por Cao Hamburger e roteirizados por
Anna Muylaert, figuras importantes do cinema de São Paulo. As três séries mencionadas foram feitas para a
HBO Brasil.
111
O conceito de espaço qualificado serviu de parâmetro para a regulamentação de vários dispositivos da
Lei 12.485/11. Obras audiovisuais que constituem espaço qualificado são aquelas dos tipos ficção,
documentário, animação, reality show, videomusical e variedades. Os canais de espaço qualificado são
aqueles que, no horário nobre, veiculam obras audiovisuais de espaço qualificado em mais da metade da
grade de programação. Já o Canal Brasileiro de Espaço Qualificado (CABEQ) é aquele que é programado
por programadora brasileira; veicula majoritariamente, no horário nobre, conteúdos brasileiros, sendo
metade desses conteúdos produzidos por produtora brasileira independente. Para mais detalhes ver:
ANCINE, 2012. Ancine publica Instruções Normativas que regulamentam a nova Lei da TV Paga, 4 de
Junho de 2012. Disponível em: https://www.ancine.gov.br/pt-br/sala-imprensa/noticias/ancine-publica-
instru-es-normativas-que-regulamentam-nova-lei-da-tv-paga. Acesso em 03 Ago. 2017.


186

meio a essa, digamos, discrição, foi Luiz Carlos Barreto, que comprou mais essa briga.
Ou, como ele prefere dizer, atendeu a mais esse “chamado”:

No final, o Manoel Rangel chegou para mim e disse que eu tinha que ir
com ele lá [no Congresso Nacional] porque os caras diziam uma coisa,
depois faziam outra. Aí eu fui, procurei o [senador José] Sarney e ele me
falou que tinha muita Medida Provisória que chegava, travava a pauta e
que por isso o projeto nunca entrava em votação. Era uma enrolação
(Barreto, 2014, em entrevista à autora).

Barreto relata que, em todas as sessões às quais compareceu, José Sarney


(PMDB-AP), que era o presidente do Senado, chegava atrasado e que quem abria o
Plenário era a senadora Marta Suplicy (PT-SP). Marta, segundo Barreto, sempre abria as
sessões com as Medidas Provisórias que eram apresentadas no dia. Com isso, “trancava a
pauta”. O produtor conta que começou a achar tudo “muito esquisito” e que resolveu
consultar um conterrâneo, o senador Inácio Arruda (PCdoB-CE). O parlamentar garantiu
a Barreto que o sucessivo envio de MPs quando o PL da TV Paga estava previsto para
entrar na ordem do dia fazia parte de uma estratégia política. De posse dessa informação,
Barreto voltou a procurar Sarney e novas costuras políticas foram feitas. E então houve,
enfim, uma sessão sem MPs sendo apresentadas.
Mas havia outra surpresa reservada. Nessa sessão, o senador Demóstenes Torres
(DEM-GO) apresentou, em nome do Partido dos Democratas (DEM), um requerimento
com doze perguntas técnicas a serem respondidas pela Anatel. O senador, um mês antes,
havia escrito um artigo no jornal Folha de S. Paulo (publicado ao lado de outro, de Marco
Altberg, defendedo a lei) tachando o projeto de inconstitucional. No texto, ele dizia que a
reserva de mercado contraria o princípio da propriedade privada, questionava a
concentração de poder nas mãos da Ancine e retomava palavras usadas nos embates
anteriores do campo da cultura – como chavismo, doutrinação audiovisual, dirigismo
cultural, xenofobia, uniformidade cultural e doutrinação. “Ao instituir as cotas na
programação fechada, o Planalto demonstra o desejo de ter todos os controles, inclusive
o remoto (...) Filmes, só os nacionais não realizados por emissoras. Veta o Brasileirão,
aprova as Brasileirinhas”, afirmava o senador, com direito a trocadilho (Torres, 2011).
Contudo, o último estratagema usado por Torres não funcionou. O requerimento
foi mandado para o Ministério das Comunicações e o secretário-executivo da pasta, Cezar


187

Alvarez, pegou para si a incumbência de fazer, rapidamente, todos os esclarecimentos. As
respostas foram mandadas por e-mail e rejeitadas. Tinham de estar escritas em papel
oficial, com a assinatura do ministro Paulo Bernardo. A votação acabou sendo adiada para
o dia seguinte, mas aí a base do governo já estava recomposta. O enredo aqui descrito é
apenas um dos muitos subplots da trama legal que envolveu produtores, canais fechados,
televisão aberta, governo e empresas de telefonia:

Foram várias as manobras, coisas feitas para confundir mesmo. Tinha a


bancada evangélica, que tem televisões, tinha a briga das tevês
universitárias, tinha as ações do DEM, tinha as demandas do Fórum
Nacional pela Democratização da Comunicação 112 ... A aprovação no
Senado se deveu muito à tenacidade e ao trabalho de bastidores do Manoel
[Rangel] (Altberg, 2016, em entrevista à autora).

Em setembro de 2011, exatamente dez anos após a edição da MP 2228-1/01, que


criou a Ancine, o PLC 16/2010 foi convertido na Lei de Serviço de Acesso Condicionado
(SeAC) – que inclui as atividades de produção, programação, empacotamento e
distribuição. A Lei do SeAC, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, que havia
tomado posse em janeiro desse mesmo ano, tem entre seus objetivos (Lei 12.185, Art. 3º):

- Liberdade de expressão e de acesso à informação;



- Promoção da diversidade cultural e das fontes de informação, produção e
programação;

- Promoção da língua portuguesa e da cultura brasileira;
- Estímulo à produção independente e regional;


A Lei 12.485/11, além de ter estabelecido as cotas de programação, contém uma


série de outros instrumentos normativos. Ela:

112
Criado em 1990, o Fórum reúne associações, sindicatos, movimentos sociais, organizações não-
governamentais e coletivos que lutam, entre outras coisas, contra a concentração econômica na mídia e
pelo fortalecimento da comunicação pública.


188

- Unificou, sob o mesmo regulamento, todos os serviços de televisão por
assinatura. Antes, cada tecnologia de transmissão (cabo, satélite e MMDS) era regida por
uma lei;
- Pôs fim aos limites à participação do capital estrangeiro em empresas que atuam
no setor, independentemente da tecnologia empregada; antes, havia um limite à
propriedade de operadoras de cabo por capital estrangeiro. Com isso, abriu-se o serviço
de tevê paga às companhias de telefonia móvel;
- Mudou o sistema de licenças, substituindo a concessão – modelo adotado na
TV aberta – pelo regime de autorização, mais barato e rápido. Hoje, qualquer empresa
pode requerer uma outorga mediante pagamento de uma taxa, ou seja, sem licitação;
- Dividiu as competências entre Ancine e Anatel. À Ancine, cabem as questões
relativas a conteúdo; à Anatel, as questões referentes à distribuição desse conteúdo por
meio da infraestrutura de redes disponibilizada pelas operadoras. 113
- Proibiu que as operadoras, que distribuem os sinais, produzam conteúdo ou
possuam participação acionária em empresas de produção. As produtoras e canais
tampouco podem ter participação nas empresas de distribuição;
- Limitou a publicidade a 25% do tempo de programação; antes, a publicidade
era livre;
- Estabeleceu a “cota de empacotamento”. Para cada três canais estrangeiros, as
operadoras devem oferecer um canal nacional.
- Estipulou a “cota de programação”. Os canais devem exibir, em horário pré-
determinado, 3h30 de conteúdo nacional – 50% disso feito por produtores independentes.
Para tornar possível o cumprimento da cota, o governo previu novas formas de
financiamento para a produção. Além dos recursos provenientes do Art. 39, os
produtores passaram a ter acesso a recursos do Fistel que, com a lei, foram
transformados em Condecine Teles e acoplados ao FSA. A incorporação de recursos do

113
A cadeia de valor na tevê por assinatura envolve quatro elos: produção (criação de conteúdo),
programação (seleção do conteúdo e criação de uma grade de horário), empacotamento (negociação dos
direitos de transmissão com os canais de programação) e distribuição (comercialização de pacotes de tevê
por assinatura). Muitas empresas atuam de maneira verticalizada, exercendo simultaneamente diferentes
papeis; no Brasil, em geral, as mesmas empresas responsáveis pelo empacotamento cuidam da
distribuição, como é o caso da NET e da SKY, chamadas genericamente de “operadoras de tevê paga”.
Para mais detalhes sobre a cadeia de valor da tevê por assinatura ver: ANCINE, 2016. TV por Assinatura
no Brasil: aspectos econômicos e estruturais. Disponível em:
https://oca.ancine.gov.br/sites/default/files/televisao/pdf/estudo_tvpaga_2015.pdf. Acesso em 01 Dez.
2017.


189

Fistel ao campo do cinema foi, até mais do que as cotas, o grande pulo do gato da Lei
da tevê paga.
O Fistel é um fundo de natureza contábil criado em 1996, durante a
privatização do sistema de telecomunicações. Trata-se de uma taxa correspondente a
1% do faturamento das empresas de telefonia, entendidas, no escopo da Lei 12.485/11,
como empresas que administram serviços e equipamentos por meio dos quais é possível
fazer transmissão audiovisual. Tal recurso, de acordo com a Lei nº 5.070/96, era
“destinado a prover recursos para cobrir despesas feitas pelo Governo Federal na
execução da fiscalização de serviços de telecomunicações, desenvolver os meios e
aperfeiçoar a técnica necessária a essa execução”. Ou seja, não havia, na origem, uma
relação evidente entre Fistel e cinema.
O relato de Luiz Bolognesi revela como se chegou a isso:

Quando o Fernando Henrique privatizou o sistema de telefonia, eles


decidiram que teria de sair, daquela loucura de dinheiro que ia rolar, um
dinheiro para o audiovisual e a informática. Foi aí que eles criaram o
Fistel. Porém, esse fundo nunca foi normatizado. Ninguém tinha
interesse em regulamentar isso porque o dinheiro ficava no caixa do
governo – eles não repassavam. Como não havia os mecanismos que
diziam como esse dinheiro deveria ser repassado, ele ficava retido no
Orçamento, ou seja, era usado para pagar dívida. O que o Manoel
[Rangel] fez? Um trabalho de formiguinha, de anos, de falar com
deputados, do DEM, do PMDB, do PT, com o apoio dos deputados
[petistas] Jacob Bittar e Paulo Teixeira. Ele pediu, primeiro, que do total
de R$ 1,3 bi [lhão], o equivalente a 1% do faturamento de R$ 100 bi
[lhões], dessem para ele R$ 80 milhões. Aí o [Guido] Mantega [ministro
da Fazenda] disse: “Se for com a Finep, pode ser”. O que o ministro
queria dizer com isso é que eles não tinham legitimidade para
administrar esse dinheiro porque a agência era muito nova. No primeiro
ano, eles liberaram R$ 80 milhões. O acordo tácito era: o governo
repassa metade, e a outra metade [fica contingenciada e] a gente não
reclama. Para as teles, não fazia grande diferença porque elas já
pagavam a taxa. O que eles toparam foi ajudar a fazer com que esse
dinheiro fosse repassado para a atividade. Lembro que o presidente da
Telefonica [Antonio Carlos Valente] foi superativo. Em troca, eles


190

ganhariam a oportunidade de entrar no mercado de televisão por
assinatura (Bolognsei, em entrevista à autora, 2016).

Foi desse grande acordo, viabilizado pela aliança dos produtores com o capital
internacional das teles, que nasceu o principal vetor da política audiovisual em curso. A
partir da lei, as empresas de telefonia, surfando na onda da digitalização, passaram a
poder oferecer os “combos” que incluem a venda conjunta de serviços de telefonia fixa,
telefonia móvel, acesso à internet, tevê paga e vídeo sob demanda. Em contrapartida,
passaram a pagar a Condecine Teles, que incide sobre cada celular ativo no país – até
2015, era uma taxa de R$ 3,22 por celular, além de uma taxa anual relativa a cada
estação de rádio base de banda larga fixa. Essa nova fonte fez com que o patamar do
FSA mudasse radicalmente. Até então, o fundo contava apenas com a Condecine Título
e com a Condecine Remessa. Como demonstra a tabela abaixo, são as teles que, hoje,
asseguram parte significativa dos recursos para a produção de filmes e séries:

TABELA 1. Condecine: valores arrecadados de 2006 a 2016

2006 200 200 200 201 201 201 201 201 201 201
7 8 9 0 1 2 3 4 5 6
Títulos 27,1 30,7 35,2 34,5 38,1 42,4 64,5 84,1 74,8 81,7 84,9
*
Remess 0,42 0,23 0,52 0,75 1,4 1,2 5 10,9 7,3 9,6 9,9
a
Teles - - - - - - 655 711 702 759 877
Total 27,5 31 35,7 35,3 39,6 43,6 725 806 784 851 972

*Valores em milhões de reais


Fonte: OCA/Ancine

A chegada desses recursos vultosos e a abertura de uma nova janela de exibição


fizeram com que, logo após a sua aprovação, a lei passasse a ter total apoio do setor
cinematográfico. Manoel Rangel, que saíra arranhado do projeto da Ancinav, saía dessa
como heroi e ganhava fôlego orçamentário e musculatura política e institucional para
implementar parte das políticas que desejava.

3.5 O pós-lei: começa a guerrilha judicial


191

Em março de 2012, um artigo publicado por Cacá Diegues no jornal O Globo
mostrava que, uma vez aprovada e compreendida, a Lei 12.485/11 tinha se transformado
num “bem” do cinema brasileiro. No texto, intitulado “A construção de uma imagem”,
o cineasta lançou mão de seu discurso eloquente para defender a lei “pela qual tantos
lutaram, inclusive os responsáveis pelo sucesso de televisão aberta”, referindo-se à TV
Globo. Definindo a lei da tevê paga como resultado de um movimento coletivo, Cacá
clamou, carregando nas tintas dramáticas:

Não basta que a Ancine e os cineastas brasileiros se unam na defesa


dessa lei. É preciso que a população compreenda que ela é uma
necessidade do país como um todo, uma necessidade que não atende
apenas à corporação do cinema, mas ao interesse de todos. Não estou
exagerando: temos que lutar pela regulamentação e execução da Lei
12.485 como fizemos há quase dois séculos pela independência do país.
Ou como nos empenhamos, mais recentemente, para livrar o país da
ditadura que nos oprimia (Diegues, 2012).

No momento em que o texto foi escrito, a Ancine estava colocando em consulta


pública as instruções normativas destinadas a regulamentar a lei; sem a regulamentação,
ela não podia ser colocada em prática. Tratava-se, basicamente, de uma ordenação
jurídica e técnica, mas sua complexidade residia no fato de que os ajustes legais estavam
sob a pressão cerrada dos operadores e dos canais. A novidade, em relação aos anos de
tramitação da legislação no Congresso Nacional é que a lei, nesse momento, passava a
ter como aliados os produtores e cineastas. Os integrantes do setor cinematográfico, que
tinham guardado certa distância do trâmite, haviam então percebido que a nova lei tinha
o potencial de beneficiá-los de forma direta.
Não por acaso, em março de 2012, cerca de 20 associações ou sindicatos
ligados ao setor audiovisual enviaram uma carta para a presidente Dilma Rousseff
manifestando repúdio à nova campanha da Sky. Na peça publicitária, a empresa
disseminava informações distorcidas sobre a lei, dando a entender que o consumidor
seria privado, por exemplo, dos programas de esporte114. Cabe lembrar que a Sky havia

114
Os canais esportivos e jornalísticos não têm de cumprir qualquer obrigação de veiculação de obras
nacionais. A única obrigação à qual estão sujeitos diz respeito ao limite de 25% de publicidade, extensivo
a todo tipo de canal.


192

feito outra campanha em 2010, quando tramitava no Congresso o PL 29, e que, à altura,
o cinema silenciou.
Nessa batalha específica contra a Sky, em 2012, o cinema teve, inclusive, um
mártir para chamar de seu: Luiz Carlos Barreto. Acostumado, em suas ofensivas no
meio cinematográfico, a falar o que lhe vem à cabeça, o produtor se meteu numa enorme
confusão com a companhia. Durante a tramitação do PLC 116 no Senado, Barreto
discursou, numa audiência pública, como representante do Sicav-RJ. Em sua fala, ele
acusou a Sky de tentar obstruir a votação da matéria e chamou a empresa de antiética e
antinacional, lembrando que, na Europa, ela não reclamava de exibir 60% de conteúdo
local. A provocação não foi deixada para lá:

A Sky me processou por calúnia e difamação. Porque eu disse várias


coisas mesmo. Eu disse, por exemplo, que eles eram uma empresa da
qual ninguém sabe quem são os donos. O [senador] Demóstenes
[Torres], que era presidente da mesa, quis caçar minha palavra. Eu tinha
30 minutos para falar e, decorridos 22 minutos, ele tocou a campainha
e disse que meu tempo estava esgotado. Aí eu falei: “Ou o seu relógio
ou o meu precisam ir para o conserto. Eu ainda tenho oito minutos para
falar e só vou falar de SKY agora”. Ele ficou branco e disse que eu tinha
razão. Depois disso os caras fizeram uma notificação, dizendo que se
eu não desmentisse o que havia dito, eles iam me processar. Eu disse:
“Que me processem” (Barreto, 2012, em entrevista à autora).

Dito e feito. Após a aprovação da lei, Barreto foi intimado a comparecer a um


Fórum localizado no bairro de Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, como réu de um
processo criminal:

Eu contratei um advogado grandão de São Paulo, o Manuel Affonso


Ferreira. Ele falou que esses caras da Sky eram uns gângsteres e tal. E
o Manuel não vai a Fórum, não. Mas ele foi comigo lá. Quando
chegamos, o juiz chamou os advogados para fazer a negociação, para
ver se teria acordo ou não. Eu fiquei na sala de réu, esperando eles
voltarem. Daqui a pouco, sai o grupo de lá, o juiz enorme de gordo, com
aquela capa preta. O cara sai e fala assim: ‘Barretão, você por aqui,
rapaz!’ E eu não sabia de onde eu conhecia o cara! Perguntou se eu não


193

ia mais à Lapinha. Lapinha é um Spa que tem no Paraná. Eu ia muito lá
mesmo. Daí eu falei: ‘É, é porque eu consegui emagrecer’. E ele lá,
gordão. Foi minha salvação porque aí o juiz sugeriu que a gente fizesse
um acordo (Barreto, 2012, em entrevista à autora).

Barreto não precisou retirar o que disse – que era o que pedia a Sky. Foi
obrigado apenas a pagar duas cestas básicas a título de indenização. Mas a verdadeira
pena viria depois, fora da Justiça, quando a Sky colocou o Canal Brasil, do qual Barreto
era sócio, em seu pacote mais caro. Até então, o canal estava no pacote básico. Depois
do episódio do Fórum de Santo Amaro, o assinante que quisesse ter o Canal Brasil teria
de levar junto canais mais “valiosos”, como Rá-tim-bum e Fox Sports, pagando, à
altura, R$ 65 a mais.
As pressões contra a Lei seguiriam na Justiça por meio de uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pela Sky e pelo DEM em 2011. Essa foi apenas a
primeira. Outras três se seguiriam até 2015. Mas a verdadeira bomba jurídica caiu sobre
o setor em janeiro de 2016, quando a justiça concedeu uma liminar isentando as
empresas de telefonia do pagamento de cerca de R$ 900 milhões da Condecine que
deveria ocorrer em 31 de março daquele ano. De 2012 a 2015, as teles pagaram cerca
de R$ 2 bilhões de Condecine; em 2016, resolveram pedir não apenas a suspensão da
taxa, mas a devolução de tudo o que havia sido pago.
O SindiTelebrasil (Sindicato patronal das empresas de telecomunicações), que
representa empresas como Claro, Oi, Telefônica/Vivo e TIM, entrou, na verdade, com
duas ações simultâneas na Justiça: uma questionando a constitucionalidade da
Condecine e outra questionando a portaria que determinou a correção monetária de
28,5% na Condecine de 2015115. Foi, porém, a primeira ação que deixou os produtores
de audiovisual com o coração na mão.
O cerne da ADI impetrada no dia 21 de janeiro de 2016 na Justiça Federal de
Brasília é o chamado “princípio da referibilidade”. De acordo com a Constituição, esse
tipo de contribuição deve ou beneficiar quem paga o tributo ou estar diretamente ligada
às atividades ou interesses de quem paga. Na ação, as teles argumentam, entre outras
coisas:

115
As duas ações foram aglutinadas em um único processo (Processo nº 1000562-50.2016.4.01.3400,
em trâmite perante a 4º Vara da Justiça Federal do Distrito Federal).


194

- Que a indústria cinematográfica e as telecomunicações são setores distintos
- Que esse tipo de tributo deve ser usado apenas para propósitos econômicos,
e não para a “promoção da cultura” ou para “finalidades sociais”.
- Que a cobrança não pode tomar por base todos os aparelhos ativos, já que
nem todos estão tecnologicamente aptos a reproduzir vídeos.
- Que a Condecine, por ser uma Contribuição de Intervenção no Domínio
Econômico (CIDE), deveria ter sido instituída por lei complementar, conforme
determina a Constituição, e não por Medida Provisória, como foi o caso.
- Que o dinheiro do FSA, que é em grande parte contingenciado, é usado para
aumentar a arrecadação do governo e que as teles têm uma carga tributária superior à
sua capacidade.

Ao receber a ação, o juiz Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara do Tribunal de


Justiça do Distrito Federal e Territórios, responsável pela análise do caso em primeira
instância, definiu como “tênue” a ligação entre os dois setores e defendeu que, para ser
legítima a cobrança, a vinculação deve se dar em “caráter estrito”. Catta Preta assegurou
liminarmente o direito das teles não pagarem o tributo.
A Ancine, na sequência, entrou com um agravo de instrumento junto ao
Tribunal Federal de Brasília, pedindo a cassação da liminar. A Ancine defendia, em
primeiro lugar, que a “referibilidade” em relação às duas atividades (serviços de
comunicação multimídia e serviços de acesso condicionado) é absoluta. Cabe reiterar,
para que se tenha clareza das nuances em jogo, que, sob a gestão da Ancine, estão hoje
as atividades de produção, programação e empacotamento; sob a Anatel, fica a atividade
de distribuição.
Ou seja, apesar de serem atividades separadas, existe um elo a uni-las. Além
disso, sabe-se que não só algumas teles atuam no segmento de TV por assinatura como
o consumo audiovisual integra a estratégia de atuação dos serviços de telecomunicações
– “Sua TV e seu celular acabam de se transformar em amigos inseparáveis”, explicitava
um anúncio da Claro em 2016. Os advogados da Ancine defenderam ainda que não era
necessária uma lei complementar para a instituição da Condecine116 e, por fim, fizeram
um apelo:

116 Asoutras duas formas de Condecine, a Condecine Título e a Condecine Remessa, também foram
anteriormente contestadas na Justiça e sua cobrança foi mantida.


195

A não arrecadação da referida receita comprometerá o fluxo necessário para o cumprimento dos
compromissos já assumidos e para a continuidade do avanço dessa política pública, a ponto de
inviabilizá-la e gerar uma crise de severas proporções na economia, com impacto na geração de
empregos e renda na economia brasileira (...) A Condecine responderá por 74% das receitas
estimadas do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) em 2016, sendo o principal mecanismo de
mobilização do setor audiovisual brasileiro (Berbert, 2016).

O apelo não comoveu. No dia 22 de fevereiro, a Desembargadora Ângela Catão


negou o agravo, insistindo no argumento anterior, de que a vinculação entre o serviço
oferecido pelas teles e a produção audiovisual não é estrita. Para justificar a decisão, a
desembargadora recorreu à jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal
(STF), que decidiu que “a sujeição passiva deve ser atribuída aos agentes que atuem no
segmento econômico alcançado pela intervenção estatal” (Teletime, 2016).
Não foi essa, porém, a interpretação do presidente do STF, Ricardo
Lewandowski117. No dia 7 de março, Lewandowski deferiu o pedido de Suspensão de
Segurança e derrubou a decisão provisória de janeiro, considerando que a liminar, ao
impedir a arrecadação de mais de um bilhão de reais destinados à política pública de
fomento ao setor audiovisual, tinha evidente “potencial lesivo à economia pública”
(Lewandowski, 2016). Cassada a liminar, o dinheiro voltou para o cinema. O presidente
do Supremo determinou ainda que, apesar de ação prosseguir na justiça, não cabia mais
liminar até o julgamento final. Para Manoel Rangel, a ação das teles significou, acima
de tudo, a quebra de um pacto:

Eu não esperava uma guerra porque a lei foi construída durante cinco
anos. Tivemos o tempo dos conflitos, das altas temperaturas, e então ela
nasceu com alta taxa de consenso. Posso dizer que 90% do setor estava
satisfeito com o resultado. Nós praticamente não tivemos litígio na
Condecine [Teles] – 97% do volume previsto foi arrecadado. A

117
O ministro Ricardo Lewandowski foi indicado para o STF pelo presidente Lula e, mais de uma vez, sua
proximidade com o ex-presidente foi objeto de notas e reportagens na mídia. A mãe de Lewsandowski vivia em
São Bernardo do Campo e era amiga de Marisa Letícia (1950-2017), mulher de Lula. Por outro lado, o juiz
Itagiba Catta Preta, que concedeu a liminar às teles, viria a ser, um ano depois (em março de 2017), o
responsável pela suspensão da posse do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como ministro da Casa Civil
do governo Dilma Rousseff. À época, foi divulgado na mídia e nas redes sociais que o juiz havia participado de
protestos contra o governo do PT e postado críticas à presidente Dilma nas redes sociais.


196

arrecadação da radiodifusão [Condecine Título] envolveu quatro anos
de litígio. Vimos o esforço dos programadores e de todo o mercado para
que a lei fosse cumprida. Houve uma baixa taxa de judicialização. Isso
tudo foi pactuado (Rangel, em entrevista à autora, 2016).

São duas as interpretações possíveis para a ação das teles, que segue na Justiça.
A primeira é que as empresas entraram na Justiça para, basicamente, conseguir a
suspensão do aumento de quase 30% no imposto. A segunda – e uma não exclui a outra –
é que, passados cinco anos da aprovação da lei, e vendo que o setor audiovisual vem sendo
mantido pelo tributo por elas pago, as empresas decidiram fazer um movimento para,
futuramente, serem beneficiadas diretamente pela Condecine. Ou seja, a ação pode ser
entendida como uma forma de pressão das teles para que a Ancine as inclua no rol de
beneficiários das linhas do FSA.
Durante o mês e meio em que vigorou a liminar que eximia as teles do pagamento
da Condecine, o setor cinematográfico, como se atendesse ao chamado feito por Cacá
Diegues em 2012. O engajamento que, como esta pesquisa vem tentando mostrar,
contribuiu, historicamente, para a obtenção de vitórias no campo da política
cinematográfica, se mostrou mais uma vez importante.
Um dado interessante é que, dessa vez, diferentemente do que aconteceu em
outros grandes embates aqui abordados – como a MP 2228-1/01 e o projeto da Ancinav –
, a frente de batalha se deu, sobretudo, nas redes sociais, com a petição online “Não deixe
o audiovisual morrer” 118 e com a campanha #euconsumoaudiovisualnomeuceular 119 ,
responsável pela postagem de fotos de atores, produtores e realizadores vendo vídeos em
celulares. Nesse momento, como sempre acontece numa situação de crise, os agentes do
setor unificaram o discurso e se uniram. O abaixo-assinado virtual reuniu pequenos
produtores do Norte e Nordeste, históricos defensores da política redistributiva – como
Luiz Bolognesi e Jorge Furtado – e mesmo opositores declarados da política da Ancine,
como Roberto Farias. Na mídia tradicional, a manifestação ficou a cargo, mais uma vez,
do cineasta Cacá Diegues que, em sua coluna no jornal O Globo, manifestou-se contra o
que chamou de violência unilateral da ação das teles.

