Claire Bishop - A Virada Social Colaboração e Seus Desgostos
Claire Bishop - A Virada Social Colaboração e Seus Desgostos
Claire Bishop - A Virada Social Colaboração e Seus Desgostos
Vídeo-
projeção em dois canais sincronizados, a cores,
com áudio, 2 x 420min. Cortesia do artista.
A virada social: colaboração e seus desgostos
Claire Bishop
Esse catálogo de projetos é apenas uma amostra da recente onda de interesse artístico
na coletividade, colaboração e no compromisso direto com grupos sociais específicos.
Esse domínio expandido de práticas relacionais atualmente é conhecido por uma grande
variedade de nomes: arte socialmente engajada, arte baseada em comunidades, comuni-
dades experimentais, arte dialógica, arte litoral, participatória, intervencionista, arte
baseada em pesquisas ou colaborativa. Tais práticas estão menos interessadas em uma
estética relacional do que nas recompensas criativas de uma atividade colaborativa –
seja trabalhando com comunidades preexistentes, seja estabelecendo sua própria rede
interdisciplinar. Datar o surgimento dessas práticas do início dos anos 90 é tentador;
A aparição de critérios pelos quais julgar práticas sociais não é auxiliada pelo impasse
atual entre os descrentes (estetas que rejeitam essas obras, por considerá-las marginais,
desencaminhadas e carentes de qualquer tipo de interesse artístico) e os crentes (ativis-
tas que rejeitam as questões estéticas, por considerá-las sinônimos de hierarquia cultural
e de mercado). Aqueles primeiros, em sua versão mais extrema, condenar-nos-iam a um
mundo de pinturas e esculturas irrelevantes, enquanto estes últimos têm a tendência à
A crítica mais séria que surgiu em relação à arte socialmente colaborativa foi organizada
de maneira particular: a virada social na arte contemporânea incitou uma virada ética na
crítica da arte. Isso é evidenciado na atenção intensificada no modo como a colaboração
é empreendida. Em outras palavras, os artistas estão sendo crescentemente julgados por
seus processos de trabalho – o grau em que eles suprem bons ou maus modelos de cola-
boração – e criticados por qualquer sinal de possível exploração que falhe em representar
“completamente” seus temas, como se isso fosse possível. Tal ênfase no processo em
detrimento do produto (ou seja, meios sobre fins) é justificada por sua oposição à predi-
leção do capitalismo pelo contrário. O ultraje indignado direcionado a Santiago Sierra é
exemplo proeminente dessa tendência. Porém, tem sido desanimador ler a crítica, tam-
bém baseada nessa equação, direcionada a outros artistas: acusações de superioridade e
egocentrismo são dirigidas a artistas que, trabalhando com participantes para concretizar
um projeto, não permitem que tal projeto surja por meio da colaboração consensual.
Os escritos em torno do coletivo de artistas turcas Oda Projesi dão claro exemplo de como
julgamentos estéticos têm sido suplantados por critérios éticos. Oda Projesi é um grupo
de três artistas que desde 1997 têm baseado suas atividades em um apartamento de três
cômodos no distrito de Gálata, em Istambul (Oda Projesi significa “Projeto Cômodo”2 em 2 Segundo a autora, em inglês, “Room pro-
ject”. (N.R.T.)
turco). O apartamento fornece a plataforma para projetos gerados pelo coletivo em coo-
peração com seus vizinhos, como a oficina para crianças com o pintor turco Komet; ou
um piquenique comunitário com o escultor Erik Göngrich; ou uma parada para crianças,
organizada pelo grupo de teatro Tem Yapin. As integrantes do Oda Projesi alegam querer
proporcionar um contexto para a possibilidade de intercâmbio e diálogo, motivadas pelo
desejo de integrar-se com as redondezas. Elas insistem em afirmar que não estão se empe-
nhando em melhorar ou sanar uma situação – um dos folhetos do projeto contém o slogan
“permutar não mudar” – apesar de perceber claramente que seu trabalho é uma oposição
gentil. Ao trabalhar diretamente com seus vizinhos, organizando oficinas e eventos, elas
querem, evidentemente, produzir um tecido social mais criativo e participativo. Falam em
criar “espaços em branco” e “buracos” frente a uma sociedade superorganizada e buro-
crática, e em ser “mediadores” de grupos de pessoas que normalmente não têm contato
uns com os outros.
Já que muito do trabalho do Oda Projesi existe no nível da educação artística e de eventos
comunitários, podemos ver suas integrantes como membros dinâmicos de uma comuni-
dade que levam arte a um público mais amplo. É importante que estejam abrindo espaço
para um tipo de prática não-baseada-em-objetos na Turquia, um país cujas academias
e mercado de arte ainda estão, em sua maioria, voltados para a pintura e escultura. E
pode-se ficar muito satisfeito – como eu fiquei – que tenham sido três mulheres que
A abordagem ética do Oda Projesi é adotada pela curadora sueca Maria Lind em artigo re-
cente acerca do trabalho. Lind é uma das defensoras de práticas políticas e relacionais mais
articuladas, e ela empreende seu trabalho curatorial com agudo compromisso com o social.
Em seu artigo a respeito do Oda Projesi, publicado na obra de Claire Doherty’s From Studio to
Situations: Contemporary Art and the Question of Context (2004), ela nota que o grupo não
está interessado em exibir ou mostrar arte, mas em “usar a arte como meio para criar e re-
criar novas relações entre pessoas”. E segue debatendo o projeto do coletivo em Riem, perto
de Munique, no qual colaboraram com a comunidade turca local e organizaram um grande
chá; visitas guiadas conduzidas pelos moradores; cortes de cabelo e reuniões de Tupperware;
além de um comprido rolo de papel, no qual as pessoas escreviam e desenhavam, a fim
de estimular conversas. Lind compara esse esforço ao Bataille Monument, de Hirschhorn,
em 2002, sua famosa colaboração com uma comunidade predominantemente turca em
Kassel (esse sofisticado projeto incluía um estúdio de tevê, uma instalação sobre Bataille,
e uma biblioteca temática, com os interesses do surrealista dissidente). Lind observa que,
contrariamente a Hirschhorn, as artistas do Oda Projesi são melhores, por causa do status
igualitário que atribuem a seus colaboradores: “Seu objetivo [de Hirschhorn] é criar arte.
Para o Bataille Monument ele já havia preparado e, em parte, também executado um plano
para o qual precisava de ajuda em sua implementação. Seus participantes foram pagos
para trabalhar e agiram como executores, não como co-criadores.” Lind segue argumen-
tando que a obra de Hirschhorn, ao usar participantes para criticar o Monumento como
gênero artístico, foi justificadamente censurada por “expor” e tornar exóticos grupos
marginalizados, contribuindo, portanto, para uma forma de pornografia social. Ao contrá-
rio, escreve ela, o Oda Projesi “trabalha com grupos de pessoas em seus próprios arredores
imediatos e permite que exerçam grande influência no projeto”.
Vale a pena olhar com atenção os critérios de Lind. Sua avaliação é baseada na ética da re-
núncia autoral: a obra do Oda Projesi é melhor do que a de Hirschhorn porque exemplifica
O artista britânico Phil Collins, por exemplo, integra totalmente essas duas preocupações
em seu trabalho. Convidado a se hospedar em Jerusalém, ele decidiu organizar uma ma-
ratona de disco-dancing para adolescentes em Ramallah, registrada por ele para produzir
uma instalação de vídeo de dois canais chamada They shoot horses, em 2004. Collins pa-
gou a nove adolescentes para que dançassem continuamente durante oito horas, durante
dois dias consecutivos, em frente a um muro cor-de-rosa choque, ao som de uma brega
Protestar-se-á com o argumento de que tanto Collins quanto Zmijewski produzem vídeos
para consumo em uma galeria, como se o espaço fora dela fosse, automaticamente, mais
autêntico – lógica essa que tem sido desenredada em definitivo por Kwon em One place
3 Esse termo refere-se ao texto La commu- after another. Sua defesa da arte que “inopera”3 uma comunidade pode ser proveitosa-
nauté désoeuvrée (em inglês, The inoperative
community), de Jean-Luc Nancy, discutido por mente aplicada à prática do artista britânico Jeremy Deller. Em 2001, ele organizou a
Miwon Kwon em seu livro. (N.R.T.)
reencenação de um evento-chave para a greve de mineiros ingleses de 1984 – um con-
fronto violento entre mineiros e a polícia na vila de Orgreave, em Yorkshire. The Battle of
Orgreave foi a reencenação desse confronto em um dia, realizada pelos antigos mineiros
e policiais, em conjunto com inúmeras sociedades de reencenação histórica. Apesar de
a obra parecer conter duplo elemento terapêutico (tanto os mineiros quanto os policiais
envolvidos participaram, alguns deles trocando papéis), The Battle of Orgreave não parecia
curar uma ferida, mas reabri-la. O evento de Deller foi tanto politicamente legível quanto
absolutamente sem sentido: evocou a potência vivencial de demonstrações políticas, mas
só para expor um mal ocorrido, com 17 anos de atraso. A ocasião reuniu as pessoas para
relembrar e recontar um evento desastroso, mas tal relembrança ocorreu em circuns-
tâncias mais similares a uma quermesse, com banda de metais, barracas de salgados e
crianças correndo de um lado para outro. Esse contraste é particularmente evidente no
documentário feito da The Battle of Orgreave, que faz parte de um filme de uma hora de
duração de Mike Figgis, cineasta de esquerda que usa o trabalho explicitamente como
veículo de acusação ao governo Thatcher. Trechos do evento de Deller são mostrados entre
comoventes entrevistas com os ex-mineiros, e o choque entre tons é desconcertante. The
Battle of Orgreave encena uma ofensa policial, mas a maneja em clave diferente, já que a
ação de Deller ao mesmo tempo foi e não foi um encontro violento. O envolvimento das
sociedades de reencenação histórica é fundamental nessa ambigüidade, uma vez que sua
participação elevou de modo simbólico os eventos relativamente recentes de Orgreave ao
status de história inglesa, ao mesmo tempo em que chama atenção para esse lazer excên-
trico, no qual batalhas sangrentas são replicadas entusiasticamente, como diversão social
e estética. O evento como um todo poderia ser entendido como uma pintura histórica
contemporânea que demole tanto a representação quanto a realidade.
Operando em nível simbólico menos carregado, o projeto The Baudouin experiment: a de-
liberate, non-fatalistic, large-scale group experiment in deviation, de Carsten Höller, reali-
Deller, Collins, Zmijewski e Höller não oferecem a escolha ética “correta”, não abraçam
o ideal cristão do auto-sacrifício; ao contrário, agem em seu desejo sem as restrições
incapacitantes da culpa. Dessa maneira, seu trabalho junta-se à tradição de situações
altamente autorais que fundem a realidade social a artifícios cuidadosamente calculados.
Essa tradição necessita ser escrita; talvez começando com a Dada-Season,4 na primavera 4 Em francês, Grande Saison Dada. (N.R.T.)