Três Problemas para A Filosofia Moral
Três Problemas para A Filosofia Moral
Três Problemas para A Filosofia Moral
1
Juan Adolfo Bonaccini
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
I
Por que se deve, antes de mais nada, falar de “Filosofia e Moral”
2
? Por que não Filosofia
Moral, ou Ética? Porque a moral não se confunde com a filosofia e porque a filosofia
não é
a única forma de reflexão moral ou sobre a moral
3
. Em princípio, filosofia é uma coisa, e
moral, outra. Por moral, ou melhor, por moralidade entendo uma esfera ou dimensão
da
vida humana que está dada; historicamente, inclusive, antes de toda filosofia. Juízos de
caráter moral, de censura ou elogio, sempre foram emitidos, mesmo antes da existência
histórica de uma tradição filosófica como a ocidental; e sempre podem ser feitos
independentemente do conhecimento desta ou daquela teoria filosófica. O que não quer
dizer que a filosofia não descubra princípios filosóficos na base de cada moral
particular ou
de cada juízo moral.
Assim, para entender a relação entre filosofia e moral é preciso considerar que a
moralidade
não se confunde com a filosofia moral ou ética filosófica. Esta última é antes uma
consideração reflexiva da primeira. Dado que a filosofia, num sentido vago e geral,
pode
ser definida como uma atividade que consiste em refletir sobre fundamentos, e como a
moralidade refere-se às tábuas de valores e às exigências com base nos quais os homens
sempre, em determinadas circunstâncias de sua vida, avaliam as pessoas, suas ações ou
motivações, censurando-as ou elogiando-as como corretas e incorretas, tudo que a
filosofia
pode fazer com respeito ao problema moral (i.é. à moralidade) é refletir sobre seus
princípios. Assim, na tentativa de reconstruir esses princípios, surgem as diferentes
teorias
morais que a tradição e a contemporaneidade conhecem no âmbito da filosofia moral –
e
que muitos preferem, não obstante, chamar de Ética.
Do mesmo modo que historicamente variam os conteúdos das concepções morais,
enquanto
que não muda o fato de que todos os indivíduos julgam moralmente e toda sociedade,
cultura ou civilização não dispensa exigências morais, os filósofos têm produzido uma
série
de reconstruções diversas do “fenômeno moral”: na esperança de chegar a uma
compreensão daquilo que permanece como a essência de toda norma ética e de toda
exigência moral independentemente de circunstâncias históricas.
II
A filosofia moral, na tentativa de encontrar uma teoria moral capaz de satisfazer as
exigências e características próprias ao fenômeno moral, sempre encontra empecilhos
que
não são de pouco monta e alimentam um debate muitas vezes milenar. Eu não pretendo
reconstruí-lo aqui, nem falar da filosofia moral de Platão, Aristóteles, Kant ou de
qualquer
outro. O que sim pretendo é destacar três problemas que me parece que toda boa teoria
moral deveria resolver:
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i) O problema de que toda teoria moral é uma reflexão teórica que do ponto de vista
prático pode ser considerada moralmente correta ou não;
ii) O problema de definir em que consiste a pessoa moral e/ou o ato moralmente
correto, bem como os critérios para seu reconhecimento e para a imputabilidade
enquanto tal;
iii) O problema de determinar a tarefa precisa da filosofia moral: se ela é descritiva
ou normativa (o que nos remete para (I); se ela deve definir ou elucidar o que é
bom, ou se ela deve prescrever os requisitos para que a boa ação seja realizada.
A seguir, gostaria de explicar sucintamente em que consiste cada problema.
i) Quando eu teorizo sobre algo, eu me distancio desse algo para poder considerá-lo o
mais
“objetivamente” possível. Assim, a teoria é diferente do objeto e não se confunde com
ele.
Mas na filosofia moral isto é um problema, porque quem teoriza é uma pessoa, e
teorizar é
uma ação. Assim, a pessoa, por sua ação, motivação ou decisão, e a própria ação,
recaem
sob a norma ética e podem por isso ser censuradas ou elogiadas. Agora bem, se quem
teoriza considera sua teoria como teoria, então parece que ela não pode ser senão
moralmente neutra – e que seu uso é que poderia não sê-lo. Nesse caso, teoria e moral
seriam coisas distintas, e então parece que a teoria não pode ser moralmente correta ou
incorreta. Pois se uma teoria moral não for neutra não possuirá distanciamento e será de
certo modo uma moral particular, o que acarretaria confundir moral com filosofia
moral.
Porém, do ponto de vista moral é sempre questionável que uma teoria seja moralmente
neutra. Se ela for considerada neutra, parece que deveremos admitir uma atividade que
está
como que por cima da moral, “além do Bem e do Mal”; uma atividade tal que não
poderia
ser censurada e seria inimputável; e quem admitiria isto, quando é público e notório que
toda neutralidade é uma posição baseada em decisões, e decisões são moralmente
imputáveis? O problema, então, consiste em que a filosofia moral deve ser teoria e não
deve sê-lo ao mesmo tempo; deve ser moral, e não deve sê-lo.
ii) Se disséssemos que uma pessoa moral é uma pessoa de caráter, como se diz, e
admitíssemos que uma pessoa de caráter é alguém que age em sua vida de modo
moralmente correto, parece que teríamos chegado a um bom critério do que é ser uma
pessoa moralmente boa. Mas o problema é mais difícil do que parece: o que é agir de
modo
moralmente correto (ter caráter)? Como discriminar ações morais de ações que não são
morais? Dizer que agir moralmente é efetuar ações morais parece algo claro. Mas todo o
problema recai em encontrar um critério para distinguir ações moralmente corretas de
ações
que não o são. A tradição tem vários critérios, públicos e privados. Do ponto de vista da
observação, e até do exercício de agentes e pacientes de ações, parece que há ações que
são
à primeira vista imorais, e ações que são morais. Ajudar uma velhinha a atravessar a rua
pode ser uma boa ação para qualquer observador externo, assim como mentir ou roubar
pode parecer algo moralmente incorreto para qualquer um. Mas o problema é que este
critério é insuficiente: a motivação e a intenção podem ser sido qualquer coisa menos
morais se o sujeito acompanha a velhinha com o intuito de roubar-lhe a bolsa, ou para
parecer bonzinho frente aos outros, ou ainda para alimentar o seu próprio orgulho;
enquanto
que, se alguém mente com a intenção de evitar um mal maior, como salvar uma vida ou
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evitar sofrimentos a um paciente terminal, ou rouba com a intenção de ajudar a alguém
que
precisa, ou para alimentar uma família, já não diríamos com tanta certeza que se trata de
ações imorais. Assim, um critério para discernir ações morais de ações imorais que
levasse
em conta apenas a aparência externa dos atos não seria um bom critério, posto que
poderia
desconsiderar o fato de que a motivação das mesmas poderia ser exatamente o contrário
do
que aparenta. Quiçá por isso alguém já disse (Aristóteles, E.N. X) que a ação eticamente
ideal é aquela em que ato é conforme a virtude e a intenção também.
O grande problema que parece decorrer disso é que intenções e motivações são
imperscrutáveis. Ainda que a história e as circunstâncias da ação em que o agente age
pareçam em alguns casos revelar a motivação (nessa suposição se funda a
imputabilidade
de dolo no direito ocidental), nunca podemos estar certos das intenções que movem à
ação,
a não ser no caso em que nós próprios somos os sujeitos da ação. E mesmo assim às
vezes é
confuso para nós, apesar da consciência de intenção, se nela não se mescla algum outro
interesse compatível. A conseqüência é a possibilidade de censurar injustamente. Como
juízos morais pressupõem um critério de moralidade e não possuímos um critério certo
para
todos os casos, parece que devemos admitir que em muitos casos podemos estar
julgando
aparências e cometendo injustiças, o que redunda em basearmo-nos moralmente em
preferências subjetivas para julgar algo como sendo moralmente certo ou errado.
iii) A tarefa de determinar se a filosofia moral é descritiva ou normativa também nos
coloca
frente a alguns impasses. Se a filosofia moral apenas deve descrever o que é o bem
moral
ou o que é bom, não se entende muito bem para quê: parece como se os descritivistas
fossem no fundo moralistas ingênuos tentando indicar descritivamente o que é bom, na
esperança de que as pessoas agissem de acordo com ele. Se a filosofia moral é
normativa,
todavia, ela não nos confronta meramente em face de uma definição do bem moral, mas
nos
diz quais são as condições que devemos preencher para realizá-lo. Nesse caso nos terá
de
propor deveres; e deveremos fazer A ou B para agirmos moralmente, para sermos
felizes,
etc. Mas nesse caso parece que a filosofia moral ocupará o lugar de uma concepção
moral
particular, e nesse caso não sei se poderemos chamá-la de filosofia – já que será pura
moral.
Como se vê este problema iii) esta estreitamente relacionado ao problema i).
Estes são os problemas que me parecem essenciais à filosofia moral
4
. Há decerto outros, e,
portanto não são os únicos. Em todo caso, parece que devemos discutir se as teorias
morais
existentes resolvem estes problemas, e caso contrário, parece que devemos encontrar
uma
resposta satisfatória para cada um deles.
Juan Adolfo Bonaccini
Notas
1
Versões deste texto foram apresentadas no Café Filosófico (Livraria Nobel, Natal
Shopping, 31 de outubro de 2002), na TV Universitária (2003) e na XI Semana de
Humanidades da UFRN (2003). Agradeço à audiência e aos colegas cujas críticas e
questões me ajudaram a clarificar meu próprio ponto de vista, principalmente aos
editores
desta revista, que em muito ajudaram a melhorar a clareza do meu texto.
Page 4
2
Tal era o título da primeira versão do trabalho.