118
https://secure.avaaz.org/po/petition/xxx_xxx_9/?eTVAlkb [Acesso em 10 de maio de 2017]
119

https://www.facebook.com/hashtag/euconsumoaudiovisualnomeucelular?source=feed_text&story_id=9
98146676925329 [acesso em 10 de Maio de 2017]


197

Os representantes do setor cinematográfico difundiram, na internet, que as teles,
simplesmente, negavam que seus serviços fossem usados para o consumo de audiovisual.
A versão tinha apelo, e gerou centenas de fotos de “artistas” com um celular na mão. Não
era, porém, verdadeira. A disputa, como se demonstrou acima, envolve minúcias do
direito tributário e constitucional. A guerra judicial revela, além disso, algumas das
fragilidades institucionais do cinema e mostra o quanto, no campo audiovisual, as coisas
são feitas da forma que é possível fazer – mesmo que isso não signifique, necessariamente,
fazê-las como se deve fazer.
Apesar da dubiedade legal da Condecine Teles, o receio de que tais recursos
sejam retirados do setor é cada vez menor. Os ventos se mostraram especialmente
favoráveis ao cinema quando, em novembro de 2017, o STF considerou improcedentes
três das quatro ADI que impugnavam, ao todo, 23 artigos da Lei. Apenas um deles, o Art.
25, que dava tratamento privilegiado às empresas da publicidade nacionais, em detrimento
das estrangeiras, foi considerado inconstitucional. Em seu voto-vista, o ministro Luiz Fux
reforçou a constitucionalidade da Lei e demonstrou que a compreensão das cotas como
um instrumento legítimo havia chegado à mais alta instância judiciária do país:

As cotas de conteúdo nacional e independente estão lastreadas, sobretudo,


na circunstância fática de que as produtoras nacionais e independentes de
conteúdo audiovisual para espaço qualificado (...) atuam no mercado da
TV por assinatura em situação de profunda desvantagem em relação às
produtoras estrangeiras. Consoante elucidou o representante da Ancine na
audiência pública, as produtoras nacionais concorrem no mercado de
audiovisual com grandes produtoras estrangeiras, sobretudo americanas,
que já possuem amplo mercado consumidor no país de origem e em outros
países onde possuem subsidiárias, nos quais os custos de produção são
inteiramente absorvidos. Assim, tais obras são adquiridas no Brasil a
preços baixíssimos, sendo muito mais competitivas que as obras
nacionais, que possuem apenas o mercado consumidor brasileiro para
escoar sua produção e cobrir seus custos. Percebe-se, portanto, cenário de
acentuada desvantagem competitiva. Nesse cenário econômico, o
tratamento privilegiado dispensado à produção audiovisual brasileira de
espaço qualificado têm como fundamento a necessidade de se criar uma
demanda mínima potencial para esses produtos, com o fito de viabilizar o
desenvolvimento de nossa produção audiovisual nacional, sobretudo


198

aquela oriunda de produtoras independentes. Portanto, as chamadas cotas
de programação nacional consistem na instituição de tratamento jurídico-
normativo desigual com o fito de corrigir uma situação de desigualdade
fática e econômica que caracteriza o mercado de audiovisual brasileiro
(Fux, 2017).

Tal texto, que reproduz alguns dos argumentos que perpassaram esta tese, é
indicativo de uma nova percepção a respeito da chamada defesa do conteúdo nacional.
Em outros trechos do voto, o ministro cita, inclusive, o Art. 221, inciso II da Constituição,
e o Art. 6 da Convenção da Unesco.
É possível concluir, a partir do texto do STF e da própria ação das teles – que
centra fogo da Condecine e não nas cotas – que a reserva de espaço para o conteúdo
nacional foi, de modo geral, aceita pela sociedade e pelos agentes de mercado. Partindo
dessa premissa, vai se tentar responder, na parte final deste capítulo, à seguinte pergunta:
a proteção aos produtos locais pode ainda ser considerada uma medida efetiva para o
desenvolvimento das indústrias nacionais no segmento audiovisual?

3.6 A cota de tela na TV fechada: nasce um novo mercado

Mesmo se restringindo à televisão por assinatura, a obrigatoriedade de exibição


de conteúdo nacional tornou-se um marco da relação entre cinema e TV e entre produção
independente e canais comerciais no Brasil. A medida, criada pela Lei 12.485/11,
impactou de forma considerável o mercado audiovisual brasileiro. A demanda por mais
de mil horas de programação anual possibilitou o surgimento de novos agentes e ampliou
de forma exponencial o mercado de trabalho. Enquanto, em 2011, o conteúdo nacional
ocupava menos de 5% da programação da tevê paga e foram emitidos 1,9 mil Certificados
de Produto Brasileiro (CPB)120 para filmes, seriados e programas na TV por assinatura,
em 2013, esse número tinha saltado para 3,2 mil. Mas os efeitos da Lei 12.485/11 vão
além do conteúdo em si.
A primeira mudança provocada diz respeito ao próprio setor de televisão por
assinatura. A permissão para que as concessionárias de telefonia (de capital

120
O CPB é o certificado de Produto Brasileiro, um selo criado pela ANCINE em 2004. O CPB é como
uma certidão de nascimento que prova a titularidade da obra audiovisual brasileira
(http://www.ancine.gov.br/sites/default/files/anexos/Registro_CPB_16-08-2012.pdf. Acesso em 2 de
Maio de 2017)


199

majoritariamente estrangeiro) passassem a utilizar suas redes para fornecer serviços de
televisão paga e a facilidade na obtenção de licenças, com o fim do regime de concessões,
fizeram com que crescesse o número de competidores. A maior concorrência levou a uma
redução nos preços dos pacotes e à adesão de novos consumidores. Há dez anos, o
universo de assinantes não chegava a 4 milhões. Como demonstra o gráfico abaixo, já no
fim de 2013, a tevê paga teve um crescimento de 11% em relação ao ano anterior e estava
presente em 18 milhões de domicílios – o correspondente a 60 milhões de pessoas.

GRÁFICO 1. A presença da tevê paga nos lares brasileiros

Houve, além do crescimento da base de assinantes, um aumento significativo no


número de canais. E, houve, em especial, uma maior presença de canais brasileiros nos
pacotes. Isso se deve à regra que obriga as operadoras a carregar ao menos um canal
brasileiro de espaço qualificado para cada três estrangeiros. Essa forma de reserva de
mercado não só levou ao surgimento de novos canais como fez com que canais que não
conseguiam entrar nos pacotes básicos das operadoras passassem a ser carregados por
diferentes empresas. Exemplo disso é o Woohoo, canal focado em cultura jovem que,
quando nasceu, em 2006, tinha 6 mil assinantes e, com a lei, passou a ser distribuído por
Net, Sky, GVT, Oi, Vivo e Claro, atingindo 12,5 milhões de assinantes. O avanço no
número de canais gerais e brasileiros pode ser visualizado no gráfico abaixo:

GRÁFICO 2. O avanço no número de canais na TV fechada


200

Por trás dessa suposta diversidade de canais esconde-se, porém, uma grande
concentração. De acordo com um estudo publicado pela Ancine (Ancine, 2016), apenas
dois grupos econômicos, Time Warner e Globo, detêm cerca de 60% dos mais de 200
canais. Pertencem à Time Warner canais como HBO, Cartoon Network e Warner Channel.
A Globo, por sua vez, é dona de cerca de um terço do total dos canais – seja seja sozinha
seja em socidade, caso do Telecine, fruto de uma parceria da Globosat com quatro estúdios
hollywoodianos. Outros 54 canais pertencem à Discovery, à Fox, à Disney e à Viacom.
A concentração econômica se estende à distribuição do conteúdo: a Telecom
Americas (Claro, Embratel, Net) e a DirecTV possuem uma participação de 81% do
mercado; Oi, Telefônica/GVT e Algar, de 16%; os 4% restantes estão pulverizados entre
87 operadoras. As grandes empresas, além da televisão por assinatura, oferecem serviços
de banda larga fixa e telefonia fixa.
Tal cenário tende a reforçar um argumento teórico – que vai na contramão dos
olhares positivos sobre a Convenção da Unesco. Na visão de Andreano e Iapadre (2005),
a Convenção apenas protege os países contra o domínio da produção norte-americana,
sem necessariamente garantir uma real diversidade interna. No caso brasileiro, é evidente
a continuidade da concentração econômica no setor. A própria digitalização, que fez com
que diferentes suportes convergissem para um único modelo, contirbui para o processo de
concentração vertical. E dentro da chamada produção independente, o que aconteceu?


201

O primeiro fato a ser registrado é o aumento no número de produções, fruto da
obrigatoriedade de exibição. A emissão CPBs de obras a serem exibidas na tevê paga
triplicou entre o primeiro e o segundo semestre de 2012:

GRÁFICO 3. Número de obras licenciadas para a tevê paga

Fonte: OCA/Ancine

Entre as produtoras, o que se viu, nos primeiros anos pós-cota, foi um terreno
fértil, do qual brotaram várias novas empresas, mas também um processo de concentração
e de fortalecimento das grandes empresas. Apesar de a lei estabelecer que 30% dos
recursos do fundo sejam alocados em projetos das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste,
isso não aconteceu: 70% dos projetos de cinema contemplados pelo FSA são do Sudeste.
Ou seja, o mecanismo não tem se mostrado capaz de garantir a diversidade local – tanto
em termos regionais quanto em termos estéticos.
Ao mesmo tempo, é fato que houve um aumento no número de atores atuantes
nesse mercado. A quantidade de agentes econômicos registrados na Ancine saltou de 684
em 2002 para 1.781 em 2015. No entanto, se, inicialmente, quase todos os produtores
mostravam-se eufóricos diante das novas possibilidades, com o passar do tempo eles
foram ficando mais reticentes. Isso acontece por várias razões. A primeira delas é que as
grandes empresas, como Conspiração, O2 e Gullane, têm muito mais facilidade de fechar
contratos com os canais do que as pequenas, o que leva a uma concentração nas mãos de
poucos grupos, quase todos do eixo Rio-São Paulo.


202

Isso se deve não só à boa estrutura dessas empresas, que lhes permite entrar com
mais facilidade no ritmo de produção, mas até à facilidade de adiantar recursos para a
produção. Esse último ponto é especialmente importante porque o dinheiro do FSA passa
pelos longos ritos da burocracia estatal antes de ser liberado. Normalmente, como observa
Denise Gomes, sócia da BossaNova, que realizou, entre outras, as séries 3 Teresas (GNT)
e Tabu Brasil (Nat Geo), os prazos da burocracia são incompatíveis com os da televisão:

A TV exige uma agilidade muito grande, e nunca se sabe ao certo quando


o dinheiro do Fundo sairá. Chegamos a usar nosso capital de giro para
adiantar os recursos. Mas empresas menores não têm essa possibilidade e
acabam deixando de cumprir os prazos estabelecidos com os canais.
Outras, nem arriscam pleitear o financiamento (Gomes, apud Sousa,
2015).

Ou seja, no caso de produções para a televisão, o FSA acaba sendo muito mais
usado por empresas médias ou grandes que podem, no limite, adiantar recursos. Elas têm,
além disso, a capacidade de investir em desenvolvimento de projetos a serem apresentados
aos canais. A fim de possibilitar que mais empresas investissem em desenvolvimento, a
Ancine aplicou, em 2014, R$ 27 milhões na estruturação de Núcleos Criativos de
Desenvolvimento de Projetos Audiovisuais – que prevêem que as produtoras trabalhem
com uma carteira de projetos. A primeira edição dos núcleos beneficiou 28 empresas e
possibilitou a abertura do mercado de televisão para pequenas produtoras que, antes, não
tinham condições estruturais de preparar o piloto da primeira temporada de uma série. A
avaliação dos resultados concretos (ou seja, de projetos efetivamente produzidos) dos
Núcleos Criativos não tinha sido apresentada pela Ancine até a conclusão desta pesquisa.
Mas a maioria das empresas apoiadas não consegue a renovação do Núcleo, indicando
que poucas ideias são viabilizadas junto aos canais.
Ainda no que diz respeito aos aspectos criativos, cabe observar que uma das
esperanças geradas pela lei era a de que o país passasse a desenvolver formatos próprios.
O formato é uma das minas de ouro do mercado audiovisual, pois gera direitos sobre
propriedade intelectual121. O mais conhecido e emblemático deles é o Big Brother, criado
pela Endemol, que vendeu o formato para vários países.

121
O setor audiovisual é estruturado em torno da negociação de direitos de propriedade intelectual.
negociação destes direitos entre os vários agentes econômicos do setor se dá na forma de licenciamento,


203

Após a lei, o formato foi visto, portanto, como a chance de internacionalização
de ideias nascidas no Brasil e da geração de renda de direitos autorias. Roberto d’Avila,
diretor da Moonshot, sediada em São Paulo, que produz séries com formatos importados,
como Sessão de Terapia (GNT), originada da série israelense BeTipule (In treatment, na
versão norte-americana), foi um dos que investiu no desenvolvimento de ideias originais,
como o reality Cozinheiros em ação (GNT):

Antes era mais vantajoso para os canais importar formatos prontos e


adaptá-los do que investir em um formato novo, algo sempre mais
arriscado. Agora, para cumprir a cota, o investimento em formatos
nacionais passa a ser uma possibilidade real. As produtoras brasileiras só
vão reverter o jogo se, ao invés de apenas comprar, passarem a vender
ideias e viver também da propriedade intelectual. Se não fosse a lei, jamais
um canal ia testar um formato brasileiro que, além de ser mais arriscado, é
mais caro. Internacionalmente, produtoras como a [argentina] Cuatro
Cabezas ou a [suíça] Zodiac, que seguiram o modelo da Endemol, vivem das
propriedades intelectuais que criam (D’Avila em entrevista à autora, 2014).

A crença de D’Avila é, porém, exceção. A venda para o exterior está no plano de


negócios de muitos dos projetos de série feito no país, mas, na prática, tanto quem redige
os planos quanto quem os lê sabem que dificilmente isso se efetivará. A BossaNova, por
exemplo, até chegou a acreditar nisso, mas a prática mostrou-se bem mais complexa. O
formato da série Três Teresas, que acompanha as histórias vividas por três mulheres de
uma mesma família chegou a ser negociado no mercado internacional, mas nenhum
contrato foi assinado. As exceções têm sido as animações infantis. Séries como
Peixonauta (que estreou em 2009), da TV Pinguim, e Meu Amigãozão (que estreou em
2010), da 2D Lab, foram exportadas para vários países.
Se para as empresas produtoras a chance de rentabilizar o direito de propriedade
é um dos atrativos da lei, para os canais é justamente esse seu aspecto mais complicado.
Logo após a aprovação da lei, a MPAA chegou a reportar ao governo norte-americano o
fato de que o Brasil estava fazendo com que os canais perdessem um de seus principais

que consiste na transferência temporária de direitos de exploração comercial, comunicação pública ou


fruição mediante contrato. As receitas obtidas com as operações de licenciamento de direitos sobre
conteúdos audiovisuais são a principal fonte de receita do setor.


204

ativos, que é o direito de propriedade, já que um programa só cumpre cota se os detentores
de direitos patrimoniais forem brasileiros:

A MPAA está preocupada com o fato de que as cotas para produção local
venham a limitar a experiência do consumidor e acabem por estimulá-lo
a buscar esse conteúdo de maneira ilegítima. Além disso, para que as cotas
sejam cumpridas, os produtores locais devem ser detentores da maior
parte dos direitos de propriedade na obra, mesmo que se trate de
coproduções, desconsiderando o montante investido pelos parceiros não
brasileiro (MPAA Annual Trade Barrier Report, 2012, p.74).

Essa regra, criada para fortalecer as empresas nacionais, é uma das que dificulta
a presença de dinheiro próprio dos canais nas produções. Como um projeto, para cumprir
cota, tem de ter um brasileiro como sócio majoritário, os canais, caso investissem numa
obra, não teriam o direito de distribuição nem em outros países. Conforme Oscar Simões,
presidente da ABTA, a conta da produção, também na tevê paga, não fecha:

O volume de recursos que as programadoras têm para investir está diretamente


ligado ao valor que o assinante paga. Ou seja, é o dinheiro das assinaturas que
alimenta a cadeia, e os preços não podem subir mais. Hoje, a maioria dos canais
não possui recursos para investir em produção e, com isso, ainda não foi possível
equacionar quantidade de programas necessários, custo de produção e qualidade
(Simões, apud Sousa, 2014).

Assim como no cinema, a roda da produção nacional na TV por assinatura só


gira com a alavanca estatal. O que garante o cumprimento da cota é a existência de
recursos públicos. Os canais cumprem a exigência legal de abrir espaço em sua
programação, mas não mexem no caixa. E apesar de, no início, os canais terem se visto
na obrigação de levar ao ar coisas que não passavam pelo seu padrão de qualidade
habitual, com o decorrer do tempo, qualidade e quantidade foram se equilibrando. O temor
que se tinha de que os programas brasileiros afastassem o consumidor era,
definitivamente, infundado.
A prova disso é que, das dez séries mais vistas na TV por assinatura em 2013,
cinco eram brasileiras. Cabe observar, porém, que os canais que mais emplacam sucessos
são o Multishow e o Viva, pertencentes à Globosat – cuja estrutura de produção antecede


205

a obrigatoriedade. Entre as séries campeãs de audiência estavam Vai que Cola
(Multishow), Sai de Baixo (Viva), Cilada (Multishow), Uma rua sem vergonha
(Multishow) e Adorável psicose (Multishow). Nesse ano, coube também a uma produção
nacional, a comédia Minha mãe é uma peça (2013), o primeiro lugar no ranking de
audiência de filmes da TV fechada.
Os bons resultados de certos programas populares fizeram, inclusive, com que o
setor de televisão por assinatura empreendesse algumas modificações na grade de
programção. O serviço que, durante muito tempo, preocupou-se basicamente em importar
produtos, legendá-los e atender o espectador das classes A e B de forma segmentada,
passou a ter maior preocupação com a audiência e com o atendimento a uma base mais
ampla de consumidores, agora composta também por membros da Classe C. Nas palavras
de Rogério Gallo, vice-presidente do grupo Turner, ao qual pertencem TNT, Warner
Channel, Space, TCM e TBS, a Lei 12.485/11 fez com que programadoras e canais
saíssem da “zona de conforto”:

Acabou um pouco o comodismo. O mercado se tornou supercompetitivo


e os canais precisam se preocupar com a audiência. Isso é positivo para o
espectador. O aspecto negativo é que já levamos ao ar programas que, não
fosse a necessidade cumprir cota, não teriam entrado. Mas isso era
esperado. Estamos passando por um processo natural de depuração (Gallo,
apud Sousa, 2014).

Os canais que, ao serem aprovadas as cotas, chegaram a ameaçar colocar cartelas


antes dos programas avisando que não se responsabilizavam por eles, foram mudando o
posicionamento. Alguns, como Turner e Fox, contrataram executivos da TV aberta para
tentar entender melhor a televisão brasileira e se aproximar do público. Outros, como o
grupo Warner, chegaram a adquirir programas após sua exibição da TV aberta. Foi esse o
caso dos programas do apresentador Richard Rasmussen (Mundo Selvagem, Top 5 e Missão
Américas, da Nat Geo) e Operação de Risco, adquiridos pela TruTV. Diante da nova disputa
por conteúdo, alguns acharam por bem criar estruturas no Brasil para se relacionar de forma
direta com os produtores e operadores. Muitos deles, antes, tinham apenas pequenos
escritórios que cuidavam, essencialmente, de venda de publicidade. Denise Gomes defende
que os canais, a partir da obrigatoriedade, entenderam também que alguns conteúdos dão
ótimo retorno:


206

Eles viram que, independentemente da lei, o conteúdo local tem uma


importância. É o caso, por exemplo, da animação. Eu acho, inclusive, que
animação é o que mais faz sentido no cenário atual do Brasil e dos
financiamentos disponíveis. Ela é mais fácil de vender lá fora porque
funciona em diferentes contextos e porque basta você dublar. Na ficção, a
nossa língua é um impedimento mesmo; não adianta pensarmos que não.
Uma ficção em língua espanhola você vende, mas, em português, é difícil
(Gomes, em entrevista à autora, 2016).

Fabiano Gullane, da Gullane Filmes, que entrou forte na televisão após a lei (a
Gullane tinha feito, antes, Alice, para a HBO, e Carandiru, para a Globo), observa que o
aprendizado não se resumiu aos canais. Os produtores, neófitos nesse meio, também
tiveram de aprender a lidar com os prazos e formatos da televisão:

A gente sempre quis trabalhar com televisão, mas, ao contrário do que


acontece em todo lugar, da Europa à Argentina, televisão e cinema eram
mundos completamente separados. Era bem angustiante isso.
Conseguíamos fazer uma coisinha aqui e outra ali, mas muito pouco
mesmo. Esse processo começou com o Art. 39, mas o problema é que nem
a produção independente estava no cardápio das emissoras nem a
produção independente tinha clareza dos projetos que cabiam em cada
canal. A verdade é que boa parte dos produtores entendia, basicamente,
de cinema. No cinema, o que está em jogo é a obra, que vai durar, sei lá,
dez anos nas mais diferentes janelas; na televisão, você trabalha com
orçamento e prazo. Se levar cinco anos para entregar um produto para um
canal, você nunca mais trabalha com eles. No começo, foi difícil. Mas,
com o tempo, tanto as produtoras quanto os canais foram aprendendo a
dialogar. Depois da lei, exibimos conteúdos na HBO, no Universal e no
Telecine. E acho que um efeito colateral importante da lei é que as
televisões abertas também se abriram mais para a produção independente.
Outra coisa é que vendemos vários longas-metragens do nosso acervo
(Gullane, em entrevista à autora, 2015).

A maior presença do cinema brasileiro na programação é, inclusive, uma das


consequências da lei mais visíveis para o espectador. A observação de Gullane é


207

complementada pela fala de Giba de Assis Brasil, sócio da Casa de Cinema de Porto
Alegre:

[A lei] facilitou a venda e melhorou as condições de negociação. Mas com


algumas restrições. Nossos curtas, por mais valorizados que tenham sido,
estão já um pouco velhos e precisariam de uma nova telecinagem, o que
ainda não conseguimos fazer, pelo custo. Os longas têm contratos de
distribuição ainda em vigor, então toda negociação passa pela Columbia,
pela Fox, pela Imagem Filmes, dependendo do caso. Mas eles nunca
foram tão vistos como agora. Chegamos a receber reclamações do tipo
“Todo dia passa O homem que copiava [de Jorge Furtado] em algum
canal” (Brasil, apud Sousa, 2014).

Para o cinema, outro movimento, ainda pequeno, mas concreto, foi o da entrada
de alguns canais na produção de longas-metragens. O Telecine havia criado o selo
Telecine Productions em 2008, mas foi após a aprovação da lei que sua presença como
coprodutor de longas-metragens intensificou-se. Já nasceram com o selo da empresa
projetos como as comédias Mato sem cachorro (2013) e Muita Calma Nessa Hora 2
(2014) e o drama À beira do caminho (2012). A HBO, que vinha de uma longa parceria
com os produtores brasileiros para o formato seriado, anunciou, em 2017, que passaria a
produzir também documentários em longa-metragem.
A própria GloboFilmes foi, nesse novo contexto, mudando sua atuação e criando
a chamada sinergia entre os diferentes meios. A empresa constituiu, em 2013, um comitê
artístico e passou, nos anos seguintes, a produzir filmes que não tinham as bilheterias dos
cinemas como alvo principal. Foi esse o caso de Sob Pressão (2016), de Andrucha
Waddington, que cerca de seis meses depois da estreia no circuito comercial virou uma
série exibida na Globo, e de uma linha de documentários viabilizada em parceria com a
GloboNews e com produtores independentes.
Apesar do estreitamento das relações e da boa audiência alcançada por alguns
filmes nacionais, a presença do longa-metragem nacional na televisão aberta ainda é
baixa. Em 2006, os filmes brasileiros representavam apenas 7,4% do total exibido pela
Globo, sendo que um terço disso tinha o selo GloboFilmes. Em 2016, esse número havia
saltado para 11,78% do total. Nas demais emissoras comerciais, a presença continua sendo
pífia:


208

GRÁFICO 4. Percentual de veiculação de longas-metragens na televisão

O balde de água fria nessa parceria que os produtores enxergam com otimismo é
jogado por Cadu Rodrigues, ex-diretor da GloboFilmes:

Televisão e cinema não se juntaram genuinamente. Lá no começo dos


anos 2000, quando a gente fez encontros com um grupo de cineastas, a
gente ranqueou as demandas deles, e foi tentando atender. Quando assumi,
eram exibidos quatro filmes brasileiros por ano na TV brasileira, e aí
passamos a exibir um filme brasileiro por semana. A Globo compra os
filmes e paga por espectador. E se paguei caro, vou querer exibir em
horário nobre. Isso acabou fazendo uma blindagem de mercado: a Record
não passa. E claro que a maioria é GloboFilmes. A GloboFilmes teve uma
importância política e de imagem para a empresa. Mas o que o cinema
rende equivale a 0,1% do faturamento da TV aberta – que fatura R$ 16
bilhões em publicidade. Imagina eu na reunião de diretoria... O cara do
Big Brother falava lá em R$ 300 milhões... Eu era a curiosidade. Eu nem
nunca falava em dinheiro. No Brasil, nunca vai haver diálogo verdadeiro
entre cinema e TV: um é autoral, por mais comercial que seja, e outro
precisa ganhar dinheiro. Uma cota de patrocínio do Campeonato Paulista
equivale a um longa-metragem (Rodrigues, em entrevista à autora, 2014).


209

No caso da televisão fechada, o produto brasileiro se reverteria em dinheiro se
gerasse novas assinaturas. E a garantia de financiamento e de espaço de exibição não é
garantia de que os programas serão assistidos. Mas a medida do crescimento da TV
fechada, como já se disse, é o crescimento no volume financeiro da venda de assinaturas
– ou seja, o resultado depende da somatória do número de assinantes e do preço cobrado.
E o fato é que, após uma década de crescimento contínuo, esse mercado começou a
decrescer. Os preços dos pacotes baixaram e, de 2011 para cá, os serviços de vídeo sob
demanda foram se expandindo.
Ou seja, com o avanço do serviço de banda larga, a própria tevê paga passa a ver
seu negócio ameaçado. Pouco a pouco, os consumidores vão trocando o serviço pela
assinatura da banda larga, que permite que se assista os conteúdos oferecidos por Netflix122,
iTunes ou YouTube. Nos Estados Unidos, os consumidores estão cancelando o serviço de
televisão por assinatura numa velocidade muito maior do que se esperava. Em 2017, 22
milhões de norte-americanos cortaram o serviço de suas vidas. Estima-se que, até 2021,
três quartos dos usuários de internet terão aderido ao serviço pago de streaming.
O que se conclui, a partir disso, é que com a perspectiva da revolução
tecnológica, as exigências legais relativas a conteúdo terão uma eficácia cada vez mais
reduzida. Apesar de, no caso da Lei 12.485/11, a proteção legal ter contribuído para o
fortalecimento da indústria local, a televisão a cabo acaba por repetir o que se vê no
cinema: o aumento no volume de produção não é acompanhado de um crescimento do
público nem de um avanço rumo à autosustentabilidade. E a pergunta que fica é: diante
de cenário transnacional do entretenimento e da adesão ao streaming, o cumprimento das
cotas se reflete numa relação com o público? Como se demonstrou acima, algumas obras
brasileiras tiveram boa audiência, mas o debate social em torno das séries, por exemplo,
diz respeito, em geral, às séries importadas. Cabe lembrar ainda que as obrigações de
veiculação de conteúdo brasileiro têm vigência limitada a 10 anos e devem extinguir-se,
portanto, em 2021.
Apesar dos aspectos problemáticos aqui mencionados – como concentração do
mercado e subsídio à produção –, a Lei da TV Paga pode ser considerada um ponto de
inflexão na política cinematográfica brasileira das duas últimas décadas. A medida teve

122 A Netflix, empresa-símbolo do serviço de VoD, foi criada em 1997, oferecendo o aluguel de DVDs
pela internet. Em 2007, a empresa começou a trabalhar com streaming; em 2010, deu início a sua expansão
internacional; em 2011, chegou ao Brasil. A Netflix já produziu um longa-metragem (O matador, de 2017)
e duas séries brasileiros (3%, de 2017, e O mecanismo, de 2018).


