DISSERTAÇÃO Josinaldo Sousa de Queiroz
DISSERTAÇÃO Josinaldo Sousa de Queiroz
DISSERTAÇÃO Josinaldo Sousa de Queiroz
Recife
2018
JOSINALDO SOUSA DE QUEIROZ
Recife
2018
Catalogação na fonte
Bibliotecária: Maria Janeide Pereira da Silva, CRB4-1262
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Profº. Dr. Rômulo Luiz Xavier do Nascimento (Orientador)
Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________
Profº. Dr. Marcus Joaquim Maciel de Carvalho (Examinador Interno)
Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________
Profº. Dr. Edson Hely Silva (Examinador Externo)
Universidade Federal de Pernambuco
AGRADECIMENTOS
We present a discussion about the African cultural practices carried out in the captaincy of
Pernambuco seen by the documentation produced in the colonial administration and the Church
about them. Through the analysis of the official documentation produced in the last twenty
years of the eighteenth century, in the scope of the Overseas Council and the Lisbon Inquisition
Tribunal, we tried to understand how these practices (dances, festivities, batuques, spells,
witchcraft) influenced not only the daily life of its protagonists, Africans and their descendants,
but also of the colonists, people linked to religious administration and agents linked to the
colonial administration. To do so, we will guide our analysis from authors such as Reis (1988),
Slenes (1994), Sweet (2007, 2011) among others who study African diaspora studies and their
consequences in the New World. We prioritize the discussion, in this work, of how these
practices, employed by enslaved subjects, created constant relations of bargaining, symbolically
claiming their spaces of liberties through their cultural practices going against the discourses
used on them.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 9
1.1 Escravidão e liberdade na historiografia .......................................................................... 12
1.2 A atuação da Inquisição ..................................................................................................... 18
1.3 A Inquisição em Pernambuco ............................................................................................ 20
2 “INFINITOS PECADOS E GRAVÍSSIMAS OFENSAS A DEUS”? A TENTATIVA
DE PROIBIÇÃO DOS RITOS AFRICANOS NA CAPITANIA DE PERNAMBUCO
(SÉCULO XVIII) ............................................................................................................ 28
2.1 Desenhando o Recife .......................................................................................................... 29
2.2 Cultura africana denunciada à Inquisição: o caso dos batuques no Recife ...................... 35
2.3 “Desordens contrárias à fé e à religião”: os batuques e a permissividade do governo de
Pernambuco ....................................................................................................................... 46
2.4 Caminhando para um desfecho? D. Maria I e o seu veredito ........................................... 53
3 GRUPOS ÉTNICOS E RELIGIÃO NA CAPITANIA DE PERNAMBUCO NO
SÉCULO XVIII ............................................................................................................... 57
3.1 Angolas e Minas na historiografia ..................................................................................... 57
3.2 O Calundu da negra Izabel em Pernambuco e a Dança de Tunda do pardo João e sua
esposa Vitória .................................................................................................................... 68
3.3 O fetiche em Pernambuco .................................................................................................. 80
4 AS CONTENDAS ENTRE GOVERNADORES E RELIGIOSOS EM PERNAMBUCO
NO SÉCULO XVIII........................................................................................................... 90
4.1 Capuchinhos italianos em Pernambuco e a disputa com os poderes locais ...................... 90
4.2 Os conflitos entre o Governador de Pernambuco e o Prefeito da Missão dos Capuchinhos
italianos ............................................................................................................................. 98
4.3 A possível amizade entre D. Tomás e José César de Menezes ........................................ 103
4.4 Governantes na mira da Inquisição ................................................................................. 107
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 114
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 117
APÊNDICE A – FONTES UTILIZADAS .................................................................... 127
9
1 INTRODUÇÃO
“Onde houve escravidão, houve resistência”1. Com estas palavras, Flávio Gomes e João
José Reis definiram uma condição constante na vida dos sujeitos que foram escravizados na
África e que, posteriormente, foram deslocados para várias partes do mundo. Dos 15 milhões
de homens, mulheres e crianças reduzidos à escravidão, 40% foram destinados para o Brasil 2.
Para Pernambuco, local de análise de nossa pesquisa, o número de africanos embarcados
dos séculos XVI ao XIX é de 960.475, e o número de desembarcados chega a 853.8333. Eram,
em sua maioria, oriundos da África Centro Ocidental (Angola) e da África Ocidental (Costa da
Mina). Com esses sujeitos, vieram não só a força de trabalho tão importante para a produção
açucareira, mas também crenças diversas e sistemas políticos e culturais divergentes do modelo
europeu, e é, a partir desses modelos culturais diversos, que realizamos nossas análises sobre a
presença de africanos e de seus descendentes na Capitania de Pernambuco, durante o século
XVIII.
A grande leva de escravos para esta Capitania, do século XVI ao XVIII, possibilitou a
formação de um quadro considerável das práticas culturais africanas. Assim sendo, debruçamo-
nos sobre alguns aspectos dessas culturas, destacando os rituais religiosos e as supostas
“feitiçarias” vindas da África, que foram aqui assimiladas e reinterpretadas por diversos grupos.
A constante importação de escravos “fazia com que a África reinjetasse permanentemente a sua
gente e, com ela, os seus valores no Brasil”4. Não obstante, essa constante leva de pessoas para
Pernambuco e outras regiões introduziu valores e crenças variados, como foi o caso de dois
rituais que analisamos mais à frente: o Calundu (Angola) e o Acotundá (Costa da Mina).
Apesar dessa introdução de ritos religiosos oriundos da África, estes foram realizados
com o que estava ao alcance dos escravizados daquela época, chegando, muitas vezes, a utilizar
conhecimentos religiosos de outras regiões. Como exemplo: no ano de 1761, na Freguesia de
São Bento em Pernambuco, o pardo João de Moura e sua esposa Vitória “dançavam o Caçûtû
1
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São
Paulo, Cia das Letras, 1996, p. 9.
2
REIS; GOMES, Op. Cit., p. 9.; de 1501 a 1875, estima-se que Portugal e Brasil tenham recebido cerca de 848.266
africanos. As estimativas apresentadas no “The Trans-Atlantic Slave Trade Data Base Voyages” diferem-se da
citada por Reis e Gomes. Segundo o site, estima-se um total de 12.521.337 de africanos transportados para as
várias partes do globo terrestre dos séculos XVI ao XIX. ELTIS, David; BEHRENDT, Stephen; RICHARDSON,
David; FLORENTINO, Manolo. Voyages: The Transatlantic Slave Trade Database (Voyages). Disponível em:
<http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces> Acesso em: 02/02/2017.
3
Idem.
4
SILVA, Alberto da Costa. Um rio chamado atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. 5. Ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira: 2011, p. 110.
10
a que chamamos dança de Tundá”5. Caçûtû ou Caçuto6 era o nome dado ao deus do panteão
angolano, responsável pela proteção de doenças diversas7, enquanto que dança de Tunda ou
Acotundá era um ritual religioso ao deus da nação courana, situada em Lagos, Nigéria8.
Esse tipo de situação, no Brasil, não foi raro. Aqui, formou-se um complexo quadro de
práticas diversas que se completavam. Diferente dos europeus, que se estabeleceram nos
domínios ultramarinos de Portugal, os africanos que aqui chegaram provinham de sociedades
diversas com línguas, deuses e costumes diferentes. Para entender esses casos, seguimos o
estudo clássico de Sidney Mintz e Richard Price9.
Era incomum que escravizados fizessem a travessia do atlântico em grupos étnicos
homogêneos. O que implica dizer que não transportaram uma cultura coletiva em massa. Sendo
assim, não houve condições de estabelecer um modelo padrão de práticas e costumes destes
povos no Brasil. Isso explicaria, de maneira superficial, casos como o de João e Vitória, descrito
acima, que traziam uma composição mista de práticas religiosas.
Para a realização de nossa análise optamos por utilizar o conceito de crioulização10. Este
conceito tem suscitado debates desde a sua publicação 11 , gerando embates discursivos no
campo das ciências humanas. Mintz e Price elaboraram a teoria de que a cultura (africana ou
não) está ligada às relações sociais e instituições em determinado lugar 12 . Logo, grupos
populacionais deslocados de seu local de origens estariam impossibilitados de recriar sua
cultura tal qual existia anteriormente.
É possível afirmar que as instituições existentes na África, anterior à diáspora atlântica,
mesmo quando recriadas no contexto da escravidão no Brasil, não seguiam as formas originais,
o que implica dizer, seguindo o “modelo M & P”13, que não ocorreu uma transposição da cultura
e da sociedade africana para o Brasil, mas sim uma reelaboração de diferentes sociedades.
5
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Promotor nº 124, fls. 430.
6
SWEET, James H. Domingos Álvares, African Healing, and the Intellectual History of the Atlantic World.
Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011, p. 248.
7
BYRD, Steven. Calunga and the Legacy of an African Language in Brazil. New Mexico University, 2012, p.
126.
8
MOTT, Luiz. Acotundá: raízes setecentistas do sincretismo religioso afro-brasileiro". In: Anais do Museu
Paulista, nova série, volume XXXI, São Paulo, 1986.
9
MINTZ, Sidney.; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica.
Rio de Janeiro; Pallas; Universidade Candido Mendes, 2003.
10
Idem.
11
O ensaio foi escrito por Richard Price e Sidney Mintz em 1972, mas só foi apresentado à comunidade acadêmica
em 1973. A versão traduzida para português é de 2003.
12
MINTZ e PRICE, Op. Cit., pp. 25-42.
13
PRICE, Richard. O milagre da crioulização: retrospectiva. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro: Ed.
UCAM, ano 25, n. 3, p. 383-419, Dez. 1999.
11
Esses autores também destacaram a rapidez com que os africanos e seus descendentes
começaram a pensar e a atuar como membros de novas comunidades. “O princípio do que
viriam a ser as culturas afroamericanas deve datar das primeiras interações entre homens e
mulheres escravizados, ainda na própria África”. Isto é, para eles, a gênese da cultura “crioula”
se deu de forma quase automática a partir do encontro interétnico africano ocorrido já nos
entrepostos das rotas do tráfico. Porém foi apenas com a criação de novas instituições sociais,
nas colônias, que as culturas afro-americanas se constituíram como tal, gerando novas práticas
e identidades coletivas. Cabe notar, no entanto, que a formação de instituições não é um
processo necessariamente rápido14.
Essa visão foi amplamente refutada pelos chamados “afrocentristas”15. Em suma, eles
acusaram que a ideia de crioulização estaria negando uma herança cultural africana no chamado
novo mundo, e que esta visão é “eurocêntrica”, já que ela, supostamente, nega a sobrevivência
cultural africana em face da suplantação cultural europeia.
Autores como Paul Lovejoy, James H. Sweet e John Thornton defenderam a recriação
da cultura africana baseados na superioridade demográfica de um determinado grupo étnico
deslocado para as várias partes do mundo17. Nesse caso, a demografia sustentaria a ideia de
14
PARÉS, Luis Nicolau. O processo de crioulização no Recôncavo Baiano (1750-1800). Afro-Ásia, Salvador:
UFBA, n. 33, p. 87-132, 2005, p. 89.
15
Idem.
16
Tradução nossa: De uma perspectiva "Africanista", no entanto, as ideias sobre a história da África e as pessoas
que viveram essa história precisam ser reconsiderados e qualquer concepção que se destine a tratar apenas às
Américas é suspeita. Na minha visão, uma revisão do argumento de "criolização" revela suposições que excluem
a possibilidade das ideias estarem erradas. LOVEJOY, Paul E. "Identifying enslaved Africans: methodological
and conceptual considerations in studying the African diaspora". Trabalho preparado para o
UNESCO/SSHRCC Summer Institute. York University, 1997, p. 17.
17
Para essa visão, ver: LOVEJOY, Paul E. "Identifying enslaved Africans: methodological and conceptual
considerations in studying the African diaspora". Trabalho preparado para o UNESCO/SSHRCC Summer
Institute. York University, 1997.; SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo
afroportuguês (1441-1770)/James H. Sweet; trad. João Reis Nunes; Luís Abel Ferreira. - Lisboa: Edições 70,
2007.; THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004.; ver também a resposta de Richard Price às críticas feitas por alguns autores
“afrocêntricos”: PRICE, Richard. O milagre da crioulização: retrospectiva. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de
Janeiro: Ed. UCAM, ano 25, n. 3, p. 383-419, dez. 1999.; ver também o balanço historiográfico feito por
Alexandre Almeida Marcussi: MARCUSSI, Alexandre Almeida. Ambiguidades do conceito de crioulização
entre a teoria e a empiria. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 25., 2009, Fortaleza. Anais do XXV
Simpósio Nacional de História –História e Ética. Fortaleza: ANPUH, 2009. CD-ROM.; e as considerações feitas
12
Durante a década de 1980, a escravidão negra foi repensada graças a uma renovação dos
estudos sobre o chamado escravismo moderno, resultado de ampla influência da vasta produção
bibliográfica desenvolvida nos Estados Unidos. Sob a influência de novas possibilidades e
perspectivas teóricas e metodológicas, o escravismo brasileiro ganhou novas abordagens. Estas
perspectivas não traziam mais o escravo como sujeito “coisificado”, sem vontade própria
devido ao tempo em cativeiro que tornava-o submisso ao senhor, como afirmou Fernando
Henrique Cardoso, ao dizer que “no geral era possível obter a coisificação subjetiva do escravo
[...] Os escravos foram testemunhos mudos de uma história para a qual não existem senão como
uma espécie de instrumento passível”18.
Considerável grupo de historiadores e sociólogos da década de 1960 viam no sistema
escravista uma instituição excludente, alicerçada na violência que transformava o escravizado
em objeto, ou seja, este perdia sua condição de autonomia e passava a ser objeto de seu senhor.
A teoria da “coisificação” proposta pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso fora bastante
sobre o tema por Nicolau Parés: PARÉS, Luis Nicolau. O processo de crioulização no Recôncavo Baiano
(1750-1800). Afro-Ásia, Salvador: UFBA, n. 33, p. 87-132, 2005.
18
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Escravidão negra no Tocantins Colonial. Vivências escravistas em Arraias
(1739-1800). 2. Ed. Goiânia: Kelps, 2007, p. 34.
13
criticada por intelectuais nas décadas seguintes. Clóvis Moura foi um dos que discordava da
teoria sobre a coisificação dos sujeitos inseridos no sistema escravista.
Até mesmo esses intelectuais que refutavam teorias como a da “coisificação” acabavam
reproduzindo-a, ao afirmarem que, para eles, o escravizado, quando se rebelava não possuía
meios cognitivos capazes de conceder-lhe autonomia. Esses homens, mulheres e crianças
negras, inicialmente deslocadas do continente africano, bem como de seus descendentes
nascidos no novo mundo, reduzidos a peças comerciais, tiveram por muito tempo sua existência
simplificada, relegadas a um sistema rígido que os colocavam sempre como vítimas.
A partir dos anos de 1970, surgiram novas contribuições historiográficas para o tema da
escravidão, pois pensar o escravo e suas relações com o senhor e com a administração colonial
não era mais possível apenas pelo viés das violências enquanto instrumentos punitivos e de
manutenção do sistema compulsório de trabalho. Posteriormente, na década de 1980, perguntas
frequentes, a exemplo de “O que o escravo pensava?”, “Quais suas intenções?” e “Como
sobrevivia fora da relação do paternalismo?”, fomentaram e deram impulso aos novos estudos,
privilegiando não só os aspectos sociais das conturbadas relações senhor/escravo, mas também
os aspectos da diversidade de organização sociocultural. “Aos poucos se percebia que os
escravos possuíam certa autonomia com relação ao ciclo de vida e mobilidade em detrimento
do julgo senhorial”19.
Esses sujeitos passaram a ser vistos como pessoas atuantes do seu tempo, participando
dinamicamente da história. Segundo Stuart B. Schwartz 20 , em seu artigo intitulado “A
historiografia dos primeiros tempos do Brasil moderno. Tendências e desafios das duas últimas
décadas”, afirmam que o centenário da abolição, em 1988, foi o auge do interesse dos
pesquisadores da História Colonial e Imperial do Brasil pela cultura africana e afro-brasileira.
Durante as décadas de setenta e oitenta do século XX, trabalhos pioneiros, marcados
pela História Social e de grande importância para a compreensão dos escravizados e do sistema
escravista foram publicados, tendo como destaques Robert W. Slenes, com sua tese de
doutoramento sobre a demografia da escravidão no Brasil, no período de 1850 – 1888; Kátia de
Queirós de Mattoso, com o livro “Ser escravo no Brasil”; Mary Karasch, com “A vida dos
19
COSTA, Iraci Del Nero da & SLENES, R.W & SCHWARTZ, Stuart B. A Família escrava em Lorena (1808).
Estudos Econômicos. 17(2), maio/ago. 1987. P. 257.
20
SCHWARTZ, Stuart B. A historiografia dos primeiros tempos do brasil moderno. Tendências e desafios das
duas últimas décadas. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 50, p. 175-216, jan./jun. 2009. Editora UFPR.
14
escravos no Rio de janeiro (1808-1850)”; e Leila Mezan Algranti, sobre a escravidão no Rio de
Janeiro21.
No artigo supracitado, Stuart B. Schwartz listou uma série de trabalhos sobre a
escravidão em Minas Gerais22, contendo subtemas durante a expansão da História da escravidão
e privilegiando análises, como manumissão, alforrias, testamentos e outras formas de agências
conduzidas pelos escravizados para contornarem o sistema escravocrata em voga durante três
séculos no Brasil. Na década de 1990, momento significativo para a produção historiográfica
sobre a escravidão negra, Manolo Florentino e José Luís Fragoso publicaram o artigo intitulado
“Marcelinho, filho de Inocência crioula, neto de Joana Cabinda: um estudo sobre as famílias
escravas em Paraíba do Sul”, provocando inúmeros debates dentro e fora do universo
acadêmico por trazer “à tona metodologia e informações para o estudo geracional entre os
escravos”23.
Durante muito tempo, a historiografia brasileira considerou a escravidão negra
homogênea, seja no período colonial, seja no período imperial. Os homens e mulheres marcados
pelo crivo doloroso da diáspora eram vistos sobre a ótica antagônica: “de um lado Zumbi de
Palmares, a ira sagrada, o treme-terra; do outro, Pai João, a submissão conformada”24. Para
muitos historiadores, o escravizado não se situava em uma posição intermediária, ou seja, de
negociação. Sempre estava a serviço do seu senhor, sendo subserviente e conformado com a
situação imposta, ou estava resistindo, arquitetando fugas, formando quilombos, destruindo
plantações etc. Esse tipo de visão relegou ao sujeito escravizado, por muito tempo, a ideia de
que era um bem semovente desprovido de autonomia. Logo, atribuía-se ao senhor a tutela destes
escravizados.
Esse tipo de ideia, há muito superada, também não deveria existir no período do sistema
escravista. Senhores de escravizados sabiam muito bem que haviam de negociar com seus
negros, afim de que estes não se indispusessem com o trabalho ou atentassem contra suas vidas
21
SLENES, Robert W. The demography and economics of Brazilian Slavery: 1850-1888, Ano de obtenção:
1976; LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro 1750-
1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1982.
22
HIGGINS, Kathleen. Licentious Liberty in a Brazilian Gold-Mining Region. University Park, PA:
Pennsylvania State University Press, 1999; PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do
século XVIII. São Paulo: Annablume, 1996; LIBBY, Douglas Cole; GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro.
“Reconstruindo a liberdade – alforria e forros na freguesia de São José do Rio das Mortes, 1750-1850”. In:
Varia História, v. 30
23
SCHLEUMER, Fabiana. Cenários da Escravidão Colonial. In: Revista Ultramares. Dossiê Nº 1, Vol.1,
janjul/2012. pp. 97-120.
24
REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
15
ou de seus donos. Aliás, não só os donos de engenho sabiam disso, como também os próprios
escravizados tinham consciência dessa constante negociação simbólica na qual estavam
inseridos, e, muitas vezes, souberam utilizá-las em benefício próprio.
Ainda é difícil aceitar que o grupo social escravizado, em uma sociedade escravista,
cujo principal instrumento de manutenção era a violência, tiveram relações negociáveis com a
classe senhorial. Embora, “não se quer afirmar que havia relações idílicas entre escravos e
senhores, mas sim padrões de negociações que poderiam partir dos próprios escravos”25. As
temáticas culturais sobre a escravidão negra passaram a ter um importante processo de
valorização. Sujeitos que antes foram silenciados pela história tradicional, dita política e
econômica, que definia homens e mulheres negras como passivos no antigo sistema escravista,
passaram a ser vistos de novas formas, contribuindo para uma nova historiografia no que se
refere à “história dos excluídos”.
Diante disse, novas perspectivas, abordagens teóricas e metodológicas gradualmente
construíram outra visão do sujeito escravizado, dando novo sentido às vivências, ao cotidiano
e às variadas maneiras de sobrevivência que esses sujeitos colocavam em prática no seu dia a
dia, nas possessões ultramarinas empreendidas pelo reino de Portugal.
Segundo Reis e Silva, na obra historiográfica “Negociação e conflito: a resistência negra
no Brasil escravista”, os escravizados eram parte ativa da sociedade. Escravos e senhores
estabeleciam regras no sentido de obterem colaboração um do outro, cada qual dispondo de
táticas e estratégias que estavam ao seu alcance.
Apolinário afirmam que “os homens e mulheres negras souberam, nas malhas do
sistema, criar, dissimuladamente, espaços de negociação e, ao mesmo tempo, de autonomia
diante dos senhores escravistas”. Silvia Hunold Lara chamou a atenção para as relações entre
senhores e escravos, não sendo estas alicerçadas apenas pela violência. Para além do castigo (e
outras formas de violência), existiam relações de afeto e negociações. As formas de
negociações, que se davam de várias formas entre senhores e escravizados desde a economia
própria do escravo, como a brecha camponesa, até a “liberdade” que as quituteiras tinham em
vender seus produtos durante o dia pelas ruas, o que se mostrava estrategicamente eficaz para
a compra de alforrias graças ao pecúlio que podia juntar e às alforrias por mérito e/ou compra.
As Irmandades religiosas foram outras instituições que amenizavam o martírio do
cativeiro, possibilitando a manutenção de complexas redes de arrecadação financeira para a
25
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Escravidão negra no Tocantins Colonial. Vivências escravistas em Arraias
(1739-1800). 2. Ed. Goiânia: Kelps, 2007, p. 15.
16
26
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia no século XIX: uma província no Império. Rio de Janeiro: nova
Fronteira, 1992, p. 397.
27
No que diz respeito aos estudos culturais sobre a diáspora, um dos assuntos com bastante visibilidade refere-se
à identidade dos grupos étnicos e sua cultura. Para Paul Gilroy, o “Atlântico negro” representou o fluxo de troca
cultural em várias regiões do globo. Fluxo este que só foi possível graças aos deslocamentos forçados de africanos
para as várias partes do mundo. Este autor reinterpreta o período moderno de acordo com as mudanças
proporcionadas pelo tráfico de seres humanos e os impactos causados pelo deslocamento destes sujeitos. GILROY,
Paul. O Atlântico negro. Modernidade e dupla consciência, São Paulo, Rio de Janeiro, 34/Universidade Cândido
Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001; Stuart Hall também produziu um estudo importante sobre
identidade e diáspora. Para este autor, a identidade cultural reflete a experiência histórica de um sujeito ou grupo.
Apesar de a identidade atribuir características especificas, estas não são estáticas. Hall argumentou que nestas
mudanças constantes de acordo com o ambiente em que um indivíduo ou seu grupo se insere. HALL, Stuart. Da
Diáspora: identidades e mediações culturais. (Org.). Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, Brasília:
Representação da UNESCO no Brasil, 2003; Frederik Barth também trouxe importante contribuição para os
estudos culturais. A partir das suas concepções sobre grupos étnicos, este autor possibilitou entendermos como
funcionam as relações culturais entre diferentes grupos. Através da fronteira interétnica percebemos as relações
de uma fronteira cultural a outra em um processo de interação das etnicidades dos grupos e suas alteridades, mas
sempre em uma perspectiva de cultura e identidade que se movimentam nas relações entre grupos étnicos
diferenciados. Cabe ressaltar que a partir dos seus estudos houve uma renovação nos estudos sobre a África e sua
diáspora. BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras, In; POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FNART,
Jocelyne. Teorias da etnicidade. São Paulo: UNESP, 1998.
17
28
SOUZA, Marina de Mello. Histórias, mitos e identidade nas festas de reis negros no Brasil – séculos XVIII
e XIX. In: JANECSON, István e KANTOR, Iris. Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa (Volume
1). São Paulo: Imprensa Oficial. Hucitec; Edusp; FAPESP, 2001, p. 249.
29
O estudo sobre a vida de Rufino José Maria possibilita compreendermos o que foi o tráfico atlântico de africanos
na segunda metade do século XIX. Os três autores apresentam uma interpretação de um personagem complexo,
que esteve nos dois lados do comércio ilegal de escravos. A história pormenorizada de Rufino (descrita nos
documentos policiais) revelou as engrenagens do funcionamento da prática do tráfico. Sendo possível visualizar
desde a viagem da África até os portos brasileiros. Além disso, as relações de redes estabelecidas entre
comerciantes nos dois lados do Atlântico ficam em evidência nesta obra, demonstrando um complexo mundo de
sujeitos que enriqueceram através do comércio ilegal de seres humanos. CARVALHO, Marcus; GOMES, Flávio.;
REIS, João José. O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro. Companhia das Letras,
2010.
18
30
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – séculos XV-XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 13.
19
Todos aqueles que fossem considerados contrários aos princípios católicos estavam
sujeitos a enfrentarem a justiça da Inquisição. Muitos dos vassalos da Coroa portuguesa
sofreram nas malhas inquisitoriais independentes de serem brancos, negros, mestiços, mouros,
nativos ou judeus. O Santo Ofício era implacável em julgá-los, e as penas, apesar de variadas,
sempre traziam ao culpado implicações diversas.
Gian Carlo de Melo Silva afirmou que que as reformulações propostas pelo Concílio de
Trento provocaram mudanças no imaginário social, que tinha, por finalidade, “desterrar os erros
que desviavam os fiéis e os próprios clérigos dos sacramentos. O Concílio reafirmou dogmas e
formulou novas diretrizes para serem seguidas pelos católicos”32.
Apesar de não ter ocorrido a instalação do Tribunal no Brasil33, existiram inúmeras
pessoas ligadas ao Santo Ofício que atuavam nas antigas Capitanias da colônia portuguesa.
“Esses agentes eram funcionários da grande empresa inquisitorial, com sede em Lisboa, e
tinham como função principal auxiliar os inquisidores na sua missão "santa" de manter a
ortodoxia em todo o império português”34.
Dentre esses agentes, o papel fundamental para o funcionamento da Inquisição no Brasil
era por parte dos comissários, que tinham, em suas obrigações, ouvirem informações, denúncias
e acusações. Recebida a informação, o comissário solicitava ao acusado a sua presença em sua
31
CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das mandigas: religiosidade negra e Inquisição portuguesa no antigo
regime. Garamond, 2008, p. 72.
32
SILVA, Gian Carlo de Melo. Inquisição e Igreja católica no Pernambuco Colonial: Os desvios morais contra o
Sagrado Matrimônio. Disponível em:
<http://www.ufrb.edu.br/simposioinquisicao/wpcontent/uploads/2012/01/Gian-Carlo.pdf>. Acesso em:
05/07/2016, p. 2.
33
A fundação e instalação de um Tribunal inquisitorial ocorria por razões específicas. Por exemplo, em 1478, na
Espanha, o Papa Sisto IV fundou uma nova Inquisição na Espanha em resposta aos pedidos dos reis Católicos da
Espanha. A reinvindicação real se dava pelo suposto aumento da heresia (ritos mosaicos entre os judeus) e a
tolerância por parte dos bispos frente a estes atos. BETHENCOURT, Op. Cit., p. 17; Em Portugal, a Inquisição
moderna foi fundada em 1536. Similar ao caso da Espanha, a Inquisição Portuguesa também surgiu da vontade de
impedir o avanço dos heréticos em Portugal. Vale ressaltar que, diferente do caso espanhol, a Inquisição em
Portugal teve amplo apoio das instituições civis. Francisco Bethencourt argumentou que este apoio era fruto de
um pensamento mais maduro da época, o qual tinha como exemplo o caso da Inquisição Espanhola, surgido 50
anos antes da de Portugal. BETHENCOURT, Op. Cit., p. 24-27. Para o caso do Brasil, um Tribunal não teria
efeitos positivos para a economia. Considerando que a colônia era composta por vários grupos diferentes,
notadamente, de concepções religiosas diversas. Dentre esses grupos, os de maior composição demográfica eram
índios e negros. Para o início da colonização, a força dos engenhos era oriunda do trabalho indígena. A partir do
século XVII, o trabalho foi composto, em sua maioria, pelos negros. Um Tribunal inquisitorial na colônia
provavelmente iria desregular as forças produtivas dos engenhos, uma vez que estes dois grupos seriam alvos de
denúncias e processos. Sendo assim, a possível prisão e degredo destes sujeitos trariam resultados negativos à
economia da época.