3
Ainda que alguns autores diferenciem ética e moral, eu os tomo aqui por termos que
possuem a mesma referência no uso que deles fazemos. Porque embora alguns digam
que
Ética é uma disciplina filosófica e Moral algo historicamente dado, quando alguém faz
algo
que consideramos errado ou digno de censura dizemos que é antiético ou moralmente
incorreto de modo indistinto. Se de fato e historicamente Ética filosófica é a disciplina
que
estuda a problemática da moralidade no agir humano, isto não faz com que a dimensão
que
chamamos ética deixe de ser a mesma que temos em mente quando falamos de moral
ou da
moralidade. Se não se quer aceitar isto, basta compreender que eu não me vejo obrigado
a
distinguir ética de moral como o fariam Nietzsche, Hegel ou outros autores, e inclusive
o
próprio Kant.
4
Muitos dirão que o grande problema consiste em determinar se a filosofia moral deve
justificar a exigência moral enquanto tal ou se apenas deve descrever o fenômeno
moral e
elucidar o que é bom. Mas eu creio que esse problema fica resolvido quando se decide a
natureza, descritiva ou prescritiva, da filosofia moral. De todo modo, eis os problemas.
Cabe-nos, doravante, procurar-lhe soluções plausíveis.
Esse texto se propõe a analisar a seguinte frase de Kant: "São injustas todas as acções que se referem
ao direito de outros homens, cujas máximas não se harmonizem com a publicidade", relacionando-as com
aspectos de sua filosofia política e moral.
Esta proposição é a fórmula transcedental do direito público, presente no segundo apêndice do Tratado
da Paz Perpétua, intitulado "Da Harmonia da Política com a Moral Segundo o Conceito Transcedental no
Direito Público". Nestes apêndices, Kant está fundamentalmente preocupado em analisar a política, o
direito e a moral em suas compatibilidades.
Para Kant, o fim último da humanidade é alcançar a constiuição política perfeita. Esta disposição original
avança, ainda que de forma lenta. Pode-se percebê-la se mudarmos a perspectiva da observação
histórica. Isto a natureza ordenou desde o início, e a natureza ordena somente uma vez, sendo sempre
obedecida, mesmo à revelia das vontades individuais. A História fragmentada, vista pela perspectiva
individual e pelas idiossicrasias particulares, mostra uma trajetória irregular, cheia de erros e absurdos,
mas o historiador filósofo, como propõe Kant, pode procurar a perspectiva da espécie e extrair as
diretrizes comuns que norteiam povos diferentes em épocas diferentes. É inclusive dever que se impõem
ao homem, quando se torna consciente disso, proceder da melhor maneira para que essa finalidade
inevitável se desdobre o quando antes e da melhor maneira.
A constituição política perfeita seria a garantia da supressão da guerra e o estabelecimento da paz por
tempos incontáveis. Seria a garantia de realização da racionalidade humana em sua mais elevada forma,
a única maneira que o homem civil teria de se situar no mundo depois de ter sido arrancado do seio da
natureza, pelo pacto social. A natureza, no curso dessa ação traçada segundo um plano, procede por
misteriosos e minuciosos meios. A própria guerra pode ter sido um meio de servir a esse propósito, o
futuro de paz. Foi a guerra, aponta Kant, que levou os homens a se espalharem pelo globo. No entanto,
mesmo nos mais longínquos e inóspitos pontos do planeta, o homem encontrou meios para subsistir e
multiplicar. Nas regiões geladas, por exemplo, a natureza proveu o homem da pele e gordura dos animais
para vestimenta e fogo. Levou madeiras através dos rios para a construção de jangadas e forneceu
outros meios de colonização.
A posição de Kant em relação a povos não-europeus é bastante interessante. Como afirma em Idéia de
uma História universal. Embora não considere, seguindo a opinião de Hume, que os negros sejam
capazes de grandes feitos culturais ou cientifícos, adota uma postura arrojada ao admitir que a
"colonização" das "terras selvagens" foi recheada de crueldades e injustiças, pois o europeu, quando lá
chegou, considerou tais terras sem dono, tendo portanto o legítmo direito de posse. Kant reconhece o
direito sobre a terra desses povos. Os indígenas na América do Norte, teriam, para Kant, um grande
potencial. Bastaria apenas o surgimento de um grande legislador, como foi Licurgo, para poderem
estabelecer a gigantesca maquinaria política do Estado, erigindo assim uma república espartana no Novo
Mundo. Estes "selvagens" apresentariam atributos como honra, sinceridade, amizade, liberdade e
coragem, sendo carentes do sentido da beleza moral e do perdão generoso que a civilização cristã
pretende para si.
A civilização chinesa é também apreciada em sua própria dimensão, já que Kant censura as missões
ocidentais que lá queriam se estabelecer e elogia a xenofobia chinesa que impunha severas restrições no
contato com os povos estrangeiros. Kant enxerga, também, uma origem comum a todos povos. Depois de
tecer alguns brilhantes e eruditos comentários sobre a designação pela palavra China dessa imensa
região, elabora a hipótese de que os povos só foram para regiões como o Tibete depois de terem sido
expulsos de um lugar primevo pela guerra provocada pela escassez de recursos e pela ausência do
estado civil. Também os esquimós seriam, talvez, os primeiros colonizadores, que possibilitaram a
invasão da América numa época imemorial.
Esta consideração, ainda que limitada, pela diversidade dos povos, numa época em que o eurocentrismo
exisitia com força plena, é bem demonstrada nos artigos II e III da Primeira Seção do Tratado da Paz
Perpétua: os Estados devem ser considerados em sua soberania. A não-obediência a esse princípio
acarreta risco para a própria causa da existência dos estados: a livre associação dos indivíduos segundo
o contrato originário.
O Estado não pode perder seu caráter moral, sendo transformado em coisa, assim como a mobilização
da população para fins desnecessários é caracterizada como abuso do soberano em relação aos súditos.
A imiscuição de um Estado noutro é uma ingerência, pois cada Estado tem sua raiz no próprio tronco e
tem o direito, como independente, de combater suas enfermidades.
Os cidadãos convocados para o Exército por uma potência invasora estão extrapolando seu dever como
parte do soberano. Kant é contrário à existência de exércitos profissionais e permantentes, defendendo a
associação militar voluntárias dos cidadãos somente nos momentos de crise. Isso é mostrado na
Proposição 3, "Os exércitos permanentes (miles perpetum) devem, com o tempo, desaparecer
totalmente" : "pôr-se a soldo para matar ou ser morto parece implicar em uso dos homens como simples
máquinas e instrumentos nas mãos de outrem (do Estado), uso que não se pode harmonizar bem com o
direito da humanidade na nossa própria pessoa. Uma coisa inteiramente diferente é defender-se e
defender a pátria dos ataques do exterior com o exercício militar voluntário dos cidadãos realizados
periodicamente."
Esta preocupação com os limites do Estado em relação aos seus súditos é demonstrada também pelo
autor em sua relação com a política da época, e não somente na sua teoria. No Conflito das faculdades,
Kant denuncia severamente a manipulação do povo empreendida pelo Estado através dos esforços das
faculdades ditas superiores: a teológica, a de direito, e a de medicina.
A maneira vertical com que propagam suas doutrinas não deixava espaço para o debate desinteressado
que busca apenas a verdade. Este papel ficaria a cargo da faculdade inferior de filosofia, segundo a
estrutura da universidade alemã setecentista. Os ensinamentos das Faculdades Superiores emanariam
de um princípio também superior, e não da simples razão. Especialmente a Faculdade Teológica, que tem
como cânon a Bíblia, não pode estar aberta ao questionamento. Não cabe ao teológo julgar o valor de
verdade do dogma, apenas reproduzi-lo. Mas Kant considera que é da alçada da investigação filosófica
as doutrinas religiosas, em seus diversos assuntos, até onde se possa estabelecer um limite seguro do
conhecimento segundo a razão. Para ilustrar melhor esse complicado preceito, Kant elabora uma
engenhosa imagem no prefácio de A religião nos Limites da Simples Razão: A teologia e a filosofia seriam
como dois círculos concêntricos, englobados um no outro, sendo a fé o círculo maior. Porém a filosofia
teria os seus limites mais bem delimitados, pois, através do rigor racional da investigação, poderia saber
onde termina o conhecimento - ainda que especulativo - e começa o recurso da fé, terreno lodoso.
Haveria até mesmo consonância de resultados na Faculdade de Filosofia com a de Teologia no tocante à
moral, no aspecto prático dos preceitos de dever e de conduta. Este seria, para Kant, o verdadeiro motivo
da longevidade do cristianismo, e não sua erudição histórica. Tanto o imperativo categórico como a moral
religiosa são absolutos. A diferença é que a última fundamenta sua autoridade no julgamento das almas
por Deus e o imperativo coloca seu princípio em si mesmo.
Dissemos que a filosofia pode se intrometer nos assuntos religiosos. O teólogo, porém, segundo a
peculiariedade de sua faculdade, não deve se intrometer no campo da filosofia, sob o risco de recair
numa "anarquia", na falta de paradigmas proporcionados pela Revelação e Graça Divina. Existem alguns
teóricos, porém, que aceitam e vivificam a discussão, como o amigo de Kant, Stäudlin, a quem o Conflito
é dedicado, e a pedido de quem Kant havia escrito, originalmente, a primeira dissertação sobre o conflito
com a Faculdade de Teologia. Sobre essa revelação Kant formula mais uma imagem, que aparece pelo
menos duas vezes: A faculdade filosófica seria a serva da teológica, resta saber se adiante iluminando o
caminho com uma tocha ou atrás carregando a cauda do vestido majestoso.
