As Mulheres Do Cangaço
As Mulheres Do Cangaço
As Mulheres Do Cangaço
REPRESENTAÇÕES (1930-1940).
ASSIS
2005
ii
REPRESENTAÇÕES (1930-1940).
ASSIS
2005
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliografia : f.
CDU 396:301.17(091)
iii
(1930-1940)
DATA DE APROVAÇÃO:
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________
_______________________________________________________
_______________________________________________________
_______________________________________________________
iv
DADOS CURRICULARES
DEDICATÓRIA
Com amor.
vi
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais Mário Leonardo de Freitas e Emília Saraiva de Freitas,
que sempre torceram por mim, as minhas irmãs Michele e Maria Carolina, as minhas
Agradeço ao meu esposo Marcos Nardelli, por acreditar no meu trabalho e por
participar das mais diferentes etapas de minha vida, do cursinho à Pós-Graduação, disposto à
apoiar-me incondicionalmente, com amor e muita paciência. Sou grata por seus conselhos,
nos diversos momentos de minha vida acadêmica e pessoal. Devo a ela a realização deste
trabalho e todos os méritos que ele possa ter. Sou grata por sua orientação ao longo de toda a
graduação, desde o projeto para Bolsa Bae até a Iniciação Científica/FAPESP, etapas
com o apoio de amigos e instituições. Agradeço aos colegas e amigos da graduação e da pós-
graduação, que torceram por mim, em especial às amigas Barbara Fernandes Lopes, Sheila do
Nascimento Garcia e Eliane P. Fonseca. Sou grata ao casal de amigos Rogério e Adriana pela
Tecnológico pelo apoio financeiro, sem o qual seria impossível realizar as pesquisas nos
História da UFPE, que viabilizaram o acesso aos acervos no período em que a Universidade
Literatura de Cordel (sou grata ao Sr. Gonçalo Ferreira da Silva, cordelista e presidente da
de Andrade e do Centro Cultural de São Paulo (recebi apoio da bibliotecária Sebastiana Lopes
da Silva), aproveito para agradecer mais uma vez a todos os funcionários destas Instituições.
Agradeço a todos funcionários do Cedap pela dedicação e seriedade com que tratam a
viii
Agradeço também, a Sra. Ilda Ribeiro de Souza (Sila) pela entrevista concedida
em janeiro de 2001, no Centro Cultural de Rio Claro/SP, na qual narrou alguns momentos de
Por último, gostaria de agradecer à Sra. Vera Ferreira, por permitir a reprodução
e utilização das imagens de seus avós – Lampião e Maria Bonita – e por compreender a
SUMÁRIO
LISTA DE FOTOGRAFIAS xi
RESUMO xiii
ABSTRACT xiv
INTRODUÇÃO 15
SOBRE O ASSUNTO
APÊNDICE - A 222
APÊNDICE – B 225
BIBLIOGRAFIA 234
FONTES 240
LISTA DE FOTOGRAFIAS
Foto 4 - .Maria Bonita e Lampião com os cães - Guarani e Ligeiro – 1936 149
Foto 15 – Cabeças dos cangaceiros Mariano, Pai Véio, Zepellim – 1936 211
xii
LISTA DE QUADROS
LISTA DE MAPA
LISTA DE APÊNDICES
APÊNDICE - A 222
APÊNDICE - B 225
Participação feminina no cangaço, matérias do Correio da Manhã, 1930-1940.
xiii
RESUMO
específica de “ser mulher” num espaço permeado pela violência. Neste sentido, será relevante
considerar o desempenho com armas de fogo e a atuação de cada uma delas nos embates
suas vestimentas que, traduzem um determinado perfil de mulher. Tomando por base este tipo
Rural.
xiv
ABSTRACT
This dissertation has the aim to discuss the women’s practices and representations
in the cangaço from 1930 to 1940, time that started their incorporation in the bands.
Considering the ways of joining them (volunteer or not), we searched the comprehension and
discussion of the roles given to the cangaceiras and their specific condition of “being a
woman” in a space characterized by the violence. In this sense, it will be relevant to consider
the performance with guns and the deeds of each of them in the violent fights in which they
were involved. Also, the worry about the beauty of the body, the liking for jewels and several
determined profile of woman. Basing ourselves on this kind of problem, one of the concerns
of this research is to analyze the interpersonal experiences inside the groups from specialized
bibliography of memoir authors that worked on the topic and other sources, such as: oral
Key words: cangaço, cangaceira, cangaceira woman, sertaneja woman, rural banditry.
15
Introdução
Discorrer sobre o cangaço não é uma tarefa fácil, pois se constitui num fenômeno
complexo que divide a opinião dos vários estudiosos que se debruçaram sobre o tema. Este
praticavam uma série de crimes: roubos, assassinatos, violações, enfim, espalhavam o medo e
cangaço caracteriza o “gênero de vida dos cangaceiros”, ou seja, destes indivíduos que
tema.
tempo (de fins do século XIX a 1940) e no espaço (interior do sertão nordestino). Deixa claro
que esta delimitação cabe ao “cangaço independente” existente apenas no Nordeste brasileiro.
1
Conforme definição do Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira - Básico da Língua Portuguesa/Folha
de S. Paulo, São Paulo: 1995, p. 123.
2
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiros, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977 e História do
Cangaço. São Paulo: Global, 1986.
16
os cangaceiros eram sustentados por chefes políticos ou grandes fazendeiros, que em troca da
proteção oferecida por aqueles homens, pagavam e forneciam-lhes domicílio. De acordo com
Queiroz, este tipo de banditismo existiu em todo o país, e ainda existe na atualidade. No
segundo caso, o grupo era formado por homens armados, liderados por um chefe que se
mantinha errante, isto é, sem domicílio fixo, vivendo de assaltos e saques. Não se ligavam
século XIX para definir indivíduos que “andavam debaixo do cangaço” . Designava,
couro, clavinotes, cartucheiras de pele de onça-pintada, longas facas enterçadas batendo nas
viviam fortemente armados na região das caatingas áridas, que formavam o chamado
“polígono das secas”, no interior de sete Estados brasileiros. Talvez isto explique a
3
A socióloga Maria Isaura P. de Queiroz salienta que há indícios da existência do cangaço independente no
século XVIII, cujo principal expoente, teria sido o cangaceiro Cabeleira, imortalizado pela literatura no romance
de Franklin Távora em 1876. No século XIX destaca-se João Calangro, de acordo com ela, a emergência desses
bandos estava diretamente associada aos períodos críticos de seca, e se dissolviam quando a situação se
normalizava. QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os Cangaceiros. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, p. 59-66.
Em fins do século XIX cresce a prática do cangaço independente, cuja emergência não se vincula aos ciclos das
secas, mas a vingança da honra. O cangaceiro Jesuíno Brilhante (Jesuíno Alves de Melo Calado) é um exemplo
claro deste tipo de cangaço. Representa o típico bandido social, ou seja o “ladrão nobre” ou “Robin Hood” –
conforme definição de Eric Hobsbawm. Outro cangaceiro deste período foi Antônio Silvino (Manoel Baptista
de Moraes) que também ingressou no cangaço com o intuito de vingar uma afronta sofrida, ou seja, o
assassinato de seu pai por inimigos políticos. Este cangaceiro também se enquadra na definição de bandido
social. Foi preso em 1914, condenado a 32 anos de reclusão na Penitenciária de Recife, local em que cumpriu
mais de 20 anos da pena em função do indulto recebido do presidente Getúlio Vargas em 1937. Silvino faleceu
em 1944, aos 69 anos de idade. Sobre esse assunto consultar FERREIRA, Vera. De Virgolino a Lampião. São
Paulo: Idéia Visual, 1999, p. 41.
No início do século XX, destacam-se Sinhô Pereira (Sebastião Pereira da Silva) e Lampeão (Virgolino Ferreira
da Silva), ambos se incorporaram ao cangaço com o desejo de vingança. O primeiro pelo assassinato de seu
irmão, e o segundo pelo assassinato do pai. Vale destacar que esses cangaceiros inauguram uma nova fase do
cangaço, destacando-se, sobretudo, por suas ações violentas e pela disseminação do terror.
4
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. História do Cangaço. São Paulo: Global, 1986, p.15.
17
opressão imposta pela elites locais, e como profissionalização do crime, traduzindo-se num
meio de vida. Tais interpretações despertaram amplos debates entre historiadores, sociólogos,
antropólogos, literatos e outros intelectuais ligados às ciências humanas. Cabe ressaltar que
este tema também foi amplamente discutido fora do circuito acadêmico, sobretudo por
memorialistas.
um dos pioneiros a estudar esta temática sob a perspectiva da História Social, da socióloga
“injustiças sociais”.
5
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975 e Rebeldes Primitivos. 2ª ed., Rio Janeiro:
Zahar, 1978.
6
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiro. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977 e História do Cangaço.
São Paulo: Global, 1986.
7
MACHADO, Maria C. M. As táticas de guerra dos cangaceiros.2ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1978.
8
BARROS, Luitgard Oliveira C. A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de
Janeiro: Faperj/Mauad, 2000.
9
HOBSBAWM, E. J. Rebeldes Primitivos. 2ª edição. Rio Janeiro: Zahar, 1978.
10
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975.
18
moderna11.
Social, Hobsbawm, amplia os debates sobre este fenômeno. Em suas análises concebe o
Trata o tema a partir de um viés macro histórico, e procura discutir os elementos comuns que
caracterizam este tipo de comportamento humano nas mais diferentes regiões13 em que
ocorreu.
capitalismo e das transformações nas relações de convívio e nas formas de trabalho. Sua
abordagem, portanto, é ampla e generalizante. Cabe lembrar que seus interesses em discutir
esta temática voltam-se especificamente para as relações de trabalho no campo, ou seja, para
a reação da população rural frente às mudanças introduzidas pelo novo modo de produção.
de difícil acesso14. Ressalta que ele tendia a aumentar nos períodos de pobreza e crise
11
Hobsbawm esclarece que:“O advento da economia moderna pode, e provavelmente o fará romper o
equilíbrio social da sociedade consangüínea, transformando alguns grupos de parentescos em famílias “ricas”
e outras em famílias “pobres”, ou rompendo o próprio grupo.” HOBSBAWM, E. J. Rebeldes Primitivos. Rio
Janeiro: Zahar, 1978, p 14.
12
O autor enfatiza que “O banditismo social (...) é um dos fenômenos sociais mais universais da História, e um
daqueles de mais impressionante uniformidade. Praticamente, todos os casos pertencem a dois ou três tipos
correlatos, e suas variações são relativamente superficiais”. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed.
Forense, 1975, p. 11.
13
O historiador salienta que a uniformidade que caracteriza o banditismo social decorre de situações
semelhantes vivenciadas nas mais diferentes sociedades camponesas, como na “ China, no Peru, na Sicília (...).
Geograficamente, o banditismo social se encontra em todas as Américas, na Europa, no mundo Islâmico, na
Ásia meridional e oriental, e até na Austrália”. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975,
p. 11-12.
14
Argumenta que “basta a construção de estradas modernas, que permitam viagens fáceis e rápidas, para
reduzir bastante o nível de banditismo. Favorecem-no a ineficiência administrativa e a burocracia”.
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 14
19
econômica, impulsionando “homens fisicamente aptos, a passar fome” a “tomar pelas armas
O bandido social que descreve não desejava um mundo novo e perfeito, e sim um
mundo tradicional no qual os homens eram tratados com justiça16, inscrevendo-se numa
geral de uma instituição ou disposição social, mas a considerava passível de melhoria. Nesse
sentido, o bandido social não poderá ser definido como um revolucionário. Argumenta que
“(...) o bandoleiro social só surge antes que os pobres tenham adquirido consciência política
caracteriza este tipo fenômeno como reformista. Salienta que apesar de ser “um protesto
bandido social) se comportaram como reparadores de injustiças mostrando, desta forma, que
uma sociedade rural, e por razões várias encarado como proscrito ou criminoso pelo Estado19.
Este qualificava qualquer pessoa que praticasse roubo, homicídio, que usasse qualquer forma
de violência individualmente ou em grupo como bandido, desde aquele que roubasse dinheiro
até aquele que fizesse parte da guerrilha organizada. O Estado, na visão de Hobsbawm,
manipulava esta noção vaga e ampla de bandido para marcar um grupo de pessoas como
15
Para Hobsbawm este comportamento reflete a: “desagregação de toda uma sociedade, a ascensão de novas
classes e o surgimento de novas estruturas sociais, a resistência de uma comunidade inteira ou de povos à
destruição de suas maneiras de viver”. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 15-17.
16
Diz o autor:”Os bandidos corrigem os erros, desagravam as injustiças, e ao assim proceder aplicam um
critério mais geral de relações justas e eqüitativas entre os homens em geral, em particular entre ricos e os
pobres, os fortes e os fracos” HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 19
17
Idem
18
Op. cit , 1978, p. 32-33.
19
Referindo-se ao bandido social, afirma que “Ele se torna bandido porque pratica uma ação considerada
criminosa não pelas convenções locais, mas pelo Estado ou governantes locais” HOBSBAWM, E. J. Rebeldes
Primitivos. Rio Janeiro: Zahar, 1978, p. 24. Ressalta que, geralmente, “ a ‘carreira’ do bandido começa, quase
20
pudesse se enquadrar nesta categoria geral de inimigo do Estado tinha que distinguí-lo do
bandido comum, pois o diferencial entre ambos era o fato do primeiro receber apoio da
população, o que não acontecia com o segundo, que era entregue à polícia.20
Robin Hood (aquele que tirava dos ricos e dava aos pobres e era visto por esses como um
que semeia o terror). Seguindo essa tipologia, a imagem do cangaceiro continha nessa
acepção, tanto os valores do ladrão nobre quanto as de um vingador (que ele chama de
“monstro público”)21, argumenta que num sentido mais amplo: “a imagem do cangaceiro
combina os dois tipos”22. Referindo-se à Lampeão destaca que apesar de espalhar o terror
pelo interior do Nordeste brasileiro era admirado por sua gente e se constituía num “herói
ambíguo”.
com que eles estabeleçam relações com o sistema econômico, social e político
sempre, com um incidente que em si não é grave, mas que o coloca fora da lei: uma acusação policial que visa
mais a ele, pessoalmente, do que à punição de um crime...”. Idem, p. 25.
20
Observou o autor, que “Quase todos os que enfrentam os opressores e o Estado são considerados como
vítimas, como heróis, ou ambas as coisas. Portanto, quando ele passa a ser perseguido é protegido
naturalmente pelos camponeses e pelo peso das convenções locais, (...)”. HOBSBAWM, E. J. Rebeldes
Primitivos. Rio Janeiro: Zahar, 1978, p.25
21
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 55.
22
Idem, p. 55
23
Hobsbawm afirma que: “(...) normalmente possuem muito mais dinheiro do que os camponeses locais, suas
despesas podem constituir elemento importante no setor moderno da economia local, sendo redistribuídas,
através de vendeiros, donos de pensões ou estalagens, às camadas médias comerciais da sociedade rural; e
essa distribuição é mais efetiva na medida em que os bandidos (...) gastam a maior parte de seus recursos na
região e são muito orgulhosos e pródigos para barganhar. ‘O comerciante vende suas mercadorias a Lampião
por três vezes o preço normal’, dizia-se em 1930”. Destaca o papel dos intermediários, que auxiliavam nas
transações comerciais dos bandidos. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 83
21
“núcleo de força armada”, configura-se numa força política, uma vez que emerge nas áreas
em que não há nenhum “mecanismo regular e eficiente para manutenção da ordem pública”.
Por segurança, é melhor manter um bom relacionamento com os bandidos, o que em seu
Assim, para que essa relação fluísse, inúmeros acordos ocorreram entre populares
políticos e bandidos constituiu-se num fator fundamental para a sobrevivência destes últimos.
delas os bandidos mais famosos dos sertões nordestinos “conseguem sobreviver por períodos
surpreendentemente longos. Lampião durou quase vinte anos”26, indicando que o cangaceiro
do bandido social. Acrescenta que Robin Hood mesmo depois de extinto continua a exercer
permanência deste mito por várias gerações nos mais diferentes continentes. Nesse sentido, o
“mito do bandido” estende-se muito além do meio ambiente nativo, e sobrevive até a
24
A expressão “Ele é “um de nós”, constantemente envolvido no processo de associar-se a “eles”, traduz
claramente a relação ambígua que envolvia este tipo de bandido, pois, ao mesmo tempo que se identificava com
os populares, também desfrutava da “riqueza” e do “poder”, elementos representativos dos privilégios das elites
locais. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 86.
25
Idem, 1975, p. 87-88.
26
O historiador destaca: “(...) a estrutura da política rural nas condições que produz o banditismo exerce dois
efeitos. Por um lado, ela gera, protege e multiplica os bandidos; por outro, integra-os no sistema político. (...) é
provável que ambos os efeitos sejam mais fortes onde a máquina do Estado se encontra ausente ou é ineficiente,
22
Conclui afirmando que: “(...) quase nenhum dos grandes bandidos da História
sobrevive ao translado da sociedade agrária para a sociedade industrial, exceto quando são
meio resistente para a viagem no tempo – a literatura. Exemplifica com Lampião que apesar
de morto continua inspirando toda uma literatura a seu respeito, produzida inclusive nos
grandes centros urbanos do país, como São Paulo e Rio de Janeiro, regiões distantes dos
locais do fenômeno, mas que alimentam este tipo de literatura por meio das memórias dos
migrantes nordestinos.
caracterizam o bandido social: a aptidão para integrar este tipo de vida e o folclore. De
acordo com esta interpretação havia condições específicas para a aceitação do bandido social,
ou seja, não podia ser simplesmente um criminoso comum, tinha que possuir motivos
convincentes - como vingar uma ação sofrida - para justificar sua inserção no banditismo.
Além disso, seus laços familiares deveriam ser suficientemente fortes para protegê-lo nessa
nova atividade.
ou onde os centros regionais de poder são instáveis, como ocorre (...) no sertão agreste”. HOBSBAWM, E. J.
Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 93.
27
Idem, p. 133
28
FERRERAS, Norberto O. Bandoleiros, cangaceiros e matreiros: revisão da historiografia sobre o Banditismo
Social na América Latina. História, São Paulo: Editora Unesp, 22 (2), 2003, p. 211-226.
23
Estado (...), ou sendo anistiados quando se combateram ao lado da lei, como foi oferecido a
A autora justifica que o cangaço foi uma resposta à miséria, associando a sua
emergência aos períodos de seca e seu desaparecimento com a chegada das chuvas que
continuavam sua vida errante. A seca não representava para estes um problema, pois estavam
acostumados a viver grandes períodos no Raso de Catarina, região árida e de difícil acesso do
justificativa da autora para a emergência do cangaço não condiz com o caráter dos bandos
secas.
e políticas. Para ela, os fatores estruturais e conjunturais, explicam o aparecimento dos bandos
29
Idem, p. 211.
30
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiros, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977 e História do
Cangaço. São Paulo: Global, 1986.
24
função das crises do açúcar e do algodão e melhoria das condições sanitárias locais, geradora
de um crescimento populacional.
sertão era dirigida pelos grandes latifundiários e políticos da região favorecendo aos mesmos.
entre as disputas dos chefes locais. A solução para muitos sertanejos era o ingresso no
cangaço ou nas fileiras policiais. A miséria do sertão e o descaso das autoridades públicas
[...] o Estado negou-se a exercer o que lhe cabia nos setores administrativo e
judicial, entregando-os aos donos do poder sertanejo. Estava completa a
receita para o Cangaço, manifestado pela inexistência do governo formal,
acrescido pela permanência dos interesses do governo latifundiário, violento
e dono de interesses mesquinhos.
Sertão”32, que segundo ele, reagiu de diversas maneiras ora aliando-se às forças legais do
Estado-Protetor, ora aos cangaceiros, com o intuito de garantir seus privilégios. Para ele, o
cangaço floresceu em função das circunstâncias sociais e geo-físicas, que aliados aos
cangaço.33
31
MONTEIRO, Francisco Roberto Pedrosa. O outro lado do cangaço: As forças volantes em Pernambuco 1922-
1938. Recife/PE: Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 2002, p. 10. Dissertação (Mestrado em História).
32
Idem, p.10
33
Diz o autor: “Foi atrelado a todas essas circunstâncias sociais e físicas que o cangaço floresceu com força,
inicialmente carregado de pouca destruição, para depois, com o passar dos anos, tornar-se forte e violento,
25
Janotti34. Ela enfatiza que as raízes deste fenômeno estavam sedimentadas no Império, e que
na República o coronel ampliou seu papel dentro da nova estrutura política. Chama atenção
para o período de 1940, momento em que este fenômeno começa a entrar em declínio em
da vida dos demais habitantes do lugarejo em que reside”35. Em sua concepção, todo
oligarquia agrícola-mercantil mantém uma mútua aliança para assegurar seus interesses. O
responsabiliza pela vitória dos candidatos do Governo. Esse, garante total poder ao coronel
dirigida pela burguesia rural e financeira, assentada no mandonismo local. Adverte ainda, que
“O coronel nem sempre era um grande fazendeiro. Mas, um chefe político, de reconhecido
poder econômico, que conseguiria prestígio junto ao governo estadual, na razão direta de
A autora caracteriza o coronel como um tipo social, que tinha sua autoridade
reconhecida pela comunidade em função seu papel “protetor”. Aquela, abandonada pelos
poderes públicos no que diz respeito “à saúde, à justiça, e a instrução”, via o coronel como
envolvendo, em seu redemoinho de morte, a desgraça de famílias inteiras, entre elas a de Virgulino Ferreira.”
Ibidem, p.53.
34
JANOTTI, Maria de Lourdes M. O coronelismo uma política de compromissos. 3ª edição, São Paulo:
Brasiliense, 1984.
35
Idem, p.8
36
Ibidem, p. 41.
26
“protetor natural”37. Lembra algumas funções exercidas por ele: “Comumente o Coronel era
que:
(...) ele possuía uma polícia própria, denominados seus membros, segundo a
região, de capangas, jagunços, “gente do Coronel”, camaradas ou cabras (...)
aos desejos do mandatário aplicavam penas diversas: a expulsão das terras
da fazenda, destruição de bens, espancamentos e até a morte.39
No trecho acima fica explícito que o coronel poderia representar o bem ou o mal,
“protetora”, enquanto o mal na violência que praticava contra a comunidade. Salienta, ainda,
que o homem comum não tinha muita saída. Quando possível ligava-se a outro coronel, ou
publicou alguns artigos e dois livros sobre o assunto. Em Guerreiros do Sol. Violência e
37
Idem, p. 57.
38
Op. Cit, 1984, p. 59.
39
Ibidem, p.60-61.
40
Frederico Pernambucano de Mello, nasceu no Recife em 2 de setembro de 1947. Formou-se em Direito na
Universidade Federal de Pernambuco, e tem especialização em Administração de Assuntos Culturais (Política e
Gerência) pela Organização dos Estados Americanos/Universidade de Brasília/Centro Nacional de Referência
Cultural. Foi Superintendente do Instituto de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco. Membro e ex-
participante da União Brasileira de Escritores – Seção de Pernambuco, é sócio efetivo do Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico Pernambucano e sócio correspondente dos Institutos de Geografia e História Militar do
Brasil, no Rio de Janeiro, Histórico e Geográfico de Alagoas e do Rio Grande do Norte, além de membro do
Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco. Na Academia Pernambucana de Letras é titular da cadeira nº 36.
Estudioso do cangaço publicou diversos trabalhos sobre o assunto, entre eles destacamos os seguintes artigos:
Aspectos do Banditismo Rural Nordestino. Ciência &Trópico, Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas
Sociais, nº 1, v. 2, jan/jun/1974, p. 4-47, O Ciclo do Gado no Nordeste do Brasil: Uma Cultura da Violência?
Ciência & Trópico, Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, nº 2 , v. 7, 1979, Rota Batida.
Recife: Edições Pirata, 1983, p. 23-45 e os livros Guerreiros do Sol. Violência e banditismo no Nordeste do
27
banditismo no Nordeste do Brasil, publicado em 1985 e reeditado em 2004, tece uma longa
infestada pelo banditismo. Além desses elementos, também considera as questões culturais.
enfim, qualquer ação que resulte na necessidade de vingar a honra e fazer justiça), este parece
refere-se ao caso de homens que buscavam neste meio de vida uma proteção, pois eram
criminosos que tinham suas ações descobertas pela polícia, vingadores fugitivos. Enfim,
homens que tinham alguma pendência com a justiça ou com famílias poderosas. No último
caso, o cangaço se configura num meio de vida, ou seja, numa profissão geradora de
considerável lucro.
maiores expoentes. Em seu livro, Quem foi Lampião, discute algumas peculiaridades da
sócio-culturais (...) exacerbadas pelo mandonismo aldeão e seu maior aliado, a guerra ou a
vingança privada...”43.
Brasil, publicado em 1985 em Recife pela editora Massangana, reeditado no corrente ano pela editora Girafa,
e Quem foi Lampeão. Recife/Zürich: Editora Stahli, 1993.
41
MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol. Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São
Paulo: A Girafa Editora, 2004, p. 89
42
Idem.
43
MELLO, Frederico P. de. Quem foi Lampeão. Recife/Zürich: Editora Stahli, 1993, p. 55
28
de trópico úmido, expressa na exuberância da chamada mata atlântica”, cujo solo é fértil e
pobreza do solo. Enfatiza que “(...) São dois mundos, afinal. Duas culturas. Dois homens.
Duas Sociedades”45
suficientes para explicar o surgimento do cangaço. Destaca que os valores culturais são de
com as adversidades de seu espaço. O autor realça dois traços que particularizam o sertão: “a
44
Op. cit, 1993, p. 56.
45
Ibidem, p. 58
46
Op cit, 1993, p. 57
47
Em sua dissertação de mestrado, o historiador Francisco Roberto P. Monteiro recupera a tipologia de cangaço
definida pelo advogado MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: O banditismo no Nordeste do
Brasil. Recife: Massangana, 1985, p. 38. Ver MONTEIRO, Francisco Roberto Pedrosa. O outro lado do
cangaço: As forças volantes em Pernambuco 1922-1938. Recife/PE: Universidade Federal de Pernambuco,
UFPE, 2002. Dissertação (Mestrado em História)
48
MONTEIRO, Francisco Roberto Pedrosa. O outro lado do cangaço: As forças volantes em Pernambuco 1922-
1938. Recife/PE: Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 2002, p.61-62. Dissertação (Mestrado em
História).
29
pelo perigo e a admiração pelo cabra macho foram elementos que atraíam os olhares
femininos para o cangaço, o que sinaliza para a incorporação de algumas mulheres neste
Francisco Monteiro, baseado na tese de Melo, salienta que dentre estas três
Constituinte, pelo deputado Edgar Teixeira Leite, que qualificava o fenômeno do cangaço
como “crime organizado nas zonas rurais”, que deveria ser punido como tal. Apesar disso,
cangaço de banditismo social, e argumenta que Lampião escondia-se atrás da morte dos pais
usando-as como um “escudo ético” 51. Em sua análise, esse “escudo ético” ocultava o desejo
profissionais do crime.
verbas para a contratação de homens para integrar o corpo das Forças de Combate ao
49
SILVA, Zélia Lopes da. A República dos anos 30. A sedução do Moderno. Novos Atores em Cena: Industriais
e Trabalhadores na Constituinte de 1933-1934. Londrina: UEL, 1999, p. 112-115.
50
BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro:
Mauad/Faperj, 2000, p.210.
51
Termo definido pelo advogado Frederico Pernambucano de Mello, e incorporado pela autora em sua obra.
BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro:
Mauad/Faperj, 2000, p.128 e 210.
30
das perseguições aos cangaceiros - os grupos começam a ser eliminados, o que evidencia que
o uso da força foi a solução encontrada pelo governo para sua eliminação. Veremos no
capítulo 1 que essa concepção não era compartilhada pelos diversos articulistas, que
carioca, que em sua maioria defendia a educação e o trabalho como caminhos possíveis para
Com base nos debates explicitados ao longo deste texto cabe indagar: Quais os
requisitos necessários para se tornar um cangaceiro? A maioria dos homens que se alistava
nas fileiras do cangaço era procedente da caatinga, de povoados sertanejos e até mesmo das
cidades interioranas. Os motivos arrolados para seu ingresso no cangaço foram os mais
justiça buscavam fazê-la com as próprias mãos (defender a honra da família, da mãe, da
esposa, irmãos e outros parentes); havia os que queriam proteção porque estavam fugindo da
viver a ilegalidade. O historiador Eric. J. Hobsbawm destaca que o bandido típico era jovem
e solteiro52, uma vez que a incorporação de homens casados era mais difícil em função dos
compromissos familiares. Entretanto, deixa claro que esse grupo também podia incorporar-se
aos bandos.
policiais, para a perseguição aos cangaceiros, o que significava para muitos homens a
52
O historiador salienta que “(...) a juventude é uma fase de independência e de rebelião em potencial...”.
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 27.
53
Sobre este assunto consultar: QUEIROZ, Maria Isaura P. de. História do cangaço. São Paulo: Global, 1986, p-
35-39 e 54, LINS, D. Lampião - O homem que amava as mulheres. São Paulo:Annablume,1977, p.107. e
NASCIMENTO, J.N. Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998, p. 32.
31
receberiam um salário, e teriam a chance de ficar com os pertences dos cangaceiros mortos
em combate. Estes últimos eram conhecidos por carregarem dinheiro e jóias em seus bornais.
Além disso, era a chance de vingarem alguma ofensa sofrida por parte dos cangaceiros e,
ainda, adquirir um novo status social a partir da promoção no meio policial. No decorrer de
nossa pesquisa notamos que as práticas de violência cometida por policiais não se
desta nova realidade? As informações enfatizam o seu despreparo para lidar com os bandos.
Era formada por sertanejos comuns e sem instrução, através de recrutamento irregular. O
flagelados pelo cangaço, são elementos que sinalizam a fragilidade desta polícia frente ao
banditismo que a cercava. Para minorar esta situação, em janeiro de 1925 foi firmado o
fronteiriços que impediam as polícias dos respectivos Estados capturar os cangaceiros. Esta
medida possibilitou a união das forças nordestinas visando por fim ao banditismo.
peculiaridades, e uma delas foi a incorporação de mulheres aos bandos, ao longo da década
Lampião.
Lampião teria ingressado no bando de Sinhô Pereira em 1918, com o intuito de vingar a
morte do pai, covardemente assassinado por policiais. Em 1922 teria recebido o comando
32
do bando sob a promessa de eliminar os dois últimos inimigos de seu chefe, que cansado desta
vida marginal teria se mudado para Minas Gerais com o intuito de se reintegrar a sociedade.
Lampião, que teria se destacado pelo uso excessivo da violência54. Apesar disso, vigorava no
interior do bando um código moral que proibia terminantemente o uso desta em famílias de
punidos, como evidenciam os casos de Sabiá e Mourão, mortos por violentarem a filha e
esposa de um coiteiro55. Este código estabelecia a sentença de morte a todo tipo de traidor.
Seu bando angariava cada vez mais homens, alguns sedentos de justiça, outros
homens que julgava aptos para esta tarefa: Corisco, Virgínio, Zé-Sereno, entre outros.
Além dos homens, também houve a incorporação feminina aos bandos, o que foi
uma das peculiaridades do ciclo Lampião. Diante desta nova realidade, algumas questões
parecem pertinentes: Como e por que elas se integraram às fileiras do banditismo? Como
foram tratadas? Quem eram estas mulheres e que papéis ocuparam no interior dos bandos?
Quais as mudanças introduzidas nas relações de convívio dos grupos? Enfim, como foi o
sobre a mulher, geralmente recuperam os feitos das mulheres da elite que ganharam
destaque nas mais diferentes sociedades por suas ações militantes e reivindicadoras como as
54
Sobre este assunto consultar a historiografia: HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense/Unb,
1975, QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiros, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, História do
cangaço. São Paulo: Global, 1986 e BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos
guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2000. E as obras memorialísticas NASCIMENTO, J.N.
Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998, p-21 e ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e
o cangaço. São Paulo: Traço, 1985. p .70
33
feministas, que lutaram durante décadas para adquirir direitos como: educação,
de projeção social reconhecidas por seus talentos na arte, na literatura, na pintura, na música e
significativo destacar que as cangaceiras nem sempre vieram dos estratos populares da
financeiras.
presença feminina no interior dos bandos de cangaceiros, e destacamos sua participação nas
nordestino, que castigado pelas secas e entregue a sua própria sorte, procurou construir
construídas sobre as mulheres que passaram a integrar os bandos de cangaceiros. Visa discutir
grupos, decorrentes dessa presença no período que corresponde aos anos de 1930 à 1940.
55
ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985. p.71-72 e LINS, D.
Lampião - O homem que amava as mulheres. São Paulo: Annablume, 1977, p.94.
34
grupos, e o seu papel nos enfrentamentos violentos em que estiveram envolvidas. Nesse
processo deve-se considerar que as relações entre o homem e a mulher, embora sinalizassem
para mudanças em curso, estavam marcadas por definições de papéis rígidos nos quais aquela
interior do cangaço.
algumas questões que envolvem a sociedade brasileira como um todo, pois neste período ela
passava por mudanças profundas em sua estrutura, política, econômica e social. No âmbito
político, o país começava a viver uma nova fase, deixando para trás a velha oligarquia
política. Subia ao poder, em função de um golpe bem articulado, Getúlio Vargas, que
permanecerá até 1945, período que abrange o nosso objeto de pesquisa, pois o cangaço finda
casos. Desde o início de seu conturbado governo, Getúlio Vargas sabia da existência do
cangaceirismo no Nordeste do país; entretanto, seus interesses naquele momento eram outros.
algumas medidas que conferiram a participação feminina na política por meio do sufrágio
Entretanto, as historiadoras Marina Maluf e Maria Lúcia Mott56 argumentam que tais
medidas não atingiram de fato as mulheres, pois, o Código Civil Brasileiro de 1916 as
56
MALUF, M. e MOTT, M. L. Recônditos do mundo feminino. In: História da Vida Privada no Brasil.