34
NOVINSKY, Anita. A igreja no Brasil colonial: agentes da Inquisição. Anais do Museu Paulista, São Paulo,
tomo 33, p. 17-34, 1984, p. 18.
20
causa de audiência, ouvia testemunhas e, caso fosse preciso, poderia dar ordem de prisão ao
suspeito e remetê-lo ao Tribunal de Lisboa. Segundo Novinsky, o comissário, em conjunto com
o Bispo, possuía permissão para torturar, a fim de obter confissão, mas não se encontrou casos
dessa natureza35.
O comissário também possuía a autoridade e quase todos os poderes de um inquisidor,
sendo-lhe negado, apenas, a função de sentenciar o acusado. Ainda assim, poderia exercer esse
tipo de autoridade caso um inquisidor delegasse seus poderes ao mesmo, a única exceção seria
a sentença de pena de morte, pois esta ficava restrita apenas aos inquisidores. Ocorreu casos em
que a presença de um comissário não era possível. Então, outros sujeitos poderiam desempenhar
o papel de contribuir com o Santo Ofício. Foi esse o caso dos Jesuítas, que, em 1646, a
responsabilidade da “Grande Inquisição” ficou sob os cuidados do Jesuíta Padre Manuel
Fernandes, e auxiliado pelo escrivão, também Jesuíta, Padre Sebastião Teixeira36.
Além da investidura de cargos, a Inquisição contava com o apoio da população. Laura
de Mello e Souza, em seu livro O Diabo e a terra de Santa Cruz, expôs que o imaginário social
do período colonial era tão afetado pela atuação inquisitorial que as pessoas, ao menor sinal de
um suposto crime contra a fé católica, denunciavam seus propositores. Isso evidencia duas faces
dessa sociedade: a primeira seria a denunciação por medo de omissão perante os agentes da fé,
e a segunda teria o caráter de “salvar o próximo”, denunciando-o com a finalidade de que sua
alma fosse corrigida37.
35
NOVINSKY, Op. cit., p. 72.
36
NOVINSKY, Op. cit., p. 72.
37
SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo na Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade no Brasil Colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1986.
21
Bíblia até a coerção verbal, punição e, em alguns casos, o uso da violência física para o fim em
questão.
Mais à frente, teremos a oportunidade de observar um caso ocorrido durante a segunda
metade do século XVIII, na Capitania de Pernambuco, em que Capuchinhos italianos
utilizavam de sua autoridade e violência contra os povos indígenas aldeados. Em uma tentativa
de demonstrar quem detinha o poder, um Padre missionário chegou a arrancar a orelha de um
nativo para mostrar que “quem mandava ali era ele”38. Em finais do século XVI, chegava ao
Nordeste colonial o inquisidor Heitor Furtado de Mendonça, tendo como destino a Bahia,
Pernambuco, Paraíba e Itamaracá. Por onde Mendonça passou, provocou medo nos colonos,
mostrando, assim, a força coercitiva e o imaginário popular da época em relação ao Tribunal
do Santo Ofício.
Segundo Francisco Bethencourt, “para os membros dos tribunais da Inquisição, seu
papel seria fundamental, pois, sem eles, a cristandade teria sido “infectada” e o mundo
dominado pelo demônio. A heresia perverteria os costumes e a sociedade como um todo”39. Na
obra citada de Laura de Mello, a heresia foi posta como uma constante na vida dos colonos
ultramarinos. Dessa forma, era mais do que necessário a presença não só do clero regular, mas
também dos agentes inquisitoriais.
Cabe pensarmos: como seria a colônia, caso tivesse havido a instalação de um Tribunal
na América portuguesa? A Inquisição e D. João III deviam ter a noção que a presença dos
tribunais religiosos no Brasil traria sérios riscos ao funcionamento das novas conquistas.
Sabendo que ali habitava variados grupos, inseridos nos mais variados contextos e
experimentando todos os tipos de crenças, a presença deste Tribunal seria danosa ao projeto
colonizador que iniciara ainda no século XVI.
Por meio de visitações, o Tribunal de Lisboa conseguia impor aos domínios
ultramarinos a visão inquisitorial sobre o que julgavam “desvios” de conduta religiosa. Apesar
da preocupação deste Tribunal se relacionar diretamente com os cristãos-novos, observamos a
preocupação com outras práticas, como os ritos africanos, ameríndios, sodomitas e outros.
Com o visível crescimento de Pernambuco, Capitania cedida a Duarte Coelho em 1534,
a região possuía um aumento anual em sua população bastante significativo. Fora a chegada
maciça de colonos que almejavam a obtenção de lucros com a atividade açucareira, a presença
38
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 96,
D. 7564.
39
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – séculos XV-XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 356-357.
22
40
CRUZ, Roberta. Inquisição no Pernambuco quinhentista: o caso de Felícia Tourinho. Nova Revista
Amazônica, v. 1 n. 2. Jul. /Dez. 2013, p. 60-74. p. 63.
41
CRUZ, Op. Cit., p. 64.
42
Foram consultados os fundos arquivísticos da Torre do Tombo: Coleção de Processos e Cadernos do Promotor
(números 58 à 130).
23
Negar-lhes totalmente seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro,
é querê-los desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde. Portanto,
não lhes estranhem os senhores ao criarem seus reis, cantar e bailar por
algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se
inocentemente43.
Antonil apenas indicava algo que era praticado por alguns senhores escravistas. Não
havia a possibilidade de impedir que africanos e descendentes utilizassem aspectos de uma
cultura exterior a que se tentara impor na colônia. Seus senhores sabiam que esse tipo de atitude
poderia levar a situações delicadas, desde revoltas nas senzalas até conflitos maiores, como
levantes e desordens variadas.
Com isso, buscamos problematizar as relações estabelecidas em Pernambuco no século
XVIII. Analisaremos como africanos, crioulos, pardos e outros conseguiram criar conflitos
entre autoridades civis e religiosas e a atuação inquisitorial nesses episódios que têm início no
ano de 1778 e se seguem até finais de 1797. Podemos propor algumas questões que relativizem
o “afrouxamento” em se permitir as expressões culturais dos africanos e seus descendentes.
Notaremos, a partir de José César de Meneses, Governador de Pernambuco, D. Tomás da
Encarnação Costa e Lima, Bispo da mesma Capitania, e o Juiz de Fora, João da Silveira Pinto
Nogueira, como ocorriam as relações entre autoridades e as práticas africanas.
Esta pesquisa iniciou a partir de um documento disponível no Arquivo Histórico
Ultramarino 44 . Trata-se de uma resposta do Governador de Pernambuco, José César de
Menezes, a uma carta do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa no ano de 1780. O conteúdo era
43
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp, 1982, p. 161.
44
CARDOSO, Juciene Ricarte.; QUEIROZ, Josinaldo Sousa.; LUIZ, Janailson Mâcedo; MELO, Tiago. Catálogo
geral dos manuscritos avulsos e em códices referentes à escravidão negra no brasil existentes no Arquivo
Histórico Ultramarino. Campina Grande: EDUEPB, 2016
24
referente aos “ritos gentílicos” empregados por africanos de Angola e de Costa da Mina,
realizados nas praças daquela Capitania. A carta que originou a esta resposta acusava o
Governador de perseguir missionários e de proteger os negros e seus rituais, considerados
danosos à vida católica.
A partir deste documento, cruzamos as informações com ofícios redigidos pelo Bispo
de Pernambuco D. Tomás da Encarnação Costa e Lima, com o Prefeito da Missão dos
Capuchinhos italianos Constantino de Parma, entre outros personagens importantes como D.
Maria I, Rainha de Portugal, e José da Cunha Grã Ataíde e Melo, ex-Governador de
Pernambuco e Conde de Povolide. O caso em questão, que mobilizou várias pessoas da
administração secular e religiosa, estava relacionado aos batuques (em sentido religioso ou
festivo) que os negros escravizados, livres e libertos praticavam, supostamente, em praça
pública, com anuência do Governador José César. O caso passou-se entre os anos de 1779 e
1780, e durante o curto processo, foi produzida relativa documentação sobre o episódio, o que
nos possibilitou uma série de questionamentos sobre as práticas culturais de africanos e de
descendentes em Pernambuco.
Apesar de boa parte do trabalho se centrar nos batuques (ritos gentílicos para a
Inquisição), ampliamos nossas pesquisas, possibilitando uma leitura mais aprofundada sobre a
sociedade criada por esses sujeitos. Toda a pesquisa ocorreu em torno dos conflitos entre
escravos, a ordem religiosa dos Capuchinhos italianos (e outros agentes religiosos) e a
administração secular (Rainha, Governadores etc.). Durante o processo da pesquisa
documental, alargarmos nosso estudo com o auxílio das fontes inquisitoriais. Estas fontes, para
além dos perigos em se confiar totalmente no seu texto45, nos revelaram com mais detalhes as
experiências de escravos e livres numa sociedade escravocrata como a de Pernambuco.
O primeiro capítulo do nosso estudo, intitulado de “Infinitos pecados e gravíssimas
ofensas a Deus”? A tentativa de proibição dos ritos africanos em Pernambuco (século XVIII)”,
está dividido em quatro tópicos. No primeiro, fizemos uma breve descrição do Recife, durante
o século XVIII, por meio de uma confissão realizada ao Tribunal do Santo Ofício. A partir da
confissão de Manoel de Sousa Pereira, foi possível observarmos como a cultura de matriz afro
45
Apesar das fontes inquisitoriais serem de grande riqueza, por detalharem práticas (ainda que de forma
Generalizada no que diz respeito às práticas mágicas vindas da África), costume e o cotidiano do réu, é necessário
levar em consideração que as mesmas requerem certos cuidados metodológicos de análise. Ginzburg nos chama a
atenção para “o impulso dos inquisidores no sentido de buscar a verdade”, a influência direta ou indireta que estes
documentos sofriam por parte de quem os produziam. GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo. In: O
fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 284.
25
46
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 4740.
47
Esta era a designação do Governador para o referido religioso. Ver: Laboratório de Pesquisa e Ensino de História
(LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 140, D. 10368.
27
Bispo constantemente deste ser um dos que permitiam os africanos de empreenderem seus
costumes “gentílicos”. Através de suas acusações, investigamos até que ponto essa
aproximação entre o Bispo e o Governador tinha relações com a suposta permissividade dos
batuques.
Por fim, no último tópico deste capítulo tratamos de alguns Governadores de
Pernambuco que foram denunciados à Inquisição. Entre o final da primeira metade do século
XVIII e o início do século XIX, encontramos quatro Governadores que tiveram seus nomes
relacionados a casos de heresias. Chamamos a atenção para o descaso da Inquisição com estas
denúncias. A exceção foi José César de Meneses, que, como verificamos ao longo da pesquisa,
teve problemas sérios por conta de ter sido denunciado ao Tribunal religioso de Lisboa.
28
48
Os documentos referentes ao Conselho Ultramarino foram digitalizados pelo Projeto Resgate Barão do Rico
Brando, sob a coordenação de Esther Caldas Bertoletti. O referido projeto reuniu pesquisadores do Brasil e de
outros países da Europa. Foram organizados e catalogados, por período e região, milhares de documentos
respeitantes ao século XVI ao XIX. Aqui, utilizamos a coleção relativa à capitania de Pernambuco. Para saber
mais sobre o projeto, ver: BERTOLETTI, Esther Caldas.; BELLOTO, Heloisa Liberalli.; DIAS, Erika Simone de
Almeida. O projeto resgate de documentação histórica Barão do Rio Branco: acesso às fontes da história do brasil
existentes no exterior. Clio – revista de pesquisa histórica, n. 29.1 (2011).
49
Os processos movidos pelo Tribunal inquisitorial de Lisboa são compostos por folha de abertura (onde contém
o sumário de culpa ou denúncia e o nome do réu); segue-se com a explicação do caso; perguntas a testemunhas e
ao réu; e, por fim, a sentença e os custos do processo. Cabe salientar que nem todos os processos movidos pela
Inquisição eram concluídos. Muitos destes estão ausentes de sentenças e de perguntas às testemunhas. O segundo
tipo de documento utilizado nesta pesquisa, também de origem inquisitorial, está nos chamados “Cadernos do
Promotor”. Nestes cadernos, encontram-se denúncias que poderiam originar os processos descritos acima. Não há
uma organização por capitanias nestes cadernos, respeitando apenas a ordem cronológica de produção das
denúncias. Estão dispostos em 139 volumes que cobrem o período de 1541 a 1802. Na coleção de “Cadernos do
Promotor”, existe uma série intitulada de “Papéis de Fora” ou “Papéis Antigos”, que vão de 1565 a 1587. Estes
papéis encontram-se de forma desordenada e com lapsos de numeração. Em geral, todos os volumes contêm
denúncias referentes à Lisboa, à África, ao Brasil e à Índia. As denúncias variam seu número de páginas, a
depender do denunciante e da gravidade do suposto crime. Por fim: “Existem vários lapsos da numeração original,
tratando-se os mais frequentes de repetições e saltos: o caderno 3.º de "Papéis de Fora" ou "Papéis Antigos",
aparecem duas vezes; os cadernos 10.º a 13.º dos "Papéis de Fora" ou "Papéis Antigos" não foram ainda
encontrados, assim como os cadernos 25.º, 42.º, 43.º, 62.º, 63.º, 65.º, 78.º, 103.º, 123.º, 127.º, 132.º e o 135.º dos
séculos XVII a XIX”. Ver: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/DetailsForm.aspx?id=2318017>. Acesso em 06/04/2017.
29
também, documentos redigidos pela missão dos Capuchinhos italianos, ordens enviadas pela
Rainha de Portugal, D. Maria I, e um parecer escrito pelo antigo Governador de Pernambuco,
o Conde de Povolide.
Para tanto, norteamos nossa análise a partir de bibliografia especializada sobre o tema
dedicada aos estudos sobre a diáspora africana e as suas consequências no chamado Novo
Mundo. Priorizamos discutir como essas práticas empregadas pelos sujeitos escravizados
criavam relações constantes de barganhas, reivindicando seus espaços de liberdades por meio
de suas práticas culturais, indo, dessa maneira, contra as ações empregadas sobre estas práticas.
Durante o século XVIII, Recife era o segundo maior centro urbano da América
Portuguesa. Tinha como base econômica o comércio portuário, que se dedicava a compra e
venda de escravos, víveres, alimentos, panos e outras mercadorias. A atividade comercial era
controlada “por um grupo de comerciantes que disputava poder e prerrogativas com a elite de
senhores de engenho de Olinda, era também o lar para uma diversidade de grupos urbanos que
transitavam dentro de uma cultura mestiça eivada por fórmulas barrocas”50.
50
SILVA, Kalina Vanderlei. O teatro urbano – sociabilidades urbanas açucareiras em Pernambuco nos séculos
xvii e xviii. CLIO: Revista de Pesquisa Histórica, n. 29.2 (2011).
51
Idem.
52
ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro.; SOUSA, Jéssica Rocha. O Comércio de Almas: As rotas entre
Pernambuco e costa da África-1774/1787. Revista Ultramares. Dossiê Ultramares. Nº 3, Volume 1, Jan-Jul,
2013, p. 44.
30
Não por acaso, essas constantes viagens foram responsáveis pela introdução de muitos
africanos. Contabiliza-se que, entre os séculos XVI ao XIX, Pernambuco tenha embarcado
960.475 africanos, e o número de desembarcados chega a 853.833 54 . Números bastante
significativos. Não é difícil imaginar que a maior parcela da população de Pernambuco fosse
de negros e seus descendentes. Com a crescente introdução de negros na região, a cultura local
passava por transformações. Negros batucavam nos fins de semana e em dias religiosos,
Irmandades empenhavam-se na realização de festas religiosas, reis do Congo eram eleitos em
cerimônias de caráter público, feiticeiros e líderes religiosos contrariavam a Igreja e a
Inquisição, usavam de seu conhecimento mágico-religioso para sobreviver em uma sociedade
excludente e alicerçada no trabalho escravo.
Em confissão realizada entre os anos de 1752 e 1753, por Manoel de Sousa Pereira55,
natural da Paraíba, preso em Siolim Província de Bardez, nos cárceres da inquisição de Goa,
que durante dez anos incorporou elementos identitários de grupos diferentes do seu. Manoel,
apesar de não ter sido traficado ou escravizado, conheceu bem várias das práticas religiosas de
africanos e os nascidos no Brasil. Sua trajetória nos mostra como o mesmo se utilizava de seus
contatos para transitar entre variados grupos étnicos, revelando como um homem branco
adaptava-se e utilizava aspectos sociais e culturais considerados gentílicos56.
A trajetória de Manoel começa no ano de 1743, quando tinha 16 anos e residia na
Paraíba. Ganhou uma carta de tocar de um crioulo que se encontrava preso em uma cadeia e
que “devia alguns favores” à sua família, com a promessa que aquele objeto o ajudaria a
conquistar e se deitar com qualquer mulher. Segundo sua confissão, conseguiu enfeitiçar uma
crioula de nome Josefa e, no período de um ano, mais dezesseis mulheres em várias Capitanias.
53
ALMEIDA; SOUSA, Op. Cit., p. 44.
54
Idem.
55
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Promotor nº 131, p. 13-25.
56
GENTILICO, adj. Coisa dos gentios, e pagãos. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico,
anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8 v. p. 658.
31
Apesar dessas cartas terem sua origem na península Ibérica, seu uso se popularizou no Brasil,
sendo usada por toda a população independente da sua condição ou qualidade.
Essas cartas eram compostas de textos considerados mágicos, quem por ventura fosse
tocado pelo objeto estaria sujeito a ter relações sexuais com o portador da dita carta. Não existia
um texto padrão para a época, e o conteúdo da carta de Manoel também não foi exposto em sua
denúncia, mas é possível ter uma ideia por meio de uma carta trasladada em um caderno do
Santo Ofício português:
Primeira Oração
Com dois te vejo, com cinco te prendo, o coração te parto o sangue te bebo;
quando me vires, por mim suspires, e quando me vires a mim te arrimes pela
lenha da Vera Cruz para sempre. Amém Jesus. 2ª Nobisquo corpo nosso
quando te digo isto não é por te consagrar senão por te enfeitiçar que me der
quanto tiveres me conter o que souberes, e me queiras mais que todas as
mulheres57.
Tudo indica que Manoel ficou em companhia de sua mãe até os 19 anos quando mudou-
se para o Recife, em 1746, indo morar na casa de um soldado chamado Luís Tavares. Já em
Pernambuco, saiu um dia pela manhã com mais seis amigos até o bairro do Santo Antônio. Ao
passarem pela ponte, encontraram o Capitão do Mato Pedro Monteiro, que trazia dois pretos
presos. Comentara Manoel com os seus amigos, que o dito Pedro era “mandinga”, e todos
continuaram a discutir sobre a polêmica.
Disse João Soares, um dos amigos que estava na discussão, afirmou que se quisessem
ter “casta de mandinga”, fossem a casa do mulato Pedro Rodrigues, homem solteiro e sem
ofício, também residente no Recife. Provavelmente Pedro vivia ou complementava sua renda
com venda de bolsas mágicas, mas o que chama a atenção é o uso de “casta” para o objeto
solicitado. Para a época58, esta palavra estava ligada a qualidade59 não a variação de funções de
uma bolsa mágica de proteção.
57
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno nº 128, f. 342
58
Segundo Bluteau, casta estaria relacionado a hierarquia social, linhagem de família ou gênero humano.
BLUTEAU, Raphael. Op. Cit. p. 182.
59
Entende-se por qualidade a cor da pele. Para uma discussão sobre o assunto ver: RÊGO, João Figueirôa e
OLIVAL, Fernanda. Cor da pele, distinções e cargos: Portugal e espaços atlânticos portugueses (séculos XVI a
XVIII). Tempo, n. 30, 2011; PARÉS, Luís Nicolau. O processo de crioulização no Recôncavo Baiano (1750-
1800). Afro-Ásia, 33 (2005), p.87-132; RAMINELLI, Ronald. Impedimentos de Cor: mulatos no Brasil e em
Portugal c. 1640-1750. Vária História, Belo Horizonte, vol. 28, 1º 48, p. 699-723, Jul/Dez de 2012; SANTOS,
Jocélio Teles dos. De pardos disfarçados a brancos pouco claros: classificação racial no Brasil dos séculos XVIII
e XIX. Afro-Ásia, 32 (2005), p. 115-137.
32
Apesar de sua confissão não trazer muitos detalhes, se sobressai nas palavras de Manoel
que possuía algum conhecimento sobre a mandinga que solicitara. Afirmamos isso a partir de
suas palavras
E logo o dito Pedro Rodrigues disse que para a mandinga ser boa haviam de
ir a igreja despedirem-se dos Santos, e os que tivessem pais, mães, e irmãos
se despedisse deles dizendo que já não eram seus filhos, e irmãos, [...]
respondeu, que não queria mandinga para sempre, nem se queria despedir dos
santos, nem de seus pais, irmãos, e parentes, e lhe desse outra mandinga, e
perguntou ao réu e mais camaradas se queriam ir despedir-se dos santos, pais,
irmãos, e parentes, e lhe responderam que não.60
Manoel e seus seis amigos dirigiram-se para a casa do mulato, e o mesmo indagou qual
“casta de mandinga” queriam ter. Após todos concordarem que queriam ficar imunes a “furos
de bala e cortes de faca”, Pedro pediu que retornassem a sua casa às sete horas da noite. Para
se ter a mandinga desejada, dizia Pedro Rodrigues, é necessário que se renegue todos os santos
e toda a família, ao que todos disseram não teriam coragem para tanto e que queriam apenas a
mandinga temporária. O mulato, provavelmente “mandingueiro”, então lhe deu vários papeis
pintados com tinta preta a figura do demônio e um credo às avessas.
Ao receber a figura e o credo, Manoel deixou de lado sua identidade cristã, arrenegando-
se (por hora) dos ensinamentos da Igreja de Roma afim de obter vantagens físicas por meio de
um objeto mágico. A constatação do seu afastamento temporário dos ditames católicos
consolida-sa com o porte de um “credo às avessas”. Comumente esse tipo de oração traz
palavras que contrariam as qualidades características da tríade do Espirito Santo. Observemos
um exemplo desse tipo de credo:
Não creio em Deus Pai. Não creio em Deus filho. Não creio em Deus Espírito
Santo Padre nosso. Não creio criador do céu e da terra não creio. Não creio
em Jesus Cristo nosso senhor, não creio o qual foi concebido. Não creio no
Espírito Santo não creio nasceu de Maria a Virgem. Não creio faleceu sobre o
poder de Pôncio Pilatos. Não creio foi crucificado na cruz [...]61.
60
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Promotor nº 131, fls. 15.
61
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 14649, fls. 32.
33
bode que gritava pelo nome de Jesus e logo em seguida se transformou “no demônio”, soltando
labaredas. Como todos ficaram com medo, Pedro Rodrigues acabou por ir e lutar sozinho com
o demônio, trazendo todos os papeis devidamente aceitos no pacto.
Ao saírem da tal Cidadela, passaram pela mesma ponte onde encontraram mais cedo o
Capitão do Mato supostamente mandinga, e que despertara em Manoel e seus amigos o desejo
de serem também. Ainda, na mesma ponte, foram interceptados pela ronda local e revistados.
Manoel conseguiu se livrar da figura do demônio ficando apenas com o credo às avessas. Sua
confissão não deixa claro, mas naquele momento fora preso pela ronda sem dizer o motivo.
Sabemos que sua prisão em nada teve a ver com a inquisição, já que o mesmo não ficou sob
custódia de nenhum comissário.
O envolvimento de Manoel com objetos e práticas mágicas não cessam por aí. Após
obter a mandiga, foi preso na cadeia do Recife, aproximadamente entre fevereiro e junho de
1746, quando Antônio de Sousa Porto pagou sua fiança para que o mesmo pudesse se casar
com Vitória de Jesus, sua filha. Não sabemos como a conheceu ou os motivos que levaram a
ter sua fiança paga por Antônio, seu futuro sogro.
Após um desentendimento com seu sogro, ainda no ano de 1746, o mesmo fugiu
para a Bahia e lá procurou um crioulo forro natural da dita Capitania, chamado Manoel da
Paixão, morador no distrito do Lagarto, do qual comprou uma “conta de Cabo Verde de cor
preta sobre roxo”62, para se proteger do seu sogro. O local para onde Manoel fugiu e a suposta
coincidência de encontrar um negro que vendesse um amuleto de proteção sugere que, no
mínimo, teria conhecimento deste vendedor ou até mesmo o conhecesse e fizesse parte de sua
rede de contatos.
As cores da conta comprada por Manoel, se analisadas no contexto religioso atual da
Bahia, poderia corresponder a Obaluaê e Exú (cor vermelha) e Nanã (cor azul). Para a Bahia
do século XVIII, a identificação é mais complexa, já que a influência africana na Capitania é
de origem jeje e bantu63, ou seja, sofriam influências diretas dos africanos conhecidos como
minas e angolas, e que diferem na composição dos deuses as quais estas cores representavam a
época. Outro fator que dificulta a análise é sua origem em “Cabo Verde”, não encontramos
referências ou documentos a objetos mágicos ou panteão de Orixás dessa localidade.
Posteriormente, a mando de Antônio de Sousa Porto, foi preso na Bahia em 1747,
quando disse ter ficado um ano sem se confessar, sempre de ânimo elevado e “em companhia
62
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Promotor nº 131, f. 15.
63
Para uma discussão aprofundada ver: PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da
nação jeje na Bahia. Campinas: Editora da Unicamp, 2006
34
do Diabo”. Foi remetido para uma cadeia em Sergipe e lá agrediu com uma barra de ferro, um
soldado “que dizia algumas graças” com uma negra que estava na prisão. Em decorrência de
sua atitude passou um dia na “gonilha de pé e pescoço”, “blasfemando contra Deus”. Algum
tempo depois foi remetido na “Nau do Reino” para os Estados da Índia.
É interessante notar que, mesmo com as diferenças sociais e culturais entre Manoel e as
pessoas que lhe deram ou venderam os objetos mágicos, ele se identificava com estes grupos.
Ao assumir novas identidades, de acordo com a situação, também incorporava as características
deles. Essas características, por vezes, eram passageiras e geradas em momentos específicos
como se “arrenegar de Deus” e “vender sua alma para o Diabo”, por estar em uma situação que
a sua crença católica não era suficiente para resolver seus problemas naquele momento64.
De sua partida para a Índia não temos informações. Segundo confessou, ficara pouco
tempo preso em Sergipe, chegando na Índia no primeiro semestre de 1748. Sabemos que o
mesmo era soldado infante em uma companhia de Siolim, tendo sido preso somente em 1749
pelo Santo Ofício. Será que participou de algum culto “gentílico”65? Talvez tenha tido algum
contato com mandingueiros ou utilizou artefatos para tomar vantagem em algo. É certo que
tenha cometido algum crime contra a fé católica, sendo motivo suficiente para sua prisão, a
julgar o seu histórico.
Manoel, apesar de trajetória singular, não deve ter sido caso isolado. Seu depoimento
nos revela um Recife tomado pelo imaginário social de que objetos poderiam ser mágicos.
Qualquer pessoa que possuísse algum destaque era suspeita de ter ligação com sujeitos e objetos
heréticos, como foi o caso do Capitão do Mato Pedro Monteiro. Além disso, havia sempre
alguém disposto a obtê-los, e, igualmente, havia quem os fabricassem ou vendessem, como o
mulato Pedro Rodrigues, que conhecia a geografia religiosa do Recife, guiando Manoel e seus
amigos para um suposto pacto com o “Demônio”.
É nesse cenário que este trabalho se situa. Um local que, para além dos espaços criados
por africanos e descendentes, também comportava os religiosos ligados a Igreja Católica. Em
1778, chegava ao Recife o Capuchinho italiano Constantino de Parma. Mais tarde, viria a ser
Prefeito da missão dos Capuchos. Constantino se deparou com uma cidade que, segundo sua
religião, estava envolta de “gentilismo”. Essa situação o levou a encabeçar uma verdadeira
64
Paul E. Lovejoy demonstra, através da trajetória de Baquaqua, como a identidade étnica muda de acordo com
a situação em que o sujeito está inserido. Para saber mais ver: LOVEJOY, Paul E. Op. Cit. p. 30-39.
