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Orientação Dos Gatos - Digital

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I.

Quando Alana e Osíris me olham não posso queixar-me


da menor dissimulação, da menor falsidade. Olham-me
de frente, Alana sua luz e Osíris seu raio verde. Também
entre eles se olham assim, Alana acariciando o negro lom-
bo de Osíris que levanta o focinho do prato de leite e mia
satisfeito, mulher e gato conhecendo-se em planos que me
escapam, que os meus carinhos não conseguem superar.
Faz tempo que renunciei a toda autoridade sobre Osíris,
somos bons amigos a uma distância intransponível; mas
Alana é minha mulher e a distância entre nós é outra, algo
que ela parece não sentir mas que se interpõe em minha
felicidade quando Alana me olha, quando me olha de fr-
ente que nem Osíris e me sorri ou me fala sem a menor
reserva, dando-se em cada gesto e cada coisa como se dá
no amor, ali onde seu corpo é como seus olhos, uma en-
trega absoluta, uma reciprocidade ininterrompida.
II.

É estranho, embora tenha renunciado a entrar comple-


tamente no mundo de Osíris, meu amor por Alana não
aceita essa simplicidade de coisa concluída, de casal para
sempre, de vida sem segredos. Atrás desses olhos azuis
há mais, no fundo das palavras e dos gemidos e dos silên-
cios anima-se outro reino, respira outra Alana. Nunca a
disse isso, quero-a demais para não trincar essa superfície
de felicidade pela qual já deslizaram tantos dias, tantos
anos. A meu modo, teimo em compreender, em descobrir;
observo-a sem espiá-la; sigo-a sem desconfiar; amo uma
maravilhosa estátua mutilada, um texto inacabado, um
fragmento de céu inscrito na janela da vida.
III.

Houve um tempo em que a música me pareceu o caminho


que me levaria de fato a Alana; vendo-a ouvir nossos dis-
cos de Bártok, Duke Ellington, Gal Costa, uma transparên-
cia paulatina me afundava nela, a música a despia de uma
maneira diferente, a tornava cada vez mais Alana porque
Alana não podia ser somente essa mulher que sempre me
tinha olhado de frente me esconder nada. Contra Alana,
mais além de Alana, eu a buscava para amá-la melhor;
e se no começo a música me deixou entrever outras Ala-
nas, chegou o dia em que, diante de uma gravura de Rem-
brandt, eu a vi mudar ainda mais, como se um jogo de nu-
vens no céu alterasse bruscamente as luzes e as sombras
de uma paisagem. Senti que a pintura a levava para além
de si mesma a esse único espectador que podia medir a
instantânea metamorfose nunca repetida, a entrevisão
de Alana em Alana. Intermédiarios involuntários, Keith
Jarret, Beethoven e Aníbal Troilo me haviam ajudado na
aproximação, mas frente a um quadro ou a uma gravura
Alana se despojava ainda mais disso que acreditava ser,
por um momento entrava em um mundo imaginário para
sem saber sair de si mesma, indo de uma pintura a outra,
comentando-as ou calando, jogo de cartas que cada nova
contemplação embaralhava para aquele que silencioso e
atento, um pouco atrás ou levando-a pelo braço, via suce-
derem-se as rainhas e os ases, os ouros e os paus, Alana.
IV.

O que se podia fazer com Osíris? Dar-lhe seu leite, deixá-lo


em seu negro novelo confortável e ronronante; mas eu po-
dia trazer Alana a esta galeria como o fiz ontem, mais uma
vez, para assistir a um teatro de espelho e câmaras escu-
ras, de imagens tensas na tela frente a essa outra imagem
de alegres jeans e blusa vermelha que depois de esmagar o
cigarro à entrada ia de quadro em quadro, detendo-se ex-
atamente à distância que seu olhar requeria, voltando-se
para mim de vez em quando para comentar ou comparar.
Jamais teria podido descobrir que eu não estava ali pelos
quadros, que um pouco atrás ou de lado a minha maneira
de olhar nada tinha a ver com a dela. Jamais perceberia
que sua lenta e reflexiva passagem de quadro em quadro a
transformava até me obrigar a fechar os olhos e lutar para
não apertá-la nos braços e levá-la ao delírio, a uma loucu-
ra de correr em plena rua. Desenvolta, leve em sua natu-
ralidade de prazer e descoberta, suas paradas e demoras
inscreviam-se em um tempo diferente do meu, estranho à
tensa espera de minha sede.
V.