NOVAIS, F. A e SEVCENKO, N. (org.). São Paulo: Cia das Letras, v. III, 1998.
35
divisão de papéis entre os sexos, na qual foram atribuídas ao homem, a esfera pública e à
mulher, a doméstica.
controle do homem sobre a mulher. Esta, destituída de direitos políticos e civis, não podia
vender seus bens ou os do marido ou contrair empréstimos, mesmo que estes fossem para a
remunerado, as mulheres casadas (da elite e dos estratos médios) deveriam obter a
qualquer momento. Além disso, poderiam exercer apenas as profissões consideradas extensão
das atribuições femininas, ou seja, professoras, datilógrafas, enfermeiras, entre outras57. Essas
prescrições, embora em vigor, não atingiam as mulheres dos estratos populares sempre
com a luta pela emancipação feminina em âmbito mais geral, como a aquisição de direitos de
cidadania que são conquistados na Carta Magna, em julho de 1934, após longos anos de lutas
travadas pelas feministas, originárias das elites, forjando um novo perfil de relação
1916, não intimidou algumas mulheres da elite brasileira, que insatisfeitas com a esfera
doméstica que lhes foi atribuída, reivindicaram igualdade de direitos tanto na esfera pública
57
Idem, p. 402.
58
Op cit, 1998, p. 409-410.
36
quanto na profissional. Essa nova mulher desejava uma certa independência em relação ao
homem, ao casamento e exigia o direito de participar ativamente na vida pública, como cidadã
brasileira.59 A luta por esses direitos aglutinou-se em torno do movimento sufragista, que
externo ao ambiente do lar) e, sobretudo, o exercício pleno da cidadania por meio do sufrágio
universal, tornaram-se possibilidades reais para libertarem-se dos estigmas de “rainhas do lar”
e do tripé “mãe-esposa –dona de casa”. De acordo com Maluf e Mott, tal representação “(...)
acabava por encobrir o ser mulher – e sua relação com as obrigações passou a ser medida e
avaliada pelas prescrições do dever ser”.60 Portanto, a mulher era direcionada pelo “dever
ser” e seu comportamento já estava devidamente definido pela sociedade. Cabia apenas,
como isso se deu no Nordeste do país, sobretudo na sociedade sertaneja. Qual a concepção
hierarquia bem definida de papéis, na qual à mulher cabia o espaço privado, e ao homem o
público, diferentemente do que ocorria com o estrato popular, que para garantir a
sobrevivência tinha que contar com o trabalho de todos os membros da família. Bem, diante
de tudo que expusemos, cabe indagar se as mudanças em curso na década de 30 chegaram até
59
Sobre este assunto consultar: HANHER, June E. Emancipação do sexo feminino. As lutas pelos direitos da
mulher no Brasil, 1850-1940. Florianópolis: Editora Mulheres Sta Cruz do Sul: EDUNISC, 2003.
60
MALUF, M. e MOTT, M. L. Recônditos do mundo feminino. In: História da Vida Privada no Brasil.
NOVAIS, F. A e SEVCENKO, N. (org.). São Paulo: Cia das Letras, v. III, 1998, p. 374.
37
às cangaceiras e como foram sentidas, como re-significaram seus valores e suas vivências no
bem definida dos papéis masculino/feminino, é significativo destacar alguns elementos que
tornam esta organização peculiar. Diferentemente das relações produzidas na sociedade mais
cumprindo o papel de esposa dedicada, mãe zelosa e dona de casa, no cangaço esta relação se
construiu de uma outra forma, em função da própria estrutura nômade e incerta dos bandos.
pressupostos da História Cultural. Para tanto, nos basearemos nas discussões do historiador
Roger Chartier61, sobretudo nos debates em torno dos conceitos: representação, prática e
apropriação.
social almeje a universalização, ela é determinada pelos interesses dos grupos que a forjam.
Ou seja, as “percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem
estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à
custa de outros....”62. É neste sentido que analisaremos as diversas fontes coletadas, não como
discursos neutros, mas como construções carregadas de subjetividade pelos sujeitos sociais
que as representam.
61
O historiador Roger Chartier salienta que a História Cultural procurava legitimar-se cientificamente a partir da
conciliação dos novos domínios de investigação com os postulados da história social. Define a História Social da
seguinte forma: “(...) tem por principal objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” Refere-se, ainda, aos vários caminhos que
devem ser percorridos para realizar essa tarefa, entre eles destacam-se:“ás classificações, divisões e delimitações
que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do
real”. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo.
Lisboa: Difel, 1988, p. 17.
38
representação para ele, pressupõe a soma dos discursos (fala) com práticas diferenciadas
De acordo com Chartier, tal perspectiva permite pensar numa história cultural
do social, tomada como compreensão das formas e dos motivos que traduzem determinadas
um objeto ausente, no qual a primeira vale pelo segundo. A relação de representação em sua
concepção, “modela toda a teoria do signo que comanda o pensamento clássico e encontra a
sua elaboração mais complexa com os lógicos de Port-Royal”64. Este enfatiza a variabilidade
entre signo e significado, é pervertida pelas formas de teatralização da vida social do Antigo
Regime. Refere-se aqui à sociedade de corte analisada por Norbert Elias, na qual “a
identidade do ser não seja outra coisa senão a aparência da representação, isto é, que a
coisa não exista a não ser no signo que a exibe”65, ou seja, a aparência vale pelo real; a
representação é confundida com a ação da imaginação. Justifica que esta deturpação constitui-
relação com o mundo social: 1-) a classificação e a delimitação através das quais a realidade é
62
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo.
Lisboa: Difel, 1988, p. 17.
63
Idem, p. 18.
64
Op cit, 1988, p. 21.
65
Idem, p. 21.
66
Op cit, 1988, p. 22.
39
contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; 2-) as práticas que visam fazer
reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar
cangaço, pois podemos classificar e analisar o modo de vida construído pelo grupo. Além
disso, suas práticas evidenciam uma forma peculiar de vivência, marcada sobretudo pelo uso
mecanismos podem ser compreendidos a partir das práticas de leitura dos indivíduos ou dos
grupos, através das quais se apropriam de determinados textos e imagens considerando que
elas são histórica e socialmente variáveis. Ressalta que para uma melhor compreensão desses
individualidade nas suas variações históricas, ou seja, que os indivíduos “são moldados, de
diferentes maneiras em diferentes situações, pelas estruturas de poder”.68 È com base nesta
A História Cultural para Chartier deve ser pensada como a “análise do trabalho
de representação, isto é, das classificações e das exclusões que constituem, na sua diferença
Esclarece que as estruturas do mundo social são historicamente construídas por práticas
67
O historiador afirma que o conceito de apropriação “tem por objetivo uma história social das interpretações,
remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas
práticas específicas que as produzem. Conceder deste modo atenção às condições e aos processos que (...)
determinam as operações de construção do sentido(...) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que as
inteligências não são desencarnadas (....), que as categorias aparentemente mais invariáveis devem ser
construídas na descontinuidade das trajetórias históricas”. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre
práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1988, p. 26-27.
68
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo.
Lisboa: Difel, 1988, p. 25.
40
significa o mundo.
frustrações, medos e desejos dessas mulheres, sujeitas a todas as adversidades que uma vida
errante e ilegal se impunham as suas relações de convívio. Estas podem ser evidenciadas nas
formas de relacionamentos que permeavam o interior dos grupos de cangaceiros, seja, com o
indumentária, dos objetos pessoais, das armas e de suas formas de convívio que abarcavam
uma rede de relações dentro dos grupos e fora deles, cujo traço principal era a violência. Os
elementos externos que compõem o perfil dessas pessoas serão analisados a partir das
fotografias produzidas pelo sírio-libanês Benjamim Abraão Boto71, que registrou alguns
mulheres, pois elas poderão nos revelar algumas práticas do universo feminino referentes aos
cuidados com o corpo, à utilização de vestidos apropriados para o dia de festa e outro para o
dia-a-dia, os cuidados com os cabelos, o uso de acessórios, tais como jóias e presilhas. Enfim,
revelam alguns elementos que podem traduzir uma preocupação feminina com a aparência e
69
Op cit., 1988, p. 27.
70
CHARTIER, Roger. Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p. 27.
71
As fotografias foram produzidas durante o período em que Benjamim Abraão Boto conviveu com o grupo de
Lampião no ano de 1936.
41
entre aqueles que fizeram parte do cangaço. Neste sentido, as memórias e depoimentos das
valiosos para a demarcação das vivências e percepções dos envolvidos no cotidiano dos
publicou cinco livros sobre o cangaço, todos elaborados a partir de depoimentos orais com
diversos ex-participantes, desde ex-integrantes até sertanejos que vivenciaram este fenômeno.
Ferreira Nunes - única filha sobrevivente, escreveu em parceria com Antonio Amaury Corrêa
72
As obras: SOUZA, I. R.de. Sila Memórias de Guerra e Paz. Recife: Imprensa Universitária de Pernambuco,
1995 e Angicos: Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço, São Paulo: Oficina Mônica Buonfiglio
Ltda, 1997 e ainda o depoimento da ex-cangaceira Sila - Ilda Ribeiro de Souza, integrante do bando de Lampião,
companheira de Zé Sereno, Rio Claro/SP, 26/01/2001.
73
O depoimento oral da ex-cangaceira ao cineasta José Umberto Dias foi transformado no documentário: A
Musa do Cangaço, sob sua direção. Além disso, o cineasta também publicou Dadá, no qual transcreve o
documentário e outras falas da depoente. DIAS, José Umberto. Dadá, 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 1989.
74
As obras: ARAÚJO, A.A. C. de. Assim morreu Lampião. Rio de Janeiro: Brasília, 1976 e Lampião: as
mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985 e as obras em conjunto com FERREIRA, V. e ARAÚJO, A.A.C.
de O espinho do quipá, Lampião, a História. São Paulo: Oficina Cultural Mônica Buonfiglio Ltda, 1997 e De
Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia, 1999. Além destes livros, o autor tem publicado: Gente de Lampião:
Dadá e Corisco. São Paulo: Traço, 1982, Gente de Lampião: Sila e Zé Sereno. São Paulo:Traço, 1987 e ainda
Lampião Segredos e Confidências do Tempo do Cangaço, São Paulo: Traço, 1996.
75
FERREIRA, V. e ARAÚJO, A.A.C. de. O espinho do quipá, Lampião, a História. São Paulo: Oficina Cultural
Mônica Buonfiglio Ltda, 1997 e De Virgolino a Lampião, São Paulo: Idéia, 1999.
42
narradas por Dadá, o universo vivido pela ex-cangaceira. Uma parte de seu depoimento foi
Boto.
Esta mesma entrevista e a outra parte dela que não aparece no documentário,
foram transformadas pelo cineasta no livro Dadá77 que apenas incorpora suas falas sem
considerar que foram construídas posteriormente a sua vivência no cangaço. Além disso,
presente. O cineasta utiliza as próprias falas da depoente para dar forma ao livro. Ora ele as
identifica recorrendo ao recurso itálico, ora as transcreve numa linguagem mais elaborada,
limpa das gírias do cangaço. Acreditamos que o cineasta tenha optado por esta forma
de sua obra, uma vez que apenas reproduz as falas da depoente, ou até mesmo para fugir de
função da escassez de informações, optamos por explorar os aspectos que foram comuns a
interior dos bandos, inclusive ao desempenho com armas de fogo. Enfim, aspectos que
76
O cineasta e memorialista José Umberto Dias, produziu em 1981 o documentário A musa do Cangaço, no
qual Dadá relata como foi sua experiência no cangaço. O documentário foi dirigido por Dias e Guto Diniz,, e as
fotografias por Lúcio Mendes, Alonso Rodrigues e Benjamim Abrahão Boto. Este material encontra-se no
acervo da Fundação Joaquim Nabuco – Recife/PE, e foi por nós reproduzido. Além deste documentário, Dias
transformou o depoimento oral de Dadá no livro: DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição. Salvador:
EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.
77
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição. Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.
43
formas de violência, e que nos permitiram também compreender suas relações internas e
externas ao bando.
popular como o Cordel78, qual foi o tratamento dado às mulheres cangaceiras, como foram
descritas e, percebidas no espaço do cangaço. Além disso, visualizar como o cangaço foi
“Lampião”. Optamos pelo uso deste material, porque sabemos que durante décadas ele foi
dos populares, sobretudo dos analfabetos e também despertou simpatia nos indivíduos
recitados ou cantados nas diversas feiras nordestinas. Além disso, podiam comprá-los e pedir
região, país e mundo e os retransmitiam numa linguagem simples ao povo. Soma-se a isso, a
facilidade em fixá-los na memória. Daí o seu papel fundamental como formador de opinião
78
A literatura de cordel chegou ao Brasil via Portugal, mais precisamente no século XIX com a vinda da família
real para o país. A Espanha também contribuiu para a disseminação deste tipo de literatura. Pode-se afirmar que
esta literatura existiu em grande parte da Europa. Na Alemanha o cordel marcou presença nos séculos XV e
XVI, na Holanda, França e Inglaterra a partir do século XVII. Esse nome deve-se ao cordel ou barbante em que
os folhetos ficavam pendurados em exposição. No Nordeste brasileiro mantiveram-se o costume e o nome, e os
folhetos são expostos à venda pendurados e presos por pregadores de roupa em barbantes esticados entre duas
estacas, fixadas em caixotes. Sobre o assunto consultar: DANTAS, Audálio (curador).Catálogo 100 anos de
Cordel, São Paulo: Sesc Pompéia, 2001. Exposição realizada no período de 17 de abril a 24 de junho de 2001,
em São Paulo, no Sesc Pompéia. ALENCAR, Aglaé d’Avila F. A literatura de Cordel e o relacionamento
homem/mundo. In: Revista Sergipana de Folclore. Sergipe: Comissão Sergipana de Folclore, ano I, nº 2, 1977,
p. 18-32 e COSTA, Roberto Aurélio Lustosa da (coordenador). Antologia da literatura de Cordel. Fortaleza:
Coleção povo e cultura/ Secretaria de Cultura, Desporto e Promoção Social do Ceará, v.1, 1978.
79
Sobre este assunto consultar: CURRAN, Mark J. A sátira e a crítica social na literatura de Cordel. In:
Catálogo 100 anos de cordel. São Paulo: Sesc Pompéia, 2001, CURRAN, Mark J. A “página editorial” do
poeta popular. In: Revista Brasileira de Folclore. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, ano XII, nº
32, 1972, p. 5-16. FAUSTO NETO, A. Cordel e a ideologia da punição.Petrópoles: Vozes, 1979., DANTAS,
Audálio. Catálogo 100 anos de Cordel. São Paulo: Sesc Pompéia, 2001, ALENCAR, Aglaé d’Avila F. A
literatura de Cordel e o relacionamento homem/mundo. In: Revista Sergipana de Folclore, Sergipe: Comissão
Sergipana de Folclore, ano I, nº 2, 1977, p. 18-32 e COSTA, Roberto Aurélio Lustosa da (coordenador).
Antologia da literatura de Cordel. Fortaleza: Coleção povo e cultura/ Secretaria de Cultura, Desporto e
Promoção Social do Ceará, v.1, 1978.
44
de cordel, publicou mais de dez livros, além de inúmeros artigos sobre o tema. Curran
enfatiza que o cordel além de informar e instruir, também tem como função distrair o público.
Enfatiza que “O poeta é ligado estreitamente ao povo e aos seus problemas devido à sua vida
em comum, à sua tradição cultural e à sua condição social. São as suas experiências pessoais
o pequeno repórter dos acontecimentos na vida nordestina.”82. Ressalta que a leitura dos
cultura nordestina. Por meio destes pode-se analisar o homem nordestino, seus valores, seus
80
CURRAN, Mark J. A sátira e a crítica social na literatura de Cordel. In: Catálogo 100 anos de cordel. São
Paulo: Sesc Pompéia, 2001.
81
CURRAN, Mark J. A “página editorial” do poeta popular. In: Revista Brasileira de Folclore, Rio de
Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, ano XII, nº 32, 1972, p. 5-16.
82
Ibidem, p. 5.
83
Afirma o autor: “Quando uma pessoa lê folhetos da Literatura de Cordel, faz muito mais do que apreciar a
poesia do povo. O leitor pode perceber um estilo de vida visto não só nos versos, mas também na apresentação
total do poeta popular, sua ideologia e sua personalidade como poeta e comentador da vida do povo.” Op. cit,
1972, p. 15.
84
ALENCAR, Aglaé d’Avila F. de A literatura de cordel e o relacionamento homem/mundo. In: Revista
Sergipana de Folclore, Sergipe: Comissão Sergipana de Folclore, ano I, nº 2, 1977.
85
Idem, p. 25.
45
que além dos acontecimentos reais, o poeta também transfere para os versos tudo aquilo que
Os poetas cantadores fizeram chegar aos pontos mais distantes não apenas os
notícias dos fatos acontecidos, as catástrofes (secas, inundações, etc.), as façanhas de seus
proximidade que mantinham com o povo, o baixo custo de produção e consumo desses
folhetos permitam aos poetas, em detrimento à outros veículos de comunicação (jornais, rádio
grupo, os que se referem ao cangaço assunto amplamente discutido por esses poetas
assunto87. Contudo, é importante ressaltar que este tema também foi abordado por cordelistas
populares), o que evidencia a construção desta experiência sob novos parâmetros, muitas
vezes assumindo a perspectiva de seus narradores que acabam por “amenizar” e “justificar”
86
Op cit, 1977, p. 28.
87
Nas pesquisas realizadas nos arquivos da Biblioteca Nacional e da Academia Brasileira de Literatura de
Cordel, ambos no Rio de Janeiro, da Biblioteca Mário de Andrade e Arquivo do Estado de São Paulo, em São
Paulo e da Fundação Joaquim Nabuco em Recife -PE, localizamos apenas folhetos elaborados posteriormente e
versões reeditadas.
88
D’ALMEIDA FILHO, Manoel. Os Cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965.
89
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986
46
cidade baiana de Jaguarari conviveram com o cangaço desde a infância, entretanto suas obras
também foi tipógrafo e revisor. Dedicou-se à venda de folhetos, livros e revistas. O segundo
de Janeiro.
Alguns dos folhetos discutem o cangaço em âmbito geral, tendo, porém, como
comportamento de determinados cangaceiros. Assim, temos como exemplos os que têm como
tema: Lampião92, Corisco93, Labareda94, Zé-Baiano95, Jararaca96, entre outros. Nestes folhetos
algumas cangaceiras foram citadas. Assim, Maria Bonita aparece ao lado de Lampião; Dadá
forma genérica, sem maiores referências. Maria Bonita, entretanto, foi “cantada em versos” a
90
SILVA, Gonçalo F. da. Lampião. O Capitão do Cangaço. Ed: Ralp, 1983, SILVA, Gonçalo F. da. Labareda.
O capador de Covardes. s/d, SILVA, Gonçalo F. da. Corisco. O sucessor de Lampião. Ed: Ralp, s/d., SILVA,
Gonçalo F. da. Zé – Baiano. O ferrador de gente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de Cordel,
s/d. SILVA, Gonçalo F. da. Jararaca – O cangaceiro militar. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000.
91
D’ALMEIDA FILHO, Manoel. Os Cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965.
92
São inúmeros os folhetos que falam sobre Lampião, contudo, os que tivemos acesso foram: D’ALMEIDA
FILHO, Manoel. Os Cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965, DILLA, Alexandre J. F. C. d’ Albuquerque
S. Lampião Rei dos Cangaceiros. Rio de Janeiro: Soc. Educativa e Cultural. Umbert Peregrino, 2ª ed., 1973,
SILVA, Gonçalo F. da. Lampião. O Capitão do Cangaço. Ed: Ralp, 1983, SANTOS, A. A. dos. O casamento de
Lampião com a filha do Diabo. 1987 e PACHECO, José. A chegada de Lampião no inferno. Rio de Janeiro:
Academia. Bras. de Literatura de Cordel, s/d.
93
CARVALHO, Elias A. de. Dadá e a morte de Corisco. 1983. e SILVA, Gonçalo F. da. Corisco. O sucessor
de Lampião. Ed: Ralp, s/d.
94
SILVA, Gonçalo F. da. Labareda. O capador de Covardes. s/d.
95
SILVA, Gonçalo F. da. Zé – Baiano. O ferrador de gente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura
de Cordel, s/d.
96
SILVA, Gonçalo F. da. Jararaca – O cangaceiro militar. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000.
47
partir de perspectivas distintas, pelos cordelistas Antônio Teodoro dos Santos e Gonçalo
Ferreira da Silva nos livretos Maria Bonita. A mulher cangaço97 e Maria Bonita – A eleita do
Rei98.
Antonio Teodoro dos Santos inicia sua narração contando-nos desde a infância da
personagem, passando por sua adolescência e juventude, seu ingresso no cangaço e sua morte
em Angico. Ou seja, o poeta inicia e conclui suas reflexões colocando Maria Bonita no
Garibaldi, Ana Néri e Maria Quitéria. Mulheres que simbolizam coragem e valentia na luta
por seus ideais. Gonçalo F. da Silva, por sua vez, faz uma abordagem mais sentimental. Inicia
sua narrativa referindo-se ao amor de Maria Bonita por Lampião, portanto já na sua
Apesar de termos poucos cordéis que se referem especificamente à mulher, isto não nos
impediu de tentar compreender qual foi a opinião popular, disseminada nestes folhetos sob a
bandido e herói, criminoso comum e justiceiro, mortal e imortal. Enfim, esses são elementos
feminina evidenciando que foram desenvolvidas e adaptadas para aquele tipo de vida. A
indumentária cangaceira destaca-se pelo uso do couro (inspirada na vestimenta dos vaqueiros
97
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986.
48
cores fortes, inovações introduzidas por Lampião. Essas informações foram fornecidas pelo
O trabalho com a fotografia não é uma tarefa fácil, pois ela exige cuidados e
metodologias específicas. Isso se torna ainda mais relevante, quando nos referimos ao
universo peculiar do cangaço, sobretudo se considerarmos que esse modo de vida é analisado
uma representação da realidade passada, que sofreu influência direta do fotógrafo desde a
escolha do assunto até a sua produção final. Daí, a importância de se trabalhar a fotografia
como uma representação, e não como uma “verdade”101 incontestável, já que carrega em si
multiplicidade de interpretações.
98
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – A eleita do Rei. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000.
99
O advogado Frederico Pernambucano de Mello produziu por meio da Fundação Joaquim Nabuco os
documentários: O cangaceiro, roupas e apetrechos e A estética do Cangaço, nos quais analisou os aspectos
estéticos dos trajes dos cangaceiros. Além disso, foi curador da exposição do Cangaço na Amostra do
Redescobrimento do Brasil, no Parque do Ibirapuera em 2000.
100
Sobre este assunto consultar: KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo. Ed.Ática, 1989 e Realidades
e Ficções na Trama Fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000., LEITE, Miriam L. Retratos de Família..
Leitura da Fotografia Histórica. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1993., e JOLY. Martine. Introdução á Análise da
Imagem.Campinas/São Paulo: Papirus Editora, 1996.
101
Diz o autor: “A realidade da fotografia não corresponde (necessariamente) a verdade histórica, apenas ao
registro expressivo da aparência....A realidade da fotografia reside nas múltiplas interpretações, nas diferentes
“leituras” que cada receptor dela faz num dado momento...”. KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na Trama
Fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p. 38
49
das análises. Argumenta que “Toda fotografia tem sua origem a partir do desejo de um
determinado lugar e época”.103 Além disso, ressalta que a análise de seu conteúdo pode nos
“imagem fotográfica” nos permitirá reconstruir alguns aspectos do passado, que foram
Kossoy enfatiza que “O registro visual documenta por outro lado, a própria
atitude do fotógrafo diante da realidade, seu estado de espírito e sua ideologia acabam
Abrahão Boto devem ser consideradas e questionadas no momento da análise de sua produção
fotográfica. Como nos referimos anteriormente, ele tinha claros interesses econômicos com a
respeito do cangaço.
reconstrução do processo que gerou o artefato fotográfico, além de uma leitura minuciosa dos
detalhes icônicos que compõem seu conteúdo, e a segunda, no resgate do próprio assunto
como meras ilustrações que complementam o texto, mas como representações fragmentárias
102
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo. Ed.Ática, 1989.
103
Idem, p. 21-22
104
Op cit , 1989, p. 35-36
105
Ibidem, p.27-28.
50
recuperar algumas informações, que revelem um pouco do cotidiano do grupo. É a partir dessa
Recife/PE, aproximadamente quarenta fotografias na Coleção Cangaço, das quais vinte e seis
Pernambucano de Mello com três fotografias, e uma outra coleção da qual reproduzimos
quatro fotografias, dentre as quais, há uma de Dadá grávida, uma outra em que aparecem as
cangaceiras Moça e Inacinha com um grupo de homens. Há ainda, uma de Maria Bonita com
qual o companheiro nem sempre estava presente. Além dessas, também há as que aparecem
Neném, sua melhor amiga, aparece em sete, Inacinha em duas, as cangaceiras Dadá, Maria
Adília, Moça, Sila e Cristina aparecem, cada uma delas em apenas uma foto. Na Coleção
lembradas ou perpetuadas e, ainda, o tipo ideal de mulher com o qual queriam ser
identificadas. Isso fica explícito nas fotografias produzidas em espaços abertos da caatinga, na
qual algumas cangaceiras reproduziram a postura e o gestual das mulheres da elite rural,
representada pela literatura de cordel. A análise destes diferentes materiais nos permitiu
mulheres. Assim, destacamos e priorizamos algumas cangaceiras que aparecem com maior
freqüência nas diversas fontes consultadas como: Maria Bonita, Dadá, Sila e Lídia.
106
Cabe destacar que não pudemos reproduzir todo o acervo em função dos direitos autorais; sendo assim,
procuramos selecionar imagens de todas as mulheres do grupo. Quanto ao critério seletivo, procuramos
reproduzir as imagens que retratavam os diferentes trajes e comportamentos femininos.
52
violência e pela marginalidade. Assim, foi relevante considerar o desempenho com armas de
fogo e a atuação de cada uma delas nos embates violentos em que estiveram envolvidas, suas
representação do feminino.
metáforas jornalísticas expressas nas notícias veiculadas pelo O Estado de S. Paulo e pelo
memorialistas que trabalharam o tema, e de outras fontes como: os depoimentos orais das ex-
estavam sujeitas: espancamentos, violação sexual, prisão, morte, tanto por parte dos
cangaceiros, como das volantes. E ainda, a violência que a população externa aos bandos -
homens e mulheres - estavam sujeitos. Discutimos ainda, algumas práticas do grupo que
da presença feminina.
107
Depoimento cedido a nós em janeiro de 2001, no Centro Cultural de Rio Claro/SP.
108
Entrevista intitulada: A musa do Cangaço, produzida por J. D. Dias em 1981, sob direção de José Umberto e
Guto Diniz. Fotógrafos: Lúcio Mendes, Alonso Rodrigues e Benjamim Abraão. Conseguimos uma cópia desse
depoimento, que se encontra no acervo iconográfico da Fundação Joaquim Nabuco/PE.
53
cobertura que deram à temática do cangaço em suas páginas. Além disso, o intercâmbio que
agências e uma maior divulgação das práticas dos cangaceiros e das volantes.
literatura de cordel. Este tipo de literatura ultrapassa o universo popular e ganha espaço na
grande imprensa a partir dos debates de alguns articulistas, que criticam o conteúdo
exagerado e subversivo destes folhetos. Estes materiais são valiosos, pois imprimem
assunto.
54
ressaltar que também foram encontradas notícias fora desta coluna. Contudo, a grande maioria
foi abarcada por esta. O periódico, via de regra, retransmitia para seus leitores as notícias
veiculadas nos principais jornais nordestinos sobre o tema em questão, ou seja, o cangaço.
Esta perspectiva assumida, nem sempre garantia a publicação de notícias fidedignas dos
função de informar seus leitores e formar opinião. Deve-se ressaltar, ainda, que se constitui
sobretudo, por defender e veicular os principais interesses e idéias das elites paulistas, bem
dessa elite por meio de seus principais articulistas e intelectuais, principalmente Júlio
O Estado de S. Paulo foi fundado em 1875, por membros da elite política paulista
Américo Brasiliense de Almeida Mello e Manoel de Campos Salles. Em 1885 – Júlio César
passa a se chamar O Estado de S. Paulo. Com sua morte em 1927, a direção do jornal foi
55
entregue a Nestor Rangel Pestana e Júlio de Mesquita Filho; a chefia da redação ficou com
aproximação dos paulistas com a política nacional a partir de sua participação na Assembléia
periódico “esteve limitada e comprometida pela relação destes situacionismos estaduais com
o Poder Central”. Destaca, ainda, que a relação do jornal com o Governo Provisório era
1
Plínio Barreto nasceu em Campinas, interior de São Paulo em 20 de junho de 1882. Em 1899 ingressou na
Faculdade de Direito de São Paulo, formando-se em 1902. Durante os seus estudos de graduação trabalhou
como revisor no jornal O Estado de S. Paulo, passando em 1898 para a redação. Após formar-se, seguiu para
Araras (SP) local em que desempenhou as funções de advogado e jornalista. Em 1909, ao regressar à São
Paulo mantém no periódico paulista uma seção intitulada Crônicas forenses, na qual escrevia sobre os
principais julgamentos ocorridos no Tribunal de Justiça. Em fevereiro de 1912, fundou a Revista dos Tribunais;
em 1916 assumiu juntamente com Júlio de Mesquita e Alfredo Pujol a direção da Revista do Brasil. Barreto
exerceu ao mesmo tempo a função de jornalista político e de crítico literário. Em 1920 tornou-se um dos
advogados mais ilustres e requisitados de São Paulo. Foi membro da Liga Nacionalista (criada em 1917), que
defendia o serviço militar obrigatório e o voto secreto. Em 1926 assumiu a direção do Diário da Noite e, após a
morte de Júlio de Mesquita em 1927, assumiu o cargo de redator-chefe. Em 1930 foi nomeado secretário de
Justiça e Segurança Pública, no ano seguinte é indicado para a interventoria; com isso buscava-se obter o apoio
do Partido Democrático, e até mesmo do periódico paulista. Barreto destacou-se pelo intenso envolvimento
com a política do país. Em 1945, foi eleito deputado da Assembléia Nacional Constituinte pela legenda da
União Democrática Nacional (UDN). Participou ativamente da elaboração da nova Constituição. Defendeu a
criação de uma legislação trabalhista e a igualdade de direito civil para a mulher. Faleceu em 28 de junho de
1958. MAYER, Jorge Miguel. Plínio Barreto. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930.
ABREU, Alzira Alves de (coord.). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. I, p. 539-540.
2
GOMES, Angela Maria de Castro. Notas sobre uma experiência de trabalho com fontes: Arquivos privados e
jornais. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, v. 1, nº 2, set. de 1981, p. 266- 268 e 275.
3
Ibidem, p. 275.
56
paulistas4. Durante o Estado Novo (1937-1945), o jornal, sob ferrenha censura, tem seu
descrevendo-se como neutro e impessoal. Seus jornalistas tinham como missão formar
opiniões e orientar o público, numa espécie de “missão” pedagógica. Para tanto, necessitavam
que é justamente esse “poder impessoal” reivindicado pelo jornal, que o move e acaba por
“ocultar um poder pessoal” que não fica evidente ao leitor. Salienta, que a partir desse
artifício a imprensa paulista acabava por se constituir num poder que estava acima do próprio
governo6. Além disso, a historiadora ressalta que a liberdade pregada pela imprensa tinha
estatuto da verdade tão reivindicado pelo O Estado de S. Paulo, pode ser colocado em xeque
quando analisamos as notícias referentes aos deslocamentos dos bandos, aos confrontos com a
4
A historiadora afirma que:“(...) na relação com o Governo Provisório.....podemos perceber uma posição
progressiva, embora cuidadosa, aproximação por parte do jornal. Assim, em nome de uma pretensa
neutralidade, que beneficiaria seu material noticioso, o jornal não empreenderia análises profundas, nem
críticas abertas aos atos do chefe do Governo. Não se trata, porém, de uma relação estável, pois o jornal
defendia e orientava-se pelo situacionismo paulista....”. GOMES, Angela Maria de Castro. Notas sobre uma
experiência de trabalho com fontes: Arquivos privados e jornais. Revista Brasileira de História. São Paulo:
ANPUH, v. 1, nº 2, set. de 1981, p. 277.
5
CAPELATO, Maria H. R. O Controle da Opinião e os Limites da Liberdade: Imprensa Paulista (1920-1945),
Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 12, nº 23/24, p. 55-75, 1992.
6
Referindo-se ao comportamento da imprensa a autora enfatiza que: “apresentada ao público leitor como
expressão dos altos valores eternos, universais e, consequentemente como apartidária, apolítica e impessoal.
Envolta nessa couraça, podia se lançar, com suas poderosas armas, na luta política, anunciando-se como
defensora da verdade, valor supremo das Luzes.” CAPELATO, Maria H. R. O Controle da Opinião e os
Limites da Liberdade: Imprensa Paulista (1920-1945), Revista Brasileira de História, São Paulo:
ANPUH/Marco Zero, v. 12, nº 23/24, 1992, p. 57.