65
Para o século XVI, encontramos referências de cultos denominados “pagodes”, que consistiam em atos públicos
ou privados feitos por hindus, portugueses, negros e outros segmentos da população, onde sacrificavam carneiros
em oferendas aos deuses indianos. Para saber mais ver: NOGUEIRA, Eduardo Borges de Carvalho. Pagodes do
diabo: sociedade e religião hindu na Goa portuguesa (c. 1510 - c. 1560). Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2012. p. 111-122.
35
caçada aos batuques de Angolanos e Sudaneses assim como desenvolveu uma rixa particular
com o govenador da época, José César de Meneses. Este último, concedia aos escravos, sem
restrições, a permissão de “brincarem” nos fins de semana e dias santos.
Claro que essa decisão não agradou a Constantino e seus companheiros de ofício. O que
resultou na quebra de instrumentos dos negros e a tentativa de proibição dos batuques. O
Governador, em seu turno, tomou as medidas cabíveis as atitudes dos missionários, que as
julgou improprias. A seguir, identificamos e problematizamos esse e outros episódios em que
homens, mulheres e crianças, escravizadas ou livres, foram protagonistas colocando em prática
a sua cultura frente as tentativas de proibição impostas pelos Capuchinhos e outros religiosos.
66
Os outros onze eram: Fr. Izidoro de Vignale, Fr. Raymundo de Veneza, Fr. Clemente de Andorno e Fr. Gelazio
de Moreta tiveram como destino a Capitania da Bahia; Fr. Antônio Maria de Veneza (foi como Prefeito da missão),
Fr. Pedro de Veneza, Fr. Victorio de Cambiasca e Fr. Salvador Mãe de Vercelle foram servir missão no Rio de
Janeiro; Fr. Lucas de Rouabranca e Fr. Boaventura de Veneza (foi como Prefeito) foram enviados para São Tomé;
e Fr. Bernardino Podevaninho para Angola. Por motivos de saúde. Fr. Luigoi da Sena não foi enviado como
missionário ao Congo. Rol dos Missionários Barbudinhos Italianos Vindos de diferentes Províncias de Itália para
as Missões das Reais Conquistas de Sua Majestade Fidelíssima. Laboratório de Pesquisa e Ensino de História
(LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, CU-Diversos, Cx. 6, D. 476.
67
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Códice 583, fls. 190v-
191. O mesmo documento também pode ser encontrado na coleção de avulsos sobre a Capitania de Pernambuco,
Cx. 130, D. 9816.
36
68
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 4740.
69
SILVA, Kalina Vanderlei. O teatro urbano – sociabilidades urbanas açucareiras em Pernambuco nos séculos
XVII e XVIII. CLIO: Revista de Pesquisa Histórica, n. 29.2 (2011).
70
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 4740.
71
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 135,
D. 10140.
37
daqueles sujeitos relegados ao cativeiro, que sabiam, nas malhas de um sistema excludente,
burlar os olhares vigentes da época e colocar em prática suas expressões culturais.
José Antônio Gonsalves de Mello escreveu um pequeno texto sobre o caso e citou
algumas fontes até então desconhecidas. Na época, fez algumas associações com os ritos afro-
brasileiros em Pernambuco no século XX e os batuques do século XVIII72. Rita de Cássia B.
de Araújo escreveu um artigo sobre o tema, articulando-o com as festas públicas na colônia
portuguesa. Apesar disso, a autora não teve acesso a outras fontes que apresentaremos, e acabou
por dar mais ênfase à atitude conciliadora do Governador em permitir os batuques e não
problematizou e discorreu sobre outros assuntos presentes na documentação. Ela reconhece,
assim, como Gonsalves de Mello, que a documentação necessita de um reexame para melhor
compreensão, e cita Luís Geraldo Silva Filho, que estava estudando o mesmo caso73.
O texto de Silva Filho trouxe um novo olhar sobre este episódio. Seu artigo se divide
em várias partes, em que fez uma incursão por várias regiões da África, com o objetivo de
explicar algumas etnias que viviam em Pernambuco. O autor também problematizou o
cotidiano de algumas irmandades de Olinda e de Recife e, por fim, explorou a ideia de controle
social através do caso dos batuques, que ocorrera na Capitania de Pernambuco em fins do século
XVIII 74 . Existem outros textos que discutiram esse caso, mas todos sempre se referem ao
mesmo tema: a permissividade para com os batuques e a ideia de resistência por parte dos
escravos. Obviamente concordamos com esta visão, mas nossa pesquisa pretende apresentar
novos olhares sobre o episódio que ficou bastante conhecido na historiografia de Pernambuco.
Em nossas pesquisas, nos depararemos com a denúncia original elaborada por um
sacerdote sobre o caso dos batuques em Recife. Trata-se de uma diligência que acabou não
sendo levada à frente pelo Tribunal do Santo Ofício, ou seja, não teve relevância para se
instaurar um processo para averiguação da situação da denúncia, arrolamento de testemunhas e
punição de quem fosse considerado culpado. Apesar disso, as poucas páginas que compõem o
documento possuem informações que podem nos ajudar a entender e a problematizar as
vivências escravas em Pernambuco.
72
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Um Governador colonial e as seitas africanas. Diário de Pernambuco.
Recife, 22 Jan. 1950.
73
ARAÚJO, Rita Cássia B. de. Cruzes, plumas e batuques: festas públicas e colonização na América portuguesa.
Ci. & Tróp. Recife, v. n. 2, p. 161-181. Jul/Dez, 2000. p. 178.
74
SILVA, Luiz Geraldo. "Da festa barroca à intolerância ilustrada: Irmandades católicas e religiosidade negra na
América portuguesa (1750-1815)". In: SALLES-REESE, Verónica (Org.). Repensando el pasado, recuperando
el futuro: nuevos aportes interdisciplinarios para el estúdio de la América colonial. Bogotá: Editorial Pontifcia
Universidad Javeriana, p. 313-335.
38
Em carta para o Santo Ofício, o Comissário Manoel Félix da Cruz escreveu para o
referido Tribunal “que os pretos vindos a Pernambuco do gentio de Angola, e outros distritos,
se ajuntam e executam umas danças acompanhadas de ritos gentílicos, com que aqueles
bárbaros adoram suas falsas divindades”75. Por considerarem danosas “ao bom proveito das
almas”,
75
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 4740.
76
Idem.
39
deve causar todo o reparo, e atenção, pois se acham em terra cristã, e eles
batizados.77
Apesar da denúncia deixar bem evidente a repulsa que havia por parte dos missionários
Capuchinhos sobre as danças dos negros, alguns aspectos merecem ser analisados para
entendermos de que se tratavam os rituais em questão. Chamamos a atenção para a preocupação
do comissário Manoel Félix em apontar que os negros eram batizados, adoravam a outros
deuses e retiravam esmolas para as missas. Para além da ideia de que eram batizados, e em
decorrência disso, deveriam andar nos caminhos da Igreja Católica Romana.
Essa constatação do batismo nos traz possíveis informações de quem eram esses negros.
Primeiro, parte dos africanos denunciados eram oriundos de regiões centro-africanas, que
atualmente constituem Angola, Congo, Gabão e Cabinda. As pessoas deslocadas destes locais
trouxeram uma cosmovisão muito particular e divergente da que se formara na colônia sob a
égide (pelo menos em tese) do catolicismo europeu. Para estes sujeitos e tantos outros africanos,
o mundo estava dividido em dois seguimentos: o plano material (dos vivos) e o plano imaterial
(dos mortos). Significava a troca constante de informações entre os dois mundos, em que o
primeiro dependia do segundo para obter informações, resolver conflitos e outras situações do
dia a dia.
Uma das características dos centro-africanos “era a crença de que as estruturas seculares
estavam intimamente ligadas às ideias religiosas. As ideologias políticas, sociais, econômicas
e culturais estavam todas integradas numa cosmologia”78. Esta cosmologia servia de parâmetro
para o comportamento e para a execução de rituais, explicava a origem de doenças e outros
fatores desagradáveis, assim como desenhavam as relações entre o ser humano e as divindades.
Dessa forma, estes dois mundos estavam divididos por uma grande quantidade de água
que deveria ser atravessada por aqueles que morriam79. Apesar da travessia feita por parentes
ou malungos, havia uma certa dinâmica entre os que ficaram no mundo dos vivos e aqueles que
partiram para o plano espiritual, estabeleciam-se relações que conectavam ambos os planos
através de rituais, onde ofertavam comida ao espírito do falecido e faziam o contato para a
obtenção de respostas ou para se resolver conflitos familiares e comunitários.
Constatamos o que foi exposto acima nas palavras do Comissário Manoel Félix da Cruz
quando o mesmo afirmou que os negros retiram esmolas para fazerem missas pelas almas dos
77
Idem.
78
SWEET, Op. Cit., p. 128.
79
SLENES, Robert W. "Malungu, ngoma vem!": África coberta e descoberta do Brasil. In: Cadernos do Museu
da Escravatura, n. 1. Ministério da Cultura. Luanda, 1995.
40
80
MELLO E SOUZA, Marina de. Reis negros no Brasil escravista. História da festa de coroação de Rei Congo.
Belo Horizonte, Editora da Universidade de Minas Gerais, 2002, p. 260.
81
CAVAZZI, João Antônio de Montecúccolo. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e
Angola. Junta de Investigação do Ultramar. Lisboa. 1965, p. 87.
82
Existem outros deuses com denominações parecidas: Nzambi- caca (único Deus); Nzambi-a-diulu (Deus do
céu). CAVAZZI, João Antônio de Montecúccolo. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e
Angola. Junta de Investigação do Ultramar. Lisboa. 1965, p. 88.
41
83
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 4740.
84
REGINALDO, Lucilene. Os rosários dos angolas: irmandades de africanos e crioulos na Bahia setecentista.
São Paulo: Alameda, 2011, p. 39-40.
85
SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770) / James
H. Sweet; Trad. João Reis Nunes; Luís Abel Ferreira. Lisboa: Edições 70, 2007. Passim.
86
SWETT, Op. Cit., 196.
42
determinados grupos ou sujeitos. O uso desses aspectos de fronteiras tinha por finalidade
potencializar ritos através de outros artifícios religiosos.
A partir do exposto, torna-se possível visualizarmos as adaptações de diferentes
identidades étnicas em razão de um interesse pessoal ou coletivo. Como afirma Barth:
87
BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras, In: POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FNART,
Jocelyne. Teorias da etnicidade, São Paulo: UNESP, 1998, p. 196.
88
SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770) / James
H. Sweet; Trad. João Reis Nunes; Luís Abel Ferreira. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 132.
43
Consideramos que o teatro90 realizado pelos negros tinha mais o sentido de satirizar os
religiosos e que em muito se parece com o que fora feito quando saíram às ruas para
“escarniarem” os citados missionários, o que demonstra um aspecto de cultura política dos que
compunham o teatro. O uso das barbas, hábitos e outros elementos visuais que caracterizam os
Capuchinhos italianos representam uma forma sutil de ataque simbólico contra os mesmos.
Acreditamos que essas eram respostas aos ataques feitos contra os batuques, no ano de 1778, e
uma denúncia a um Capuchinho em especifico.
Em artigo recente, João José Reis faz algumas considerações sobre o batuque na Bahia
no ano de 1785. Para este autor, o batuque representava não somente o campo da religião e
crença africana. Este poderia significar um ato subversivo, ou seja, o prenúncio de uma revolta
e rebeldia cultural91. A afirmação de Reis coincide com o que analisamos sobre os batuques no
Recife. Se em dado momento estiveram relacionados à atividade religiosa, por outro lado,
também foram utilizados como instrumento político de resistência contra as atitudes dos
missionários Capuchinhos.
Ressaltamos que, enquanto para a documentação aqui utilizada o termo batuque gravita
entre religião e sátira, para o Rio Grande do Sul, o mesmo caracterizou-se como crença. Nesta
89
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino. Pernambuco, Cx. 141,
D. 10415.
90
No século XVI, na Europa, o teatro não era visto com bons olhos. Católicos e protestantes, que ficaram
conhecidos como “reformadores da cultura popular”, combatiam e censuravam este tipo de atividade. Apesar do
teatro, neste período, estar ligado às camadas mais abastadas da sociedade europeia, ainda assim, era considerada
“liturgia do Diabo”. Para uma discussão a respeito da cultura popular na Europa, ver: BURKE, Peter. Cultura
popular na idade moderna. Europa, 1500-1800. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. Sobre o teatro no
Brasil, ver: MAYOR, Mariana Soutto. O teatro do século XVIII no Brasil: das festas públicas às casas de ópera.
Revista aSPAs. Vol. 5. n. 2. 2015, p. 104-110; TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut de; RUCKSTADTER, Flávio
Massami Martins; RUCKSTADTER, Vanessa Campos Mariano. O teatro jesuítico na Europa e no Brasil no século
XVI. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.25, mar. 2007, p. 33–43.
91
REIS, João José. Revisitando “Magia jeje na Bahia”. In: COSTA, Valéria Gomes.; GOMES, Flávio. Religiões
negras no Brasil: da escravidão à pós-emancipação. Editora: Selo Negro, 2016, p. 22.; REIS, João José. Batuque
Negro: repressão e permissão na Bahia oitocentista. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Iris (Orgs.). Festa: cultura e
sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec, 2001, p. 339-358.
44
região, um dos mitos fundantes do batuque é que teria sido introduzido a partir de uma escrava
vinda do Recife. Ali, seria adotado como um sistema de divindades e de regras a serem
seguidas92. Considerando que o tráfico interno de africanos de Pernambuco para o Rio Grande
do Sul só veio a se consolidar após a proibição do tráfico no século XIX93, a cultura africana e
crioula de Pernambuco, a esta altura, devia apresentar poucas similaridades com os batuques
descritos para Recife no século XVIII. Logo, o batuque religioso do Rio Grande do Sul seria
diferente dos que analisamos.
A entrega de uma carta para a mulher e, consequentemente, os muitos abraços e beijos
não era por acaso. Os protagonistas do teatro estavam a representar Padres que, no ato do
confessionário, propunha atos libidinosos, podendo resultar em toques sexuais e até mesmo a
concretização do ato sexual. Destacamos que o objeto representava algo muito conhecido no
mundo colonial: cartas de tocar. Quem a portasse, poderia adquirir o amor de quem a tocasse.
A “carta de tocar”94 era confeccionada para se obter o amor da pessoa que fosse tocada por este
objeto.
Não obstante, alguns Padres que empreendiam estas práticas eram conhecidos por sua
“má fama”, como mostra a documentação. A exemplo, no ano de 1783, pesavam acusações
92
ORO, Ari. Religiões Afro-Brasileiras do Rio Grande do Sul: passado e presente. Estudos Afro-Asiáticos, Ano
24, nº 2, 2002, pp. 345-384.
93
BERUTE, Gabriel Santos. O tráfico negreiro no Rio Grande do Sul e as conjunturas do tráfico Atlântico. C.
1790 - c. 1830. 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. 2012, p. 15.
94
Não existe um texto padrão para essas cartas. Seu conteúdo varia de acordo com quem a escreve. Além do texto,
pode haver a presença de materiais considerados sagrados, como hóstia e pedra d’ara. A seguir, dois exemplos de
simpatias utilizadas na colônia: “Com dois te vejo, com cinco te prendo, o coração te parto o sangue te bebo;
quando me vires, por mim suspires, e quando me vires a mim te arrimes pela lenha da Vera Cruz para sempre.
Amém Jesus”. Ver mais em: Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Caderno do Promotor nº 124. Além das cartas,
outros rituais (feitiçaria para a Inquisição) eram utilizados para fins amorosos. Em Pernambuco, no ano de 1718,
Ana Monteiro, parte de cristã-nova, e de 30 anos de idade, realizava simpatias para várias pessoas em Recife. Em
processo aberto pela Inquisição de Lisboa, parte desta prática foi registrada: “Neste portal me venho assentar, e
não vejo fulano, nem tenho, que lho buscar: vá Barrabás, vá Satanás, vá Lúcifer, vá sua mulher Maria Padilha com
toda a sua quadrilha, e todos se queiram juntar, e em casa de fulano entrar, e o não deixem comer, dormir, nem
repousar, sem que pela minha porta dentro venha entrar”. Ver: Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Processo
1377-1. p. 248.
95
VALE, Fernanda Cristina. Linguagens de amor: a feitiçaria como meio de conquista amorosa no Brasil colonial.
III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares. p. 8.
45
contra o Padre Capuchinho italiano Frei Mariano da Imola. Segundo carta redigida pelos seus
próprios companheiros de ofício96, o referido religioso tinha “pouca cautela” no falar e no tratar,
“principalmente com mulheres”. Fora isso, era acusado de, há tempos e em horários impróprios,
“frequentar certa casa”. Provavelmente a casa de uma mulher. Tendo este exemplo, supomos
que o teatro feito pelos negros representava não só o ataque aos Capuchinhos, para além disso,
revelava como estavam interligados à sociedade a ponto de saberem e denunciarem – por meio
do teatro – práticas que não condiziam com a figura de um Padre. Maneira perspicaz de afrontar
aqueles que tentaram moralizar os batuques alguns anos atrás.
A tentativa de se iniciar o sermão do sumo sacramento, não temos como afirmar se seria
realizado por alguma irmandade, se havia alguma profundidade de crença ou se era apenas por
diversão. O que podemos evidenciar com certa precisão é que, independente do que fossem
essas práticas, elas demonstram o descontentamento dos negros para com os missionários.
Além disso, mostra formas de resistências que não se encontram no campo do conflito físico,
mas sim simbólico.
Se estas pessoas faziam parte de uma irmandade ou não, resaltamos que o sermão nem
sempre estava relacionado a conteúdos litúrgicos da Igreja Romana, segundo Julita Scarano97.
O sermão também era utilizado para tratar de assuntos que eram de interesse comum para o
grupo que o iniciasse. Então, não é de se admirar que um clérigo 98 tenha evitado o início do
mesmo, provavelmente prevendo que aqueles negros do teatro colocariam em pauta a repressão
que sofriam por parte dos Capuchinhos.
96
A folha de abertura do ofício encontra-se com fortes vazamentos de tinta nas assinaturas, que, ao todo, são sete.
Dentre elas, identificamos: Frei João Baptista; Frei Valência; Frei Vidal; Frei Joaquim; Frei Pedro Lourenço de
Loussalo. A redação do documento foi feita pelo Frei Clemente de Moreta, vice-prefeito [do convento] da Penha.
Ver mais em: Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino,
Pernambuco, Cx. 148, D. 10763.
97
CHITUNDA, Paulo Alexandre Sicato. Entre missas e batuques: Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos em Recife, Goiana e Olinda - Século XVIII. Dissertação de Mestrado apresentado ao PPGH-
UFRN. Natal, 2014, p. 170-171.
98
Outra possível explicação para esta situação pode ser dada através de uma Pastoral escrita pelo bispo de
Pernambuco, D. Tomás, em 13 de setembro de 1774. Em uma circular impressa destinada “ao clero, e povo de
Pernambuco”, pedia o bispo que “todos os párocos da nossa Diocese, não administrem o sacramento do
matrimonio de noite, nem abram as igrejas depois das Ave Marias para fazerem novenas, expor o Santíssimo
Sacramento, e fazer outras devoções, do qual abuso temos ouvido que resulta na frequência de um, e outro sexo,
naquelas horas, escândalo a toda cidade [...] E mandamos aos mesmos reverendos párocos, que na suas igrejas
nem pratiquem, nem deixem praticar quaisquer novas, e extraordinárias devoções”. Além de outras possíveis
devoções que pudessem ocorrer nas igrejas, provavelmente o bispo já estava a indicar sobre os batuques, danças
e outras expressões da cultura africana e crioula em Pernambuco. Ver mais em: Arquivo Nacional da Torre do
Tombo. Real Mesa Censória, doc. D. Tomás da Encarnação Costa e Lima, cónego regrante de Santo Agostinho
[...] Bispo de Pernambuco reprova a negociação no eclesiástico, dá conta da origem das vigílias e proíbe os festejos
e novenas noturnas. p. 7
46
Paulo Sicato Chitunda apresentou outro dado importante sobre a dinâmica dos cultos
nas Irmandades, em especial, a do Rosário de Olinda, “que no dia da festa em homenagem a
Nossa Senhora do Rosário, a missa que seria pela manhã deveria ser preenchida por “sermão”
e música, redundando em uma “missa cantada”99. Caso os negros realizassem o teatro em uma
irmandade, o que levaria um clérigo a ter tanta autoridade a ponto de impedir de se iniciar um
sermão? Estaria ordenado pelos missionários Capuchinhos? Em caso afirmativo, será que o
Bispo sabia ou concordava?
Apesar de não ter vindo a público, “tudo isso ocorreu na presença de um ministro de
Sua Majestade o Juiz de fora”, João da Silveira Pinto Nogueira. Após o ocorrido, o então
Prefeito das missões, Constantino de Parma, o mesmo que se empenhou na quebra dos
instrumentos e na perseguição aos batuques, recorreu ao Bispo D. Tomás da Encarnação Costa
e Lima, o qual, por sua vez, o encaminhou para o Governador, e este, por fim, o mandou recorrer
ao Juiz de Fora. “E tudo quanto fizeram contra dos criminosos foi uma pura aparência, e por
exterior demonstração”100.
Segundo Constantino de Parma, a “exterior demonstração” contra os negros fora feita
em comum acordo entre o Bispo e o Governador e Capitão General. Consta que os mesmos
sentiam-se ofendidos, o primeiro, por ter a sua função de Bispo contestada pelo Prefeito, pois
permitia que “moços e moças dançassem escandalosamente”, e era em excesso amigo101 do dito
Governador, que se achava ofendido “pela proibição dos batuques”. Vejamos a seguir como
ocorreu essa proibição e quais motivos levaram o Prefeito a fazer tal afirmação.
99
CHITUNDA, Op. Cit., p. 171.
100
Idem.
101
Trataremos mais a frente sobre a possível relação de amizade entre D. Tomás e José César de Meneses.
47
102
A documentação também se refere como “barbudinhos” ou “barbadinhos italianos”.
103
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 135,
D. 10140.
104
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 135,
D. 10140
48
Como podemos observar na carta escrita pelo Santo Ofício, alguns aspectos da denúncia
feita por Manoel Félix da Cruz foram tomados como verdade, fato esse que se comprova no
pedido de sua “respeitável proteção aos missionários”, e, ao que tudo indica, tomaram a decisão
destes de saírem às ruas e destruírem os instrumentos como correta, pois reconhecem “que
publicamente repreendem abomináveis costumes” supostamente defendidos pelo Governador.
Em seguida, a carta foi respondida pelo Governador ao Tribunal e à Rainha, justificando
que a penalização feita aos missionários era justa, pois os referidos clérigos deviam utilizar a
razão ao invés de violência para a conversão dos não-cristãos, assim como não poderia permitir
que se usasse a força em detrimento da persuasão. A carta segue dizendo:
Até esse ponto são evidentes as razões do Governador ter afirmado que as notícias são
fundadas em mentiras. A princípio, é possível entender que faça menção apenas a duas versões
relatadas sobre o episódio dos batuques, mas nossas pesquisas apontaram para algo delicado,
que envolve tensões entre o poder do Governador e o Prefeito das missões, Constantino de
Parma. Sobre a sua permissão aos batuques, afirma José César que se trata de uma “razão de
Estado”, pois, antes, fecharam os olhos para isso, a fim de evitar males maiores, como um
levante por parte dos escravos.
Para Mônica da Silva Ribeiro, o conceito de razão de Estado foi discutido pelos
humanistas desde o século XIV. Para a autora, significa “o surgimento de uma nova cultura
política na forma de administrar e governar os territórios [do império português] na virada do
105
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 135,
D. 10140
49
século XVII para o XVIII”106. Essa prática que surgiu no início da Idade Moderna tinha como
máxima que os fins justificavam os meios. No caso de Pernambuco, a permissão e aceitação
dos batuques parecem estar em comum acordo com esse pensamento.
É possível entender que o modo como a população negra de Pernambuco vivia era muito
diferente de como objetivava o clero religioso. Sendo assim, seria
Bem claro que o soberano [no nosso caso, o Governador José César de
Meneses] não deve se importar em praticar vícios que o auxilie na manutenção
do Estado, porque, segundo ele [Maquiavel], certas qualidades que parecem
virtudes levam à ruína, enquanto outras que parecem vícios trazem o aumento
da segurança e do bem-estar107.
106
RIBEIRO, Mônica da. “Razão de Estado” na cultura política moderna: o império português, ano 1720-30. In:
ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Orgs.). Cultura política e leituras do passado:
historiografia e ensino de história. Civilização Brasileira, 2007, p. 134.
107
RIBEIRO, Op. Cit., p. 136.
108
Provavelmente, era de conhecimento do governador. Em meados do século XVII, na Europa, a obra de
Maquiavel era lida “sem licença nem escrúpulo”. No século anterior, a Inquisição já havia proibido a leitura de
sua obra. Mesmo religiosos e outras pessoas que possuíssem licença para ler as ideias de Maquiavel deveriam
fazer em segredo absoluto. Para os agentes inquisitoriais, as ideias deste autor poderiam contaminar governadores
e outros súditos. Acusavam que em seus escritos, os interesses do príncipe estavam à frente da religião e dos
interesses da Igreja. Apesar disso, suas ideias tiveram ampla difusão na sociedade portuguesa. Sendo assim, não é
difícil imaginar que muitos dos governadores ultramarinos baseavam-se nas teorias de Maquiavel para o bom
funcionamento do seu governo. Para uma discussão sobre o assunto, ver: MONTEIRO, Rodrigo Bentes.;
DANTAS, Vinícius. Maquiavelismos e governos na América portuguesa: dois estudos de ideias e práticas
políticas. Revista Tempo. 2014, v. 20. Dossiê. Traduções de Maquiavel: da Índia portuguesa ao Brasil; Sobre a
proibição de livros por parte da Inquisição, ver: RIBEIRO, Eneida Beraldi. A censura inquisitorial e o tráfico de
livros e ideias no Brasil Colonial. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Janeiro/ Fevereiro/ Março/
Abril de 2012 Vol. 9. Ano IX, nº 1.
109
ALMEIDA, Érika Simões. A câmara do Recife e a coroa portuguesa: negociação de conflitos e conformação
do pacto político no reinado de D. Maria I. In: Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.4, nº8 Jan-Jun, 2015,
p.186189. In: GUEDES, Roberto (Org.). Dinâmica Imperial no antigo Regime Português: escravidão,
governos, fronteiras, poderes e legados: século XVII - XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
50
A crescente preocupação por parte de Portugal para com suas possessões ultramarinas
provocou ao surgimento de novas estratégias de governo, buscando uma maior racionalidade
em todos os setores administrativos. Silva afirma que o “Brasil tornou-se um dos principais
palcos de implementação dessa nova “razão de Estado”, consubstanciando-se, assim, em espaço
privilegiado para o surgimento de uma nova cultura política”110.
Essa racionalização não ficava apenas no plano das finanças, controles de fisco, fazenda
e outros elementos de natureza administrativa, passava também pela vida dos colonos e
interferia no projeto político das ordens religiosas, que representavam a tentativa de moldar o
cotidiano da colônia aos interesses religiosos da Igreja de Roma. Sendo assim, o conceito
utilizado pelo Governador demonstra uma complexidade “de pluralidade de culturas políticas
inscritas nas variadas práticas e representações existentes”111 na Capitania de Pernambuco em
finais do século XVIII.
D. Tomás da Encarnação Costa e Lima (1774 – 1784), Bispo em exercício neste período,
parecia também partilhar da política de ceder para a boa paz dos domínios portugueses. Este
recebera recomendações em 4 de julho de 1780, do ministro da marinha e ultramar, Martinho
de Mello e Castro, sobre o que deveria agir em conjunto com José César para erradicarem as
danças dos pretos.112 Em 28 de Setembro do mesmo ano, D. Tomás encaminha um ofício para
o mesmo Secretário sobre o seu posicionamento a respeito destas danças. O Bispo afirmava que
“as danças dos pretos, chamadas batuques, ainda que fossem sempre toleradas nestas
conquistas, com tudo sempre as julguei gentílicas, contrarias ao sossego público”113, mas que
apesar de serem toleradas, a “boa paz do sacerdócio e do império” eram de suas maiores
considerações, e que, por isso, destinava-se a cooperar com o dito Governador para os fins
indicados de erradicar tais costumes dos pretos de dançarem.
110
RIBEIRO, Mônica da. “Razão de Estado” na cultura política moderna: o império português, ano 1720-30. In:
ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Orgs.). Cultura política e leituras do passado:
historiografia e ensino de história. Civilização Brasileira, 2007, p. 147.
111
RIBEIRO, Op. Cit., p. 133.
112
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Códice 583, fls. 222.
113
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 137,
D. 10245.
114
Idem.