210

um impacto significativo sobre a expansão do mercado audiovisual e efetivou
parcialmente a parceria entre cinema e TV. Seus resultados mostram que medidas
protecionistas ainda têm alguma eficácia na promoção e no desenvolvimento do setor. Só
não é possível dizer ainda se seus efeitos serão perenes.


211

Capítulo 4

A década revista: os resultados da política pós-Embrafilme

O mercado cinematográfico brasileiro tem dono (...) O dono é o fabricante


da fita estrangeira (...) Havia um mercado a ser criado e a tarefa foi executada pelas
firmas cujos nomes pontuam a era primitiva do cinema, Pathé, Nordisk, Itala, Cines,
Vitagraph e Biograph. Nasceu, floresceu e consolidou-se um mercado exclusivo para
o filme vindo de fora, não por deliberação de vontades, mas como decorrência de
uma situação de fato (...) O filme brasileiro era concebido em termos de curiosidade
episódica e não como produto destinado a alimentar um mercado (...) Como nosso
mercado cinematográfico foi criado para o filme estrangeiro e desenvolveu-se em
função dos seus interesses, estruturou-se espontaneamente na vida social brasileira a
ideia de que essa situação era inalterável (Gomes, 2016, p. 73-74).

4.1 Ancine, 15 anos: entre avanços e limites

O estudo do processo de institucionalização do cinema brasileiro após o fim da


Embrafilme carrega em si uma enorme variedade de chaves de leitura sobre o mercado
audiovisual. Se, até aqui, a narrativa se construiu, sobretudo, a partir da ação e da voz dos
agentes, neste último capítulo, a linha condutora será aquela dos dados.
A primeira observação a ser feita é que as estatísticas e informações apresentadas
não têm a pretensão de alcançar plena objetividade. Os gráficos e tabelas são, primeiro,
fruto de análises de dados primários feitas pelo boletim Filme B e, em especial, pela
Ancine. Ou seja, vários deles foram elaborados pelos próprios fazedores da política e,
consequentemente, ajustados aos desejos de se propalar a versão do crescimento. Eles não
deixam de ser, assim como o discurso dos atores sociais, uma defesa de um ponto de vista
e de uma ideologia. Tanto é assim que os gráficos que confrontam de forma mais direta a
narrativa do crescimento são aqueles construídos por mim: o que compara produção e
market share e o que separa os filmes por faixa de púlbico, ano a ano.123 Usou-se também

123
A análise primária dos dados da Ancine, que não estão disponíveis para o público geral, pode,
certamente, gerar novos estudos sobre a política audiovisual brasileira no período de 2001 a 2016. Os
dados usados para esta pesquisa são aqueles disponibilizados pelo Observatório do Cinema e do
Audiovisual (OCA). O acompanhamento sistemático do OCA deixou claro, ao longo dos anos de pesquisa,
que a organização dos dados foi pensada para se construir uma narrativa específica. Entre os dados que
interessariam a esta pesquisa e que não estão disponíveis, apesar de certamente existirem, estão: o número
de projetos desenvolvidos no contexto dos Núcleos Criativos que foram efetivamente realizados; o


212

o Plano de Diretrizes e Metas do Audiovisual (PDM), de 2013 (Ancine, 2013). De saída,
é possível dizer que, a despeito das incongruências e dos gargalos da política estudada, a
tríade legal composta pela MP 2228-1, pela Lei 11.437/06 e pela Lei 12.485/11 marcou
um novo ciclo de desenvolvimento do cinema nacional.
Em 2001, quando se estabeleceu o marco legal que serve de base ao cinema
brasileiro atual, 30 longas-metragens nacionais entraram em cartaz (era o maior volume
que a produção atingia desde a chamada Retomada). Ao longo da década que antecedeu a
criação da Ancine, foram produzidos no Brasil pouco mais de 100 longas-metragens.
Apenas em 2016, ano em que se completaram 15 anos da criação da agência, foram 144
as produções. Em 2001, o mercado de filmes nacionais era dominado pelas distribuidoras
estrangeiras; em 2016, as empresas nacionais ficaram com 96,8% do share de distribuição
de títulos brasileiros. Em 2001, havia 1,6 mil salas de cinema no país; em 2016, 3,1 mil.
Em 2001, os cinemas brasileiros venderam 74,8 milhões de ingressos; em 2016, 185,8
milhões.
Ou seja, a política audiovisual implantada no Brasil no início do século XXI fez
com que se saísse de um mercado quase incipiente e de um cenário de pouquíssimos
atores para um setor que, segundo o MinC, corresponde a 0,46% do PIB nacional.
Abastecida por recursos da ordem de R$ 700 milhões anuais – somados os recursos do
FSA e dos mecanismos de incentivo –, a produção audiovisual agigantou-se. De acordo
com o MinC e a Ancine, o setor, em 2016, empregou 95 mil trabalhadores, gerou uma
renda de R$ 24,5 bilhões na economia e recolheu R$ 2,1 bilhões em impostos diretos.
Apesar de quase todos os números terem crescido – valores investidos, filmes
produzidos e lançados, salas de cinema, número total de espectadores –, um deles
empacou: o do market share. A média de participação de mercado do filme brasileiro
nos últimos 15 anos não chegou a 15%. Isso significa que aumentou a presença do filme
brasileiro no mercado, mas não sua competividade, fato que tem implicações diretas
sobre a possibilidade de se estabelecer uma indústria autossustentável. Esses dois
aspectos – a estagnação do market share e a dependência estatal – são, porém, pouco
problematizados pelo setor.

percentual de diretores estreantes nos longas-metragens lançados no período; a quantidade de projetos que
devolveu dinheiro para o FSA, ou seja, que teve retorno financeiro; o resultado de linhas específicas do
FSA, como o Prodecine 02. Certamente, um estudo feito a partir de dados primários da Ancine, com o
apoio de estatísticos, capazes de tabulá-los, teria muito a revelar sobre a política audiovisual brasileira.


213

O que se vê, olhando para os últimos 15 anos, é que à medida em que foi
ganhando relevância econômica, o setor foi também silenciando. As disputas ferozes
registradas no período inicial da pesquisa foram amainadas - ou passaram a se dar em
círculos fechados, e não mais na mídia. Dos conflitos, fez-se o pacto124. Como diz um
produtor ouvido para este estudo, o FSA, com seus milhões distribuídos para os variados
tipos de produtor e de projeto, serviu quase como mordaça. “Ninguém fala. Um pouco
porque todos têm certo receio de bater de frente com a Ancine e acabar tendo ainda mais
problemas com a burocracia. Um pouco porque, no fim, tem dinheiro para quase todo
mundo”, afirma esse player que, sob anonimato, revela as facetas psicológicas
envolvidas na política.
A política em curso incorporou alguns daqueles que, no início dos anos 2000,
se sentiam excluídos do campo – jovens realizadores, documentaristas e produtoras
localizadas fora do eixo Rio-São Paulo. E fez isso sem excluir os antigos beneficiários.
Em outras palavras: como os recursos para o setor se ampliaram exponencialmente com
a Condecine Teles, tanto concentracionistas quanto distributivistas puderam ser
atendidos. O ímpeto redistributivo que tanta confusão causou entre 2003 e 2005 deu
lugar à política distributiva que, como se viu antes, gera menos conflito.
A expansão na clientela, sem prejuízo dos grandes projetos, fica evidente
quando se comparam as listas de lançamentos e resultados do início dos anos 2000 com
aquelas recentes. Ao mesmo tempo em que os blockbusters se estabeleceram, explodiu
o número de pequenos filmes, feitos por pequenas produtoras.
Para além dos dados, a análise dos resultados levará em conta os objetivos
expressos na MP 2228-1/01, que criou a Ancine:

- Promover a cultura nacional e a língua portuguesa por meio de filmes;


- Aumentar a competitividade e promover a auto-sustentabilidade da
indústria cinematográfica nacional;
- Fortalecer a produção independente e as produções regionais;
- Estimular a universalização do acesso às obras cinematográficas,
sobretudo, nacionais;

124
Esse pacto começaria a ser desfeito em meados de 2018, logo após a defesa desta tese, quando, sob a
presidência de Christian de Castro, foram anunciadas mudanças importantes no FSA.


214

- Garantir a presença de obras nacionais em todos os segmentos do
mercado.

Antes da exposição dos resultados da política empreendida pela Ancine nos


últimos 15 anos e da análise dos processos de hierarquização e exclusão dos atores
sociais pertencentes ao campo do cinema, é importante retomar brevemente alguns dos
sentidos da atividade cinematográfica – abordados também no tópico 1.2. Só a partir
deles é possível discutir os resultados da política brasileira sem incorrer em
simplificações.
Desde os seus primórdios, o cinema se constitui como uma atividade feita por
empreendedores que têm não só de garantir a produção de um filme como de encontrar
formas de fazer com que ele chegue aos espectadores. Creton (1998) distingue, a partir
de três figuras da história do cinema, três aspectos essenciais da atividade: o técnico,
representado pelos irmãos Auguste e Louis Lumière, o de negócios, explorado pela
empresa Pathé Fréres, e o artístico, simbolizado pelo inventor George Méliés. O espaço
ocupado por esses pioneiros nos ajuda a compreender o processo de desenvolvimento
do mercado de cinema e sua legitimação social e cultural – inevitavelmente atrelada aos
resultados econômicos:

A autonomia do campo se funda sobre os resultados econômicos que


permitiram que o cinema desenvolvesse modos de produção e práticas
específicas, desenvolvesse seus modos de difusão e seus próprios
espaços para a visão do espetáculo. Depois de muito se inspirar em
múltiplas tradições das artes do espetáculo através de suas dimensões
artísticas, tecnológicas e econômica, o cinema pôde se afirmar, enfim,
como uma atividade econômica e como Sétima Arte (Creton, 1997, p.
21).

Creton frisa ainda, em Cinéma et marché, que a produção de filmes, ao mesmo


tempo em que busca o reconhecimento artístico, sempre se destinou a criar uma
demanda:

Desde os primórdios do desenvolvimento da atividade cinematográfica


pelos irmãos Lumière, a questão do desenvolvimento do maior público
possível se coloca (...) Da mesma forma, o acesso a um certo


215

reconhecimento artístico vai contribuir de maneira sensível à
institucionalização e ao desenvolvimento do mercado (Creton, 1997, p.
20).

O cinema, que foi a grande diversão popular de parte do século XX, tendo
posteriormente sido substituído pela televisão, só existe a partir de uma “aliança
ambígua entre o mercantilismo e a paixão pela arte e pela técnica” (Creton, 1997, p.
35). Reside nessa ambiguidade o eterno embate entre cinema de autor e cinema de
mercado; residem nela também os impasses enfrentados pela política aqui estudada.
Como tem se repetido ao longo do texto, a lógica industrial e a lógica artística
são, no cinema, faces de uma mesma moeda. Em teoria, ao menos, o resultado
econômico permite que a indústria se movimente e, portanto, tenha cacife para ousar a
invenção. As aventuras de linguagem, por sua vez, nutrem a criação cinematográfica e
dão ao cinema legitimidade cultural. O filme dito de arte, ou o cinema “independente”
– que o mercado internacional empacota com o nome de art house – é, ainda, uma
estratégia para criar novos mercados, atender a novos públicos e alcançar novas formas
de reconhecimento. A participação de um filme em festivais importantes – como
Cannes, Veneza, Berlim e Roterdã – é vista como um indicador objetivo daquilo que
Creton (1997, p. 8) define como “demanda” da opinião pública. Deriva dessas
proposições um questionamento importante: a política dos últimos conseguiu criar essa
demanda no Brasil?
Para abordar tal problemática, este último capítulo se debruça sobre os três elos
da cadeia cinematográfica – produção, distribuição e exibição – e sobre o futuro que já
começou, representado pelo streaming, plataforma disruptiva que quebra e ressignifica
a velha cadeia cinematográfica.

4.2 Produção: muito filme, pouco público

A função de um produtor de cinema é, em poucas palavras, colocar de pé uma


ideia (dele ou de um diretor). Para isso, ele deve ser capaz de fazer convergir, para o
projeto, dinheiro e interesse; alguém, além dele, deve acreditar que vale a pena o filme
ser feito. Projeto finalizado, é preciso garantir sua existência no mercado. Inicia-se
assim a etapa da distribuição. Cabe ao distribuidor pensar na melhor estratégia para


216

colocar o filme nas salas, ou seja, no circuito exibidor125.
No Brasil dos últimos 15 anos, a parte menos difícil – ainda que custosa – de
todo o processo tem sido, justamente, a de colocar o projeto de pé. Os recursos do FSA,
as leis de incentivo e as políticas de editais existentes nos municípios e Estados 126
garantiram, apenas em 2016, que 144 longas-metragens fossem produzidos no país. Um
pouco mais difícil é conseguir que alguma empresa invista recursos próprios no
lançamento desses filmes. E mais difícil ainda é, depois do filme embalado, com trailler,
cartaz e DCP127, encontrar cinemas dispostos a exibi-los em boas salas e bons horários.
Reside nessa falta de sincronia entre os diferentes elos o calcanhar de aquiles
da política de cinema levada a cabo no Brasil nos últimos 15 anos: apesar de a produção
ter crescido exponencialmente, a participação de mercado do filme brasileiro estancou.
Em 2001, os 30 filmes brasileiros que chegaram às telas obtiveram um market share de
9%. Esse mesmo market share na casa dos 9% repetiu-se em 2008 e 2017, anos nos
quais foram lançados, respectivamente, 82 e 158 filmes. As duas linhas desenhadas no
gráfico abaixo evidenciam o desencontro entre a quantidade de filmes produzidos e a
taxa de ocupação de mercado:

GRÁFICO 5. Número de lançamentos X market share do filme nacional

125
Apesar de existirem hoje outras formas de se mostrar o filme para o espectador – por meio de
plataformas que a Ancine define legalmente como “outros mercados” –, a política aqui estudada foi
estruturada dentro da lógica na qual o cinema é a primeira e mais importante janela.
126
O FSA possui a linha de Arranjos Regionais, que prevê a suplementação de recursos em editais de
produção dos governos estaduais e municipais. Diversos Estados possuem seus próprios editais de
produção cinematográfica, muitas vezes ligados à renúncia fiscal do Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços (ICSM). O município de São Paulo, por exemplo, tem editais de fomento
promovidos pela SPCine.
127
DCP é a sigla de Digital Cinema Package, o sistema de arquivo digital que substituiu as cópias em
película, que foram o padrão de distribuição e exibição de filmes ao longo do século XX.


217

A distância entre sonho e realidade fica evidente no próprio PDM. O


documento partia de dados de 2010 e traçava objetivos para um horizonte de dez anos.
Esperava-se que, em 2015, o cinema brasileiro vendesse 42 milhões de ingressos,
tivesse uma taxa de ocupação de mercado de 24% e obtivesse uma renda bruta de R$
465 milhões. O resultado ficou muito aquém: 21,6 milhões de ingressos, um market
share de 13% e uma renda de R$ 266 milhões.
Para 2020, a meta é ainda mais ambiciosa: 72 milhões de ingressos,
participação de mercado de 32,7% e renda de R$ 970 milhões. A julgar pelo último
levantamento disponível até a conclusão da pesquisa, a meta não passa de miragem. Em
2017, a produção nacional vendeu 17 milhões de ingressos, teve um market share de
9,6% e uma renda bruta de R$ 241 milhões.
Apesar de, durante boa parte de seu mandato, Manoel Rangel ter defendido a
participação de mercado como um objetivo central da política em curso, em 2016, o
penúltimo ano de sua gestão, ele próprio começava a fazer reparos ao market share
como medida do sucesso de uma política de cinema:

A gente compete com a indústria hegemônica, que é a indústria da


principal potência do mundo e que detém estruturas de distribuição nos
seis continentes. Portanto, o desenvolvimento do mercado tem de ser
medido no conjunto de seus indicadores e não à moda antiga, sendo
referenciado apenas pelo market share. O market share do filme
brasileiro na sala de cinema tem a ver com várias questões (...), mas tem


218

a ver também com as escolhas que são feitas pelos nossos produtores,
diretores e realizadores. [A questão do] market share nos preocupa
como nos preocupa a supervisão de todos os indicadores. Nós apenas
não temos uma visão catastrofista sobre isso. Eu olho 21 milhões de
ingressos vendidos pelos filmes brasileiros em 2015 e digo: “É um
número expressivo”. Teríamos vendido 21 milhões de ingressos se não
houvesse esses fortes investimentos? Se não tivéssemos tido uma
política de apoio construída pelo Fundo Setorial, o cinema brasileiro
continuaria a ocupar market share expressivo? De 2003 para cá, sempre
nos mantivemos um patamar superior a 10%. Na década de 1990, o
market share foi sempre inferior a isso e nunca passou de 8,5%. Já o
market share dos anos 1970 estava embalado na obrigação de exibição
de filmes brasileiros por 150 dias e numa indústria forte de
pornochanchada. Outra coisa importante é que o cinema no mundo se
transformou. O cinema, nos últimos 30 anos, e mais radicalmente nos
últimos dez anos, virou evento. A indústria está voltada para o
espetáculo. O cinema se transformou num lugar para tiro, porrada e
bomba, com os países explodindo, a terra afundando, dinossauros
tomando conta de tudo. Esse não é o cinema que fazemos no Brasil. E
eu diria mais: não é o cinema que queremos fazer, embora seja bem-
vindo se alguém quiser seguir essa trilha (Rangel, apud Sousa, 2016).

Corroborando parte da tese de Rangel está o fato de que raríssimos são os


países a conseguir superar 15% de market share. A França é um deles: em 2016, chegou
a 35,8% de ocupação de mercado. Mas, na América Latina, a Argentina128 teve um
market share de 14,4%, o México de 10%, a Colômbia de 7,8% e o Chile de 6,4%, de
acordo com o estudo Focus 2017 – World Film Market Trends. Apesar de ser verdade
que o market share do mercado exibidor desconsidera as novas janelas, ele ainda é a
principal baliza mundial para a avaliação de resultados. Ou seja, mesmo levando-se em
conta o cenário mundial e os argumentos de Rangel, não há como negar que é

128
Como é comum a comparação do cinema brasileiro com o Argentino, vale a pena registrar que, nos
últimos cinco anos, o market share do segundo variou entre 9,79% e 17,84% e o volume da produção,
assim como no Brasil, cresceu ano a ano. Em 2016, de acordo com o Anuário 2016 do INCAA estrearam,
na Argentina, 199 longas-metragens nacionais ante 246 de origem estrangeira. O que é bem diferente do
Brasil é a concentração sobre um número pequeno de títulos – o público se divide entre mais filmes do
que aqui. Se repete, contudo, a preferência dos espectadores pelas comédias. O líder de bilheteria de 2016
foi a comédia Me casé com um boludo.


219

problemático o fato de, num ano com quase 150 filmes produzidos, o país repetir a
ocupação de mercado que tinha com cerca de 50 filmes. O crescimento do mercado de
cinema no Brasil, como ser verá nos três gráficos que se seguem, acabou, em termos de
renda e de público, beneficiando mais o cinema estrangeiro do que o cinema nacional.

GRÁFICO 6. Títulos lançados no circuito comercial (2001-2016)

GRÁFICO 7. Público de cinema no Brasil (2001-2016)


220

GRÁFICO 8. Renda das salas de cinema no Brasil (2001-2016)

Para avaliar tais resultados e refletir sobre as razões que levaram a eles, é
importante ter em vista, em primeiro lugar, os objetivos da política e do próprio setor.
Enquanto, nos anos 1960, Cacá Diegues dizia que o cinema brasileiro era muito
modesto e só tinha a pretensão de contribuir para a evolução da humanidade, nos anos
2000, sua importância passou a ser medida, sobretudo, pelos números – não apenas por
aqueles relativos às bilheterias, mas também àqueles relativos à contribuição do cinema
para a economia do país ou para a geração de empregos. O MinC e a Ancine, em


221

apresentações em eventos e seminários, fazem sempre questão de colocar em seus
power points que o audiovisual brasileiro responde por:

- 0,46% do PIB
- 0,58% do valor agregado
- 95 mil empregos diretores
- 240 mil empregos indiretos
- uma geração de renda de R$ 24,5 bilhões
- uma arrecadaçõ de impostos diretos de R$ 2,3 bilhões

No Brasil, o discurso em torno da economia criativa começou a tomar corpo a


partir da gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura e se institucionalizou em 2010
quando, sob o governo Dilma Rousseff, foi criada a Secretaria de Economia Criativa. O
que é recorrente nesse discurso é o potencial de geração de riqueza das indústrias cuja
base é a propriedade intelectual. Chega-se, neste ponto, aos problemas de taxinomia e
medição dessa economia. Por exemplo: os R$ 24,5 bilhões citados acima dizem
respeito, como bem anotou Escorel (2016), ao audiovisual como um todo, e 93,1% desse
total provém da televisão. Não há mentira nisso, mas há a moldagem dos números em
favor de uma narrativa de engrandecimento da atividade cinematográfica.
Uma das consequências da adesão ao discurso econômico e industrializante foi
uma certa obsessão pelos números e, consequentemente, pelos sucessos. Cabe aqui,
portanto, fazer uma breve genealogia dos sucessos no período.
Os blockbusters contemporâneos sempre tiveram por trás uma grande empresa
a distribuí-los – na primeira fase da Ancine, as majors e, depois, o consórcio
Downtown/Paris Filmes – e a GloboFilmes como coprodutora. O sucesso, além disso,
esteve predominantemente ligado a um gênero: a comédia.129
O domínio da Globo desenhava-se desde o início do período estudado. Em
2001, os dois líderes de bilheteria foram Xuxa Popstar, lançado pela Warner (quando a
apresentadora comandava Xuxa Park, na emissora), e A Partilha, lançado pela

129
A presença das comédias como líderes de bilheteria é uma característica comum a diversos cinemas
nacionais. Essa tendência pode ser verificada tanto na Europa, em países como França, Itália e Alemanha,
quanto na América Latina. No cinema brasileiro contemporâneo, o primeiro grande sucesso foi Se eu fosse
você (2006), de Daniel Filho. Protagonizado por dois astros televisivos, Glória Pires e Tony Ramos, o
filme, produzido pela Total Filmes, vendeu 3,6 milhões de ingressos – número espantoso para aquele
momento. O filme teve uma sequência (Se eu fosse você 2, de 2009), algo que se tornaria comum, e
mostrou que o gênero tinha ainda muito potencial.


222

Columbia e dirigido por Daniel Filho, então nome-chave do departamento de ficção da
TV Globo130. No ano do III CBC, o filme mais visto foi O auto da compadecida (2000)
versão em longa-metragem de uma série exibida pela Globo.
Das 20 maiores bilheterias entre 2001 e 2016 (ver tabela 5), um único filme
não teve a participação da GloboFilmes: Os Dez mandamentos, primeira grande
produção capitaneada por outra emissora de TV aberta, a Record. Dentre os filmes mais
vistos a cada ano, apenas dois não são da GloboFilmes – sendo que um deles, Tropa de
elite, contou com o braço cinematográfico da Globo em sua continuação, Tropa de elite
2: o inimigo agora é outro (2010), demonstrando o interesse da empresa em investir
naquilo que tem potencial de público comprovado. Já tinha sido esse o caso da parceria
da GloboFilmes com a O2, produtora de Cidade de Deus. A GloboFilmes entrou no
projeto depois de ver o bom retorno do curta Palace II (2001), de Meirelles e Kátia
Lund, exibido na emissora131.
O longa-metragem tornou-se o primeiro título pós-retomada a quebrar a
barreira dos 3 milhões de ingressos e estabeleceu um novo patamar de público do
blockbuster nacional.132 Três anos depois, Dois filhos de Francisco (2005), bateu as
animações Madagascar e Os incríveis, além de Harry Potter e o cálice de fogo, e
tornou-se o filme mais visto do ano. Em 2010, Tropa de elite 2 – o inimigo agora é
outro, lançado com mais de 600 cópias, superou o recordista histórico Dona Flor e seus
dois maridos (1978) e se tornou o filme mais visto da história do cinema brasileiro. Em
2016, esse recorde foi quebrado por Os dez mandamentos133.
Como demonstra a lista a seguir, salvo exceções como Tropa de elite 2 e Os


130
Durante muito tempo, os supervisores artísticos da GloboFilmes foram Guel Arraes, Daniel Filho e
José Alvarenga Jr., todos os três “prata da casa” e também responsáveis por sucessos do cinema brasileiro.
Em 2016, o comitê artístico da empresa era formado por Guel, Alvarenga, Cacá Diegues e Fernando
Meirelles.
131
Para conhecer detalhes do processo de produção de Cidade de Deus, que originou ainda a série Cidade
dos Homens (2002), ver: André Gatti. Cidade de Deus: blockbuster brasileiro em tempos de globalização.
Revista D’Art nº 12- Da cultura e do mercado. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2005, pp. 32-37.

132 No início da retomada, um campeão de bilheteria como Tieta (1996) fazia 521 mil espectadores; os

filmes protagonizados por Renato Aragão (O noviço rebelde, de 1998, e Simão, o fantasma trapalhão, de
1999) ficaram em torno de 1,3 milhão de ingressos vendidos.

133
O mercado de cinema contesta os resultados de Os dez mandamentos – o filme porque, de acordo com
exibidores, muitas das sessões que tiveram ingressos previamente vendidos pela internet – e adquiridos
pela Igreja Universal – e que eram tidas como lotadas não estavam, na verdade, completas.


223

dez mandamentos, que ultrapassaram os 10 milhões de espectadores, um blockbuster
brasileiro faz, em geral, entre 2 milhões e 4 milhões de ingressos.