57
muitas vezes o jornal reproduz as notícias sem averiguar a autenticidade das mesmas, o que se
ainda, que tinham outros interesses no momento, ou seja, o de (re) articular a participação de
mantém uma postura crítica sobre o banditismo. Ao longo de seus exemplares, alguns de seus
citadas: a melhoria nas condições de vida da população sertaneja, bem como a assistência
pública, educação, criação de postos de trabalhos e o exercício de uma justiça que coloque em
efetivo da lei.
confronto com a polícia. Na maioria das análises memorialísticas, o ano de 1930 inaugura a
7
Há divergência na historiografia quanto à data de incorporação feminina no cangaço, de acordo com a
socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz teria ocorrido entre fins de 1928 e meados de 1929 (QUEIROZ,
1977, p. 186) e para a historiadora Maria Christina M. Machado em 1930 (MACHADO, 1978, p. 87).
58
observamos que durante este ano e o seguinte houve significativa movimentação dos
cangaceiros.
Pessoa. Em 1931, o cangaço novamente entra em cena para sair no ano seguinte, quando a
lembrar que retransmitia as principais notícias veiculadas nos jornais nordestinos sobre a
movimentação dos cangaceiros e das forças públicas em seu encalço e a questão da seca.
“bandoleiros”. Isso pode ser observado na entrevista do Dr. Souza Leão (chefe da polícia
pernambucana) ao jornal Pequeno, a qual foi reproduzida pelo O Estado de S. Paulo sob o
Nesta entrevista, o chefe policial mostra-se satisfeito com a atuação, coragem e o ótimo
Estou plenamente satisfeito com a atuação dos nossos soldados das forças
volantes nos serviços da caatinga. (...) Durante a excursão que acabo de
fazer, recebi notícias alarmantes e pedidos de pessoas amigas, que me
8
O Estado de S. Paulo, 8/02/1928, p. 6.
59
caatinga, mostrando-se destemido, corajoso e seguro. Além disso, assegura que o cangaço
está quase extinto: “Considero o cangaço quase extinto. No sertão existe apenas o reduzido
grupo de “Lampião”, pois as nossas cadeias estão repletas de celerados...... não existem ,
nem crime, nem saques, que repercutam quebrando a paz da família brasileira”.10
Sabemos, no entanto, que essa afirmação do chefe de polícia não tem fundamento,
pois a historiografia informa-nos que o cangaço só será extinto em 1940 com a morte de
Corisco.
cooperação interestadual está em efetiva execução, como evidencia a matéria “Combate aos
execução. Essa ação conjunta acarreta alguns problemas ao policiamento regular de cada
constantes deslocamentos de seus efetivos policiais para além de suas fronteiras. Esta situação
pode ser observada na cidade de Princesa, no Estado da Paraíba, na qual o delegado pede
Pernambuco12.
Um mês e meio após esta notícia, é possível verificar que os pedidos de reforços
e troca de informações entre as autoridades policiais se constituem numa prática comum entre
os Estados, como nos mostra o telegrama enviado pelo chefe da polícia do Ceará ao de
9
Idem
10
O Estado de S. Paulo, 8/02/1928, p. 6.
11
O Estado de S. Paulo, 10/02/1928, p. 5.
60
Estado, com o intuito de auxiliar no combate ao banditismo. Sob o título Um encontro com o
tenente Arlindo tiveram um ligeiro encontro com o bando de Lampião num lugar
denominado Piçarra, no Estado do Ceará. Informou também que o tenente José Antonio,
pessoa de muita confiança, deixara Macapá em direção a Piçarra com o intuito de auxiliar no
possível a partir do referido convênio que derrubou os entraves que impediam a captura dos
deve-se aos sucessos de alguns confrontos em que alguns cangaceiros foram presos ou mortos
jornal O Estado de S. Paulo publica telegramas dos mais variados chefes de polícia, nos
bandoleiro, soldados feridos ou mortos, enfim, prestam contas da movimentação das Forças
Ao publicizar a movimentação das Forças Públicas, por meio de notícias amplia sua ação
além dos palcos de combate impondo ao fenômeno, desta forma, a mesma visão negativa
presente na fala policial. Vale lembrar que, na maioria das vezes, as notícias foram
12
O Estado de S. Paulo, 1/03/1928, p.6.
13
O Estado de S. Paulo, 31/03/1928, p. 7.
14
Idem.
61
elaboradas pelos chefes das forças públicas, o que as torna de certa maneira bastante
caráter tenebroso dos cangaceiros, que são descritos como perigosos facínoras, desordeiros,
cangaceiro teria proibido o sepultamento dos mesmos, e teria ordenado a irmã das vítimas
que não chorasse, pois caso o fizesse, o restante de sua parentela também seria eliminada. A
proibição ao sepultamento dos garotos mortos parece fantasiosa, uma vez que Lampião, em
decorrência de suas crenças religiosas, tinha por regra sepultar os cangaceiros mortos. Além
disso, não há indícios de que tenha profanado os espaços sagrados como cemitérios e igrejas.
Esta matéria sobre as crianças levanta a questão da atribuição de crimes aos cangaceiros que
refugiado no sertão de Alagoas, Lampeão ressurge e visa atravessar o São Francisco rumo à
sertão de Alagoas. É aí que se encontra a incoerência. Como pode Lampião estar refugiado
15
O Estado de S. Paulo,11/05/1928, p.6.
16
O Estado de S. Paulo, 23/08/1928, p.5.
17
O Estado de S. Paulo, 23/08/1928, p.5.
62
há oito meses em Alagoas, e no dia 11 de maio ter praticado tal crime em Pernambuco?
Considerando-se a distância a ser percorrida entre um Estado e outro, seria possível tal crime?
Através da análise das matérias publicadas pela imprensa paulista ao longo dos
meses de janeiro a junho de 1928, fica evidente que os cangaceiros incursionavam18 na região
Pernambuco. Estas incursões coincidem com as descritas pelos diversos especialistas que
grupo pode ser pensada como o resultado de sua estratégia de luta, ou seja, a subdivisão do
grupos por Lampião e o ataque simultâneo em lugares diferentes fazia parte de sua tática de
luta. O uso desta estratégia foi confirmado pelo memorialista Araújo20, que destacou ter sido
esta uma das mudanças introduzidas por Lampião no cangaço do século XX. A socióloga
Maria Isaura P. de Queiroz afirma que a cisão do grupo se deu nos anos de 1932 e 1936 em
função do acirramento das perseguições policiais. Tal estratégia era usada justamente para
18
Sobre este assunto consultar: MACHADO, Maria Christina M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São
Paulo: Brasiliense, 1978, p. 27 e 61. QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiros. São Paulo: Livraria Duas
Cidades, 1977, p. 112. FERREIRA, Vera. De Virgolino a Lampião: São Paulo: Idéia Visual, 1999, p.164 entre
outros.
19
Diz a autora: “Muitas vezes agiam separadamente, em outras ocasiões, unidos”. Enfatiza que: “Os
cangaceiros formavam um “quartel –general”, e esse é o ponto chave onde se encontravam os pequenos grupos
de 7, 10 ou, no máximo, 15 homens. Cada um tem um chefe que seguirá para pontos os mais diversos do
sertão.” MACHADO, Maria Christina M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978,
p. 39 e 42.
20
ARAÚJO, Antônio A.C. de. Lampião as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p.70.
63
jornal baiano, sob o título O que tem feito a polícia bahiana contra Lampeão e o seu bando21,
na qual o Dr. Arthur Xavier Costa, médico da Força Pública encarregado de perseguir
Lampião e o seu bando, destaca a eficácia com que tem se dado a campanha da polícia desse
Estado no combate ao famigerado bandido e sua horda. Salienta que embora os resultados
dessa investida estejam aquém dos esforços empregados, não tem sido dado aos bandoleiros
forças públicas, vítimas de Lampião e seu bando. A população nordestina apresenta-se nesta
entrevista como um elemento novo. Aqui é atribuído ao povo o sucesso de Lampião e seu
bando, viabilizado por meio de auxílios diversos e serviços de espionagem dos populares, que
permitiam o êxito em suas ações. Na opinião do chefe de polícia a população não colaborava
heroísmo das forças públicas um elemento cada vez mais concreto. Ou seja, estes últimos
banditismo já teria sido controlado. Contudo, estes “homens corajosos” das diversas forças
policiais não se intimidaram nem mesmo com a falta de apoio popular. Foram à luta
21
O Estado de S. Paulo, 02/02/1930, p.6
22
Idem
64
No final de sua entrevista Dr. Xavier enfatiza mais uma vez o heroísmo e coragem
de tais homens: “Apesar de apregoada valentia dos bandoleiro, certa vez cinco soldados
sem se renderem”.
imprensa. Assim, no dia 28 de janeiro de 1928, por exemplo, o jornal Ceará publica
sentença foi dada após aproximadamente quarenta e oito dias da data de prisão, sendo os
gozava Lampião e seu bando, unem-se por meio da associação com o intuito de reivindicar
providências governamentais para por fim ao cangaço. Representados pelo então presidente, o
sr. Almir Cordilho, enviam novamente ao Presidente Getúlio Vargas um telegrama pedindo
Esse segundo telegrama enviado à Getúlio Vargas foi reproduzido pelo jornal O
Associação Comercial.27 Neste, o sr. Almir Cordilho, enfatiza que os sertanejos estão a
23
Notícia reproduzida do jornal Ceará pelo jornal O Estado de S. Paulo, 21/02/1928, p.5
24
O Estado de S. Paulo, 21/02/1928, p.5.
25
O Estado de S. Paulo, 8/04/1928, p.7
65
indifferente a essa obra demolidora de nossos foros de paíz civilisado”. Nesta mesma notícia
campanha contra o banditismo no Estado. Esta notícia foi recebida com muito otimismo na
Bahia.
população. Nesta, enfatiza que os cangaceiros mostravam-se cada vez mais audaciosos,
“matando, roubando, attentando contra o pudor...”. O jornal, por meio de sua filial em
Salvador, salienta a credibilidade da notícia ao destacar que seus informantes são pessoas
destacar que incendiaram casas, e desonraram “oito moças” no município baiano de Campo
Formoso.
que teria “penetrado num município próximo onde marcou a ferro quente várias pessoas”.
Ora, numa mesma notícia é atribuído a Lampião e seu bando, a prática de atrocidades em
margens do rio São Francisco em Sergipe. O município de Campo Formoso possui uma
distância significativa em relação a Canindé, o que sugere que esteve apenas em um dos
26
O Estado de S. Paulo, 7/06/1931, p.4
27
Idem
28
O Estado de S. Paulo, 3/10/1931, p. 2.
66
municípios. Além disso, sinaliza para uma construção fantasiosa das atrocidades praticadas
nestes municípios citados, uma vez que seria improvável que Lampião estivesse presente nos
dois episódios.
A informação procedente de Sergipe nos parece mais aceitável, uma vez que a
da sra. Anízia (vítima da barbárie e selvageria dos cangaceiros) e do coronel José Rufino (ex-
esteve com seu bando em Canindé do São Francisco no ano de 1932, e marcou a ferro três
coiteiro cujo nome não é revelado, foi surpreendido pela volante no momento em que iria
comprar mantimentos para o grupo que estava refugiado em sua propriedade. Contou à
para os cangaceiros, o que seria pouco eficaz, já que Lampião tinha o costume de mergulhar
seu punhal de prata nos alimentos e bebidas que lhe eram oferecidos para verificar se havia
descobrisse que a pessoa tentou envenená-lo, esta seria morta imediatamente sob o efeito do
alimento que foi obrigado a ingerir. O coiteiro provavelmente tinha consciência das
29
O Estado de S. Paulo, 2/02/1932, p. 2.
30
Sobre o assunto consultar a historiografia: BARROS, Luitgarde Oliveira C. A derradeira gesta: Lampião e
Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Faperj/Mauad, 2000, p. 43 (depoimento da Sra Anízia, à
antropóloga em 1967) e QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os Cangaceiros. São Paulo: Livraria Duas Cidades,
1977, p. 154 (depoimento do coronel José Rufino) Entre os memorialistas consultar: ARAÚJO, Antônio A. C.
de. Lampião as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p. 78-79 (depoimentos do coronel João Bezerra
e do cangaceiro Zé-Sereno) e FERREIRA, Vera e ARAÚJO, Antônio A. C. De Virgolino a Lampião. São
Paulo: Idéia, 1999, p. 210-211 (depoimento do ex-cangaceiro Zé-Sereno).
67
implicações que lhe recairiam se tentasse enganar Lampião, e tratou logo de contar o plano da
pelos bandoleiros, também fica explícito nesta notícia. Mostra também as péssimas condições
Abordamos, anteriormente, o caráter heróico das forças policiais, que mesmo sem
encalço dos bandidos. Referimo-nos também ao “exagero”, utilizado pela polícia para
enfatizar sua coragem e valentia frente aos bandidos. Sendo assim, muitas vezes aumentavam
o número de cangaceiros nos combates para justificar perdas, e até mesmo o fracasso de uma
veiculada uma semana após o combate ocorrido na Bahia, num local distante quatorze
quilômetros da localidade de Parapiranga, onde a polícia enfatiza que o grupo era composto
por 30 homens, sendo que na semana anterior o coiteiro revelara que o grupo era composto
por 17 homens e 6 mulheres, somando um total de 23 pessoas. Fica claro que as forças
policiais aumentaram o número de bandidos para justificar o fracasso frente aos bandoleiros.
Se não fosse assim, por que então não revelaram a presença de mulheres no grupo? De acordo
com o coiteiro, dos 23 elementos, 6 eram mulheres, o que se traduz na presença de 17 homens
e não 30.
A polícia baiana, liderada pelo tenente Ladislau Reis, admite que: “No combate
morreu um policial e ficaram feridos alguns malfeitores que eram em número de 30. Nenhum
foi, porém, preso, visto terem sido transportados pelos companheiros”. Mostra-se otimista
quando afirma que “Com o actual plano de repressão os cangaceiros tem diminuído”.33
31
O Estado de S. Paulo 25/04/1934, p.2.
32
O Estado de S. Paulo 2/05/1934, p.14.
33
Idem
68
detalhes sobre o ocorrido. Lampião teria sido ferido em combate e falecido posteriormente em
função do desgosto de ter perdido o irmão caçula, e teria sido enterrado por seu pai. O
extinto, fez o Sr. Manuel Cândido, delegado de Pernambuco, aceitar prontamente a morte de
acordo com sua descrição “andava macambuzio depois da morte de seu irmão mais moço(...),
por isso, arrefecido em sua valentia (...) O famoso bandoleiro, ultimamente, andava
desgosto pela morte de seu irmão”. Essa notícia apresenta dois problemas: o primeiro diz
respeito ao enterro de Lampião feito pelo pai, uma vez que isso é impossível em decorrência
do mesmo ter falecido em 1921. O segundo, refere-se à perda do irmão caçula Ezequiel
Ferreira (cangaceiro-Ponto Fino). Este já havia falecido em 1931, o que torna improvável os
Nesta mesma matéria revela-se, ainda, que Lampião tinha duas amantes,
“caboclas e bonitas” 35. É possível que Lampião tenha tido casos extraconjugais, porém não
se pode afirmar que ele andava publicamente com outras mulheres, pois vivia maritalmente
com Maria Bonita. A atribuição de amantes a Lampião pode ser pensada como parte da
constituição do mito do cangaceiro que começa ser construído pela própria imprensa que,
partes do Brasil, e não se restringiu apenas à região nordestina. Passou a ganhar repercussão
34
O Estado de S. Paulo, 20/05/1934, p. 8.
69
na imprensa a partir das façanhas de Lampião, que se destacava nos noticiários por sua
valentia, coragem e destemor. Não demorou muito para que fosse reconhecido nacional e
internacionalmente.
brasileiros. Neste sentido, o texto assinado por F., intitulado Lampeão36, publicado no Rio de
Janeiro no dia 05 de agosto de 1938, e retransmitido pelo jornal O Estado de S. Paulo quatro
dias após a publicação carioca, mostra-se valioso para compreendermos a concepção deste
indivíduo, que embora se encontre distante da zona afetada pelo cangaceirismo, analisa de
modo crítico e se posiciona a respeito do mesmo. Publicado oito dias após o massacre em
Angico (Sergipe)37, no qual morreram Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros, F.
mostra-se indignado com o sensacionalismo apregoado pela imprensa, que tem “ comentado
largamente a façanha das volantes de um dos Estados do Nordeste, que acabam de eliminar
photographias dos “heróes” das milícias estaduais, tudo isto, (....) tem sido publicado com
imprensa causa-lhe repugnância; além disso, considera muito prejudicial para o país, pois
acredita que tais notícias não demorariam muito para transpor o “Atlântico” e parar nas
uma vez que veiculou de maneira exacerbada fotografia de cangaceiros mortos, cabeças
35
Idem, p.8
36
O Estado de S. Paulo, 09/08/1938, p.3.
37
O Estado de S. Paulo, 29/07/1938, p.2.
70
decepadas dos corpos, entre outros, transpondo dessa maneira o cangaço de um âmbito
associada à “barbárie”, dando a impressão de que o mesmo era “incivilizado”. Justifica que
esta visão não poderia ser generalizada, pois o cangaço teria sido um fenômeno regional,
sua narrativa: “(...) lá estão, aos olhos das multidões de paízes civilisados, alguns aspectos do
interior do Brasil!”.
que se forja pela ausência de instrução que resulta da miséria reinante no sertão, e promotora
e sua rede de relações, pois acabaria com o fanatismo religioso exacerbado, proporcionando à
população um senso crítico. Enfatiza que: “Todos esses males, entretanto, provêm única e
adeus bandidos, adeus santos, adeus “coiteiros”. Ressalta que a postura negligente e apática
flagello tão grande quanto o das seccas periódicas, o da falta de transportes, o da crendice
fechado’ ”40.
carioca - que não se identifica - na matéria intitulada A cabeça de Lampeão41, publicada logo
38
O Estado de S. Paulo, 09/08/1938, p.3.
39
Idem
40
Ibidem
71
revela qual) ressalta: “Serão expostas no Rio as cabeças de Lampião e Maria Bonita”.
Defende veementemente que: “Há de haver engano. Não podemos crer que os
fóros de cidade civilisada, de que tão zelosos se mostram os cariocas, sejam afrontados por
esta injúria”. Ressalta que tal comportamento é compreensível no Nordeste: “(...) quando em
salmoura, em latas de kerozene, para a Capital do Estado, onde esses macabros trophéus
acreditar que houve “um lamentável engano por parte do matutino que hontem a divulgou”.
Incita as autoridades federais, “num movimento de pudor”, a impedir a exibição dos despojos
de Lampião e Maria Bonita, caso a manchete se concretize. Argumenta que “Já é tempo, por
certo, de se deixar agitar este assumpto diante dos olhos do público. Não é pouco o que
Termina seu texto da seguinte forma: “E que fique ahi encerrado o assumpto, que não nos faz
honra nenhuma. Afinal de contas, o Brasil não é isso!”, revelando um profundo sentimento
41
O Estado de S. Paulo, 16/08/1938, p. 1
42
Idem
43
O Estado de S. Paulo, 16/08/1938, p. 1
72
República.
suas páginas mantém um intenso debate sobre o fenômeno. O periódico carioca não tinha uma
coluna específica para discutir esta problemática; os artigos sobre o banditismo estão
espalhadas ao longo de suas páginas. Cabe destacar, entretanto, que possuía uma coluna
intitulada Os Estados pelo telégrafo, na qual informa os acontecimentos mais importantes dos
Estado de S. Paulo, que ao retransmitir as notícias veiculadas nos jornais nordestinos locais
acaba reforçando a concepção do poder constituído, o periódico carioca por meio de seus
causas que permitiram o surgimento de tal fenômeno e sinaliza para algumas possibilidades
de controle do banditismo.
Bittencourt, e circulou durante 73 anos, sendo extinto em 1974. Destaca-se por ser um
partidário. Era um jornal de opinião, que se posicionava frente às mais variadas questões sem
se vincular a políticos.
73
da causa da justiça, da lavoura e do comércio, isto é, do direito do povo, de seu bem estar e
de suas liberdades”. Leal enfatiza que uma característica marcante do periódico é a sua
contra qualquer ação violenta e coercitiva praticada pelo poder constituído contra a população
poder e os atos violentos praticados pelo governo, sobretudo durante a vacinação contra a
varíola no Rio de Janeiro. A atitude do jornal refletia sua posição frente a um fenômeno mais
deslocados de suas moradias (cortiços) no centro da cidade para a periferia, na maioria dos
a prisão de Edmundo Bittencourt), Gil Vidal46 (pseudônimo de Leão Veloso Filho), o senador
alagoano Pedro da Costa Rego47 (redator-chefe em 1923), Paulo Bittencourt48 (recebe do pai a
44
LEAL, Carlos Eduardo. Correio da Manhã. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930.
ABREU, Alzira Alves de (coord.). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. III, p. 1625-1632
45
Edmundo Bittencourt jornalista e fundador do periódico carioca Correio da Manhã. FERREIRA, Marieta de
Morais. Paulo Bittencourt. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. ABREU, Alzira
Alves de (coord.). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. I, p. 687-688.
46
O articulista Pedro Leão Veloso Filho escreve para o Correio da Manhã, com o pseudônimo de Gil Vidal, no
qual assume o cargo de redator-chefe. Veloso Filho foi fazendeiro em São Paulo, graduado em direito exerceu e
lecionou a disciplina. Também acumulou os cargos de juiz e promotor público. Em 1884, ocupou o cargo de
chefe de polícia do Paraná, e de São Paulo em 1889. Além disso, foi presidente da província de Alagoas durante
o período de julho a agosto de 1888 e deputado federal de 1906 a 1917. PECHMAN, Robert. Pedro Leão
Veloso. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. ABREU, Alzira Alves de (coord.). Rio de
Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. V, p. 6015-6016.
47
Pedro da Costa Rego nasceu em Pilar (AL) no dia 12 de março de 1889. Em 1900 mudou-se para o Rio de
Janeiro, onde cursou o ginásio no Colégio São Bento. Em 1907 inicia sua carreira jornalística como colaborador
da Gazeta de Notícias e do Correio da Manhã, ambos no Rio de Janeiro. Iniciou sua carreira como revisor,
depois como repórter e foi gradualmente ascendendo na hierarquia do jornal. Em 1912 tornou-se secretário de
Agricultura do estado de Alagoas. Elegeu-se deputado federal por Alagoas na legenda do Partido Democrático
de seu estado em 1915-1918. No ano seguinte viajou para Paris como representante do Correio da Manhã com o
74
direção do jornal em 1929), M. Paulo Filho (diretor em 1934), Rodolfo Mota Lima49, Carlos
intuito de acompanhar os trabalhos da Conferência da Paz. Em 1921, foi reeleito deputado federal, e assumiu a
liderança de seu partido. Dois anos depois, tornou-se chefe-redator do Correio da Manhã. Em 1924 elegeu-se
governador de Alagoas, cargo que exerceu até 1928. Criou em 1932 uma coluna no Correio da Manhã, na qual
defendia o federalismo e criticava o governo revolucionário. Além disso, denunciava os gastos indevidos do
governo e criticava, sobretudo, atuação de Osvaldo Aranha à frente do Ministério da Fazenda. Constantemente
vigiado pela censura, Costa Rego demonstrava irreverência e satisfação em ter o censor como um leitor
assíduo. Em 1935, reelegeu-se senador por Alagoas e teve o mandato interrompido com a decretação do
Estado Novo (1937-1945). Entretanto, isso não o afastou da vida política. Em 1945, com o enfraquecimento do
Estado Novo, participou da primeira reunião do diretório nacional da União Democrática Nacional (UDN). Em
1951 atuou como delegado brasileiro na Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em
Nova Iorque. Colaborou como o jornal carioca O Século, e ocupou o cargo de diretor do Banco de Crédito e
Comércio de Minas Gerais. Faleceu em 1954 na cidade do Rio de Janeiro. ABREU, Alzira Alves de (coord.).
Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. V, p. 4945-
4946.
48
Paulo Bittencourt nasceu no Rio de Janeiro em 1895, filho de Edmundo Bittencourt e de Amália Muniz Freire
Bittencourt. Em 1912 fez cursos na Universidade de Cambridge, Inglaterra, e no ano seguinte, de volta ao
Brasil, ingressou na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Integrou em 1919 a delegação
brasileira na Conferência de Paz de Versalhes, França. Nesse mesmo ano começou a trabalhar no jornal de seu
pai – Correio da Manhã – tornando-se chefe-redator em 1929, daí por diante sua vida se confundiria com a
história do jornal. Manteve a linha que caracterizou o periódico desde o início como um órgão combativo,
participante e isento de compromissos partidários, constituindo-se num jornal de opinião. Apoiou a Revolução
de 1930, contudo pouco tempo depois começou a fazer críticas e oposição ao governo de Getúlio Vargas,
defendendo a reconstitucionalização do país. Em 1932 o jornal se manifestou favorável à Revolução
Constitucionalista de São Paulo. Nem mesmo a convocação da Assembléia Nacional Constituinte em 1933 e a
eleição de Vargas à presidência minimizaram as críticas do jornal ao chefe Executivo, acusado de manipular o
processo político para manter-se no poder. Paulo Bittencourt, por meio do jornal, moveu intensa campanha
contra Vargas. Em 1937, com a decretação do Estado Novo, toda a imprensa sofreu rigorosa censura. Contudo,
o periódico manteve-se na oposição e desenvolveu intensa luta pela liberdade de imprensa. Essa campanha
rendeu a Paulo Bittencourt o Prêmio Maria Moors Cabot, concedido pela Universidade de Columbia, EUA.
Bittencourt participou ativamente da política do país, por meio do jornal, criticou toda e qualquer forma de
opressão e censura. Defendeu os direitos à liberdade e à legalidade opondo-se aos governantes que
desrespeitassem tais direitos. Em 1963, em função de sérios problemas de saúde se afastou das atividade do
jornal. Faleceu em agosto desse mesmo ano em Estocolmo, na Suécia. FERREIRA, Marieta de Morais. Paulo
Bittencourt. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. ABREU, Alzira Alves de (coord.).
Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. I, p. 687-688.
49
Rodolfo Pinto da Mota Lima, natural de Alagoas, nasceu em 22 de fevereiro de 1891. Realizou os primeiros
estudos em seu estado de origem, e concluiu o curso secundário no Rio de Janeiro. Iniciou atividade
jornalística como redator do Correio da Manhã em 1911 e redator-secretário de A Notícia até 1920. Pertenceu
ao Partido Liberal Democrata em 1922. Participou ativamente do movimento revolucionário de 1930, que
depôs o presidente Washington Luís. Em 1931, tornou-se funcionário municipal no Rio de Janeiro, e entrou
para o Clube 3 de Outubro, organização criada em maio desse ano, que tinha como objetivo congregar as
correntes tenentistas partidárias da manutenção e do aprofundamento das reformas instituídas pela revolução.
Em 1934, elegeu-se deputado por Alagoas; na Câmara combateu o fascismo, condenou os nacionalistas
espanhóis, a invasão da Abissínia pelos italianos e a atuação dos integralistas no Brasil. Com a decretação do
Estado Novo seu mandato foi interrompido em função da dissolução dos órgãos legislativos do país. Em função
de sua militância política foi preso nesse mesmo ano. Durante o período da Segunda Guerra Mundial (1939-
1945) voltou a exercer função jornalística em O Globo e ocupou outros cargos públicos pela prefeitura do Rio
de Janeiro. Faleceu nessa mesma cidade em 8 de março de 1948. ABREU, Alzira Alves de (coord.). Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. III, p. 3186-3187.
50
Carlos Frederico Werneck de Lacerda, nasceu em 30 de abril de 1914, no Rio de Janeiro, e realizou os cursos
primário e secundário em sua cidade natal. Iniciou sua carreira profissional em 1929, escrevendo artigos para o
Diário de Notícias, numa seção dirigida por Cecília Meireles. Em 1932, ingressou na Faculdade de Direito da
Universidade do Rio de Janeiro, contudo abandona o curso dois anos depois, alegando que não correspondia
com suas expectativas. A família de Lacerda altamente politizada se destaca pela intensa participação no
75
cenário político do país, seu pai foi eleito deputado federal de 1912 a 1920, revolucionário de 1922 e 1924 e
novamente deputado federal e revolucionário em 1930. Além disso, foi membro ativo da Aliança Nacional
Libertadora (ANL), e acusado de envolvimento no levante comunista de 1935. Fernando e Paulo Lacerda, tios
de Carlos Lacerda, foram líderes do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ainda na universidade aproximou-se
da Federação da Juventude Comunista, órgão do PCB, que objetivava debater formas de luta contra a
expansão do fascismo no Brasil, representado pela Ação Integralista Brasileira (AIB). Sua trajetória de vida é
marcada pelo envolvimento e atuação na política do país frente a ANL e o PCB. Em 1939 Lacerda rompe com
os comunistas, de acordo com Vilma Keller, ele teria se convencido de que a “solução comunista”, implicava
na instituição de “uma ditadura, pior do que as outras, porque muito mais organizada, e, portanto, mais difícil
de derrubar”. Em um artigo encomendado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Lacerda
descreveu a trajetória do comunismo no Brasil e teria afirmado no final que “graças ao Estado Novo, o PCB
havia sido desbaratado e seus líderes presos”. Tal declaração teria causado indignação entre os comunistas que
lhes acusaram de traidor. KELLER, Vilma. Carlos Lacerda. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro –
Pós 1930. ABREU, Alzira Alves de (coord.). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. III, p. 2979-2990.
51
Daniel Serapião de Carvalho nasceu em Itabira (MG) no dia 9 de outubro de 1887. Após cursar o primário e o
secundário em Barbacena –MG, seguiu para Belo Horizonte, matriculando-se na Faculdade de Direito. Em
1906, assumiu a direção do jornal O Estado de Minas, no qual permaneceu até 1914. Também foi redator da
Tribuna do Norte e do Diário de Notícias. Em 1912, transferiu-se para o Rio de Janeiro, por ter sido nomeado
inspetor da Fazenda Federal. Em 1913 retornou a Belo Horizonte, local em que exerceu importantes cargos
públicos. Em 1922, Daniel de Carvalho elegeu-se deputado estadual pelo Partido Republicano Mineiro (PRM).
Nesse mesmo ano renunciou ao mandato de deputado para assumir a Secretaria de Agricultura, Viação e Obras
Públicas do Estado. Foi eleito deputado federal na legenda do PRM para o período de 1927-1929. Carvalho se
identificou com os propósitos da Aliança Liberal, formalmente criada em agosto de 1929. Apoiou as
candidaturas de Getúlio Vargas e de João Pessoa , respectivamente para presidência e vice-presidência. A
trajetória política de Carvalho é ampla, contudo destacamos sua atuação na Assembléia Nacional Constituinte
em 1933, eleito pelo PRM. De acordo com Silvia Pantoja, “defendeu na Assembléia o federalismo e a
autonomia dos municípios, os quais, em sua opinião, estavam cerceados na sua liberdade cívica e política
devido ao controle exercido pelos chefes locais sobre os cidadãos (...)”. Ao longo de sua carreira política atuou
como deputado federal inúmeras vezes e assumiu a pasta do Ministério da Agricultura em 1946, onde
permaneceu até 1950. Além da política, exerceu a cátedra de direito civil na Pontifícia Universidade Católica
(PUC) do Rio de Janeiro e a de instituições de direito privado na Faculdade Nacional de Ciências Econômicas,
na qual lecionou direito internacional e comercial. PANTOJA, Silvia. Daniel de Carvalho. In: Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. ABREU, Alzira Alves de (coord.). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC,
2001, v. I, p. 1168-1170.
52
Gratuliano da Costa Brito nasceu em São João do Cariri (PB) no dia 6 de setembro de 1905. Bacharelou-se em
ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito de Recife em 1926. Em 1930 filiou-se à Aliança Liberal,
após a revolução de outubro desse ano foi convidado a integrar a Comissão Corregedora da Justiça Federal na
Paraíba. Em 1932 foi efetivado como interventor federal na Paraíba. Durante seu governo inaugurou o porto de
Cabedelo, cujas obras tinham sido iniciadas na gestão anterior. Organizou as polícias militar e civil, e
reestruturou o sistema de arrecadação do estado. Em 1934, foi eleito deputado federal pela legenda do Partido
Progressista (PP) da Paraíba, permanecendo no cargo até 1937 quando o golpe do Estado Novo suprimiu todos
os órgãos legislativos do país. Afastado da política, atuou como delegado da Associação Comercial da Paraíba
junto à Federação das Associações Comerciais do Brasil. Também se dedicou a atividades jornalísticas e
empresariais. Faleceu no Rio de Janeiro no dia 27 de janeiro de 1982. ABREU, Alzira Alves de (coord.).
Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. I, p. 826-827.
76
Correio da Manhã acerca da polêmica entrevista do sr. João Pessoa, governador da Paraíba,
os bandidos profissionaes do Nordeste, atribue o facto á protecção que certos governos dao
esta prática por alguns estados nordestinos. Porém, esclarece que naquele momento a
acusação que recaía sob o Ceará não fazia sentido. Afirma que é “ uma grave injustiça por-
do banditismo. A polícia cearense, actualmente, não tem se collocado a serviço dos chefes de
cangaço. Ao contrário, todos estes figurões até agora têm vivido afastado do convívio dos
governantes cearenses”. Destaca que o chefe de polícia do Ceará é “um moço ainda não
estragado pela politicagem” e justamente por isso, “sua demissão já tem sido pleiteada pelos
Mattos Ibiapina esclarece que concorda em parte com a fala de João Pessoa;
contudo, mostra-se contrário a sua opinião a respeito do Ceará. Argumenta que pode se
acusar este Estado de “pae, mãe, avô, avó, da fraude eleitoral, nunca, porém, de comparsa
do cangaceirismo”. Nota-se na fala do jornalista que ele admite sérios problemas no campo
combater o banditismo.