Falavámos do uso arbitrário que o governo fazia das três faculdades superiores para atingir o seu fim, que
é a influência sobre o povo. Kant observa a seguinte ordem na influência que corresponde à ordem das
faculdades: "em primeiro lugar, o bem eterno de cada um; em seguida, o bem civil como membro da
sociedade; por fim o obem corporal (viver longamente e ter saúde). Mediante as doutrinas públicas em
relação ao primeiro, o próprio governo pode ter a máxima influência sobre o íntimo dos pensamentos e os
mais recônditos desígnios das vontades de seus súditos, a fim de descobrir aqueles e dirigir estes; graças
às que se referem ao segundo, pode manter o seu comportamente externo sob o freio das leis públicas;
por meio do terceiro, assegurar a existência de um povo forte e numeroso que achará utilizável para seus
propósitos." Vê-se que as faculdades superiores, os profissionais e funcionários que elas formam tem
uma atividade não acumulativa e progressiva, no tocante à sua ciência, mas somente acumulativa,
reprodutora de medidas sancionadas.
Para a Faculdade Filosófica Kant defendia a não-interferência do Estado, que deveria a ela conceder a
liberdade de formular suas doutrinas e julgar o valor de verdade dos outros ramos do saber. Numa nota
bastante esclarecedora da Introdução do Conflito, a nota 5, Kant faz uma analogia entre a fala de um
comerciante ao ministro que queria melhorar o comércio, e a maneira liberal com que o governo deveria
brindar a faculdade de filosofia: "Criai boas estradas, cunhai boa moeda, institui um pronto direito cambial
e coisas semelhantes. Quanto ao mais, porém, <<deixai-nos a nós fazer>>". O governo não tem
competência para poder tratar de todos os assuntos, assim sua intromissão se tornaria nociva. Nesse
ponto, a Faculdade de Medicina se assemelharia à de Filosofia: Já que o governo não pode julgar os
assuntos técnicos da medicina, limitava-se a sancioná-los e a cuidar da política pública de saúde em
aspectos extrínsecos.
Vê-se que o que está em jogo é uma crítica ao Estado paternalista, o Estado Eudemonístico, que procura
orientar os súditos para a "felicidade". Norberto Bobbio observa que enquanto o Estado Natural foi
chamado de protetor, o Eudemonístico foi chamado de paterno. O estado protetor se limita à ordem
externa, não se intrometendo nos assuntos internos de seus protegidos. Já o estado paternalista julga-se
no dever de cuidar da saúde moral, material e espiritual de seus súditos. Nesse ponto Kant estava muito
distante de defender o rei-pai absolutista, aproximando-se de Locke, que após refutar o absolutismo de
Filmer, defende um poder régio diferente do poder dos pais sobre os filhos. (BOBBIO, Direito e Estado no
Pensamento Político de Immanuel Kant, pg 136 e seguintes).
Um pouco decepcionante, portanto, é a postura do povo que aceita o jugo e até parece satisfeito com ele.
Kant comenta laconicamente que o povo tem propensão para o gozo e aversão a corrigir-se ou admitir-se
errado. Na seção II do Conflito, num diálogo imaginário entre o povo e o filósofo, há um questionamento
se todo esse palavreado teórico da filosofia adiantaria alguma coisa se houvesse julgamento das almas
no céu, ou se houvesse um processo jurídico que o cidadão precisasse ganhar, ou para manter o corpo
são.
O desdém do povo pela filosofia deve-se a dois fatores: a falta de aplicabilidade da teoria - pois tanto
estudo não chegaria a conclusões muitos diversas do senso comum, e a grande expectativa em relação
ao sábio e ao erudito - a quem o povo se aproxima como a um adivinho ou mago portador de poderes
sobrenaturais.
Apesar de o Iluminismo ser uma das três épocas em que a filosofia mais se aproxima da sociedade, (os
outros dois seriam o ensino público de retórica na Grécia Antiga e a Filosofia Política do XIX e XX,
comunismo, anarquismo etc) temos aqui a repetição de um tema muito nosso conhecido: o desprezo e
preconceito de vulgo em relação ao abstrato, e consegüinte, a condenação da filosofia. Como na Alegoria
da Caverna de Platão, o povo não aceita que lhe mostrem a verdade de sua condição de ignorância e
escravidão, preferindo uma falsa felicidade em nome da comodidade à liberdade e consciência do
sublime e grandioso, que certamente dá e exige mais dedicação e entendimento.
Este é o papel de tutelado que Kant atribui ao povo e que se assemelha a um homem em sua
menoridade. Deleuze observa logo no início de Para Ler Kant, que o homem sai da menoridade do ponto
de vista da natureza quando se torna capaz de procriar, e do ponto de vista da sociedade quando se
torna capaz de se sustentar. Para Kant, a saída do homem da menoridade estaria intrinsicamente ligada
ao processo de esclarecimento (Aufklärung). Sapere Aude!, encoraja o filósofo. Ousar saber é o pré-
requisito para o homem se situar no mundo. Tudo o que nunca foi usado é débil, mas não se deve
desisitir de usar o entendimento ainda que se leve alguns tombos no início desse processo. Pois, o
financista faz as minhas contas, o médico se ocupa de minha saúde, o padre de minha alma. Sou levado
a repassar meu direito inalienável da liberdade de pensamento para "especialistas" à minha volta, sendo
assim incapaz de caminhar por passos próprios. Apenas a preguiça e a covardia podem levar a querer
me manter nesta situação miserável. Ou seja, o homem é responsável pela sua própria ignorância.
(KANT, O Que é o esclarecimento?)
O processo de esclarecimento exige o direito do uso público da razão para poder se consolidar. Kant
admite que sua época ainda não é esclarecida, mas, otimisticamente, situa o Esclarecimento no futuro,
talvez como precedente da constituição perfeita que sua Filosofia da História anuncia.
Mas há bons motivos para Kant se mostrar otimista em relação ao avanço deste objetivo: estamos na
época Iluminista, na confiança do poder da luz natural da razão, no afastamento das superstições e das
trevas, no propósito de tudo esclarecer através da ciência. Rubes Rodrigues Torres Filhos observa no
ensaio "Respondendo à pergunta; Quem é a ilustração", invocando o Prefácio da Crítica da razão Pura,
que furtar-se à luz é querer se esconder. O projeto rigoroso kantiano propõem que tudo deve se submeter
à análise crítica. Essa é a única capaz de estabelecer os limites seguros da ciência e estruturar
sistematicamente o conhecimento adquirido. A própria Crítica da Razão Pura já se atribui esse caráter
inaugurador, pioneiro. Kant considera que seu trabalho, apesar de monumental, é preliminar,
propedêutico. Conclama o leitor à dar continuidades no tratamento de hipóteses que são apenas
levantadas em sua obra e lamenta o avanço dos seus anos.
O momento da publicação do Ensaio O que é Esclarecimento é certamente mais ameno e favorável que o
do posterior Conflito das Faculdades (1797). Neste, estamos sob o governo do rei Frederico Guilherme II,
que havia publicado dois editos de censura sobre religião e admoestado Kant por meio de seu censor,
Wöllmer, por ocasião da repercussão de seu livro A religião nos Limites da Simples Razão. Tal livro, aliás,
havia sido bem recebido, mesmo entre teólogos (liberais, como Stäudlin) e estava provocando um
saudável debate entre professores. Vemos Kant, no prefácio à Segunda Edição do livro, rebater algumas
críticas feitas à sua obra, mas agradecido e aquecido com o interesse dos convivas eruditos em sua
correspondência. Assim, o seu enquadramento no edito de censura e a funesta ameaça real de
conseqüências desagradáveis foi um duro golpe, que representou, senão em uma perda de otimismo
quanto à esperança de esclarecimento, pelo menor uma maior prudência e cuidado com as palavras. Na
sua justificação escrupulosa ao rei, Kant retira o debate abordado em se livro do âmbito público para
caracterizá-lo como "uma disputa entre eruditos da faculdade, da qual o povo nada sabe". O austero
professor, entretanto, sobreviveu à promessa de não escrever mais sobre religião enquanto súdito de
Frederico Guilherme II, que morreu pouco depois, ainda jovem.
O que é esclarecimento, entretanto é escrito durante o reinado de Frederico II, o Grande, que passou à
história como um rei iluminista, déspota esclarecido, incentivador e patrono de vários filósofos,
correpondente de Voltaire. Em seu reino a Prússia pode farejar o vento auspicioso do Esclarecimento.
O principal problema do estado de natureza é a ausência de um legislador imparcial que faça valer o
direito. Para que exista a propriedade é necessário também que haja a vigência de um estado de direito
com poder coercitivo. Ricardo Terra observa que, para que haja a propriedade privada, é necessária que
haja a propriedade suprema. Mas o soberano, enquanto personificação do Estado e representação da
Vontade Geral, não pode ter propriedade sem que se torne um particular. Isso acarretaria também em
risco de conflito. Supondo uma situação de disputa de propriedade entre um soberano e seu vizinho, este
poderia usar sua autoridade para garantir parcialidade da justiça, acabando assim com a característica
fundamental do estado de direito: a justiça competente para resolver questões sobre indivíduos de forma
alheia. O soberano, assim, possui tudo sem nada possuir. (TERRA, A política tensa, pg 52 e seguintes)
A melhor maneira de governo, para Kant, é a republicana. No Primeiro Artigo Definitivo para Paz
Perpétua, Kant coloca a constituição republicana como a única em consonância com o princípio de
liberdade, com o princípio de todos obedecerem uma legislação comum, e com a lei da igualdade dos
súditos enquanto cidadãos.
Kant estabelece uma distinção entre forma de soberania e forma de governo. A primeira diz respeito ao
número de pessoas que detém o poder. Seria a aristocracia, a autarquia e a democracia. A segunda diz
respeito à maneira pela qual o poder é exercido, podendo ser republicano ou despótico. Na forma
republicana, o Executivo está seprado do Legislativo, o governo obedece às leis promulgadas pelo
soberano, que devem estar de acordo com a Vontade Geral. Há aqui o importante conceito de
representação, que dá margem à caracterização da democracia como despotismo.
