Ricardo Antunes - o Futuro Do Trabalho Na Era Digital
Ricardo Antunes - o Futuro Do Trabalho Na Era Digital
Ricardo Antunes - o Futuro Do Trabalho Na Era Digital
Ricardo Antunes1
Poucos temas são tão controversos como o trabalho. Fora de moda nas décadas de
1980/90, tornou-se novamente temática crucial do nosso tempo. Terceirização,
informalidade, flexibilidade, trabalho intermitente, subemprego, desemprego,
nenhuma dessas palavras podem ser compreendidas e decifradas sem uma análise
conectada com o mundo do trabalho e da produção de nosso tempo.
Foi a partir da crise estrutural, que aflorou no início de 1970 (MÉSZÁROS, 2002;
CHESNAIS, 1996) – e que se intensificou a partir de 2008 – que os capitais
desencadearam um vasto processo de reestruturação produtiva que resultou em
formas de acumulação flexível, caracterizada pela deslocalização produtiva, pela
expansão das redes de subcontratação, pelo trabalho em equipe, salários flexíveis,
"células de produção", "times de trabalho", "envolvimento participativo", "trabalho
polivalente", "multifuncional', com o objetivo primeiro de reduzir os custos e
aumentar a produtividade (ANTUNES, 2014; 2018).
1 Professor titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas,
São Paulo, Brasil. - rlcantunes53@gmail.com
Laborare. Ano III, Número 4, Jan-Jun/2020, pp. 6-14. ISSN 2595-847X. https://trabalhodigno.org/laborare
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2020-46
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Em fases de crise e de recessão, como as que estamos vivenciando não só nos países
do Norte, mas também no Sul do mundo, a resultante é ainda mais conhecida: erosão
devastadora dos empregos e corrosão e demolição exponencial dos direitos do
trabalho (PRADELLA; MAROIS, 2015; ANTUNES, 2011).
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Qual é o futuro do trabalho na Era Digital?
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Essa corrosão dos direitos do trabalho tem gerado também novas formas de
representação sindical para este novo contingente mais precarizado do proletariado, o
autodenominado precariado. Além de seus próprios movimentos de perfil mais
autônomos, presenciamos a criação da Confederazione Unitaria di Base (CUB), anos
atrás e, mais recentemente, da Nuove Identitá di Lavoro (NIdiL) vinculada à CGIL
(Confederazione Generale Italiana del Lavoro).
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Qual é o futuro do trabalho na Era Digital?
É por isso que neste mundo do trabalho digital e flexível, o dicionário empresarial
não para de “inovar”. Veja-se o nosso exemplo tropical: “pejotização” nas mais
distintas atividades como médicos, advogados, professores, bancários, eletricistas,
trabalho do care (cuidadoras). Há também os “empreendedores", um exemplo de
proprietários e proletários de si mesmos. Todos e todas com “metas” impostas que
geram assédios, adoecimentos, depressões e suicídios. Os assédios que vêm
ocorrendo na empresa Uber assumiram, recentemente, tal dimensão que levou
inclusive à demissão de seu CEO.
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Assim, movida por essa lógica destrutiva, expande-se, em escala global, o que
podemos denominar como uberização do trabalho. Como o trabalho online fez
desmoronar a separação entre o tempo de vida no trabalho e fora dele, podemos
presenciar o crescimento exponencial de uma era de escravidão digital. Na empresa
“moderna”, liofilizada, o trabalho que os capitais financeiros exigem é aquele
flexível: sem jornadas preestabelecidas, sem remuneração fixa, sem atividade pré-
determinada, sem direitos, nem sequer o direito de organização sindical. E até o
sistema de “metas” é flexível: ela sempre deverá superar aquelas obtidas
anteriormente (ANTUNES, 2018).
Laborare. Ano III, Número 4, Jan-Jun/2020, pp. 6-14. ISSN 2595-847X. https://trabalhodigno.org/laborare
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Qual é o futuro do trabalho na Era Digital?
É importante assinalar que o trabalho online e digital que produz Iphone, Ipad e
similares não pode existir, entretanto, sem o trabalho que extrai o mineral. O trabalho
digital, então, não se efetiva sem o pior dos trabalhos manuais (HUWS, 2003, 2015)4.
É esse, então, o novo “espírito do tempo”: de um lado, a disponibilidade perpétua
para o labor, facilitada pela expansão do trabalho online. De outro, propaga-se a
flexibilidade total. Florescem, então, os novos escravos intermitentes globais.
Como o sistema global do capital macula tanto as esferas da vida dentro e fora do
trabalho, a desfetichização da sociedade do consumo tem como corolário
imprescindível a demolição no modo de produção das coisas, tal como ela é
estruturada pelo capital. O que torna a sua conquista muito mais difícil, se não se
inter-relaciona decisivamente a ação pelo tempo livre com a luta contra a lógica do
capital e a vigência do trabalho abstrato.
Uma vida cheia de sentido em todas as esferas do ser social, dada pela
omnilateralidade humana, somente poderá se efetivar através da demolição das
barreiras existentes entre tempo de trabalho e tempo de não-trabalho, de modo que, a
partir de uma atividade vital cheia de sentido, autodeterminada, para além da divisão
hierárquica que subordina o trabalho ao capital hoje vigente e, portanto, sob bases
inteiramente novas, possa se desenvolver uma nova sociabilidade. E se o trabalho
tornar-se novamente dotado de sentido será também (e decisivamente) através do
verdadeiro tempo livre, do ócio, em sua forma mais autêntica e livre, que o ser social
poderá humanizar-se e emancipar-se em seu sentido mais profundo (ANTUNES,
2013).
Laborare. Ano III, Número 4, Jan-Jun/2020, pp. 6-14. ISSN 2595-847X. https://trabalhodigno.org/laborare
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2020-46
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Isso porque, sob o sistema de metabolismo social do capital, o trabalho que estrutura
o capital desestrutura o ser social. O trabalho assalariado, que dá sentido ao capital,
gerara uma subjetividade inautêntica no próprio ato de trabalho. Numa forma de
sociabilidade superior, em um novo modo de vida, o trabalho, ao reestruturar o ser
social, terá como imperativo central desestruturar, e de forma cabal, o sistema de
metabolismo social do capital. E esse mesmo trabalho autodeterminado, ao mesmo
tempo que torna sem sentido o capital (eliminando-o), gerará as condições humano-
sociais necessárias para o florescimento de uma subjetividade autêntica e
emancipada, dando um novo sentido ao trabalho e para a humanidade.
REFERÊNCIAS
Laborare. Ano III, Número 4, Jan-Jun/2020, pp. 6-14. ISSN 2595-847X. https://trabalhodigno.org/laborare
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2020-46
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Qual é o futuro do trabalho na Era Digital?
Recebido: 30/03/2020
Revisado: 11/05/2020
Aprovado: 08/06/2020
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