53
Correio da Manhã, 14/01/1930, p. 3.
77
sertões do Nordeste, Goyaz e Matto Grosso, a sua palavra é acatada como a de um oraculo,
sendo de notar que onde elle tem mais força sobre os mesmos é no Ceará”.
Justifica que padre Cícero “recebe em Joazeiro, o bandido mais temível, pelos
mesmos motivos porque acolhe o político perseguido ou a decaída que recorre aos seus
conselhos”. Fica evidente neste trecho que o jornalista deseja desvincular a imagem do
contravenções.
Referindo-se a uma conversa que teve com padre Cícero a respeito do banditismo,
procura sintetizar a posição do religioso sobre o assunto. De acordo com Ibiapina, o padre
(...) victimas das injustiças ambientes. Geralmente, o seu primeiro crime era
um acto de reacção contra violências das polícias ou dos elementos políticos
protegidos pelos governos. Vendo inúteis os seus esforços para obter
reparação dentro da lei, elles, porque eram fortes resolviam fazer justiça por
suas mãos (...) Perseguidos, elles reagiam a principio individualmente e
depois reunidos em grupo. Os roubos e assassinatos que se succediam a esse
passo, eram impostos pelas necessidades de defesa. Elles são victimas do
meio.54
função das injustiças sociais tanto na esfera política como na jurídica. O padre atribui aos
uso da violência pelo poder constituído e à ausência de uma justiça legal e efetiva. Fica claro
nestes trechos a concepção de cangaço para o religioso, e ainda, que foi um dos maiores
78
coiteiros de Lampião, e que manteve uma ampla rede de relações entre cangaceiros e seus
“amigos” em Goyas.
evidente que tanto na opinião do jornalista como na do religioso, o cangaço se constitui num
Ao ser indagado pelo Correio da Manhã sobre as possíveis soluções para o fim do
“impossível” por fim ao cangaço enquanto “houver governos que ponham em prática os
saquear cidades nos Estados vizinhos e com elles dividir o producto do roubo”. Daí a
afirmação de que alguns governos agiam como os bandoleiros. Sendo assim, em seu
entendimento seria “impossível e injusto, prender Lampeão que é um valente que arrisca a
vida na execução de seu programa e deixar que os Dantas e os Moreirinhas, continue uma
iniquidade”. Para ele, o que diferencia estes políticos de Lampião, é que este último vive à
margem da lei, enquanto aqueles a “representam”. Portanto, para Ibiapina a solução para o
enfatiza a complexidade que envolve a “extinção do cangaço”. Salienta que mesmo que
sejam tomadas as armas, ainda permanecerá o “espírito de cangaceirismo, por força das
54
Correio da Manhã., 14/01/1930, p. 3
55
Correio da Manhã,19/01/1930, p. 2.
79
próprias condições sociais em que o arbítrio dos fortes substitui as normas da boa justiça”.
condições de trabalho aos sertanejos, educação e a aplicação dos preceitos da lei. Enfim, que
criminalidade.
“imaginação popular ama e cultiva as lendas, nellas encontrando sempre motivos de emoção
e poesia”. Refere-se á crescente divulgação das práticas dos cangaceiros, por meio da
governantes.
mecanismo, pois a construção veiculada pelo cordel acaba reforçando as práticas dos
bandidos, ou seja, a representação desta imagem leva á ação dos bandoleiros. Estes
desta forma determinada representação do “ser cangaceiro”. Lampeão, dentre muitas facetas,
destaca-se pela fama de valente, viril, sedutor. Esses traços de sua personalidade são
56
Ibidem
57
Correio da Manhã, 24/01/1930, p. 4.
80
jornais de grande circulação como O Globo, e algumas revistas ilustradas do país, como: A
matérias problematizar a questão destacando as causas e as possíveis soluções para por fim ao
opinião do padre Cícero enunciada pelo jornalista Mattos Ibiapina, e critica de maneira
ou seja, a prática da violência. De acordo com M. Paulo Filho, o uso da força pelos poderes
a ação dos cangaceiros na região sertaneja. Além disso, contribuem para a banalização desta
prática.
Prossegue sua crítica ressaltando que as lendas sobre Lampião são reforçadas
pela figura emblemática do “reverendo Cícero Romão”. Destaca quão nocivas são essas
lhe a impressão de que os bandoleiros são uns inocentes e uns justos, enquanto que a
sociedade, que os persegue para delles se defender, é que é a peor bandida”58. Discordando
58
Correio da Manhã, 24/01/1930, p. 4.
81
O trecho acima revela que para o jornalista o cangaço resulta das condições:
político, social e física dos sertões. Fica claro em sua fala que a instrução e a disciplina
orações e alguns patuás para protegê-lo. No filme Lampeão: o rei do cangaço, produzido pelo
sírio-libanês Benjamim Abrahão Boto em 1936, há cenas dos rituais religiosos conduzidos
por Lampião, nos quais todos os cangaceiros se ajoelham em sinal de respeito para rezarem.
banditismo.
muito bem nos bilhetes que enviava às autoridades sertanejas dos diversos povoados, aos
59
Correio da Manhã, 29/01/1930, p. 3.
60
Ibidem
82
quais solicitava quantias em dinheiro para não invadir a localidade, ou para resgatar a vida
destaca que os populares trabalham “apenas para viver, porque inútil é tentar fortuna”, pois
“se a seca não devora o producto do seu esforço, do bandido político-social elle não
escapa61.”
palavra desconhecida”, e que a “assistência religiosa também é quasi nulla”. Dirige-se aos
religiosos de maneira dura, argumentando que o “padre que deveria ser o mentor espiritual
dos sertanejos, não tem entre nós funcção catechista. Quando não é elle mesmo, grande
proprietário e político, allia-se (...) a esses dois algozes da massa proletária. Não tem
contacto com o operário senão nas festas da egreja, que não passam de divertimentos
mundanos, de que o padre se aproveita para retirar maiores proventos de sua profissão”62.
Ibiapina destaca que este é o universo em que vive o sertanejo, como se não
bastasse tudo isso, ainda estão a mercê das forças volantes que foram recrutadas “nas mesmas
especializaram como valentões, sendo muitos deles responsáveis por crimes de morte. A sua
passagem pelos sertões causa pavor á população ordeira. Satisfazendo seus instintos, elles
pelos mais futeis pretextos, commetem toda a sorte de atrocidades contra os sertanejos
indefesos”63. Critica duramente os políticos e religiosos que utilizam o poder para satisfazer
61
Correio da Manhã, 29/01/1930, p. 3
62
Idem.
63
Ibidem.
83
populares.
Argumenta M. Paulo Filho, que a solução para acabar com o cangaço, está muito
regiões sertanejas. No artigo A evolução do cangaço64, concebe tal fenômeno enquanto uma
profissionalização do crime, e enfatiza que ele não é uma criação da República, mas que tem
suas raízes desde o princípio da Monarquia. Afirma que era uma prática comum nos
“municípios mais remotos e mais ignorados” o uso das armas na defesa dos interesses
o Conselheiro de Canudos. Na República, cita o caso do coronel paraibano José Pereira Lima,
da cidade de Princesa, que para garantir seus interesses utilizava os serviços desta “gente
Antônio Conselheiro, o coronel José Pereira Lima e Lampião são igualmente considerados
pela chefia e comando de bandos independentes, que viviam no nomadismo. Todos são
Prossegue sua crítica enfatizando veementemente que “não foi a República que
64
Correio da Manhã, 21/03/1930, p. 4.
84
associado diretamente à disputa pelo poder e à cooptação política. Nota-se quão ampla é a
“fornecedores amigos” com preços acima do valor de mercado, evidenciando uma clara
Indica que o banditismo movimentava um amplo negócio naquelas zonas infestadas, e que
não era interessante por fim à “fonte” geradora de lucros e acordos políticos vultuosos.
A questão levantada por M. Paulo Filho recebe maior atenção quando voltamos
nosso olhar para a matéria veiculada em 23 de janeiro de 193065, em que o chefe de polícia
comenta a respeito da campanha que vem sendo desenvolvida no Estado contra o bando de
forças policiais nos confrontos que tiveram com os cangaceiros. Enfatiza que o capitão José
das forças, augmentando-se assim o número dos carros que estavam a disposição dos seus
volantes e permitir o êxito da campanha saneadora”66. Além destas medidas, o sr. Madureira
de Pinho afirma ter reforçado vários municípios enviando contingentes a pontos estratégicos
65
Correio da Manhã, 23/01/1930, p. 3
66
Idem
85
eventualidade de um ataque”67.
Há aqui, sinais de que a questão da corrupção demarcada por M. Paulo Filho se faz
totalmente plausível, pois apesar de todo aparato tecnológico e automotivo, como o uso de
caminhões para transportar as tropas, além do trem e das melhorias nos meios de
por quase dez anos, até ser definitivamente extinto com a morte de Corisco em 1940.
imaginação sertaneja as lendas e as poesias que pode recolher.68” Conclui seu artigo
políticos: “O cangaço, que já tem o seu Papa Negro na figura quasi centenária do Padre
Cícero, tem agora o seu Metternich no vulto caboclo do coronel José Pereira de Lima. É já
pelo professor e colaborador do Correio da Manhã, Ignácio Raposo, que ao discorrer sobre
o banditismo em seu artigo Lampeão70, discute sua origem e se posiciona sobre o assunto.
Inicia seu artigo referindo-se ao cangaceiro Antônio Silvino, que percorreu algumas regiões
do sertão praticando crimes e espalhando terror entre a população e que sua história de vida e
suas práticas teriam sido ampliadas pela literatura de cordel, que alimentava a “imaginação
67
Ibidem
68
Correio da Manhã, 21/03/1930, p. 4.
69
Ibidem
86
popular (...) que se espalha, cheia de gravuras pelos profusos cordéis dos pontos de
engraxate”71.
população sertaneja lhe devota “a mais forte admiração e decorrentes desta uma respeitosa
estima”, e que a “imaginação rudimentar do povo” alimenta um certo entusiasmo por tais
espíritos naturalmente inclinados para o crime se tornam cangaceiros por uma tendência
que lhes é própria e não raro desenvolvida pela cega admiração que lhes votam em regra os
O professor argumenta, com base em sua experiência pelas regiões dos vastos
sertões nordestinos, que o cangaço funcionava como um mecanismo de defesa para quem
pudesse usufruir dos seus serviços. Acrescenta que “alliados por uma necessidade de defesa
recíprocra, conheci nos sertões até juízes de direito que protegiam cangaços, e um sacerdote,
aliás estimadíssimo em todo alto sertão (...) padre Felix...”. Percebe-se em suas palavras
70
Correio da Manhã, 4/01/1931, p. 1 (suplemento de domingo).
71
Idem
72
Ibidem
87
banditismo.
“necessidade de defesa entre pessoas”, não teríamos nos sertões brasileiros tantos
também se utilizam desta prática para salvaguardar seus interesses. Critica a postura destes
poderes constituídos, que via de regra, deveriam zelar pela segurança e bem estar da
população, contudo alimentam este tipo de crime ao utilizar seus serviços. Pode-se afirmar
governo do Joazeiro:
Finaliza seu artigo com a seguinte crítica: “As forças do governo nunca
destruirão os cangaços porque é nelles que se estriba a prepotencia da maior parte dos
A campanha contra Lampião ganha dimensões cada vez mais amplas. Na matéria
73
Correio da Manhã, 4/01/1931, p. 1 (suplemento de domingo).
74
Ibidem.
75
Correio da Manhã, 7/08/1931, p.1.
88
reivindicam providencias do Governo Federal76. Nota-se que as pessoas não tinham mais a
quem recorrer, restava apenas contar com a ajuda das autoridades federais. Sendo assim,
Vale lembrar que neste momento o Governo Provisório tinha outros objetivos, ou
seja, manter-se no poder. Para tanto, Getúlio Vargas precisava contar com o apoio dos
diversos chefes políticos do país, inclusive os do Nordeste, que angariariam o apoio das
zonas sertanejas infestadas pelo banditismo. Este mecanismo político implicava na aliança
Sabemos que as raízes do cangaço eram profundas e sua emergência estava intimamente
ligada aos privilégios políticos das autoridades locais, e acabar com eles significaria “perder”
possíveis apoios ao governo. Isto fica mais evidente com a solidificação de Getúlio Vargas
no poder.
nacional, pois representava o atraso do país. Diante de tal quadro cabia ao Governo Federal
eliminá-lo. O esforço do governo em criar uma nova imagem para o país, que o
governo a partir de meados de 1937 no sentido de eliminar tais grupos. De fato o fim do
cangaço se inicia em 1938 com a morte de Lampeão e mais dez cangaceiros, sucedida por
uma intensa campanha de “entregas” voluntárias e termina em 1940, com a morte de Corisco
76
Diz o grupo baiano: “Nós, os da imprensa, num brado angustioso de socorro, appellamos para o illustre sr.
Chefe do governo provisório da República, no sentido de exterminar-se com a força federal, o bandido que
89
apesar de cometer toda sorte de crimes, desonrando lares, semeando morte, destruindo
famílias, deixando viúvas e órfãos desamparados, enfim, “crimes indescriptiveis pela sua
hediondez, pela sua mostruosidade”, não era punido por tais práticas.
despertam sérios debates entre os articulistas do periódico carioca. Neste sentido, vale
recuperar o trecho em que M. Paulo Filho78 discorda das críticas lançadas ao sr. Juracy
Magalhães. De acordo com o articulista, Magalhães teria declarado que durante seu governo
desta posição, M. Paulo Filho enfatiza que a extinção do cangaço representaria “um alto e
meritório serviço não só aos bahianos como a todas as populações nordestinas. Digo mais
Critica a forma como o poder constituído vem ignorando este problema, que em seu
nacional.
República criou uma certa nostalgia por parte da população sertaneja em relação à realeza
que sempre a ignorou. Enfatiza que a Monarquia “devorada por outras occupações não teve
tempo de sanear e instruir os sertões immensos”; critica a conduta de D. Pedro II, que mais
roubou em mais da metade de nosso Estado a tranquilidade de um povo bom e justo, trabalhador e patriota”.
Correio da Manhã, 7/08/1931, p. 1.
77
Idem
90
O trecho acima sinaliza que a República não foi vista com bons olhos pelos
entre outros, só foram desvelados com a República. Além desses problemas, as secas, as
doenças, o encarecimento da vida e a não indenização dos escravos abolidos também foram
Lampião nas tropas legalistas encarregadas de combater a Coluna Prestes em 1926. Afirma
que Lampião:
78
Correio da Manhã, 18/09/1931, p.4
79
Ibidem
80
Diz o articulista:“A República nascera sob um mal signo. Encarecera a vida. Martirizara o povo. Os
sertanejos, na sua maioria, sem embargo dos sacrifícios do abolicionismo, continuaram, até por superstição, na
fidelidade ao regalismo.Essa fidelidade gerou alguns focos de cangaço aqui e ali radicados, até constituir-se o
bloco perigoso e fatal da jagunçada de Antonio Conselheiro.” Correio da Manhã, 18/09/1931, p. 4.
91
impunidade do bandido.
sertanejas do sul do país. Percorrendo as páginas do Correio da Manhã, nos deparamos com
1931, o periódico informa a existência do Lampeão do Sul, que causava intranqüilidade nos
periódicos e revistas ilustradas, e como suas práticas foram apropriadas e reproduzidas por
representação ao mesmo tempo que significa determinado objeto também leva a ação. Se
tomarmos a imagem de um santo como referência, verificaremos que ele traz um significado
que lhe é intrínseco, ou seja, a divindade, o sobrenatural, o milagre. Estes elementos levam,
enfim, desencadeia uma ação. O mesmo mecanismo se aplica à Lampião, ao ser representado
como um homem valente, corajoso, terrível e sedutor, ele acaba se apropriando de tais
destacaram as condições que engendraram este tipo de criminalidade no Nordeste. Dentre elas
81
Correio da Manhã, 18/09/1931, p. 4.
82
Ibidem
83
Correio da Manhã, 5/12/1931, p. 6.
92
dificultava a formação mais ampla do indivíduo, a ausência de uma justiça que atendesse de
carência dos benefícios citados acima, os sertanejos criaram formas de convívio baseada no
cumprimento de algumas normas morais, como o revide a uma afronta sofrida, seja com
vizinhos ou familiares. A honra familiar e a moral sertaneja eram garantidas pela prática da
exercício da justiça.
Nas regiões do Paraná e Santa Catarina isso não se repetia. Contudo, as práticas
de Cypriano Moreira de Andrade, vulgo “Lé” eram semelhantes às de Lampião e seu grupo:
escolta e impedindo a ligação com autoridades policiais das localidades para onde se
dirigiam”84
por motivos banais teria discutido com “dois assistentes”, matando-os. Tal ação o teria
84
Correio da Manhã, 5/12/1931, p. 6.
85
Correio da Manhã, 5/12/1931, p. 6.
93
descrever o terror praticado por Lampião se repete com “Lé”, igualmente comparado a
Satanás.
para transformá-lo num mito, também se repetia com o Lampeão do Sul. Informa que apesar
“conhecedor perfeito do sertão (...) apagava todas as pistas apparecendo ora aqui, ora ali, já
então, como chefe de um perigoso grupo, a matar e saquear, espalhando o error em todos os
pontos onde apparecia”86. Nota-se que as investidas frustadas das forças policiais são
conseqüências do poder sobrenatural dos bandidos, assim como acontecia com Lampião e seu
bando. As derrotas das forças policiais são atribuídas a alguma força oculta que protegia os
orações: Oração de Santa Catharina e Oração contra quem nos quer mal, reproduzidas na
íntegra pelo periódico. Tais orações funcionavam como amuletos, sustentando o caráter
sobre-humano do bandido.
responsável pela prisão de “Lé”, revela que o bandido conseguiu cortar as cordas que o
amarravam sem dar explicações de como conseguira realizar tal façanha. Indagado a respeito
dessa prática, teria respondido que: “- Cordas não me amarram, nem nada me amarra. Eu se
não fujo é porque não quero, porque estou sendo bem tratado”88.
86
Idem
87
A notícia informa a participação de “auxílio de particulares” no combate a “Lé”, que acreditamos se constituir
num modelo semelhante às volantes no Nordeste brasileiro, ou seja, o recrutamento de homens não ligados a
polícia. Correio da Manhã, 5/12/1931, p. 6.
88
Correio da Manhã, 5/12/1931, p. 6
94
evidencia nas regiões sertanejas do sul do país práticas semelhantes às de Lampeão. Podemos
concluir com base nestas informações que o cangaço enquanto profissionalização do crime se
constituiu num fenômeno mais amplo, e não se restringe, portanto, aos sertões nordestinos.
do cangaço. Ao se referir às causas de tal fenômeno, destaca que os três maiores “expoentes
utilizado para se referir a Jesuíno Brilhante e Antonio Silvino, ou seja, cangaço entendido
como uma prática de justiça. O segundo se aplica a Lampião, que apesar de “justificar” sua
incorporação ao cangaço com o intuito de vingar a morte do pai, o transforma num meio
de vida. Isso ocorre no momento em que se alia a políticos locais, o que caracteriza uma
tem suas origens na colonização. Enfatiza que o cangaço “feroz, truculento e sanguinário,
nasceu nas lutas de família (...) sub-existiu sempre, no entrechoque dos partidos políticos; e
partindo assim, das coletividades armadas especificou-se nos indivíduos. Desde que o
narração em “prosa e verso (...) – são ellas que maior somma de sensação, admiração,
89
Correio da Manhã, 24/01/1932, p. 1
95
emoção despertam nas almas juvenis.” Esclarece que: “Ser valente é um dos maiores títulos
de glória para o sertanejo, já visceralmente forte e destemido. Vem dahi essa corrente
primeiros prezavam pela honra das famílias, respeitavam mulheres, crianças e idosos,
enquanto o terceiro além de destruir lares, violava barbaramente as mulheres, agredia idosos,
que se constitui numa prática cultural, que “trazem consigo desde o berço, um princípio: - o
da honra – embora que, muitas vezes, exagerado ou mal comprehendido. E nesse patrimônio
moral acha-se comprehendida, em alta dose, além do pessoal, a honra da família. Matam
sempre, por “questão de honra”, muito embora esse conceito seja, ás vezes, originado pelos
que “Quase todos os casos se tem originado não da justiça, mas da injustiça da Justiça”92.
Observa-se neste trecho que suas palavras confirmam as acepções dos articulistas anteriores.
policiais, que os protegiam em troca de favores e da partilha dos saques: “É sabido que elle
distribue muito dinheiro e que tem muitos “sócios”. Nem desta pecha escaparam muitos
officiaes da polícia”. Esta questão já foi mencionada anteriormente por M. Paulo Filho, ao
90
Idem.
91
Correio da Manhã, 24/01/1932, p. 1.
92
Idem
96
cangaceiros.
razões apresentadas pelo governo são sólidas e fundamentadas e recebe o apoio dos deputados
banditismo no nordeste. Havia tão somente o caso de Lampeão. E explicou a sua persistência
pelo facto de se acoitar em região entre Bahia, Sergipe e Alagoas, onde há pouca
communicação rodoviária. E ainda, aquele já não operava mais nos estados do Ceará, da
Paraíba e Rio Grande do Norte. Justifica que apoiava o veto por entender que não havia mais
Nas falas acima percebe-se que o cangaço foi tratado pela Câmara de Deputados
como um problema fronteiriço entre os três estados já citados, e ainda, que se resumia ao
plena movimentação nas mais variadas regiões sertanejas, e que neste período (ano de 1935)
as forças policiais desenvolviam uma ampla campanha contra os grupos de cangaceiros, o que
93
Correio da Manhã. Os debates nas comissões da Câmara. O auxílio à campanha contra o banditismo no
nordeste, 4/06/1935, p. 4
97
repórter desse jornal entrevista um homem baiano94, que em visita ao Rio de Janeiro, narrou-
lhe os terríveis momentos em que foi feito refém do bando de Lampeão. Preferindo manter-se
do bando. No que se refere ao aparelhamento do bando destaca que: “montavam bons e lindos
animaes, bem tratados e arreados e em optimo estado”, quanto à indumentária salienta que
“trajavam, os bandidos, roupas de mescla, luvas de pelica, meias de bôa qualidade” 95. Ele
aos momentos de lazer do grupo, e destaca a prática de jogos de carta, nos quais apostavam
O anônimo entrevistado enfatiza que Lampeão era um homem rico, e que teria
lhe mostrado uma “mala de couro” com mais de 800 contos, quantia significativa para o
período. Acrescenta, ainda, que carregava “jóias, collares de perolas, brilhantes, anneis de
grão, crucifixos de platina e brilhantes, alfinetes de gravata: uma joalheria enfim!”.96 Fica
que se fizeram cangaceiros como ele, mas também por órgãos responsáveis pela produção de
94
Correio da Manhã, 1/07/1936, p. 5
95
Idem.
96
Ibidem, idem.
97
O Correio da Manhã menciona a produção e divulgação de um filme sobre Lampião e seu bando pela
empresa nacional Alba Filme. Entretanto, na catalogação da Fundação Joaquim Nabuco - Recife/PE, a
produção é atribuída a empresa Al Chiu Filmes. Sobre esse assunto consultar Correio da Manhã, 3/04/1937,
98
do Estado do Ceará para tirar de circulação o filme sobre Lampeão, que vem sendo exibido no
Estado. Solicita que sejam apreendidas todas as cópias e devidamente enviadas à referida
repartição.
que restou deste filme, que se resume a dez minutos. As imagens em preto e branco revelam
um pouco do cotidiano dos grupos, seus momentos de descanso e lazer - danças, jogos de
carta, preparo de alimentos -, além da rotina religiosa na qual as preces e orações foram
conduzidas por Lampião, e até mesmo simulações de combates com as volantes. Apesar da
surgimento de tais bandos. O latifúndio e o descaso público em relação à região sertaneja são
os aspectos mais explorados pelo narrador. Além das condições políticas, também são
como os problemas inerentes ao clima e a vegetação. Refere-se aos cangaceiros como vítimas
apreender este material, ou seja, por seu conteúdo subversivo, que alimenta de forma perigosa
governamental.
cangaceiro se constitui num herói, para outros em bandido. Suas façanhas e comportamento
p. 3.
98
A reprodução do filme Lampeão: o rei do cangaço, produzido pela Al Chiu Filmes, sob a direção Benjamim
Abrahão no ano de 1936, foi gentilmente autorizada pela Sra. Vera Ferreira - neta de Lampeão – para uso
exclusivo na elaboração desta Dissertação de Mestrado.
99
da Manhã.
coiteiros, o apoio dos populares, a conduta corrupta de alguns policiais envolvidos com os
bandidos, e os problemas sociais inerentes ao meio físico da região. Além desses elementos,
as estratégias de luta utilizadas por Lampeão foram fundamentais para sua longa permanência
no cangaço.
por Lampeão e seu bando. São citados os casos das prósperas cidades de Vila Bela e Bonfim,
respectivamente pernambucana e baiana, destruídas pela ação dos cangaceiros. Estas foram
foram fechados com medo de novos ataques. Enfim, os resultados afetaram amplamente a
economia nacional, pois sem o crescimento não havia aumento da arrecadação de impostos,
prisão ou a morte de seu maior expoente: Lampião. A notícia de sua morte e de mais dez
99
Correio da Manhã – 15/01/1938, p.14 - Morreu ou não morreu o “rei do cangaço”? Rápidos traços da
história e do carácter de Antonio Virgolino, o temível “Lampeão”
100
conseqüências geradas no ambiente social e econômico da região, entre elas cita: o declínio
fenômeno além da esfera nacional. Tais resultados, segundo o periódico, denegriam a imagem
“educação, no conforto da ordem e o amparo da lei”102. Nota-se que tal perspectiva se repete
seguinte forma:
(...) era um homem alto, moreno....atlhleta, que devia contar mais ou menos
40 annos de edade. Era refinado e vaidoso. Gostava de ser photographado.
Amava as jóias e os perfumes. Havia ouro na bainha do seu punhal, na
cartucheira e em quase todos os seus dedos. Perfumava-se exageradamente.
Sempre suado, immundo, a presença do bandoleiro impregna o ambiente
(...)”103.
O trecho acima desvela a vaidade do cangaceiro, seu apreço pelo ouro, por
perfumes e pela fama, o que se evidencia nas capas de alguns jornais e revistas ilustradas, que
veicularam sua imagem, como exemplo temos O Globo, Correio da Manhã, A Noite
100
Correio da Manhã, 29/07/1938, p.14.
101
Correio da Manhã, Lampeão, o terror do Nordeste. Recordando, ainda, a vida de crimes do bandido que a
tropa do tenente Bezerra anniquilou. Os últimos informes telegraphicos confirmam que o bandido, sua amante e
vários companheiros foram, realmente, mortos, 30/07/1938, p.14
102
Correio da Manhã,
29/07/1938, p.14
103
Idem
101
Ressalta-se que os problemas inerentes ao banditismo são mais amplos e engloba questões de
corrobora a idéia exposta acima. Argumenta que “O lampeonismo é um phenomeno que não
Acrescenta que somente a alfabetização da população não bastaria para por fim ao
“civilização” para os sertões por meio dos mecanismos já citados acima. Para ele a
entretanto admite que o banditismo e a seca foram “males necessários”, que serviram para
104
Correio da Manhã, 31/07/1938, p.4
105
Idem
106
Ibidem
102
entrevistado por um repórter do Correio da Manhã109, sustenta que entre os fatores que
sociais mais ásperas”, a ação dos coiteiros e a sorte com que contaram os bandoleiros em
dos coiteiros, defendendo a necessidade de se criar uma legislação mais dura, que
igualmente os punisse:
ressaltada por Bastos Tigre. Destaca que o problema do banditismo é resultado da soma de
três elementos: “Não são apenas a Lei e o Crime que se defrontam: não é apenas a luta
sertanejo que acoita, que dá pouso e guarita ao cangaceiro, que desnorteia e despista a
força volante...”. Discordando da postura do tenente Bezerra, que afirma ser o coiteiro
cúmplice e colaborador de bandidos, justifica que o coiteiro nem sempre exerce esta função
107
O articulista Bastos Tigre afirma que “ (...) somente a Civilização bufando, apitando, espalhando fumo de
carvão e cheiro de gazolina, somente ella é capaz de desinfectar o ambiente, ....”. Correio da Manhã,,
31/07/1938, p. 4 .
108
Idem.
109
Correio da Manhã, 31/07/1938, p. 24
110
Correio da Manhã, 31/07/1938, p. 24.
111
Correio da Manhã, 27/08/1938, p. 4.
103
por livre e espontânea vontade.112 Na maioria da vezes foram coagidos pelo terror e pelo
medo, e que se sujeitaram a tal prática para garantir a sobrevivência de seus familiares.
espontaneamente, por interesse pessoal, porque precisa dos cangaceiros ou porque tenha,
elle próprio, o cangaceirismo no sangue. Mas a regra geral, os 99%, é o sertanejo pacífico
acoitando os bandidos, por amor á vida, apavorado com as ameaças de extermínio da sua
dos cangaceiros, e como tal deveriam receber a mesma punição. Critica o comportamento das
forças volantes em relação a estes sertanejos, que são violentamente espancados porque
Acrescenta que “a soldadesca enfurecida por ter perdido o rastro da presa, enervada pelos
contratempos das batidas, enlutada, ás vezes, pela morte de companheiros(...) invade a casa
do sertanejo, coiteiro á força, como se fôra um campo inimigo. E a ordem é espancar a cipó
sertanejo: “apavorado deante das duas ameaças: um ataque de cangaceiros ou uma incursão
de volantes. Venha do Crime ou da Lei, para elle, o perigo é o mesmo. Até na indumentária
dinamização da economia local com outras regiões, inclusive com o litoral. Ressalta que o
“Brasil, com seu território enorme, não pode dispensar esse systema de communicações
112
Afirma o articulista: “O sertanejo não é coiteiro por vontade; mas por medo, por pavor, sob ameaça da
“garruncha” ou da “lambedeira”. Correio da Manhã, 27/08/1938, p. 4.
113
Correio da Manhã, 27/08/1938, p. 4.
114
Correio da Manhã, 10/11/1940, p.1.
104
para o transporte dos productos da sua lavoura. É questão vital, para a sua própria
subsistência possuir um parque de rodovias ligando todo o seu interior e este ás capitaes.
para justificar que ele não é indolente. Lembra seu papel no desenvolvimento do Acre e da
Amazônia, com a extração da borracha, e conclui seu artigo sustentando que “amparar o
pelo cordel na disseminação desse mito. Os vários articulistas destacaram o poder que
exerciam sobre o imaginário popular, que ora o descrevia como um bandido, ora como um
herói.
Podemos afirmar que assim como a grande imprensa, representada pelo O Estado
e formador de opiniões, o que a caracteriza como imprensa popular. A opção pelo cordel
115
Ibidem
116
Diz o articulista: “ O sertanejo é um fanático da gleba. Forçado a abandonar os seus campos, quando a
secca inclemente destróe, anniquila, estiola todas as fontes de trabalho e de vida, o sertanejo foge para não
morrer. Mas não amaldiçoa a terra (...).” Correio da Manhã, 10/11/1940, p.1.
105
populares iletrados que “recebiam” por meio dos folhetos as informações mais importantes
do país, dentre elas o cangaço. Cabe destacar que elas são reelaboradas e resignificadas a
partir da visão de mundo dos cordelistas. A linguagem simples, versada e mítica desses
ou da música (repentistas).
periódico carioca que destacaram o impacto deste tipo de literatura no imaginário popular,
folha da capital baiana, que acentuava : “(...) o bandoleiro “Lampeão” vae criando, em
torno de sua personalidade, uma verdadeira literatura e – o que é peor – uma literatura
muito pouco realista”. Nesta, a folha da capital baiana, critica veementemente a postura dos
poetas que trataram Lampião como um herói e argumenta que tal comportamento é resultado
de suas ambições pois, desejavam ganhar dinheiro, com a venda de “(...) uma série copiosa
de artigos, folhetos, livrinhos de versos populares, em que o bandido aparece mais como
117
Correio da Manhã, 24/01/1930, p. 4 e 21/03/1930, p. 4.
118
Correio da Manhã, 4/01/1931, p. 1
119
O Estado de S. Paulo, 27/06/1929, p. 2
106
materiais.
a literatura de cordel não agradou a todos os cidadãos. Causou antipatia, sobretudo, nos
indivíduos ligados às forças públicas, nas autoridades governamentais e nas elites que não se
resultado do descaso governamental em relação ao Nordeste, que ora se abatia com o flagelo
da seca, ora com as inundações e tempestades. Outros elementos como: a fome, a injustiça
social (a impunidade dos coronéis e grandes proprietários, que utilizam o poder para humilhar
Para Silva, o homem nordestino era um “escravo da gravidade”.121 Ele teria que
receber ajuda do governo em função das imensas adversidades que tinham que suportar. Entre
elas, “as longas secas que ceifam a fauna e deixam as florestas ressequidas e os camponeses
120
SILVA, Gonçalo F. da. Jararaca.O cangaceiro militar. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000, p. 3.
121
Ibidem, p. 1.
107
injustiças sociais resultam das grandes calamidades: secas, enchentes e desigualdade social,
divulgadas.
O desnível social
provocava o desordeiro
porque ele via no rico
não um senhor fazendeiro
mas um desavergonhado
e metediço posseiro123
posse ilegal pelos fazendeiros. Denuncia a impunidade de tal prática, e evidencia a ausência
de lei e do direito à propriedade. Nesta construção, o poeta explicita que a terra pertencia aos
numa justiça em que as autoridades que a compunham não possuíam o mínimo de instrução.