Os estados republicanos, na federação proposta na Paz Perpétua são os mais aptos a manter as
relações leais necessárias . Sem essa Federação os Estados estariam como que em um segundo estado
de natureza, uma vez que em relação uns aos outros, não há poder comum capaz de legislar para todos
imparcialmente. Tal constituição exigiria uma conduta extremamente ética por parte do estadista, a
ponmto de Kant comentar que seria necessário um "exército de anjos" para mantê-la.
Vimos então como o filósofo Kant estendeu sua teoria de Königsberg para o mundo, buscando sempre,
na idealidade da teoria política, moral e jurídica, o caráter necessário de suas proposições, mesmo que
elas só encontrem em estado de potência, e a germinação das sementes da universalidade encontrem,
inevitavelmente florescimento no futuro. Para sustentar essa necessidade o filósofo procurou sempre
demonstrá-las, de maneira racional e razoável, sem recorrer a princípios de autoridades externos e sem
se furtar ao debate.
BIBLIOGRAFIA
1.Bobbio, Norberto. Direito e Estado no Pensamento Político de Immanuel Kant. Editora da UnB.
2. Filho, Rubens Rodrigues Torres Ensaios de Filosofia Ilustrada. Editora Brasiliense, São Paulo, 1987.
4. _____________, Conflito das Faculdades. Tradução de Artur Morão. Edições 70, Lisboa.
6. _____________, Idéia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita, org. ricardo terra.
Brasiliense, 1986
ÉTICA
A ética está presente em todas as raças. Ela é um conjunto de
regras, princípios ou maneira de pensar e expressar. Ética é uma palavra
de origem grega com duas traduções possíveis: costume e propriedade de
caráter.
NOTAS:
BIBLIOGRAFIA:
KANT, Immanuel. A crítica da razão pura. São Paulo: Martins Fontes, 2002
RESUMO:
Desde Sócrates, o ocidente vem compreendendo e organizando o real e seus
múltiplos matizes tão - somente segundo as exigencias da razão. É a partir da
genese deste raciocentrismo, que emergiu , na cultura ocidental, a ética
enquanto normatização do agir humano segundo conceitos racionais do que seja
o BEM e o DEVER. Entrementes, tal paradigma racional ,com a genese da ciencia
moderna , gerou, concomitantemente, uma dilaceração dos valores éticos até
então vigentes, donde se verifica a raiz do atual niilismo ético - axiológico . No
afã de contribuir para a superação desta situação ética contemporânea , este
artigo visa apresentar a vida como elemento absoluto para pensar - se qualquer
elaboração ética hoje, já que o que se entende por vida , além de não se
identificar com um conceito bio-fisiológico, isto é , com um conceito advindo da
ciencia, comporta a alteridade , os demais entes do real (natureza) , a situação
cultural em questão e é algo histórico , possibilitando a gênese de uma ética não
normativista , ao mesmo tempo que não desemboca em uma concepção ética
relativista.
Conceitos fundamentais
Para escrever sobre ética, necessário se faz que alguns conceitos sejam
colocados de início. O principal deles sem dúvida é o da própria ética em si. Que
significa ética? A resposta, num ambiente relativista, pode ser: “Depende”. “De que
ética estamos falando?” Da ética profissional? Da ética filosófica? Da ética religiosa?
Da ética cristã? Mas, para efeito de raciocínio e compreensão, vamos ficar com os
conceitos mais comuns da ética em geral, em nosso tempo.
“Para o cristão, a ética pode ser entendida como um conjunto de regras de conduta,
aceitas pelos cristãos, tendo por fundamento a Palavra de Deus. Para os que crêem
em Jesus Cristo, como Salvador e Senhor de suas vidas, o certo ou o errado devem
ter como base a Bíblia Sagrada, considerada como "regra de fé e prática", conforme
Tenho recebido indagações de alunos cristãos, que são perseguidos, nas escolas
de primeiro nível, segundo nível, e na universidade, pelo fato de serem constrangidos a
participar de certas atividades escolares. Por exemplo, numa determinada época, nas
escolas estaduais e municipais, os professores procuram envolver os alunos, em
pesquisas, em reuniões e atividades, sobre a chamada festa do “Halloween”. Essa
programação envolve atividades, ditas culturais, folclóricas, e educacionais, que são
verdadeiro atentado à fé cristã. É uma festividade, importada da América do Norte, que
por sua vez, já a importou de países nórdicos, baseada num enredo que envolve
feitiçaria, bruxaria, ocultismo, esoterismo, e muitas outras práticas avessas à palavra de
Deus, todas disfarçadas de folclore e cultura.
Tenho duas netas, que estudam numa escola de primeiro nível, de grande
conceito na Cidade. Elas procuraram sua mãe, preocupadas, pois uma professora as
induziu a participar de um “bloco de gays”! Para incutir nas crianças a idéia de que se
devem respeitar as “diferenças”, e não ter preconceito, pois, em matéria de orientação
sexual, nada é errado. Tudo depende de cada um. Na mesma época, uma professora
incentivou os alunos a formarem um grupo de carnaval, intitulado “Bloco dos cães”.
Graças a Deus, minha filha foi à Escola, e falou com a coordenação, afirmando que suas
filhas não poderiam ser constrangidas a participar daquela atividade, pois iria de
encontro à sua formação cristã. E foi respeitada. Num ambiente social assim, o cristão
verdadeiro parece sentir-se como um peixe fora dágua.
Certamente, não é a ética cristã. “O cristão, como sal da terra e luz do mundo,
tem dificuldade em se movimentar num mundo em que os valores morais estão
invertidos. Entretanto, tem a vantagem de não adotar como referencial ético ou
comportamento da sociedade sem Deus. Enquanto os referenciais do mundo são
movediços, instáveis e mutantes, ao sabor do tempo e do lugar, o guia infalível do
crente em Jesus é a Palavra de Deus, que é lâmpada para os pés e luz para o caminho (Sl
119.105). Assim, um crente fiel não só deve fazer diferença, mas seu comportamento
deve ser referencial para a sociedade. É grande a responsabilidade, perante Deus, a
igreja e o mundo. Para o crente em Jesus a Palavra de Deus é lâmpada e luz para o seu
viver” 5.
Mas não há nada de especial diante do problema. As razões são bem conhecidas
para esse comportamento liberalista e relativista. A educação sexual, ministrada nas
escolas, financiada pelo dinheiro dos contribuintes da nação, incentiva a prática precoce
do sexo. É uma educação meramente informativa e técnica. Nada tem de formativa, e é
totalmente despojada de valores éticos e morais. Só uma coisa é bem ensinada: o uso da
“camisinha”. Toda a didática é empregada para mostrar às meninas de doze anos, ou
menos, bem como aos pré-adolescentes e adolescente, no sentido de levá-los a praticar o
“sexo seguro”, que nada mais é que uma falácia, que leva a muitas vidas ainda em
formação ao caminho da prostituição.
Há não muitos anos atrás, e resposta a essa questão seria mais fácil de ser
formulada. Hoje, porém, o relativismo tem dominado grande parte das denominações
evangélicas. O certo e o errado não são mais vistos como conceitos absolutos. Muita
coisa depende da ótica de cada um. Eu estava assistindo uma palestra de certo pregador,
numa denominação histórica, quando ele discorria sobre o cristão e a conduta diante dos
homens. O mesmo acentuava que havia atitude e comportamentos que contrarias a
palavra de Deus, e que o cristão precisava evitar causar escândalo a seu irmão. Naquele
momento, uma jovem, daquela igreja, levantou-se e falou: “Eu acho que não deve haver
essa preocupação. O que é errado para ele pode não sê-lo para mim”. “O que é errado
para mim pode não ser certo para ele”. Tal afirmação é de cunho relativista e
subjetivista.
O cristão, na realidade, não pode guiar-se por quase nenhuma das abordagens
éticas contemporâneas. O antinomismo não serve como referencial, pois prega a
ausência de normas. Nela, o homem se faz seu próprio deus. A Bíblia diz : "Há
caminho que ao homem parece direito, mas o fim dele são os caminhos da morte" (Pv.
14.12). "De tudo o que se tem ouvido, o fim é: Teme a Deus e guarda os seus
mandamentos; porque este é o dever de todo homem" (Ec 12.13; ver Pv 4.11,12; 6.23).
Depois, é filosofia relativista. Cada um faz o que melhor entende. É o que ocorria com o
povo de Israel, quando estava sem líder: "Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada
qual fazia o que parecia direito aos seus olhos" (Jz 17.6; 21.25). Aliás, em muitas
6
Revista VEJA, p. 73.
7
Norman GEISLER, Ética cristã, p. 30,31.
igrejas, já impera o Antinomismo, quando muitos não obedecem a Bíblia, não há
respeito a normas, e cada um faz o que acha melhor.
E o servo de Deus não pode ser uma pessoa que vive sem adotar normas de
conduta e de comportamento. O generalismo também não serve para o crente em Jesus.
“Os generalistas são utilitaristas. Só é certo o que produz melhor resultado (mais
felicidade ou prazer do que dor). Uma norma pode ser boa hoje, e não servir amanhã.
Depende da sociedade. Se, por exemplo, o adultério é errado, num período, em outro,
poderá ser aceito. Dessa forma, pode-se resumir essa abordagem, dizendo que "Há um
só fim absoluto (o máximo bem) e todos os meios (regras, normas, etc.) são relativos
àquele fim..". Se, nesta situação, mentir seria mais útil ou vantajoso para a maioria dos
homens, então se deve mentir" 8.
1) O princípio da fé.
S. Paulo, o apóstolo dos gentios, dizia: "Tens tu fé? Tem-na em ti mesmo diante
de Deus. Bem-aventurado aquele que não se condena a si mesmo naquilo que aprova.
Mas aquele que tem dúvidas, se come, está condenado, porque não come por fé; e tudo
o que não é de fé é pecado (Rm 14. 22,23). Nesse texto, vê-se a ênfase na fé ou na
convicção do crente diante de Deus, quanto ao que faz ou deixa de fazer. Ele não
precisa recorrer a paradigmas humanos ou lógicos para posicionar-se quanto a atos ou
palavras. Se tem dúvida, não deve fazer, pois "tudo o que não é de fé é pecado".
Na primeira carta aos coríntios, vemos Paulo ensinar: "Todas as coisas me são
ilícitas, mas nem todas as coisas convêm; todas as coisas me são lícitas, mas eu não me
deixarei dominar por nenhuma (1 Co 6.12). Todas as coisas me são lícitas, mas nem
todas as coisas convêm" (1 Co 10.23). Esse critério orienta o cristão a que não faça as
coisas apenas por que são lícitas, mas porque são lícitas e convém, à luz do referencial
ético que é a Palavra de Deus.
8
Norman GEISLER, Ética cristã, p. 47, apud Elinaldo LIMA, Ética cristã, p. 6,7.
3) O princípio da licitude e da edificação.
Diz a Bíblia: "todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas edificam"
(1 Co 10.23b). Com base neste texto, não basta que alguma conduta ou proceder seja
lícito, mas é preciso que contribua para a edificação do cristão. É um princípio irmão
gêmeo do anterior. A ênfase aqui é na edificação espiritual de quem deve posicionar-se
ante o fazer ou não fazer algo.
"Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo
para a glória de Deus" (1 Co 10.31). Aí, temos um princípio ético abrangente, que
inclui não só o comer ou o beber, mas "qualquer coisa", que demande um
posicionamento cristão. No dia-a-dia, sempre o cristão se depara com situações às vezes
triviais, que exigem uma tomada de posição.... qualquer atitude ou decisão a tomar, em
termos morais, financeiros, negócios, transações, etc., tudo pode passar pelo crivo do
princípio da glorificação a Deus, e o crente fiel, na direção do Espírito Santo, saberá
responder sem maiores dificuldades. A indagação que o cristão deve fazer, com base
nesse princípio, é: "O que desejo fazer ou dizer, contribui para a glorificação a Deus?".
Se a resposta for afirmativa, pelo Espírito Santo, a ação ou atitude pode ser executada.
Se for negativa, é melhor que seja rejeitada. O que contribui para glória de Deus não
fere nenhum princípio bíblico.
"E, quanto fizerdes por palavras ou por obras, fazei tudo em nome do Senhor
Jesus, dando por ele graças a Deus Pai" (Cl 3.17). A condição do crente para realizar
ou deixar de realizar algo decorre da autoridade que lhe foi conferida pelo Nome de
Jesus. Assim, quando o cristão se vê na contingência de tomar uma decisão, de ordem
espiritual, ou humana, pode muito bem concluir pela ação ou não, se puder realizá-la no
nome de Jesus, conforme orienta o apóstolo Paulo aos irmãos colossenses.
"E, tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como ao Senhor e não aos
homens" (Cl 3.23). Diante de uma atitude, de uma decisão, devemos indagar: "Estamos
agradando a Deus a Deus ou aos homens?" Estamos fazendo, de todo o coração, ao
Senhor?"A resposta deve ser honesta, consultando, não ao coração, mas à Palavra de
Deus.
"Mas vede que essa liberdade não seja de alguma maneira escândalo para os
fracos. Porque, se alguém te vir a ti, que tens ciência, sentado à mesa no templo dos
ídolos, não será a consciência do que é fraco induzida a comer das coisas sacrificadas
aos ídolos? e, pela tua ciência, perecerá o irmão fraco, pelo qual Cristo morreu. Ora,
pecando assim contra os irmãos e ferindo a sua fraca consciência, pecais contra
Cristo. Pelo que, se o manjar escandalizar a meu irmão, nunca mais comerei carne,
para que meu irmão não se escandalize". (1 Co 8.9-13). Desse modo, a questão,
segundo o princípio da certeza é: O que pretendo fazer o faço com certeza de fé? E essa
certeza é fundamentada na Palavra de Deus? Tem respaldo na Bíblia? Não é apenas
fruto de minha consciência falha, ou do meu coração enganoso? (ver Jr 17.9). Se a
resposta for positiva, com base na Bíblia, pode ser realizado. Se não, deve ser evitado.
"Mas tu, por que julgas teu irmão? Ou tu, também, por que desprezas teu
irmão? Pois todos havemos ide comparecer ante o tribunal de Cristo. Porque está
escrito: Pela minha vida, diz o Senhor, todo joelho se dobrará diante de mim, e toda
língua confessará a Deus. De maneira que cada um de nós dará conta de si mesmo a
Deus" (Rm 14.10-12). O princípio da prestação de contas nos lembra que, no trato com
as pessoas ou com as coisas, não só devemos observar a palavra de Deus, mas adverte-
nos quanto à inevitável prestação de contas no futuro, e também aqui, no presente.
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
A confusão que acontece entre as palavras Moral e Ética existem há muitos séculos. A própria
etimologia destes termos gera confusão, sendo que Ética vem do grego “ethos” que significa modo de ser, e
Moral tem sua origem no latim, que vem de “mores”, significando costumes.
Esta confusão pode ser resolvida com o esclarecimento dos dois temas, sendo que Moral é um
conjunto de normas que regulam o comportamento do homem em sociedade, e estas normas são adquiridas
pela educação, pela tradição e pelo cotidiano. Durkheim explicava Moral como a “ciência dos costumes”, sendo
algo anterior a própria sociedade. A Moral tem caráter obrigatório.
Já a palavra Ética, Motta (1984) defini como um “conjunto de valores que orientam o
comportamento do homem em relação aos outros homens na sociedade em que vive, garantindo, outrossim, o
bem-estar social”, ou seja, Ética é a forma que o homem deve se comportar no seu meio social.
A Moral sempre existiu, pois todo ser humano possui a consciência Moral que o leva a distinguir
o bem do mal no contexto em que vive. Surgindo realmente quando o homem passou a fazer parte de
agrupamentos, isto é, surgiu nas sociedades primitivas, nas primeiras tribos. A Ética teria surgido com
Sócrates, pois se exigi maior grau de cultura. Ela investiga e explica as normas morais, pois leva o homem a
agir não só por tradição, educação ou hábito, mas principalmente por convicção e inteligência. Vásquez (1998)
aponta que a Ética é teórica e reflexiva, enquanto a Moral é eminentemente prática. Uma completa a outra,
havendo um inter-relacionamento entre ambas, pois na ação humana, o conhecer e o agir são indissociáveis.
Em nome da amizade, deve-se guardar silêncio diante do ato de um traidor? Em situações como
esta, os indivíduos se deparam com a necessidade de organizar o seu comportamento por normas que se
julgam mais apropriadas ou mais dignas de ser cumpridas. Tais normas são aceitas como obrigatórias, e desta
forma, as pessoas compreendem que têm o dever de agir desta ou daquela maneira. Porém o comportamento
é o resultado de normas já estabelecidas, não sendo, então, uma decisão natural, pois todo comportamento
sofrerá um julgamento. E a diferença prática entre Moral e Ética é que esta é o juiz das morais, assim Ética é
uma espécie de legislação do comportamento Moral das pessoas. Mas a função fundamental é a mesma de toda
teoria: explorar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade.
A Moral, afinal, não é somente um ato individual, pois as pessoas são, por natureza, seres
sociais, assim percebe-se que a Moral também é um empreendimento social. E esses atos morais, quando
realizados por livre participação da pessoa, são aceitas, voluntariamente.
Pois assim determina Vasquez (1998) ao citar Moral como um “sistema de normas, princípios e
valores, segundo o qual são regulamentadas as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a
comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas de um caráter histórico e social, sejam acatadas livres
e conscientemente, por uma convicção íntima, e não de uma maneira mecânica, externa ou impessoal”.
Enfim, Ética e Moral são os maiores valores do homem livre. Ambos significam "respeitar e
venerar a vida". O homem, com seu livre arbítrio, vai formando seu meio ambiente ou o destruindo, ou ele
apóia a natureza e suas criaturas ou ele subjuga tudo que pode dominar, e assim ele mesmo se torna no bem
ou no mal deste planeta. Deste modo, Ética e a Moral se formam numa mesma realidade.
Por THIAGO FIRMINO SILVANO
REFERÊNCIA
1 SILVA, José Cândido da; SUNG, Jung Mo. Conversando sobre ética e sociedade. 7. ed. Petrópolis: Vozes,
2000.
2 CAMARGO, Marculino. Fundamentos da ética geral e profissional. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
3 VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 18. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
4 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução à Ciência do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1972.
5 VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2004.
6 MOTTA, Nair de Souza. Ética e vida profissional. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 1984.
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ANTÍGONA E A PROBLEMÁTICA ÉTICA CONTEMPORÂNEA
Vincenzo Di Matteo
∗
De todas as obras primas da antiguidade
e do mundo moderno que conheço (e conheço-as quase todas, assim como cada um
de nós pode e deve conhecê-las),
Antígona parece-me a mais perfeita e a mais reconciliante.
(HEGEL, 1993, p.658)
Sobre a Antígona de Sófocles, uma tragédia perpassada por uma problemática política,
ética, religiosa, de gênero e até ontológica, se debruçaram inúmeros pensadores de
várias
áreas e épocas.
1
Só para ficar nos últimos dois séculos, basta lembrar filósofos como Hegel
(1988; 2002), Kierkegaard, Heidegger (1997), Ricoeur (1991), Derrida (1974); teólogos
(Bultmann), poetas (Hölderlin, 1965) e dramaturgos (Anhouil, 1996; Brecht, 1993).
Mais
recentemente, na onda da emancipação da mulher e de sua inserção na vida pública,
surgiram
releituras feitas por mulheres tais como as de Nussbaum (1986) e Zambrano (1995,
1997).
Aqui no Brasil, se destaca a pesquisa de Kathrin Rosenfield (2000, 2002, 2005) que
explora a
figura institucional do epiclerado no confronto pela legitimidade do poder entre Creonte
e
Antígona
.