TABELA 2. O campeão de cada ano de 2001 a 2016

ANO FILME PÚBLICO


2001 Xuxa Popstar 2.394.326
2002 Cidade de Deus 3.117.220
2003 Carandiru 4.693.853
2004 Cazuza, o tempo não para 3.082.522
2005 Dois filhos de Francisco 5.319.677
2006 Se eu fosse você 3.644.956
2007 Tropa de elite 2.417.754
2008 Meu nome não é Johhny 2.075.731
2009 Se eu fosse você 2 5.786.844
2010 Tropa de elite 2 11.081.199
2011 De pernas pro ar 3.105.003
2012 Até que a sorte nos separe 3.435.824
2013 Minha mãe é uma peça - o filme 4.604.505
2014 Até que a sorte nos separe 2 3.202.039
2015 Loucas para casar 3.779.702
2016 Os dez mandamentos 11.305.479

Fonte: Filme B e OCA/Ancine

O que praticamente todos esses títulos têm em comum, como se disse, é o selo
GloboFilmes. Não por acaso, a empresa, ao longo do período estudado, foi muito
atacada por estender seus tentáculos para o cinema. Kleber Mendonça Filho, diretor
pernambucano que ganhou destaque na mídia após a repercussão internacional de O
som ao redor (2013), se tornou um porta-voz importante desse discurso:

O sistema Globo Filmes adestra um público cada vez mais dopado para
reagir a um cinema institucional e morto (...) Se meu vizinho lançar o
vídeo do churrasco dele no esquema da Globo Filmes, ele fará 200 mil
espectadores no primeiro final de semana (...) São filmes feitos com
muita grana e lançados com muita grana. Gastam R$ 6 milhões, mas
parecem ter custado R$ 800 mil porque têm dois apartamentos, quatro
atores da Globo, um cachorro e um gato (Filho, apud Mena, 2013)

Após as declarações, Cadu Rodrigues, então diretor da GloboFilmes, devolveu


os ataques, desafiando o cineasta a fazer um filme com o apoio da Globo e conseguir


224

levar 200 mil pessoas ao cinema. Em poucos meses, Rodrigues foi afastado do cargo.
Alguns anos depois, Mendonça recebeu o apoio da empresa para a realização de
Aquarius (2016), que foi selecionado para a competição do Festival de Cannes e fez 360
mil espectadores nas salas de cinema do Brasil; em 2018, o filme de Mendonça estreou
na TV Globo, em horário nobre.
Enquanto o cinema brasileiro ia problematizando seus poucos sucessos, o
blockbuster estrangeiro ia crescendo ainda mais. Em 2001, o primeiro filme da série
Harry Potter fez 3,9 milhões de espectadores; no ano seguinte, Homem Aranha
alcançou a marca de 8,4 milhões e, em 2016, Capitão América vendeu 11,2 milhões de
ingressos. A taxa de ocupação do circuito também não parou de crescer, como se
mostrará no tópico 4.4.
É por isso que Mariza Leão, que sempre produziu sucessos (ainda nos anos
1990, Lamarca e Guerra de Canudos, ambos dirigidos por seu marido, Sérgio Rezende;
e, nos anos 2000, Cazuza – O tempo não pára, Meu nome não é Johnny e as franquias
De pernas pro ar e Até que a sorte nos separe), insiste que o blockbuster nacional
concorre com blockbuster estrangeiro e não com o filme autoral brasileiro:

Quando fiz Lamarca, não era um filme para ser um blockbuster, mas
foi o filme de maior bilheteria daquele ano. Por que ele foi o filme de
maior bilheteria daquele ano, mesmo sendo um filme de 8 mil
ingressos? Porque quando você faz um filme com esse chamado recurso
público, você tem que se empenhar em devolver para a socidade. Não é
só fazer. É fazer e lançar. Desde que comecei a fazer cinema, meus
filmes entram no cinema. Todo dia eu entro aqui [na produtora] e pego
a média de cada sala. Eu vou colocar esse filme no [Shopping]
Aricanduva? Quantas pessoas vão por semana ao Aricanduva? Isso quer
dizer que eu vou acertar sempre? Não, mas acho que o diretor e produtor
têm de ter um comprometimento: não é só fazer um filme, é inserir esse
filme dentro do mercado da melhor maneira possível. Se a gente usa
recursos públicos, a gente tem que ter esse compromisso. Não é o
número que vale, é o quanto você está comprometido. O que me
preocupa, atualmente, é a despolitização do fazer, no sentido da falta de
comprometimento. Fazer um filme no Brasil já é um gesto político. Não
é um gesto político fazer De Pernas pro Ar 2 e colocá-lo para competir
com Harry Potter em dezembro? Me emociona conseguir falar com o


225

povo brasileiro, me emociona conseguir fazer com que ele prefira ver
De Pernas pro Ar 2 a Harry Potter (Leão, em entrevista à autora, 2014).

A fala de Mariza serve de contrataque a um discurso que foi bastante


corriqueiro no início dos anos 2000: o de que os filmes de sucesso davam lucro e,
consequentemente, não precisavam de apoio público. As leis de incentivo trouxeram
consigo a ideia de que só deveriam ser beneficiadas pela renúncia fiscal as obras que
não visavam o lucro. No entanto, num segundo momento, quando os filmes acima de 1
milhão de espectadores se tornaram realidade, ficou demonstrado que a maioria dos
títulos comerciais também não se paga nas bilheterias e que, sem incentivo, eles não
existiriam. Chegou-se por fim à fase atual, representada pelo depoimento de Mariza, no
qual os filmes comerciais são vistos, por parcela do setor, como aqueles que realmente
podem justificar os recursos públicos. De acordo com esse pensamento, eles são, em
alguma medida, até mais “legítimos” do que as obras que quase ninguém vê. É que o
dinheiro, nesse caso, beneficiaria mais gente.
A defesa dos filmes capazes de gerar lucros remonta à Atlântida, mas, até as
leis de incentivo, os argumentos em defesa dessa produção foram sempre econômicos
e industrializantes. Como relata Autran (2013), a Atlântida, na esteira do pensamento
de Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, que defendiam que a ocupação do mercado interno
era fundamental para a existência de uma produção nacional, apostava nas comédias
musicais, mais do que nos dramas, justamente para tentar alcançar o público. A lógica
era que só tendo público um filme poderia se pagar.
A ideia de cinema independente das grandes empresas de produção ganhou
fôlego no bojo da crise da Vera Cruz. A proposta então era que se fizesse filmes de
“baixo custo, em prazos menores e, consequentemente, sem muito apuro formal (...),
privilegiando temáticas sociais” (Fabris, 2007, p. 86).134 Os defensores desse cinema
reagiam às feições que a indústria estava adquirindo; não conseguiram, porém,
estabelecer um diálogo com o público (Autran, 2013).

134
Na prática, porém, muitos dos diretores que defendiam os filmes de baixo custo, independentes e de
perfil autoral, acabaram, com o tempo, inflando seus próprios orçamentos. É o caso de Nelson Pereira dos
Santos em Memórias do Cárcere (1984), Glauber Rocha em A Idade da Terra (1980), Leon Hirszman
em Eles não usam black-tie (1981) e Joaquim Pedro de Andrade em O homem do pau-brasil (1982). Os
valores de produção de tais filmes, se atualizados para os dias de hoje, girariam em torno dos R$ 10
milhões. Títulos de perfil mais popular, feitos no mesmo período, como Pixote: a lei do mais fraco (1981),
de Hector Babenco, e Menino do Rio (1982), de Antonio Calmon, tiveram orçamentos na faixa dos R$
4,5 milhões e R$ 3 milhões, respectivamente.


226

Na década seguinte, após o naufrágio dos estúdios (ver: nota de rodapé 30),
surgiu o Cinema Novo. O projeto dos cineastas ligados ao movimento era levar a cabo
“uma arte nacional-popular que colaborasse com a desalienação das consciências”
(Ridenti, 2000, p. 91). Glauber Rocha dizia que seu grupo queria fazer filmes de autor,
comprometidos com o seu tempo e desvinculados do sistema de produção industrial. Os
orçamentos deviam ser baixos e parte do dinheiro investido nesses filmes seria
recuperado com a bilheteria local e com as vendas para o exterior.
Mas as coisas não eram assim tão simples. Ao tentar colocar seus filmes nas
telas, os cineastas enfrentaram desde a sonegação de renda da parte dos exibidores locais
(Autran, 2013) quanto imensas dificuldades de fechar contratos de distribuição no
exterior. O idealismo foi, assim, cedendo lugar a uma visão mais pragmática: “(...) os
cinemanovistas passaram a desenvolver um discurso industrial e (...) lentamente
buscaram formas de aproximação em relação ao Estado” (Autran, 2013, p. 69).
Apesar disso, como diz Creton (1997), a busca pelo lucro econômico sempre
despertou certa desconfiança. Na imprensa dos anos 1950, eram comuns os relatos que
definiam como “aventureiros” os diretores ou produtores que tinham como principal
objetivo o retorno financeiro. Como aponta Autran (2013, p.53), “a busca do lucro
econômico per se pela atividade empresarial é condenada, caso não seja acompanhada
por aqueles pré-requisitos, que evidentemente variam de ideólogo para ideólogo”.
Chega-se assim a outra problemática de uma política de cinema: o que cabe ao Estado
bancar?
No caso do Brasil, um país com graves problemas estruturais, essas escolhas a
respeito de onde se investir vêm a reboque de uma justificativa mais ampla sobre a
própria pertinência dos financiamentos. Com frequência, surge a cantilena em torno da
legitimidade de se colocar dinheiro público no cinema num país no qual os setores da
saúde e da educação são carentes. Apesar de os recursos não saírem do orçamento direto
e de, em política pública, as coisas não serem excludentes, há, dentro do meio
cinematográfico, vozes que ecoam esse discurso.
É o caso de Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus e sócio de uma das
maiores produtoras de publicidade do país, a O2 Filmes, que hoje se dedica também ao
conteúdo para televisão e outras plataformas. Apesar de dizer que não entende de leis,
Meirelles, vez por outra, fala sobre elas e defende que o dinheiro público deve estar,
pelo menos, ligado a algum tipo de contrapartida:


227

O Estado deve financiar, mas a gente deve dar uma contrapartida. O
Brasil é um país que não tem saneamento básico, então a gente não pode
achar que o país deve financiar a nossa ideia maluca sem dar nenhum
retorno. Acho que precisamos ter uma responsabilidade social. Então
eu tenho uma consciência grande: se você for fazer um filme com
dinheiro público, você tem que devolver alguma coisa. Eu estou usando
o dinheiro do contribuinte, né? Eu estou sendo contratado por quem
paga imposto de renda para fazer o filme, então ele não é só meu. O
filme tem quem interessar, tem que ser popular. O [Hector] Babenco
[que fez quatro filmes com mais de um milhão de espectadores: Lúcio
Flávio – o passageiro da agonia, de 1977, Pixote; a lei do mais fraco,
de 1980, O beijo da mulher aranha, de 1985, e Carandiru, de 2003]
falava isso: “Eu tenho que agradar a mim mesmo e não ao público. Eu
tenho que expressar o que sinto e penso”. Eu discordava dele: “Você tá
sendo pago pelo contribuinte, você tem um cliente, você tem que pensar
no cliente quando faz o seu projeto”. A gente tinha que tentar fazer
filmes com o menor orçamento possível para o maior número de
pessoas possível. Mas a gente vai na direção oposta. Cinco anos atrás,
um filme que fizesse 150.000 espectadores seria um fracasso. Hoje em
dia a gente luta para ter dois dígitos e fazer mais que 10 mil
espectadores. Eu, pessoalmente, não tenho mais muito interesse em
trabalhar dois anos para fazer um filme que vai dar prejuízo e que
ninguém vai ver. Por outro lado, tô muito interessado em séries... O
cinema está uma loucura. A gente está fazendo cento e vinte e nove
filmes [número de filmes nacionais lançados em 2015], ou seja, são
mais de dois lançamentos brasileiros por semana. É claro que o mercado
brasileiro não absorve isso. Você pode continuar expandindo a
produção, mas se não tem quem assista, não é jogar dinheiro no lixo?
(Meirelles, em entrevista à autora, 2016).

Os próprios filmes da O2, exceção feita a Cidade de Deus, não conseguem,


mesmo com o uso do incentivo, fechar essa equação baixo orçamento/bom público. Para
além da legitimidade do dinheiro empregado em filmes que poucos vêem, uma segunda
questão colocada com frequência é aquela do excesso de interferência do Estado.


228

Roberto Farias, egresso de uma geração anterior às leis de incentivo, vai um
pouco mais longe e aponta o Estado e sua burocracia como os adversários que impedem
que qualquer cinema floresça fora da máquina pública:

Eu fiz meu primeiro longa-metragem [Rico ri à toa, de 1957] com um


empréstimo feito pelo meu pai. Meu pai empenhou a casa em que a
gente morava e a gente tinha 120 dias para devolver o dinheiro. Com
esse dinheiro, arrumei um sócio, o [produtor] Murilo Seabra, fiz o filme,
lancei e, com a bilheteria, quitei o empréstimo. Quem começa a vida
assim não pode pensar em grandes interferências do Estado. O que se
esperava do Estado nos anos 1950 era uma certa proteção em relação à
avalanche de filmes estrangeiros. Mas eu não quero ninguém se
metendo no meu roteiro, na minha vida, querendo saber quanto gastei.
A partir de 2001 criou-se uma burocracia do Estado que fez com que o
cinema brasileiro deixasse de ser livre. A produção do audiovisual hoje
está de tal forma dependente do Estado e da sua burocracia que você
não tem nem mais a liberdade de escolher aquilo que você quer fazer.
Por que? Porque ou você tem que ser aprovado por uma estatal ou pelo
Fundo Setorial, que também vem com uma burocracia que vai analisar
o seu roteiro e definir se esse filme deve ser feito em relação a outro
que não deve ser feito. Isso é a anti-iniciativa privada. Gastaram-se R$
2 bilhões nos últimos dez anos e não houve uma estratégia para atrair a
iniciativa privada. Quem faz cinema hoje no Brasil faz com recurso do
Estado. Se você faz hoje um filme com os seus próprios recursos, você
não tem nenhum direito, o Estado não te protege, não te ajuda. Se você
não se registrar na Ancine, você vira um pária. Hoje, se você junta seus
amigos, sua tia e faz um filme, você não tem direito a nada (Farias, em
entrevista à autora, 2014).

A complexidade da legislação do audiovisual brasileiro justifica uma estrutura


burocrática enorme, que inclui desde os servidores concursados – a agência possuía, em
2016, um corpo funcional de 780 pessoas, sendo 418 concursados – até cargos
comissionados e pareceristas externos contratados para avaliar os milhares de projetos
que se acumulam a cada nova chamada do FSA. Esse aparato também faz com que
quem está fora dele praticamente inexista. O produtor Rodrigo Teixeira, da RT Features,


229

que entrou no cinema querendo fazer filmes sem dinheiro público, desistiu. Ao menos
no Brasil. E explica a razão:

Eu trabalho também nos Estados Unidos [ele produziu, entre outros, Call me
by your name, premiado em Sundance e hoje tem uma parceria com Martin
Scorsese] e lá eu consigo investidores para meus projetos. Em primeiro lugar,
a gente, aqui, tem uma situação econômica difícil. O que faria alguém investir
num projeto de risco, que é o cinema, ao invés de deixar o dinheiro no banco,
com uma rentabilidade de 15% ao ano? Nos Estados Unidos, os juros são de
1% a 3% ao ano, ou seja, se conseguir um resultado um pouco melhor do que
esse com um filme, você gira a economia do cinema independente. No Brasil,
é impossível competir com o Estado. O Estado pode ser burocrático, e é, mas
tem dinheiro para investir em audiovisual. Desde a Lei do Audiovisual até o
FSA, nunca se criou um mecanismo paralelo que incentivasse o dinheiro de
risco em filmes. O cinema vive uma economia que é irreal, mas que gira muito
dinheiro. Existem produtores pequenos, sem currículo, que conseguem
levantar R$ 3 milhões de incentivo público através do FSA. Ou seja, você tem
uma economia sendo financiada pelo Estado, e não tem como competir com
ela. Em 2015, eu fiz um filme no qual investi R$ 2 milhões. Aí eu precisava
de R$ 400 mil para finalizá-lo, e minha produtora ganhou um prêmio de
adicional de renda e de qualidade. Mas a burocracia para colocar R$ 400 mil
num filme financiado com recursos próprios foi tanta que eu, simplesmente,
desisti. Não vale a pena. No fim, coloquei esses R$ 400 mil do meu bolso e
falei: “Chega". Não vou mais usar recursos próprios nos filmes que faço
porque o Estado não valoriza o fato de eu ser um empreendedor que está
arriscando capital. Eu, provavelmente, vou perder muito dinheiro nesse filme,
como já ganhei em outros. Mas você não tem incentivo para continuar fazendo
isso porque não existe mecanismo que dê qualquer vantagem – e não falo em
vantagem financeira, mas, pelo menos, a possibilidade de não ficar enredado
na burocracia – a quem investe recursos próprios. Ao contrário. Tanto que
essa é uma economia inexistente. Hoje, se o Estado não estiver presente, não
existe indústria audiovisual no Brasil (Teixeira, 2018).

O que o relato de Teixeira torna patente é que o complexo conjunto normativo


que vem sendo erguido desde 2001 expulsa desse sistema qualquer iniciativa paralela.
A partir do momento em que coloca um projeto no FSA, o produtor o atrela a um


230

conjunto regulatório que traz uma série de exigências que, por sua própria natureza,
afasta o dinheiro privado. O inverso é verdadeiro: quem começa um filme fora do
esquema governamental, se vê depois à deriva. Ou seja, a superproteção, quase como
acontece com um criança em desenvolvimento, dificulta a conquista da autonomia.
O suposto exagero na regulação, apontado pelos agentes de perfil mais liberal
com um entrave ao desenvolvimento do mercado, é uma das questões que também
teoricamente se discute. Benhamou (2004) defende, em seus estudos sobre a economia
da cultura, que o excesso de regulação tende a fazer com que haja uma prevalência dos
interesses dos beneficiários da política sobre os interesses do consumidor. Ou seja, não
é descabido partir da estruturação da própria política para tentar compreender o
descompasso entre produção e público ou, como preferem dizer os que optam pelo
enquadramento econômico, entre oferta e demanda.
Nas entrevistas qualitativas realizadas para este trabalho, a ideia de que o
modelo de financiamento levou a uma certa acomodação foi recorrente. Mesmo Alfredo
Manevy, que após a passagem pelo MinC tornou-se secretário de Cultura do município
de São Paulo e ajudou a formular a Empresa de Cinema e Audiovisual de São Paulo
(SPcine )135, aponta esse efeito colateral das leis:

Acho que as leis de incentivo criaram uma zona de conforto intelectual


e estética para o cineasta que permite a ele fazer o filme que ele quer
sem ser julgado pelo público ou pela crítica. O cinema brasileiro é
independente não no bom sentido, mas no mau sentido. Ele independe
de um debate cultural, então não tem curva de aprendizado. Acho que a
falta de debate cultural faz com que muitos dos nossos cineastas não
tenham um processo de amadurecimento. Temos vários bons cineastas
que estacionaram... Vejo isso como uma consequência da
desarticulação entre a produção e o pensamento cinematográfico
(Manevy, em entrevista à autora, 2014).

A experiência dos atores envolvidos na parte criativa não deve, no entanto, ser
desconsiderada nesta tentativa de se entender a política do cinema a partir das vozes que

135
Criada em janeiro de 2015, no âmbito da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, a SPcine está
voltada, entre outras atividades, ao fomento à produção e ao apoio à exibição. Quando a SPCine foi criada,
Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura do governo Lula e um dos homens à frente da defesa do projeto da
Ancinav, era responsável pela pasta. A empresa nasceu com o apoio da Ancine, então presidida por
Manoel Rangel, e teve como primeiro diretor-presidente Alfredo Manevy.


231

dela participam. O diretor paulistano Roberto Gervitz dá um depoimento que, apesar de
dizer respeito a uma experiência individual, reverbera o sentimento de muitos dos
cineastas brasileiros que buscam manter-se como sujeitos de suas criações ao mesmo
tempo em que tentam atender às determinações do mercado.
Gervitz lançou seu primeiro longa-metragem de ficção, Feliz ano velho, em
1988, com verba da Embrafilme. Dois anos após o lançamento, a Embrafilme foi
extinta. Gervitz ficou 20 anos sem fazer outro longa-metragem. Seu retorno se deu em
2005, com Jogo Subterrâneo. O filme, baseado em um conto de Julio Cortázar, foi visto
por pouco mais de 20 mil pessoas nos cinemas. Seu longa-metragem seguinte, Prova
de coragem, lançado em 2016, com apoio da GloboFilmes, fez 11 mil espectadores –
ocupou, ainda assim, a 49ª posição na listagem dos 155 títulos nacionais que estiveram
em cartaz no ano. Seu relato é revelador da subjetividade dos atores sociais que agem
nesse campo e reproduz um sentimento difuso no meio:

Todos nós vivemos às voltas com nossas frustrações. Eu tenho essa


consciência. Eu já fiz um sucesso [Feliz ano velho fez cerca de 1 milhão
de espectadores136]... A dor, a frustração de fazer um filme que vai mal é
muito grande. Eu acho que a frieza que alguns cineastas têm de falar
que não vão mais fazer cinema tem um lado saudável. Eles estão se
protegendo da frustração. Mas eu tenho 59 anos e não me vejo
recomeçando, fazendo outra coisa. Quero fazer televisão, mas também
não é tão simples entrar. Eu fui forjado para fazer cinema. Não gosto de
me colocar como vítima, mas muitas vezes pensei em largar isso, como
fez o Sergio Toledo137. É por isso que eu ficava contrariado quando o
Jean-Claude [Bernardet] escrevia aqueles artigos falando que os
cineastas se lixavam para o público porque recebiam dinheiro do
Estado. Esse é um pensamento intelectual desvinculado do real. Quem
fala isso não tem noção do sofrimento, da carga de trabalho que se
coloca no filme, no tempo que você despende da sua vida, na energia

136
Não se pode nunca desconsiderar que o público de um filme tem muito a ver também com o momento
econômico que o país atravessa. Feliz ano velho foi lançado em plena crise dos Planos Cruzado e Bresser
e, à altura, o distribuidor Marco Aurélio Marcondes afirmou que, num período “normal”, o filme faria
pelo menos três vezes o público que atingiu.

137
O paulistano Sergio Toledo codirigiu com Roberto Gervitz o documentário Braços Cruzados,
Máquinas Paradas (1979) e dirigiu o longa-metragem de ficção Vera (1986), que obteve relativa
repercussão. Após o fim da Embrafilme, Toledo afastou-se completamente do cinema.


232

gasta no lançamento, na tentativa de fazer com que o filme seja visto,
que encontre seu lugar (Gervitz, em entrevista à autora, 2016).

Gervitz, numa fala sincera, vocaliza algo que se revelou forte nesta pesquisa:
a maioria dos produtores e realizadores busca, pelo menos no nível do desejo, o diálogo
com um público não restrito. A questão do retorno social do dinheiro investido se tornou
algo bastante presente nos anos 2000. A ideia de que os artistas usam dinheiro público
para satisfazer seus caprichos e de que os cineastas defendem o governo petista porque
esse governo lhes assegurou recursos foi se espalhando pelo campo mais conservador
da sociedade. Essa visão monetarista e economicista tendeu, inclusive, a esmaecer as
demais conquistas do cinema contemporâneo brasileiro.
Se o market share atesta uma deficiência da política, a participação dos filmes
brasileiros em festivais internacionais atesta um mérito, ao menos do ponto de vista
artístico e cultural. A política dos últimos 15 anos possibilitou que uma nova geração
de autores se firmasse a partir do universo dos festivais, plataforma importante para os
cinemas nacionais. Jovens realizadores como Gabriel Mascaro, Juliana Rojas, Marco
Dutra, Fernando Coimbra, Júlia Murat, Marcelo Caetano, Caroline Leone e Anita Rocha
da Silveira estiveram em festivais importantes e mantêm uma produção
contínua. Muitos, tiveram seus filmes distribuídos em outros países. Não se pode,
também neste caso, desconsiderar o paralelo entre o cinema e a política mais ampla: nos
anos Lula, o Brasil, tanto em decorrência da própria figura do presidente quanto pelas
ações de política externa, obteve destaque internacional.
Mas a melhor difusão do cinema brasileiro no exterior – as produções do país
não tinham, no conjunto, tanta repercussão internacional desde o Cinema Novo – está
ligada também a medidas específicas. Houve, primeiro, um retorno do interesse do
Itamaraty no cinema nacional 138 e houve, sobretudo, uma política sistemática da
Ancine. Quase todos os diretores citados fizeram seus filmes a partir dos acordos
internacionais de coprodução firmados pela Ancine139; alguns deles foram premiados

138
Em uma tese escrita para o Instituto Rio Branco, a diplomata Paula Alves de Souza analisa o novo
papel do Itamaraty na promoção do cinema brasileiro no exterior. Ver: Paula Alves de Souza, Perspectivas
para a internacionalização do cinema nacional: o papel do Itamaraty. Tese para o LVII Curso de Altos
Estudos. Ministério das Relações Exteriores: Instituto Rio Branco, 2012.


139
As políticas brasileiras para internacionalizar o cinema, com foco nas coproduções Brasil-França, são
abordadas na dissertação As dinâmicas do mercado das coproduções cinematográficas entre Brasil e
França. Ver: Belisa Figueiró, As dinâmicas do mercado das coproduções cinematográficas entre Brasil


233

pelo Prodecine 05, linha do FSA voltada a filmes com propostas de inovação de
linguagem; nenhum faz política de cinema de forma ativa, mesmo sendo alguns deles
altamente politizados no que diz respeito à política macro.
Ou seja, a despeito do discurso econômico, a política da Ancine buscou,
especialmente a partir da Lei 12. 485/11, equacionar filmes com potencial de obter
resultados expressivos nas bilheterias com filmes artisticamente relevantes. Essa
ideologia segundo a qual o filme de autor só é viável se for pensado dentro de uma linha
de produção que inclui o filme comercial, marca da gestão de Rangel, é uma herança de
Dahl - que era, no fundo, um desenvolvimentista:

A indústria cultural atual opera sempre em duas dimensões: aquela da


corrente principal, do estabelecido e aquela da invenção que avança
sobre o novo. Um cinema nacional necessita das duas, e da interação
entre elas. A competitividade no mercado interno se dá a partir de
grandes êxitos comerciais. Mas a competitividade na cena internacional
se dá a partir da audácia, da originalidade em forma e conteúdo, e de
seu reconhecimento. Não há que escolher entre uma e outra. Cinema é
tudo” (Dahl, 2005, p. 24).

Mesmo tendo visto florescer um cinema autoral forte e relevante, o período


estudado foi marcado pela passagem do realizador como figura central do sistema de
financiamento – algo forte entre o fim da Embrafilme e a primeira fase das leis de
incentivo – para a consolidação da figura do produtor. Hoje, há um grupo de produtoras
que trabalham como uma carteira de projetos, ou seja, não produzem apenas um ou dois
filmes por vez, e que, além de receber ideias, as têm. Incluem-se nesse grupo empresas
que, dentro do mercado brasileiro podem ser consideradas grandes140, como Gullane,
RT e O2, em São Paulo, e Lereby, Morena e Conspiração, no Rio de Janeiro. Há, ainda,
empresas que podem ser consideradas médias e que foram fundamentais para o

e França. Dissertação (Metrado). Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Programa de Pós-
Graduação em Imagem e Som, São Carlos: Ufscar, 2017.

140
A divisão entre produtoras pequenas, grandes e médias é complicada dada a diversidade de formas de
atuar. A O2 Filmes é uma empresa grande, com centenas de funcionários, mas atua em áreas que
extrapolam muito o cinema – indo da publicidade à realidade virtual, passando pelo branded content. A
Gullane, que trabalha apenas com longas-metragens e séries, é menor que a O2, mas, só no cinema, é
maior.