122
SILVA, Gonçalo F. da. Corisco. O sucessor de Lampião. Ed: Ralp, s/d, p. 32.
123
Grifos meus.
108
Neste contexto, a idéia de que a lei funcionava à base da força parece perfeitamente
D’Almeida Filho125. Neste, o poeta afirma que “(...) à bala. Que era a lei no sertão”126. Tal
124
Ibidem, p. 13.
125
D’ALMEIDA FILHO, Manoel. Os Cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965, p.1.
126
Ibidem, p.4
127
D’ALMEIDA FILHO, Manoel. Os Cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965, p.1.
128
Ibidem, p.8
129
DILLA, Alexandre José Felipe Cavalcanti d’ Albuquerque S. Lampião Rei dos Cangaceiros. Rio de Janeiro:
Soc. Educativa e Cultural. Umberto Peregrino, 2ª ed., 1973, p.3.
109
O Capitão Virgulino
Era juiz no Sertão
Com seu Bilhete Cahiau
Provou seu bom coração
Aquele injustiçado
Tinha sua proteção
Dilla vai mais longe. Concebe Lampião como um “justiceiro” e qualifica-o como
“ladrão nobre” ou “Robin Hood” e afirma ter por ele, muito respeito:
(...)
Observa-se nesta construção que o poeta nutria profunda simpatia por Lampião.
seu folheto Maria Bonita. A Mulher Cangaço131 como um injustiçado que buscava fazer a
justiça com as próprias mãos e concebe-o como um justiceiro vingador. Esta postura não foi
compartilhada por alguns cordelistas que são taxativos ao compararem Lampião ao próprio
Diabo que é descrito como uma figura tenebrosa, representante do mal, símbolo de todas as
130
Ibidem, p.8
110
Para se ter uma idéia da maldade de Lampião, José Pacheco132 revela em seu
folheto A chegada de Lampião no Inferno que o diabo, ao ser consultado pelo vigia sobre a
que Lampeão representava à população, e descreve-o de forma mais tenebrosa que o próprio
Diabo. O verso “só me chega gente ruim”, sinaliza que nem mesmo o Diabo era tão terrível
quanto Lampeão. O recurso utilizado pelo autor indica que os prejuízos e o terror
disseminado pelo cangaceiro foram imensos e seus crimes indescritíveis superando inclusive
opinião do próprio autor em relação a este e ao cangaço, sinaliza para a pluralidade existente
Lampião é um bandido
ladrão da humanidade
só vem desmoralizar
a minha propriedade
e eu não vou procurar
sarna para me cossar
131
SANTOS, Antônio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Editora Luzeiro Ltda, reedição de
1986.
132
PACHECO, José. A chegada de Lampião no inferno. Rio de Janeiro: Academia. Bras. de Literatura de
Cordel, s/d.
133
PACHECO, José. A chegada de Lampião no inferno. Rio de Janeiro: Academia. Bras. de Literatura de
Cordel, s/d. , p.3.
111
De acordo com essa construção, Satanás tinha pleno conhecimento das façanhas
de Lampião levando-o a recrutar um exército de “(...) três dúzias de negros / entre homem e
mulher...” para combatê-lo. Exigia-se dos “soldados” preparo físico e armamentício. Além
dessas recomendações, teria pedido reforço para o “cumpadre Lúcifer”. A metáfora usada
pelo cordelista alude à realidade terrena, na qual as forças policiais das diversas localidades
fileiras do exército de Satanás eram todos negros, afirmação que sugere a condição marginal
representação construída ao longo de séculos de escravidão no país, a qual sugere que após a
abolição os negros optaram pela marginalidade negando-se ao trabalho. Além disso, remete à
negro. Tal perspectiva justificaria sua presença no inferno, uma vez que no céu não entrariam
desocupados e nem criminosos realçando, assim, os preconceitos sofridos pelos negros. Tal
perspectiva tornava-se mais agravante quando o elemento negro era mulher, pois esta era
O cordelista prossegue sua narração salientando que foi travada a luta entre o
exército de diabos e Lampião, e que após uma hora de combate Lampião teria incendiado o
inferno. Este motivo teria levado Satanás a ordenar o cessar fogo. De acordo com Pacheco,
134
Ibidem, p. 4.
135
Sobre esse assunto consultar: ANDREWS, G. R. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru/SP:
Edusc, 1998 e SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil-1870-1930. São Paulo: Cia das Letras, 1993.
112
houve grande prejuízo no inferno: “(...) queimou-se todo dinheiro/ que satanás possuía/
queimou-se o livro dos pontos /perderam seicentos contos/ somente em mercadoria”.136 Esta
situação descrita pelo poeta traduz uma analogia dos embates travados entre Lampião e as
volantes. Mostrou que apesar da superioridade numérica dos “diabos”, Lampião acabou
vencendo a batalha; o mesmo se evidencia na zona sertaneja. O poeta transfere para o inferno
o palco dos embates, e nem lá Lampião é derrotado. Acreditamos que tal artifício é utilizado
pelo poeta para enfatizar como Lampião era terrível, superando o próprio Satanás.
Pacheco termina sua obra esclarecendo ao leitor, que embora não tenha uma
solução para acabar com Lampião, só pode afirmar que “(...) no inferno não ficou/ no céu
também não chegou/ por certo está no sertão”.137 Esta afirmação pode estar vinculada ao fato
de Lampião ter sofrido decapitação138, tendo a cabeça separada de seu corpo, o que teria
impossibilitado seu sepultamento completo transformando-o dessa forma numa alma penada
que não encontra descanso enquanto seus membros permanecerem separados. Apesar de não
termos a data deste folheto, podemos afirmar que ele expressa a opinião do poeta e de muitos
em seu folheto intitulado O casamento de Lampião com a filha do diabo. Ele inicia sua
narração com a morte de Lampião. Este, ao tentar entrar no céu, teria sido barrado por São
136
PACHECO, José. A chegada de Lampião no inferno. Rio de Janeiro: Academia. Bras. de Literatura de
Cordel, s/d, p.8.
137
Idem
138
As cabeças de Lampião, Maria Bonita, Corisco, Canjica, Zabelê, Azulão e Marinheiro foram sepultadas em
13 de fevereiro de 1969 no Cemitério Quinta dos Lázaros em Salvador /BA. DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª
edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p. 98.
139
SANTOS, A. A. dos. O casamento de Lampião com a filha do Diabo. 1987
113
sem se identificar
não entra na Eternidade.
divindade, demonstra que a fama de Lampião, suas façanhas e vida criminosa já eram
recebido, travando com os diabos uma grande batalha. Aqui também Lampião mata diversos
diabos e vence. O poeta traz à cena uma “diabinha moça”, filha do diabo. Esta, no calor da
luta atraca-se com Lampião e sentindo-se atraída, consuma o ato sexual. A diabinha alega ao
pai que foi desonrada por Lampião, e que para reparar tal “mal” tem que se casar com ele:
Outro elemento que o poeta focaliza é a paixão e a atração feminina pelo cabra
macho, corajoso e destemido, símbolo de virilidade. Estas qualidades apontadas pelo autor
140
Idem, p.2
141
Idem, p. 3.
142
Ibidem, idem p. 7.
114
seduziram Maria Bonita e muitas outras mulheres que tiveram suas vidas ligadas ao
cangaço. O poeta recupera de maneira satírica este universo sedutor que envolve Lampião ao
tornar o diabo vulnerável e com medo do recém chegado, o que significa o reconhecimento
dos poderes sobrenaturais que o tornavam imortal. Tais poderes atribuídos a Lampião
evidenciam-se nestes dois folhetos que o retratam no inferno. Além disso, constituiu-se num
casamento, que o diabo fizesse dele o governador do inferno no que foi prontamente
atendido:
Cabe destacar que estes folhetos distam no mínimo vinte anos do término do
cangaço, e que na sua maioria foram produzidos nas décadas de 60, 70, 80 e até mesmo em
cangaço, e que se constituem numa tentativa de reelaboração das experiências de vida destes
indivíduos. Também pode ser pensado como a construção de um novo discurso, que se
contrapõe ao oficial para justificar a partir das diversas circunstâncias (sociais, políticas,
palcos: céu e inferno. A atitude do poeta pode ser pensada como um recurso para expressar
sua posição sobre o fenômeno, e até mesmo como uma medida de segurança, evitando
informações fornecidas por estes. Não se preocupa em refletir sobre a questão, embora
banditismo sob diversos aspectos. Desvela as raízes de sua origem, e indica possíveis
soluções para colocar fim ao banditismo. Mantém uma postura completamente oposta ao do
carioca tece um amplo debate entre seus articulistas e colaboradores. Fica evidente que para
variados âmbitos que constituem uma sociedade, ou seja, político, econômico, social e
cultural. Para outros, numa profissão e num meio fácil e ilegal de enriquecimento. Na
literatura de cordel a maioria dos poetas concebe o cangaço como resultado das injustiças
sociais, das calamidades naturais e ainda, como um ato de rebeldia contra a opressão dos
143
Ibidem, p. 8.
116
Vejamos como foram representadas nos diversos materiais coletados. Além dos já citados,
jornalísticas.
117
A incorporação da mulher no cangaço e seu papel dentro dos bandos são aspectos
pouco explorados pelos estudiosos. Diria até mesmo que as informações e análises específicas
a respeito das mesmas são dispersas e escassas. Ao verificarmos as obras que estudaram o
cangaço, percebemos que nessas análises o modo de vida e o comportamento dos homens
dentro dos bandos foram bastante explorados em detrimento das mulheres. Quando tratadas,
são vistas, na maioria das vezes, como simples companheiras de determinados cangaceiros ou
como criminosas.
universo feminino em seu interior. Além disso, traz elementos para debater a criminalidade
depreciativo e marginal atribuído à cangaceira, acaba por encobrir o “ser mulher” construído
no interior do cangaço. Além disso, perde-se de vista que elas também tinham anseios, medos,
desejos e frustrações, sentimentos que não as eximiam do mundo marginal no qual estavam
inseridas.
sinalizam para dois tipos de interpretações: os que defendem o ingresso voluntário, que pode
ser exemplificado com Maria Bonita, Dulce, Cristina, Inacinha. Outros interpretam essa
presença como resultado de uma ação violenta, ou seja, do rapto. Este se baseava no uso do
118
terror e da coerção, como exemplificam os casos de Sila, Dadá, Lídia entre outras. Essas
retaliações. Ou ainda, em função das circunstâncias, como o caso de Enedina que se sujeitou à
marginalidade do cangaço para acompanhar o marido, que fugia de perseguições das forças
dos cangaceiros1, embora não seja categórica, alinhou-se às interpretações que defendem que
as mulheres foram incorporadas aos bandos através da força, ou seja do rapto. Entretanto,
admite que em alguns casos elas foram movidas pela paixão a determinado cangaceiro, como
evidenciada em sua coragem, o que despertava o desejo carnal de muitas mulheres. Em sua
concepção fica evidente que a incorporação feminina aos bandos foi voluntária.
consultadas. Algumas delas foram elaboradas e reeditadas anos após o fim do cangaço, e
1
MACHADO, Maria C. M. As táticas de guerras dos cangaceiros. 2ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1978.
119
cangaceiras Maria Bonita (Maria Gomes de Oliveira), Mariquinha (Maria dos Santos) e
Doninha (Laura Alves) se constituiu numa escolha pessoal. De acordo com ela, as duas
compomos nossas reminiscências para dar sentido à nossa vida passada e presente. Ou seja,
evidencia nas memórias de Sila e Dadá, que apesar de todas as dificuldades enfrentadas
procuraram reconstruir de forma positiva suas experiências nos bandos, sobretudo, quando
informa que algumas das mulheres que compunham os bandos eram originárias de famílias
abastadas e cita os casos de Doninha e Sila. Para enfatizar a boa índole dessas mulheres,
destaca que eram “gente de bem, gente de família, filhas de fazendeiros, tudo moça, mas teve
também mulher casada que foi pro grupo. Maria de Lampião e Mariquinha de Anjo Roque
eram casadas e se apaixonaram e fugiram pro bando. As outras eram tudo moças, meninas,
fazendeiros” pode ser pensado como uma tentativa da depoente em compor uma imagem
(virgens) como ela e Sila nos bandos. Esse mecanismo fica evidente quando descreve Sila
2
Afirma Queiroz que: “a vida no bando era muito alegre e por isso atraía as mulheres, que assim escapavam
dos duros trabalhos rurais”. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Os cangaceiros. São Paulo: Livraria Duas
Cidades, 1977, p. 186.
3
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p. 34
4
THOMSON, Alistair. Recompondo a Memória: Questões sobre a relação entre a História Oral e as memórias.
Projeto História, São Paulo: PUC/SP, nº 15, p. 51-84.
120
como uma “moça decente, moderna”. Essa expressão evidencia que eram moças decentes e
que provinham de boas famílias, e que não compunham o estereótipo de mulher bandida.
Ao enfatizar em seu relato que com exceção de Maria Bonita e Mariquinha as demais
cangaceiras “eram tudo moças, meninas, filhas de gente de recurso”, Dadá deseja esclarecer
que não eram prostitutas - mulheres de vida fácil – e, que as relações construídas no interior
dos bandos eram decentes e se pautavam nos códigos morais vigentes na sociedade mais
ampla.
melhor, de suas famílias - evidenciam que em alguns casos o cangaço se configurava numa
oportunidade de saírem dos padrões convencionais estabelecidos pela sociedade, ou seja, que
poderiam conquistar outros espaços além da esfera privada do lar, à qual estavam
predestinadas. Além disso, sugere que poderiam “escolher livremente” seus parceiros sem a
interferência dos acordos familiares. Contudo, cabe ressaltar que a incorporação feminina no
concepção de mundo do poeta e a partir das memórias, dos relatos e das reelaborações de ex-
O poeta Antônio Teodoro dos Santos, em seu folheto Maria Bonita. A mulher
cangaço,6 se refere a incorporação das mulheres nas fileiras do cangaço como uma escolha
5
Ibidem, p.34 -35
6
SANTOS, Antônio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986, p.24
121
quiseram,/ Conviver com os bandidos,/ Em busca dos seus queridos/ Mais cangaceira
vieram” 7.
Bonita (Maria Gomes de Oliveira) foi a primeira mulher a ingressar no cangaço em meados
de 1930, provocando mudanças significativas no seu interior. A partir deste momento mais
7
Ibidem, p.28
122
Fontes: ARAÚJO, Antônio A. C. de.Lampião, as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, DIAS, José Umberto. Dada. 2ª
edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989 e Correio da Manhã, 14/04/1937, p. 6 e 16/11/1937, p. 6.
*A matéria veiculada no Correio da Manhã em 16/11/1932, p. 5, apenas menciona a participação dessas mulheres no bando de
Faustino e não esclarece de quem eram companheiras.
8
As letras de a-d indicam a necessidade de esclarecimentos específicos sobre estas mulheres, como veremos a
seguir: aOtília Maria de Jesus foi a primeira mulher de Mariano Laurindo Granja. Este, após a prisão da
companheira uniu-se a Rosinha. b Lili foi mulher de Lavadeira. Com a morte deste em 1933, uniu-se ao
cangaceiro Baiano (Manoel Moreno) e largou-o para viver com Moita Brava. c Joana Gomes após a morte de seu
companheiro Cirilo da Ingrácia, uniu-se ao cangaceiro Jacaré. d O cangaceiro Labareda, após a morte de sua
companheira Mariquinha, juntou-se a Ana.
123
Araújo, nota-se no quadro 1, que a Bahia foi o Estado que forneceu maior número de
mulheres ao banditismo brasileiro. O segundo maior foi Sergipe, seguido por Alagoas e
Pernambuco.
percorreram sete Estados nordestinos. De acordo com ele, o trajeto feminino se circunscreveu
aos “chãos baiano, pernambucano, alagoano e sergipano”, sendo que o primeiro e o último
foram os mais freqüentados pelas mulheres. Ressalta que a rota baiana limitou-se as regiões
norte-nordeste, margeadas pelo rio São Francisco. O Estado de Sergipe foi muito percorrido
pelo grupo de Zé-Sereno, que segundo nos informa o memorialista, penetrou até o mar. Além
destas áreas, toda a extensão do Rio São Francisco, da Cachoeira de Paulo Afonso descendo
em direção à foz, foi fortemente explorada pelos cabras de Lampião. (...) o sertão e o agreste
Alagoas também foi muito freqüentado pelas cangaceiras, sobretudo as zonas ribeirinhas e o
sertão. Já Pernambuco foi o que menos visitas teve por parte das mulheres que
acompanhavam os grupos.”10
evidencia o mapa da página seguinte. Cabe salientar que estas mulheres não estavam
sozinhas, e que não formaram bandos independentes. Utilizamos o recurso do mapa para
nos confrontos com a polícia, enfim, para representar a área percorrida pelas mulheres. Cabe
9
ARAÚJO, A. A. C. de. Lampião, as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p. 374-377.
10
Idem, p. 379.
124
125
nome, a uma ligeira descrição física e ao nome do companheiro. Nem sempre é mencionada a
maneira pela qual estas mulheres passaram a integrar os bandos. Esta característica também
Estado de S. Paulo, por exemplo, apenas menciona esta presença de forma genérica (ver
apêndice 1) e depreciativa, ora tratando-as como bandoleiras, ora como amantes, sugerindo
locais, sem se preocupar com a veracidade delas. Esta perspectiva assumida pelo periódico,
bandos, e também os confrontos com a polícia. É justamente esse mecanismo que permite ao
126
do historiador um amplo e minucioso trabalho para garimpar alguns indícios que permitam
historiografia nos informar que o ingresso feminino tenha ocorrido durante o ano de 1930,
essa presença somente será mencionada pelo O Estado de S. Paulo a partir de 1933.
criminalidade ao enfatizar a participação efetiva das mesmas nos roubos em Casa Nova,
cidade que se localizava nas margens do rio São Francisco, na Bahia. Nota-se claramente o
enfim, atributos que descrevem pessoas de péssimo caráter. Isso se torna mais grave com a
expressão que antecede o adjetivo, pois “verdadeiras” confirma e assegura que essas
mulheres eram de fato uma ameaça para a sociedade, igualando-as aos homens cangaceiros e,
Dois meses e meio após essa primeira referência sobre a presença de mulheres no
cangaço, é possível notar o tratamento numérico que lhes era conferido. Informa-se que o
11
O Estado de S. Paulo 29/07/1933, p. 4.
127
grupo de Azulão era composto de “...4 homens e 2 mulheres...” .12 Estes “elementos”,
segundo a notícia, teriam invadido os municípios de Jacobina e Monte Alegre e, mais uma
vez, é reafirmada a participação criminosa dessas mulheres. Provavelmente, uma delas seria
citados acima. Essa é resultado do combate travado com a polícia na região da Lagoa do Lino,
no sertão da Bahia. O jornal não menciona a morte de Maria, companheira de Azulão, porém
esta foi registrada no livro da memorialista Vera Ferreira13 no qual descreve a batalha
ocorrida na Lagoa do Lino, cujo desfecho teria resultado na morte de Maria, Azulão e mais
dois cangaceiros.
característica que pode ser observada nas informações veiculadas pelo periódico, que por sua
vez são fornecidas pelas autoridades policiais. Esta perspectiva pode ser observada na
significativa: “cincoenta homens e uma mulher”14. Dois meses após a publicação dessa
população sertaneja:
12
O Estado de S. Paulo 14/10/1933, p. 6.
13
Sobre o assunto consultar: FERREIRA, V. e ARAÚJO, A. A. C. De Virgolino a Lampião, São Paulo: Idéia,
1999, p. 220 e ARAÚJO, A. A. C. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p. 98.
14
O Estado de S. Paulo 1/11/1933, p. 6
128
cinco dias após a divulgação dessa notícia , o jornal informa que “o grupo de “Lampeão” se
acha reduzido a 17 homens e duas mulheres”17. Entretanto, não explicita o que teria ocorrido
com as quatro mulheres que integraram aquele bando. Diante dessa situação cabe indagar se
cangaço18, menciona a prisão das cangaceiras Otília (Otília Maria de Jesus) e Sabina (Sabina
da Conceição) em 1934 e a morte de Lili em fins desse mesmo ano ou no início de 1935.
Seriam essas mulheres as mesmas que compunham o bando de Lampião descrito pelo
periódico?
composição do bando do cangaceiro Zé-Baiano enfatiza que ele e seus homens “estavam
no contexto do Estado Novo. Em abril de 1938, três meses antes da morte de Lampião, o
20
periódico noticiava: “o grupo era composto de 10 homens e 4 mulheres” e depois de sua
morte, já sob a garantia de anistia por parte do governo estadonovista, veiculava: “duas
15
O Estado de S. Paulo 31/12/1933, p. 8.
16
O Estado de S. Paulo 25/04/1934, p. 2.
17
O Estado de S. Paulo 09/06/1934, p. 2.
18
ARAÚJO, Antonio A. C. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985.
19
O Estado de S. Paulo 22/05/1935, p. 7.
20
O Estado de S. Paulo 17/04/1938, p. 7.
21
O Estado de S. Paulo 09/12/1938, p. 5.
129
refere à criminalidade.
permanece mesmo após a morte do casal em julho de 1938 no cerco a Angico /Sergipe.
Referindo-se à chegada das cabeças de Lampião e Maria Bonita ao Museu do Serviço Médico
em 20 de maio de 1934, somos informados de que Lampião seria um homem viril e sedutor,
25
pois “tinha duas amantes, ambas caboclas e bonitas” . Contudo, ao longo da pesquisa
pudemos perceber, a partir da análise dos documentos e dos depoimentos orais de ex-
participantes, que a informação veiculada acima não traduz as relações existentes nos bandos,
pois era permitido que os homens tivessem uma única companheira e vice-versa.
descritas da seguinte forma: “ As três mulheres que integram o bando sinistro (...) são hábeis
amazonas e manejam o rifle com incrível destreza. Algumas são tão cruéis quanto os homens.
Tomam parte nos assaltos e combates ao lado dos bandoleiros, mostrando-se tão
destemerosas como eles”.26 Nessa construção fica evidente que se constituíam em mulheres
belicosas e perigosas. Em seus relatos orais, Sila e Dadá enfatizam que as mulheres quando
22
O Estado de S. Paulo 12/03/1935, p. 7.
23
O Estado de S. Paulo 28/07/1935, p. 2.
24
O Estado de S. Paulo 14/08/1938, p. 9.
25
O Estado de S. Paulo 20/05/1934, p. 8.
26
O Estado de S. Paulo 13/01/1937, p. 7.
130
vezes as mulheres ficavam protegidas nos coitos e que não participavam ativamente dos
confrontos, salvo no momento em que a perseguição policial tornava-se mais acirrada. Tal
concepção, com exceção de Dadá, a maioria das mulheres não possuía um perfil belicoso e
violento.
por fim, como números, sempre de modo depreciativo. Essa postura do periódico acabou por
cuidados femininos com o embelezamento do corpo, com a aparência, foram anulados pela
que se refere às mulheres mantém a mesma postura do periódico paulista, ou seja, apenas
reproduz as informações, o que indica que não tinham elementos suficientes para refletir
sobre essa participação. Assim como no periódico paulista, grande parte das informações
e “amantes”. Vale lembrar que tais informações eram fornecidas pelas autoridades policiais, e
periódico carioca Correio da Manhã (ver apêndice 2). Iniciamos nossa pesquisa no ano de
27
MACHADO, M. C.M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978, p. 92.
131
de 193228. Nessa, o cangaceiro Simplício José dos Santos, vulgo Caracol, procedente da vila
mulheres no grupo, entre elas, sua companheira Rosa e as cangaceiras Amélia, Maria e
Isabel. Entretanto, não informa quem eram seus companheiros, apenas menciona que o grupo
dos seguintes expressões: “quatro mulheres”29, “cinco mulheres”30, “foram capturadas três
28
Correio da Manhã - 16/11/1932, p. 5.
29
Idem
30
Correio da Manhã - 08/03/1933, p. 3.
31
Correio da Manhã - 25/03/1933, p. 8.
32
Correio da Manhã - 17/10/1933, p. 2 e 19/11/1933, p. 8.
33
Correio da Manhã - 24/04/1934, p. 9.
34
Correio da Manhã - 31/07/1935, p. 1.
35
Correio da Manhã - 19/03/1937, p. 3.
36
Correio da Manhã - 16/11/1932, p. 5.
37
Correio da Manhã - 25/03/1933, p. 8.
38
Correio da Manhã - 28/07/1935, p. 1.
39
Correio da Manhã - 9/10/1936, p. 2.
40
Correio da Manhã - 14/04/1937, p. 6.
132
mais equilibrada, enquanto “mulher de” indica relação de poder, e “amante de” vincula-se à
esfera sexual, sugerindo que essas mulheres eram tratadas enquanto objeto para atender os
função de sua participação direta nos embates com as volantes, nas invasões a cidades e
povoados, enfim, destaca-se sobretudo, por sua prática e postura belicosa, imagem que faz
ocorre em 24 de maio de 194044, e foi dada pelo cangaceiro José Porfírio, vulgo “Velocidade”
que teria se entregado à polícia de Parapiranga –BA, e informado que Corisco não fazia o
mesmo por “opposição de Sérgia, que é o verdadeiro chefe do grupo, tendo prometido matar
o marido caso tentasse este depor as armas”45. Observa-se na fala do cangaceiro uma
inversão de papéis. De acordo com ele, Corisco era dominado por Dadá, que se constituía no
41
Correio da Manhã - 26/06/1937, p. 3.
42
Consultar as matérias do Correio da Manhã: 29/07/1938, p. 14, 30/07/1938, p.14, 31/07/1938, p. 24 e
06/08/1938, p. 14.
43
Correio da Manhã - 30/07/1938, p. 14.
44
Correio da Manhã - 24/05/1940, p. 5
45
Idem
133
Louro...não comparecera porque a tal” decisão “se oppuzera a sua esposa, mulher que o
dominava inteiramente”46.
Cabe destacar que nas três últimas notícias sobre a morte de Corisco, a cangaceira
Essa perspectiva difere das construções veiculadas pelas fotografias, que também remontam
ao mesmo período, mais especificamente ao ano de 1936. Essas fotografias foram produzidas
pelo ambicioso sírio-libanês Benjamim Abrahão Boto47, durante sua experiência de convívio
com o grupo de Lampião. Esse fotógrafo estava diretamente ligado à produtora ABA Filmes,
com sede em Fortaleza - Ceará, e almejava angariar lucros com a produção de um filme e
46
Correio da Manhã - 28/05/1940, p. 2
47
As fotografias produzidas pelo sírio-libanês Benjamim Abrahão Boto e o filme de 15 minutos que retrata
alguns aspectos do cotidiano do bando de Lampião, encontram-se no Acervo Iconográfico da Fundação
Joaquim Nabuco/PE. Conseguimos a reprodução desse filme e de algumas fotografias que retrataram as
mulheres. O acesso a esses materiais não foi tão fácil, pois, a família de Lampião, sua única filha (sobrevivente)
com Maria Bonita, Expedita Ferreira ganhou na justiça o direito a imagem dos pais. Contudo, quem cuida
desse assunto é a neta do casal, Vera Ferreira, que se mostrou muito solícita conosco ao permitir a reprodução
desses materiais.
134
Falar sobre as mulheres cangaceiras não é uma tarefa fácil, devido às informações
limitadas sobre suas experiências nos bandos, ou pela escassez de registros pessoais deixados
por elas. Uma parte significativa das informações a respeito destas mulheres decorre dos
coiteiros, entre outros) aos diversos pesquisadores que trataram o tema. No entanto, parte
destas memórias foi produzida por algumas mulheres que integraram os bandos, permitindo
ao pesquisador ter acesso as suas percepções em relação a esta experiência, e também a partir
comum, a história dessas mulheres revela certas particularidades que serão expostas no
decorrer do texto.
Maria Gomes de Oliveira, vulgo Maria Bonita destaca-se por ter rompido de
maneira radical as normas da sociedade brasileira da época. Estas estavam submetidas aos
rigores do Código Civil de 1916 que condenava a união ilegal, postura igualmente
compartilhada pela Igreja. Apesar desta rigidez, as pessoas construíram suas vidas a partir de
Cajazeiras, que se uniram em matrimônio antes de entrarem para o grupo. Dadá e Corisco,
época, Maria Bonita pode ser qualificada como adúltera e bandida por sua conduta
matrimônio, e depois por juntar-se a um fora da lei. Foi sem dúvida a figura mais conhecida e
Maria Gomes de Oliveira nasceu em 1911 na Bahia. Era filha de José Gomes de
Oliveira (conhecido como Zé Felipe) e Maria Joaquina Conceição de Oliveira. Seu pai era
nordeste baiano. Tinha uma vida economicamente tranqüila. Sua infância e adolescência
brincadeiras de rodas, passa-anel e bonecas. Conviveu com doze irmãos, sendo sete mulheres
de vida da cangaceira desde a infância até seu ingresso no cangaço. De acordo com essa
construção, Maria Bonita era esposa do sapateiro José Miguel da Silva (conhecido como Zé
Mas o que teria levado Maria Bonita a deixar sua vida de casada, onde tinha uma
relativa segurança, conforto, comida, para aventurar-se numa vida errante? Seria a aura de um
amor “ilegal” e avassalador? Esta foi a versão que prevaleceu entre suas irmãs e os ex-
integrantes do bando. De acordo com a cangaceira Sila (Ilda Ribeiro de Souza, ex-integrante
48
Essas informações foram fornecidas ao memorialista Antonio Amaury C. de Araújo pelos familiares de Maria
Bonita, sobretudo por suas irmãs Olindina Oliveira Santos e Amália Oliveira Silva. Além desses relatos, o
memorialista também contou com os de ex-integrantes dos bandos. ARAÚJO, A. A.C. de. Lampião: as
mulheres e o cangaço.São Paulo: Traço, 1985, p-168-179., FERREIRA, V. e ARAÚJO, A.A.C. de. De
Virgolino a Lampião, São Paulo: Idéia Visual, 1999. p-191-193. QUEIROZ, M. I. P. de. Os cangaceiros. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, p. 113-115.
136
do bando de Lampião): “(...) Maria entrou porque gostou de Lampião, o homem, o marido
cangaço se respalda nos depoimentos orais e nas reelaborações das experiências de vida de
ex- participantes (cangaceiros (as), sertanejos (as), coiteiros, autoridades policiais, familiares
retransmitiram por meio da literatura de cordel. Entre os cordelistas que escreveram sobre
Maria Bonita, destacam-se Antônio Teodoro dos Santos e Gonçalo Ferreira da Silva, nos
francesa Joana D’Arc, das brasileiras Anita Garibaldi, Ana Neri e Maria Quitéria, mulheres
famosas pela coragem e determinação que demonstraram na luta pela defesa de seus ideais.
Destaca a militância destas mulheres nas mais diversas situações e, comparando-as à homens
49
Depoimento de Ilda Ribeiro de Souza (Sila) ex-cangaceira, integrante do bando de Lampião, companheira do
cangaceiro Zé Sereno, Rio Claro/SP, 26/01/2001.
50
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986.
51
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – A eleita do Rei. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000.
137
Destaca que tal contribuição não se resumia apenas àquelas ligadas aos afazeres domésticos,
como cuidar do lar, dos filhos e do marido. Mas que a mulher ampliava seus horizontes a
cada dia, nas “ciências”, nas “armas”, ou no “saber teórico” revelando o seu papel crescente
na sociedade.
a expressão “nervos de aço”. No decorrer de sua narrativa, Santos atribui a sua personagem a
beleza física de uma “sereia” e a coragem de um “homem forte”. Estes traços do físico e da
personalidade de Maria Bonita condizem com a idealização de uma heroína, bela e corajosa,
que foi uma bela mulher, mas “linda como uma sereia”53 personagem mitológica e sedutora
Messias que viera salvar a humanidade. Assim, Maria Bonita representava ao mesmo tempo a
mulher sofredora, que luta não para proteger o filho das perseguições, como fez Maria e José,
mas o seu amado, identificado por ela como um “injustiçado”54. Vejamos a narrativa do
poeta:
52
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986, p. 3-4
53
Ibidem, p. 5
54
Idem, p.18
138
Lampião atribuir-lhe carinhosamente o apelido de Santinha, sugere que o mesmo, além de vê-
la como uma bela mulher, também a via como uma protetora, talvez como uma mulher
virtuosa, tal qual sua mãe, já que a perdera ainda muito novo. Ou, ainda, com uma mulher fiel
e dedicada. O título de “Rainha” deveu-se a sua união com o então “Rei do cangaço”,
“Governador do Sertão”.
De acordo com a construção do poeta Maria Bonita não teria sido uma criança
comum. Em vez de ter apreço pelas bonecas e por brincadeiras que despertassem o lado
maternal, como brincar de casinha e todos o elementos que envolviam um lar de verdade,
preferia brinquedos masculinos, como armas e cavalos. Tal construção sugere que Maria
55
Ibidem, p.6
56
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986, p.7
139
Bonita tivera desde cedo predisposição para as lides que envolviam força e bravura, o que não
coragem e a bravura de sua personagem, a quem não poupa elogios. Qualifica-a como
“astuta”, “linda”, “atraente”, “sensível”, “corajosa”, “valente”, entre outros tantos elementos
que permitam a sua mitificação. Na estrofe abaixo temos uma noção da coragem extra-
humana de Maria:
domar um boi pelo rabo e derrubá-lo no chão com a mão. Acreditamos que o poeta, ao
atribuir a sua personagem poderes excepcionais, valorizou ainda mais o seu caráter heróico.
sapateiro José. Este foi representado pelo poeta como um homem calmo, romântico,
galanteador, educado e muito apaixonado por Maria Bonita. Estas qualidades explicitam-se na
57
ARAÚJO, A. A.C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço.São Paulo: Traço, 1985.
