OEXP101112 Ficha Gramatica 05
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A perfeita alegria
É uma arte difícil, a alegria. Por um lado, sabemo-la próxima e acessível, como se os nossos dedos
pudessem, a cada momento, e sem esforço, alcançá-la. Mas sabemos também como nos escapa, como é
precária, dolorosa e inexplicável a alegria. Como nos obriga a procuras extenuantes e a desertos cujo fim não
se divisa. Não admira, por isso, que muitos desistam da alegria e se metam a caminhar, vida fora, excluindo-a
5 do seu alforge. A alegria, porém, é uma condição necessária da existência. Sempre que ela nos falta, temos de
interpretar isso como um iniludível sintoma, a que é preciso atender. Temos de nos interrogar sobre o porquê do
nosso viver burocrático e tristonho, o porquê do nosso passo precocemente anoitecido, do nosso errar entre o
peso e a cinza de onde a alegria se ausenta.
Não raro o problema é fazer depender a alegria de motivações acidentais, que nada têm que ver com a sua
10 essência. Julgamos extrair a alegria do sucesso, da abundância, da força, da afirmação, da eficácia, do poder,
mas o tempo encarrega-se de demonstrar o nosso equívoco. Os mestres espirituais ensinam, por exemplo, que
a alegria não depende do imediato ou conjuntural: a alegria liga-se às razões profundas do viver. De facto, ela
não deve ser reduzida a uma espécie de estado de graça que nos toca em certas estações ou a uma
maravilhosa isenção face à turbulência e aos contrastes do mundo. Pelo contrário. Se pensarmos bem, a maior
15 parte do tempo, a nossa vida é experiência de inacabamento e incompletude, é esboço e projeto, é movimento
transformante. Como escrevia Montale: “Não existe um tempo inteiro: / temos sempre tantos fios / a correr em
paralelo / fios em sentido contrário / que raramente coincidem.Conta-se nos “Fioretti” (a célebre recolha
hagiográfica que se tornou uma das fontes para conhecer o franciscanismo das origens) que regressando São
Francisco de uma viagem para o seu convento de Santa Maria dos Anjos, fustigado por um inverno
20 particularmente hostil, o seu companheiro Frei Leão lhe perguntou: “Pai, peço-te, da parte de Deus, que me
digas onde está a perfeita alegria.” E que São Francisco lhe respondeu desta maneira: “Imagina que, ao
chegarmos a Santa Maria dos Anjos, completamente encharcados, desfigurados pela lama da estrada, pela
fome e pelo frio, batemos à porta do convento; o porteiro aproxima-se irritado e diz: “quem são vocês?”; e nós
explicamos: “somos dois dos vossos irmãos”; mas ele responde, “vê-se claramente que estão a mentir, são,
25 sim, vagabundos que roubam as esmolas destinadas aos pobres. Fora daqui!”. Quando o irmão porteiro nos
fechar a porta, e nos abandonar sem apelo à neve e à fome, se soubermos suportar tal injúria de bom modo,
sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele, possuiremos então a perfeita alegria.”
É uma arte de paciência, a alegria. Ela pede de nós a capacidade de desconstruir as nossas expectativas,
necessidades, idealizações — coisas a que estamos mais apegados do que supomos — e de provar aquela
30 liberdade que vem de abraçar a vida nas suas não-coincidências (como sugeria o verso de Montale), com os
seus sofrimentos, os seus revezes, as suas interrogações e pausas, as suas misteriosas travessias. E a fazê-lo
sem ressentimento, mas aceitando que a esperança se expressa de um modo alternativo, prossegue por um
caminho outro, capaz de nos surpreender. Na verdade, é um artesanato a alegria, não um produto pré-
fabricado. É uma coreografia que avança por tentativas e não um enredo prévio, que já dominamos. Somos
35 felizes quando, reconhecendo a nossa própria fragilidade, nos reconhecemos também prometidos não só à
alegria, mas à perfeita alegria.
MENDONÇA, José Tolentino, 2019. “A perfeita alegria». E (Expresso), n.º 2417, 23 de fevereiro de 2019 (p. 92)
Outras Expressões – Português – Ensino Secundário
2. As frases “Mas sabemos também como nos escapa, como é precária, dolorosa e inexplicável a alegria.”
(linhas 2-3) e “Sempre que ela nos falta, temos de interpretar isso como um iniludível sintoma, a que é
preciso atender.” (linhas 5-6) exprimem
(A) a modalidade epistémica com valor de probabilidade, no primeiro caso, e a modalidade epistémica
com valor de certeza, no segundo caso.
(B) a modalidade deôntica com valor de permissão, em ambos os casos.
(C) a modalidade epistémica com valor de certeza, em ambos os casos.
(D) a modalidade epistémica com valor de certeza, no primeiro caso, e a modalidade deôntica com
valor de obrigação, no segundo caso.
3. Na passagem “Quando o irmão porteiro nos fechar a porta, e nos abandonar sem apelo à neve e à fome,
se soubermos suportar tal injúria de bom modo, sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele,
possuiremos então a perfeita alegria.” (linhas 25-27), os pronomes pessoais “nos” desempenham as
funções sintáticas de
(A) complemento indireto, no primeiro caso, e de complemento direto, nos restantes.
(B) complemento direto, no primeiro caso, e de complemento indireto, nos restantes.
(C) complemento indireto, no último caso, e de complemento direto, nos restantes.
(D) complemento direto, em todos os casos.
9. A frase “Pai, peço-te, da parte de Deus, que me digas onde está a perfeita alegria.” (linha 20) integra
(A) duas orações subordinadas adjetivas relativas restritivas.
(B) uma oração subordinada substantiva completiva e uma oração subordinada adjetiva relativa restritiva.
(C) uma oração subordinada substantiva completiva e uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa.
(D) uma oração subordinada substantiva completiva e uma oração subordinada substantiva relativa.
10. A expressão “vagabundos que roubam as esmolas destinadas aos pobres” (linhas 24-25) desempenha a
função sintática de
(A) predicativo do sujeito e integra uma oração subordinada adjetiva relativa restritiva.
(B) complemento direto e integra uma oração subordinada substantiva completiva.
(C) sujeito e integra uma oração subordinada substantiva completiva.
(D) complemento direto e integra uma oração subordinada adjetiva relativa restritiva.
11. Indica o antecedente do determinante possessivo presente na oração “que nada têm que ver com a
sua essência” (linhas 9-10).
12. Menciona as funções sintáticas desempenhadas pelo pronome relativo “que” usado na linha 34.
15. Refere os processos fonológicos que ocorreram na evolução dos étimos latinos para as palavras
portuguesas.
a) vitam > vida
b) perfectam > perfeita
c) plicare > chegar
d) nivem > neve