234

fortalecimento do segmento art house, como Dezenove, Bananeira e Casa de Cinema
de Porto Alegre.
Essa possibilidade de as empresas trabalharem com variados projetos ao
mesmo tempo está muito ligada à Lei 12.485/11, que possibilitou a produção para a
televisão. A existência de carteiras faz com que, mesmo de forma incipiente, algumas
empresas investissem recursos não incentivados em desenvolvimento de projetos. E o
próprio governo induziu parte desse movimento.
A Ancine, em 2015, publicou uma instrução normativa que regulava o acesso
aos recursos distribuídos e ampliou o teto de captação de R$ 36 milhões para R$ 100
milhões. Em 2014, foi criado o edital de Núcleos Criativos que, em suas três primeiras
edições, contemplou produtoras de 12 Estados – desde Gullane, O2, Conspiração e
VideoFilmes até produtoras iniciantes, como Vermelho Profundo, da Paraíba, Origem,
da Bahia, TV Norte, do Pará. Cabe aqui um parêntese: apesar de regionalização da
produção ser uma meta da Ancine, 85% da atividade continua concentrada no eixo Rio-
São Paulo, onde está estabelecida a maioria dos agentes econômicos, de produtores a
programadoras de tevê paga.
Também em 2014, o BNDES aprovou um novo formato do Programa para o
Desenvolvimento da Economia da Cultura (Procult), combinando recursos não
reembolsáveis (oriundos do Art. 1º da Lei do Audiovisual) e reembolsáveis, a fim de
investir em empresas, e não em projetos. Entraram no Procult a Conspiração (R$ 26
milhões), o Cine Group (R$ 12 milhões) e a Dama Filmes (R$ 4 milhões). E nesse
caminho rumo à capitalização do setor, também no início de 2015, o fundo de
investimento Investimage fez um aporte de R$ 9 milhões em private equity em três
produtoras – Oca, Glaz e BossaNova, todas de São Paulo.
Por trás do Investimage está o francês Thierry Peronne, que participou, na
França, da criação dos Sofica, e que foi um dos artífices da criação dos Funcines no Brasil.
Peronne, diretor-presidente da Investimage Asset Management, gestora do Investimage 1
Funcine, dá uma boa medida das oportunidades e entraves do mercado audiovisual:

Ao criar um mercado que não existia, a Lei da TV Paga mostrou para


todos os players as reais possibilidades do setor. Ganhei mais dinheiro em
três anos trabalhando com televisão do que em 30 anos trabalhando com
cinema. Mas uma dificuldade para investimentos diretos é a estrutura das
empresas de audiovisual do país, ainda não suficientemente maduras em


235

termos de governança. Para os padrões dos investidores, o setor ainda é
excessivamente arriscado e enigmático. Antes de fazer o aporte,
analisamos mais de 50 empresas. O problema ainda são os números
(Perrone, em entrevista à autora, 2015).

Quando Peronne fala em números, ele se refere a problemas relacionados a


gestão, governança e planejamento estratégico e, sobretudo, à alta dependência dos
recursos públicos – algo que, segundo ele, afasta investidores – e à falta de métricas e
parâmetros mais claros.
Apesar de as políticas do FSA terem propiciado uma expansão no número de
empresas, poucas foram as que de fato adquiriram um tamanho que lhes permita ter uma
economia de escala – dentro do que significa escala no cinema. Esse cenário de
pulverização existe, de acordo com Souza (apud Simis, 2008, p. 119), desde a década
de 1930. De acordo com o autor, em 1936, 56,3% dos filmes produzidos concentram-
se em dez produtoras. Entre as dez maiores produtoras, nove estavam sediadas no Rio
de Janeiro; a Rossi-Rex, de São Paulo, era a única exceção. Algumas dessas empresas,
pontua Simis, surgiram após a lei que criou a obrigatoriedade de exibição.
O ranking de produtoras divulgado pela Ancine em 2012 mostrava que dez
empresas – dentre as 400 que captaram recursos entre 1995 e 2012 – concentravam 34%
do financiamento e 61% da renda do cinema nacional. A grande massa de produtoras é
de pequenas empresas, muitas das quais não têm sequer uma sede – o trabalho é feito
de casa ou de um coworking. Se fizer um filme de R$ 2 milhões – valor de uma produção
de pequena para média no Brasil –, uma produtora desse porte consegue, com a taxa de
administração, de 10%, manter-se até que o projeto seguinte vingue. Uma empresa
média, não.
Ou seja, o que se tem é, de um lado, as empresas que eram médias e se tornaram
grandes, como a Gullane (que se aproxima, guardadas as proporções, do perfil de um
produtor norte-americano) e as empresas pequena que não têm sequer um corpo de
funcionários. No meio disso, estão as empresas médias que, tendo permanecido médias,
se tornam economicamente frágeis. Um exemplo de empresa média é a Bananeira
Filmes, de Vânia Catani, que tem uma carteira de 20 filmes, com obras relevantes como
O palhaço, de Selton Mello, A festa da menina morta, que foi selecionado para a mostra
Un Certain Regard, de Cannes, e coproduções internacionais como El Ador (2014), do


236

argentino Pablo Fendrik, e Zama (2017), da também argentina Lucrécia Martel. Vânia
diz que a estrutura atual do mercado coloca em risco empresas como a sua:

O Fundo Setorial não prevê qualquer diferenciação no trâmite para as


produtoras estabelecidas. A cada projeto que apresentamos, somos
avaliados pela Ancine como uma produtora pequena, que está
começando. Eu consigo sobreviver, mas não consigo crescer nem para
comprar uma cadeira. Cheguei a ser procurada por um Funcine, mas
eles queriam que eu fizesse filmes que eu não sei fazer. Eles me
acharam impertinente (Catani, em entrevista à autora, 2017).

A Bananeira, a Dezenone, a República Pureza, de Marcello Maia, e a


Cinemascópio, de Kleber Mendonça Filho, são exemplos de uma nova geração de
produtoras surgidas no bojo da política estudada, que possuem uma identidade artística
clara e obtiveram resultados importantes em festivais, mas que, em termos de negócio,
dependem o FSA. Sim, porque fora do FSA, a captação de recursos mostra-se difícil
para esse tipo de filme.
De 2001 a 2016, poucas empresas mantiveram um apoio constante ao cinema,
via Art. 1º da Lei do Audioviusal. O quadro a seguir, que traz os valores mobilizados
por todos os mecanismos, demonstra que o apoio das empresas se tornou quase
insignificante. A principal movimentação de recursos fora do FSA vem das alianças
com majors (Art. 3º) e com as programadoras e televisões (Art. 3º A e Art. 39) – e
ambas, como se sabe, têm pouco ou nenhum interesse pelo cinema autoral.

TABELA 3. Valores arrecadados por mecanismo (em milhões de reais)

200 200 200 200 201 201 201 201 201 201 2016
6 7 8 9 0 1 2 3 4 5
Art. 1º 56,6 40,6 38 31,5 28,5 24,6 22,8 27 14,8 10,3 9,5
Art. 1º ---- 35,2 49 44,7 68,6 76,6 66,5 71,6 68,2 69,6 65,7
A
Art. 3º 63,4 37,8 32,6 23,5 29,2 18,9 18,3 22 34,4 33 39,9
Art. 3º ---- ---- ---- 2,5 29,1 25,8 15,7 31,5 66,8 91,4 113,
A 2
Art. 39 5,3 21 16,9 11,8 13 20,6 19,6 27,9 60,1 39 59,1
Funcin 3,4 1,9 8,1 1,8 9,7 6,5 1,5 3,3 3,5 13,7 16.9
es
Rouane 41,7 9,1 6,5 8,4 2,8 5,5 2,6 0,58 1,6 1,7 1,5
t


237

TOTA 170 145 151 124 181 178 147 184 249 259 306
L

Fonte: OCA/Ancine

Cabe observar ainda que a soma desses mecanismos é bem inferior à


arrecadação do FSA – que chegou a cerca de R$ 600 milhões em 2016, tendo executado
metade disso. Ou seja, apesar de muitos indicativos terem crescido nestes 15 anos, uma
coisa não cresceu: a possibilidade de alguma autonomia em relação ao Estado.
Retomando os objetivos da MP 2228-1, pode-se dizer, por fim, que se cumpriu
a meta de promoção da cultura nacional por meio dos filmes, fortaleceu-se a produção
independente, mas não se aumentou a competitividade e nem se promoveu a auto-
sustentabilidade do produto nacional. parou aqui
Dentro do setor, mesmo todos tendo consciência de que a produção brasileira,
a depeito dos grandes avanços, não está se completando em sua relação com o público,
poucos falam sobre isso. “Enquanto houver recursos, ninguém vai falar”, vaticina
Escorel (em entrevista à autora, 2016). Nesse pacto de silêncio, os filmes tendem a ser
poupados. A tendência é apontar culpados, que podem ser desde as comissões que
analisam os projetos até os distribuidores e os exibidores, personagens dos próximos
dois tópicos.

4.3 A distribuição: fortalecimento da empresa nacional

Mesmo o espectador comum tende a saber que, para um filme existir, alguém
tem de produzi-lo e algum lugar tem de exibi-lo. Nem todos sabem, porém, que entre
as duas pontas existe um intermediário essencial: o distribuidor, que liga o produtor ao
exibidor. Apesar de ser tão importante quanto os dois outros elos da cadeia
cinematográfica, a distribuição tem um quê de invisível. Na própria narrativa da política
audiovisual seu papel costuma ser o de coadjuvante. A figura-clichê dos produtores que
vivem em busca de recursos e dos exibidores que só pensam no caixa tem muito mais
apelo do que a do distribuidor que comercializou o filme.
O papel do distribuidor é, em poucas e palavras, definir, sempre ao lado do
produtor, como se dará o lançamento de um título. Ele pode tanto comprar os direitos
de distribuição de um filme já concluído quanto entrar num projeto desde a sua origem.


238

Filme pronto, o distribuidor deve cuidar da promoção do filme e colocá-lo nas salas de
exibição – antes do digital, tinha também de custear as cópias em 35 milímetros.
Quando se estuda a política audiovisual brasileira, o distribuidor é uma figura
pouco presente. Não se trata de acaso ou de destino. É que, de fato, pela própria natureza
da atividade e pelos altos e baixos das empresas nacionais, esse setor sempre foi menos
articulado que o setor da produção, organizado em torno do pleito por recursos, e que o
setor da exibição, que, historicamente, mobiliza-se para combater a cota de tela e outras
formas de regulação.
Não à toa, tem um quê de narrativa de cavaleiro solitário o depoimento de
Bruno Wainer, distribuidor que, no início dos anos 2000, passou a brigar pelo seu
quinhão nas políticas públicas e cuja empresa ocupa, desde 2011, o primeiro lugar no
ranking dos filmes nacionais:

Tem um momento preciso em que a minha ficha caiu, e que eu entendi


que precisava defender meu ponto de vista. Foi em 2002, quando a
[distribuidora] Lumière [que atuava em parceria com a norte-americana
Miramax] distribuiu 50% da bilheteria do cinema brasileiro, com
Cidade de Deus e outros141. Naquele momento, dei uma entrevista para
o Filme B dizendo que eu estava inquieto com o futuro do cinema
brasileiro porque não se previa, na política, o fortalecimento das
distribuidoras locais. Eu tinha me dado conta de que o Art. 3º [da Lei
do Audiovisual] estava errado. A gente precisava criar, no mínimo, uma
isonomia para os distribuidores que não eram majors. Até aquele
momento, havia uma certa aliança entre os grandes produtores do
cinema brasileiro e os executivos [das majors] que eram ex-
142
funcionários da Embrafilme . Qualquer discussão sobre isso
incomodava o status quo. Porque aquilo estava funcionando pra eles.
Eu era um intruso na festa. Ninguém gosta de ver alguém que não faz
parte da confraria falar alguma coisa que incomoda (Wainer, em
entrevista à autora, 2014).

141
Em 2002, com Cidade de Deus, Abril Despedaçado, de Walter Salles, e Surf Adventures, de Arthur
Fontes, a Lumière alcançou, em 2002, 55% do market share de distribuição de filmes nacionais.

142
Wainer refere-se, especialmente, a Rodrigo Saturnino Braga, da Columbia Pictures, e a Jorge
Peregrino, da Paramount, que trabalharam na Embrafilme.


239

No momento relatado por Wainer, que coincide com o início desta pesquisa, o
cenário da distribuição nacional era de poucas empresas, quase todas de estrutura
familiar. Em 2001, havia cinco distribuidoras nacionais atuando no mercado. No ano
anterior à criação da Ancine, as majors lançaram oito dos 23 títulos nacionais,
abocanhando 93% da bilheteria. No período de 1995 a 2002, dos 12 filmes que fizeram
mais de um milhão de espectadores, oito foram distribuídos por Warner, Columbia e
Fox. A partir da criação da Ancine, essa situação foi mudando. Tanto que, como mostra
a tabela abaixo, entre as 20 maiores bilheterias brasileiras nos anos 2000, há, sobretudo,
títulos distribuídos por empresas brasileiras. Mas não por várias, e sim por duas: a
Downtown, de Wainer, e a Paris Filmes, de Márcio Fraccaroli, que atuam de forma
conjugada desde 2011. O consórcio é o primeiro player nacional de grande envergadura
no campo da distribuição, tendo um poder só comparável ao da distribuidora
Embrafilme - que, detalh, era estatal:

TABELA 4. As 20 maiores bilheterias de 2001 a 2016

TÍTULO DISTRIBUIDORA ANO PÚBLICO


1 Os dez mandamentos – o filme Downtown/Paris 2016 11.261.270
2 Tropa de elite 2 Zazen/RioFilme 2010 11.204.815
3 Minha mãe é uma peça 2 Downtown/Paris 2016 9.311.431
4 Se eu fosse você 2 Fox 2009 6.137.345
5 Dois filhos de Francisco Sony 2005 5.319.677
6 De pernas pro ar 2 Downtown/Paris 2012 4.794.658
7 Carandiru Sony 2003 4.693.853
8 Minha mãe é uma peça – o filme Downtown/Paris 2013 4.604.505
9 Nosso lar Fox 2010 4.060.000
10 Até que a sorte nos separe 2 Downtown/Paris 2013 3.988.386
11 Se eu fosse você Fox 2006 3.780.941
12 Loucas para casar Downtown/Paris 2015 3.779.702
13 De pernas pro ar Downtown/Paris 2011 3.563.723
14 Até que a sorte nos separe Downtown/Paris 2012 3.435.824
15 Chico Xavier Downtown/Sony 2010 3.141.900
16 Cidade de Deus Lumière 2002 3.370.871
17 Até que a sorte nos separe 3 Downtown/Paris 2015 3.329.770
18 Vai que cola H2O 2015 3.317.275
19 Lisbela e o prisioneiro Fox 2003 3.174.643
20 Meu passado me condena Downtown/Paris 2013 3.171.446

Fonte: OCA/Ancine

Apesar de haver, em 2016, cerca de 39 distribuidoras registradas na Ancine, o


consórcio Downtown/Paris respondeu por 80% do market share do ano. Como mostra


240

a tabela abaixo, nada menos que sete dos dez filmes mais vistos em 2016 foram lançados
pela dupla Wainer/Fraccaroli:

TABELA 5. Os dez maiores sucessos de 2016 por distribuidora

TÍTULO DISTRIBUIDORA
1 Os dez mandamentos – o filme Downtown/Paris
2 Minha mãe é uma peça 2 Downtown/Paris
3 Carrossel 2 – o sumiço de Maria Joaquina Downtown/Paris
4 É fada! Imagem
5 Tô ryca! Downtown/Paris
6 Um Suburbano Sortudo Downtown/Paris
7 Vai que dá certo 2 Imagem
8 Um namorado para minha mulher Downtown/Paris
9 O Vendedor de sonhos Warner
10 O Shaolin do sertão Downtown/Paris

Fonte: OCA/Ancine

O consórcio Downtown/Paris é aquilo que, internacionalmente, costuma se


chamar de mini major. São empresas de capital nacional que reproduzem o modo de
ação das majors: pragmatismo, visão de resultados, poder de negociação. Nesse caso, a
“independência” os coloca num lugar privilegiado dentro do campo. Mas como foi que
Wainer, do ator que lutava contra a dominação estrangeira e se sentia excluído do
campo, passou a dominar o mercado?
Como deixou claro em sua fala, Wainer quebrou a lógica do campo, primeiro,
ao ir fazer política sozinho, pedindo audiências individuais no MinC e na Ancine. O
marco político de sua trajetória é o ano de 2006, quando a Ancine começou a se
estruturar e novas medidas legais foram sendo desenhadas. Nesse ano, Wainer pôs fim
à Lumière e criou a Downtown, dedicada a trabalhar exclusivamente com filmes
nacionais. Na entrevista ao Filme B que menciona acima, Wainer afrontou uma situação
estabelecida. Ele passou a questionar o fato de, em decorrência do Art. 3º da Lei do
Audiovisual, a capacidade de investimento em distribuição estar nas mãos dos
conglomerados multinacionais: “Por mais que as majors tenham interesse nos filmes
brasileiros, e têm, o Superman vai ser sempre mais importante. Essa é uma das razões
pelas quais o cinema nacional avançou até um certo ponto e não passa disso” (Wainer,
apud Sousa, 2006b).


241

O discurso ecoava, sem laivos de anticapitalismo, a ideia do cinema estrangeiro
como um suposto amigo do qual se deve desconfiar. Essa ideia remonta, inclusive, aos
escritos de Paulo Emílio, que já dizia que, ao se aproximar do cinema nacional, as
majors buscavam propiciar um “clima de entendimento” (Arthur, 2013, p. 273). O
investimento, afinal de contas, era sem risco e as empresas podiam, de quebra, obter
algum lucro, como foi o caso Brasa Dormida (1928) e Barro Humano (1929), de
Adhemar Gonzaga, lá atrás, e de Cidade de Deus e Carandiru, nos anos 2000.
A fala de Wainer reverberava ainda uma proposta apresentada no III CBC: a
de que só distribuidoras nacionais operassem com filmes brasileiros. A fala de Wainer,
ao ressignificar um discurso nacionalista a partir de uma perspectiva de mercado, deve
ter calado fundo em Manoel Rangel. Cabe lembrar que Rangel, nesse momento, era
diretor da Ancine e cuidava, internamente, da formatação do PAR que viria a beneficiar
os distribuidores143.
Se o principal aliado de Wainer passou a ser Rangel, seu principal opositor foi,
nesse curto período, Rodrigo Saturnino Braga. “Quando o market share do cinema
nacional cresce, a situação do cinema americano também melhora. Cinema é hábito”,
argumentava o executivo da Columbia (Braga, apud Sousa, 2006b). Segundo ele, se o
cinema brasileiro não avançava mais não era porque havia um boicote das majors: “O
problema do cinema brasileiro (...) é fazer filmes que o público quer ver”.
Para se compreender o papel de Braga nessa discussão é preciso lembrar que,
no período pós-retomada, a única empresa que aderiu ao Art. 3º foi a Columbia.
Segundo Ikeda (2015), ela foi a única utilizar o incentivo fiscal entre 1995 e 1998.
Houve algumas razões para isso. Em primeiro lugar, não se pode desconsiderar a relação
próxima de Saturnino com alguns produtores, algo que facilitava o diálogo. Depois,
tratava-se também de seguir uma política internacional da empresa, que fazia
associações semelhantes em outros países. E, de acordo com Ikeda (2015), havia ainda
uma terceira razão, essa de ordem estritamente financeira. A Columbia, naquele
momento, vinha sofrendo uma série de prejuízos, o que fazia com que, diferentemente
do que acontecia com outras companhias, não pudesse usar os benefícios dos tax credit.

143
No PAR Distribuição, ao contrário do que acontece com o PAR Produção – destinado apenas
a obras que fazem mais de 150 mil espectadores –, todas as empresas distribuidoras são elegíveis,
independentemente do resultado obtido nas bilheterias. A concessão do prêmio leva em conta o número
de espectadores obtidos pelo conjunto de obras distribuídas – o que induz o mercado a distribuir também
filmes pequenos.


242

De acordo com a MP 2228-1/01, os valores pagos de Condecine podiam ser deduzidos
como tax credit nos países de origem; mas, no caso da Columbia, como não havia
lucros, não havia o que deduzir.
Nesse período, a Columbia alocou recursos do Art. 3º em filmes como Tieta
do Agreste (1996), de Cacá Diegues, Buena Sorte (1996), de Tania Lamarca, Guerra de
Canudos (1997), de Sergio Rezende, e O que é isso, companheiro? (1997), de Bruno
Barreto. Como se disse no capítulo 2, o desinteresse das majors pelo mecanismo só foi
revertido a partir da edição da MP 2.228-1/01, que criou uma taxa extra a ser paga pelas
empresas que não usassem o mecanismo.
Para evitar o pagamento dos 11% sobre a remessa de lucros, já em 2003 Fox e
Warner aderiram ao mecanismo, lançando, respectivamente, Lisbela e o Prisioneiro, de
Guel Arraes, e Xuxa Abracadabra. Nesse mesmo ano, a Columbia colocou três longas-
metragens nas salas de cinema: Carandiru, Deus É Brasileiro, Didi, o cupido Trapalhão
e Maria, mãe do filho de Deus. Os seis filmes lançados pelas majors bateram a marca
de um milhão de espectadores. Conforme analisou Ikeda (2015), dentre os 20 filmes
com maiores bilheterias produzidos entre 1995 e 2009, 18 tiveram dinheiro do Art. 3º –
os outros dois foram produzidos pela GloboFilmes. Cabe sublinhar que o mecanismo
garante, além da distribuição, a receita de produção e aquisição dos direitos
patrimoniais. O dinheiro para o lançamento deve vir das próprias majors.
Após comparar o desempenho dos filmes feitos com Art.3º com o dos filmes
realizados a partir do Art. 1º, ou seja, com o apoio de empresas privadas ou estatais,
Ikeda levantou a seguinte hipótese:

Essas empresas [patrocinadoras] por não conhecerem as


particularidades do complexo processo de produção de uma obra
audiovisual de longa-metragem, têm menor possibilidade de selecionar
projetos de fato competitivos, preocupando-se mais com o benefício
fiscal em si do que com a possibilidade de retorno comercial da obra.
Além disso, as empresas estatais podem ser mais suscetíveis a
influências de critérios políticos, e não eminentemente técnicos ou
mercadológicos, na seleção de seus projetos (Ikeda, 2015, p. 86).

A presença das distribuidoras internacionais (via Art. 3º) foi, ainda segundo
Ikeda (2015), determinante para que aumentasse o interesse da GloboFilmes no cinema.


243

E foi, ao mesmo tempo, a possibilidade de mídia televisa, que potencializou os
lançamentos das majors:

(...) o Art. 3º da Lei do Audiovisual foi o mecanismo que melhor


cumpriu as premissas da política de base industrialista, que regeu a
lógica da criação das leis de incentivo fiscal, em vistas da ocupação de
um mercado interno, associando produção e distribuição para a
elaboração de produtos competitivos. Com a promoção de mídia e a
expertise da Globo Filmes, essa receita gerou frutos duradouros (Ikeda,
2015, p. 95).

Ikeda, apesar de constatar os bons resultados, não descarta que o fato desse
processo de crescimento do mercado para o filme nacional ter sido liderado por
distribuidoras estrangeiras tenha limitado o avanço do cinema brasileiro. Volta-se assim
à tecla na qual Wainer bate: o principal produto dessas empresas era o filme estrangeiro.
Os anos foram, no entanto, mostrando ser problemática essa hipótese. A pesquisa de
Ikeda vai até 2009, ou seja, ela antecede o monopólio Downtown/Paris, que substituiu
as majors na liderança, mas manteve intacta a estrutura do mercado – com os ingressos
concentrados nuns poucos filmes. Mas o fato é que a hipótese de Ikeda era, na época,
partilhada por Manoel Rangel e sensibilizava os produtores que não conseguiam se
associar aos midas de então – as majors. Wainer sentia-se, enfim, ouvido e
compreendido:

O Manoel ouviu muito mais o meu discurso e fez muito mais em prol
dele do que o Gustavo [Dahl]. Porque o Gustavo estava tão abraçado
com a turma dele de cinema, de antigamente, que não conseguia ouvir.
O Manoel deu as primeiras aberturas para que eu tivesse o que tenho
hoje. Ele criou o Prêmio Adicional de Renda para distribuidores
independentes – as majors não podiam concorrer. Já foi um primeiro
dinheirinho que veio para a nossa mão. E, para mim, o grande momento
da virada foi quando ele mudou a regra do Funcine (Wainer, em
entrevista à autora, 2014).

A mudança a que se refere Wainer é aquela citada no tópico 3.3 – feita no bojo
da Lei 11.437/06. A nova lei passou a prever a isenção de 100% do imposto de renda
para investimentos nos Funcines – antes, para usar o benefício, a empresa era obrigada


244

a colocar também dinheiro próprio na operação. Até 2008, apenas um Funcine foi criado
no Brasil, o RB Cinema 1, administrado pela Rio Bravo, companhia criada por Gustavo
Franco, ex-presidente do Banco Central. O RB Cinema 1 injetou R$ 1 milhão em filmes
como O maior amor do mundo (2006), Querô (2007), O ano em que meus pais saíram
de férias (2007) e Desafinados (2008). Apenas O ano em que meus pais saíram de férias
deu retorno financeiro. E se isso aconteceu é porque, graças à participação em Berlim,
o filme conseguiu ser vendido para vários países.
Após a mudança no teto de isenção, o cenário mudou. Em 2008, havia quatro
Funcines cadastrados na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), com um patrimônio
total de R$ 32,6 milhões. Entre eles, estava o fundo Lacan-Downtown, destinado à
distribuição de filmes brasileiros. Esse Funcine, anunciado então como uma nova
alternativa para se colocar filmes brasileiros nas telas, recebeu R$ 8 milhões do BNDES
e captou mais R$ 4,6 milhões com dez empresas, todas estreantes no audiovisual.
“Minha responsabilidade é oferecer o maior retorno aos investidores. Estou buscando o
melhor negócio possível”, dizia Wainer (Wainer, apud Sousa, 2008).
Em 2009, três anos após a criação do PAR e a mudança no Funcine, já eram
35 as distribuidoras atuantes no mercado. Mas a grande mudança era na divisão do bolo:
as empresas nacionais distribuíram 87% dos títulos lançados mercado; as majors, 10%;
a distribuição própria correspondeu a 3%. Ainda cabiam, porém, às majors, os
lançamentos de sucesso. Os dois filmes mais vistos nesse ano foram lançados por
subsidiárias norte-americanas: Se eu fosse você 2 (Fox) e A mulher invisível (Warner).
Mas as empresas nacionais vinham logo atrás, com Os Normais 2 (Imagem) e Divã
(Downtown). O jogo começava a ser alterado.
Em 2010, o grande campeão nas bilheterias, Tropa de Elite 2, teve distribuição
própria, pela Zazen, produtora do filme; Chico Xavier (3,4 milhões de ingressos), o
segundo filme nacional mais visto, foi lançado numa parceria dos antes rivais Wainer e
Braga; o terceiro mais visto, Muita calma nessa hora 2 (1,3 milhões de ingressos), por
Europa e Rio Filme. A fatia das majors começava a afinar.
A virada definitiva se daria, porém, em 2011. Nesse ano, as distribuidoras
nacionais abocanharam mais de metade do mercado: juntas, Downtown, Paris, Imagem
e RioFilme tiveram um market share de 57,2%. Entre 2000 e 2009, de acordo com o
levantamento feito por Reis e Silva (2012), 60% dos 30 filmes mais vistos foram
distribuídos por Columbia (26,71%), Warner (20%) e Fox (16,67%).