58
Ibidem, p. 8.
59
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986, p.8
140
carta que José teria mandado à mesma, pedindo-a em casamento. Santos justifica que esta o
aceitou em casamento, para não ficar sozinha e encalhada, idéia ressaltada na estrofe abaixo:
Na narrativa do cordelista, eles se casam seis meses depois do pedido oficial aos
pais. Contudo, o “encantamento” dura pouco e Maria Bonita logo percebe que aquele não era
o homem que sonhara. O jeito pacato e caseiro de José irritava-a. Queria sair, passear,
freqüentar bailes e festas. O mesmo acontecera a José. Apesar de apaixonado por Maria
Bonita, não gostava do seu jeito inquieto. Buscava uma mulher dedicada ao lar que cuidasse
da comida, da casa, das roupas, que lhe desse filhos, enfim, queria uma “rainha do lar”. A
construção do poeta nos transmite a idéia de que Maria Bonita era uma mulher que estava
além de seu tempo. Isso se evidencia na recusa em limitar-se á esfera privada, aos afazeres
narrativa imaginária para explicar o conflito conjugal vivenciado por sua personagem. Tal
perspectiva se evidencia nos seguintes versos: “Não queres uma mulher/ Porém uma escrava.
De acordo com esta construção, Maria Bonita teria retrucado que não teria se casado para
ficar “trancada” dentro de casa, sem “liberdade”, como se fosse uma “sentenciada”. Estes
Essa composição reproduz de maneira semelhante a situação vivenciada pela maioria das
60
Idem, p.8
141
festas, missas, forrós, e que fosse capaz até de enfrentar tiroteios por sua causa, compondo
dessa forma a imagem do homem corajoso, viril e sedutor. Essas características não
estavam contentes com o matrimônio. Santos recompõe o episódio em que Maria Bonita teria
se dirigido à casa de sua mãe e revelado sua decepção e desapontamento com o marido. De
acordo com essa construção teria confessado à mãe que procurava um homem forte,/ Macho,
duro até morrer,/ Que para me defender/ Não tenha medo da morte. Estas características
reelaboração dos relatos de familiares e ex- participantes do cangaço aos memorialistas que
Lampião e Maria Bonita, no qual sua mãe teria exercido o papel central de confidente e
61
De acordo com o poeta, o estereótipo de José resumia-se: “fraco, um covarde, um frouxo, que de medo fica
roxo quando vê uma pistola . SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro,
reedição, 1986, p.15
62
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986, p.19
142
aflorada como indicam os três últimos versos: Na hora mais arriscada/ quer amar e ser
amada/ todas as horas do dia. Essa formulação sugere que o fetiche de uma transa arriscada
estimulava o ato sexual tornando-o mais prazeroso. Na iminência da morte poderiam curti-lo
intensamente.
cangaceiro que estava a sua procura. Admirava sua força, valentia, destemor e sinceridade.
Argumenta que são estas as qualidades que procurava em um homem, e que só ele as tinha e
cangaço, aconselha Maria Bonita a voltar para o seu marido. Ela, porém, num tom desafiador
teria respondido:
(...) – Conselho
Só toma mesmo quem quer
Ou homem da fala fina
Que não gosta de mulher...
Para voltar, digo: não!
Só mesmo se o capitão
Com medo não me quiser
63
Idem, p.22
143
foram elementos fundamentais para a sua incorporação nos bandos ao lado de Lampião. Cabe
destacar nesta estrofe, que o poeta legitima o amor de sua personagem pelo cangaceiro
quando essa se dispõe a realizar tarefas domésticas, considerando que o poeta teria
marido. Contudo, para aquele homem que acabara de conhecer, dispunha-se com alegria
podemos afirmar é que seguiu com Lampião, abrindo, desta maneira, as portas do cangaço
para outras mulheres. Nos versos acima, fica evidente que o ingresso de Maria Bonita no
Mas como foi a vida de Maria Bonita ao lado de seu amado Lampião? Santos, em
caminhadas e lutas, nos momentos alegres e tristes, “ Fazendo todos os gostos/ Do seu amor
65
cangaceiro” .
muito bem uma arma e ser ligeira no gatilho, sua heroína não deixava de lado a sua vaidade
feminina. Carregava sempre em seus bornais o seu arsenal de beleza, como pente de cabelo,
batom, perfume, espelho, talco, escova de dente, entre outros apetrechos. Os versos abaixo
64
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986, p.23
65
Idem, p.25
144
A vaidade feminina no cangaço, tão bem lembrada pelo cordelista, pode ser
observada nas fotografias de algumas cangaceiras, que foram retratadas pelo sírio-libanês
Abrahão Benjamim Boto, no período em que conviveu com o grupo de Lampião, pois
conforme dissemos anteriormente, tinha intenções econômicas com a venda destas fotografias
lembradas ou perpetuadas, e o tipo ideal de mulher com o qual queriam ser identificadas. Isso
fica explícito nas fotografias produzidas em espaços abertos da caatinga, na qual algumas
66
Ibidem, p. 26
145
Nesta fotografia Maria Bonita foi retratada como uma dama. Sua imagem
congelada remete aos refinamentos da mulher pertencente à elite brasileira, sobretudo da rural
nordestina e aos modelos femininos veiculados nas revistas ilustradas. A pose, sobretudo o
olhar de Maria, lembra o das atrizes do cinema mudo, cuja expressão traduzia o perfil da
mulher fatal e sensual. Os traços desse refinamento podem ser evidenciados no seu gestual, no
seu modo de sentar, no cruzar das pernas, na postura ereta, na seriedade revelada em seu
semblante e no ato de colocar finamente a mão sobre o chapéu. Esse refinamento só foi
Nota-se, contudo que o fotógrafo deu grande importância aos traços físicos da
sua vestimenta e de seus adereços. Assim, observamos logo à primeira vista, um longo lenço
preso e afivelado por uma presilha, que provavelmente deve ser de prata ou ouro,
componentes indispensáveis aos trajes dos cangaceiros. Sob o lenço, destaca-se a alça do
ombro. Merece destaque o belíssimo chapéu que segura sobre as pernas e as meias que utiliza
para protegê-la dos espinhos. Além disso, as meias também se constituíam em componentes
Na foto seguinte o foco central também recai na retratada, sua expressão facial é
realçada e se diferencia totalmente da anterior. Aqui parece mais natural, com um olhar
descontraído de quem faz charme para ser fotografada. A elegância de Maria Bonita é
destacada não apenas no seu gestual, mas também no vestido que está usando, que
diferentemente do anterior, para uso diário, esse era para ocasiões especiais, como posar para
uma foto, ou participar dos bailes organizados pelos cangaceiros em momentos de descanso
mulheres finas e educadas, ou ainda das atrizes que via nas revistas ilustradas ou nos
periódicos. Estas imagens são projetadas no cenário da caatinga, tendo em volta sua natureza
natural.
igualmente comportados, com decotes bem fechados, com mangas longas e comprimentos
que chegam a cobrir os joelhos. No traje que chamaremos de “vestido de festa”, as jóias
usadas por Maria Bonita chamam a atenção pelo número de correntes que exibia no pescoço.
Em outras fotografias os anéis é que serão destacados, pois algumas cangaceiras “as mais
O uso de vestidos apropriados para o cotidiano dos bandos e outros para ocasiões
especiais, como os bailes , também é recuperado pelo poeta Gonçalo Ferreira da Silva, em
147
Maria Bonita – A Eleita do Rei67. Enfatiza que guardavam em seus bornais as mais lindas
jóias/ do estrangeiro importadas, o que confirma o furto destas jóias das famílias abastadas do
as mulheres sempre aparecem com os cabelos penteados e presos, enfeitados com presilhas
que poderiam ser de ouro ou prata. Não encontramos nessas fotos, mulheres que estivessem
despenteadas ou com os cabelos soltos. Cabe indagar se o uso do cabelo preso fazia parte da
Na foto abaixo, Maria Bonita aparece com a mesma postura regrada das fotos
67
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – A eleita do Rei. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000.
68
Idem, p. 6
148
Na foto 4, Lampião aparece em pé, ao lado de Maria Bonita, segurando nas mãos
uma edição da revista Noite Ilustrada. Detendo-se na figura de Lampião, podemos arriscar
que queria vincular sua imagem à de um homem alfabetizado, consumidor e leitor das
fotografias. Assim, Lampião aparece lendo um exemplar do jornal O Globo, no qual ele é um
dos assuntos do periódico. Podemos perceber aqui um evidente jogo de poder, tanto por parte
dele, como por parte da imprensa. Ou seja, estampar a imagem de Lampeão em suas folhas ou
revistas, além de projetar e alimentar a fama do cangaceiro, também conferia poder ao veículo
informativo, sobretudo se ele fosse um órgão de oposição ao governo federal, como é o caso
de O Globo.
149
Diante dessa situação cabe indagar: O que significava naquela época veicular uma
foto de Lampião lendo tais periódicos e revistas? O mecanismo parece simples, contudo suas
intenções são mais complexas, ou seja, a imagem do cangaceiro além de garantir o lucro com
a venda de muitos exemplares, também funcionava como uma forma de afrontar o poder
constituído, já que este caçava há décadas o bandoleiro sem sucesso e o jornal tinha acesso
direto a ele. Além de conferir prestígio à Lampeão, projetando sua imagem na mídia, garantia
a venda de exemplares, bem como a propaganda destes despertando a curiosidade dos leitores
pelas “leituras” de Lampião levando-os a consumir tais informativos. Essa prática também se
Noite Ilustrada, o que sugere que também reivindicavam a condição de “letradas” (foto 05).
150
Algumas cangaceiras sabiam ler, contudo não sabemos informar ao certo se todas
eram alfabetizadas. Mulheres como Dadá e Sila aprenderam a ler com os companheiros. No
documentário A musa do cangaço69, Dadá revela que Corisco teve um papel fundamental em
sua educação, pois além de lhe ensinar a escrever também a incentivava com paciência.
precisa dos principais traços físicos da cangaceira pelo poeta Gonçalo Ferreira da Silva:
69
Diz a depoente: “Um homem educado, uma pessoa num sei, era um pai para mim,...... aprender a ler. Eu
ficava, ele ensinava.......aqueles nomes difícil eu rasgava e jogava prá lá. Ele dizia não adianta vamo comprá
outro”. Entrevista intitulada: A musa do Cangaço, produzida por J. D. Dias em 1981, sob direção de José
Umberto e Guto Diniz. Fotógrafos: Lúcio Mendes, Alonso Rodrigues e Benjamim Abraão Boto – Acervo da
Cinemateca da Fundação Joaquim Nabuco/PE.
70
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – A eleita do Rei. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de
Cordel, 2000, p. 4.
151
Ciumenta extremamente,
dengosa como ninguém,
quando os dois trocavam juras
de amor, dizia: - Bem
no dia que você morrer
eu quero morrer também71
Nota-se nesses versos, que o poeta preocupou-se em construir Maria Bonita como
uma mulher sedutora, vaidosa, companheira fiel e dedicada, e não como criminosa.
Bonita73, salienta o lado sentimental de Maria Bonita. Descreve-a como amante de Lampião,
cangaceiro:
71
Idem, p. 5.
72
Ibidem, idem, p. 6.
73
BATISTA, Abraão. O apaixonamento de Lampião por Maria Bonita; Juazeiro do Norte/CE: M.JDO, 2003.
74
Idem, p.08
75
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986.
152
confiava plenamente em sua amada aceitando tudo que vinha de suas mãos. Esta idéia de
confiança absoluta em Maria Bonita foi recuperada por Antônio Teodoro dos Santos,
doação incondicional ao seu homem, sendo capazes de morrer pelo amado. Esta visão do
autor sugere que as relações no cangaço foram todas harmoniosas, sólidas e tranqüilas.
Entretanto, isso não corresponde aos relacionamentos afetivos no interior dos bandos. Houve
(Ilda Ribeiro de Souza). Esta nos contou que em certa ocasião Maria Bonita discutira com
Lampião por ciúmes, porque não gostava de ficar muito tempo longe, nos coitos. Enfim, as
relações homem/mulher no interior dos bandos, deu-se da mesma forma que na sociedade
principal refúgio dos cangaceiros. Refere-se à Expedita - filha de Lampião e Maria Bonita -, e
termina seu folheto com o fatídico episódio do massacre em Angico. Em resumo, constrói
uma Maria Bonita heróica e guerreira, amante e companheira, de traços físicos bem
76
Idem, p.24.
153
Rainha do Cangaço.
faz uma abordagem sentimental da relação de Lampião e Maria Bonita. Assim como Santos,
também afirma que teria sido um sentimento de “amor verdadeiro” que os unira. Em sua
concepção, Maria teria trocado “um vão sentimento” representado pelo seu relacionamento
com o sapateiro José, por um de “amor verdadeiro” ao lado de Lampião. Este teria nascido
da sinceridade e pureza, o que os teria mantido unidos até a morte, superando os mais
Um sentimento sincero
do mais puro amor nascido,
venceu muitos obstáculos
sem um arranhão sofrido,
até o fim preservado,
até a morte mantido
de “Imperador do Sertão”
o de “Dono Absoluto”
do seu coração78
Silva ressalta que o amor de Maria Bonita por Lampião, fora fruto recíproco de
admiração e fascínio pela valentia e coragem, que cada um demonstrava ter. Além disso, a
determinação em abandonar o casamento, somado com sua beleza física, seus traços e
curvas bem delineadas, teriam deixado o cangaceiro loucamente apaixonado. Assim descreve
sua personagem:
77
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – a Eleita do Rei. Rio de Janeiro: Acad. Bras. de Literatura de Cordel,
reedição 2000.
78
Idem, p.2.
154
deusa. Além de toda beleza, tinha os atributos de uma heroína-guerreira, com coragem e
personalidade forte. Contudo, prioriza o lado sentimental de sua personagem e sua dedicação
ao amante, e não o seu lado belicoso como o faz Santos. Para Silva, Maria Bonita fora uma
heroína do amor, e como parte deste universo amoroso, confessava às amigas seu sentimento
por Lampião, nascido a partir da “fama do temível capitão, / das bravuras que ecoavam/ no
Após retratar Maria como uma amante dedicada volta-se para sua progenitora81.
Enfatiza que teria sido a intermediária da aproximação entre a filha e o cangaceiro. Contudo,
concordam que a mãe teve um papel importante, seja como incentivadora indireta (narração
de Santos) ou direta, como nos versos de Silva para o encontro entre Lampião e Maria Bonita.
79
Ibidem, idem, p. 4.
80
Idem.
81
Ibidem, p.5.
155
personagem. Utiliza-se de tal artifício para reafirmar a idéia de que Maria só mudara de vida
por “um amor verdadeiro”. Ressalta que seu pai era um pequeno fazendeiro, e que nunca
Alguns memorialistas nos informam que Maria Bonita teve cinco filhos com
Lampião, porém apenas uma menina sobreviveu. Há referências que tenha nascido em 13 de
setembro de 1932, e recebeu o nome de Expedita Ferreira. A menina foi criada pelo vaqueiro
vários momentos de seu depoimento deixou transparecer este sentimento pela cangaceira,
qualificando-a como uma mulher chata, cheia de caprichos e mandona.84 Salienta que não
tinha muita amizade com ela e que “ (...) quase não conversava com Maria, nossa
aproximação era a mínima possível. Ela era um pouco ranzinza, gostava muito de conversar,
82
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – a Eleita do Rei. Rio de Janeiro: Acad. Bras. de Literatura de Cordel,
reedição 2000. p. 5
83
Há divergências entre os autores quanto a data do nascimento de Expedita Ferreira e quanto ao nome de seu
pai adotivo. Na obra de ARAÚJO, A.A .C. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço,1985, o
nascimento de Expedita Ferreira data de fins de 1932 e início de 1933 e o nome de seu pai adotivo é Severo
Mamede, p.179 Na obra de LINS, D. Lampião, O homem que amava as mulheres. São Paulo: Annablume, 1997
o nascimento é registrado em 13/09/1932 e o nome do pai adotivo é Manoel Severo, p. 141-142.
84
Dadá relembra o episódio de seu primeiro encontro com o grupo de Lampião, e a reação de espanto do rei do
cangaço ao vê-la tão novinha no grupo: “Desmamou essa, hei?”. Dadá disse que ficou com muita raiva, pois
todos do grupo de Lampião, inclusive Maria Bonita, teriam gozado dela. DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição,
Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.26
156
de puxar papo, de viver arrumadinha como boneca85. Eu desde menina que não era assim,
do corpo, ao enfatizar que gostava de viver arrumadinha como boneca; faz questão de deixar
claro que nutria um certo desprezo pelo comportamento da mesma, e que tinha uma natureza
muito diferente da sua. Apesar de não ter Maria como sua melhor amiga, Dadá salienta que a
Num outro momento de sua fala ressalta que “Maria de Lampião tinha uma
pompa danada. Era uma coisa, tinha tempo que ninguém suportava.”87 Lembra inclusive um
que por causa disso, viajaram separados cada qual com seus homens, e ficaram quase dois
A depoente recorda que Corisco teria dito a Lampião que ele era dominado por
Maria e que isso não dava certo. Relembrando as palavras de Corisco, afirma que “Homem
governado por mulher não dá certo (...) Minha mulher muito pouco fala, quanto mais me
governar”88. Tal narrativa confirma as construções de alguns cordelistas que salientaram que
Maria Bonita não era uma mulher submissa, e que exercia significativa influência sobre
Lampião, talvez isso não ocorresse na relação entre Corisco e Dadá. Essa questão é
discutível, pois em outro momento também foi igualmente atribuído ao casal a mesma
situação de Lampião e Maria Bonita89. Talvez esta antipatia da depoente expresse, de certa
forma, o inconformismo com sua forma de inserção no grupo, pois, diferentemente daquela,
não optou pelo cangaço, muito menos por Corisco. Sua relação com este estabeleceu-se a
85
Grifos meus.
86
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p. 35
87
Idem, p. 76.
88
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.76.
89
Sobre o assunto consultar as matéria do Correio da Manhã de 24/05/1940, p. 5 e 28/05/1940, p. 2.
157
partir da força, marcada desde o início pela submissão ao seu raptor90. Além disso, pelo fato
de Maria Bonita receber destaque no cangaço por ter sido a mulher de Lampião, o que lhe
Mas quem foi Dadá? Como foi representada pelas diversas fontes pesquisadas?
2.3.2 - Dadá
literatura de cordel, Dadá - Sérgia Ribeiro da Silva, mulher do cangaceiro Corisco, homem de
confiança de Lampião, que também alcança fama e respeito entre seus companheiros e,
Pernambuco. Seus pais eram Vicente Ribeiro da Silva e Maria Santana Ribeiro da Silva. Foi
raptada aos quinze anos de idade por Corisco (Cristiano Gomes da Silva Cleto) entre os anos
de 1930/1931.
pouco de sua história no cangaço. Ela inicia sua fala referindo-se ao primeiro encontro que
90
Afirma a depoente: “ Eu num entrei no cangaço. Me botaram dentro dele. Quer dizer, eu não escolhi, fui
escolhida....”. DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia,
1989, p.11.
91
O cineasta e memorialista José Umberto Dias, produziu em 1981 o documentário A musa do Cangaço, no
qual Dadá relata como foi sua vida no cangaço. O documentário foi dirigido por Dias e Guto Diniz e as
fotografias por Lúcio Mendes, Alonso Rodrigues e Benjamim Abrahão Boto. Este material encontra-se no
acervo da Fundação Joaquim Nabuco – Recife/PE, e foi por nós reproduzido. Além deste documentário, Dias
transformou o depoimento oral de Dadá no livro: DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador:
EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.
158
acostumada com ele, mais, achei estranho com aquele equipamento, eu não reconheci.(...) Avistei um
homem louro, sentado numa rede, dos cabelos por aqui assim92,....bem vermelho. Eu olhei aquilo
estranhei e voltei. Ele disse – Venha cá menina, tá com medo? Quem morre de medo se enterra vivo.
Mas, eu não escutei mais aquilo e vim embora nunca mais vi. Quando foi um dia de noite ele apareceu
lá em casa para dá comida a um cachorro. Aí teve um pouco lá conversando com meu pai e foi embora
(...)93
inclusive tinha intimidade suficiente para alimentar um cachorro e conversar com seu pai.
Contudo, Dadá não esclarece que tipo de relacionamento envolvia ambos. Depois disso relata
Aí então surgiu uma questão de uma família que tinha lá. Uma família de
pessoal que tinha muito criatório e tinha um rapaz estragando a criação
desse homem. Aí, a Força foi e prendeu ele, bateu muito, estragou com ele.
Eles tomaram por vez, que tinha sido meu pai que tinha delatado esse fulano.
E esse fulano era conhecido de Corisco. Aí mandaram ele ir me carregar, que
era a vingança que podia ter de meu pai era me carregando. Meu pai me
queria muito bem a mim. Ele me queria muito bem(...)94
Não fica claro em seu depoimento quem eram as pessoas que mandaram Corisco a
carregar, muito menos o envolvimento de seu pai com essa questão; o fato é que foi raptada:
“Então ele veio, quando chegou me carregou....me botou na garupa de um burro, mandou o
rapaz viajar comigo e ele ficou lá, discutindo com meu pai....”95 A depoente salienta em sua
fala que questões pessoais a impulsionaram ao cangaço, e demonstra que seu pai não teve
como proibir o ato de seu raptor, demonstrando a impotência de seu progenitor diante do
cangaceiro.
construiu uma outra versão para seu rapto. Em sua construção, Corisco teria pedido ao pai da
depoente permissão para se casarem; diante de sua desaprovação, optou por raptá-la. De
acordo com esta construção, a rixa com vizinhos foi um pretexto utilizado para levá-la.
92
No depoimento, Dadá indicou que o comprimento dos cabelos de Corisco estava na altura dos ombros. DIAS,
José Umberto. Documentário: A musa do Cangaço, 1981.
93
A experiência da ex-cangaceira foi registrada por DIAS, José Umberto, no Documentário: A musa do
Cangaço. 1981 e na obra Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.17.
94
Idem.
95
Idem, Ibidem.
159
de Dadá presenciaram seu rapto e não reagiram a tal prática96. De acordo com esta
construção, o pai de Dadá ao ser consultado por Corisco teria dito: “Eu não tenho uma moça
em casa, isso que tenho é uma menina”. Contudo, as expressões: Mourão pega ela aí e vamos
/ Pode arrastar Mourão, indicam que Corisco usou a força para levá-la. Além disso, a
depoente acrescenta outros elementos ao debate. Nesta versão a mãe de Dadá teria enviado à
tia de Corisco algumas roupas para sua filha, e Corisco teria recusado-as, argumentando que
“Não, não quero nada. Não vou levar nada, nada, nada. Ela não precisa disso”.97 A situação
construída pelo cineasta revela que os familiares de Dadá e Corisco eram conhecidos.
A depoente ressalta que tinha pavor de Corisco, mas que com o passar do tempo
acabou gostando dele: Que horror quando aquele homem chegava. Naquela condição eu fui
pegando amor a ele acabou com meu amor por mais ninguém. Queria bem....98. O “horror”
que sentia por Corisco pode ser entendido neste contexto como uma conseqüência da forma
brutal com que foi arrancada do convívio de sua família e, também, da experiência sexual a
sua fala essa experiência aparece associada à morte: “Quando Corisco me procurava nas
noites, parecia que eu ia morrer, não sabia o que era de ser de mim.”100 .
Em sua narrativa é interessante notar que após expor a violência praticada por
pai, marido e professor. Enfatiza que ele a ensinou a ler e a escrever, que comprava cartilhas
96
As falas dos familiares de Dadá foram destacadas em itálico pelo cineasta, o que sinaliza que foram narradas
pela depoente.
97
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p. 25.
98
DIAS, José Umberto. Documentário: A musa do Cangaço. 1981 e Dadá. 2ª edição, Salvador:
EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.18.
99
Relata a depoente:“A febre ia tomando conta de mim e passava aqueles sonhos de um rio de sangue”. DIAS,
José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.13.
100
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.27.
160
e livros para ela, e principalmente que era uma pessoa muito paciente e a tratava com muita
delicadeza, comportamento que não combina com a ação violenta praticada pelo cangaceiro
(...) Um homem educado, uma pessoa num sei, era um pai para mim, foi um
professor, era um marido, um professor. Comprava livros para mim, cartilhas
para eu aprender a ler. Eu ficava, ele ensinava.....aqueles nomes difícil, eu
rasgava e jogava para lá. Ele dizia –Não adianta eu mando comprá outro.
Nunca me repreendeu uma coisa que ficasse aborrecido – Faça isso - tudo
na delicadeza de uma pessoa....101
No início de seu depoimento ressalta que não tiveram amor de namorados,102 mas
que este sentimento cresceu e se solidificou ao longo do convívio com Corisco, por seu jeito
educado, pela sua paciência, pela proteção e cuidado que tinha por ela; enfim, pela forma com
que ele a tratava. Em outro momento, enfatiza que depois da gravidez mudou seu
sua fala transparece que a separação dos filhos a aproximou de Corisco, pois teria percebido
Naquele meio se esquecia tudo, a gente tava por perto um do outro. Não nos
separamos nunca mais, nem em viagem. Eram uns carinhos (...) Se eu pensasse que a gente ia ser
atacada numa hora daquelas, e Corisco morresse. Pronto. Eu saía de mim mesma. Nem com a morte eu
pensava em me separar. Um amor que eu acho que não ia ter por mais ninguém na vida.103
Fala com orgulho sobre seu casamento com Corisco, e afirma que foram os únicos
a sacramentar a relação.104 Entretanto, sabemos que Sila e Zé-Sereno também o fizeram e que
Dadá enfatiza que seu amor pelo cangaceiro foi tão intenso, que depois que
Corisco perdeu firmeza nos braços (resultado de ferimento por projéteis de armas de fogo),
101
A experiência da ex-cangaceira foi registrada por DIAS, José Umberto, no Documentário: A musa do
Cangaço. 1981 e na obra Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.18
102
Diz a depoente: “ Bom, nós não tivemos amor assim prá gostar, antes de namorar. Isso nós não tivemos...”
DIAS, José Umberto. Documentário: A musa do Cangaço.1981 e Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.17
103
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p. 30
104
Idem, p.13
161
No trecho acima Dadá justifica sua participação nos tiroteios por amor a Corisco.
Contudo, é possível perceber em outros momentos de sua fala que ela queria se diferenciar
das outras mulheres, mostrando que era destemida, e que tinha um ótimo desempenho com
armas de fogo, inclusive assumia comando. Fica evidente no trecho abaixo, que a depoente
queria se destacar por suas qualidades bélicas, pois ao se referir às outras mulheres afirma
que:
A expressão “a arma era prá me diverti”, indica que Dadá tinha prazer em
participar dos tiroteios, e que se destacava por sua qualidade de exímia atiradora e se
identifica como uma mulher agressiva e corajosa. Esta postura assumida pela depoente
também se traduz nas fotografias em que foi retratada. Nestas, preferiu ser perpetuada como
uma mulher belicosa. Na foto 06 posou com uma arma de pequeno porte na mão direita, e na
“batalha” e sua postura ereta indica que estava preparada para qualquer surpresa. Apesar de
carregar muitas correntes no pescoço, não parecia ser tão vaidosa como Maria Bonita.
Contudo, salta aos olhos as jóias e os anéis que enfeitam todos os dedos de suas mãos. Nessas
105
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.18
106
Grifos meus
107
Idem, p.21
162
descontraído.
sempre ostentaram suas armas, inclusive posando para uma fotografia. Tal comportamento
Dadá não queria ser identificada como Maria Bonita, que se inspirava nos
modelos femininos da época. Tal afirmativa se confirma quando analisamos sua postura e
indumentárias. Porém, a cangaceira não abria mão de boas jóias e perfumes. É muito enfática
ao afirmar que no cangaço as mulheres queriam ser melhores que as outras, o que sinaliza
uma disputa entre elas: “Mulher para eles, pra se vestir, luxar, para carinho deles, aprontar
comida, palestrar uma com as outras, mas dentro de um devido respeito, cada qual respeitava
a mulher dos companheiro de patrão...era ótimo. Costuravam, cada qual tratava de luxar da
melhor forma (....) cada uma queria ser melhor do que a outra.108 Afirma que havia “briga,
entusiasmos uma com as outras para ver quem luxava mais, cada qual queria do melhor,
O status da cangaceira poderia ser medido pelos bens que cada uma possuía:
jóias, vestidos e até mesmo animais como cavalo ou burro. Dadá se refere em sua fala ao
burro que Maria Bonita possuía, e que este era o seu maior orgulho: Velocípede era o burro
de sua estimação, o maior orgulho que ela possuía era aquele animal, que a carregava
Contudo, o prestígio feminino era associado ao lugar ocupado pelo companheiro na hierarquia
108
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.19
109
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.27
110
Idem, p.77
164
Dadá destacou-se no cangaço por ser uma mulher destemida e dedicada ao seu
companheiro. A historiadora Maria Cristina Matta Machado111 afirma que ela completava
Corisco e vice-versa.
retrataram em seus cordéis a cangaceira Dadá como uma mulher destemida e fiel a Corisco.
Contudo, veremos no próximo capítulo, que a fidelidade fazia parte do código do grupo e
quem o violasse recebia como sentença a morte. Qualquer tipo de traição era punida com
morte, seja adultério, a delação de companheiros (as), enfim, infligir as regras do grupo.
de Lampião descreve a vida de seu personagem antes e depois de sua entrada para o cangaço
e suas façanhas e sua morte em 1940, pelo coronel José Rufino. Silva aborda em seus versos,
fiel esposa”115. Descreve-a como companheira e não como uma mulher belicosa. Refere-se à
harmonia que cercava seu relacionamento com Corisco, sugerindo que optou pelo cangaço e
111
Diz a autora: “Completa-se Corisco em Dadá, que o aconselha e estimula em todas as circunstâncias.(...)
Dadá foi o cérebro e o coração de Corisco”. MACHADO, M. C. M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São
Paulo: Brasiliense, 1978. p-87
112
SILVA, G. F. da Corisco. O sucessor de Lampião. Ralp, S/d.
113
CARVALHO, Elias A. de Dadá e a Morte de Corisco.1983
114
SILVA, G. F. da Corisco. O sucessor de Lampião. Ralp, S/d, p. 10.
115
Ibidem, p.17.
165
a qualquer sociedade
dos relacionamentos. Entretanto, a prática do adultério no interior dos bandos revelou que os
relacionamentos não foram tão harmoniosos e equilibrados. Além disso, mostrou que nem
todas as mulheres estavam contentes com os seus parceiros, e que mesmo correndo risco de
A impressão que temos do final desta estrofe é a de que Dadá optou livremente
pelo cangaço, preferindo uma vida belicosa em vez de um lar tranquilo, com esposo e filhos.
Contudo, o poeta destaca posteriormente o rapto de Dadá, o que sugere que o poeta quis
enfatizar que a cangaceira destacou-se das outras por sua ação belicosa e, que, apesar de
Carvalho enfatiza em seus versos que Dadá seguiu Corisco porque foi forçada,
116
Ibidem, ibidem, p. 20.
117
CARVALHO, Elias A. de Dadá e a Morte de Corisco.1983.
118
Ibidem, p.1.
166
cangaço, sua família nunca mais teve sossego. Sofreram perseguições e sérias retaliações por
parte da polícia, inclusive um de seus irmãos, em função das constantes perseguições, teria
ingressado no cangaço.120
ocorrido após o cerco de Angico, em que as forças volantes, perseguindo Corisco, travam
com este um tiroteio. Neste, Corisco teria sido atingido no braço, sendo substituído de
destaca seus cuidados como enfermeira. Cuidar dos feridos era uma prática comum entre as
119
CARVALHO, Elias A. de Dadá e a Morte de Corisco.1983, p.12. Em ARAÚJO Antonio A. Corrêa de.
Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço 1985, p. 268, o memorialista referiu-se ao episódio em
que Dadá sofreu hemorragia depois do ato sexual violento de Corisco.
120
CARVALHO, Elias A. de Dadá e a Morte de Corisco.1983, p.13-14.
167
Nordeste.
remédios utilizados na cura dos mais variados ferimentos, sobretudo os provocados por armas
de fogo. São eles: quixabeira, umburana, fumo, farinha, água de genuí, aniqüi, caldo de
lesado. Nas estrofes abaixo, o cordelista Carvalho recria o episódio em que Corisco,
O episódio em que Dadá e Corisco foram cercados pela volante do coronel José
Rufino em 1940, revelou-se num outro momento em que o poeta destaca a coragem de sua
personagem. Essa, de acordo com a composição do poeta, mesmo ferida na perna teria
exigido dos soldados respeito e os teria desafiado para uma luta de fuzil124.
Carvalho informou-nos no final de seu folheto, que Dadá teve a perna amputada.
Casou-se novamente, podendo inclusive dedicar-se aos filhos que teve com Corisco. O
cordelista destacou na contra-capa de seu folheto, que este foi elaborado com base na obra
121
Ibidem, p.24
122
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.36.
168
Dadá salienta que reconstruiu sua vida, casando-se com Alcides e que foi muito
feliz ao seu lado. Não revela maiores detalhes desse novo romance, apenas esclarece que se
apaixonou novamente, vivendo trinta e cinco anos ao lado do novo companheiro. Foram
separados apenas pela morte. A ex-cangaceira menciona que conseguiu cumprir a missão de
sepultar a cabeça de Corisco com o resto de seus ossos. Para tanto, travou uma luta com o
Museu Nina Rodrigues/Bahia, que insistia em ficar com a cabeça para realizar pesquisas.
