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As Mulheres Do Cangaço

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

JULIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS

ANA PAULA SARAIVA DE FREITAS

A PRESENÇA FEMININA NO CANGAÇO: PRÁTICAS E

REPRESENTAÇÕES (1930-1940).

ASSIS
2005
ii

ANA PAULA SARAIVA DE FREITAS

A PRESENÇA FEMININA NO CANGAÇO: PRÁTICAS E

REPRESENTAÇÕES (1930-1940).

Dissertação apresentada a Faculdade de Ciências

e Letras de Assis – UNESP, para a obtenção do

título de Mestre em História (Área de

conhecimento: História e Sociedade)

Orientadora: Profª Dra. Zélia Lopes da Silva

ASSIS
2005
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F936p Freitas, Ana Paula Saraiva de


A presença feminina no cangaço : práticas e representações
(1930-1940) / Ana Paula Saraiva de Freitas . Assis, 2005.
242 f. : il.

Orientador : Zélia Lopes da Silva.


Dissertação(Mestrado)- Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho . Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2005.

Bibliografia : f.

1. Mulher no Cangaço. 2. Mulher no Cangaço - Década de


1930 a 1940. 3. Mulher Sertaneja. 4. Mulher no Cangaço - Vivências
interpessoais. 5. Mulher no Cangaço - Vestimentas. 6. Banditismo
Rural. 7 Mulher Cangaceira. I. Silva, Zélia Lopes da. II.
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Faculdade
de Ciências e Letras de Assis. III. Título.

CDU 396:301.17(091)
iii

ANA PAULA SARAIVA DE FREITAS

A PRESENÇA FEMININA NO CANGAÇO: PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES

(1930-1940)

Dissertação apresentada a Faculdade de Ciências

e Letras de Assis – UNESP, para a obtenção do

título de Mestre em História (Área de

conhecimento: História e Sociedade)

Orientadora: Profª Dra. Zélia Lopes da Silva

DATA DE APROVAÇÃO:

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________

Presidente: Profª Dra. Zélia Lopes da Silva – UNESP/ Assis

_______________________________________________________

Dra. Tania Regina de Luca - UNESP/Assis

_______________________________________________________

Dra. Janete Leiko Tanno – IESPP/Presidente Prudente

_______________________________________________________
iv

DADOS CURRICULARES

ANA PAULA SARAIVA DE FREITAS

DATA DE NASCIMENTO: 01/05/1978

FILIAÇÃO: Emilia Saraiva de Freitas

Mário Leonardo de Freitas

1999-2002 Curso de Graduação em História

Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Assis

2003-2005 Curso de Mestrado em História

Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Assis


v

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a Marcos Nardelli, pelo amor, pela

cumplicidade e paciência, sentimentos sem os quais eu não

teria conseguido chegar até o fim.

Com amor.
vi

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais Mário Leonardo de Freitas e Emília Saraiva de Freitas,

que sempre torceram por mim, as minhas irmãs Michele e Maria Carolina, as minhas

adoráveis avós, em especial a Maria Martins de Freitas.

Agradeço ao meu esposo Marcos Nardelli, por acreditar no meu trabalho e por

participar das mais diferentes etapas de minha vida, do cursinho à Pós-Graduação, disposto à

apoiar-me incondicionalmente, com amor e muita paciência. Sou grata por seus conselhos,

pelas palavras de incentivo e até mesmo pelas críticas.

Manifesto minha gratidão à professora e amiga Zélia Lopes da Silva, presente

nos diversos momentos de minha vida acadêmica e pessoal. Devo a ela a realização deste

trabalho e todos os méritos que ele possa ter. Sou grata por sua orientação ao longo de toda a

graduação, desde o projeto para Bolsa Bae até a Iniciação Científica/FAPESP, etapas

fundamentais de minha formação. Na Pós-Graduação lá está Zélia, me orientando, argüindo,

apontando as falhas e indicando caminhos. A ela minha admiração enquanto pessoa e

profissional, será sempre meu ponto de referência.

No difícil percurso da pesquisa e da elaboração desta dissertação contei também

com o apoio de amigos e instituições. Agradeço aos colegas e amigos da graduação e da pós-

graduação, que torceram por mim, em especial às amigas Barbara Fernandes Lopes, Sheila do

Nascimento Garcia e Eliane P. Fonseca. Sou grata ao casal de amigos Rogério e Adriana pela

amizade, pelo apoio e hospedagem em Recife/PE.


vii

Agradeço ao CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico pelo apoio financeiro, sem o qual seria impossível realizar as pesquisas nos

Arquivos e Instituições do Estado de Pernambuco.

Meus sinceros agradecimentos aos funcionários das diferentes Instituições

pesquisadas, que abriram as portas dos acervos, auxiliram a pesquisa, viabilizaram

materiais, e reproduziram documentos, enfim, colaboraram de alguma forma com esse

trabalho. No Estado de Pernambuco pesquisei os diversos acervos da FUNDAJ – Fundação

Joaquim Nabuco – Recife/PE (agradeço em especial aos funcionários da Iconografia e da

Biblioteca); Arquivo Público do Estado – Recife/PE, UFPE - Universidade Federal de

Pernambuco, (agradeço o apoio do Dr. Carlos Miranda, docente do Depto. de Graduação e

Pós-Graduação em História e à Carmem, da Biblioteca de Teses e Dissertações do Depto. de

História da UFPE, que viabilizaram o acesso aos acervos no período em que a Universidade

encontrava-se em greve), Museu do Cangaço em Triunfo-PE (recebi apoio da diretora Zilma,

e da Sra. Diana Rodrigues) e o Centro Cultural de Serra Talhada-PE. No Rio de Janeiro,

pesquisei os diferentes acervos da Biblioteca Nacional e da Academia Brasileira de

Literatura de Cordel (sou grata ao Sr. Gonçalo Ferreira da Silva, cordelista e presidente da

instituição). Em São Paulo, consultei os acervos do Arquivo do Estado, da Biblioteca Mário

de Andrade e do Centro Cultural de São Paulo (recebi apoio da bibliotecária Sebastiana Lopes

da Silva), aproveito para agradecer mais uma vez a todos os funcionários destas Instituições.

No interior de São Paulo, realizei grande parte da pesquisa no CEDAP - Centro de

Documentação e Apoio à Pesquisa, localizado no campus da UNESP de Assis. Nele pude

acompanhar os debates sobre o cangaço a partir da leitura dos periódicos O Estado de S.

Paulo e Correio da Manhã, microfilmados e disponibilizados aos pesquisadores pelo centro.

Agradeço a todos funcionários do Cedap pela dedicação e seriedade com que tratam a
viii

pesquisa e os pesquisadores, em especial à Marlene de Souza Gasque, Isabel Mano Neme e

Camila Matheus, sempre prontas à ajudar.

Aos professores da Banca de Qualificação Tania Regina de Luca e Janete Leiko

Tanno pelas leituras e contribuições no melhoramento deste trabalho.

Aos professores Yara Aun Khoury e José Carlos Barreiro, coordenadores do

projeto PROCAD/CAPES, realizado na UNESP/Assis em 2002, cujos estudos e discussões

sobre História Oral foram significativos para o encaminhamento de minha pesquisa

Agradeço também, a Sra. Ilda Ribeiro de Souza (Sila) pela entrevista concedida

em janeiro de 2001, no Centro Cultural de Rio Claro/SP, na qual narrou alguns momentos de

sua experiência no cangaço.

Sou grata à Marilene Lucena pela elaboração da ficha catalográfica e a Andrea

Monzón pela revisão do texto e elaboração do Abstract.

Por último, gostaria de agradecer à Sra. Vera Ferreira, por permitir a reprodução

e utilização das imagens de seus avós – Lampião e Maria Bonita – e por compreender a

importância desse material para a elaboração dessa dissertação.


ix

SUMÁRIO

LISTA DE FOTOGRAFIAS xi

LISTA DE QUADROS xii

LISTA DE MAPAS xii

LISTA DE APÊNDICES xii

RESUMO xiii

ABSTRACT xiv

INTRODUÇÃO 15

CAPÍTULO 1. O CANGAÇO NA PERCEPÇÃO DA IMPRENSA 53

1.1. O ESTADO DE S. PAULO 54

1.2. CORREIO DA MANHÃ 72

1.3. LITERATURA DE CORDEL 105

CAPÍTULO 2. PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES DO FEMININO 117

NO CANGACEIRISMO BRASILEIRO – 1930-1940


x

2.1. A INCORPORAÇÃO FEMININA NO CANGAÇO: ABORDAGENS 117

SOBRE O ASSUNTO

2.2. REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NA IMPRENSA 125

2.3. CANGACEIRAS: QUEM ERAM ESTAS MULHERES? 133

CAPÍTULO 3. CANGACEIROS E VOLANTES: O USO COMUM 190

DA VIOLÊNCIA COMO AFIRMAÇÃO DE PODER

CONSIDERAÇÕES FINAIS 218

APÊNDICE - A 222

APÊNDICE – B 225

BIBLIOGRAFIA 234

FONTES 240

ARQUIVOS PESQUISADOS 242


xi

LISTA DE FOTOGRAFIAS

Foto 1 – Maria Bonita em Vestido de batalha – 1936 145

Foto 2 - .Maria Bonita em Vestido Soiré – 1936 146

Foto 3 - .Maria Bonita com os cães - Guarani e Ligeiro 148

Foto 4 - .Maria Bonita e Lampião com os cães - Guarani e Ligeiro – 1936 149

Foto 5 - Neném, Maria Bonita e Lampião 150

Foto 6 - Dadá grávida 162

Foto 7 – Dadá e Corisco 163

Foto 8 - Sila nos primeiros dias do cangaço 171

Foto 9 – Sila e Dadá – 1988 171

Foto 10 - Sila – 2001 171

Foto 11 – Moça e Inacinha – 1936 181

Foto 12 – Neném –1936 185

Foto 13 – Neném, Luiz Pedro e Maria Bonita – 1936 186

Foto 14 – Cabeças dos cangaceiros mortos em Angicos-SE – 1938 209

Foto 15 – Cabeças dos cangaceiros Mariano, Pai Véio, Zepellim – 1936 211
xii

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Mulheres que integravam o cangaço 122

Quadro 2 – Cangaceiras presas no período de 1930-1940 205

Quadro 3 – Cangaceiras mortas no período de 1930-1940 212

LISTA DE MAPA

Mapa do percurso das cangaceiras na década de 30 124

LISTA DE APÊNDICES

APÊNDICE - A 222

Participação feminina no cangaço, matérias de O Estado de S. Paulo, 1930-1940.

APÊNDICE - B 225
Participação feminina no cangaço, matérias do Correio da Manhã, 1930-1940.
xiii

RESUMO

Esta dissertação tem por objetivo discutir as práticas e representações femininas

no interior do cangaço, no período de 1930/1940, década que inaugura a incorporação de

mulheres nos bandos. Considerando-se as formas de inserção (voluntária e involuntária),

procuramos compreender e discutir os papéis atribuídos as cangaceiras e sua condição

específica de “ser mulher” num espaço permeado pela violência. Neste sentido, será relevante

considerar o desempenho com armas de fogo e a atuação de cada uma delas nos embates

violentos em que estiveram envolvidas. E ainda, a preocupação com o embelezamento do

corpo, o apreço por jóias e apetrechos diversos, identificados sobretudo, na composição de

suas vestimentas que, traduzem um determinado perfil de mulher. Tomando por base este tipo

de problemática, uma das preocupações desta pesquisa é analisar as vivências interpessoais

no interior dos grupos a partir da bibliografia especializada, de obras de memorialistas que

trabalharam o tema, e de outras fontes como: depoimentos orais, entrevistas, documentários,

fotografias, imprensa e literatura de cordel.

Palavras chaves: Cangaço, Cangaceira, Mulher Cangaceira, Mulher Sertaneja, Banditismo

Rural.
xiv

ABSTRACT

This dissertation has the aim to discuss the women’s practices and representations

in the cangaço from 1930 to 1940, time that started their incorporation in the bands.

Considering the ways of joining them (volunteer or not), we searched the comprehension and

discussion of the roles given to the cangaceiras and their specific condition of “being a

woman” in a space characterized by the violence. In this sense, it will be relevant to consider

the performance with guns and the deeds of each of them in the violent fights in which they

were involved. Also, the worry about the beauty of the body, the liking for jewels and several

accessories identified, specially, in the combination of their clothing, which translates a

determined profile of woman. Basing ourselves on this kind of problem, one of the concerns

of this research is to analyze the interpersonal experiences inside the groups from specialized

bibliography of memoir authors that worked on the topic and other sources, such as: oral

testimonies, interviews, documentaries, photos, press and cordel literature.

Key words: cangaço, cangaceira, cangaceira woman, sertaneja woman, rural banditry.
15

Introdução

Discorrer sobre o cangaço não é uma tarefa fácil, pois se constitui num fenômeno

complexo que divide a opinião dos vários estudiosos que se debruçaram sobre o tema. Este

nos remete à algumas questões fundamentais de definição e significação que implicam na

compreensão de sua emergência.

Ao refletir sobre o cangaço imediatamente nos vem à mente três palavras:

Lampião, banditismo e Nordeste brasileiro. Ao indagar as pessoas sobre o tema em questão, a

resposta recorrente é a associação de cangaço à idéia de “banditismo nordestino”. Este se

caracteriza como um fenômeno regional, no qual os indivíduos organizados em grupos

praticavam uma série de crimes: roubos, assassinatos, violações, enfim, espalhavam o medo e

o terror entre os sertanejos e usavam a força para subjugar o outro.

Na etimologia da palavra, cangaceiro se configura em “bandido do sertão

nordestino, que anda sempre fortemente armado”, ou seja, um “bandoleiro”1. O termo

cangaço caracteriza o “gênero de vida dos cangaceiros”, ou seja, destes indivíduos que

vivem da prática do crime. Esta denominação o caracteriza como um fenômeno regional,

específico dos sertões nordestinos e compõem a percepção do senso comum em relação ao

tema.

Esta definição também é debatida pela socióloga Maria Isaura Pereira de

Queiroz2, que ao problematizar o cangaço enfatiza que ele é perfeitamente delimitado no

tempo (de fins do século XIX a 1940) e no espaço (interior do sertão nordestino). Deixa claro

que esta delimitação cabe ao “cangaço independente” existente apenas no Nordeste brasileiro.

1
Conforme definição do Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira - Básico da Língua Portuguesa/Folha
de S. Paulo, São Paulo: 1995, p. 123.
2
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiros, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977 e História do
Cangaço. São Paulo: Global, 1986.
16

Maria Isaura P. de Queiroz em sua obra História do Cangaço3, discute a

diferença existente entre o cangaço subordinado e o cangaço independente. No primeiro caso,

os cangaceiros eram sustentados por chefes políticos ou grandes fazendeiros, que em troca da

proteção oferecida por aqueles homens, pagavam e forneciam-lhes domicílio. De acordo com

Queiroz, este tipo de banditismo existiu em todo o país, e ainda existe na atualidade. No

segundo caso, o grupo era formado por homens armados, liderados por um chefe que se

mantinha errante, isto é, sem domicílio fixo, vivendo de assaltos e saques. Não se ligavam

efetivamente a um chefe político ou fazendeiro.

Na concepção da socióloga, o termo “cangaço” é antigo, e foi empregado no

século XIX para definir indivíduos que “andavam debaixo do cangaço” . Designava,

particularmente, os que ostensivamente se apresentavam muito armados “de chapéu de

couro, clavinotes, cartucheiras de pele de onça-pintada, longas facas enterçadas batendo nas

coxas”, conforme descreveu o escritor cearense Gustavo Barroso.4

Os termos cangaço e cangaceiro eram empregados para definir os homens que

viviam fortemente armados na região das caatingas áridas, que formavam o chamado

“polígono das secas”, no interior de sete Estados brasileiros. Talvez isto explique a

3
A socióloga Maria Isaura P. de Queiroz salienta que há indícios da existência do cangaço independente no
século XVIII, cujo principal expoente, teria sido o cangaceiro Cabeleira, imortalizado pela literatura no romance
de Franklin Távora em 1876. No século XIX destaca-se João Calangro, de acordo com ela, a emergência desses
bandos estava diretamente associada aos períodos críticos de seca, e se dissolviam quando a situação se
normalizava. QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os Cangaceiros. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, p. 59-66.
Em fins do século XIX cresce a prática do cangaço independente, cuja emergência não se vincula aos ciclos das
secas, mas a vingança da honra. O cangaceiro Jesuíno Brilhante (Jesuíno Alves de Melo Calado) é um exemplo
claro deste tipo de cangaço. Representa o típico bandido social, ou seja o “ladrão nobre” ou “Robin Hood” –
conforme definição de Eric Hobsbawm. Outro cangaceiro deste período foi Antônio Silvino (Manoel Baptista
de Moraes) que também ingressou no cangaço com o intuito de vingar uma afronta sofrida, ou seja, o
assassinato de seu pai por inimigos políticos. Este cangaceiro também se enquadra na definição de bandido
social. Foi preso em 1914, condenado a 32 anos de reclusão na Penitenciária de Recife, local em que cumpriu
mais de 20 anos da pena em função do indulto recebido do presidente Getúlio Vargas em 1937. Silvino faleceu
em 1944, aos 69 anos de idade. Sobre esse assunto consultar FERREIRA, Vera. De Virgolino a Lampião. São
Paulo: Idéia Visual, 1999, p. 41.
No início do século XX, destacam-se Sinhô Pereira (Sebastião Pereira da Silva) e Lampeão (Virgolino Ferreira
da Silva), ambos se incorporaram ao cangaço com o desejo de vingança. O primeiro pelo assassinato de seu
irmão, e o segundo pelo assassinato do pai. Vale destacar que esses cangaceiros inauguram uma nova fase do
cangaço, destacando-se, sobretudo, por suas ações violentas e pela disseminação do terror.
4
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. História do Cangaço. São Paulo: Global, 1986, p.15.
17

denominação aleatória de cangaceiro a todo e qualquer criminoso. É sabido, porém, que o

termo cangaço associado a “bandos independentes” foi largamente difundido.

O fenômeno do banditismo foi abordado, no meio acadêmico, a partir de duas

perspectivas, enquanto banditismo social, configurando-se numa forma de revolta contra a

opressão imposta pela elites locais, e como profissionalização do crime, traduzindo-se num

meio de vida. Tais interpretações despertaram amplos debates entre historiadores, sociólogos,

antropólogos, literatos e outros intelectuais ligados às ciências humanas. Cabe ressaltar que

este tema também foi amplamente discutido fora do circuito acadêmico, sobretudo por

memorialistas.

No campo acadêmico destacamos os trabalhos do historiador Eric J. Hobsbawm5,

um dos pioneiros a estudar esta temática sob a perspectiva da História Social, da socióloga

Maria Isaura P. de Queiroz6, da historiadora Maria Christina Matta Machado7, da antropóloga

Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros8, entre outros. Nessas abordagens, a emergência do

cangaço está intimamente relacionada ao “meio social” sertanejo, ou seja, resulta da

“injustiças sociais”.

Dissemos anteriormente que as percepções sobre o cangaço no meio acadêmico

dividem as opiniões dos estudioso entre: banditismo social e profissionalização do crime.

Dentro dessas linhas interpretativas existem algumas especificidades e peculiaridades de cada

acepção, conforme discutiremos a seguir.

Eric J. Hobsbawm em Rebeldes Primitivos9 e Bandidos10 qualifica esse fenômeno

e os sujeitos nele envolvidos de “banditismo social primitivo”, e atribui sua emergência as

5
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975 e Rebeldes Primitivos. 2ª ed., Rio Janeiro:
Zahar, 1978.
6
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiro. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977 e História do Cangaço.
São Paulo: Global, 1986.
7
MACHADO, Maria C. M. As táticas de guerra dos cangaceiros.2ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1978.
8
BARROS, Luitgard Oliveira C. A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de
Janeiro: Faperj/Mauad, 2000.
9
HOBSBAWM, E. J. Rebeldes Primitivos. 2ª edição. Rio Janeiro: Zahar, 1978.
10
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975.
18

transformações culturais e socio-econômicas ocorridas no campo com o advento da economia

moderna11.

Ao abordar a problemática do banditismo social a partir da perspectiva da História

Social, Hobsbawm, amplia os debates sobre este fenômeno. Em suas análises concebe o

banditismo como um fenômeno universal12 que ocorreu em experiências histórias diversas.

Trata o tema a partir de um viés macro histórico, e procura discutir os elementos comuns que

caracterizam este tipo de comportamento humano nas mais diferentes regiões13 em que

ocorreu.

O historiador destaca, sobretudo, a invenção do mito do bandido social como uma

forma de reagir às transformações introduzidas na sociedade a partir do advento do

capitalismo e das transformações nas relações de convívio e nas formas de trabalho. Sua

abordagem, portanto, é ampla e generalizante. Cabe lembrar que seus interesses em discutir

esta temática voltam-se especificamente para as relações de trabalho no campo, ou seja, para

a reação da população rural frente às mudanças introduzidas pelo novo modo de produção.

Em seu entendimento, o banditismo social se configura num protesto camponês

voltado contra a opressão e a pobreza e, florescia quase invariavelmente em áreas remotas e

de difícil acesso14. Ressalta que ele tendia a aumentar nos períodos de pobreza e crise

11
Hobsbawm esclarece que:“O advento da economia moderna pode, e provavelmente o fará romper o
equilíbrio social da sociedade consangüínea, transformando alguns grupos de parentescos em famílias “ricas”
e outras em famílias “pobres”, ou rompendo o próprio grupo.” HOBSBAWM, E. J. Rebeldes Primitivos. Rio
Janeiro: Zahar, 1978, p 14.
12
O autor enfatiza que “O banditismo social (...) é um dos fenômenos sociais mais universais da História, e um
daqueles de mais impressionante uniformidade. Praticamente, todos os casos pertencem a dois ou três tipos
correlatos, e suas variações são relativamente superficiais”. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed.
Forense, 1975, p. 11.
13
O historiador salienta que a uniformidade que caracteriza o banditismo social decorre de situações
semelhantes vivenciadas nas mais diferentes sociedades camponesas, como na “ China, no Peru, na Sicília (...).
Geograficamente, o banditismo social se encontra em todas as Américas, na Europa, no mundo Islâmico, na
Ásia meridional e oriental, e até na Austrália”. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975,
p. 11-12.
14
Argumenta que “basta a construção de estradas modernas, que permitam viagens fáceis e rápidas, para
reduzir bastante o nível de banditismo. Favorecem-no a ineficiência administrativa e a burocracia”.
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 14
19

econômica, impulsionando “homens fisicamente aptos, a passar fome” a “tomar pelas armas

aquilo de que necessitam” 15.

O bandido social que descreve não desejava um mundo novo e perfeito, e sim um

mundo tradicional no qual os homens eram tratados com justiça16, inscrevendo-se numa

perspectiva que o aproximava de um reformista. Ou seja, aquele que aceitava a estrutura

geral de uma instituição ou disposição social, mas a considerava passível de melhoria. Nesse

sentido, o bandido social não poderá ser definido como um revolucionário. Argumenta que

“(...) o bandoleiro social só surge antes que os pobres tenham adquirido consciência política

ou meios mais eficazes de agitação social”17 assim, a ausência de um ideal político

caracteriza este tipo fenômeno como reformista. Salienta que apesar de ser “um protesto

modesto e não revolucionário”, revela que os “heróis-bandidos” (qualificação que atribui ao

bandido social) se comportaram como reparadores de injustiças mostrando, desta forma, que

o “ processo de opressão é reversível” 18.

Em suas interpretações, afirma que o bandido social era, em geral, membro de

uma sociedade rural, e por razões várias encarado como proscrito ou criminoso pelo Estado19.

Este qualificava qualquer pessoa que praticasse roubo, homicídio, que usasse qualquer forma

de violência individualmente ou em grupo como bandido, desde aquele que roubasse dinheiro

até aquele que fizesse parte da guerrilha organizada. O Estado, na visão de Hobsbawm,

manipulava esta noção vaga e ampla de bandido para marcar um grupo de pessoas como

inimigas da sociedade e perseguí-las implacavelmente. Ressalta que embora o bandido social

15
Para Hobsbawm este comportamento reflete a: “desagregação de toda uma sociedade, a ascensão de novas
classes e o surgimento de novas estruturas sociais, a resistência de uma comunidade inteira ou de povos à
destruição de suas maneiras de viver”. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 15-17.
16
Diz o autor:”Os bandidos corrigem os erros, desagravam as injustiças, e ao assim proceder aplicam um
critério mais geral de relações justas e eqüitativas entre os homens em geral, em particular entre ricos e os
pobres, os fortes e os fracos” HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 19
17
Idem
18
Op. cit , 1978, p. 32-33.
19
Referindo-se ao bandido social, afirma que “Ele se torna bandido porque pratica uma ação considerada
criminosa não pelas convenções locais, mas pelo Estado ou governantes locais” HOBSBAWM, E. J. Rebeldes
Primitivos. Rio Janeiro: Zahar, 1978, p. 24. Ressalta que, geralmente, “ a ‘carreira’ do bandido começa, quase
20

pudesse se enquadrar nesta categoria geral de inimigo do Estado tinha que distinguí-lo do

bandido comum, pois o diferencial entre ambos era o fato do primeiro receber apoio da

população, o que não acontecia com o segundo, que era entregue à polícia.20

Hobsbawm divide o banditismo social em três categorias: o Ladrão Nobre ou

Robin Hood (aquele que tirava dos ricos e dava aos pobres e era visto por esses como um

defensor do povo, reparador de injustiças, herói idealizado, um mito), os Haiduks

(combatente primitivo pela resistência ou a unidade de guerrilheiros) e o Vingador (aquele

que semeia o terror). Seguindo essa tipologia, a imagem do cangaceiro continha nessa

acepção, tanto os valores do ladrão nobre quanto as de um vingador (que ele chama de

“monstro público”)21, argumenta que num sentido mais amplo: “a imagem do cangaceiro

combina os dois tipos”22. Referindo-se à Lampeão destaca que apesar de espalhar o terror

pelo interior do Nordeste brasileiro era admirado por sua gente e se constituía num “herói

ambíguo”.

O historiador salienta que as necessidades e atividades dos bandidos sociais fazem

com que eles estabeleçam relações com o sistema econômico, social e político

convencional23. Enfatiza que movimentam a economia por meio da comercialização de

produtos necessários à manutenção do grupo, dentre eles destaca: a alimentação, a compra de

armas, munições e vestimentas. Ressalta a ambigüidade que reveste o bandido social:

sempre, com um incidente que em si não é grave, mas que o coloca fora da lei: uma acusação policial que visa
mais a ele, pessoalmente, do que à punição de um crime...”. Idem, p. 25.
20
Observou o autor, que “Quase todos os que enfrentam os opressores e o Estado são considerados como
vítimas, como heróis, ou ambas as coisas. Portanto, quando ele passa a ser perseguido é protegido
naturalmente pelos camponeses e pelo peso das convenções locais, (...)”. HOBSBAWM, E. J. Rebeldes
Primitivos. Rio Janeiro: Zahar, 1978, p.25
21
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 55.
22
Idem, p. 55
23
Hobsbawm afirma que: “(...) normalmente possuem muito mais dinheiro do que os camponeses locais, suas
despesas podem constituir elemento importante no setor moderno da economia local, sendo redistribuídas,
através de vendeiros, donos de pensões ou estalagens, às camadas médias comerciais da sociedade rural; e
essa distribuição é mais efetiva na medida em que os bandidos (...) gastam a maior parte de seus recursos na
região e são muito orgulhosos e pródigos para barganhar. ‘O comerciante vende suas mercadorias a Lampião
por três vezes o preço normal’, dizia-se em 1930”. Destaca o papel dos intermediários, que auxiliavam nas
transações comerciais dos bandidos. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 83
21

Ele é um marginal e um rebelde, um homem pobre que se recusa a aceitar os


papéis normais da pobreza, e que firma sua liberdade através dos únicos
recursos ao alcance dos pobres – a força, a bravura, a astúcia e a
determinação. Isto o aproxima dos pobres: ele é um deles também (...) Ao
mesmo tempo, porém, o bandido é inevitavelmente arrastado à trama da
riqueza e do poder, porque, ao contrário dos outros camponeses, ele adquire
a primeira e exerce o segundo. Ele é “um de nós”, constantemente envolvido
no processo de associar-se a “eles”.24

O banditismo, segundo o autor, extrapola a esfera econômica, pois, ao formar um

“núcleo de força armada”, configura-se numa força política, uma vez que emerge nas áreas

em que não há nenhum “mecanismo regular e eficiente para manutenção da ordem pública”.

Por segurança, é melhor manter um bom relacionamento com os bandidos, o que em seu

entendimento indica que “eles se acham integrados na sociedade estabelecida”25.

Assim, para que essa relação fluísse, inúmeros acordos ocorreram entre populares

e bandidos e entre estes e as autoridades. Ou seja, o estabelecimento de alianças entre

políticos e bandidos constituiu-se num fator fundamental para a sobrevivência destes últimos.

Hobsbawm identifica no coronelismo brasileiro estas prática e acrescenta que em função

delas os bandidos mais famosos dos sertões nordestinos “conseguem sobreviver por períodos

surpreendentemente longos. Lampião durou quase vinte anos”26, indicando que o cangaceiro

se constituía no próprio poder.

Ao longo de sua obra Hobsbawm discute os papéis sociais, o mito e o significado

do bandido social. Acrescenta que Robin Hood mesmo depois de extinto continua a exercer

forte influência no surgimento de novos “ladrões nobres”, o que sugere a força e a

permanência deste mito por várias gerações nos mais diferentes continentes. Nesse sentido, o

“mito do bandido” estende-se muito além do meio ambiente nativo, e sobrevive até a

24
A expressão “Ele é “um de nós”, constantemente envolvido no processo de associar-se a “eles”, traduz
claramente a relação ambígua que envolvia este tipo de bandido, pois, ao mesmo tempo que se identificava com
os populares, também desfrutava da “riqueza” e do “poder”, elementos representativos dos privilégios das elites
locais. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 86.
25
Idem, 1975, p. 87-88.
26
O historiador destaca: “(...) a estrutura da política rural nas condições que produz o banditismo exerce dois
efeitos. Por um lado, ela gera, protege e multiplica os bandidos; por outro, integra-os no sistema político. (...) é
provável que ambos os efeitos sejam mais fortes onde a máquina do Estado se encontra ausente ou é ineficiente,
22

moderna revolução industrial da cultura. O banditismo social em sua concepção se reveste de

“liberdade, heroísmo e o sonho de justiça”27.

Conclui afirmando que: “(...) quase nenhum dos grandes bandidos da História

sobrevive ao translado da sociedade agrária para a sociedade industrial, exceto quando são

praticamente contemporâneos dela, ou quando já foram previamente embalsamados naquele

meio resistente para a viagem no tempo – a literatura. Exemplifica com Lampião que apesar

de morto continua inspirando toda uma literatura a seu respeito, produzida inclusive nos

grandes centros urbanos do país, como São Paulo e Rio de Janeiro, regiões distantes dos

locais do fenômeno, mas que alimentam este tipo de literatura por meio das memórias dos

migrantes nordestinos.

O historiador Norberto O. Ferreras28 salienta que as fontes e o mito são centrais

na análise de Hobsbawm. Ao retomar os seus pressupostos, destaca alguns elementos que

caracterizam o bandido social: a aptidão para integrar este tipo de vida e o folclore. De

acordo com esta interpretação havia condições específicas para a aceitação do bandido social,

ou seja, não podia ser simplesmente um criminoso comum, tinha que possuir motivos

convincentes - como vingar uma ação sofrida - para justificar sua inserção no banditismo.

Além disso, seus laços familiares deveriam ser suficientemente fortes para protegê-lo nessa

nova atividade.

Ferreras destaca que Hobsbawm preocupa-se em analisar a invenção do mito do

bandido social engendrado com o advento do capitalismo e com as transformações nas

relações de trabalho. Salienta que a “criminalização - ou - não do banditismo está

relacionada à forma como o Estado se defrontou com a questão. Em algumas ocasiões, os

bandidos passaram a fazer parte de grupos legais, ou passaram a integrar as milícias do

ou onde os centros regionais de poder são instáveis, como ocorre (...) no sertão agreste”. HOBSBAWM, E. J.
Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 93.
27
Idem, p. 133
28
FERRERAS, Norberto O. Bandoleiros, cangaceiros e matreiros: revisão da historiografia sobre o Banditismo
Social na América Latina. História, São Paulo: Editora Unesp, 22 (2), 2003, p. 211-226.
23

Estado (...), ou sendo anistiados quando se combateram ao lado da lei, como foi oferecido a

Lampião para lutar contra a coluna Prestes”29.

A socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz30 discorda das acepções de Eric

Hobsbawm ao argumentar que o cangaço não se configura num “movimento social”

camponês de caráter pré-político, como defende o historiador. Para a socióloga, tal

denominação supõe a consciência dos problemas sócio-econômicos e políticos vivenciados no

interior de uma sociedade, o que não se aplicava aos cangaceiros.

A autora justifica que o cangaço foi uma resposta à miséria, associando a sua

emergência aos períodos de seca e seu desaparecimento com a chegada das chuvas que

normalizavam a então desorganizada sociedade sertaneja. No entanto, há evidências na

imprensa e na bibliografia especializada, que em tempos de chuvas os cangaceiros

continuavam sua vida errante. A seca não representava para estes um problema, pois estavam

acostumados a viver grandes períodos no Raso de Catarina, região árida e de difícil acesso do

sertão baiano, onde há poucos recursos para sobrevivência. Em nosso entendimento, a

justificativa da autora para a emergência do cangaço não condiz com o caráter dos bandos

independentes, e sim com os bandos de retirantes que se movimentavam de acordo com as

secas.

Em sua explanação, a socióloga deixa claro que a emergência do cangaço deve-se

essencialmente a fatores econômicos, embora, destaque a importância das condições sociais

e políticas. Para ela, os fatores estruturais e conjunturais, explicam o aparecimento dos bandos

de cangaceiros. No primeiro caso encontram-se: as relações de vizinhança e parentela no

interior da sociedade sertaneja, limitação profissional, a distribuição de cargos públicos a

pessoas não qualificadas (apadrinhamento). No segundo, o empobrecimento da população em

29
Idem, p. 211.
30
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiros, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977 e História do
Cangaço. São Paulo: Global, 1986.
24

função das crises do açúcar e do algodão e melhoria das condições sanitárias locais, geradora

de um crescimento populacional.

O sertão das primeiras décadas do século XX caracteriza-se por uma economia

baseada fundamentalmente na exploração extensiva da pecuária, numa agricultura de

subsistência e com um sistema de exploração de terras de grandes latifúndios. A “lei” no

sertão era dirigida pelos grandes latifundiários e políticos da região favorecendo aos mesmos.

A população sertaneja, além de sofrer com as constantes secas, estava espremida

entre as disputas dos chefes locais. A solução para muitos sertanejos era o ingresso no

cangaço ou nas fileiras policiais. A miséria do sertão e o descaso das autoridades públicas

criaram um terreno propício para o desenvolvimento do banditismo.

Corroborando esta perspectiva, o historiador Francisco Roberto P. Monteiro, em

dissertação intitulada O outro lado do cangaço: As forças volantes em Pernambuco 1922-

193831 acrescenta que o coronelismo associado ao descaso governamental foram ingredientes

que completaram a receita do cangaço. Salienta que:

[...] o Estado negou-se a exercer o que lhe cabia nos setores administrativo e
judicial, entregando-os aos donos do poder sertanejo. Estava completa a
receita para o Cangaço, manifestado pela inexistência do governo formal,
acrescido pela permanência dos interesses do governo latifundiário, violento
e dono de interesses mesquinhos.

Monteiro afirma que o “... cangaço provocou a quebra de poder do coronel do

Sertão”32, que segundo ele, reagiu de diversas maneiras ora aliando-se às forças legais do

Estado-Protetor, ora aos cangaceiros, com o intuito de garantir seus privilégios. Para ele, o

cangaço floresceu em função das circunstâncias sociais e geo-físicas, que aliados aos

problemas políticos da região criaram um terreno propício para o desenvolvimento do

cangaço.33

31
MONTEIRO, Francisco Roberto Pedrosa. O outro lado do cangaço: As forças volantes em Pernambuco 1922-
1938. Recife/PE: Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 2002, p. 10. Dissertação (Mestrado em História).
32
Idem, p.10
33
Diz o autor: “Foi atrelado a todas essas circunstâncias sociais e físicas que o cangaço floresceu com força,
inicialmente carregado de pouca destruição, para depois, com o passar dos anos, tornar-se forte e violento,
25

A questão do coronelismo foi abordada pela historiadora Maria de Lourdes M.

Janotti34. Ela enfatiza que as raízes deste fenômeno estavam sedimentadas no Império, e que

na República o coronel ampliou seu papel dentro da nova estrutura política. Chama atenção

para o período de 1940, momento em que este fenômeno começa a entrar em declínio em

função da urbanização e industrialização.

A historiadora critica o estereótipo veiculado pelos meios de comunicação, que

apresenta o coronel como um “fazendeiro rústico, autoritário, brutal, ignorante, dispondo

da vida dos demais habitantes do lugarejo em que reside”35. Em sua concepção, todo

estereótipo é restritivo e empobrecedor, entretanto, admite que carrega um conteúdo de

verdade. Traduz o coronelismo como uma política de compromissos, na qual Estado e a

oligarquia agrícola-mercantil mantém uma mútua aliança para assegurar seus interesses. O

raio de ação do coronel é local (municipal) e a do Estado é nacional. O primeiro se

responsabiliza pela vitória dos candidatos do Governo. Esse, garante total poder ao coronel

ao fechar os olhos para seus mandos e desmandos.

Ressalta que na República, o coronelismo recebe uma roupagem estadualista

dirigida pela burguesia rural e financeira, assentada no mandonismo local. Adverte ainda, que

“O coronel nem sempre era um grande fazendeiro. Mas, um chefe político, de reconhecido

poder econômico, que conseguiria prestígio junto ao governo estadual, na razão direta de

sua competência em garantir eleições situacionistas”36.

A autora caracteriza o coronel como um tipo social, que tinha sua autoridade

reconhecida pela comunidade em função seu papel “protetor”. Aquela, abandonada pelos

poderes públicos no que diz respeito “à saúde, à justiça, e a instrução”, via o coronel como

envolvendo, em seu redemoinho de morte, a desgraça de famílias inteiras, entre elas a de Virgulino Ferreira.”
Ibidem, p.53.
34
JANOTTI, Maria de Lourdes M. O coronelismo uma política de compromissos. 3ª edição, São Paulo:
Brasiliense, 1984.
35
Idem, p.8
36
Ibidem, p. 41.
26

“protetor natural”37. Lembra algumas funções exercidas por ele: “Comumente o Coronel era

procurado para resolver questões referentes a limites de propriedades, a heranças, a

pagamentos atrasados, à venda de animais, a casamentos complicados, à educação das

crianças, e tantas outras que lhe aparecessem.”38

A prática da violência pelo coronel é recuperada pela historiadora ao enfatizar

que:

(...) ele possuía uma polícia própria, denominados seus membros, segundo a
região, de capangas, jagunços, “gente do Coronel”, camaradas ou cabras (...)
aos desejos do mandatário aplicavam penas diversas: a expulsão das terras
da fazenda, destruição de bens, espancamentos e até a morte.39

No trecho acima fica explícito que o coronel poderia representar o bem ou o mal,

dependendo das circunstâncias e de seus interesses. O bem se traduzia em sua função

“protetora”, enquanto o mal na violência que praticava contra a comunidade. Salienta, ainda,

que o homem comum não tinha muita saída. Quando possível ligava-se a outro coronel, ou

então, ingressava no cangaço ou no misticismo religioso.

O tema do banditismo sertanejo no Nordeste do Brasil, conforme assinalamos

anteriormente, também despertou interesse em pesquisadores de outras áreas das ciências

humanas. O advogado Frederico Pernambucano de Mello40 se especializou no tema e

publicou alguns artigos e dois livros sobre o assunto. Em Guerreiros do Sol. Violência e

37
Idem, p. 57.
38
Op. Cit, 1984, p. 59.
39
Ibidem, p.60-61.
40
Frederico Pernambucano de Mello, nasceu no Recife em 2 de setembro de 1947. Formou-se em Direito na
Universidade Federal de Pernambuco, e tem especialização em Administração de Assuntos Culturais (Política e
Gerência) pela Organização dos Estados Americanos/Universidade de Brasília/Centro Nacional de Referência
Cultural. Foi Superintendente do Instituto de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco. Membro e ex-
participante da União Brasileira de Escritores – Seção de Pernambuco, é sócio efetivo do Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico Pernambucano e sócio correspondente dos Institutos de Geografia e História Militar do
Brasil, no Rio de Janeiro, Histórico e Geográfico de Alagoas e do Rio Grande do Norte, além de membro do
Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco. Na Academia Pernambucana de Letras é titular da cadeira nº 36.
Estudioso do cangaço publicou diversos trabalhos sobre o assunto, entre eles destacamos os seguintes artigos:
Aspectos do Banditismo Rural Nordestino. Ciência &Trópico, Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas
Sociais, nº 1, v. 2, jan/jun/1974, p. 4-47, O Ciclo do Gado no Nordeste do Brasil: Uma Cultura da Violência?
Ciência & Trópico, Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, nº 2 , v. 7, 1979, Rota Batida.
Recife: Edições Pirata, 1983, p. 23-45 e os livros Guerreiros do Sol. Violência e banditismo no Nordeste do
27

banditismo no Nordeste do Brasil, publicado em 1985 e reeditado em 2004, tece uma longa

análise sobre as condições climáticas, sócio-econômicas e políticas da região sertaneja

infestada pelo banditismo. Além desses elementos, também considera as questões culturais.

Mello divide o cangaço em três categorias: “Cangaço-Vingança, Cangaço-

Refúgio e Cangaço-meio-de- vida.”41 No primeiro caso, o que motiva o sertanejo é o desejo

de vingar uma ofensa sofrida (estupros, espancamentos ou assassinatos de pessoas da família;

enfim, qualquer ação que resulte na necessidade de vingar a honra e fazer justiça), este parece

ter sido o caso de parcela significativa de cangaceiros. A segunda tipologia Cangaço-Refúgio

refere-se ao caso de homens que buscavam neste meio de vida uma proteção, pois eram

criminosos que tinham suas ações descobertas pela polícia, vingadores fugitivos. Enfim,

homens que tinham alguma pendência com a justiça ou com famílias poderosas. No último

caso, o cangaço se configura num meio de vida, ou seja, numa profissão geradora de

considerável lucro.

De acordo com sua tipologia Mello, salienta que o “cangaço-meio de vida” se

configurou numa “modalidade profissional”42, tendo Lampião e Antonio Silvino como

maiores expoentes. Em seu livro, Quem foi Lampião, discute algumas peculiaridades da

indumentária do cangaceiro e atribui as causas do cangaço às “(..) Administrações ineficazes,

corrompidas ou viciadas politicamente (...) o fenômeno acha-se ligado a fatores naturais e

sócio-culturais (...) exacerbadas pelo mandonismo aldeão e seu maior aliado, a guerra ou a

vingança privada...”43.

Esclarece que para se compreender o fenômeno do banditismo no Nordeste, é

necessário considerar a existência de áreas geográfica e culturalmente opostas. Ou seja: “ a

Brasil, publicado em 1985 em Recife pela editora Massangana, reeditado no corrente ano pela editora Girafa,
e Quem foi Lampeão. Recife/Zürich: Editora Stahli, 1993.
41
MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol. Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São
Paulo: A Girafa Editora, 2004, p. 89
42
Idem.
43
MELLO, Frederico P. de. Quem foi Lampeão. Recife/Zürich: Editora Stahli, 1993, p. 55
28

de trópico úmido, expressa na exuberância da chamada mata atlântica”, cujo solo é fértil e

as chuvas são abundantes, e a do “trópico semi-árido, com temperaturas tórridas, vegetação

arbustiva e espinhosa – a chamada caatinga...”44, marcada pela escassez de chuvas e pela

pobreza do solo. Enfatiza que “(...) São dois mundos, afinal. Duas culturas. Dois homens.

Duas Sociedades”45

No entendimento de Mello, os fatores políticos, econômicos e sociais não são

suficientes para explicar o surgimento do cangaço. Destaca que os valores culturais são de

fundamental importância para compreendermos este fenômeno, pois revelam um modo

singular da vivência do sertanejo, com seus valores e comportamentos, moldados de acordo

com as adversidades de seu espaço. O autor realça dois traços que particularizam o sertão: “a

indiferença em face da morte e o da insensibilidade no trato com o sangue”46. Cabe indagar

que dimensões assumiram na educação e no comportamento das sertanejas, e se influenciaram

direta ou indiretamente na participação de algumas delas nos grupos. Discutiremos essas

questões no próximo capítulo.

O historiador Francisco Roberto Monteiro47, ao analisar o fenômeno do cangaço,

recupera a tese do advogado Frederico P. de Mello e ressalta que:

(...) Enquanto, no Cangaço-Vingança, o bandido quase se limitava a vingar-


se do opositor para logo retornar ao lar ou tomar outro destino era fácil ao
cangaceiro participante do Cangaço-Refúgio, transformar-se em profissional
do cangaço, praticando, então, o Cangaço-meio-de-vida. Era uma profissão
escolhida (...). A vida aparentemente solta (...) também fascinava o jovem da
época (...). Era uma maneira de atrair os olhares das moças da região.48

44
Op. cit, 1993, p. 56.
45
Ibidem, p. 58
46
Op cit, 1993, p. 57
47
Em sua dissertação de mestrado, o historiador Francisco Roberto P. Monteiro recupera a tipologia de cangaço
definida pelo advogado MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: O banditismo no Nordeste do
Brasil. Recife: Massangana, 1985, p. 38. Ver MONTEIRO, Francisco Roberto Pedrosa. O outro lado do
cangaço: As forças volantes em Pernambuco 1922-1938. Recife/PE: Universidade Federal de Pernambuco,
UFPE, 2002. Dissertação (Mestrado em História)
48
MONTEIRO, Francisco Roberto Pedrosa. O outro lado do cangaço: As forças volantes em Pernambuco 1922-
1938. Recife/PE: Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 2002, p.61-62. Dissertação (Mestrado em
História).
29

O trecho acima é elucidativo ao sugerir que a sensação de liberdade, o fascínio

pelo perigo e a admiração pelo cabra macho foram elementos que atraíam os olhares

femininos para o cangaço, o que sinaliza para a incorporação de algumas mulheres neste

meio de vida, conforme veremos no capítulo 2.

Francisco Monteiro, baseado na tese de Melo, salienta que dentre estas três

classificações, o Cangaço-meio-de-vida foi o que angariou maior número de voluntários, o

que se justifica, em sua opinião, pela longa permanência de Lampião no banditismo.

A historiadora Zélia Lopes da Silva49 recupera o posicionamento assumido na

Constituinte, pelo deputado Edgar Teixeira Leite, que qualificava o fenômeno do cangaço

como “crime organizado nas zonas rurais”, que deveria ser punido como tal. Apesar disso,

o deputado admitia que a causa de tal fenômeno decorria do “abandono, da miséria e da

falta de instrução do homem do campo, entregue à sua própria sorte”.

A antropóloga Luitgarde Barros50 discorda dos estudiosos que qualificam o

cangaço de banditismo social, e argumenta que Lampião escondia-se atrás da morte dos pais

usando-as como um “escudo ético” 51. Em sua análise, esse “escudo ético” ocultava o desejo

de enriquecimento fácil e de poder, sinalizando que se constituíam em criminosos ambiciosos

e perigosos, e não em vítimas das adversidades sertanejas. Ou seja, não passavam de

profissionais do crime.

É significativo destacar que a partir do momento em que o governo federal se

posiciona em relação ao cangaço - aparelhando as volantes com armamentos, liberando

verbas para a contratação de homens para integrar o corpo das Forças de Combate ao

Cangaço, enfim, fornecendo todo aparato burocrático e financeiro necessário à intensificação

49
SILVA, Zélia Lopes da. A República dos anos 30. A sedução do Moderno. Novos Atores em Cena: Industriais
e Trabalhadores na Constituinte de 1933-1934. Londrina: UEL, 1999, p. 112-115.
50
BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro:
Mauad/Faperj, 2000, p.210.
51
Termo definido pelo advogado Frederico Pernambucano de Mello, e incorporado pela autora em sua obra.
BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro:
Mauad/Faperj, 2000, p.128 e 210.
30

das perseguições aos cangaceiros - os grupos começam a ser eliminados, o que evidencia que

o uso da força foi a solução encontrada pelo governo para sua eliminação. Veremos no

capítulo 1 que essa concepção não era compartilhada pelos diversos articulistas, que

escreveram sobre o cangaço nos jornais O Estado de S. Paulo e Correio da Manhã,

notadamente as matérias e os debates travados pelos articulistas e colaboradores do periódico

carioca, que em sua maioria defendia a educação e o trabalho como caminhos possíveis para

a construção de uma sociedade mais igualitária.

Com base nos debates explicitados ao longo deste texto cabe indagar: Quais os

requisitos necessários para se tornar um cangaceiro? A maioria dos homens que se alistava

nas fileiras do cangaço era procedente da caatinga, de povoados sertanejos e até mesmo das

cidades interioranas. Os motivos arrolados para seu ingresso no cangaço foram os mais

variados. Os aventureiros buscavam o fascínio de uma vida fácil e errante. Os sedentos de

justiça buscavam fazê-la com as próprias mãos (defender a honra da família, da mãe, da

esposa, irmãos e outros parentes); havia os que queriam proteção porque estavam fugindo da

ação da justiça; outros que fugiam da miséria e viam no cangaço a possibilidade de

“ascensão” econômica. Enfim, eram inúmeros os motivos que impulsionavam os sertanejos a

viver a ilegalidade. O historiador Eric. J. Hobsbawm destaca que o bandido típico era jovem

e solteiro52, uma vez que a incorporação de homens casados era mais difícil em função dos

compromissos familiares. Entretanto, deixa claro que esse grupo também podia incorporar-se

aos bandos.

Outra possibilidade de emprego para o sertanejo era o ingresso nas fileiras

policiais, para a perseguição aos cangaceiros, o que significava para muitos homens a

possibilidade de “melhoria” em suas condições de vida53. Ao ingressarem na polícia

52
O historiador salienta que “(...) a juventude é uma fase de independência e de rebelião em potencial...”.
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 27.
53
Sobre este assunto consultar: QUEIROZ, Maria Isaura P. de. História do cangaço. São Paulo: Global, 1986, p-
35-39 e 54, LINS, D. Lampião - O homem que amava as mulheres. São Paulo:Annablume,1977, p.107. e
NASCIMENTO, J.N. Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998, p. 32.
31

receberiam um salário, e teriam a chance de ficar com os pertences dos cangaceiros mortos

em combate. Estes últimos eram conhecidos por carregarem dinheiro e jóias em seus bornais.

Além disso, era a chance de vingarem alguma ofensa sofrida por parte dos cangaceiros e,

ainda, adquirir um novo status social a partir da promoção no meio policial. No decorrer de

nossa pesquisa notamos que as práticas de violência cometida por policiais não se

diferenciavam daquelas cometidas pelos cangaceiros e que ambos alimentavam um

sentimento de vingança e ambição.

Diante de tal quadro, cabe indagar: Quais as diferenças de atuação dos

cangaceiros e das volantes policiais? Como estas últimas se comportavam no enfrentamento

desta nova realidade? As informações enfatizam o seu despreparo para lidar com os bandos.

Era formada por sertanejos comuns e sem instrução, através de recrutamento irregular. O

despreparo e a falta de cooperação entre as autoridades dos diversos Estados nordestinos

flagelados pelo cangaço, são elementos que sinalizam a fragilidade desta polícia frente ao

banditismo que a cercava. Para minorar esta situação, em janeiro de 1925 foi firmado o

convênio entre os Estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Alagoas, retirando os entraves

fronteiriços que impediam as polícias dos respectivos Estados capturar os cangaceiros. Esta

medida possibilitou a união das forças nordestinas visando por fim ao banditismo.

Essas análises demonstraram que o “banditismo social” era um fenômeno mais

geral que ocorreu em experiências históricas diversas, embora tivessem algumas

características em comum. O banditismo no Nordeste do Brasil teve algumas

peculiaridades, e uma delas foi a incorporação de mulheres aos bandos, ao longo da década

de 1930, a partir da entrada de Maria Bonita em suas fileiras, sob o beneplácito de

Lampião.

De acordo com as informações coletadas nas diversas fontes pesquisadas,

Lampião teria ingressado no bando de Sinhô Pereira em 1918, com o intuito de vingar a

morte do pai, covardemente assassinado por policiais. Em 1922 teria recebido o comando
32

do bando sob a promessa de eliminar os dois últimos inimigos de seu chefe, que cansado desta

vida marginal teria se mudado para Minas Gerais com o intuito de se reintegrar a sociedade.

Há um consenso entre os estudiosos do cangaço sobre o comportamento de

Lampião, que teria se destacado pelo uso excessivo da violência54. Apesar disso, vigorava no

interior do bando um código moral que proibia terminantemente o uso desta em famílias de

coiteiros e amigos. Os cangaceiros que desobedeciam estas normas foram severamente

punidos, como evidenciam os casos de Sabiá e Mourão, mortos por violentarem a filha e

esposa de um coiteiro55. Este código estabelecia a sentença de morte a todo tipo de traidor.

Seu bando angariava cada vez mais homens, alguns sedentos de justiça, outros

atraídos pela possibilidade de enriquecimento fácil. Com o aumento do bando e das

perseguições policiais, Lampião subdividiu o bando, e conferiu o comando de subgrupos aos

homens que julgava aptos para esta tarefa: Corisco, Virgínio, Zé-Sereno, entre outros.

Além dos homens, também houve a incorporação feminina aos bandos, o que foi

uma das peculiaridades do ciclo Lampião. Diante desta nova realidade, algumas questões

parecem pertinentes: Como e por que elas se integraram às fileiras do banditismo? Como

foram tratadas? Quem eram estas mulheres e que papéis ocuparam no interior dos bandos?

Quais as mudanças introduzidas nas relações de convívio dos grupos? Enfim, como foi o

universo feminino no cangaço?

As mulheres num âmbito geral, sempre ficaram à margem na historiografia,

principalmente as que viveram na ilegalidade, como é o caso das cangaceiras. Os estudos

sobre a mulher, geralmente recuperam os feitos das mulheres da elite que ganharam

destaque nas mais diferentes sociedades por suas ações militantes e reivindicadoras como as

54
Sobre este assunto consultar a historiografia: HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense/Unb,
1975, QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiros, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, História do
cangaço. São Paulo: Global, 1986 e BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos
guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2000. E as obras memorialísticas NASCIMENTO, J.N.
Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998, p-21 e ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e
o cangaço. São Paulo: Traço, 1985. p .70
33

feministas, que lutaram durante décadas para adquirir direitos como: educação,

profissionalização e o exercício pleno da cidadania. Ganharam evidência ainda, as mulheres

de projeção social reconhecidas por seus talentos na arte, na literatura, na pintura, na música e

pelo grau de instrução (escritoras, professoras, médicas e biólogas).

As mulheres dos estratos populares, ao contrário, foram sempre associadas à

marginalidade e à prostituição. A negra sofreu duplo preconceito: o de ser mulher e negra. É

significativo destacar que as cangaceiras nem sempre vieram dos estratos populares da

sociedade sertaneja; algumas pertenceram a famílias que possuíam relativas condições

financeiras.

No interior dos grupos de cangaceiros destacam-se práticas que sinalizam para um

certo controle e normalização do comportamento das mulheres conforme destacaremos ao

longo do texto, sobretudo no capítulo 2, que intitulamos: Práticas e representações do

feminino no cangaceirismo brasileiro - 1930-1940. Ao longo desta pesquisa, recuperamos a

presença feminina no interior dos bandos de cangaceiros, e destacamos sua participação nas

mais variadas situações. Enfatizamos sua contribuição na construção do fenômeno que

marcou a sociedade brasileira, sobretudo a região sertaneja compreendida pelo agreste

nordestino, que castigado pelas secas e entregue a sua própria sorte, procurou construir

formas de sobrevivência naquele meio hostil.

A preocupação desta dissertação é refletir sobre as diversas representações

construídas sobre as mulheres que passaram a integrar os bandos de cangaceiros. Visa discutir

as possíveis transformações introduzidas nas relações que se estabeleceram no interior dos

grupos, decorrentes dessa presença no período que corresponde aos anos de 1930 à 1940.

Neste sentido, o desafio proposto é investigar as formas de inserção feminina

(voluntária e involuntária), as mudanças provocadas por esta presença no cotidiano dos

55
ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985. p.71-72 e LINS, D.
Lampião - O homem que amava as mulheres. São Paulo: Annablume, 1977, p.94.
34

grupos, e o seu papel nos enfrentamentos violentos em que estiveram envolvidas. Nesse

processo deve-se considerar que as relações entre o homem e a mulher, embora sinalizassem

para mudanças em curso, estavam marcadas por definições de papéis rígidos nos quais aquela

era subordinada ao homem, cabendo analisar se tal situação também se evidenciava no

interior do cangaço.

A reflexão sobre a presença feminina no cangaço na década de 30 nos remete a

algumas questões que envolvem a sociedade brasileira como um todo, pois neste período ela

passava por mudanças profundas em sua estrutura, política, econômica e social. No âmbito

político, o país começava a viver uma nova fase, deixando para trás a velha oligarquia

política. Subia ao poder, em função de um golpe bem articulado, Getúlio Vargas, que

permanecerá até 1945, período que abrange o nosso objeto de pesquisa, pois o cangaço finda

com a morte de Corisco em 1940. Após a morte de Lampião em 28 de julho de 1938, o

governo desenvolveu uma intensa campanha para que os cangaceiros e cangaceiras

remanescentes se entregassem à polícia sob garantia de anistia, o que ocorreu em muitos

casos. Desde o início de seu conturbado governo, Getúlio Vargas sabia da existência do

cangaceirismo no Nordeste do país; entretanto, seus interesses naquele momento eram outros.

Somente em meados de 1936, posiciona-se com o intuito de por fim ao banditismo.

No âmbito social, o governo elaborou e aprovou algumas reformas que

beneficiaram os trabalhadores urbanos, criando várias leis e também os sindicatos. Aprovou

algumas medidas que conferiram a participação feminina na política por meio do sufrágio

universal, e na esfera pública, através da regulamentação do trabalho das mulheres.

Entretanto, as historiadoras Marina Maluf e Maria Lúcia Mott56 argumentam que tais

medidas não atingiram de fato as mulheres, pois, o Código Civil Brasileiro de 1916 as

circunscrevia exclusivamente ao lar e aos afazeres domésticos, evidenciando uma nítida

56
MALUF, M. e MOTT, M. L. Recônditos do mundo feminino. In: História da Vida Privada no Brasil.
NOVAIS, F. A e SEVCENKO, N. (org.). São Paulo: Cia das Letras, v. III, 1998.
35

divisão de papéis entre os sexos, na qual foram atribuídas ao homem, a esfera pública e à

mulher, a doméstica.

Com base na análise do referido Código, as historiadores constatam o excessivo

controle do homem sobre a mulher. Esta, destituída de direitos políticos e civis, não podia

vender seus bens ou os do marido ou contrair empréstimos, mesmo que estes fossem para a

aquisição de coisas necessárias à economia doméstica. Para desempenhar o trabalho

remunerado, as mulheres casadas (da elite e dos estratos médios) deveriam obter a

autorização do cônjuge devidamente reconhecida em cartório, podendo ser revogada a

qualquer momento. Além disso, poderiam exercer apenas as profissões consideradas extensão

das atribuições femininas, ou seja, professoras, datilógrafas, enfermeiras, entre outras57. Essas

prescrições, embora em vigor, não atingiam as mulheres dos estratos populares sempre

presentes no mercado de trabalho e habituadas a executar as atividades menos qualificadas

para garantir a sobrevivência de sua prole. A profissão de lavadeira representa um nítido

exemplo dessas atividades. A mulher do estrato popular desconhecia a separação entre o

público e o privado, o local de trabalho se confundia com o da moradia.58

Em nossa análise percebemos que o ingresso das mulheres no cangaço coincide

com a luta pela emancipação feminina em âmbito mais geral, como a aquisição de direitos de

cidadania que são conquistados na Carta Magna, em julho de 1934, após longos anos de lutas

travadas pelas feministas, originárias das elites, forjando um novo perfil de relação

homem/mulher e um novo tipo de família, apesar da existência do Código Civil que

subordinava esta mulher ao homem.

Esta nova sociedade, que se desenhava à existência do Código Civil Brasileiro de

1916, não intimidou algumas mulheres da elite brasileira, que insatisfeitas com a esfera

doméstica que lhes foi atribuída, reivindicaram igualdade de direitos tanto na esfera pública

57
Idem, p. 402.
58
Op cit, 1998, p. 409-410.
36

quanto na profissional. Essa nova mulher desejava uma certa independência em relação ao

homem, ao casamento e exigia o direito de participar ativamente na vida pública, como cidadã

brasileira.59 A luta por esses direitos aglutinou-se em torno do movimento sufragista, que

envolveu mulheres das mais variadas regiões do país, inclusive do Nordeste.

Neste sentido, as lutas pelos direitos como: educação, profissionalização (trabalho

externo ao ambiente do lar) e, sobretudo, o exercício pleno da cidadania por meio do sufrágio

universal, tornaram-se possibilidades reais para libertarem-se dos estigmas de “rainhas do lar”

e do tripé “mãe-esposa –dona de casa”. De acordo com Maluf e Mott, tal representação “(...)

acabava por encobrir o ser mulher – e sua relação com as obrigações passou a ser medida e

avaliada pelas prescrições do dever ser”.60 Portanto, a mulher era direcionada pelo “dever

ser” e seu comportamento já estava devidamente definido pela sociedade. Cabia apenas,

encaixar-se nele independentemente de suas aspirações.

Considerando essas informações, cabe indagar se as mudanças processadas ao

longo da década de 30 pelo Estado repercutiram direta ou indiretamente sobre a família, e

como isso se deu no Nordeste do país, sobretudo na sociedade sertaneja. Qual a concepção

sertaneja de família? O cangaço a reproduziu ou reelaborou uma própria? Como as

cangaceiras pensavam a família e o papel da mulher na sociedade?

Parece-me que a estrutura familiar da elite rural sertaneja mantinha uma

hierarquia bem definida de papéis, na qual à mulher cabia o espaço privado, e ao homem o

público, diferentemente do que ocorria com o estrato popular, que para garantir a

sobrevivência tinha que contar com o trabalho de todos os membros da família. Bem, diante

de tudo que expusemos, cabe indagar se as mudanças em curso na década de 30 chegaram até

59
Sobre este assunto consultar: HANHER, June E. Emancipação do sexo feminino. As lutas pelos direitos da
mulher no Brasil, 1850-1940. Florianópolis: Editora Mulheres Sta Cruz do Sul: EDUNISC, 2003.
60
MALUF, M. e MOTT, M. L. Recônditos do mundo feminino. In: História da Vida Privada no Brasil.
NOVAIS, F. A e SEVCENKO, N. (org.). São Paulo: Cia das Letras, v. III, 1998, p. 374.
37

às cangaceiras e como foram sentidas, como re-significaram seus valores e suas vivências no

interior dos bandos e, ainda, como queriam ser vistas na sociedade.

No interior do cangaceirismo brasileiro, apesar de existir uma organização social

bem definida dos papéis masculino/feminino, é significativo destacar alguns elementos que

tornam esta organização peculiar. Diferentemente das relações produzidas na sociedade mais

ampla, na qual cabia ao homem o sustento da família e à mulher os afazeres domésticos,

cumprindo o papel de esposa dedicada, mãe zelosa e dona de casa, no cangaço esta relação se

construiu de uma outra forma, em função da própria estrutura nômade e incerta dos bandos.

As questões propostas ao logo dessa dissertação serão analisadas a partir dos

pressupostos da História Cultural. Para tanto, nos basearemos nas discussões do historiador

Roger Chartier61, sobretudo nos debates em torno dos conceitos: representação, prática e

apropriação.

Roger Chartier afirma que embora a construção das representações do mundo

social almeje a universalização, ela é determinada pelos interesses dos grupos que a forjam.

Ou seja, as “percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem

estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à

custa de outros....”62. É neste sentido que analisaremos as diversas fontes coletadas, não como

discursos neutros, mas como construções carregadas de subjetividade pelos sujeitos sociais

que as representam.

No entendimento do historiador, conforme dissemos anteriormente, três conceitos

são fundamentais para a História Cultural: representação, prática e apropriação. O conceito de

61
O historiador Roger Chartier salienta que a História Cultural procurava legitimar-se cientificamente a partir da
conciliação dos novos domínios de investigação com os postulados da história social. Define a História Social da
seguinte forma: “(...) tem por principal objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” Refere-se, ainda, aos vários caminhos que
devem ser percorridos para realizar essa tarefa, entre eles destacam-se:“ás classificações, divisões e delimitações
que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do
real”. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo.
Lisboa: Difel, 1988, p. 17.
38

representação para ele, pressupõe a soma dos discursos (fala) com práticas diferenciadas

(ação) e se pauta, sobretudo, na definição de Marcel Mauss que argumenta:

(...) mesmo as representações coletivas mais elevadas só têm uma existência,


isto é, só o são verdadeiramente a partir do momento em que comandam
actos – que têm por objetivo a construção do mundo social, e como tal a
definição contraditória das identidades – tanto a dos outros como a sua63.

De acordo com Chartier, tal perspectiva permite pensar numa história cultural

do social, tomada como compreensão das formas e dos motivos que traduzem determinadas

percepções do social e da sociedade. O historiador retoma a definição antiga do dicionário de

Furetiére, que entende a representação como relacionamento de uma imagem presente e de

um objeto ausente, no qual a primeira vale pelo segundo. A relação de representação em sua

concepção, “modela toda a teoria do signo que comanda o pensamento clássico e encontra a

sua elaboração mais complexa com os lógicos de Port-Royal”64. Este enfatiza a variabilidade

e a multiplicidade das interpretações e das compreensões das representações do mundo social.

Chartier destaca que a distinção fundamental entre representação e representado,

entre signo e significado, é pervertida pelas formas de teatralização da vida social do Antigo

Regime. Refere-se aqui à sociedade de corte analisada por Norbert Elias, na qual “a

identidade do ser não seja outra coisa senão a aparência da representação, isto é, que a

coisa não exista a não ser no signo que a exibe”65, ou seja, a aparência vale pelo real; a

representação é confundida com a ação da imaginação. Justifica que esta deturpação constitui-

se num perigoso instrumento de constrangimento interiorizado e numa violência simbólica,

pois “a representação transforma-se em máquina de fabrico de respeito e submissão”.66

A noção de representação para Chartier permite articular três modalidades da

relação com o mundo social: 1-) a classificação e a delimitação através das quais a realidade é

62
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo.
Lisboa: Difel, 1988, p. 17.
63
Idem, p. 18.
64
Op cit, 1988, p. 21.
65
Idem, p. 21.
66
Op cit, 1988, p. 22.
39

contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; 2-) as práticas que visam fazer

reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar

simbolicamente um estatuto e uma posição; 3-) as formas institucionalizadas e objetivadas

graças às quais uns “representantes” marcam de forma visível e perpetuada a existência do

grupo, da classe ou comunidade. As duas primeiras considerações se aplicam diretamente ao

cangaço, pois podemos classificar e analisar o modo de vida construído pelo grupo. Além

disso, suas práticas evidenciam uma forma peculiar de vivência, marcada sobretudo pelo uso

da violência e pela marginalidade.

Para o autor, a problemática do “mundo como representação” leva a pensar nas

formas de recepção, apropriação67 e reelaboração do real pelos sujeitos sociais. Tais

mecanismos podem ser compreendidos a partir das práticas de leitura dos indivíduos ou dos

grupos, através das quais se apropriam de determinados textos e imagens considerando que

elas são histórica e socialmente variáveis. Ressalta que para uma melhor compreensão desses

mecanismos é necessário romper com o conceito de sujeito universal, considerando a

individualidade nas suas variações históricas, ou seja, que os indivíduos “são moldados, de

diferentes maneiras em diferentes situações, pelas estruturas de poder”.68 È com base nesta

perspectiva que procuramos analisar as construções no interior do banditismo brasileiro.

A História Cultural para Chartier deve ser pensada como a “análise do trabalho

de representação, isto é, das classificações e das exclusões que constituem, na sua diferença

radical, as configurações sociais e conceptuais próprias de um tempo ou de um espaço”.69

Esclarece que as estruturas do mundo social são historicamente construídas por práticas

67
O historiador afirma que o conceito de apropriação “tem por objetivo uma história social das interpretações,
remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas
práticas específicas que as produzem. Conceder deste modo atenção às condições e aos processos que (...)
determinam as operações de construção do sentido(...) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que as
inteligências não são desencarnadas (....), que as categorias aparentemente mais invariáveis devem ser
construídas na descontinuidade das trajetórias históricas”. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre
práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1988, p. 26-27.
68
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo.
Lisboa: Difel, 1988, p. 25.
40

articuladas (políticas, sociais, discursivas), e que a história cultural constrói sentidos e

significa o mundo.

Chartier70 aborda em sua obra Práticas de Leitura, questões referentes à recepção

e apropriação, conceitos que juntamente com o de representação permitem resignificar e

recuperar a experiência de vida dos grupos de cangaceiros, bem como as práticas e o

comportamento feminino neste universo marginal. Permite compreender as inquietações,

frustrações, medos e desejos dessas mulheres, sujeitas a todas as adversidades que uma vida

errante e ilegal se impunham as suas relações de convívio. Estas podem ser evidenciadas nas

formas de relacionamentos que permeavam o interior dos grupos de cangaceiros, seja, com o

companheiro, com os outros homens e mulheres com quem conviviam cotidianamente, ou

ainda, com a população externa ao bando.

O cangaço criou um modo de vida próprio, caracterizado pelo tipo da

indumentária, dos objetos pessoais, das armas e de suas formas de convívio que abarcavam

uma rede de relações dentro dos grupos e fora deles, cujo traço principal era a violência. Os

elementos externos que compõem o perfil dessas pessoas serão analisados a partir das

fotografias produzidas pelo sírio-libanês Benjamim Abraão Boto71, que registrou alguns

momentos do cotidiano do grupo de Lampião. Dentre estas imagens interessam-nos as das

mulheres, pois elas poderão nos revelar algumas práticas do universo feminino referentes aos

cuidados com o corpo, à utilização de vestidos apropriados para o dia de festa e outro para o

dia-a-dia, os cuidados com os cabelos, o uso de acessórios, tais como jóias e presilhas. Enfim,

revelam alguns elementos que podem traduzir uma preocupação feminina com a aparência e

com o embelezamento do corpo independentemente de estarem à margem da sociedade.

69
Op cit., 1988, p. 27.
70
CHARTIER, Roger. Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p. 27.
71
As fotografias foram produzidas durante o período em que Benjamim Abraão Boto conviveu com o grupo de
Lampião no ano de 1936.
41

Para compreender as relações e as vivências femininas no interior dos bandos,

voltamos nosso olhar para os depoimentos e relatos de ex-participantes como: ex-cangaceiras,

ex-cangaceiros, ex-soldados, ex-coiteiros; presentes nas obras lidas, ou colhidas diretamente

entre aqueles que fizeram parte do cangaço. Neste sentido, as memórias e depoimentos das

ex-cangaceiras Sila72 (Ilda Ribeiro de Souza, integrante do bando de Lampião), e Dadá73

(Sérgia Ribeiro da Silva, integrante do bando de Corisco) se constituíram em materiais

valiosos para a demarcação das vivências e percepções dos envolvidos no cotidiano dos

bandos e as suas inter-relações.

As obras do memorialista Antonio Amaury Corrêa de Araújo74, apesar de não

apresentarem um formato acadêmico, mostram-se fundamentais para esta pesquisa. O autor

publicou cinco livros sobre o cangaço, todos elaborados a partir de depoimentos orais com

diversos ex-participantes, desde ex-integrantes até sertanejos que vivenciaram este fenômeno.

Tratou o cangaço confrontando as informações a partir de ampla pesquisa histórica.

A neta do casal Lampião e Maria Bonita, Vera Ferreira75, filha de Expedita

Ferreira Nunes - única filha sobrevivente, escreveu em parceria com Antonio Amaury Corrêa

de Araújo, dois livros sobre o cangaço. Fundamentaram-se na historiografia e nos

depoimentos orais de ex-participantes dos bandos e também de alguns contemporâneos.

72
As obras: SOUZA, I. R.de. Sila Memórias de Guerra e Paz. Recife: Imprensa Universitária de Pernambuco,
1995 e Angicos: Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço, São Paulo: Oficina Mônica Buonfiglio
Ltda, 1997 e ainda o depoimento da ex-cangaceira Sila - Ilda Ribeiro de Souza, integrante do bando de Lampião,
companheira de Zé Sereno, Rio Claro/SP, 26/01/2001.
73
O depoimento oral da ex-cangaceira ao cineasta José Umberto Dias foi transformado no documentário: A
Musa do Cangaço, sob sua direção. Além disso, o cineasta também publicou Dadá, no qual transcreve o
documentário e outras falas da depoente. DIAS, José Umberto. Dadá, 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 1989.
74
As obras: ARAÚJO, A.A. C. de. Assim morreu Lampião. Rio de Janeiro: Brasília, 1976 e Lampião: as
mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985 e as obras em conjunto com FERREIRA, V. e ARAÚJO, A.A.C.
de O espinho do quipá, Lampião, a História. São Paulo: Oficina Cultural Mônica Buonfiglio Ltda, 1997 e De
Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia, 1999. Além destes livros, o autor tem publicado: Gente de Lampião:
Dadá e Corisco. São Paulo: Traço, 1982, Gente de Lampião: Sila e Zé Sereno. São Paulo:Traço, 1987 e ainda
Lampião Segredos e Confidências do Tempo do Cangaço, São Paulo: Traço, 1996.
75
FERREIRA, V. e ARAÚJO, A.A.C. de. O espinho do quipá, Lampião, a História. São Paulo: Oficina Cultural
Mônica Buonfiglio Ltda, 1997 e De Virgolino a Lampião, São Paulo: Idéia, 1999.
42

O cineasta e memorialista José Umberto Dias76 recria a partir das recordações

narradas por Dadá, o universo vivido pela ex-cangaceira. Uma parte de seu depoimento foi

reproduzido em VHF no documentário A musa do cangaço, no qual também há cenas do

cotidiano do grupo de Lampião e fotografias produzidas pelo sírio-libanês Abrahão Benjamim

Boto.

Esta mesma entrevista e a outra parte dela que não aparece no documentário,

foram transformadas pelo cineasta no livro Dadá77 que apenas incorpora suas falas sem

considerar que foram construídas posteriormente a sua vivência no cangaço. Além disso,

carrega a subjetividade e a reelaboração da depoente, que seleciona alguns momentos que

julga ser importantes, e os transmite ao memorialista a partir de uma rememoração do

presente. O cineasta utiliza as próprias falas da depoente para dar forma ao livro. Ora ele as

identifica recorrendo ao recurso itálico, ora as transcreve numa linguagem mais elaborada,

limpa das gírias do cangaço. Acreditamos que o cineasta tenha optado por esta forma

intencionalmente, com o intuito de manter-se “imparcial”, dando a impressão da veracidade

de sua obra, uma vez que apenas reproduz as falas da depoente, ou até mesmo para fugir de

uma problematização. Não se posiciona criticamente em relação a elas, apenas transcreve.

Como se tornou difícil tratar de todas as mulheres que integravam os bandos em

função da escassez de informações, optamos por explorar os aspectos que foram comuns a

todas. Neste sentido, abordaremos questões relacionadas à forma de incorporação, às posturas

assumidas em relação ao companheiro, à sexualidade, às atividades que as envolviam no

interior dos bandos, inclusive ao desempenho com armas de fogo. Enfim, aspectos que

sinalizavam uma certa regularidade no comportamento destas mulheres expostas a diversas

76
O cineasta e memorialista José Umberto Dias, produziu em 1981 o documentário A musa do Cangaço, no
qual Dadá relata como foi sua experiência no cangaço. O documentário foi dirigido por Dias e Guto Diniz,, e as
fotografias por Lúcio Mendes, Alonso Rodrigues e Benjamim Abrahão Boto. Este material encontra-se no
acervo da Fundação Joaquim Nabuco – Recife/PE, e foi por nós reproduzido. Além deste documentário, Dias
transformou o depoimento oral de Dadá no livro: DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição. Salvador:
EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.
77
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição. Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.
43

formas de violência, e que nos permitiram também compreender suas relações internas e

externas ao bando.

Buscamos compreender, através da análise de uma literatura genuinamente

popular como o Cordel78, qual foi o tratamento dado às mulheres cangaceiras, como foram

descritas e, percebidas no espaço do cangaço. Além disso, visualizar como o cangaço foi

concebido por seus contemporâneos sertanejos e como se deu a construção do mito

“Lampião”. Optamos pelo uso deste material, porque sabemos que durante décadas ele foi

praticamente o único veículo de informação com que contava o sertanejo.

Os vários estudiosos79 destacaram o papel fundamental do cordel como formador

de opinião pública. Em função da escrita simples e versada, o cordel facilitou a compreensão

dos populares, sobretudo dos analfabetos e também despertou simpatia nos indivíduos

letrados que apreciavam a poesia. Os analfabetos tinham a oportunidade de ouvir os folhetos

recitados ou cantados nas diversas feiras nordestinas. Além disso, podiam comprá-los e pedir

a algum amigo que os recitassem. Os poetas interpretavam os acontecimentos da sua cidade,

região, país e mundo e os retransmitiam numa linguagem simples ao povo. Soma-se a isso, a

facilidade em fixá-los na memória. Daí o seu papel fundamental como formador de opinião

78
A literatura de cordel chegou ao Brasil via Portugal, mais precisamente no século XIX com a vinda da família
real para o país. A Espanha também contribuiu para a disseminação deste tipo de literatura. Pode-se afirmar que
esta literatura existiu em grande parte da Europa. Na Alemanha o cordel marcou presença nos séculos XV e
XVI, na Holanda, França e Inglaterra a partir do século XVII. Esse nome deve-se ao cordel ou barbante em que
os folhetos ficavam pendurados em exposição. No Nordeste brasileiro mantiveram-se o costume e o nome, e os
folhetos são expostos à venda pendurados e presos por pregadores de roupa em barbantes esticados entre duas
estacas, fixadas em caixotes. Sobre o assunto consultar: DANTAS, Audálio (curador).Catálogo 100 anos de
Cordel, São Paulo: Sesc Pompéia, 2001. Exposição realizada no período de 17 de abril a 24 de junho de 2001,
em São Paulo, no Sesc Pompéia. ALENCAR, Aglaé d’Avila F. A literatura de Cordel e o relacionamento
homem/mundo. In: Revista Sergipana de Folclore. Sergipe: Comissão Sergipana de Folclore, ano I, nº 2, 1977,
p. 18-32 e COSTA, Roberto Aurélio Lustosa da (coordenador). Antologia da literatura de Cordel. Fortaleza:
Coleção povo e cultura/ Secretaria de Cultura, Desporto e Promoção Social do Ceará, v.1, 1978.
79
Sobre este assunto consultar: CURRAN, Mark J. A sátira e a crítica social na literatura de Cordel. In:
Catálogo 100 anos de cordel. São Paulo: Sesc Pompéia, 2001, CURRAN, Mark J. A “página editorial” do
poeta popular. In: Revista Brasileira de Folclore. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, ano XII, nº
32, 1972, p. 5-16. FAUSTO NETO, A. Cordel e a ideologia da punição.Petrópoles: Vozes, 1979., DANTAS,
Audálio. Catálogo 100 anos de Cordel. São Paulo: Sesc Pompéia, 2001, ALENCAR, Aglaé d’Avila F. A
literatura de Cordel e o relacionamento homem/mundo. In: Revista Sergipana de Folclore, Sergipe: Comissão
Sergipana de Folclore, ano I, nº 2, 1977, p. 18-32 e COSTA, Roberto Aurélio Lustosa da (coordenador).
Antologia da literatura de Cordel. Fortaleza: Coleção povo e cultura/ Secretaria de Cultura, Desporto e
Promoção Social do Ceará, v.1, 1978.
44

Mark J. Curran, professor da Universidade do Arizona e especialista em literatura

de cordel, publicou mais de dez livros, além de inúmeros artigos sobre o tema. Curran

enfatiza que o cordel além de informar e instruir, também tem como função distrair o público.

Enfatiza que “O poeta é ligado estreitamente ao povo e aos seus problemas devido à sua vida

em comum, à sua tradição cultural e à sua condição social. São as suas experiências pessoais

e a sua reação à vida, como representante do povo, que oferecem ao historiador, ao

sociólogo, e ao antropólogo cultural indicações verdadeiras do pensamento do povo” 80.

Em seu artigo A “página editorial”81 do poeta popular, Curran atribuiu ao poeta

popular, a característica de um agente social, descrevendo-o como “ representante do povo,

o pequeno repórter dos acontecimentos na vida nordestina.”82. Ressalta que a leitura dos

folhetos de cordel nos revela todo um estilo de vida, o pensamento, a ideologia e a

personalidade do poeta como “comentador da vida do povo”.83

No artigo “A literatura de cordel e o relacionamento homem/mundo”, Aglaé

d’Avila F. de Alencar84 destaca a originalidade dos folhetos de cordel como reveladores da

cultura nordestina. Por meio destes pode-se analisar o homem nordestino, seus valores, seus

anseios, seus usos e costumes e os problemas da sociedade de sua época.

Alencar também atribuiu ao poeta popular, o papel socializador de representante

do povo justificando que “O poeta de cordel é um instrumento do pensamento do povo. E ele


85
comunica o medo, o pecado, o retrato das guerras e das brigas entre nações” . Salienta

80
CURRAN, Mark J. A sátira e a crítica social na literatura de Cordel. In: Catálogo 100 anos de cordel. São
Paulo: Sesc Pompéia, 2001.
81
CURRAN, Mark J. A “página editorial” do poeta popular. In: Revista Brasileira de Folclore, Rio de
Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, ano XII, nº 32, 1972, p. 5-16.
82
Ibidem, p. 5.
83
Afirma o autor: “Quando uma pessoa lê folhetos da Literatura de Cordel, faz muito mais do que apreciar a
poesia do povo. O leitor pode perceber um estilo de vida visto não só nos versos, mas também na apresentação
total do poeta popular, sua ideologia e sua personalidade como poeta e comentador da vida do povo.” Op. cit,
1972, p. 15.
84
ALENCAR, Aglaé d’Avila F. de A literatura de cordel e o relacionamento homem/mundo. In: Revista
Sergipana de Folclore, Sergipe: Comissão Sergipana de Folclore, ano I, nº 2, 1977.
85
Idem, p. 25.
45

que além dos acontecimentos reais, o poeta também transfere para os versos tudo aquilo que

no “(...) inconsciente o nordestino gostaria de ser...”86.

Os poetas cantadores fizeram chegar aos pontos mais distantes não apenas os

romances, as histórias fantásticas de pavões, bois e cavalos misteriosos, mas também as

notícias dos fatos acontecidos, as catástrofes (secas, inundações, etc.), as façanhas de seus

heróis e anti-heróis, as valentias de Lampião, os milagres de padre Cícero e outros. A

proximidade que mantinham com o povo, o baixo custo de produção e consumo desses

folhetos permitam aos poetas, em detrimento à outros veículos de comunicação (jornais, rádio

e televisão), desfrutarem de maior credibilidade entre os populares.

Os folhetos de cordel podem ser divididos em cinco grupos temáticos: religião,

política, calamidade social, comportamento social e comportamento marginal. Para nossa

pesquisa, utilizaremos os folhetos que discutem o comportamento marginal, e dentro deste

grupo, os que se referem ao cangaço assunto amplamente discutido por esses poetas

populares. Alguns deles foram contemporâneos ao fenômeno e produziram cordéis sobre o

assunto87. Contudo, é importante ressaltar que este tema também foi abordado por cordelistas

posteriores ao período de vigência do cangaço implicando na reelaboração e na resignificação

do fenômeno a partir das narrativas orais de ex- participantes (cangaceiros, policiais e

populares), o que evidencia a construção desta experiência sob novos parâmetros, muitas

vezes assumindo a perspectiva de seus narradores que acabam por “amenizar” e “justificar”

o uso da violência por cangaceiros e policiais.

Os poetas Manoel D’Almeida Filho88, nascido em 13 de outubro de 1914 em

Alagoa Grande na Paraíba e Antonio Teodoro dos Santos89, em 24 de março de 1916, na

86
Op cit, 1977, p. 28.
87
Nas pesquisas realizadas nos arquivos da Biblioteca Nacional e da Academia Brasileira de Literatura de
Cordel, ambos no Rio de Janeiro, da Biblioteca Mário de Andrade e Arquivo do Estado de São Paulo, em São
Paulo e da Fundação Joaquim Nabuco em Recife -PE, localizamos apenas folhetos elaborados posteriormente e
versões reeditadas.
88
D’ALMEIDA FILHO, Manoel. Os Cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965.
89
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986
46

cidade baiana de Jaguarari conviveram com o cangaço desde a infância, entretanto suas obras

datam das décadas de 60 e 80, respectivamente. O primeiro além, de poeta e jornalista,

também foi tipógrafo e revisor. Dedicou-se à venda de folhetos, livros e revistas. O segundo

tinha como profissão o garimpo.

O cordelista Gonçalo Ferreira da Silva90, nasceu na cidade cearense de Ipú, em 20

de dezembro de 1937, aproximadamente seis meses antes do massacre em Angico. Silva

cresceu ouvindo as estórias de cangaceiros. Prosador e poeta fez o curso de extensão

universitária de Literatura Brasileira – prosa e poesia – no Instituto Afrânio Peixoto do Rio

de Janeiro.

Alguns dos folhetos discutem o cangaço em âmbito geral, tendo, porém, como

personagem principal Lampião e suas façanhas, como é o caso do folheto intitulado Os

Cabras de Lampião, de Manuel D’Almeida Filho91. Outros enfocam a vida e o

comportamento de determinados cangaceiros. Assim, temos como exemplos os que têm como

tema: Lampião92, Corisco93, Labareda94, Zé-Baiano95, Jararaca96, entre outros. Nestes folhetos

algumas cangaceiras foram citadas. Assim, Maria Bonita aparece ao lado de Lampião; Dadá

ao de Corisco; Lídia ao de Zé-Baiano. As outras mulheres geralmente foram mencionadas de

forma genérica, sem maiores referências. Maria Bonita, entretanto, foi “cantada em versos” a

90
SILVA, Gonçalo F. da. Lampião. O Capitão do Cangaço. Ed: Ralp, 1983, SILVA, Gonçalo F. da. Labareda.
O capador de Covardes. s/d, SILVA, Gonçalo F. da. Corisco. O sucessor de Lampião. Ed: Ralp, s/d., SILVA,
Gonçalo F. da. Zé – Baiano. O ferrador de gente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de Cordel,
s/d. SILVA, Gonçalo F. da. Jararaca – O cangaceiro militar. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000.
91
D’ALMEIDA FILHO, Manoel. Os Cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965.
92
São inúmeros os folhetos que falam sobre Lampião, contudo, os que tivemos acesso foram: D’ALMEIDA
FILHO, Manoel. Os Cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965, DILLA, Alexandre J. F. C. d’ Albuquerque
S. Lampião Rei dos Cangaceiros. Rio de Janeiro: Soc. Educativa e Cultural. Umbert Peregrino, 2ª ed., 1973,
SILVA, Gonçalo F. da. Lampião. O Capitão do Cangaço. Ed: Ralp, 1983, SANTOS, A. A. dos. O casamento de
Lampião com a filha do Diabo. 1987 e PACHECO, José. A chegada de Lampião no inferno. Rio de Janeiro:
Academia. Bras. de Literatura de Cordel, s/d.
93
CARVALHO, Elias A. de. Dadá e a morte de Corisco. 1983. e SILVA, Gonçalo F. da. Corisco. O sucessor
de Lampião. Ed: Ralp, s/d.
94
SILVA, Gonçalo F. da. Labareda. O capador de Covardes. s/d.
95
SILVA, Gonçalo F. da. Zé – Baiano. O ferrador de gente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura
de Cordel, s/d.
96
SILVA, Gonçalo F. da. Jararaca – O cangaceiro militar. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000.
47

partir de perspectivas distintas, pelos cordelistas Antônio Teodoro dos Santos e Gonçalo

Ferreira da Silva nos livretos Maria Bonita. A mulher cangaço97 e Maria Bonita – A eleita do

Rei98.

Antonio Teodoro dos Santos inicia sua narração contando-nos desde a infância da

personagem, passando por sua adolescência e juventude, seu ingresso no cangaço e sua morte

em Angico. Ou seja, o poeta inicia e conclui suas reflexões colocando Maria Bonita no

panteão de heroínas-guerreiras, ao lado da francesa Joana D’arc, das brasileiras Anita

Garibaldi, Ana Néri e Maria Quitéria. Mulheres que simbolizam coragem e valentia na luta

por seus ideais. Gonçalo F. da Silva, por sua vez, faz uma abordagem mais sentimental. Inicia

sua narrativa referindo-se ao amor de Maria Bonita por Lampião, portanto já na sua

juventude. Esta discussão será por nós retomada no capítulo 2.

O cordel, em função de seu caráter genuinamente popular, revelou-nos a visão que

os segmentos letrados do povo tinham do cangaço, de Lampião e, sobretudo, das mulheres.

Apesar de termos poucos cordéis que se referem especificamente à mulher, isto não nos

impediu de tentar compreender qual foi a opinião popular, disseminada nestes folhetos sob a

forma de poesia, em relação a essa mulher.

É interessante notar como Lampião é tratado nestes folhetos, numa mistura de

bandido e herói, criminoso comum e justiceiro, mortal e imortal. Enfim, esses são elementos

necessários à mitificação do próprio personagem, considerando-se que o cordelista apreende

um acontecimento e, numa linguagem popular, o transmite aos seus leitores.

A análise da imagética do cangaço nos revelou aspectos estéticos da indumentária

feminina evidenciando que foram desenvolvidas e adaptadas para aquele tipo de vida. A

indumentária cangaceira destaca-se pelo uso do couro (inspirada na vestimenta dos vaqueiros

e tinha a função de protegê-los contra a vegetação espinhosa), de bordados, de desenhos e de

97
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986.
48

cores fortes, inovações introduzidas por Lampião. Essas informações foram fornecidas pelo

advogado Frederico Pernambucano de Mello99, que analisou alguns aspectos da estética

cangaceira, a partir da reconstituição dos trajes dos cangaceiros.

O trabalho com a fotografia não é uma tarefa fácil, pois ela exige cuidados e

metodologias específicas. Isso se torna ainda mais relevante, quando nos referimos ao

universo peculiar do cangaço, sobretudo se considerarmos que esse modo de vida é analisado

após 67 anos dessa produção iconográfica.

Os especialistas que se dedicaram ao estudo da fotografia100 enfatizam que ela

resulta de um procedimento humano, que envolve três elementos essenciais: o assunto, o

fotógrafo e a tecnologia, num dado espaço e tempo. Ressaltam que a fotografia é um

fragmento selecionado do real, congelado e materializado na forma de imagem. É, portanto,

uma representação da realidade passada, que sofreu influência direta do fotógrafo desde a

escolha do assunto até a sua produção final. Daí, a importância de se trabalhar a fotografia

como uma representação, e não como uma “verdade”101 incontestável, já que carrega em si

uma intencionalidade e um determinado foco fragmentado do real, permitindo uma

multiplicidade de interpretações.

Na concepção de Boris Kossoy102, especialista no assunto, a influência mecânica

e seletiva do fotógrafo no momento da produção de uma determinada representação visual de

um trecho do real, é extremamente importante e deve ser levada em consideração no momento

98
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – A eleita do Rei. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000.
99
O advogado Frederico Pernambucano de Mello produziu por meio da Fundação Joaquim Nabuco os
documentários: O cangaceiro, roupas e apetrechos e A estética do Cangaço, nos quais analisou os aspectos
estéticos dos trajes dos cangaceiros. Além disso, foi curador da exposição do Cangaço na Amostra do
Redescobrimento do Brasil, no Parque do Ibirapuera em 2000.
100
Sobre este assunto consultar: KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo. Ed.Ática, 1989 e Realidades
e Ficções na Trama Fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000., LEITE, Miriam L. Retratos de Família..
Leitura da Fotografia Histórica. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1993., e JOLY. Martine. Introdução á Análise da
Imagem.Campinas/São Paulo: Papirus Editora, 1996.
101
Diz o autor: “A realidade da fotografia não corresponde (necessariamente) a verdade histórica, apenas ao
registro expressivo da aparência....A realidade da fotografia reside nas múltiplas interpretações, nas diferentes
“leituras” que cada receptor dela faz num dado momento...”. KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na Trama
Fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p. 38
49

das análises. Argumenta que “Toda fotografia tem sua origem a partir do desejo de um

indivíduo que se viu motivado a congelar em imagem um aspecto dado do real, em

determinado lugar e época”.103 Além disso, ressalta que a análise de seu conteúdo pode nos

revelar “diferentes aspectos da vida passada” e recuperar informações, possibilitando um

“resgate da memória visual do homem e do seu entorno sócio-cultural”.104 Sendo assim, a

“imagem fotográfica” nos permitirá reconstruir alguns aspectos do passado, que foram

selecionados, congelados e materializados pelo fotógrafo.

Kossoy enfatiza que “O registro visual documenta por outro lado, a própria

atitude do fotógrafo diante da realidade, seu estado de espírito e sua ideologia acabam

transparecendo em suas imagens, particularmente naquelas que realiza para si mesmo

enquanto forma de expressão pessoal”.105 Assim, as intenções do sírio-libanês Benjamim

Abrahão Boto devem ser consideradas e questionadas no momento da análise de sua produção

fotográfica. Como nos referimos anteriormente, ele tinha claros interesses econômicos com a

venda dessas imagens aos grandes veículos de comunicação e a produção de um filme a

respeito do cangaço.

Para Kossoy, as imagens fotográficas podem ser lidas e interpretadas a partir de

duas perspectivas de análise: a iconográfica e a iconológica. A primeira consiste na

reconstrução do processo que gerou o artefato fotográfico, além de uma leitura minuciosa dos

detalhes icônicos que compõem seu conteúdo, e a segunda, no resgate do próprio assunto

registrado e na compreensão da representação fotográfica nas entrelinhas.

As imagens iconográficas a respeito do cangaço, serão por nós trabalhadas não

como meras ilustrações que complementam o texto, mas como representações fragmentárias

de um dado momento do real. Serão analisadas como documentos históricos, na tentativa de

102
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo. Ed.Ática, 1989.
103
Idem, p. 21-22
104
Op cit , 1989, p. 35-36
105
Ibidem, p.27-28.
50

recuperar algumas informações, que revelem um pouco do cotidiano do grupo. É a partir dessa

perspectiva que analisaremos as imagens congeladas de algumas mulheres cangaceiras.

Encontramos no acervo iconográfico da Fundação Joaquim Nabuco, localizada em

Recife/PE, aproximadamente quarenta fotografias na Coleção Cangaço, das quais vinte e seis

são de mulheres, desse total, reproduzimos doze106. Há também a Coleção Frederico

Pernambucano de Mello com três fotografias, e uma outra coleção da qual reproduzimos

quatro fotografias, dentre as quais, há uma de Dadá grávida, uma outra em que aparecem as

cangaceiras Moça e Inacinha com um grupo de homens. Há ainda, uma de Maria Bonita com

os cães Guarani e Ligeiro e outra em que aparece ao lado de Neném e Lampião.

As mulheres aparecem nessas coleções em diversas situações: sozinhas, na

companhia de outra cangaceira, ao lado do companheiro, em meio a um grupo de homens, no

qual o companheiro nem sempre estava presente. Além dessas, também há as que aparecem

apenas as cabeças degoladas.

No total da Coleção Cangaço, Maria Bonita aparece em doze fotos. A cangaceira

Neném, sua melhor amiga, aparece em sete, Inacinha em duas, as cangaceiras Dadá, Maria

Adília, Moça, Sila e Cristina aparecem, cada uma delas em apenas uma foto. Na Coleção

Frederico Pernambucano de Mello, há uma fotografia em que aparece a cabeça degolada da

cangaceira Eleonora, no cerco em Piranhas/AL em 1938 e as cabeças de Maria Bonita e

Enedina, mortas em Angico/SE, também no ano de 1938.

As fotografias expressam esteticamente como as cangaceiras queriam ser

lembradas ou perpetuadas e, ainda, o tipo ideal de mulher com o qual queriam ser

identificadas. Isso fica explícito nas fotografias produzidas em espaços abertos da caatinga, na

qual algumas cangaceiras reproduziram a postura e o gestual das mulheres da elite rural,

como se estivessem posando em estúdios consagrados. Lembram, ainda alguns modelos


51

femininos veiculados pelas revistas ilustradas. As fotografias de Maria Bonita expressam

muito bem isso.

Assim, a problemática tratada ao longo do texto será abordada em três capítulos,

cujos resumos são apresentados nas páginas seguintes.

No primeiro capítulo O cangaço na percepção da imprensa buscamos

problematizar e reconstruir as concepções veiculadas pela grande imprensa, O Estado de S.

Paulo e Correio da Manhã, respectivamente paulista e carioca, e imprensa popular,

representada pela literatura de cordel. A análise destes diferentes materiais nos permitiu

compreender as múltiplas interpretações dos contemporâneos do cangaço, na zona sertaneja

ou nas regiões distantes do fenômeno. Assim, considerando os aspectos políticos, econômicos,

sociais e culturais do período, discutimos questões relativas à emergência do banditismo rural

no sertão. Também buscamos reconstruir a movimentação dos cangaceiros nos diversos

Estados envolvidos, e a divulgação das façanhas de Lampião e seu bando. E finalmente, as

possíveis soluções para por fim a este flagelo.

No segundo capítulo - Práticas e representações do feminino no cangaceirismo

brasileiro - 1930-1940, buscamos problematizar as formas de inserção (voluntária e

involuntária) das mulheres nos bandos na década de 1930, e recuperamos a trajetória

feminina no âmbito do debate historiográfico. Além disso, tentamos reconstruir as principais

características de algumas cangaceiras a partir do mapeamento e da recuperação de dados

como: local e data de nascimento, filiação, período da infância e adolescência. Dentro de

certos limites, ressaltamos algumas características físicas e traços da personalidade dessas

mulheres. Assim, destacamos e priorizamos algumas cangaceiras que aparecem com maior

freqüência nas diversas fontes consultadas como: Maria Bonita, Dadá, Sila e Lídia.

106
Cabe destacar que não pudemos reproduzir todo o acervo em função dos direitos autorais; sendo assim,
procuramos selecionar imagens de todas as mulheres do grupo. Quanto ao critério seletivo, procuramos
reproduzir as imagens que retratavam os diferentes trajes e comportamentos femininos.
52

Desvelamos as diversas facetas femininas criadas nesse espaço marcado pela

violência e pela marginalidade. Assim, foi relevante considerar o desempenho com armas de

fogo e a atuação de cada uma delas nos embates violentos em que estiveram envolvidas, suas

preocupações com o embelezamento do corpo, o apreço por jóias e apetrechos diversos,

identificados sobretudo, na composição de suas vestimentas, que traduziam uma determinada

representação do feminino.

Para a realização deste trabalho foi de fundamental importância analisar as

metáforas jornalísticas expressas nas notícias veiculadas pelo O Estado de S. Paulo e pelo

Correio da Manhã - e a representação imagética, expressa nas fotografias produzidas pelo

sírio-libanes Benjamim Abrahão Boto. Além disso, analisamos as vivências interpessoais

engendradas no interior dos grupos a partir da bibliografia especializada, de obras de

memorialistas que trabalharam o tema, e de outras fontes como: os depoimentos orais das ex-

cangaceiras Sila107 e Dadá108 e nos versos da imprensa popular ( literatura de cordel).

No terceiro capítulo, Cangaceiros e volantes: o uso comum da violência como

afirmação de poder, focalizamos a prática e a banalização da violência entre esses dois

grupos. Recuperamos as várias formas de violência física e psicológica que as mulheres

estavam sujeitas: espancamentos, violação sexual, prisão, morte, tanto por parte dos

cangaceiros, como das volantes. E ainda, a violência que a população externa aos bandos -

homens e mulheres - estavam sujeitos. Discutimos ainda, algumas práticas do grupo que

sinalizam para a normalização do comportamento feminino.

Em síntese, ao longo da dissertação problematizamos o cangaço de maneira geral,

discutindo suas diferentes concepções por meio de materiais diferenciados e a especificidade

da presença feminina.

107
Depoimento cedido a nós em janeiro de 2001, no Centro Cultural de Rio Claro/SP.
108
Entrevista intitulada: A musa do Cangaço, produzida por J. D. Dias em 1981, sob direção de José Umberto e
Guto Diniz. Fotógrafos: Lúcio Mendes, Alonso Rodrigues e Benjamim Abraão. Conseguimos uma cópia desse
depoimento, que se encontra no acervo iconográfico da Fundação Joaquim Nabuco/PE.
53

Capítulo 1 – O cangaço na percepção da imprensa.

A reflexão sobre a presença feminina no cangaço requer a compreensão do

próprio fenômeno e das condições que o engendraram. Deve-se considerar os aspectos

políticos, econômicos, sociais e culturais, que envolvem a sociedade mais amplamente, e as

práticas culturais dos sertanejos do nordeste brasileiro.

O objetivo deste capítulo é analisar, a partir dos diversos materiais coletados, as

diferentes representações construídas sobre o cangaço nas zonas sertanejas do Nordeste do

país. Iniciamos o capítulo analisando as informações fornecidas pela imprensa escrita,

sobretudo O Estado de S. Paulo e Correio da Manhã, respectivamente paulista e carioca;

jornais de grande circulação que deram ampla cobertura ao cangaço.

Neste sentido, a escolha destes periódicos se justifica pela ampla visibilidade e

cobertura que deram à temática do cangaço em suas páginas. Além disso, o intercâmbio que

mantinham com alguns periódicos nordestinos permitia a troca de informações entre as

agências e uma maior divulgação das práticas dos cangaceiros e das volantes.

Também serão analisadas as representações da imprensa popular, ou seja, a

literatura de cordel. Este tipo de literatura ultrapassa o universo popular e ganha espaço na

grande imprensa a partir dos debates de alguns articulistas, que criticam o conteúdo

exagerado e subversivo destes folhetos. Estes materiais são valiosos, pois imprimem

significados específicos ao cangaceirismo, expressam as visões de mundo dos populares.

Vejamos detalhadamente como os diversos materiais coletados se posicionaram sobre o

assunto.
54

1.1 - O Estado de S. Paulo.

As notícias referentes ao Nordeste encontram-se numa coluna específica do jornal

O Estado de S. Paulo, denominada Notícias dos Estados, na qual são publicadas os

acontecimentos mais importantes ocorridos nos diversos Estados brasileiros. É importante

ressaltar que também foram encontradas notícias fora desta coluna. Contudo, a grande maioria

foi abarcada por esta. O periódico, via de regra, retransmitia para seus leitores as notícias

veiculadas nos principais jornais nordestinos sobre o tema em questão, ou seja, o cangaço.

Esta perspectiva assumida, nem sempre garantia a publicação de notícias fidedignas dos

embates, resultando em informações contraditórias, fantasiosas e imprecisas em relação aos

deslocamentos dos bandos e também os confrontos com a polícia.

O jornal, além de se constituir num meio de comunicação público, tem a dupla

função de informar seus leitores e formar opinião. Deve-se ressaltar, ainda, que se constitui

num poderoso instrumento de articulação política. O Estado de S. Paulo destaca-se,

sobretudo, por defender e veicular os principais interesses e idéias das elites paulistas, bem

como suas movimentações e articulações com o intuito de garantir um espaço no cenário

político do país. O periódico paulista tornava público as idéias políticas e as expectativas

dessa elite por meio de seus principais articulistas e intelectuais, principalmente Júlio

Mesquita, que se autodenominava “apartidário” e “neutro”.

O Estado de S. Paulo foi fundado em 1875, por membros da elite política paulista

e por cafeicultores, com o nome de Província de S. Paulo. Seus fundadores defendiam a

instauração da República, da democracia, e o fim da escravidão. O grupo era liderado por

Américo Brasiliense de Almeida Mello e Manoel de Campos Salles. Em 1885 – Júlio César

Ferreira de Mesquita passa a ser o co-editor do jornal. Em novembro de 1889, a publicação

passa a se chamar O Estado de S. Paulo. Com sua morte em 1927, a direção do jornal foi
55

entregue a Nestor Rangel Pestana e Júlio de Mesquita Filho; a chefia da redação ficou com

Plínio Barreto1 e a gerência para Ricardo Figueiredo.

O jornal destaca-se pela postura ambígua de seus intelectuais, que agiam de

acordo com seus interesses do momento (situacionistas), apoiando ou contrapondo-se ao

governo federal. Durante o Governo Provisório, entre os anos de 1933-1934, há uma

aproximação dos paulistas com a política nacional a partir de sua participação na Assembléia

Constituinte, responsável por elaborar o projeto da Constituição. Os anos de 1933/19342 –

marcam a formação do Partido Constitucionalista. O Estado de S. Paulo acompanhava

detalhadamente a bancada paulista, especificamente os deputados do Partido Democrático

(núcleo do Partido Constitucionalista).

De acordo com a historiadora Angela Maria de Castro Gomes3, a atuação deste

periódico “esteve limitada e comprometida pela relação destes situacionismos estaduais com

o Poder Central”. Destaca, ainda, que a relação do jornal com o Governo Provisório era

instável, e se orientava de acordo com os interesses das elites (intelectual e política)

1
Plínio Barreto nasceu em Campinas, interior de São Paulo em 20 de junho de 1882. Em 1899 ingressou na
Faculdade de Direito de São Paulo, formando-se em 1902. Durante os seus estudos de graduação trabalhou
como revisor no jornal O Estado de S. Paulo, passando em 1898 para a redação. Após formar-se, seguiu para
Araras (SP) local em que desempenhou as funções de advogado e jornalista. Em 1909, ao regressar à São
Paulo mantém no periódico paulista uma seção intitulada Crônicas forenses, na qual escrevia sobre os
principais julgamentos ocorridos no Tribunal de Justiça. Em fevereiro de 1912, fundou a Revista dos Tribunais;
em 1916 assumiu juntamente com Júlio de Mesquita e Alfredo Pujol a direção da Revista do Brasil. Barreto
exerceu ao mesmo tempo a função de jornalista político e de crítico literário. Em 1920 tornou-se um dos
advogados mais ilustres e requisitados de São Paulo. Foi membro da Liga Nacionalista (criada em 1917), que
defendia o serviço militar obrigatório e o voto secreto. Em 1926 assumiu a direção do Diário da Noite e, após a
morte de Júlio de Mesquita em 1927, assumiu o cargo de redator-chefe. Em 1930 foi nomeado secretário de
Justiça e Segurança Pública, no ano seguinte é indicado para a interventoria; com isso buscava-se obter o apoio
do Partido Democrático, e até mesmo do periódico paulista. Barreto destacou-se pelo intenso envolvimento
com a política do país. Em 1945, foi eleito deputado da Assembléia Nacional Constituinte pela legenda da
União Democrática Nacional (UDN). Participou ativamente da elaboração da nova Constituição. Defendeu a
criação de uma legislação trabalhista e a igualdade de direito civil para a mulher. Faleceu em 28 de junho de
1958. MAYER, Jorge Miguel. Plínio Barreto. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930.
ABREU, Alzira Alves de (coord.). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. I, p. 539-540.
2
GOMES, Angela Maria de Castro. Notas sobre uma experiência de trabalho com fontes: Arquivos privados e
jornais. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, v. 1, nº 2, set. de 1981, p. 266- 268 e 275.
3
Ibidem, p. 275.
56

paulistas4. Durante o Estado Novo (1937-1945), o jornal, sob ferrenha censura, tem seu

conteúdo político esvaziado.

Referindo-se ao periódico, a historiadora Maria Helena Rolim Capelato5, revela

em seu artigo O Controle e os Limites da Liberdade: Imprensa Paulista (1920-1945), que O

Estado de S. Paulo reivindicava os princípios do liberalismo e o estatuto da verdade,

descrevendo-se como neutro e impessoal. Seus jornalistas tinham como missão formar

opiniões e orientar o público, numa espécie de “missão” pedagógica. Para tanto, necessitavam

manter-se apartidários, preocupados apenas em denunciar os abusos governamentais e

controlar a rebeldia popular.

Discordando dessa concepção, Capelato procura mostrar ao longo de sua análise,

que é justamente esse “poder impessoal” reivindicado pelo jornal, que o move e acaba por

“ocultar um poder pessoal” que não fica evidente ao leitor. Salienta, que a partir desse

artifício a imprensa paulista acabava por se constituir num poder que estava acima do próprio

governo6. Além disso, a historiadora ressalta que a liberdade pregada pela imprensa tinha

traços autoritários e era limitada.

As concepções da historiadora nos remetem à problemática do cangaço, pois o

estatuto da verdade tão reivindicado pelo O Estado de S. Paulo, pode ser colocado em xeque

quando analisamos as notícias referentes aos deslocamentos dos bandos, aos confrontos com a

4
A historiadora afirma que:“(...) na relação com o Governo Provisório.....podemos perceber uma posição
progressiva, embora cuidadosa, aproximação por parte do jornal. Assim, em nome de uma pretensa
neutralidade, que beneficiaria seu material noticioso, o jornal não empreenderia análises profundas, nem
críticas abertas aos atos do chefe do Governo. Não se trata, porém, de uma relação estável, pois o jornal
defendia e orientava-se pelo situacionismo paulista....”. GOMES, Angela Maria de Castro. Notas sobre uma
experiência de trabalho com fontes: Arquivos privados e jornais. Revista Brasileira de História. São Paulo:
ANPUH, v. 1, nº 2, set. de 1981, p. 277.
5
CAPELATO, Maria H. R. O Controle da Opinião e os Limites da Liberdade: Imprensa Paulista (1920-1945),
Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 12, nº 23/24, p. 55-75, 1992.
6
Referindo-se ao comportamento da imprensa a autora enfatiza que: “apresentada ao público leitor como
expressão dos altos valores eternos, universais e, consequentemente como apartidária, apolítica e impessoal.
Envolta nessa couraça, podia se lançar, com suas poderosas armas, na luta política, anunciando-se como
defensora da verdade, valor supremo das Luzes.” CAPELATO, Maria H. R. O Controle da Opinião e os
Limites da Liberdade: Imprensa Paulista (1920-1945), Revista Brasileira de História, São Paulo:
ANPUH/Marco Zero, v. 12, nº 23/24, 1992, p. 57.
57

polícia, às prisões e mortes de cangaceiros e à presença de mulheres. Enfim, nota-se que

muitas vezes o jornal reproduz as notícias sem averiguar a autenticidade das mesmas, o que se

traduz em informações imprecisas e contraditórias sobre a movimentação dos cangaceiros.

A postura assumida pelo periódico diante das informações recebidas, ou seja,

“retransmitir” a informação, sugere uma certa “imparcialidade” sobre o assunto e ao mesmo

tempo, acaba reafirmando a construção oficial elaborada pelo poder constituído. O

comportamento de seus intelectuais demonstra que não desejavam polemizar o assunto, e

ainda, que tinham outros interesses no momento, ou seja, o de (re) articular a participação de

São Paulo na política nacional.

O periódico carioca Correio da Manhã, apesar de retransmitir algumas notícias,

mantém uma postura crítica sobre o banditismo. Ao longo de seus exemplares, alguns de seus

articulistas e colaboradores procuram problematizar a questão, buscando caminhos para evitar

o crescimento da criminalidade naquela região. Dentre algumas soluções encontradas são

citadas: a melhoria nas condições de vida da população sertaneja, bem como a assistência

pública, educação, criação de postos de trabalhos e o exercício de uma justiça que coloque em

funcionamento os mecanismos que garantam os direitos humanos a partir do exercício

efetivo da lei.

No que se refere à presença feminina no cangaço, as matérias veiculadas pelos

periódicos paulista e carioca mencionam a participação de algumas mulheres em situações de

confronto com a polícia. Na maioria das análises memorialísticas, o ano de 1930 inaugura a

incorporação feminina no cangaço, contudo essa demarcação não foi consensual na

historiografia7. Sendo assim, iniciamos a pesquisa no periódico paulista no ano de 1928, e

7
Há divergência na historiografia quanto à data de incorporação feminina no cangaço, de acordo com a
socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz teria ocorrido entre fins de 1928 e meados de 1929 (QUEIROZ,
1977, p. 186) e para a historiadora Maria Christina M. Machado em 1930 (MACHADO, 1978, p. 87).
58

observamos que durante este ano e o seguinte houve significativa movimentação dos

cangaceiros.

Durante o ano de 1930, período no qual a imprensa paulista preocupou-se em

cobrir os acontecimentos que envolveram a Revolução e a deposição de Washington Luís, o

Governo Provisório de Getúlio Vargas e a sublevação na Paraíba contra o governo de João

Pessoa. Em 1931, o cangaço novamente entra em cena para sair no ano seguinte, quando a

imprensa paulista prioriza as informações sobre o Governo Provisório e a Revolução

Constitucionalista. No ano de 1933, acompanha minuciosamente os debates na Assembléia

Constituínte, e em 1934 a elaboração da nova Constituição. Após cobrir esse conturbado

período de transição política, o periódico retoma a questão do banditismo no Nordeste. Vale

lembrar que retransmitia as principais notícias veiculadas nos jornais nordestinos sobre a

movimentação dos cangaceiros e das forças públicas em seu encalço e a questão da seca.

Na cobertura do jornal O Estado de S. Paulo foi encontrada com freqüência

notícias de chefes policiais reivindicando reforços para combater o banditismo; troca de

telegramas entre estes referindo-se aos diversos enfrentamentos, movimentação de

cangaceiros, prisões e mortes destes e as perdas policiais. Contudo, os chefes de polícia

mostram-se sempre otimistas, enfatizando que estão em constante perseguição aos

“bandoleiros”. Isso pode ser observado na entrevista do Dr. Souza Leão (chefe da polícia

pernambucana) ao jornal Pequeno, a qual foi reproduzida pelo O Estado de S. Paulo sob o

título Entrevista do chefe de polícia, veiculada pelo mesmo em 08 de fevereiro de 19288.

Nesta entrevista, o chefe policial mostra-se satisfeito com a atuação, coragem e o ótimo

desempenho das forças armadas no combate ao banditismo. Ele é enfático:

Estou plenamente satisfeito com a atuação dos nossos soldados das forças
volantes nos serviços da caatinga. (...) Durante a excursão que acabo de
fazer, recebi notícias alarmantes e pedidos de pessoas amigas, que me

8
O Estado de S. Paulo, 8/02/1928, p. 6.
59

aconselhavam evitar certas zonas. Entretanto percorri todas elas sem o


menor receio. (...) Viajamos com a mais absoluta calma e tranqüilidade9.

O chefe de polícia preocupa-se em revelar a tranqüilidade e a paz reinante na

caatinga, mostrando-se destemido, corajoso e seguro. Além disso, assegura que o cangaço

está quase extinto: “Considero o cangaço quase extinto. No sertão existe apenas o reduzido

grupo de “Lampião”, pois as nossas cadeias estão repletas de celerados...... não existem ,

nem crime, nem saques, que repercutam quebrando a paz da família brasileira”.10

Sabemos, no entanto, que essa afirmação do chefe de polícia não tem fundamento,

pois a historiografia informa-nos que o cangaço só será extinto em 1940 com a morte de

Corisco.

Dois dias após a entrevista, o jornal O Estado de S. Paulo informa que a

cooperação interestadual está em efetiva execução, como evidencia a matéria “Combate aos

bandoleiros”11, que destaca o empenho das forças paraibanas e pernambucanas na sua

execução. Essa ação conjunta acarreta alguns problemas ao policiamento regular de cada

Estado, que ao disponibilizar as tropas para combater os cangaceiros, fragiliza a segurança

pública em seus Estados de origem no caso de um ataque inesperado, em função dos

constantes deslocamentos de seus efetivos policiais para além de suas fronteiras. Esta situação

pode ser observada na cidade de Princesa, no Estado da Paraíba, na qual o delegado pede

reforço policial alegando que seus homens estão em perseguição ao banditismo em

Pernambuco12.

Um mês e meio após esta notícia, é possível verificar que os pedidos de reforços

e troca de informações entre as autoridades policiais se constituem numa prática comum entre

os Estados, como nos mostra o telegrama enviado pelo chefe da polícia do Ceará ao de

Pernambuco informando-lhe sobre a atuação da força pernambucana, deslocada para aquele

9
Idem
10
O Estado de S. Paulo, 8/02/1928, p. 6.
11
O Estado de S. Paulo, 10/02/1928, p. 5.
60

Estado, com o intuito de auxiliar no combate ao banditismo. Sob o título Um encontro com o

grupo de Lampião, o jornal O Estado de S. Paulo reproduz o telegrama enviado ao chefe de

polícia de Pernambuco, no qual informava que as forças pernambucanas sob comando do

tenente Arlindo tiveram um ligeiro encontro com o bando de Lampião num lugar

denominado Piçarra, no Estado do Ceará. Informou também que o tenente José Antonio,

pessoa de muita confiança, deixara Macapá em direção a Piçarra com o intuito de auxiliar no

combate ao banditismo. Terminou o telegrama enfatizando que o banditismo tem sido

“ardorosamente combatido”, e que “continua sem tréguas a campanha contra a horda do

bandido, e julgo que não tardará o extermínio do perigoso grupo”.13

O otimismo que cerca os chefes policiais traduz o empenho das autoridades

públicas, dos diversos Estados nordestinos em combater o banditismo, o que se tornou

possível a partir do referido convênio que derrubou os entraves que impediam a captura dos

bandos que facilmente atravessavam as fronteiras, livrando-se da perseguição. Tal postura

deve-se aos sucessos de alguns confrontos em que alguns cangaceiros foram presos ou mortos

em combate, sem perdas significativas nos destacamentos policiais.14 Constantemente o

jornal O Estado de S. Paulo publica telegramas dos mais variados chefes de polícia, nos

quais os mesmos pedem ou enviam tropas, notificam a prisão ou morte de um determinado

bandoleiro, soldados feridos ou mortos, enfim, prestam contas da movimentação das Forças

Públicas no encalço e combate ao banditismo.

A imprensa sem dúvida cumpre um papel significativo no combate ao cangaço.

Ao publicizar a movimentação das Forças Públicas, por meio de notícias amplia sua ação

além dos palcos de combate impondo ao fenômeno, desta forma, a mesma visão negativa

presente na fala policial. Vale lembrar que, na maioria das vezes, as notícias foram

12
O Estado de S. Paulo, 1/03/1928, p.6.
13
O Estado de S. Paulo, 31/03/1928, p. 7.
14
Idem.
61

elaboradas pelos chefes das forças públicas, o que as torna de certa maneira bastante

subjetivas. Predomina, de certo modo, um engrandecimento de tais forças contraposto ao

caráter tenebroso dos cangaceiros, que são descritos como perigosos facínoras, desordeiros,

inimigos das famílias, enfim, bandoleiros de vida fácil.

As notícias publicadas sobre Lampião e seu bando, muitas vezes são

contraditórias e fantasiosas, como exemplificam matérias publicadas em 11 de maio de

192815 e 23 de agosto do mesmo ano16. Na primeira, é atribuído a Lampião e seus seguidores

o fuzilamento de dois irmãos menores de nomes Antonio e João Ferraz, no povoado de

Bethânia, no oeste de Pernambuco. A provável causa do fuzilamento seria o parentesco de

tais irmãos com um determinado inimigo de Lampião. Além de fuzilar os menores, o

cangaceiro teria proibido o sepultamento dos mesmos, e teria ordenado a irmã das vítimas

que não chorasse, pois caso o fizesse, o restante de sua parentela também seria eliminada. A

proibição ao sepultamento dos garotos mortos parece fantasiosa, uma vez que Lampião, em

decorrência de suas crenças religiosas, tinha por regra sepultar os cangaceiros mortos. Além

disso, não há indícios de que tenha profanado os espaços sagrados como cemitérios e igrejas.

Esta matéria sobre as crianças levanta a questão da atribuição de crimes aos cangaceiros que

nem sempre eram os responsáveis.

Na matéria posterior, somos informados que “Após 08 meses de ausência,

refugiado no sertão de Alagoas, Lampeão ressurge e visa atravessar o São Francisco rumo à

Bahia, as forças pernambucanas informaram o ocorrido ao seus colegas da Bahia”17. Ora,

na notícia intitulada Selvageria de Lampeão, publicada em maio, o grupo de Lampião estava

em Bethânia/PE, e nesta última, enfatiza-se que há oito meses Lampião se refugiara no

sertão de Alagoas. É aí que se encontra a incoerência. Como pode Lampião estar refugiado

15
O Estado de S. Paulo,11/05/1928, p.6.
16
O Estado de S. Paulo, 23/08/1928, p.5.
17
O Estado de S. Paulo, 23/08/1928, p.5.
62

há oito meses em Alagoas, e no dia 11 de maio ter praticado tal crime em Pernambuco?

Considerando-se a distância a ser percorrida entre um Estado e outro, seria possível tal crime?

Ou fora praticado por um dos grupos de Lampião?

Através da análise das matérias publicadas pela imprensa paulista ao longo dos

meses de janeiro a junho de 1928, fica evidente que os cangaceiros incursionavam18 na região

fronteiriça que liga os Estados de Pernambuco, Paraíba e Ceará, ou seja, a oeste de

Pernambuco. Estas incursões coincidem com as descritas pelos diversos especialistas que

trabalharam a temática do cangaço. A “confusão” quanto ao paradeiro de Lampião e seu

grupo pode ser pensada como o resultado de sua estratégia de luta, ou seja, a subdivisão do

grupo e sua distribuição em locais diferentes, o que provavelmente teria confundido os

policiais levando-os a acreditar que o grupo cercado era o de Lampião.

A historiadora Maria Cristina Matta Machado19 informa-nos que a subdivisão dos

grupos por Lampião e o ataque simultâneo em lugares diferentes fazia parte de sua tática de

luta. O uso desta estratégia foi confirmado pelo memorialista Araújo20, que destacou ter sido

esta uma das mudanças introduzidas por Lampião no cangaço do século XX. A socióloga

Maria Isaura P. de Queiroz afirma que a cisão do grupo se deu nos anos de 1932 e 1936 em

função do acirramento das perseguições policiais. Tal estratégia era usada justamente para

causar confusão e dificultar a perseguição das volantes aos bandos.

O heroísmo das forças públicas nos confrontos com os cangaceiros é um tema

freqüentemente abordado pelo O Estado de S. Paulo. Praticamente em todos os anos

18
Sobre este assunto consultar: MACHADO, Maria Christina M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São
Paulo: Brasiliense, 1978, p. 27 e 61. QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiros. São Paulo: Livraria Duas
Cidades, 1977, p. 112. FERREIRA, Vera. De Virgolino a Lampião: São Paulo: Idéia Visual, 1999, p.164 entre
outros.
19
Diz a autora: “Muitas vezes agiam separadamente, em outras ocasiões, unidos”. Enfatiza que: “Os
cangaceiros formavam um “quartel –general”, e esse é o ponto chave onde se encontravam os pequenos grupos
de 7, 10 ou, no máximo, 15 homens. Cada um tem um chefe que seguirá para pontos os mais diversos do
sertão.” MACHADO, Maria Christina M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978,
p. 39 e 42.
20
ARAÚJO, Antônio A.C. de. Lampião as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p.70.
63

pesquisados, foi possível encontrar esta questão, a exemplo da entrevista concedida a um

jornal baiano, sob o título O que tem feito a polícia bahiana contra Lampeão e o seu bando21,

na qual o Dr. Arthur Xavier Costa, médico da Força Pública encarregado de perseguir

Lampião e o seu bando, destaca a eficácia com que tem se dado a campanha da polícia desse

Estado no combate ao famigerado bandido e sua horda. Salienta que embora os resultados

dessa investida estejam aquém dos esforços empregados, não tem sido dado aos bandoleiros

um só momento de trégua. Segundo Dr. Arthur Xavier Costa:

Os soldados e officiaes da Força Pública tem sido incansáveis na


perseguição ao grupo vandálico e nos vários encontros muitas foram as
vítimas da polícia bahiana que denotam coragem que não tem Lampeão,
nem os seus companheiros. Estes escondem as suas perdas queimando os
cadáveres e suas vitórias são sempre devidas a espionagem e aos auxílios de
que dispõem entre as populações do nordeste, as quais tem uma
indisfarçável má vontade para com a polícia. Lampeão age assim, com
22
absoluta certeza de êxito

É possível observar no trecho acima a visão de coragem e heroísmo atribuídos às

forças públicas, vítimas de Lampião e seu bando. A população nordestina apresenta-se nesta

entrevista como um elemento novo. Aqui é atribuído ao povo o sucesso de Lampião e seu

bando, viabilizado por meio de auxílios diversos e serviços de espionagem dos populares, que

permitiam o êxito em suas ações. Na opinião do chefe de polícia a população não colaborava

e agia com “indisfarsável má vontade”. A ausência de apoio popular torna o sentimento de

heroísmo das forças públicas um elemento cada vez mais concreto. Ou seja, estes últimos

estão sozinhos na luta contra o banditismo.

No depoimento do Dr. Costa fica explícito que se a população colaborasse, o

banditismo já teria sido controlado. Contudo, estes “homens corajosos” das diversas forças

policiais não se intimidaram nem mesmo com a falta de apoio popular. Foram à luta

arriscando suas vidas na esperança de terminar com o banditismo.

21
O Estado de S. Paulo, 02/02/1930, p.6
22
Idem
64

No final de sua entrevista Dr. Xavier enfatiza mais uma vez o heroísmo e coragem

de tais homens: “Apesar de apregoada valentia dos bandoleiro, certa vez cinco soldados

bahianos sob comando do sargento Guedes, resistiram a um ataque do bando de Lampeão

sem se renderem”.

Notícias sobre prisão e morte de cangaceiros também foram divulgadas pela

imprensa. Assim, no dia 28 de janeiro de 1928, por exemplo, o jornal Ceará publica

pormenores sobre o fuzilamento de diversos cangaceiros naquele estado23. A prisão dos

cangaceiros Balão e Cansação, integrantes do bando de Lampião, é veiculada na matéria

Prisão de Cangaceiros, em 21 de fevereiro de 192824, com a descrição do local da prisão, o

nome dos cangaceiros e a requisição do juiz de direito de Barbalha para processá-los. A

sentença foi dada após aproximadamente quarenta e oito dias da data de prisão, sendo os

cangaceiros condenados à pena máxima de 30 anos de prisão25.

No decorrer de nossa pesquisa, deparamo-nos com a matéria da Associação

Comercial Baiana26, na qual alguns comerciantes indignados com a impunidade de que

gozava Lampião e seu bando, unem-se por meio da associação com o intuito de reivindicar

providências governamentais para por fim ao cangaço. Representados pelo então presidente, o

sr. Almir Cordilho, enviam novamente ao Presidente Getúlio Vargas um telegrama pedindo

providência para a repressão ao banditismo no Nordeste.

Esse segundo telegrama enviado à Getúlio Vargas foi reproduzido pelo jornal O

Estado de S. Paulo, em matéria intitulada: O Banditismo no Nordeste da Bahia – Apello da

Associação Comercial.27 Neste, o sr. Almir Cordilho, enfatiza que os sertanejos estão a

mercê dos bandidos, em função da “insuficiência das providências governamentais”.

Indignado, termina o telegrama alegando ser inadmissível que o governo “continue

23
Notícia reproduzida do jornal Ceará pelo jornal O Estado de S. Paulo, 21/02/1928, p.5
24
O Estado de S. Paulo, 21/02/1928, p.5.
25
O Estado de S. Paulo, 8/04/1928, p.7
65

indifferente a essa obra demolidora de nossos foros de paíz civilisado”. Nesta mesma notícia

pedem a colaboração da imprensa e dos ministros da Guerra e Justiça e do major Juarez

Távora, inteirando-os sobre o telegrama enviado ao chefe do Governo Provisório.

Após quatro meses28 do envio do telegrama da Associação Comercial a Getúlio

Vargas, o interventor baiano recebeu a resposta de que o Governo autorizou o Ministro da

Fazenda a disponibilizar a quantia de quatrocentos contos de réis destinados a custear a

campanha contra o banditismo no Estado. Esta notícia foi recebida com muito otimismo na

Bahia.

Apesar do envio desta ajuda financeira pelo Governo Federal, e do anuncio da

intensificação da campanha contra Lampião e seu bando, observamos na leitura da matéria

Novas Proezas de Lampeão”29, que os cangaceiros continuavam semeando o medo entre a

população. Nesta, enfatiza que os cangaceiros mostravam-se cada vez mais audaciosos,

“matando, roubando, attentando contra o pudor...”. O jornal, por meio de sua filial em

Salvador, salienta a credibilidade da notícia ao destacar que seus informantes são pessoas

“merecedoras de crédito”. Essas reiteram as práticas violentas de Lampião e seu bando ao

destacar que incendiaram casas, e desonraram “oito moças” no município baiano de Campo

Formoso.

Nesta mesma notícia informa que Lampião incursionava no Estado de Sergipe e

que teria “penetrado num município próximo onde marcou a ferro quente várias pessoas”.

Ora, numa mesma notícia é atribuído a Lampião e seu bando, a prática de atrocidades em

Campo Formoso, localizado no centro-oeste baiano e no município de Canindé, localizado às

margens do rio São Francisco em Sergipe. O município de Campo Formoso possui uma

distância significativa em relação a Canindé, o que sugere que esteve apenas em um dos

26
O Estado de S. Paulo, 7/06/1931, p.4
27
Idem
28
O Estado de S. Paulo, 3/10/1931, p. 2.
66

municípios. Além disso, sinaliza para uma construção fantasiosa das atrocidades praticadas

nestes municípios citados, uma vez que seria improvável que Lampião estivesse presente nos

dois episódios.

A informação procedente de Sergipe nos parece mais aceitável, uma vez que a

historiografia30 e os memorialistas, baseados nos depoimentos do ex-cangaceiro Zé-Sereno,

da sra. Anízia (vítima da barbárie e selvageria dos cangaceiros) e do coronel José Rufino (ex-

perseguidor de cangaceiros, comandante das forças pernambucanas) confirmam que Lampião

esteve com seu bando em Canindé do São Francisco no ano de 1932, e marcou a ferro três

mulheres que viviam nesta localidade.

O ano de 1934 foi relativamente tranqüilo quanto à movimentação dos

cangaceiros. Em 25 de abril31 deste ano, o redator de o Diário da Tarde descreve um embate

travado entre a volante baiana (“forças irregulares”) e o bando de Lampião. Nesta, um

coiteiro cujo nome não é revelado, foi surpreendido pela volante no momento em que iria

comprar mantimentos para o grupo que estava refugiado em sua propriedade. Contou à

volante que o grupo era constituído por 17 homens e 6 mulheres.

A volante obrigou o coiteiro a levar mantimentos envenenados com cianureto

para os cangaceiros, o que seria pouco eficaz, já que Lampião tinha o costume de mergulhar

seu punhal de prata nos alimentos e bebidas que lhe eram oferecidos para verificar se havia

algum tipo de veneno. Ou ordenava ao “ofertante” prová-los primeiro. Sendo assim, se

descobrisse que a pessoa tentou envenená-lo, esta seria morta imediatamente sob o efeito do

alimento que foi obrigado a ingerir. O coiteiro provavelmente tinha consciência das

29
O Estado de S. Paulo, 2/02/1932, p. 2.
30
Sobre o assunto consultar a historiografia: BARROS, Luitgarde Oliveira C. A derradeira gesta: Lampião e
Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Faperj/Mauad, 2000, p. 43 (depoimento da Sra Anízia, à
antropóloga em 1967) e QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os Cangaceiros. São Paulo: Livraria Duas Cidades,
1977, p. 154 (depoimento do coronel José Rufino) Entre os memorialistas consultar: ARAÚJO, Antônio A. C.
de. Lampião as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p. 78-79 (depoimentos do coronel João Bezerra
e do cangaceiro Zé-Sereno) e FERREIRA, Vera e ARAÚJO, Antônio A. C. De Virgolino a Lampião. São
Paulo: Idéia, 1999, p. 210-211 (depoimento do ex-cangaceiro Zé-Sereno).
67

implicações que lhe recairiam se tentasse enganar Lampião, e tratou logo de contar o plano da

polícia deixando-os de sobreaviso para o confronto.

O pânico dos populares com a possibilidade de terem seus povoados invadidos

pelos bandoleiros, também fica explícito nesta notícia. Mostra também as péssimas condições

das forças contratadas que não recebiam meios de subsistência.

Abordamos, anteriormente, o caráter heróico das forças policiais, que mesmo sem

o apoio dos populares, e sem muitos recursos financeiros e armamentícios, prosseguem no

encalço dos bandidos. Referimo-nos também ao “exagero”, utilizado pela polícia para

enfatizar sua coragem e valentia frente aos bandidos. Sendo assim, muitas vezes aumentavam

o número de cangaceiros nos combates para justificar perdas, e até mesmo o fracasso de uma

empreitada. Tal argumento pode ser observado na notícia “Repressão ao Banditismo”32,

veiculada uma semana após o combate ocorrido na Bahia, num local distante quatorze

quilômetros da localidade de Parapiranga, onde a polícia enfatiza que o grupo era composto

por 30 homens, sendo que na semana anterior o coiteiro revelara que o grupo era composto

por 17 homens e 6 mulheres, somando um total de 23 pessoas. Fica claro que as forças

policiais aumentaram o número de bandidos para justificar o fracasso frente aos bandoleiros.

Se não fosse assim, por que então não revelaram a presença de mulheres no grupo? De acordo

com o coiteiro, dos 23 elementos, 6 eram mulheres, o que se traduz na presença de 17 homens

e não 30.

A polícia baiana, liderada pelo tenente Ladislau Reis, admite que: “No combate

morreu um policial e ficaram feridos alguns malfeitores que eram em número de 30. Nenhum

foi, porém, preso, visto terem sido transportados pelos companheiros”. Mostra-se otimista

quando afirma que “Com o actual plano de repressão os cangaceiros tem diminuído”.33

31
O Estado de S. Paulo 25/04/1934, p.2.
32
O Estado de S. Paulo 2/05/1934, p.14.
33
Idem
68

No decorrer de nossa pesquisa, deparamo-nos com a notícia da morte e o

sepultamento de Lampião em Pernambuco, em 20 de maio de 193434. A matéria é pródiga em

detalhes sobre o ocorrido. Lampião teria sido ferido em combate e falecido posteriormente em

função do desgosto de ter perdido o irmão caçula, e teria sido enterrado por seu pai. O

conteúdo desta notícia se caracteriza pelo uso da fantasia e da fábula.

O desejo expresso de inconformismo com a realidade do banditismo e o de vê-lo

extinto, fez o Sr. Manuel Cândido, delegado de Pernambuco, aceitar prontamente a morte de

Lampião, fornecendo à imprensa os detalhes sobre o estado emocional do cangaceiro que de

acordo com sua descrição “andava macambuzio depois da morte de seu irmão mais moço(...),

por isso, arrefecido em sua valentia (...) O famoso bandoleiro, ultimamente, andava

amparado em muletas e tinha os olhos lacrimejantes, vindo a falecer acabrunhado de

desgosto pela morte de seu irmão”. Essa notícia apresenta dois problemas: o primeiro diz

respeito ao enterro de Lampião feito pelo pai, uma vez que isso é impossível em decorrência

do mesmo ter falecido em 1921. O segundo, refere-se à perda do irmão caçula Ezequiel

Ferreira (cangaceiro-Ponto Fino). Este já havia falecido em 1931, o que torna improvável os

problemas emocionais apontados em decorrência destas perdas.

Nesta mesma matéria revela-se, ainda, que Lampião tinha duas amantes,

“caboclas e bonitas” 35. É possível que Lampião tenha tido casos extraconjugais, porém não

se pode afirmar que ele andava publicamente com outras mulheres, pois vivia maritalmente

com Maria Bonita. A atribuição de amantes a Lampião pode ser pensada como parte da

constituição do mito do cangaceiro que começa ser construído pela própria imprensa que,

além da fama de valente, também aparece como sedutor.

O cangaço foi alvo de destaque nos noticiários diários da imprensa em diversas

partes do Brasil, e não se restringiu apenas à região nordestina. Passou a ganhar repercussão

34
O Estado de S. Paulo, 20/05/1934, p. 8.
69

na imprensa a partir das façanhas de Lampião, que se destacava nos noticiários por sua

valentia, coragem e destemor. Não demorou muito para que fosse reconhecido nacional e

internacionalmente.

O reconhecimento do cangaço em âmbito internacional foi visto por alguns

brasileiros de maneira muito negativa, pois refletia a “barbárie” e a “incivilidade” dos

brasileiros. Neste sentido, o texto assinado por F., intitulado Lampeão36, publicado no Rio de

Janeiro no dia 05 de agosto de 1938, e retransmitido pelo jornal O Estado de S. Paulo quatro

dias após a publicação carioca, mostra-se valioso para compreendermos a concepção deste

indivíduo, que embora se encontre distante da zona afetada pelo cangaceirismo, analisa de

modo crítico e se posiciona a respeito do mesmo. Publicado oito dias após o massacre em

Angico (Sergipe)37, no qual morreram Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros, F.

mostra-se indignado com o sensacionalismo apregoado pela imprensa, que tem “ comentado

largamente a façanha das volantes de um dos Estados do Nordeste, que acabam de eliminar

o sinistro “Lampeão”. Photographias dos bandidos, photographias dos mortos na refrega,

photographias dos “heróes” das milícias estaduais, tudo isto, (....) tem sido publicado com

abundância e destaque pelas folhas brasileiras”38. Enfatiza que este procedimento da

imprensa causa-lhe repugnância; além disso, considera muito prejudicial para o país, pois

acredita que tais notícias não demorariam muito para transpor o “Atlântico” e parar nas

manchetes dos “grandes jornais europeus ou estadonidenses...”39

Observa-se na narrativa de F. uma certa inquietação com a repercussão destas

notícias no exterior, e com a imagem formada a respeito do Brasil. Em sua concepção, a

imprensa sensacionalista contribuiu significativamente para a formação do mito do cangaço,

uma vez que veiculou de maneira exacerbada fotografia de cangaceiros mortos, cabeças

35
Idem, p.8
36
O Estado de S. Paulo, 09/08/1938, p.3.
37
O Estado de S. Paulo, 29/07/1938, p.2.
70

decepadas dos corpos, entre outros, transpondo dessa maneira o cangaço de um âmbito

regional para um internacional.

Em seu entendimento, tal perspectiva comprometia a imagem do país, que ficava

associada à “barbárie”, dando a impressão de que o mesmo era “incivilizado”. Justifica que

esta visão não poderia ser generalizada, pois o cangaço teria sido um fenômeno regional,

circunscrito, portanto, ao sertão nordestino. Esta afirmação se evidencia no seguinte trecho de

sua narrativa: “(...) lá estão, aos olhos das multidões de paízes civilisados, alguns aspectos do

interior do Brasil!”.

Para esse leitor os fatores sócio-econômicos justificam a emergência do cangaço

que se forja pela ausência de instrução que resulta da miséria reinante no sertão, e promotora

do banditismo. Em seu entendimento, a alfabetização da população solucionaria o banditismo

e sua rede de relações, pois acabaria com o fanatismo religioso exacerbado, proporcionando à

população um senso crítico. Enfatiza que: “Todos esses males, entretanto, provêm única e

exclusivamente, como tanto se tem dito, da falta da cartilha. Alphabetisem-se os sertões, e

adeus bandidos, adeus santos, adeus “coiteiros”. Ressalta que a postura negligente e apática

dos governantes diante de tal problema contribui para agravar a emergência e a

disseminação do banditismo nas zonas sertanejas e acrescenta que:“(...) o ‘cangaço’ é um

flagello tão grande quanto o das seccas periódicas, o da falta de transportes, o da crendice

das populações sertanejas, que acreditavam na invulnerabilidade do facínora do ‘corpo

fechado’ ”40.

O comprometimento da imagem do país também é abordado por um colaborador

carioca - que não se identifica - na matéria intitulada A cabeça de Lampeão41, publicada logo

após o “desabafo” de F., reproduzida pelo O Estado de S. Paulo em 16 de agosto. Nesta

38
O Estado de S. Paulo, 09/08/1938, p.3.
39
Idem
40
Ibidem
71

matéria, o autor anônimo corrobora os argumentos de F. sobre a veiculação indiscriminada e

sensacionalista das notícias a respeito da morte de Lampião e alguns de seus seguidores,

postura que se estende ao “sensacionalismo sem limites” da imprensa brasileira.

O foco de sua narrativa, entretanto, circunscreve-se ao Rio de Janeiro,

mostrando-se surpreso com a possibilidade de exposição das cabeças decepadas dos

cangaceiros na então Capital da República. A manchete de um jornal carioca (o autor não

revela qual) ressalta: “Serão expostas no Rio as cabeças de Lampião e Maria Bonita”.

Defende veementemente que: “Há de haver engano. Não podemos crer que os

fóros de cidade civilisada, de que tão zelosos se mostram os cariocas, sejam afrontados por

esta injúria”. Ressalta que tal comportamento é compreensível no Nordeste: “(...) quando em

Alagôas as cabeças dos cangaceiros, decepadas aos cadáveres, foram transportadas em

salmoura, em latas de kerozene, para a Capital do Estado, onde esses macabros trophéus

sangrentos foram expostos à curiosidade mórbida do público42”.

O autor anônimo se recusa a aceitar esta manchete como verdadeira; prefere

acreditar que houve “um lamentável engano por parte do matutino que hontem a divulgou”.

Incita as autoridades federais, “num movimento de pudor”, a impedir a exibição dos despojos

de Lampião e Maria Bonita, caso a manchete se concretize. Argumenta que “Já é tempo, por

certo, de se deixar agitar este assumpto diante dos olhos do público. Não é pouco o que

ultimamente já se tem feito para rebaixar o nível de nossa civilisação”43.

Embora censure o sensacionalismo, concorda com o envio das cabeças para a

Faculdade de Medicina da Bahia, e justifica a conservação destas, “como objeto de estudo”.

Termina seu texto da seguinte forma: “E que fique ahi encerrado o assumpto, que não nos faz

honra nenhuma. Afinal de contas, o Brasil não é isso!”, revelando um profundo sentimento

41
O Estado de S. Paulo, 16/08/1938, p. 1
42
Idem
43
O Estado de S. Paulo, 16/08/1938, p. 1
72

nacionalista, sobretudo de cidadão carioca, onde a prática da barbárie é perfeitamente

aceitável no interior de alguns Estados nordestinos, porém não na “civilisada” Capital da

República.

1.2- Correio da Manhã.

O tema do cangaço foi amplamente discutido pelo Correio da Manhã, que em

suas páginas mantém um intenso debate sobre o fenômeno. O periódico carioca não tinha uma

coluna específica para discutir esta problemática; os artigos sobre o banditismo estão

espalhadas ao longo de suas páginas. Cabe destacar, entretanto, que possuía uma coluna

intitulada Os Estados pelo telégrafo, na qual informa os acontecimentos mais importantes dos

diferentes Estados do país, dentre elas algumas referências ao cangaço. Diferentemente de O

Estado de S. Paulo, que ao retransmitir as notícias veiculadas nos jornais nordestinos locais

acaba reforçando a concepção do poder constituído, o periódico carioca por meio de seus

intelectuais (articulistas e colaboradores), busca compreender ao longo de suas matérias as

causas que permitiram o surgimento de tal fenômeno e sinaliza para algumas possibilidades

de controle do banditismo.

O jornal Correio da Manhã foi fundado em 15 de junho de 1901, por Edmundo

Bittencourt, e circulou durante 73 anos, sendo extinto em 1974. Destaca-se por ser um

“jornal de opinião”, respaldado em idéias liberais. Apesar de posicionar-se a favor do

federalismo e da legalidade, manteve-se avesso tanto à neutralidade quanto ao compromisso

partidário. Era um jornal de opinião, que se posicionava frente às mais variadas questões sem

se vincular a políticos.
73

De acordo com Carlos Eduardo Leal44, o periódico apresentou-se como “defensor

da causa da justiça, da lavoura e do comércio, isto é, do direito do povo, de seu bem estar e

de suas liberdades”. Leal enfatiza que uma característica marcante do periódico é a sua

“aproximação com as camadas menos favorecidas da sociedade”. Constituiu-se num

ferrenho opositor da situação e ao poder da velha oligarquia republicana. Posicionou-se

contra qualquer ação violenta e coercitiva praticada pelo poder constituído contra a população

e defendia o direito à liberdade e à legalidade. Seus articulistas criticavam os abusos de

poder e os atos violentos praticados pelo governo, sobretudo durante a vacinação contra a

varíola no Rio de Janeiro. A atitude do jornal refletia sua posição frente a um fenômeno mais

amplo, o “desenvolvimento urbano-industrial do Rio de Janeiro”, cujas medidas de

saneamento e remodelação da cidade atingiram, sobretudo os setores populares que foram

deslocados de suas moradias (cortiços) no centro da cidade para a periferia, na maioria dos

casos sem indenizações.

Os principais articulistas do jornal nas décadas de 20, 30 e 40 foram: Edmundo

Bittencourt45 (proprietário), Mário Rodrigues (assumiu a direção em 5 de julho de 1922 após

a prisão de Edmundo Bittencourt), Gil Vidal46 (pseudônimo de Leão Veloso Filho), o senador

alagoano Pedro da Costa Rego47 (redator-chefe em 1923), Paulo Bittencourt48 (recebe do pai a

44
LEAL, Carlos Eduardo. Correio da Manhã. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930.
ABREU, Alzira Alves de (coord.). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. III, p. 1625-1632
45
Edmundo Bittencourt jornalista e fundador do periódico carioca Correio da Manhã. FERREIRA, Marieta de
Morais. Paulo Bittencourt. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. ABREU, Alzira
Alves de (coord.). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. I, p. 687-688.
46
O articulista Pedro Leão Veloso Filho escreve para o Correio da Manhã, com o pseudônimo de Gil Vidal, no
qual assume o cargo de redator-chefe. Veloso Filho foi fazendeiro em São Paulo, graduado em direito exerceu e
lecionou a disciplina. Também acumulou os cargos de juiz e promotor público. Em 1884, ocupou o cargo de
chefe de polícia do Paraná, e de São Paulo em 1889. Além disso, foi presidente da província de Alagoas durante
o período de julho a agosto de 1888 e deputado federal de 1906 a 1917. PECHMAN, Robert. Pedro Leão
Veloso. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. ABREU, Alzira Alves de (coord.). Rio de
Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. V, p. 6015-6016.
47
Pedro da Costa Rego nasceu em Pilar (AL) no dia 12 de março de 1889. Em 1900 mudou-se para o Rio de
Janeiro, onde cursou o ginásio no Colégio São Bento. Em 1907 inicia sua carreira jornalística como colaborador
da Gazeta de Notícias e do Correio da Manhã, ambos no Rio de Janeiro. Iniciou sua carreira como revisor,
depois como repórter e foi gradualmente ascendendo na hierarquia do jornal. Em 1912 tornou-se secretário de
Agricultura do estado de Alagoas. Elegeu-se deputado federal por Alagoas na legenda do Partido Democrático
de seu estado em 1915-1918. No ano seguinte viajou para Paris como representante do Correio da Manhã com o
74

direção do jornal em 1929), M. Paulo Filho (diretor em 1934), Rodolfo Mota Lima49, Carlos

Lacerda50 e alguns colaboradores.

intuito de acompanhar os trabalhos da Conferência da Paz. Em 1921, foi reeleito deputado federal, e assumiu a
liderança de seu partido. Dois anos depois, tornou-se chefe-redator do Correio da Manhã. Em 1924 elegeu-se
governador de Alagoas, cargo que exerceu até 1928. Criou em 1932 uma coluna no Correio da Manhã, na qual
defendia o federalismo e criticava o governo revolucionário. Além disso, denunciava os gastos indevidos do
governo e criticava, sobretudo, atuação de Osvaldo Aranha à frente do Ministério da Fazenda. Constantemente
vigiado pela censura, Costa Rego demonstrava irreverência e satisfação em ter o censor como um leitor
assíduo. Em 1935, reelegeu-se senador por Alagoas e teve o mandato interrompido com a decretação do
Estado Novo (1937-1945). Entretanto, isso não o afastou da vida política. Em 1945, com o enfraquecimento do
Estado Novo, participou da primeira reunião do diretório nacional da União Democrática Nacional (UDN). Em
1951 atuou como delegado brasileiro na Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em
Nova Iorque. Colaborou como o jornal carioca O Século, e ocupou o cargo de diretor do Banco de Crédito e
Comércio de Minas Gerais. Faleceu em 1954 na cidade do Rio de Janeiro. ABREU, Alzira Alves de (coord.).
Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. V, p. 4945-
4946.
48
Paulo Bittencourt nasceu no Rio de Janeiro em 1895, filho de Edmundo Bittencourt e de Amália Muniz Freire
Bittencourt. Em 1912 fez cursos na Universidade de Cambridge, Inglaterra, e no ano seguinte, de volta ao
Brasil, ingressou na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Integrou em 1919 a delegação
brasileira na Conferência de Paz de Versalhes, França. Nesse mesmo ano começou a trabalhar no jornal de seu
pai – Correio da Manhã – tornando-se chefe-redator em 1929, daí por diante sua vida se confundiria com a
história do jornal. Manteve a linha que caracterizou o periódico desde o início como um órgão combativo,
participante e isento de compromissos partidários, constituindo-se num jornal de opinião. Apoiou a Revolução
de 1930, contudo pouco tempo depois começou a fazer críticas e oposição ao governo de Getúlio Vargas,
defendendo a reconstitucionalização do país. Em 1932 o jornal se manifestou favorável à Revolução
Constitucionalista de São Paulo. Nem mesmo a convocação da Assembléia Nacional Constituinte em 1933 e a
eleição de Vargas à presidência minimizaram as críticas do jornal ao chefe Executivo, acusado de manipular o
processo político para manter-se no poder. Paulo Bittencourt, por meio do jornal, moveu intensa campanha
contra Vargas. Em 1937, com a decretação do Estado Novo, toda a imprensa sofreu rigorosa censura. Contudo,
o periódico manteve-se na oposição e desenvolveu intensa luta pela liberdade de imprensa. Essa campanha
rendeu a Paulo Bittencourt o Prêmio Maria Moors Cabot, concedido pela Universidade de Columbia, EUA.
Bittencourt participou ativamente da política do país, por meio do jornal, criticou toda e qualquer forma de
opressão e censura. Defendeu os direitos à liberdade e à legalidade opondo-se aos governantes que
desrespeitassem tais direitos. Em 1963, em função de sérios problemas de saúde se afastou das atividade do
jornal. Faleceu em agosto desse mesmo ano em Estocolmo, na Suécia. FERREIRA, Marieta de Morais. Paulo
Bittencourt. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. ABREU, Alzira Alves de (coord.).
Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. I, p. 687-688.
49
Rodolfo Pinto da Mota Lima, natural de Alagoas, nasceu em 22 de fevereiro de 1891. Realizou os primeiros
estudos em seu estado de origem, e concluiu o curso secundário no Rio de Janeiro. Iniciou atividade
jornalística como redator do Correio da Manhã em 1911 e redator-secretário de A Notícia até 1920. Pertenceu
ao Partido Liberal Democrata em 1922. Participou ativamente do movimento revolucionário de 1930, que
depôs o presidente Washington Luís. Em 1931, tornou-se funcionário municipal no Rio de Janeiro, e entrou
para o Clube 3 de Outubro, organização criada em maio desse ano, que tinha como objetivo congregar as
correntes tenentistas partidárias da manutenção e do aprofundamento das reformas instituídas pela revolução.
Em 1934, elegeu-se deputado por Alagoas; na Câmara combateu o fascismo, condenou os nacionalistas
espanhóis, a invasão da Abissínia pelos italianos e a atuação dos integralistas no Brasil. Com a decretação do
Estado Novo seu mandato foi interrompido em função da dissolução dos órgãos legislativos do país. Em função
de sua militância política foi preso nesse mesmo ano. Durante o período da Segunda Guerra Mundial (1939-
1945) voltou a exercer função jornalística em O Globo e ocupou outros cargos públicos pela prefeitura do Rio
de Janeiro. Faleceu nessa mesma cidade em 8 de março de 1948. ABREU, Alzira Alves de (coord.). Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. III, p. 3186-3187.
50
Carlos Frederico Werneck de Lacerda, nasceu em 30 de abril de 1914, no Rio de Janeiro, e realizou os cursos
primário e secundário em sua cidade natal. Iniciou sua carreira profissional em 1929, escrevendo artigos para o
Diário de Notícias, numa seção dirigida por Cecília Meireles. Em 1932, ingressou na Faculdade de Direito da
Universidade do Rio de Janeiro, contudo abandona o curso dois anos depois, alegando que não correspondia
com suas expectativas. A família de Lacerda altamente politizada se destaca pela intensa participação no
75

O tema do cangaço na década de trinta foi debatido a partir de perspectivas

distintas. Destacam-se sobretudo as concepções do articulista M. Paulo Filho, do jornalista e

colaborador Mattos Ibiapina, do professor e colaborador Ignacio Raposo, do colaborador José

Carvalho, e ainda, dos deputados: Daniel de Carvalho51, Amaral Peixoto e Gratuliano de

Brito52, pelo colaborador Bastos Tigre entre outros.

cenário político do país, seu pai foi eleito deputado federal de 1912 a 1920, revolucionário de 1922 e 1924 e
novamente deputado federal e revolucionário em 1930. Além disso, foi membro ativo da Aliança Nacional
Libertadora (ANL), e acusado de envolvimento no levante comunista de 1935. Fernando e Paulo Lacerda, tios
de Carlos Lacerda, foram líderes do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ainda na universidade aproximou-se
da Federação da Juventude Comunista, órgão do PCB, que objetivava debater formas de luta contra a
expansão do fascismo no Brasil, representado pela Ação Integralista Brasileira (AIB). Sua trajetória de vida é
marcada pelo envolvimento e atuação na política do país frente a ANL e o PCB. Em 1939 Lacerda rompe com
os comunistas, de acordo com Vilma Keller, ele teria se convencido de que a “solução comunista”, implicava
na instituição de “uma ditadura, pior do que as outras, porque muito mais organizada, e, portanto, mais difícil
de derrubar”. Em um artigo encomendado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Lacerda
descreveu a trajetória do comunismo no Brasil e teria afirmado no final que “graças ao Estado Novo, o PCB
havia sido desbaratado e seus líderes presos”. Tal declaração teria causado indignação entre os comunistas que
lhes acusaram de traidor. KELLER, Vilma. Carlos Lacerda. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro –
Pós 1930. ABREU, Alzira Alves de (coord.). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. III, p. 2979-2990.
51
Daniel Serapião de Carvalho nasceu em Itabira (MG) no dia 9 de outubro de 1887. Após cursar o primário e o
secundário em Barbacena –MG, seguiu para Belo Horizonte, matriculando-se na Faculdade de Direito. Em
1906, assumiu a direção do jornal O Estado de Minas, no qual permaneceu até 1914. Também foi redator da
Tribuna do Norte e do Diário de Notícias. Em 1912, transferiu-se para o Rio de Janeiro, por ter sido nomeado
inspetor da Fazenda Federal. Em 1913 retornou a Belo Horizonte, local em que exerceu importantes cargos
públicos. Em 1922, Daniel de Carvalho elegeu-se deputado estadual pelo Partido Republicano Mineiro (PRM).
Nesse mesmo ano renunciou ao mandato de deputado para assumir a Secretaria de Agricultura, Viação e Obras
Públicas do Estado. Foi eleito deputado federal na legenda do PRM para o período de 1927-1929. Carvalho se
identificou com os propósitos da Aliança Liberal, formalmente criada em agosto de 1929. Apoiou as
candidaturas de Getúlio Vargas e de João Pessoa , respectivamente para presidência e vice-presidência. A
trajetória política de Carvalho é ampla, contudo destacamos sua atuação na Assembléia Nacional Constituinte
em 1933, eleito pelo PRM. De acordo com Silvia Pantoja, “defendeu na Assembléia o federalismo e a
autonomia dos municípios, os quais, em sua opinião, estavam cerceados na sua liberdade cívica e política
devido ao controle exercido pelos chefes locais sobre os cidadãos (...)”. Ao longo de sua carreira política atuou
como deputado federal inúmeras vezes e assumiu a pasta do Ministério da Agricultura em 1946, onde
permaneceu até 1950. Além da política, exerceu a cátedra de direito civil na Pontifícia Universidade Católica
(PUC) do Rio de Janeiro e a de instituições de direito privado na Faculdade Nacional de Ciências Econômicas,
na qual lecionou direito internacional e comercial. PANTOJA, Silvia. Daniel de Carvalho. In: Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. ABREU, Alzira Alves de (coord.). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC,
2001, v. I, p. 1168-1170.
52
Gratuliano da Costa Brito nasceu em São João do Cariri (PB) no dia 6 de setembro de 1905. Bacharelou-se em
ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito de Recife em 1926. Em 1930 filiou-se à Aliança Liberal,
após a revolução de outubro desse ano foi convidado a integrar a Comissão Corregedora da Justiça Federal na
Paraíba. Em 1932 foi efetivado como interventor federal na Paraíba. Durante seu governo inaugurou o porto de
Cabedelo, cujas obras tinham sido iniciadas na gestão anterior. Organizou as polícias militar e civil, e
reestruturou o sistema de arrecadação do estado. Em 1934, foi eleito deputado federal pela legenda do Partido
Progressista (PP) da Paraíba, permanecendo no cargo até 1937 quando o golpe do Estado Novo suprimiu todos
os órgãos legislativos do país. Afastado da política, atuou como delegado da Associação Comercial da Paraíba
junto à Federação das Associações Comerciais do Brasil. Também se dedicou a atividades jornalísticas e
empresariais. Faleceu no Rio de Janeiro no dia 27 de janeiro de 1982. ABREU, Alzira Alves de (coord.).
Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. I, p. 826-827.
76

O jornalista e colaborador cearense Mattos Ibiapina53 ao ser entrevistado pelo

Correio da Manhã acerca da polêmica entrevista do sr. João Pessoa, governador da Paraíba,

ao jornal O Globo, na qual atribui o crescimento do banditismo à “ impunidade em que vivem

os bandidos profissionaes do Nordeste, atribue o facto á protecção que certos governos dao

aos elementos dos cangaço entre os quaes cita o Ceará”.

Questionado a respeito do conteúdo desta entrevista, Mattos Ibiapina reafirma

esta prática por alguns estados nordestinos. Porém, esclarece que naquele momento a

acusação que recaía sob o Ceará não fazia sentido. Afirma que é “ uma grave injustiça por-

se em destaque a administração cearense como responsável pelas difficuldades da repressão

do banditismo. A polícia cearense, actualmente, não tem se collocado a serviço dos chefes de

cangaço. Ao contrário, todos estes figurões até agora têm vivido afastado do convívio dos

governantes cearenses”. Destaca que o chefe de polícia do Ceará é “um moço ainda não

estragado pela politicagem” e justamente por isso, “sua demissão já tem sido pleiteada pelos

políticos que cercam o governo”.

Mattos Ibiapina esclarece que concorda em parte com a fala de João Pessoa;

contudo, mostra-se contrário a sua opinião a respeito do Ceará. Argumenta que pode se

acusar este Estado de “pae, mãe, avô, avó, da fraude eleitoral, nunca, porém, de comparsa

do cangaceirismo”. Nota-se na fala do jornalista que ele admite sérios problemas no campo

da política, sobretudo fraudes eleitorais. Entretanto, ressalta o esforço deste estado em

combater o banditismo.

O Correio da Manhã indaga a Mattos Ibiapina sobre a figura polêmica e

emblemática do padre Cícero, considerado um “protector de bandidos”. Ibiapina salienta que

o “patriarcha de Joazeiro é o cidadão de maior prestigio pessoal deste paiz. Em todos os

53
Correio da Manhã, 14/01/1930, p. 3.
77

sertões do Nordeste, Goyaz e Matto Grosso, a sua palavra é acatada como a de um oraculo,

sendo de notar que onde elle tem mais força sobre os mesmos é no Ceará”.

Justifica que padre Cícero “recebe em Joazeiro, o bandido mais temível, pelos

mesmos motivos porque acolhe o político perseguido ou a decaída que recorre aos seus

conselhos”. Fica evidente neste trecho que o jornalista deseja desvincular a imagem do

religioso do banditismo. Em seu entendimento, o padre é um orientador espiritual e como tal

deve dar assistência a toda e qualquer pessoa independentemente de suas práticas ou

contravenções.

Referindo-se a uma conversa que teve com padre Cícero a respeito do banditismo,

procura sintetizar a posição do religioso sobre o assunto. De acordo com Ibiapina, o padre

discordava do ponto de vista dos governantes. Para ele os cangaceiros eram:

(...) victimas das injustiças ambientes. Geralmente, o seu primeiro crime era
um acto de reacção contra violências das polícias ou dos elementos políticos
protegidos pelos governos. Vendo inúteis os seus esforços para obter
reparação dentro da lei, elles, porque eram fortes resolviam fazer justiça por
suas mãos (...) Perseguidos, elles reagiam a principio individualmente e
depois reunidos em grupo. Os roubos e assassinatos que se succediam a esse
passo, eram impostos pelas necessidades de defesa. Elles são victimas do
meio.54

O padre Cícero teria acrescentado ainda que:

Quando elles me procuram nas suas aperturas, eu os mando para Goyas,


recomendando-os a amigos que ali possuo. Ao abrigo das perseguições
policiaes, os bandoleiros comprehendem que a vida honesta é menos
trabalhosa e dedicam-se a profissão de creadores, logrando, frequentemente
fazer fortuna.

Na versão apresentada pelo jornalista, o banditismo se justifica para o padre em

função das injustiças sociais tanto na esfera política como na jurídica. O padre atribui aos

próprios governantes as causas do banditismo no Nordeste, ou seja, à corrupção política, ao

uso da violência pelo poder constituído e à ausência de uma justiça legal e efetiva. Fica claro

nestes trechos a concepção de cangaço para o religioso, e ainda, que foi um dos maiores
78

coiteiros de Lampião, e que manteve uma ampla rede de relações entre cangaceiros e seus

“amigos” em Goyas.

Na opinião de Ibiapina, “o banditismo só existe nos Estados em que os governos

se desregram. Onde há administração honesta, política de respeito aos direitos essenciais á

vida em sociedade, o ambiente não permitte a existência do bandolerismo profissional”. Fica

evidente que tanto na opinião do jornalista como na do religioso, o cangaço se constitui num

problema de cunho político, ou melhor, da politicagem corrupta.

Ao ser indagado pelo Correio da Manhã sobre as possíveis soluções para o fim do

banditismo, o jornalista expressa certo pessimismo quanto ao assunto. Enfatiza que é

“impossível” por fim ao cangaço enquanto “houver governos que ponham em prática os

mesmos processos dos bandoleiros”.

No trecho acima, Ibiapina se refere à aliança de políticos no Ceará que durante o

governo do desembargador Moreira da Rocha, “mandavam os criminosos de Lampeão

saquear cidades nos Estados vizinhos e com elles dividir o producto do roubo”. Daí a

afirmação de que alguns governos agiam como os bandoleiros. Sendo assim, em seu

entendimento seria “impossível e injusto, prender Lampeão que é um valente que arrisca a

vida na execução de seu programa e deixar que os Dantas e os Moreirinhas, continue uma

iniquidade”. Para ele, o que diferencia estes políticos de Lampião, é que este último vive à

margem da lei, enquanto aqueles a “representam”. Portanto, para Ibiapina a solução para o

cangaço deveria partir dos próprios governantes.

A posição de Ibiapina é compartilhada por um colaborador anônimo55, que

enfatiza a complexidade que envolve a “extinção do cangaço”. Salienta que mesmo que

sejam tomadas as armas, ainda permanecerá o “espírito de cangaceirismo, por força das

54
Correio da Manhã., 14/01/1930, p. 3
55
Correio da Manhã,19/01/1930, p. 2.
79

próprias condições sociais em que o arbítrio dos fortes substitui as normas da boa justiça”.

Destaca que é preciso proporcionar “às populações do nordeste as garantias necessárias,

materiaes e moraes”56, que possibilitem o desenvolvimento de uma vida digna, oferecendo

condições de trabalho aos sertanejos, educação e a aplicação dos preceitos da lei. Enfim, que

proporcionasse novos caminhos de sobrevivência aos sertanejos, afastando-os da

criminalidade.

O articulista do Correio da Manhã, M. Paulo Filho discorre em seu artigo As

lendas dos bandidos do Nordeste57 sobre a problemática do cangaço. Destaca que a

“imaginação popular ama e cultiva as lendas, nellas encontrando sempre motivos de emoção

e poesia”. Refere-se á crescente divulgação das práticas dos cangaceiros, por meio da

literatura de cordel, que em sua grande maioria descreve-os como:

(...) heróes, victimas da fatalidade de um destino de que não são culpados,


reagindo contra um meio que lhes é hostil. Então, os casos de família, da
honra ultrajada, de falta de justiça social, atirando os malfeitores á existência
nômade e do crime, fazendo-os vagabundos errantes pelas serras, pelas
gargantas, pelos rincões e pelas caatingas, surgem em profusão.

Critica tal perspectiva e argumenta que elementos como o exagero e invenção

alimentam o imaginário popular, e acabam reforçando esta interpretação. Atribui tal

mecanismo ao atraso do nordeste em relação ao sul e à manobra política de alguns

governantes.

O conceito de representação de Chartier nos permite compreender esse

mecanismo, pois a construção veiculada pelo cordel acaba reforçando as práticas dos

bandidos, ou seja, a representação desta imagem leva á ação dos bandoleiros. Estes

interiorizam as construções veiculadas, e as exteriorizam a partir de suas práticas, compondo

desta forma determinada representação do “ser cangaceiro”. Lampeão, dentre muitas facetas,

destaca-se pela fama de valente, viril, sedutor. Esses traços de sua personalidade são

56
Ibidem
57
Correio da Manhã, 24/01/1930, p. 4.
80

constantemente alimentados por ele, como evidenciam algumas de suas fotografias em

jornais de grande circulação como O Globo, e algumas revistas ilustradas do país, como: A

Noite Ilustrada e A Barata 32.

M. Paulo Filho torna-se um dos ferrenhos críticos do cangaço, e procura em suas

matérias problematizar a questão destacando as causas e as possíveis soluções para por fim ao

banditismo nas zonas sertanejas. Em matéria publicada em 14 de janeiro de 1930, recupera a

opinião do padre Cícero enunciada pelo jornalista Mattos Ibiapina, e critica de maneira

contundente a postura do religioso questionando seus argumentos:

O padre conhece perfeitamente a Lampeão, desde menino. É seu guia


espiritual, o seu protector e a elle o bandido obedece cegamente. Não disse,
porém, que violência da polícia ou dos elementos políticos levou o
cangaceiro a se armar para assassinar e saquear pelos sertões de nove Estado.

O trecho acima desvela uma questão significativa para pensarmos o banditismo,

ou seja, a prática da violência. De acordo com M. Paulo Filho, o uso da força pelos poderes

constituídos agravam e engendram novas formas de violência, ou seja, reforçam e alimentam

a ação dos cangaceiros na região sertaneja. Além disso, contribuem para a banalização desta

prática.

Prossegue sua crítica ressaltando que as lendas sobre Lampião são reforçadas

pela figura emblemática do “reverendo Cícero Romão”. Destaca quão nocivas são essas

lendas, e como atuam “irresistivelmente na intelligência e no espirito das creanças, deixam-

lhe a impressão de que os bandoleiros são uns inocentes e uns justos, enquanto que a

sociedade, que os persegue para delles se defender, é que é a peor bandida”58. Discordando

da concepção do religioso argumenta que o cangaço não se configura numa conseqüência do

meio, mas, numa profissionalização do crime.

58
Correio da Manhã, 24/01/1930, p. 4.
81

Diante do descontentamento e dos debates gerados em função de sua entrevista

ao Correio da Manhã, o jornalista Mattos Ibiapina esclarece, em O banditismo no

nordeste59, sua posição a respeito do cangaço. É enfático ao atribuir à política as causas do

banditismo, além da falta de justiça e de instrução da população. Diz o jornalista:

O bandido é uma creatura, producto do ambiente político-social agindo em


meio physico propício á vida de aventuras. O proletariado rural dos sertões
vive sem justiça, sem instrucção, sem disciplina religiosa. O apparelhamento
da justiça representado pelo juiz e pelo agente de polícia é manejado em
benefício exclusivo dos detentores da fortuna e dos chefes políticos60.

O trecho acima revela que para o jornalista o cangaço resulta das condições:

político, social e física dos sertões. Fica claro em sua fala que a instrução e a disciplina

aplicada a população sertaneja, seja por meio da escola ou da religião, solucionaria o

problema do banditismo. Ou seja, o disciplinamento dos populares se configura, em sua

opinião, na condição fundamental para eliminar o cangaço e criar novas condições de

sobrevivência, o que afastaria os sertanejos da marginalidade.

Cabe destacar que Lampeão, apesar de disseminar o terror e a violência, era um

indivíduo religioso e alfabetizado, o que evidencia que o problema do banditismo ultrapassa

as barreiras da disciplina escolar e religiosa. O cangaceiro carregava em seus bornais preces,

orações e alguns patuás para protegê-lo. No filme Lampeão: o rei do cangaço, produzido pelo

sírio-libanês Benjamim Abrahão Boto em 1936, há cenas dos rituais religiosos conduzidos

por Lampião, nos quais todos os cangaceiros se ajoelham em sinal de respeito para rezarem.

Tal comportamento demonstra a complexidade do universo místico e religioso no âmbito do

banditismo.

No que diz respeito à escrita, Lampião (apesar do erros de grafia) expressava-se

muito bem nos bilhetes que enviava às autoridades sertanejas dos diversos povoados, aos

59
Correio da Manhã, 29/01/1930, p. 3.
60
Ibidem
82

quais solicitava quantias em dinheiro para não invadir a localidade, ou para resgatar a vida

de algum seqüestrado ilustre.

Com relação às condições sócio-econômicas da população sertaneja, Ibiapina

destaca que os populares trabalham “apenas para viver, porque inútil é tentar fortuna”, pois

“se a seca não devora o producto do seu esforço, do bandido político-social elle não

escapa61.”

Prossegue sua crítica ressaltando que a “instrucção é para a massa do povo

palavra desconhecida”, e que a “assistência religiosa também é quasi nulla”. Dirige-se aos

religiosos de maneira dura, argumentando que o “padre que deveria ser o mentor espiritual

dos sertanejos, não tem entre nós funcção catechista. Quando não é elle mesmo, grande

proprietário e político, allia-se (...) a esses dois algozes da massa proletária. Não tem

contacto com o operário senão nas festas da egreja, que não passam de divertimentos

mundanos, de que o padre se aproveita para retirar maiores proventos de sua profissão”62.

Ibiapina destaca que este é o universo em que vive o sertanejo, como se não

bastasse tudo isso, ainda estão a mercê das forças volantes que foram recrutadas “nas mesmas

camadas sociaes de onde saem os bandidos. São compostas de indivíduos que se

especializaram como valentões, sendo muitos deles responsáveis por crimes de morte. A sua

passagem pelos sertões causa pavor á população ordeira. Satisfazendo seus instintos, elles

pelos mais futeis pretextos, commetem toda a sorte de atrocidades contra os sertanejos

indefesos”63. Critica duramente os políticos e religiosos que utilizam o poder para satisfazer

seus próprios interesses.

O jornalista conclui que “os dirigentes políticos” são os responsáveis pela

existência do banditismo no Nordeste. Alega que é necessário um trabalho de “hygienização

61
Correio da Manhã, 29/01/1930, p. 3
62
Idem.
63
Ibidem.
83

da política”, além de transformações na polícia que possibilitem a garantia de direitos aos

populares.

Argumenta M. Paulo Filho, que a solução para acabar com o cangaço, está muito

além da alfabetização, e que seria necessário investir no melhoramento e no progresso das

regiões sertanejas. No artigo A evolução do cangaço64, concebe tal fenômeno enquanto uma

profissionalização do crime, e enfatiza que ele não é uma criação da República, mas que tem

suas raízes desde o princípio da Monarquia. Afirma que era uma prática comum nos

“municípios mais remotos e mais ignorados” o uso das armas na defesa dos interesses

políticos. Na Monarquia, refere-se à figura emblemática de Antônio Vicente Mendes Maciel,

o Conselheiro de Canudos. Na República, cita o caso do coronel paraibano José Pereira Lima,

da cidade de Princesa, que para garantir seus interesses utilizava os serviços desta “gente

sinistra que vive do roubo e do assassínio”.

Na concepção de M. P. Filho fica evidente que personagens como: o beato

Antônio Conselheiro, o coronel José Pereira Lima e Lampião são igualmente considerados

cangaceiros, embora o primeiro se caracterize pelo fanatismo religioso místico, o segundo

enquanto chefe de um cangaço subordinado a partir do recrutamento de homens, e o último

pela chefia e comando de bandos independentes, que viviam no nomadismo. Todos são

igualmente qualificados como criminosos profissionais pelo articulista.

Prossegue sua crítica enfatizando veementemente que “não foi a República que

inventou o cangaço. A sua funcção tem sido, apenas a de desenvolve-lo; delle se

aproveitando conforme as occasiões. De vez em quando, finge combate-lo, para dispor de

verbas, que se desviam e para contentar os fornecedores amigos, os quaes carecem de

vender mantimentos, armas e munições a preço de Ali-Babá”.

64
Correio da Manhã, 21/03/1930, p. 4.
84

No trecho acima, o articulista indica a corrupção que envolve o mundo do crime

associado diretamente à disputa pelo poder e à cooptação política. Nota-se quão ampla é a

questão do banditismo naquela região e a complexa articulação econômica que o

movimentava. Remete-se, inclusive, ao desvio de verbas destinadas ao melhor aparelhamento

das forças policiais para o combate ao cangaceirismo, à compra irregular de armas de

“fornecedores amigos” com preços acima do valor de mercado, evidenciando uma clara

conduta de corrupção entre político, policiais e fornecedores de armamentos e munições.

Indica que o banditismo movimentava um amplo negócio naquelas zonas infestadas, e que

não era interessante por fim à “fonte” geradora de lucros e acordos políticos vultuosos.

A questão levantada por M. Paulo Filho recebe maior atenção quando voltamos

nosso olhar para a matéria veiculada em 23 de janeiro de 193065, em que o chefe de polícia

baiana, o sr. Madureira de Pinho, Secretário da Polícia e Segurança Pública da Bahia,

comenta a respeito da campanha que vem sendo desenvolvida no Estado contra o bando de

Lampião. Menciona a intensa campanha desenvolvida contra o bandoleiro e o heroísmo das

forças policiais nos confrontos que tiveram com os cangaceiros. Enfatiza que o capitão José

Bernardino de Macedo, quando assumiu o comando dos contigentes em operação no

Nordeste, além de reforçar o pessoal, também levou “auto-caminhões para a movimentação

das forças, augmentando-se assim o número dos carros que estavam a disposição dos seus

antecessores. Providências foram tomadas de maneira a facilitar a acção dos contingentes

volantes e permitir o êxito da campanha saneadora”66. Além destas medidas, o sr. Madureira

de Pinho afirma ter reforçado vários municípios enviando contingentes a pontos estratégicos

e que “foram destacados officiais da Força Pública, com missão de garantirem as

comunicações ferroviárias e as respectivas estações contra qualquer surpreza. (...)garantem

65
Correio da Manhã, 23/01/1930, p. 3
66
Idem
85

as populações da margem da estrada de ferro como guarnecem os trens contra a

eventualidade de um ataque”67.

De acordo com o oficial, as forças estavam devidamente aparelhadas no combate

ao banditismo, e apesar de todo o esforço, Lampião continuava aterrorizando os populares.

Há aqui, sinais de que a questão da corrupção demarcada por M. Paulo Filho se faz

totalmente plausível, pois apesar de todo aparato tecnológico e automotivo, como o uso de

caminhões para transportar as tropas, além do trem e das melhorias nos meios de

comunicação – os telégrafos -, não conseguiram acabar com o banditismo que permanecerá

por quase dez anos, até ser definitivamente extinto com a morte de Corisco em 1940.

O articulista M. Paulo Filho reforça que a literatura de cordel é responsável pela

criação e manutenção da lenda sobre os bandidos, principalmente a mitificação de Lampião.

Em sua análise, o “folk-lore se encarrega de amenizar o horror popular, gravando na

imaginação sertaneja as lendas e as poesias que pode recolher.68” Conclui seu artigo

referindo-se à “evolução do cangaço”, que na República conta com o apoio de religiosos e

políticos: “O cangaço, que já tem o seu Papa Negro na figura quasi centenária do Padre

Cícero, tem agora o seu Metternich no vulto caboclo do coronel José Pereira de Lima. É já

uma vantagem em abono do seu cyclo evolutivo da Monarchia á República....”69

A acepção de cangaço como profissionalização do crime também compartilhada

pelo professor e colaborador do Correio da Manhã, Ignácio Raposo, que ao discorrer sobre

o banditismo em seu artigo Lampeão70, discute sua origem e se posiciona sobre o assunto.

Inicia seu artigo referindo-se ao cangaceiro Antônio Silvino, que percorreu algumas regiões

do sertão praticando crimes e espalhando terror entre a população e que sua história de vida e

suas práticas teriam sido ampliadas pela literatura de cordel, que alimentava a “imaginação

67
Ibidem
68
Correio da Manhã, 21/03/1930, p. 4.
69
Ibidem
86

popular (...) que se espalha, cheia de gravuras pelos profusos cordéis dos pontos de

engraxate”71.

Nota-se no trecho acima, que o professor também destaca a influência do cordel

no imaginário popular. Acrescenta que o cangaceiro permanece na impunidade, porque a

população sertaneja lhe devota “a mais forte admiração e decorrentes desta uma respeitosa

estima”, e que a “imaginação rudimentar do povo” alimenta um certo entusiasmo por tais

criminosos, transformando-os em heróis ou vítimas das circunstâncias adversas, que os

impulsionaram ao crime. Fica explícito neste trecho que a representação e as práticas do

bandido é constantemente alimentada pelo imaginário popular, ou seja, a oralidade e a escrita

impulsionam diretamente a ação dos cangaceiros.

Referindo-se à origem do cangaceiro, Ignácio Raposo enfatiza que “esses

espíritos naturalmente inclinados para o crime se tornam cangaceiros por uma tendência

que lhes é própria e não raro desenvolvida pela cega admiração que lhes votam em regra os

sertanejos” .72 Em seu entendimento o cangaço se constitui no recrutamento de homens para

defender os interesses de determinados políticos, cidades ou famílias de prestigio, ou seja,

refere-se a um cangaço enquanto um serviço encomendado.

O professor argumenta, com base em sua experiência pelas regiões dos vastos

sertões nordestinos, que o cangaço funcionava como um mecanismo de defesa para quem

pudesse usufruir dos seus serviços. Acrescenta que “alliados por uma necessidade de defesa

recíprocra, conheci nos sertões até juízes de direito que protegiam cangaços, e um sacerdote,

aliás estimadíssimo em todo alto sertão (...) padre Felix...”. Percebe-se em suas palavras

que o cangaço se constituía numa profissionalização do crime. Além disso, menciona a

70
Correio da Manhã, 4/01/1931, p. 1 (suplemento de domingo).
71
Idem
72
Ibidem
87

existência de cangaços no plural, o que evidencia as múltiplas facetas deste tipo de

banditismo.

Em seu entendimento, se não houvesse tanta admiração pelos cangaceiros e a

“necessidade de defesa entre pessoas”, não teríamos nos sertões brasileiros tantos

“facínoras”. Denuncia a conivência de autoridades políticas, religiosas e até jurídicas, que

também se utilizam desta prática para salvaguardar seus interesses. Critica a postura destes

poderes constituídos, que via de regra, deveriam zelar pela segurança e bem estar da

população, contudo alimentam este tipo de crime ao utilizar seus serviços. Pode-se afirmar

que os interesses particulares aliados ao imaginário popular - literatura de cordel –

contribuem para o crescimento e manutenção do cangaço dificultando o seu combate.

No trecho abaixo, o professor exemplifica o funcionamento deste mecanismo,

referindo-se ao episódio em que Lampeão se constituiu num elemento necessário para o

governo do Joazeiro:

Serve a legalidade ao lado do padre Cícero, persegue os revolucionários de


julho e por fim terminada a luta com estes, reverte, inopinado á vida de
cangaço, depreda um dos mais ricos municípios do Rio Grande do Norte,
espalha a morte e o terror por toda parte e impunemente vagueia com seus
adeptos, de localidade em localidade, destruindo a ordem, desrespeitando o
governo, profanando lares, saqueando tudo. No entanto (...) nunca lhe
faltarão nos sertões, políticos que delle se aproveitem...73

Finaliza seu artigo com a seguinte crítica: “As forças do governo nunca

destruirão os cangaços porque é nelles que se estriba a prepotencia da maior parte dos

“coronéis” do sertão.74” O trecho acima desvela a concepção de cangaço para o professor.

A campanha contra Lampião ganha dimensões cada vez mais amplas. Na matéria

de 7 de agosto de 1931, um grupo de pessoas que se intitulam “nós da imprensa”75

73
Correio da Manhã, 4/01/1931, p. 1 (suplemento de domingo).
74
Ibidem.
75
Correio da Manhã, 7/08/1931, p.1.
88

reivindicam providencias do Governo Federal76. Nota-se que as pessoas não tinham mais a

quem recorrer, restava apenas contar com a ajuda das autoridades federais. Sendo assim,

solicitam ao governo um reforço de tropas para auxiliar na caça ao bandoleiro.

Vale lembrar que neste momento o Governo Provisório tinha outros objetivos, ou

seja, manter-se no poder. Para tanto, Getúlio Vargas precisava contar com o apoio dos

diversos chefes políticos do país, inclusive os do Nordeste, que angariariam o apoio das

zonas sertanejas infestadas pelo banditismo. Este mecanismo político implicava na aliança

entre o governo federal e aqueles políticos, e na articulação de interesses múltiplos.

Sabemos que as raízes do cangaço eram profundas e sua emergência estava intimamente

ligada aos privilégios políticos das autoridades locais, e acabar com eles significaria “perder”

possíveis apoios ao governo. Isto fica mais evidente com a solidificação de Getúlio Vargas

no poder.

Durante o Estado Novo, o cangaço passa a ser encarado como um problema

nacional, pois representava o atraso do país. Diante de tal quadro cabia ao Governo Federal

eliminá-lo. O esforço do governo em criar uma nova imagem para o país, que o

desvinculasse do atraso, da incivilidade e da barbárie, propiciou intenso investimento do

governo a partir de meados de 1937 no sentido de eliminar tais grupos. De fato o fim do

cangaço se inicia em 1938 com a morte de Lampeão e mais dez cangaceiros, sucedida por

uma intensa campanha de “entregas” voluntárias e termina em 1940, com a morte de Corisco

e a prisão de Dadá, sua companheira.

O grupo que se autodenomina “nós da imprensa”77, se refere a Lampeão com os

seguintes adjetivos: “homem-tigre”, “praga devastadora”, “monstro insaciável”,

“cataclysma” e “besta humana”. Destaca a impunidade de que gozava o cangaceiro, pois,

76
Diz o grupo baiano: “Nós, os da imprensa, num brado angustioso de socorro, appellamos para o illustre sr.
Chefe do governo provisório da República, no sentido de exterminar-se com a força federal, o bandido que
89

apesar de cometer toda sorte de crimes, desonrando lares, semeando morte, destruindo

famílias, deixando viúvas e órfãos desamparados, enfim, “crimes indescriptiveis pela sua

hediondez, pela sua mostruosidade”, não era punido por tais práticas.

Os crimes praticados pelos cangaceiros e a impunidade de que gozavam

despertam sérios debates entre os articulistas do periódico carioca. Neste sentido, vale

recuperar o trecho em que M. Paulo Filho78 discorda das críticas lançadas ao sr. Juracy

Magalhães. De acordo com o articulista, Magalhães teria declarado que durante seu governo

na Bahia intensificaria a perseguição contra Lampeão; entretanto, a resistência teria

argumentado que “a caça ao bandido jamais constituiria um programma”. Discordando

desta posição, M. Paulo Filho enfatiza que a extinção do cangaço representaria “um alto e

meritório serviço não só aos bahianos como a todas as populações nordestinas. Digo mais

(...) um inesquecível benefício ao Brasil inteiro.”

Discorrendo sobre a impunidade de Lampeão e seus crimes, enfatiza que ela

emana da “própria politicagem de uma democracia sem princípios, rude e semi-bárbara”.

Critica a forma como o poder constituído vem ignorando este problema, que em seu

entendimento não se restringe às zonas sertanejas do Nordeste, mas é um problema de cunho

nacional.

Ao longo de seu texto, demonstra como a passagem da Monarquia para a

República criou uma certa nostalgia por parte da população sertaneja em relação à realeza

que sempre a ignorou. Enfatiza que a Monarquia “devorada por outras occupações não teve

tempo de sanear e instruir os sertões immensos”; critica a conduta de D. Pedro II, que mais

parecia a de um “Reitor de Universidade” do que o governante de um país. De acordo com

M. Paulo. Filho, com o advento da República:

roubou em mais da metade de nosso Estado a tranquilidade de um povo bom e justo, trabalhador e patriota”.
Correio da Manhã, 7/08/1931, p. 1.
77
Idem
90

(...) que se proclamou, de surpresa, por um movimento victorioso do espírito


de classe, o exílio irremediável e definitivo da família reinante, a qual os
sertões desprezados nada deviam, operou entre a gente inculta, o milagre do
saudosismo. Com este, o desespero. Todos os males que, então, para cá se
foram verificando – a falta de commmunicações e transportes, a carencia de
policiamento rural, a ausencia de escolas, as seccas e (...) novos impostos
(...) tudo foi atribuído ao regime que baniu o imperador. Até as febres e
pestes....79

O trecho acima sinaliza que a República não foi vista com bons olhos pelos

populares sertanejos, pois todos os males já existentes na Monarquia como: a falta de

comunicações, de transporte, a carência de justiça, de escolas, de empregos, os novo impostos

entre outros, só foram desvelados com a República. Além desses problemas, as secas, as

doenças, o encarecimento da vida e a não indenização dos escravos abolidos também foram

atribuídos ao novo regime80. Aliado ao evento da República salienta que a “política e

politicagem se associaram aos salteadores. Elles foram e continuam a ser um excellente

pretexto para se realizarem ambições partidárias de mando e opressão.”81

M. Paulo Filho destaca um fato importante na carreira de Lampeão, que parece

preocupar os demais articulistas e colaboradores já citados, ou seja, a participação de

Lampião nas tropas legalistas encarregadas de combater a Coluna Prestes em 1926. Afirma

que Lampião:

(...) o derradeiro dos heroes-bandidos, culminou de exito quando se fardou


de capitão do Exército, recebeu dinheiro e munições do deputado Floro
Bartholomeu, tomou a benção ao padre Cícero, em Joazeiro, marchando para
as caatingas, afim de atirar, (....) contra os bravos idealistas da Columna
Prestes. Oficializado e patenteado, Virgulino prosseguiu cangaceiro e capitão
da quadrilha. O governo já se tinha aproveitado delle. Fôra seu cúmplice.
Perdia agora a autoridade moral para abaté-lo.”82

Na conclusão de seu texto ressalta que a mitificação do bandido no imaginário

popular como “invencível” é o resultado de uma ampla rede de relações cuidadosamente

78
Correio da Manhã, 18/09/1931, p.4
79
Ibidem
80
Diz o articulista:“A República nascera sob um mal signo. Encarecera a vida. Martirizara o povo. Os
sertanejos, na sua maioria, sem embargo dos sacrifícios do abolicionismo, continuaram, até por superstição, na
fidelidade ao regalismo.Essa fidelidade gerou alguns focos de cangaço aqui e ali radicados, até constituir-se o
bloco perigoso e fatal da jagunçada de Antonio Conselheiro.” Correio da Manhã, 18/09/1931, p. 4.
91

articulada a um serviço de “espionagem” bem organizado, que garantia a proteção e a

impunidade do bandido.

O problema do banditismo cangaceiro ultrapassa as fronteiras dos sertões

nordestinos. Ao ser concebido enquanto profissionalização do crime chega às regiões

sertanejas do sul do país. Percorrendo as páginas do Correio da Manhã, nos deparamos com

uma matéria interessante para pensarmos o fenômeno do cangaço. Em cinco de dezembro de

1931, o periódico informa a existência do Lampeão do Sul, que causava intranqüilidade nos

“sertões do Paraná e Santa Catharina83. Observa-se no enunciado da matéria uma explícita

associação entre o cangaço de Lampião ao banditismo praticado no Sul do país.

É interessante notar como o mito “Lampião” foi disseminado por meio de

periódicos e revistas ilustradas, e como suas práticas foram apropriadas e reproduzidas por

bandidos de localidades distantes, cujas condições sociais em nada se pareciam com os

sertões nordestinos. A representação deste cangaceiro se difunde de tal maneira, que

impulsiona as práticas de outros indivíduos, e acaba reforçando sua imagem. Esta

representação ao mesmo tempo que significa determinado objeto também leva a ação. Se

tomarmos a imagem de um santo como referência, verificaremos que ele traz um significado

que lhe é intrínseco, ou seja, a divindade, o sobrenatural, o milagre. Estes elementos levam,

conseqüentemente, os indivíduos às práticas de: reverência, adoração, devoção, oração,

enfim, desencadeia uma ação. O mesmo mecanismo se aplica à Lampião, ao ser representado

como um homem valente, corajoso, terrível e sedutor, ele acaba se apropriando de tais

significados e os transforma em práticas, alimentando e perpetuando sua imagem.

Vimos ao longo das matérias, que os articulistas e colaboradores do periódico

destacaram as condições que engendraram este tipo de criminalidade no Nordeste. Dentre elas

81
Correio da Manhã, 18/09/1931, p. 4.
82
Ibidem
83
Correio da Manhã, 5/12/1931, p. 6.
92

estão as condições de miséria da maioria da população sertaneja espremida entre as secas e a

violência da política local, a ausência de escolas, responsável pelo analfabetismo que

dificultava a formação mais ampla do indivíduo, a ausência de uma justiça que atendesse de

fato as necessidades da população.

A cultura sertaneja é outro fator destacado pelos articulistas. Em função da

carência dos benefícios citados acima, os sertanejos criaram formas de convívio baseada no

cumprimento de algumas normas morais, como o revide a uma afronta sofrida, seja com

vizinhos ou familiares. A honra familiar e a moral sertaneja eram garantidas pela prática da

vingança, mecanismo perfeitamente aceito pela população carente de poderes legais e do

exercício da justiça.

Nas regiões do Paraná e Santa Catarina isso não se repetia. Contudo, as práticas

de Cypriano Moreira de Andrade, vulgo “Lé” eram semelhantes às de Lampião e seu grupo:

“Na fuga, os bandidos cortavam os postes e fios do telegrapho, atrazando a marcha da

escolta e impedindo a ligação com autoridades policiais das localidades para onde se

dirigiam”84

De acordo com a matéria, durante a realização de uma corrida de cavalos, “Lé”

por motivos banais teria discutido com “dois assistentes”, matando-os. Tal ação o teria

impulsionado ao crime, refugiando-se “no matto, afastando seus perseguidores a tiros de

pistola, disposto a tudo”85.

É interessante destacar que apesar de “Lé” ser comparado a “Lampeão”, não há

referencias do primeiro enquanto cangaceiro. Foram utilizados os seguintes termos para

qualificá-lo: “terrível bandido”, “bandoleiro”, “chefe terrível de um grupo de salteadores”,

“assassino”, “chefe de um perigoso grupo”, “grupo de Lé”, “perverso saqueador”,

84
Correio da Manhã, 5/12/1931, p. 6.
85
Correio da Manhã, 5/12/1931, p. 6.
93

“facínoras”, “bando de Lé” e “Lampeão do Sul”. O mesmo mecanismo utilizado para

descrever o terror praticado por Lampião se repete com “Lé”, igualmente comparado a

Satanás.

A matéria desvela a áurea sobrenatural que cercava Lampião e que contribuiu

para transformá-lo num mito, também se repetia com o Lampeão do Sul. Informa que apesar

de inúmeras diligências contra o bandido os resultados foram infrutíferos, pois, o bandido

“conhecedor perfeito do sertão (...) apagava todas as pistas apparecendo ora aqui, ora ali, já

então, como chefe de um perigoso grupo, a matar e saquear, espalhando o error em todos os

pontos onde apparecia”86. Nota-se que as investidas frustadas das forças policiais são

conseqüências do poder sobrenatural dos bandidos, assim como acontecia com Lampião e seu

bando. As derrotas das forças policiais são atribuídas a alguma força oculta que protegia os

bandidos e não à incompetência dos “soldados valorosos”87.

Para reforçar os poderes sobrenaturais de “Lé”, informações fornecidas pelas

autoridades policiais, revelam que foram encontradas em posse do bandoleiro as seguintes

orações: Oração de Santa Catharina e Oração contra quem nos quer mal, reproduzidas na

íntegra pelo periódico. Tais orações funcionavam como amuletos, sustentando o caráter

sobre-humano do bandido.

No final da matéria, o tenente da Força Militar do Paraná, João Pinheiro,

responsável pela prisão de “Lé”, revela que o bandido conseguiu cortar as cordas que o

amarravam sem dar explicações de como conseguira realizar tal façanha. Indagado a respeito

dessa prática, teria respondido que: “- Cordas não me amarram, nem nada me amarra. Eu se

não fujo é porque não quero, porque estou sendo bem tratado”88.

86
Idem
87
A notícia informa a participação de “auxílio de particulares” no combate a “Lé”, que acreditamos se constituir
num modelo semelhante às volantes no Nordeste brasileiro, ou seja, o recrutamento de homens não ligados a
polícia. Correio da Manhã, 5/12/1931, p. 6.
88
Correio da Manhã, 5/12/1931, p. 6
94

Nota-se que apesar de não repetir as condições sociais do Nordeste, também se

evidencia nas regiões sertanejas do sul do país práticas semelhantes às de Lampeão. Podemos

concluir com base nestas informações que o cangaço enquanto profissionalização do crime se

constituiu num fenômeno mais amplo, e não se restringe, portanto, aos sertões nordestinos.

O articulista José Carvalho do Correio da Manhã, também discute a problemática

do cangaço. Ao se referir às causas de tal fenômeno, destaca que os três maiores “expoentes

do cangaceirismo e banditismo” no nordeste brasileiro Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e

Lampeão são “ de certo, menos um caso de degenerescência individual e mais o resultado do

meio que os produziu”.89 Em seu entendimento o “meio” forma o cangaceiro.

É significativo ressaltar que Carvalho faz uma nítida separação entre

cangaceirismo e banditismo. Em sua exposição, há indícios de que o primeiro termo era

utilizado para se referir a Jesuíno Brilhante e Antonio Silvino, ou seja, cangaço entendido

como uma prática de justiça. O segundo se aplica a Lampião, que apesar de “justificar” sua

incorporação ao cangaço com o intuito de vingar a morte do pai, o transforma num meio

de vida. Isso ocorre no momento em que se alia a políticos locais, o que caracteriza uma

outra forma de banditismo.

Na matéria já citada, Carvalho argumenta que a “história do crime e do cangaço”

tem suas origens na colonização. Enfatiza que o cangaço “feroz, truculento e sanguinário,

nasceu nas lutas de família (...) sub-existiu sempre, no entrechoque dos partidos políticos; e

partindo assim, das coletividades armadas especificou-se nos indivíduos. Desde que o

“meio” não se modificou, não desappareceu pelo processo disciplinar da cultura.....”90

Salienta que as crianças crescem ouvindo as histórias de “valentia, de lutas, de

mortes de tragédias empolgantes”, e que tais histórias se espalham através da oralidade e da

narração em “prosa e verso (...) – são ellas que maior somma de sensação, admiração,

89
Correio da Manhã, 24/01/1932, p. 1
95

emoção despertam nas almas juvenis.” Esclarece que: “Ser valente é um dos maiores títulos

de glória para o sertanejo, já visceralmente forte e destemido. Vem dahi essa corrente

incoercível de crimes e de criminosos”.

Ao longo da matéria, o articulista procura diferenciar as práticas e os

comportamentos de Jesuíno Brilhante e Antônio Silvino de Lampeão. Mostra que os dois

primeiros prezavam pela honra das famílias, respeitavam mulheres, crianças e idosos,

enquanto o terceiro além de destruir lares, violava barbaramente as mulheres, agredia idosos,

enfim, disseminava o terror.

No que diz respeito às causas do comportamento do homem sertanejo, salienta

que se constitui numa prática cultural, que “trazem consigo desde o berço, um princípio: - o

da honra – embora que, muitas vezes, exagerado ou mal comprehendido. E nesse patrimônio

moral acha-se comprehendida, em alta dose, além do pessoal, a honra da família. Matam

sempre, por “questão de honra”, muito embora esse conceito seja, ás vezes, originado pelos

mais fúteis motivos”91.

Carvalho salienta que embora se diferenciem nas práticas, os três cangaceiros já

citados lançaram-se ao cangaço alegando os princípios de “honra de família”. Afirma que a

“justiça sertaneja” contribuiu e influenciou diretamente na formação do cangaço. Acrescenta

que “Quase todos os casos se tem originado não da justiça, mas da injustiça da Justiça”92.

Observa-se neste trecho que suas palavras confirmam as acepções dos articulistas anteriores.

Destaca a aliança de Lampeão com políticos, e até mesmo com autoridades

policiais, que os protegiam em troca de favores e da partilha dos saques: “É sabido que elle

distribue muito dinheiro e que tem muitos “sócios”. Nem desta pecha escaparam muitos

officiaes da polícia”. Esta questão já foi mencionada anteriormente por M. Paulo Filho, ao

90
Idem.
91
Correio da Manhã, 24/01/1932, p. 1.
92
Idem
96

ressaltar o universo corrupto que envolvia as autoridades policiais, os políticos locais e os

cangaceiros.

Os debates acerca do cangaço ganharam inclusive espaço na câmara de deputados.

Na matéria Os debates nas comissões da Câmara. O auxílio à campanha contra o

banditismo no nordeste93, veiculada em 4 de junho de 1935, os deputados Daniel de Carvalho

(relator da Câmara), Amaral Peixoto e Gratuliano de Britto discutem o problema do cangaço.

O relator lê o parecer que vetava á “resolução legislativa”, que autorizava o auxílio a

campanha contra o banditismo no Nordeste. Manifesta-se favorável ao veto e justifica que as

razões apresentadas pelo governo são sólidas e fundamentadas e recebe o apoio dos deputados

Amaral Peixoto e Gratuliano de Britto.

O deputado paraibano Gratuliano de Britto acrescentou que “não havia mais

banditismo no nordeste. Havia tão somente o caso de Lampeão. E explicou a sua persistência

pelo facto de se acoitar em região entre Bahia, Sergipe e Alagoas, onde há pouca

communicação rodoviária. E ainda, aquele já não operava mais nos estados do Ceará, da

Paraíba e Rio Grande do Norte. Justifica que apoiava o veto por entender que não havia mais

“condição de cangaço no nordeste”; além disso, reconhecia a carência de “recursos da

União, para essas campanhas meramente policiaes.”

Nas falas acima percebe-se que o cangaço foi tratado pela Câmara de Deputados

como um problema fronteiriço entre os três estados já citados, e ainda, que se resumia ao

bando de Lampeão. Entretanto, sabemos da existência de outros bandos, que estavam em

plena movimentação nas mais variadas regiões sertanejas, e que neste período (ano de 1935)

as forças policiais desenvolviam uma ampla campanha contra os grupos de cangaceiros, o que

resultaram na prisão e na morte de alguns deles.

93
Correio da Manhã. Os debates nas comissões da Câmara. O auxílio à campanha contra o banditismo no
nordeste, 4/06/1935, p. 4
97

Percorrendo as páginas do periódico carioca, encontramos a notícia em que o

repórter desse jornal entrevista um homem baiano94, que em visita ao Rio de Janeiro, narrou-

lhe os terríveis momentos em que foi feito refém do bando de Lampeão. Preferindo manter-se

no anonimato, o seqüestrado revela com riqueza de detalhes a composição e o funcionamento

do bando. No que se refere ao aparelhamento do bando destaca que: “montavam bons e lindos

animaes, bem tratados e arreados e em optimo estado”, quanto à indumentária salienta que

“trajavam, os bandidos, roupas de mescla, luvas de pelica, meias de bôa qualidade” 95. Ele

prossegue sua narrativa, e descreve um pouco do cotidiano do bando de Lampião. Refere-se

aos momentos de lazer do grupo, e destaca a prática de jogos de carta, nos quais apostavam

altas quantias em dinheiro.

O anônimo entrevistado enfatiza que Lampeão era um homem rico, e que teria

lhe mostrado uma “mala de couro” com mais de 800 contos, quantia significativa para o

período. Acrescenta, ainda, que carregava “jóias, collares de perolas, brilhantes, anneis de

grão, crucifixos de platina e brilhantes, alfinetes de gravata: uma joalheria enfim!”.96 Fica

evidente nesta construção a vida de “glamour” de que desfrutavam os cangaceiros, o que

contribui para alimentar a imaginação popular sobre os bandidos, despertando o desejo de

muitos pelo enriquecimento fácil e ilegal.

A fama de Lampeão despertou o desejo de angariar lucros não apenas em homens

que se fizeram cangaceiros como ele, mas também por órgãos responsáveis pela produção de

filmes como a “ALBA Filme”97, sediada em Fortaleza/CE. Na matéria veiculada em 3 de

abril de 1937, intitulada “Lampeão” no cinema. Mais um film aprehendido pelo

Departamento de Propaganda, o sr. Lourival Fontes – Diretor do Departamento Nacional de

94
Correio da Manhã, 1/07/1936, p. 5
95
Idem.
96
Ibidem, idem.
97
O Correio da Manhã menciona a produção e divulgação de um filme sobre Lampião e seu bando pela
empresa nacional Alba Filme. Entretanto, na catalogação da Fundação Joaquim Nabuco - Recife/PE, a
produção é atribuída a empresa Al Chiu Filmes. Sobre esse assunto consultar Correio da Manhã, 3/04/1937,
98

Propaganda do Ministério da Justiça – pede providências ao Secretário de Segurança Pública

do Estado do Ceará para tirar de circulação o filme sobre Lampeão, que vem sendo exibido no

Estado. Solicita que sejam apreendidas todas as cópias e devidamente enviadas à referida

repartição.

Conseguimos junto à Fundação Joaquim Nabuco98 – Recife/PE, a reprodução do

que restou deste filme, que se resume a dez minutos. As imagens em preto e branco revelam

um pouco do cotidiano dos grupos, seus momentos de descanso e lazer - danças, jogos de

carta, preparo de alimentos -, além da rotina religiosa na qual as preces e orações foram

conduzidas por Lampião, e até mesmo simulações de combates com as volantes. Apesar da

riqueza destas imagens, a narração e as legendas são extremamente significativas, pois

transmitem com clareza a concepção de cangaço para os produtores do filme.

As legendas veiculadas no filme criticam e responsabilizam o governo pelo

surgimento de tais bandos. O latifúndio e o descaso público em relação à região sertaneja são

os aspectos mais explorados pelo narrador. Além das condições políticas, também são

mencionados os problemas sociais, econômicos e culturais dos sertões nordestinos, bem

como os problemas inerentes ao clima e a vegetação. Refere-se aos cangaceiros como vítimas

do meio e da exploração do latifúndio. Daí o empenho do Departamento de Propaganda em

apreender este material, ou seja, por seu conteúdo subversivo, que alimenta de forma perigosa

o imaginário popular ao colocar os bandoleiros com vítimas do meio e do descaso

governamental.

O imaginário sobre Lampião alimentou-se de muitas lendas. Para uns o

cangaceiro se constitui num herói, para outros em bandido. Suas façanhas e comportamento

p. 3.
98
A reprodução do filme Lampeão: o rei do cangaço, produzido pela Al Chiu Filmes, sob a direção Benjamim
Abrahão no ano de 1936, foi gentilmente autorizada pela Sra. Vera Ferreira - neta de Lampeão – para uso
exclusivo na elaboração desta Dissertação de Mestrado.
99

geraram profundos debates entre os articulistas e colaboradores que escreveram no Correio

da Manhã.

Na matéria de 15 de janeiro de 193899, o jornal procura fazer uma análise sobre o

fenômeno para tanto, reitera questões já discutidas sobre a emergência do cangaço: as

práticas culturais da população sertaneja, a rede de relações estabelecida entre cangaceiros e

coiteiros, o apoio dos populares, a conduta corrupta de alguns policiais envolvidos com os

bandidos, e os problemas sociais inerentes ao meio físico da região. Além desses elementos,

as estratégias de luta utilizadas por Lampeão foram fundamentais para sua longa permanência

no cangaço.

Ao longo da matéria, são mencionados alguns dos prejuízos econômicos causados

por Lampeão e seu bando. São citados os casos das prósperas cidades de Vila Bela e Bonfim,

respectivamente pernambucana e baiana, destruídas pela ação dos cangaceiros. Estas foram

diretamente afetadas em seu desenvolvimento, pois muitas famílias as abandonaram, o

comércio em franco desenvolvimento não suportou os assaltos, e muitos estabelecimentos

foram fechados com medo de novos ataques. Enfim, os resultados afetaram amplamente a

economia nacional, pois sem o crescimento não havia aumento da arrecadação de impostos,

prejudicando as esferas municipal, estadual e federal.

Diante desse quadro, esperava-se dos governantes e das autoridades policiais a

prisão ou a morte de seu maior expoente: Lampião. A notícia de sua morte e de mais dez

cangaceiros na fazenda de Angicos, localizada em Sergipe, foi transmitida pelas principais

folhas nordestinas, e retransmitidas pelos periódicos paulista e carioca. O Correio da Manhã

informou com ressalvas a morte do bandoleiro, esperando uma confirmação do fato.

99
Correio da Manhã – 15/01/1938, p.14 - Morreu ou não morreu o “rei do cangaço”? Rápidos traços da
história e do carácter de Antonio Virgolino, o temível “Lampeão”
100

A eliminação de Lampião e parte de seu grupo foi anunciada em 29 de julho de

1938100, e confirmada no dia posterior101. Nessas matérias, o periódico atribui o aumento da

criminalidade à impunidade de que gozavam os bandidos, e esclarece que foram muitas as

conseqüências geradas no ambiente social e econômico da região, entre elas cita: o declínio

econômico de cidades e povoados afetados pela ação dos cangaceiros e a repercussão do

fenômeno além da esfera nacional. Tais resultados, segundo o periódico, denegriam a imagem

do país, pois eram divulgados inclusive internacionalmente, o que colocava à mostra os

problemas e dificuldades das autoridades brasileiras em lidar com o problema.

Na matéria são sugeridas possibilidades para acabar com este tipo de

criminalidade nos sertões nordestinos. Destaca-se a necessidade de investimentos na

“educação, no conforto da ordem e o amparo da lei”102. Nota-se que tal perspectiva se repete

em quase todas as matérias já analisadas.

Ao discorrer sobre a figura emblemática de Lampião, o periódico descreve-o da

seguinte forma:

(...) era um homem alto, moreno....atlhleta, que devia contar mais ou menos
40 annos de edade. Era refinado e vaidoso. Gostava de ser photographado.
Amava as jóias e os perfumes. Havia ouro na bainha do seu punhal, na
cartucheira e em quase todos os seus dedos. Perfumava-se exageradamente.
Sempre suado, immundo, a presença do bandoleiro impregna o ambiente
(...)”103.

O trecho acima desvela a vaidade do cangaceiro, seu apreço pelo ouro, por

perfumes e pela fama, o que se evidencia nas capas de alguns jornais e revistas ilustradas, que

veicularam sua imagem, como exemplo temos O Globo, Correio da Manhã, A Noite

Ilustrada, A Barata, entre outros.

100
Correio da Manhã, 29/07/1938, p.14.
101
Correio da Manhã, Lampeão, o terror do Nordeste. Recordando, ainda, a vida de crimes do bandido que a
tropa do tenente Bezerra anniquilou. Os últimos informes telegraphicos confirmam que o bandido, sua amante e
vários companheiros foram, realmente, mortos, 30/07/1938, p.14
102
Correio da Manhã,
29/07/1938, p.14
103
Idem
101

A matéria, veiculada quatro dias após o massacre de Angicos, enfatiza que a

eliminação de Lampião se constituía no primeiro passo para a (re)construção do Nordeste104.

Ressalta-se que os problemas inerentes ao banditismo são mais amplos e engloba questões de

ordem conjuntural. De acordo com a matéria o caminho encontrado para eliminar o

banditismo na região pautava-se na dinamização e modernização das zonas sertanejas a partir

da construção de estradas, da ampliação dos meios de transporte e comunicação, na criação

de novos postos de trabalho, e na alfabetização da população.

O articulista Bastos Tigre, ao escrever a matéria Apagou-se o Lampeão105,

corrobora a idéia exposta acima. Argumenta que “O lampeonismo é um phenomeno que não

se elimina, com a morte de Lampeão. Só a estrada de ferro ou pelo menos a rodovia

conduzindo a Civilização rumo a oeste, fará, a pouco e pouco, desaparecer o banditismo, de

certas zonas do interior”106.

Acrescenta que somente a alfabetização da população não bastaria para por fim ao

“banditismo organizado”107. Era necessário, em sua concepção levar, o progresso e a

“civilização” para os sertões por meio dos mecanismos já citados acima. Para ele a

modernização e o progresso eram as chaves para o desenvolvimento das áreas sertanejas,

entretanto admite que o banditismo e a seca foram “males necessários”, que serviram para

colocar os sertões em evidência. Argumenta que:

O “lampeonismo” é um phenômeno social inevitável; o seu combate


persistente e continuado é um dos aspectos da luta pelo progresso. Para o
Brasil o banditismo e a secca são males necessários. Ai do sertão se elles
desapparecessem totalmente! Sem seca para combater, sem bandidos a
perseguir, quem se lembraria, nas capitaes, de que o sertão existe! (...) Elles
é que lembrarão ás gentes do litoral a necessidade de tocar para o Oeste a
locomotiva civilizadora108.

104
Correio da Manhã, 31/07/1938, p.4
105
Idem
106
Ibidem
102

O Tenente João Bezerra, comandante das forças volantes de Alagoas, ao ser

entrevistado por um repórter do Correio da Manhã109, sustenta que entre os fatores que

retardaram a eliminação de Lampeão, estavam: a luta contra o “meio physico e as condições

sociais mais ásperas”, a ação dos coiteiros e a sorte com que contaram os bandoleiros em

muitas ocasiões. Além do combate ao banditismo, o tenente é enfático ao destacar a ação

dos coiteiros, defendendo a necessidade de se criar uma legislação mais dura, que

igualmente os punisse:

É necessário, entretanto, uma legislação especial para combater o


banditismo. Eu condenaria á morte, summariamente, sem direito a recurso,
nem perdão, todos os “coiteiros”, todos os que, por covardia ou interesse,
guardaram, por tanto tempo, o mais terrível e cruel dos bandidos, cuja
cabeça a polícia alagoana acaba de cortar para offerecer ao estudo dos
110
institutos medico-legaes do Brasil .

A dimensão ocupada pelos coiteiros no êxito e na sobrevivência do cangaço é

ressaltada por Bastos Tigre. Destaca que o problema do banditismo é resultado da soma de

três elementos: “Não são apenas a Lei e o Crime que se defrontam: não é apenas a luta

singular entre a ordem e a anarchia, entre a civilização e a barbárie, entre a polícia e o

cangaço. Há um terceiro elemento metido entre os dois e dependente de ambos: esse

elemento é o coiteiro” 111.

Tigre questiona: Que vem a ser o coiteiro? Na seqüência responde que “é o

sertanejo que acoita, que dá pouso e guarita ao cangaceiro, que desnorteia e despista a

força volante...”. Discordando da postura do tenente Bezerra, que afirma ser o coiteiro

cúmplice e colaborador de bandidos, justifica que o coiteiro nem sempre exerce esta função

107
O articulista Bastos Tigre afirma que “ (...) somente a Civilização bufando, apitando, espalhando fumo de
carvão e cheiro de gazolina, somente ella é capaz de desinfectar o ambiente, ....”. Correio da Manhã,,
31/07/1938, p. 4 .
108
Idem.
109
Correio da Manhã, 31/07/1938, p. 24
110
Correio da Manhã, 31/07/1938, p. 24.
111
Correio da Manhã, 27/08/1938, p. 4.
103

por livre e espontânea vontade.112 Na maioria da vezes foram coagidos pelo terror e pelo

medo, e que se sujeitaram a tal prática para garantir a sobrevivência de seus familiares.

O articulista sustenta que de cem casos em apenas um “o coiteiro age

espontaneamente, por interesse pessoal, porque precisa dos cangaceiros ou porque tenha,

elle próprio, o cangaceirismo no sangue. Mas a regra geral, os 99%, é o sertanejo pacífico

acoitando os bandidos, por amor á vida, apavorado com as ameaças de extermínio da sua

fazenda e de sua família.

Discorda das autoridades policiais que consideram os coiteiros como cúmplices

dos cangaceiros, e como tal deveriam receber a mesma punição. Critica o comportamento das

forças volantes em relação a estes sertanejos, que são violentamente espancados porque

atrapalharam a “acção repressiva da lei”; são tratados como se fossem bandoleiros.

Acrescenta que “a soldadesca enfurecida por ter perdido o rastro da presa, enervada pelos

contratempos das batidas, enlutada, ás vezes, pela morte de companheiros(...) invade a casa

do sertanejo, coiteiro á força, como se fôra um campo inimigo. E a ordem é espancar a cipó

de boi, até obter uma confissão (...)”.

Bastos Tigre conclui sua explanação caracterizando o ambiente em que vive o

sertanejo: “apavorado deante das duas ameaças: um ataque de cangaceiros ou uma incursão

de volantes. Venha do Crime ou da Lei, para elle, o perigo é o mesmo. Até na indumentária

se assemelham os desordeiros e os defensores da ordem.....”113.

O colaborador Américo Palha114, ao discorrer sobre a situação das zonas

sertanejas, reafirma a necessidade de investimentos rodoviários que possibilitem a

dinamização da economia local com outras regiões, inclusive com o litoral. Ressalta que o

“Brasil, com seu território enorme, não pode dispensar esse systema de communicações

112
Afirma o articulista: “O sertanejo não é coiteiro por vontade; mas por medo, por pavor, sob ameaça da
“garruncha” ou da “lambedeira”. Correio da Manhã, 27/08/1938, p. 4.
113
Correio da Manhã, 27/08/1938, p. 4.
114
Correio da Manhã, 10/11/1940, p.1.
104

para o transporte dos productos da sua lavoura. É questão vital, para a sua própria

subsistência possuir um parque de rodovias ligando todo o seu interior e este ás capitaes.

Esse é hoje, talvez, o maior problema do Nordeste.”115

Américo Palha destaca algumas características da personalidade do sertanejo116,

para justificar que ele não é indolente. Lembra seu papel no desenvolvimento do Acre e da

Amazônia, com a extração da borracha, e conclui seu artigo sustentando que “amparar o

Nordeste, proteger o nordestino, é amparar e proteger o Brasil”.

Se essas eram as posições veiculadas pelos jornais diários do eixo-Sudeste, que

expressam um olhar específico sobre o fenômeno, outra possibilidade se coloca com a

imprensa popular representada pela literatura de cordel. Ao longo do próximo tópico,

destacaremos sua importância na reflexão sobre o cangaço e sua significação no

engendramento do imaginário popular a respeito do assunto e na construção do mito

Lampeão. Vejamos como foi retratado em alguns folhetos.

1.3 - Literatura de cordel.

Vimos em várias matérias veiculadas pela grande imprensa a dimensão ocupada

pelo cordel na disseminação desse mito. Os vários articulistas destacaram o poder que

exerciam sobre o imaginário popular, que ora o descrevia como um bandido, ora como um

herói.

Podemos afirmar que assim como a grande imprensa, representada pelo O Estado

de S. Paulo e o Correio da Manhã, a literatura de cordel se constitui num veículo informador

e formador de opiniões, o que a caracteriza como imprensa popular. A opção pelo cordel

115
Ibidem
116
Diz o articulista: “ O sertanejo é um fanático da gleba. Forçado a abandonar os seus campos, quando a
secca inclemente destróe, anniquila, estiola todas as fontes de trabalho e de vida, o sertanejo foge para não
morrer. Mas não amaldiçoa a terra (...).” Correio da Manhã, 10/11/1940, p.1.
105

deve-se, sobretudo, ao interesse e consumo desse tipo de literatura pelos segmentos

populares iletrados que “recebiam” por meio dos folhetos as informações mais importantes

do país, dentre elas o cangaço. Cabe destacar que elas são reelaboradas e resignificadas a

partir da visão de mundo dos cordelistas. A linguagem simples, versada e mítica desses

folhetos facilitava a memorização e a divulgação nas feiras nordestinas através da oralidade

ou da música (repentistas).

A importância desta literatura e suas implicações na construção do mito Lampião,

como um herói ou um anti-herói, evidenciam-se nas páginas de O Estado de S. Paulo e do

Correio da Manhã, conforme vimos anteriormente. Entre os articulistas e colaboradores do

periódico carioca que destacaram o impacto deste tipo de literatura no imaginário popular,

podemos citar M. Paulo Filho117 e o professor Ignácio Raposo118.

O jornal O Estado de S. Paulo na matéria intitulada Uma verdadeira Literatura

sobre “Lampeão”119, publicada em 27 de junho de 1929, reproduz os comentários de uma

folha da capital baiana, que acentuava : “(...) o bandoleiro “Lampeão” vae criando, em

torno de sua personalidade, uma verdadeira literatura e – o que é peor – uma literatura

muito pouco realista”. Nesta, a folha da capital baiana, critica veementemente a postura dos

poetas que trataram Lampião como um herói e argumenta que tal comportamento é resultado

de suas ambições pois, desejavam ganhar dinheiro, com a venda de “(...) uma série copiosa

de artigos, folhetos, livrinhos de versos populares, em que o bandido aparece mais como

um heróe do que como uma figura repulsiva”.

A matéria qualifica estes escritores de maneira depreciativa, conferindo-lhes os

adjetivos de aproveitadores e oportunistas, envoltos por um “desejo inveterado” de “auferir,

de tal maneira, proveitos pecuniários”. Considera-os de “má” índole, porque além de

117
Correio da Manhã, 24/01/1930, p. 4 e 21/03/1930, p. 4.
118
Correio da Manhã, 4/01/1931, p. 1
119
O Estado de S. Paulo, 27/06/1929, p. 2
106

alimentarem a imaginação do povo com informações “errôneas” a respeito de Lampião -

caracterizando-o como um herói - também lucravam financeiramente com as vendas destes

materiais.

Os comentários demonstram a preocupação do periódico com a manipulação

destes materiais, que de maneira indiscriminada acabavam semeando a simpatia popular em

relação a Lampião, o que se traduzia na dificuldade em exterminá-lo. Evidencia também que

a literatura de cordel não agradou a todos os cidadãos. Causou antipatia, sobretudo, nos

indivíduos ligados às forças públicas, nas autoridades governamentais e nas elites que não se

identificavam com aquela.

Na maioria das construções cordelísticas, o cangaço foi concebido como

resultado do descaso governamental em relação ao Nordeste, que ora se abatia com o flagelo

da seca, ora com as inundações e tempestades. Outros elementos como: a fome, a injustiça

social (a impunidade dos coronéis e grandes proprietários, que utilizam o poder para humilhar

e submeter o sertanejo pobre a um regime de exploração desmedida e a impunidade dos

crimes cometidos pelos poderosos) e o desejo de vingança também propiciaram a emergência

do cangaço. Tal perspectiva evidencia-se na seguinte estrofe do folheto de Gonçalo F. Silva:

Em razão do que chamamos


injustiças sociais
as grandes calamidades
e outros fatores mais
de tempo em pequeno espaço
apareceu o cangaço
com bandoleiros locais 120

Para Silva, o homem nordestino era um “escravo da gravidade”.121 Ele teria que

receber ajuda do governo em função das imensas adversidades que tinham que suportar. Entre

elas, “as longas secas que ceifam a fauna e deixam as florestas ressequidas e os camponeses

120
SILVA, Gonçalo F. da. Jararaca.O cangaceiro militar. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000, p. 3.
121
Ibidem, p. 1.
107

tristonhos”, flagelo destruidor dos “sonhos” e dizimador de vidas. Na acepção do poeta, as

injustiças sociais resultam das grandes calamidades: secas, enchentes e desigualdade social,

ou seja, problemas de ordem sócio-econômica. Durante a cobertura realizada pelo O Estado

de S. Paulo na década de 30, notícias sobre secas e inundações foram constantemente

divulgadas.

Em Corisco. O sucessor de Lampião122, Silva retoma a idéia de que o cangaço foi

resultado das injustiças sociais, conforme explicitado na estrofe abaixo:

O desnível social
provocava o desordeiro
porque ele via no rico
não um senhor fazendeiro
mas um desavergonhado
e metediço posseiro123

Os versos acima remetem à problemática da terra, mais especificamente a sua

posse ilegal pelos fazendeiros. Denuncia a impunidade de tal prática, e evidencia a ausência

de lei e do direito à propriedade. Nesta construção, o poeta explicita que a terra pertencia aos

detentores do poder, no caso o “fazendeiro desavergonhado e metediço posseiro”.

Apesar deste quadro, o cordelista admite que alguns indivíduos se integraram ao

cangaço simplesmente porque apreciavam o uso da violência. Vejamos abaixo, como o

cordelista concebia a lei no nordeste:

A lei, como nós sabemos,


no nordeste era precária
normalmente o delegado
tinha educação primária
pra tentar consertar falhas
da máquina judiciária124

Percebe-se neste trecho, a precariedade da lei no Nordeste. É difícil acreditar

numa justiça em que as autoridades que a compunham não possuíam o mínimo de instrução.

122
SILVA, Gonçalo F. da. Corisco. O sucessor de Lampião. Ed: Ralp, s/d, p. 32.
123
Grifos meus.
108

Neste contexto, a idéia de que a lei funcionava à base da força parece perfeitamente

compreensível. Tal perspectiva é recuperada no cordel Os cabras de Lampião, de Manoel

D’Almeida Filho125. Neste, o poeta afirma que “(...) à bala. Que era a lei no sertão”126. Tal

afirmação pode ser evidenciada nas seguintes estrofes:

Há muitos anos passados


O cangaço era normal
Pelos sertões do Nordeste,
Parecendo até legal,
Para quem via no crime
A lei de seu tribunal

Assim quando havia brigas,


Ainda sendo entre irmãos,
Morriam dez, quinze, vinte,
De velhos até pagãos,
Porque cada um queria
Vingança com as próprias mãos

D’Almeida Filho, também ressalta em seu folheto que as várias injustiças

sofridas pela população sertaneja somada ao desejo de vingança foram os componentes

essenciais na constituição do cangaço:

Desde quando começaram


Os bandidos mais famosos
Que por várias injustiças
Tornaram-se criminosos,
Vingativo, desalmados,
Assaltantes, perigosos127

Numa de suas estrofes, referindo-se ao cangaceiro Zabelê, conclui que “(...) A

injustiça fez / mais um bandido no sertão”.128

O cordelista Dilla129, também traz em seu folheto a idéia da injustiça como

elemento constituidor do cangaço. Vejamos suas palavras:

124
Ibidem, p. 13.
125
D’ALMEIDA FILHO, Manoel. Os Cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965, p.1.
126
Ibidem, p.4
127
D’ALMEIDA FILHO, Manoel. Os Cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965, p.1.
128
Ibidem, p.8
129
DILLA, Alexandre José Felipe Cavalcanti d’ Albuquerque S. Lampião Rei dos Cangaceiros. Rio de Janeiro:
Soc. Educativa e Cultural. Umberto Peregrino, 2ª ed., 1973, p.3.
109

O Capitão Virgulino
Era juiz no Sertão
Com seu Bilhete Cahiau
Provou seu bom coração
Aquele injustiçado
Tinha sua proteção

Dilla vai mais longe. Concebe Lampião como um “justiceiro” e qualifica-o como

“ladrão nobre” ou “Robin Hood” e afirma ter por ele, muito respeito:

Lampião Rei dos Cangaceiros


Famoso no mundo inteiro
Não li a sua maldade
Li que foi um justiceiro
A ele tenho respeito
E a cada cangaceiro

(...)

Justo é ver Lampião


Como Rei dos Cangaceiros
Descrevi outros famosos
Isto com grupos certeiros
Ligando partes dos feitos
Lampião tem meus conceitos
Aos seus atos verdadeiros130

Observa-se nesta construção que o poeta nutria profunda simpatia por Lampião.

Os trechos elencados acima explicitam a existência de sentimentos opostos, como medo e

simpatia/admiração. Acreditamos que estes dois sentimentos misturavam-se e permeavam as

relações de sertanejos e cangaceiros.

Ao focalizar Lampião, o cordelista Antonio Teodoro dos Santos descreve-o em

seu folheto Maria Bonita. A Mulher Cangaço131 como um injustiçado que buscava fazer a

justiça com as próprias mãos e concebe-o como um justiceiro vingador. Esta postura não foi

compartilhada por alguns cordelistas que são taxativos ao compararem Lampião ao próprio

Diabo que é descrito como uma figura tenebrosa, representante do mal, símbolo de todas as

calamidades, horrores e flagelos do mundo.

130
Ibidem, p.8
110

Para se ter uma idéia da maldade de Lampião, José Pacheco132 revela em seu

folheto A chegada de Lampião no Inferno que o diabo, ao ser consultado pelo vigia sobre a

presença de Lampião, o teria impedido de entrar, conforme exprimem os versos abaixo:

O vigia foi e disse


a satanás no salão:
- Saiba vossa senhoria
ai chegou Lampião
dizendo que quer entrar
e eu vim lhe perguntar
se dou-lhe o ingresso ou não

- Não senhor, Satanás disse,


vá dizer que vá embora
só me chega gente ruim
eu ando muito caipora
estou até com vontade
de botar mais da metade
dos que tem aqui pra fora133

Na estrofe acima, o poeta recorre ao exagero e a fantasia para enfatizar o perigo

que Lampeão representava à população, e descreve-o de forma mais tenebrosa que o próprio

Diabo. O verso “só me chega gente ruim”, sinaliza que nem mesmo o Diabo era tão terrível

quanto Lampeão. O recurso utilizado pelo autor indica que os prejuízos e o terror

disseminado pelo cangaceiro foram imensos e seus crimes indescritíveis superando inclusive

o maior símbolo de maldade: o Diabo.

É interessante notar que a descrição que Satanás faz de Lampião, ao expressar a

opinião do próprio autor em relação a este e ao cangaço, sinaliza para a pluralidade existente

nessas elaborações, o que supõe o forjamento de projeções imaginárias, igualmente plurais.

Lampião é um bandido
ladrão da humanidade
só vem desmoralizar
a minha propriedade
e eu não vou procurar
sarna para me cossar

131
SANTOS, Antônio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Editora Luzeiro Ltda, reedição de
1986.
132
PACHECO, José. A chegada de Lampião no inferno. Rio de Janeiro: Academia. Bras. de Literatura de
Cordel, s/d.
133
PACHECO, José. A chegada de Lampião no inferno. Rio de Janeiro: Academia. Bras. de Literatura de
Cordel, s/d. , p.3.
111

sem haver necessidade134

De acordo com essa construção, Satanás tinha pleno conhecimento das façanhas

de Lampião levando-o a recrutar um exército de “(...) três dúzias de negros / entre homem e

mulher...” para combatê-lo. Exigia-se dos “soldados” preparo físico e armamentício. Além

dessas recomendações, teria pedido reforço para o “cumpadre Lúcifer”. A metáfora usada

pelo cordelista alude à realidade terrena, na qual as forças policiais das diversas localidades

sertanejas firmaram um acordo fronteiriço retirando todos os entraves que pudessem

prejudicar a caça aos bandoleiros. Em algumas ocasiões agiam em conjunto.

É significativo notar na construção do poeta que os elementos que compunham as

fileiras do exército de Satanás eram todos negros, afirmação que sugere a condição marginal

que ocupavam na sociedade, associados ao mal e à criminalidade. O autor recupera a

representação construída ao longo de séculos de escravidão no país, a qual sugere que após a

abolição os negros optaram pela marginalidade negando-se ao trabalho. Além disso, remete à

problemática da inferioridade étnica dos negros, vistos como elementos de pouca

produtividade em função de problemas inerentes à raça. De certa forma resgata a

problemática da degenerescência135 racial, que justificava a índole criminosa e vagabunda do

negro. Tal perspectiva justificaria sua presença no inferno, uma vez que no céu não entrariam

desocupados e nem criminosos realçando, assim, os preconceitos sofridos pelos negros. Tal

perspectiva tornava-se mais agravante quando o elemento negro era mulher, pois esta era

quase sempre identificada como promíscua e de sexualidade exacerbada.

O cordelista prossegue sua narração salientando que foi travada a luta entre o

exército de diabos e Lampião, e que após uma hora de combate Lampião teria incendiado o

inferno. Este motivo teria levado Satanás a ordenar o cessar fogo. De acordo com Pacheco,

134
Ibidem, p. 4.
135
Sobre esse assunto consultar: ANDREWS, G. R. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru/SP:
Edusc, 1998 e SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil-1870-1930. São Paulo: Cia das Letras, 1993.
112

houve grande prejuízo no inferno: “(...) queimou-se todo dinheiro/ que satanás possuía/

queimou-se o livro dos pontos /perderam seicentos contos/ somente em mercadoria”.136 Esta

situação descrita pelo poeta traduz uma analogia dos embates travados entre Lampião e as

volantes. Mostrou que apesar da superioridade numérica dos “diabos”, Lampião acabou

vencendo a batalha; o mesmo se evidencia na zona sertaneja. O poeta transfere para o inferno

o palco dos embates, e nem lá Lampião é derrotado. Acreditamos que tal artifício é utilizado

pelo poeta para enfatizar como Lampião era terrível, superando o próprio Satanás.

Pacheco termina sua obra esclarecendo ao leitor, que embora não tenha uma

solução para acabar com Lampião, só pode afirmar que “(...) no inferno não ficou/ no céu

também não chegou/ por certo está no sertão”.137 Esta afirmação pode estar vinculada ao fato

de Lampião ter sofrido decapitação138, tendo a cabeça separada de seu corpo, o que teria

impossibilitado seu sepultamento completo transformando-o dessa forma numa alma penada

que não encontra descanso enquanto seus membros permanecerem separados. Apesar de não

termos a data deste folheto, podemos afirmar que ele expressa a opinião do poeta e de muitos

leitores sertanejos a respeito de Lampião e do cangaço.

O cordelista Apolônio Alves dos Santos139 também retrata Lampião no inferno,

em seu folheto intitulado O casamento de Lampião com a filha do diabo. Ele inicia sua

narração com a morte de Lampião. Este, ao tentar entrar no céu, teria sido barrado por São

Pedro e expulso a espadada pelo anjo São Gabriel:

Lampião quando chegou


no Reino da Divindade
bateu na porta do céu
São Pedro com brevidade
lhe disse: pode falar

136
PACHECO, José. A chegada de Lampião no inferno. Rio de Janeiro: Academia. Bras. de Literatura de
Cordel, s/d, p.8.
137
Idem
138
As cabeças de Lampião, Maria Bonita, Corisco, Canjica, Zabelê, Azulão e Marinheiro foram sepultadas em
13 de fevereiro de 1969 no Cemitério Quinta dos Lázaros em Salvador /BA. DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª
edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p. 98.
139
SANTOS, A. A. dos. O casamento de Lampião com a filha do Diabo. 1987
113

sem se identificar
não entra na Eternidade.

...Sem essa meu bom velhinho


o meu nome é Virgolino
nisto São Pedro gritou
dê o fora seu cretino
vá viver com Lúcifer
aqui no céu ninguém quer
bandido nem assassino140

O poeta, por meio da fala de São Pedro, personificação do bem e representante da

divindade, demonstra que a fama de Lampião, suas façanhas e vida criminosa já eram

conhecidas mesmo antes dele se identificar e descreve-o da seguinte maneira:

(...)Este cabra é Lampião


cangaceiro assassino
que viveu matando gente
pelo sertão nordestino
e agora quer se salvar
um desse não pode entrar
aqui no reino divino141

Depois de ser expulso do céu, Lampião desce ao inferno. Lá também não é

recebido, travando com os diabos uma grande batalha. Aqui também Lampião mata diversos

diabos e vence. O poeta traz à cena uma “diabinha moça”, filha do diabo. Esta, no calor da

luta atraca-se com Lampião e sentindo-se atraída, consuma o ato sexual. A diabinha alega ao

pai que foi desonrada por Lampião, e que para reparar tal “mal” tem que se casar com ele:

E disse para seu pai


agora fui desonrada
vou casar com este cabra
o meu pai não diga nada
porque ele é muito macho
além de tudo me acho
loucamente apaixonada142

Outro elemento que o poeta focaliza é a paixão e a atração feminina pelo cabra

macho, corajoso e destemido, símbolo de virilidade. Estas qualidades apontadas pelo autor

140
Idem, p.2
141
Idem, p. 3.
142
Ibidem, idem p. 7.
114

seduziram Maria Bonita e muitas outras mulheres que tiveram suas vidas ligadas ao

cangaço. O poeta recupera de maneira satírica este universo sedutor que envolve Lampião ao

tornar o diabo vulnerável e com medo do recém chegado, o que significa o reconhecimento

dos poderes sobrenaturais que o tornavam imortal. Tais poderes atribuídos a Lampião

evidenciam-se nestes dois folhetos que o retratam no inferno. Além disso, constituiu-se num

dos elementos principais na composição do mito Lampião.

Santos termina o folheto enfatizando que Lampião impôs como condição de

casamento, que o diabo fizesse dele o governador do inferno no que foi prontamente

atendido:

O diabo disse: façam


boa união conjugal
vocês serão meus herdeiros
e pra ficar mais legal
-vou assinar no caderno
você vai ser do inferno
o governador geral143

Os cordéis elencados e discutidos salientam em seus versos as concepções dos

diversos cordelistas sobre o fenômeno do cangaço. Projetam muitas vezes as construções

imaginárias e fantasiosas presentes no universo popular e, ainda, desvelam uma narrativa

ucrônica, na qual o desejado é recriado para resignificar o real acontecido.

Cabe destacar que estes folhetos distam no mínimo vinte anos do término do

cangaço, e que na sua maioria foram produzidos nas décadas de 60, 70, 80 e até mesmo em

2000. Sendo assim, podemos afirmar que se baseiam em depoimentos de ex-participantes do

cangaço, e que se constituem numa tentativa de reelaboração das experiências de vida destes

indivíduos. Também pode ser pensado como a construção de um novo discurso, que se

contrapõe ao oficial para justificar a partir das diversas circunstâncias (sociais, políticas,

econômicas, culturais e geográficas) a emergência do cangaço enquanto uma forma de defesa

do homem do campo contra a opressão e a violência a que estava sujeito, possibilitando a


115

reintegração destes indivíduos à sociedade brasileira e à amenização dos preconceitos

inerentes a esse tipo de criminalidade.

É interessante ressaltar que os folhetos contemporâneos ao cangaço o retratam

numa dimensão sobrenatural, e transportam os debates sobre o banditismo para outros

palcos: céu e inferno. A atitude do poeta pode ser pensada como um recurso para expressar

sua posição sobre o fenômeno, e até mesmo como uma medida de segurança, evitando

retaliações por parte dos cangaceiros.

Discutimos ao longo destes ítens as diferentes percepções do cangaço na grande

imprensa, sobretudo os periódicos paulista e carioca – O Estado de S. Paulo e Correio da

Manhã - e na pequena imprensa – folhetos de cordel. O periódico paulista reafirma o discurso

oficial construído pelas autoridades policiais ao retransmitir, sem questionamentos, as

informações fornecidas por estes. Não se preocupa em refletir sobre a questão, embora

tivesse condições para problematizar o tema.

Já o periódico carioca, através de seus intelectuais, debate a questão do

banditismo sob diversos aspectos. Desvela as raízes de sua origem, e indica possíveis

soluções para colocar fim ao banditismo. Mantém uma postura completamente oposta ao do

periódico paulista. Este aceita prontamente as informações sem questioná-las. Já o periódico

carioca tece um amplo debate entre seus articulistas e colaboradores. Fica evidente que para

alguns intelectuais o cangaço se configura no resultado do meio e da carência nos mais

variados âmbitos que constituem uma sociedade, ou seja, político, econômico, social e

cultural. Para outros, numa profissão e num meio fácil e ilegal de enriquecimento. Na

literatura de cordel a maioria dos poetas concebe o cangaço como resultado das injustiças

sociais, das calamidades naturais e ainda, como um ato de rebeldia contra a opressão dos

poderes constituídos e dos latifundiários.

143
Ibidem, p. 8.
116

No que diz respeito às mulheres, a postura destes materiais permanece a mesma?

Vejamos como foram representadas nos diversos materiais coletados. Além dos já citados,

também analisaremos os depoimentos e entrevistas orais, bem como as memórias de ex-

participantes e, as representações imagéticas por meio das fotografias e das metáforas

jornalísticas.
117

Capítulo 2 – Práticas e representações do feminino no

cangaceirismo brasileiro – 1930/1940.

2.1 - A incorporação feminina no cangaço: abordagens sobre o assunto.

A incorporação da mulher no cangaço e seu papel dentro dos bandos são aspectos

pouco explorados pelos estudiosos. Diria até mesmo que as informações e análises específicas

a respeito das mesmas são dispersas e escassas. Ao verificarmos as obras que estudaram o

cangaço, percebemos que nessas análises o modo de vida e o comportamento dos homens

dentro dos bandos foram bastante explorados em detrimento das mulheres. Quando tratadas,

são vistas, na maioria das vezes, como simples companheiras de determinados cangaceiros ou

como criminosas.

A reflexão sobre esta presença mostrou-se significativa para compreendermos o

universo feminino em seu interior. Além disso, traz elementos para debater a criminalidade

atribuída a estas mulheres, qualificadas de maneira homogênea como bandoleiras, violentas e

sanguinárias, sem considerar as circunstâncias que as impulsionaram. Esse estereótipo

depreciativo e marginal atribuído à cangaceira, acaba por encobrir o “ser mulher” construído

no interior do cangaço. Além disso, perde-se de vista que elas também tinham anseios, medos,

desejos e frustrações, sentimentos que não as eximiam do mundo marginal no qual estavam

inseridas.

No campo acadêmico e nas fontes consultadas – cordel, memórias, obras de

memorialistas - as reflexões sobre a incorporação da mulher nas fileiras do banditismo social,

sinalizam para dois tipos de interpretações: os que defendem o ingresso voluntário, que pode

ser exemplificado com Maria Bonita, Dulce, Cristina, Inacinha. Outros interpretam essa

presença como resultado de uma ação violenta, ou seja, do rapto. Este se baseava no uso do
118

terror e da coerção, como exemplificam os casos de Sila, Dadá, Lídia entre outras. Essas

mulheres foram privadas abruptamente do convívio de seus familiares sob ameaça de

retaliações. Ou ainda, em função das circunstâncias, como o caso de Enedina que se sujeitou à

marginalidade do cangaço para acompanhar o marido, que fugia de perseguições das forças

volantes, e visualizava no cangaço uma possibilidade de proteção.

A historiadora Maria Cristina Matta Machado, em seu livro As táticas de Guerra

dos cangaceiros1, embora não seja categórica, alinhou-se às interpretações que defendem que

as mulheres foram incorporadas aos bandos através da força, ou seja do rapto. Entretanto,

admite que em alguns casos elas foram movidas pela paixão a determinado cangaceiro, como

evidenciam os casos de Maria Bonita, Dulce, Doninha, Mariquinha entre outras.

Para a socióloga Maria Isaura P. de Queiroz2, a inserção feminina no banditismo

se configura numa escolha pessoal. Em sua concepção, a incorporação ao cangaço se

constituía para as sertanejas pobres na oportunidade de se livrarem dos trabalhos rurais e na

possibilidade de ascensão social. Tais perspectivas resultavam da imagem construída e

veiculada pelos próprios cangaceiros que ostentavam o enriquecimento fácil e ilegal, a

alegria e o nomadismo dos bandos. Soma-se a esses elementos a virilidade masculina

evidenciada em sua coragem, o que despertava o desejo carnal de muitas mulheres. Em sua

concepção fica evidente que a incorporação feminina aos bandos foi voluntária.

A problemática da incorporação feminina no cangaço também aparece nas fontes

consultadas. Algumas delas foram elaboradas e reeditadas anos após o fim do cangaço, e

evidenciam as reelaborações de homens e mulheres que publicizaram suas experiências a

partir de depoimentos orais.

1
MACHADO, Maria C. M. As táticas de guerras dos cangaceiros. 2ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1978.
119

Em seu testemunho oral, a ex-cangaceira Dadá3 esclarece que a incorporação das

cangaceiras Maria Bonita (Maria Gomes de Oliveira), Mariquinha (Maria dos Santos) e

Doninha (Laura Alves) se constituiu numa escolha pessoal. De acordo com ela, as duas

primeiras abandonaram os maridos e se uniram respectivamente aos cangaceiros Lampião e

Ângelo Roque (Labareda).

O historiador Alistair Thomson4, especialista em História Oral, afirma que

compomos nossas reminiscências para dar sentido à nossa vida passada e presente. Ou seja,

ao resignificarmos o passado lhe conferimos um sentido aceitável. Esse mecanismo se

evidencia nas memórias de Sila e Dadá, que apesar de todas as dificuldades enfrentadas

procuraram reconstruir de forma positiva suas experiências nos bandos, sobretudo, quando

se referem às relações de convívio

Ao rememorar sua experiência no cangaço, Sérgia Ribeiro da Silva (Dadá) nos

informa que algumas das mulheres que compunham os bandos eram originárias de famílias

abastadas e cita os casos de Doninha e Sila. Para enfatizar a boa índole dessas mulheres,

destaca que eram “gente de bem, gente de família, filhas de fazendeiros, tudo moça, mas teve

também mulher casada que foi pro grupo. Maria de Lampião e Mariquinha de Anjo Roque

eram casadas e se apaixonaram e fugiram pro bando. As outras eram tudo moças, meninas,

filhas de gente de recurso”.5

A utilização dos adjetivos “gente de bem”, “gente de família”, “filhas de

fazendeiros” pode ser pensado como uma tentativa da depoente em compor uma imagem

positiva da mulher cangaceira, sobretudo quando destaca a presença de meninas moças

(virgens) como ela e Sila nos bandos. Esse mecanismo fica evidente quando descreve Sila

2
Afirma Queiroz que: “a vida no bando era muito alegre e por isso atraía as mulheres, que assim escapavam
dos duros trabalhos rurais”. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Os cangaceiros. São Paulo: Livraria Duas
Cidades, 1977, p. 186.
3
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p. 34
4
THOMSON, Alistair. Recompondo a Memória: Questões sobre a relação entre a História Oral e as memórias.
Projeto História, São Paulo: PUC/SP, nº 15, p. 51-84.
120

como uma “moça decente, moderna”. Essa expressão evidencia que eram moças decentes e

que provinham de boas famílias, e que não compunham o estereótipo de mulher bandida.

Ao enfatizar em seu relato que com exceção de Maria Bonita e Mariquinha as demais

cangaceiras “eram tudo moças, meninas, filhas de gente de recurso”, Dadá deseja esclarecer

que não eram prostitutas - mulheres de vida fácil – e, que as relações construídas no interior

dos bandos eram decentes e se pautavam nos códigos morais vigentes na sociedade mais

ampla.

Na composição da depoente, a origem e o poder aquisitivo dessas mulheres - ou

melhor, de suas famílias - evidenciam que em alguns casos o cangaço se configurava numa

oportunidade de saírem dos padrões convencionais estabelecidos pela sociedade, ou seja, que

poderiam conquistar outros espaços além da esfera privada do lar, à qual estavam

predestinadas. Além disso, sugere que poderiam “escolher livremente” seus parceiros sem a

interferência dos acordos familiares. Contudo, cabe ressaltar que a incorporação feminina no

cangaço nem sempre se pautava na espontaneidade; em alguns casos a coerção e o medo

foram os fios condutores.

Os folhetos de cordel compõem e resignificam estas experiências de acordo com a

concepção de mundo do poeta e a partir das memórias, dos relatos e das reelaborações de ex-

participantes. Dessa forma, os cordelistas se apropriam dessas experiências e as transmitem

de forma romanceada e fantasiosa, recorrendo ao recurso do exagero para enfatizar seu

próprio ponto de vista sobre o assunto.

O poeta Antônio Teodoro dos Santos, em seu folheto Maria Bonita. A mulher

cangaço,6 se refere a incorporação das mulheres nas fileiras do cangaço como uma escolha

pessoal. Reforça o voluntarismo da incorporação ao afirmar que: “(...) Do mesmo jeito

5
Ibidem, p.34 -35
6
SANTOS, Antônio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986, p.24
121

quiseram,/ Conviver com os bandidos,/ Em busca dos seus queridos/ Mais cangaceira

vieram” 7.

A bibliografia especializada e as diversas fontes consultadas indicam que Maria

Bonita (Maria Gomes de Oliveira) foi a primeira mulher a ingressar no cangaço em meados

de 1930, provocando mudanças significativas no seu interior. A partir deste momento mais

de 30 (trinta) mulheres participaram da vida nos bandos. No quadro 1 é possível visualizar os

nomes e apelidos de algumas destas mulheres:

7
Ibidem, p.28
122

Quadro 1 - Mulheres que integravam o cangaço8


Nomes e apelidos UF - origem Companheiros/nomes e apelidos
Maria Gomes de Oliveira - Maria Bonita Bahia Virgolino Ferreira da Silva - Lampião
Sérgia Ribeiro da Silva - Dadá Pernambuco Cristiano Gomes da Silva Cleto - Corisco
Otília Maria de Jesusa- Otília Bahia Mariano Laurindo Granja - Mariano
Lilib Bahia Lavadeira
Joana Gomes - Moça Bahia Cirilo da Ingrácia
Joana Gomesc – Moça Bahia Jacaré
Ilda Ribeiro de Souza - Sila Sergipe José Ribeiro Filho - Zé –Sereno
Neném Bahia Luís Pedro
Lídia Bahia Zé Baiano
Enedina Sergipe José do Nascimento - Cajazeiras
Dulce Silva - Dulce Sergipe Criança
Inacinha Bahia Gato
Maria dos Santos - Mariquinhad Bahia Ângelo Roque - Labareda
Anaf Bahia Ângelo Roque - Labareda
Maria Fernandes - Maria de Juriti Sergipe Manuel Juriti - Juriti
Maria de Azulão Bahia Azulão
Dinda - Delicado
Durvalina Gomes - Durvinha Bahia Virgínio
Áurea Sergipe Manoel Moreno - Baiano
Maria Jovina - Maria de Pancada Bahia Pancada
Laura Alves - Doninha Alagoas Manoel dos Santos - Boa Vista
Cristina Alagoas Português
Florência Bahia Rio Branco
Sebastiana Rodrigues Alagoas Moita Brava
Eleonora - Serra Branca
Lica Maria da Conceição Bahia Passarinho
Sabina da Conceição Bahia Manoel Nascimento de Souza - Mourão
Quitéria Bahia Moita Brava
Bídio Bahia Antonio dos Santos - Volta Seca
Antonia Maria de Jesus Bahia Gabriel Lima - Baliza
Rosinha - Mariano Laurindo Granja - Mariano
Gertrudes Bahia Emídio Ribeiro - Beija-Flor
Dalva - Arvoredo
Adília Sergipe Canário
Maria Cardoso Sergipe Antonio Felix - Gitirana
Rosa - Simplício José dos Santos - Caracol
Amélia* - -
Maria* - -
Isabel* - -
Adelaide Sergipe O ex-cangaceiro não permitiu a divulgação de seu nome.

Fontes: ARAÚJO, Antônio A. C. de.Lampião, as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, DIAS, José Umberto. Dada. 2ª
edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989 e Correio da Manhã, 14/04/1937, p. 6 e 16/11/1937, p. 6.
*A matéria veiculada no Correio da Manhã em 16/11/1932, p. 5, apenas menciona a participação dessas mulheres no bando de
Faustino e não esclarece de quem eram companheiras.

8
As letras de a-d indicam a necessidade de esclarecimentos específicos sobre estas mulheres, como veremos a
seguir: aOtília Maria de Jesus foi a primeira mulher de Mariano Laurindo Granja. Este, após a prisão da
companheira uniu-se a Rosinha. b Lili foi mulher de Lavadeira. Com a morte deste em 1933, uniu-se ao
cangaceiro Baiano (Manoel Moreno) e largou-o para viver com Moita Brava. c Joana Gomes após a morte de seu
companheiro Cirilo da Ingrácia, uniu-se ao cangaceiro Jacaré. d O cangaceiro Labareda, após a morte de sua
companheira Mariquinha, juntou-se a Ana.
123

Com base nas informações fornecidas pelo memorialista Antonio Amaury C. de

Araújo, nota-se no quadro 1, que a Bahia foi o Estado que forneceu maior número de

mulheres ao banditismo brasileiro. O segundo maior foi Sergipe, seguido por Alagoas e

Pernambuco.

Araújo esclarece que as cangaceiras, diferentemente do que é divulgado, não

percorreram sete Estados nordestinos. De acordo com ele, o trajeto feminino se circunscreveu

aos “chãos baiano, pernambucano, alagoano e sergipano”, sendo que o primeiro e o último

foram os mais freqüentados pelas mulheres. Ressalta que a rota baiana limitou-se as regiões

norte-nordeste, margeadas pelo rio São Francisco. O Estado de Sergipe foi muito percorrido

pelo grupo de Zé-Sereno, que segundo nos informa o memorialista, penetrou até o mar. Além

destas áreas, toda a extensão do Rio São Francisco, da Cachoeira de Paulo Afonso descendo

em direção à foz, foi fortemente explorada pelos cabras de Lampião. (...) o sertão e o agreste

também viveram intensamente o fenômeno do cangaço.”9 Acrescenta que o Estado de

Alagoas também foi muito freqüentado pelas cangaceiras, sobretudo as zonas ribeirinhas e o

sertão. Já Pernambuco foi o que menos visitas teve por parte das mulheres que

acompanhavam os grupos.”10

Com base nessas informações e no confronto das diversas fontes pesquisadas,

procuramos (re)construir o trajeto percorrido pelas cangaceiras durante a década de 30 como

evidencia o mapa da página seguinte. Cabe salientar que estas mulheres não estavam

sozinhas, e que não formaram bandos independentes. Utilizamos o recurso do mapa para

demarcar os espaços em que há referências à participação feminina nas invasões de cidades,

nos confrontos com a polícia, enfim, para representar a área percorrida pelas mulheres. Cabe

ressaltar que a atuação dos cangaceiros foi mais ampla.

9
ARAÚJO, A. A. C. de. Lampião, as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p. 374-377.
10
Idem, p. 379.
124
125

2.2 – Representações do feminino na imprensa.

As informações sobre a mulher cangaceira limitam-se, na maioria das vezes, ao

nome, a uma ligeira descrição física e ao nome do companheiro. Nem sempre é mencionada a

maneira pela qual estas mulheres passaram a integrar os bandos. Esta característica também

se observa na cobertura da imprensa, tanto no periódico paulista como no carioca. O jornal O

Estado de S. Paulo, por exemplo, apenas menciona esta presença de forma genérica (ver

apêndice 1) e depreciativa, ora tratando-as como bandoleiras, ora como amantes, sugerindo

sua condição de objeto sexual ou, ainda, como números.

O periódico paulista utiliza os seguintes termos para qualificar as cangaceiras:

“bandidas”, “amantes”, “megeras”; “companheira”, “hábeis amazonas”, “cruéis”,

“destemerosas”. Tais adjetivos acabam generalizando a criminalidade à todas as mulheres,

independentemente do motivo que as impulsionaram às fileiras do banditismo. A postura do

periódico é um indicativo de não havia elementos para discutir detalhadamente a natureza do

ingresso feminino nos bandos. No entanto, havia a possibilidade de explorar e problematizar

a emergência do cangaço. Esse debate foi intenso entre os articulistas e colaboradores do

periódico carioca - Correio da Manhã, conforme discutimos no capítulo 1.

Os noticiários a respeito de Lampião e seu bando repercutiram interna e

externamente, e ocuparam, inclusive, espaços na imprensa estrangeira. Tal processo se

viabilizou a partir do intercâmbio praticado pelas diversas folhas e periódicos brasileiros.

O Estado de S. Paulo retransmitia as notícias publicadas nos jornais nordestinos

locais, sem se preocupar com a veracidade delas. Esta perspectiva assumida pelo periódico,

nem sempre garantia a publicação de notícias fidedignas dos embates, resultando em

informações contraditórias, fantasiosas e imprecisas em relação aos deslocamentos dos

bandos, e também os confrontos com a polícia. É justamente esse mecanismo que permite ao
126

historiador confrontar as fontes, e reconstruir a partir dos indícios as percepções de mundo

veiculadas por elas.

As informações sobre a participação feminina no cangaço são limitadas e exige

do historiador um amplo e minucioso trabalho para garimpar alguns indícios que permitam

compreender a presença de mulheres nesse universo marginal do crime. Apesar da

historiografia nos informar que o ingresso feminino tenha ocorrido durante o ano de 1930,

essa presença somente será mencionada pelo O Estado de S. Paulo a partir de 1933.

A qualificação da cangaceira como bandida se evidencia em inúmeras notícias.

Por exemplo, em As proezas de Lampeão, veiculada em 29 de julho de 1933, a matéria

esclarece qual era a composição do grupo:

(...) composto de 23 pessoas: “Lampeão”, 19 caibras e 3 mulheres – 3


verdadeiras megéras; todos fardados de brim kaki, bem montados, armados
de fuzil e rifle, trazendo farta munição. Conduziam também, punhaes e
revólveres á cinta. Roubaram dinheiro, fazendas, jóias, moedas antigas de
ouro e prata....” 11

As mulheres são descritas como “3 verdadeiras megéras”, legitimando sua

criminalidade ao enfatizar a participação efetiva das mesmas nos roubos em Casa Nova,

cidade que se localizava nas margens do rio São Francisco, na Bahia. Nota-se claramente o

peso depreciativo do adjetivo “megéras”, sinônimo de crueldade, má índole, perversidade,

enfim, atributos que descrevem pessoas de péssimo caráter. Isso se torna mais grave com a

expressão que antecede o adjetivo, pois “verdadeiras” confirma e assegura que essas

mulheres eram de fato uma ameaça para a sociedade, igualando-as aos homens cangaceiros e,

portanto, deveriam receber as mesmas punições que recaíam sobre aqueles.

Dois meses e meio após essa primeira referência sobre a presença de mulheres no

cangaço, é possível notar o tratamento numérico que lhes era conferido. Informa-se que o

11
O Estado de S. Paulo 29/07/1933, p. 4.
127

grupo de Azulão era composto de “...4 homens e 2 mulheres...” .12 Estes “elementos”,

segundo a notícia, teriam invadido os municípios de Jacobina e Monte Alegre e, mais uma

vez, é reafirmada a participação criminosa dessas mulheres. Provavelmente, uma delas seria

Maria, a companheira de Azulão e a outra, companheira de um dos homens do bando.

A morte de Azulão é noticiada dezesseis dias após o ataque aos municípios

citados acima. Essa é resultado do combate travado com a polícia na região da Lagoa do Lino,

no sertão da Bahia. O jornal não menciona a morte de Maria, companheira de Azulão, porém

esta foi registrada no livro da memorialista Vera Ferreira13 no qual descreve a batalha

ocorrida na Lagoa do Lino, cujo desfecho teria resultado na morte de Maria, Azulão e mais

dois cangaceiros.

Ao analisarmos a cobertura de O Estado de S. Paulo, foi possível notar que o

tratamento numérico conferido às cangaceiras se evidencia desde sua primeira aparição no

periódico em 1933, até mesmo após a morte de Lampião em 1938.

A superioridade masculina frente à feminina configura-se numa outra

característica que pode ser observada nas informações veiculadas pelo periódico, que por sua

vez são fornecidas pelas autoridades policiais. Esta perspectiva pode ser observada na

matéria do primeiro dia do mês de novembro de 1933, na qual a diferença numérica é

significativa: “cincoenta homens e uma mulher”14. Dois meses após a publicação dessa

matéria informou-se sobre a conivência de algumas mulheres no uso da violência contra a

população sertaneja:

Há dias “Corisco” acompanhado de 8 bandidos e duas mulheres, atacou o


povoado alagoano de Ilha Grande, fronteira a Pernambuco e saqueou várias
casa, levando jóias e dinheiro. Mandou dar uma surra de chicote em um
vaqueiro e na mulher de um criador, a quem quizeram arrancar-lhe a língua,

12
O Estado de S. Paulo 14/10/1933, p. 6.
13
Sobre o assunto consultar: FERREIRA, V. e ARAÚJO, A. A. C. De Virgolino a Lampião, São Paulo: Idéia,
1999, p. 220 e ARAÚJO, A. A. C. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p. 98.
14
O Estado de S. Paulo 1/11/1933, p. 6
128

contentando-se entretanto, em cortar-lhe os cabelos, raspando-lhe a cabeça


em forma de coroa, e maltrataram várias moças.....15

O trecho acima sugere também que participavam ativamente dos saques, e

reforça o perigo que representavam para a sociedade.

Referindo-se à composição do bando de Lampião em abril de 1934 o periódico

enfatiza que era “constituído por 6 mulheres e 17 homens”16. Aproximadamente quarenta e

cinco dias após a divulgação dessa notícia , o jornal informa que “o grupo de “Lampeão” se

acha reduzido a 17 homens e duas mulheres”17. Entretanto, não explicita o que teria ocorrido

com as quatro mulheres que integraram aquele bando. Diante dessa situação cabe indagar se

foram mortas ou capturadas.

O memorialista Antonio Amaury C. de Araújo, em Lampião as mulheres e o

cangaço18, menciona a prisão das cangaceiras Otília (Otília Maria de Jesus) e Sabina (Sabina

da Conceição) em 1934 e a morte de Lili em fins desse mesmo ano ou no início de 1935.

Seriam essas mulheres as mesmas que compunham o bando de Lampião descrito pelo

periódico?

Praticamente na metade do ano de 1935, o Estado de S. Paulo referindo-se à

composição do bando do cangaceiro Zé-Baiano enfatiza que ele e seus homens “estavam

acompanhados de quatro mulheres”.19 Esse mesmo tratamento numérico, também permanece

no contexto do Estado Novo. Em abril de 1938, três meses antes da morte de Lampião, o
20
periódico noticiava: “o grupo era composto de 10 homens e 4 mulheres” e depois de sua

morte, já sob a garantia de anistia por parte do governo estadonovista, veiculava: “duas

mulheres entregaram-se a polícia bahiana em Geremoabo”21. É significativo recuperar que

15
O Estado de S. Paulo 31/12/1933, p. 8.
16
O Estado de S. Paulo 25/04/1934, p. 2.
17
O Estado de S. Paulo 09/06/1934, p. 2.
18
ARAÚJO, Antonio A. C. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985.
19
O Estado de S. Paulo 22/05/1935, p. 7.
20
O Estado de S. Paulo 17/04/1938, p. 7.
21
O Estado de S. Paulo 09/12/1938, p. 5.
129

apesar da inferioridade numérica, elas são sempre tratadas em pé de igualdade quando se

refere à criminalidade.

Além da expressão “bandida”, também foram usadas pela imprensa paulista

“amante” e “companheira” para se referir à mulher cangaceira, como exemplificam as frases:

“a bandida amante do chefe Jurema”22 e “companheira de Lampeão”23. Esta última,

permanece mesmo após a morte do casal em julho de 1938 no cerco a Angico /Sergipe.

Referindo-se à chegada das cabeças de Lampião e Maria Bonita ao Museu do Serviço Médico

do Estado da Bahia, o periódico enfatizou que “haviam desaparecido as obturações em ouro

dos dentes de “Lampeão” e sua companheira”24.

Poucas são as matérias que expressam alguma positividade. Na notícia veiculada

em 20 de maio de 1934, somos informados de que Lampião seria um homem viril e sedutor,
25
pois “tinha duas amantes, ambas caboclas e bonitas” . Contudo, ao longo da pesquisa

pudemos perceber, a partir da análise dos documentos e dos depoimentos orais de ex-

participantes, que a informação veiculada acima não traduz as relações existentes nos bandos,

pois era permitido que os homens tivessem uma única companheira e vice-versa.

No que se refere ao desempenho com armas de fogo, as cangaceiras foram

descritas da seguinte forma: “ As três mulheres que integram o bando sinistro (...) são hábeis

amazonas e manejam o rifle com incrível destreza. Algumas são tão cruéis quanto os homens.

Tomam parte nos assaltos e combates ao lado dos bandoleiros, mostrando-se tão

destemerosas como eles”.26 Nessa construção fica evidente que se constituíam em mulheres

belicosas e perigosas. Em seus relatos orais, Sila e Dadá enfatizam que as mulheres quando

incorporavam-se aos grupos, aprendiam a lidar com armas de fogo e punhais.

22
O Estado de S. Paulo 12/03/1935, p. 7.
23
O Estado de S. Paulo 28/07/1935, p. 2.
24
O Estado de S. Paulo 14/08/1938, p. 9.
25
O Estado de S. Paulo 20/05/1934, p. 8.
26
O Estado de S. Paulo 13/01/1937, p. 7.
130

A historiadora Maria Cristina M. Machado,27 nos esclarece que na maioria das

vezes as mulheres ficavam protegidas nos coitos e que não participavam ativamente dos

confrontos, salvo no momento em que a perseguição policial tornava-se mais acirrada. Tal

perspectiva transmite a idéia de legítima defesa, e justifica a prática feminina. Em sua

concepção, com exceção de Dadá, a maioria das mulheres não possuía um perfil belicoso e

violento.

A leitura de O Estado de S. Paulo nos mostrou que as cangaceiras foram

qualificadas de forma homogênea como criminosas e bandoleiras construindo, assim, um

estereótipo masculino, belicoso e violento de mulher, ou então, tratando-as como meros

objetos de satisfação sexual, descrevendo-as como amantes ou companheiras dos homens. E

por fim, como números, sempre de modo depreciativo. Essa postura do periódico acabou por

encobrir a própria condição feminina e o ser mulher criado no universo do cangaço. Os

cuidados femininos com o embelezamento do corpo, com a aparência, foram anulados pela

construção de uma identidade belicosa e marginal.

O Correio da Manhã, apesar de realizar um amplo debate acerca do cangaço, no

que se refere às mulheres mantém a mesma postura do periódico paulista, ou seja, apenas

reproduz as informações, o que indica que não tinham elementos suficientes para refletir

sobre essa participação. Assim como no periódico paulista, grande parte das informações

veiculadas no periódico carioca também se reportam às mulheres enquanto números,

companheiras de determinado cangaceiro, ou de forma pejorativa: “bandoleiras”, “megeras”

e “amantes”. Vale lembrar que tais informações eram fornecidas pelas autoridades policiais, e

retratavam as percepções desse grupo quanto à participação feminina.

Vejamos como a representação do feminino é construída nas páginas do

periódico carioca Correio da Manhã (ver apêndice 2). Iniciamos nossa pesquisa no ano de

27
MACHADO, M. C.M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978, p. 92.
131

1930, e a primeira referência encontrada sobre a participação feminina ocorre em novembro

de 193228. Nessa, o cangaceiro Simplício José dos Santos, vulgo Caracol, procedente da vila

de Jatobá em Pernambuco, justifica sua incorporação ao cangaço como uma opção de

sobrevivência. Seu depoimento à imprensa é revelador, pois menciona a presença de quatro

mulheres no grupo, entre elas, sua companheira Rosa e as cangaceiras Amélia, Maria e

Isabel. Entretanto, não informa quem eram seus companheiros, apenas menciona que o grupo

era composto pelos cangaceiros: Antonio Faustino, Candão, Quixabeira e Marcel.

O tratamento numérico conferido às cangaceiras pode ser observado na utilização

dos seguintes expressões: “quatro mulheres”29, “cinco mulheres”30, “foram capturadas três

mulheres”31, “uma mulher”32, “seis mulheres e 17 homens”33, “várias mulheres”34, “grupo

armado, composto de quarenta homens e três mulheres”35.

O mecanismo de poder existente na relação homem/mulher no cangaço se observa

na associação da cangaceira ao companheiro seja enquanto mulher, companheira ou amante.

Esses elementos transmitem a idéia de pertencimento a alguém, e indicam uma relação de

dependência. Essa perspectiva pode ser observada no depoimento do cangaceiro Caracol à

imprensa, no qual referindo-se à companheira afirma “...Rosa, que vivia comigo...”36, ou

ainda, nas seguintes expressões: “...e a mulher de Antonio da Engracia...”37, “companheira

de Lampeão”38, “mulher do salteador ‘Gato’ chefe do bando”39, “mulher de Cyrillo de

Ingrácia”40, “Manuel Moreno, bandido chefe, sua mulher...”41, “amante de Lampeão”42,

28
Correio da Manhã - 16/11/1932, p. 5.
29
Idem
30
Correio da Manhã - 08/03/1933, p. 3.
31
Correio da Manhã - 25/03/1933, p. 8.
32
Correio da Manhã - 17/10/1933, p. 2 e 19/11/1933, p. 8.
33
Correio da Manhã - 24/04/1934, p. 9.
34
Correio da Manhã - 31/07/1935, p. 1.
35
Correio da Manhã - 19/03/1937, p. 3.
36
Correio da Manhã - 16/11/1932, p. 5.
37
Correio da Manhã - 25/03/1933, p. 8.
38
Correio da Manhã - 28/07/1935, p. 1.
39
Correio da Manhã - 9/10/1936, p. 2.
40
Correio da Manhã - 14/04/1937, p. 6.
132

“Maria Déa”, a companheira do bandido”43. O termo “companheira” sugere uma relação

mais equilibrada, enquanto “mulher de” indica relação de poder, e “amante de” vincula-se à

esfera sexual, sugerindo que essas mulheres eram tratadas enquanto objeto para atender os

desejos sexuais desses homens.

Os termos citados acima indicam as percepções dos outros em relação a estas

mulheres, sobretudo das autoridades policiais, principais fornecedoras dessas informações.

Expressam a própria concepção veiculada na época sobre os papéis do masculino e do

feminino, sinalizando que no mundo do crime homens e mulheres são percebidos e

qualificados da mesma forma, ou seja, como bandidos.

A cangaceira Dadá tornou-se uma das figuras mais emblemáticas do cangaço em

função de sua participação direta nos embates com as volantes, nas invasões a cidades e

povoados, enfim, destaca-se sobretudo, por sua prática e postura belicosa, imagem que faz

questão de alimentar mesmo após o fim do cangaço.

A primeira informação sobre a participação nos confrontos da cangaceira Dadá

ocorre em 24 de maio de 194044, e foi dada pelo cangaceiro José Porfírio, vulgo “Velocidade”

que teria se entregado à polícia de Parapiranga –BA, e informado que Corisco não fazia o

mesmo por “opposição de Sérgia, que é o verdadeiro chefe do grupo, tendo prometido matar

o marido caso tentasse este depor as armas”45. Observa-se na fala do cangaceiro uma

inversão de papéis. De acordo com ele, Corisco era dominado por Dadá, que se constituía no

“verdadeiro chefe do grupo”. Isso também se evidencia na notícia posterior, veiculada em 28

de maio de 1940, na qual somos informados da morte de Corisco e da prisão de Dadá.

Referindo-se ao episódio da morte de Corisco, o cangaceiro Velocidade reforça que Dadá

41
Correio da Manhã - 26/06/1937, p. 3.
42
Consultar as matérias do Correio da Manhã: 29/07/1938, p. 14, 30/07/1938, p.14, 31/07/1938, p. 24 e
06/08/1938, p. 14.
43
Correio da Manhã - 30/07/1938, p. 14.
44
Correio da Manhã - 24/05/1940, p. 5
45
Idem
133

teria impedido Corisco de se entregar às autoridades policiais. Afirma que o “Demônio

Louro...não comparecera porque a tal” decisão “se oppuzera a sua esposa, mulher que o

dominava inteiramente”46.

Cabe destacar que nas três últimas notícias sobre a morte de Corisco, a cangaceira

Dadá passa a ser descrita como “companheira de Corisco”, colocando-a aparentemente no

seu “lugar de mulher” e devolvendo ao cangaceiro o comando do grupo. A experiência dessa

cangaceira será analisada de forma detalhada neste capítulo no ítem 2.3.2.

As notícias veiculadas pelo Correio da Manhã ao longo da década de 30, assim

como as do periódico paulista, compõem um estereótipo feminino violento e masculinizado.

Essa perspectiva difere das construções veiculadas pelas fotografias, que também remontam

ao mesmo período, mais especificamente ao ano de 1936. Essas fotografias foram produzidas

pelo ambicioso sírio-libanês Benjamim Abrahão Boto47, durante sua experiência de convívio

com o grupo de Lampião. Esse fotógrafo estava diretamente ligado à produtora ABA Filmes,

com sede em Fortaleza - Ceará, e almejava angariar lucros com a produção de um filme e

com a venda das fotografias do bando de Lampião.

46
Correio da Manhã - 28/05/1940, p. 2
47
As fotografias produzidas pelo sírio-libanês Benjamim Abrahão Boto e o filme de 15 minutos que retrata
alguns aspectos do cotidiano do bando de Lampião, encontram-se no Acervo Iconográfico da Fundação
Joaquim Nabuco/PE. Conseguimos a reprodução desse filme e de algumas fotografias que retrataram as
mulheres. O acesso a esses materiais não foi tão fácil, pois, a família de Lampião, sua única filha (sobrevivente)
com Maria Bonita, Expedita Ferreira ganhou na justiça o direito a imagem dos pais. Contudo, quem cuida
desse assunto é a neta do casal, Vera Ferreira, que se mostrou muito solícita conosco ao permitir a reprodução
desses materiais.
134

2.3 – Cangaceiras: quem eram estas mulheres?

Falar sobre as mulheres cangaceiras não é uma tarefa fácil, devido às informações

limitadas sobre suas experiências nos bandos, ou pela escassez de registros pessoais deixados

por elas. Uma parte significativa das informações a respeito destas mulheres decorre dos

depoimentos dos homens que se envolveram com o cangaço (cangaceiros, ex-soldados,

coiteiros, entre outros) aos diversos pesquisadores que trataram o tema. No entanto, parte

destas memórias foi produzida por algumas mulheres que integraram os bandos, permitindo

ao pesquisador ter acesso as suas percepções em relação a esta experiência, e também a partir

do depoimento delas aos pesquisadores interessados no assunto. Embora tenha um universo

comum, a história dessas mulheres revela certas particularidades que serão expostas no

decorrer do texto.

2.3.1 – Maria Bonita

Maria Gomes de Oliveira, vulgo Maria Bonita destaca-se por ter rompido de

maneira radical as normas da sociedade brasileira da época. Estas estavam submetidas aos

rigores do Código Civil de 1916 que condenava a união ilegal, postura igualmente

compartilhada pela Igreja. Apesar desta rigidez, as pessoas construíram suas vidas a partir de

outros padrões. Assim, a existência de relacionamento ilegal (concubinato, mancebia e

amasiamento) fazia parte do cotidiano da sociedade brasileira do período.

As uniões no cangaço em sua maioria eram ilegais. As exceções foram Enedina e

Cajazeiras, que se uniram em matrimônio antes de entrarem para o grupo. Dadá e Corisco,

Sila e Zé Sereno o contraíram depois que se incorporaram aos bandos.


135

De acordo com os padrões morais que vigoravam na sociedade brasileira da

época, Maria Bonita pode ser qualificada como adúltera e bandida por sua conduta

duplamente marginal. Primeiro, ao abandonar o marido com quem havia contraído

matrimônio, e depois por juntar-se a um fora da lei. Foi sem dúvida a figura mais conhecida e

divulgada dentre todas as mulheres que vivenciaram a experiência do cangaço.

Maria Gomes de Oliveira nasceu em 1911 na Bahia. Era filha de José Gomes de

Oliveira (conhecido como Zé Felipe) e Maria Joaquina Conceição de Oliveira. Seu pai era

proprietário da fazenda Malhada da Caiçara, situada nas proximidades de Santa Brígida, no

nordeste baiano. Tinha uma vida economicamente tranqüila. Sua infância e adolescência

transcorreram semelhantes às de outras meninas originárias das caatingas, com as

brincadeiras de rodas, passa-anel e bonecas. Conviveu com doze irmãos, sendo sete mulheres

e cinco homens, e parentes próximos. 48

As irmãs de Maria Bonita, Olindina Oliveira Santos (Dorzinha) e Amália

Oliveira Silva (Dondon) relataram ao memorialista Antônio A. C. de Araújo as experiências

de vida da cangaceira desde a infância até seu ingresso no cangaço. De acordo com essa

construção, Maria Bonita era esposa do sapateiro José Miguel da Silva (conhecido como Zé

de Neném), com quem vivia em constantes conflitos.

Mas o que teria levado Maria Bonita a deixar sua vida de casada, onde tinha uma

relativa segurança, conforto, comida, para aventurar-se numa vida errante? Seria a aura de um

amor “ilegal” e avassalador? Esta foi a versão que prevaleceu entre suas irmãs e os ex-

integrantes do bando. De acordo com a cangaceira Sila (Ilda Ribeiro de Souza, ex-integrante

48
Essas informações foram fornecidas ao memorialista Antonio Amaury C. de Araújo pelos familiares de Maria
Bonita, sobretudo por suas irmãs Olindina Oliveira Santos e Amália Oliveira Silva. Além desses relatos, o
memorialista também contou com os de ex-integrantes dos bandos. ARAÚJO, A. A.C. de. Lampião: as
mulheres e o cangaço.São Paulo: Traço, 1985, p-168-179., FERREIRA, V. e ARAÚJO, A.A.C. de. De
Virgolino a Lampião, São Paulo: Idéia Visual, 1999. p-191-193. QUEIROZ, M. I. P. de. Os cangaceiros. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, p. 113-115.
136

do bando de Lampião): “(...) Maria entrou porque gostou de Lampião, o homem, o marido

dela seria Lampião...” 49.

A versão construída pelos memorialistas quanto à participação feminina no

cangaço se respalda nos depoimentos orais e nas reelaborações das experiências de vida de

ex- participantes (cangaceiros (as), sertanejos (as), coiteiros, autoridades policiais, familiares

de cangaceiros). Estas foram apreendidas pelos poetas que as resignificaram e as

retransmitiram por meio da literatura de cordel. Entre os cordelistas que escreveram sobre

Maria Bonita, destacam-se Antônio Teodoro dos Santos e Gonçalo Ferreira da Silva, nos

folhetos Maria Bonita. A mulher cangaço50 e Maria Bonita – A eleita do Rei51 .

Na introdução de nosso texto mencionamos que o poeta Antônio Teodoro dos

Santos reserva à Maria Bonita um lugar no panteão de “heroínas-guerreiras”, ao lado da

francesa Joana D’Arc, das brasileiras Anita Garibaldi, Ana Neri e Maria Quitéria, mulheres

famosas pela coragem e determinação que demonstraram na luta pela defesa de seus ideais.

Destaca a militância destas mulheres nas mais diversas situações e, comparando-as à homens

corajosos e destemidos. Na composição deste poeta, a mulher havia conquistado ao longo do

tempo papéis históricos fundamentais:

A mulher, todas as épocas,


Teve o seu valor histórico
Nas armas e nas ciências
Com muito saber teórico;
Mesmo no tempo presente
Esse valor é crescente,
Isso é fato categórico

Portanto vamos fazer


Uma narração
Sobre Maria Bonita,
Esposa de Lampião
Chamada “A mulher-cangaço”
Que no tempo e no espaço

49
Depoimento de Ilda Ribeiro de Souza (Sila) ex-cangaceira, integrante do bando de Lampião, companheira do
cangaceiro Zé Sereno, Rio Claro/SP, 26/01/2001.
50
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986.
51
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – A eleita do Rei. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000.
137

Assombrou todo o sertão


Porém antes de falarmos
Da misse das cangaceiras
Mostraremos as heróicas
Defensoras das bandeiras52

O poeta ressalta a importância feminina na construção histórica da sociedade.

Destaca que tal contribuição não se resumia apenas àquelas ligadas aos afazeres domésticos,

como cuidar do lar, dos filhos e do marido. Mas que a mulher ampliava seus horizontes a

cada dia, nas “ciências”, nas “armas”, ou no “saber teórico” revelando o seu papel crescente

na sociedade.

Para justificar a coragem, valentia e a personalidade forte de Maria Bonita utiliza

a expressão “nervos de aço”. No decorrer de sua narrativa, Santos atribui a sua personagem a

beleza física de uma “sereia” e a coragem de um “homem forte”. Estes traços do físico e da

personalidade de Maria Bonita condizem com a idealização de uma heroína, bela e corajosa,

caracterizando ao mesmo tempo a lenda e a realidade. O cordelista não se contentou em dizer

que foi uma bela mulher, mas “linda como uma sereia”53 personagem mitológica e sedutora

que desperta desejos por seus encantos sobrenaturais.

Compara a existência de Maria Bonita à da Virgem Maria, mãe de Jesus, o

Messias que viera salvar a humanidade. Assim, Maria Bonita representava ao mesmo tempo a

mulher sofredora, que luta não para proteger o filho das perseguições, como fez Maria e José,

mas o seu amado, identificado por ela como um “injustiçado”54. Vejamos a narrativa do

poeta:

O nome Maria traz


Uma magia de glória,
De luta, de sofrimento,
De derrota, de vitória,
Com a que nos trouxe a luz

52
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986, p. 3-4
53
Ibidem, p. 5
54
Idem, p.18
138

(...) Porém nossa Maria


de Déa ao sair da pia
passa a Maria Bonita

(...) Precisamos com franqueza


Esclarecer como foi
Que a nossa misse- princesa
Foi chamada de Santinha,
Bonita, também Rainha
Por quem viu sua beleza55

Outros elementos foram incorporados ao perfil de Maria Bonita. O fato de

Lampião atribuir-lhe carinhosamente o apelido de Santinha, sugere que o mesmo, além de vê-

la como uma bela mulher, também a via como uma protetora, talvez como uma mulher

virtuosa, tal qual sua mãe, já que a perdera ainda muito novo. Ou, ainda, com uma mulher fiel

e dedicada. O título de “Rainha” deveu-se a sua união com o então “Rei do cangaço”,

“Governador do Sertão”.

O poeta prossegue a narrativa, descrevendo a infância de Maria, suas brincadeiras

e sua preferência pelos brinquedos masculinos:

Brincava do mesmo jeito


Com meninas e meninos,
Porém gostava de usar
Os brinquedos masculinos
Como armas e cavalos
Jamais queria trocá-los
Pelos outros femininos

Brincando mostrava que


Não gostava de bonecas,
Preferindo ser chamada
De uma menina sapeca...56

De acordo com a construção do poeta Maria Bonita não teria sido uma criança

comum. Em vez de ter apreço pelas bonecas e por brincadeiras que despertassem o lado

maternal, como brincar de casinha e todos o elementos que envolviam um lar de verdade,

preferia brinquedos masculinos, como armas e cavalos. Tal construção sugere que Maria

55
Ibidem, p.6
56
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986, p.7
139

Bonita tivera desde cedo predisposição para as lides que envolviam força e bravura, o que não

se evidencia na versão apresentada pelas irmãs da cangaceira ao memorialista Araújo57, ou

seja, a de que teria sido uma criança comum.

A composição do poeta pode ser pensada como um recurso para legitimar a

coragem e a bravura de sua personagem, a quem não poupa elogios. Qualifica-a como

“astuta”, “linda”, “atraente”, “sensível”, “corajosa”, “valente”, entre outros tantos elementos

que permitam a sua mitificação. Na estrofe abaixo temos uma noção da coragem extra-

humana de Maria:

Pois quando avançava que


Pegava um boi pelo rabo
Que enrolava na mão,
Mesmo sendo um bicho brabo,
Ela dava um safanão
E o derrubava no chão,
Depois gritava: - Eta diabo!58

Fica explícito nestas estrofes o exagero e a fantasia. Sabemos da dificuldade de

domar um boi pelo rabo e derrubá-lo no chão com a mão. Acreditamos que o poeta, ao

atribuir a sua personagem poderes excepcionais, valorizou ainda mais o seu caráter heróico.

Depois de passar pela infância de sua heroína, o poeta se detém em sua

juventude. Descreve o tipo de homem que agrada sua personagem:

(...) Ela pensava em casar,


Mas queria um macho forte –
Do bofe no pé-da-goela
Que sendo em defesa dela
Desse a vida pela morte59

O homem idealizado na estrofe acima, não correspondia às características do

sapateiro José. Este foi representado pelo poeta como um homem calmo, romântico,

galanteador, educado e muito apaixonado por Maria Bonita. Estas qualidades explicitam-se na

57
ARAÚJO, A. A.C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço.São Paulo: Traço, 1985.
58
Ibidem, p. 8.
59
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986, p.8
140

carta que José teria mandado à mesma, pedindo-a em casamento. Santos justifica que esta o

aceitou em casamento, para não ficar sozinha e encalhada, idéia ressaltada na estrofe abaixo:

Passava o tempo e Maria


Já ficando solteirona,
Pois o homem que queria
Não via naquela zona
Era um rapaz valentão
Que quisesse o coração
De uma mulher valentona 60

Na narrativa do cordelista, eles se casam seis meses depois do pedido oficial aos

pais. Contudo, o “encantamento” dura pouco e Maria Bonita logo percebe que aquele não era

o homem que sonhara. O jeito pacato e caseiro de José irritava-a. Queria sair, passear,

freqüentar bailes e festas. O mesmo acontecera a José. Apesar de apaixonado por Maria

Bonita, não gostava do seu jeito inquieto. Buscava uma mulher dedicada ao lar que cuidasse

da comida, da casa, das roupas, que lhe desse filhos, enfim, queria uma “rainha do lar”. A

construção do poeta nos transmite a idéia de que Maria Bonita era uma mulher que estava

além de seu tempo. Isso se evidencia na recusa em limitar-se á esfera privada, aos afazeres

domésticos, enfim, ao papel de dona-de-casa.

O poeta procura recuperar esta problemática a partir da construção de uma

narrativa imaginária para explicar o conflito conjugal vivenciado por sua personagem. Tal

perspectiva se evidencia nos seguintes versos: “Não queres uma mulher/ Porém uma escrava.

De acordo com esta construção, Maria Bonita teria retrucado que não teria se casado para

ficar “trancada” dentro de casa, sem “liberdade”, como se fosse uma “sentenciada”. Estes

versos expressam de maneira clara a resistência da personagem ao enclausuramento do lar.

Essa composição reproduz de maneira semelhante a situação vivenciada pela maioria das

mulheres brasileiras na década de 30.

60
Idem, p.8
141

O poeta prossegue enfatizando que Maria desejava um homem que a levasse à

festas, missas, forrós, e que fosse capaz até de enfrentar tiroteios por sua causa, compondo

dessa forma a imagem do homem corajoso, viril e sedutor. Essas características não

correspondiam ao perfil de seu companheiro José61.

Observa-se na construção romanceada do poeta, que nem Maria e nem José

estavam contentes com o matrimônio. Santos recompõe o episódio em que Maria Bonita teria

se dirigido à casa de sua mãe e revelado sua decepção e desapontamento com o marido. De

acordo com essa construção teria confessado à mãe que procurava um homem forte,/ Macho,

duro até morrer,/ Que para me defender/ Não tenha medo da morte. Estas características

estavam presentes em Lampião.

Nota-se que a versão apresentada pelo poeta resulta da apropriação e da

reelaboração dos relatos de familiares e ex- participantes do cangaço aos memorialistas que

coletaram essas informações. O mesmo mecanismo se repete na construção do encontro de

Lampião e Maria Bonita, no qual sua mãe teria exercido o papel central de confidente e

articuladora. Vejamos na estrofe abaixo seu desempenho em aproximar a filha do cangaceiro:

Capitão, tenho uma filha


Que só fala no senhor,
Totalmente apaixonada
Pelo seu grande valor,
Quer rapidamente vê-lo
Para melhor conhecê-lo,
Seja de que jeito for

Ela admira o senhor


Pela sua valentia
Quer segui-lo no cangaço,
Ser a sua companhia
Na hora mais arriscada,
Quer amar e ser amada
Todas as horas do dia62

61
De acordo com o poeta, o estereótipo de José resumia-se: “fraco, um covarde, um frouxo, que de medo fica
roxo quando vê uma pistola . SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro,
reedição, 1986, p.15
62
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986, p.19
142

Nesta construção Maria Bonita é retratada como uma mulher de sexualidade

aflorada como indicam os três últimos versos: Na hora mais arriscada/ quer amar e ser

amada/ todas as horas do dia. Essa formulação sugere que o fetiche de uma transa arriscada

estimulava o ato sexual tornando-o mais prazeroso. Na iminência da morte poderiam curti-lo

intensamente.

A narrativa prossegue. A mãe dela dá o recado à Lampião que tomado de uma

imensa curiosidade deseja conhecê-la. O encontro acontece, e Maria Bonita revela ao

cangaceiro que estava a sua procura. Admirava sua força, valentia, destemor e sinceridade.

Argumenta que são estas as qualidades que procurava em um homem, e que só ele as tinha e

tenta convencê-lo a levá-la para o cangaço. Argumenta:

Sei atirar, sou valente,


Posso até fazer um teste
Para ouvir bala zunir;
Peço que não me conteste,
Pois com um fuzil na mão,
Um bom punhal e um facão,
Sei que mato até a peste!63

Lampião, lembrando-se do conselho de Padre Cícero de não levar mulher para o

cangaço, aconselha Maria Bonita a voltar para o seu marido. Ela, porém, num tom desafiador

teria respondido:

(...) – Conselho
Só toma mesmo quem quer
Ou homem da fala fina
Que não gosta de mulher...
Para voltar, digo: não!
Só mesmo se o capitão
Com medo não me quiser

Sei que nas suas andanças


O senhor muito precisa
De uma mulher ao seu lado
Que saiba bem onde pisa
E prepare as refeições,
Costure e pregue botões
Em blusão, calça e camisa64

63
Idem, p.22
143

De acordo com essa composição, a determinação, a beleza e valentia de Maria

foram elementos fundamentais para a sua incorporação nos bandos ao lado de Lampião. Cabe

destacar nesta estrofe, que o poeta legitima o amor de sua personagem pelo cangaceiro

quando essa se dispõe a realizar tarefas domésticas, considerando que o poeta teria

mencionado a insatisfação da personagem em realizar essas atividades para seu legítimo

marido. Contudo, para aquele homem que acabara de conhecer, dispunha-se com alegria

servir-lhe, no preparo de refeições, na costura e principalmente no amor. O desejo de viver

um amor aventureiro e livre teria modificado o comportamento de Maria Bonita? O que

podemos afirmar é que seguiu com Lampião, abrindo, desta maneira, as portas do cangaço

para outras mulheres. Nos versos acima, fica evidente que o ingresso de Maria Bonita no

cangaço foi uma escolha pessoal.

Mas como foi a vida de Maria Bonita ao lado de seu amado Lampião? Santos, em

sua composição, destaca o amor incondicional da cangaceira que o seguira em todas as

caminhadas e lutas, nos momentos alegres e tristes, “ Fazendo todos os gostos/ Do seu amor
65
cangaceiro” .

O poeta destaca que apesar de apresentar características belicosas, como disparar

muito bem uma arma e ser ligeira no gatilho, sua heroína não deixava de lado a sua vaidade

feminina. Carregava sempre em seus bornais o seu arsenal de beleza, como pente de cabelo,

batom, perfume, espelho, talco, escova de dente, entre outros apetrechos. Os versos abaixo

expressam a idéia do poeta:

Apesar de ser valente


Maria era afeiçoada
Às coisas femininas:
Só andava perfumada,
Impunha todo o rigor-
Quando dava o seu amor

64
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986, p.23
65
Idem, p.25
144

Gostava de ser amada66

A vaidade feminina no cangaço, tão bem lembrada pelo cordelista, pode ser

observada nas fotografias de algumas cangaceiras, que foram retratadas pelo sírio-libanês

Abrahão Benjamim Boto, no período em que conviveu com o grupo de Lampião, pois

conforme dissemos anteriormente, tinha intenções econômicas com a venda destas fotografias

e com a produção de um filme a respeito dos cangaceiros.

As fotografias expressam esteticamente como as cangaceiras queriam ser

lembradas ou perpetuadas, e o tipo ideal de mulher com o qual queriam ser identificadas. Isso

fica explícito nas fotografias produzidas em espaços abertos da caatinga, na qual algumas

cangaceiras reproduziram a postura e o gestual das mulheres da elite rural/urbana, como se

estivessem posando em estúdios consagrados. As fotografias de Maria Bonita expressam

muito bem isso. Vejamos detalhadamente cada uma delas:

Foto 01 – Maria Bonita em vestido de batalha –


Autor: Benjamim Abrahão Botto – 1936.
Acervo: Fundação Joaquim Nabuco –Recife/PE
Coleção cangaço

66
Ibidem, p. 26
145

Nesta fotografia Maria Bonita foi retratada como uma dama. Sua imagem

congelada remete aos refinamentos da mulher pertencente à elite brasileira, sobretudo da rural

nordestina e aos modelos femininos veiculados nas revistas ilustradas. A pose, sobretudo o

olhar de Maria, lembra o das atrizes do cinema mudo, cuja expressão traduzia o perfil da

mulher fatal e sensual. Os traços desse refinamento podem ser evidenciados no seu gestual, no

seu modo de sentar, no cruzar das pernas, na postura ereta, na seriedade revelada em seu

semblante e no ato de colocar finamente a mão sobre o chapéu. Esse refinamento só foi

quebrado pelo cenário de fundo árido e espinhoso da caatinga sertaneja.

Nota-se, contudo que o fotógrafo deu grande importância aos traços físicos da

retratada ao focalizá-la em primeiro plano. Tal mecanismo permitiu perceber os detalhes de

sua vestimenta e de seus adereços. Assim, observamos logo à primeira vista, um longo lenço

preso e afivelado por uma presilha, que provavelmente deve ser de prata ou ouro,

componentes indispensáveis aos trajes dos cangaceiros. Sob o lenço, destaca-se a alça do

bornal desenhado e ornamentado com bordados de flores e a cartucheira transpassada sobre o

ombro. Merece destaque o belíssimo chapéu que segura sobre as pernas e as meias que utiliza

para protegê-la dos espinhos. Além disso, as meias também se constituíam em componentes

do traje feminino da época.

Na foto seguinte o foco central também recai na retratada, sua expressão facial é

realçada e se diferencia totalmente da anterior. Aqui parece mais natural, com um olhar

descontraído de quem faz charme para ser fotografada. A elegância de Maria Bonita é

destacada não apenas no seu gestual, mas também no vestido que está usando, que

diferentemente do anterior, para uso diário, esse era para ocasiões especiais, como posar para

uma foto, ou participar dos bailes organizados pelos cangaceiros em momentos de descanso

nos esconderijos (coitos) ou nas cidades em que eram bem recebidos.


146

Nota-se na postura e no gestual da cangaceira a apropriação do modelo de

mulheres finas e educadas, ou ainda das atrizes que via nas revistas ilustradas ou nos

periódicos. Estas imagens são projetadas no cenário da caatinga, tendo em volta sua natureza

peculiar com iluminação

natural.

Foto 02 – Maria Bonita em Vestido Soirée –


Autor: Benjamim Abrahão Botto – 1936
Acervo: Fundação Joaquim Nabuco – Recife/PE
Coleção cangaço

Os vestidos, apesar de apresentarem diferenças quanto aos tecidos, são

igualmente comportados, com decotes bem fechados, com mangas longas e comprimentos

que chegam a cobrir os joelhos. No traje que chamaremos de “vestido de festa”, as jóias

usadas por Maria Bonita chamam a atenção pelo número de correntes que exibia no pescoço.

Em outras fotografias os anéis é que serão destacados, pois algumas cangaceiras “as mais

ricas” usavam anéis em todos os dedos, ostentando um certo poder simbólico.

O uso de vestidos apropriados para o cotidiano dos bandos e outros para ocasiões

especiais, como os bailes , também é recuperado pelo poeta Gonçalo Ferreira da Silva, em
147

Maria Bonita – A Eleita do Rei67. Enfatiza que guardavam em seus bornais as mais lindas

jóias/ do estrangeiro importadas, o que confirma o furto destas jóias das famílias abastadas do

Sertão. Referindo-se a Maria Bonita, diz o poeta:

Tinha vestidos de mescla


para incursões mais arrojadas
e tinha as mais lindas jóias
do estrangeiro importadas
nos alforjes, nos bornais
avaramente guardadas68

Em todas as fotografias, com exceção das que reproduzem as cabeças decepadas,

as mulheres sempre aparecem com os cabelos penteados e presos, enfeitados com presilhas

que poderiam ser de ouro ou prata. Não encontramos nessas fotos, mulheres que estivessem

despenteadas ou com os cabelos soltos. Cabe indagar se o uso do cabelo preso fazia parte da

vaidade feminina ou se tinha uma funcionalidade.

Na foto abaixo, Maria Bonita aparece com a mesma postura regrada das fotos

discutidas anteriormente. Contudo, demonstra um semblante mais descontraído, quase

sorrindo para o fotógrafo.

67
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – A eleita do Rei. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000.
68
Idem, p. 6
148

Foto 03 – Maria Bonita com os cães – Guarani e Ligeiro


Autor: Desconhecido
Acervo: Fundação Joaquim Nabuco
Recife/PE
Coleção cangaço

Na foto 4, Lampião aparece em pé, ao lado de Maria Bonita, segurando nas mãos

uma edição da revista Noite Ilustrada. Detendo-se na figura de Lampião, podemos arriscar

que queria vincular sua imagem à de um homem alfabetizado, consumidor e leitor das

principais revistas ilustradas e jornais do país.

A presença de revistas e periódicos entre os cangaceiros se repete em outras

fotografias. Assim, Lampião aparece lendo um exemplar do jornal O Globo, no qual ele é um

dos assuntos do periódico. Podemos perceber aqui um evidente jogo de poder, tanto por parte

dele, como por parte da imprensa. Ou seja, estampar a imagem de Lampeão em suas folhas ou

revistas, além de projetar e alimentar a fama do cangaceiro, também conferia poder ao veículo

informativo, sobretudo se ele fosse um órgão de oposição ao governo federal, como é o caso

de O Globo.
149

Foto 04 – Maria Bonita e Lampião com


os cães Ligeiro e Guarani
Autor: Benjamim Abrahão Botto – 1936
Acervo: Fundação Joaquim Nabuco – Recife/PE
Coleção cangaço

Diante dessa situação cabe indagar: O que significava naquela época veicular uma

foto de Lampião lendo tais periódicos e revistas? O mecanismo parece simples, contudo suas

intenções são mais complexas, ou seja, a imagem do cangaceiro além de garantir o lucro com

a venda de muitos exemplares, também funcionava como uma forma de afrontar o poder

constituído, já que este caçava há décadas o bandoleiro sem sucesso e o jornal tinha acesso

direto a ele. Além de conferir prestígio à Lampeão, projetando sua imagem na mídia, garantia

a venda de exemplares, bem como a propaganda destes despertando a curiosidade dos leitores

pelas “leituras” de Lampião levando-os a consumir tais informativos. Essa prática também se

evidencia entre as mulheres.

A cangaceira Neném segura um exemplar da revista A Barata 32 e Maria Bonita a

Noite Ilustrada, o que sugere que também reivindicavam a condição de “letradas” (foto 05).
150

Foto 05 - Neném , Maria Bonita e Lampião


Autor: Desconhecido
Acervo: Fundação Joaquim Nabuco – Recife/PE

Algumas cangaceiras sabiam ler, contudo não sabemos informar ao certo se todas

eram alfabetizadas. Mulheres como Dadá e Sila aprenderam a ler com os companheiros. No

documentário A musa do cangaço69, Dadá revela que Corisco teve um papel fundamental em

sua educação, pois além de lhe ensinar a escrever também a incentivava com paciência.

Focalizando nossa análise em Maria Bonita, vejamos a construção detalhada e

precisa dos principais traços físicos da cangaceira pelo poeta Gonçalo Ferreira da Silva:

Tinha ela um metro e


sessenta e dois de altura,
robusta, morena-clara,
muito branca a dentadura,
cabelos lisos e negros,
olhar de doce ternura...70

Referindo-se aos aspectos sentimentais de sua personagem, Silva revela uma

mulher ciumenta, porém carinhosa, dedicada e companheira incondicional de Lampião:

69
Diz a depoente: “Um homem educado, uma pessoa num sei, era um pai para mim,...... aprender a ler. Eu
ficava, ele ensinava.......aqueles nomes difícil eu rasgava e jogava prá lá. Ele dizia não adianta vamo comprá
outro”. Entrevista intitulada: A musa do Cangaço, produzida por J. D. Dias em 1981, sob direção de José
Umberto e Guto Diniz. Fotógrafos: Lúcio Mendes, Alonso Rodrigues e Benjamim Abraão Boto – Acervo da
Cinemateca da Fundação Joaquim Nabuco/PE.
70
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – A eleita do Rei. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000, p. 4.
151

Ciumenta extremamente,
dengosa como ninguém,
quando os dois trocavam juras
de amor, dizia: - Bem
no dia que você morrer
eu quero morrer também71

Prossegue descrevendo a prática sexual do casal, sugerindo que se amavam intensamente:

No ato do amor selvagem


Praticado no deserto
Era muito ruidosa
e o casal descoberto
não tinha vergonha alguma
de quem estivesse perto72

Nota-se nesses versos, que o poeta preocupou-se em construir Maria Bonita como

uma mulher sedutora, vaidosa, companheira fiel e dedicada, e não como criminosa.

O cordelista Abraão Batista no folheto O apaixonamento de Lampião por Maria

Bonita73, salienta o lado sentimental de Maria Bonita. Descreve-a como amante de Lampião,

não no sentido pejorativo de O Estado de S. Paulo, mas enquanto companheira fiel do

cangaceiro:

Amantes das caatingas


apaixonados do sertão
companheiros dos desertos
e amigos da solidão
solidários na frieza
e fiéis na desolação74

O cordelista Santos75 resume a relação de Lampião e Maria Bonita como a de

“eternos namorados”, tomados por sentimentos de um “amor verdadeiro”, cheio de

cumplicidade e companheirismo. Não se esquece de destacar o ciúme que sua personagem

sentia em relação ao seu amado.

71
Idem, p. 5.
72
Ibidem, idem, p. 6.
73
BATISTA, Abraão. O apaixonamento de Lampião por Maria Bonita; Juazeiro do Norte/CE: M.JDO, 2003.
74
Idem, p.08
75
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986.
152

A cumplicidade do casal era tamanha que despertou nos cangaceiros um

sentimento de espanto em relação ao comportamento do chefe com Maria Bonita. Este

confiava plenamente em sua amada aceitando tudo que vinha de suas mãos. Esta idéia de

confiança absoluta em Maria Bonita foi recuperada por Antônio Teodoro dos Santos,

conforme demonstra a estrofe a seguir:

Ficaram mais assombrados


E sem compreender bem
Porque sabiam que o chefe
Não confiava em ninguém,
Porém das mãos de Maria
Tudo que vinha comia
Com confiança também 76

As cangaceiras na concepção de Santos eram muito vaidosas. Destacaram-se pela

doação incondicional ao seu homem, sendo capazes de morrer pelo amado. Esta visão do

autor sugere que as relações no cangaço foram todas harmoniosas, sólidas e tranqüilas.

Entretanto, isso não corresponde aos relacionamentos afetivos no interior dos bandos. Houve

episódios de desentendimento de casais, recuperado pelos memorialistas a partir da coleta de

depoimentos de ex-integrantes dos grupos e no próprio depoimento da ex-cangaceira Sila

(Ilda Ribeiro de Souza). Esta nos contou que em certa ocasião Maria Bonita discutira com

Lampião por ciúmes, porque não gostava de ficar muito tempo longe, nos coitos. Enfim, as

relações homem/mulher no interior dos bandos, deu-se da mesma forma que na sociedade

brasileira, reproduzindo seus códigos e valores.

Santos prossegue em sua narração descrevendo o Raso de Catarina, tido como o

principal refúgio dos cangaceiros. Refere-se à Expedita - filha de Lampião e Maria Bonita -, e

termina seu folheto com o fatídico episódio do massacre em Angico. Em resumo, constrói

uma Maria Bonita heróica e guerreira, amante e companheira, de traços físicos bem

delineados e de personalidade forte e decidida. Estes elementos colocaram-na no panteão das

76
Idem, p.24.
153

heroínas-guerreiras. Renderam-lhe o lugar de mulher do chefe dos cangaceiros e o título de

Rainha do Cangaço.

No folheto intitulado Maria Bonita – a Eleita do Rei77 , Gonçalo Ferreira da Silva

faz uma abordagem sentimental da relação de Lampião e Maria Bonita. Assim como Santos,

também afirma que teria sido um sentimento de “amor verdadeiro” que os unira. Em sua

concepção, Maria teria trocado “um vão sentimento” representado pelo seu relacionamento

com o sapateiro José, por um de “amor verdadeiro” ao lado de Lampião. Este teria nascido

da sinceridade e pureza, o que os teria mantido unidos até a morte, superando os mais

diversos obstáculos. Conforme se evidencia na estrofe abaixo:

Um sentimento sincero
do mais puro amor nascido,
venceu muitos obstáculos
sem um arranhão sofrido,
até o fim preservado,
até a morte mantido

Maria Bonita deu


outro título a Lampião
além de “Rei do Cangaço”

de “Imperador do Sertão”
o de “Dono Absoluto”
do seu coração78

Silva ressalta que o amor de Maria Bonita por Lampião, fora fruto recíproco de

admiração e fascínio pela valentia e coragem, que cada um demonstrava ter. Além disso, a

determinação em abandonar o casamento, somado com sua beleza física, seus traços e

curvas bem delineadas, teriam deixado o cangaceiro loucamente apaixonado. Assim descreve

sua personagem:

77
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – a Eleita do Rei. Rio de Janeiro: Acad. Bras. de Literatura de Cordel,
reedição 2000.
78
Idem, p.2.
154

Corajosa, nunca teve


de medo qualquer vestígio,
tinha personalidade
para sufocar litígio
como era insuperável
em beleza e prestígio

Maria Déia seguiu


Fantasioso destino
Foi em razão da beleza
E do charme feminino
Que teve o dengo “bonita”
Criado por Virgulino

Tinha ela um metro e


sessenta e dois de altura,
robusta, morena- clara,
muito branca a dentadura,
cabelos lisos e negros,
olhar de doce ternura79

Na descrição do poeta, Maria aparece com características de uma verdadeira

deusa. Além de toda beleza, tinha os atributos de uma heroína-guerreira, com coragem e

personalidade forte. Contudo, prioriza o lado sentimental de sua personagem e sua dedicação

ao amante, e não o seu lado belicoso como o faz Santos. Para Silva, Maria Bonita fora uma

heroína do amor, e como parte deste universo amoroso, confessava às amigas seu sentimento

por Lampião, nascido a partir da “fama do temível capitão, / das bravuras que ecoavam/ no

mais distante sertão”.80

Após retratar Maria como uma amante dedicada volta-se para sua progenitora81.

Enfatiza que teria sido a intermediária da aproximação entre a filha e o cangaceiro. Contudo,

diferentemente da narrativa de Santos, aqui é a mãe que convence a filha a procurar o

cangaceiro e não o contrário. Independentemente da versão “verdadeira”, os poetas

concordam que a mãe teve um papel importante, seja como incentivadora indireta (narração

de Santos) ou direta, como nos versos de Silva para o encontro entre Lampião e Maria Bonita.

79
Ibidem, idem, p. 4.
80
Idem.
81
Ibidem, p.5.
155

O poeta prossegue sua narrativa descrevendo a condição social de sua

personagem. Utiliza-se de tal artifício para reafirmar a idéia de que Maria só mudara de vida

por “um amor verdadeiro”. Ressalta que seu pai era um pequeno fazendeiro, e que nunca

passara por dificuldades financeiras:

Maria Bonita filha


de pequeno fazendeiro
nunca soube o que foi falta
de mantimento e dinheiro
só mudaria de vida
por um amor verdadeiro82

Alguns memorialistas nos informam que Maria Bonita teve cinco filhos com

Lampião, porém apenas uma menina sobreviveu. Há referências que tenha nascido em 13 de

setembro de 1932, e recebeu o nome de Expedita Ferreira. A menina foi criada pelo vaqueiro

e amigo de confiança de Lampião, o sr Manoel Severo e sua esposa sra. Aurora.83

Maria Bonita apesar de ter conquistado a simpatia de alguns cordelistas e de ex-

participantes do cangaço, também despertou a antipatia de alguns. A ex-cangaceira Dadá, em

vários momentos de seu depoimento deixou transparecer este sentimento pela cangaceira,

qualificando-a como uma mulher chata, cheia de caprichos e mandona.84 Salienta que não

tinha muita amizade com ela e que “ (...) quase não conversava com Maria, nossa

aproximação era a mínima possível. Ela era um pouco ranzinza, gostava muito de conversar,

82
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – a Eleita do Rei. Rio de Janeiro: Acad. Bras. de Literatura de Cordel,
reedição 2000. p. 5
83
Há divergências entre os autores quanto a data do nascimento de Expedita Ferreira e quanto ao nome de seu
pai adotivo. Na obra de ARAÚJO, A.A .C. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço,1985, o
nascimento de Expedita Ferreira data de fins de 1932 e início de 1933 e o nome de seu pai adotivo é Severo
Mamede, p.179 Na obra de LINS, D. Lampião, O homem que amava as mulheres. São Paulo: Annablume, 1997
o nascimento é registrado em 13/09/1932 e o nome do pai adotivo é Manoel Severo, p. 141-142.
84
Dadá relembra o episódio de seu primeiro encontro com o grupo de Lampião, e a reação de espanto do rei do
cangaço ao vê-la tão novinha no grupo: “Desmamou essa, hei?”. Dadá disse que ficou com muita raiva, pois
todos do grupo de Lampião, inclusive Maria Bonita, teriam gozado dela. DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição,
Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.26
156

de puxar papo, de viver arrumadinha como boneca85. Eu desde menina que não era assim,

minha natureza era diferente da dela....”86.

Em sua fala, Dadá reafirma a preocupação da cangaceira com o embelezamento

do corpo, ao enfatizar que gostava de viver arrumadinha como boneca; faz questão de deixar

claro que nutria um certo desprezo pelo comportamento da mesma, e que tinha uma natureza

muito diferente da sua. Apesar de não ter Maria como sua melhor amiga, Dadá salienta que a

respeitava muito em função da admiração que sentia por Lampião.

Num outro momento de sua fala ressalta que “Maria de Lampião tinha uma

pompa danada. Era uma coisa, tinha tempo que ninguém suportava.”87 Lembra inclusive um

episódio em que Corisco e Lampião se desentenderam em função de um capricho de Maria, e

que por causa disso, viajaram separados cada qual com seus homens, e ficaram quase dois

anos sem se encontrarem.

A depoente recorda que Corisco teria dito a Lampião que ele era dominado por

Maria e que isso não dava certo. Relembrando as palavras de Corisco, afirma que “Homem

governado por mulher não dá certo (...) Minha mulher muito pouco fala, quanto mais me

governar”88. Tal narrativa confirma as construções de alguns cordelistas que salientaram que

Maria Bonita não era uma mulher submissa, e que exercia significativa influência sobre

Lampião, talvez isso não ocorresse na relação entre Corisco e Dadá. Essa questão é

discutível, pois em outro momento também foi igualmente atribuído ao casal a mesma

situação de Lampião e Maria Bonita89. Talvez esta antipatia da depoente expresse, de certa

forma, o inconformismo com sua forma de inserção no grupo, pois, diferentemente daquela,

não optou pelo cangaço, muito menos por Corisco. Sua relação com este estabeleceu-se a

85
Grifos meus.
86
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p. 35
87
Idem, p. 76.
88
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.76.
89
Sobre o assunto consultar as matéria do Correio da Manhã de 24/05/1940, p. 5 e 28/05/1940, p. 2.
157

partir da força, marcada desde o início pela submissão ao seu raptor90. Além disso, pelo fato

de Maria Bonita receber destaque no cangaço por ter sido a mulher de Lampião, o que lhe

conferiu o título de Rainha do Cangaço.

Mas quem foi Dadá? Como foi representada pelas diversas fontes pesquisadas?

Como a ex-cangaceira se auto-descreve?

2.3.2 - Dadá

Além de Maria Bonita, ganha destaque entre os memorialistas e poetas de

literatura de cordel, Dadá - Sérgia Ribeiro da Silva, mulher do cangaceiro Corisco, homem de

confiança de Lampião, que também alcança fama e respeito entre seus companheiros e,

posteriormente, imortalizado pelo Cinema Novo no filme O dragão da maldade contra o

santo guerreiro, de Glauber Rocha.

Sérgia Ribeiro da Silva nasceu em 25 de abril de 1915 em Belém, cidadezinha de

Pernambuco. Seus pais eram Vicente Ribeiro da Silva e Maria Santana Ribeiro da Silva. Foi

raptada aos quinze anos de idade por Corisco (Cristiano Gomes da Silva Cleto) entre os anos

de 1930/1931.

Em entrevista ao cineasta e memorialista José Umberto Dias91, Dadá revela um

pouco de sua história no cangaço. Ela inicia sua fala referindo-se ao primeiro encontro que

teve com Corisco na casa de sua madrinha:

(...)Primeira vez que vi Corisco foi na casa de minha madrinha. Cheguei na


entrada da porta...antes de eu entrar encontrei uma pessoa que disse: - Oh! Sussuarana, o quê tá
fazendo por aqui? – Vim ver minha madrinha. Que era o Arvoredo. Ah! Eu achei ele estranho, eu tava

90
Afirma a depoente: “ Eu num entrei no cangaço. Me botaram dentro dele. Quer dizer, eu não escolhi, fui
escolhida....”. DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia,
1989, p.11.
91
O cineasta e memorialista José Umberto Dias, produziu em 1981 o documentário A musa do Cangaço, no
qual Dadá relata como foi sua vida no cangaço. O documentário foi dirigido por Dias e Guto Diniz e as
fotografias por Lúcio Mendes, Alonso Rodrigues e Benjamim Abrahão Boto. Este material encontra-se no
acervo da Fundação Joaquim Nabuco – Recife/PE, e foi por nós reproduzido. Além deste documentário, Dias
transformou o depoimento oral de Dadá no livro: DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador:
EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.
158

acostumada com ele, mais, achei estranho com aquele equipamento, eu não reconheci.(...) Avistei um
homem louro, sentado numa rede, dos cabelos por aqui assim92,....bem vermelho. Eu olhei aquilo
estranhei e voltei. Ele disse – Venha cá menina, tá com medo? Quem morre de medo se enterra vivo.
Mas, eu não escutei mais aquilo e vim embora nunca mais vi. Quando foi um dia de noite ele apareceu
lá em casa para dá comida a um cachorro. Aí teve um pouco lá conversando com meu pai e foi embora
(...)93

No trecho acima temos a impressão de que Corisco conhecia a família de Dadá,

inclusive tinha intimidade suficiente para alimentar um cachorro e conversar com seu pai.

Contudo, Dadá não esclarece que tipo de relacionamento envolvia ambos. Depois disso relata

o episódio em que Corisco teria lhe raptado:

Aí então surgiu uma questão de uma família que tinha lá. Uma família de
pessoal que tinha muito criatório e tinha um rapaz estragando a criação
desse homem. Aí, a Força foi e prendeu ele, bateu muito, estragou com ele.
Eles tomaram por vez, que tinha sido meu pai que tinha delatado esse fulano.
E esse fulano era conhecido de Corisco. Aí mandaram ele ir me carregar, que
era a vingança que podia ter de meu pai era me carregando. Meu pai me
queria muito bem a mim. Ele me queria muito bem(...)94

Não fica claro em seu depoimento quem eram as pessoas que mandaram Corisco a

carregar, muito menos o envolvimento de seu pai com essa questão; o fato é que foi raptada:

“Então ele veio, quando chegou me carregou....me botou na garupa de um burro, mandou o

rapaz viajar comigo e ele ficou lá, discutindo com meu pai....”95 A depoente salienta em sua

fala que questões pessoais a impulsionaram ao cangaço, e demonstra que seu pai não teve

como proibir o ato de seu raptor, demonstrando a impotência de seu progenitor diante do

cangaceiro.

O cineasta e memorialista Jóse U. Dias, com base no depoimento de Dadá,

construiu uma outra versão para seu rapto. Em sua construção, Corisco teria pedido ao pai da

depoente permissão para se casarem; diante de sua desaprovação, optou por raptá-la. De

acordo com esta construção, a rixa com vizinhos foi um pretexto utilizado para levá-la.

92
No depoimento, Dadá indicou que o comprimento dos cabelos de Corisco estava na altura dos ombros. DIAS,
José Umberto. Documentário: A musa do Cangaço, 1981.
93
A experiência da ex-cangaceira foi registrada por DIAS, José Umberto, no Documentário: A musa do
Cangaço. 1981 e na obra Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.17.
94
Idem.
95
Idem, Ibidem.
159

A versão apresentada pelo cineasta é significativa, pois sugere que os familiares

de Dadá presenciaram seu rapto e não reagiram a tal prática96. De acordo com esta

construção, o pai de Dadá ao ser consultado por Corisco teria dito: “Eu não tenho uma moça

em casa, isso que tenho é uma menina”. Contudo, as expressões: Mourão pega ela aí e vamos

/ Pode arrastar Mourão, indicam que Corisco usou a força para levá-la. Além disso, a

depoente acrescenta outros elementos ao debate. Nesta versão a mãe de Dadá teria enviado à

tia de Corisco algumas roupas para sua filha, e Corisco teria recusado-as, argumentando que

“Não, não quero nada. Não vou levar nada, nada, nada. Ela não precisa disso”.97 A situação

construída pelo cineasta revela que os familiares de Dadá e Corisco eram conhecidos.

A depoente ressalta que tinha pavor de Corisco, mas que com o passar do tempo

acabou gostando dele: Que horror quando aquele homem chegava. Naquela condição eu fui

pegando amor a ele acabou com meu amor por mais ninguém. Queria bem....98. O “horror”

que sentia por Corisco pode ser entendido neste contexto como uma conseqüência da forma

brutal com que foi arrancada do convívio de sua família e, também, da experiência sexual a

que foi submetida causando-lhe traumas físicos e emocionais.99

O sexo para a menina-cangaceira não foi encarado como um ato prazeroso. Em

sua fala essa experiência aparece associada à morte: “Quando Corisco me procurava nas

noites, parecia que eu ia morrer, não sabia o que era de ser de mim.”100 .

Em sua narrativa é interessante notar que após expor a violência praticada por

Corisco, ela o redime ao descrevê-lo como homem educado, atribuindo-lhe as qualidades de

pai, marido e professor. Enfatiza que ele a ensinou a ler e a escrever, que comprava cartilhas

96
As falas dos familiares de Dadá foram destacadas em itálico pelo cineasta, o que sinaliza que foram narradas
pela depoente.
97
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p. 25.
98
DIAS, José Umberto. Documentário: A musa do Cangaço. 1981 e Dadá. 2ª edição, Salvador:
EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.18.
99
Relata a depoente:“A febre ia tomando conta de mim e passava aqueles sonhos de um rio de sangue”. DIAS,
José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.13.
100
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.27.
160

e livros para ela, e principalmente que era uma pessoa muito paciente e a tratava com muita

delicadeza, comportamento que não combina com a ação violenta praticada pelo cangaceiro

em sua primeira experiência sexual. Refere-se da seguinte forma a Corisco:

(...) Um homem educado, uma pessoa num sei, era um pai para mim, foi um
professor, era um marido, um professor. Comprava livros para mim, cartilhas
para eu aprender a ler. Eu ficava, ele ensinava.....aqueles nomes difícil, eu
rasgava e jogava para lá. Ele dizia –Não adianta eu mando comprá outro.
Nunca me repreendeu uma coisa que ficasse aborrecido – Faça isso - tudo
na delicadeza de uma pessoa....101

No início de seu depoimento ressalta que não tiveram amor de namorados,102 mas

que este sentimento cresceu e se solidificou ao longo do convívio com Corisco, por seu jeito

educado, pela sua paciência, pela proteção e cuidado que tinha por ela; enfim, pela forma com

que ele a tratava. Em outro momento, enfatiza que depois da gravidez mudou seu

comportamento em relação ao companheiro, passando a se dedicar a ele de corpo e alma. Em

sua fala transparece que a separação dos filhos a aproximou de Corisco, pois teria percebido

que só tinham um ao outro. Diz a depoente:

Naquele meio se esquecia tudo, a gente tava por perto um do outro. Não nos
separamos nunca mais, nem em viagem. Eram uns carinhos (...) Se eu pensasse que a gente ia ser
atacada numa hora daquelas, e Corisco morresse. Pronto. Eu saía de mim mesma. Nem com a morte eu
pensava em me separar. Um amor que eu acho que não ia ter por mais ninguém na vida.103

Fala com orgulho sobre seu casamento com Corisco, e afirma que foram os únicos

a sacramentar a relação.104 Entretanto, sabemos que Sila e Zé-Sereno também o fizeram e que

Enedina e Cajazeiras já eram casados quando entraram para o cangaço.

Dadá enfatiza que seu amor pelo cangaceiro foi tão intenso, que depois que

Corisco perdeu firmeza nos braços (resultado de ferimento por projéteis de armas de fogo),

passou a lutar e a comandar tiroteios, e afirma que:

101
A experiência da ex-cangaceira foi registrada por DIAS, José Umberto, no Documentário: A musa do
Cangaço. 1981 e na obra Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.18
102
Diz a depoente: “ Bom, nós não tivemos amor assim prá gostar, antes de namorar. Isso nós não tivemos...”
DIAS, José Umberto. Documentário: A musa do Cangaço.1981 e Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.17
103
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p. 30
104
Idem, p.13
161

(...) gostava muito de Corisco. Eu tinha um amor do mundo por ele, eu


lutava, eu assumia comando depois que ele ficou sem os braços....um não
tinha firmeza, o outro ficou seco com as balas....não pegava em armas. A
arma dele eu tomei conta, passei quase um ano nessa peleja, sendo que era
eu que decidia tudo, tanto era o amor que eu tinha por ele.105

No trecho acima Dadá justifica sua participação nos tiroteios por amor a Corisco.

Contudo, é possível perceber em outros momentos de sua fala que ela queria se diferenciar

das outras mulheres, mostrando que era destemida, e que tinha um ótimo desempenho com

armas de fogo, inclusive assumia comando. Fica evidente no trecho abaixo, que a depoente

queria se destacar por suas qualidades bélicas, pois ao se referir às outras mulheres afirma

que:

(...) as moças muitas carregavam pistolinha de brincadeira. Agora eu, minha


arma era um revólver 38 Colt Cavalinho, cartucheira de duas camadas e
balas, que carregava numa panelinha...as caixas de bala eu gastava muito.
Tinha um punhal bonitinho, que por sinal, está escondido aí no mato. Meu
punhal, era uma bonequinha, cabinho de prata, contém, cinco aliancinhas,
banhado com ouro, e era para enfeite106, o punhalzinho era para enfeite,
porque eu não ia furar ninguém. Agora a arma era prá me diverti.
Munição carregava......uns quatrocentos cartuchos...”107

A expressão “a arma era prá me diverti”, indica que Dadá tinha prazer em

participar dos tiroteios, e que se destacava por sua qualidade de exímia atiradora e se

identifica como uma mulher agressiva e corajosa. Esta postura assumida pela depoente

também se traduz nas fotografias em que foi retratada. Nestas, preferiu ser perpetuada como

uma mulher belicosa. Na foto 06 posou com uma arma de pequeno porte na mão direita, e na

foto 07 aparece ao lado de Corisco, que carregava um fuzil.

A cangaceira se deixa fotografar com o vestido comum que qualificamos de

“batalha” e sua postura ereta indica que estava preparada para qualquer surpresa. Apesar de

carregar muitas correntes no pescoço, não parecia ser tão vaidosa como Maria Bonita.

Contudo, salta aos olhos as jóias e os anéis que enfeitam todos os dedos de suas mãos. Nessas

105
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.18
106
Grifos meus
107
Idem, p.21
162

fotos Dadá aparece em estado avançado de gravidez, e demonstra um semblante mais

descontraído.

Foto 06 - Dadá Grávida


Autor: Desconhecido
Acervo: Fundação Joaquim Nabuco
Recife/PE

Foto 7 – Dadá (grávida) e Corisco


Autor: Benjamim Abrahão Boto
Acervo: Fundação Joaquim Nabuco –
Recife/PE
Coleção Cangaço
163

Analisando as posturas de Dadá e Corisco nestas fotografias, nota-se que eles

sempre ostentaram suas armas, inclusive posando para uma fotografia. Tal comportamento

sugere que queriam ser retratados como indivíduos belicosos.

Dadá não queria ser identificada como Maria Bonita, que se inspirava nos

modelos femininos da época. Tal afirmativa se confirma quando analisamos sua postura e

indumentárias. Porém, a cangaceira não abria mão de boas jóias e perfumes. É muito enfática

ao afirmar que no cangaço as mulheres queriam ser melhores que as outras, o que sinaliza

uma disputa entre elas: “Mulher para eles, pra se vestir, luxar, para carinho deles, aprontar

comida, palestrar uma com as outras, mas dentro de um devido respeito, cada qual respeitava

a mulher dos companheiro de patrão...era ótimo. Costuravam, cada qual tratava de luxar da

melhor forma (....) cada uma queria ser melhor do que a outra.108 Afirma que havia “briga,

entusiasmos uma com as outras para ver quem luxava mais, cada qual queria do melhor,

montaria, cavalo (....)”109

O status da cangaceira poderia ser medido pelos bens que cada uma possuía:

jóias, vestidos e até mesmo animais como cavalo ou burro. Dadá se refere em sua fala ao

burro que Maria Bonita possuía, e que este era o seu maior orgulho: Velocípede era o burro

de sua estimação, o maior orgulho que ela possuía era aquele animal, que a carregava

sempre.110 As qualidades bélicas, sobretudo o desempenho com armas de fogo durante os

confrontos com as volantes, também se constituíram numa maneira de medir o status.

Contudo, o prestígio feminino era associado ao lugar ocupado pelo companheiro na hierarquia

dos grupos e se fosse chefe seria maior.

108
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.19
109
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.27
110
Idem, p.77
164

Dadá destacou-se no cangaço por ser uma mulher destemida e dedicada ao seu

companheiro. A historiadora Maria Cristina Matta Machado111 afirma que ela completava

Corisco e vice-versa.

Os cordelistas Gonçalo Ferreira da Silva112 e Elias A. de Carvalho113 também

retrataram em seus cordéis a cangaceira Dadá como uma mulher destemida e fiel a Corisco.

Contudo, veremos no próximo capítulo, que a fidelidade fazia parte do código do grupo e

quem o violasse recebia como sentença a morte. Qualquer tipo de traição era punida com

morte, seja adultério, a delação de companheiros (as), enfim, infligir as regras do grupo.

O poeta Gonçalo Ferreira da Silva, em seu folheto intitulado Corisco. O Sucessor

de Lampião descreve a vida de seu personagem antes e depois de sua entrada para o cangaço

e suas façanhas e sua morte em 1940, pelo coronel José Rufino. Silva aborda em seus versos,

a emergência do cangaço, as condições climáticas, a política, a religião, a lei no sertão, o

sensacionalismo da imprensa em torno da morte de Lampião e o exibicionismo heróico das

cabeças dos cangaceiros mortos.

Silva refere-se a Dadá como coadjuvante de Corisco. Atribui-lhe característica de

uma adolescente “destemida e linda”.114 Acrescenta a sua personagem o caráter de uma “

fiel esposa”115. Descreve-a como companheira e não como uma mulher belicosa. Refere-se à

harmonia que cercava seu relacionamento com Corisco, sugerindo que optou pelo cangaço e

não que foi raptada. Descreve da seguinte maneira os relacionamentos no cangaço:

Louve-se aqui entre eles


o senso de honestidade
e dos casais a noção
de grande fidelidade
capaz de causar inveja

111
Diz a autora: “Completa-se Corisco em Dadá, que o aconselha e estimula em todas as circunstâncias.(...)
Dadá foi o cérebro e o coração de Corisco”. MACHADO, M. C. M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São
Paulo: Brasiliense, 1978. p-87
112
SILVA, G. F. da Corisco. O sucessor de Lampião. Ralp, S/d.
113
CARVALHO, Elias A. de Dadá e a Morte de Corisco.1983
114
SILVA, G. F. da Corisco. O sucessor de Lampião. Ralp, S/d, p. 10.
115
Ibidem, p.17.
165

a qualquer sociedade

Era o chefe que a ordem


Mais rudimentar partia
Ordem transformada em lei
Lei que ninguém discutia
Assim os casais viviam
Na mais completa harmonia116

As estrofes acima destacam as questões da fidelidade “conjugal” e da harmonia

dos relacionamentos. Entretanto, a prática do adultério no interior dos bandos revelou que os

relacionamentos não foram tão harmoniosos e equilibrados. Além disso, mostrou que nem

todas as mulheres estavam contentes com os seus parceiros, e que mesmo correndo risco de

vida, aceitaram relacionar-se com outros cangaceiros.

O cordelista Elias A. de Carvalho no folheto Dadá e a morte de Corisco117

descreve a cangaceira como uma mulher belicosa e valente:

Sérgia, a famosa Dadá,


companheira de Corisco,
sertaneja destemida,
valente de gênio arisco,
em vez de marido e filho,
optou pelo gatilho,
o sobressalto e o risco118

A impressão que temos do final desta estrofe é a de que Dadá optou livremente

pelo cangaço, preferindo uma vida belicosa em vez de um lar tranquilo, com esposo e filhos.

Contudo, o poeta destaca posteriormente o rapto de Dadá, o que sugere que o poeta quis

enfatizar que a cangaceira destacou-se das outras por sua ação belicosa e, que, apesar de

raptada, dedicou-se totalmente àquela nova vida e ao companheiro.

Carvalho enfatiza em seus versos que Dadá seguiu Corisco porque foi forçada,

não teve opção. Narra da seguinte forma o rapto de sua personagem:

116
Ibidem, ibidem, p. 20.
117
CARVALHO, Elias A. de Dadá e a Morte de Corisco.1983.
118
Ibidem, p.1.
166

Ela, mesmo sem querer,


foi obrigada a seguí-lo.
Perdia o pai, tinha um dono
E ia ter que serví- lo
Sem direito de opção
Preferência ou pretenção
Mudou de vida e de estilo119

O poeta ressaltou que a partir do momento em que sua personagem ingressou no

cangaço, sua família nunca mais teve sossego. Sofreram perseguições e sérias retaliações por

parte da polícia, inclusive um de seus irmãos, em função das constantes perseguições, teria

ingressado no cangaço.120

Referindo-se à qualidade de exímia atiradora, Carvalho narra um episódio

ocorrido após o cerco de Angico, em que as forças volantes, perseguindo Corisco, travam

com este um tiroteio. Neste, Corisco teria sido atingido no braço, sendo substituído de

maneira heróica e corajosa por Dadá que defende ambos:

Dadá apanha o fuzil


e continua atirando
pra dispersar os soldados
que vinham se aproximando
Numa atitude valente,
bota ele em sua frente
e foge dali se arrastando

(...) Bem perto vem um “macaco”,


ela diz para o marido:
Num precisa mi isperá,
Vá enfrente, vô vortá
pra matá essi bandido

E mete o fuzil em cima,


Foi só um tiro e um furo.
O praça gritou de dor,
Deu um passo e caiu duro.
Ela olha e dá o fora.121

Além de destacar as qualidades bélicas de sua personagem, o poeta também

destaca seus cuidados como enfermeira. Cuidar dos feridos era uma prática comum entre as

119
CARVALHO, Elias A. de Dadá e a Morte de Corisco.1983, p.12. Em ARAÚJO Antonio A. Corrêa de.
Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço 1985, p. 268, o memorialista referiu-se ao episódio em
que Dadá sofreu hemorragia depois do ato sexual violento de Corisco.
120
CARVALHO, Elias A. de Dadá e a Morte de Corisco.1983, p.13-14.
167

mulheres, entretanto não se resumia numa prática exclusivamente feminina. Os homens

revelaram-se profundos conhecedores das propriedades das diversas ervas existentes no

Nordeste.

A ex-cangaceira Dadá revela em seu depoimento ao cineasta Dias122, alguns

remédios utilizados na cura dos mais variados ferimentos, sobretudo os provocados por armas

de fogo. São eles: quixabeira, umburana, fumo, farinha, água de genuí, aniqüi, caldo de

juazeiro, componentes que transformavam numa pasta (emplasto) e colocavam no local

lesado. Nas estrofes abaixo, o cordelista Carvalho recria o episódio em que Corisco,

gravemente ferido no braço, recebeu os cuidados Dadá:

(...) Dadá viu o ferimento,


tava cheio de tapuru
e o osso já quase nu,
supurado e fedorento.

Dadá fez um tratamento


com água de quixabeira.
Removeu as esquirolas
e os ovos de varejeira.
E pra lesão, a meizinha
Era pirão de farinha
Desincha e tira a sujeira123

O episódio em que Dadá e Corisco foram cercados pela volante do coronel José

Rufino em 1940, revelou-se num outro momento em que o poeta destaca a coragem de sua

personagem. Essa, de acordo com a composição do poeta, mesmo ferida na perna teria

exigido dos soldados respeito e os teria desafiado para uma luta de fuzil124.

Carvalho informou-nos no final de seu folheto, que Dadá teve a perna amputada.

Casou-se novamente, podendo inclusive dedicar-se aos filhos que teve com Corisco. O

cordelista destacou na contra-capa de seu folheto, que este foi elaborado com base na obra

Gente de Lampião: Dadá e Corisco do memorialista Antônio Amaury C. Araújo.

121
Ibidem, p.24
122
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.36.
168

Dadá salienta que reconstruiu sua vida, casando-se com Alcides e que foi muito

feliz ao seu lado. Não revela maiores detalhes desse novo romance, apenas esclarece que se

apaixonou novamente, vivendo trinta e cinco anos ao lado do novo companheiro. Foram

separados apenas pela morte. A ex-cangaceira menciona que conseguiu cumprir a missão de

sepultar a cabeça de Corisco com o resto de seus ossos. Para tanto, travou uma luta com o

Museu Nina Rodrigues/Bahia, que insistia em ficar com a cabeça para realizar pesquisas.

O sepultamento da cabeça de Corisco ocorreu em 13 de fevereiro de 1969,125 no

Cemitério de Quintas do Lázaro em Salvador/BA, vinte e nove anos após a sua morte.

Contudo, seus restos mortais foram reunidos numa mesma urna em 13 de julho de 1977. Dadá

diz que só encontrou paz depois de sepultar dignamente os restos mortais de seu ex-

companheiro, cumprindo sua “ promessa de esposa”.126

A depoente se auto-denomina uma heroína, e argumenta que foi muito mais que

isto, ao enfatizar que foi “o dobro de uma heroína, mas quem me fez assim foi o medo (...)

Eu era um chefe pela necessidade que tinha de ser (...) Eu era uma mulher de vanguarda,

tava quase sempre nas dianteiras. Não tinha esse negócio de moleza comigo não....Lampião

tinha muita fé em mim. Porque a vida era braba, a polícia fazia misérias, cortava cabeça,

enfiava num pau e o corpo fazia bagaço de tiro....”.127

Fica evidente na fala de Dadá que sua coragem nasceu do medo de ser morta ou

cair nas mãos das volantes. Justifica que foi obrigada a assumir o comando do grupo de

Corisco em função da situação debilitada em que o mesmo se encontrava. Realça que assumiu

o comando do grupo por amor a Corisco, num momento em que ele estava muito debilitado.

123
CARVALHO, Elias A. de Dadá e a Morte de Corisco.1983, p. 26.
124
Ibidem, p. 31.
125
Também foram sepultados no cemitério Quintas em Salvador /BA, as cabeças de: Lampião, Maria Bonita,
Canjica, Zabelê, Azulão e Marinheiro. DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.98.
126
Referindo-se ao sepultamento da cabeça de Corisco ressalta: “Hoje durmo mais tranqüila. Aqueles
agoniados que tinham com Corisco se acabaram, graças a Deus! DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição,
Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.84.
169

É interessante ressaltar que apesar de ser mulher, Corisco preferiu confiar na

companheira a transferir o comando para outro cangaceiro. Tal atitude demonstra uma

inversão nas relações de gênero que foram construídas naquele meio peculiar de vida. A

própria cangaceira recupera, em outra ocasião, o diálogo em que Corisco teria dito a Lampião

que ele era governado por Maria Bonita, e que tal atitude não era recomendada. E ao se referir

a Dadá, argumenta que “Minha mulher muito pouco fala, quanto mais me governar.....”128

Contudo, durante os últimos anos do cangaço (1938-1940) Corisco teve que se deixar

governar por Dadá, “Corisco ficou de acordo porque eu não dizia uma palavra a ele pra não

me atender. Ele não ia se entregar mesmo. Não existe Corisco sem Lampião e não existe

Corisco sem Dadá, era nossa aliança”129.

A depoente justifica em suas falas que as circunstâncias a fizeram chefe. No

decorrer de sua narrativa, não deixa transparecer que desejava ocupar o lugar de Corisco.

Entretanto, é fato que tinha habilidades bélicas, e que estas lhe conferiram o estereótipo de

mulher destemida. Tal perspectiva se evidencia nas construções dos cordelistas, dos

memorialistas e até mesmo nas fotografias.

Além das “musas” do cangaço que se notabilizaram pelo fato de serem mulheres

dos principais chefes e também por suas características pessoais e papéis desempenhados no

interior dos bandos; destacam-se aquelas que se projetaram posteriormente, a partir de

narrativas, contando suas experiências no cangaço, ocupando espaços na mídia e no mundo

acadêmico, como é o caso de Sila.

127
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.82.
128
Idem, p.76.
129
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p. 88
170

2.3.3 – Sila
Ilda Ribeiro de Souza - Sila

Foto 8 – Cangaceira Sila nos primeiros dias do cangaço


Fonte: SOUZA, Ilda. R. de Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma
guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural Monica Buonfiglio,
1997.

Foto 9 - Ilda Ribeiro de Souza (Sila) e Sérgia


Ribeiro da Silva (Dada).
Fonte: SOUZA, Ilda. R. de Angicos. Eu Foto 10 - Ilda Ribeiro de Souza (Sila)
Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do Fonte: Depoimento da autora em Rio Claro – SP.
cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural Monica 26/01/2001 – Centro Cultural Roberto Palmari
Buonfiglio, 1997.
Fotografo: Acrisio Siqueira – 06/03/1988.
171

A ex- cangaceira Sila – Ilda Ribeiro de Souza - , que em fins do cangaço

integrou o bando de Zé-Sereno, outro homem de confiança de Lampião, registrou em três

livros130 e em vídeo sua biografia e experiência no cangaço. Nasceu em 26 de outubro de

1924, na fazenda Recurso, localizada na cidade de Poço Redondo, no Estado de Sergipe.

Ficou órfã precocemente, pois sua mãe faleceu quando tinha apenas seis anos e o seu pai aos

treze anos de idade. Ficou sob os cuidados dos irmãos.

Ao recordar-se da infância, a depoente lembrou com alegria e muita nostalgia das

brincadeiras de roda, chicotinho-queimado e das bonecas. Entretanto, costurar roupas para

suas bonecas e para as de suas amigas era sua brincadeira preferida. A costura representou

para a ex-cangaceira um sentimento de feminilidade, conforme nos expressou em

depoimento: “ (...) eu era costureira das bonecas. Era muito importante para mim, porque eu

me achava muito mulher porque eu era costureira né”131.

Descreveu-se como uma criança alegre, brincalhona, e às vezes muito travessa.

Ressaltou que sempre foi muito vaidosa “(...) gostava de andar bem vestida, perfumada,

usava jóias e bons sapatos”132, e que se destacou entre suas amigas e primas, por seu jeito

comunicativo, que lhe garantia pares em todos os bailes em que participava. Esse fato que

teria despertado ciúmes nas mocinhas de sua época. Afirmou que:

Algumas mocinhas da minha idade tinham uma certa inveja porque eu tinha
o poder dominante nas festinhas que freqüentava. (...) Depois seguia-se um
baile, tocado à consertina, cavaquinho e pandeiro. Eu era considerada “pé de
ouro”, pois modéstia à parte, dançava muito bem e nunca sobrei num
baile”133

130
As memórias de Sila foram registradas nas obras de sua autoria: SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra
e paz. Recife: UFRPE, 1995 e Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo:
Ofic. Cultural Monica Buonfiglio, 1997. Também escreveu em parceria com Antonio Amaury C. de Araújo.
Gente de Lampião: Sila e Zé Sereno, São Paulo: Traço, 1987. Além desses materiais, entrevistamos a ex-
cangaceira, em 26/01/2001, no Centro Cultural Roberto Palmari, localizado em Rio Claro/SP, ocasião em que
Sila realizava uma exposição sobre sua vida no cangaço. Produziu um vídeo no qual percorre o caminho até a
gruta de Angicos.
131
Depoimento de Ilda Ribeiro de Souza, Rio Claro/SP, 26/01/2001.
132
SOUZA, I. R. de Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural
Monica Buonfiglio, 1997, p. 21
133
De acordo com Sila, as festinhas da época eram os bailes que seguiam-se após as novenas nas fazendas de
amigos; as comemorações dos dias dos santos como: São João, Nossa Senhora da Conceição e outros, as datas
172

Nota-se que a depoente tinha um certo prestígio em seu meio, e que participar do

cangaço lhe conferiria “status”. Tal perspectiva pode ser observada no momento em que

narrou em suas memórias que os cangaceiros despertavam significativa curiosidade não só

nas mocinhas (inclusive ela), mas em toda população:

Apesar do medo, todos tinham o desejo de conhecer aqueles homens


valentes134, cujas histórias espalhavam-se por todo o território brasileiro. Na
verdade era uma ousadia a ação daqueles desbravadores das caatingas – ao
mesmo tempo desafiadores das autoridades constituídas. Embora
amedrontados todos queriam ver um cangaceiro, ou conversar com alguém
que tivesse visto algum deles no mato ou topado com o bandido, ou
simplesmente levado comida ao coito.135

Ao ser indagada pela Revista Trip136, sobre seu sentimento a respeito dos

cangaceiros, respondeu enfaticamente “Eu tinha medo demais, nossa! Quando a gente ouvia

falar de Lampião, a gente corria para o mato, dormia a noite toda lá, a família toda debaixo

do pé de umbuzeiro....”. Contudo, no decorrer de sua resposta demonstrou curiosidade

quando admitiu espiar por debaixo da porta Lampião e seu bando, quando estes passaram na

fazenda de seu tio China:

(...) Meu tio pegou todas nós, eu e minhas primas, e trancou dentro de um
quarto. Assim, a gente não via Lampião nem ele via a gente [as famílias
escondiam as moças dos cangaceiros, pois, se eles as vissem, corriam o risco
de serem raptadas]. Mas eu consegui olhar debaixo da porta, e vi a
alpercata dele.137

Em depoimento oral, contou-nos que foi raptada pelo cangaceiro Zé-Sereno e que

não teve opção, pois se recusasse o “convite”, toda sua família e parentela sofreriam

retaliações. Temendo pela morte de seus familiares, e com o intuito de evitar desgraças,

folclóricas como o Bumba meu Boi, entre outros. SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife:
UFRPE, 1995, p. 15-16.
134
Grifos meus.
135
SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife: UFRPE, 1995, p. 13 e Angicos. Eu Sobrevivi.
Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural Monica Buonfiglio, 1997, p.23.
136
ICASSATTI, M. e SGARIONI, M. Radical Xique-Xique. Revista Trip. São Paulo: TPM, Ano 01 nº 01,
2001, p.11.
137
Ibidem, p.11.
173

seguiu com ele. Contou-nos ainda que os seus irmãos, em decorrência desta situação,

passaram a integrar o bando fugindo das volantes que os perseguiam.

Ao relembrar o episódio do rapto, confessou que jamais imaginaria que um dia

teria que sair de maneira tão abrupta de sua casa, deixando para trás as pessoas que amava.

Informou-nos que o bando de Zé –Sereno teria passado duas vezes em sua casa. Na primeira,

ela se preparava para ir à casa de sua tia Marieta. O seu irmão João ouvira boatos de que os

cangaceiros se dirigiam para a região em que residiam, e com o intuito de protegê-la, optou

por leva-la à casa da tia, que considerava mais segura. Porém, de acordo com a depoente, os

cangaceiros teriam chegado a tempo de Zé-Sereno observá-la e encantar-se por ela. Na

segunda vez que Sereno passou em sua casa, disse-lhe que voltaria para buscá-la num prazo

de oito dias, o que de fato ocorreu. Sila138 contou-nos a mesma versão que narrou em suas

autobiografias e na entrevista que concedeu à Revista Trip.

Ao ser indagada pela Revista Trip sobre a possibilidade de fugir durante o prazo

estabelecido por Zé -Sereno, Sila foi enfática: “Mas eu não podia me esconder, porque tudo

lá no Nordeste é pequeno. Se eu me escondesse, seria pior, porque meus irmão não iam ter

sossego nunca mais”139. A depoente utiliza a expressão “porque tudo lá no Nordeste é

pequeno” o que sugere que, naquele momento, o cangaço estava disseminado por toda região

nordestina. Portanto, não havia lugar seguro para se esconder, já que as volantes estavam

determinadas a colocar um fim no cangaço. Além disso, a fala da depoente pode ser pensada

como uma forma de “justificar” sua inserção naquele meio.

Apesar de afirmar que tinha consciência dos riscos, Sila optou por seguir com os

cangaceiros, acreditando talvez, que evitaria o derramamento de sangue. Contudo, revelou-

nos que em função da perseguição policial e para não deixá-la sozinha com os cangaceiros,

138
SOUZA, Ilda R. de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife: UFRPE, 1995, p.21
139
ICASSATTI, M. e SGARIONI, M. Radical Xique-Xique. Revista Trip. São Paulo: TPM, Ano 01 nº 01,
2001, p.11
174

seus irmãos Gumercindo, Antônio e Humberto (apelidado “Du”) decidiram ingressar no

cangaço.140 Aqui também se observa uma tentativa de “justificar”, e conferir sentido à

participação de seus irmãos no cangaço. Transmite a idéia de que eles não eram bandidos,

mas que se incorporaram ao cangaço para “protegê-la”, motivo que tornava aceitável a

inserção.

De acordo com Sila, assim que o prazo se encerrou, Zé Sereno retorna a sua casa

para buscá-la. Contudo, afirma que antes de levá-la, Zé-Sereno pediu ao seu irmão João, que

organizasse um baile com muita música e algumas moças141. À noite o baile correu

normalmente. Sila, porém, evitava olhar para Zé –Sereno, na esperança que ele desistisse da

idéia de levá-la. Entretanto, às seis horas da manhã, a cangaceira Neném, companheira do

cangaceiro Luís Pedro transmitiu-lhe o seguinte recado: “(...) Zé Sereno mandou lhe dizer

que é para você ir agora, assim, do jeito que você está”142.

A construção apresentada pela cangaceira sobre sua forma de incorporação no

cangaço, sugere que teve a oportunidade de se armar contra os cangaceiros, pois teria sido

anteriormente avisada por Zé-Sereno sobre sua intenção de levá-la. Entretanto, ao rememorar

o episódio Sila “justifica” que não tinha opção, pois se ousasse contrariar os cangaceiros, seus

familiares sofreriam retaliação. A própria cangaceira admite posteriormente que seus

familiares sofreram perseguições policiais, o que os teria impulsionado ao cangaço.

140
Consultar suas memórias: SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife: UFRPE, 1995, p. 29-30
e Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural Monica
Buonfiglio, 1997, p.30.
141
Sobre este assunto consultar: SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife: UFRPE, 1995, p. 23-
24 e Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural Monica
Buonfiglio, 1997, p.26-27 e os depoimentos: Ilda Ribeiro de Souza (Sila) ex-cangaceira, integrante do bando de
Lampião, companheira do cangaceiro Zé Sereno – Rio Claro – SP. 26/01/2001 e ICASSATTI, M. e
SGARIONI, M. Radical Xique-Xique. Revista Trip. São Paulo: TPM, Ano 01 nº 01, 2001, p. 5-16.
142
SOUZA, I. R. de Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural
Monica Buonfiglio, 1997, p. 27
175

A composição da cangaceira pode ser pensada como uma tentativa de “vitimizá-

la”, ou seja, amenizar os preconceitos inerentes ao banditismo, e ao mesmo tempo resignificar

sua experiência naquele meio de vida e conferir sentido a ela143.

A própria depoente afirma que os cangaceiros despertavam curiosidade nas moças

da época pela fama que desfrutavam. Admitiu, anteriormente, que em certa ocasião teria

observado o bando de Lampião por baixo da porta. Tais comportamentos sugerem que

participar do cangaço conferia prestígio e fama.

Em suas reminiscências, Sila resume da seguinte forma sua partida: Saí com

todos, só com a roupa que vestia. Sentia-me como que suspensa no ar, numa horrível

sensação de medo, pavor, incerteza e ainda a saudade imensa da minha casa, dos meus

irmãos, enfim, de todos. Imaginava o que devia acontecer, se me deixassem no mato, ou em

algum lugar que não conhecia. Caminhamos pelo mato afora, todos calados”144 Estas

palavras nos dão uma idéia do sofrimento da adolescente Sila, que perdera muitas pessoas

queridas, primeiro a mãe, depois sua tia/madrasta, seu pai, e a irmã mais velha que se casara e

mudara-se para a Bahia. Agora, perdia o seu lar, seus irmãos e seus entes queridos.

Sila foi raptada em meados de 1936, e permaneceu no cangaço até a morte de

Lampião em Angico, em 28 de julho de 1938. Quando a indagamos como sobreviveu ao

cerco, justificou que só conseguiu sair ilesa porque houve intervenção divina:

Ah! Minha filha isso só Deus mesmo, porque se não fosse Deus, eu não
estaria aqui. Porque foi uma coisa muito perigosa, uma luta fora do normal,
era tiro que caia, acabou com tudo. E a gente não morre antes da hora não. O
tiro batia na pedra, da pedra batia na cabeça da gente, mas eu não
morri graças a Deus.145

143
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as
memórias.Projeto História. São Paulo: Educ, nº 15, 1997, p. 51-84
144
SOUZA, I. R. de Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural
Monica Buonfiglio, 1997, p. 27
145
Grifos meus. Depoimento de Ilda Ribeiro de Souza, Rio Claro –SP 26/01/2001.
176

No trecho anterior, a depoente recorre ao uso do exagero ao afirmar que “o tiro

batia na pedra, da pedra na cabeça (...)”, acreditamos que tenha utilizado tal recurso para

salientar a violência do confronto e a intervenção divina sobre sua vida.

As cangaceiras Sila e Dulce, juntamente com seus companheiros, entregaram-se à

polícia em 1940 na Bahia, sob garantia de anistia do Presidente da República, Getúlio Vargas.

Ficaram um tempo na Bahia depois foram para Jordânia, cidadezinha mineira que fica na

fronteira com a Bahia. Hospedaram-se na fazenda do antigo coiteiro e amigo dos tempos do

cangaço, o sr. Jacó. Sila, Zé-Sereno e Criança foram para Martinópolis no interior do Estado

de São Paulo. De acordo com Sila, a cangaceira Dulce apaixonou-se pelo fazendeiro Jacó e

não quis mais seguir com Criança. Este ficou furioso e quis matar o fazendeiro e a ex-

companheira. Desistiu desta idéia depois de ser convencido pelos companheiros para que não

criasse caso, pois já estavam livres da polícia. Sila ressalta que o cangaceiro concordou,

porém como punição levou consigo os dois filhos do casal. Além disso, garantiu que ela

nunca mais os veria. Dulce ficou com o fazendeiro Jacó, e os demais partiram para São Paulo.

Criança casou-se mais tarde com Ana.

Sila nos conta que ela e o marido, se fixaram na cidade de São Paulo em 1946, e

começaram ali uma nova vida. Ela ajudava no orçamento com suas costuras e todos os

trabalhos que apareciam. Fez questão de dizer que apesar das dificuldades nunca se prostituiu:

Em São Paulo nós sofremos muito também, chegamos numa capital com três
crianças pequenas, sem ter meio. Eu sempre guardava um pouco de dinheiro
por causa dos meus filhos, eu costurava roupa para eles né. Eu era costureira.
Qualquer pedacinho de pano eu fazia, tomava máquina emprestada, um
emprestava outro não (...) sempre com aquele jeitinho. Aí eu bordava muito
bem e comecei a bordar no bairro da Lapa, (...) Aprendi coisas, olha, fiz de
tudo. Só não fui prostituta. Mas o que precisava trabalhar para ganhar
146
dinheiro eu trabalhava.

146
Idem
177

Enfatizou que tomava remédio para não dormir “Eu trabalhava de dia e de

noite, costurando e amanhecer o dia e eu pegar um comprimido e tomar147, e que sempre

respeitou muito as pessoas e, por isso, também procurou trabalhar nos locais em que recebia

respeito. Falou com orgulho da honestidade com que criou seus filhos, sempre se referindo ao

respeito ao próximo, aos mais velhos “Criei meus filhos honestamente, a gente tem que ser

honesto, a gente tem que olhar pelos velhos e pelas pessoas que dá valor pra gente”.148

Observa-se em suas palavras que teve um papel fundamental no sustento da casa.

Recordou em suas memórias que Zé-Sereno teve dificuldades para arrumar trabalho. Viveu

por muito tempo fazendo bicos, e só mais tarde arrumou emprego de vigia numa fábrica.

Disse que o marido adoeceu de sífilis, e durante todo tratamento ela supriu a família.

Trabalhou na fábrica Matarazzo (antiga tecelagem de São Paulo) por três meses, e só saiu do

emprego porque ficou grávida e não quis abortar, como sugeriu a empresa. Mais tarde

arrumou emprego no Mapping (grande rede de magazines em São Paulo), onde permaneceu

até aposentar-se. Recorda das inúmeras dificuldades que passaram na capital, desde as

financeiras até os preconceitos que sofreram, sobretudo seus filhos. Sila permaneceu ao lado

de Zé-Sereno até a sua morte em 1981 (nesta época Zé Sereno trabalhava como inspetor de

alunos num colégio de São Paulo).

Em 2001, ano em que realizamos a entrevista, Sila se encontrava com 78 anos de

idade e residia em Santana, na zona norte de São Paulo, e sobrevivia da aposentadoria que

conquistou com os longos anos de trabalho como costureira. Além disso, também participava

de palestras nas universidades, de exposições, programas de televisão, entrevista em revistas e

jornais, entre outros.

Em um dos momentos de nossa entrevista, expusemos a Sila a discussão e a

posição de alguns estudiosos acerca da incorporação feminina no cangaço. Mostrou-se

147
Ibidem
178

veementemente contrária à posição dos que defendem a incorporação voluntária. Negou que

tivesse tido qualquer tipo de atração pelo cangaço. Reiterou que várias mulheres ingressaram

voluntariamente no cangaço, mas que essa prática não corresponde à realidade vivenciada

por todas as mulheres.

As observações de Sila suscitam outras indagações: Como ela entendeu o

cangaço? Como definiu Lampião? Existia em sua concepção diferenças entre cangaceiros e

volantes?

Em suas memórias definiu o cangaço como “ um movimento revolucionário”.

Enfatizou que foi resultado das injustiças sociais e do descaso governamental em relação ao

Nordeste. O cangaço tornou-se um meio de sobrevivência para muitos sertanejos. Em sua

fala, que mais parece a posição de um crítico intelectual, enfatiza:

(...) o cangaço (era entendido) como um movimento revolucionário. É o


movimento dos oprimidos, dos camponeses, dos injustiçados, dos
marginalizado pela lei, tomada esta expressão em relação à lei que não os
obrigava, não os protegia porque era feita pelos poderosos exclusivamente
para proteger seus interesses.149

Ressalta que Lampião não via o cangaço como um movimento revolucionário,

mas, como um meio de sobrevivência, uma forma de se ver “livre” do jugo dos coronéis.

Neste trecho fica evidente que reelabora seu discurso incorporando outros elementos

apreendidos nas experiências adquiridas mais recentemente. Além disso, não parece ter uma

posição tão apurada e crítica a respeito do cangaço.

Sila descreve em suas memórias um Lampião humanizado, justo, honesto, “bom

caráter”, sertanejo preocupado com a moral e com a religião. Atribui ao mesmo tempo

características de um Robin Hood e um general em campanha. Vejamos em suas palavras:

Jamais presenciei um ato de selvageria, embora tenha tido conhecimento de


execuções necessárias à segurança do bando, ou de expedições punitivas.(...)
Jamais testemunhei um assalto a quem quer que fosse, ainda que soubesse

148
Depoimento de Ilda Ribeiro de Souza,Rio Claro –SP 26/01/2001
149
SOUZA, I. R. de Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural
Monica Buonfiglio, 1997, p.11
179

que, para manter-se e ao bando, Lampião recolhia dinheiro de fazendeiros


abastados. Nunca o vi porém, tomar pertences daqueles que poucos recursos
possuíam. Ao contrário, muitas vezes socorreu os mais necessitados, ora
fornecendo-lhe alguma importância em dinheiro, ora auxiliando-os em
outras necessidades maiores.150

Acrescentou que o Lampião que conheceu não foi o mesmo descrito pela história

oficial. Foi categórica ao afirmar que: “A história oficial, já o sabemos todos, e eu de

experiência própria, pinta os fatos com a cor que convém aos detentores do poder. Isto agora

e em todos os tempos. Paciência...”151

A ex-cangaceira criticou os estudiosos que definiram os cangaceiros como

“salteadores”, “bandoleiros” e “assassinos” do Nordeste. Argumenta que eles foram “tão

criminosos, tão bárbaros, tão cruéis quanto as volantes das polícias nordestinas” que os

perseguiram. Em sua concepção, cangaceiros e volantes não se diferenciavam quanto aos

meios empregados muito menos quanto ao uso da violência; mas no fato de os primeiros

colocarem-se contra a ordem vigente, e os segundos a sua disposição.

Os registros sobre as demais mulheres que integraram os bandos são escassos,

como já assinalamos anteriormente. Os materiais mais consistentes ainda são as fotografias de

algumas delas e, esporadicamente, o depoimento na imprensa quando foram presas.

150
Ibidem, p.12
151
Ibidem, ibidem, p.13
180

2.3.4 – Moça

Foto 11 – Moça e Inacinha


Autor: Benjamim Abrahão Boto - 1936
Acervo: Fundação Joaquim Nabuco –
Recife/PE
Coleção cangaço

Na fotografia acima, vemos as cangaceiras Moça (Joana Gomes), companheira do

cangaceiro Jacaré, e Inacinha (Inácia Maria de Jesus), do cangaceiro Gato. Observa-se

claramente as diferenças existentes entre elas e Maria Bonita, quando analisamos a

simplicidade de suas vestimentas. As cangaceiras foram fotografadas com os trajes do dia-dia.

Apesar de possuírem anéis nos dedos, lenços no pescoço, não se igualam aos trajes

aprimorados de Maria Bonita.

A entrevista da cangaceira Joana Gomes dos Santos a um jornal de Maceió,

reproduzida pelo jornal Correio da Manhã152 e veiculada em 14 de abril de 1937, mostra-se

significativa para compreendermos as relações de convívio no grupo, sobretudo a experiência

152
Correio da Manhã, 14/04/1937, p. 6.
181

dessa cangaceira que se entregou às autoridades alagoanas em Mata Grande no dia 13 de abril

de 1937 e tudo indica que ela foi interrogada na prisão.

A matéria informa que a cangaceira era baiana, e que teria se incorporado ao

cangaço em 1930, na cidade de Santo Antonio da Glória, tornando-se companheira do

cangaceiro Cyrillo da Ingracia. Esclarece que se encontrava com 24 anos de idade quando se

entregou a polícia, portanto, tinha apenas 17 anos quando se incorporou ao cangaço e,

segundo informação do periódico, era orfã de pai e mãe.

A cangaceira esclarece que resolveu se entregar às autoridades depois de ter sido

expulsa do bando de "Lampeão". Conta-nos que viveu quatro anos com o cangaceiro Cyrillo

da Ingracia e que depois de sua morte, resultado de um confronto com a polícia alagoana

liderada pelo cabo Cícero Ribeiro, foi requisitada pelo cangaceiro Jacaré.

A notícia é pródiga ao detalhar o episódio da expulsão da cangaceira. O fato

ligava-se a uma seqüência de mortes no grupo, logo após a morte de Jacaré, que foram

atribuídas à presença dela: Os cangaceiros começaram então a attribuir a culpa dessa

seqüência de contratempos a alguma força occulta da bandida Joanna Gomes. E julgando a

mulher de Cyrillo de Ingrácia "pesada" para o cangaço, a expulsaram de seu convívio”.153

Acreditamos que ao culpar Joanna pelas mortes ocorridas nos embates, os

cangaceiros transferem o fracasso diante das volantes para o sobrenatural, identificado,

sobretudo na mulher que carregava poderes "ocultos". Entretanto, sabemos que neste ano de

1937 a perseguição aos cangaceiros se deu de maneira acirrada.

Os temores em relação aos poderes negativos de Joanna podem ser considerados,

uma vez que há relatos de alguns ex-cangaceiros a memorialistas, que salientam que a mulher

tornava o cangaceiro vulnerável ao perigo, pois a relação sexual abria o seu corpo, o que não

pode ser generalizado, pois muitos preferiram viver ao lado de suas mulheres.

153
Idem
182

Joana, ao falar para a imprensa, salienta que seu companheiro Jacaré estava

cansado daquela vida, e que tinha intenções de se entregar à polícia, pois não agüentava mais

viver fugindo, sem tempo para comer, dormir etc. Ressalta: o que me causa mais pena é saber

que "Jacaré" morreu quando se ia entregar á polícia, "abusado" como estava da vida, que a

gente levava, pelas mattas, feito bicho. Avalie que raramente a gente dormia dez horas e

nunca se passou três dias num logar. Era daqui para ali, dali para acolá, feito fogo

corredor”154.

A entrevistada revela alguns fragmentos que sinalizam para o modo de vida que

levavam, e recupera um pouco do cotidiano dos grupos de cangaceiros. Ao se referir a sua

união a Jacaré, a cangaceira recupera uma prática que parecia ser comum no universo do

cangaço, e que sinaliza para uma certa regularidade/normalização no grupo, embora seja

possível notar uma flexibilidade no seu cumprimento. Ou seja, era muito comum que após a

morte do companheiro a cangaceira se juntasse a um outro. Alguns memorialistas155 e

depoentes recuperam essa especificidade do grupo, e admitem que apesar de sinalizar para

uma normalização tinha algumas flexibilidades.

Ao ser indagada a respeito da subsistência e manutenção dos grupos, explica que:

(...) - No bolso da gente nunca faltou dinheiro. Era de esbanjar. Ao utilizar o verbo esbanjar,

sugere que havia dinheiro suficiente para juntar fortuna, e que o enriquecimento era muito

fácil, fato que teria seduzido muitos homens que trocaram um vida miserável pela

possibilidade de riqueza. Isto fica mais evidente, quando revela a facilidade com que lidavam

com a falta de dinheiro: Quando, porém, escasseava, os homens atacavam nas estradas, nas

fazendas e prompto! As vezes se recorria ao "coito", mas, ultimamente, a coisa era mais

154
Correio da Manhã, 14/04/1937, p. 6.
155
ARAÚJO Antonio A. Corrêa de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço 1985, SOUZA, I. R.
de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife: UFRPE, 1995 e Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira
do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural Monica Buonfiglio, 1997.
183

difícil devido á polícia. Assim mesmo, um delles ia com a cara de santo e carregava o que se

precisava156. Fica explícito na última fala da entrevistada, que em função das constantes

perseguições policiais, os bandos estavam encontrando dificuldades para se manter.

Ao se referir à partilha do dinheiro salienta: Quando o dinheiro chegava era dividido

immediatamente porque havia o perigo de a gente desgarrar e algum cair nas mãos dos

"jagunços". A quem a entrevistada se refere como jagunços?

O editor da entrevista enfatiza que Joanna era conhecida como "viúva dos

bandidos”, o que sugere sua dupla marginalidade e o perigo que representava para os

sertanejos, pois tinha pertencido a dois cangaceiros.

Ao se referir ao uso da violência no grupo, Joana salienta: Nunca matei. Vi muitas

vezes matar, mas não gostava daquillo. Dava-me até dôr de cabeça. Por isso nunca mais

voltarei ao cangaço nem que saia da cadeia. Conclui sua fala enfatizando que o cangaço era

“uma vida danada, vida pra quem é doido e está desenganado do mundo”. Ao se referir a

Lampião, afirma que estava "magro, mas bem disposto", e ainda queria ser "governador de

um Estado, constituído de pedaços de Alagoas, Sergipe, Pernambuco e Bahia......”157.

156
Correio da Manhã, 14/04/1937, p. 6.
157
Idem
184

2.3.5 – Neném

Assim como Maria Bonita, a cangaceira Neném também apareceu em diversas

fotografias. Na fotografia 9, é focalizada em primeiro plano, com um vestido que parece ser

de festa. Também está enfeitada com jóias no pescoço, anéis em todos os dedos, e cabelos

presos por presilhas. Apesar das jóias, nota-se que o traje de Neném é bem mais simples que o

de Maria Bonita, o que nos leva a pensar que existia de fato cangaceiras mais ricas. O

semblante de Neném também demostra um ar de seriedade. Contudo, ela se distancia da

imagem da mulher de elite, tão bem construída e utilizada por Maria Bonita.

Foto 12 – Neném, mulher do cangaceiro Luiz Pedro


Autor: Benjamim Abrahão Botto –1936
Acervo: Fundação Joaquim Nabuco – Recife/PE
Coleção Cangaço
185

Na foto seguinte, sentada ao lado do companheiro, Neném recupera por meio da

postura e do gestual alguns traços que caracterizam uma mulher de elite, como o cruzar das

pernas, a postura ereta e as mãos sobre as pernas. Contudo, é evidente que ela se distancia

muito de Maria Bonita.

Foto 13 – Neném, Luiz Pedro seu companheiro e


a amiga Maria Bonita.
Autor: Benjamim Abrahão Boto –1936
Acervo: Fundação Joaquim Nabuco – Recife/PE
Coleção Cangaço

A busca por uma identificação com uma mulher da elite, parece ser uma

preocupação de Maria Bonita, pois não notamos entre as outras cangaceiras essa mesma

postura. Talvez, isso possa se explicar pelo fato de ser a mulher do chefe, o que acabava por

lhe conferir prestígio e alguns privilégios como, por exemplo, ser abundantemente

fotografada.
186

2.2.6 – Outras cangaceiras

Pouco foi dito sobre as cangaceiras Dulce, Maria Jovina, Inacinha, Áurea,

Sebastiana, Otília, Rosinha, Eleonora, Durvinha, Quitéria, Maria Cardoso, Maria Fernandes,

Bídio, Lica Maria da Conceição, Sabina da Conceição, entre outras. Contudo, as várias fontes

coletadas indicam que a faixa etária das cangaceiras variava de 14 a 26 anos de idade.

Algumas mulheres buscavam a aventura de uma vida nômade e errante. Ou seja,

o sonho de uma “vida fácil” alimentada pela perspectiva de riqueza e diversão constantes,

evidenciadas nos bailes organizados pelos cangaceiros, que expressavam as possibilidades de

uma vida de certo glamour. Estes parecem ter sido os casos de Dulce, Cristina, Doninha, Lili

e Maria Jovina, que se inseriram de maneira voluntária, em busca desta aventura.

Essa perspectiva pode ser evidenciada no ingresso de Dulce, companheira de

Criança, que foi narrado pela ex- cangaceira Sila em suas memórias:

Fomos ao coito na fazenda de seu Manoel, Estado de Sergipe. Ficamos na


casa grande da fazenda, onde resolvemos fazer uma festa e chamamos as
moças de Canindé, que era perto da fazenda. À noite a festa realizou-se.
Veio uma moça chamada Dulce, muito bonitinha. Ela e Criança se
namoraram e ela resolveu não voltar mais pra casa, ficando conosco. Entrou
para o cangaço. Eu dei conselhos a ela, mostrei as dificuldades que tinha que
enfrentar, mas ela disse que jamais voltaria para casa.158

Depreende-se das pesquisas em diversas fontes que embora os motivos fossem

variados, a maioria das mulheres incorporou-se ao cangaço na mera ilusão de que viveria em

constante festa e teria “liberdade”, sensação alimentada pela vida nômade e errante desses

homens. No entanto, sabemos que esta não era a realidade dos bandos. Eram constantemente

perseguidos pelas forças policiais e, muitas vezes, em função de acirrada perseguição,

ficavam mal alimentados e sem água suficiente para suas necessidades, caminhando

quilômetros sob o sol e chuva. Nem sempre tinham onde repousar e tomar banho. Enfim,

viviam muitas vezes em situações extremas.

158
SOUZA, Ilda R. de. Sila Memória de Guerra e Paz. Recife: IURPE, 1995. p.30.
187

A coragem e a cumplicidade são as principais características atribuídas às

cangaceiras. O cordelista Manoel D’Almeida Filho, no folheto Os cabras de Lampião, destaca

em diversas passagens a coragem feminina, e utiliza para isso a expressão “bandidas”159 e

“bandidinhas”160. Acreditamos que no primeiro caso o poeta quis enfatizar a condição

marginal em que a cangaceira estava inserida, e não qualificá-la como criminosa, como faz a

imprensa. O poeta não se refere a bandida como sinônimo de assassina ou perigo bélico. O

uso de “bandidinhas”, no contexto de seu folheto, sinaliza a pequena ou nula representação de

algumas mulheres no grupo. Sugere que não se constituíram numa ameaça bélica à sociedade.

Nota-se que a maioria dos poetas retrata de modo positivo a experiência feminina

no cangaço. Não desqualifica as mulheres como fizeram os periódicos O Estado de S. Paulo e

O Correio da Manhã, cujo julgamento se pautava na lei. Os poetas procuraram realçar os

traços da cangaceira enquanto mulher, ou seja, a sua feminilidade. Como vimos

anteriormente, o periódico paulista ora enfatizava o lado masculinizado da cangaceira,

caracterizado pelo desempenho com armas e pela criminalidade que lhe é atribuída, expressa

em sua participação nos diversos assaltos praticados pelos grupos; ora como objeto sexual,

classificando-as como amantes.

A feminilidade das cangaceiras pode ser evidenciada a partir de algumas

fotografias que indicam suas preocupações com o embelezamento do corpo, com a aparência

e com a postura. Salientam a estética dos trajes femininos, bem como o apreço por jóias. A

literatura de cordel trabalha com essas duas posições e constrói ao mesmo tempo a mulher

corajosa e a companheira vaidosa.

159
Diz o poeta: “As bandidas se ocupavam/ Em cozinhar a comida”. D’ALMEIDA FILHO, M. Os cabras de
Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965, p. 32.
160
O poeta enfatiza: “Ainda tem as bandidinhas/ Nenê de Ouro e Rosinha/Maria Cardoso e Cira/Aura, Sila e
Isaurinha/Aldina, Otília, Sabina/ Juriti e Mariquinha/ Por Adília que era /Uma bandida elegante”.
D’ALMEIDA FILHO, M. Os cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965.
188

Ao longo do texto identificamos as formas de incorporação, as práticas e as

diversas representações construídas sobre o feminino, e analisamos de forma detalhada a

trajetória das cangaceiras, Maria Bonita, Dadá e Sila, cujos registros indicam, entre outros

aspectos, a banalização da violência entre cangaceiros e volantes e a conseqüência de tal

prática contra a população sertaneja, especificamente sobre as mulheres. Nesse sentido, o

próximo capítulo terá como problemática central o uso da violência para subjugar o outro.
190

Capítulo 3 - Cangaceiros e volantes: o uso comum da violência como

afirmação de poder.

A violência é comum no universo do cangaço tanto entre cangaceiros como policiais,

e foi utilizada pelos grupos com o intuito de afirmar poder. Diferenciava-se quanto à forma de

suas ações e a submissão ou não à lei.

Pensando especificamente em relação às mulheres, elas estavam sujeitas tanto à

violência cometida pelos cangaceiros, quanto aos abusos praticados pela polícia. A diferença era

a escolha das vítimas e as formas de violência usadas.

Diversos tipos de violência física ou simbólica se evidenciam nesse meio de vida: o

rapto de meninas/moças e a conseqüente violação de seus corpos; o espancamento praticado

pelo companheiro ou pelas volantes quando prisioneiras; a brevidade da vida e o imediatismo da

morte ( em função dos confrontos com as volantes) e a pena de morte para a mulher que ousasse

praticar o sexo livre, ou se recusasse à união a outro cangaceiro quando da morte do

companheiro. Além de sofrerem com a violência interna, as cangaceiras também estavam

sujeitas às práticas das volantes: espancamentos, estupros, decapitação de órgãos, enfim, a

ameaça da morte era constante.

Os casos de Sila e Dadá, evidenciam o uso da violência física e simbólica no ato da

incorporação, ou seja, o rapto e os possíveis desdobramentos dessa ação sobre suas vidas

(violação sexual dessas meninas/moças pelos raptores) e a de seus familiares. As experiências

vivenciadas por essas mulheres podem ser observadas em seus depoimentos, Sila parece não

guardar boas lembranças de sua primeira experiência sexual, com Zé-Sereno, aos catorze anos de

idade. Em seu depoimento à Revista Trip, descreveu esse momento como um experiência amarga
191

e nojenta:“(...) Nem sabia que existia isso. Naquele momento me senti nojenta....Tive muito

nojo...”1. Em suas memórias esclarece que “Zé tratou de arranjar uma coberta, estendeu-a no

chão, deitamos. Tive de obedecê-lo e dormir com ele. Assim foi minha primeira noite”2 . Em

outro momento resumiu essa primeira transa como uma “obediência” ao seu raptor,

considerando-a como uma prática dolorosa, amarga, nojenta e isenta de carinho.

De acordo com ela, os casais ficavam separados dos homens solteiros: “(...) Tinha

também uma cabaninha improvisada. Os casais eram separados: os solteiros ficavam do outro

lado, ninguém ficava perto, não. Mas era um coisa muito difícil, viu?...”3

A cangaceira Dadá ao se referir ao episódio traumático de sua experiência sexual,

salienta que teve seu corpo violentado à força, “logo na primeira noite desci da garupa de cavalo

prá abrir as pernas à pulso.”4 Em outro momento de sua fala compara a ação de seu raptor à de

um animal selvagem “(...) Foi neste lugar que ele começou a fazer aquilo a pulso comigo. A

perda do cabaço foi uma coisa horrível com aquele homem em cima de mim feito um animal.

Fiquei doente, acabada, morta, arrastando pelo chão e botando não mais sangue mas aquela

água verde...”5

Nota-se na fala das depoentes a utilização das expressões: “existia isso”, “dormir

com ele”, “minha primeira noite”, “abrir as pernas” e “fazer aquilo” para se referir ao ato

sexual, o que parece haver um certo tabu em relação à palavra sexo, dando a impressão de que

era algo feio e proibido, ou ainda, que se relacionava à prostituição. Talvez tenha sido uma

forma de se protegerem dos julgamentos alheios. Ou seja, a contenção de seus desejos sexuais

1
ICASSATTI, M. e SGARIONI, M. Radical Xique-Xique. In: Revista Trip. São Paulo: TPM, Ano 01 nº 01, 2001,
p.11.
2
SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife: UFRPE, 1995, p. 25. e Angicos. Eu Sobrevivi.
Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural Monica Buonfiglio, 1997, p. 27.
3
ICASSATTI, M. e SGARIONI, M. Radical Xique-Xique. Revista Trip. São Paulo: TPM, Ano 01 nº 01, 2001,
p.9.
4
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição. Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.11.
5
Idem, p. 25-26.
192

lhes asseguraria a imagem de mulheres decentes, pois a condição de marginalidade em que

viviam acabava por estigmatizá-las.

Dadá descreve os desdobramentos provocados pela atitude violenta de Corisco,

compara a hemorragia sofrida a “um rio de sangue”6 para expressar a gravidade da ação

praticada por seu raptor. Com base nos depoimentos orais da cangaceira ao memorialista Antônio

A. Corrêa de Araújo, o cordelista Elias A. de Carvalho, no folheto Dadá e a morte de Corisco

qualifica sua a primeira experiência sexual como um estupro violento. Na composição do poeta,

a menina/moça teria sofrido física e emocionalmente as conseqüências do imprudente ato de seu

raptor:

No caminho foi estuprada


pelo rude pretendente
de maneira violenta.
Daquele ato imprudente,
dores e infeção,
vergonha, medo, aflição
de uma inesperiente.

Ela rejeita Corisco,


Uma repulsa à domina.
Ele vendo ela doente
pede a tia Vitalina
para tratar de sua amada.
Quando ela estava curada
ele levou a menina7

A discussão da sexualidade das demais mulheres do bando é um problema pela falta

de informações. Contudo, alguns indícios foram recuperados nos casos em que essas mulheres se

envolveram com outros homens do bando. Em alguns deles culminaram em desfecho trágico.

Assim foram os casos de Lídia, Lili, Cristina e Maria Jovina também conhecida como Maria de

Pancada.

6
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição. Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.13.
7
Carvalho, Elias A.. Dadá e a morte de Corisco, 1983, p.13.
193

As relações entre homens e mulheres no cangaço foram heterogêneas.

Caracterizaram-se pelo afeto entre os casais; outras por imposição decorrente de circunstâncias

da própria inserção dessas mulheres no bando ou, ainda, pelo desejo de viver uma aventura, fora

dos padrões convencionais. Algumas foram bem sucedidas, como a de Lampião e Maria Bonita

que se constituiu por laços de afetividade; a de Corisco e Dadá, que se apaixonou por seu raptor;

a de Sila e Zé-Sereno que embora tenha sido fruto de um rapto, se estruturou sem muitos

questionamentos no que se refere às possibilidades afetivas.

Outras relações, independentemente das motivações que resultaram em sua

constituição, nem sempre foram bem sucedidas, o que se traduziu na busca de outro companheiro

dentro do próprio grupo. Isto gerou conflitos entre os envolvidos e no próprio bando, nem sempre

resolvidos de forma harmônica. Esta problemática merece ser abordada de forma mais pontual,

em decorrência de sua importância em relação aos desdobramentos que provoca no âmbito do

grupo, e por colocar em xeque os códigos de funcionamento do próprio cangaço, tais como

confiança e lealdade.

A cangaceira Lídia, companheira de Zé-Baiano, apaixonou-se por Bem-te-vi com

quem manteve relações durante três anos até ser descoberta pelo cangaceiro Coqueiro, que a

delatou a Zé-Baiano. O desdobramento dessa prática teria resultado na fuga do “amante” e nas

punições do “delator” e da “traidora”, que romperam com os códigos vigentes no cangaço.

Os episódios da traição e da morte de Lídia foram reproduzidos pelo cordelista

Gonçalo Ferreira da Silva no folheto Zé-Baiano. O Ferrador de Gente8. Neste, Silva se mostra

muito solidário a Zé-Baiano, e atribui sua personalidade violenta a uma possível revolta do

cangaceiro com a atitude da companheira. Refere-se a ele como um desiludido e miserável

traído, e a Lídia como causadora da desgraça e do comportamento bárbaro de Zé-Baiano.


194

Entretanto, as fontes analisadas sinalizam que este cangaceiro teria se destacado desde sua

incorporação no cangaço por sua conduta agressiva e perversa com que se lançava contra suas

vítimas.

O próprio poeta em sua construção admite que Zé-Baiano entrara para o cangaço

por pura simpatia. Vejamos em sua palavras:

Como bem diz a alcunha


que Zé recebeu um dia
Zé Baiano, o ferrador
nasceu na velha Bahia
e ingressou no cangaço
apenas por simpatia

Só tinha o grupo dois negros


cada qual o mais tirano
o dono da palmatória
era o negro Mariano
frio como Virgulino
preto como Zé Baiano (...)

Do grupo de Lampião
Foi Zé- Baiano o bandido
Que teve a desilusão
De ser um dia traído9

Acrescenta que Zé –Baiano sofrera dois golpes ao mesmo tempo, “o primeiro e mais

terrível/ foi Lídia o ter traído,/ o segundo foi o próprio/ conquistador ter fugido”10. Lídia

morrera de maneira brutal, porém, ao cangaceiro Bem-te-vi, seu “conquistador”, nada

acontecera. Voltou para junto de seu bando chefiado por Virgínio e dele obteve o perdão.

O cordelista Silva insiste em dizer nos seus folhetos - Maria Bonita – A eleita do Rei e

Zé- Baiano. O Ferrador de Gente – que a traição de Lídia teria sido um caso isolado. Afirma,

que antes do episódio em que “miseravelmente Lídia traíu Zé Baiano”11, não há evidências de

8
SILVA, Gonçalo F. da Zé –Baiano. O ferrador de gente. Rio de Janeiro: Acad.Bras. de Literatura de Cordel, 2ª
edição, s/d.
9
Idem, p.2.
10
Idem, p. 6.
195

infidelidade “conjugal” no interior do grupo. Na composição do poeta permanece a idéia de que

todas as relações foram equilibradas e harmônicas. Entretanto, os relatos de ex-participantes não

sustentam essa versão.

Em suas memórias, Dadá12 se refere ao episódio em que Lídia teria sido barbaramente

assassinada por Zé-Baiano. Sua narrativa traz com detalhes os momentos que antecederam o

crime. Salienta que Lídia era uma pessoa triste, e que vivia chorando pelos cantos. Contudo,

naquele dia estava contente e sua alegria, de acordo com Dadá, teria incomodado e despertado a

desconfiança de Zé-Baiano em relação à companheira.

Nessa construção, Lídia teria sido violentamente espancada até a morte. Dadá, ao

rememorar o episódio, descreve da seguinte forma a ação de Zé-Baiano: “Era ele matando a

paulada e ao mesmo tempo em prantos”. De acordo com essa narrativa, as pessoas do grupo

assistiram ao assassinato da cangaceira sem intervir. Esse comportamento sinaliza que sua prática

era perfeitamente aceita entre seus pares e servia de exemplo para as demais mulheres que

desejassem praticar o sexo livre. A ação do cangaceiro demonstra que os homens tinham poder

sobre o corpo e a vida da companheira. Apesar deste quadro de barbárie, outras mulheres ousaram

relacionar-se com outros cangaceiros, transgredindo o código.

Outra destas mulheres “transgressoras” teria sido Lili, companheira do cangaceiro

Lavadeira. De acordo com os relatos dos memorialistas e depoimentos orais, após a morte

daquele em 1933, Lili teria se unido ao cangaceiro Baiano (Manoel Moreno), caracterizado

como um homem frouxo e acomodado, características que a desagradavam. Independente dos

possíveis desdobramentos, largou-o e juntou-se a Moita Brava, cangaceiro muito temido por sua

valentia e destemor e que pertencia ao grupo de Labareda (Ângelo Roque). Lili, sentindo-se uma

11
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – a Eleita do Rei. Rio de Janeiro: Acad. Bras. de Literatura de Cordel,
reedição 2000. p. 6.
12
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.77.
196

mulher livre, aproveita os momentos de ausência de Moita Brava para encontrar-se com Pó

Corante, mesmo sabendo das conseqüências de tal ato. A morte de Lili e a fuga de Pó Corante

foram os resultados da ação da cangaceira. De acordo com o memorialista Araújo13, os homens

de Labareda intervieram antes que o cangaceiro fosse executado. Essa atitude não era esperada

por Moita Brava, uma vez que vigorava no interior dos bandos um código de honra, que permitia

a execução de qualquer elemento do grupo considerado traidor, fosse numa ação individual,

como nas relações “extraconjugais” ou numa ação coletiva que colocava o grupo em risco.

Depois deste episódio Moita Brava teria regressado ao grupo de seu ex-chefe Corisco,

relacionando-se com Sebastiana, com quem teve um filho em 1937.

Em seu depoimento, Dadá concorda com a sentença aplicada à cangaceira Lili. É fria

e direta ao afirmar que “Lili . A Lili deu prá descaradinha, o Moita Brava matou. Deu um tiro

na cabeça e pronto”14. Não questiona a atitude do cangaceiro, muito menos esclarece o que teria

acontecido com Pó Corante.

Ao que parece Lili tinha fama de namoradeira e representava, portanto, uma ameaça.

Talvez isso justifique a naturalidade com que Dadá aprovou o ato de Moita Brava. Essa postura

não foi assumida quando menciona a morte de Lídia; qualifica o ato de Zé-Baiano de

“assassinato bárbaro”15. Em relação a Cristina posiciona-se contrária a sua eliminação e critica

Maria Bonita, por apoiar a morte da cangaceira.

A cangaceira Cristina incorporou-se ao cangaço porque se sentiu atraída pela vida

perigosa e incerta daqueles homens, e quis seguir com Português após os namoricos com outros

cangaceiros. Já integrante do bando, desafiou suas normas mantendo relações com Gitirana. Seu

companheiro Português, ao saber da estória quis matá-lo, porém não recebeu o apoio de seu chefe

13
ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p.111-114.
14
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.19
15
Idem, p.77
197

Corisco. Este episódio teria ocorrido no início de julho de 1938, e teria gerado uma situação de

tensão entre os grupos de Corisco e Lampião, acampados no mesmo coito, provocando uma

ruptura entre os bandos. Lampião e Maria Bonita intervieram tentando uma solução conciliadora.

Maria Bonita mostrou-se a favor da eliminação de Cristina, e não contou com o apoio de Corisco,

que entendia que ela era livre para se relacionar sexualmente com quem lhe aprouvesse.

Ademais, era um assunto restrito aos dois (Cristina e Português), posição igualmente partilhada

por Lampião16.

Em suas memórias, Dadá recorda o diálogo que teria travado com Lampião para

evitar a morte de Gitirana. Atribui a culpa a Cristina argumentando que não valia a pena “Matar

por senvergonhice de mulher”; justifica que também era mulher e convivia com vários

cangaceiros e que nenhum deles a desrespeitou “Com ele eu não faço isso porque sou uma

mulher, ando sozinha no meio de todos.....Nunca achei um que se dirigisse a mim. E se dirigir eu

sei agir”.17

Na fala da depoente, fica evidente a transformação de Gitirana em vítima de assédio

sexual. Salienta que não teria resistido às “provocações” de Cristina, afinal ele era homem e ela

enquanto mulher comprometida deveria se comportar. Entretanto, Dadá a defende argumentando

que “Se ela fez isso é porque quem tem o que é seu, dar a quem quer, mas meu rapaz eu não

mato”.18 Fica explícito nestes trechos que Gitirana parecia ser muito querido no grupo, e que

talvez isso se explique por ser o violeiro do grupo o que lhe conferia alguns privilégios.

De acordo com essa versão a contenda teria sido contornada, e Cristina teria obtido a

chance de voltar para junto de seus familiares, o que não se concretiza em função de uma

16
ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo:Traço, 1985, p.162-167.
17
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.78.
18
Ibidem, p.78.
198

emboscada planejada pelo ex-companheiro e Luís Pedro que lhe tirara a vida quando estava a

caminho de casa.

Como toda regra tem sua exceção Maria Jovina, companheira de Pancada, manteve

relações com o cangaceiro Balão e nada lhe aconteceu.

O posicionamento de Corisco e Lampião mostra-nos que apesar de existir um código,

nem sempre a punição foi levada à risca. Além disso, não há casos de homens que tenham sido

condenados à morte por traírem suas companheiras. É sabido que os homens “pulavam a cerca”,

porém não foram punidos, nem mesmo quando traíram um companheiro do grupo, como foram

os casos de Bem-te-vi, Gitirana e Balão.

As questões assinaladas anteriormente nos mostram que não havia igualdade entre

homens e mulheres no bando. Quando se tratava de relações afetivas, a lealdade parece que não

era a moeda corrente, pois havia traição entre os próprios homens. Se a mulher consentisse, não

pensariam duas vezes em “trair” o companheiro.

A ex-cangaceira Sila, quando interrogada por nós a respeito do adultério no interior

dos bandos informou-nos que era difícil saberem se tinham sido traídas por seus companheiros,

uma vez que nem sempre os acompanhavam em suas andanças: “A mulher não sabia, era muito

difícil. O homem sim. (...)”19. Revelou em entrevista à Revista Trip, que foi diversas vezes traída

por Zé-Sereno e ao ser questionada, negou que tenha sentido ciúmes. Destacou em sua resposta

que sentiu vergonha com aquela situação: “Não, eu não tinha ciúme dele. Fiquei só com

vergonha, não sei......”20. Contudo, admitiu que ficou brava e discutiu com o companheiro.

Mas qual teria sido a punição para Zé-Sereno? De acordo com Sila, não teria passado

de uma discussão e uma utópica ameaça de deixá-lo: “(...) Depois eu xinguei, fiquei brava e disse

19
Depoimento de Ilda Ribeiro de Souza (Sila) ex-cangaceira, integrante do bando de Lampião, companheira do
cangaceiro Zé Sereno – Rio Claro –SP 26/01/2001.
20
Ibidem, p.9
199

que ia embora”21. A narrativa de Sila sugere que a mulher não tinha que aceitar passivamente a

traição do companheiro. Contudo, a punição masculina não passava disso. E o adultério feminino,

como era resolvido? Sila foi enfática ao definir a sentença para a mulher adúltera: “ Traiu. Ela

morre né. A mulher não pode trair cangaceiro de jeito nenhum (....) se a mulher traísse

morria....”. Estas palavras evidenciam que não existia igualdade entre homens e mulheres no

interior dos bandos.

Afinal qual era o comportamento do cangaceiro em relação às mulheres que

estavam fora dos bandos?

As diversas fontes consultadas indicam que os cangaceiros atacavam as mulheres

consideradas inimigas. Ou seja, mulheres de policiais (mãe, esposa e filhas), dos colaboradores

da polícia e as dos considerados traidores. As vítimas da volante eram, sobretudo, as cangaceiras,

mulheres de coiteiros e amigos dos cangaceiros.

Os relatos dos memorialistas sinalizam para práticas violentas e diferenciadas usadas

pelos cangaceiros e volantes contra suas vítimas, tais como: maus tratos, humilhações públicas

(nudez em público, raspar a cabeça), abuso sexual, prisão e mortes. Conforme esses relatos, os

cangaceiros mexiam principalmente com o orgulho das sertanejas. Faziam-nas ficarem nuas

publicamente. As sertanejas, depois de passar por tal situação, enclausuravam-se em suas casas.

Algumas mulheres enlouqueceram depois de terem sido submetidas a tal humilhação22.

Além dos maus tratos, os cangaceiros também faziam uso da violência sexual. Este

comportamento, porém, parece ter sido amenizado com a entrada da mulher no cangaço. Outra

prática recorrentemente utilizada por cangaceiros foi marcar suas vítimas a ferro em brasa

notadamente mulheres que tinham ligações com a polícia como ocorreu em 1932, na cidade de

21
ICASSATTI, M. e SGARIONI, M. Radical Xique-Xique. In: Revista Trip. São Paulo: TPM, Ano 01 nº 01, 2001,
p.9.
22
ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo:Traço, 1985, p-86-87.
200

Canindé do São Francisco (Sergipe). De acordo com o memorialista Antônio A. C. de Araújo23, a

prática de ferrar pessoas, sobretudo mulheres, teve início com Zé-Baiano (José Baiano), para

vingar o espancamento de sua mãe por soldados que buscavam informações a seu respeito.

Em História do Cangaço, a socióloga Maria Isaura P. de Queiroz24 sugere que o

comportamento de Zé-Baiano resultava da traição de Lídia, sua companheira. Esta mesma idéia

foi recuperada pelo cordelista Gonçalo Ferreira da Silva em folheto Zé- Baiano. O ferrador de

gente25. Neste cordel Lídia foi responsabilizada pelo comportamento assassino e bárbaro de Zé-

Baiano, conforme se evidencia na estrofe abaixo:

Depois que José Baiano


fora por Lídia traído
ficou na honra de macho
tão mortalmente ofendido
que ferrava as raparigas
feito um monstro enfurecido26

A memorialista e neta de Lampião, Vera Ferreira27, discorda desta interpretação

argumentando que a barbárie praticada pelo cangaceiro teria ocorrido em 1932, enquanto a morte

de Lídia deu-se no ano de 1935.

Os memorialistas Araújo28 e Ferreira29, baseados no depoimento do ex-cangaceiro

Zé-Sereno (que presenciou o ocorrido em Canindé), destacam que a invasão desta localidade

23
Diz o autor: “ Viu a testa da mãe com aquela depressão profunda e tomou a deliberação de agir do mesmo modo
com os soldados que tivessem o azar de cair em suas mãos, e na impossibilidade de prendê-los, faria isso com suas
mulheres. Mandou um ferreiro executar um ferro de marcação com as iniciais J. B.....” ARAÚJO, A. A C. de.
Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p-74-76.
24
A socióloga destaca que: “(...) Zé Baiano, companheiro de Lampião quase desde os primeiros dias, tornou-se
célebre pela mania de marcar suas iniciais a ferro em brasa no rosto das mulheres que possuía. Diz-se que se
vingava assim da traição de Lídia, sua primeira mulher”. QUEIROZ, M. I. P. de História do Cangaço. São Paulo:
Global, 1986, p.51.
25
SILVA, Gonçalo F. da Zé –Baiano. O ferrador de gente. Rio de Janeiro: Acad. Bras. de Literatura de Cordel, 2ª
edição, s/d.
26
Ibidem, p. 5
27
Diz a memorialista: “Muitos afirmam que Zé- Baiano começou a marcar mulheres com ferro em brasa após a
morte de sua própria companheira, Lídia, mas esta tese não tem fundamento. Os fatos que narramos aconteceram
em 1932, e Lídia, mulher de Zé-Baiano, só veio a falecer em 1935”. FERREIRA, Vera e ARAÚJO, A. A. C. de De
Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia Visual, 1999, p. 211.
201

não tinha nada a ver com dinheiro, mas um acerto de contas de Lampião com quatro mulheres

que lhe enviaram um bilhete desafiador quanto a sua desaprovação ao uso de cabelos curtos pelo

sexo feminino. De acordo com os memorialistas, este teria sido o motivo para que três destas

mulheres fossem punidas com o ferro em brasa. Diante deste quadro, algumas indagações nos

parecem muito pertinentes: teria realmente Lampião se deslocado para Canindé apenas para punir

suas desafiadoras? Será que Lampião perderia o seu tempo com fuxicos femininos, ou teria

outros motivos para invadir aquela localidade? O bilhete e o uso do cabelo curto não seriam um

artifício de Zé-Sereno para justificar este ato de barbárie? Por que este bilhete não aparece nas

obras historiográficas?

Parece-nos pouco provável que Lampião se mobilizasse até Canindé apenas pelos

motivos explicitados por Zé-Sereno. Além disso, é importante ressaltar que dentre as quatro

mulheres, os indícios sinalizam que apenas Anízia não tinha ligação direta com a polícia. Maria

Marques era irmã do soldado Vicente (aquele que espancara a mãe de Zé-Baiano), Izaura era

esposa do soldado Bilrinho e Natália esposa do soldado Maninho, que teria sido poupada da ação

violenta em função da intercessão de diversas pessoas por causa de seu estado avançado de

gestação.

Na narrativa de Zé-Sereno, o parentesco destas mulheres com policiais aparece como

uma mera coincidência. A presença de Maria Marques, irmã do soldado Vicente, revela-se uma

28
O autor ressalta que: “Quanto ao ato de ferrarem as mulheres, disse-nos Sereno que ele e mais um companheiro
foram mandados por Lampião para prenderem o grupo de mulheres que os observavam (...) Lampião tinha recebido
uma carta das mulheres dizendo que sabiam que ele não gostava de cabelos curtos, mas que os cabelos eram delas,
e elas cortavam do jeito que queriam” ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço,
1985, p.78-79
29
Referindo-se ao episódio a autora ressalta: “ Zé-Sereno, que participou de todos os acontecimentos desse dia, nos
contou que o motivo que levou Lampião a invadir Canindé não tinha nada a ver com dinheiro ou qualquer outro
bem material. (...) havia chegado até ele uma carta desafiadora, escrita por algumas mulheres residentes nessa
vila, dizendo que sabiam que o “Rei do Cangaço” desaprovava o uso de cabelos curtos pelas mulheres, mas que
faziam pouco caso de sua opinião, pois os cabelos eram delas e elas cortavam da forma que bem entendiam”.
FERREIRA, Vera e ARAÚJO, A. A. C. de De Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia Visual, 1999.p.210-211.
202

alegre surpresa para Zé-Baiano, que se viu num momento oportuno para revidar a violência

cometida contra sua mãe.

O coronel José Rufino (da polícia Pernambucana), um dos maiores perseguidores de

Lampião, tinha uma outra opinião a respeito dos acontecimentos em Canindé. Em depoimento à

socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz30, afirmou que o motivo para ferrar estas mulheres

não teve nada a ver com o corte de cabelo. Rufino relata que “tinha uma conversa na caatinga

de que ele costumava ferrar essas mulheres porque Lampião não gostava de cabelo curto para

mulher. Não. Não era por isso purque D. Maria Marque (uma das que ele ferrou) nunca cortô o

cabelo(...). Muita história que contam aí de Lampião não é verdade, não é verdade...”31. Fica

implícito em suas palavras que tal prática fez parte de um ritual de vingança dos cangaceiros

contra a volante e estava associado ao cangaceiro Zé-Baiano.

O provérbio: “Olho por olho, dente por dente” foi constantemente empregado por

cangaceiros e volantes. Toda violência cometida contra as cangaceiras (mortas ou feitas

prisioneiras), era descontada naquelas mulheres que tinham alguma ligação com a polícia. Este

mesmo comportamento era compartilhado por soldados. Assim, o espancamento da mãe de Zé

Baiano foi vingado em Maria Marques. A morte de Maria Bonita e Enedina (no cerco em Angico

–Sergipe) foi vingada por Corisco, com a eliminação da esposa e da filha do suposto delator de

Lampião32.

Em síntese, estas práticas representavam o jogo de interesses e de poder entre

cangaceiros e policiais. O motivo maior que teria levado o uso do ferrete nas mulheres de

30
QUEIROZ, Maria I. P. de. Os cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades, 1977. P.154.
31
Ibidem, p.154.
32
Sobre este assunto consultar: MACHADO, M. C. M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense,
1978, p. 132-134, este episódio foi relatado à autora pela ex-cangaceira Dadá, NASCIMENTO, J. A. Cangaceiros,
coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998, p. 281, LIMA, E. de. O mundo estranho dos cangaceiros. Salvador:
Itapoã, 1965, p.277, QUEIROZ, M. I. P. de. História do cangaço. São Paulo: Global, 1986, p. 58 e QUEIROZ, M. I.
P. de. Os cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 121-122.
203

Canindé poderia ser pensado como o desejo de revidar uma agressão sofrida por membros da

família de cangaceiros e também uma ação pedagógica de alcance mais amplo. Marcar a ferro

significava dizer que não adiantava recorrer aos canais legais da justiça, pois eles não

funcionavam. Além disso, as marcas demonstravam que toda e qualquer agressão sofrida por

cangaceiros e seus familiares seria devidamente revidada.

Em nossas leituras, notamos que as agressões policiais faziam-se tão violentas

quanto às dos cangaceiros. Tal violência pode ser evidenciada no depoimento da ex-cangaceira

Dadá à historiadora Maria Cristina Matta Machado33, no qual justificava o motivo pelo qual

lutava com tanta tenacidade. Tinha medo de ser presa pelos policiais e sofrer em suas mãos. Este

medo transparece na fala da ex-cangaceira:

Nem queira saber o que faziam com as “bandidas”como nos chamavam. Viva ou
morta, era um terror. Os “macacos”34 punham os cães para devorarem a gente e
faziam outras barbaridades. Cortavam certos lugares da gente e apresentavam
num vidro de álcool. Se tava viva aí era aquela falta de respeito. Por isso,
quando eu ouvia um barulhinho de nada no mato, uma folha estalando, ou a
palavra macaco, virava uma fera, atirava, fugia, pulava qualquer cerca, ficava
valente, mas era de medo – confessou Dadá.

O memorialista Araújo, com base nos depoimentos orais de ex-participantes,

reconstitui alguns atos de barbárie praticados pelos policiais contra as cangaceiras. Otília (Otília

Maria de Jesus) quando foi presa pela polícia, sofreu abuso sexual e espancamento. Toda noite

era retirada da cela e obrigada a ter relações sexuais com os soldados, e antes de voltar para a

mesma, era espancada. 35

Outro caso foi o da cangaceira Neném36, que depois de morta teve seu corpo

violentado sexualmente por cães que foram estimulados pelos soldados a praticar tal ação. Outro

comportamento bárbaro e insano foi cortar a vagina de uma cangaceira não identificada e expô-la

33
MACHADO, M.C.M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978, p. 90
34
Termo usado pelos cangaceiros para referir-se aos policiais.
204

como um troféu macabro37. Estas informações foram fornecidas ao pesquisador Araújo por um

ex-soldado.

A ex-cangaceira Sila também relata em suas memórias a barbárie cometida pelos

policiais contra as cangaceiras, destacando que: “A macacada era demais, ninguém tinha

sossego. Eles tinham costumes baixos; quando matavam um cangaceiro, ficavam zombando,

levavam à delegacia, mostravam o corpo, exibiam para a população. Quando matavam uma

cangaceira, eles se serviam dela, já morta. No cangaço eles não faziam isso, apesar das histórias

mal contadas, certas baixarias, eles não aprovavam. As mulheres do cangaço eram

respeitadas.”38

Cabe destacar que as ações bárbaras e as atrocidades cometidas de ambos os lados

assinalam uma disputa psicológica entre cangaceiros e volantes. Os primeiros para mostrar as

conseqüências de uma traição, e os segundos para mostrar o que aconteceria à mulher que

quisesse enveredar pelos caminhos do cangaço. Como vemos, a sertaneja vivia no meio de um

fogo cruzado entre cangaceiros e volantes.

Ser apanhada pela polícia significaria sofrer todo tipo de violência: abusos sexuais,

espancamentos e tortura. Por isto, muitas cangaceiras preferiram morrer nos confrontos a cair

nas mãos da polícia. Entretanto, algumas optaram por entregar-se às autoridades sob garantia de

que teriam suas vidas preservadas e receberiam anistia federal. O quadro que se segue sintetiza as

informações de algumas mulheres que foram presas em combate ou se entregaram às autoridades.

35
ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p. 313 e LINS, D. Lampião- O
homem que amava as mulheres. São Paulo: Annablume, 1997, p-108-109.
36
ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p. 313.
37
Idem, 314-315.
38
Sobre este assunto consultar as memórias da ex-cangaceira: SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra e paz.
Recife: UFRPE, 1995, p. 26 e 97 e Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo:
Ofic. Cultural Monica Buonfiglio, 1997, p.142.
205

Quadro 2 - Cangaceiras presas no período 1930-1940.

Ano Nome Motivo da prisão Autor da prisão


1932 Lica Maria da Conceição Confronto com a polícia Policiais

1934 Otília Maria de Jesus Confronto com a volante baiana Volante de José Rufino
Recebeu anistia em 1940

- Sabina da Conceição Não há referências -

1935* A cangaceira é citada Confronto com a volante do sargento Volante do sargento


como “amante” do Vicente Marques, no Raso de Catarina – Vicente Marques
cangaceiro Jurema Bahia

1936** Inacinha Confronto com a polícia alagoana Volante alagoana

1937*** Joanna Gomes dos Santos Entregou-se à polícia sob garantia de Volante alagoana
– Moça anistia

1938 Maria de Pancada Entregou-se à polícia sob garantia de -


anistia
- Ana Entregou-se à polícia de Geremoabo sob -
garantia de anistia

1940 Ilda Ribeiro de Souza - Entregou-se à policia da Bahia sob garantia -


Sila de anistia

1940 Dulce Silva Entregou-se à policia da Bahia sob garantia -


de anistia

1940 Dadá- Sérgia da Silva Confronto com a polícia Volante José Rufino
Chagas

Fontes: ARAÚJO, A A C de. Lampião as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985; O Estado de S. Paulo-
1930-1940 e Correio da Manhã - 1930-1940.
*Notícia publicada em: O Estado de S. Paulo, 12/03/1935, p. 7.
** Notícia publicada em Correio da Manhã, 9/10/1936, p. 2.
*** Notícia publicada em: Correio da Manhã, 14/04/1937, p. 6.

Ao relembrar sua experiência no cangaço, Dadá traz novos elementos para pensarmos

o uso da violência pelos cangaceiros em relação a suas companheiras. Vimos anteriormente, que

as cangaceiras que ousaram praticar o sexo livre foram barbaramente assassinadas por seus

companheiros. Tal comportamento evidencia o domínio masculino sobre o corpo feminino. A

mulher no cangaço pode ser vista como uma propriedade, já que algumas foram privadas do
206

convívio com seus familiares abruptamente. Além do poder de vida e morte sobre as

companheiras, a prática de espancamento também traduzia a ação violenta de alguns homens. O

impedimento de mulheres solteiras no grupo, ou seja, a obrigatoriedade de acompanharem um

cangaceiro também se configura numa forma específica de violência, pois na ausência (morte) do

companheiro tinham que unir-se a outro cangaceiro independentemente de seus sentimentos. Tal

perspectiva sinaliza a existência de uma violência simbólica, que apesar de não desencadear

conflito direto entre homens e mulheres, subordinava estas últimas aos desejos do masculino.

Entretanto, esta conduta era explicada como uma forma de manutenção da ordem e da segurança

dos grupos. A presença de uma mulher solteira no grupo poderia provocar sérios conflitos entre

os componentes masculinos pela disputa de seu “amor”. Apesar desta conduta houve exceções; a

cangaceira Durvinha recebeu permissão para voltar para casa depois da morte de seu

companheiro Virgílio.

O cangaceiro Gato costumava espancar sua companheira Inacinha, como bem lembra

Dadá, em seu depoimento. Refere-se ao comportamento contraditório do cangaceiro em relação a

Inacinha, embora ressalte que as relações em sua maioria eram pautadas pelo respeito e pela

amizade: “Todos eles tinham amizades a suas mulheres... Só Gato que era danadinho, mas

gostava muito de Inacinha.....no dia que se zangava batia pra valer mesmo” 39. Apesar de se

referir à prática violenta do cangaceiro em relação a sua companheira, ameniza o seu

comportamento ao qualificá-lo como “danadinho”, realçando que apesar de explosivo

“...gostava muito de Inacinha”. Tal perspectiva sinaliza que o “amor” justificava tal ação, e que

sentimentos contraditórios embasavam esta relação de poder.

39
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.38
207

Enfatiza em outro momento de sua fala que “Gato era perigoso”40. Refere-se ao

episódio que tomado por um imenso sentimento de ódio, cometeu uma carnificina em Piranhas

com o intuito de vingar a prisão de Inacinha, que se encontrava em estado avançado de gestação.

Narra com detalhes o horror praticado pelo cangaceiro: “Gato tomou a frente, correndo...Todo

mundo que encontrava, ele matava. Ele queria um asseiro. Nós encontramos um homem no chão,

um senhor com os filhos do véio Virgínio....o coração do véio ainda tava batendo do lado de

fora. Era o senhor Adel, um homem muito bom. Gato ficou maluco(....) deu cinco tiros no recém-

nascido mas não pegou nenhuma bala e a rede ficou pegando fogo.....”41.

Ao afirmar que “só Gato......” agia dessa forma, Dadá passa a imagem de que as

relações eram harmoniosas e que havia alguns casos esporádicos de violência contra a mulher no

grupo. Faz questão de ressaltar que Corisco não aprovava o comportamento de Gato. Entretanto,

não se intrometia na relação porque ao homem cabia decidir o que fazer com sua companheira.

A postura assumida pela ex-cangaceira ao rememorar suas vivências no cangaço demonstra que

buscava construir uma imagem positiva de Corisco e de seu grupo. Em vários trechos de seu

depoimento procura diferenciar o bando do companheiro dos outros, realçando sua tolerância

frente às diversas normas impostas às mulheres.

Apesar deste quadro de barbárie, podemos identificar um consenso entre os diversos

especialistas sobre o papel positivo desempenhado pela entrada da mulher nos bandos. Alguns

afirmam que elas promoveram uma relativa “civilidade” em suas relações de convívio, cujo

desdobramento foi uma significativa diminuição da violência cometida pelos cangaceiros.

O ato de revidar uma agressão sofrida era comum tanto para cangaceiros, como para

policiais. Tomamos como evidência de revide dos cangaceiros as notícias intituladas: Vingança

40
Idem, p.66
41
Op. cit , 1989, p.66-68.
208

de cangaceiros42 e Novas Proezas de Cangaceiro43 publicadas pelo jornal O Estado de S. Paulo.

A primeira, publicada em 16 de julho de 1937, revelou as retaliações que recaíram sobre o

Sargento Crispim, em função de ter matado há meses atrás dois cangaceiros, e como

conseqüência teve os braços e as pernas decepadas por integrantes de bandos não identificados

na notícia.

A segunda matéria foi publicada uma semana após as mortes de Lampião e Maria

Bonita, e mais nove cangaceiros, em Angico, Sergipe. Revelou o episódio da vingança de

Corisco. Nesta notícia, o interventor de Alagoas recebeu informações de que Corisco atacou a

fazenda de Patos, em Piranhas (divisa de Alagoas e Sergipe), de propriedade do sr. Antônio Brito,

“matando 6 pessoas da família. (....) As cabeças das víctimas da fazenda de Patos, foram

enviadas por “Corisco” para o prefeito de Piranhas”. Como se não bastasse matar o vaqueiro,

Corisco degolou sua esposa e sua filha, como conseqüência das mortes de Maria Bonita e

Enedina, como já mencionamos anteriormente.

A notícia informa, que a propriedade de Patos pertencia ao avô da esposa do capitão

João Bezerra, comandante da coluna que abateu Lampião e os outros em Angicos. Esta

informação sugere que a atrocidade praticada por Corisco se configurava numa ação punitiva

em retaliação ao assassinato dos onze cangaceiros em Angicos.

A historiadora Maria Cristina M. Machado44 menciona em sua obra, com base no

depoimento da ex-cangaceira Dadá, o episódio da vingança de Corisco em Piranhas. Descreve

que Corisco “Estava furioso e resolveu matar o vaqueiro Domingos e toda sua família,

acreditando ter sido ele o delator de Lampião. Foi até a cidade de Piranhas, “assaltou a

fazenda Patos, de propriedade de Antônio de Brito, avô da esposa do tenente Bezerra”(...) Não

42
O Estado de S. Paulo, 16/07/1937, p.7.
43
O Estado de S. Paulo, 4/08/1938, p.1.
44
MACHADO, M. C. M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978, p. 132-134.
209

satisfeito, pegou mais dois filhos do vaqueiro, gritando: - agora as mulheres! – Foi a vez da

mulher e da filha do vaqueiro: Guilhermina Nascimento Ventura e a jovem Valdomira”45.

De acordo com a autora, as cabeças foram enviadas ao capitão Bezerra,

acompanhadas do seguinte bilhete, conforme depoimento de Dadá: “ Faça com essas cabeças

uma fritada. Matei duas mulheres para vingar a morte das duas que foram assassinadas em

Angico”46. A atitude de Corisco é reveladora da extensão da violência praticada por cangaceiros e

volantes. A foto abaixo expressa a cena tétrica da exposição das cabeças dos cangaceiros mortos

em Angicos:

Foto 14 – Cabeças dos cangaceiros mortos em Angicos-SE - 1938.


Despojos do bando de Lampião recolhidos no combate final de Angicos,1938
A cabeça do chefe está no plano mais baixo, tendo acima a de Maria Bonita.
Autor não divulgado. Cortesia da família do coronel João Bezerra á Frederico Pernambucano de
Mello. Fonte: MELLO, Frederico P. de Quem foi Lampião. Recife/Zürich: Editora Stahli, 1993,
p.128

45
Ibidem , p. 132
210

A imagem reproduzida acima indica a dimensão da violência que envolvia

cangaceiros e volantes. Visualmente nota-se a deformação de algumas cabeças, sobretudo a de

Lampião. As cabeças foram dispostas uma ao lado da outra compondo um cenário de barbárie e

de terror. Ao redor foram depositados os diversos objetos pertencentes aos cangaceiros mortos,

dentre eles: duas máquinas de costura, bornais, chapéus, armas, punhais, cartucheiras, além de

outros objetos pessoais. Também há ao lado de cada cabeça um papel indicando o nome de cada

um deles.

O quadro de horror evidenciado acima foi devidamente justificado pelo Capitão

Bezerra em entrevista fornecida ao Correio da Manhã, em outubro de 193847. Ao ser indagado

sobre a degola dos cangaceiros, justificou-a em função da distância a ser percorrida e da

impossibilidade de transportar os referidos corpos. Acrescenta que priorizou o transporte dos

soldados feridos ou mortos em combate. Argumenta também que era necessário provar que

Lampião e seu bando teriam sido definitivamente eliminados.

A degola de cangaceiros não era uma novidade, pelo contrário, em ocasiões

anteriores esta prática já teria sido utilizada. A imagem abaixo retrata a expressão de susto e

sofrimento dos cangaceiros Mariano, Pai Veio e Zeppelin, sugere inclusive que presenciaram o

momento da degola. Nesta fotografia, as 3 cabeças foram identificadas e dispostas sobre um

caixote juntamente com seus pertences. Já discutimos no início do texto as reações de indignação

que esse cenário tétrico causara.

46
MACHADO, M. C. M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978, p. 133
211

Foto15 - Subgrupo de Lampião destroçado pela volante


baiana comandada pelo sargento José Rufino em 25 de
outubro de 1936.
Fonte: MELLO, Frederico P. de Quem foi Lampião.
Recife/Zürich: Editora Stahli, 1993

No âmbito do cangaço, as mulheres também foram mortas nos combates travados

entre volantes e cangaceiros. O quadro 3 sistematiza as informações colhidas na imprensa e nas

diferentes fontes consultadas.

47
Correio da Manhã, 5/10/1938, p. 3
212

Quadro 3 - Cangaceiras mortas no período de 1930-1940


Ano Nome Motivo Autor

1932 Bídio Confronto com a polícia Tenente José Joaquim

- Adelaide Parto -

Não há Áurea Confronto com a polícia Odilon Flor, comandante


referência pernambucana da volante dos Nazarenos

1933* “mulher de Antonio da Confronto com a polícia -


Engrácia”

1933** “morte de uma mulher na Confronto com a polícia -


Lagoa do Lino”

1934/1935 Lili Adultério Moita Brava - seu


companheiro

1935 Lídia Adultério Zé-Baiano -seu


companheiro

1936 Neném Confronto com a polícia Policiais

1937 Rosinha Recusou unir-se a outro Cangaceiro Pó Corante


cangaceiro (não é o mesmo que se
deitou com Lili)

1937*** “mulher do cangaceiro Confronto com a polícia Odilon Flor


Manuel Moreno”

1938 Maria Bonita - Maria Confronto com a polícia Volante de José Bezerra
Gomes de Oliveira em Angico - Sergipe

1938 Enedina Confronto com a polícia Volante de José Bezerra


em Angico - Sergipe

1938 Cristina Adultério Cangaceiros: Luís Pedro,


Juriti e Candieiro

1940 Maria dos Santos Confronto com a polícia Volante de Odilon Flor
Mariquinha
Fontes: ARAÚJO, A A C de. Lampião as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985 e O Estado de S. Paulo – 1930/1940 e
Correio da Manhã – 1930/1940.
* Correio da Manhã – 25/03/1933, p. 8.
** Correio da Manhã – 19/11/1933, p. 8.
*** Correio da Manhã – 26/06/1933, p. 3.
213

A violência tanto de cangaceiros quanto das volantes sacrificaram mulheres de ambos

os lados. Houve perdas e prisões de mulheres cangaceiras, assim como de mulheres inocentes que

se viam no meio de uma “guerra” entre cangaceiros e volantes, cujos indícios aparecem

registrados em O Estado de S. Paulo.

O resultado da violência cometida pelos cangaceiros contra as mulheres nordestinas

pode ser evidenciado nas notícias “O bando de Lampião”48 e “Repressão ao cangaço” 49


,

veiculadas respectivamente em 28 e 29 de maio de 1936. Estas informam que cinco mulheres

foram assassinadas pelos cangaceiros na região de fronteira entre Pernambuco e Paraíba. Foram

contabilizadas duas mortes no primeiro estado e três no segundo.

A violência disseminada pelos cangaceiros provocou o ódio em muitas famílias

sertanejas que foram por estes vitimadas. A união destas famílias representou para muitos

sertanejos a oportunidade de vingar a morte de um ente querido, ou a própria violência sofrida.

Assim, no povoado de Nazaré, em Pernambuco, a população masculina uniu-se na perseguição

aos cangaceiros formando mais tarde a famosa volante conhecida por Nazarenos.

A antropóloga Luitgarde O. Cavalcanti Barros, discute em sua obra A derradeira

gesta. Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão50 o universo vivido por cangaceiros e

moradores do povoado de Nazaré. Este povoado foi construído por meio da união de várias

famílias que se ligaram por laços de consangüinidade, casamento ou compadrio. Destacam-se as

famílias: Jurubeba, Ferraz, Flor, Lira, Souza, Soriano Lopes, Nogueira, Gomes, Capistrano,

Euzébio, Barbosa, Freire, Alexandre, Marques dos Santos, Tomaz, Silva, Leite de Sá, Araújo,

Marcolino e Militão.

48
O Estado de S. Paulo, 28/05/1936, p.6.
49
O Estado de S. Paulo, 29/05/1936, p.6
50
BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro:
Mauad/Faperj, 2000.p.97
214

A autora estuda a história de Ferreiras e Nazarenos por meio de categorias como

honra e coragem. Procura analisar o significado destas enquanto elementos de uma articulação

mais ampla com outros códigos que constituem a totalidade de uma cultura sertaneja.

Enfatiza que os sertanejos destacaram-se em seu meio social por serem “pessoas

direitas, de palavra, cumpridoras dos deveres, respeitadores do alheio.”51 Estes valores

representam para o sertanejo, independentemente da classe social a que pertença, sua concepção

de mundo e critérios de avaliação de si próprio e dos outros.

Barros nos informa que a família de Lampião (Virgolino Ferreira da Silva) mudou-se

para o povoado de Nazaré no ano de 1917. Dois anos depois, Virgolino teria desafiado seu

padrinho João Flor num confronto verbal. Tal confronto, de acordo com a antropóloga, teria

provocado uma ruptura do código de respeito entre padrinhos e afilhados, rompendo o que se

constituia num dos principais “fatores de equilíbrio e coesão social na estrutura sertaneja da

época”.52 Salienta, que a disputa entre Nazarenos e Ferreiras não foi uma disputa pela

propriedade da terra ou outro bem material, mas pela sobrevivência de uma Vila, bem como a

preservação de suas famílias e de seu modo de vida, envolvendo uma questão de honra. 53

A antropóloga enfatiza que Nazaré representava para seus moradores um projeto de

vida longe da violência que reinava no sertão do Nordeste. Como parte deste projeto de “bem

viver” os moradores proibiam a circulação de pessoas armadas no povoado, sobretudo nas feiras.

Lampião, de acordo com Barros, desobedeceu esta ordem, gerando vários conflitos com os

moradores daquela localidade, que sonhavam com um projeto de paz.

O estopim dos conflitos entre moradores (nazarenos) e Lampião ocorreu em 1923,

quando este invadiu o povoado. Os moradores uniram-se para defender suas vidas e a de seus

51
Ibidem, p. 21
52
BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro:
Mauad/Faperj, 2000. P.18
215

entes queridos. Daí em diante os Nazarenos não tiveram mais sossego. Tiveram que pegar em

armas para defender seu projeto de paz.

No ano de 1925 amplia-se a luta entre Nazarenos e Lampião. Esta passa de uma

esfera particular para uma pública, com a criação oficial da volante dos Nazarenos: “ Atendido o

pedido, em fevereiro de 1925 o recrutamento foi realizado em Nazaré, com distribuição de armas

e munição entre os novos recrutas, escolhidos entre a juventude nazarena de treze a vinte e
54
quatro anos” Agora, os Nazarenos não lutavam apenas contra Lampião, mas contra todo o

cangaço. Eles foram um entre muitos grupos de homens que se uniram para vingar a morte ou a

agressão sofrida por familiares.

O revide de parentes também foi veiculado nas páginas do jornal O Estado de S.

Paulo em 26 de junho de 1936, sob título Represália de parentes das vítimas de bandoleiros55.

Nesta, um grupo formado por seis homens armados, todos parentes de vítimas dos cangaceiros,

une-se em Sergipe, e lança-se no encalço dos bandoleiros. O resultado da empreitada resume-se

na morte de quatro cangaceiros, entre eles Zé-Baiano. O fato aconteceu em Alagadiço, e estes

seis homens foram vistos como heróis, pois mataram um dos mais temíveis cangaceiros, Zé-

Baiano, o ferrador de gente.

Para enfatizar a diferença existente entre estes homens e os cangaceiros, a notícia

informa que todos tinham uma “boa aparência”, e revelaram-se “homens de coragem”. Aqui,

estes homens não foram vistos como assassinos, mas como justiceiros qualificação que os

eximiram de qualquer culpa perante a lei.

53
Ibidem, p. 23
54
BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro:
Mauad/Faperj, 2000. P. 168.
55
O Estado de S. Paulo, 12/06/1936, p.2. “ Um grupo de homens armados de nomes (...) todos parentes de várias
pessoas assassinadas pelos bandidos que infestam os sertões do nordeste, acabam de dar fim ao mais temível
bandoleiro José Bahiano e mais 3 dos seus companheiros (...) Os componentes do citado grupo acham-se na
chefatura, prestando declarações e expondo armas e objetos encontrados em poder dos bandidos. Todos tem boa
aparência e revelam ser homens de coragem.”,
216

Os sertanejos possuíam um código moral próprio, no qual vingar a honra da família

constituía-se numa prática comum e perfeitamente aceita entre seus membros, e fazia parte de seu

universo cultural. Este era marcado pelos flagelos climáticos (secas e enchentes), pelo descaso

das autoridades públicas frente às condições miseráveis em que a população se encontrava, pelos

mandos e desmandos dos coronelismo local, que impunha a submissão daqueles por meio da

força. Enfim, as condições sociais, políticas, econômicas e culturais do Sertão acabaram por

engendrar relações e formas de sobrevivência muito particulares àquela sociedade.

Francisco Monteiro realça que (...) o tosco mundo sertanejo ensinara um valor

próprio de viver, carregado de um comportamento moral ímpar, não se permitindo levar insultos

ou derrotas para junto do seio da família ou junto de amigos mais próximos (...). O mais

importante era a honra lavada para que não fosse carimbado como um homem socialmente

desprezado56. Neste trecho, fica explícito que a vingança para o homem sertanejo se configurava

numa forma de adquirir respeito e reconhecimento em seu meio.

O historiador Eric Hobsbawm argumenta que a prática do terror é mais importante

para o bandido-vingador do que a amizade dos pobres. Lembra, ainda, que Lampião se

considerava um defensor da “moralidade sexual. Os sedutores eram emasculados, os bandidos

proibidos de violar mulheres...” 57.

Salienta que o terror58 faz parte da imagem do bandido, e que esta se mistura com

certas características do ladrão “nobre”. O bandido é essencialmente símbolo da força e da

56
MONTEIRO, Francisco Roberto Pedrosa. O outro lado do cangaço: As forças volantes em Pernambuco 1922-
1938. Recife/PE: Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 2002. Dissertação (Mestrado em História).
57
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 58
58
Hobsbawm destaca que: “ A violência excessiva e a crueldade são, portanto, fenômenos que só coincidem com o
banditismo em certos pontos. Não obstante, são suficientemente significativos para exigirem alguma explicação
como fenômeno social (O fato de um ou outro bandido ser psicopata é irrelevante; a rigor, é improvável que muitos
bandidos rurais sofram perturbações psicológicas)” .58 HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p
60.
217

vingança59. Esta postura violenta se justifica na opinião do historiador, pelo fato de que “a

crueldade é inseparável da vingança, sendo esta uma atividade inteiramente legítima para o

mais nobre dos bandidos”60, ou seja, a violência simboliza poder61, a morte e a tortura são

instrumentos afirmativos do poder pessoal.

Argumenta que a violência ultrapassa os limites aceitos convencionalmente. Isso

ocorre mesmo em sociedades habituadas à violência durante períodos de “rápida transformação

social,” nas quais os mecanismos “tradicionais de controle social” são destruídos. Referindo-se

ao fenômeno de rixas familiares, destaca que possuíam freios próprios, ou seja, uma vez

realizada a vingança que permitiam as duas famílias ficarem quites, fazia-se um acordo para que

tal prática não prosseguisse. No caso de Lampião isto não ocorre, pois ele não realiza a vingança.

Ou seja, as “interrupções do mecanismo costumeiro para solução de conflitos podem, entre

outras coisas, multiplicar o número de bandidos”62, e os litígios desta ordem constituem, na

maioria dos casos, o ponto de partida para a carreira de um cangaceiro.

59
O historiador ressalta que “ O banditismo, como vimos, cresce e toma proporções epidêmicas em épocas de tensão
e desagregação social”, argumenta que a violência e a crueldade são características inseparáveis da vingança.
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 64.
60
Op cit, p. 60-61.
61
Grifos meus.
62
Idem, p. 63.
218

Considerações Finais

Ao longo dessa dissertação, procuramos recuperar, a partir dos diversos

materiais coletados e da historiografia, indícios que nos permitissem reconstruir as diversas

representações femininas engendradas no universo do cangaço, na tentativa de resignificar a

experiência de algumas mulheres, e de desmitificar o estereótipo masculinizado atribuído à

cangaceira.

Em nossas análises, destacamos as diferentes facetas femininas criadas espaço do

cangaço a partir dos vários papéis desempenhados pelas mulheres no interior dos grupos.

Dentre eles, a da companheira, que simbolizava, de certa forma, a “cumplicidade” entre

homens e mulheres numa relação convencional, na qual cabia à mulher cuidar do

companheiro e seguí-lo nas variadas circunstâncias. Deve-se enfatizar que em alguns casos

as relações construídas no interior do banditismo foram marcadas pelo uso excessivo da

violência.

O tratamento dos cangaceiros feridos nos confrontos com as forças policiais

constituía-se numa outra prática da cangaceira, ou seja, a atividades de enfermeira. As ervas

medicinais e os emplastos diversos foram os principais remédios utilizados. Cabe lembrar que

os homens eram profundos conhecedores das propriedades das plantas, e já faziam uso delas

há muito tempo, não se constituía, portanto, numa tarefa exclusivamente feminina.

A costura e o bordado foram algumas das atividades praticadas pelas mulheres no

interior dos bandos, contudo há indícios nas fontes de que Lampião também sabia lidar com a

máquina de costura. O aperfeiçoamento dessas atividades foi responsável em parte pela

singularidade da indumentária dos grupos.

A presença feminina na invasão de povoados ou nos confrontos com a polícia

conferiu às cangaceiras o estereótipo de mulher belicosa, bandida e perigosa. É importante


219

ressaltar que essas mulheres não lutavam por uma causa, e que estavam ali, em alguns casos,

por opção e porque desejavam aquela experiência de vida; outras porque foram incorporadas

à força. Entretanto, a cangaceira Sila, em suas memórias, prefere recriar o cangaço a partir

de uma perspectiva positiva, associando-o à luta do trabalhador rural sertanejo contra o

latifúndio, construção que justifica e reitera a condição de vítimas do meio, alimentando o

mito da heroína-bandida.

Ao estudarmos o cangaço e a peculiaridade da presença feminina, notamos que

apesar de todas as adversidades do meio e da violência a que estavam expostas, essas

mulheres se preocupavam com o embelezamento do corpo e com a representação de sua

imagem. Além disso, não encontramos nas fontes pesquisadas homicídios atribuídos às

mulheres. Há indícios de que participavam da invasão de povoados e cidades, quanto à prática

da violência, não há referências.

Podemos concluir que foram companheiras, mas também ocuparam papéis

centrais em alguns momentos, como exemplificam os casos de Maria Bonita, que exercia

forte influência sobre as práticas de Lampeão; o da Dadá, ao assumir o comando do grupo de

Corisco, no momento em que este ficou impossibilitado e até mesmo Sila, que após o término

do cangaço, assumiu o papel de provedora do lar a partir do trabalho com a costura e

bordados.

Discutimos no decorrer do texto algumas normas que visavam manter a

organização do grupo, e as que cerceavam o comportamento das cangaceiras em seu interior.

Dentre elas, destacamos os desfechos trágicos de algumas mulheres, que independentemente

das implicações e punições, burlaram os códigos praticando o sexo livre. Os casos de Lídia,

Lili e Cristina evidenciam a violência praticada contra a mulher, e reforçam o poder de vida e

morte depositada nas mãos de seus companheiros. A sentença aplicada nesses casos variava

de acordo com a personalidade do cangaceiro. Esses casos reafirmam que as relações no


220

interior do cangaço eram marcadas, sobretudo, pelo medo e pela violência. Estes aspectos

não apareceram na cobertura da imprensa.

A leitura de O Estado de S. Paulo e do Correio da Manhã nos mostrou que as

mulheres foram qualificadas de forma homogênea como criminosas e bandoleiras, desvelando

apenas seu lado masculinizado, ou então como objetos sexuais, descritas como amantes e/ou

companheiras dos homens, e também como números, sempre de modo depreciativo. A

postura assumida pelos periódicos acabava por ocultar os medos, anseios e aspirações,

encobrindo a própria condição feminina e o ser mulher criado no universo do cangaço.

A imprensa popular, literatura de cordel, intensamente trabalhada ao longo do

texto, recriou a cangaceira de forma mítica, num misto de heroína e de bandida, caracterizada

pela personalidade forte e pela coragem, a companheira bela, sensual e dedicada, a amante

vaidosa, a aventureira, a enfermeira, enfim, aborda de modo positivo essa experiência, e realça

os traços femininos da cangaceira.

As fotografias também retratam a feminilidade das cangaceiras, evidenciando suas

preocupações com o embelezamento do corpo, com a aparência e com a postura. Salientam a

beleza de seus trajes, o uso de vestidos apropriados para o dia-dia na caatinga, e outros para

participar dos bailes organizados pelos cangaceiros, além do significativo apreço por jóias e

apetrechos diversos, como lenços, presilhas, bornais coloridos, enfim, aspectos que compõem

um perfil próprio das cangaceiras.

As análises destes diferentes materiais mostram que as práticas e a representação

feminina no cangaço foram variadas, e que a mulher engendrada nesse espaço não tinha um

perfil único. Portanto, para compreendê-las em seu universo é preciso considerar as suas

peculiaridades, desde o ingresso até o desempenho com armas de fogo, e a do meio marginal

em que estavam envolvidas.


221

É significativo realçar que após o término do cangaço, as mulheres

(re)construíram suas vidas conforme os parâmetros sociais vigentes, ou seja, ocuparam os

papéis de mães, donas-de-casa e algumas delas, exerceram inclusive o trabalho fora do âmbito

doméstico.
222

APÊNDICES

Os quadros abaixo sintetizam todas as informações encontradas sobre a

participação feminina no cangaço, nas páginas dos periódicos paulista e carioca,

respectivamente O Estado de S. Paulo e Correio da Manhã, no período de 1930 a 1940.

APÊNDICE - A

Participação feminina no cangaço, matérias de O Estado de S. Paulo, 1930-1940.

Data Pag. Título e Histórico Tratamento dado pelo Jornal


29/07/1933 4 As proezas de “Lampeão”. São mencionadas como:
Refere-se à participação de três “3 verdadeiras megéras”
mulheres no assalto a cidade de Casa
Nova – Bahia. Estas pertenciam ao
bando de Lampião
14/10/1933 6 O bando de “Lampeão”. São mencionadas como números:
Refere-se à invasão do grupo de Azulão “quatro homens e duas mulheres”
aos municípios de Jacobina e Monte
Alegre. Menciona a participação de
duas mulheres
01/11/1933 5 No encalço de “Lampeão”. São mencionadas como números:
Refere-se à movimentação de Lampião “cincoenta homens e uma mulher”
na Bahia
31/12/1933 8 O cangaço no Nordeste. São mencionadas como números:
Refere-se às façanhas de Corisco e seu “8 bandidos e duas mulheres”
grupo nos Estados de Alagoas e
Pernambuco. Menciona a presença de
duas mulheres neste bando.
25/04/1934 2 Encontro entre a polícia e o bando de São mencionadas como números:
“Lampeão”. “ constituída por 6 mulheres e 17 homens”
Refere-se ao confronto de Lampião
com a polícia ocorrido numa região
que dista 14 quilômetros de Parapiranga
– Bahia. Menciona a presença de seis
mulheres nesta “horda”.
223

Data Pag. Título e Histórico Tratamento dado pelo Jornal


20/05/1934 8 Segundo notícias correntes no Sertão, Refere-se a duas supostas amantes de
“Lampeão” teria sido ferido em Lampião:
combate, vindo a falecer. “tinha duas amantes, ambas caboclas e
Refere-se à suposta morte de Lampião. bonitas”
Informa que este era um sedutor, pois
tinha “duas amantes”.
09/06/1934 2 Novo encontro entre “Lampeão” e a São mencionadas como números:
polícia. “o grupo de “Lampeão” se acha reduzido
Refere-se ao confronto entre o bando de a 17 homens e duas mulheres”
Lampião e a volante de José Rufino.
Relata que Lampião teria entregado sua
filha aos cuidados de um casal sertanejo
12/03/1935 7 Encontro entre a polícia e São qualificadas de maneira numérica e
cangaceiros. depreciativa como: “quatro bandidas”. A
Refere-se ao confronto entre o grupo companheira do cangaceiro Jurema é
chefiado pelo cangaceiro Jurema e a qualificada como “a bandida amante do
volante do sargento Vicente Marques chefe Jurema”
no Raso de Catarina – Bahia. Menciona
o ferimento e prisão da companheira de
Jurema.
22/05/1935 7 Prisão de cangaceiros. São mencionadas como números:
Refere-se ao confronto da polícia com o “estavam acompanhados de quatro
grupo do cangaceiro Zé-Baiano e a mulheres”
prisão de dois “criminosos”. Menciona
a presença de quatro mulheres no
bando.
28/07/1935 2 Continua cercado pela polícia o bando Refere-se a Maria Bonita como
de “Lampeão”. companheira de Lampião: “Adiantam que
Refere-se ao ferimento de Maria Bonita a companheira de Lampeão foi
durante um tiroteio gravemente ferida durante o tiroteio”
13/01/1937 7 Prisão de um comparsa de Lampeão. São descritas como mulheres violentas e
Prisão do cangaceiro José Soares perversas, qualificadas como: “hábeis
Santos, vulgo Campinas. Este revela à amazonas”, “cruéis” e “destemerosas”
polícia que as três mulheres que
integravam o bando de Lampião eram
“hábeis amazonas e manejavam o rifle
com incrível destreza” e que algumas
224

eram “tão cruéis quanto os homens.


Tomam parte nos assaltos e combates
ao lado dos bandoleiros, mostrando-se
tão destemerosas como elles”.
17/04/1938 7 O combate ao cangaceirismo. São mencionadas como números:
Refere-se ao confronto travado entre a “o grupo era composto de 10 homens e 4
volante comandada pelo sargento mulheres”
Euclides e um grupo de cangaceiros
em Pernambuco. Menciona a presença
de quatro mulheres neste grupo.
29/07/1938 2 O combate aos cangaceiros: Morte de Maria Bonita é retratada como amante do
“Lampeão”. “chefe dos malfeitores”.
Refere-se ao confronto travado entre o
bando de Lampião e a volante de João
Bezerra em Angicos - Sergipe. Informa
a morte de Maria Bonita.
14/08/1938 9 Os despojos do cangaceiro “Lampeão” Refere-se a Maria Bonita como
Refere-se à chegada das cabeças de companheira de Lampião: “Acrescentou
Lampião e Maria Bonita no Museu do que haviam desaparecido as obturações
Serviço Médico do Estado da Bahia. em ouro dos dentes de “Lampeão” e sua
companheira”.
09/12/1938 5 Bandoleiros que se apresentam a São mencionadas como números:
polícia. “Três bandoleiros (...) e duas mulheres
Refere-se a duas mulheres que se entregaram-se à polícia bahiana em
entregaram à polícia baiana, na cidade Geremoabo...”
de Geremoabo.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 1930-1940.
225

APÊNDICE – B

Participação feminina no cangaço, matérias do Correio da Manhã, 1930-1940.


Data Pag. Título e Histórico Tratamento dado pelo Jornal
16/11/1932 5 Chegou á Bahia um temível São mencionadas como números:
bandoleiro. Como o bandido justifica o Referindo-se à composição do bando,
seu ingresso no cangaceirismo. Caracol salienta que era composto por:
O cangaceiro Simplício José dos “5 homens: eu, Antonio Faustino, Candão,
Santos, vulgo Caracol, procedente da Quixabeira e Marcel, além de quatro
Vila de Jatobá em Pernambuco, mulheres que eram: Rosa, que vivia
justifica sua incorporação ao cangaço comigo: Amélia, Maria e Isabel.”
como uma opção de sobrevivência.
Argumenta que em função de
desentendimento com um vizinho,
passou a ser perseguido sem ter
condições de trabalhar, restando apenas,
“adaptar a vida do cangaço”. Seu
depoimento à imprensa é revelador,
pois menciona a presença de quatro
mulheres no grupo, dentre elas, sua
companheira Rosa.
08/03/1933 3 “Lampeão”, de novo , no cartaz. São mencionadas como números:
Refere-se ao reaparecimento de “cinco mulheres”
Lampeão e seu bando na Bahia, na
região da Várzea da Ema, cujo encontro
teria resultado na captura do cangaceiro
Esperança e na morte de Cocada.
Enfatiza, ainda, a participação de cinco
mulheres neste bando.
25/03/1933 8 A campanha policial contra Lampeão São mencionadas com números:
e seu bando “(...) sabe-se que foram mortos, além dos
Refere-se ao desempenho das forças que estão presos, os seguintes
volantes em combater o banditismo no bandidos:(...) e a mulher de Antonio da
nordeste. Menciona os nomes de vários Engracia. (...) Foram capturadas tres
cangaceiros mortos nos confrontos, cita, mulheres...”
inclusive, “a mulher de Antonio da
Engracia” e, a prisão de “tres
mulheres”.
226

Data Pag. Título e Histórico Tratamento dado pelo Jornal


28/07/1933 6 As últimas façanhas de Lampeão no Refere-se à composição numérica do
sertão bahiano”. bando e a periculosidade feminina:
Refere-se a três mulheres do bando de “O grupo assaltante compunha-se de 23
Lampião que participaram do assalto na pessoas: Lampeão, 19 caibras e mulheres
cidade de Casa Nova, Bahia. – 3 verdadeiras megéras – todos fardados
de brim kaki, bem montados, armados de
fuzil e rifle, trazendo farta munição.
Conduziam também, punhaes e revólveres
á cinta. Roubaram dinheiro, fazendas,
jóias, moedas antigas de ouro e prata, num
cálculo approximado de 60 contos”
17/10/1933 2 A repressão ao banditismo. A polícia Destaca o desempenho feminino durante o
bahiana obtém significativa vitória combate:
sobre o bando de “Lampeão”. “Entre eles, estava uma mulher que lutava
Refere-se ao encontro das “forças com a mesma efficiência dos homens”
bahianas” com o bando de Lampeão
“na fazenda do Lino, em Monte
Alegre”. Durante o combate foram
mortos os cangaceiros: Azulão, Cangica
e Zabelé.
19/11/1933 8 A propósito de cangaceiros. Refere-se à violência que permeava a ação
O articulista W. Niemeyer critica de cangaceiros e volantes:
veementemente uma revista ilustrada “Duas photographias ilustram de modo
(cujo nome não menciona) que veicula gritante o fim que tiveram tres homens e
em suas páginas fotografias de cabeças uma mulher que combateram ao lado de
decepadas de cangaceiros. Salienta que outros contra os policiaes incumbidos de
tal atitude é reveladora da violência reprimir o banditismo: quatro cabeças
praticada por policiais, que em sua decepadas dispostas uma por uma noutro
concepção não se diferencia das ações cliché as quatro cabeças sobre um caixote
dos cangaceiros. Questiona os tosco, adornados friamente por tres fuzis,
resultados dessa prática e indigna-se ....e outros apretrechos usados pelos que
com tamanha barbárie praticada “como espalham o terror nas regiões sertanejas.
correctivo e em nome da ordem e da O quadro é diabolicamente tétrico... ”
civilização”.
227

Data Pag. Título e Histórico Tratamento dado pelo Jornal


24/04/1934 9 Um encontro do bando de Lampeão São mencionadas como números:
com uma força de bahiana. Esta, na “(...) a horda acampada é constituída por
luta perdeu um homem. seis mulheres e 17 homens.”
Refere-se ao confronto entre o bando
de Lampeão e a polícia bahiana, numa
região que dista 14 quilômetros de
Parapirnaga, na Bahia. Menciona a
presença de mulheres no grupo de
cangaceiros.

28/07/1935 1 “Lampeão” continua cercado. Referindo-se à Maria Bonita enquanto


Gravemente ferida a companheira do “companheira de Lampeão”, e ressalta
famoso bandoleiro. que “foi gravemente ferida durante o
Refere-se ao cerco à Lampeão e seu tiroteio”.
bando pelas volantes pernambucanas,
na Serra do Tará /PE e ao esforço do
grupo para rompê-lo. Informa o
ferimento de Maria Bonita no
confronto.

31/07/1935 1 A perseguição contra Lampeão. Refere-se à composição do bando:


Rompido o cerco alcançou elle a “Lampeão está acompanhado por Gato,
fronteira de Alagoas. Foliço, Aturity, Medalha e Cabo Verde e
Refere-se à perseguição da polícia várias mulheres, uma dellas Maria Déa,
pernambucana contra “Lampeão e o ferida”.
seu grupo sinistro”, que conseguiu
romper o cerco na Serra do Tará, em
direção à “Alagoas, via Matta
Grande”.

9/10/1936 2 Piranhas assaltada por bandidos. Refere-se à prisão da cangaceira Inacinha


Refere-se ao ataque do bando de Gato à em Piranhas:
cidade de Piranhas e a prisão da “captura da mulher do salteador “Gato”
cangaceira Inacinha, sua companheira. chefe do bando”.
228

Data Pag. Título e Histórico Tratamento dado pelo Jornal


19/03/1937 3 A cidade de Umbuzeiro ameaçada de São mencionadas como números:
Invasão armada. “grupo armado, composto de quarenta
Refere-se à possível invasão da cidade homens e tres mulheres”.
de Umbuzeiro, localizada no Estado da
Paraíba, por um “grupo armado,
composto de quarenta homens e tres
mulheres”. De acordo com a matéria, a
população aguardava armada a aparição
dos bandoleiros.
14/04/1937 6 A cangaceira Joanna Gomes A cangaceira Joanna é qualificada de
entregou-se ás autoridades alagoanas forma depreciativa como: “bandida
e fez declarações interessantes. Joanna Gomes”, “mulher de Cyrillo de
A cangaceira Joanna Gomes, vulgo Ingrácia”, “viúva dos bandidos”.
Moça, entregou-se às autoridades de
Mata Grande/AL, depois de ser expulsa
do bando de Lampião.
Ao ser entrevistada na prisão narra sua
experiência no cangaço.
26/06/1937 3 Aos poucos vão sendo eliminados os Refere-se à morte do cangaceiro Manoel
bandidos do nordeste. O êxito da acção Moreno e de sua companheira.
conjugada das policias bahiana e
sergipana.
Refere-se ao desempenho destas forças
no combate ao banditismo. Informa a
morte de um cangaceiro do grupo de
Zé-Sereno pela polícia sergipana em
Nossa Senhora das Dôres. E ainda, as
mortes de “Manoel Moreno, bandido
chefe, sua mulher e Gorgulho” pelas
“forças bahianas sob comando do
sargento Odilon Flor”, na zona de
Cararú, aumentando, desta forma, a
lista de cangaceiros mortos.
229

Data Pag. Título e Histórico Tratamento dado pelo Jornal


26/06/1937 8 Prossegue a campanha conta o Refere-se novamente à morte do
banditismo cangaceiro “Manoel Moreno, bandido
A matéria informa a intensa campanha chefe, sua mulher e Gorgulho”.
desenvolvida pelas forças policiais de
Sergipe e da Bahia no combate ao
banditismo. Refere-se novamente à
morte dos cangaceiros Manoel Moreno,
sua companheira e Gorgulho.
29/07/1938 14 Foi morto o “rei do cangaço” Referindo-se à morte de Maria Bonita:
Lampeão e onze dos seus comparsas “Entre os mortos encontra-se também a
dizimados pela polícia alagoana. amante de Lampeão”
Refere-se à longa existência de
Lampeão, que provocou estragos de
toda sorte aos sertanejos, no âmbito
econômico, político e social, dizimando
famílias, disseminando desgraça e
morte por onde passava. A notícia
descreve os principais traços da conduta
e personalidade de Lampeão e as
compara a Corisco, traçando as
principais diferenças entre eles.
Menciona a morte de Lampeão e mais
dez bandidos, inclusive a sua
companheira Maria Bonita.
30/07/1938 14 Lampeão, o terror do Nordeste. Expressões utilizadas para qualificar Maria
Recordando, ainda, a vida de crimes Bonita: “amante”, “essa mulher”, “Maria
do bandido que a tropa do tenente de Déa”, “companheira do bandido”,
Bezerra anniquilou. Os últimos “companheira de Lampeão”.
informes telegraphicos confirmam que
o bandido, sua amante e vários
companheiros foram, realmente,
mortos.
A matéria informa detalhadamente
sobre a chacina ocorrida em Angicos,
na qual foram mortos e degolados onze
cangaceiros, entre eles duas mulheres.
230

Data Pag. Título e Histórico Tratamento dado pelo Jornal


31/07/1938 24 “(...) annos de banditismo impune. Refere-se a Maria Bonita como “ amásia
Lampeão, as forças volante e os do famoso bandoleiro”.
soffrimentos da população sertaneja.
Como o tenente Bezerra surprehendeu
o celebre cangaceiro e seu bando.
Longa entrevista do tenente Bezerra na
qual revela as inúmeras dificuldades
para capturar Lampião e seu bando.
Critica a ação dos coiteiros, que em seu
entendimento deveriam ser igualmente
punidos com a morte. O tenente
fornece detalhes sobre o episódio,
esclarece que Maria Bonita morreu ao
lado de “Lampeão”: “Pouco adeante
está o cadáver de uma mulher. É da
amásia do famoso bandoleiro, a Maria
Bonita, que tinha os intestinos de fora,
rasgado o abdomem pelas balas.
Morreu com um pente na mão. Fazia a
toilette matinal, quando foi
surprehendida por uma saraivada”.
02/08/1938 14 “Corisco”, o bandido louro. Quem é o Refere-se a Maria Bonita como “raptada
temível cangaceiro que as forças por Lampeão” e “companheira”.
volantes vão combater. Chegaram a
Maceió as cabeças dos bandidos
mortos pela policia alagoana.
A matéria compara Corisco e Lampeão,
traçando o perfil de cada um deles.
Refere-se à repercursão do cangaço na
Europa, e salienta a matéria produzida
no “Paris-Soir” pelo jornalista Jean
Gerard Fleury. Este afirma que teve a
oportunidade de conversar com
Lampeão, e que teria visto “de relance,
Maria Dea, raptada por Lampeão e a
quem o facínora amava.”
231

Data Pag. Título e Histórico Tratamento dado pelo Jornal


06/08/1938 14 Ficaram com vida para contar a Refere-se a Maria Bonita como: “amante”
história do degollamento dos paes e
dos irmãos. Enterradas no cemitério
de piranhas as cabeças das últimas
victimas de Corisco.
A matéria menciona a carnificina
praticada por Corisco em Piranhas
contra a família do vaqueiro Domingos
José Ventura, em retaliação à morte de
Lampião e seu bando em Angicos. A
fazenda em que Ventura residia com a
família era de propriedade do pai
adotivo da esposa do tenente Bezerra.
14/08/1938 21 As cabeças de Lampeão e Maria Refere-se à polêmica disputa entre os
Bonita. Offerecidas pelo governo Estados nordestinos pela guarda das
alagoano para estudos. cabeças de Lampeão e Maria Bonita.
As cabeças de Lampeão e Maria Bonita
foram oferecidas pelo interventor
Osman Loureiro ao professor de
medicina legal da Faculdade de
Medicina da Bahia, Dr. Estácio de
Lima, para realização dos estudos
científicos do crânio e da face.
26/10/1938 3 Perderam o gosto do cangaço. As Refere-se aos cangaceiros que se
declarações de “Villa Nova”. entregaram as autoridades policiais após a
O cangaceiro Villa Nova, preso em morte de “Lampeão”. Recorda os
Poço Redondo - SE, informou que “os cangaceiros mortos em Angicos, entre eles,
seus collegas perderam o gosto pelo “Maria Bonita”.
cangaço, desde que morreu o seu
chefe” em Angico.
26/10/1938 14 Corisco se apresentará dentro de cinco Refere-se à prisão de “quatorze bandidos e
dias. Quinze cangaceiros já se uma bandoleira”, que se entregaram às
entregaram ás autoridades. autoridades.
O capitão Optato Queiroz informa ao
Secretário da Segurança de
Pernambuco, que recebeu um telegrama
de Geremoabo (BA), que informava a
232

prisão de “quatorze bandidos e uma


bandoleira”, que se entregaram às
autoridades. Salienta que os bandos de
Corisco e Angelo Roque se
“apresentarão” em cinco dias, conforme
informação fornecidas pelas
“autoridades bahianas”.
31/03/1940 1-2 Relembrando Lampeão. O último “(...) Maria Bonita também caíra morta”
combate do bandoleiro
Narração do capitão João Bezerra,
chefe da polícia alagoana, que
comandou o ataque ao bando de
Lampeão, resultando em sua morte e de
mais dez companheiro, inclusive Maria
Bonita. O capitão Bezerra justifica a
degola dos cangaceiros diante da
impossibilidade de transportar seus
corpos e os dos soldados feridos.
Argumenta que precisavam provar que
o bando eliminado era de fato o de
Lampeão.
24/05/1940 5 “Corisco” não se entregou á polícia. Refere-se à cangaceira Dadá da seguinte
O cangaceiro José Porfírio, vulgo maneira:
“Velocidade”, ao entregar-se à polícia “Sérgia, que é o verdadeiro chefe do
de Parapiranga na Bahia, afirma que grupo, tendo prometido matar o marido
Corisco não fazia o mesmo “por caso tentasse este depor as armas”
opposição de Sérgia”.
28/05/1940 2 Um golpe decisivo no cangaço. Depois São retratadas como mulheres violentas e
de renhido combate, “Corisco” foi perversas:
morto pelas forças volantes, na Bahia. “famosa Dadá sucessora, na violência e
Refere-se ao episódio da morte de ferocidade de Maria Bonita”, “a mulher
Corisco e do ferimento de Dadá em do “Demônio Louro”, conhecida pela
combate com as forças volantes alcunha de Dadá”. Referindo-se ao
comandadas pelo tenente José Rufino comportamento de Dadá, o cangaceiro
na Bahia. Informa que Corisco tinha Velocidade, destaca que o “Demônio
intenções de entregar-se às autoridades Louro....não comparecera porque a tal se
policiais, contudo teria encontrado oppuzera a sua esposa, mulher que o
resistência por parte da companheira. dominava inteiramente”.
233

Data Pag. Título e Histórico Tratamento dado pelo Jornal


30/05/1940 5 Ainda o trágico fim de um famoso Referindo-se à companheira de Corisco,
cangaceiro. diz a notícia:
Refere-se à morte de Corisco e ao “Dadá, a companheira do bandido, está
gravíssimo ferimento de Dadá no gravemente enferma em conseqüência dos
confronto com a volante do tenente José ferimentos recebidos”
Rufino, na Bahia. Informa, também,
que foi encontrado na companhia do
casal uma menina de 10 anos chamada
Josepha, que teria sido raptada da casa
de seu pai, o sr. Braz de Almeida, “que
a recebeu das mãos da polícia,
commovidísssimo”.
31/05/1940 3 Em torno da morte de “Corisco” Refere-se a “Dadá companheira de
O Sr. Urbano Pedral Sampaio, chefe de Corisco”
polícia, envia à cidade de Djalma Dutra
dois policiais com o intuito de recolher
o depoimento da cangaceira Dadá sobre
as atividades e o paradeiro dos demais
cangaceiros, que pertenciam ao bando
de Corisco e “proceder ao arrolamento
dos objetos encontrados em poder do
bandoleiro taes como: dinheiro, papéis,
armas, etc (...) bem como providência
sobre o destino da menor Jospha de 10
annos de edade, encontrada em
companhia do casal de bandidos”.
4/06/1940 5 A história de Corisco. Refere-se a Dadá como companheira de
Informa o nome de batismo de Corisco Corisco.
e o de seus pais. Revela a amputação
do pé direito de Dadá, e reproduz sua
declaração à imprensa. De acordo com
a cangaceira, Corisco teria morrido
satisfeito e suas últimas palavras teriam
sido: “Estou satisfeito: sou homem prá
morrer, e não para entregar-se”.
Fonte: Correio da Manhã, 1930-1940.
234

Bibliografia:

ALENCAR, Aglaé d’Avila F. A literatura de Cordel e o relacionamento homem/mundo.

Revista Sergipana de Folclore, Sergipe: Comissão Sergipana de Folclore, ano I, nº 2,

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Biblioteca Nacional - Rio de Janeiro/RJ

Academia Brasileira de Literatura de Cordel – Rio de Janeiro/RJ

Arquivo do Estado de São Paulo/SP

Biblioteca Mário de Andrade – São Paulo/SP

Centro Cultural de São Paulo – São Paulo/SP

CEDAP - Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa – UNESP/Assis/SP

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