245

Em 2011, foi implantada a linha C do FSA, voltada para o investimento na
aquisição de direitos de distribuição de longas-metragens – o aporte é na produção, mas
via distribuidoras. Um estudo feito por Camargo (2012) mostra que as três obras
selecionadas pela primeira edição da linha C representaram 59,3% das receitas obtidas
pelo conjunto das obras selecionadas pelo FSA que tiveram lançamento comercial
naquele ano. A hipótese do autor é que, pelo fato de, no nascedouro, os projetos dessa
linha passarem pelo filtro dos distribuidores, eles “naturalmente já contêm um potencial
comercial” (Camargo, 2012, p. 154). Dentre os filmes feitos a partir dessa linha estão
os sucessos Minha mãe é uma peça, Até que a sorte nos separe, De pernas pro ar,
Cilada.com e O palhaço.
Ao mesmo tempo em que crescia o poder de fogo das maiores distribuidoras
nacionais, iam surgindo inúmeras pequenas empresas, responsáveis por colocar no
mercado uma grande massa de filmes que parecem destinados à invisibilidade.
Enquanto, em 2010, 43 filmes ficaram na faixa de até 10 mil espectadores, em 2011,
esse número já era de 61 títulos; em 2016, 97 filmes venderam menos de 10 mil
ingressos nos cinemas. Como mostra o gráfico abaixo, quanto mais filmes foram sendo
feitos, mais filmes foram ficando no limbo. Em outras palavras: enquanto o número de
blockbusters nacionais permaneceu mais ou menos estável no período, o número de
filmes pequenos explodiu:

GRÁFICO 9. Número de filmes por faixa de público

Fonte: Filme B


246

Um dado que chama negativamente a atenção é o fato de, nesse processo, os


filmes autorais com potencial para estabelecer um diálogo com uma plateia não restrita,
foram vendo seu público encolher. O público alcançado por filmes como Bicho de sete
cabeças, de Laís Bodanzky (400 mil espectadores, em 2001), O homem que copiava
(664 mil espectadores, em 2003), de Jorge Furtado, que repercutiram na imprensa e
tiveram boca-a-boca, seria inimaginável hoje. Filmes autorais, lançados com poucas
cópias, como Amarelo Manga (2003), de Cláudio Assis, Madame Satã (2001), de Karim
Ainouz, e O invasor (2001), de Beto Brant, fizeram mais de 100 mil espectadores. Tais
marcas parecem ter ficado no passado.144
Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, e Que horas elas volta (2015),
de Anna Muylaert, dois filmes que conseguiram cavar espaço nos mais importantes
festivais do mundo (Cannes e Berlim, respectivamente) e tiveram repercussão no país,
fizeram 358 mil e 478 mil espectadores. A animação O menino e o mundo (2015), de
Alê Abreu, que venceu o Festival de Anecy e foi indicada ao Oscar, foi vista por 70 mil
pessoas nos cinemas brasileiros; O lobo atrás da porta (2014), de Fernando Coimbra,
que percorreu uma trajetória de festivais que incluiu San Sebastian e Toronto, 30 mil;
Branco sai, preto fica (2015), que saiu consagrado do Festival de Brasília, assim como
havia acontecido com O invasor, fez 18 mil espectadores. Mas há exceções, é claro.
Uma delas é Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, que aproveitou uma base de fãs conquistada
pelo curta predecessor na internet e, tendo sido lançado em 38 salas, conseguiu
ultrapassar a marca de 200 mil espectadores.
Jean-Thomas Bernardini, que distribui e exibe filmes autorais brasileiros e
estrangeiros, acha que, parte dessa fuga do público se deve não só às novas formas de
consumo, mas, no caso do cinema nacional, à própria abundância:

O excesso, e o grande número de filmes ruins que estreiam, faz mal para
a produção como um todo. Isso aconteceu com o cinema francês num
período; aconteceu com os filmes iranianos no Brasil. Todo o país
produz filmes que não interessam ao público – isso é o normal – e o

144
Cabe registrar que essa diminuição no número de espectadores se estende ao circuito de arte como um
todo. Os filmes estrangeiros do segmento art house também viram seu público encolher. Apenas a título
de exemplo: em 2002, Woody Allen vendeu 170 mil ingressos no circuito brasileiro com Trapaceiros; em
2017, Roda Gigante foi visto por 63 mil pessoas. Detalhe: o circuito, nesses 15 anos, passou de 1,6 mil
para 3,2 mil salas.


247

mercado acaba por regular isso. Mas aqui, não existe essa regulação do
própria mercado. Com a cota de tela, você é obrigado a colocar em
cartaz alguns filmes que, sem a obrigação, não colocaria; e é como você
fazer uma confeitaria e ter que colocar, no meio, um doce ruim. Se a
pessoa pegar um doce e achar ruim, não volta. Esse excesso está
atrapalhando os bons filmes brasileiros também (Bernardini, em
entrevista à autora, 2018).

A questão é que, antes, os filmes eram feitos e não estreavam – esse era o
problema a ser resolvido. No primeiro semestre de 2006, havia 365 longas-metragens
em produção, sendo que 337 deles não tinham acordo de distribuição. Rodrigo
Saturnino Braga perguntava, então, se não seria o caso de se atrelar o dinheiro para a
produção à certeza de distribuição; ou seja, apenas os projetos que comprovassem,
previamente, que uma empresa desejava distribuí-los deveriam receber os recursos para
sua realização. Braga, insistindo na ideia do “nó da distribuição”, dizia que se sentia
como em 1982, quando trabalhava na Embrafilme.

Quando vejo esse clima de ‘o cinema está em crise’, parece que estou
naquela época, quando as receitas da Embrafilme começaram a
diminuir e os produtores acusavam a empresa de não distribuir os seus
filmes. Mas não adianta: certos filmes não têm potencial para cinema”
(Braga apud Sousa, 2005c, p. 81).

Com o FSA, isso mudou. Seja pela associação prévia com um distribuidor, via
Linha C, seja por um acordo com uma empresa pequena ou mesmo por meio da
distribuição própria, hoje todos os filmes estreiam. Mas o mercado não necessariamente
os comporta. Há, além da Linha C, que prevê a aquisição de direitos, a Linha D, voltada
exclusivamente à comercialização de filmes de baixo e médio orçamento. As empresas
recebem, do governo, R$ 200 mil para o lançamento dos filmes. A obrigação é uma só:
lançá-los em, no mínimo, dez salas. A ideia por trás dessa linha é que, sem capital de
giro, as pequenas empresas não têm como fazer investimento em P&A e que, com a
obrigação de colocar o filme em dez salas, amplia-se a presença do filme nacional no
mercado. Mas, na prática, como demonstra Bernardini, não é tão simples assim:


248

O lobby dos produtores sempre teve muita força no Brasil. E o que eles
querem? Dinheiro para produzir. O dinheiro veio, e aí você tem um
montão de filmes que não querem dizer nada. O mercado cresceu de
forma muito rápida, e foi aparecendo todo tipo de filme, um monte mal
feitos. E isso é normal. Mas, na França, quando um produtor faz um
filme ruim, ele não acha distribuidor. Isso é uma regulação do próprio
mercado. Aqui, o cara faz um filme e é obrigado a estreá-lo em sala. Aí
ele não acha distribuidor porque o filme não interessa – essa seria a
regulação do mercado. Mas ele começa a ligar para os amigos: “Me
ajuda, cara!”. Cada um tem um argumento para colocar seu filme no
circuito – em geral, são argumentos que não têm nada a ver com o filme.
Muitas vezes, o distribuidor diz sim para não perder nem a amizade nem
um negócio futuro. Depois, o exibidor faz a mesma coisa: coloca o filme
numa sessão, no meio da tarde, só para não dizer não. Mas do que
adianta colocar um filme de arte, brasileiro, em dez salas em qualquer
horário ou em qualquer lugar? (Bernardini, em entrevista à autora,
2018).

Esse incentivo direto, sem necessidade de retorno para o governo, é uma


novidade. E, de certa forma, vai contra a natureza da própria atividade. A vocação dos
distribuidores independentes é, mundialmente, atuar como exploradores de novos
nomes e de pérolas escondidas. Cabe a eles revelar filmes que, talvez, passassem
despercebidos. Foi o caso, no Brasil, de Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo
Gomes, um dos primeiros filmes nacionais distribuídos pela Imovision, e de O som ao
redor (2012), distribuído pela Vitrine. Ambos os filmes tinham sido recusados por
distribuidoras grandes antes de chegar às duas empresas. Imovision e Vitrine, graças ao
faro de seus donos, acabaram tendo retorno financeiro. E volta-se, neste ponto, à questão
do subsídio.
Uma coisa importante a ser dita é que a distribuição formatou-se, no Brasil, a
partir das majors. Internacionalmente, o setor de distribuição é visto como um elo frágil
da cadeia, que precisa de auxílios para trabalhar filmes que o mercado, por sua
configuração, pode rejeitar. O apoio é, portanto, comum em países como a França e tem
sentido dentro da lógica do mercado de cinema. A questão é que, no Brasil, o “auxilio”,
a exemplo do que aconteceu com a produção, virou “necessidade básica”; sem ele,
algumas empresas não sobrevivem.


249

Silvia Cruz, criadora da Vitrine Filmes, dedicada a títulos brasileiros de perfil
autoral, diz, com todas as letras, que ter o FSA “significa continuar existindo”. Sua
empresa distribuiu, desde 2010, cerca de 20 filmes, dentre os quais Aquarius (2016) e
Branco Sai Preto Fica (2014). Desses, 15 tiveram dinheiro do FSA:

Só ano passado [2015], fomos contemplados seis vezes. Por conta do


FSA, as distribuidoras brasileiras independentes podem investir
também na produção de um filme [entrando no projeto desde o roteiro].
Isso não só agiliza o tempo de financiamento da produção como nos
permite competir de igual para igual com as majors. No caso dos filmes
pequenos, a gente usa a verba de P&A para levar o diretor para fazer
debates em dez cidades, conversar com o público. Se você trabalha com
cinema de autor, o autor é o que você tem para vender. Outra coisa que
a gente percebe é que a pessoa não vai sair de casa para “arriscar” –
pagar ingresso com tanto filme e série disponível em casa. E aí eu
penso: se eu trabalho com filme que já tem subsídio para ser produzido,
por que não ter subsídio para ser exibido? Eu posso usar parte do
orçamento de distribuição para fazer com que o filme chegue mais
barato, para fazer ação promocional, para fazer um acordo com o
cinema e, na primeira semana, pagar um outro preço (Cruz, em
entrevista à autora, 2016).

Ou seja, a distribuição, tradicionalmente a atividade de maior risco financeiro


dentro da cadeia do audiovisual – uma vez que a verba de lançamento sai do distribuidor
e que ele só terá o dinheiro de volta se o filme der retorno de bilheteria –, também passou
a ser, no caso dos filmes pequenos, uma atividade isenta de risco. Nos grandes
lançamentos, o distribuidor ainda coloca dinheiro; nos pequenos, usa-se os R$ 200 mil
do FSA e joga-se o filme aos leões.
Nesses casos, o distribuidor não devolve dinheiro para o FSA, uma vez que
não tem lucro, nem remunera o produtor, uma vez que o dinheiro arrecadado nas
bilheterias não cobre os gastos de lançamento. Cabe aqui fazer um esclarecimento: o
produtor só recebe dinheiro do distribuidor depois de os custos de lançamento terem
sido cobertos pela renda. Isso significa que mesmo que um filme venda um milhão de
ingressos, o produtor pode não receber nada de volta. Quanto mais alto o orçamento de
um filme, maior precisa ser o lançamento para que a conta feche. E o segredo da


250

distribuição não é lançar o filme no maior tamanho possível, mas sim lançá-lo no
tamanho certo, para que a renda possa superar os gastos de lançamento.
A ausência da necessidade de recuperar o dinheiro colocado no lançamento
cria distorções também nesse elo da cadeia – que acaba por replicar o inchaço e o
isolamento da produção. Para cumprir as exigências da Ancine, o distribuidor lança,
com 100 cópias, filmes que caberiam num circuito de, no máximo, 30 salas, por
exemplo. Mas como o dinheiro do lançamento é subsidiado e o distribuidor não depende
do retorno da bilheteria para não ficar no vermelho, essa conta se torna desnecessária.
Trocando em miúdos: a política de Estado, além de garantir a produção,
garante hoje também a distribuição de filmes que o mercado rejeita. A imagem
hiperbólica utilizada por Calil, de agentes da Ancine puxando espectadores para dentro
das salas, sintetiza esse paradoxo:

A produção de 140 filmes por ano é um absurdo. Eu tenho uma


estatística, de 1985 ou 1986, de que, dos 100 filmes que se produziram
nessa época, cerca de 30 tinham algum grau de investimento público;
os outros 70 eram pornochanchadas. A pornochanchada era um filme
contratado com valor fixo, que remunerava as pessoas com salário
aviltado, e o produtor que se virasse. Dos filmes feitos com dinheiro
público, meia dúzia conseguia alguma presença no mercado – isso é
histórico. Os outros vinte e tantos filmes ajudavam a constituir um
volume, uma presença sem gerar renda. Agora 140? Isso é fazer filme
para a Cinemateca. Esses filmes, simplesmente, não vão para o
mercado. Você pode dizer: “Ah, agora tem outros consumos, outras
mídias... Francamente, a gente sabe que não, que não tem. O cinema
brasileiro não é competitivo e, por isso, fica se apoiando no
Estado. Hoje, tudo no cinema brasileiro é absolutamente pago pelo
Estado. Isso é o fim do horizonte de sustentabilidade. Só falta a Ancine
contratar agentes que se postariam na frente dos cinemas a oferecer
R$ 20 para o passante entrar no cinema e ver um filme brasileiro (Calil,
em entrevista à autora, 2016).

Isso, enquanto sala de cinema houver.

4.4 Exibição: um mundo em desconstrução


251

O cinema, desde os irmãos Lumière, é feito para ser visto. A existência de um


filme se completa quando ele cria uma demanda, cumprindo assim o que Creton (1997)
chama de dupla exigência: simbólica e mercadológica. Historicamente, a projeção é
uma condição técnica e econômica para a existência da obra.
Como diz Creton (1997), o cinema é, em sua essência, uma produção fordista,
ou seja, se caracteriza por uma produção de massa destinada a um consumo de massa.
Segundo o autor, o cinema está ligado à passagem de uma época na qual as diferentes
classes sociais consumiam diferentes estilos de arte para uma época na qual as obras
devem ser consumidas pelo maior número possível de pessoas: “O cinema se constitui
como um vetor essencial da passagem de um mundo ao outro” (Creton, 1998, p. 28). É
preciso um público grande para que se cubram os custos de uma grande produção. Hoje,
no caso dos blockbusters norte-americanos, esse público tem escala mundial.
O que faz um cinema dar lucro é uma sala cheia; o que enche uma sala é a
demanda, é o desejo de consumo; e esse desejo, como em todos os setores, está ligado,
entre outras coisas, ao marketing e à criação de um interesse coletivo. Um aspecto
específico desse consumo, ainda segundo Creton (1997), é que se trata de um consumo
não utilitário, mas afetivo. Quer queira, quer não, os consumidores aos quais o cinema
norte-americano seduz têm forte influência sobre a regulação do mercado cultural. Ou
seja, a despeito das características específicas do Brasil, a verdade inexorável é que o
mercado mundial de cinema, salvo exceções, está formatado para receber o produto
norte-americano, que, cada vez mais, tem no filme um vetor para outros negócios, que
vão de licenciamento de produtos e parques temáticos.
No caso do Brasil, a primeira coisa a ser dita é que muito antes de o conceito
de blockbuster existir, o setor de exibição, apesar de ter sido formado por empresários
brasileiros e por capital nacional, sempre deveu sua lucratividade aos filmes importados
Desde a primeira metade do século XX, esses filmes se pagavam no mercado de origem
e, portanto, podiam ser oferecidos ao exibidor em condições vantajosas (Autran, 2013).
O produto nacional, por sua vez, precisava se pagar aqui.
O desequilíbrio de forças entre o cinema importado e o cinema local fez com
que, ainda na primeira década do século XX, começasse a ganhar corpo, via imprensa,
a defesa do aumento de impostos para os donos de salas de cinema que não
programassem títulos brasileiros (Bernardet, 2009). Em 1932, estabeleceu-se a
metragem de filmes nacionais a serem exibidos mensalmente nas telas de cinema. Já


252

então, os exibidores atacavam fortemente a medida, alegando que não havia filmes em
quantidade suficiente para cumprir a cota. Em 1936, das 1.750 salas existentes, apenas
471 cumpriam o decreto (Simis, 2008, p. 114). As regulamentações relativas à
obrigatoriedade se sucederam pelas oito décadas seguintes.
Em 1951, os exibidores passaram a ser obrigados a comprovar o cumprimento
da cota. No ano seguinte, Luiz Severiano Ribeiro, dono do grupo Severiano Ribeiro,
que surgiu na década de 1920, associado à Metro Goldwyn Mayer, afirmava, quase
como se fosse hoje:

E é bom notar que o nível da produção no Brasil é ainda baixo e,


portanto, os produtores estão sempre a querer impingir películas
refutadas pelas plateias, mediante apoio de leis que, às vezes, pretendem
proteger o cinema brasileiro e o protegem, mas muitas vezes só servem
para garantir filmes sem possibilidade de êxito (Ribeiro, apud Autran,
p. 311).

A suposta má vontade do exibidor para com o produto nacional foi enfrentada,


em 1977, com a “lei da dobra”, que estabeleceu que o filme brasileiro não podia ser
retirado de cartaz caso igualasse ou superasse a média de frequência semanal da sala.
Mais adiante, passou a ser obrigatória a exibição de um curta-metragem nacional antes
das sessões – medida que levou os exibidores a impetrar mandados de segurança. Na
guerra entre produtores e exibidores, os primeiros sempre se colocaram como vítimas e
os segundos, no âmbito da política de cinema, sempre receberam a pecha de vilões.
Mas, com o passar dos anos, até mesmo alguns “mocinhos” passaram a defender aqueles
que antes trataram como algozes:

Eu tenho certa idade, já perdi muitas das ilusões míticas. Por exemplo:
o exibidor não é vilão, ele é escravo dos americanos. Eu ouvi uma vez
o Luizinho [Luiz Severiano Ribeiro Neto] dizer para o Roberto Farias
que, graças à Embrafilme, ele se livrou um poucos dos americanos, não
dependia só deles. Pensa o seguinte: você é dono de um supermercado
e aí tem um fornecedor que te dá 500 caixas de Coca-Cola por mês e
outro que te dá duas garrafas de cajuína por ano. Que fornecedor você
vai tratar melhor? Era isso que acontecia. O exibidor não tinha produto
brasileiro disponível e, quando aparecia um filme brasileiro, ele era


253

obrigado a continuar fazendo as vontades dos americanos, de quem ele
dependia. Eu fiz quase dois milhões de espectadores com Deus é
Brasileiro, mas isso não valia nada porque o cara sabia que eu só ia ter
outro Deus é Brasileiro quatro anos depois, na melhor das hipóteses.
Nesse período, ele teria pelo menos três filmes do Batman. Se você tem
mais filme brasileiro, isso é, de certa forma, uma alforria para o exibidor
(Diegues, em entrevista à autora, 2014).

A fala de Cacá, que evidencia o quão mutantes podem ser as posições que os
atores ocupam no campo cinematográfico, emparelha-se à de Valmir Fernandes, do
Cinemark:

O produto nacional representa 10% acima ou 10% abaixo do total de


ingressos que venderemos no ano. E isso é um caminhão de dinheiro.
Então, a gente depende também do produto nacional. Se você, com o
filme nacional, chama um cara do nordeste que só vai ao cinema porque
quer ver Gonzaga, você está pegando um público novo. Foi isso que
aconteceu com Carandiru, em 2003. Nesse ano, logo depois do filme
do [Hector] Babenco, veio O Todo Poderoso, que foi o filme número
um do Brasil no ano. Por quê? Porque pegou o residual gerado pelo
Carandiru. As pessoas viram o trailer nas sessões de Carandiru e
voltaram para ver o filme. Nosso Lar, por exemplo, fez 4 milhões de
ingressos em setembro, um mês em que eu não tenho filme de estúdio.
Então o cinema nacional é importante para a gente. Mas tem que ser um
filme que o público queira ver (Fernandes, em entrevista à autora,
2014).

O exibidor não é necessariamente contra o filme brasileiro. Ele é contra a sala


desocupada. E é isso que a cota de tela muitas vezes gera. Mas que filmes, afinal de
contas, o público quer ver? Nos últimos cinco anos, os campeões de bilheteria do cinema
nacional, como mostra a lista reproduzida no capítulo anterior, foram, basicamente,
comédias. A única exceção ao gênero é o religioso Os dez mandamentos - o filme, que
garantiu sua bilheteria junto aos fieis da Igreja Universal. Em 2016, 46% das pessoas
que foram ao cinema para assistir a um filme brasileiro foram ver ou Os dez


254

mandamentos ou Minha mãe é uma peça 2. Ou seja, dois, entre 144 filmes,
concentraram quase metade dos ingressos vendidos.
É por causa dessa concentração e da concorrência feroz dos títulos
hollywoodianos que a cota de tela continua sendo vista, pelos exibidores, como uma
medida injusta e problemática. Segundo eles, não é possível cumprir – sem salas vazias
e sem prejuízos – os dias de obrigatoriedade porque o público se concentra em um ou
dois filmes.
Em um primeiro momento, é difícil entender como, com tanto filme disponível,
os exibidores podem ter dificuldades para cumprir a cota de tela. As queixas soam, tão
somente, a má vontade. Jean-Thomas Bernardini destrincha a equação:

A cota de tela é feita, em teoria, para um mercado que tem dez filmes
por ano que te permitam cumpri-la. Não tem sentido cumprir a cota com
60 filmes. Mas, na prática, mesmo um filme bom, faz 30 espectadores
durante a semana. Aí a gente, na semana seguinte, tenta colocar outro
filme, para ver se vai melhor. Com isso, esse filme, que era bom, não
tem nem a chance de pegar no boca a boca. Mas é difícil não fazer isso.
Porque o filme foi mal e porque tem outros quatro filmes que podem
entrar. E aí ainda liga o distribuidor e fala: “Você vai manter aquele
filme? Ele foi mal. Coloca o meu”. Você muda o filme, e ainda pega
um pior. É um quebra-cabeça enorme. Com a cota de tela, você tem que
colocar o filme, então você não espera o resultado porque fica
preocupado: você tem que pagar o ar condicionado, manter o cinema,
manter um negócio que é caro. Se tem menos filmes, você é obrigado a
trabalhar melhor até. Do jeito que está hoje, o exibidor coloca o filme
para cumprir cota e acaba, ele mesmo, matando o filme. É perverso, eu
sei, mas foi a própria política que originou isso (Bernardini, em
entrevista à autora, 2018).

Adhemar Oliveira, sócio da rede que, historicamente, mais exibe filmes


brasileiros, faz eco à fala de Bernardini e diz que, mesmo sendo absolutamente
favorável à exibição do filme brasileiro, é absolutamente contra a obrigatoriedade. E
explica a razão:

Qualquer política de cinema lida com três setores: a produção, a


distribuição e a exibição. Aqui, a política prioriza os dois primeiros


255

polos em detrimento do terceiro. E, para o terceiro, ainda sobra uma
obrigação. Nos anos em que você tem filmes que têm resposta em
termos de mercado, tudo bem, os dias obrigatórios são cumpridos, sem
problema. Mas imagina na agricultura. Não choveu, a plantação não foi
boa. Mas o agricultor não corre risco nenhum porque ele está ancorado
no mecanismo de incentivo, no dinheiro do Estado. No cinema, o
exibidor é obrigado a exibir esse produto que não ficou bom. Se o
produtor bota R$ 10 milhões no filme e o filme faz cem mil
espectadores, ele não perde nada. Quem foi obrigado a exibir esse filme
por três semanas aguenta sozinho o prejuízo. Uma política de Estado
tem que levar isso em conta. Existem nuances no mercado de exibição
(Oliveira, em entrevista à autora, 2017).

Para além da conjuntura mundial do cinema, a falta de espectadores para os


filmes ofertados é atribuída às fragilidades do parque exibidor brasileiro, país que tem
um dos menores índices de salas por habitante do mundo. O México, com 105 milhões
de habitantes, possui 6 mil cinemas para e vende 300 milhões de ingressos por ano; o
Brasil, em 2016, com quase o dobro da população (207,7 milhões), tinha 3,1 mil salas
e vendeu 185 milhões de ingressos.
O país possui uma das piores relações de habitante por sala da América Latina.
Em 2014, o Brasil possuía 71 mil habitantes/sala, enquanto México e Argentina
ostentavam, respectivamente, 21 mil e 48 mil habitantes/sala. No mesmo ano, com
relação à frequência de ida ao cinema pela população, o brasileiro ia menos que uma
vez por ano; no México, esse índice é de duas idas anuais ao cinema por habitante e, na
Argentina, de 1,1 idas.
O declínio do parque exibidor remonta à década de 1980, quando o
entretenimento doméstico, então representado pelo VHS (e, posteriormente, pela TV a
cabo e pelo DVD), se tornou um concorrente direto da sala de exibição. No Brasil, essa
situação foi agravada pela crise econômica e pela derrocada do cinema nacional, além
de guardar relação com a forte presença da TV aberta como hábito cultural e com a
própria violência das grandes cidades, que mantém mais gente em casa. O fato é que s
salas das cidades do interior e ou aquelas localizadas em regiões menos abastadas foram,
simplesmente, cerrando as portas – não foram poucos os espaços que viraram igrejas.
Em 1976, o país tinha 3,2 mil salas (um índice de 32 mil salas/habitante), 80% delas em
cidades do interior, e vendia 280 milhões de ingressos. Em 1995, havia 1.033 salas e


256

foram vendidos 50 milhões de ingressos. O parque exibidor foi reduzido a nada menos
que um terço e o país passou a ocupar o 60º no ranking mundial de número de salas por
habitante.
A terra devastada começou a ser novamente arada a partir de 1997, quando
desembarcou no país a rede norte-americana Cinemark, que trouxe consigo o modelo
de multiplex, que consiste num conjunto de salas localizado num mesmo lugar – de
preferência, num shopping center –, com oferta prioritária de blockbusters e grande
qualidade técnica e conforto. O Cinemark, que já havia aberto complexos no Chile, no
México e na Argentina, chegou ao Brasil no pior momento já enfrentado pelo circuito
exibidor nacional. Sabendo explorar a fragilidade do mercado onde chegou, o
Cinemark, rapidamente, se tornou um negócio de ouro. Em quatro anos, a empresa era
líder em número de salas, renda e público.
O sucesso da empresa no Brasil faria, inclusive, com que Valmir Fernandes, o
executivo que implantou a rede aqui, se tornasse presidente do Cinemark internacional.
Localmente, o Cinemark fez com que os demais exibidores se mexessem, buscando
melhorar a qualidade da projeção, indo para shopping centers e aumentando o tamanho
dos sacos de pipoca. O Cinemark é, porém, o espaço por excelência do blockbuster
norte-americano. É nesses filmes que se baseia seu negócio. O Cinemark, não por acaso,
serviu de munição ao discurso antiamericanista ouvido durante o III CBC.
Ao Cinemark, seguiram-se outras companhias de capital internacional, como
UCI e Cinépolis. Essas empresas, num primeiro momento, abriram seus complexos nos
locais onde se concentrava o maior número de consumidores – ou seja, justamente, nas
cidades e bairros onde já havia cinemas. Num segundo momento, partiram para lugares
onde o concorrente não estava ou onde o concorrente tinha um porte menor. Com o
impulso do capital estrangeiro, o circuito voltou a crescer, mas de forma concentrada e
insuficiente.
A partir de meados dos anos 2000, ia ficando claro para a Ancine que, sem um
empurrão governamental, as salas continuariam indo apenas onde o dinheiro estava e
que, com o processo de digitalização, as empresas nacionais poderiam ser engolidas.
Entre 2009 e 2010, a agência, em parceria com o BNDES – que, em 2002, havia criado
uma linha de crédito para a abertura de salas – estruturou o programa Cinema Perto de
Você (instituído pela Lei 12.599/12), destinado a modernizar o parque exibidor e
estimular seu crescimento, sobretudo, em direção ao Nordeste, Norte e ao interior do
país. Cabe observar que o BNDES, durante os oito anos do governo Lula, “fortalecido


257

com grande injeção de capital”, aumentou seus investimentos, com ênfase, sobretudo,
no “fortalecimento de grandes grupos nacionais” (Bresser-Pereira, 2015, p. 353). Foi
nesse contexto que, pela primeira vez, a política de Estado contemplou, de forma direta,
o terceiro elo da cadeia:

Desde o princípio, a política oficial foi feita para um setor. Leia-se:


produção. E a distribuição, aqui e ali, também foi recebendo benefícios.
Mas a exibição ficou sempre à parte disso, talvez pela briga histórica,
talvez pela sensação de que quem mexe com dinheiro não precisa de
dinheiro. A carga tributária em cima dos projetores era uma coisa
inacreditável, mas os exibidores não se levantavam contra isso,
deixavam de lado... Mas, na realidade, era um setor que precisava de
uma série de políticas, e isso só foi percebido no momento da
digitalização. Ali se entendeu que, se não tirassem alguns impostos, a
gente não ia conseguir. Eu ia sobrevivendo com os mecanismos de
incentivo da cultura, mas levando bordoadas do próprio setor (Oliveira,
em entrevista à autora, 2016).

O processo de digitalização mencionado por Oliveira foi determinante para a


ação governamental que, de acordo com Rangel, foi pensada de forma alinhada com os
movimentos da economia e da política brasileiras:

Quando, em 2008, o presidente Lula disse que queria adotar


investimentos em infraestrutura, nós apostamos fortemente no
investimento no parque exibidor – isso tinha tudo a ver com a
construção civil, com os investimentos no aquecimento da economia
brasileira. E dissemos aos exibidores: é preciso ir em direção à classe
C. Porque o Brasil ia em direção à classe C desde 2003 e, no setor
audiovisual, não se percebia a importância da Classe C. Nós então
dissemos: é preciso ir neste caminho aqui. Quando a presidente fez o
programa de desoneração fiscal para vários setores industriais, nós
estabelecemos o programa de desoneração do parque exibidor.
Estivemos o tempo inteiro alinhados com os grandes movimentos e com
os ciclos e anticiclos que o país estava vivendo (Rangel, em entrevista
à autora, 2016).


258

O programa ofereceu linhas de crédito a exibidores de médio porte e
estabeleceu um regime especial de tributação que permitiu a redução nos custos de
equipamentos. Existiam, em 2016, 35 empresas exibidoras em atividade no país, quase
todas nacionais. Mas eram duas empresas internacionais, Cinemark e Cinépolis, as
líderes de mercado, somando, juntas, 969 salas; vêm, na sequência, o grupo brasileiro
Severiano Ribeiro (198 salas) e a companhia internacional UCI (195). Assim como fez
na distribuição, a Ancine pretendia criar um grupo de líderes nacionais. A meta do
governo, de acordo com os players desse mercado, era ter dez exibidores brasileiros
com mais de 100 salas. Hoje, há quatro – Severiano Ribeiro, Araújo, Cinesystem e
Moviecom.
Outras metas, essas explicitadas no PDM, tampouco se cumpriram:

Até 2020, o Brasil pode se transformar no quinto mercado do mundo


em produção e consumo de conteúdos audiovisuais para cinema,
televisão e novas mídias. Além disso, o nosso país poderá ter 4.500
salas digitais, com capacidade para atrair 220 milhões de espectadores
por ano, mais do que o dobro do volume atual. O que poderia parecer
uma utopia há pouco mais de uma década é hoje um horizonte
plenamente alcançável (PDM, p. 12).

Ao fim de 2017, ou seja, três anos antes do horizonte desenhado no PDM, o


país possuía 3.220 salas e tinha vendido 180 milhões de ingressos. Por mais que ainda
houvese três anos para se alcançar as metas estabelecidas, a retração econômica e as
próprias fragilidades do mercado de cinema torna difícil seu cumprimento. Outro
indício da limitação do programa Cinema Perto de Você é que, ainda em 2017, a região
Sudeste foi a que mais recebeu novas salas, representando 28,8% das aberturas,
reaberturas e ampliações. Jean-Thomas Bernardini, que distribui e exibe,
exclusivamente, filmes independentes, diz:

O cinema perto de você é longe da gente. Os lugares considerados


menos favorecidos, as salas de lugares pequenos não vão receber o
filme independente. E, hoje, o exibidor que quer trabalhar na faixa do
filme dito de arte tem que gastar a mesma coisa que se gasta para
construir uma sala de shopping, então a escolha é simples: vamos


259

investir em salas localizadas em regiões onde há gente com melhor
poder aquisitivo (Bernardini, em entrevista à autora, 2018).

E a grande questão é que quem cuida de salas comerciais, caso de Luiz


Gonzaga de Lucca, que trabalhou na Embrafilme e hoje está à frente da operação
brasileira da Cinépolis, sente a mesma dificuldade apontada por Bernardini:

A Cinépolis abre de 200 a 300 salas por ano no México e, lá, já está
buscando municípios de 70 mil habitantes. No Brasil, essa política de
criar os campeões nacionais desregulou o mercado e, para os
estrangeiros, encareceu mais ainda o processo de abertura de salas.
Aqui, com os impostos, o custo da mão-de-obra e as exigências legais,
como a cota de tela, você não consegue ter uma linha de corte abaixo
de 300 mil habitantes. A conta não fecha. Agora, é óbvio que ainda
existe um potencial enorme para a abertura de salas. Abrimos um
cinema em Itaquaquecetuba [na Grande São Paulo] – um lugar que não
tinha cinema. São Miguel Paulista, um distrito da zona Leste de São
Paulo] não tem cinema (De Luca, em entrevista à autora, 2018).

Os gráficos a seguir dimensionam o que foi descrito nos relatos acima:

GRÁFICO 10. Número de salas do circuito exibidor brasileiro


260

GRÁFICO 11. Quantidade de salas por habitante no país

GRÁFICO 12. Quantidade de ingressos per capita no Brasil


261

Quando se fala em cinema hoje está se falando de algo que guarda pouca
relação com a experiência que se tinha nos anos 1970, a época que continua servindo
de referência para o cinema brasileiro, dado o tamanho do mercado e o market share de
então. Não se pode desconsiderar que naquele momento o cinema tinha pouca
concorrência como diversão de caráter popular e que a indústria, hoje, tem
características muito diversas.
Como pontua Gonzaga de Lucca (em entrevista à autora, 2018), hoje, o
mercado de cinema se baseia, mundialmente, em cerca de 20 títulos – sempre
megaproduções, quase sempre franquias, que respondem por 70% da arrecadação anual.
E esses filmes têm lançamentos cada vez maiores, inclusive porque se estima que cerca
de 50% da renda de um blockbuster se complete na segunda semana de exibição. Um
marco importante da era dos grandes lançamentos e das franquias foi Harry Potter, que
estreou em 2001, em 546 salas – o que equivalia a 33% do circuito. O tamanho das
estreias foi crescendo ano a ano. Em 2011, pela primeira vez, um filme batia na casa
das mil salas: a Saga crepúsculo: amanhecer - parte I estreou em 1.104, ocupando 47%
do circuito nacional.
Em 2013, 14 blockbusters foram lançados em mais de 900 salas. Tal cenário
fez com que a imposição de limites para os lançamentos estrangeiros voltasse à baila.
A Ancine criou então uma câmara técnica destinada a discutir esse assunto. Conseguiu-
se chegar a um termo de compromisso, que reuniu a assinatura de 23 grupos exibidores
e seis distribuidoras brasileiras, e que terminou com a promulgação do Decreto
8.386/2014, que trata da cota de tela e procura controlar a presença de um único título
em várias salas de um mesmo complexo. Jorge Peregrino acha que essas
contraofensivas, que reeditam a tese do imperialismo cultural, impede que o cinema
brasileiro olhe para seus verdadeiros problemas:

Esse raciocínio de que o que afeta o cinema brasileiro é o cinema estrangeiro


sendo lançado com mil cópias está errado. O que afeta o cinema brasileiro é
que, em 2011, dos 80 e tantos filmes lançados, 40 eram documentários. O
exibidor vai querer mostrar esses filmes? O governo vai querer que o exibidor
cumpra a cota de tela, que é alta, com um documentário sobre Arthur Bispo
do Rosário? Não, né? E todos os filmes brasileiros de sucesso tiveram grandes


262

lançamentos145. Então não é verdade que o problema do cinema brasileiro seja
o número de cópias do filmes estrangeiros. Além do tipo de filme, outro dos
nossos problemas é que a gente ainda tem poucos cinemas (Peregrino, em
entrevista à autora, 2014).

A despeito do clamor dos produtores nacionais e do acordo assinado em 2014,


nada mudou. Ou melhor, mudou: os lançamentos foram se tornando ainda maiores. Em
2016, 14 produções internacionais tiveram mega-lançamentos, estreando,
simultaneamente, em mais de mil salas. Nesse ano, dentre os 20 filmes mais vistos nos
cinemas brasileiros, houve quatro títulos nacionais: Os dez mandamentos, as comédias
Minha mãe é uma peça 2 e Até que a sorte nos separe 3 e o infantil Carrossel 2 - o
sumiço de Maria Joaquina. Todos estrearam com uma enorme quantidade de cópias:
Os dez mandamentos estreou em 1.129 salas, Minha mãe é uma peça 2, em 1.231,
Carrossel 2, em 882 e Até que a sorte nos separe 3, em 823.
Os dois campeões estrangeiros, Capitão América - guerra civil e Batman vs
Superman - a origem da justiça, estrearam, respectivamente, em 1.627 (52% do circuito)
e 1.433 salas. Detalhe: a renda de ambos foi muito superior à dos campeões brasileiros.
Enquanto Capitão América - guerra civil teve uma arrecadação de R$ 143,4 milhões e
Batman vs Superman - a origem da justiça de R$ 132,8, Os dez mandamentos rendeu
R$ 116,4 milhões e Minha mãe é uma peça 2, R$ 51 milhões. Essa discrepância tem a
ver com o valor do ingresso nas salas onde os filmes foram melhor e com a quantidade
de espectadores que têm direito à meia entrada. Os cifrões mostram que, mesmo quando
um filme brasileiro leva muita gente aos cinemas, ele ainda é menos rentável que o
blockbuster estrangeiro. Imagine-se então o que significam, economicamente, para o
mercado exibidor, os mais de 100 filmes nacionais que, em 2016, chegaram aos cinemas
com menos de 100 cópias.

Ao Estado interessou solucionar o problema do grande produto, que


envolve os grandes produtores e os maiores exibidores, e que pode
aumentar o market share. Fora disso, você tem uma série de produtos
que parecem zumbis. Eles estão passando aqui e você não está vendo.
E aí nós, como parte do mercado, somos encaminhadores de zumbis. A

145
Tropa de elite 2, o primeiro filme da era pós-retomada a superar a maior bilheteria da história do cinema
brasileiros, Dona flor e seus dois maridos, foi lançado em 661 salas; o segundo colocado do ano, Shrek
para sempre, havia estreado 530 salas.


263

política, de repente, produziu um monte de documentários, mas não
pensou onde ia colocar esses filmes, e eles ficaram ao Deus dará. Aí
você vê o zumbi andando e fala: “Caramba, gastou-se um milhão para
fazer um filme, para ser exibido, mas ele não vende”. A gente sofre
aqui embaixo, na exibição, a pressão disso. Tudo bem que o alcance de
um filme seja 50 mil, 60 mil espectadores, mas mil espectadores146? É
um buraco. A política não foi republicana, no sentido de contemplar a
indústria como um todo, e isso foi provocando uma anomalia (Oliveira,
em entrevista à autora 2016).

Uma pergunta que amarra os três elos da cadeia é: ainda tem sentido a
exigência de que todos os filmes estreiem nos cinemas? O diretor quer ver o seu filme
na tela grande pelo fetiche, pela sensação de que é ali que seu filme pode ser apreciado
em toda sua potencialidade. Produtores e distribuidores já reconhecem, porém, que o
lançamento nos cinemas, no caso de alguns filmes, implica em perdas. Ainda assim, não
têm coragem de abrir mão da mais nobres das janelas.
O impasse é bem exemplificado pelo que aconteceu com o longa-metagem O
roubo da taça (2016), fruto de uma parceria entre a Prodigo Filmes, de São Paulo, e a
Netflix. Distribuído pelo consórcio Downtown/Paris, o filme foi lançado em 194 salas.
A expectativa é que fizesse de 350 mil a 500 mil espectadores. Não chegou aos 30 mil.
O mau negócio, no entanto, não dissuadiria Francesco Civita, da Pródigo, de arriscar
novamente um lançamento nos cinemas:

Tudo o que ganho com as vendas para outras janelas, estou usando para
pagar os custos de lançamento no cinema e o FSA. Financeiramente,
teria sido muito melhor não ter estreado nos cinemas. Ao mesmo tempo,
se eu não for para o cinema, não consigo ir para as outras janelas. Para
a Netflix, é muito melhor um filme que tenha feito sensação no cinema;
o desempenho no cinema também vai definir quanto os canais como
Band ou Globo vão pagar pelo filme; além disso, se o filme vai bem nas
salas, aumentam as chances de venda para o exterior (Civita, apud
Sousa 2017).

146
Em 2016, dos 155 filmes nacionais lançados nas salas de cinema, 66 longas-metragens venderam
menos de 2 mil ingressos.


264

Na França, já nos anos 1990, a televisão representava pelo menos 60% das
receitas dos filmes – enquanto o cinema respondia por 30%. Mas, até aqui, por tudo o
que já foi narrado nesta tese, a televisão demorou para poder ser vista, financeiramente,
como uma segunda janela. E mesmo o mercado de DVD, que fez a indústria rir à toa de
tão lucrativo que foi, sempre esteve diretamente atrelado ao sucesso na primeira janela.
Ser muito visto nos cinemas sempre signifiou vender mais cópias de DVD e valer mais
nas negociações com a televisão. Mas e hoje, com a revlução tecnológica, simbolizada
pelo vídeo sob demanda, que lugar a sala de cinema ocupa no negócio?

Minha atividade, que já foi o coração da indústria, hoje


está, aparentemente, na rabeira dela. Mesmo assim, continua sendo
tratada como se fosse o principal. Por que? Porque o cinema alimenta e
é alimentado pelo star system. A janela é nossa última defesa contra as
formas alternativas de consumo. E a manutenção ou não da janela está
nas mãos dos estúdios. Mas o que a gente não pode desconsiderar é que
o ser humano mudou. Eu não sei se uma criança que está nascendo hoje
vai querer ir ao cinema (Oliveira, em entrevista à autora, 2016).

O que parece inevitável é, no caso específico do cinema brasileiro, que a


obrigatoriedade de que todos os filmes feitos com dinheiro público tenham o cinema
como primeira janela já está perdendo o sentido. O destino de boa parte dessa produção
deve ser o VoD – onde, mais uma vez, o problema da invisbilidade estará colocado.

4.5 VoD: o novo front de batalha

Os hábitos de consumo, todos sabem, passaram por alterações radicais na


última década. A tecnologia tem obrigado as mais variadas indústrias a repensar suas
estratégias, seus valores e sua função. O audiovisual, obviamente, não está à parte disso.
E a principal mudança a atingir esse mercado atende pelo nome de VoD – do inglês,
video on demand.
Em termos de hábito, a grande transformação trazida pela distribuição de
conteúdo via streaming é que ela possibilita o acesso ao conteúdo “não linear”. Essa
expressão foi criada em contraponto ao conteúdo linear, no qual o poder de decisão
sobre a programação estava nas mãos do programador. Hoje, o consumidor pode


265

selecionar o conteúdo que quer assistir, no momento em que desejar, para ver na
plataforma de sua preferência – da TV ao smartphone.
Essa possibilidade, por tudo que carrega, é, a um só tempo, estimulante e
ameaçadora. Para além da mudança na forma de consumo, o VoD implica numa nova
configuração para o mercado. As empresas de tecnologia foram incorporadas ao
ecossistema audiovisual e os embates regulatórios e comerciais envolvem cada vez mais
e maiores players.
Quando a Ancine foi criada, a partir da MP 2228-1/01, os interesses
conflitantes diziam respeito aos três elos da cadeia cinematográfica – produção,
distribuição e exibição – e à televisão. Dez anos depois, quando se regulamentou o
serviço por acesso condicionado (Lei 12.485/11), tinham sido incorporadas à arena de
disputa as empresas de telecomunicações. Agora, no VoD, há três segmentos de
mercado atuando: o de entretenimento (Disney, Netflix, Time Warner, Globo), o de
tecnologia (Google, Apple, Amazon, Microsof, Sony) e o de telecomunicações (Claro,
Net, AT&T, Vivo Telefônica, Vivendi).
Trata-se, portanto, de um amplo leque de atividades, players e infraestruturas.
No Brasil, existiam, em 2016, 46 provedores de VoD registrados na Ancine. Dada a
diferença de porte de cada um desses negócios e o rápido surgimento de novas empresas,
há, inclusive, uma dificuldade de se mapear o mercado e compreender suas nuances.
Mas qualquer discussão sobre o VoD tem de levar em conta, em primeiro lugar, que o
serviço se baseia em quatros modelos principais:

- O modelo de acesso gratuito (AVoD, de advertising VoD), no qual a receita


é obtida, majoritariamente, por meio de publicidade. Ou seja, não são os assinantes que
pagam pelo acesso; são os anunciantes que remuneram o negócio, como acontece na
televisão aberta. Quanto maior a audiência, maior o número de anunciantes. YouTube
e Vimeo funcionam assim.
- O modelo de assinatura (SVoD, de subscription VoD). Nesse caso, o
espectador faz um contrato e, a partir de um pagamento periódico, tem acesso a todo
conteúdo do catálogo. É um serviço semelhante à tevê por assinatura e seus exemplos
mais bem sucedidos são a Netflix e a Amazon.
- O modelo de catch-up TV, oferecido pelas televisões por assinatura (Watch
ESPN, HBO Go, TeleCine Play, Cartoon Network Go). Nesse caso, os canais ofertam,
via streaming, programas que já foram exibidos no canal de origem – em geral, sem a


266

necessidade de um pagamento extra.
- O modelo de aluguel ou venda (TVoD, de transactional VoD). Essa janela
adjacente não inclui uma assinatura, mas um pagamento por compra ou aluguel de um
título específico, como fazem o iTunes e o Google Play. É a versão século XXI do
homevideo.
Esses modelos são, muitas vezes, apresentados de forma combinada, de acordo
com o nicho que miram. Apesar de o VoD ser, sempre, um servico tecnologicamente
complexo, há autores que defendem que o VoD é, no fundo, a velha vídeo-locadora
levada para a casa dos consumidores:

Este serviço é apenas uma forma tecnologicamente mais avançada de


vídeo doméstico, onde tão somente são dispensadas as questões físicas
(...) Em termos práticos o “negócio” é o mesmo: “aluguel” ou “venda”
de “filmes”, com a diferença de que agora estes são digitais, vendidos
de forma virtual e, em regra, a crédito (Stuckert, 2017, p.9).

De acordo com essa visão, o mercado de VoD deveria estar sujeito às regras
estabelecidas pela MP 2228-1 para o mercado de vídeo doméstico. Teoricamente, tal
argumento tem sentido. Mas, na prática, as diferenças são muitas e a regulação inclui
questões que não existiam no mercado de VHS e DVD. Existem, basicamente, duas
formas de transmissão nos serviços de vídeo por demanda. O conteúdo pode chegar ao
usuário através de redes dedicadas das operadoras de TV por assinatura ou através de
serviços conhecidos como OTT (over-the-top), que se utilizam da rede mundial de
computadores. Ou seja, enquanto no mercado de locadoras quem entregava o filme ao
espectador era uma loja física, no mercado de VoD essa entrega passa pelas empresas
de telecomunicações e/ou pela internet.
Mesmo a Lei 12.485/11, que é recente, não previu esse tipo de serviço e muito
menos a reconfiguração de forças no tabuleiro do audiovisual. No caso da televisão,
seja ela aberta ou fechada, os agentes econômicos mais poderosos são os que detêm o
controle sobre as infraestruturas de radiodifusão e distribuição. Com a convergência
tecnológica, as barreiras físicas de armazenamento e transmissão de conteúdo foram
reduzidas e a infraestrutura física deixou de ser uma vantagem competitiva tão grande.
O que mais vale, nessa competição, é o conteúdo – tanto que a Netflix prometeu investir
US$ 8 bilhões em cerca de 700 programas originais em 2018.


267

Também não por acaso, o conteúdo está no centro dos debates sobre a
regulação do VoD. Na Europa, as formas de regulação, que são uma evolução da
Diretiva Televisão sem Fronteiras, variam de país para país. Mas as medidas mais
comuns são as cotas e um imposto específico revertido para um fundo. As cotas existem
em nove países: Áustria, Eslováquia, Espanha, França, Hungria, Itália, Lituânia, Polônia
e República Tcheca. Na Itália e na República Tcheca, o provedor pode escolher entre
investir de forma direta em produções locais ou cumprir a cota. Na Alemanha, não há
cotas, mas há obrigação de investimento. Na Espanha, determina-se uma cota de 30%
para obras nacionais e um investimento de 5% das receitas na produção ou
licenciamento de obras europeias.
Na França, 2% da receita líquida dos provedores vai para a produção nacional,
sendo que ¾ dos investimentos devem beneficiar a produção independente; as
plataformas devem ainda reservar 40% do conteúdo oferecido para obras francesas; e é
obrigatório, além de disponibilizar essas obras em catálogos, dar a elas destaque (a
chamada proeminência do conteúdo nacional).
Fora da Europa, o Canadá fez um acordo com a Netflix para o investimento
da empresa em conteúdo canadense; na América Latina, a Argentina fez a regulação,
mas ainda não consegui dar início à cobrança das taxas.
Os debates em curso no Brasil reeditam algumas das disputas anteriores. Em
2015, o Conselho Superior de Cinema apresentou três instrumentos para a normatização
do conteúdo: a obrigação de provimento mínimo de títulos nacionais no catálogo; o
investimento do provedor na produção ou licenciamento de obras brasileiras; e a
proeminência ou destaque visual para obras brasileiras na interface com o usuário.
Numa notícia regulatória de 2016, a Ancine enfatizava a importância de se garantir a
“cultura nacional” e o “talento brasileiro” por meio de obrigações como um percentual
mínimo de obras brasileiras em catálogo e a equidade na divulgação de obras brasileiras
e estrangeiras. Até a conclusão desta pesquia, o serviço com maior número de assinantes
do Brasil, a Netflix, não pagava Condecine e não tinha obrigações de carregamento de
conteúdo nacional.
A cota é, para esses novos players, a pior das ameaças. Para, entre outras coisas,
evitar que se faça um copy/paste da Lei 12.485/11, com a dobradinha cota-Condecine
na regulação do VoD, um grupo de empresas de OTT se reuniu, no início de 2018, na
Associação Brasileira Over-the-top (Abbots), que reúne tanto plataformas quanto
produtores de conteúdo.


268

Enquanto alguns argumentam que não faz sentido impor obrigações a um
negócio que está se estabelecendo, outros dizem que, sem cota, o produto brasileiro terá
sua existência comprometida no VoD. O que parece unânime é que os recém-chegados
ao mercado audiovisual terão, como todos os demais, de pagar Condecine. E, assim
como aconteceu em 2001, o que entre em debate é como se cobrar a Condecine: se por
título ou com base na receita líquida da plataforma.
A Condecine Título, da qual a tevê paga conseguiu se livrar depois de entrar
na justiça contra a MP 2228-1/01 (como relatado no tópico 2.2), é vista como uma
medida que atua de maneira inversamente proporcional ao interesse do consumidor. Se
a plataforma tem de pagar por título, ela só investe nos títulos de maior apelo. A
cobrança por faturamento, por sua vez, esbarra no sigilo financeiro das empresas. Outra
opção é criar, para o VoD, um mecanismo semelhante ao Art. 39 (usado pela tevê por
assinatura) e ao Art. 3º (usado pelas majors): as empresas estariam sujeitas à Condecine
Remessa, mas poderiam obter isenção no caso de investimento em produções nacionais.
Nesse caso, o VoD seria incorporado ao ecossistema de financiamento do audiovisual.
Assim como no caso da regulação da tevê por assinatura, há mais do que um
projeto sendo debatido. Além das discussões no âmbito do Conselho Superior de
Cinema, há dois Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional – um do senador
Humberto Costa (PT-PE) e outro do deputado Paulo Teixeira (PT-SP).
A diferença em relação ao PL-29, embrião da Lei 12.485/11, é que, desta vez,
o setor cinematográfico tem sido bastante ativo nas discussões, procurando garantir
novas fontes de recursos e a presença em mais uma janela. É que a produção
independente sabe que a televisão por assinatura, onde seus produtos têm espaço
garantido por lei, está com os dias contados. No futuro, todo o serviço pago de consumo
de conteúdo terá virado VoD.
A expansão do mercado audiovisual mundial é um processo em pleno curso, e
isso, ao mesmo tempo em que é uma enorme possibilidade para os cinemas nacionais,
é uma enorme ameaça. Em meio a todas as rupturas que a tecnologia provoca nos
hábitos de consumo, os novos negócios no setor do entretenimento têm sido anunciados
à velocidade da inovação tecnológica.
Mundialmente, a Disney lançará, em 2019, dois serviços de streaming e retirará
seu conteúdo da Netflix; no Brasil, a Globo prepara seu serviço de VoD. O que tudo
isso mostra é que, ao mesmo tempo em que possibilita a entrada de muitos novos
participantes no mercado, a tecnologia e o fim das fronteiras territoriais tendem a


269

aumentar ainda mais a concentração no entretenimento. Durante o Banff Connect LA,
em fevereiro, ouviu-se, segundo a Screen Daily, a seguinte previsão: até 2023, os sete
grandes estúdios terão sido reduzidos a três. E quem deve comandar esse movimento
são as gigantes tecnológicas, apelidadas de Fang (Facebook, Apple, Netflix e Google).
E é nessa terra de gigantes, e num ambiente no qual a escolha está, mais do que
nunca, nas mãos do consumidor, que o audiovisual brasileiro terá de garantir sua
continuidade.


270

Considerações finais

A história da política audiovisual brasileira é sinuosa. Paulo Emílio Salles


Gomes escreveu, em 1960, que a cinematografia brasileira tinha sido, até ali, um mundo
de ficções, um ritual de ilusão. Ele se referia ao fato de, à época, ninguém saber ao certo
como funcionava o mercado cinematográfico mundial. “Os dados nos quais se assentava
a produção e comércio dos filmes brasileiros eram bem mais fantasiosos do que o enredo
das fitas”, dizia (Gomes, 2016, p. 57).
Hoje, todos sabem como se passam as coisas no mercado cinematográfico.
Aqui e no mundo. A internet torna os dados sobre o mercado de cinema acessíveis a
quem quer que tenha interesse. No Brasil, especificamente, há fartura de estudos oficiais
no Observatório do Cinema e do Audiovisual, mantido pela Ancine. A ilusão continua
a ser, porém, uma marca de nosso cinema.
Sobretudo a partir da Lei 12.485/11, que criou uma demanda induzida e injetou
recursos volumosos na produção, a Ancine e parte do setor adotaram um tom de
celebração. Lê-se, no relatório de 2016:

No ano de 2016, foi ultrapassada a marca de 180 milhões de ingressos


vendidos, com uma renda de mais de 2,5 bilhões de reais. Foram
lançados 142 títulos brasileiros no ano que venderam mais de 30
milhões de ingressos, atingindo uma participação de público de 16,5%
(Ancine, 2016).