51
As palavras do Bispo nos fazem uma revelação bastante útil e que provavelmente podem
nos ajudar a propor novas questões. Atentamos ao fato de que em momento algum as denúncias
falaram do envolvimento de irmandades, mas sim de escravizados e livres que praticavam ritos
e batuques em praça pública. Sendo assim, quais razões levaram o Bispo a se deslocar do
assunto principal e tratar das irmandades como se estas fossem o problema?
Amplamente difundida na historiografia, as irmandades eram grupos formados no seio
das comunidades escravas, sendo compostas por africanos, seus descendentes e outros grupos
como os brancos e pardos. Não obstante, estas eram reconhecidas e autorizadas pelas
autoridades leigas do Brasil Colonial e da Metrópole. Mesmo que fossem festividades
“tumultuosas”, como a de São Gonçalo, ainda que reprovadas pela Igreja, eram aceitas pela
população e por outros seguimentos políticos da época.
As festas propostas pelas irmandades de negros, pardos, brancos, entre outros, tinham
como uma de suas finalidades a devoção. Nesses espaços, o campo do sagrado misturava-se ao
folgar, ao lazer, às danças, aos batuques e a outras expressões dos povos de matriz africana e
afro-brasileira. Chitunda aponta em seu estudo que essas festas também representavam a
manutenção dos símbolos ancestrais banto, ou seja, a formação destas irmandades teria no seu
seio uma composição maciça de centro-africanos115, e supõe ainda que os batuques, alvos das
denúncias aqui apresentadas, eram realizados principalmente nas festividades das Irmandades,
afirmando que estes costumes eram em especial realizados pelos angolanos.
Na primeira metade do século XX, Edison Carneiro abordava o batuque de origem
angolana em uma perpectiva cultural. Para este autor, o batuque conhecido atualmente, e que
em muito se assemelham aos aqui analisados, eram de origem Banto. Logo, concordamos com
a sua visão e a de Chitunda, no que se refere a origem destes costumes.
Quando a Mesa da Inquisição endereçou a carta para Quando a Mesa da Inquisição
endereçou a carta para o Governador de Pernambuco deixa, bem claro que Angolanos e Minas
realizavam tais atos, mas atesta que “com especialidade os da Costa [da Mina]” empreendem
rituais mais específicos. O parecer do Conde de Povolide, nesse caso, nos parece bastante útil
para entendermos esse trecho. Como descrito, ele informa que havia duas formas de dançar: as
que pareciam com lunduns e as que os pretos Mina realizavam as escondidas sobre um altar e
adorando seus ídolos. Essa informação nos leva a crer, sem Generalizações, que havia uma
115
CHITUNDA, Paulo Alexandre Sicato. Entre missas e batuques: Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos em Recife, Goiana e Olinda - Século XVIII. Dissertação de Mestrado apresentado ao PPGH-
UFRN. Natal, 2014, p. 168-182.
52
divisão étnica dos costumes empregados por ambos os grupos. Enquanto centro-africanos
pediam esmolas pelas ruas e dançavam, os Minas faziam rituais mais específicos envolvendo
costumes e crenças não condizentes com os ideais católicos.
Apesar dessa divisão visível entre os grupos, que, diga-se de passagem, notamos
também na composição de cargos das irmandades116, sugerimos que ambos os grupos também
participassem das cerimônias, sejam elas na perspectiva de um catolicismo africanizado (ou um
animismo com elementos católicos), sejam de rituais animistas. Nos parece que batuque estava
ligado a mais de um entendimento. Para Laura de Mello e Souza, baseada em Câmara Cascudo,
o lundu que nos fala o Conde foi o pai do fado português por ser cantado. “No Norte e no
Nordeste do Brasil, dançava-se o fado sob o nome de lundu; com o tempo, este acabou
convergindo para batuque, que era angolano, considerado "dança indecente"117. Viajantes na
África Ocidental e oriental designaram o batuque tanto pela sua percussão quanto pela sua
coreografia, sempre feita em roda para dançar118.
Apesar de se entender o batuque como elemento da cultura banto, surge um novo
problema: o batuque era realizado apenas por angolanos? Yeda Pessoa de Castro associa lundu
a Calundu, este último é uma agremiação de práticas ritualísticas de origem centro-africana,
mas que em muito assemelha-se a práticas realizadas por africanos da Costa da Mina. Seria o
batuque comum a ambos? Teriam Minas e Angolas especificidades compartilhadas no campo
religioso? Voltaremos a este assunto mais à frente.
Qual a importância de frisar a polissemia desta palavra? Se remetermos ao contexto em
que ela foi inserida, iremos descobrir que se tratava de um jogo de palavras utilizado por duas
instâncias administrativas do Brasil Colonial: o Governador de Pernambuco e o Santo Ofício.
O primeiro, tomava para si o termo batuque como simples algazarras e divertimentos; o
segundo, entendia que a palavra estava ligada a rituais “gentílicos”. Ou seja, se admitia um ou
outro significado da palavra com o objetivo de atender aos interesses de quem estava inserido
no caso. Em outras palavras, essa divisão era perceptível aos que apenas observavam e, além
disso, eram usadas de acordo com os seus interesses.
116
Sobre este assunto, ver: CHITUNDA, Paulo Alexandre Sicato. Entre missas e batuques: Irmandade Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos em Recife, Goiana e Olinda - Século XVIII. Dissertação de mestrado
apresentado ao PPGH- UFRN. Natal, 2014.; REGINALDO, Lucilene. Os rosários dos angolas: irmandades de
africanos e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011.
117
SOUZA, Laura de Mello. Revisitando o calundu”. In: GORENSTEIN, Lina e CARNEIRO, Maria L. Tucci
(Org.). Ensaios sobre a intolerância: Inquisição, Marranismo e Anti-Semitismo. São Paulo: Humanitas, 2002,
p. 293-317.
118
Idem.
53
O fato de falarmos isso serve para entendermos os motivos do Bispo D. Tomás chamar
a atenção para este assunto, quando o que interessava naquele momento era a erradicação dos
batuques, que, ainda que fossem realizados nas festividades, não ocorriam com frequência, pois
possuíam calendários específicos para as suas solenidades. O que podemos deduzir de sua
afirmação é que o seu “silêncio”, em relação aos batuques, corrobora com o que Constantino
dizia em 1781, “que o Bispo é amigo em excesso do General”. Mesmo que tais motivos fossem
de sua total reprovação, como o mesmo afirmava, parecia que o Bispo partilhava a mesma visão
do Governador, ou seja, “fecha-se os olhos a isso por uma razão de Estado”. Completamos
dizendo que os negros perseguidos por causa de seus batuques possuíam força política
empreendida através de suas práticas culturais.
O tom conciliador de José César de Meneses, a aceitação do Bispo (mesmo dizendo o
contrário) e o constante embate entre a esfera religiosa e administrativa sobre as expressões
africanas e afro-brasileiras revelam interesses distintos. Para a Igreja, a tentativa de usar a
Inquisição para barrar esses costumes demonstra o interesse de normatizar os africanos
batizados na vivência católica; para o Governador e o Bispo, a aceitação destas práticas era
fundamental para o bom funcionamento da Capitania. Ainda acrescentamos que, mesmo os
senhores de engenho não aparecendo nesses episódios, certamente, concordavam com as
práticas e faziam uso delas em benefício próprio.
fofas de Portugal, e os Lundus dos Brancos e Pardos daquele País [Brasil]”. Ainda que estas
não fossem inocentes, eram parcialmente aceitas. Para o conde, as danças que o Governador
falava eram estas. Quanto às que a Inquisição e os missionários falavam, eram as que
Entendo ser de uma total reprovação, são aqueles que os pretos da Costa da
Mina, fazem às escondidas, ou em Casas, ou Roças, com uma Preta Mestra,
com Altar de Ídolos, adorando Bodes vivos, e outros feitos de barro, untando
seus corpos com diversos óleos, sangue de galo, dando a comer bolos de milho
depois de diversas benções supersticiosas, e fazendo crer a Rústicos, que
naquelas unções de pão dão fortuna, e fazem querer bem Mulheres a Homens,
e Homens a Mulheres119.
A descrição feita sobre o segundo tipo de dança que o mesmo vira em Pernambuco
coincidia com as denunciadas ao Tribunal do Santo Ofício. Aqui surge um novo elemento até
então não mencionado nas denúncias. Anteriormente, falou-se dos batuques com certa ausência
de aspectos mais específicos da religiosidade negra, mas aqui eles figuram-se com mais ênfase,
o que possibilita uma análise mais profunda do panorama destas danças fortemente
repreendidas.
Há uma certa homogeneização daqueles que praticavam tais danças quando, na
documentação, é evidente que havia uma divisão entre os grupos que faziam parte dos batuques
e danças. No primeiro momento, evidenciou-se que angolanos empreendiam atos considerados
“torpes” com elementos católicos; agora, em segundo plano, o Conde de Povolide afirmava que
os africanos provenientes da Costa da Mina realizavam cerimônias mais parecidas com as da
África.
Esse é um dado importante para que possamos entender a própria configuração desses
espaços festivos e religiosos criados pelos negros do Recife no século XVIII. Em se tratando
de vivência religiosa, ambos os grupos, Angolas e Mina, possuíam características específicas
determinadas pela geografia local que ocupavam na África e, ao que tudo indicava, parece ter
sido transportada para Pernambuco, claro que, adaptadas de acordo com o ambiente em que
foram inseridas.
A importância de se compreender a “procedência” destes grupos descritos na
documentação nos ajuda a entender como se formou essa divisão de práticas expostas nas
denúncias a partir da diversidade de organização das “nações africanas”. Reforçamos que,
apesar da ideia de que os grupos tenham, de certa forma, mantido representações de suas vidas
119
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Códice 583, fls.
221-221v.
55
anteriores a escravização, “nenhum grupo, por mais bem equipado que esteja, ou por maior que
seja a sua liberdade de escolha, é capaz de transferir de um local para o outro, intactos, seu
estilo de vida”120.
Estes rituais “chega a tanto a credulidade de algumas pessoas, ainda daquelas que não
pareciam serem tão rústicas, como Frades e Clérigos”, que estes acabavam por se incorporarem
às cerimônias dos negros. Comenta o conde que muitos religiosos chegaram presos a sua
presença denunciados pelos “cercos que mandava botar a estas Casas, que querendo-os
desmaginar”, posteriormente, remetidos aos seus prelados para serem corrigidos, “e os Negros
fazia castigar com rigorosos açoites, e obrigava aos senhores que os vendessem para fora: Estas
são as duas Castas de Bailes, que vi naquela Capitania em o tempo que a Governei”.121
Não era novidade que religiosos se envolvessem em cerimônias “gentílicas”. Ao menos
dois casos podem ilustrar bem este tipo de ocorrência. A primeira data da segunda metade do
século XVII, e a segunda, do ano de 1781. Nos diz o Capuchinho Cavazzi que muitos
missionários, na África, às vezes, queriam usar de juramentos e bebidas que aprendiam com os
feiticeiros para terem a verdade sobre algum fato ou objeto desaparecido122. Nosso já conhecido
missionário Constantino denunciava que o Bispo de Pernambuco, D. Tomás da Encarnação
Costa e Lima, permitia escândalos dentro de sua igreja, onde moços e moças dançavam
escandalosamente123.
Voltando aos batuques, após o parecer elaborado pelo Conde de Povolide, D. Maria I
decide advogar em defesa dos missionários Capuchinhos e acata que a melhor forma de
solucionar o caso é proibindo os batuques. Em 3 de Outubro de 1780, José César de Meneses
novamente endereçava uma carta para a Rainha D. Maria I, em que constava:
120
MINTZ e PRICE. Op. Cit., p. 19.
121
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Códice 583, fls.
221221v.
122
CAVAZZI, João Antônio de Montecúccolo. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e
Angola. Junta de Investigação do Ultramar. Lisboa. 1965. p. 113.
123
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 141,
D. 10415.
124
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 138,
D. 10259.
56
Desterrar “pouco a pouco” era a forma encontrada pelo Governador para manter a livre
manifestação dos negros. Vários fatores foram descritos que o levavam a ter essa posição frente
aos festejos africanos, medo de levantes e, quem sabe, não visse nos batuques nada que se
conservasse “gentílico”. Do ponto de vista da Rainha, sua ordem não poderia ser diferente da
que foi emitida. A sustentação contra os batuques transmitia a ideia de um império centralizado
e que, em última instância, vigorava a palavra real. Provavelmente, para D. Maria I, “defender
o contrário disso, isto é, destacar o papel constitutivo de elementos periféricos, seria contra
produtivo e permitiria o enfraquecimento” 125 do poder monárquico frente às expressões
culturais africanas.
O Governador de Pernambuco tinha ciência da situação. A ordem movida pela Rainha,
independente de motivos religiosos ou não, poderia ser facilmente contornada mediante o poder
que um Governador detinha. Antônio Manuel Hespanha 126 demonstra que os Governadores
ultramarinos detinham uma série de poderes, dentre os quais, poderiam, mediante
circunstâncias específicas, não acatar ordens reais ou tomar decisões sem aviso prévio a coroa.
O último quartel do século XVIII, na Capitania de Pernambuco, foi palco de um forte embate
entre administração colonial e religiosa. Os protagonistas eram: escravos negros, um
Governador, missionários e um Tribunal religioso. Todas as atitudes empregadas nesses
episódios decorreram de vontades individuais, porém, instaladas em uma sociedade instável
com uma variação étnica complexa sujeita as amarras e turbulências do cativeiro.
Em maior ou menor grau, os escravos livres e libertos atuaram como figuras principais
no processo de disputa de poderes e afirmações perante as autoridades eclesiásticas e seculares.
As contendas que surgiram durante o período em que as denúncias analisadas foram escritas
nos revelam sempre a participação dos africanos de forma direta ou indireta. Ainda que estes
sujeitos, em muitos casos, sejam referenciados de forma indireta, conseguimos acompanhar os
seus protagonismos representados na fala de personagens como Constantino de Parma e José
César de Meneses, que, durante todo o entrave que estabeleceram sobre o caso dos batuques,
deram visibilidade às ditas manifestações culturais empreendidas pelos africanos e pelos seus
descendentes.
125
HESPANHA, António Manuel. Antigo Regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político do império
colonial português. In: FRAGOSO, João.; GOUVÊA, Maria de Fátima. Na trama das redes: política e negócios
no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 50.
126
HESPANHA, Op. Cit., p. 59-62.
57
127
REGINALDO, Lucilene. Os rosários dos angolas: irmandades de africanos e crioulos na Bahia setecentista.
São Paulo: Alameda, 2011. p. 149.
128
VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador/Bahia, Editora Itapuã. p. 55-56. Vol. I. apud
REGINALDO, Op. Cit., p. 149.
129
REGINALDO, Op. Cit., p. 150.
58
A partir de 1637 a Fortaleza de São Jorge da Mina passou a ser administrada pelos
holandeses. Por determinação da Holanda, os navios “sob bandeira portuguesa [só] comprassem
escravos apenas em quatro portos: Grande Popó, Ajudá, Janquim e Apá (mais tarde conhecido
como Badagri), localizados ao leste do rio Volta, em uma região denominada Costa dos
Escravos”131. Mas, apesar da limitação imposta pela Holanda, Portugal tinha ao seu alcance
uma vasta região para a captura de africanos. Durante a segunda metade do século XVII a
situação do império português muda drasticamente, pois, ao passo que o comércio naquela
região aumentava, Portugal perdia seu monopólio. Alguns acontecimentos no citado século
levaram o país ao declínio de suas atividades naquela região.
Os conflitos entre a Coroa de Castela e as nações europeias (França, Inglaterra e Países
Baixos) enfraqueceram o poder naval de Castela. Diante isso, foram permitidas às nações
inimigas a colonização de diversas ilhas do Caribe. Nestas ilhas, optou - se pela produção da
cana de açúcar, produto, a esta altura do século XVII, de grande valia no mercado europeu. Para
o cultivo e produção da cana de açúcar, era necessária a utilização da mão de obra escrava
africana. Logo, esses países perceberam que poderiam obter lucros não só com as lavouras, mas
também com o tráfico de escravos para as diversas ilhas do Caribe132.
Assim, a demanda por negros da Costa da Mina aumentou exponencialmente.
Negociantes da França e da Holanda adquiriram asientos 133 ibéricos, que eram licenças
“comerciais para o fornecimento de cativos para às Índias de Castela” 134. Em razão disto, as
130
STABEN, Ana Emília. Visões sobre o comércio de escravos entre Pernambuco e a Costa da Mina no século
XVIII. VII Jornada Setecentista. UFPR, 2007, p. 497.
131
______. Negócios dos escravos: o comércio de cativos entre a Costa da Mina e a capitania de Pernambuco
(1701 - 1759). Dissertação de mestrado, UFPR. Curitiba, 2008, p. 24.
132
STABEN, Op. Cit., p. 26.
133
De 1594 a 1640, era concedido asiento aos portugueses para o monopólio no fornecimento de africanos para a
América Espanhola. ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes. A formação do Brasil no Atlântico Sul.
São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 14-15.
134
STABEN, Op. Cit., p. 26.
59
135
Idem.
136
LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina e o comércio atlântico: tabaco, açúcar, ouro e tráfico de
escravos: Pernambuco (1654 - 1760). Tese de doutorado, USP. São Paulo, 2008, p. 30.
137
LOPES, Op. Cit., p. 30.
138
ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro.; SOUSA, Jéssica Rocha. O Comércio de Almas: As rotas entre
Pernambuco e costa da África-1774/1787. Revista Ultramares. Dossiê Ultramares. Nº 3, Volume 1, Jan-Jul,
2013, p. 35.
139
Para a região da Costa da Mina, a única feitoria que Portugal (em conjunto com a Holanda) mantinha era a de
Ajudá. Para visualizar essa e outras feitorias ver MAPA 2. Ver também: IANTT. Ministério do Reino, mç. 599,
nº 15. (Representação da mesa da inspecção da Baía (brasil) para a Rainha [D. Maria I]).
140
MENZ, Maximilliano M. A Companhia de Pernambuco e Paraíba e o funcionamento do tráfico de escravos em
Angola (1759-1775/80). Afro-Ásia, 48 (2013), p. 45-76.
60
Apesar de ter havido uma Generalização dos grupos deslocados para o Brasil e de outras partes
do mundo, sabemos que nem sempre a identificação dada aqueles sujeitos condiziam com a sua
realidade étnica. E, quase sempre, sua origem étnica estava ligada ao porto de embarque do qual
saiu.
O termo angola “era usado para identificar diferentes populações embarcadas para a
América principalmente através de Luanda, porto e capital mais importante do enclave
português na costa africana, a colônia de Angola”141. Essa designação poderia se referir aos
povos da costa ou a populações de outras regiões distantes do domínio português, mas que
estavam inseridos no comércio interno da África. Logo, um negro designado por angola poderia
pertencer a qualquer outro grupo. Ainda, é necessário ponderar-se, que a palavra ngola provem
de línguas centro-africanas e referia-se ao título que designava o chefe político do Ndongo. O
Ndongo se estendia a “grosso modo, entre os rios Dande e Cuanza, o litoral oceânico e as terras
de Matamba, a que os portugueses atribuíram a designação de “reino de Angola” 142. Ou seja,
essas regiões poderiam abrigar um vasto número de sujeitos de grupos diferentes, mas que eram
englobados pelo termo “angola”.
141
REGINALDO, Op. Cit., 185.
142
REGINALDO, Op. Cit., 185.
61
Fonte: SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. 2.ed. -
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 823.
143
ARAÚJO, Maria Farias de. Governadores das nações e corporações: Cultura Política e hierarquias de cor
em Pernambuco (1776 – 1817). Dissertação de Mestrado. Niterói, 2007, p. 74.
144
Idem.
62
Luís Nicolau Parés145, o termo “Mina” foi uma denominação que se ampliou ao longo do tempo,
mas que inicialmente era utilizado apenas para escravos embarcados do Castelo de São Jorge
da Mina.
145
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas:
UNICAMP, 2006, p. 27.
146
PARÉS, Op. Cit., p. 27-28.
147
PARÉS, Op. Cit., p. 25.
148
PARÉS, Op. Cit., p. 26.
63
Fonte: Costa da Guiné no século XVII. Adaptado de Barbot on Guinea apud PARÉS, Luis Nicolau (org). Práticas
religiosas na Costa da Mina. Uma sistematização das fontes europeias pré-coloniais, 1600-1730. Disponível em:
<http://www.costadamina.ufba.br/> Acesso em: 30/03/2017149.
149
Na Torre do Tombo existe um documento que trata do comércio de escravos com a Costa da Mina na segunda
metade do século XVIII, um mapa que contém todas as feitorias que ali existiam, divididos por suas respectivas
nações. Infelizmente, não foi possível a reprodução do mapa em função do seu tamanho. Para que o leitor tenha
acesso ao conteúdo, transcrevemos a seguir as informações do referido documento: “Nota: em todas as partes
desde Cabo Lahou até Acará há trocas de ouro, marfim e cativos. As bandeiras pintadas ao longo da Costa indicam
os fortes, e feitorias dos europeus. Os lugares que tem em um só pau mais de uma bandeira é porque há ali outros
tantos fortes das nações que mostram as mesmas bandeiras. Entre as duas bandeiras que estão com os panos para
a banda do mar tratam os franceses de fazer um forte. No de S. André estão os ingleses fazendo uma nova feitoria.
Uma das três fortalezas inglesas que se mostram com as três bandeiras em um só pau está quase abandonada. A
feitorias são: Cabo de S. Apolônia (Grã-Bretanha); Rio da Cobra ou Ancobrá (Holanda); Rio Massum (Holanda);
Axém (Holanda); Cabo das Três Pontas (Holanda); Adique ou Dixcove (Grã-Bretanha); Boutry (Holanda); Aldeia
Tacorary (Holanda); Sacondo (Holanda e Grã-Bretanha); Samá (Holanda); Comemdo (Holanda e Grã-Bretanha);
São Jorge da Mina (Holanda); Santiago (Holanda); C. Cono (Grã-Bretanha); Morea (Grã-Bretanha); Agga Feitoria
(Grã-Bretanha); Cormanem (Holanda); Tantungueri (Grã-Bretanha); Apang (Holanda); Anna Mabú (Holanda e
Grã-Bretanha); Vineba (Grã-Bretanha); Berkú (Holanda); Jhido (Grã-Bretanha); Acará (Holanda e Grã-Bretanha
e ?); Ningo Grande (?); Alampo (Holanda); Aquitá (?); Popó Pequeno (?); Ajudá (Holanda, Portugal); Onim
(Holanda); Rio Fermoso ou de Benim (Feitoria abandonada, bandeira branca).Ver mais em: IANTT. Ministério
do Reino, mç. 599, nº 15. (representação da mesa da inspecção da Baía (Brasil) para a Rainha [D. Maria I]). A
folha que contém o mapa não está enumerada. Ver também: “a única perda irremediável aquela da feitoria e
Fortaleza de São Jorge da Mina pelos Holandeses em 1637 e subsequentes conquistas de Samá (1640) e Axém
(1642), terminando assim uma presença portuguesa na costa do golfo da Guiné”. RUSSEL-WODD, A. J. R.
64
Sulcando os mares: Um historiador do império português enfrenta a “Atlantic History”. HISTÓRIA, São Paulo,
28 (1): 2009, p. 21-22.
150
PARÉS, Op. Cit., p. 25.
151
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro,
século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
152
PARÉS, Op. Cit., p. 26.
153
PARÉS, Op. Cit., p. 27.
154
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 4740.
65
ou malungo, pôr publicamente nas praças, e outros lugares uma mesa coberta com uma bata
preta a pedir esmola para mandar dizer missa”155 pela alma do parente ou malungo que falecera.
Tal situação, nos fala o autor entre parênteses: “até aqui ato de piedade”.
Porém, em seguida, os mesmos negros que pediam esmolas para a missa de seu
companheiro juntavam-se ao redor da mesa para dançarem. Esta dança era acompanhada de
tabaques e outros instrumentos156, “ao modo de suas terras”. Estas e “outras danças e batuques”
realizadas aos domingos e dias santos tinham licença por escrita do Governador da Capitania.
Manoel afirma que eles usavam palavras “escandalosas” e cantilenas para realizarem tal ato, e
que no meio da cristandade, não poderia ser admitido tais “ritos gentílicos opostos a Santa Fé e
religião cristã”157.
Segundo a denúncia, temos aqui, ao menos, duas visões distintas de mundo – banto e
católica – que convergiam em prol de um interesse em comum: cuidar da alma daqueles que
partiram para o mundo dos mortos. Thornton observa que na parte cristã do Congo “cuidar dos
ancestrais era algo tipicamente familiar (...) em troca, receberiam [os praticantes] boa sorte e
saúde, mas, se fossem negligentes, doenças e má sorte”158.
Segundo Sweet159, este tipo de acontecimento é concebido pela ótica de que o animismo
africano interpretou e reordenou elementos católicos com o propósito de complementar as
estruturas religiosas dos centro-africanos, indicando que havia entre essas duas visões de mundo
– católica e banto – interpretações equivocadas. Para Thornton, este processo resultava numa
troca cultural entre ovimbundos e europeus. À medida em que se introduzia o catolicismo no
155
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 4740.
156
“Tabaques, que são como espécie de tambor, marimbas e outros de ferro”. Arquivo Nacional Torre do Tombo,
Processo nº 4740. “Tabaque (tambaque, atabaque) é o mesmo [que] tantã [...] uma pele seca de animal estendida
sobre a extremidade de um cilindro oco. Os instrumentos de ferros não possuem identificação. Sugerimos alguns
instrumentos percussivos, utilizados atualmente no candomblé, provenientes da África. “O agogô – corruptela de
akokô, relógio ou tempo (hora), em nagô, é quase sempre um pedaço de ferro qualquer, percutido por outro
menor”. “O chocalho – cilindro de folha-de-flandres com seixos dentro”. “O adjá, campainha de metal utilizada
para reverenciar o santo”. Todos esses instrumentos foram descritos por Edison Carneiro, no século XX, em
referência aos candomblés baianos que existiam àquela altura (c. 1933). Cabe salientar que, segundo o próprio
autor, existiam vários cultos desde os de origem banto, jeje, jeje-nagô, caboclo entre outros. Os instrumentos aqui
descritos, são utilizados comumente nos grupos de origem banto, jeje e os nagôs. CARNEIRO, Edison. Religiões
negras: notas de etnografia religiosa; negros bantos: notas de etnografia religiosa e de folclore. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1981, p. 74-75.
157
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 4740.
158
THORNTON, John. “Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundu, de 1500 a 1700”. In.:
HEYWOOD, (Org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, pp. 81-100 apud DELFINO, Leonara
Lacerda. O Rosário dos Irmãos escravos e libertos: Fronteiras, identidades e representações do viver e morrer na
diáspora atlântica. Freguesia do Pilar-São João Del-Rei (1782-1850). Tese apresentada ao PPGH-UFJF, Juiz de
Fora, 2015.
159
SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770) /
James H. Sweet; trad. João Reis Nunes; Luís Abel Ferreira. - Lisboa: Edições 70, 2007. Passim.
66
antigo reino do Ndongo, seus habitantes partilhavam experiências num sistema de via dupla.
Leonora Delfino complementa essa discussão afirmando que
Malungos, que vem do banto, malungu, significa canoa ou embarcação. Uma vez que
os negros desembarcavam, passavam a considerar-se parentes, inclusive proibindo casamentos
numa evidente associação ao incesto. A palavra malungu seria a referência a nove grupos
matrilineares que supostamente descendem o povo bakongo. Assim, ao se reconhecerem como
parentes, aqueles que partilharam da experiência dos navios negreiros indicam a vontade de
sobreviver de acordo com suas origens ancestrais161. Alberto da Costa e Silva162 encontrou um
sentido parecido ao de “malungu” na composição do “wari”, ou seja, um sistema de “casas”
liderada por um chefe de família. Este autor escreveu que os homens se mediam pela canoa e
que em torno desta a estrutura social era alterada. Além do sentido de parentesco – através da
embarcação –, a canoa também possuía o sentido de ascensão social coletiva163.
Uma wari (casa) devia ser capaz de montar uma embarcação (canoa de guerra) com,
pelo menos, 30 homens, armados de escudos e azagaias. Obtendo sucesso nesta etapa, o chefe
da “canoe house164” “passava a integrar o conselho real, a tomar parte nas deliberações sobre a
paz e a guerra e a disputar espaço no comando da cidade”165.
Uma “casa” que tivesse um grande êxito em suas operações mercantis crescia
em número de gente que a ela livremente se juntava, e de escravos, e de
almadias. Quando algum de seus membros, fosse filho, parente ou escravo do
160
DELFINO, Leonara Lacerda. O Rosário dos Irmãos escravos e libertos: Fronteiras, identidades e
representações do viver e morrer na diáspora atlântica. Freguesia do Pilar-São João Del-Rei (1782-1850).