Até então tudo tinha sido um vago aviso, Alana na música,


Alana diante de Rembrandt. Mas agora minha esperança
começava a se cumprir quase insuportavelmente, desde
nossa chegada Alana entregara-se às pinturas com uma
cruel inocência de camaleão, passando de um estado a
outro sem saber que um espectador escondido observa-
va em sua atitude, na inclinação de sua cabeça, no movi-
mento de suas mãos ou seus lábios, o cromatismo interior
que a percorria até mostrá-la outra, ali onde a outra era
sempre Alana somando-se a Alana, as cartas juntando-se
até completar o baralho. A seu lado, avançando pouco a
pouco ao longo das paredes da galeria, eu a via entregar-
se a cada pintura, meus olhos multiplicavam um triângulo
fulminante que se estendia dela ao quadro e do quadro a
mim mesmo para voltar a ela e apreender a transforma-
ção, a auréola diferente que a envolvia um momento para
depois ceder a uma nova aura, a uma tonalidade que a ex-
punha à verdadeira, à última nudez. Impossível prever até
onde se repetiria essa osmose, quantas Alanas me levari-
am por fim à síntese da qual sairíamos os dois saciados,
ela sem sabê-lo e acendendo um novo cigarro antes de me
pedir que a levasse para tomar um trago, eu sabendo que
minha longa busca chegara ao fim e que meu amor abar-
caria a partir de agora, o visível e o invisível, aceitaria o
límpido olhar de Alana sem incertezas de portas fechadas,
de passagens vedadas.
VI.

Diante de um barco solitário e um primeiro plano de ro-


chas negras, a vi permanecer imóvel um longo tempo;
um imperceptível ondular das mãos fazia-a como nadar
no espaço, buscar o mar aberto, uma fuga de horizontes.
Eu não podia mais estranhar que essa outra pintura, onde
uma cerca de agudas pontas vedava o acesso às árvores
vizinhas, a fizesse retroceder como que buscando um pon-
to de mira, de repente era a repulsa, a recusa de um limite
inaceitável. Pássaros, monstros marinhos, janelas dando-
se ao silêncio ou deixando entrar um simulacro da morte,
cada nova pintura arrasava Alana, despojando-a de sua cor
anterior, dela arrancando as modulações da liberdade, do
vôo, dos grandes espaços, afirmando sua negativa diante
da noite e do nada, sua ansiedade solar, seu quase ter-
rível impulso de ave fênix. Permaneci atrás sabendo que
não me seria possível suportar o seu olhar, a sua surpresa
interrogativa quando visse em minha cara o deslumbra-
mento da confirmação, porque isso era também eu, isso
era o meu projeto Alana, a minha vida Alana, isso tinha
sido desejado por mim e refreado por um presente de ci-
dade e moderação, isso agora afinal Alana, enfim Alana e
eu desde agora, desde agora mesmo. Teria querido tê-la
nua nos braços, amá-la de tal maneira que tudo ficasse
claro, tudo ficasse dito para sempre entre nós, e que dessa
interminável noite de amor, nós que já conhecíamos tan-
tas, nascesse a primeira alvorada da vida.
VII.

Chegávamos ao final da galeria, aproximei-me da porta


de saída, ainda ocultando o rosto, esperando que o ar e
as luzes da rua me fizessem voltar ao que Alana conhecia
de mim. Eu a vi deter-se diante de um quadro que outros
visitantes me haviam ocultado, ficar longamente imóvel
olhando a pintura de uma janela e um gato. Uma última
transformação fez dela uma lenta estátua nitidamente
separada das demais, de mim que me aproximava inde-
ciso procurando-lhe os olhos perdidos na tela. Vi que o
gato era idêntico a Osíris e que olhava ao longe algo que a
parede da janela não nos deixava ver. Imóvel em sua con-
templação, parecia menos imóvel que a imobilidade de
Alana. De algum modo senti que o triângulo se rompera,
quando Alana virou para mim a cabeça o triângulo não
mais existia, ela havia ido ao quadro mas não estava de
volta, continuava do lado do gato olhando além da janela
onde ninguém podia ver o que eles viam, o que somente
Alana e Osíris viam cada vez que me olhavam de frente.


“Orientação Dos Gatos”
Julio Cortazar, tradução de Remy Gorga Filho
In: Orientação dos Gatos. Ed. Nova Fronteira, 1981.

Título original: “Orientación de los Gatos”


In: Queremos Tanto a Glenda, 1980

Ilustrações e Projeto Gráfico:

Marcio Zamboni
Trabalho premiado no 18o Programa Nascente
da Pró Reitoria de Cultura e Extensão da USP
(Vencedor da Categoria Design).

Versão para visulaização digital,


disponível gratuitamente em:

www.marciozamboni.com.br

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