Apesar de os números não mentirem, eles podem ser reorganizados de forma


a ressaltar um ou outro aspecto da realidade. E a realidade que se procurou construir nos
últimos cinco anos tem algo da ficção apontada por Paulo Emílio quase seis décadas
antes. No ano seguinte ao período coberto por esta pesquisa, um novo relatório – o
primeiro após a saída de Manoel Rangel –, começava a pôr por terra a narrativa da
vitória:

No total, o público em salas de exibição no Brasil foi de 181,2 milhões


de pessoas, o que representa um pequeno recuo de 1,7% em relação a
2016. Apesar da queda, os filmes estrangeiros venderam quase 10
milhões de ingressos a mais do que no anterior. O desempenho de 2017
foi influenciado pela queda (...) significativa do público dos filmes


271

nacionais, de 42,8% (...). Os filmes nacionais atraíram 17,4 milhões de
pessoas, o terceiro pior resultado entre 2009 e 2017, e tiveram uma
participação de 9,6% sobre o público total, menor marca desde 2009. O
número de 158 estreias de obras brasileiras foi recorde em 2017 (...)
Apenas o filme Minha mãe é uma peça 2 (2016) conseguiu uma posição
no ranking dos 20 filmes com maior público do ano (Ancine, 2018).

As informações que constam do relatório da Ancine são o ápice de um processo


que vinha se desenhando nos anos anteriores e que foi problematizado no capítulo 4: o
expressivo aumento da produção não foi acompanhado de um aprofundamento do
diálogo com o público ou de uma reconfiguração do mercado de cinema. Como
evidenciaram os gráficos Número de lançamentos X market share do filme nacional
(Gráfico 8) e Número de filmes por faixa de público (Gráfico 9), as curvas dos
investimentos em produção e do market share foram sempre se distanciando. Apesar de
extrapolarem o período da pesquisa, os números de 2017 (Ancine, 2017) serão
mencionados nestas considerações finais por servirem como lente de aumento para o
que foi mostrado no capítulo 4:

- A ocupação de mercado, com 158 estreias nacionais num circuito de 3.220


salas, foi apenas levemente superior à de 2001 (9,6% contra 9%), quando foram 30 as
estreias e eram 1.620 as salas
- Do total de lançamentos brasileiros, apenas 23 (14,5%) foram vistos por mais
de 100 mil pessoas.
- Dentre os lançamentos nacionais, houve 91 ficções, 60 documentários e sete
animações.
- 79,7% da renda gerada nas bilheterias (de filmes brasileiros e estrangeiros)
foi parar no caixa das distribuidores internacionais. Quase todos os filmes nacionais
(94,8%) foram distribuídos por empresas brasileiras.
- O consórcio Downtown/Paris lançou 22 longas-metragens brasileiros e ficou
com 75,7% da receita gerada pela produção nacional; a Vitrine distribuiu 57 títulos e
obteve 2,9% da renda.
- 75,9% dos filmes lançados foram produzidos por empresas de São Paulo ou
do Rio de Janeiro.


272

Com filmes que, em sua grande maioria, não dão retorno financeiro, a política
fracassou em sua proposta de auto-sustentabilidade. Repete-se assim, nesta pesquisa, a
conclusão a que Arthur Autran chegou em O pensamento industrial cinematográfico
brasileiro (2013), que cobre o período de 1924 a 1990. Autran demonstra que, desde a
década de 1920, o cinema nacional acalenta o desejo de tornar-se indústria. Mas, ao
longo de quase um século, nem as tentativas mais ambiciosas, como quando a iniciativa
privada criou a Vera Cruz (1949) ou o Estado engendrou a Embrafilme (1969), foram
capazes de promover a real industrialização do setor.
Também a Ancine foi forjada a partir desse pensamento industrial
cinematográfico brasileiro:

A ideia mãe da Ancine é a da auto-sustentabilidade, isto é, fazer


com que a economia do cinema passe a se financiar com os recursos
oriundos da própria atividade cinematográfica e audiovisual. A
potencialização das receitas que já existiam, como a da Condecine, no
sentido de fazer com que a médio prazo o fomento cinematográfico
possa dispensar os incentivos fiscais, que oneram o Tesouro Nacional,
é que é a sua principal novidade (Sumário Executivo Ancine, 2003)

As receitas da Condecine foram de fato potencializadas, mas não com os


recursos advindos diretamente da atividade cinematográfica e audiovisual, e sim com a
taxa cobrada sobre os aparelhos celulares ativos no país. A Condecine Teles, nascida no
bojo da Lei 12.485/11, injetou, de 2011 a 2016, R$ 2,5 bilhões no setor. Mas nem esse
volume de recursos nem as novas janelas abertas pela tecnologia foram capazes de
tornar desnecessários os incentivos fiscais.
A despeito de um primeiro êxito, que foi o aumento da produção e a
democratização do acesso aos recursos públicos, a política não avançou o bastante na
questão da auto-sustentabilidade e da relação com o público. A velha máxima segue
intacta: sem o apoio do Estado, o cinema brasileiro definha.
Diante dessa constatação, arrisco dizer que o apoio estatal é incontornável e
que, portanto, caberia ao setor e ao governo assumi-lo e enfrentá-lo. Vem da dificuldade
de se assumir esse fato a narrativa ilusória que se cria em torno do cinema brasileiro, o
descompasso entre discurso e prática. Os argumentos sobre os quais se assenta o apoio


273

do Estado não correspondem à realidade147. Falta coerência entre os objetivos traçados
e a prática.
Como se demonstrou neste trabalho, no século XXI a questão da identidade
nacional perdeu a centralidade nos debates sobre as políticas culturais, cedendo espaço
para os argumentos econômicos, que enfatizam a geração de riquezas, empregos e
contribuição para o PIB. A ideia de proteção, hoje, passa muito pela questão do
mercado; tanto é assim que se protege não apenas os filmes, mas toda a cadeia, aí
incluídos produtores, distribuidores e exibidores – desde que nacionais.
A primeira conclusão a que chego confirma, portanto, a hipótese de que,
refletindo um movimento mundial, o cinema brasileiro, no século XXI, aderiu ao
discurso da economia e do mercado. Mas o que a pesquisa diagnosticou foi a
ambiguidade que reside nessa opção: apesar de o argumento para o apoio ser
econômico, a cadeia do audiovisual manteve-se dependente dos recursos públicos.
Sabe-se que o fato de o cinema brasileiro não ter conseguido se transformar na almejada
indústria decorre da própria constituição do mercado audiovisual, mundialmente
dominado por Hollywood, como se demonstrou no capítulo 1. Mas, para além das
dificuldades comuns a quase todos os cinemas nacionais, existem as contingências, ou
deficiências, locais.
O enfrentamento dessa problemática não é simples, até porque envolve desde a
escolha do consumidor até as opções feitas por um negócio privado como as salas de
cinema. Mas há dois problemas concretos que não podem ser negados: a discrepância
entre os gastos de marketing de um blockbuster e de um filme nacional, o que gera uma
certa invisibilidade do filme nacional, e as características da própria população
brasileira, cujo gosto foi formado pelo filme estrangeiro e que tem, em sua maioria, uma
limitação financeira148. Esses me parecem, porém, problemas insolúveis, que decorrem
da história do Brasil como nação e da dependência cultural dos países periféricos. O
cinema será sempre um reflexo das próprias limitações do desenvolvimento do país.

147
A questão dos argumentos usados para justificar o apoio do Estado ao cinema aparece, de maneira mais
aprofundada, no livro de Autran (2013). Segundo o autor, é bastante presente a ideia de que, para justificar
o apoio, eram quase sempre usados argumentos “culturalistas”. Autran identifica, desde a década de 1930,
uma certa condenação ao lucro e a existência de um “selo moral” – ligado a estética ou ideologia – no
âmbito das políticas públicas de cinema.

148
Os anos mostrariam que a classe C não era tão classe média como se apregoou e que essa população
não foi de fato incorporada ao consumo (Bresser-Pereira, 2015, p. 347), e muito menos ao consumo de
cinema.


274

Como escreve Bresser-Pereira (2015, p. 21), os países retardatários da
revolução capitalista “não puderam realizá-la tranquilamente”, tendo sido “objeto de
seu imperialismo, de diversas maneiras”. No caso do cinema, se até mesmo as nações
desenvolvidas foram objeto desse imperialismo, o que dizer dos países em
desenvolvimento? As únicas possibilidades de reação residem no apoio do Estado e em
medidas protecionistas. O problema é que, no Brasil, tais medidas, muitas vezes, tomam
por base interesses particularistas, mais do que os interesses gerais do setor e da
sociedade. A essa acomodação de interesses, tanto convergentes quanto divergentes,
atribui o nome de “pacto”.
A ideia de pacto, que acabou por dar título à tese, nasceu da segunda hipótese
do trabalho: a de que, no cinema, as políticas públicas têm origem na mobilização e nas
articulações feitas por artistas e profissionais do setor e que refletem, basicamente, os
desejos e necessidades dos atores mais influentes no campo.
Tal hipótese foi comprovada. No entanto, ficava claro, ao fim da pesquisa, que
a forma como essas relações se estabelecem e o grau de influência dos atores sobre o
governo são mais complexas do que parecia à primeira vista. Primeiro, porque a
despeito da tendência à conciliação, há também o enfrentamento, como se viu nas
passagens sobre a Ancinav e sobre a tentativa de redistribuição das verbas estatais, no
início do governo Lula. Segundo, porque, em busca de soluções para um problema
imediato, que é a obtenção de verbas para a realização dos filmes, os atores, dotados do
senso prático bourdieusiano, adaptam suas necessidades e desejos àquilo que se revela,
no tabuleiro do jogo político, um lance menos arriscado.
A Lei do Audiovisual, que colocava produtores e realizadores em conexão
direta com o mercado, foi criada durante a onda liberal do início dos anos 1990, quando
havia a submissão ao Consenso de Washington e o descarte da ideia de nação. A Ancine
foi criada durante o segundo mandato de FCH (1999-2002), que Bresser-Pereira (2015)
define como um governo diretamente influenciado pela hegemonia neoliberal, mas já
com a ideia de retomada de desenvolvimento. Como se relatou no capítulo 2, cineastas
e produtores, de início, nem entenderam o que significava uma agência reguladora; mas
se era o que o governo indicava como o formato possível, não havia o que pensar. O
mesmo grupo que, durante o governo FHC, defendeu que a agência fosse para o Mdic
mudou de posição quando entrou o novo governo. Gilberto Gil, ministro da Cultura de
Lula, queria que a agência ficasse no MinC. Não demorou para que os velhos líderes da
política de cinema passassem a “querer” o mesmo.


275

Cabe observar, porém, que os três primeiros anos do governo petista constituem
uma exceção a essa tendência à acomodação de interesses. O projeto da Ancinav expôs
os rachas do setor, reeditou a divisão história entre culturalistas e universalistas e
evidenciou que, por vezes, cineastas e produtores medem mal sua força. Parte do cinema
brasileiro e dos gestores públicos acreditaram que podiam enfrentar a Globo. Não
podiam. Houve também conflito quando o governou indicou ter o desejo de mudar a
clientela da política.
Ou seja, os momentos de embate foram aqueles em que, seguindo a tendência
da política mais ampla149, o governo propôs uma política redistributiva – ou seja, os
recursos seriam parcialmente tirados dos velhos atores para serem redistribuídos entre
os novos ocupantes do campo. A conciliação se deu quando passou a haver recursos
para todos.
Não se pode ignorar, porém que, ao longo dos últimos 15 anos, houve, de fato,
uma alteração nas relações de força no campo, com a chegada de novos atores, alguns
deles de fora do eixo Rio-São Paulo. Os produtores que estiveram à frente do
movimento de criação da Ancine, por sua vez, foram perdendo a relevância no mercado
e, apesar de ainda terem proximidade com quem está no poder, não exercem o domínio
de antes.
À parte o deslocamento de alguns poderes instituídos, os conflitos entre os
diferentes grupos, visíveis no III CBC e exacerbados durante o processo de discussão
do projeto da Ancinav, foram sendo aplainados nesse percurso que se inicia na MP
2.228-1/01 e termina na Lei 12.585/11. O capítulo 3 mostra como, a partir da reeleição
de Lula, em 2006, a política estudada foi, assim como a política macro, uma política
marcada por pactos e coalizões. E assim como a Embrafilme atendia a anseios da
ditadura militar, a Ancine atendia a um propósito que o próprio Lula explicitou logo
após tomar posse para o segundo mandato:

É outra – e é nova – a visão que o Estado brasileiro tem, hoje, da cultura.


Para nós, a cultura está investida de um papel estratégico, no sentido da
construção de um país socialmente mais justo e de nossa afirmação
soberana no mundo. Porque não a vemos como algo meramente
decorativo, ornamental. Mas como base da construção e da preservação

149
As duas principais políticas redistributivas dos dois governos Lula foram o aumento real de 52% no
valor do salário mínimo e o programa Bolsa Família.


276

de nossa identidade, como espaço para a conquista plena da cidadania,
e como instrumento para a superação da exclusão social – tanto pelo
fortalecimento da autoestima de nosso povo, quanto pela sua
capacidade de gerar empregos e de atrair divisas para o país. Ou seja,
encaramos a cultura em todas as suas dimensões, da simbólica à
econômica (Silva, 2006).

Não fosse o empenho do governo, a obstinação de Manoel Rangel não teria sido
suficiente para a aprovação da Lei 12.485/11 que, com o volume de recursos que injetou
no cinema, torna possível a manutenção do pacto em vigor. Nesse caso, o pacto
envolveu o governo, o capital estrangeiro das empresas de telefonia e as Organizações
Globo.
Do governo Collor aos governos petistas, passando pelo de FHC, fica evidente
que os ciclos do cinema andam lado a lado com os ciclos econômicos do país. E a
política do cinema tende a avançar em momentos nos quais o governo defende um
Estado mais forte e trabalha com a ideia de país – mesmo quando o país não é mais um
sinônimo exato de nação. Foi assim no auge da Embrafilme e foi assim nos governos
do presidente Lula.
Deriva dessa análise a segunda conclusão à qual cheguei: por mais que a ação
dos agentes do setor seja importante como força mobilizadora e determine algumas
medidas, o que define a política do cinema é a própria política econômica em curso no
país. Cineastas e produtores tendem, de fato, a desenvolver uma política de
conveniência com os governos, mas acreditar que os cineastas definem as políticas é
atribuir-lhes um poder que eles talvez não tenham. Ao mesmo tempo, fica evidente, pelo
detalhamento das formas de ação no setor, que as demandas e articulações são, sim,
definidoras da política. Essas articulações, em geral, resolvem o problema imediato dos
que trabalham no setor, mas não o problema do setor.
Para beneficiar produtores e realizadores, grupo que tem capital social, cultural
e político, a Ancine entrou numa lógica perversa que gerou uma situação de
desequilíbrio. Quando a produção atingiu uma marca importante, e a política mostrou-
se exitosa, o governo não foi capaz de, por exemplo, estipular um teto de investimentos
para o elo da produção e investir em outras áreas, como formação de plateia ou
preservação de acervo – fazem-se filmes aos montes enquanto outros, que constituem a
memória da cinematografia nacional, vão sendo perdidos.


277

A metodologia empregada e a extensão temporal da pesquisa foram essenciais
para a obtenção do resultado e para o estabelecimento dessas duas conclusões. Ao
estender a narrativa pelo período de 15 anos, eu, de um lado, deixei de verticalizar meu
olhar sobre problemáticas que seriam de grande valia para a discussão – como a questão
do nacional e do estrangeiro e a análise do modelo de financiamento em si –, mas pude,
de outro lado, compreender a relação entre a política do cinema e a política do país. A
prevalência de fontes primárias, com entrevistas qualitativas com um número
expressivo de ocupantes do campo do cinema, por sua vez, me permitiu observar como
os discursos mudam ou se repetem ao longo do tempo – revelando suas incongruências,
seus vícios e até mesmo seus aspectos psicológicos. Apesar dos discursos terem mudado
ao longo do tempo, algo se manteve intacto: as motivações e as estratégias dos atores.
A principal motivação, do lado dos produtores, é ter recursos para fazer filmes; a dos
distribuidores, conseguir entrar no rol dos beneficiários das políticas; e a dos exibidores,
evitar regras que interfiram em seu negócio.
Do ponto de vista teórico, eu me defrontei, após os dois primeiros capítulos, com
a impossibilidade de aplicar o conceito de campo, de Bourdieu de forma mais efetiva.
Trata-se de um conceito aberto, que compreende a ideia de um espaço social
estruturado, útil para esta pesquisa. No entanto, se levado ao pé da letra, dificultaria a
análise. Se a autonomia do campo deve se traduzir numa independência em relação aos
poderes e exigências constituídos – sejam eles estéticos ou financeiros –, o cinema não
pode ser considerado um campo autônomo. Esse suposto campo, para tornar as coisas
ainda mais complexas e contraditórias, foi se expandindo nos anos estudados.
No início do arco temporal coberto pela pesquisa, a Netflix não existia e a
Amazon era uma empresa de venda de livros online. Hoje, ambas dominam o universo
audiovisual. Ou seja, o sistema bourdieusiano, que exerceu grande fascínio sobre mim
no início do percurso, acabou, no desenvolvimento do trabalho, não sendo aplicado de
forma mais direta. Inicialmente, tentei organizar as empresas do setor utilizando o
modelo que Bourdieu segue em As regras da arte, para as editoras. Vi, após algumas
tentativas frustradas, que a lógica não se aplicava. O cinema, afinal de contas, é um
campo cultural, mas é também um sistema industrial que, hoje, está entrelaçado aos
setores da comunicação, do entretenimento e da tecnologia. Ou seja, por mais que
Bourdieu tenha abordado o mercado como instância de legitimação do campo cultural,
o mercado ao qual ele se referia guarda pouca relação com o mercado tal e qual ele é
hoje – global e altamente tecnológico. Gramsci, por outro lado, lido no começo do


278

doutorado, foi retornando conforme a tese ia ganhando a forma final. Esses desvios,
naturais em qualquer pesquisa, talvez sejam ainda maiores em casos como o meu, onde
teoria e prática se enlaçam.
É importante pontuar ainda que as mudanças pelas quais o país passou foram
atingindo também meu olhar, minha percepção. Até 2016, ano do impeachment da
presidente Dilma Rousseff, o discurso sobre o cinema brasileiro era o da vitória e eu,
nos dois primeiros anos de pesquisa, me entusiasmei excessivamente com a política.
Logo após o processo que tirou a petista do poder, boa parte do cinema brasileiro
posicionou-se a favor da tese do golpe e externou os temores de que a política setorial
estivesse ameaçada. Em maio de 2017, um ano após o impeachment, chegou ao fim o
mandato de Manoel Rangel na Ancine. Em meio ao turbilhão político, meu trabalho ia
avançando e os problemas da política de cinema iam se tornando mais visíveis. Eu ia
também percebendo o quanto eles se aproximam da política mais ampla, com suas
alianças e seus silêncios coniventes.
Um ponto de inflexão em relação à história do cinema brasileiro é que mesmo
após o impeachment e a saída de Manoel Rangel, a política teve seguimento. Com
mudanças, mas teve. O sucessor de Rangel na Ancine, Christian de Castro, foi indicado
para o cargo por Sérgio Sá Leitão, que trabalhou no MinC durante a gestão de Gilberto
Gil e que, em 2017, tornou-se ministro da Cultura de Michel Temer. A Ancine, em 18
anos, teve três presidentes. De Castello Branco a Figueiredo, o INC e a Embrafilme,
juntos, contaram com pelo menos 12 dirigentes. Enquanto, nos anos 1980, a crise
econômica do país levou o cinema consigo, no momento atual, a produção
cinematográfica mantém-se intacta. Há sinais, portanto, de que se trata de uma política
perene. Sua única ameaça, no momento, seria as teles serem desobrigadas de pagar a
Condecine. Mas, apesar de haver um processo em trâmite na Justiça, parece pouco
plausível que se determine a extinção da taxa.

As duas grandes contradições da política estudada são, portanto, que:

- O governo, por meio de intervenções de ordem econômica, induziu o


crescimento da produção e abriu brechas para a exibição do produto nacional,
expandindo a cota de tela para a televisão fechada, mas não conseguiu reduzir a
desvantagem competitiva do cinema nacional em relação ao estrangeiro, e os filmes
nacionais seguem distantes do público


279

- As receitas obtidas com as obras audiovisuais brasileiras, através de
licenciamento, não têm sido capazes de viabilizar economicamente a produção
audiovisual nacional – nem no cinema nem na televisão fechada.

Ao fim e ao cabo, de todos os propósitos da Ancine, talvez o que mais tenha se


cumprido seja o da promoção da cultura nacional por meio de filmes. A existência de
filmes como O lobo atrás da porta (2013), Branco Sai, Preto Fica (2014), Que horas
ela volta? (2015), Casagrande (2016), Aquarius (2016), Cinema Novo (2017), As boas
maneiras (2018) e Arábia (2018), para ficar apenas em alguns exemplos de obras que
refletem a renovação estética pela qual passou o cinema brasileiro, deveriam, a meu ver,
ser suficientes para justificar a política aqui retratada. Mas como a régua usada hoje
para medir o valor da cultura é aquela dos números, recorre-se a um economicês ilusório
para justificar um aparato institucional cujo principal propósito talvez continue
residindo na questão da identidade nacional.


280

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Entrevistas à autora

ALTBERG, Marco. Entrevista concedida à autora deste trabalho na sede da


Bravi, em São Paulo, em 17 de novembro de 2016. enviado

BARRETO, Luiz Carlos. Entrevista concedida à autora deste trabalho na


produtora LC Barreto, no Rio de Janeiro, em 6 de julho de 2014. não mandarei

BRAGA, Rodrigo Saturnino. Entrevista concedida à autora deste trabalho na


sede da Sony Enterteinment, em São Paulo, em 21 de março de 2014. ok

BERNARDINI, Jean-Thomas. Entrevista concedida à autora deste trabalho


no Reserva Cultural, em São Paulo, em 11 de janeiro de 2018.

BOLOGNESI, Luiz. Entrevista concedida à autora deste trabalho na Padaria


Vila Grano, em São Paulo, em 23 de novembro de 2016.


292

CALIL, Carlos Augusto. Entrevista concedida à autora deste trabalho no


CTR/ECA (USP), no dia 22 de dezembro de 2016.

CATANI, Vânia. Entrevista concedida à autora deste trabalho por telefone,


em 15 de dezembro de 2017.

CRUZ, Silvia. Entrevista concedida à autora deste trabalho na sede da Vitrine


Filmes, em São Paulo, em 14 de dezembro de 2016.

DIEGUES, Carlos. Entrevista concedida à autora deste trabalho na produtora


Luz Mágica, no Rio de Janeiro, em 4 de junho de 2014.

ESCOREL, Eduardo. Entrevista concedida à autora deste trabalho via Skype


em 30 de dezembro de 2016.

FARIAS, Roberto. Entrevista concedida à autora deste trabalho na residência


de Roberto Farias, no Rio de Janeiro, em 5 junho de 2014.

FERNANDES, Valmir. Entrevista concedida à autora deste trabalho no café


Santo Grão da rua Oscar Freire, em São Paulo, em 13 de março de 2015.

FRANCA, Belisário. Entrevista concedida à autora deste trabalho no


restaurante Jiquitaia em São Paulo, em 11 de dezembro de 2017.

GERVITZ, Roberto. Entrevista concedida à autora deste trabalho no Fran’s


Café da Praça Benedito Calixto, em 20 de dezembro de 2016.

GOMES, Denise. Entrevista concedida à autora deste trabalho na sede da


BossaNovaFilms, em São Paulo, em 29 de novembro de 2016.

LEÃO, Mariza. Entrevista concedida à autora deste trabalho na sede da


Morena Filmes, no Rio de Janeiro, em 5 de junho de 2014.

LEITÃO, Sergio Sá. Entrevista concedida à autora deste trabalho na sede da


RioFilme, no Rio de Janeiro, em 3 de junho 2014.

MANEVY, Alfredo. Entrevista concedida à autora deste trabalho no Bar


Vermelho, em São Paulo, em 14 de novembro de 2014.

MEIRA, Márcio. Entrevista concedida à autora deste trabalho pelo


Messenger do Facebook, em 1º de setembro de 2016.

MEIRELLES, Fernando. Entrevista concedida à autora deste trabalho via


Skype em 28 de novembro de 2016.

NUNES, Leopoldo. Entrevista concedida à autora deste trabalho no


Kubitschek Plaza Hotel, em Brasília, em 24 de setembro de 2014.


293

OLIVEIRA, Adhemar. Entrevista concedida à autora deste trabalho na sede
da Itaú Cinemas, em São Paulo, em 15 de dezembro de 2016.

PEREGRINO, Jorge. Entrevista concedida à autora deste trabalho na sede da


MovieMobz, no Rio de Janeiro, em 3 de junho de 2014.

RODRIGUES, Cadu. Entrevista concedida à autora deste trabalho na


residência de Cadu Rodrigues, no Rio de Janeiro, em 6 de junho de 2014.

SENNA, Orlando. Entrevista concedida à autora deste trabalho na residência


de Orlando Senna, no Rio de Janeiro, em 6 de junho de 2014.

SEVÁ, Augusto. Entrevista concedida à autora deste trabalho no The


Gourmet Tea, em São Paulo, em 30 de maio de 2014.

SILVEIRA, Sara. Entrevista concedida à autora deste trabalho na sede da


Dezenove Filmes, em São Paulo, em 25 de novembro de 2016.

SOLOT, Steve. Entrevista concedida à autora deste trabalho na sede da


RioFilme, no Rio de Janeiro, em 4 de junho de 2014.

STURM, André. Entrevista concedida à autora deste trabalho no Maremonti


Jardins, em São Paulo, em 10 de outubro de 2014.

VENTURI, Toni. Entrevista concedida à autora deste trabalho na produtora


Olhar Imaginário, em São Paulo, em 11 de abril de 2014.

WAINER, Bruno. Entrevista concedida à autora deste trabalho na


distribuidora Downtown Filmes, no Rio de Janeiro, em 3 de junho 2014.

Depoimentos por escrito à autora

AGUIAR, Lucio. Depoimento concedido à autora deste trabalho pelo


Messenger do Facebook, em 3 de janeiro de 2018.

TEIXEIRA, Rodrigo. Depoimento concedido à autora deste trabalho por e-


mail, em 28 de fevereiro de 2018.

Entrevistas à autora, mas não exclusivamente para a tese

D’ÁVILA, Roberto. Entrevista concedida à autora deste trabalho, para


reportagem para o jornal Valor Econômico, na sede da Moonshot, em São Paulo, em
12 de agosto de 2014.

GULLANE, Fabiano, GULLANE, Caio e IVANOV, Débora. Entrevista


concedida à autora deste trabalho, para reportagem para a revista Filme B, na sede da
Gullane Filmes, em São Paulo, em 10 de março de 2015.

PERRONE, Thierry. Entrevista concedida à autora deste trabalho, para


reportagem para a o jornal Valor Econômico, por telefone, em 28 de julho de 2015.


294

RANGEL, Manoel. Entrevista concedida à autora deste trabalho, para


reportagem para o jornal Valor Econômico, na sede da Ancine em São Paulo, em 16
de setembro de 2016.

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