2
Na primavera de 2000, se realizou, na Universidade de Roma “La Sapienza”, um
Seminário dedicado às relações entre o trágico e a filosofia, tendo como objeto
privilegiado
de reflexão a tragédia de Sófocles Antígona.
3
Se Antígona continua a fascinar a todos é porque, a despeito do mudado quadro
cultural e religioso na qual foi concebida, ainda fala de problemas ligados à condição
humana
em geral e também à nossa realidade histórico-cultural. Basta lembrar a recusa por parte
de
várias cidades alemães, em 1977, de sepultar os corpos – ‘suicidados’ (?) na prisão, do
grupo
terrorista Baader-Meinhof
4
ou o movimento das ‘loucas’ mães argentinas da Praça de Maio,
∗
Doutor em Filosofia, Professor Adjunto da UFPE.
1
Sobre edições, romances, encenações, representações, músicas e filmes relativos a Antígona do séc. XII
ao séc.
XX, remeto ao levantamento que pode ser encontrado nas p.205-206 do livro sobre Antígone editado pela
Flammarion. Um detalhamento do Renascimento à contemporaneidade se encontra, na mesma obra, no
Dossiê 4
‘La destinée d’Antigone: de la revolte à l’ anarchisme. p.175-203
2
Sobre as traduções, anotamos, na bibliografia, algumas de língua francesa, sendo a de Pignarre citada por
Lacan. Não faltam, também em língua portuguesa traduções diretamente do grego (Cegalla, Schüler,
Kuri,
Mello e Souza, Pereira ou de outras línguas (Millor Fernandes, Melville). Sobre livros, capítulo de livros,
artigos
de periódicos ou disponibilizadas na internet relativos à peça e ao comentário lacaniano, Cf. a bibliografia
no
final do capítulo.
3
As intervenções, que analisaram as principais interpretações dos últimos dois séculos, foram reunidas
numa
coletânea organizada por Pietro Montani com o título Antígona e la filosofia. Cf. a bibliografia no final do
capítulo.
4
Facção Exército Vermelho (em Alemão, Rote Armee Fraktion ou RAF), também conhecida como Grupo
terrorista Baader-Meinhof , foi uma organização terrorista alemã de esquerda fundada em 1970 na então
Alemanha Ocidental e dissolvida em 1998. Em 18 de outubro de 1977, Baader, Ensslin e Raspe, os mais
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exigindo que os filhos desaparecidos no período da ditadura militar aparecessem vivos
ou que
recebessem uma sepultura digna. (Cf. Faigenbaum; Zanger, 1999), sem esquecer – na
época
da ditadura militar- o exemplo de mães brasileiras, como o de Zuzu Angel transposto
em
filme ultimamente.
5
Diante, porém de tantas e variadas interpretações resta sempre a necessidade de voltar
ao texto grego, se possível, a uma “Antígona sem explicações” (SANTOS, 2005). Ao
mesmo
tempo é preciso reconhecer que “a” interpretação não existe, como nem existe uma
tradução
consensual.
6
O texto do século V a. C. não pertence mais a seu autor e aos gregos atenienses
seus contemporâneos. Antígona é dos leitores de todos os tempos que reinterpretam a
poderosa e sombria descrição da condição humana a partir do próprio contexto cultural
e de
referenciais teóricos novos, evidenciando a fecundidade inesgotável do mito. É o que
tentaremos realizar nesta breve comunicação, aproximando épocas e espaços
geográficos -
distantes e diferentes - na tentativa de lançar uma ponte entre o texto do séc. V a.C. e
nossa
realidade contemporânea.
Os contextos culturais
Antígona é uma peça escrita e encenada pela primeira vez na segunda metade do séc.
V, um século de profundas mudanças e grandes eventos históricos para os gregos em
geral e
os atenienses em particular.
De um ponto de vista político-militar o século se abre com duas guerras que
mobilizaram as principais polis gregas, especialmente Atenas e Esparta, para fazer
frente às
tentativas de expansão imperialista do poderoso exército persa. Saídas vencedoras na
primeira
parte do século V, na secunda, as cidades se envolvem numa guerra intestina e
fratricida. A
guerra do Peloponeso (429-404) termina com a derrota ateniense. Não demora muito
tempo e
Esparta perderá sua hegemonia para Tebas e essa para o rei Filipe da Macedônia,
abrindo as
portas para a aventura militar de Alexandre. Surge o que pode ser considerada uma
primeira
experiência de globalização cultural – o Helenismo – mesmo que restrito ao sul da
Europa
(Macedônia e Grécia), norte da África (Egito), Oriente médio (da atual Turquia ao Irã).
Sófocles, não presenciou esses últimos desdobramentos da política grega, mas
conheceu de perto o apogeu e declínio de sua cidade - Atenas – e teve a sensibilidade
para
captar as profundas mudanças culturais que estavam se operando no mundo grego e a
genialidade para transpô-las plasticamente com suas tragédias diante de seus
contemporâneos.
O século V, de fato, é considerado o século da modernidade grega. O século da
implantação e consolidação das experiências democráticas e, com elas, do conflito e
divergências de idéias sobre tradição, religião e moral. É o século do movimento sofista
e da
chegada da filosofia no coração do ‘império’ da Atenas de Péricles. O século de uma
importantes líderes da Facção do Exército Vermelho (RAF), se matam no presídio de Stuttgart-
Stammheim,
após o fracasso de duas ações terroristas para libertá-los. A tese de suicídio foi contestada. Surpreendente
foi a
recusa de sepultura por várias cidades alemães. Enfim foram sepuldados conjuntamente na cidade de
Stutgart.
5
Direção de Sérgio Resende. Produção de Joaquim Vaz de Carvalho
6
Cf. a publicação em 2004 de uma nova tradução que comparada àquelas clássicas mostram distinções
subtis
que evidenciam, às vezes, diferenças fundamentais. BOLLACK, Jean; GUYOMARD, Patrick;
BOZONNET,
Marcel; BOLLACK, Mayotte; PORRET, Véronique. Antigone. Enjeux d'une traduction, Ed. Campagne
Première, 2004.
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progressiva secularização dos usos e costumes, fundamentada no Logos demonstrativo e
argumentativo que leva Protágoras a proclamar ser o homem a medida de todas as
coisas. É
verdade que há resistências a esse movimento, em parte liderado pelos filósofos
interessados
em se elevar acima da doxa e alcançar a episteme. Nem por isso escaparam da acusação
de
serem ‘ímpios’ (ateus). Por causa disso, Sócrates e Anaxágoras, contemporâneos e
concidadãos de Sófocles conheceram o primeiro a morte e o segundo o exílio forçado.
Em
suma, a democracia descentrou o poder, o saber e a verdade ancoradas outrora na
tradição e
na religião e os entregou nas mãos de cidadãos irrequietos e ousados.
Se olharmos, agora, para o nosso contexto contemporâneo não é difícil perceber
algumas analogias. O séc. XX também se abre com duas guerras mundiais que
envolveram
especialmente os países europeus, filhos culturais dos gregos. A extensão, a intensidade
e os
horrores das guerras colocaram em xeque não apenas o Deus judaico-cristão, mas
também a
deusa secularizada da nossa Modernidade: a Razão.
A Europa, dilacerada pela guerra, consegue reerguer-se econômica e politicamente na
segunda metade do século passado, mas perde a liderança para as duas grandes
superpotências saídas vencedoras no conflito. Estados Unidos e União Soviética
protagonizam e polarizam uma outra forma de guerra, chamada de fria. À “Era da
catástrofe
(1914-1918)” segue a “Era da crise e da incerteza (1970-1991)” como Eric Hobsbawm
(1995,
p.15) caracteriza o que ele chama de ‘breve século XX’, o qual se encerraria com a
queda do
muro de Berlim (1989) e colapso da União Soviética, em 1991.
O século XX não mudou apenas a geografia (descolonização) ou a geopolítica
(primazia norte-americana), mas também a economia e a cultura. Macro mudanças
político-
econômico-culturais desaguaram no fenômeno complexo e ambivalente da
globalização. Um
rearranjo das alianças políticas deslocou o conflito leste-oeste para norte-sul: Ocidente
cristão
x mundo árabe ou países ricos x países pobres. Ao mesmo tempo, a modernidade
cederia
cada vez mais espaço para a chamada pós-modernidade com o desaparecimento ou pelo
menos enfraquecimentos dos grandes referenciais teóricos das religiões tradicionais e
das
ideologias fortes que, bem ou mal, nortearam o comportamento de indivíduos, povos e
nações.
Na realidade nunca tivemos um ‘ethos’ universal, mas, pelo menos de um ponto de
vista teórico não somente as religiões e as ideologias, mas também os filósofos
acreditaram
que era possível construir racionalmente uma ética universal. Hoje, nós mesmos não
temos
mais tanta certeza e sentimo-nos condenados a uma ambigüidade angustiante e
intransponível
quanto a um posicionamento ético teórico-prático. Como, por exemplo, se definir, numa
posição simplificada, entre o direito de Israel a existir e a legítima causa palestina, o
terrorismo individual e o do estado, os bandidos e os chamados ‘homens de bem? Como
distinguir com facilidade os ‘Etéocles e Polineces’, as ‘Antígonas’, os ‘Creontes’ da
época de
hoje?
Tendo presentes esses dois contextos, vamos agora analisar o texto de Sófocles em
busca de uma eventual saída para nossas aporias éticas.
A Peça: os personagens, a estrutura e os principais conflitos envolvidos.
Os personagens
Sófocles coloca em cena os seguintes personagens: Antígone e Ismênia (filhas de
Édipo, irmãs de Etéocles e Polinice os irmãos fratricidas); Creonte (Rei de Tebas),
Hémon
(filho de Creonte e namorado de Antígone) Eurídice (esposa de Creonte); Tirésias
(adivinho
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representante da religião do estado); um guarda; um primeiro e segundo mensageiro.