Tese apresentada ao PPGH-UFJF, Juiz de Fora, 2015, p. 387.
161
PARÉS, Luís Nicolau. O rei, o pai e a morte. A religião vodum na antiga costa dos escravos na África
ocidental. Companhia das Letras, 2016, p. 327; SLENES, Robert W. "Malungu, ngoma vem!": África coberta e
descoberta do Brasil. In: Cadernos do Museu da Escravatura, n. 1. Ministério da Cultura. Luanda, 1995.
162
SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. 2.ed. - Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 236.
163
SILVA, Op. Cit., p. 236.
164
Essa era a designação dada pelos ingleses a wari.
191
SILVA, Op. Cit., p. 236.
165
Idem.
67
chefe da casa, acumulava riqueza suficiente para ter a sua própria canoa de
guerra, ele se separava da wari, com o consentimento de seu pai de sangue ou
de seu “pai” de adoção, e ia fundar uma nova “casa”, vinculada àquela em que
se havia formado, como se fosse uma filial em relação à matriz. Compunham-
se assim verdadeiras constelações de “casas”, cada uma dessas constelações a
lutar contra as outras, muitas vezes de armas na mão, por uma parcela maior
do comércio e pelo mando na cidade-estado166.
Wari (casa) e família se confundiam. Uma “casa” não podia crescer indefinidamente, ao
atingir certo número de membros, era comum que se dividisse “um ou mais filhos da cabeça da
família indo formar uma nova “casa”167. Nessa nova estrutura, mantinha-se os laços familiares,
mas o que predominava era o parentesco168. A sobrevivência através do parentesco (real ou
simbólico) dava-se muito antes do comércio atlântico de escravos. A metáfora da canoa se
insere em outras situações específicas (como a da wari), mas que, assim como a experiência
dos malungus, estava relacionda ao sentimento de sobrevivência.
Em São João Del Rei, no século XVIII, existia um grupo denominado “confrades
benguelas”. Este grupo tinha como objetivo garantir a salvação dos seus “parentes de nação”,
realizando missas “para os seus vassalos e irmãos”, além das dez missas que lhes garantiam a
filiação à Irmandade do Rosário daquele local. Em conjunto com outras nações, “decidiu pela
potencialização dos sufrágios e da caridade para com os mortos, através da concessão de
mortalhas e sepultamentos dignos aos parentes de nação”169.
Leonara definiu “parentes de nação” como uma reformulação do sentido de parentesco.
Não necessariamente estaria ligado apenas à consanguinidade, mas, independentemente destes
laços, leva-se em consideração a ligação étnica e espiritual. Sendo assim, sem as antigas
linhagens ancestrais (baseadas no elemento da descendência consanguínea) que não
conseguiram chegar nas Américas em função do desmonte causado pelo tráfico, estes sujeitos
reinventaram-se e deram novo sentido ao parentesco, forjando-o em outros elementos que
fossem comuns a ambos170.
166
Idem.
167
Idem.
168
A ideia de parentesco para a Wari (casa) é similar a dos africanos que foram deslocados como escravos na
mesma embarcação. Não é necessário a existência de um laço sanguíneo na Wari, assim como para os malungos,
o que importa são os laços de solidariedade estabelecidos durante a travessia do Atlântico. Sendo assim, nas duas
situações descritas, a noção de parentesco são semelhantes. Ambos desenvolvem laços de solidariedade para sua
sobrevivência.
169
DELFINO, Op. Cit., p. 374.
170
DELFINO, Op. Cit., p. 375.
68
3.2 O Calundu da negra Izabel em Pernambuco e a Dança de Tunda do pardo João e sua
esposa Vitória
Apesar de ocorrer a participação de negros da África Ocidental, esta dança pública, com
caráter de arrecadar dinheiro para cuidar da alma dos companheiros que partiram, era
proveniente da cosmovisão banto. Mas, a cultura centro-africana não se resumia apenas a retirar
esmolas pelo bem-estar dos que morriam. No início do século XVIII, precisamente em 23 de
setembro de 1716, chegava aos inquisidores uma denúncia realizada por Joseph Prazeres do
Monte contra a negra Izabel, acusada de praticar Calundu.
Izabel negra, forra, que havia sido cativa do alferes Manoel da Cunha Cardoso, residente
em Parnamirim, Freguesia da Sé de Olinda, era tida por feiticeira, pois realizava Calundu em
sua casa. Outro negro, Antônio, cativo de outro Manoel, este lavrador de engenho da Casa
Forte, dissera que Izabel tinha feito casar “fulano” com Úrsula Gomes através de artes
“diabólicas” 172 . O Calundu representou, entre os séculos XVII e XVIII, a prática de
curandeirismos, o uso de ervas e a possessão de quem o realizava por uma entidade mística. No
171
DELFINO, Op. Cit., p. 375.
172
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Caderno do Promotor 86, fls. 232.
69
livro o Peregrino da América, o autor Nuno Marques Pereira descreveu o que seriam os
Calundus. Dizia este viajante
São uns folguedos ou adivinhações que dizem estes pretos, que costumam
fazer em suas terás, e quando se acham juntos também usam delas cá, para
saberem várias cousas, como as doenças de que se procedem, e para
adivinharem algumas coisas perdidas e também para terem ventura em suas
caçadas e lavouras e para outras muitas cousas173.
173
MOTT, Luiz. "Acotundá: raízes setecentistas do sincretismo religioso afro-brasileiro" In: Anais do Museu
Paulista, nova série, volume XXXI, São Paulo, 1986.
174
SOUZA, Laura de Melo e. O diabo na Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade no Brasil Colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 352 e seguintes.
175
SOUZA, Op. Cit., p. 355.
176
MARCUSSI, Op. Cit. p. 29.
177
MOTT, Luiz. O calundu-Angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739. Revista do IAC, Ouro Preto, n. 1. Dez 1994;
MARCUSSI, Op. Cit. p. 29.
70
Em outro texto178, Laura retifica algumas de suas ideias criticadas por Luiz Mott179. A
partir das inferências de Mott, que demonstrou em seu texto que o Calundu tinha sua matriz na
África ocidental, esta autora considera que essa dança não foi a percussora do candomblé.
Inclusive, a partir do século XIX, com a proibição do tráfico de africanos, é que a religiosidade
negra começa a se instituir com base, em sua maior parte, nos grupos da África centro-ocidental
e nos grupos da Costa da Mina. Sendo assim, o Calundu desaparece (ao menos das fontes) para
dar lugar ao candomblé.
Em contrapartida, Sweet180 discorda da visão de Mott e Souza descrita acima. Para ele,
o Calundu era uma continuidade cultural dos africanos, que sobreviveu no Brasil até o século
XVIII sem a incorporação de elementos sincréticos. No Brasil a prática de adivinhação,
possessão e cura ficou conhecida como Calundu181. Em Angola, esta prática era designada por
quilundo, que “era o nome genérico para qualquer espirito que possuísse os vivos”182. Luiz Mott
lista oito Calundus para Minas Gerais durante o século XVIII183. No Arraial de São Sebastião,
no ano de 1765, o negro Félix, nação Cabo Verde, fazia batuques e dizia que as almas da Costa
da Guiné eram as que falavam nas criaturas quando caíam como mortas no Calundu. Ou seja,
os espíritos provenientes da Guiné eram responsáveis pela possessão daqueles que serviam de
matéria para a livre manifestação dessas entidades.
Em 1773, na Chapada do Raposo, o negro José Nagô misturava em um pote de barro
aguardente, folhas e um “pedaço de marisco vulgarmente chamado caramujo”, com a finalidade
de realizar curas. No ano seguinte, em Vila Rica, descobria-se que Maria das Mercês tinha casa
de Calundu. Em Itapecerica, nos idos de 1777, Brígida Maria e Roque Angola faziam Calundus
ao som de viola. Afirmavam que o “Calundu era o melhor modo de dar graças a Deus”. Roque
Angola dizia que era o “Anjo Angélico e tinha o poder do Sumo Pontífice de casar e descasar”,
nesse ponto, assemelhava-se a Izabel que também realizara um casamento em Pernambuco.
178
SOUZA, Laura de Mello. Revisitando o calundu”. In: GORENSTEIN, Lina e CARNEIRO, Maria L. Tucci
(Org.). Ensaios sobre a intolerância: Inquisição, Marranismo e Anti-Semitismo. São Paulo: Humanitas, 2002, p.
293-317.
179
Para as críticas de Luiz Mott acerca da visão de Laura de Mello e Souza sobre ser o calundu ser uma espécie
de “proto-candomblé” ver: MOTT, Luiz. O calundu-Angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739. Revista do IAC, Ouro
Preto, n. 1. Dez 1994, p. 81.
180
SWEET, Op. Cit., p. 173.
181
Idem, p. 172.
182
Idem; Marcussi demonstra as semelhanças entre quilundo, saquelamentos, zumbi, bizumbi e calundus. Através
de relatos de viagens e fontes inquisitoriais, este autor apresentou a matriz dos calundus do Brasil e suas variações
ortográficas nas regiões de Angola, Luanda e outras. Para a discussão completa ver: MARCUSSI, Op. Cit., pp.
29-51.
183
A lista de calundus fora retirada seguindo a mesma ordem do texto do prof. Luiz Mott. Para ver mais: MOTT,
Luiz. Loc. Cit.
71
Cidade de Mariana, em 1779, Miguel de nação Caçange foi tido por feiticeiro e possuir
pacto com o demônio. Domingos de Congonhas, feiticeiro, faz curas e calunduzes. Em 1781,
em São José da Barra, Luiza Joaquina fazia Calundus e adivinhações com ajuda de Domingos
Congos. Antônio Calundu também fazia adivinhações no mesmo ano em Campanha. Por fim,
em Mariana, Francisco fazia curas com “danças de roda”.
Para Laura de Melo e Souza, assim como para Luiz Mott, Calundu seria um ritual de
origem banto. Seu maior expoente em Minas Gerais seria a negra Luzia Pinta, uma escravizada
angolana que protagonizou práticas mágicas e religiosas, em Sabará, com trajes desconhecidos
da população maciçamente composta por Minas, rituais até então desconhecidos daquele povo.
Entendemos, através destes casos, que existia um complexo quadro de especificidades
banto em relação aos rituais de curas e adivinhações. Especificamente nestes casos, nos parece
que não havia relações próximas ou a influência dos negros Minas na composição destes rituais.
Em Minas Gerais, como observamos, tal prática foi amplamente documentada, mas, para
Pernambuco, até o presente momento, encontramos esta única referência. Recentemente,
Alexandre Almeida Marcussi fez algumas considerações sobre os Calundus. Este autor afirma
que “o calundu, não era, nem nunca foi uma única cerimônia definida e especifica” 184. Na
África, este ritual consistia na incorporação de espíritos por sacerdotes jagas e, constantemente,
era utilizado para adivinhações e curas de doenças naturais ou aquelas supostamente adquiridas
por feitiços.
O termo Calundu acabou por designar um amplo sistema ritualístico surgido na África,
que estava sempre relacionado à adivinhação e à cura. Para o Brasil, esse sistema permanece
baseado em adivinhar e curar, mas, assim como demonstram Marcussi e os casos descritos
acima, encontrados por Luiz Mott, este ritual poderia ser realizado de diversas formas, cabia
apenas ao calunduzeiro (ou feiticeiro para as autoridades religiosas) como seria a ritualística do
seu Calundu.
Em 23 de março de 1725, a mulher do Capitão Dionísio de Freitas contou que nas ruas
da cidade de Olinda havia um negro que andava com uma cobra e era tido por feiticeiro.
184
MARCUSSI, Alexandre Almeida. Cativeiro e cura: experiências religiosas da escravidão atlântica nos calundus
de Luzia Pinta, séculos XVII-XVIII. Tese de doutorado em História, USP. São Paulo, 2015. p. 71.
72
e depois de ter feito estes trejeitos, com dos quais ganha alguns vinténs dos
que o chamam, e torna a meter dentro do cabaço, e ultimamente a vai vender
[...] para um doente. Cura com caldo de cobras, e daí a tempo torna a vir com
outra cobra, estas com ela os mesmos trejeitos; e com isto dá fundamento para
suspeitar o tal negro é feiticeiro185.
A denúncia traz uma variação do Calundu praticado pelo escravo Francisco. A cobra
tirada do cabaço tinha a mesma função dos “ventos de adivinhação” que orientava Luzia para
empreender suas curas em Minas Gerais. Não há menção da origem de Francisco. Caso fosse
africano, provavelmente era oriundo da Costa da Mina ou da Guiné. Africanos destas regiões
“eram também conhecidos por adivinhar através de serpentes”186.
O caso de Francisco é importante, pois demonstra a apropriação de um ritual de origem
banto e dos povos Fons, Euas e Iorubás. Ao passo que usa o Calundu para a cura de um cliente,
Francisco provavelmente também fazia uso do vodum Dangbé para receber orientações sobre
como proceder para curar alguém. Nesse caso, ocorria uma composição de práticas oriundas de
regiões diferentes, mas que no Brasil foram assimiladas em um único ritual. Isso pode ser
explicado pela grande quantidade de escravos Minas e Angolanos que foram introduzidos em
Pernambuco.
185
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Processo nº 14557; SWEET, Op. Cit., p. 157-158.
186
SEWEET, Op. Cit., p. 157.
187
BASTIDE, Roger. BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas No Brasil. Contribuição a uma sociologia das
interpenetrações de civilizações. 3ª edição. Livraria Pioneira Editora. São Paulo. 1989, p. 190-191.
188
BASTIDE, Op. Cit., p. 191.
189
Pierre Verger listou oito autores que escreveram sobre este vodun. VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos
orixás e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África. 2nd ed.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. p. 232 e páginas seguintes. Trataremos em seguida sobre
este vodun.
73
No quarto livro das Ordenações Filipinas191, Candido Mendes de Almeida explicou: “os
povos da Guiné que os portugueses descobriram tinham duas divindades, uma denominada
Mokisso192, que tinha por sacerdote (Ganga193) uma velha, a semelhança da antiga Pítia194 da
Grécia”195. A outra era conhecida por “Checoke”, atualmente mais conhecida por “Wodú” ou
“Iteque”196. A associação entre a Ganga e a Pítia significava que os negros da Guiné cultuavam
um “deus-serpente”, tal qual se fazia na Grécia. No caso, estavam a cultuar o vodun Dangbé.
Sobre o culto ao vodum 197 em Pernambuco, encontramos um registro dessa prática,
arquivado na Torre do Tombo. O episódio é mais próximo do período ao qual estudamos ao
190
BASTIDE, Op. Cit., p. 191.
191
ALMEIDA, Candido de. Apud BASTIDE, Op. Cit., p. 191.
192
“A expressão [feitiço, feiticeiro] é africana, e vem do termo – Mokisso, ídolo da Guiné, que os portugueses por
corrupção pronunciaram – feitisso e depois feitiço [...] A melhor prova dessa etimologia está na palavra Moquissia
também de origem africana, que segundo Moraes significa virtude oculta, que influi no bem e no mal e serve de
descobrir os futuros, segundo a credulidade daquelas gentes”. ALMEIDA, Candido Mendes de, 1818-1881; Brasil.
[Leis etc.].; Portugal. [Leis etc], p. 931. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242733>
Acesso em: 09/04/2017. Atualizamos a ortografia do documento, mas mantivemos a pontuação original.
Discutimos em seguida o conceito de feitiço e fetiche.
193
Segundo Marcussi: "Ganga" é a transcrição portuguesa para o quicongo nganga, que significa "sacerdote".
MARCUSSI, Alexandre Almeida. Cativeiro e cura: experiências religiosas da escravidão atlântica nos calundus
de Luzia Pinta, séculos XVII-XVIII. Tese de doutorado, USP. São Paulo, 2015, p. 130.; Tradução nossa: Ganga
‘chefe’, ‘dono’ (a). Multilinguístico Bantu nganga ‘mestre’”. “Ganga ‘boss’, ‘owner’ (A). Multilinguistic Bantu
nganga ‘master’”. BYRD, Steven Eric. Calunga, an AfroBrazilian speech of the Triângulo Mineiro: Its grammar
and history. Presented to the Faculty of the Graduate School of The University of Texas at Austin in Partial
Fulfillment of the Requirements for the degree of Doctor of Philosophy. The University of Texas at Austin, 2005,
p. 201.
194
“Inexistem evidências de culto a Apolo em Delfos antes do século VIII a.C. Conforme a tradição, Apolo nasceu
na ilha de Delos e, ao partir de Cnossos rumo à Delfos, este local já havia sido ocupado pelos cultuadores da deusa-
mãe Gê ou Gaia (delphýs = útero), sendo guardado por seu filho, o deus-serpente Píton. Apolo venceu Píton, mas
se reservou a reverência de manter o nome desse como um epíteto para o culto em Delfos (Apolo Pítio), com sua
sacerdotisa sendo conhecida como a Pítia e seus jogos sendo conhecidos como pítios”. FERNANDES, Edresi.
Santuário, jardim e pólis: pitagorismo, epicurismo, urbanidade e política. In: CORNELLI, Gabriele (Org.).
Representações da cidade antiga: categorias históricas e discursos. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012,
p. 89.
195
BASTIDE, Op. Cit., p.191.
196
ALMEIDA, Op. Cit., p. 931.
197
Inicialmente, o culto ao Vodum era realizado pelos descendentes dos adjas, que se localizavam no médio e
baixo Daomé (atual República do Benin). Seu panteão está dividido em inúmeras divindades, que ao longo do
tempo eram de caráter público ou particular (no caso, os voduns das famílias reais). Se entende “vodum” como
“deus”. Na definição de Melville J. Herkovits, o vodun pode ser evocado para ajudar seus adoradores. Ele pode
estar representado como uma força invisível ou como um objeto. Para este autor, baseado nos nativos africanos,
“o vodun, ele próprio, é o poder”. Bernard Maupoil atesta que muitos voduns viveram na terra, e por isso existe
uma troca entre divindades e humanos. Nos cultos a estas divindades, o vodun voltaria a ser humano, e o homem
74
longo do texto, e se insere na época em que a importação de escravos dos portos angolanos era
maior. Cabe ressaltar que o culto a um vodum é originário das áreas de língua gbe 198, ou seja,
território dos grupos que denominaram de “minas199”.
Fonte: Área dos falantes de língua gbe e seus idiomas. Adaptado de CAPO apud PARÉS, Luis Nicolau. A
formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: UNICAMP, 2006. p. 35.
teria a oportunidade de conhecer os segredos do plano sagrado. Para Pierre Verger, o vodun (e o Orisa) é parte da
natureza, agem de forma sensata e disciplinada e formam uma cadeia que possibilita a relação do homem com o
desconhecido. Ver mais em: HERSKOVITS, Melville j., and FRANCES S. Herskovits. Dahomey Narrative: A
Cross-Cultural Analysis. Evanston, IL: Northwestern University Press, 1958.; MAUPOIL, Bernard. La
geomarlcie a l'ancienl1e Cote des Esclaves. Paris: Institut d'Ethnologie, 1943; VERGER, Pierre. Notas sobre o
culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África.
2nd edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
198
Esta área corresponde ao sudeste de Gana, passando por Togo, até o Benim. As línguas denominadas “gbe”
antes eram conhecidas como “ewe”. Atualmente, a língua gbe engloba, além do ewe, o adja e o fon. Ver mais em:
LAW, Robin. Etnias de africanos na diáspora: novas considerações sobre os significados do termo 'mina'. Tempo
[online]. 2006, vol.10, n.20, p. 99.
199
Todo o grupo gbe-falante utiliza o termo “vodum” para referir-se a sua divindade. Enquanto o grupo iorubá
reconhece sua divindade como “orixá”. A palavra vodum teve seu primeiro registro em 1658, no livro Doctrina
Christiana para a Lengua Arda, escrita por missionários capuchinhos espanhóis. PARÉS, Luis Nicolau. A
formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: UNICAMP, 2006, p. 37.
75
No dicionário de “Língua geral da Mina” 200 , o termo “vodum” quase sempre vem
acompanhado de um radical. Apesar dos vários significados 201 desta palavra, todos são
relacionados ao campo do sagrado ou diretamente a um ser divino. Por exemplo:
humbihóhéhihàvou vódum (peço-vos pelo amor de Deus)202. Nessa oração, a palavra vodum
adquire o sentido de divindade (deus cristão). Em outra frase: avódumcu hi hábouno mádu
lambã (na Quaresma os brancos não comem carne)203. Nesse caso, o sentido de vódum é o de
Páscoa ou Quaresma. Apesar da variação na grafia da palavra e assunto, o contexto permanece
sempre ligado à religião.
Na Povoação de Una, em 16 de fevereiro de 1761, João Pinto de Moura afirmou que “as
gentes desta terra são pouco lembradas”, em razão da distância com os centros mais
importantes: Recife e Olinda. Onde, na freguesia de São Bento, mora um pardo por nome de
João de Freitas e sua esposa Vitória204 de tal. Eram há tempos são conhecidos por “escandalosas
artes diabólicas de que usam, para mais claro falar, feitiçarias”.
Costumam dançar o Caçûtû205, a que chamam Tundá206 em uma encruzilhada onde se
encontra uma cruz, a que chamam do Padre Neto”. Pessoas que passavam pelo local por acaso
falam que viram os “mestres da dança e um bode preto entre outros”207. Em 31 de maio, Dia
do Divino Espirito Santo, fizeram em sua casa, a portas fechadas, a mesma “diabólica
invenção”. Algumas pessoas se dirigiram até a casa movidos pela curiosidade, o que demonstra
que era fama pública essas danças, ao menos, nos dias religiosos. Os transeuntes que espiaram
a casa relatavam ter visto “se ascender fogo artificial com desconhecido fendo, e extraordinário
fumo”208, subira tanta fumaça pelo teto da casa, que toda a rua se admirou com a quantidade
200
PEIXOTO, António da Costa. Obra nova de língua geral de Mina. Manuscrito da Biblioteca Pública de
Évora.
Agência geral das colônias. Lisboa, 1944.
201
Hihávouvódum (Nosso senhor); avódumgê (contas de rezar); avódumcu (quaresma); avódumnhi (páscoa);
héhihávouvódum (peço-lhe pelo amor de Deus); máhipomvódum (vou a missa); máhidõ-vodum (vou confessarme);
máhichlevódum (vou rezar); máhivódumchuhe (vou para a igreja); avóduno hé cû (um Padre morreu). PEIXOTO,
Op. Cit., pp. 18, 19, 21 e 23.
202
PEIXOTO, Op. Cit., p. 32.
203
PEIXOTO, Op. Cit., p. 29.
204
No início da denúncia, aparece grafado como “Vitória”, e no corpo do texto como “Victorina”.
205
Tradução nossa: “A meu conhecimento, a primeira referência a "Caçûtû", or "Caçuto", no Brasil ocorre em
uma lista de 1720 "Ritos da Angola Pagã" do Rio de Janeiro. Ao descrever os angolanos do Rio, o autor escreve:
"Eles adoram a figura do diabo na figura de um bode que eles chamam Caçuto...": “To my knowledge, they first
reference to "Caçûtû", or "Caçuto", in Brazil occurs in a 1720 list of "Rites from Pagan Angola" from Rio de
Janeiro. In describing the Angolans in Rio, the author Writes: "They adore the Devil in the figure of a goat that
they call Caçuto...": SWEET, James H. Domingos Álvares, African Healing, and the Intellectual History of the
Atlantic World. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011, p. 248.
206
Transcrita tal qual o documento. Por se tratar de uma dança com elementos supostamente religiosos,
acreditamos que ser a Dança de Tunda, Tundá ou Acotundá. Analisamos esse caso em seguida.
207
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Promotor nº 124, fls. 430.
208
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Promotor nº 124, fls. 430.
76
que se dispersava no ar. Na mesma ocasião, uma pessoa ficou desacordada até o dia seguinte.
Será que um dos espectadores ou alguém que estava dentro da casa? A documentação não
possibilita essa informação.
Em outra ocasião, encontrava-se Vitória diante de várias pessoas “fidedignas”, às quais
ela proferiu “que não era possível salvá-la Deus”. Ali também estava presente Reinaldo Dias
dos Reis, Reverendo Coadjutor da freguesia, que a repreendeu de semelhante proposição, ao
que a “feiticeira” replicou: “digo isto a Vossa mercê que não é possível” 209. Encerrava-se a
denúncia dizendo que se fosse necessário, faria um sumário para melhor averiguar o caso, o
que não fora pedido por parte da Mesa da Inquisição. Apesar de descrição simples, a denúncia
apresenta um caso bastante significativo para a experiência religiosa daquela freguesia. Sobre
esta “Dança de Tundá” ou Tunda, Luz Mott escreveu importante artigo210 ainda uma referência
nos estudos sobre a religiosidade negra na América Portuguesa. No citado trabalho o autor
identificou a filiação étnica deste ritual e suas similaridades com os atuais candomblés do
Brasil.
Dança de Tunda ou Acotundá é o nome pelo qual se conhece um ritual dedicado ao deus
da nação courá (Lagos, Nigéria)211. Para Mott,
Mott deixou essa questão em aberto sobre o empréstimo linguístico banto em um ritual
de origem sudanesa. O autor acreditou que esta proximidade linguística não era regra para
209
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Promotor nº 124, fls. 430.
210
MOTT, Luiz. Acotunda: raízes setecentistas do sincretismo religioso afro-brasileiro. Revista do Museu
Paulista, v. 31, 1986.
211
“Nos documentos setecentista encontrados sobretudo nas Minas Gerais, esta etnia aparece referida com
diferentes étimos: Courá, Curá, Curamo, Curano, Courana,Courama, Courá-Baxé, Courano da Costa da Mina,
Mina Courá etc. Consultando a lista das etnias de G.P. Murdock (1959), encontramos três diferentes famílias
lingüísticas com nomes semelhantes a Courá: entre o povo nilota Sidano, das margens sudoestes do planalto etíope,
há as tribos Koira, Kuera e Kwera; entre os Bantóides do planalto da Nigéria estão os Kurama e Kuruma e,
finalmente, entre os hotentotes do Sul da África, na atual Koronaland, vivem os Corana, também grafados Korana.
Portanto, de onde seria a Nação Courá dos adoradores do Boneco de Paracatu? Das cabeceiras do Nilo, da Nigéria
ou da África do Sul? Não temos a menor dúvida em localizar na Costa Ocidental da África o lugar de origem dos
Courá de Minas Gerais - mais precisamente no território hoje ocupado pelo distrito de Lagos, na Nigéria. Portanto,
os Courá do Brasil são Sudaneses tanto quanto seus vizinhos Mina, Gêge, Fula, Nagô, Galinhas, Lanu, Mande
etc”. MOTT, Op. Cit., p. 15
212
Idem, p. 17
77
213
PETTER, Maria Margarida Taddoni. A Tabatinga revisitada: a manutenção de um léxico de origem africana
em Minas Gerais (MG-Brasil). Moderna sprak 2013:1, p. 95.
214
”. SWEET, James H. Domingos Álvares: African Healing, and the Intellectual History of the Atlantic World.
Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011. p. 61 e 248.; IANTT. Conselho Geral do Santo Ofício.
Tomo XXXI (1720). Livro 272, f. 123-123v.
215
No Piauí, Tunda apresenta outro significado. Para mais informações ver: MOTT, Luiz. Transgressão na calada
da noite: um sabá de feiticeiras e demônios no Piauí colonial. Texto de História, v. 14, p. 57-84, 2006.; SILVA,
Carolina Rocha. O sabá do Sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-58). Dissertação de
mestrado em História, UFF. 2013.
216
Arquivo Nacional Torre do Tombo, Processo nº 1551.
217
Tradução nossa: Pessoa importante. Kikongo ou Kimbundu (ka) ntutu ‘divindade Banto (protetor contra as
doenças). BYRD, Steven. Calunga and the Legacy of an African Language in Brazil. New Mexico University,
2012, p. 126
218
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Promotor nº 124, fls. 430.
219
MOTT, Luiz. Feiticeiros de Angola na América portuguesa vítimas da inquisição. Revista Pós Ciências
Sociais. v.5 n. 9/10 jan/dez, São Luis/MA, 2008.; IANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Tomo XXXI (1720).
Livro 272, f. 123-123v.; SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-
português (1441-1770) / James H. Sweet; trad. João Reis Nunes; Luís Abel Ferreira. - Lisboa: Edições 70, 2007,
p. 153-154.
78
Deixando a visão demonológica de lado, o “demônio” que se referem nada mais é que a
divindade angolana que, na Freguesia de São Bento, é o equivalente à dança de Tunda220.
Para a região de Matamba, Congo e Angola (ver mapa 1), ocorre uma variação do nome
Caçuto. Nesses locais, existia um tipo de sacerdote referenciado como “cassuto”221. Tinha como
função incorporar espíritos da natureza para diversos fins. Cassuto ou Xinguila era a maneira
como se reportavam aos Jagas, que cultuavam os mortos e os elementos da natureza222.
Segundo Hippolyte Brice Sogbossi 223 , os negros couranas (nação Courá) seriam os
mesmos hulas do reino de Uidá. Assim, Tundá seria um culto vodum, dada a localização
geográfica desses grupos (Courana e Hula). Parés sugeriu que a palavra “Tundá” encubra uma
referência à serpente Dan, originária da região gbe. O culto aos voduns no Brasil, pode ter
220
Cabe ressaltar que, para a região de Una, nos parece que havia um complexo processo de crioulização das
práticas religiosas distintas. Para James H. Sweet: “There were congregations devoted to "Caçûtû," an oracle who
took the form of a black goat in spirit-possession rituals." And there were practitioners of rituals known as
quibando, divinations used to determine past events, like the origins of illness”. Tradução nossa: Haviam
congregações dedicadas ao "Caçûtû," um oráculo que assumia a forma de um bode negro em rituais de possessão
de espírito. E haviam praticantes de rituais conhecidos como quibando, divindades usadas para determinar eventos
passados, como as origens de doenças". SWEET, James H. Domingos Álvares, African Healing, and the
Intellectual History of the Atlantic World. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011, p. 61. Além
desse intercâmbio cultural entre diferentes grupos africanos, ali, na região de Una, também havia um processo
similar entre os indígenas. Sabemos que nesta freguesia não só os nativos participavam do culto da Jurema como
também pardos e brancos. Não obstante, o ritual continha traços do catolicismo português. Ver: WADSWORTH,
James E. “Jurema and Batuque: Indians, Africans and the Inquisition in Colonial Northeastern Brazil”, History
of Religions, n. 46/2, 2006; SWETT, Op. Cit., p. 61. Sobre o ritual da jurema, na Paraíba, durante o século XVIII,
ver: FREIRE, Glaucia. Das "feitiçarias" que os Padres se valem: circularidade cultural entre indígenas Tarairiú
e missionários na Paraíba setecentista. Dissertação de Mestrado em História. Campina Grande, 2013
221
MARCUSSI, Alexandre Almeida. Cativeiro e cura: experiências religiosas da escravidão atlântica nos
calundus de Luzia Pinta, séculos XVII-XVIII. Tese de doutorado em História, USP. São Paulo, 2015, p. 48. Ver
também: CAVAZZI, João Antônio de Montecúccolo. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba
e Angola. Junta de Investigação do Ultramar. Lisboa, 1965, p. 204-205.
222
Idem.
223
“Os Minas mahi (ou Maxi) eram os pertencentes ao grupo étnico Maxi, composto de Maxinu ma mosô ‘povo
de maxi não viu as colinas’. A este grupo pertencem os Agonlin de Covê, Zagnanado, Gbanamè, entre outros. Os
Maxinu mo sô ‘povo maxi viu a colina’, denominação alusiva à muralha de colinas que rodeia a cidade de Savalou,
são exclusivamente os desta cidade e, em alguma medida, a povoados vizinhos, como Logozohè e Monkpa.
Mariza de Carvalho Soares (2000:109), no seu estudo sobre os chamados “maki”, no Rio de Janeiro, confessa
desconhecer o étimo de makis. É certamente a evolução diferente de “Maxi”. “Cabu” é a evolução diferente de
“Covè”. Os “ianos” são os adjanu ou ajanu, povos situados no Sul e no centro ocidental da atual República do
Benin. São falantes das línguas Adja e ewé, componentes do tronco lingüístico adja-ewé-fon. Sobre os chamados
de “coura” ou “couranos”, não cabe a menor dúvida de que eram os “Xwla” ou “xwlanus”, daí a evolução diferente
de Xwla por coura e Xwlanus por couranos. O termo poderia ser grafado também como “Xula”. Refere-se a
habitantes da cidade sul-ocidental, na faixa costeira do Benim, chamada Grand Popo. A administração francesa
os chamou “Popo”. No Brasil e em Cuba também foram conhecidos como Popó. A autodenominação étnica é
“Pla”, e não será estranho ver identificações do gênero na ampla bibliografia de arquivo disponível no Brasil”.
SOGBOSSI, Hippolyte Brice. Contribuição ao estudo da cosmologia e do ritual entre os jêje no Brasil: Bahia e
Maranhão. Tese de Doutorado em Antropologia. Rio de Janeiro, 2004, p. 22; Segundo Toyin Falola e Matt D.
Childs, a presença de falantes Iorubás está bem documentada nas capitanias da Bahia e Minas Gerais. Em Rio das
Contas (Minas Gerais), é registrado em um censo de 1748-1749, a presença de muitos escravos nagô. Estes
sujeitos foram descritos como “born on the Mina Coast, their more specific ethnonym – in this case Courana and
Nagô – being registered as part of their names”. FALOLA, Toyin & MATT D. Childs (eds). The Yoruba
Diaspora in the Atlantic World. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 2004, p. 78.
79
224
PARÉS, Luís Nicolau. O rei, o pai e a morte. A religião vodum na antiga costa dos escravos na África
ocidental. Companhia das Letras, 2016, p. 321.
225
Na dança de Tunda analisada por Mott, havia uma negra forra, Josefa Maria, que “era o Padre daquela Igreja e
para os ditos folguedos era a que administrava todas as cerimônias e ela era quem ensinava as mais e todos lhe
obedeciam”. MOTT, Loc. Cit.
226
MOTT, Op. Cit.,
227
Entende-se por qualidade a cor da pele. Para uma discussão sobre o assunto, ver: RÊGO, João Figueirôa e
OLIVAL, Fernanda. Cor da Pele, Distinções e Cargos: Portugal e espaços atlânticos portugueses (séculos XVI a
XVIII). Tempo, n. 30, 2011; PARÉS, Luís Nicolau. O processo de crioulização no Recôncavo Baiano (17501800).
Afro-Ásia, 33 (2005), p.87-132; RAMINELLI, Ronald. Impedimentos de Cor: mulatos no Brasil e em Portugal
c. 1640-1750. Vária História, Belo Horizonte, vol. 28, 1º 48, p. 699-723, Jul/Dez de 2012; SANTOS, Jocélio
Teles dos. De pardos disfarçados a brancos pouco claros: classificação racial no Brasil dos séculos XVIII e XIX.
Afro-Ásia, 32 (2005), p. 115-137
80
Segundo o documento, “nos sertões tão distantes até da capital deste Bispado [de
Pernambuco] o clero é muito raro, e ainda esse quase todos de neófitos”228. Os vizinhos distam
entre três e quatro léguas e raramente moram em pequenos povoados. Próximo a comarca da
Manga tem em média 100 homens brancos e cerca de 3000 negros, pardos, cabras e tapuias e
mestiços. Ali vem negros da Mina, Angola e Benguela. Os piores usam de “mil danças
diabólicas, feitiços compostos de raízes venenosas, invocam astros e demônios”229.
Uma terra longe de tudo e todos, com clérigos inexperientes, era o ambiente indicado
para o surgimento e prática de outras crenças não-cristãs. A superioridade numérica de negros,
pardos e outros também corrobora para a maior difusão de outras religiões. João ou sua esposa
devem ter tido contato com algum negro da Costa da Mina, em especial, um courana. Isso
poderia indicar por que um ou outro conhecia algo tão especifico da África Ocidental.
Por fim, uma pergunta que pode suscitar outros debates a respeito do tema: a dança de
Tunda teve sua origem em Pernambuco ou nas Minas Gerais? A documentação mais antiga é
de 1720, no Rio de Janeiro. Em seguida, a de 1747, que trata do ritual na Capitania das Gerais,
enquanto que a de Pernambuco data de 1761230. Porém, Josefa Maria, “o Padre do Acotundá”,
fora criada em Pernambuco. Teria ela trazido algum conhecimento desta última Capitania? Será
que Josefa conheceu o “Padre Neto”? Ou, ambas as danças descritas não passam de simples
coincidências sem nenhuma outra relação?
Luís José da Cunha Grão Ataíde e Melo, mais conhecido como Conde de Povolide, sob
a incumbência de ordem real de D. Maria I, deixou-nos um registro importante do campo
religioso africano ocidental representado na Capitania de Pernambuco em fins do século XVIII.
Em 10 de Junho de 1780, escrevia em seu parecer que “os pretos da Costa da Mina, fazem às
escondidas, ou em Casas, ou Roças, com uma Preta Mestra, com Altar de Ídolos, adorando
Bodes vivos, e outros feitos de barro”231.
Adorar ídolos, ofertar comida, fazer juramentos, entre outras práticas ficaram
conhecidas entre os viajantes, comerciantes, marinheiros e outras tantas pessoas como fetiche.
Esse conceito que surgiu na costa africana seria a evolução da palavra feitiço. Segundo a
228
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 6240, fls. 33-33v.
229
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 6240, fls. 33-33v.
230
Idem.
231
Arquivo Histórico Ultramarino, Códice 583, fls. 221-221v.
81
concepção protestante, com base na herança cristã medieval, feitiço, feitisso ou feitissi foi
interpretado como culto a imagens. Nesse caso, para estes, crenças africanas e católicas estariam
no mesmo patamar232.
No período medieval, a teologia cristã dizia que o ídolo era a representação de um deus
falso, uma força (considerada sempre diabólica, vinda do próprio Diabo) externa a um objeto
que servisse de suporte para invocação dessas forças ocultas. Parés discorda dessa visão que
fora exposta por William Pietz, em 1980, numa série de três artigos sobre o tema. Através de
relatos de viagem, ele mostra que “fetiche” poderia estar ligado tanto a ídolo, um objeto de
poder ou adoração religiosa233.
O termo fetiche “surge a partir das interações multiculturais no âmbito da exploração
comercial, religiosa e ideológica”234. Mary Louise Pratt denomina esses encontros culturais
como “contact zone”. Segundo Pratt: “contact zones,” social spaces where disparate cultures
meet, clash, and grapple with each other, often in highly asymmetrical relations of domination
and subordination—like colonialism, slavery, or their aftermaths as they are lived out across
the globe today235.
Com base nos relatos dos viajantes dos séculos XVII e XVIII236, o “fetiche” variava de
acordo com a localidade. De Marees237 descreveu os “fetissos” como um amontoado de palhas
232
PARÉS, Luís Nicolau. O rei, o pai e a morte. A religião vodum na antiga costa dos escravos na África
ocidental. Companhia das Letras, 2016, p. 30
233
PARÉS, Op. Cit., p. 34-35.
234
LARANJEIRA, Lia Dias. Entre fetiches e fetichismo: O culto da serpente nas práticas religiosas do reino de
Uidá (séculos XVII e XVIII). In: PARÉS, Luis Nicolau (Org.). Práticas religiosas na Costa da Mina. Uma
sistematização das fontes europeias pré-coloniais, 1600-1730. Disponível em: <http://www.costadamina.ufba.br/>
Acesso em: 30/03/2017.
235
Tradução nossa: “Zonas de contato," espaços sociais onde culturas diferentes se encontram, chocam e se
atracam, muitas vezes em relações de dominação e subordinação altamente assimétricas - como o colonialismo, a
escravidão ou suas consequências, já que são vivenciadas pelo mundo hoje. PRATT, Mary Louise. Imperial Eyes:
Travel Writing and Transculturation. London and New York: Routledge, 1992, p. 5.
236
BARBOT, Jean. A Description of the Coasts of North and South Guinea; and of Ethiopia Inferior, vulgarly
Angola: being A New and Accurate Account of the Western Maritime Countries of Africa. London, 1732.;
BOSMAN, Guillaume. Vollage de Guinée. Utrecht: Chez Antoine Schouten Marchand Libraire, 1705.; DAPPER,
Olfert. Description de l’Afrique contenant les noms, la situation & les confins de toutes ses parties… Amsterdam:
Chez Wolfgang, Waesberge, Boom & Van Someren, 1686.; DE BROSSES, Charles. Du culte des Dieux Fétiches
ou Parallèle de l’ancienne Religion de l’Égypte avec la Religion actuelle de Nigritie, 1760.; DE MAREES, Pieter.
Description et récit historial du riche royaume d'or de Guinea, aultrement nommé la Coste d'or de Mina, gisante
en certain endroict d'Africque... Amsterdam: Cornille Claesson, 1605.; DES MARCHAIS, Reynaud. Journal du
Voyage de Guinée et Cayenne par le Chevalier Des Marchais Capitaine Comandant pour la Compagnie des Indes
La fragatte nome l’Expedition armé au heure de Grace. Enrichy de plusieurs cartes, plans, figures et observations
utiles et curieux... Paris, 1724-26; LABAT, Jean Baptiste. Voyage du Chevalier des Marchais en Guinée, isles
voisines et à Cayenne, fait en 1725, 1726 et 1727. Tomo I e II. Paris: Chez Saugrain, Quay de Gefvres, à la Croix
Blanche, 1730.; VILLAULT, Nicolas. Relation des costes d'Afrique appelées Guinée: avec la description du pays,
mœurs et façons de vivre des habitans, des productions de terre et des marchandises qu'on en apporte... le tout
remarqué dans le voyage qu'il y a fait en 1666 et 1667 par le sieur Villault... Paris: D. Thierry, 1669.
237
DE MAREES apud LARANJEIRA, Lia Dias. Entre fetiches e fetichismo: O culto da serpente nas práticas
religiosas do reino de Uidá (séculos XVII e XVIII). In: PARÉS, Luis Nicolau (Org.). Práticas religiosas na Costa
82
amarrado nos braços e pernas. Poderia ser utilizado para a proteção, mas também podia
significar elementos da natureza a ser cultuados. Ao contrário de De Marees, Dapper concebia
o “fetisi” como divindades construídas pelo homem com elementos da natureza238.
Em 1669 o viajante Villaut publica pela primeira vez o termo “fetiche”239. Ele descreve
sobre a Costa do Ouro:
da Mina. Uma sistematização das fontes europeias pré-coloniais, 1600-1730. Disponível em:
<http://www.costadamina.ufba.br/>. Acesso em: 30/03/2017, p. 3; ver também: DE MAREES, Op. Cit., p. 25-37.
238
Idem. Ver também: DAPPER, Op. Cit., p. 313
239
LARANJEIRA, Op. Cit., p. 2.
240
LARANJEIRA, Op. Cit., p. 2-3.
241
Sobre bolsas de mandinga, ver: CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das mandigas: religiosidade negra e
Inquisição portuguesa no antigo regime. Garamond, 2008; SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no
espaço Atlântico: século XVIII. Tese de Doutorado. USP, 2008.
242
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 13644.
243
Idem.
83
Não há nenhum povo mais supersticioso que esse de Uidá, o que é uma
consequência natural de sua ignorância. Por mais pobre que seja um pai de
família é raro que deixe de passar um dia sem fazer sacrifícios ou oferendas a
esses Deuses que nós observamos anteriormente, que são os Deuses de toda a
Nação, e àqueles que são particulares a cada família e a cada indivíduo que a
compõe. Essas divindades de nível baixo são os Fetiches, que são de todas as
espécies e todas as aparências; as mais extravagantes são as mais respeitáveis.
São, normalmente, pequenas estátuas de terra vermelha ou preta de cinco ou
seis polegadas de altura, eles os colocam na cabeceira e na extremidade de
seus terrenos, nas portas de suas casas, nos quartos, corredores, nos chiqueiros,
galinheiros[.] O diabo no qual acreditam, faria estragos terríveis em todos os
lugares, se ele não fosse detido por essas Divindades; que são para eles
guardiões, protetores, a quem acreditam serem responsáveis pelo bem que eles
têm e pela proteção contra as infelicidades que temem. Os Marabus 244 os
preservam cuidadosamente nessas ideias loucas porque eles aproveitam
sozinhos das oferendas e dos sacrifícios que eles mandam que façam a essas
estátuas. Pode-se dizer que se os Marabus da costa do Senegal são habilidosos
em roubar o bem dos Negros Maometanos por meio de seus Grigris245, os da
Guiné e, sobretudo os de Uidá, não lhes cedem em nada para desamparar,
mediante o culto dos Fetiches, e de outras divindades do país246.
Não encontramos referências de quem seria “sua Majestade” neste período. Porém,
convém lembrar que a feitoria de São Jorge da Mina era entreposto onde os escravos
aguardavam a hora do embarque para outras regiões, com a finalidade de serem
comercializados. É provável que muitos dos negros que se encontravam no local fossem
provenientes de reinos próximos, como o Daomé (atual Benim). Caso esta afirmação seja
procedente, a palavra “costumes” representa algo mais específico e ligado diretamente ao
campo religioso, político e militar dos Minas.
Em Uidá e Jakin, os costumes eram sinônimos de pagamentos de tributos que os capitães
europeus247 deviam pagar ao rei local antes de iniciar as transações comerciais da compra e
venda de escravos. Nas cerimônias fúnebres e cultos aos ancestrais, estrangeiros e população
244
Sacerdote dos malês. MOURA, Clóvis dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo, Edusp, 2004. p.
265; “O termo marabu, por exemplo, que na Alta Guiné designava sacerdotes islâmicos, foi projetado pelos
viajantes europeus num contexto não islâmico, como a Costa dos Escravos, para designar os especialistas
religiosos autóctones [...]”. PARÉS, Op. Cit., p.
245
"Uns saquinhos de couro, contendo um papel com um trecho do Alcorão, os quais, pendurados ao pescoço ou
costurados à roupa, protegiam contra a feitiçaria e armas inimigas". SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o
libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. 2.ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 119.
246
LABAT, Jean Baptiste. Voyage du Chevalier des Marchais en Guinée, isles voisines et à Cayenne, fait en 1725,
1726 et 1727. Tomo I e II. Paris: Chez Saugrain, Quay de Gefvres, à la Croix Blanche, 1730. p. 90-91. Trecho
traduzido disponível em: PARÉS, Luis Nicolau (Org.). Práticas religiosas na Costa da Mina. Uma sistematização
das fontes europeias pré-coloniais, 1600-1730. Disponível em: <http://www.costadamina.ufba.br/> Acesso em:
30/03/2017.
247
Por exemplo: “Ele [Francisco Félix de Souza] ainda viajara até Abomei, juntamente com o agente francês Brue,
para participar nos chamados “costumes” do rei...”. Ver mais em: LAW, Robin. A carreira de Francisco Félix de
Souza na África Ocidental (1800-1849). Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001, p. 27.
84
local também deveriam ofertar presentes, pois este era considerado, também, um costume. Em
meados do século XVIII, no reino do Daomé, os costumes eram dedicados aos ancestrais
daomeanos. Havia, segundo Parés, dois tipos de costumes: os que celebravam após a morte de
um rei, e os anuais, que eram de menor porte e contava com sacrifícios para os ancestrais
reais248.
Dos autores249 que presenciaram e escreveram sobre os costumes, indicam que estas
cerimônias eram múltiplas e representavam um “fenômeno social total” e “motor da
economia”250. Então, esses costumes, poderiam ser realizados de forma política antes de uma
guerra, em sua dimensão religiosa cultuando os mortos ou exaltando o poderio militar. Esses
três campos seriam interdependentes e sinalizam a legitimação do poder real.
A denúncia do vigário não dá mais informações se existia algum ato público de maior
porte ocorrendo na região de Elmina, mas fica claro que os negros estavam praticando algum
“costume”. É importante compreender essas cerimônias e correlacioná-las com as realizadas na
Capitania de Pernambuco e, assim, entendermos um pouco mais sobre as vivências religiosas
que aqui se estabeleceram. Claro que as particularidades existentes na África foram
gradativamente alteradas na colônia, e à medida que nova leva de africanos desembarcavam no
Brasil em conjunto com a cultura mestiça que se desenvolvera, estas cerimônias ganhavam
novo horizonte religioso em função de suas experiências atuais.
Ainda na denúncia, diz Gaspar que quando um negro morre, ainda que seja cristão e
enterrado na igreja, seus companheiros se dirigem ao campo para erigir uma sepultura em
homenagem ao falecido. No campo, realizam celebrações fúnebres, ofertam carneiros, muito
vinho e colocam “todos os seus troféus, e insígnias de suas dignidades”. Com as pessoas que
248
PARÉS, Luís Nicolau. O rei, o pai e a morte. A religião vodum na antiga costa dos escravos na África
ocidental. Companhia das Letras, 2016, p. 183.
249
Ver nota 235.
250
PARÉS, Op. Cit., p. 186.
251
PARÉS, Op. Cit., p. 184.
85
muito estimam eles não poupam recursos, comprando entre 30 e 40 mil réis de vinho de palma
que dão a todos que participam da cerimônia. Ao término, “não dizem sequer um responso”252.
Diferente do que foi visto para os centro-africanos que pediam esmolas para rezar missa pela
alma dos companheiros ou malungos, em Pernambuco, este povo da parte ocidental não fazia
nenhum tipo de oração (responso) pela alma dos que partiram. Notamos a mesma preocupação
em preservar a alma daquele que partiu, mas em concepções diferentes. Talvez pelo fato dos
elementos católicos não terem tido tanta relevância como teve no Congo para estas pessoas.
Assim como a referência no parecer do Conde de Povólide, de que grupos se dividiam
em nações e faziam voltas como arlequins, fora descrito algo semelhante no ano de 1773 em
Uidá. “Havia as danças de arlequins, e uma em que várias mulheres faziam movimentar com a
cintura, uma longa cauda feita com pele de leopardo” 253 . Trata-se de uma das fases dos
“Costumes de Huegbaja”, que era a representação do reino de Uidá no período de grandes
dificuldades financeiras e, posteriormente, sua recuperação econômica.
Outras semelhanças no referido parecer e documentos da Costa da Mina nos chamaram
a atenção. Os ídolos descritos para Pernambuco (bodes vivos e outros feitos de barro)
assemelham-se aos que o vigário Gaspar denunciou. Foi citado nesse nosso estudo que esse tipo
de prática ficou conhecido como “fetiche”. Se tomarmos como base esse conceito, talvez o que
fora descrito para Pernambuco ainda mantinha alguma relação com os cultos da África. O termo
“fetiche” não seria usado apenas na adoração ou representação de um deus, mas também
poderia ser o próprio instrumento de poder. Comumente são representados em figuras diversas
da natureza e outros objetos, têm por função a proteção de um indivíduo, grupo ou reino. À
primeira vista, o termo pode se confundir com a “idolatria”. Idolatria seria a prática semelhante
a qualquer outra religião já que se adora um deus, enquanto que o culto ao fetiche (termo
oriundo de feitiço) possui a conotação de técnicas mágicas com diferentes finalidades.
Disto isto, nos parece que o ritual descrito no Recife, em finais do século XVIII, tratava-
se de um fetiche. Apesar da denúncia se referir a “ídolos”, é importante frisar que estes dois
conceitos (fetiche e ídolo) quase sempre eram confundidos pelos viajantes. Continuando, o
parecer nos diz que “depois de diversas benções supersticiosas, e fazendo crer a Rústicos, que
naquelas unções de pão dão fortuna, e fazem querer bem Mulheres a Homens, e Homens a
Mulheres”254.
252
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 13644.
253
PARÉS, Luís Nicolau. O rei, o pai e a morte. A religião vodum na antiga costa dos escravos na África
ocidental. Companhia das Letras, 2016, p. 192.
254
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Códice 583, fls. 220-
221v.
86
Ou seja, a finalidade do culto ao bode vivo ou de barro era atrair homens e mulheres, o
que nos leva a entender que esta celebração tinha o caráter similar à feitiçaria, e não à religião
propriamente dita255. A situação de uma mulher parda de Elmina complementa nossa visão
acerca de fetiche e idolatria, quando diz que os “brancos de Portugal mostravam seu feitiço pelo
Santíssimo Sacramento”256. Para ela, os dispositivos litúrgicos da religião caracterizavam uma
espécie de feitiço. O ato de celebrar o sacramento não seria diferente de adorar ao deus do
Ocidente. Logo, não havia diferenças com as práticas dos negros naquela região.
Apesar do parecer dado pelo Conde de Povolide ser mais específico sobre a cultura
religiosa dos Minas, não sabemos quais grupos étnicos participaram destas cerimônias. Uma
denúncia aberta contra a preta forra Luzia Barboza, nação “coyrana257”, nos ajuda a entender
mais um pouco sobre as vivências mágico-religiosas em Pernambuco.
255
Para uma discussão entre fetiche e ídolo ver: PARÉS, Luís Nicolau. O rei, o pai e a morte. A religião vodum
na antiga costa dos escravos na África ocidental. Companhia das Letras, 2016, p. 29-40.
256
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 13644.
257
Courá, Curá, Curamo, Curano, Courana, Courama, Courá-Baxé, Courano da Costa da Mina, Mina Courá etc”
MOTT, Op. Cit., p. 15; Rodrigo Castro Rezende argumenta que “coira” ou “courana” pode ser uma origem
inventada no cenário escravista do Brasil. Embora esse etnônimo tenha sido adotado pela população africana, este
autor acredita que essa designação faça parte de um mundo de “signos não-africanos”. REZENDE, Rodrigo
Castro. Africanos, Crioulos e Mestiços: a população de cor em algumas localidades mineiras do século XVIII e a
construção de suas identidades. Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP,
realizado em Caxambú- MG – Brasil, de 18 a 22 de Setembro de 2006, p. 2.; um outro ponto de vista sobre a etnia
courana pode ser encontrado em: PARÉS, Luís Nicolau. O rei, o pai e a morte. A religião vodum na antiga costa
dos escravos na África ocidental. Companhia das Letras, 2016.
87
sua consciência, e nada mais disse a dita denunciante a qual não conheço nem
posso afirmar da fé, e crédito, que a dita se deve dar258.
A denúncia contra Luzia era reflexo das interações sociais dos negros em Pernambuco
no século XVIII. Alguns detalhes nos chamam a atenção. A denunciante, Maria Madalena, não
explica as razões de Luzia ter feito supostos malefícios a sua pessoa além da sua escrava. Luzia
era forra, será que foi escrava de alguém próximo a Maria? Caso sim, teria Luzia sofrido alguma
agressão? É certo que existia um contato mais próximo entre as duas. Inclusive, permitindo que
a “feiticeira” adentrasse sua casa para causar-lhe “moléstias e vexações”.
O embrulho usado por Luzia podia conter restos de humanos e animais. Outra negra de
nação courana, Ana Maria Gomes, também forra e com fama de ser “mestre feiticeira”, foi
denunciada em Minas Gerais no ano de 1760. Foi encontrada junta a outras mulheres
desenterrando um defunto “no adro da igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem”259. Ossos,
cabelos, umbigos, unhas, pele de animais entre outras coisas eram ingredientes para o fabrico
de feitiços. O embrulho deixado embaixo da cama de Maria certamente continha algum destes
itens.
258
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Promotor nº 108, fls. 146.
259
MOTT, Luiz. Dedo de anjo e osso de defunto: os restos mortais na feitiçaria afro-luso-brasileira. Revista USP,
São Paulo (31): 112-119, setembro/novembro, 1996, p. 115.
260
MOTT, Op. Cit., pp. 15-16.
88
estes materiais para fins diversos, o que demonstra que ocorria uma troca de conhecimentos
entre diferentes grupos étnicos no que se refere à fabricação de feitiços.
Por que Maria Madalena demorou tanto para denunciar Luzia? Feiticeiros eram temidos
pelo seu poder tanto de curar como o de fazer mal a alguém. É provável que, havendo alguma
relação conflituosa entre Luzia e Madalena, esta última fosse ameaçada constantemente pela
primeira. A doença de sua escrava “já desenganada pelos médicos” talvez fosse um aviso do
que poderia acontecer a outros cativos da casa.
Assim seguia Luzia e tantos outros negros em Pernambuco no século XVIII. Suas
expressões religiosas influenciavam sua vida privada e social, podendo atribuir-lhes
reconhecimento (bom ou ruim), a depender do uso de seus conhecimentos sobre ervas, feitiços,
oferendas a deuses etc. Além disso, podiam se valer de seu reconhecimento para adquirir algum
benefício econômico. Por outro lado, poderiam sofrer as consequências de seus atos, caso
fossem processados pelo Santo Ofício, o que não foi o caso de Luzia.
Ao passo que o Cristianismo se espalhou em diversas partes do continente africano,
influenciando profundamente as crenças religiosas de Angola e Costa da Mina, o inverso
também ocorreu. Nas palavras de Parés, as crenças afro-atlânticas difundiram-se pelo mundo:
Brasil, Estados Unidos, Cuba, Haiti etc. Logo, estas também desregularam as estruturas do
Cristianismo em outras partes do mundo, recriando novas crenças e práticas religiosas que
tinham em sua base a cultura africana.
A partir do exposto, percebemos que, pelo menos para a Capitania de Pernambuco, havia
divisões específicas entre Bantos e Minas. Através da religião, notamos traços inerentes a cada
um dos grupos citados. Apesar disso, não generalizamos a ponto de dizer que estes grupos não
261
CALAINHO, Daniela Buono. Magias de cozinha: escravas e feitiços em Portugal – Séculos XVII e XVIII.
cadernos pagu (39), Julho-Dezembro de 2012:159-176, p. 173.
89
realizavam trocas culturais. Vimos que angolanos e negros da Costa da Mina praticavam ritos
religiosos em conjunto para a salvação da alma de seus parentes.
Também nos foi possível analisar o calundu (Angola) associado ao culto do vodum
(Costa da Mina), o que, em tese, não seria compatível dada as diferenças de culto e a localização
geográfica. Denota-se, a partir do que foi visto, que para a região de Pernambuco (durante o
século XVIII), não houve uma definição evidente de um modelo religioso. As práticas religiosas
variavam de acordo com o praticante e as condições que lhes eram impostas.
90
262
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 96,
D. 7564.
263
“Essa ilha, com cerca de cinco léguas de comprimento e entre seis quilômetros de largura, está defronte de
Pambú, no lado baiano, e de Cabrobó, no lado pernambucano”. Ver: ALMEIDA, Luís Sávio e SILVA, Christiano
Barros Marinho da. Índios do Nordeste: temas e problemas. EDUFAL, 1999. p. 80. “A Vila de Assunção criada
em 24 de setembro de 1761, compreendia cinco léguas, foi formada com a transferência do aldeamento da Ilha do
Pambú e contava com as nações Kariri, Ohez, Xocó, Paraquió e Pipipã”. Ver: CUNHA, Elba Monique Chagas.
Sertão, sertões: colonização, conflitos e História Indígena em Pernambuco no período pombalino (1759-1798).
Dissertação de Mestrado em História, UFRPE. Recife, 2013. p. 114.
91
Mas, o que chamou a atenção foi a referência aos “Capuchinhos tanto o daquela missão
[Pernambuco], como os que saíram das que de cá [Bahia]” incitavam os índios com a finalidade
de “perturbarem o progresso dessas diligências”, e prosseguiu escrevendo que “enquanto estes
homens se conservam na vizinhança” não seria possível continuar sua tarefa, e que os governos
da Bahia e Pernambuco não poderiam se conformar com estas atitudes.
O progresso ao qual o Capitão-mor se referiu fazia menção em poder “recuperar” alguns
indígenas que haviam fugidos da Ilha de Pambú para a missão dos Rodelas, na Capitania da
Bahia. Sugere o denunciante que estes índios estavam “mal aconselhados” pelos missionários
Capuchinhos. Posteriormente, o Capitão desta missão, Vicente Fogaça, remeteu carta para
Jerônimo em 15 de fevereiro do mesmo ano, informando que os fugitivos haviam sido pegos e
que só não foram enviados para a parte de Pernambuco porque os missionários convenceram
os índios a não saírem e os conservaram em sua igreja.
Nos fala o Capitão-mor que logo que chegou à povoação de Assunção, procurou
“reduzir com brandura” os indígenas da nação Araxá por via do Capitão-mor da Missão dos
Rodelas, Vicente Fogaça, “que é um índio de bastante razão, a quem eu conhecia desde os
cariris novos, por ali ter se refugiado com os seus patrícios”. Nesta ocasião, o Frei João Batista
“fez degolar uns dois deles” 264 e lhe pregou a orelha na porta da igreja, pois queria que
soubessem que quem mandava ali era ele.
João Batista possuía um companheiro de ofício, o Padre Frei Barnabé, o seu próprio
Prefeito, de “semelhante nata”. Frei Barnabé ilustrou vários casos conhecidos por seus
“vizinhos e os índios”. O primeiro foi de uma velha índia chamada Grimaneza, mulher do índio
Antônio Gomes, que fora achada morta em um tronco em 19 de agosto de 1753, vítima de
vários açoites. Seu corpo fora arrastado, queimado e reduzido as “cinzas no monturo” por
entender o Padre que se tratava de uma feiticeira265. Em 13 de Março de 1754, a índia Teodósia,
viúva, com setenta anos, fora incansavelmente açoitada, assim como Grimaneza teve seu corpo
arrastado, queimado e sepultado no monturo, Barnabé acreditava que a mesma também era
feiticeira. Ainda no mesmo ano, aos 2 dias de agosto, a filha de Grimaneza, Maria Madalena,
moça de 20 anos, esposa do índio Narciso de campos, fora açoitada e sentenciada à morte por
chorar e lastimar a “desgraça da sua mãe”.
Sabendo que sua morte se aproximava, Maria Madalena “quis morrer como cristã”, fez
sua última confissão um dia antes de sua sentença. Sua execução fora interpretada como se
264
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 96,
D. 7564.
265
Idem.
92
fosse feiticeira, e depois de “lhe deitarem fora seus miolos a pauladas”266, seu corpo teve o
mesmo trágico destino que o da sua mãe, tudo isso tendo ocorrido no local onde esta última
teria sido executada. Por “murmurar contra seu Padre”, a índia Joana de Oliveira “sem a atenção
de sua crescida idade nem o lugar da igreja”267, foi açoitada no alpendre da própria igreja, até
que não resistiu e veio a falecer. Seu corpo teve o mesmo destino que as outras indígenas
consideradas feiticeiras.
A brutalidade com que as índias eram tratadas pelo Frei chegava a tanto que outras duas,
Maria da Rocha e Catarina da Costa, foram mortas por irem à casa de “alguns moradores com
quem era proibido totalmente o comércio”. Os indígenas que relataram o caso alegam que as
vítimas não sabiam de tal proibição. Além dos casos de abusos de poder, que resultou em várias
mortes, os mesmos Padres também possuíam um negócio lucrativo de venda de sepulturas no
valor de 12 mil réis, e o esquife no valor de 4 mil. Tudo isto documentado em um assento escrito
pelo próprio Padre268.
As atitudes deste Capuchinho, em parte, é reflexo do que a Europa tinha vivido durante
os séculos XVI ao XIX. Peter Burke269 cunhou a expressão “reforma da cultura popular” para
“descrever a tentativa sistemática por parte de algumas pessoas [...] de modificar as atitudes e
valores do restante da população”270. Essa “reforma” não foi uniforme, e em cada local por
onde católicos e protestantes estiveram, esses missionários agiram de acordo com o contexto
da sociedade que estavam inseridos. A forma como agiu Frei Barnabé era justificada, segundo
sua concepção de mundo, pelo fato das supostas “feiticeiras” carregarem crenças e costumes
pagãos. “Os costumes pagãos eram mais do que errôneos: eram diabólicos”271. Curiosamente,
a ideia de que que “bruxas” ou “feiticeiras” deveriam ser queimadas há muito fora superada na
Europa, época em que as indígenas foram queimadas.
Durante o século XVII, “uma série de reformadores”272 não levavam mais a “bruxaria”
a sério como no século anterior. Na República Holandesa, por exemplo, o pastor calvinista
Balthasar Bekker escreveu um livro com a finalidade de provar que a crença em “bruxas”273
266
Idem.
267
Idem.
268
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 96,
D. 7564.
269
BURKE, Peter. A vitória da Quaresma: a reforma da cultura popular. In: Burke, Peter. Cultura popular na
Idade Moderna. Europa, 1500-1800. São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 352.
270
Idem.
271
BURKE, Op. Cit., p. 356.
272
BURKE, Op. Cit., p. 405.
273
Sobre a caça às bruxas e a imagem da mulher na Europa, ver: DELUMEAU, Jean. História do medo no
ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 462-567.
93
era desnecessária274. A julgar que essa ideia, deve ter se espalhado rapidamente pela Europa, o
Capuchinho Barnabé conservava uma posição bastante ortodoxa, assim como os Padres que se
puseram contra os batuques. As índias queimadas, além de expressarem aspectos supostamente
pagãos, também incorriam no problema de ordem moral. No imaginário católico, a feitiçaria
poderia ser palco de atos luxuriosos e pecaminosos. Dessa forma, a atitude desmedida
empregada por Barnabé justificava seus excessos. Temos, no referido Frei, uma conduta similar
a dos religiosos católicos e protestantes da Europa nos séculos XVI e XVII.
Citamos mais um caso, tendo como protagonista o Padre João Batista. Por ordem do
Capitão-mor, foi pedido que se fizesse um inventário da freguesia dos povos e dos bens onde
se encontravam os ditos missionários Capuchinhos. Por ser uma tarefa que levaria bastante
tempo, algumas pessoas ficaram responsáveis por tal diligência, em conjunto com o Capitão da
missão dos Araxá. Nesse intervalo, o Padre João havia comprado uma crioula chamada
Bonifácia e o seu irmão, Antônio. João Batista informou a Jerônimo Mendes que havia
alforriado aquela escrava pelo preço de 40 mil réis, que havia recebido em várias parcelas de
“um preto pai da crioula”. Desconfiado das intenções do Padre, Jerônimo decidiu averiguar a
situação e constatou que parte do pagamento foi efetuado com ofertas de fiéis à Igreja, e a outra
parte saiu das finanças do referido Padre275.
Houve embaraço tão grande, que até a carta de liberdade de Bonifácia foi contestada,
sob o argumento de que a mesma deveria ter sido redigida pela Junta das Missões, pois um
Padre Capuchinho não gozava de autoridade para passar um documento deste tipo. Alguns dias
depois, alguém que não sabemos (provavelmente o pai) foi interceder pela alforria da dita
escrava, e que se fosse o caso, se fiasse novamente pela quantia de mais 40 mil réis, o que não
fora atendido pelo Capitão nem pela justiça local276. João Batista alegava que também havia
alforriado o irmão da dita crioula, mas nunca apresentou os documentos que comprovassem a
liberdade do mesmo. Os irmãos que se encontravam em uma situação delicada, no dia 29 de
março (provavelmente em 1761, ano que fora redigido o documento), fugiram furtivamente
durante a noite para o “distrito da Bahia”277.
Notamos, na longa descrição no ofício, que a atuação dos Capuchinhos extrapolava os
limites impostos pela justiça comum e que se valiam das mesmas missões para benefício
próprio, como se mostrou na venda de esquifes e sepulturas. Além disso, tanto em Pernambuco
274
BURKE, Op. Cit., p. 405.
275
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 96,
D. 7564.
276
Idem.
277
Idem.
94
278
Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 93, D. 7406.
279
Para o século XVII, durante as missões dos capuchinhos franceses, também houve queixas por parte da
administração secular. Em 28 de Novembro de 1673, Fernando de Sousa Coutinho, governador de Pernambuco,
e a Câmara de Olinda denunciava os Padres capuchos franceses de introduzirem armas de fogo junto aos indígenas.
Ver: Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco. AHU_CU_015, Cx. 10, D. 999.
280
Cabe lembrar que a relação de Portugal com a Igreja era delicada. Portugal foi alvo de inúmeros protestos por
parte do clero católico por desviar o “dizimo” para outras áreas do comércio português e construções na metrópole.
O dizimo, estipulado em acordo no Padroado Régio, era parte do montante arrecadado em impostos dos produtos
agrícolas exportados da colônia, que seriam utilizados (em tese) para a manutenção e sustentação das igrejas no
Brasil. Especialmente para o século XVIII, os impostos eram tributados principalmente na extração do ouro e
diamantes. Sobre este assunto, ver: RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e periferias no mundo luso-
brasileiro,15001808. Rev. bras. Hist. [online]. 1998, vol.18, n.36, p. 192; sobre o pagamento de dízimo no Brasil
e Nova Espanha, ver o estudo recente de: CARRARA, Angelo Alves.; SANTIRÓ, Ernest Sánchez. Historiografia
econômica do dízimo agrário na Ibero-América: os casos do Brasil e Nova Espanha, século XVIII. Estud. Econ.
vol.43 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2013.
281
BOXER, Charles R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.
187-188.
282
BOXER, Op. Cit., p, 188.
95
Longe de ser um período em que se rompeu com as reformas pombalinas, ficou conhecido pela
“maneira de conceber a política fundada na reforma do aparelho de Estado, no domínio fiscal,
militar ou da justiça”283.
É importante frisar que a perseguição aos batuques284 feita pelos Capuchos deu-se nesse
período de retomada do poder inquisitorial. Os missionários estavam atentos à conjuntura
política da época. Usar a Inquisição para os fins de erradicação dos batuques talvez não fosse
possível no período em que Pombal administrou o Reino. De todo modo, a tentativa dos
missionários de utilizar a Inquisição não obteve resultados satisfatórios. Um outro problema
enfrentado pelos missionários era a autonomia política dos Governadores. Não existia um
projeto uniforme de poder político ilimitado para a centralização da colônia portuguesa. O que
havia, de fato, era uma “justaposição institucional, pluralidade de modelos jurídicos,
diversidade de limitações constitucionais do poder régio e o [...] caráter mutuamente negociado
de vínculos políticos”285.
Em outras palavras, a coroa portuguesa não dispunha de poder suficiente para obter
controle total de suas colônias. Os Governadores ultramarinos tinham total liberdade para
administrarem as Capitanias de acordo com suas ideias. A negociação com os poderes locais
também valia para a África. Sabendo que ali já havia Estados e políticas enraizados, a melhor
opção para construir fortalezas e espaços comerciais era através da diplomacia e de alianças
políticas com os sobados e reis locais286.
283
VARELA, Alex Gonçalves. "Juro-lhe pela honra de bom vassalo e bom português": filosofo natural e homem
público: uma análise das memórias cientificas do ilustrado Jose Bonifácio de Andrada e Silva (1780-1819).
Dissertação de mestrado em História, Unicamp. São Paulo, 2001, p. 63.
284
Ressaltamos que o batuque em si sequer foi alvo de perseguição inquisitorial. A própria denúncia que dá
abertura ao sumário de investigação se refere ao suposto “crime de idolatria”. Portanto, a perseguição desmedida
e as atitudes dos missionários capuchos partiram de suas concepções do que era “herético”. Isso demonstra que o
Tribunal de Lisboa pouco caso fez destes episódios. Ver: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo 4740.
Sobre a perseguição religiosa as expressões culturais consideradas heréticas, ver: Burke, Peter. Cultura popular
na idade moderna. Europa, 1500-1800. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
285
HESPANHA, Op. Cit., p. 57.
286
RUSSEL-WODD, A. J. R. Sulcando os mares: Um historiador do império português enfrenta a “Atlantic
History”. HISTÓRIA, São Paulo, 28 (1): 2009, p. 26.
287
HESPANHA, Op. Cit., p. 61.
96
Em uma sociedade como a portuguesa no século XVIII, não havia condições para uma
política não partilhada. Os vários setores que compunham o Império português eram vistos
“como um todo, onde as partes têm funções específicas e dependem umas das outras”288. O rei
era tido como o “cabeça”289, mediava e arbitrava conflitos diversos, era parte essencial do corpo
político. “Nesse formato, o rei – o monarca – operava como a cabeça do corpo social,
constituído pelos vários reinos que se mantinham regidos por suas regras coadunadas com as
leis maiores editadas pela coroa”290.
Desde a era pombalina, a América portuguesa passava por uma transição política
intensa. As medidas criadas por Pombal, visou a melhoria e a racionalização da sociedade luso
e brasileira. A religião, aos poucos, perdeu espaço para a “razon de estado”291, praticada por
Governadores e outros agentes ultramarinos. Também há de se compreender que em uma
“monarquia pluricontinental”292 não havia espaço para uma única visão (no caso a religiosa),
que impedisse o crescimento intelectual, cultural ou econômico daquela região.
288
GOUVÊA, Maria de Fátima.; FRAZÃO, Gabriel Almeida.; SANTOS, Marília Nogueira dos. Redes de poder
e conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. Topoi (Rio J.) vol.5 no.8 Rio de Janeiro
Jan./Jun. 2004, p. 96.
289
Idem. Ver: HESPANHA, António Manuel. Antigo Regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político
do império colonial português. In: FRAGOSO, João.; GOUVÊA, Maria de Fátima. Na trama das redes: política
e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 45-75.
290
FRAGOSO, João.; GOUVÊA, Maria de Fátima. Introdução. Desenhando perspectivas e ampliando abordagens
– De o Antigo Regime nos Trópicos a Na trama das redes. In: FRAGOSO, João.; GOUVÊA, Maria de Fátima.
Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010, p. 17.
291
Este conceito já foi abordado anteriormente nesse nosso estudo. Para melhor compreensão, ver: RIBEIRO,
Mônica da. “Razão de Estado” na cultura política moderna: o império português, ano 1720-30. In: ABREU,
Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e
ensino de história. Civilização Brasileira, 2007.; “A despeito da impopularidade de Maquiavel no mundo ibérico
e das muitas críticas ao pensamento razon de estado, [...] as vantagens práticas e políticas [deste conceito] nunca
estiveram ausentes dos cálculos dos monarcas ibéricos, mesmo em questões religiosas, tanto nas metrópoles
quanto nos impérios”. SCHWARTZ, Stuart B. Impérios intolerantes: unidade religiosa e o perigo da tolerância
nos impérios ibéricos da Época Moderna. In: MONTEIRO, Rodrigo Bentes.; VAINFAS, Ronaldo. Império de
várias faces: relações de poder no mundo ibérico da Época Moderna. São Paulo: Alameda, 2009, p. 27.
292
Entende-se por monarquia pluricontinental como um só reino, uma única aristocracia e diversas conquistas.
“Nela há um grande conjunto de leis, regras e corporações. – Concelhos, corpos de ordenanças, irmandades,
posturas, dentre outros elementos constitutivos...”. Essa visão difere do que propôs John Elliot. Tendo como
referência principal a Espanha, este autor defende a ideia de monarquia compósita que seria constituída por vários
reinos com estatutos próprios anteriores a formação de tal monarquia. Sendo assim, os vários reinos que surgem
mantem sua formação original, suas leis, normas e direitos locais. Nesse caso, a visão de Elliot não cabe para o
reino de Portugal, já que estas instituições não existiam previamente, sendo moldadas ao longo dos séculos de
acordo com a necessidade no âmbito local ou da metrópole. Para aprofundamento dessa discussão, ver:
FRAGOSO, João.; GOUVÊA, Maria de Fátima. Introdução. Desenhando perspectivas e ampliando abordagens –
De o Antigo Regime nos Trópicos a Na trama das redes. In: FRAGOSO, João.; GOUVÊA, Maria de Fátima. Na
trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010, p. 17-21.; ELLIOT, John H. A Europe of Composite Monarchies. In: Past and Present, nº 137
(The cultural and Political Construction of Europe), 1992, pp. 48-71.
97
Além de Portugal e Brasil, a América espanhola também passou por reformas similares
no século XVIII. Durante o reinado de vários reis da Casa de Bourbon, foi implantada uma
série de leis que visou a modernização econômica e política do território controlado pela Coroa
espanhola.
293
LYNCH, John. El Estado Colonial en Hispanoaméricana: América Latina, entre colonia y nación. Barcelona:
2001, p. 89.
294
LYNCH, Op. Cit., p. 89.
295
Apesar do impacto do Iluminismo nas “sociedades de corte”, algumas de suas ideias não foram vistas com bons
olhos. No Brasil, por exemplo, havia receio e controle de obras literárias que se posicionavam contra a escravidão.
O lema “liberdade, igualdade e fraternidade” não era bem-vindo na colônia portuguesa, dada a sua sustentação em
um modelo econômico que privava as pessoas de sua liberdade de ir e vir. O governador de Pernambuco, D. Tomás
José de Melo, dava conta em 4 de Junho de 1792, sobre a permissão de deixar entrar nos portos dois navios
franceses, e os riscos de contatos com os princípios de igualdade e liberdade propagados pelos clubes da França.
Ver: Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino. Pernambuco,
AHU_CU_015, Cx. 181, D. 12605. Em 16 de Novembro de 1799, a junta governativa do Recife enviou um ofício
para o Conselho Ultramarino, sobre a ordem recebida para vigiar a propagação das ideias jacobinas entre os
funcionários da coroa. Ver: Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico
Ultramarino. Pernambuco, AHU_CU_015, Cx. 212, D. 14384. Sobre as sociedades de cortes, ver o estudo clássico
de Nobert Elias: ELIAS, Nobert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia
da corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
296
Sobre o conceito de modernização e modernidade através das reformas borbônicas, ver o estudo de: PADILLA,
Guillermo Zermeño. História, experiência e modernidade na América ibérica, 1750-1850. Almanack braziliense
nº 07. Maio, 2008.; sobre a relação das missões católicas na América espanhola e a relação com as reformas
borbônicas, ver: DOMINGUES, Beatriz Helena. Política missionária e secular em escritos jesuíticos sobre a Baixa
Califórnia no século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, nº 45, 2003.
98
africana e crioula advinda da diáspora negra, que se estabeleceu com o fluxo contínuo de cativos
remetidos a várias partes da América portuguesa. Foi nessa complexa sociedade que os negros
Angolanos e Minas empreenderam seus costumes e crenças. “Numa época em que ouvir valia
mais do que ver, os olhos enxergavam primeiro o que se ouvira dizer” 297 . Ou seja, para a
população africana, essa prática foi danosa as suas expressões culturais, uma vez que,
rotineiramente, era alvo de denúncias dos mais variados setores que não admitiam suas crenças.
Para a documentação analisada neste capítulo, observamos que estes sujeitos
enfrentaram uma perseguição sistemática por parte dos Capuchos italianos. Enquanto a
administração secular (e até mesmo o Bispo) fazia pouco caso das danças e dos batuques (em
sentido religioso ou não), esses missionários não pouparam esforços, utilizaram todos os meios
acessíveis à época, como a Inquisição e a autoridade da Rainha D. Maria I para erradicarem tal
costume.
Nesse sentido, o caráter de “religiosos reformadores”, associado ao processo
missionário de civilizar e salvar as almas daqueles supostamente “heréticos”, teve papel
fundamental na atuação destes missionários. Independente dos problemas que tivessem de
enfrentar, o objetivo era a erradicação dos batuques e a moralização dos espaços públicos e
privados298 na Capitania de Pernambuco.
Por outro lado, os negros que foram perseguidos constantemente encontraram meios de
resistirem as investidas dos Capuchinhos. Suas estratégias de sobrevivência foram variadas,
usavam sua maioridade numérica para impor a dúvida de levantes, caso os batuques fossem
proibidos. Também usavam os batuques de forma política para denunciar seus perseguidores.
Através da comédia feita em atuação teatral nas igrejas, denunciavam o comportamento
impróprio de alguns Padres. Souberam utilizar os aspectos simbólicos para responderem aos
Capuchinhos.
297
SOUZA, Laura de Melo e. O diabo na Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade no Brasil Colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 21.
298
Não obstante, Constantino de Parma e outros missionários adentraram a casa de uma negra que tocava uma
cítara. Tomaram o instrumento e o quebraram, pois dizia que este era usado nos festejos dos batuques. Ver:
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo 4740. Ver também: Laboratório de Pesquisa e Ensino de História
(LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino. Pernambuco, Cx. 135, D. 10140.
99
Desde o tempo que no feliz Reinado de Sua Majestade que Deus conserve
chegaram os primeiros missionários em Pernambuco procuraram eles como
pedia o seu Apostólico Ministério os Ritos Indianos 301 , escandalosos e
contrários a Fé e Religião Católica, e proibidos pelas Leis do Reino e especiais
de Pernambuco pois nem a Glória e honra de Deus nem ao serviço de Sua
Majestade convinha que aqueles povos nos dias mais solenes, e Santos
santificassem as festas com danças e bailes desonestos com estrondo e
diabrura dos negros e com infinitos pecados e gravíssimas ofensas de Deus;
por isso é que recorreram ao Trono da Fidelíssima Soberana que fartamente
mandou proibir tais Ritos; mas porque o General de Pernambuco tem
empenho contrário proibiu eles somente os instrumentos dos tabaques, e
entretanto as danças são as mesmas desonestas e improprias de almas
batizadas, e em lugar dos instrumentos antigos usam cimbanelas e outros, e
como o suplicante Prefeito e os seus Missionários se mostraram constantes na
justa oposição a semelhantes abusos incorreram na indignação e ódio do dito
General especialmente o mesmo Prefeito como Vossa Excelência pode
perfeitamente conhecer dos casos que se seguiram depois302.
299
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx., D.
10368.
300
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 140,
D. 10368.
301
Maria Idalina Cruz Pires, ao analisar este documento, fez outra interpretação. A autora argumentou que as
palavras “rituais indianos” estavam no contexto dos batuques e prossegue dizendo que o teatro com os capuchinhos
(descritos outrora neste trabalho) eram realizados por indígenas. Na verdade, a documentação deixa bem claro que
a preocupação aqui era com os rituais africanos. Não há qualquer menção à cultura indígena. O que ocorreu foi
um pequeno equívoco no trecho: “Desde o tempo que no feliz Reinado de Sua Majestade que Deus conserve
chegaram os primeiros missionários em Pernambuco procuraram eles como pedia o seu Apostólico Ministério os
Ritos Indianos”. Apressadamente a professora tomou este trecho no contexto da denúncia, quando, na verdade,
trata-se de uma justificativa dos missionários na Capitania de Pernambuco nos anos inicias da colonização, que
tinha por objetivo a catequização dos nativos. Ver: PIRES, Maria Idalina Cruz. Resistência indígena nos sertões
nordestinos no pós-conquista territorial: Legislação, Conflito e Negociação nas vilas pombalinas 17571823.
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Pernambuco. Recife, 2004, p. 122-124. Sobre a chegada dos Capuchinhos no Nordeste, ver: GABRIELLI,
Cassiana Maria Mingotti. Capuchinhos bretões no Estado do Brasil: estratégias políticas e missionárias (1642-
1702). Dissertação de mestrado em História, USP. São Paulo, 2009, p. 45-77.
302
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino. Pernambuco, Cx. 141,
D. 10415.
100
O primeiro caso ocorreu na Igreja de Nossa Senhora da Penha, onde dois soldados
seguiam um outro que fugiu e se escondeu no “Altar mor onde está o Sumo Sacramento”. Um
dos soldados tentou matar o que havia fugido, e teria conseguido, se o Prefeito, Constantino de
Parma, não tivesse surgido e arrancado de suas mãos uma faca. Após ter expulsado os soldados
da igreja, o religioso recorreu até o Governador de Pernambuco para se queixar, o qual lhe
respondeu que os soldados cumpriam suas ordens. Constantino, obviamente, não ficou
satisfeito, replicando que não poderia se macular a igreja com sangue, e que o Governador não
gozava de imunidade religiosa.
O segundo caso se deu em torno de uma petição “sumariamente injuriosa”, onde alegava
o Prefeito, em que o mesmo devia alargar a um “sujeito de Pernambuco”, um pequeno caixão
de devoções “fundado na leve razão que não tinha recebido outros que esperava”, ao que o
Governador atendeu. Se sentindo ofendido, Constantino procurou um letrado, este o aconselhou
que riscasse o que o Governador havia feito e lançasse nova petição. Em razão disso, José César,
exaltando-se, dizia querer fazer queixa à Rainha do que o missionário havia feito, mesmo o
religioso tendo se desculpado e reconhecido ter sido enganado pelo letrado.
Pouca atenção foi dada às suas desculpas. O Governador comentava que se o referido
religioso era inocente nisto, não o era no caso dos “batuques e das danças que ele e os
Missionários quiseram impedir e que estimava muito se fosse embora e o haviam de estimar
também os Missionários”. Não era interesse apenas do Governador que Constantino fosse
embora de Pernambuco, mas, também, de outros religiosos. A documentação não especifica
quais seriam, mas é razoável pensarmos que um destes era o Bispo D. Tomás. Cabe lembrar
que o referido Bispo teve sua autoridade contestada pelo religioso Capuchinho, assim como,
fora alvo de denúncia, sendo acusado de permitir o teatro dos negros na Igreja e que “moços e
moças dançassem escandalosamente” no mesmo local.
A fala de José César nos leva a entender que havia mais de um religioso que estimava
isso. Infelizmente não há qualquer menção ou maiores detalhes que nos levem a conhecer o que
de fato se passava entre Constantino e outros religiosos. Mais uma vez, os batuques são
evocados nas discussões entre o Governador e o Prefeito das missões. Talvez o Governador
tenha tido outros problemas em função desse caso. De todo modo, seu descontentamento deixa
claro que estava em uma situação delicada perante a Rainha e o Tribunal do Santo Ofício.
José Gonsalves de Mello revelou um documento que reflete bem essa revolta e
preocupação do Governador.
101
303
Seguimos o mesmo caminho traçado na pesquisa documental realizada por Gonsalves de Mello, mas não
encontramos o referido documento. Desconhecemos outro trabalho que cite este documento sem ser pela indicação
do referido autor. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Um governador em seitas africanas. Diário de
Pernambuco. Recife, 22 Jan. 1950, pp. 1-2.
304
MELLO, op. cit., p. 2.
305
Ver o primeiro capítulo.
306
LONDOÑO, Fernando Torres. A outra família: concubinato, igreja e escândalo na Colônia. São Paulo:
Edições Loyola, 1999, p. 115.
307
LONDOÑO, Op. Cit., p. 116.
102
mas o que não significa que sempre saíssem vencedores. Constantino é um exemplo desse
poder. Há ainda de lembrar que a Inquisição, nesses casos, poderia ser usada como um braço
da igreja como se tentou fazer no caso dos batuques. A igreja sabia dos poderes de que os
Governadores estavam dotados. Evaldo Cabral de Melo chama a atenção na “Fronda dos
Mazombos”, através do caso do Xumbergas, que “governar significava nomear, o que constituía
fonte substancial de poder e também de renda” 308 . Mesmo diante disso, alguns religiosos
aventuravam-se em defesa de seus interesses pessoais, como foi o caso do António Soares.
António Soares, Padre residente na Paraíba, se envolveu em uma série de conflitos com
o Governador da respectiva Capitania, jerônimo de Melo e Castro. Este Padre estivera em
conflito constante com o Governador, chegando-o a insultá-lo no forte de Cabedelo na frente
dos seus oficiais. Além do mal-estar que causava na administração civil, também tinha
contendas com seu superior, o Bispo D. Tomás da Encarnação. Em 2 de junho de 1766,
insuflava o Padre Antônio Bandeira de Melo a também ridicularizar o citado Governador.
Constantino não chegou a tal excesso para com o Governador de Pernambuco, mas suas
atitudes lembram as de António Soares. Assim como o religioso na Paraíba, utilizava de suas
prerrogativas religiosas para desestabilizar o funcionamento político da Capitania em benefício
de suas crenças. Mesmo que por via de regra a Igreja estivesse subordinada ao Estado, como
ordenava o Padroado Régio, a atuação de religiosos não seguia à risca tais normatizações. Além
do italiano Constantino, José César, juntamente com o Bispo, tiveram problemas com outro
religioso. A partir da documentação arrolada sobre esse novo desentendimento de religiosos e
autoridades civis, definiu-se um quadro muito mais complexo das tensões entre as duas esferas
administrativas que analisamos. Nos parece que, ao menor indicativo de problemas na
308
MELLO, Evaldo Cabral. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1714. São
Paulo, Editora 34, 2003, p. 33.
309
DINIZ, Muriel Oliveira. Na tessitura das relações entre Igreja e Estado: tramas políticas do vigário António
Soares Barbosa na Capitania da Parahyba nos setecentos (1768-1785). ANAIS dos Simpósios da ABHR, 2011, p.
9.
103
310
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino. Pernambuco Cx. 129,
D. 9760
311
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino. Pernambuco Cx. 9760.
312
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino. Pernambuco, Cx. 129,
D. 9770. As redações de ambas as cartas conservam semelhanças no estilo, forma e pontuação sendo alterado
apenas o nome do Bispo e do Governador. Há indícios que tenham elaborado as cartas em conjunto.
104
era nítido que o Bispo se incomodava com as desordens deste religioso e que o Governador
partilhava do mesmo sentimento. O caso se alastra até os anos de 1780.
É importante observarmos que esses conflitos são anteriores aos batuques e se estendem
até o período em que José César foi notificado pela Inquisição. Será que havia, por parte do
vigário, raiva do Governador por permitir a livre manifestação dos africanos e descendentes nas
ruas? Em resposta às cartas enviadas contra sua pessoa, José da Cunha Menezes expôs que o
Governador havia interferido na sua jurisdição eclesiástica. Denunciava também que não havia
cumprido com suas obrigações com a Quaresma nos anos de 1776 e 1777, tudo em “desprezo
do pároco” e por não “reconhece-lo como seu pastor”. A Mesa da Consciência e Ordem
encontrou dificuldades em averiguar a veracidade da denúncia. Se de um lado existia um Bispo
e um Governador alegando a má conduta de um religioso, do outro, encontrava-se um vigário
que era bem quisto pelos seus paroquianos e conhecidos por ser “pródigo” na doação de
esmolas313.
Além de conhecermos as contendas existentes no próprio clero, este episódio se torna
interessante por dois motivos: o primeiro, em razão das tensões entre Igreja e Estado; o segundo,
por mostrar que, para além das relações que os cargos de Bispo e Governador exigiam, temos
um indicativo de que realmente poderia haver uma amizade entre os dois, o que confirmaria as
acusações de Constantino. Alguns anos mais tarde, em 24 de janeiro de 1784, José César
informava sobre o falecimento do seu suposto amigo, D. Tomás. Antes de iniciar as honrarias
e ritos em homenagem a morte do Bispo, o Governador reuniu a todos os religiosos que se
encontravam para prestar homenagem e lhes fez uma fala
313
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino. Pernambuco, Cx. 131,
D. 9899
314
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino. Pernambuco, Cx. 150,
D. 10889.
105
caso. Sua fala rememorava as intrigas “antigas” com José da Cunha Menezes e Constantino de
Parma. Os elogios e as advertências feitas com o objetivo de exaltar os feitos do Bispo talvez
fossem sinceras, e demonstrassem um sentimento de amizade entre as duas autoridades
máximas na Capitania. No entanto, só podemos supor. De todo modo, essas aproximações e
conflitos em que estiveram inseridos anteriormente, durante e depois do caso dos batuques, nos
revelam como as práticas africanas eram vistas pelo Bispo e o Governador.
D. Tomás faleceu em 14 de janeiro de 1784, em razão de várias doenças que se
alastravam desde 1781, com problemas motores na perna esquerda até dores agudas no intestino
dentre outras coisas, como pode ser constatado no parecer de sua morte315. Um detalhe em seu
testamento nos chama a atenção: declarava que “dois pardos, Euzébio e Felix, que me
acompanharam são forros, e livres; e a cada um deles deixo cinquenta mil réis em dinheiro; e
lhes dei a liberdade em minha vida”316. O fato de terem sido alforriados e a quantia considerável
deixada para cada um deles, demonstra uma relação mais próxima entre o Bispo e os libertos.
Será que estes sujeitos participavam do teatro descrito no primeiro capítulo? Será que a
convivência com estes tornou o Bispo mais maleável em relação as práticas culturais de
africanos e descendentes?
O único problema que, ambos, o Governador e o Bispo, enfrentaram em sua política de
“razão de Estado”, foram os missionários Capuchinhos. Não seria de estranhar que no meio
religioso houvesse boatos sobre a maleabilidade com que tratavam os batuques. Muito
provavelmente os Capuchinhos que empreenderam verdadeira caçada aos ritos africanos
tivessem informações advindas de terceiros que não simpatizavam com essa flexibilização da
religião cristã em razão das crenças africanas.
Próximo ao final do século XVIII, e mais uma vez, encontramos atribulações entre a
missão dos Capuchinhos italianos e a administração secular. Em quinze de setembro de 1797,
os Freis Capuchinhos do convento de Nossa Senhora da Penha enviaram um ofício para Rodrigo
de Sousa Coutinho, Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, pedindo proteção contra os
“senados do Recife e Olinda” e o Ouvidor da Capitania, Antônio Luís Pereira da Cunha que
315
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx.150.
D. 10889.
316
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx.151,
D. 10961.
106
Mais uma vez se faz presente as disputas entre autoridades eclesiásticas e civis. Notemos
que, apesar de se tratar de uma denúncia sobre a situação do convento dos Capuchos, novamente
foram evocadas as práticas culturais africanas dos negros. As danças perseguidas em 1778 ainda
continuavam a ser executadas, o que demonstra a visão contrária que os religiosos possuíam
frente a estas expressões. A descrição vaga e com poucos detalhes não nos permitem tecer
comentários maiores a respeito de que tipo de “danças” se referiam. De todo modo, é provável
que as realizadas durante o dia não passassem de folguedos para se divertirem, lunduns e fofas
“como os fandangos de Castela”. As realizadas a noite poderiam indicar algo mais próximo do
que discutimos anteriormente, visto que era comum a realização de rituais no período noturno.
Ainda que tolerados ou detestados, os costumes africanos seguiam firmes e contavam
com o apoio das autoridades civis. Dezoito anos após a denúncia contra os batuques,
encontramos outro Governador pernambucano, D. Tomás José de Melo, orientando o Capitão-
mor de Goiana que deixasse os negros realizarem seus batuques
Quanto aos batuques que os negros dos engenhos e dessa vila costumam
praticar nos dias santos, juntando-se na mesma, não devem ser privados de
semelhante função, porque para eles é o maior gosto que podem ter em todos
os dias de sua escravidão, porém sempre devem ser advertidos por Vmc. a fim
de não praticarem distúrbios, sob pena de serem castigados asperamente318.
317
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 198,
D. 13608.
318
PEREIRA DA COSTA, F. A. Anais Pernambucanos: 1493-1590. Vol. V. Recife, Arquivo Público Estadual,
1951, p. 356.
319
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Volume 1: Artes de Fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
18ª edição, p. 100.
107
O escravo, por não possuir um lugar próprio reconhecido pelas instituições, utilizava-se
de táticas e acabava por atuar no território do outro. Através de suas práticas culturais, ele
inverte a ordem das coisas a favor de si por meio de suas ações. Sendo assim, mesmo não tendo
vitórias concretas em alguns casos, não deixam de criar, em momentos necessários, suas táticas
sempre postas em prática na primeira oportunidade que tinham contra as estratégias criadas
pelas instituições para os controlarem. A escrava Mina Izabel Francisca de Souza ilustra bem
esse cenário ao atuar em um campo que não era seu através de petições ao governo da Capitania
de Pernambuco e ao Bispado de mesma jurisdição.
Levando seu senhor a ser questionado com relação ao motivo de não ter dado alforria a
sua escrava depois de ter feito acordo, em que garantia sua liberdade por uma quantia de oitenta
mil réis. Izabel, após conseguir um fiador, dirigiu-se a Bartolomeu de Souza, seu senhor, para
entregar a soma de dinheiro estipulada. Este, por sua vez, não a libertou e aumentou
gradativamente o dinheiro que havia pedido de início, chegando a escrava pagar “duzentos e
tantos mil réis” pela sua liberdade.320 No tocante aos escravizados, no limite de suas dores, nas
agruras do cativeiro, conseguiram a manutenção das suas variadas visões de mundo, e indo
contra os discursos normatizadores e as ações desmedidas por parte dos religiosos, provaram
que a força que possuíam excedia em muito os limites impostos pelo sistema escravocrata e
pelos dogmas católicos.
320
Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco: Cx. 138,
D. 10266.
108
suas determinações”, “que o supremo domínio não estava nos sumos Pontífices, mas sim nos
reis”, por que o apostolo São Pedro, Sumo Pontífice da Igreja, estivera sempre sujeito ao
imperador Nero321.
Luís Diogo Lobo Lacerda323 era conhecido entre os Padres por “estar ficando herege
confirmado”. Em 31 de Julho no ano de 1760, data que se celebra a Santo Ignácio, o Padre João
Garcia do Amaral, do Hábito de São Pedro, ouviu uma conversa entre Luís Diogo 324 e o seu
tenente General Antônio José Vitoriano. Enquanto admiravam alguns santos estampados no
salão da Igreja do Colégio do Recife, o Governador falou que verdadeiro era apenas “Santo
Ignácio, o Santo Cristo e Borgea, e que haviam muitas Bulas falsas”, o que seu tenente
confirmou em seguida. A denúncia foi feita em 12 de fevereiro de 1761.325
Os casos de Luís Henrique e Luís Diogo Lobo são importantes. Provavelmente ambos
eram católicos, o primeiro criticava os supostos métodos suspeitos de eleições no meio clerical
e contestava a santidade do Papa; o segundo, acreditava apenas em três santos. O catolicismo
321
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Promotor nº 105, fls. 17-17v.
322
Idem.
323
Procuramos referências sobre este governador e não encontramos. Acreditamos que o denunciante tenha se
confundido. Quem estava em exercício no ano de 1760 era Luís Diogo Lobo da Silva.
324
Luís Diogo Lobo é citado pelo Comissário Manoel Félix da Cruz, no ano de 1779, como um dos poucos
governadores que repreendiam os batuques em Pernambuco. Outros governadores que também tentaram proibir
os batuques foram: Henrique Luiz Pereira Freire (1737-1746), o sexto Conde dos Arcos Marcos José de Noronha
e Brito (1746-1749), e o Conde de Povolide José da Cunha Grã Ataíde e Melo (1768-1769). Para ver mais: Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, processo nº 4740.
325
Arquivo Nacional Torre do Tombo. Caderno do Promotor, nº 124, fls. 429.
326
Idem.
109
que professavam podia ser reflexo de uma maior racionalização possibilitada pelo período
assim como podia ser simples descrença ou revolta. Apesar de denunciados, nenhum dos
autores das denúncias tiveram coragem de repreende-los, por “medo das sem razões, que se
fazem nesta terra”. A palavra do Padre Garcia do Amaral nos revela que haviam rixas entre
alguns religiosos e os Governadores e outros da administração colonial em geral.
Sendo possível que os episódios descritos anteriormente entre José César de Meneses e
Constantino de Parma, não foram caso isolado. A denúncia inicial contra os batuques e as
citadas acima, revela um dispositivo da cultura política dos clérigos para enfrentar as
autoridades da Capitania, que, segundo a visão ortodoxa da Igreja, não estavam de acordo com
os preceitos defendidos por aqueles religiosos. De outro ponto de vista, é possível observar que,
por parte dos denunciados, não havia muita preocupação em tratar-se de tais coisas. De certo,
entendiam que os cargos de Governador lhes concediam benesses, ainda que simbólicas, de ir
contra a o pensamento vigente da Igreja, o que pode ser constatado por não terem enfretado
problemas maiores com a Inquisição.
No ano de 1779, ocorreu a denúncia contra José César de Meneses, que desencadeou o
caso dos batuques que analisamos. Em 1810, Caetano Pinto de Miranda Montenegro (1804-
1817), foi denunciado por comer carne em dias santos em um jantar que promoveu para um
cônsul inglês327.
Assim como Luís Diogo Lobo, Caetano era um ferrenho opositor aos batuques dos
negros, tendo empreendido alguns ataques e criado medidas na intenção que estes costumes
fossem cessados de uma vez por todas329. Em 1814, sob suspeita de levante por parte de livres
327
Arquivo Nacional Torre do Tombo. Processo nº 17313.
328
Idem.
329
SILVA, Luiz Geraldo. "Da festa barroca à intolerância ilustrada: Irmandades católicas e religiosidade negra na
América portuguesa (1750-1815)". In: SALLES-REESE, Verónica (Org.). Repensando el pasado, recuperando el
futuro: nuevos aportes interdisciplinarios para el estúdio de la América colonial. Bogotá: Editorial Pontificia
Universidad Javeriana
110
Assim era o início da segunda década do século XIX. Visivelmente, Caetano Miranda
não vê com bons olhos o que José Cesar chamou de “razão de Estado”. Para ele, a negociação
com os negros era impensável, antes deveria seguir a luz da razão do que se deixar permitir que
as pessoas participassem de atos profanos. Sobre os ajuntamentos dos negros (danças), Caetano
Miranda escreveu em dezembro de 1815 que
330
Idem.
331
FARIAS, Op. Cit., p. 49. Caetano estava se referindo à insurreição dos haussás em 1807. A revolta dos nagôs,
jejes e haussás em 1809. E novamente os haussás em 1814. FARIAS, Op. Cit., 52; ver também: REIS, João José.
Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986.
332
FARIAS, Op. Cit., p. 51.
333
SILVA, Luiz Geraldo. "Da festa barroca à intolerância ilustrada: Irmandades católicas e religiosidade negra
na América portuguesa (1750-1815)". In: SALLES-REESE, Verónica (Org.). Repensando el pasado,
recuperando el futuro: nuevos aportes interdisciplinarios para el estúdio de la América colonial. Bogotá:
Editorial Pontificia Universidad Javeriana. p. 284.
111
Com exceção da denúncia contra José César, todas as outras sequer foram cogitadas
abrir diligências para serem investigadas. Todas tiveram a anuência do Tribunal do Santo
Ofício. Nos parece que eram questões de menor importância e não havia a necessidade de
prosseguir nas apurações. O que explicaria a presença inquisitorial com mais ênfase no caso
dos batuques? James E. Wadsworth, em artigo intitulado “Jurema and batuque: índians,
africans and the inquisition in Colonial Northeastern Brazil”, analisou o mesmo caso dos
batuques. Em seu texto, este autor afirmou que o envolvimento da Inquisição, neste caso, era
incomum:
First, the Inquisition may have been conceding that the situation was far
beyond the institutional means for repression they had available in
Pernambuco. They could not simply try the entire slave and free black
population. Second, they may have questioned whether the matter really fell
under their jurisdiction. Third, they may have wished to assert their authority
during a period when the Inquisition was coming under increased pressure
and experiencing a decline in its power and prestige336.
334
SILVA, Op. Cit., pp. 284-285.
335
Tradução nossa: A resposta dos inquisidores foi incomum. Sob o protocolo normal, quando uma denúncia era
considerada como tendo mérito, a Inquisição ordenaria que um inquérito fosse feito. Este inquérito exigiria que
um oficial inquisicional ou um funcionário temporariamente designado questionasse testemunhas e realizasse uma
investigação formal. WADSWORTH, James E. “Jurema and Batuque: Indians, Africans and the Inquisition in
Colonial Northeastern Brazil”, History of Religions, n. 46/2, 2006, p. 156.
336
“Tradução do autor: Primeiro, a Inquisição pode ter concedido que a situação estava muito além dos meios
institucionais para a repressão que tinham disponível em Pernambuco. Eles não podiam simplesmente tentar toda
a população negra escrava e livre. Em segundo lugar, eles podem ter questionado se o assunto realmente caiu sob
sua jurisdição. Em terceiro lugar, eles podem ter desejado afirmar sua autoridade durante um período em que a
Inquisição estava sob pressão aumentada e experimentando um declínio em seu poder e prestígio”.
WADSWORTH, Op. Cit., p. 156. O declínio de poder e prestígio que o autor se refere é o mesmo descrito
anteriormente neste trabalho quando o Marquês de Pombal diminuiu o poder inquisitorial.
112
Mais parece que a Inquisição tomou o caso para si como uma tentativa de demonstrar
poder. Como descrito em nosso estudo, desde as reformas impostas por Pombal que os agentes
inquisitoriais perderam espaço na sociedade luso e brasileira. É importante lembrar que o
Tribunal foi acionado por Manoel Félix e Domingos Oliveira Marquez337. A partir da denúncia
“the Inquisition intervened in the long-standing 338 debate regarding Afro-Brazilian religion
and culture in the Captaincy of Pernambuco”339.
Deduzimos, a partir da documentação utilizada, que estes casos eram recorrentes, daí a
maleabilidade do Governador para com os ritos africanos. Por outro lado, identificamos também
que algumas autoridades religiosas defendiam seus ideais missionários a qualquer custo, não
importando as consequências, como foi o caso de Constantino, que viajou à Genova para tratar
do assunto dos batuques com o seu superior, Celestino de Genova.
Apesar da dinâmica de correspondência entre o centro (Roma) e a periferia (Brasil) 340,
Constantino decide ir até o seu superior desejando encontrar uma solução definitiva para os
batuques. Embora o esforço da Inquisição em tomar a frente no caso dos batuques, mas, a esta
altura, não tinham tantos poderes que pudessem ajudar o Capuchinho missionário. Não há
indícios de que Constantino tenha retornado ao Brasil. Também não há qualquer menção que
tenha conseguido levar o caso adiante em Roma341.
Suspeitamos que a atitude do Capuchinho Constatino de Parma era um misto de
sentimentos. Para além de sua personalidade cristã e seu intuito de normatizar a vivência
religiosa da Capitania de Pernambuco, havia, também, uma disputa pessoal com o Governador
José César, como demostramos anteriormente. Quando o mesmo falou em um ofício
endereçado diretamente a D. Maria I e seu superior, Celestino de Genova, suas palavras deixam
transparecer seu descontentamento: “[que o Governador] ofendia gravemente a uma
comunidade religiosa por muitos títulos respeitáveis”. Logo, sua jornada não era apenas uma
questão religiosa, mas também de honra. Conseguir proibir os batuques tinha o mesmo sentido
337
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Processo nº 4740. Ver também o primeiro capítulo deste trabalho.
338
Nesse caso específico dos batuques, não existia um longo debate, como afirma este autor. Havia somente a
denúncia feita por Manoel Félix Cruz e Domingos de Oliveira Márquez, no ano de 1778. Em 1779 a Inquisição
encaminha a carta para José César de Meneses. A partir disso, começa-se o debate. Cabe lembrar que não existe
documentação por parte da Inquisição sobre este assunto. Ficando restrito a uma correspondência feita entre o
governador e o Conselho Ultramarino, durante o ano de 1780. Em 1781, o prefeito das missões, Constantino de
Parma, reacende o debate quando decide ir para Gênova tratar deste assunto com seu superior pessoalmente.
Depois deste episódio, não há mais documentação sobre este caso.
339
WADSWORTH, Op. Cit., p. 154.
340
MALHEIROS, Marcia. "Homens da fronteira": índios e capuchinhos na ocupação dos Sertões do Leste, do
Paraíba ou Goytacazes séculos XVIII e XIX. Tese de doutorado em História. UFF, Niterói. Rio de Janeiro, 2008,
p. 183-184.
341
Não parece haver relações da viagem de Constantino com a Inquisição. A esta altura do século XVIII, todos
os tribunais religiosos da Europa passavam pela perda de prestígio e espaço na sociedade.
113
de minimizar o poder do Governador, uma vez que este possibilitava tal costume concedendo
até mesmo licença escrita para os realizadores dos batuques.
Se tomarmos como base o livro Terra à Vista, de Eni Pucineli Orlandi, compreendemos
os discursos empregados pelas esferas administrativas que nortearam todo o presente capítulo.
Nas afirmações expressas pelo Governador e pelo Bispo, obervamos que o silêncio era uma
forma de resguardar suas ações, deixando margem para a interpretação da Inquisição e dos
missionários. Sendo assim, ambos seguem a máxima cunhada por Orlandi quando dizem “y
para não dizer x”342, pois o não dito também possui significados.
Reforçamos o que João José Reis e Eduardo Silva afirmavam no final da década de
1980, que os escravizados possuíam determinada autonomia e sobrevivia de acordo com as suas
artimanhas. Concordamos com os autores e acrescentamos que, para além da sobrevivência,
estes sujeitos recriavam a sua humanidade e a sua dignidade, que foram violentamente
subtraídas quando eles passaram a compor as cargas dos navios negreiros. Estes, sim, figuraram
como atores principais de uma trama que desencadeou e inflamou o ego de várias pessoas, como
pudemos constatar.
Por fim, fica evidente, diante das análises dos vários documentados utilizados, que os
africanos e seus descendentes reinventavam os significados de liberdades por meio de suas
variadas práticas culturais, e que a “morte social” destes podia ser contornada ao empreenderem
seus ritos vindos da África. Ademais, a migração forçada destes sujeitos trouxe para o Brasil
colonial não apenas a força de trabalho, mas também várias formas de se interpretar as situações
e as instituições políticas e religiosas que moldaram a sociedade em que se fizeram presentes
durante toda a sua existência.
342
ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra à vista: discurso do confronto - velho e novo mundo. UNICAMP, 2008.
114
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo teve como objetivo compreender como a cultura dos sujeitos escravizados,
residentes em Pernambuco, relacionavam-se com os poderes locais: religioso e administrativo.
Além disso, buscamos identificar algumas dessas práticas culturais, quem as realizava e como
estas impactavam na vida dos seus proponentes e de outras pessoas. A produção cultural de
grupos africanos e de seus descendentes, no Brasil, não foi caso isolado. A historiografia que
se detém ao estudo da diáspora afro-atlântica há muito tem chamado a atenção para a formação
da América Portuguesa baseada nos aspectos culturais dos grupos acima citados.
Para tanto, nossa análise apoiou-se num conjunto de fontes jurídico-administrativas,
gestadas no Conselho Ultramarino, denúncias e processos movidos pelo Tribunal religioso do
Santo Ofício. Também fora utilizada uma bibliografia referente ao estudo sobre a escravidão e
a presença do negro no mundo ultramarino português, marcadamente numa perspectiva
histórica e antropológica. Partindo, assim, de uma visão que privilegia estes sujeitos como ponto
de partida para as problematizações que discutimos ao longo deste estudo.
Num primeiro momento, realizamos a identificação de um caso singular ocorrido no
Recife entre os anos de 1778 a 1780. Nos referimos aos batuques, analisados com maior ênfase
no primeiro capítulo. Como já assinalado por outros autores 343 , a permissão que africanos
provenientes de Angola e Costa da Mina de batucarem em seus dias de folga e dias religiosos
era uma forma de controle exercitada pelo governo português, fruto de sua “razão de Estado”.
Concordamos com esta visão, mas buscamos atribuir outro sentido ao episódio em destaque,
onde priorizamos analisa-lo a partir dos próprios negros que realizavam tais festejos.
Com isso, foi possível, invertermos a noção de que a permissão desses folguedos era
uma tentativa de controle. Sendo assim, nossa análise buscou compreender que, as expressões
culturais africanas e de seus descendentes, com força significativa sendo capaz de pressionar a
instância governamental em Pernambuco e conquistando espaço para as suas brincadeiras em
sentido religioso ou não.
A partir dos poucos indícios na documentação, foi possível compreendermos como estes
grupos (sudaneses e centro-africanos) estavam organizados na configuração de uma produção
cultural africana. Duas situações destacam-se nas fontes: primeira, que o batuque estaria ligado
aos angolanos; segunda, que o animismo era comumente realizado por negros Minas. Apesar
de um dado generalizante e sem mais evidências, possibilitou problematizarmos até onde havia
343
Ver introdução e capítulo I.
115
344
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 4740.
345
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº, 13644; ver também o capítulo II.
346
Designação dada a Padres que, no ato da confissão, assediavam o confitente.
347
Objeto mágico em forma de carta onde contém uma oração para forçar alguém a amar o portador do objeto.
Para mais informações, ver capitulo I.
116
do outro, estava Constantino de Parma, Prefeito da missão dos Capuchinhos, que empreendeu
uma “cruzada” em nome dos supostos valores de sua religião. O Governador e o Prefeito
protagonizaram vários casos em que ambos trocaram acusações e fizeram juízo de valor um do
outro. Teoricamente, Constantino obteve certo sucesso com suas denúncias, uma vez que a
Rainha d. Maria I proibiu os batuques, mas o que na prática não foi feito pelo Governador.
Isso nos revela como os poderes daquela época estavam em constantes conflitos por
conta dos diferentes modelos de concepção de mundo e de governo. Incluindo, até mesmo, algo
que se constatou comum que era as denúncias contra Governadores ao Santo Ofício. Três dos
quatro Governadores denunciados possuíam algum tipo de rixa com os religiosos, o que nos
leva a pensar que as denúncias contra eles estavam, também, ligadas a uma situação pessoal.
Significa dizer que, usar o Tribunal religioso que fazia parte da ofensiva contra supostos
heréticos, era uma maneira de tentar resolver disputas pessoais como foi o caso com José César
de Meneses.
No que diz respeito a religião, percebeu-se que para o período aqui analisado (século
XVIII) não há uma definição clara do modelo afro-religioso em Pernambuco. Como foi visto,
para algumas regiões como São Bento de Una sobressaiu-se um misto de práticas oriundas da
Costa da Mina e Angola. Em Recife essa divisão fica um pouco mais nítida, graças ao parecer
escrito pelo Conde de Povolide em que o mesmo fala que os negros Minas praticavam certo
tipo de animismo, mas outras fontes confirmaram que também havia a presença de outros
grupos étnicos.
Apesar das limitações impostas pela escassez das fontes, consideramos que o estudo
realizado possibilitou conhecermos com mais profundidade os meandros da administração
religiosa e civil, em Pernambuco, e como estas se relacionavam com os sujeitos escravizados e
livres durante o século XVIII, revelando aspectos pouco conhecidos da dinâmica do sistema
escravocrata na citada Capitania. Concluímos com mais perguntas do que respostas. Quais
motivos levaram as culturas e religiosidades proveniente de Angola e Costa da Mina a se unirem
em novos aspectos e praticados por outros sujeitos como pardos? Ou, mesmo com o grande
fluxo de escravizados destas duas regiões, o que explica a ausência de suas práticas nos
registros? Estas pessoas estavam em um processo de crioulização anterior a travessia do
Atlântico? O processo de trocas culturais ocorria mais rápido em Pernambuco?
117
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