Cemitério de Quintas do Lázaro em Salvador/BA, vinte e nove anos após a sua morte.
Contudo, seus restos mortais foram reunidos numa mesma urna em 13 de julho de 1977. Dadá
diz que só encontrou paz depois de sepultar dignamente os restos mortais de seu ex-
A depoente se auto-denomina uma heroína, e argumenta que foi muito mais que
isto, ao enfatizar que foi “o dobro de uma heroína, mas quem me fez assim foi o medo (...)
Eu era um chefe pela necessidade que tinha de ser (...) Eu era uma mulher de vanguarda,
tava quase sempre nas dianteiras. Não tinha esse negócio de moleza comigo não....Lampião
tinha muita fé em mim. Porque a vida era braba, a polícia fazia misérias, cortava cabeça,
Fica evidente na fala de Dadá que sua coragem nasceu do medo de ser morta ou
cair nas mãos das volantes. Justifica que foi obrigada a assumir o comando do grupo de
Corisco em função da situação debilitada em que o mesmo se encontrava. Realça que assumiu
o comando do grupo por amor a Corisco, num momento em que ele estava muito debilitado.
123
CARVALHO, Elias A. de Dadá e a Morte de Corisco.1983, p. 26.
124
Ibidem, p. 31.
125
Também foram sepultados no cemitério Quintas em Salvador /BA, as cabeças de: Lampião, Maria Bonita,
Canjica, Zabelê, Azulão e Marinheiro. DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.98.
126
Referindo-se ao sepultamento da cabeça de Corisco ressalta: “Hoje durmo mais tranqüila. Aqueles
agoniados que tinham com Corisco se acabaram, graças a Deus! DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição,
Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.84.
169
companheira a transferir o comando para outro cangaceiro. Tal atitude demonstra uma
inversão nas relações de gênero que foram construídas naquele meio peculiar de vida. A
própria cangaceira recupera, em outra ocasião, o diálogo em que Corisco teria dito a Lampião
que ele era governado por Maria Bonita, e que tal atitude não era recomendada. E ao se referir
a Dadá, argumenta que “Minha mulher muito pouco fala, quanto mais me governar.....”128
Contudo, durante os últimos anos do cangaço (1938-1940) Corisco teve que se deixar
governar por Dadá, “Corisco ficou de acordo porque eu não dizia uma palavra a ele pra não
me atender. Ele não ia se entregar mesmo. Não existe Corisco sem Lampião e não existe
decorrer de sua narrativa, não deixa transparecer que desejava ocupar o lugar de Corisco.
Entretanto, é fato que tinha habilidades bélicas, e que estas lhe conferiram o estereótipo de
mulher destemida. Tal perspectiva se evidencia nas construções dos cordelistas, dos
Além das “musas” do cangaço que se notabilizaram pelo fato de serem mulheres
dos principais chefes e também por suas características pessoais e papéis desempenhados no
127
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.82.
128
Idem, p.76.
129
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p. 88
170
2.3.3 – Sila
Ilda Ribeiro de Souza - Sila
Ficou órfã precocemente, pois sua mãe faleceu quando tinha apenas seis anos e o seu pai aos
suas bonecas e para as de suas amigas era sua brincadeira preferida. A costura representou
depoimento: “ (...) eu era costureira das bonecas. Era muito importante para mim, porque eu
Ressaltou que sempre foi muito vaidosa “(...) gostava de andar bem vestida, perfumada,
usava jóias e bons sapatos”132, e que se destacou entre suas amigas e primas, por seu jeito
comunicativo, que lhe garantia pares em todos os bailes em que participava. Esse fato que
Algumas mocinhas da minha idade tinham uma certa inveja porque eu tinha
o poder dominante nas festinhas que freqüentava. (...) Depois seguia-se um
baile, tocado à consertina, cavaquinho e pandeiro. Eu era considerada “pé de
ouro”, pois modéstia à parte, dançava muito bem e nunca sobrei num
baile”133
130
As memórias de Sila foram registradas nas obras de sua autoria: SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra
e paz. Recife: UFRPE, 1995 e Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo:
Ofic. Cultural Monica Buonfiglio, 1997. Também escreveu em parceria com Antonio Amaury C. de Araújo.
Gente de Lampião: Sila e Zé Sereno, São Paulo: Traço, 1987. Além desses materiais, entrevistamos a ex-
cangaceira, em 26/01/2001, no Centro Cultural Roberto Palmari, localizado em Rio Claro/SP, ocasião em que
Sila realizava uma exposição sobre sua vida no cangaço. Produziu um vídeo no qual percorre o caminho até a
gruta de Angicos.
131
Depoimento de Ilda Ribeiro de Souza, Rio Claro/SP, 26/01/2001.
132
SOUZA, I. R. de Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural
Monica Buonfiglio, 1997, p. 21
133
De acordo com Sila, as festinhas da época eram os bailes que seguiam-se após as novenas nas fazendas de
amigos; as comemorações dos dias dos santos como: São João, Nossa Senhora da Conceição e outros, as datas
172
Nota-se que a depoente tinha um certo prestígio em seu meio, e que participar do
cangaço lhe conferiria “status”. Tal perspectiva pode ser observada no momento em que
Ao ser indagada pela Revista Trip136, sobre seu sentimento a respeito dos
cangaceiros, respondeu enfaticamente “Eu tinha medo demais, nossa! Quando a gente ouvia
falar de Lampião, a gente corria para o mato, dormia a noite toda lá, a família toda debaixo
quando admitiu espiar por debaixo da porta Lampião e seu bando, quando estes passaram na
(...) Meu tio pegou todas nós, eu e minhas primas, e trancou dentro de um
quarto. Assim, a gente não via Lampião nem ele via a gente [as famílias
escondiam as moças dos cangaceiros, pois, se eles as vissem, corriam o risco
de serem raptadas]. Mas eu consegui olhar debaixo da porta, e vi a
alpercata dele.137
Em depoimento oral, contou-nos que foi raptada pelo cangaceiro Zé-Sereno e que
não teve opção, pois se recusasse o “convite”, toda sua família e parentela sofreriam
retaliações. Temendo pela morte de seus familiares, e com o intuito de evitar desgraças,
folclóricas como o Bumba meu Boi, entre outros. SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife:
UFRPE, 1995, p. 15-16.
134
Grifos meus.
135
SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife: UFRPE, 1995, p. 13 e Angicos. Eu Sobrevivi.
Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural Monica Buonfiglio, 1997, p.23.
136
ICASSATTI, M. e SGARIONI, M. Radical Xique-Xique. Revista Trip. São Paulo: TPM, Ano 01 nº 01,
2001, p.11.
137
Ibidem, p.11.
173
seguiu com ele. Contou-nos ainda que os seus irmãos, em decorrência desta situação,
teria que sair de maneira tão abrupta de sua casa, deixando para trás as pessoas que amava.
Informou-nos que o bando de Zé –Sereno teria passado duas vezes em sua casa. Na primeira,
ela se preparava para ir à casa de sua tia Marieta. O seu irmão João ouvira boatos de que os
cangaceiros se dirigiam para a região em que residiam, e com o intuito de protegê-la, optou
por leva-la à casa da tia, que considerava mais segura. Porém, de acordo com a depoente, os
segunda vez que Sereno passou em sua casa, disse-lhe que voltaria para buscá-la num prazo
de oito dias, o que de fato ocorreu. Sila138 contou-nos a mesma versão que narrou em suas
Ao ser indagada pela Revista Trip sobre a possibilidade de fugir durante o prazo
estabelecido por Zé -Sereno, Sila foi enfática: “Mas eu não podia me esconder, porque tudo
lá no Nordeste é pequeno. Se eu me escondesse, seria pior, porque meus irmão não iam ter
pequeno” o que sugere que, naquele momento, o cangaço estava disseminado por toda região
nordestina. Portanto, não havia lugar seguro para se esconder, já que as volantes estavam
determinadas a colocar um fim no cangaço. Além disso, a fala da depoente pode ser pensada
Apesar de afirmar que tinha consciência dos riscos, Sila optou por seguir com os
nos que em função da perseguição policial e para não deixá-la sozinha com os cangaceiros,
138
SOUZA, Ilda R. de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife: UFRPE, 1995, p.21
139
ICASSATTI, M. e SGARIONI, M. Radical Xique-Xique. Revista Trip. São Paulo: TPM, Ano 01 nº 01,
2001, p.11
174
participação de seus irmãos no cangaço. Transmite a idéia de que eles não eram bandidos,
mas que se incorporaram ao cangaço para “protegê-la”, motivo que tornava aceitável a
inserção.
De acordo com Sila, assim que o prazo se encerrou, Zé Sereno retorna a sua casa
para buscá-la. Contudo, afirma que antes de levá-la, Zé-Sereno pediu ao seu irmão João, que
organizasse um baile com muita música e algumas moças141. À noite o baile correu
normalmente. Sila, porém, evitava olhar para Zé –Sereno, na esperança que ele desistisse da
cangaceiro Luís Pedro transmitiu-lhe o seguinte recado: “(...) Zé Sereno mandou lhe dizer
cangaço, sugere que teve a oportunidade de se armar contra os cangaceiros, pois teria sido
anteriormente avisada por Zé-Sereno sobre sua intenção de levá-la. Entretanto, ao rememorar
o episódio Sila “justifica” que não tinha opção, pois se ousasse contrariar os cangaceiros, seus
140
Consultar suas memórias: SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife: UFRPE, 1995, p. 29-30
e Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural Monica
Buonfiglio, 1997, p.30.
141
Sobre este assunto consultar: SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife: UFRPE, 1995, p. 23-
24 e Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural Monica
Buonfiglio, 1997, p.26-27 e os depoimentos: Ilda Ribeiro de Souza (Sila) ex-cangaceira, integrante do bando de
Lampião, companheira do cangaceiro Zé Sereno – Rio Claro – SP. 26/01/2001 e ICASSATTI, M. e
SGARIONI, M. Radical Xique-Xique. Revista Trip. São Paulo: TPM, Ano 01 nº 01, 2001, p. 5-16.
142
SOUZA, I. R. de Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural
Monica Buonfiglio, 1997, p. 27
175
da época pela fama que desfrutavam. Admitiu, anteriormente, que em certa ocasião teria
observado o bando de Lampião por baixo da porta. Tais comportamentos sugerem que
Em suas reminiscências, Sila resume da seguinte forma sua partida: Saí com
todos, só com a roupa que vestia. Sentia-me como que suspensa no ar, numa horrível
sensação de medo, pavor, incerteza e ainda a saudade imensa da minha casa, dos meus
algum lugar que não conhecia. Caminhamos pelo mato afora, todos calados”144 Estas
palavras nos dão uma idéia do sofrimento da adolescente Sila, que perdera muitas pessoas
queridas, primeiro a mãe, depois sua tia/madrasta, seu pai, e a irmã mais velha que se casara e
mudara-se para a Bahia. Agora, perdia o seu lar, seus irmãos e seus entes queridos.
cerco, justificou que só conseguiu sair ilesa porque houve intervenção divina:
Ah! Minha filha isso só Deus mesmo, porque se não fosse Deus, eu não
estaria aqui. Porque foi uma coisa muito perigosa, uma luta fora do normal,
era tiro que caia, acabou com tudo. E a gente não morre antes da hora não. O
tiro batia na pedra, da pedra batia na cabeça da gente, mas eu não
morri graças a Deus.145
143
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as
memórias.Projeto História. São Paulo: Educ, nº 15, 1997, p. 51-84
144
SOUZA, I. R. de Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural
Monica Buonfiglio, 1997, p. 27
145
Grifos meus. Depoimento de Ilda Ribeiro de Souza, Rio Claro –SP 26/01/2001.
176
batia na pedra, da pedra na cabeça (...)”, acreditamos que tenha utilizado tal recurso para
polícia em 1940 na Bahia, sob garantia de anistia do Presidente da República, Getúlio Vargas.
Ficaram um tempo na Bahia depois foram para Jordânia, cidadezinha mineira que fica na
fronteira com a Bahia. Hospedaram-se na fazenda do antigo coiteiro e amigo dos tempos do
cangaço, o sr. Jacó. Sila, Zé-Sereno e Criança foram para Martinópolis no interior do Estado
de São Paulo. De acordo com Sila, a cangaceira Dulce apaixonou-se pelo fazendeiro Jacó e
não quis mais seguir com Criança. Este ficou furioso e quis matar o fazendeiro e a ex-
companheira. Desistiu desta idéia depois de ser convencido pelos companheiros para que não
criasse caso, pois já estavam livres da polícia. Sila ressalta que o cangaceiro concordou,
porém como punição levou consigo os dois filhos do casal. Além disso, garantiu que ela
nunca mais os veria. Dulce ficou com o fazendeiro Jacó, e os demais partiram para São Paulo.
Sila nos conta que ela e o marido, se fixaram na cidade de São Paulo em 1946, e
começaram ali uma nova vida. Ela ajudava no orçamento com suas costuras e todos os
trabalhos que apareciam. Fez questão de dizer que apesar das dificuldades nunca se prostituiu:
Em São Paulo nós sofremos muito também, chegamos numa capital com três
crianças pequenas, sem ter meio. Eu sempre guardava um pouco de dinheiro
por causa dos meus filhos, eu costurava roupa para eles né. Eu era costureira.
Qualquer pedacinho de pano eu fazia, tomava máquina emprestada, um
emprestava outro não (...) sempre com aquele jeitinho. Aí eu bordava muito
bem e comecei a bordar no bairro da Lapa, (...) Aprendi coisas, olha, fiz de
tudo. Só não fui prostituta. Mas o que precisava trabalhar para ganhar
146
dinheiro eu trabalhava.
146
Idem
177
Enfatizou que tomava remédio para não dormir “Eu trabalhava de dia e de
respeitou muito as pessoas e, por isso, também procurou trabalhar nos locais em que recebia
respeito. Falou com orgulho da honestidade com que criou seus filhos, sempre se referindo ao
respeito ao próximo, aos mais velhos “Criei meus filhos honestamente, a gente tem que ser
honesto, a gente tem que olhar pelos velhos e pelas pessoas que dá valor pra gente”.148
Recordou em suas memórias que Zé-Sereno teve dificuldades para arrumar trabalho. Viveu
por muito tempo fazendo bicos, e só mais tarde arrumou emprego de vigia numa fábrica.
Disse que o marido adoeceu de sífilis, e durante todo tratamento ela supriu a família.
Trabalhou na fábrica Matarazzo (antiga tecelagem de São Paulo) por três meses, e só saiu do
emprego porque ficou grávida e não quis abortar, como sugeriu a empresa. Mais tarde
arrumou emprego no Mapping (grande rede de magazines em São Paulo), onde permaneceu
até aposentar-se. Recorda das inúmeras dificuldades que passaram na capital, desde as
financeiras até os preconceitos que sofreram, sobretudo seus filhos. Sila permaneceu ao lado
de Zé-Sereno até a sua morte em 1981 (nesta época Zé Sereno trabalhava como inspetor de
idade e residia em Santana, na zona norte de São Paulo, e sobrevivia da aposentadoria que
conquistou com os longos anos de trabalho como costureira. Além disso, também participava
147
Ibidem
178
veementemente contrária à posição dos que defendem a incorporação voluntária. Negou que
tivesse tido qualquer tipo de atração pelo cangaço. Reiterou que várias mulheres ingressaram
voluntariamente no cangaço, mas que essa prática não corresponde à realidade vivenciada
cangaço? Como definiu Lampião? Existia em sua concepção diferenças entre cangaceiros e
volantes?
Enfatizou que foi resultado das injustiças sociais e do descaso governamental em relação ao
mas, como um meio de sobrevivência, uma forma de se ver “livre” do jugo dos coronéis.
Neste trecho fica evidente que reelabora seu discurso incorporando outros elementos
apreendidos nas experiências adquiridas mais recentemente. Além disso, não parece ter uma
caráter”, sertanejo preocupado com a moral e com a religião. Atribui ao mesmo tempo
148
Depoimento de Ilda Ribeiro de Souza,Rio Claro –SP 26/01/2001
149
SOUZA, I. R. de Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural
Monica Buonfiglio, 1997, p.11
179
Acrescentou que o Lampião que conheceu não foi o mesmo descrito pela história
experiência própria, pinta os fatos com a cor que convém aos detentores do poder. Isto agora
criminosos, tão bárbaros, tão cruéis quanto as volantes das polícias nordestinas” que os
meios empregados muito menos quanto ao uso da violência; mas no fato de os primeiros
150
Ibidem, p.12
151
Ibidem, ibidem, p.13
180
2.3.4 – Moça
Apesar de possuírem anéis nos dedos, lenços no pescoço, não se igualam aos trajes
152
Correio da Manhã, 14/04/1937, p. 6.
181
dessa cangaceira que se entregou às autoridades alagoanas em Mata Grande no dia 13 de abril
cangaceiro Cyrillo da Ingracia. Esclarece que se encontrava com 24 anos de idade quando se
expulsa do bando de "Lampeão". Conta-nos que viveu quatro anos com o cangaceiro Cyrillo
da Ingracia e que depois de sua morte, resultado de um confronto com a polícia alagoana
liderada pelo cabo Cícero Ribeiro, foi requisitada pelo cangaceiro Jacaré.
ligava-se a uma seqüência de mortes no grupo, logo após a morte de Jacaré, que foram
sobretudo na mulher que carregava poderes "ocultos". Entretanto, sabemos que neste ano de
uma vez que há relatos de alguns ex-cangaceiros a memorialistas, que salientam que a mulher
tornava o cangaceiro vulnerável ao perigo, pois a relação sexual abria o seu corpo, o que não
pode ser generalizado, pois muitos preferiram viver ao lado de suas mulheres.
153
Idem
182
Joana, ao falar para a imprensa, salienta que seu companheiro Jacaré estava
cansado daquela vida, e que tinha intenções de se entregar à polícia, pois não agüentava mais
viver fugindo, sem tempo para comer, dormir etc. Ressalta: o que me causa mais pena é saber
que "Jacaré" morreu quando se ia entregar á polícia, "abusado" como estava da vida, que a
gente levava, pelas mattas, feito bicho. Avalie que raramente a gente dormia dez horas e
nunca se passou três dias num logar. Era daqui para ali, dali para acolá, feito fogo
corredor”154.
A entrevistada revela alguns fragmentos que sinalizam para o modo de vida que
união a Jacaré, a cangaceira recupera uma prática que parecia ser comum no universo do
cangaço, e que sinaliza para uma certa regularidade/normalização no grupo, embora seja
possível notar uma flexibilidade no seu cumprimento. Ou seja, era muito comum que após a
depoentes recuperam essa especificidade do grupo, e admitem que apesar de sinalizar para
(...) - No bolso da gente nunca faltou dinheiro. Era de esbanjar. Ao utilizar o verbo esbanjar,
sugere que havia dinheiro suficiente para juntar fortuna, e que o enriquecimento era muito
fácil, fato que teria seduzido muitos homens que trocaram um vida miserável pela
possibilidade de riqueza. Isto fica mais evidente, quando revela a facilidade com que lidavam
com a falta de dinheiro: Quando, porém, escasseava, os homens atacavam nas estradas, nas
fazendas e prompto! As vezes se recorria ao "coito", mas, ultimamente, a coisa era mais
154
Correio da Manhã, 14/04/1937, p. 6.
155
ARAÚJO Antonio A. Corrêa de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço 1985, SOUZA, I. R.
de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife: UFRPE, 1995 e Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira
do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural Monica Buonfiglio, 1997.
183
difícil devido á polícia. Assim mesmo, um delles ia com a cara de santo e carregava o que se
precisava156. Fica explícito na última fala da entrevistada, que em função das constantes
immediatamente porque havia o perigo de a gente desgarrar e algum cair nas mãos dos
O editor da entrevista enfatiza que Joanna era conhecida como "viúva dos
bandidos”, o que sugere sua dupla marginalidade e o perigo que representava para os
vezes matar, mas não gostava daquillo. Dava-me até dôr de cabeça. Por isso nunca mais
voltarei ao cangaço nem que saia da cadeia. Conclui sua fala enfatizando que o cangaço era
“uma vida danada, vida pra quem é doido e está desenganado do mundo”. Ao se referir a
Lampião, afirma que estava "magro, mas bem disposto", e ainda queria ser "governador de
156
Correio da Manhã, 14/04/1937, p. 6.
157
Idem
184
2.3.5 – Neném
fotografias. Na fotografia 9, é focalizada em primeiro plano, com um vestido que parece ser
de festa. Também está enfeitada com jóias no pescoço, anéis em todos os dedos, e cabelos
presos por presilhas. Apesar das jóias, nota-se que o traje de Neném é bem mais simples que o
de Maria Bonita, o que nos leva a pensar que existia de fato cangaceiras mais ricas. O
imagem da mulher de elite, tão bem construída e utilizada por Maria Bonita.
postura e do gestual alguns traços que caracterizam uma mulher de elite, como o cruzar das
pernas, a postura ereta e as mãos sobre as pernas. Contudo, é evidente que ela se distancia
A busca por uma identificação com uma mulher da elite, parece ser uma
preocupação de Maria Bonita, pois não notamos entre as outras cangaceiras essa mesma
postura. Talvez, isso possa se explicar pelo fato de ser a mulher do chefe, o que acabava por
lhe conferir prestígio e alguns privilégios como, por exemplo, ser abundantemente
fotografada.
186
Pouco foi dito sobre as cangaceiras Dulce, Maria Jovina, Inacinha, Áurea,
Sebastiana, Otília, Rosinha, Eleonora, Durvinha, Quitéria, Maria Cardoso, Maria Fernandes,
Bídio, Lica Maria da Conceição, Sabina da Conceição, entre outras. Contudo, as várias fontes
coletadas indicam que a faixa etária das cangaceiras variava de 14 a 26 anos de idade.
o sonho de uma “vida fácil” alimentada pela perspectiva de riqueza e diversão constantes,
uma vida de certo glamour. Estes parecem ter sido os casos de Dulce, Cristina, Doninha, Lili
Criança, que foi narrado pela ex- cangaceira Sila em suas memórias:
variados, a maioria das mulheres incorporou-se ao cangaço na mera ilusão de que viveria em
constante festa e teria “liberdade”, sensação alimentada pela vida nômade e errante desses
homens. No entanto, sabemos que esta não era a realidade dos bandos. Eram constantemente
ficavam mal alimentados e sem água suficiente para suas necessidades, caminhando
quilômetros sob o sol e chuva. Nem sempre tinham onde repousar e tomar banho. Enfim,
158
SOUZA, Ilda R. de. Sila Memória de Guerra e Paz. Recife: IURPE, 1995. p.30.
187
marginal em que a cangaceira estava inserida, e não qualificá-la como criminosa, como faz a
imprensa. O poeta não se refere a bandida como sinônimo de assassina ou perigo bélico. O
algumas mulheres no grupo. Sugere que não se constituíram numa ameaça bélica à sociedade.
Nota-se que a maioria dos poetas retrata de modo positivo a experiência feminina
caracterizado pelo desempenho com armas e pela criminalidade que lhe é atribuída, expressa
em sua participação nos diversos assaltos praticados pelos grupos; ora como objeto sexual,
fotografias que indicam suas preocupações com o embelezamento do corpo, com a aparência
e com a postura. Salientam a estética dos trajes femininos, bem como o apreço por jóias. A
literatura de cordel trabalha com essas duas posições e constrói ao mesmo tempo a mulher
159
Diz o poeta: “As bandidas se ocupavam/ Em cozinhar a comida”. D’ALMEIDA FILHO, M. Os cabras de
Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965, p. 32.
160
O poeta enfatiza: “Ainda tem as bandidinhas/ Nenê de Ouro e Rosinha/Maria Cardoso e Cira/Aura, Sila e
Isaurinha/Aldina, Otília, Sabina/ Juriti e Mariquinha/ Por Adília que era /Uma bandida elegante”.
D’ALMEIDA FILHO, M. Os cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965.
188
trajetória das cangaceiras, Maria Bonita, Dadá e Sila, cujos registros indicam, entre outros
próximo capítulo terá como problemática central o uso da violência para subjugar o outro.
190
afirmação de poder.
e foi utilizada pelos grupos com o intuito de afirmar poder. Diferenciava-se quanto à forma de
violência cometida pelos cangaceiros, quanto aos abusos praticados pela polícia. A diferença era
morte ( em função dos confrontos com as volantes) e a pena de morte para a mulher que ousasse
incorporação, ou seja, o rapto e os possíveis desdobramentos dessa ação sobre suas vidas
vivenciadas por essas mulheres podem ser observadas em seus depoimentos, Sila parece não
guardar boas lembranças de sua primeira experiência sexual, com Zé-Sereno, aos catorze anos de
idade. Em seu depoimento à Revista Trip, descreveu esse momento como um experiência amarga
191
e nojenta:“(...) Nem sabia que existia isso. Naquele momento me senti nojenta....Tive muito
nojo...”1. Em suas memórias esclarece que “Zé tratou de arranjar uma coberta, estendeu-a no
chão, deitamos. Tive de obedecê-lo e dormir com ele. Assim foi minha primeira noite”2 . Em
outro momento resumiu essa primeira transa como uma “obediência” ao seu raptor,
De acordo com ela, os casais ficavam separados dos homens solteiros: “(...) Tinha
também uma cabaninha improvisada. Os casais eram separados: os solteiros ficavam do outro
lado, ninguém ficava perto, não. Mas era um coisa muito difícil, viu?...”3
salienta que teve seu corpo violentado à força, “logo na primeira noite desci da garupa de cavalo
prá abrir as pernas à pulso.”4 Em outro momento de sua fala compara a ação de seu raptor à de
um animal selvagem “(...) Foi neste lugar que ele começou a fazer aquilo a pulso comigo. A
perda do cabaço foi uma coisa horrível com aquele homem em cima de mim feito um animal.
Fiquei doente, acabada, morta, arrastando pelo chão e botando não mais sangue mas aquela
água verde...”5
Nota-se na fala das depoentes a utilização das expressões: “existia isso”, “dormir
com ele”, “minha primeira noite”, “abrir as pernas” e “fazer aquilo” para se referir ao ato
sexual, o que parece haver um certo tabu em relação à palavra sexo, dando a impressão de que
era algo feio e proibido, ou ainda, que se relacionava à prostituição. Talvez tenha sido uma
forma de se protegerem dos julgamentos alheios. Ou seja, a contenção de seus desejos sexuais
1
ICASSATTI, M. e SGARIONI, M. Radical Xique-Xique. In: Revista Trip. São Paulo: TPM, Ano 01 nº 01, 2001,
p.11.
2
SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra e paz. Recife: UFRPE, 1995, p. 25. e Angicos. Eu Sobrevivi.
Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Ofic. Cultural Monica Buonfiglio, 1997, p. 27.
3
ICASSATTI, M. e SGARIONI, M. Radical Xique-Xique. Revista Trip. São Paulo: TPM, Ano 01 nº 01, 2001,
p.9.
4
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição. Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.11.
5
Idem, p. 25-26.
192
compara a hemorragia sofrida a “um rio de sangue”6 para expressar a gravidade da ação
praticada por seu raptor. Com base nos depoimentos orais da cangaceira ao memorialista Antônio
qualifica sua a primeira experiência sexual como um estupro violento. Na composição do poeta,
raptor:
de informações. Contudo, alguns indícios foram recuperados nos casos em que essas mulheres se
envolveram com outros homens do bando. Em alguns deles culminaram em desfecho trágico.
Assim foram os casos de Lídia, Lili, Cristina e Maria Jovina também conhecida como Maria de
Pancada.
6
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição. Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.13.
7
Carvalho, Elias A.. Dadá e a morte de Corisco, 1983, p.13.
193
Caracterizaram-se pelo afeto entre os casais; outras por imposição decorrente de circunstâncias
da própria inserção dessas mulheres no bando ou, ainda, pelo desejo de viver uma aventura, fora
dos padrões convencionais. Algumas foram bem sucedidas, como a de Lampião e Maria Bonita
que se constituiu por laços de afetividade; a de Corisco e Dadá, que se apaixonou por seu raptor;
a de Sila e Zé-Sereno que embora tenha sido fruto de um rapto, se estruturou sem muitos
constituição, nem sempre foram bem sucedidas, o que se traduziu na busca de outro companheiro
dentro do próprio grupo. Isto gerou conflitos entre os envolvidos e no próprio bando, nem sempre
resolvidos de forma harmônica. Esta problemática merece ser abordada de forma mais pontual,
grupo, e por colocar em xeque os códigos de funcionamento do próprio cangaço, tais como
confiança e lealdade.
quem manteve relações durante três anos até ser descoberta pelo cangaceiro Coqueiro, que a
delatou a Zé-Baiano. O desdobramento dessa prática teria resultado na fuga do “amante” e nas
Gonçalo Ferreira da Silva no folheto Zé-Baiano. O Ferrador de Gente8. Neste, Silva se mostra
muito solidário a Zé-Baiano, e atribui sua personalidade violenta a uma possível revolta do
Entretanto, as fontes analisadas sinalizam que este cangaceiro teria se destacado desde sua
incorporação no cangaço por sua conduta agressiva e perversa com que se lançava contra suas
vítimas.
O próprio poeta em sua construção admite que Zé-Baiano entrara para o cangaço
Do grupo de Lampião
Foi Zé- Baiano o bandido
Que teve a desilusão
De ser um dia traído9
Acrescenta que Zé –Baiano sofrera dois golpes ao mesmo tempo, “o primeiro e mais
terrível/ foi Lídia o ter traído,/ o segundo foi o próprio/ conquistador ter fugido”10. Lídia
acontecera. Voltou para junto de seu bando chefiado por Virgínio e dele obteve o perdão.
O cordelista Silva insiste em dizer nos seus folhetos - Maria Bonita – A eleita do Rei e
Zé- Baiano. O Ferrador de Gente – que a traição de Lídia teria sido um caso isolado. Afirma,
que antes do episódio em que “miseravelmente Lídia traíu Zé Baiano”11, não há evidências de
8
SILVA, Gonçalo F. da Zé –Baiano. O ferrador de gente. Rio de Janeiro: Acad.Bras. de Literatura de Cordel, 2ª
edição, s/d.
9
Idem, p.2.
10
Idem, p. 6.
195
Em suas memórias, Dadá12 se refere ao episódio em que Lídia teria sido barbaramente
assassinada por Zé-Baiano. Sua narrativa traz com detalhes os momentos que antecederam o
crime. Salienta que Lídia era uma pessoa triste, e que vivia chorando pelos cantos. Contudo,
naquele dia estava contente e sua alegria, de acordo com Dadá, teria incomodado e despertado a
Nessa construção, Lídia teria sido violentamente espancada até a morte. Dadá, ao
rememorar o episódio, descreve da seguinte forma a ação de Zé-Baiano: “Era ele matando a
paulada e ao mesmo tempo em prantos”. De acordo com essa narrativa, as pessoas do grupo
assistiram ao assassinato da cangaceira sem intervir. Esse comportamento sinaliza que sua prática
era perfeitamente aceita entre seus pares e servia de exemplo para as demais mulheres que
desejassem praticar o sexo livre. A ação do cangaceiro demonstra que os homens tinham poder
sobre o corpo e a vida da companheira. Apesar deste quadro de barbárie, outras mulheres ousaram
Lavadeira. De acordo com os relatos dos memorialistas e depoimentos orais, após a morte
daquele em 1933, Lili teria se unido ao cangaceiro Baiano (Manoel Moreno), caracterizado
possíveis desdobramentos, largou-o e juntou-se a Moita Brava, cangaceiro muito temido por sua
valentia e destemor e que pertencia ao grupo de Labareda (Ângelo Roque). Lili, sentindo-se uma
11
SILVA, Gonçalo F. da. Maria Bonita – a Eleita do Rei. Rio de Janeiro: Acad. Bras. de Literatura de Cordel,
reedição 2000. p. 6.
12
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.77.
196
mulher livre, aproveita os momentos de ausência de Moita Brava para encontrar-se com Pó
Corante, mesmo sabendo das conseqüências de tal ato. A morte de Lili e a fuga de Pó Corante
de Labareda intervieram antes que o cangaceiro fosse executado. Essa atitude não era esperada
por Moita Brava, uma vez que vigorava no interior dos bandos um código de honra, que permitia
a execução de qualquer elemento do grupo considerado traidor, fosse numa ação individual,
como nas relações “extraconjugais” ou numa ação coletiva que colocava o grupo em risco.
Depois deste episódio Moita Brava teria regressado ao grupo de seu ex-chefe Corisco,
Em seu depoimento, Dadá concorda com a sentença aplicada à cangaceira Lili. É fria
e direta ao afirmar que “Lili . A Lili deu prá descaradinha, o Moita Brava matou. Deu um tiro
na cabeça e pronto”14. Não questiona a atitude do cangaceiro, muito menos esclarece o que teria
Ao que parece Lili tinha fama de namoradeira e representava, portanto, uma ameaça.
Talvez isso justifique a naturalidade com que Dadá aprovou o ato de Moita Brava. Essa postura
não foi assumida quando menciona a morte de Lídia; qualifica o ato de Zé-Baiano de
perigosa e incerta daqueles homens, e quis seguir com Português após os namoricos com outros
cangaceiros. Já integrante do bando, desafiou suas normas mantendo relações com Gitirana. Seu
companheiro Português, ao saber da estória quis matá-lo, porém não recebeu o apoio de seu chefe
13
ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p.111-114.
14
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.19
15
Idem, p.77
197
Corisco. Este episódio teria ocorrido no início de julho de 1938, e teria gerado uma situação de
tensão entre os grupos de Corisco e Lampião, acampados no mesmo coito, provocando uma
ruptura entre os bandos. Lampião e Maria Bonita intervieram tentando uma solução conciliadora.