Enfim,
temos os (15) velhos tebanos (Coro) liderados pelo Corifeu.
A estrutura
Sua estrutura é aquela habitual da tragédia grega fundada na alternância de diálogos e
ação entre os personagens e partes cantadas pelo Coro. No caso de Antígona, temos um
prólogo e cinco ou seis episódios intercalados por odes do Coro. Um êxodo encerra a
tragédia. A seguir, uma visão de conjunto da obra:
No Prólogo (v.1-161) se anuncia o primeiro confronto entre as duas irmãs, revelando
suas características e posturas diferentes frente ao edito de Creonte que proibia a
sepultura de
Polinice. Ismene se submete ao poder do rei e dos homens, em geral. Antígona está
disposta a
transgredir a ordem, mesmo que sozinha, para conceder as honras fúnebres ao querido
irmão
(v. 1-99).
O primeiro episódio (v.162-331) apresenta Creonte que pronuncia seu primeiro
discurso (um discurso político), seguido do diálogo com o Corifeu, anunciando o
decreto de
interdição de sepultar Polinice (v.162-222). A chegada de um dos guardas dá a notícia
ao rei
do sepultamento furtivo de Polinice, o que provoca a cólera de Creonte (v.223-331).
Segue o primeiro ‘intermezzo’: o canto à grandeza e finitude do Homem. (1ª ode)
v.332-375.
No segundo episódio (v. 376-581), Antígona é descoberta e arrastada diante de
Creonte (v.376-386). Segue o confronto entre os dois personagens principais da peça
com
apresentação das respectivas razões que justificam seus atos (v.446-525). Ismênia
solicita
partilhar da sorte da irmã. Antígona, porém, recusa (v.526-581)
Segunda ode (v. 582-625): O coro canta as desgraças dos Labdácidas e os limites da
condição humana.
Terceiro episódio (v. 626-780). Entra em cena Hémon e Creonte pronuncia o segundo
discurso a partir dos valores da família (v.626-765). Creonte notifica ao Coro a pena de
morte
que vai infligir a Antígona: o apedrejamento (v.766-780).
Terceiro canto (v. 781-800): Hino a Eros, deus do amor.
Quarto episódio (v. 801-943). Diálogo entre o Coro e Antígona decidida a ir até o fim,
mas que lamenta a tragédia do amor: o túmulo no lugar do tálamo (kommos de Antígona
v.
801-882). Creonte manda os guardas cumprir prontamente sua ordem de sepultá-la viva
(v.883-943).
Quarta ode (v. 944-987): celebração de heróis que tiveram um fim parecido com o de
Antígona.
Quinto episódio (v. 988-1114). Entra em cena Tirésias e há um confronto duro entre o
representante do poder político (Creonte) e o poder religioso (Tirésias). O cego de
Tebas
anuncia as desgraças que esperam o primeiro se não desistir de seu plano (v.988-1090).
Abalado pelas profecias, o rei hesita: que devo fazer? Anuncia que vai rever sua decisão
e
obedecer às leis que regem o mundo (v.1091-1114).
Quinta ode (v. 1115-1154). O Coro invoca a proteção de Dionísio
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Sexto episódio ou primeira (1155-11243) e segunda (v.1244-1346) parte do Êxodo:
Um mensageiro anuncia ao Coro a morte de Antígone, de Hémon (v.1155-1182) e
comunica
a Eurídice como eles morreram (v.1155-1182). Saída de Eurídice e lamentações do
Coro
(v.1244-1256). Creonte volta com o filho nos braços (kommos v.1257-1276). Um
mensageiro
anuncia a Creonte a morte de Eurídice (v.1257-1346).
Êxodo efetivo do Coro (v.1347-1353). O Corifeu declara que a sabedoria (φρονειν) e
a piedade são as condições indispensáveis para a felicidade dos mortais.
Principais conflitos
A peça, entre as mais comentadas do Ocidente, encerra uma multiplicidade de
conflitos: Família x Estado (Hegel); legitimidade x legalidade; primazia do laço de
sangue
(irmão) sobre estruturas sociais (marido) e políticas (leis da polis); Tirania (violência de
Creonte) x racionalidade de Antígone e de Hémon; religião da cidade e do Olimpo x
religião
dos mortos; poder político x religião; leis da cidade x leis do mundo; leis dos homens x
leis
divinas; vida x morte gloriosa; obediência x dever religioso; leis escritas x leis não
escritas;
vontade do governante x opinião pública; lógica do estado x lógica popular; piedade
religiosa
x impiedade; pureza x impureza; homens x mulheres; poder x corrupção; poder x
anarquia;
destino x história; velhos x jovens; indivíduo x Estado; transcendência – imanência. Em
suma, Antígona nos confronta com ‘situações-limites’, com a inevitável dimensão
‘agonística’ da existência humana, envolvendo vivos e mortos, comunidade política e o
indivíduo, homem e mulher, velhos e jovens, o humano e o divino.
De todos esses conflitos, centraremos nossa análise e reflexão na oposição entre
Antígona e Creonte e as respectivas éticas de que seriam portadores.
Antígona e Creonte: herói e anti-herói ou ambos ‘vítimas voluntárias’?
Segunda a interpretação de Lacan, Antígone é a verdadeira heroína da tragédia.
Creonte é o anti-herói. O psicanalista discorda de Aristóteles quanto à função catártica
da
tragédia e, diferentemente da tradição, se nega também a identificar o verdadeiro herói
da
tragédia com aquele que incorre em erro, em hamartia. Habitualmente, de fato, o
destino do
herói trágico é aquele paradigmático de alguém que ultrapassa os limites, entra na
desmesura,
na hybris e sofre a reviravolta da desgraça, o que desperta temor e compaixão nos
espectadores. Para Lacan, ao contrário, a hamartia não está no nível do verdadeiro herói
(Antígona), ela está no nível de Creonte” (p.313).
De fato, é difícil imputar qualquer falta, hamartia, a Antígona, cuja atitude de sepultar
o irmão a revelia do edito de Creonte pareceu bem vista pela cidade (cf. v.733).
Todavia, o
Coro, que inicialmente se identifica com Creonte e progressivamente com Antígona (cf.
v.
801), não deixa de lastimar o fato de ela ter sido levada por uma audácia excessiva e
bater no
pedestal da elevada Justiça, vítima de culpa paterna (v.884). À firmeza política de
Creonte é
contraposta a inflexibilidade de Antígona. Firmeza e inflexibilidade sem mediações,
nuances
ou outros pontos de referência. O que, por certos aspectos aproximam os dois
personagens a
despeito das inegáveis diferenças.
Afinal, tanto Creonte quanto Antígona são vítimas da estreiteza do ângulo de
percepção dos ‘fatos’ e de uma radicalização dos imperativos categóricos que
legitimariam
suas escolhas sem olhar para as conseqüências e desconsiderando os conflitos existentes
dentro de cada uma das posições adotadas. Por certos aspectos são ‘loucos’ e a
sabedoria
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trágica o assinala várias vezes.
7
No caso de Creonte, por exemplo está colocando no mesmo
nível as leis (νόμοι) da cidade e seu decreto (κήριγμα, v.7; αντειρηκότος, v.47)); a
oposição
absoluta amigo-inimigo, bem-mal, justo-injusto, piedade-impiedade não deixa brechas
para
nuances, exceções ou outras considerações. “É essa visão empobrecida e simplificada
de sua
própria cidade que leva Creonte a sua perda” (RICOEUR, 1991, p.287).
Antígona, igualmente, acaba mostrando uma ‘inflexibilidade’ ainda maior,
identificada com aquela da extirpe e do pai dela (v.471-472). Só conta para ela o
vínculo
familiar, menos da irmã e mais ou exclusivamente do irmão. Não hesitaria de obedecer
ao
decreto de Creonte se o corpo insepulto fosse do marido ou do filho, imagine de um
estranho.
As divindades da polis (Zeus) e a Justiça (Diké) que estabeleceram leis entre os homens
(v.450-451) não são reconhecidas. Em outras palavras não reconhece a fundamentação
religiosa das normas sociais e políticas. Em seu lugar é invocada uma outra Justiça não
menos
tenebrosa contra cujo pedestal sua audácia excessiva se choca com violência (v.854-
856). Por
amar e buscar o impossível [αμήχανων] (v.90 e 92), Antígona se dirige solitária (v.846)
além
da desgraça. Sem auxílio dos deuses (v.921-922), sem esposo, sem descendência, sem
amigos, maldita (v.918-919), sem prantos (v.876; 881). Para o Corifeu, é o espírito de
independência [αυτόγνωτος], de recusa de mediações, o orgulho, a obstinação que levou
Antígona à perdição (v.875)
Ambos, tanto Creonte quanto Antígona são ‘vítimas voluntárias’. A heroína é vítima
porque está marcada pela desgraça da estirpe a que pertence. Voluntária porque aquela
que o
Corifeu chama de “senhora de própria lei [αλλ΄αυτόνομος]” (v.820) ‘assume’ a
transgressão
de sepultar o irmão (v.443 “admito, não nego nada”) em fidelidade às leis não escritas e
a seu
próprio desejo. Paga pela sua opção de sepultar o irmão com a morte e o abandono de
todos,
inclusive dos deuses, mesmo se reconhecendo inocente.
8
Creonte, ao contrário, é responsabilizado pelo Corifeu: a morte de Hémon não é fruto
da loucura [άτην] alheia, mas de seu próprio engano [αμαρτων] (v.1260). Assim,
também, a
esposa Eurídice antes de morrer o culpa pelo duplo filicídio [Hémon e Megareu]
(v.1313-
1314) E ele mesmo o reconhece: “Erros de razão irracional [αμαρτήματα], [...] Este é
produto
das minhas decisões [...] morreste, partiste por desacertos meus, não teus” (v.1261ss).
Mais
adiante nos versos 1315-16 assume também a morte da esposa: “O único culpado sou
eu, e
nenhum outro. Eu, só eu foi quem matou, miserável”.
No entanto, mesmo que chegue tarde a reconhecer a justiça (v.1270), o próprio
Creonte se sente vítima de algum deus: “Assim é, tenho o mal por mestre. Golpeou-me
a
cabeça um deus então, e então carga pesada me impôs [...]” (v.1271ss). No final da
peça,
diante da visão dos dois cadáveres do filho e da esposa, afirma que não foi
deliberadamente
que os matou (v.1340-41) e que sobre sua cabeça se abatera a fatalidade (v.1346).
7
“Deixa –me, deixa que minha loucura [δισβουλίαν] se afunde em horrores” – Diz Antígona à irmã (v.95)
e,
logo em seguida, Ismene confirma: “és uma louca [άνους], mas irrepreensivelmente amável aos que
amas”
(v.99). Mais adiante, no confronto entre Creonte e as irmãs, o primeiro afirma: “Loucas [άνουν], não há
outra
designação para ambas. Uma enlouqueceu agora, a outra é louca de nascença” (.561-562). No confronto
de
Creonte, o filho Hémon exclama: “Se não fosse meu pai. Diria que estás louco (ουκ ευ φρονειν]” (..755) e
logo
em seguida insiste: “Exibe tua loucura a quem dos teus se disponha a vê-la” (v.765). Neste texto
seguimos a
tradução de Donaldo Schüler (SÓFOCLES, 1999)
8
“Que norma divina transgredi? Que me vale, infeliz, elevar os olhos aos deuses? Que aliada me virá?
Sendo
piedosa, sou tida como ímpio” ((v.921ss)
Page 7
Esses dados são suficientes para concordarmos com Lacan que Antígona não é
propriamente uma peça sobre a moral,
9
da qual Antígona seria a verdadeira representante e
Creonte o ‘tirano’. É verdade que há, por parte do Coro, uma simpatia pela ‘jovem’
Antígona,
pobre infeliz e filha de um pai infeliz (v.379-380), o reconhecimento de um
temperamento
forte, típico da estirpe a que pertence (v.471-472), uma clara tomada de partido e
sentimento
de compaixão pela morte que lhe foi infligida (v.801-805), uma progressiva idealização
(v.816) até alcançar a divinização pela ‘morte gloriosa’ que a espera e se tornar igual
aos
deuses [ισοθέοις], ela deusa [θεός], nascida de deus [θεογενής], em contraposição a nós
mortais, nascidos de mortais (v.834-835).
Antígona, porém, logo a seguir, se sente ultrajada, insultada por essa crença a seu
respeito. O termo grego hybrizeis [υβρίζεις] tem a mesma raiz de hybris. O Coro está
cometendo um erro de julgamento. Não é uma deusa, nem uma viva, nem uma morta.
Antígona lamenta sua solidão absoluta (v.839-853).
Em suma, se há um ensinamento da tragédia – e essa era uma de suas funções – ele
não se localiza em apontar inocentes e culpados, ideais inquestionáveis a serem
seguidos e
condutas a serem condenadas.
Se a função didática dessa tragédia não está tão clara e definida, podemos encontrar
um consolo na sua função catártica para nos livrar, por exemplo, do sofrimento do
‘terror’ da
violência e do terrorismo contemporâneo?
Tragédia e catarse
Costumamos associar tragédia e catarse graça à caracterização que Aristóteles nos
deixou dos gêneros literários em sua Poética. Segundo a famosa definição que nos
deixou, a
tragédia é
Imitação de uma ação grave e acabada em si mesma, que tenha uma certa amplitude, uma
linguagem adornada em proposições diferentes conforme as diferentes partes, se desenrole
através de personagens que atuem em cena, e não que narrem, e produza, finalmente, por
meio de casos de piedade ou de terror, a purificação de tais paixões (Poética, 6,1449b,
26-27, grifo nosso)
Trata-se, porém, de uma definição enigmática visto que nos falta o contexto onde está
inserida pelo fato de boa parte dessa obra estar perdida. Para aprofundar o significado
do
termo catarse é preciso recorrer à Política de Aristóteles, precisamente ao livro VIII,
onde a
catarse é descrita menos sucintamente, mesmo que no contexto dos efeitos produzidos
pela
música. Ali aprendemos que a catarse não está relacionada com algum efeito ético, mas
a um
certo prazer.
Alguns daqueles que se encontram dominados pela piedade [έλεος], pelo temor [φόβος] ou
pelo entusiasmo [ενθουσιιασμός], quando ouvem cantos orgiásticos como os religiosos,
acalma-se como por efeito dum remédio e duma catarse. Por isso é necessário que se
submetam a tal ação aqueles que se vêem sujeitos à piedade [ελήμονας], ao temor
[φοβητικούς] e, em geral, às paixões [παθητικούς] de modo conveniente a cada um, a fim de
que se gere em todos uma catarse e um alívio aprazível (Política, VIII, 7, 1342 a).
9
“[...] a lição da tragéida, em sua essência, não é absolutamente moral no sentido comum da palavra.”.
p.387
Page 8
Segundo essa teoria aristotélica, portanto, a tragédia “tem por meta a catarse, a
purgação das pathemas, das paixões, do temor e da piedade”. Evidentemente podemos
discordar dessa tese ou no mínimo julgá-la insatisfatória. No entanto, se a tragédia
também
desempenha a função de catarse psicológica, é legítimo se perguntar quais as paixões,
temores, ‘piedades’ que dominavam o homem da polis grega do séc. V a. C e/ou do
homem
do séc. XXI, cuja polis é, agora, o mundo (cosmopolita).
Vimos como a tragédia grega é contemporânea da emergência da experiência
democrática da polis, do ensino sofista e dos primeiros ensaios de uma reflexão
filosófica,
que inicia uma progressiva e irreversível dessacralização do cosmo e das instituições
humanas. Nesse sentido, Antígona constitui uma advertência, um distanciamento e um
limite
com relação à hybris da razão humana que pretende apontar saídas morais para conflitos
muitas vezes aporéticos nos quais os humanos acabam enredados.
Esse ‘ensino’, essa mensagem fundamental da tragédia Antígona pode ser encontrada
nos Cantos do Coro, nas palavras de Hémon e de Tirésias. Encontra-se logo no famoso
Hino
ao Homem. Sim, o homem é um ‘monstro’ [δεινόν], algo de espantoso que com sua
‘arte’
conseguiu dominar a terra, o mar, o mundo da vida animal, a fala, o pensamento e até
numerosas doenças. Duas dificuldades, porém permanecem intransponíveis: a própria
morte
10
e a ambigüidade da escolha moral.
11
Quem respeitar as leis e prezar a justiça dos deuses será
grande na cidade. Quem por audácia ‘incorre em erro’ será proscrito (v.367-375). No
final da
peça, reencontramos a mesma mensagem. A felicidade (ευδαιμονια) consiste na
sabedoria, na
prudência, no bom senso, no equilíbrio como poderíamos traduzir o verbo grego το
φρονειν e
em não desrespeitar os deuses. Mesmo assim, de que adianta a piedade de Antígona ou
a de
Creonte com relação aos deuses dos mortos ou da cidade? O destino humano continua
trágico, dominado por conflitos que o ultrapassam na esfera do divino e dos próprios
deuses
do amor: Eros, arrastando o coração dos justos à ruína (v. 791-792); Afrodite que faz de
nós o
que ela quer (v. 800). Como diz o Corifeu no fim da peça, “Não está no alcance dos
mortais
evitar o que está determinado” (v.1337-1338).
Em suma, Antígona não deixa de ser também a tragédia de Creonte, de Hémon, de
Eurídice, do Amor (Eros), da própria Linguagem pela ambigüidade das palavras-chaves
da
peça - nomos (lei), philos (amigo), ektros (inimigo), theoi (deuses) - que parecem tornar
impossível o diálogo e o entendimento entre os protagonistas. Enfim, é a tragédia da
condição
humana mesmo num mundo onde os deuses antigos ou a figura do Destino
desapareceram. A
despeito da proclamada morte de Deus, o mal não morreu com ele.
Como nos ensina a psicanálise, cada um de nós tem algo a ver com a Ate (desgraça) de
Antígona, com um destino, uma história e uma pré-história. Nesse sentido, a psicanálise
nos
relembra o assujeitamento intransponível de cada um ao inconsciente, às pulsões, ao
desejo, à
falta que nos habita, o que inviabiliza qualquer projeto humano que vise uma
harmonização
interior e social que atenda pelo nome de felicidade.
No entanto, se somos vítimas, somos também, como Creonte e Antígona, ‘vítimas
voluntárias.’ Tanto no registro individual, quanto social e mundial há algo que não foi
escolhido. Foi dado ou imposto e muitas vezes está na origem das ‘desgraças’ que se
abatam
sobre nós, tais como a violência, o terrorismo, a guerra, a desigualdade social. Todavia,
não
podemos renunciar à nossa responsabilidade humana. Os últimos versos da tragédia
apontam
para a prudência e o respeito dos deuses. O que pode ser interpretado como uma
advertência
10
“Ao Hades somente fugir não consegue” v. 361-362
11
“Da sua arte o engenho sutil para além do que se espera, ora o leva ao bem, ora ao mal” v. 365-366.
Page 9
contra a arrogância humana que não reconhece sua finitude e ‘peita’ os deuses, mas
também
contra a pretensão de usar o nome de Deus em vão para legitimar, absolutizar, sacralizar
escolhas puramente humanas, históricas e contingentes.
Não houve consolo dos deuses nem para ‘heroína’ Antígona, nem para o ‘tirano’
Creonte. Se algum consolo, alguma catarse pode haver para nós a partir dessa tragédia é
a
consciência de sermos em parte responsáveis pelas nossas desgraças, mas precisamente
por
isso também pela solução de conflitos éticos que não precisam passar necessariamente
pela
tragédia e menos ainda por uma tragédia legitimada por ideologias religiosas.
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