Maria Bonita mostrou-se a favor da eliminação de Cristina, e não contou com o apoio de Corisco,
que entendia que ela era livre para se relacionar sexualmente com quem lhe aprouvesse.
Ademais, era um assunto restrito aos dois (Cristina e Português), posição igualmente partilhada
por Lampião16.
Em suas memórias, Dadá recorda o diálogo que teria travado com Lampião para
evitar a morte de Gitirana. Atribui a culpa a Cristina argumentando que não valia a pena “Matar
por senvergonhice de mulher”; justifica que também era mulher e convivia com vários
cangaceiros e que nenhum deles a desrespeitou “Com ele eu não faço isso porque sou uma
mulher, ando sozinha no meio de todos.....Nunca achei um que se dirigisse a mim. E se dirigir eu
sei agir”.17
sexual. Salienta que não teria resistido às “provocações” de Cristina, afinal ele era homem e ela
que “Se ela fez isso é porque quem tem o que é seu, dar a quem quer, mas meu rapaz eu não
mato”.18 Fica explícito nestes trechos que Gitirana parecia ser muito querido no grupo, e que
talvez isso se explique por ser o violeiro do grupo o que lhe conferia alguns privilégios.
De acordo com essa versão a contenda teria sido contornada, e Cristina teria obtido a
chance de voltar para junto de seus familiares, o que não se concretiza em função de uma
16
ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo:Traço, 1985, p.162-167.
17
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.78.
18
Ibidem, p.78.
198
emboscada planejada pelo ex-companheiro e Luís Pedro que lhe tirara a vida quando estava a
caminho de casa.
Como toda regra tem sua exceção Maria Jovina, companheira de Pancada, manteve
nem sempre a punição foi levada à risca. Além disso, não há casos de homens que tenham sido
condenados à morte por traírem suas companheiras. É sabido que os homens “pulavam a cerca”,
porém não foram punidos, nem mesmo quando traíram um companheiro do grupo, como foram
As questões assinaladas anteriormente nos mostram que não havia igualdade entre
homens e mulheres no bando. Quando se tratava de relações afetivas, a lealdade parece que não
era a moeda corrente, pois havia traição entre os próprios homens. Se a mulher consentisse, não
dos bandos informou-nos que era difícil saberem se tinham sido traídas por seus companheiros,
uma vez que nem sempre os acompanhavam em suas andanças: “A mulher não sabia, era muito
difícil. O homem sim. (...)”19. Revelou em entrevista à Revista Trip, que foi diversas vezes traída
por Zé-Sereno e ao ser questionada, negou que tenha sentido ciúmes. Destacou em sua resposta
que sentiu vergonha com aquela situação: “Não, eu não tinha ciúme dele. Fiquei só com
vergonha, não sei......”20. Contudo, admitiu que ficou brava e discutiu com o companheiro.
Mas qual teria sido a punição para Zé-Sereno? De acordo com Sila, não teria passado
de uma discussão e uma utópica ameaça de deixá-lo: “(...) Depois eu xinguei, fiquei brava e disse
19
Depoimento de Ilda Ribeiro de Souza (Sila) ex-cangaceira, integrante do bando de Lampião, companheira do
cangaceiro Zé Sereno – Rio Claro –SP 26/01/2001.
20
Ibidem, p.9
199
que ia embora”21. A narrativa de Sila sugere que a mulher não tinha que aceitar passivamente a
traição do companheiro. Contudo, a punição masculina não passava disso. E o adultério feminino,
como era resolvido? Sila foi enfática ao definir a sentença para a mulher adúltera: “ Traiu. Ela
morre né. A mulher não pode trair cangaceiro de jeito nenhum (....) se a mulher traísse
morria....”. Estas palavras evidenciam que não existia igualdade entre homens e mulheres no
consideradas inimigas. Ou seja, mulheres de policiais (mãe, esposa e filhas), dos colaboradores
pelos cangaceiros e volantes contra suas vítimas, tais como: maus tratos, humilhações públicas
(nudez em público, raspar a cabeça), abuso sexual, prisão e mortes. Conforme esses relatos, os
cangaceiros mexiam principalmente com o orgulho das sertanejas. Faziam-nas ficarem nuas
publicamente. As sertanejas, depois de passar por tal situação, enclausuravam-se em suas casas.
Além dos maus tratos, os cangaceiros também faziam uso da violência sexual. Este
comportamento, porém, parece ter sido amenizado com a entrada da mulher no cangaço. Outra
prática recorrentemente utilizada por cangaceiros foi marcar suas vítimas a ferro em brasa
notadamente mulheres que tinham ligações com a polícia como ocorreu em 1932, na cidade de
21
ICASSATTI, M. e SGARIONI, M. Radical Xique-Xique. In: Revista Trip. São Paulo: TPM, Ano 01 nº 01, 2001,
p.9.
22
ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo:Traço, 1985, p-86-87.
200
prática de ferrar pessoas, sobretudo mulheres, teve início com Zé-Baiano (José Baiano), para
vingar o espancamento de sua mãe por soldados que buscavam informações a seu respeito.
comportamento de Zé-Baiano resultava da traição de Lídia, sua companheira. Esta mesma idéia
foi recuperada pelo cordelista Gonçalo Ferreira da Silva em folheto Zé- Baiano. O ferrador de
gente25. Neste cordel Lídia foi responsabilizada pelo comportamento assassino e bárbaro de Zé-
argumentando que a barbárie praticada pelo cangaceiro teria ocorrido em 1932, enquanto a morte
Zé-Sereno (que presenciou o ocorrido em Canindé), destacam que a invasão desta localidade
23
Diz o autor: “ Viu a testa da mãe com aquela depressão profunda e tomou a deliberação de agir do mesmo modo
com os soldados que tivessem o azar de cair em suas mãos, e na impossibilidade de prendê-los, faria isso com suas
mulheres. Mandou um ferreiro executar um ferro de marcação com as iniciais J. B.....” ARAÚJO, A. A C. de.
Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p-74-76.
24
A socióloga destaca que: “(...) Zé Baiano, companheiro de Lampião quase desde os primeiros dias, tornou-se
célebre pela mania de marcar suas iniciais a ferro em brasa no rosto das mulheres que possuía. Diz-se que se
vingava assim da traição de Lídia, sua primeira mulher”. QUEIROZ, M. I. P. de História do Cangaço. São Paulo:
Global, 1986, p.51.
25
SILVA, Gonçalo F. da Zé –Baiano. O ferrador de gente. Rio de Janeiro: Acad. Bras. de Literatura de Cordel, 2ª
edição, s/d.
26
Ibidem, p. 5
27
Diz a memorialista: “Muitos afirmam que Zé- Baiano começou a marcar mulheres com ferro em brasa após a
morte de sua própria companheira, Lídia, mas esta tese não tem fundamento. Os fatos que narramos aconteceram
em 1932, e Lídia, mulher de Zé-Baiano, só veio a falecer em 1935”. FERREIRA, Vera e ARAÚJO, A. A. C. de De
Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia Visual, 1999, p. 211.
201
não tinha nada a ver com dinheiro, mas um acerto de contas de Lampião com quatro mulheres
que lhe enviaram um bilhete desafiador quanto a sua desaprovação ao uso de cabelos curtos pelo
sexo feminino. De acordo com os memorialistas, este teria sido o motivo para que três destas
mulheres fossem punidas com o ferro em brasa. Diante deste quadro, algumas indagações nos
parecem muito pertinentes: teria realmente Lampião se deslocado para Canindé apenas para punir
suas desafiadoras? Será que Lampião perderia o seu tempo com fuxicos femininos, ou teria
outros motivos para invadir aquela localidade? O bilhete e o uso do cabelo curto não seriam um
artifício de Zé-Sereno para justificar este ato de barbárie? Por que este bilhete não aparece nas
obras historiográficas?
Parece-nos pouco provável que Lampião se mobilizasse até Canindé apenas pelos
motivos explicitados por Zé-Sereno. Além disso, é importante ressaltar que dentre as quatro
mulheres, os indícios sinalizam que apenas Anízia não tinha ligação direta com a polícia. Maria
Marques era irmã do soldado Vicente (aquele que espancara a mãe de Zé-Baiano), Izaura era
esposa do soldado Bilrinho e Natália esposa do soldado Maninho, que teria sido poupada da ação
violenta em função da intercessão de diversas pessoas por causa de seu estado avançado de
gestação.
uma mera coincidência. A presença de Maria Marques, irmã do soldado Vicente, revela-se uma
28
O autor ressalta que: “Quanto ao ato de ferrarem as mulheres, disse-nos Sereno que ele e mais um companheiro
foram mandados por Lampião para prenderem o grupo de mulheres que os observavam (...) Lampião tinha recebido
uma carta das mulheres dizendo que sabiam que ele não gostava de cabelos curtos, mas que os cabelos eram delas,
e elas cortavam do jeito que queriam” ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço,
1985, p.78-79
29
Referindo-se ao episódio a autora ressalta: “ Zé-Sereno, que participou de todos os acontecimentos desse dia, nos
contou que o motivo que levou Lampião a invadir Canindé não tinha nada a ver com dinheiro ou qualquer outro
bem material. (...) havia chegado até ele uma carta desafiadora, escrita por algumas mulheres residentes nessa
vila, dizendo que sabiam que o “Rei do Cangaço” desaprovava o uso de cabelos curtos pelas mulheres, mas que
faziam pouco caso de sua opinião, pois os cabelos eram delas e elas cortavam da forma que bem entendiam”.
FERREIRA, Vera e ARAÚJO, A. A. C. de De Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia Visual, 1999.p.210-211.
202
alegre surpresa para Zé-Baiano, que se viu num momento oportuno para revidar a violência
Lampião, tinha uma outra opinião a respeito dos acontecimentos em Canindé. Em depoimento à
socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz30, afirmou que o motivo para ferrar estas mulheres
não teve nada a ver com o corte de cabelo. Rufino relata que “tinha uma conversa na caatinga
de que ele costumava ferrar essas mulheres porque Lampião não gostava de cabelo curto para
mulher. Não. Não era por isso purque D. Maria Marque (uma das que ele ferrou) nunca cortô o
cabelo(...). Muita história que contam aí de Lampião não é verdade, não é verdade...”31. Fica
implícito em suas palavras que tal prática fez parte de um ritual de vingança dos cangaceiros
O provérbio: “Olho por olho, dente por dente” foi constantemente empregado por
prisioneiras), era descontada naquelas mulheres que tinham alguma ligação com a polícia. Este
Baiano foi vingado em Maria Marques. A morte de Maria Bonita e Enedina (no cerco em Angico
–Sergipe) foi vingada por Corisco, com a eliminação da esposa e da filha do suposto delator de
Lampião32.
cangaceiros e policiais. O motivo maior que teria levado o uso do ferrete nas mulheres de
30
QUEIROZ, Maria I. P. de. Os cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades, 1977. P.154.
31
Ibidem, p.154.
32
Sobre este assunto consultar: MACHADO, M. C. M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense,
1978, p. 132-134, este episódio foi relatado à autora pela ex-cangaceira Dadá, NASCIMENTO, J. A. Cangaceiros,
coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998, p. 281, LIMA, E. de. O mundo estranho dos cangaceiros. Salvador:
Itapoã, 1965, p.277, QUEIROZ, M. I. P. de. História do cangaço. São Paulo: Global, 1986, p. 58 e QUEIROZ, M. I.
P. de. Os cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 121-122.
203
Canindé poderia ser pensado como o desejo de revidar uma agressão sofrida por membros da
família de cangaceiros e também uma ação pedagógica de alcance mais amplo. Marcar a ferro
significava dizer que não adiantava recorrer aos canais legais da justiça, pois eles não
funcionavam. Além disso, as marcas demonstravam que toda e qualquer agressão sofrida por
quanto às dos cangaceiros. Tal violência pode ser evidenciada no depoimento da ex-cangaceira
Dadá à historiadora Maria Cristina Matta Machado33, no qual justificava o motivo pelo qual
lutava com tanta tenacidade. Tinha medo de ser presa pelos policiais e sofrer em suas mãos. Este
Nem queira saber o que faziam com as “bandidas”como nos chamavam. Viva ou
morta, era um terror. Os “macacos”34 punham os cães para devorarem a gente e
faziam outras barbaridades. Cortavam certos lugares da gente e apresentavam
num vidro de álcool. Se tava viva aí era aquela falta de respeito. Por isso,
quando eu ouvia um barulhinho de nada no mato, uma folha estalando, ou a
palavra macaco, virava uma fera, atirava, fugia, pulava qualquer cerca, ficava
valente, mas era de medo – confessou Dadá.
reconstitui alguns atos de barbárie praticados pelos policiais contra as cangaceiras. Otília (Otília
Maria de Jesus) quando foi presa pela polícia, sofreu abuso sexual e espancamento. Toda noite
era retirada da cela e obrigada a ter relações sexuais com os soldados, e antes de voltar para a
Outro caso foi o da cangaceira Neném36, que depois de morta teve seu corpo
violentado sexualmente por cães que foram estimulados pelos soldados a praticar tal ação. Outro
comportamento bárbaro e insano foi cortar a vagina de uma cangaceira não identificada e expô-la
33
MACHADO, M.C.M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978, p. 90
34
Termo usado pelos cangaceiros para referir-se aos policiais.
204
como um troféu macabro37. Estas informações foram fornecidas ao pesquisador Araújo por um
ex-soldado.
policiais contra as cangaceiras, destacando que: “A macacada era demais, ninguém tinha
sossego. Eles tinham costumes baixos; quando matavam um cangaceiro, ficavam zombando,
levavam à delegacia, mostravam o corpo, exibiam para a população. Quando matavam uma
cangaceira, eles se serviam dela, já morta. No cangaço eles não faziam isso, apesar das histórias
mal contadas, certas baixarias, eles não aprovavam. As mulheres do cangaço eram
respeitadas.”38
assinalam uma disputa psicológica entre cangaceiros e volantes. Os primeiros para mostrar as
conseqüências de uma traição, e os segundos para mostrar o que aconteceria à mulher que
quisesse enveredar pelos caminhos do cangaço. Como vemos, a sertaneja vivia no meio de um
Ser apanhada pela polícia significaria sofrer todo tipo de violência: abusos sexuais,
espancamentos e tortura. Por isto, muitas cangaceiras preferiram morrer nos confrontos a cair
nas mãos da polícia. Entretanto, algumas optaram por entregar-se às autoridades sob garantia de
que teriam suas vidas preservadas e receberiam anistia federal. O quadro que se segue sintetiza as
35
ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p. 313 e LINS, D. Lampião- O
homem que amava as mulheres. São Paulo: Annablume, 1997, p-108-109.
36
ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p. 313.
37
Idem, 314-315.
38
Sobre este assunto consultar as memórias da ex-cangaceira: SOUZA, I. R. de Sila. Memórias de guerra e paz.
Recife: UFRPE, 1995, p. 26 e 97 e Angicos. Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo:
Ofic. Cultural Monica Buonfiglio, 1997, p.142.
205
1934 Otília Maria de Jesus Confronto com a volante baiana Volante de José Rufino
Recebeu anistia em 1940
1937*** Joanna Gomes dos Santos Entregou-se à polícia sob garantia de Volante alagoana
– Moça anistia
1940 Dadá- Sérgia da Silva Confronto com a polícia Volante José Rufino
Chagas
Fontes: ARAÚJO, A A C de. Lampião as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985; O Estado de S. Paulo-
1930-1940 e Correio da Manhã - 1930-1940.
*Notícia publicada em: O Estado de S. Paulo, 12/03/1935, p. 7.
** Notícia publicada em Correio da Manhã, 9/10/1936, p. 2.
*** Notícia publicada em: Correio da Manhã, 14/04/1937, p. 6.
Ao relembrar sua experiência no cangaço, Dadá traz novos elementos para pensarmos
o uso da violência pelos cangaceiros em relação a suas companheiras. Vimos anteriormente, que
as cangaceiras que ousaram praticar o sexo livre foram barbaramente assassinadas por seus
mulher no cangaço pode ser vista como uma propriedade, já que algumas foram privadas do
206
convívio com seus familiares abruptamente. Além do poder de vida e morte sobre as
cangaceiro também se configura numa forma específica de violência, pois na ausência (morte) do
companheiro tinham que unir-se a outro cangaceiro independentemente de seus sentimentos. Tal
perspectiva sinaliza a existência de uma violência simbólica, que apesar de não desencadear
conflito direto entre homens e mulheres, subordinava estas últimas aos desejos do masculino.
Entretanto, esta conduta era explicada como uma forma de manutenção da ordem e da segurança
dos grupos. A presença de uma mulher solteira no grupo poderia provocar sérios conflitos entre
os componentes masculinos pela disputa de seu “amor”. Apesar desta conduta houve exceções; a
cangaceira Durvinha recebeu permissão para voltar para casa depois da morte de seu
companheiro Virgílio.
O cangaceiro Gato costumava espancar sua companheira Inacinha, como bem lembra
Inacinha, embora ressalte que as relações em sua maioria eram pautadas pelo respeito e pela
amizade: “Todos eles tinham amizades a suas mulheres... Só Gato que era danadinho, mas
gostava muito de Inacinha.....no dia que se zangava batia pra valer mesmo” 39. Apesar de se
“...gostava muito de Inacinha”. Tal perspectiva sinaliza que o “amor” justificava tal ação, e que
39
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p.38
207
Enfatiza em outro momento de sua fala que “Gato era perigoso”40. Refere-se ao
episódio que tomado por um imenso sentimento de ódio, cometeu uma carnificina em Piranhas
com o intuito de vingar a prisão de Inacinha, que se encontrava em estado avançado de gestação.
Narra com detalhes o horror praticado pelo cangaceiro: “Gato tomou a frente, correndo...Todo
mundo que encontrava, ele matava. Ele queria um asseiro. Nós encontramos um homem no chão,
um senhor com os filhos do véio Virgínio....o coração do véio ainda tava batendo do lado de
fora. Era o senhor Adel, um homem muito bom. Gato ficou maluco(....) deu cinco tiros no recém-
nascido mas não pegou nenhuma bala e a rede ficou pegando fogo.....”41.
Ao afirmar que “só Gato......” agia dessa forma, Dadá passa a imagem de que as
relações eram harmoniosas e que havia alguns casos esporádicos de violência contra a mulher no
grupo. Faz questão de ressaltar que Corisco não aprovava o comportamento de Gato. Entretanto,
não se intrometia na relação porque ao homem cabia decidir o que fazer com sua companheira.
A postura assumida pela ex-cangaceira ao rememorar suas vivências no cangaço demonstra que
buscava construir uma imagem positiva de Corisco e de seu grupo. Em vários trechos de seu
depoimento procura diferenciar o bando do companheiro dos outros, realçando sua tolerância
especialistas sobre o papel positivo desempenhado pela entrada da mulher nos bandos. Alguns
afirmam que elas promoveram uma relativa “civilidade” em suas relações de convívio, cujo
O ato de revidar uma agressão sofrida era comum tanto para cangaceiros, como para
policiais. Tomamos como evidência de revide dos cangaceiros as notícias intituladas: Vingança
40
Idem, p.66
41
Op. cit , 1989, p.66-68.
208
Sargento Crispim, em função de ter matado há meses atrás dois cangaceiros, e como
conseqüência teve os braços e as pernas decepadas por integrantes de bandos não identificados
na notícia.
A segunda matéria foi publicada uma semana após as mortes de Lampião e Maria
Corisco. Nesta notícia, o interventor de Alagoas recebeu informações de que Corisco atacou a
fazenda de Patos, em Piranhas (divisa de Alagoas e Sergipe), de propriedade do sr. Antônio Brito,
“matando 6 pessoas da família. (....) As cabeças das víctimas da fazenda de Patos, foram
enviadas por “Corisco” para o prefeito de Piranhas”. Como se não bastasse matar o vaqueiro,
Corisco degolou sua esposa e sua filha, como conseqüência das mortes de Maria Bonita e
João Bezerra, comandante da coluna que abateu Lampião e os outros em Angicos. Esta
informação sugere que a atrocidade praticada por Corisco se configurava numa ação punitiva
que Corisco “Estava furioso e resolveu matar o vaqueiro Domingos e toda sua família,
acreditando ter sido ele o delator de Lampião. Foi até a cidade de Piranhas, “assaltou a
fazenda Patos, de propriedade de Antônio de Brito, avô da esposa do tenente Bezerra”(...) Não
42
O Estado de S. Paulo, 16/07/1937, p.7.
43
O Estado de S. Paulo, 4/08/1938, p.1.
44
MACHADO, M. C. M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978, p. 132-134.
209
satisfeito, pegou mais dois filhos do vaqueiro, gritando: - agora as mulheres! – Foi a vez da
acompanhadas do seguinte bilhete, conforme depoimento de Dadá: “ Faça com essas cabeças
uma fritada. Matei duas mulheres para vingar a morte das duas que foram assassinadas em
volantes. A foto abaixo expressa a cena tétrica da exposição das cabeças dos cangaceiros mortos
em Angicos:
45
Ibidem , p. 132
210
Lampião. As cabeças foram dispostas uma ao lado da outra compondo um cenário de barbárie e
de terror. Ao redor foram depositados os diversos objetos pertencentes aos cangaceiros mortos,
dentre eles: duas máquinas de costura, bornais, chapéus, armas, punhais, cartucheiras, além de
outros objetos pessoais. Também há ao lado de cada cabeça um papel indicando o nome de cada
um deles.
soldados feridos ou mortos em combate. Argumenta também que era necessário provar que
anteriores esta prática já teria sido utilizada. A imagem abaixo retrata a expressão de susto e
sofrimento dos cangaceiros Mariano, Pai Veio e Zeppelin, sugere inclusive que presenciaram o
caixote juntamente com seus pertences. Já discutimos no início do texto as reações de indignação
46
MACHADO, M. C. M. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978, p. 133
211
47
Correio da Manhã, 5/10/1938, p. 3
212
- Adelaide Parto -
1938 Maria Bonita - Maria Confronto com a polícia Volante de José Bezerra
Gomes de Oliveira em Angico - Sergipe
1940 Maria dos Santos Confronto com a polícia Volante de Odilon Flor
Mariquinha
Fontes: ARAÚJO, A A C de. Lampião as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985 e O Estado de S. Paulo – 1930/1940 e
Correio da Manhã – 1930/1940.
* Correio da Manhã – 25/03/1933, p. 8.
** Correio da Manhã – 19/11/1933, p. 8.
*** Correio da Manhã – 26/06/1933, p. 3.
213
os lados. Houve perdas e prisões de mulheres cangaceiras, assim como de mulheres inocentes que
se viam no meio de uma “guerra” entre cangaceiros e volantes, cujos indícios aparecem
foram assassinadas pelos cangaceiros na região de fronteira entre Pernambuco e Paraíba. Foram
sertanejas que foram por estes vitimadas. A união destas famílias representou para muitos
aos cangaceiros formando mais tarde a famosa volante conhecida por Nazarenos.
moradores do povoado de Nazaré. Este povoado foi construído por meio da união de várias
famílias: Jurubeba, Ferraz, Flor, Lira, Souza, Soriano Lopes, Nogueira, Gomes, Capistrano,
Euzébio, Barbosa, Freire, Alexandre, Marques dos Santos, Tomaz, Silva, Leite de Sá, Araújo,
Marcolino e Militão.
48
O Estado de S. Paulo, 28/05/1936, p.6.
49
O Estado de S. Paulo, 29/05/1936, p.6
50
BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro:
Mauad/Faperj, 2000.p.97
214
honra e coragem. Procura analisar o significado destas enquanto elementos de uma articulação
mais ampla com outros códigos que constituem a totalidade de uma cultura sertaneja.
Enfatiza que os sertanejos destacaram-se em seu meio social por serem “pessoas
representam para o sertanejo, independentemente da classe social a que pertença, sua concepção
Barros nos informa que a família de Lampião (Virgolino Ferreira da Silva) mudou-se
para o povoado de Nazaré no ano de 1917. Dois anos depois, Virgolino teria desafiado seu
padrinho João Flor num confronto verbal. Tal confronto, de acordo com a antropóloga, teria
provocado uma ruptura do código de respeito entre padrinhos e afilhados, rompendo o que se
constituia num dos principais “fatores de equilíbrio e coesão social na estrutura sertaneja da
época”.52 Salienta, que a disputa entre Nazarenos e Ferreiras não foi uma disputa pela
propriedade da terra ou outro bem material, mas pela sobrevivência de uma Vila, bem como a
preservação de suas famílias e de seu modo de vida, envolvendo uma questão de honra. 53
vida longe da violência que reinava no sertão do Nordeste. Como parte deste projeto de “bem
viver” os moradores proibiam a circulação de pessoas armadas no povoado, sobretudo nas feiras.
Lampião, de acordo com Barros, desobedeceu esta ordem, gerando vários conflitos com os
quando este invadiu o povoado. Os moradores uniram-se para defender suas vidas e a de seus
51
Ibidem, p. 21
52
BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro:
Mauad/Faperj, 2000. P.18
215
entes queridos. Daí em diante os Nazarenos não tiveram mais sossego. Tiveram que pegar em
No ano de 1925 amplia-se a luta entre Nazarenos e Lampião. Esta passa de uma
esfera particular para uma pública, com a criação oficial da volante dos Nazarenos: “ Atendido o
pedido, em fevereiro de 1925 o recrutamento foi realizado em Nazaré, com distribuição de armas
e munição entre os novos recrutas, escolhidos entre a juventude nazarena de treze a vinte e
54
quatro anos” Agora, os Nazarenos não lutavam apenas contra Lampião, mas contra todo o
cangaço. Eles foram um entre muitos grupos de homens que se uniram para vingar a morte ou a
Paulo em 26 de junho de 1936, sob título Represália de parentes das vítimas de bandoleiros55.
Nesta, um grupo formado por seis homens armados, todos parentes de vítimas dos cangaceiros,
na morte de quatro cangaceiros, entre eles Zé-Baiano. O fato aconteceu em Alagadiço, e estes
seis homens foram vistos como heróis, pois mataram um dos mais temíveis cangaceiros, Zé-
informa que todos tinham uma “boa aparência”, e revelaram-se “homens de coragem”. Aqui,
estes homens não foram vistos como assassinos, mas como justiceiros qualificação que os
53
Ibidem, p. 23
54
BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro:
Mauad/Faperj, 2000. P. 168.
55
O Estado de S. Paulo, 12/06/1936, p.2. “ Um grupo de homens armados de nomes (...) todos parentes de várias
pessoas assassinadas pelos bandidos que infestam os sertões do nordeste, acabam de dar fim ao mais temível
bandoleiro José Bahiano e mais 3 dos seus companheiros (...) Os componentes do citado grupo acham-se na
chefatura, prestando declarações e expondo armas e objetos encontrados em poder dos bandidos. Todos tem boa
aparência e revelam ser homens de coragem.”,
216
constituía-se numa prática comum e perfeitamente aceita entre seus membros, e fazia parte de seu
universo cultural. Este era marcado pelos flagelos climáticos (secas e enchentes), pelo descaso
das autoridades públicas frente às condições miseráveis em que a população se encontrava, pelos
mandos e desmandos dos coronelismo local, que impunha a submissão daqueles por meio da
força. Enfim, as condições sociais, políticas, econômicas e culturais do Sertão acabaram por
Francisco Monteiro realça que (...) o tosco mundo sertanejo ensinara um valor
próprio de viver, carregado de um comportamento moral ímpar, não se permitindo levar insultos
ou derrotas para junto do seio da família ou junto de amigos mais próximos (...). O mais
importante era a honra lavada para que não fosse carimbado como um homem socialmente
desprezado56. Neste trecho, fica explícito que a vingança para o homem sertanejo se configurava
para o bandido-vingador do que a amizade dos pobres. Lembra, ainda, que Lampião se
Salienta que o terror58 faz parte da imagem do bandido, e que esta se mistura com
56
MONTEIRO, Francisco Roberto Pedrosa. O outro lado do cangaço: As forças volantes em Pernambuco 1922-
1938. Recife/PE: Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 2002. Dissertação (Mestrado em História).
57
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 58
58
Hobsbawm destaca que: “ A violência excessiva e a crueldade são, portanto, fenômenos que só coincidem com o
banditismo em certos pontos. Não obstante, são suficientemente significativos para exigirem alguma explicação
como fenômeno social (O fato de um ou outro bandido ser psicopata é irrelevante; a rigor, é improvável que muitos
bandidos rurais sofram perturbações psicológicas)” .58 HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p
60.
217
vingança59. Esta postura violenta se justifica na opinião do historiador, pelo fato de que “a
crueldade é inseparável da vingança, sendo esta uma atividade inteiramente legítima para o
mais nobre dos bandidos”60, ou seja, a violência simboliza poder61, a morte e a tortura são
social,” nas quais os mecanismos “tradicionais de controle social” são destruídos. Referindo-se
ao fenômeno de rixas familiares, destaca que possuíam freios próprios, ou seja, uma vez
realizada a vingança que permitiam as duas famílias ficarem quites, fazia-se um acordo para que
tal prática não prosseguisse. No caso de Lampião isto não ocorre, pois ele não realiza a vingança.
59
O historiador ressalta que “ O banditismo, como vimos, cresce e toma proporções epidêmicas em épocas de tensão
e desagregação social”, argumenta que a violência e a crueldade são características inseparáveis da vingança.
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 64.
60
Op cit, p. 60-61.
61
Grifos meus.
62
Idem, p. 63.
218
Considerações Finais
cangaceira.
cangaço a partir dos vários papéis desempenhados pelas mulheres no interior dos grupos.
companheiro e seguí-lo nas variadas circunstâncias. Deve-se enfatizar que em alguns casos
violência.
medicinais e os emplastos diversos foram os principais remédios utilizados. Cabe lembrar que
os homens eram profundos conhecedores das propriedades das plantas, e já faziam uso delas
interior dos bandos, contudo há indícios nas fontes de que Lampião também sabia lidar com a
ressaltar que essas mulheres não lutavam por uma causa, e que estavam ali, em alguns casos,
por opção e porque desejavam aquela experiência de vida; outras porque foram incorporadas
à força. Entretanto, a cangaceira Sila, em suas memórias, prefere recriar o cangaço a partir
mito da heroína-bandida.
imagem. Além disso, não encontramos nas fontes pesquisadas homicídios atribuídos às
centrais em alguns momentos, como exemplificam os casos de Maria Bonita, que exercia
Corisco, no momento em que este ficou impossibilitado e até mesmo Sila, que após o término
bordados.
das implicações e punições, burlaram os códigos praticando o sexo livre. Os casos de Lídia,
Lili e Cristina evidenciam a violência praticada contra a mulher, e reforçam o poder de vida e
morte depositada nas mãos de seus companheiros. A sentença aplicada nesses casos variava
interior do cangaço eram marcadas, sobretudo, pelo medo e pela violência. Estes aspectos
apenas seu lado masculinizado, ou então como objetos sexuais, descritas como amantes e/ou
postura assumida pelos periódicos acabava por ocultar os medos, anseios e aspirações,
texto, recriou a cangaceira de forma mítica, num misto de heroína e de bandida, caracterizada
pela personalidade forte e pela coragem, a companheira bela, sensual e dedicada, a amante
vaidosa, a aventureira, a enfermeira, enfim, aborda de modo positivo essa experiência, e realça
beleza de seus trajes, o uso de vestidos apropriados para o dia-dia na caatinga, e outros para
participar dos bailes organizados pelos cangaceiros, além do significativo apreço por jóias e
apetrechos diversos, como lenços, presilhas, bornais coloridos, enfim, aspectos que compõem
feminina no cangaço foram variadas, e que a mulher engendrada nesse espaço não tinha um
perfil único. Portanto, para compreendê-las em seu universo é preciso considerar as suas
peculiaridades, desde o ingresso até o desempenho com armas de fogo, e a do meio marginal
papéis de mães, donas-de-casa e algumas delas, exerceram inclusive o trabalho fora do âmbito
doméstico.
222
APÊNDICES
APÊNDICE - A
APÊNDICE – B
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Obras de memorialistas
ARAÚJO, A. A.C. de. Assim morreu Lampião. Rio de Janeiro: Brasília, 1976.
DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição. Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia,
1989.
FERREIRA, V. e ARAÚJO, A. A.C. de. De Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia Visual, 1999.
Memórias
Pernambuco, 1995.
SOUZA, I.R.de (Sila). Angicos: Eu sobrevivi, confissões de uma Guerreira do cangaço. São
Depoimentos:
SOUZA, Ilda Ribeiro de. ( Sila) – ex-cangaceira, integrante do bando de Lampião, companheira de
ICASSATTI, M. e SGARIONI, M. Radical Xique-Xique. In: Revista Trip. São Paulo: TPM, Ano
Fita de vídeo: Sila- Ilda Ribeiro de Souza. Direção Aderbal Nogueira, 1999.
Entrevista intitulada: A musa do Cangaço, produzida por J. D. Dias em 1981, sob direção de José
Umberto e Guto Diniz. Fotógrafos: Lúcio Mendes, Alonso Rodrigues e Benjamim Abraão Boto –
Literatura de Cordel:
M.JDO, 2003.
DILLA, Alexandre J. F. C. d’ Albuquerque S. Lampião Rei dos Cangaceiros. Rio de Janeiro: Soc.
PACHECO, José. A chegada de Lampião no inferno. Rio de Janeiro: Academia. Bras. de Literatura
SANTOS, Apolônio Alves dos. O casamento de Lampião com a filha do Diabo. 1987
SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986.
de Cordel, 2000.
Cordel, 2000.
Arquivos pesquisados: