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SOUTHEY, Robert. História Do Brasil Vol. 2

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HISTORIA

BRAZIL
^OTA BENE

As notas do Sr conego doutor J. C. Fernandes Pinheiro vão assignadas


com as iniciaes do seu appellido F. P.

PABI-. — TTP. DE SIMÃO BAÇOM E S O C , RUI D ' E R F U R T I > , 1.


HISTORIA

DO BRAZIL TRADUZIDA DO INCLEZ

ROBERTO SOLTHEY
PELO

Dn LUIZ JOAQUIM DE OLIVEIRA E CASTRO


E AN NOTA D A

CONEGO Dr J . C. FERNANDES P I N H E I R O

TOMO SEGUNDO

RIO DE JANEIRO
LIVRARIA DE B. L. GARNIER
RUA DO O U V I D O B , 60

PAR1Z, GARNIER IRMÃOS, EDITORES, RUA DES SAINTS-PÈRES, 6

1862
Todos direitos de propriedade reservados.
HISTORIA DO BRAZIL

CAPITULO XII

Os Francezes expulsos do Parahyba. — Os Pitagoares. — Os Inglezes i;o


Brazil. — Expedição de Fenton. — Principio de hostilidades. — Willi-
rington assola o Recôncavo. — Morte de Barreto. — D. Francisco de
Souza governador. — Exploração de minas de prata. — Jornada de
Cavendish. — Toma Sanctos, queima S. Vicente, é repellido do Espirito
Saneio, e morre de pezares. — I.ancaster toma o Recife. — Raleigh
desvia os aventureiros, dirigindo-os para a Guiana. —El Dorado.

Posto que constantemente rechaçados do Brazil, lòtfô.


toda a vez que linhão tentado fundar alli uma feito- „* r S ^
ria que fosse, não querião os Francezes abandonar o
commercio d'aquelle paiz. Fizerão agora do Para-
hyba o seu porto, onde se aluarão com os Pitagoa-
res, senhores das terras entre aquelle rio e o Grande.
D'um lado eslavão estes índios em perpetua guerra os
com os Cahetés, que olhavão como seus inimigos i:
2 HISTORIA PO BRAZIL.
1583. turaes, embora fallassem a mesma lingua; do outro,
' ora em guerra, ora em paz, com os Tapuyas, que
comtudo erâo seus alliados no sertão contra os visi-
nhos Tabarajas. Erão do grande tronco tupi, e dos
mais cruéis d'aquella raça, pois que jamais poupavão
um prizioneiro. Auxiliados pelos Francezes commet-
térão estes selvagens terríveis devastações nos esta-
belecimentos vizinhos, queimando engenhos de as-
sucar, assassinando e devorando todos quantos podião
apanhar. Os povos de Pernambuco e Itamaracá
pedirão protecção ao governo, e derão-se ordens para
colonizar e fortificar o Parahyba. Nas visinhas.capi-
tanias se levantarão forças para a expedição, cujo
commando se deu a Fructuoso Barbosa, pondo-se
uarbosa n'elle as melhores esperanças. Os Pitagoares e Fran-
ilerrotado.
cezes attrahirão-no a uma emboscada, matando-lhe
grande parte da sua genle : o resto tornou-se des-
contente, e queixando-se da ineplidão do general
muitos o abandonarão. Depois d'esta deserção e da
perda soffrida, ja a força não estava a par do serviço;
o inimigo, soberbo com a ter repellido, renovou os
seus estragos, e os moradores de Pernambuco e Ita-
maracá instantemente solicitarão do governador, que
lhes mandasse soecorro.
Barreto estava ja velho para tentar qualquer couza
em pessoa, nem elle en verdad podia deixar a Bahia;
por quanto seis mezes havia apenas que era alli clie-
gado, e a .iffluencia dos negócios, que provavelmente
HISTORIA DO BRAZIL. 5
se teiião accumulado sob o governo provisório, tor- 1583,
navão indispensável a sua presença. Succedeu porem
achar-se n'aquella cidade parte d'essa formidável e
mais que desastrosa expedição, que Philippe II en-
viara commandada por Diego Flores de Valdes, a
segurar o estreito de Magalhães, depois que Drake
o fizera temer pela posse do Peru. Vinte e três naus
havião velejado de Sevilha, eapoz repetidas investidas
para ganhar o estreito, voltou Diego Flores a final
com seis apenas á Bahia. Pediu-lhe Barreto que fosse
expulsar do Parahyba os Francezes; também anco-
rados no porto estavão dous navios ao commando de ergue um
i
forte
n0 Parali ,]
Diogo Vaz da Veiga, em viagem para Goa; com estes y
reunidos á própria frota deu Flores á vela para Per-
nambuco, onde se levantarão tropas, que marcharão
por terra, em quanto avançava a força naval. Havia
no rio quatro navios francezes. Entrou Flores, in-
vestindo-os com a sua capitania, a nau de Diogo Vaz
e todos os escaleres; os Francezes abandonárão-os
seus navios, ateando-os, c reunidos aos selvagens na
praia, fizerão uma demonstração de defeza contra o
desembarque; mas de demonstração não passou. Ás
tropas desembarcarão sem opposição, as forças de
terra chegarão, erigiu-se uma fortaleza de madeira,
e Flores deixou n'ella cento e cincoenta homens áí-
ordens de Francisco Castrejon. Não podião entender-
se Barbosa e este capitão; contava o primeiro ser
governador do novo estabelecimento em virtude da
4 HISTORIA DO BRAZIL.
1583 antiga nomeação, e vendo que não lhe annuião
sua
as pretenções, retirou-se para Pernambuco, donde
mandou a el-rei um memorial. Castrejon sustentara
Abandona melhor a sua auctoridade, do que soube agora man-
l
(.astrejon o '
P0
-« re c.íptra-o ter o seu posto : apenas ido Barbosa, pozerão-lhe os
Pitagoares cerco. Guerra com estes ferozes selvagens
era couza a que elle não estava acostumado, pelo
que, lendo-os rechaçado uma ou duas vezes, retirou-
se á pressa para Itamaracá, perdendo pelo caminho
alguma da sua gente. Sabido que foi isto em Per-
nambuco, reuniu-se nova força, com que Barbosa
Noticias. Ms. tornou a recuperar o forte : sem demora se lhe man-
1, 11
Hcrrera. darão soccorros, e veio uma horda de Tupinambás

2"'u,sTá. assentar nas visinhanças suas tabas, dando e rece-


Rocha Pitta. , , ... . . .
3, §84-86. bendo auxilio contra o commum inimigo.
Por estes tempos alguns espíritos audazes e era-
prehendorcs, que em mais favorável conjunetura de
epocha e logar poderiâo ter produzido effeitos nào
menores que Manieheo ou Mahomet, tentarão estabe-
lecer entre os selvagens uma hierarchia, um culto
ritual e uma superstição amplo-derramada, que
entre todos devia servir de laço de união, de ponto
de contacto. Quem primeiro concebeu o pensamento,
ninguém o sabe, se algum mameluco, como suppo-
zerâo os Jesuítas, se algum semiconverso'. Tornando
do christianismo dos Jesuítas o que lhes pareceu
1
Cremos que toda essa theogonia a que se refere o auetor não pas?a
duma invenção dos Jesuitas. F. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 5
1583
convir a seus intentos, ou talvez o que d'elle com-
prehendiâo, escolherão os prophetas da nova lei um
papa indio, uma ordem de bispos abaixo d'elle, e
presbyteros por estes consagrados, conservando todos
os seus nomes europeos. Também introduzirão a
practica da confissão e absolvição, conhecendo per-
feitamente o poder que nas mãos do clero punha
esta parte das suas funeções: instituirão uma espécie
de missa, e rosários por onde se contassem as orações
que devião ser recitadas por numero, e á falta de
sinos convocavão o povo para o serviço religioso ao
som de grandes cabaços ocos, convertidos em instru-
mentos de musica ou de matinada. Não erão charla-
tães ordinários os cabeças d'esta tentativa ; estabele-
cerão escholas á imitação dos collegios da Companhia,
e affirmão os Jesuítas que da casca d'uma certa arvore
fazião ellcs livros como que encadernados em taboi-
nhas de madeira delgada, e que em caracteres des-
conhecidos continhão umas escripturas que o diabo
lhes ensinara. Talvez isto queira dizer, que, sabendo
o que erão livros, prelendião inculcar no ler e es-
crever conhecimentos que não possuião. Até aqui
tudo era imitação dos Portuguezes, mas era para
exlerminio d'estes que havião aquelles atrevidos im-
poslores organizado o seu extraordinário syslema de
embuste. Com esta momice, ou arremedo da Egreja
calholica, combinavâo uma practica selvagem de
provocar convulsões, tragando o sueco d'uma planta
6 HISTORIA DO BRAZIL.
1583
- deletéria (que se suppõe ter sido tabaco); e o sacer-
dote que havia passado por esta terrível purificação,
como a couza se chamava, ficava sancto, e perfeito
na sua vocação. Asseveravão aos seus sectários que
asalmasdos seus maiores vi ríão n'um navio a livral-
os de oppressores, exterminando os Portuguezes, e
que d'estes os poucos que escapassem serião conver-
tidos em peixes, porcos e outras animalias. Todos
que n'isto acreditassem irião infallivelmente depois
da morte para um logar de dilicias, mas os incré-
dulos serião despedaçados por bestas feras e aves de
rapina. Nem bastava aguardar esta libertação por
intermédio dos finados; era mister preparal-a e ac-
celeral-a, obrando também. Para este effeito partião
da residência do papa, que era no interior, missio-
nários para entre os índios sujeitos aos Portuguezes
ou com elles alliados. E tão rápida se derramou a
crença, que innumeros abandonarão as habitações,
pozerão fogo aos engenhos e cannaviaes, commetté-
rão quantas tropelias poderão, nem deixarão vivo
Portuguez que lograssem haver á unha. Alguns dos
que tinhão filhos, chegarão á assassinal-os, para se
livrarem de quanto*podia pear-lhes os movimentos.
Os inauditos esforços dos Jesuítas em reclamar o seu
rebanho e preserval-o d'esla falsa doutrina, fizerao
abortar o plano. N'um sitio lançarão os índios con-
vertidos-mão do propagador da rebellião, e, não lhes
consentindo o seu missionário fazer por suas mãos
HISTORIA DO RRAZIL. 7
m7j
prompta e summaria justiça, forão reclamal-a do -
governador, aquém levarão amarrado o delinqüente.
Foi-lhes este então entregue á discrição, e elles cor-
tarão-lhe a lingua, instrumento com que os havia
illudi Jo a elles e a seus irmãos, e depois o eslrangu-
1
° Jarric.
larãO. 2, 519, 3-2-2.
A desgraçada sujeição de Porlugal á Hespanha o* ingWs,
havia envolvido o Brazil em hostilidades com os
Inglezes, que até agora ainda aqui não tinhão appa-
recido como inimigos, posto que tivessem traficado
com os índios, antes de fundada S. Salvador1. Pas-
sados annos occorreu uma circuinstância que pare-
cia dever ter por conseqüência o estabelecimento de

1
O primeiro Inglez que se menciona como tendo commerciado
..'este paiz, é Master William Hawkins, de Plymouth, pae desir.John
Hawkins, « homem mui estimado do rei Henrique VIII, como prin-
cipal capitão de mar. Armou um navio seu de duzentas e cincoenta
toneladas, chamado o Paul ofPlimouth, en que fez duas viagens ao
Brazil, uma en 1550 e outra cm 1552 ; da primeira das quaes trouxe
um rei brazileiro, como o chamarão, para o apresentar a Henri-
que VIU nos seus tiajos selvagens, á vista do que não ficarão pouco
maravilhados o rei e toda a nobreza, e razão tinhão para isso. » Em
reféns tinha ficado um certo Martim Cockeram, de Plymouth. Quasi
um anno ficou o cacique na Inglaterra, e morreu na viagem para a
pátria, o que se receou redundasse em damno da vida de Martim
Cockeram. Os selvagens porem, plenamente convencidos da lizura do
procedimento que com o seu príncipe se tivera, restituirão illeso o
refém. Hakhtyt, tomo 5, p. 700. Purchas, 1. 6, c. 4, p. 1179.
Pelo anno de 1540 entregavão-se ao lucrativo e commodo trafico
do Brazil vários mercadores ricos e abastados de Southampton. Um certo
Pudsey, da mesma cidade, diz-se que fizera em 1542 uma viagem á
Bahia construindo não longe dVJi um forte. Ilakluyt, t. 5, p. 701.
8 HISTORIA DO BRAZIL.
relações regulares entre a Inglaterra c estas colônias
portuguezas. Um Inglez, por nome John Wlntliall,
casou-se e domiciliou-se em Santos, e tendo optido,
por influencia do sogro, licença para vir um navio
inglez com mercadorias, escreveu aos seus amigos,
mandou-lhes uma lista de artigos, que vendidos de-
vião dar três por um, e promelteu de carregar o
barco de fino assucar secco para a volta. Despachou-
se de Londres o llinion para tentar a aventura. Os
mercadores forão bem recebidos e de parle a parte
1reinou a maior confiança. Correu que quatro navios
francezes, expulsos do Rio de Janeiro, vinhão atacar
Sanctos, e os Inglezes emprestarão para a defeza
peças e munições. Nem o fanatismo religioso pre-
judicou esta boa intelligencia; enterrou-se um In-
glez na egreja, e quando deS. Sebastião vierão ordens
para que se não deixassem entrar nos templos os
Inglezes, por serem hereges, manifestou o clero de
Sanctos, intimando esta prohibição, o pezar que lhe
causavasimilhante decreto, e a causad'elle, pedindo
aos extrangeiros que por tal o não tivessem em má
conta. Mas tiverão máo fim tão bons principios; ef-
fectuou-sepor estes tempos a usurpação dePhilippe,
nem tardou que o Brazil tivesse o seu quinhão nas
calamidades 1 , que a Inglaterra, entregando-se ao

1
Na viagem de Sarmiento (p. 571-5) se diz que em 1579 apare-
lhou algum grão senhor na Inglaterra uma expedição de dez naus,
que passou o estreito, e depois retrocedeu, tencionando estabelecer-se
HISTORIA DO BRAZIL. 9
pcor espirito de guerra predatória, começara a in- 1583-
fugir á America do Sul.
Demandou a costa do Brazil uma expedição desti- Expedição
do Fenton.
nada ás índias Orientaes e á China, debaixo das or-
dens de Eduardo Fenton. Carecia a armada de
refrescar, e tendo sabido d'um navio hespanhol,
tomado e outra vez salto á foz do Prata, que provi-
sões ainda se poderião obter n'aquelle rio, mas vi-
nho não, singrou para S. Vicente sem intenções
hostis, Giuseppe Doria, o sogro de Whilhall, veio
a bordo com dous dos principaes habitantes, e depois
d'esta visita amigável foi Fenton a terra a ver um
logar, onde o ferreiro podesse erguer uma forja, e
se collocassem os fornos portáteis para cozer o bis-
couto. No dia seguinte veio Whilhall a bordo dizer,
que os Portuguezes tinhão mandado para fora as mu-
lheres esíortificado a villa, pelo que aconselhava que
possem os navios immediatamente ancorar deante
d'ella. Logo atraz d'elle vierão Doria e um Porluguez,
na costa do Brazil, onde lhe apparecesse situação favorável. A' capitania
derão-se novecentas toneladas, e, alem da tripolação, quatrocentos
soldados e cem menesteiraes. A esquadra dispersou-se á vista da costa, .
e este navio naufragou, salvando-se apenas alguns homens na lancha,
a maior parte dos quaes forão mortos e o resto feitos prizioneiros
pelos Portuguezes. Um dos últimos, grande mathematico, disse que
tinhão derribado um pillar com as armas de Portugal, e posto em
seu logar outro com as da Inglaterra, para tomar posse do paiz entre
o Paraguay e a costa.
Não encontro nenhuma relação de viagem ingleza que corresponda
a esta narrativa. Tem ella porem todas as apparências de verídica.
10 HISTORIA DO BRAZIL
1583. c o m a noticia, de que dentro em poucos dias fallaria
o governador a Fenton, podendo os Inglezes enlre-
lanto proseguir nos seus trabalhos de forrar de
cobre, carpinteirar, pescar e mais operações neces-
sárias, mas que não erigissem forja nem fornos
antes de terem visto o governador. Convidou Fenton
estes hospedes para o jantar, e deixando-os na câ-
mara, subiu á tolda, para consultar com os seus
officiaes sobre se os reteria prizioneiros. O vice-almi-
rante Ward representou que as suas inslrucções lhes
prohibião empregar a violência, excepto em defeza
própria ; o Mininn, ponderou elle, linha aberto aqui
um commercio, que similliante procedimento des-
truiria, tornando odiosos os Inglezes, quando havia
mais que ganhar com bons modos do que recorrendo
á força. Prevaleceu esta opinião, e offereceu-se um
presente, previamente preparado; consistiu em
panno preto fino para Doria e os dous primeiros vi-
sitantes, três jardas a cada um para um gibão, e
egual quantidade para o governador, porem escarlate
e rosicler.
Principio Mas o mal que Ward receava d'um procedimento
hostilidades, hostil, ja Drake o havia causado; os Inglezes erão
odiados e todos os Hespanhoes na America os olliavão
Argentina, como piratas. O navio que Fellon havia tomado e
l 1
24. *
outra vez largado, encontrou-se com Flores, a quem
deu noticia de que andavão inimigos n'aquelles ma-
res. Poz-se este a cruzar em busca d'elles, mas sem
HISTORIA DO BBAZIL. 11
resultado; Ires dos seus navios porem entrarão em 1583-
Saneia Catharina e alli liverão novas de S. Vicente.
Dizia-se que os Inglezes queriào estabelecer-se e for-
tificar-se n'aquella costa; que Whilhall a isto os
chamara; que elles andavão propalando que D. Phi-
lippe era morto e D. Antônio de posse de Portugal;
e que em nome da sua rainha fazião grandes pro- "'li^n.'
messas, com que induzir o povo a acolhel-os. Parle
d'esta historia podia ser verdadeira e o resto seria
inventado pelos inimigos de Whilhall; mas a recor-
dação ainda fresca das façanhas de Drake tudo tor-
nava crivei, pelo que facilmente também se acreditou
tudo isto. Duas horas depois de ter Doria deixado o
navio de Fenton, appareceua esquadra hespanhola,
atravessou na barra, e preparou-se para o ataque.
Não erão mais que dous os navios inglezes, porem
melhores. Rompeu a acção ao cahir da tarde, e durou
em quanto deu luz a lua; um dos navios hespanhoes
foi a pique *, e no decurso do dia seguinte ganharão
os Inglezes o vento e íizerão-se ao mar.

1
« Pela razão, diz Lopez Vaz, que estes três navios vinhão enfraque-
cidos e trabalhados de antigas tormentas, e tripolados com o refugo
de toda a armada hespanhola (achando-se n'elles embarcados os doen-
tes e as mulheres), facilmente levarão os Inglezes a melhor, mettérão
um no fundo, e terião feito a mesmo a outro, se o houvessem que-
rido; mas elles não desejavão a perda de ninguém; e o maior valor
que os homens podem mostrar, é por sem duvida deixarem de fazer
o mal que podem. » Esta parte do Discurso foi previamente trans-
cripta por Hakluyt, que provavelmente ao imprimir o extracto, não
tinha intenção de inserir depois o texto na sua integra. Como o ori-
12 HISTORIA DO BRAZIL.
1583. Foi este o primeiro acto de hostilidade commet-
g l S tido no Brazil pelos Inglezes, que ainda assim não
forão os aggressores; mas o Brazil era agora colônia
hespanhola, e como tal exposto ás depredações de
todo o ílibusteiro. Três annos depois da volta de Fen-
ton destinou-se para o mar do Sul oulra expedição,
cujas instrucções não erão egualmenle pacificas. Car-
regou o conde de Cumberland com as despezas da
aventura, de que foi commandanle Roberto Witli-
rington. A elle se reunirão outros dous corsários,
d'um dos quaes era Raleigh o armador. Withrington
capturou á embocadura do Prata dous chavecos por-
tuguezes, que seguião para Saneia Fé *; as informa-

ginal não chegou a publicar-se, oíferece este descuido uma vantagem:


a traducção não é a mesma,, e encontrando-se em ambas este compri-
mento aos Inglezes, deve presumir-se que irão foi interpolado pelo
Iraductor. É grato deparar com este reconhecimento da generosidade
ingleza na epoeba de Hrake e Cavendish. Herrera longe de exagerar,
diminue a força ingleza e relata a aeção .com notável imparcialidade,
prova bem convincente de quanto credito merece este inestimável
auetor.
» D'aqui, diz Sarracoll, devião os mercadores e parte dos seus gê-
neros ser transportados ao Peru em cavallos e carretas. Levava este
navio por piloto um Inglez, por nome Abrabão Cooke, nascido em Lee,
que tinha sido deixado pelo Minion de Londres. Inquerimal-o e aos
demais sobre o estado do rio, e disserão-nos que havia alli cinco villas,
umas de setenta fogos, outras de mais. Westas povoações ha grande
abundância de cereaes,"gado, vinho e varias fruetas, mas dinheiro de
ouro ou prata nada; fabrica-se alli uma espécie de panno, que os
moradores trocão por assucar, arroz, m;.rmelada e doces, que era o
que o navio levava. lão também a bordo quarenta e cinco negros, cada
um dos quaes dava no Peru quatrocentos ducados. Quanto á viagem
HISTORIA DO BRAZIL. 13

ções que dos prizionciros houve fizerão-no suppor 158 '


que poderia tomar S. Salvador, e como o saque lhe
inspirava mais aífeição do que a passagem do estreito,
desprezando a opinião do vice-almiranle, governou
para a Bahia. Apenas as vigias avistarão velas inimi-
gas, mandou Cliristovão de Gouvca, o visitador Je- lieh Anr-
suita, chamar todos os índios convertidos que por ff'114'
aquelles arredores inoravão, e estes formidáveis fre-
cheiros salvarão a cidade e cobrirão-lhe as imme-
diações; mas os Inglezes ficarão seis semanas na
bahia, assolando o Recôncavo, e commettendo gran- san-acoii cm
' ' _° Hackluyt.
3 769 778
des devastações com bem pouco proveito próprio. - -' -
Occorrérão estes tristes successos no governo de . ,'orlc
° de Barrrlo.
Barreto, que morreu no fim de quatro annos de
administração. Abertas as vias de suecessão, que elle
trouxera selladas, para se abrirem em caso de morte,
viu-se que nomeavào [o bispo D. Antônio Barreiros e
o provedor mor da fazenda Chrislovão de Barros1
governadores conjunetos. Para rendel-os no governo
foi nomeado Francisco Giraldes, senhor da capitania
dos Ilheos, que seu pae Lucas Giraldes comprara ao
de Portugal, disserão-me que era esta a terceira que se fazia para o
Rio da Prata n'estes trinta annos. Em Sancta Fé descarregão os novios
as suas mercadorias para barcos pequenos, que sobem o rio á sirga
até Assumpção. N'esta cidade e na de Tucuman (talvez Cordoba) um
espadeirão de vinte reales prata vale trinta ducados, uma lata de mar-
melada vinte ducados, um espelho de mais de palmo vale trinta lis,
pinturas e:n quadros de quatorze pollegadas, trinta a quarenta lis
cada uma. »"
1
E o unidor-gerãl Antônio Coelho d'Aguiar. F. P.
14 HISTORIA DO BRAZIL.
1S85
- filho do primitivo donalario. Honra era esta, que
elle não ambicionava, c tendo por duas vezes sahido
a barra de Lisboa, e outras tantas tornado a entral-a
repellido pelo temporal, pediu e obteve exoneração
do cargo, que foi então confiado a D. Francisco de
Souza.
D.Francisco Nunca houve governador em quem tantas espe-
de Souza ° t

governador. ran ç a s s e pozessem.Um descendente do Caramuru,


por nome Roberio Dias, era por estes tempos um dos
homens mais ricos e poderosos da Bahia. Tinha ser-
viços de prata para a sua capella e para a sua meza,
e corria de plano que o metal de que erão feitos,
fora tirado de minas que elle descobrira nas suas
próprias terras. Tanto se divulgara o boato, que o
homem não julgou prudente conservar o negocio
mais tempo em segredo, e assim foi a Madrid e offe-
rcceu a el-rei achar-lhe mais prata no Brazil do que
ferro havia naBiscaya, comlanto, que em remune-
ração lhe desse o titulo de marquez das Minas. Pa-
receu demasiado alta a exigência; concedeu-se-lhe o
cargo de administrador das minas, acenando-se-lhe
com mais algumas vantagens, com que talvez se hou-
vera dado por satisfeito, se Philippe com alguma
injustiça não fosse prometter ao novo governador o
titulo que recusava a Roberio. A promessa so podia
surtir effeito, descobrindo-se as minas, e isto depen-
dia de Roberio, que não estava resolvido a melter
outrem de posse das honras, a que se julgava com
HISTORIA DO BRAZIL. 15
direito. Voltou com Souza ao Brazil, onde immedia-
tamente obteve licença de ir ás suas terras, preparar-
se para a expedição. Este tempo empregou-o elle,
segundo se suppõe, em apagar todos os vestigios que
podessem levar á descoberta ; e quando Souza se poz
a caminho em busca das minas, contando certo
achal-as, nem com a pista pôde dar-lhes. Roberio
manifestamente enganara o rei, quer na promessa,
quer no seu não cumprimento; e Souza, resentido do
logro e da perda do seu marquezado em perspectiva,
dissimulou a cólera, mas queixou-se á corte. Antes
que chegassem ordens para o castigo, morreu o de-
linqüente, e com elle o segredo, que até para os her-
, Rocha Pilta.
d 1
eiros o era . 3, § 89-92.
Em quanto os Portuguezes assim davão cata ás Expedição
,. , t u T-, , ileCavemlisli.
minas, veio Cavendish a assolar-lhes as costas. Esban- Sir w- Mon-
n

son em
jado o patrimônio da sua casa, pensou este aventu- í ^ t i " :
reiro refazer ao corso a destroçada fortuna; e numa
primeira viagem que fizera á volta do mundo, taes
bavião sido as atrocidades commeltidas que por
muito tempo deixarão nodoa no caracter da nação
ingleza. Os despojos que então trouxera havião-no
tentado a emprehender segunda expedição, mas de
tal forma os tinha elle dissipado ja, que teve de sahir
sem provisões bastantes, pelo que mandou adeante
dous navios da sua esquadra, a tomar a cidade de
1
0 titulo de marquez das Minas veio a verificar-se na pessoa d'um
neto de D. Francisco de Souza, Visconde do Prado. F. P.
16 HISTORIA DO BRAZIL.
1583
' Sanctos, para que todos se abastecessem. Foi a popu-
16 de drz. ' l i
lação sorprebendida á missa : um so homem tentou
Tomadn resistir, e foi morto, o resto ficou relido prezo na
tTnció. egreja todo aquelle dia. Mas em logar de barganhar
um supprimento de viveres como resgate, so cuidou
Cocke o vice almirante, de regalar-se ebanquelrar-
se com o que achou. Aproveitarão os moradores o
tempo não so para fugirem, mas também para leva-
rem tudo o que era portátil, de modo que quando oito
ou dez dias mais tarde chegou Cavendish, achou uma
praça sem habitantes nem mantimenlo. Muitos índios
vierão offerecer-lhe a sua alliança, se quizesse exter-
minar os Portuguezes, e guardar para si as terras; não
era isto porem partido para um flibusleiro, eos nalu-
raes não querião expor-se á vingança de seus antigo
oppressores, procurando caplivar as boas graças d'um
povo, do qual bem vião que era inútil esperar pro-
tecção. Debalde se lenlou chamar os colonos outra
vez á cidade, convidando-os em nome de D. Antônio:
este grito de guerra era demasiado velho, e desespe-
rada de mais a causa. Mas com uma imprevidencia
que bem merecia a sorte que lhe acarretou, deixou-
se a esquadra aqui ficar algumas semanas 1 , partindo
a final menos provida de tudo do que viera.
4
Havia uma imagem de burro de Sancta Catlmrina, que Luiz, ir-
mão do donatário Pedro de Góes, junetamente com sua mulher tinhão
dado á villa de Sanctos; estava n'uma capellinha nas fraldao d'um ou-
teiro chamado do nome da saneia. Os Inglezes alirárão a ima»em ao
HISTORIA DO BRAZIL. 17
De caminho queimarão os Inglezes S. Vicente, se- 1S9'2
guirão para o estreito, não o poderão passar, e forão Cavcndish
queima
S. Vicente.
dispersos por um temporal. Cavendish voltou so á
costa do Brazil, e a cerca de três legoas de Sanctos
mandou a terra vinte e cinco homens, que se apode-
rassem o mais depressa possível das provisões que
achassem, trazendo-as a bordo para soccorro de seus
camaradas doentes e esfomeados. D'esta partida, com-
posta dos principaes do navio, nem um so homem
voltou. Reunindo-se, atacárão-nos os índios, ao pre-
pararem-se elles para reembarcar, e matárão-nos
todos, poupando apenas dous, que levarão prizio-
neiros a Sanctos, entrando na cidade cm triumpho
com as cabeças dos mortos. Pouco depois fez Caven-
dish juncção com o Roebuck, um dos navios da sua
desgraçada esquadra, e continuando a costear forão
todos assolando casas e plantações, até que um Por-
luguez se encarregou de metter os dous barcos den-
tro da barra do Espirito Sancto, logar a que espe-
cialmente desejavão chegar, pela abundância de todas
as couzas que alli pensavão achar. Não julgando pru-
dente confiar implicitamente no dizer do seu prizio-

mar. Muitos annos depois tornou ella a sahir inteira n'uma tarrafa :
erigiu-se-lhe nova capella, e em memória do longo tempo que jazera no
fundo do oceano, deixárão-lhe as cascas de ostras, que d'ella se Lm—
vião pegado. Alli se venera ainda hoje cm dia, e os que mostrão a
imagem, observão que o maior milagre foi não a terem os icono-
clastas inglezes despedaçado antes de arremessarem ás ondas. Fr.
Gaspar da Madre de Deus, 1, § 71.
ii. 2
18 HISTORIA DO BRAZIL.
592
' neiro, lançou ferro o commandante e mandou um
escaler a sondar a barra. 0 fundo que se achou não
pareceu sufíiciente; de balde o Porlugucz protestou
que não tendo jamais sondado o canal, havia mettido
dentro navios de cem toneladas; merecia a forca,
quer dos Inglezes, por querer fazei os naufragar,
quer dos seus próprios conterrâneos por encarregar-
se de pilotar os inimigos, e Cavendish sem mais ce-
remonia nem exame o pendurou da verga.
Tentativa Os botes entrarão a barra e descobrirão Ires navios
conlia
G E P ito
s an cto ancorados perto da villa. Sem perda de tempo queria
o commandante mandar picar-lhes as amarras, mas
approximava-se a noute, e a gente recusou ir antes
que amanhecesse. Toda a demora era perigosa; o
canal era péssimo, «jamais navios o navegarão peor,»
diz Cavendish; passar a barra era impossível, e todo
á volta estava o paiz em fogo. Comludo nenhum re-
médio havia contra a desobediência, e irritado como
estava, teve o commandante de aguardar o bel prazer
da sua gente. Ao raiar o dia offereceu-se esta para ir,
e logo largarão os escaleres com oitenta homens ás
ordens do capitão Morgan. Levava elle instrucções
para não saltar em terra, sob pena de morte, por
melhor que se lhe offerecesse o ensejo; pouco perigo
se receava da parte dos navios1, mas se algum visse,

1
« Sabia eu, diz Cavendish, que dos navios que frequentão o
Brazil nenhum era capaz de defender-se d'uma canoa, quanto mais
HISTORIA DO BRAZIL. 19
devia retirar-se; e se por outro lado descobrisse bom 159'2-
e fácil desembarque perto da villa, mesmo então devia
voltar, para que o commandante em pessoa tentasse a
empreza, com quanta gente podessem levar os boles.
Com estas ordens partiu Morgan. Durante a noute
linhão os Portuguezes rebocado os navios "para de-
fronte da villa, onde a largura do rio não excedia um
tiro de besta de caça; meia legoa abaixo havião er-
guido duas trincheiras pequenas, ambas dominadas
por florestas e rochas sobranceiras. A do lado do
poente fez fogo, e segundo as instrucções que levava,
queria Morgan retroceder. Alguns dos marinheiros
jurarão que sempre por covarde o havião tido, e
agora bem o provava elle próprio: moveu-o isto a
grande cólera e declarou que desse por onde desse,
havia de saltar em terra.
Avançarão pois: o fortim do lado do oriente, que cavendish
. , . i • • . c j> rechaçado
ainda ninguém havia visto, rompeu o togo, e d um ucmorrepGzsr.

tiro matou um homem e feriu dous. Resolveu-se en-


tão que a lancha mais pequena atacaria a bateria do
oeste, e a maior a outra. Foi aquella a primeira que
abicou em terra, e achando pouca resistência, to-
mou sem perda a trincheira. 0 lanchão que era de
muito calado, encalhou, mas a tripolação vadeou
para a margem com água por cima do joelho. 0 ba-
luarte era de pedra, e teria seus dez pés de altura.
de lanchas como estas, em que ião tantos arcabuzeiros, quantos po-
dião sentar-se ao lado uns dos outros. »
20 HISTORIA DO BRAZIL.
592
- Com dez dos seus camaradas o escalou Morgan, mas
então moslrárão-se os índios e os Portuguezes, e
rolando calhaus para baixo, o matarão a elle e a cinco
dos seus. O resto, pela maior parle mal feridos, fugiu
para o bote, sobre o qual principiarão a chover fre-
chas; dos quarenta e cinco homens que havia a
bordo, um so não escapou seu damno, chegando al-
guns a trazer três settas cravadas. Incapazes de agüen-
tar este desesperado chuveiro, largarão, deixando
em terras alguns dos seus companheiros, preza para
os selvagens. Tendo-se assim safado chamarão os da
ribeira opposla que viessem ajudal-os. Embarcou a
partida á pressa para esse effeito, a lancha porem
deu em secco, nem pôde ser outra vez posta a nado,
sem que saltassem fora dez da tripolação. Entretanto
voltarão os índios á abandonada bateria, e princi-
piarão a alirar. Os dez Ingleses, sentindo as flechas,
zunirem-lhes aos ouvidos, correrão á trincheira, e
íizérão fogo para dentro pelas selteiras de baixo;
mas em quanto assim se occupavão, o capitão do
Roebuck, «o mais cobarde villão,» diz Cavendish,
«quejamais viu a luz do sol, » mandou remar a
safar d'alli, deixando aquelles bravos despojos do
inimigo. Mettérão-se elles á água até ao pescoço,
para serem recolhidos a bordo, mas os seus birban-
tes de camaradas nenhuma compaixão tiverão, e
« assim vilmente se perderão estes homens. » Depois
d'esta mallograda tentativa deixou Cavendish a costa
HISTORIA DO BRAZIL. 21
do Brazil, morrendo na viagem para a pátria tão de 1592
pezaroso como de moléstia.
Baseada sobre nenhum plano fora esta expedição Expedição
. . . de Lancaster.
miseraveTmente mal dirigida : a que se lhe seguiu
parece ter sido concebida e executada con mais tac-
tica do que nenhuma outra das d'estes corsários
aventureiros. Certos moradores de Londres aprestá-
rão Ires navios, dos quaes o maior se computou de
dezentas e quarenta toneladas, o menor de sessenta
apenas, e o outro de cento e setenta. James Lancas-
ter, fidalgo da mesma cidade, foi escolhido para
almirante. Tinha elle, segundo dizia, sido educado
entre os Portuguezes, vivido entre elles como fidalgo,
servido com elles como soldado, e morado-lhes nas
terras como mercador; commeltia pois o que se
podia dizer traição moral, tomando armas contra um
povo, entre o qual tanto tempo havia estado domi-
ciliado. Foi Pernambuco o logar que elle resolveu
investir : arranjou dous Francezes de Dieppe bem
versados na lingua dos índios, e deu á vela com uma
tripolação de duzentos e setenta e cinco homens e
moços. Duas vezes na viagem rompeu um navio um
dos mastros, e tendo por tanto volvido atraz para
concertar, bem quiz a gente das outras embarcações
persuadir o almirante a disistir d'uma empreza
para que ja lhe falecião forças; mas elle respondeu
que Barker, o seu vice-almirante, era por demais
resoluto para não se achar no ajustado ponto de reu-
22 HISTORIA DO BRAZIL.
1594. nião, mal reparasse as suas avarias, e que nada o
faria desviar-se do rumo em que uma vez havia
assentado, sendo por estas mudanças de plano que a
maior parte das expedições se havião mailogrado.
Não o enganou a sua confiança. Barker reuniu se a
elle na altura do Cabo Branco, onde com o seu cha-
veco ja havia capturado vinte e quatro velas a Hes-
panhoes e Portuguezes. D'um dos prizioneiros sou-
berão que um galeão com rico carregamento da
índia naufragara na costa de Pernambuco, achando-
se todas as mercadorias armazenadas no Recife, porto
de Olinda. Alegres com esta noticia, tomarão os
Inglezes cinco das suas prezas, para serem empre-
gadas segundo o caso o exigisse, e singrarão para a
ilha de Maio, onde armarão uma galeota de quatorze
bancos, destinada para o desembarque, e de que
havião trazido as madeiras. Aqui se encontrarão com
outra esquadra de corsários, commandada pelo ca-
pitão Venner, e composta de dous galeões, um hiate
e urna preza biscainha. Venner de boa menle se as-
sociou a Lancaster, e segundo o uso do mar, lavrou-
se o ajuste por ambas as parles assignado, e pelo
qual devia Lancaster ter três quinhões e o outro o
quarto de quanto se tomasse.
chegada D'alli governarão para o Recife, chegando á vista
D
ao Recife. , , .
20 d e arc n uma raeia noute 0S u n s d e
i 595 °' P ° ^ março. A'
entrada estavão sobre os ferros três navios hollande-
zes grandes, da parte dos quaes era de esperar ai-
HISTORIA DO BRAZIL. 23
1393
guma resistência. Lancaster tripolou as suas cinco
prezas, que erão de sessenta toneladas cada uma, e
ordenou á sua gente que se os Hollandezes fizessem
alguma opposição, corressem sobre elles, e posto
fogo ás próprias embarcações, se mettessem nos es-
caleres, ganhando assim a entrada. Era sua intenção
desembarcar com as lanchas apenas amanhecesse,
deixando os navios fora do porto, até tomar os fortes
e a villa. Embarcou a gente para este feito, assu-
mindo elle.o commando da galeola, que tripolou com
oitenta homens de seu próprio bordo. Mas ao pri-
meiro arrebol da aurora, viu-se que as lanchas
tinhão ido dar meia legoa para o norte da barra ; e
antes de poderem voltar veio a vasante, e a esquadra
ficou fora do porto toda á vista da villa. Tiverão po-
rem a satisfacção de ver que os Hollandezes, lan-
çando espias, se arredavão do caminho, removendo
a principal causa de receio. Pela volta do meio dia
mandou o governador um mensageiro a saber o que
pretendia aquella frota. Lancaster respondeu que
queria a carga do galeão; que a buscal-a vinha e
leval-a havia, como o governador não tardaria a vel-o.
Entretanto guarnecérão os Portuguezes o forte ou
terrapleno á foz do porto, reunindo toda a força que
havia á mão, e que serião uns seis centos homens.
Lancaster ordenou aos seus que á voga arrancada re-
massem a abicar em terra com violência tal, que,
despedaçadas as lanchas, não livessem em que fiar-se
24 HISTORIA DO BRAZIL.
159S
mais do que em Deus e nas suas armas. Erão estes
flibusteiros excessivamente religiosos; para tudo ti-
nhão o nome de Deus na boca, e grande esperança
punhão no auxilio divino para levarem a bom fim
o objecto da sua viagem, d'uma viagem cujo único
alvo era o saque e a rapina.
Toma Serião duas horas da tarde quando Lancaster lar-
a cidade.
gou de bordo com maré de feição; passou os Hollan-
dezes, o forte principiou a jogar, e uma bala levou
quasi toda a bandeira da galeola. Os Inglezes vara-
rão a embarcação em terra, mesmo por baixo da
bateria, a um cabo de distancia d'ella; com o choque
partiu-se a poupa, o mar galgou por cima, e a ga-
leota afundou-se immediatamenle: oulro tanto prac-
ticárão as lanchas. Havia no forte sete peças de
bronze, cuja pontaria fizerão os Portuguezes tão baixa
que os tiros se perderão todos na areia, ficando ferido
um so homem. Exultando com isto, pois que uma
descarga bem dirigida devia ter sido de varrer,
exclamou Lancaster : A elles! a elles! Com o favor de
Deus tudo é nosso! Assim correrão a escalara preça;
desanimados retirárão-se os Portuguezes para um
silvado próximo, e sendo perseguidos, fugirão por
um caminho ainda enxuto, apezar da maré que
crescia. Fez Lancaster então signal aos navios que
entrassem. Deixou uma guarnição no forte, asseslou
a artilharia contra Olinda, d'eonde receava o maior
perigo, e marchou sobre a villa baixa, como elle
HISTORIA DO BRAZIL. 25
chama o Recife, composto n'aquelles tempos de 1595-
pouco mais de cem casas. A' sua vista, embarcou o
povo em caravelas e canoas e abandonou o logar,
deixando aos vencedores o rico carregamento do ga-
leão, e grandes depósitos de gêneros do paiz i .
No governo da sua conquista não desenvolveu o Toma os
, . i - i Hollandazes
ao seu
almirante menos prudência, do que valor havia
1 l
' serviço
mostrado em ganhal-a. Não se commetteu a menor
desordem, nem pilhagem particular; talvez nem
antes nem depois tenha havido bandoleiros que com
tão rigorosa ordem e regularidade se portassem. Tão
grossos despojos não se deixavão remover á pressa, e
forçoso era manter por algum tempo a posse da villa.
Immedialamente se fortificou o isthmo em que está
o Recife, com uma palissada de nove pés de altura,
para a qual na villa se encontrarão materiaes, e eri-
giu-se um forte para o qual do da boca do porto se
passarão cinco peças de artilharia. Feito isto enta-
bolou Lancaster negociações com os Hollandezes,
offerecendo fretal-os para a Inglaterra em termos
que lhes parecerão vantajosos, pelo que de todo o
coração íizerão causa commum com os Inglezes.
Dentro de alguns dias apparecérâo três galeões e duas
pinaças; formavão uma esquadra de corsários france-
1
« 0 dia da nossa chegada, » diz o narrador d'esta bem dirigida e
prospera viagem, « era uma sexta feira sancta em que elles teem
par costume fustigareu.-se a si próprios ; mas agora nos enviou Deus
cjmo um flagello gjral para todos, pelo que bem poderião ter pou-
pado entre si aquelle trabalho. »
26 HISTORIA DO BRAZIL.
1595
- zes, e succedeu que um dos seus capitães ainda no anno
anterior linha recolhido Lancaster na ilha da Mona,
uma das Antilhas, onde naufragara. Pagou-lhe agora
Lancaster o serviço, dando-lhe uma carga de pau bra-
zil para o seu baixei e pinaça, e uma caravela de cin-
coenla toneladas carregada do mesmo gênero. Os ou-
tros Francezes por felizes se derão tomando o seu qui-
nhão no serviço a troco d'um quinhão nos despojos, e
assim obteve Lancaster um corpo considerável de auxi-
liares, que pagou generosamente com o que elle pró-
prio não poderia ter levado, e por isso havia de destruir.
No terceiro dia depois da chegada d'estes flibustei-
ros, descerão de Olinda três ou quatro pessoas das prin-
cipaes da cidade para tractarem com o almirante.
Apenas soube d'isto disse Lancaster que carecia ir a
bordo dos Hollandezes, e lá se deixou ficar, em des-
peito de repetidas mensagens, até que, esgotando-se
aos Portuguezes a paciência, retirárâo-se. Perguntado
pela razão d'este extraordinário proceder, respondeu
que conhecia bem este povo, como quem entre elle
tinha sido criado: « Quando nada podem fazer com
a espada, disse elle, recorrem á lingua fallaz, pois fé
e verdade é couza que não conhecem. E para que
havemos de parlamentar? Com o favor de Deus hou-
vemos a quanto vínhamos, e bem pouco prudente
seria deixal-os fazer por nos tirarem com astucia o
que ganhamos com a força. » Mandou pois dizer aos
Portuguezes que d'elles nenhuma proposta acceitaria,
HISTORIA DO BRAZIL. 27
1595,
e enforcaria o primeiro que lhe trouxesse alguma.
Entretanto progredia o trabalho de carregar o com-
boio. N'um ataque dado contra os invasores, tomarão
estes cinco carrocinhas das usadas no paiz, preza de
maior valia para elles do que a artilharia e munições
que na mesma acção lhes cahirão nas mãos, pois
que sem estes meios de transporte não poderião ler
embarcado muitos dos gêneros mais pezados. Na
manhã seguinte, sem a menor desconfiança do que
succedera, entrou no porto um navio com quarenta
Portuguezes e uns cento e oifenla negros. Lancaster
deixou os negros irem para onde quizessem, e guar-
dou os Portuguezes, que puxassem as carretas; com
este insolente emprego dos prizioneiros alliviando a
sua própria gente, incapaz de trabalhos pezados em
tão calido clima.
Vinte dias havia ja que os Inglezes estavão senhores Teutativ0 de
do Recife, e apezar de terem tido de sustentar repe- ^í^víõs!6
tidos assaltos, sempre obrigados a conquistar á força
d'armos a água que bebião, pouco damno havião
recebido. Não estavão porem ociosos os Portuguezes;
pozerão fogo a cinco caravelas e deixárão-nas ir rio
abaixo ao som d'agua. Com esta tentativa ja Lancaster
havia contado, e estacionado por tanto meia legoa
acima dos navios seis lanchas bem providas de fa-
teixas e correntes de ferro, com que harpoárão as
caravelas, encalhando umas e ancorando outras, onde
acabassem de arder.
28 HISTORIA DO BRAZIL.
1595
Seis dias depois, uma hora antes de meia noute,
ahl vierão descendo o rio três enormes jangadas a
chammejar horrendamente; fixadas ao costado trazião
compridas varas, que não permillissem aos Inglezes
deitar os seus harpeos, e lambem tubos, carregados
de fogo de artificio, dos quaes não ousava a gente
approximar-se com receio de que o chuveiro de
chispas lhe incendiasse a própria pólvora. Com tudo
ou se havião de alar para o lado estas balsas, ou os
navios ardião irremediavelmente. Cingidos pois de
pannos molhados os cinctos e polvorinhos, avenlu-
rárão-se os marinheiros a harpoal-as, e, conse-
guindo-o, derão com ellas em secco, onde arderão
até de manhã. Tentarão agora os Portuguezes picar
as amarras ao inimigo, mas nem isto lograrão, tão
grande era a vigilância. Preparava-se terceira tenta-
tiva por meio do fogo, e Lancaster bem via qued'esta
vez não escapava; mas ja então com toda a rapina a
bordo, estava elle prompto para fazer-se de vela.
Succedeu não haver maré senão de tarde. 0 almi-
rante observou um banco de areia formado defronte
do logar, onde estavão fundeados os navios, e sobre
elle alguma gente. Correndo immediatamente á villa,
convocou os seus capitães, e dando conta do que vira,
consultou-os sobre-se conviria fazer uma sortida, e
ver o que queria o inimigo; a sua própria opinião
era que tendo de dar á vela aquella noute, loucura
fora buscar sem necessidade a guerra. Outros houve
HISTORIA DO BRAZIL. 29
1593
porem que com bastante fundamento ponderavão -
poder muito bem succeder, que o vento os não
deixasse sahir tão cedo como meditavão, pelo que
melhor seria não desprezar precauções. A este argu-
mento rendeu-se Lancaster; adoentado havia dous
dias, não podia elle ir em pessoa, incapaz como se
achava de marchar por aquella grossa areia. Mas
posto que pouco perigo receasse, em logar tão perto
dos navios, que quarenta peças de artilharia se pode-
riâo fazer jogar contra o inimigo que alli os investisse,
entendeu que devião ir com forças respeitáveis, pre-
vendo sempre o peor; e por conseguinte sahirão tre-
zentos homens entre Inglezes e Francezes, a esle reco-
nhecimento.
As inslrucções erão de destruir as obras que
achassem, e depois voltarem. Ao approximarem-se,
disparão-se-lhes alguns tiros e abandonou-se o posto.
Acharão o principio d'um lerrapleno disposto para
um baluarte, e todo o trabalho se reduziu a queimar
algumas traves; mas vendo bandeiras a uma milha
de distancia, fora do alcance dos navios, d'onde o
próprio Lancaster estava promplo a apoial-os, para
lá avançarão estes imprudentes. Pensavão voar a
vicloria certa, e na soffregridão de virem ás mãos
com ó inimigo, alguns se adeantárão ao grosso da
partida. Os Portuguezes os forão attrahindo, até que
os envolverão no meio de todas as forças do paiz,
Trinta e cinco dos da vanguarda cahirão logo mortos,
30 HISTORIA DO RRAZ1L.
1595
- e entre elles o vice-almirante Barker, o seu ajudante,
e dous capitães francezes, sendo os outros persegui-
dos de perto, até que se pozerão debaixo da protecção
dos navios1. Ao cahir da mesma tarde levantarão
ferro e fizerão-se de vela onze embarcações de con-
serva, todas ricamente carregadas, e das quaes nem
uma deixou de chegar a porto de salvamento.
Quando se vêem ricos, raras vezes se dão por
satisfeitos os flibusteiros, servindo-lhes com justiça
de castigo essa mesma sede de rapina que primeiro
os levou ao crime. Ha porem razões para crer que
Lancaster se contentou com a sua fortuna, pois d'elle
se não encontra mais menção feita; tornando o bom
senso com que dirigiu toda a expedição, provável o
acerto com que saberia desfructar-lhe o producto.
iiackiuyt. No mesmo anno que Lancaster saqueava o Recife,
T. 3, p. 703
7io. alcançavão os Portuguezes em S. Salvador um grande
triumpho sobre os huguenotes. Alguns corsários da
Rochella, a caminho para uma expedição de rapina
contra o litoral da Bahia, tomarão o forte portuguez
deArguim, na fronteira costa da África : saquearão
a egreja, demolirão os altares, e, em má hora para
elles, levarão sancto Antônio em tropheo. E sabendo

« A única noticia que d'esta expedição de Lancaster encontro em


escripto portuguez, é uma menção incidente na Relação annual para
1601-2. Alli se diz erradamente que os Inglezes tractavão"de accom-
metter Olinda quando assim forão rechaçados, e com verdade prova-
velmente que os Portuguezes deverão esta victoria aos índios conver-
tidos. F. 114.
HISTORIA DO BRAZIL. 51
1595
que era elle o maior saneio dos Portuguezes e Brazi-
leiros, pedirão a sua sanetidade que houvesse por
bem conduzil-os á Bahia. Tão miserável foi a viagem,
e tanto tiverão que soffrer do mar e do escorbuto,
que de toda a esquadra sos dous navios ganharão a
costa do Brazil, e esses em tão laslimoso estado, que
por fortuna o tiverão entrar na Bahia como prizio-
neiros, com as vidas salvas por única condição. An-
tes de feita esta composição lembrárão-se que tinhão
saneto Antônio a bordo, e o tractamento que lhe
havião dado tornava o caso mais feio ainda. Para
oceultar isto aos Portuguezes, alijárâo-no, esqueci-
dos de que um saneto Antônio de pau não iria facil-
mente ao fundo. Para final confusão dos miseres,
soube o saneto achar o caminho da cidade, e do cães
distinctamenle o virão vir posto de pé, a marchar
por sobre as ondas. O governador e o clero o accom- ^'slo.
panhárão em procisso triumphal, através da cidade,
até que o forão inslallar na egreja dos Capuchinhos .
0 castigo que se infligiu á Iripolação, ninguém o
diz, m a s n u m caso d'esta natureza não era provável
que se usasse de misericórdia, mormente havendo
milagre de permeio. Tendo alguns selvagens rou-
bado uma capella nos subúrbios de Piratininga, ou
S. Paulo, como depois se chamou, foi um d'elles
que ajudara a quebrar uma imagem de barro da
Virgem, feito prizioneiro, ligado á cauda d'um ca-
vallo, e arrastado pelas ruas até espirar.
52 HISTORIA DO B1UZIL.
159
5- A boa fortuna de Lancaster teria provavelmente
El Dorado.
desafiado outras expedições, a não ter Ralegh offere-
cido aos aventureiros inglezes muito mais tentador
engodo; e a fábula do-El Dorado, que á Hespanha
custou mais sangue e dinheiro do que todas as suas
conquistas no novo mundo, serviu agora para des-
viar do Brazil estes inimigos. O theatro da jornada
de Ralegh fica fora dos limites d'esta historia; mas a
fabulosa terra do ouro foi buscada com egual cre-
dulidade por parte do Brazil, nem deixará de vir aqui
a pello a explicação da origem d'uma ficção que tão
extraordinários effeitos produziu.
Por toda a costa do continente hespanhol na Ame-
rica do Sul corria a voz d'um paiz sertanejo, onde
abundava o ouro. Referião-se estes boatos indubita-
velmente aos reinos de Bogotá e Tunja, hoje Nova
Granada. Belalcazar, que partido do Quito, buscava
este paiz; Federman, que vinha de Venezuela; e
GonçaloXimenezdeQuesada, a procural-o, seguindo
o rio Magdalena, aqui se encontrarão. Mas lambem
n'estas partes se fallava d'um rico paiz remoto; fama
egual corria no Peru ; no Peru referia-se ella a Gra-
nada; em Granada designava o Peru ; e os aventu-
reiros d'ambas as partes depois de apanhada a caça,
principiávão outra vez a correr atraz d'ella. Não
tardou a confeccionarse um reino imaginário, que
servisse de alvo a estas buscas, nem a respeito d'elle
se inventavão contos com mais facilidade do que se
HISTORIA DO BRAZIL. 33
acreditavão. Dizia-se que escapo do extermínio dos 1593.
Incas', fugira um irmão mais moço de Atapalipa,
levando a maior parle dos thesouros, e fundara um
império maior do que esse qüe sua família havia
perdido. A's vezes chamava-se este phantastico im-
perador o Grão Payliti, outras o Grão Moxo, outras
oEnim ou Grão Paru. Um impostor affirmou em
Lima ter estado na sua capital, a cidade de Manoa,
onde não havia menos de Ires mil operários empre-
gados na rua dos Ourives ; chegou até a apresentar
um mappa do paiz, em que figurava um monte de
ouro, outro de prata e um terceiro de sal. As colum-
nas dos paços imperiaes erão de porphyro e alabas-
tro, de cedro e ebano as galerias; o throno de mar-
fim, e de ouro os degraus por onde para elle se
subia.
Quando D. Martin dei Barco escrevia a- sua Ar-
(jcutnia, que foi pelos tempos da primeira expedição
de Ralegh, corria no Paraguay o boato de ter sido
descoberta a corte do Grão Moxo; D. Martim o refere
como noticia segura, lastimando que Cabeça de Vaca
voltasse dos Xarayes, pois que se houvera seguido
avante na mesma direcção, teria sido o descobridor
bemaventurado. Estavão estes paços, diz elle, n'uma
1
Para o México era o Grão Quivira o mesmo que Enim para o Peru,
o imaginário successor da decahida dynastia. Feyjoo (Th. Cril., t. 4,
10, § 15) refere com alguma probabilidade a origem d'esta fábula ;'s
noticias que os índios davão dos estabelecimentos francezes no Ca-
nadá.
U HISTORIA DO BRAZIL.
« 9 5. ilha formada por um lago. Erão de pedra alva ; a
entrada ergião-se duas torres e entre ellas uma co-
lumna de vinte e cinco pés de alto; no seu cimo
via-se uma grandiosa lua de prata, e prezos á sua
base por cadeias de ouro estavão dous bões vivos.
Quem passasse por estes dous guardas, entrava num
quadrado plantado de arvores e regado por uma fonte
argentina que esguichava por quatro tubos de ouro.
A porta do palácio era de cobre, pequeníssima, eo
seu ferrolho prendia na rocha viva. Dentro estava
um sol de ouro sobre um altar de prata, deante do
qual ardião quatro lâmpadas de dia e de noute. Por
mais manifestamente que estas ficções fossem extra-
hidas dos romances de Amadis e Palmeirim, ainda
não erão assaz grosseiras para a sedenta avareza
d'aquellas para quemsefabricavão.
Ramusio. 0 reino imaginário obteve o nome de El Dorado
5, ff. 416
do trajar do seu imperante, que linha o merecimento
de vestir á moda selvagem. Todas as manhãs lhe
untavão o corpo com uma certa gomma aromatica
de grande preço, e depois com um tubo lhe sopravão
em cima ouro em pó, até o cobrirem dos pés.até á
cabeça; e á noute lavava-se tudo. Repulava o bár-
baro este trajar mais magnífico e esplendido do que
o de nenhum outro potentado do mundo, e d'aqui
veio o nome de Dourado que lhe pozerão os Hespa-
nhoes. A historia de todas as expedições emprehen-
didaspara conquista d'este reino, formaria um vo-
HISTORIA DO BRAZIL. 35
1595
lume não menos interessante que extraordinário. -
Não é possível que Ralegh acreditasse na existên-
cia de similhante paiz, que não era a credulidade o
seu defeito predominante; mas tendo formado o pro-
jecto de colonizar a Guiana, serviu-se d'estas fábulas
como chamariz da avidez do vulgo. Procurando assim
com embustes envolver a nação n'uma empreza in-
dubitavelmente de grande importância nacional,
arruinou-se a si; as suas narrações so encontrarão
desconfiança, como crimes lhe imputarão as desgra-
ças, e apezar de seus grandes e inquestionáveis ta-
lentos e até d'essa insigna morte que alias lhe teria
tornado veneravel o nome, ficou na sua memória
uma mancha. Mas os seus sequazes terião ido exercer
em outra direcção o seu mister de piratas, se elle os
não houvesse conduzido ao Orinoco, e o Brazil lhe
deve um longo período de Iranquillidade; primeira-
mente forão os seus projectos que attrahirão os aven-
tureiros a outro campo, e depois aterrou-os o seu
triste exicio.
HISTORIA DO BRAZIL.
1505.

CAPITULO XIII
Expedições partidas do Maranhão. — Os Tapuyas. — Vantagens obtidas
pelos Jesuítas e diminuição dos indígenas. — Pacificação dos Aymo-
r 6s. — Estabelecimento no Ceará. — Expedição dos Francezes á ilha
do Maranhão. — Expulsa-os Jcronymo de Albuquerque. — Fundação da
capitania do Tara, e cidade de Belém. — Destruição dos estabelecimen-
tos hollandezes na foz do Amazonas.

Expedições Em quanto os Inglezes buscavão na Guiana o El


lo^iaranhão. Dorado, tentava Gabriel Soares fazer a mesma desco-
Berredo. '
2, § 93. b er ta 5 partindo do Brazil; alcançou as cabeceiras do
rio S. Francisco, avançando quasi até á província de
Charcas, mas taes trabalhos passara, e tão grande
perda de gente soffrera, que força lhe foi retroceder.
Pero Coelho de Souza, colono da Parahyba, tentou
então por água a mesma empreza; não se diz em que
direcçâo, mas provavelmente foi pelo Amazonas
acima. N'esta expedição sem proveito gastou elle
grosso cabedal, mas o máo resultado não o aterrou
que não commettesse segunda. Depois de ler por onze
annos dirigido o governo foi D. Francisco de Souza
rendido por Pedro Botelho, eo novo governador aco-
roçoou Pero Coelho, dando-lhe a commissão de con-
quistar e colonizar com o titulo de capitão-mór.
Apparecérão uns oitenta aventureiros, que n'esta
HISTORIA DO BRAZIL. 37
descoberta jogarão vidas e fortunas : erão muitos 1595-
d'entre elles versados nas línguas indígenas, e oito-
centos índios os acompanharão como aluados. Parte
d'esta força seguiu a costa em dous caravelões com
um piloto francez1, que a conhecia a palmos, avan-
çando o troço principal por terra até ao Ceará. Alli
engrossou o capilão-mór a sua gente, encorporando-
lhe algunsdoslndios mais civilizados, e todos junctos
proseguirão até á Serra de Ibiapaba. Os Tabajarés
oppozerão-se á marcha. Mel-Redondo, um dos caci-
ques, era auxiliado por um punhado de Francezes
ás ordens do senhor de Manbille, mas não pode impe-
dir que os Portuguezes lhe tomassem Ires dos seus
fortes; obteve comtudo condições favoráveis e sub-
melteu-se com mais de trinta aldeias. Outro cacique
da Serra, por nome Juripari, ou o Diabo, foi mais
feliz na sua resistência, e apoz um mez de guerra
com elle, por felizes se derão os invasores com re-
ceberem ordem de desistir da infructuosa jornada.
Pero Coelho retirou-se para Jaguaribe, então da viiiama
jurisdicção de Pernambuco. Não desanimado ainda, Pero coelho.
para aqui transferiu a sua família, principiando uma
colônia, que chamou TSoca Lusitânia, e uma villa,
a que deu o nome de Nora Lisboa. Procedeu porem

1
Diogo de Campos o chama Otuimiri, nome evidentemente mais
Kipinambá que francez, e provavelmente posto a este homem pelos
índios. Accrescenta Diogo que Pero Coelho nada fazia sem que o con-
sultasse. Jornada do Maranhão, p. 2.
38 HISTORIA DO BRAZIL.
595
> - com clamorosa maldade : os Tapuyas, quehavia apri-
zionado na guerra, vendeu-os como escravos, e junc-
tando á injustiça a ingratidão, exerceu a mesma
tyrannia sobre os que lealmente o tinhão servido
como alliados. Ia este proceder de encontro ás leis
postas. As relativas á escravidão havião sido mitiga-
das, em conseqüência dos excessos commettidos de-
baixo da capa da sentença geral contra os Cahetés,
decretando-se, que nenhum índio seria reduzido á
escravidão que não fosse aprizionado em guerra le-
gitima, c que os que fossem resgatados aos inimigos
recoperarião a liberdade no lim d'um prazo de ser-
viços equivalente ao preço do resgate. Fáceis erão de
illudir similhantes disposições : a caça de gente
tomava o nome de guerra legitima, e instigavão-se
hordas a reciprocas hostilidades, para fazerem pri-
zioneiros que podessem vender, e se o resgatado
caplivo não morria acabrunhado de. trabalho antes
de expirar o termo da sua servidão, como obteria o
beneficio da lei, ignorando-o e achando-se á mercê
do seu senhor? Informado de todas estas tricas, re-
vogou Philippe II todas as leis anteriores sobre esta
maleria, decretando que se não reduzissem á escra-
vidão senão os índios tomados em guerra legitima,
e que por tal se teria somente a que fosse ordenada
l - c- pela Soroa com a assignatura real1i
sc c

« Apesar d'esta restricção ainda era eminentemente injusto o cap-


ttveiro dos indigenas. F. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 39
Coelho procedera com manifesta infracção d'esta 159S
lei; d'isso se derão em Madrid queixas, que se não
poderão mover a corte a punil-o, fizerào com que
esla lhe retirasse todo o auxilio, não tardando que
elle soffresse as conseqüências dos seus crimes. Os
amigos o abandonarão; os Tapuyas tinha-os offen-
dido, e tão desamparado se viu a final, que quasi
mais vendido, do que o forão os que elles vendeu, se
veto, deixando tudo, miseravelmente a pé com sua
mulher e filhos pequenos, parte dos quaes perecerão
de fome, fazendo tão lastimosa esta sua passagem,
como a de Manoel de Souza na terra dos Cafres'.
De Madrid chegarão ordens de pôr em liberdade os
naturaes que elle injustamente escravizara, recom-
'pensando-os pelo que havião soffrido, mas ordens
d'estas erão mais freqüentemente expedidas pela
corte de Hespanha, do que cumpridas pelos seus go-
vernadores. le£%.
Os Jesuítas, que anciosos havião olhado a jornada A Serra
de Coelho sobre a Serra de Ibiapaba, prepararão delbiapaba
agora uma expedição pacifica na esperança de redu-
zirem e civilizarem seus habitantes. Extendem-se
estas montanhas por algumas oitenta legoas em com-
primento e vinte em largura, e erguem-se ondeadas,
sobranceiras umas ás outras; formadas de granito

1
Diogo de Campos, p. 3. Allude á historia do naufrágio de Se-
pulveda, uma das tragédias de mais enternecer que recorda a his-
toria.
40 HISTORIA DO BRAZIL.
1595
- em certos logares, cobrem-se de verdura em outros as
suas vertentes. Subil-as é trabalho afanoso para qua-
tro horas, em que, alem dos pés, ha muitas vezes que
ajudar-se de mãos e joelhos; ganho porem o viso,
encontra-se o viajante n'uma região em que bellezas
de todo o gênero como que porfião em enlear-lhe os
olhos: avista rochas, cabeços, outeiros, valles, e vastas
savanas, nuvens a seus pés penduradas sobre as pla-
nícies, e na orla do horizonte o oceano. Curtos são
alli os dias, sempre nevoadas as manhãs, e apres-
sadas as tardes com os montes que se levantão ao
poente, a cavalleiro dos outros. São frias as noutes,
nem no inverno se supporlarião sem fogo. Notável é
haver alli pouca água, mas essa pouca é excellente.
A esta circumslancia attribuiãó' os Tapuyas e Taba- *
jaras a escassez de toda a espécie de caça, não atlen-
dião porem que a não mudarem freqüentemente de
pouso, devem as tribus caçadoras ver escassear-lhes
depressa o alimento.
os Tapuyas. Raça a mais antiga do Brazil, tinhão os Tapuyas1
senhoreado toda a costa do Amazonas ao Prata, até
• que forão rechaçados pelos Tupis em epocha que não
podia ser muito remota, pois que vivia ainda em
memória de selvagens. Suppunha-se que no serião se
extendião ainda por toda a linha d u m rio ao outro,
e que erão mais numerosos do que nenhuma outra

t Esta denominação de Tapuya, significando bárbaro, parece antes


uma alcunha do que o nome d'uma tribu. F. P.
HISTORIA DO BBAZIL. 41
l
tribu .Seu nome significa Os inimigos, assim cha- 1595.
mados da eterna guerra que fazião a todos os outros
índios, e até uns aos outros. Comtudo de todos os
índios brazileiros erão estes os menos cruéis; os Por-
tuguezes lhes compravão escravos, pois que elles
nunca matavão os prizioneiros, e o inimigo que
n'uma de suas casas de residência podia asylar-se,
estava seguro. Jamais Tapuya violou este sanctuario,
por mais forte que fosse a sua cólera e grande a pro-
vocação. Anlhropophagos erão, mas de natureza pe- Noticias
culiar : os Tupis devoravão seus inimigos como o 2,73.
1
Vasconcellos diz que algumas pessoas os tinhão por mais nume-
rosos do que todas as outras tribus. Este escriptor divide todos os ín-
dios brazileiros em duas classes principaes, mansos e bravos. Incluindo
na primeira denominação todos os que fallão alingua tupi, chama Ta-
puyas todos os outros. Auctores mais modernos empregão o nome va-
gamente, em logar da antiga designação genérica de índios. Vascon-
cellos quer contar entre elles mais de cem linguas differentes, e espe-
cifica os Aymorés entre as suas subdivisões. N'esta ultima asserção
claudica elle evidentemente : os Aymorés apparecérão pela primeira vez
nas provincias do sul, e so 180 annos depois da descoberta da Ame-
rica : vinhão ainda mais do sul, do que a sua estatura é tal ou qual
presumpção, e a compleição prova. Falhvão uma lingua nunca até então
ouvida no Brazil. A' vista de todos os lados de que temos noticia, é
pois claro, que três grandes tribus ou nações emigrarão successiva-
mente do interior para a costa, primeiro os Tapuyas, depois os Tupis,
e afinal os Aymorés *.
O Jaboatão limita os Tapuyas entre o Grão Pará e Jaguaribe. Por toda
esta extensão de costa, e no sertão, diz este escriptor, erão elles innu-
meraveis, especialmente ás margens d'esse rio, que d'elles tomou o
nome de Rio Grande dos Tapuyas. Preâmbulo. Digressão, 2. Estân-
cia, 1, § 10.
Pensa o senhor Varnhagen que os Aymorés devem ser descendentes
dos ralagões ou Araucanos. F. P.
42 HISTORIA DO BRAZIL.
1595
- maior signal de ódio, os Tapuyas comião os seus
próprios mortos como ultima demonstração de res-
peito. Se morria uma criança 1 , era comida pelos
pães, mas no cadáver do adulto todos os parentes
tinhão quinhão : guardavão-se os ossos para bodas,
Maregraff.
sendo então pulverizados, e tomados como a couza
L. 8, c. 12 mais preciosa que offerecer se podia. 0 regulo d'uma
horda distinguia-se pela sua coroa ou tufo de cabello,
8, 13.
e pelas unhas dos dedos grandes dos pés; unhas
compridas era couza mui estimada e trazião-nas os
parentes d'aquelle, e os que na guerra se havião assi-
gnalado, mas ás dos dedos das mãos se lhes limitava
o privilegio, que.deixar crescer as dos pés era prero-
gativa do chefe. A certos respeitos parece ter este
também mettido a mão na seara do conjurador. Em
cima d'uma esteira, no meio da sua tenda, estava um
cabaço grande coberto, que so elle podia olhar; o
povo o fumigava quando fumava, e ia depôr-lhe
diante a caça e o mel que trazia das selvas, até o
cacique permittir que se retirassem estas offertas.
Dentro do cabaço havia seixos, pelo que parece ter
sido isto um empréstimo aperfeiçoado do culto da
maraeá. Pretendia o chefe curar moléstias com fric-
ções e cuspiduras de tabaco; e quando uma donzella
casadoura não achava pretendente, marcava-a a mãe

« Fmrninas, ubipepererunt, secedunt in silvam, et infanti umbi-


licum concha prsecidunt, ei una cum secundinis coctum devorant.
— Jacob Rubbi em Maregraff.
HISTORIA DO RRAZIL. 43
1595
de vermelho debaixo dos olhos c levava-lhe a elle, -
que lhe pozesse encanto. Com cânticos e danças se
celebrava o nascer das Pleiades, que parecem ter alli
!acob Rabb
passado por divindades. >-
Mudavão os Tapuyas de logar de residência mais
freqüentes do que nenhuma outra tribu. Na véspera
de levantar-se o acampamento reunia o cacique os
conjuradores, para saber em que direcção marchar,
e onde fazer alto. Antes de partirem todos se banha-
vão, esfregavão com areia fina os corpos, e tornavão
a banhar-se; depois fazião estalar as junctas, e arra-
nhavão-se deante do fogo com os dentes de certos
peixinhos, a ponto de esguichar o sangue em muitas
partes, operação que se reputava prevenir e remediar lotVaAn.
a fadiga 1 . Apenas alcançavão o logar designado, os
mancebos cortavão ramos, e com elles construião
seus ranchos ou choças 2 ; feito isto, sahião os homens
a caçar, pescar, e procurar mel, e as velhas, que ca-
tassem fruclas e raizes, em quanto as moças em casa
preparavão a comida á medida que lhes trazião os
ingredientes. A caça era trabalho, e não recreio. Os
conjuradores indicavão a direcção em que devia
buscar-se; os mais expertos na sciencia encarregavão-
se d'isto, e assim que descobrião cama ou cova, cer-
1
Jacob Rabbi, que viveu muitos annos entre os Tapuyas, freqüen-
temente experimentou este remédio, de cuja efficacia se convenceu.
2
Estas, segundo Vasconcellos, chamão-se Tapuyas, como os seus
moradores, pelo que não pôde ser na própria lingua d'elles, que esta
palavra tem a significação de inimigos.
4í HISTORIA DO BRAZIL.
1595
- cava-se o logar, e se o animal escapava ás settas, o
que era quasi impossível, lá estavão os cães, para
segural-o com certeza. Feita a caçada, levava-se o
producto para casa, dançando e cantando, sahindo o
resto da horda ao encontro da partida com eguaes de-
monstrações de regosijo. A comida que se queria pre-
parar, mettia-se n'um poço ou forno de terra forrado
S. Vasc.
Not. An. de folhas; cobria-se depois de outras folhasede terra,
1, § 144-6.
e por cima se lhe accendia fogo, excellente e não
desusado modo de assar. 0 chão lhes servia de meza,
e por toalha tinhão folhas, de que comtudo nem
sempre usavão. Tudo que se lhes punha diante por
via de regra era consumido, aturando o appetile sel-
vagem em quanto aturava o mantimento; o resto do
dia passava-se em jogos, indo os mancebos a cantar, e
as raparigas a dançar atraz d'elles, cada uma atraz
d'aquelle que amava. Quando ião de marcha fazia-se
uma experiência de forças, para a qual servião os
troncos de duas arvores novas de egual grossura e
tamanho : dividia-se a horda em dous magotes, e
aquelle que primeiro chegava com a sua arvore ao
logar em que devião fixar a residência, exultava sobre
o outro. Guardavão-se então os ramos ao lado da
cabana do cacique, para servirem na primeira mu-
dança seguinte.
«oiicias. A agricultura ficava a cargo das mulheres, outra
S aC
MarIgra íf. circumslancia em que estes índios se dislinguião dos
8, 10.
outros do Brazil; havia porem tribus que todos os
HISTORIA DO BRAZIL. 45
1595
dias mudavão de pouso, pelo que jamais cultivavâo o -
solo. Hordas havia que em logar de arco usavâo
dardos de arremesso. No sertão da Bahia a oitenta
legoas da costa enconlrava-se uma nação por nome
Maraques, entre a qual as mulheres trazião uma
espécie de avantal, andando tudo o mais nu. Pescava
este povo com rede de que os Tupinambás não sabião
fazer uso; fazião-nas de uma trepadeira comprida e
tenaz, e em quanto uns a arrastavão pela corrente,
balião outros a água. Havia no seu território uma
serra com salitre, e elles queimavão a terra, fervião
as cinzas, e recolhião os saes crystalizados.
Passão os Tapuyas por terem sido macrobios mais
que nenhuma das outras nações, posto que a longe-
vidade a todas se attribua; as crianças principiavão a
andar tão cedo que fazia pasmar, e começavão quasi
que logo lambem a nadar. Aformosear-se era privi-
legio do sexo masculino; furavão as orelhas e quando
rapazes cortavão o lábio inferior longitudinalmente
para formarem uma boca supplementar1. Fazia-se
esta operação n'um logar especial, com assistência
de todo o povo a dançar e a cantar como n'uma cere-
monia religiosa. Um conjurador deitava o padecente
1
Não é este costume menos hediondo que immundo. Quando os
índios viajão pelas solidões, diz Knivett (Purchas., 1. 6, c. 7, p. l'22ft),
vão munidos de grande quantidade de labaco, levando uma folha cons-
tantemente mettida na boca entre o lábio e os dentes, e como andão,
llies vae escorrendo a saliva negra pelo orifício que teem no lábio de-
baixo.
46 HISTORIA DO BRAZIL.
1595
- no chão, amarrando-o de mãos e pés, em quanto
outro com um instrumento de madeira fazia a inci-
são e erguia a mãe clamoroso pranto. As faces so-
mente se furavão quando o mancebo estava para
casar-se.
Descrevem os auctores como os mais indolentes e
imprevidentes dos Índios brazileiros os Tapuyas, que
habitavão a serra de Ibiapaba. Parecem porem ler
os jesuítas conhecido o valor da sua posição montanhosa, e em
de ibiapaba. logar de emigrarem para as terras chãs em busca de
mais abundante pasto, cultivavão mandioca, milho
e algumas espécies de legumes, pouco na verdade de
cada couza, mas assaz para evitar falta absoluta. Os
seus charlatães lhes tinhão inventado uma curiosa
crença, de que o mundo se poria um dia com o de-
baixo para cima, e que então serião os índios senhores
sobre os brancos. Egualmente tinhão descoberto uma
engenhosa objecção contra o christianismo; a encar-
nação, dizião, havia tido logar unicamente por amor
dos brancos; quando a Deus aprouvesse remir os
Vida índios, encarnaria numa das suas-virgens, e então
ei T
% §24o.' voluntários deixarião baptizar-se.
Tal era o povo que os Jesuítas Francisco Pinto e
Luiz Figueira sahirão a reduzir, acompanhados de
setenta índios. Com estas novas superstições se tinhão
os ânimos dos Tapuyas fortificado contra elles; Pinto
e a maior parte dos seus forão mortos, fugindo o
resto para as florestas; d'onde escaparão para o
HISTORIA DO RRAZ1L. 47
Ceará. Comtudo esse mesmo povo que assassinara 1595-
Pinto, lhe collocou o espirito no paraizo d'elles.
Tinhão os seus caciques, crião elles cada um sua
aldeia grande debaixo da terra, para onde depois da
morte ião todos os seus subditos, e para alli suppo-
zerão que fora este padre a ser-lhes amigo c pre-
ceptor.
Em outras parles do Brazil foi mais feliz a Com- Empregao-se
os Pitagoares
panhia. Assolavão os Avmorcs a Bahia, e Botelho contra os
1 <i Aymorés.
queria que o capitão de Pernambuco apresentasse
uma força de Pitagoares para debellal-os. Ninguém,
que não fosse um Jesuíta, podia levantar esta força;
metleu-se F. Diogo Nunes enlre elles, e debaixo das
suas ordens se lhe pozerão oilocentos guerreiros esco-
lhidos, sobre promessa de que, finda a guerra, vol-
tarião ao seio de suas famílias. Ao chegarem a São
Salvador estava passada a imminencia do perigo, mas
o official commandante em vez de recompensar estes
alliados e despedil-os, resolveu aquartelar parte
d'elles na Bahia, e o resto nos Ilheos, para guarnição
d'estas capitanias, sem que esquecesse assignar-lhes
sua tarefa. Com paciência aguardarão os Pitagoares
alguns dias, mas vendo então que nem se fazia guerra,
nem os licenciavão, pedirão venia para regressarem
a seus lares, dizendo que se não lh'a dessem, a loma-
rião. 0 commandante, acompanhado d'alguns dos
principaes da cidade, gente que contava com estes
pobres selvagens, para lhes cultivarem as terras, foi
48 HISTORIA DO BBAZIL.
1595. ter com elles, buscando em comprida harenga, per-
suadil-ôs a que ficassem; mas elles, que diante dos
olhos tinhão o horror da escravidão, responderão que
sohre condição de se irem finda a guerra, havião
vindo.
Quem tão injusta intenção tinha podido formar
também não era homem que d'ella se deixasse de-
mover por simplices representações contra a sua sem
razão. Não podendo engodar os selvagens, determinou
levar pela força a sua avante; chamárão-se os solda-
dos e os Pitagoares preparão-se para a batalha. Em
grande confusão andava revolta toda a cidade; dous
concelhos se celebrarão durante a noute, e em ambos
se resolveu que se declarassem rebeldes estes homens
offendidos, e como taes se atacassem, sendo reduzi-
dos á escravidão. Tão certo não era porem o trium-
pho, que ao commandante tirasse todas as apprehen-
sões do resultado, pelo que mandou aos Jesuítas nas
aldeias circumvizinhas recado, que viessem a toda a
pressa em seu auxilio com quantos frecheiros podes-
sem reunir para serviço de Deus e de S. M. Vierão
os Jesuítas; conhecião elles por demais o caracter da
gente da governança, para que esperassem leval-a
por motivos de justiça e boa política, e desejando
evitar maior mal immediato, pedirão aos Pitagoares,
que consentissem em ficar. A resposta prompta foi .
que farião o que os padres quizessem. Pouco depois
julgou o commandante prudente mandar buscar para
HISTORIA DO BRAZIL. 49
a cidade como reféns a maior parte dos caciques; a 1602-
isso se recusarão estes, dizendo que bem lhe percc-
bião a intenção, nem lhes assentava bem a elles aban-
donar seus companheiros. Outra vez se recorreu aos
Jesuítas, e de novo prevaleceu a sua influencia; os
Pitagoares disserão que farião o que se queria, por
amor d'elles, e não em attenção ao commandante.
Em toda esta transacção mais é de admirar-se o po-
der que os missionários havião adquirido sobre os
índios, do que o uso que d'elle fizerão. Para preve-
nirem males presentes, tornárão-se cúmplices da
injustiça.
Quaesquer que tivessem sido as ciacumstancias, APoiaÇôe6
. . . . dos Aymorí
que tornarão desnecessários os serviços ímmediatos
dos Pitagoares, nem forão cilas de grande alcance,
nem durarão muito. Os Aymorés inundarão as capi- 1002.
lanias do Sul. Em Saneto Amaro abandonárâo-se pro-
priedades do valor de trinta, quarenta e cincoenta mil
cruzados, devorados por esles selvagens os trabalha-
dores e fugidos os proprietários. Não era menos
espantosa a força dos Aymorés do que a sua desespe-
rada ferocidade; um punhado d'elles assaltava enge-
nhos de assucar, em que havia nada menos de cem
pessoas. Viu-se um lançar mão d'um homem vivo, e
com elle defender-se, manejando-o e volteando-o tão
maneiro, como se fora um escudo1. A capitania dos
1
Inverosimil nos parece semelhante conto. F. P.
n. í
50 HISTORIA DO BRAZIL.
*«» Ilheosficouquasi destruida*. Porto Seguro tinha sido
bem defendido, em quanto se havião deixado os ín-
dios mansos a cargo dos Jesuítas. Debaixo do sábio
governo dos padres, vivião elles reunidos em aldea-
mentos assaz fortes para se defenderem a si, prote-
gendo os Portuguezes da colônia. Um capitão novo
veio destruir este systema, na sua cega rapacidade
desfazendo as aldeias e distribuindo os pobres índios
pelos colonos que os faziâo trabalhar, deixando-lhes
o cuidado de proverem á própria subsistência. Assim
se vião obrigados a exporem-se sos ou em partidas
pequenas, e os que não suecumbião ao trabalho erão
trucidados pelos Aymorés Privados do seu rebanho,
e não se podendo manter sem elle, abandonarão os
Jesuítas os seus estabelecimentos; fugirão também
quantos tinhão meios de fazel-o, até que a final mal
1
Van 1581, on escrivit de là, que depuis qiCils eurent receu
tine relique de S. George Marlyr, que le R. P. General de Ia Compa-
gnie de Jesus leur avoit envoyée si.rans auparavant, ces Aymurés
qui emportoient tfordinaire le dessus cs guerres, quils faisoyent
conlre les liabüans de ceste ville, dès que cesle precieuse despouille
du B. Marlyr S. George y fust portée, Ia fortune de Ia guerre se
changeant dèslors, ils estoient par apres tousjours battus, et per-
áoyent beancoitp des leurs, sans quü y füt aucun Portuguais de
tué, et bien peu de Brasiliens, qui soustenoyent leur party. Ce
qtfon altribuoit aux merites et aux prières de ce valeureux che-
valier de Jcsus-Christ; et à ceste oceasion Von celebre sa feste avec
grand solemnilé etrejouissanca. Jarric, 2, 528.
Agora, vinte annos mais tarde, ve-se que a arma de S. Jorge tinha
perdido toda a efficacia. Em quanto estava fresca a relíquia excedião-
se provavelmente os seus possuidores em esforços no própria defeza
com esperançi e confiança.
HISTORIA DO BRAZIL. 51
í602
ficarião ainda na capitania vinte famílias miseráveis,
que d'alli não podião sahir, e que, sem escravos que
para elles trabalhassem, de hervas e raizes se nutrião
unicamente. Assim se virão os Aymorés senhores de
todas aquellas regiões, e ja a própria Bahia não estava
, . Rei. Ann.
121
a coberto de suas correrias. -
Umas doze legoas ao sul da capital do Brazil vivia Aivaro no-
nas suas terras um abastado Portuguez por nome os è S a .
Álvaro Rodrigues, que com vigor fazia a guerra a
estes perigosos fronteiros. N'uma de suas expedições
capturou duas mulheres que trouxe para casa. Uma
morreu, e boas maneiras domesticárão a outra;
aprendeu o portuguez e tanto se affeiçoou ao novo
gênero de vida, que dando-lhe Álvaro livre o regresso
á sua tribu, recusou ella ir-se. Occorreu-Ihe então a
elle, que poderia esta mulher servir para estabele-
cer-se a paz. Prestou-se ella prompta a secundal-o,
e pondo se n'um logar, onde era provável que os
patrícios a ouvissem nas florestas, começou a cha-
mal-os voz em grita, referindo o bom tractamento
que da parte dos Portuguezes encontrara, e dizendo
que querião elles ser amigos dos Aymorés, e tornal-
os participantes das boas couzas que possuião : feito
isto depunha mantimentos no chão, instrumentos de
ferro, e as bugiarias que mais devião agradar, e
voltava. Repetiu-se isto, até que dos índios alguns
se affontárão a vir visitar Álvaro, que entretanto ao
capitão da Bahia fizera saber a esperança que nutria,
52 HISTORIA DO BRAZIL.
1602. pedindo as orações de todos os fieis a favor da sua
realização. Alguns parentes d'esta mulher deixarão
a final persuadir-se a irem a S. Salvador, e os pre-
sentes que alli receberão, e as maravilhas que na
volta contarão, induzirão outros cincoenta a visita-
rem o commandante. Tão feliz suecesso se considerou
n'aquella cidade para o bem do Estado o pacifico
apparecimenlo d'esta gente, e tão inesperado, que
üm dos espcctaculos com que a regalarão, foi uma
procissão de graças pela sua visita, terminada por
um sermão da mesma natureza.
os Aymorés Estavão agora tão satisfeitos os Aymorés, que em
estabelecidos
na iiiia hordas vinhão a aquarlelar-se em casa de Álvaro, o
de Itaparica. *
qual logo requereu ao governador que o mais de-
pressa possivel o livrasse d'esles vorazes hospedes.
Fáceis de persuadir quando os não prevenião sus-
peitas, estiverão os selvagens por ir para qualquer
parte, onde gozassem das commodidades do seu novo
gênero de vida e forão removidos para a ilha de Ila-
parica, postos alli sob o cuidado de Ires Jesuítas,
escolhendo-se uma ilha por nada haver assim que
recear, caso recahissem nos antigos hábitos. Mas de-
masiado repentina fora a mudança : rebentou entre
elles uma doença endêmica, que mal dava aos Je-
suítas tempo para baptizar aos moribundos e enter-
rar os mortos. Apoz dez semanas d'esta pia tarefa,
informarão ao governador que ou se havia de remo-
ver d'alli o rebanho ou todos perecerião. Voltarão
HISTORIA DO RRAZIL. 53
1602
alguns a ter com Álvaro, dispersando-se os outros -
por entre os índios mansos, cujas aldeias estavão
estacionadas quaes outros tantos postos avançados
contra os próprios Aymorés. D'alli, como se havia
receado, mettião-se ás matas e ião a dar com os pa-
rentes ; taes erão porem os commodos da vida seden-
tária que elles freqüentemente voltavão, trazendo
outros; e assim indo uns, vindo outros, encontrava-
se alli uma continua suecessão de hospedes. Apren-
derão alguns a língua tupi para servirem de inter-
pretes, e a fronteira viu-se livre da terrível guerra
Rei. Ann.
a que tantos annos estivera exposta. tt. 121-2.
Havia por estes tempos no collegio de S. Salvador Domingos
, . Rodrigues
um Jesuíta por nome Domingo Rodrigues, recente- os pacifica
r ° " n o s Ilheos.

mente chegado de Portugal; ligou-se aos Aymorés,


aprendeu-lhes a lingua, e obedecendo ao impulso
intimo que sentia, pediu ao seu superior que o man-
dasse aos Ilheos, onde esperava da mesma forma
effectuar as pazes. Removerão-no pois para o con-
vento d'alli. Riu-se o povo do projecto, lendo por
impossivel que os Aymorés, encarniçados como esta-
vão em rezes humanas, abandonassem jamais os seus
hábitos de anthropophagia, nem renunciassem a
esperança e o prazer da vingança pelas perdas sof-
fridas. Não se deixou Domingos dissuadir por taes
arrazoados, c a primeira vez que se avistou uma
partida de Aymorés, metteu-se n'uma canoa com o
superior do convento, o capitão dos Ilheos e dous
54 ^ HISTORIA DO BRAZIL.
1602
- remadores; seguindo todas as outras embarcações
em temerosa distancia.
Ao chegarem ao alcance de voz do logar onde es-
tavão occultos os Aymorés, chamou-os Domingos,
dizendo-lhes que vinha de paz e como amigo. Passa-
dos alguns momentos sahirão da espessura, prepa-
rados os arcos, dizendo-lhe que podia elle vir, mas
nenhum outro, e apontarão o logar onde devião fazer
alto as canoas. Passando pois a outros bateis os com-
panheiros, adiantou-se elle sozinho no seu, visto o
que depozerão os selvagens as armas. Chegado á
margem disse-lhes Domingos a que vinha, e deu-
lhes farinha, que foi recebida com gratidão. Pediu
então que alguns o accompanhassem á villa, promet-
tendo reconduzil-os na manhã seguinte com maior
porção de viveres para os seus amigos. Quatro pes-
soas se embarcarão promptamente com elle, sendo
o maior numero que podia levar a canoa.
No outro dia veio elle effectivãmente com o supe-
rior trazer os quatro índios, aonde cerca de duzentos
Aymorés com suas famílias reunidos á beira do rio,
os estavão aguardando. Um dos quatro visitantes,
apenas saltou em terra, poz-se a partir as seitas dos
seus patrícios, dizendo que era finda a guerra, e boa
gente os padres, que nem tinhão arcos nem seitas,
pelo que nada devia negar-se do que elles exigissem.
D'esta vez acompanhárão-nos trinta selvagens para a
villa, onde tão grande foi, ao vel-os, a alegria dos
HISTORIA DO BRAZIL. • 55
1602
moradores, que tirados da canoa os Jesuítas, em -
triumpho os levarão ao seu.convento'. Facilmente
se concluiu agora a paz, pedindo-se aos novos alua-
dos, que do sertão trouxessem outros da sua nação,
para da mesma forma se aproveitarem do beneficio
da amizade dos padres. Nem tardou que altrahida
por este convite não apparecesse perto d'uma aldeia
de Pitagoares convertidos uma horda em que vinhão
duzentos e cincoenta frecheiros. Os homens erão de
elevada estatura, e em ambos os sexos havia muitas
pessoas tão alvas como os Allemães : erão pois do sul,
pois que para haver assim branqueado com viver
perpetuamente á sombra dos bosques, era este povo
demasiado numeroso e por demais guerreiro. A' vista
d'elles fugirão os Pitagoares,' mas dous da primeira
tribu que havião sido os mensageiros para estes seus
patrícios, adeanlárâo-se á pressa, dizendo que vinhão
de paz : sahirão-lhes ao encontro os Jesuítas, levando
da villa quantidade de instrumentos de ferro, e pro-
visões, e recebendo em bem acceita troca os arcos
dos Aymorés. Lcvárr.o-nos aonde estavão os compa-
nheiros, que elles abraçarão com vivo sentimento de
amor nacional. 0 effeilo que sobre aquelles selvagens
produziu a visla e a experiência dos còmmodos da
vida civilizada, foi tal qual o havião esperado os Je-
suítas : correu a noticia, e bem.depressa se formarão
1
Freqüentemente usa Southey da palavra convento em vez da de
£ollegio. F. P.
56 HISTORIA DO BRAZIL.
1692
-dous aldeainentos contendo um mil e duzentos Ay-
morés e o outro quatrocentos, e a capitania que ate
aqui so com os freqüentes soccorros da Bahia se h-
vrava de lotal
uei Ann destruição, viu-se efficazmente livre
rr. 123-5. Q0S s e u g in;mig0S-
Triumpi.o Tão bem tinha o systema de Nobrega sido seguido .
dos Jesuítas.
por Ànchieta e seus discípulos, que no fim de meio
século estavão todos os naturaes ao longo da costa-
do Brazil, até onde se extendião os estabelecimentos
portuguezes, reunidos em aldeias debaixo da super-
intendência dos padres da Companhia. Verdade é que
o trabalho lho havião facilitado os senhores de es-
cravos, consumindo tão depressa as suas victimas,
que em muitas partes do paiz pouco restava aos mis-
sionários que fazer. Não havia artificio para inflammar
a animosidade reciproca das differentes hordas que
aquelles miseráveis não pozessem por obra, para
que os indígenas não tivessem tempo de tomar fôlego,
reunindo-se contra o inimigo commum, e também
para que, andando em continua guerra, tivessem
sempre escravos com que abastecer o mercado. Se-
guindo esta política, ensinarão os Tupinambás do
Recôncavo e de Ifaparica, a desenterrar os craneos
dos inimigos, quebral-os e queimal-os, em festa, com
Noticias. Ms.
a mesma ceremonia como se houvessem çanho uma
victoria. Com estas artes tanto havia raleado a popu-
lação que quando se querião escravos era mister em
longas excursões ir buscal-os ao sertão, tendo os

.^
HISTORIA DO BBAZIL. 57
Jesuítas da mesma forma de penetrar mui terra 1602.
adentro em procura de catechumenos.
N'uma d'estas jornadas, não pouco se maravilhou
um padre de ver que o cacique d'uma horda orga-
nizara para si um systema dechrislianismo, fundado
nas idéias que índios fugidos da costa lhe podião ha-
ver ministrado. Baplizara todos os varões Jcsuzes, e
as íemeas Marias, e compozera uma espécie de litur-
gia, de que o mais que os Jesuitas poderão perceber,
foi a invocação de Maria, mulher de Deus. Tinha
instituído uma ordem de sacerdotes, obrigados a
guardar castidade sob pena de degradação do officio:
a cruz estava em uso, posto que em pouca veneração,
mas a única imagem que se encontrou, foi uma de
rapoza feita de cera. Ao instituidor faltou poder ou
arte para propagar o systema que inventara, e esta
mythologia morreu provavelmente com o seu anetor. Rr-l."YdA n i l .
No governo de Botelho fizerão os Hollandezes uma
tentativa contra San Salvador. Ainda que sede da
administração, nem eslava bem fortificada nem bem
provida de artilharia esta cidade. Mas os moradores
portárão-se valentemente, e ou por que fizessem dos
meios de que dispunhão, uma ostentação de impor
ou um bom uso, lograrão aterrar ou repellir os in-
vasores. Comtudo despachou-se para Hespanha Diogo
de Campos Moreno, homem de grandes talentos c não
vulgar experiência, a representar sobre a pouca se-
gurança de tão importante cidade, e solicitar promp-
58 HISTORIA DO DRAZIL.
1<i02
- tas medidas tanto para fortifical-a como para erguer
um forte no Recife. Cinco annos leve Botelho as re-
Dio deas do governo na mão, sendo então substituído
i e i J o r por D. Diogo de Menezes, que dirigiu as suas vistas
° 1608. ' i
para o Amazonas.
Era então esta parte da costa freqüentada por.
Francezes e Hollandezes, não sendo precizo grande
previdência para conhecer que se Portugal se não
desse pressa em apossar-se d'aquellas regiões, que
como suas reclamava em virtude da linha de demar-
cação, outros o farião por conta própria.'As infor-
mações que acerca d'um desígnio d'esla natureza
por parte dos Francezes houve o governador d'um
corsário d'aquella nação, de tal importância forão
que elle enviou a Madrid um memorial instante. A
resposta que obteve auclorizou-o a seguir os seus
próprios planos preventivos, mas nenhum outro
acoroçoamenlo lhe dava. Com pouco resultado tinha
Diogo de Campos procurado fazer valer na corte de
Hespanha o projecto de colonizar o Maranhão, pois
que apezar das representações d'este homem hábil
entendeu-se alli que o plano visava mais á satisfacção
de particulares interesses, do que ao bem do publico
serviço. O proceder de Pero Coelho algum funda-
mento havia dado a esta suspeita; e agora que era
certo ter a França olhos fitos no Maranhão, a corte
hespanhola, sempre tardia e remissa nas suas reso-
luções, apenas se deixou possuir do sentimento do
HISTORIA DO RRAZIL. 59
perigo a ponto de permittir que o governador seguisse 1608.

a própria discrição. Era fazer bem pouco pois que


faltava gente e dinheiro.
A primeira medida do governador foi inteirar-se
das disposições desses índios de Jaguaribe, que
Coelho tão vilmente opprimira e que t~o bem se
havião vingado^ 0 jovem Martim Soares Moreno (pa-
rente de Diogo de Campos), que servira na jornada
da Serra de Ibiapaba, tão prudentemente se havia
conduzido com estes Tapuyas que Jacauna, um dos
caciques, ainda o chamava filho; em virtude d'isto
e do seu reconhecido tino, o nomeou Menezes capitão
da Serra. Sahiu elle a fundar esta nova capitania com
sos dous soldados, contando que lhe mandarião gente
e materiaes, apenas os houvesse, e confiando por em
quanto na própria influencia sobre os naluraes, que
talvez se inquietassem, vendo-o chegar com mais
crescidas forças. Levara um capellão um sino, para-
mentos e alfaias para um altar. Jacauna forneceu
trabalhadores, e começou a fabrica duma egreja em
louvor de Nossa Senhora do Amparo c d'um forle
com a mesma invocação.
Não tardou que a fama do novo capitão crescesse
com a tomada d'um navio hollandez por um corpo
de Tapuyas, obra de estratagema, que na guerra é
muitas vezes synonymo de traição, por quanto met-
tera-se elle entre os inimigos disfarçado qual selva-
gem, nú e pintado de preto o corpo com o sueco do
60 H I S T O R I A DO B R A Z I L .
i m
genipapo'. Forão mortos quarenta e dous Hollande-
zes, provavelmente toda a tripolação, pois é esta a
condição com que se guerreia, onde falecem os
meios de pôr a bom recado os prizioneiros. Mas tanto
que o governador deixou Pernambuco, para regressar
á Bahia, esquecerão-se de Martim Soares os funcio-
nários subalternos, a quem havia sido commeltido o
cuidado de lhe enviarem reforços; nem foi este o
único perigo. Um Portuguez, que preferia os Índios
aos seus conterrâneos, quiçá por que a freqüente
vista da oppressâo lhe inspirara horror á sua própria
nação, quiçá por que a companhia dos selvagens
melhor lhe dizia com os hábitos bravios, tenlou alie-
nar os Tapuyas. Advertiu-os este homem que olhas-
sem por si, so não querião ver renovada a tyrannia
exercida por Pero Coelho, e tanto se lhe escutarão os
. conselhos que mais que um attentado se fez contra a
vida de Martim Soares, de modo que outro menos
intimamente versado na lingua e disposições dos na-
turaes, e menos hábil em haver-se com elles, teria
infallivelmente perecido. Não tinha ainda Menezes

1
A narrativa de Berredo diflere tanto d'esta, que diz elle, que os
Uollandezes tomarão os índios por Portuguezes, tão bem os havi
Martim Soares disfarçado e disciplinado. Na escolha entre as duas ex-
posições não havia que hesitar, ainda quando Diego de Campos não
fosse melhor auetoridade a respeito d'um parente seu, do que Berredo,
que viveu quasi século e meio mais tarde : por quanto -se era fácil
dar Soares á sua pelle a còr da d'um índio, não havia meios de dar á
cFesle a apparencia da d'um Portuguez.
HISTORIA DO RRAZIL, 01
1611
dado mais andamento aos seus planos de colonização
do Maranhão, quando tornarão a apparecer os Fran- de campos.
cezes desejosos de no Brazil tenlarem fortuna. 109-119'
Alguns annos mais atraz tinha um aventureiro
francez, por nomeRifaull, pirateado n'esta cosia, e Expedição
1 L
' franceza ao
5Iaranha0
tão arteiramente sabido ganhar as boas graças dos -
naturaesque Ovyrapive, um de seus mais poderosos
regulos, o aconselhou a tentar descobertas c estabe-
lecer-se no paiz, empreza em que seoffercceu a acom-
panhal-o e ajudal-o. Com avidez abraçou Rifault a
idéia; foi a França, e alli com o produeto dos seus
despojos e a ajuda de oulros, que fáceis se deixarão
persuadir a tomar parte na aventura, apparelhou três
navios, com que em 1594 voltou ao Brazil. Foi re-
fractaria a sua gente, os temporaes o perseguirâo, e,
perdido o melhor navio, viu-se obrigado a aferrar á
ilha do Maranhão. Corre esta sete legoas de nordeste
a sudoeste, e quatro de noroeste a sudeste 1 . Vasta
bahia a separa de ambos os lados do continente, de
que fica a duas legoas no rumo do oriente, e três no
do poente. Pelo sul está insulada pelo Rio dos Mos-
quitos, que não mede um tiro de mosquete, de orla
a orla. A entrada oriental pela Boca do Piriá, tem
uma barra perigosa, posto que freqüentemente pas-
sada por navios; do lado do occidenle nenhum risco
se corre, por quanto embora haja falta de água na
1
Outros a fazem muito maior, mas Berredo escreve indubitavel-
mente de sticr.cia própria, como governador, que foi, do Maranhão.
02 HISTORIA DO BRAZIL.
leu- vasante, na enchente entrão com segurança embarca-
Rcrredo. „ , ,
20-22. çoes do maior lote.
Aqui foi Rifault bem recebido dos habitantes, que
* erãoTupinambás; passado algum tempo voltou elle
* á Europa, deixando parte da sua gente sob o com-
mando de Carlos des Vaux. O que de Rifault foi feito
não é liquido 1 ; Des Vaux porem ganhou as afíeições
d'estes insulares, que soube persuadir a submetterem-
se aos Francezes, promettendo-lhes protecção, e ins-
trucção na verdadeira religião e nos costumes da
Europa. Preparado assim o terreno para firmar pé na
ilha, foi a França communicar a Henrique IV-o seu
projecto. Escutou o grande Henrique as lindas cou-
zas que se lhe dizião : não querendo porem confiar
implicitamente nas informações d'um aventureiro,
mandou Daniel de Ia Touche, senhor de Ia Ravar-
dière, com Des Vaux, a averiguar a verdade do caso,
promettendo a este que, se tudo fosse como elle pin-
tava, fundaria alli uma boa colônia. Chegados ao Ma-
ranhão, demorárão-se seis mezes : era exactissimo
quanto Des Vaux havia contado, e voltarão a França.
Entretanto linha Henrique sido assassinado, e de-
masiado oecupada com negócios que mais de perto
a interessavão, não tinha a rainha tempo para atten-
der aos dous. Ravardière comtudo sempre obteve
» Crê o P. José de Moraes (Hist. da Comp. de Jesus nas Provín-
cias de Maranhão e Pará), que morrera no mar, victima das suas
piratarias. F. P.
HISTORIA DO RRAZIL. 05
1C11
licença de organizar uma companhia para colonizar -
a ilha. Nicolao de Harlai, senhor de Sancy e barão
de Molle e Gros-Bois, e Francisco, senhor deRasilly
e Aumelles, com elle se associarão. A rainha os no-
meou .por cartas patentes tenentes generaes em nome
d'el-rei christianissimo nas Índias oceidentaes e ter-
ritórios do Brazil. Deu-lhes uma bandeira esplendida
com as armas da França em fundo de azul celeste;
por divisa um navio com ella mesma ao leme, e o
filho á proa, empunhando um ramo de oliveira,
que da n r o d'ella recebera, e por mote Tanli dux
ftnnina facti. E a pedido de Rasilly, que mais por
motivos de piedade do que de ambição tomara parte
na empreza, ordenou ella ao Provincial dePariz que
designasse quatro capuchinhos para irem como mis-
sionários. Como chefe da missão foi Cláudio d'Ab-
beville, que escreveu a historia d'esta jornada.
Ravardière era huguenote e da mesma confissão
muitos dos seus sequazes, não parece porem que
esta differença de religião oceasionasse a menor des- Bci.reil0.
% 111-113,
intelligencia. 1-2012,
Em Cancale na Bretanha, aonde o bispo de San 1312.
Maio foi lançar-lhe a sua benção, se apparelhou a
expedição. A 25 de janeiro de 1612 consagrou o
prelado quatro cruzes, das quaes entregou uma a cada
missionário, benzendo depois as bandeiras e por fim
as armas de Rasilly. Sua principal intenção fora
benzer os navios, mas receou-se que isto apurasse
04 HISTORIA DO BRAZIL.
'«12. demais a paciência aos huguenotcs, c o máo tempo
oflereceu desculpa para deixar aos capuchinhos o
cuidado da ceremonia. Antes de dar á vela fizerão
• todos os aventureiros aos seus officiaes promessa
solemne de obediência, escripla e assignada por cada
um. De tres navios se compunha a esquadra : La Re-
gente, em que ião os dous tenentes generaes Rasilly
e Ravàrdière; La Charlotle, ao commando do barão
de Sancy, filho, ou irmão do terceiro associado; e a
Saiulc Aune, de que era capitão um irmão de Ra-
silly. Não chegava bem a quinhentos homens a força
toda. A 19 de março sahiti a frota; mal deixarão
porto quando cahiu um temporal que dispersando-a
atirou com um navio a Falmouth, com outro a Ply-
mouth, e com o terceiro a Dartmouth. Cada um deu
por perdidos os companheiros; não tardou porem a
saber-se o contrario, e os outros dous barcos vierào
reunir-se á almirante em Plymouth, onde o gover-
nador lhes prestou lão bons officios, que em poucos
B
i26r-ei33. dias poderão proseguir na derrota.
„, . Ao sul da linha encontrarão tres galeões portugue-
Chegao os o i o
F 1 e a
Marântóo° zes que vinhão da índia; nenhuma das frotas, depois
de se terem olhado, julgou prudente vir ás mãos, e
seguiu cada uma o seu rumo. Poucos dias ancorarão
os Francezes na ilha de Fernâo de Noronha, onde
acharão um Portuguez com uns poucos de Tapuyas
de ambos os sexos. Segundo estes mesmos dizião,
tinhão sido para alli desterrados de Pernambuco,
HISTORIA DO BRAZIL. 65
mais parecião porem fugitivos ; os frades facilmente 1612
1

converterão os índios, baptizárão-nos, e unirão em


matrimônio um casal d'elles. Apenas souberão do Beffedo.
fim da expedição, supplicárâo aos Francezes que d'alli
os levassem, proposta em demasia vantajosa para
deixar de ser acceita, pois que esta gente sabia dar
informações sobre o estado do Maranhão.
D'esla ilha sahirão os Francezes na tarde de 8 de
junho, e na manhã do dia 11 avistarão a costa do
Brazil, onde depois de se terem detido por muitos
dias, refrescando apoz tão longa viagem, entrarão á
barra do Periá, o fundearão a doze legoas do Mara-
nhão 2 , perto da ilha dcUpaonmery, depois chamada
de Sancta Anna, nome que Rasilly lhe poz, por ter
alli chegado no dia da sancta. Àchavão-se no mesmo
ancoradouro dous barcos de Dieppe; por estes nada
se soube que indicasse mudança nas disposições dos
Tupinambás, não obstante o que porem julgou-se
prudente que Des Vaux fosso adeante a dar com os
seus amigos antes que avançasse a frota. Havia na
ilha vinte e tres hordas ou aldeias; Des Vaux entrou

1
Do Tractado do Successo do Galeão Sanctiago se veque em 1602,
dez annos antes dVsla jornada, residia n'esta ilha um Portuguez como
feitor com treze ou quatorze escravos negros. Havia alli gado bravo, e
grande numero de ratos (como os chamão) de pernas tão curtas, que
se movião aos saltos. Serião jerboas ? Cap. 10. Historia tragico-
maritima, t. 2.
1
Teve lugar este successo no dia 24 de jull o, seguinte, o testimi:-
nho do referido P. José de Meran. F. P.
ii. 5
66 HISTORIA DO BRAZIL.
1612
- na maior, e sendo recebido com toda a alegria e cor-
dialidade que podia desejar, voltou á esquadra com
novas de que era a sua vinda anciosamenle aguar-
dada.
Entretanto tinhfio Rasilly e os frades feito uma
cruz grande, que este commandante com os princi-
paes da armada levarão ás costas por quasi uma
milha até uma ligeira eminência em Sancta Anna,
onde, benzida, a erguerão, e depois benzida também
a ilha, a dedicarão á Virgem Maria. Bem conhecião
os capuchinhos quanto lhes convinha infundir nos
naturaes respeito ao seu caracter, pelo que alli se
deixarão ficar emquanto Rasilly e Des Vaux prose-
guião com a maior parte da gente para o Maranhão,
e declaravão aos Tupinambás que os padres vindos
de França a instruil-os na verdadeira religião, não
desembarcarião entre elles sem serem certos de que
os receberião com a veneração profunda que lhes
era devida. Em resposta a isto, Japy-Wasu, cacique
principal da ilha l de cerca de cem annos de idade,
mas ainda em" todo o vigor de suas forças, agradeceu
a Rasilly o haver trazido os pagés francezes; por
quanto, dizia elle, quando os maldictos Peros tantas
crueldades contra nós commettéião so nos accusavão
de não adorarmos Deus, mas como o adoraríamos, se

i Claude d'Abbeville o chama chefe de Juniparan, e Grão Bouro


nichaue da ilha.
HISTORIA DO BRAZIL. 67
1 1612.
n.lo nos ensinãoaconhecel-o ? Elle e o seu povo,
accrescenlou, se havião cançado de esperar remédio
da parte da França, e com inedo de seus mortaes ini-
migos os Peros\ resolvido retirarem-se tão longe
pelo sertão dentro, que nunca mais christão os visse,
c alli passarem o resto de seus dias, não curando
mais de campainhas, machados, navalhas, e mais
couzas que soião receber dos Francezes, contentes
1
O que segue é por demais suspeito, para ser inserto no texto :
« Tão bem como os Peros sabemos que existe um ente, creador de
todas as couzas, que é todo bondade, e que foi elle quem nos deu a
alma, que é immortal. Cremos egualmente que pela maldade dos ho-
mens mandou Deus um dilúvio sobre todo o mundo, para castigal-os,
sendo somente preservados um bom paee uma boa mãe, dos quaes todos
descendemos, e nós e vós éramos então uns. Mas algum tempo depois
do dilúvio mandou Deus os seus prophetas barbados a instruir-nos na
sua lei. Estes prophetas offerecéião ao nosso pae duas espadas, uma de
pau, outra de ferro, quedas duas escolhesse uma; achou elle a de ferro
demasiado pezada e optou pela de pau. Mas o pac de que vós descen-
deis, escolheu, n'este mais sábio, a de ferro. E depois fomos desgra-
çados, por que os prophetas, vendo que a nossa nação lhes não dava
credito, fugirão para o eco, deixando os vestígios de suas pessoas e
pés, de cruzes, tud« impresso na rocha perto de Patyòu. Desde então
principiou entre nós a confusão das línguas, que antes d^sso todas
erão uma; e não nós entendendo mais desde essa epocha, começamos
a matar-nos e a comermo-nos uns aos outros, enganados pelo diabo
Jeropary. E para cumulo de nossas misérias vierão os maldictos Peros
tomar-nos o paiz, quasi exterminando a nossa grande e antiga nação,
e reduzindo-nos aos poucos que somos. t>
Toda esta parte do discurso é provavelmente de invenção franceza.
É de primeira intuição que os Tupinambás nenhuma tradição podiâo
ter acerca d'uma espada de ferro, antes de terem visto este metal,
e tão torpamente foi forzada a tradição, para se lhes por na boca, que
a espada de pau é a mais pezada das duas.
2
Denominação dada pelos selvagens aos Portuguezes. F. P.
68 HISTORIA DO BRAZIL.
»*• com a miserável vida que havião vivido seus maiores,
a revolver a terra e cortar arvores com instrumentos
de pedra. «Depois, dirigindo-se a Rasilly, disse:
« Grande fama ganharás por teres deixado paiz tão
bello como a França, abandonando mulher, filhos e
parentes para vir aqui viver; e posto que tão formosa
como a tua não seja a terra, nem possas haver todas
as couzas boas a que estás costumado, comtudo se
considerares a uberdade do torrão, quão cheio é de
aves, e de caça e de fructos, seu mar, seus rios, a
regorgitarem de peixe, e o bravo povo que te obede-
cerá, e te fará conquistar todas as nações vizinhas,
serás contente. Pelo que tange ao nosso alimento,
em breve com elle te habituarás, e conhecerás então
que a nossa farinha em nada o cede ao teu pão, que
muitas vezes hei comido. »
Fundação
Mandou-se agora pelos capuchinhos. Um corsário
de S. Luiz
francez, que costumava depositar aqui a sua rapina,
assistiu com as tripolações de outros trez navios de
Dieppe á ceremonia do desembarque, e offereceu a
todos uma ceia tão lauta á moda franceza, que não
houve molivo para suspirar pelas golodices da Eu-
ropa. Desde logo se principiou a construir um forte
em que se montarão vinte peças de artilharia de
grosso calibre : continguo a elle um armazém para
as mercadorias que havião trazido os Francezes, e a
curta distancia uma casa para os missionários, que
na alegria de suas esperanças'a chamarão convento
HISTORIA DO BRAZIL. 69
de S. Francisco. Benzeu-se a terra para a purificar 1612-
do pestifero paganismo, que por tanto tempo a con-
taminara; plantou-se uma cruz, e Rasilly achou
modos de combinar a cortezania com a religião, cha-
mando o forte S. Luiz em honra do rei e do seu ca-
nonizado avô ; a bahia chamou-a Sancta Maria, com
o que por intermédio da Virgem rendeu uma fineza
B e
á rainha regente. ^ .8°'
Um dos principaes empenhos dos Francezes era aposições
açular a inimizade dos naturaes contra os Portugue- naturL.
zes. Não carecia esta de incitação. As guerras de
Coelho na serra de Ibiapaba, e o seu infame tra-
fico de escravos em Jaguaribe, vivião frescos na me-
mória ainda. Des Vaux e Rasilly andarão de horda
em horda, discorrendo sobre a tyrannia dos Portu-
guezes, e exagerando os benefícios que da protecção
da França se devião esperar. N'uma das aldeias deu
um velho, por nome Mombore-VVasu, uma resposta
de tocar no vivo, contando o que dos Portuguezes se
referia. Principiarão, disse, por traficar, e livre-
mente cohabitárão com as filhas de nossos irmãos de
Pernambuco, que por grande honra o tiverão have-
rem filhos d'elles. Logo parecerão tornar-se escru-
pulosos, dizendo que precizavão d'um pagé que os
casasse, e a final pedirão escravos que lhes cultivas-
sem as terras a elles e ao seu pagé. Pondo assim
claramente diante dos olhos aos seus companheiros,
que os Porluguezes tinhão principiado exactamenlc
70 H I S T O R I A DO R R A Z I L .
1612
por onde começávão agora os Francezes, e tirando a
irrefragnvel conseqüência que estes acabarião por
onde acabarão aquelles, advertiu-os que, aprovei-
tando da experiência, desconfiassem de todos estes
estrangeiros. Rasilly percebeu que não havia so-
plmma que sobrepujasse a ímpressHo immediata
que este velho produzira, e prudentemente achou
escusa para retirar se, mas o effcito foi passageiro,
como era de esperar. Os selvagens somente são tena-
ces nas suas affeições, sejão boas ou más; pouco
acostumados a raciocinar, não podem ter muito
tempo presentes as suas conclusões. Exposta a sua
opinião, era Mombore-Wasu velho demais para sentir
em si o ardor de fazel-a prevalecer; bem depressa
foi pois esquecida. Todos osTupinambás da ilha se
pozerão debaixo da prolecção da França, exemplo
que foi seguido por duas tribus da terra "firme, uma
cm Tapuilapcra com dez aldeias, c outra em Cuma
com onze. Como para legalisar o seu direito a um
paiz de que com o pé de protegel-o vinhão apos-
sar-se, induzirão Ravardière e Rasilly seis dos
caciques, a hastear a bandeira franceza ao lado da
cruz.
Proceder Queixara se Jai.y-Wasu que os Portuguezes lhe
J
dos ' . °
Francezes. matavão os conterrâneos por fenderem os lábios e
trazerem cabellos compridos, c que em sigmil de
ignomínia ropavío a cabeça a quantos subjugavão.
Com mais prudência <e houverão os Francezes a res-
HISTORIA DO RRAZIL. 71
16íl
peito dos costumes dos índios. Se quereis, dizião,
furar as faces, furae-as á vontade; e se gostaes de
pintar a pelle de França vos traremos, cores mais
bcllas do que nenhuma que possuis. Mas para que
fazer o que é tão incommodo? Se no lábio inferior
fosse necessária uma fenda, Deus a teria feito; e se ciaude
d'Abbeville.
furos fossem de algum preslimo nas orelhas, furos ff- 61-
n'ellas teriamos como no nariz; e da mesma sorte se
fosse melhor não termos barba, nenhuma nos cres-
ceria. Os Tupinambás do Maranhão perceberão o
bom senso d'esta linguagem, e diz-se que a escuta-
rão. Forão as couzas indo bem, e os dous comman-
dantes, que procedião com a maior unanimidade,
concordarão agora que fosse Rasilly a França traclar Voa'Fw^ça'.Uy
dos negócios immediatos da colônia; feito o que vol-
taria a tomar sobre si toda a gerencia, indo Ravar-
dière residir na mãe pátria. Obrigou-se este ultimo
a manter tudo no estado em que ficava na ausência
do collega, promovendo lambem com a melhor von-
tade a propagação da fe catholica. Ciauded'Abbeville
foi com Rasilly á Europa, levando seis Tupinambás,
não baptizados, para dar aos Parizienses o especta-
culo da christianização d'cstes selvagens. Esta parte
do plano surtiu maravilhoso cffeito : verdade é que
trez d'clles morrerão pouco depois de se verem em
terra, mas os outros trez fazião um dia de festa,
onde quer que apparecião, e o rei e a rainha regente
l L
^ ^ ' ° Berredo,
lhes forão padrinhos. 175-186.
' 72 HISTORIA DO BRAZIL.
16»3. Infelizmente para os Francezes linha ja o governo
X do Brazil voltado a altenção para o lado do Maranhão,
3
Tostar e muito anles que a menor noticia d'estes entrelopos
na direcção do ^ r r, _„„„ _._
Amazonas. che gasse
a Madrid, ja Gaspar de Souza, o novo go-
vernador, recebia ordem de proseguir na descoberta
e conquista do rio das Amazonas e partes adjacentes,
acenando com promessas de especial favor a todos
os que fossem nesta jornada. Repetidas representa-
ções tinhão a final feito recear a côrle hespanhola
que o Pará ainda fosse invadido por aquelle lado.
Recommendava-se ao governador que fosse estabele-
cer a sua residência em Olinda, donde melhor acce-
lariaa expedição, cujo commando se deu a Jeronymo
de Albuquerque, por ler viajado muito pelos sertões
de Pernambuco, ser versado na lingua tupi, e gozar
Diogo e n l r e a s tribus do norte dos foros de grande prolec-
de Campos, t.
tor e amigo da raça india. Em toda a historia da
America porlugueza e hespanhola, nada sorprehende
tanto como a manifesta insufficicncia dos esforços
invidados e meios empregados para os fins a que se
visava, e os resultados que se colhião. Este arma-
a
e,pedTç!o dc mento, para facilitar o qual teve o governador gene-
que.
d-AÍbúqTr- ral do Brazil ordem de mudar de residência, no-
meando-separa commandante um homem da primeira
nobreza e importância no paiz, compoz-se de sos cem
homens en quatro navios. Jeronymo fez-se de vela
do Recife, no Ceará tomou Martim Soares, deixando
em seu logar Estevão de Campos, c seguiu para o
HISTORIA DO RRAZ1L 77.
l 1615
Buraco das Tartarugas que deságua nos baixios
ou parcel de Jericoacoara; alli plantou na foz do rio
uma fortaleza com palissada, que chamou de Nossa
Senhora do Rosário, e despachou Martim Soares com
um dos navios a reconhecer a ilha do Maranhão.
Tendo aguardado por muito tempo a volta d'este, ou
novas suas, cançou-se Jeronymo de esperar, e
deixando quarenta soldados ás ordens do sobrinho,
regressou por terra a Pernambuco, onde chegou
umas dez semanas depois de ler d'alli sabido, com
grande desprazer do governador, que d'elle presu-
, ,, . Berredo.
miera mais zelo e m e l h o r e s serviços. 188-193.
Aprestavão p o r esle tempo os Hollandezes u m a r - Diogo
. . . . . de Campos
mamento que se suppunha dirigido contra estas
costas. Eslava então em Madrid requerendo o galar-
dão de seus longos serviços, Diogo de Campos Mo-
reno, sargento mór do Brazil, e próximo parente de
Martim Soares. Como suecede a homens que so teem
serviços que fazer valer, nada mais que promessas
podia elle obler: não escrupulizou porem a corte em
exigir d'elle novos serviços, negando-Ihe a recom-
pensa dos antigos, e convidou-o a ir cooperar para o
projecto de colonizar o Maranhão. Qualrocenlos sol-
dados se lhe promettérão apenas chegasse a Lisboa,
mas depois de tel-os por mezes esperado n'aquella
cidade, teve de parjircom os que pode haver, que
1
Ou antes Bahia das Tartarugas, como a chamam os nossos chro-
nistas. F. P.
74 HISTORIA DO RRAZIL.
1G13
- não forão nem a quarta parte d'aquelle numero.
Entrou no Recife em maio de 1614, e achou outra
<0,
Ma°ranMo. í). expedição apercebemlo-se debaixo do mesmo com-
194-c0' mandante e para o mesmo intento,
fi investido Havião-se descuidado do novo forte, deixando a
diEario. guarnição tres mezes sem provisões alem das que
íei i. por si mesma podia obter. Comtudo tinha ella repel-
lido um formidável ataque dos indígenas, obri-
gando-osa supplicar a paz. Estas boas novas vierão
estimular o governador que immediatamenle mandou
um caravelf o de reforço para aquelle presidio, com
trezentos soldados e material de toda a espécie,
excepto que por indesculpável negligencia d'aquelles
a cujo cargo estava abastecer o navio, e d'aquelles
cuja obrigação era ver como isto se fazia, sahiu o
barco com dous arrateis apenas de pólvora a bordo.
Jamais reforço chegou tão opportuno. Tres dias de-
pois appareccu um navio francez commandado pelo
senhor de Pratz, com doze capuchinhos e trezentos
o ,i0 ju„ho. homens para a colônia da ilha do Maranhão. Tinhão
sabido do mingoado estado da guarnição, e contando
achar estas obras de madeira defendidas por sos
vinte e cinco Portuguezes meio mortos de fome, des-
embarcarão duzentos homens, e antes de travada a
peleja, cantarão a vicloria. Os Portuguezes porem,
guarnecendo um passo, recháçarão-nos para bordo.
Martim Mais de anno era decorrido desde que Martim
Soares im- i
pC a r a Soares fôra mím
Eu?op a . ° «ado a reconhecer a ilha do Mara-
HISTORIA DO BBAZIL. 75
lcu
nhãosem que d'elle se houvesse nova; nem consta
que o governo do Brazil tivesse conhecimento do
estabelecimento alli formado pelos Francezes, em
quanto não chegarão noticias d'cste capitão. Tinha
este descoberta a colônia, e reconhecida bem a sua
força, procurado voltar contra a monção. Couza é
esta quasi impossível; tão constantes soprão os ventos
em sentido opposlo, que uma briza do Maranhão para
Pernambuco se olha para assim dizer como mila-
grosa. Perdido na tentativa um mastro, teve a final
de demandar a Hespanha, como o caminho mais
curto para casa; d'alli despachou desde logo o piloto
com a noticia para o Brazil, e foi elle mesmo expor
o caso ao ministro em Madrid. Sabido isto, expe-
dirão-se novos despachos a Souza com ordem posi-
tiva de dirigir toda a sua altenção para a conquista
do Maranhão. Havia muito que se trabalhava nos
preparativos; Jeronymo de Albuquerque estava na
Parahyba, levantando um corpo de índios, e Diogo
de Campos procurando debalde transportes para
levar as tropas, de que havia trezentos homens sem
i ,. . , , Berredo.
contar os índios e munições para abastecel-as. §201-8.
Novas difficuldades occorrérão; so dos dízimos se segunda
podião tirar os fundos para a jornada, e logo n'esta de jerony.ro
1 l J
° de Albuqucr-
que
oceasião chegou uma ordem para remissão de tal -
imposto. Impossível era cumprir o decreto, c o go-
vernador appressou a partida das forças. Sahirâo
immedialamenle dous caravelões a fazer juneção
76 HISTORIA DO BRAZIL.
10 u com Albuquerque, que se suppunha dever achar-se
no Rio Grande (do norte). Por elles novas instrucções
se mandarão; principiava o governador a recear que
os seus projectos fossem longe demais, c por isso limi-
tou as operações ao lerrilorio entre o rio Tiloya e a
ilha do Periá, onde Albuquerque devia fortificar-se,
não avançando mais sem ordem d'clle ou da corte.
Grandes couzas se esperavão d'uma expedição em que
se desenvolvera actividade tão superior á costumada.
Gregorio Fragoso d'Albuquerque, sobrinho do com-
mandante, deu o nobre exemplo de acceitar um posio
de capitão com soldo de soldado, c todos os demais
ofíiciaes o.imitarão. Quatro companhias se formar,*o
de sessenta praças cada uma; os voluntários formavão
corpo separado, os recrutas forão retidos nas forta-
lezas e na prizão até poderem ser mcttidos a bordo.
Traclava-se exactamenle de embarcar, quando do Rio
de Janeiro chegarão alguns navios carregados de
farinha: logo requereu Diogo de Campos instante-
mente mais algumas provisões, ponderando que o
armamento d'ellas carecia para seis mezes, sendo
imprudente confiar em matéria de mantença nas
mais sinceras promessas de fornecimento. Em conse-
qüência d'esle requerimento obteve seis mil alquei-
res, e mais animada sahiu a expedição, posto que
miseravelmente provida sem vinho, azeite, me-
dicamentos, medico nem cirurgiào-barbeiro. De soe-
corros espiriluaes comtudo não levava mingoa. Dous
HISTORIA DO BRAZIL. 77
l61í
capuchinhos de Saneto Antônio havião offerecido vo- -
luntarios os seus serviços: o P. Fr. Cosme de S. Da-
miâo era um, e o outro o P. Fr. Manoel da Piedade,
Brazileiro de nascimento, de família nobre, e versado
na 1 ingua tupi. Nenhuma ajuda receberão do gover-
nador estes missionários, o que bem mostra qual não
seria a penúria do thesouro; pessoas pias comtudo
os supprirão não so com paramentos e alfaias de
egreja, mas também com abundantes provisões de
que poderão soecorrer cfficazmente os aventureiros.
Com sua affabilidade, zelo e não fingida virtude
ganharão e merecerão estes frades a boa vontade de
todo o armamento. Animavão e acoroçoavão a gente,
mas ao mesmo tempo tão perfeitamente conhecião a
deficiência de tudo o necessário, que chamarão esta ,
1
Jornada do
;i jornada milagrosa. Maranhão.
Encontrarão no caminho o navio que soecorrera o Junc _o
forte das Tartarugas, e que havia setenta e cinco Aibuqúerqm
dias forcejava por montar Pernambuco. No terceiro
dia alcançarão o Rio Grande, e passando a salva-
mento sua perigosa barra, derão fundo dentro. Jero-
nymo de Albuquerque ja era chegado, e aqui pas-
sarão os dous' commandantes revista ás suas forças
reunidas; compunhão-se de dous galeões, uma cara-
vela e cinco caravelões, não sendo mais do trezentos
os soldados; de índios havia apenas duzentos e trinta
e quatro ás ordens de doze caciques, embora se sou-
besse que nas dependências do forte do Rio Grande
78 HISTORIA DO BRAZIL.
lült
- se não contavão menos de quinhentos frecheiros.
Camarão1, cacique cujo nome repetidas vezes tem de
apparecer d'aqui por deante, devia ir reunir-se-lhes
com mais quarenta marchando por terra. As mulhe-
res e crianças dos alliados erão mais de trezentas.
Estava tudo prompto para o embarque, quando a
Albuquerque occorreu que os navios erão demasiada-
mente pequenos, que havia risco de irem a pique,
e que, encontrando-se qualquer dos piratas que de
continuo infestavão a costa, seria certa a ruina, pois
que as embarcações não erão de combate, nem se
poderião montar as tres pecinhas, em que consistia
toda a artilharia. Por todas estas razões resolveu
marchar por terra com a maior parte das tropas.
Diogo de Campos admittiu a força da argumentação,
observou porem que referindo-se a objecção mais
importante á incapacidade dos navios, cumpriria
experimenlal-a, embarcando a gente, pois que dou-
tra forma se não poderião dar ao governador boas
contas. Também fez ver, que com este novo arranjo
seria Jeronymo o responsável pela segurança das
duas parles da expedição, ambas expostas a perigo,
susceptível a partida de terra de soffrer" falta de água
e de mantimento antes de chegar ao forte do Ceará,

1
Nào sei se será este o nome tupi, ou a sua traducção, ou, o que
é mais provável, uma alcunha posta pelos Portuguezes*.

* Não foi alcunha e sim traducção litteral da palavra indigena Potex.


F. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 79
logar aprazado para a nova juncção, e a de mar 1Gli
segura preza dos corsários, se os encontrasse, pri-
vada como ia da sua principal força.
Depois de perdidos dous dias em hesitações cedeu ^§1° dL
o commandante ao pezo d'cstas razões. Outros dous Tartaru°as-
depois da sahida do Rio Grande, entrou a expedição
na bahia delguape. Entretanto viera o enjôo do mar
em reforço da opinião de Jeronymo de Albuquerque;
desembarcou elle pois com os índios, c apoz dous
dias de marcha foi reunir-se á frota em Nossa Senhora
do Amparo, d'onde se despachou para o forte das
Tartarugas um navio com o annuncio da chegada.
Havia quatorze mezes que o capitão do presidio do
Ceará esperava esta expedição, a que se reunia com
a flor da sua gente, ficando cm seus logares outros
que bem estimarão ver-se livres de navios tão atulha-
dos. Chegou também Camarão, vindo do Rio Grande,
e lendo soffrido tanto pelo caminho, que d'isto fez
pretexto para obter licença de ficar alli, a cevar-se,
em phrase selvagem, com seu irmlo Jacauna, o
amigo de Martim Soares. Mas toda a dialectica de
Albuquerque foi perdida para resolver Jacauna a
mandar mais de vinte índios ás ordens d'um de seus
filhos, triste compensação por quarenta desertores
que no território d'esle se havião refugiado; e nem
isto se conseguiu sem que o commandante deixasse
alli algumas de suas índias, e um filho seu próprio
de dous annos de edade como reféns e penhores da
80 HISTORIA DO BRAZIL.
1614
sua boa fé, tão profunda impressão deixara nos âni-
mos d'estes Tapuyas a perfídia de Pero Coelho.
Ma estação era esta; a vizinhança de aldeias de
índios relaxava a disciplina, o logar era insalubre, e
os ratos roião os cabos. Passou-se Diogo de Campos
pois para a bahia de Paramerim, trez graus ao sul
da linha, e alli desembarcou a sua gente, aguar-
dando o commandante. Chegado este, ainda cinco
dias se gastarão antes que outra vez se podessem
reunir os aluados; dobrarão então a ponta grande
do parcel de Jericoacoara (que é do mais fino jaspe
multicor) e desembarcarão no forte ou presidio das
Tartarugas. Ei a este um péssimo logar para os navios
ainda que os Francezes o frequentavâo, pois não lhes
offerecia abrigo. Albuquerque pensou que o rio Ca-
mussy seria mais seguro ancoradouro, mas exami-
nada achou-se tão difficil a entrada e tão pobre a
Berredo
220-34. terra, que melhor pareceu ficar onde se estava.
Decepção Antes de avançar mais convinha grangear a boa
Grão Diabo, vontade dos Tapuyas da Serra de Ibiapaba, com os
quaes de novo se havião travado relações amigáveis,
e dos Taramambezes de Titoya, que Martim Soares
linha conciliado ao ir reconhecer o estado da ilha do
Maranhão. Da sua amizade não se esperavão grandes
couzas, mas teria sido perigosissima a sua inimizade,
caso tivessem os Portuguezes de seguir por terra.
Mandou-se chamar o poderoso regulo Juripariguazu,
o Grão Diabo, pensando Albuquerque convencel-o
HISTORIA DO BRAZIL. 81
1014
de que era este commeltimento de egual interesse -
para ambos, e obter d'elle os soccorros ja prometti-
dos, quando não contava com que viessem a ser pre-
cizos. Mas os que alli tinhão estado de guarnição
logo asseverarão ao commandante que erão inteira-
mente vãs taes esperanças, e que o Grão Diabo não
poderia achar nome que melhor lhe assentasse. Muito
não havia ainda que elle, á força de instâncias, ai-'
cançara dous soldados portuguezes que o ajudassem
contra outros Tapuyas; e ganha a victoria, graças a
este reforço, edevorados os prizioneiros, teria comido
também os dous auxiliares, a não ter sido sua mulher
Itabú, que a muito custo o pôde dissuadir do intento.
Ouvido isto, dispoz-se Albuquerque a receber uma
resposta evasiva, e a com ella contentar-se. Por con-
seguinte, quando dous embaixadores do Grão Diabo
vierão dizer que uma moléstia contagiosa lhe estava
dizimando o povo, mas que apenas esta cessasse,
cumpriria elle a promessa, o commandante julgou
prudente dar-se por satisfeito e despedil-os presen-
teados.
A máxima mais commum na boca d'um Portu- ChegSo
, , _ , 7 - i á illia do

guez e paciência quando nao lia remédio. Apoz a nova Periá.


decepção consolárâo-se os aventureiros, praclicando .
esta tão prestante virtude, e recommendando a mal-
aventurada empreza a Deus, e ás orações dos capu-
chinhos. Tiverão porem o conforto de ouvir a pri-
meira missa que jamais se disse na bahia de Para-
ti. 6
82 HISTORIA DO BRAZIL.
4614. merim. Com missa cantada e tangeres de flautas
celebrarão os frades o dia do seu patriarcha San
Francisco, commungando muita gente e assistindo
todos ao serviço divino com extrema alegria e devo-
ção; e no domingo seguinte, dia de Nossa Senhora
do Rosário, pregou Fr. Manoel o primeiro sermão
que retumbou por aquellas praias, e também o pri-
meiro que o pregador havia composto. Concluída a
practica, houve revista geral, parada e combate si-
mulado em honra da sancta. Todas estas couzas ani-
mavão e divertião o povo, levantando-lhe os espíritos
quando mais carecião de acoroçoamento. A falta dos
soccorros com que havia contado aqui, tornava a
expedição muito mais fraca do que se calculara; os
índios das vizinhanças do Maranhão estarião por sem
duvida em alliança com os Francezes, nem se podia
esperar cooperação ao avançar. Por outro lado, se
os Portuguezes se retirassem, seria com perda da
reputação, e deixando expostas as fortalezas. Reuniu-
se um concelho, e a resolução unanime foi de forti-
ficar o rio Titoya, primeiro logar de que rezavão as
instrucçõês. Chamárão-se os pilotos, e soube-se que
nenhum so d'entre elles conhecia a entrada da cor-
. rente. Nunca em tal se havia pensado. Um certo Se-
bastião Martins affirmou conhecer o porto do Periá,
ilhota que também figurava nas instrucçõês, e para
lá se resolveu seguir. Embarcou a gente sem mur-
murar, posto que em navios tão pouco próprios para
HISTORIA DO RRAZIL. 83
transportes, que não havia onde deilar-se de noute, t614
nem outro mantimento, que esperar a bordo, alem
de farinha detnandioca e água.
Na madrugada seguinte ao dia da sahida, disse
Sebastião Martins que a terra que se avistava ficava
a Ires legoas do Periá; os outros pilotos declararão
não a reconhecerem, e elle próprio d'ahi a pouco
confessou haver-se enganado, mas, fosse o vento mais
fresco, que toda a frota se teria provavelmente per-
dido. Affastou-seelle de novo da costa, largando todo
o panno, pois Martins calculou agora que ainda fi-
cava a mais de desazeis legoas o porto. Impossível
era ganhal-o senão com uma hora de noute pelo
menos; com tudo nada mais se podia fazer do que
demandal-o, e entral-o com o escuro, n.lo conhe-
cendo ninguém outro ancoradouro onde aguardar o
dia. Era favorável o vento; atinou-se com o canal,
e por elle se passou a salvamento, ainda que tocando
freqüentemente em bancos de areia \ Tão senhora
de si era porem esta gente, que ao roçarem com a
quilha as embarcações, nenhuma voz se ouvia, senão
a do commando, não fosse algum desnecessário ala- *
rido aterrar os que atraz vinhão, pondo-os assim em Berredo
238-42.
1
Para se julgar da boa fortuna que teve a expedição, basta ver o r o -
teiro que Pimentel dá para esta perigosa navegação : « Com toda a m;i-
ruja no convés e pela enxarcia entrae de N. E. para S. 0. entre cachopo
e cachopo, evitando quanto virdes, e apenas vos achardes dentro da
penedia, tomae o prumo na mão, e não temaes, governando para
o Cabedelo, defronte do qual dareis fundo. » Piloto do Brazil, p. 52.
84 HISTORIA DO BRAZIL.
Jorltdí do m a ' o r perigo. A's dez horas lançarão ferro tres legoas
M n 0 ri
3Í 3i ° o acima.
irresoiução Desde logo saltarão em terra os cfcus comman
quequer" dantes com parte das tropas, para assegurarem n;
manhã seguinte o desembarque ao resto, caso appa
recesse opposição. Ao romper o dia viu-se que en
deserta a ilha; tomou-se posse d'ella com as cere
monias do costume, e Francisco de Frias, o enge
nheiro em chefe, poz-se a catar sitio em que plantai
um forte. Achou muitas posições boas, mas em Iodai
faltava a água. Fácil era obtel-a, abrindo poços, mas
os soldados que havião estado de guarnição em Nossa
Senhora do Rosário, ao uso de tal água altribuião
todas as moléstias que tinhão soffrido. Correu de
boca em boca a descripção que fazião dos seus pade-
cimentos, e a ilha do Periá a todos se tornou logo
odiosa. Olhavão-na como logar necessariamente mor-
tal, e disfarçando o medo com ostentação de bravura,
clamarão que era mister buscar posição mais perto
do inimigo, que alli não havia que combater senão
os animaes ferozes, e morrer de sede. A' lesta d'estes
* berradores achava-se o alferes Sebastião Pereira,
quiçá animado com ver que Albuquerque para a
mesma opinião se inclinava. Persuadira-se este com-
mandante que fácil lhe seria chamar a si os Tupi-
nambás do Maranhão, fazendo-os romper a alliança
franceza, e indecizo sobre o que faria, nenhuma
medida tomava para defeza da posição que oecupava.
HISTORIA DO RRAZ1L. • 85
1614
Diogo de Campos, soldado mais velho, e a quem a -
experiência ensinara a precaver-se sempre dos peri-
gos, conjurou-o que completasse as linhas ja princi-
piadas. A isto respondia o outro que não via inimigo
de quem acautelarse, pois que, quanto aos Francezes
do Maranhão, ou toda a historia não passava d'uma
invenção de Martim Soares, ou, se alli os havia, tão
poucos erão que não se atreviâo a mexer-se dos seus
fortes. Absolutamente impossível era, dizia elle, que
povo tão amestrado na guerra como os Francezes,
deixasse aberto este porlo, tão perto d'elles, e impor-
tante como era, se tivesse forças com que senhoreal-o.
Estava pois resolvido a avançar direito sobre o Ma-
ranhão, ultimo filo do governador eda corto de Ma-
drid, e se a navegação parecesse por demais perigosa
para os galeões, so com os caravelões se iria.
Não maravilhou esla linguagem menos a Diogo de Aconselha
Di e
Campos, do que o mortificou. Replicou que era pre- Síu7
a ilha.
cipitado o projecto de investir a ilha do Maranhão,
abandonada a estação que se occupava, e que asse-
gurava livre accesso a ella. Em todo o caso, fossem
exactas ou não as noticias que de Martim Soares se
tinhão, não seria perder tempo fortificar esta posi-
ção, que, mesmo segundo os argumentos de Albu-
querque, era essencial para segurança do Maranhão.
Cumpria recordar que a alterosa nau, que accom-
mettera o presidio das Tartarugas, devia estar agora
fundeada junclo do estabelecimento francez, com
86 HISTORIA DO BRAZIL.
muitos outros navios de maior ou menor força, e que
mal iria á frota, desapercebida como vinha para en-
trar em acção, se com elles se encontrasse. O melhor
que fazer podião, craforliíicarem-se onde estavão, o
mandar recado tonto a Portugal como ao governa-
dor. Por mais poderosos que fossem os Francezes,
não poderião tolher-lhes o receberem reforços, em
quanto mantivessem aquelle posto; e os Tupinambás
mettidos no interesse da França, sabendo que os
Portuguezes vinhão aluados com seus morlaes e ter-
ríveis inimigos os Taramambazes, mais se horroii-
zarião ainda d'esta alliança do que da força das ar-
Berredo.
§ 247. mas contrarias
sahe Rangei Parecerão estas razões ter algum pezo sobre o
r
a um , °
r Ci animo ue
mento " Albuquerque, que n'um bote de seis remos
mandou outros tantos soldados a reconhecer a ilha
do Maranhão, examinar-lhe a barra, e, sendo possí-
vel, apanhar um prizioneiro. Foi commandando a
partida Belchior.Rangel, natural do Rio de Janeiro,
mancebo de grandes esperanças, e mui versado em
grande numero de línguas indígenas. Na manha
seguinte principiou o commandante a buscar logar
para o seu acampamento, tomando comsigo Diogo
de Campos; pouco faltou porem que a este se aca-
basse a paciência, vendo quatro dias perdidos em
tão improfrcuas e frivolas delongas, sem que nas
trincheiras se desse uma enxadada. De nada serviiío
suas exclamações conlra esta inqualificável impru-
HISTORIA DO RRAZIL. 87
1614
dencia, até que com a longa ausência de Rangel -
principiou o próprio Albuquerque a inquietar-se, e
mandando chamar Campos á sua tenda, disse-lhe
que receava ler sido tomado o bote, mas assim como
assim cumpria prover á própria segurança. Espe-
rando que o outro não teria tempo de mudar de pro-
pósito chamou o ajudante general o engenheiro em
chefe, e sahirão ambos, embora fosse noute, a pro-
curar posição mais perto da barra. Acharão uma
com um lago de água doce ao lado: deu-se ordem
para que logo de madrugada começassem os traba-
lhos, mas nesse mesmo momento appareceu uma luz
á entrada da bahia, e chegou Rangel com o seu bote.
A parte que deu foi ter explorado todos os canaes
perto do Maranhão sem ter visto gente nem embar-
cação franceza; mas que defronte d'aquella ilha
havia um logar chamado Guaxenduba mui próprio
tanto para acampar como para manter a tropa, re-
gado como era por delicioso rio, que tornava possí-
vel toda a cultura. Perfeitamente a coberto do ini-
migo ficava o caminho para alli, torcendo-se por
entre muitas ilhas que encobrião totalmente a pas-
sagem. Em quanto Rangel estava contando isto ao
commandante, ouvirão os soldados o mesmo da boca
dos companheiros; renovarão pois os clamores contra
o plano de alli se entrincheirarem, e, esquecida toda
a disciplina, insistirão por que os conduzissem mais
perto do inimigo. Sem tentar de fôrma alguma fazer
88 HISTORIA DO RRAZIL.
1614
- calar estes clamores, recolheu-se Albuquerque á sua
tenda.
Fassão-se Diogo de Campos contava ainda que as obras prin-
r.uaxenduba. cipiarião de manhã, segundo a ultima resolução
tomada. Mas o catavento da opinião de Albuquerque
gyrara de novo, e apoz mais dous dias de irresolução
e ócio, deu elle ordem de tornar a embarcar, e
aproar para Guaxenduba, em despeito de todas as
dissuasões do seu immediato. Tão satisfeito estava o
commandante com as noticias que Rangel trouxera,
e tão confiado na sua imaginaria influencia sobre as
tribus indígenas, que ao desfraldarem-se as velas
para sahir, offereceu a Diogo de Campos a aposta
d'um par de meias de seda, em como antes de sab-
bado teria alguns índios do Maranhão ás suas ordens.
Respondeu este: « Muito folgarei com perdel-as, pelo
grande regosijo que todos teremos em tal caso; mas
lembrae-vos bem, que quererei recebel-as, se
ganho.»
Por entre tão innumeravel multidão de ilhas se-
guia a derrota, que por esta razão, e por ser dia de
sancta Ursula e das suas companheiras, poz-se o
nome de Onze mil Virgens ao logar onde se passou
a primeira noute. Quatro dias levou esta penosa pas-
sagem, tocando muitas vezes os navios, e encalhando
algumas no lodo e areia branda, em que as quilhas
penetravão tanto adentro que os navios ficavão apru-
mados, quando, retirando-se, os deixava a maré em
HISTORIA DO BRAZIL. 89
d614
secco. A final porem ganhou-se o porto, indo a frota
tão vistosa de bandeiras, flammulas e galhardetes,
que do Maranhão se deu por ella, e logo uma linha
de fogos ao longo da costa communicou o rebate ao
forte de S. Luiz. Não custou muito a Diogo de Cam-
pos interpretar este signal. « Quer parecer-me,
senhor, » disse para Albuquerque, « que lenho ga-
nhas as meias, e que por índios alliados vereis Fran-
cezes inimigos. Não são accidentaes estes fogos, nem
obra de selvagens. Tractemos pois de entrincheirar-
nos sem demora, e de descarregar os barcos. » Des-
embarcarão os Portuguezes sem opposição, e resol-
verão alli fortificar-se. Antes que podesse o engenheiro
dar principio á obra, outra vez balanceou a resolu-
ção de Albuquerque. Primeiro opinava por uma
simples palissada nas matas á moda dos índios,
quaes se usavão no sertão, sendo estas, dizia, as
únicas fortalezas precizas em taes paragens. Depois
tinhão-lhe alguns dos Tapuyas falado n'outra posição
sobre o rio Mony, perto da foz de Itapicurú, que
erradamente tem sido por vezes chamado o Maranhão,
e para alli se inclinava a passar-se. Fizerão-no Diogo
e o engenheiro a final abandonar tal projecto, e
deixar-se ficar onde estava; e dous dias depois da
chegada mandou que os frades tirassem sortes á
missa, para determinar debaixo de que invocação se
construiria o forte. Sahiu a Natividade de Nossa
Senhora, e n'essa mesma tarde se principiarão as
90 HISTORIA DO BRAZIL.
16 4
i obras, debaixo da soberana protecção da sancta, como
•28 d'e.ut.7 ge cria>

Presumrçuo Não tardou a vir da ilha um cacique tupinambá,


querqüc. queixando-se do tractamento recebido dos Francezes
e dando conta das forças d'elles. O que refcrião os
companheiros não combinava com as suas palavras,
mas Albuquerque era fácil em acreditar o que ia
de accordo com as suas próprias idéias, e difficil em
dar ouvidos ao que as conirariava. Offereceu-se este
selvagem'a chamar ao partido portuguez algumas
das hordas do Maranhão, e o general, confiando cego
na veracidade d'estas falas, mandou com elle cinco
dos seus mais seguros alliados, retendo como reféns
dous da comitiva do índio, que se dizião filhos dou-
tro cacique da ilha. Ficou agora persuadido que so
com tractar assim com os naturaes, obteria posse da
ilha, nem todas as advertências de Diogo de Campos
lhe poderão abalar a absurda confiança. Ainda em
bem que a sua enfatuação não impediu o progresso
dos trabalhos, assestárão-se as poucas peças que
havia, e levantárão-se as obras exteriores. Em quanto
assim estavão empregados, aventurárão-se algumas
mulheres e crianças dos índios imprudentemente
fora do arraial, e embora estivessem a pequena dis-
tancia, desembarcou uma partida de selvagens da
ilha, e cahiu sobre ellas. Principiarão por matar c
desmembrar quatro raparigas com horrível barbari-
dade; um Tapuya, que por acaso se achava perto,
HISTORIA DO RRAZIL. 91
1G14,
tentando defendel-as, teve a mesma sorte, mas estava
dado o rebate, e elles retirarão se a toda a pressa com
os prizioneiros. Entre estes ião a mulher e filho de
Mandiocapua, um dos caciques dos Tabajares. Adean-
tando-se a todos os seus companheiros, atacou elle
os inimigos antes que podessem largar na canoa, e
mortos dous e alerrados os outros, galhardamente
libertou os prizioneiros, sendo ja senhor da embar-
cação, quando lhe chegarão em auxilio os Portugue-
zes e a sua própria gente.
São tão raros entre selvagens os exemplos de vir-
tude, que quando se dão cumpre memoral-os por
amor da natureza humana deshonrada nas particu-
laridades da vida selvática. A mulher de Mandiocapua
atirou-se ao pescoço de seu marido accezo em cólera,
supplicando-lhe a vida do chefe dos Tupinambás, a
cuja intervenção devião cila e o filho as suas. Foi
pois poupado o Tupinambá, recebendo os seus com-
panheiros o merecido galardão de suas façanhas.
Pozerão-no a ferros, c a Tapuya agradecida com soli-
citude e carinho o suppria todos os dias do necessário
mantimento. Vencido d'esta bondade e do bom tracta-
mento que recebia pela humanidade que elle pró-
prio havia mostrado, de sua livre e espontânea von-
Informações
tade contou aos Portuguezes quanto sabia da forca verídicas
o i •> ,j um

dos Francezes e das medidas que estavão tomando. $$££l™


Todos os passos, disse, por água e por terra, estavão
tomados pelo inimigo, para cortar a retirada aos
92 HISTORIA DO RRAZIL.
1014. Portuguezes; os Tupinambás, que os tinh,\o vindo
visitar, e os cinco índios que os acompanharão, jazião
em ferros no forte de S. Luiz, onde havião sido postos
a tormenlos para confessarem quanlo[sabião. Accres-
centou que na manhã seguinte virião duas lanchas
armadas a reconhecer o acampamento, que breve-
mente seria accommettido, e que o apparecimento
d'estas embarcações confirmaria a verdade do que
dizia. Não erão tão fáceis de abalar como as suas re-
soluções as esperanças de Albuquerque; estava ainda
persuadido que os insulanos para elle se passarião,
acreditando que so a precaução dos Francezes em
bloquear os portos, impedia que elles se não tivessem
ainda declarado a seu favor. Comtudo até ao ponto
de mandar aprestar dous caravelões que levassem
Jornada
do Maranhão, despachos a Pernambuco, ainda reconheceu elle o
40-42.
257-2G2. perigo da sua situação
Na outra manhã apparecérão effectivamente as
duas lanchas, como o prizioneiro annunciara; e
d'um forte chamado de S. José, cm Ilapary, na mar-
gem opposta, dispararão os Francezes em signal de
guerra duas peças, a que com egual descarga res-
ponderão os Portuguezes, içando todas as bandeiras.
Coma maré da tarde approximou-se uma das lanchas
a reconhecer, trazendo a bordo vinte e cinco homens,
ao commando do senhor de Pralz, official distincto,
c gentilhomem da câmara d'el-rei de França. Man-
dou Albuquerque a atacal-os, mas, demandando a
HISTORIA DO BRAZIL. 95
lancha pouca água, metterão-se os Francezes entre
os baixios, aonde não foi possivel perseguil-os. Tres
dias dep<iis sahirão, comboiados por outros tres, os
caravelões, que levavão officios para Pernambuco,
sem que uma grande nau franceza, fundeada na
bahia de Arassagi, podesse interceptar a volta do
comboi que lhe passou a barlavento. Tornou-se tão
borrascoso o tempo que os Francezes, rebentando
dous cabos, e perdendo dous ferros, derão-se por
felizes com poderem recolher-se a S. Luiz. Não tive-
rão os Portuguezes então consciência do perigo a
que havião escapado, mas Diogo de Campos diz que
fora esta uma das maiores mercês da Providencia
durante toda a jornada. Pouco depois tremulou uma Traição dos
Francezes.
bandeira branca sobre um banco de areia no meio
do canal deGuaxenduba.O commandante, suppondo
isto obra dos insulanos indígenas, mandou Rangel
n'um dos caravelões com uma jangada, na qual che-
gar ao banco, quando o navio não podesse avançar
mais. Ja elle eslava com a sua gente na jangada,
quando os soldados recusarão desembarcar, sem da
lealdade que com elles se usaria, terem melhor
prova do que a branca bandeira dos Francezes, pois
ja muitos d'estes se podião distinguir disfarçados
entre os índios que se preparavão para recebel-os.
Effectivamente rompeu logo vivo fogo de mosquetaria
contra os Portuguezes, e se a lancha se não desse
pressa em soccorrel-os, todos terião cahido prizio-
94 HISTORIA DO RRAZIL.
mi
- neiros, único fito dos Francezes com este baixo pro-
cedimento. Indignado como estava Albuquerque
d'esta violação das leis geraes da guerra, que é do
interesse de todas as nações observar, imputou-a
toda aos Francezes, continuando a crer que os Tupi-
nambás secretamente o favorecião.
Cheia d'estes insulanos não tardou a atracar uma
canoa grande a Mamuna, perto do forte d'Albuquer-
que; sorprehendidos os selvagens, atirárão-se dous
a nado, atravessando o canal que mede duas legoas
de largura; o resto entregou-se aos Portuguezes, e
com uma dissimulação, que a fuga dos companhei-
ros devia revelar, fingirão ter vindo amigos e não
prizioneiros. Deixou-se o commandante embair por
este atrevido artificio, e tractando excellentemente
os supposlos hospedes, deixou-os ir na sua própria
canoa. Mas tinha um d'esles homens a mãe em Per-
nambuco, provavelmente escrava alli, ena esperança
de tornar a vel-a, recusou ir-se com os companheiros.
Confessou este homem ao capuchinho Fr. Manoel da
Piedade, que a canoa tinha vindo a um reconheci-
mento, que na manhã seguinte atacarião os France-
zes os navios, e, tomando-os, como confiadamente
esperavão, passarião a investir o forte por mar e
Berredo.
263-9. por terra.
Quer campos Correu o frade immediatamente a dar avizo d'islo
os navios, a Diogo de Campos. Fechava ja a noute, mas este,
reunindo á pressa boa parte dos soldados, mandou
HISTORIA DO BRAZIL. 95
16U
ao commandante recado que ia para bordo dos na- -
vios, a defendel-os até á ultima gota de sangue. A
ponlo de embarcar eslava elle ja, quando appareceu
Albuquerque na ribeira a retel-o, dizendo que não
se havia de sacrificar a gente na defeza de quatro
pranchas podres, convindo sim poupal-a para manter
aquelle paiz, de que elle em nome do rei tomara
posse. Em resposta perguntou-lhe Campos cheio de
cólera, que contas daria ao rei de tal perda, e do
desdouro que colherião as armas portuguezas, espe-
cialmente aos olhos dos Tapuyas? A isto retrucou o
commandante, que quanto a dar contas ao rei, sobre
si tomava esse encargo, e que a gloria das armas
portuguezas não carecia de nova prova, mas antes
esperava firmal-a exterminando a final estes France-
cezes. E mandou alar á margem os navios, com a
Berredo.
proa para terra. 220,1.
Desde o primeiro apparecimento dos Portuguezes Tomão
em Guaxenduba premeditava Ravardière este ataque, t r e s '""^
faltavão-lhe porem informações sobre as forças e
meios de defeza do inimigo. Umas obteve-asdos cinco
Tapuyas a quem deu tratos, e os Tupinambás, que
Albuquerque imprudentemente pozera em liberdade,
levárão-lhe as de que carecia ainda. Embarcações
ligeiras de toda a espécie se tinhão previamente
apromptado, e sem mais demora despachou elle
agora Pizieu, Pratz seu tenente general, e o cavalleiro
de Rasilly. Ao romper d'alva chegarão aonde estavão
96 HISTORIA DO RRAZ1L.
1614 os Portuguezes : saltarão á água os marinheiros oc-
cupados ainda em alar os navios; dous dos maiores
e um pequeno forão tomados, os outros tres estavão
postos ja em segurança. Com esta fácil victoria reti-
rarão-se os Francezes. Tripolárâo as prezas, e coalhá-
t rão com a sua flotilha o canal, insultando os Portu-
guezes com ostentosa parada desuas forças. Começarão
a ter logar freqüentes reconlros por mar e por terra;
não tardarão porem a escassear aos Portuguezes as
provisões, não podendo os alliados com receio de
emboscadas metler-se pelo paiz em procura d'ellas.
Tinhão visto com que facilidade havião os Francezes
tomado os Ires navios, e perdida era a sua confiança
nos Portuguezes: ja não apparecião nas trincheiras,
como tinhão de costume, nem Albuquerque se aven-
turava para alli a mandal-os. Também as tropas es-
tavão descontentes, mas não abatidas, e o grito geral
era : «Ponhamos termo com a victoria á guerra, ou
á miséria com a morte. »
piano Como soldado velho tractava Diogo de Campos on-
de deserção. *
tretanto de ver como segurar os soecorros de Per-
nambuco, quando chegassem: expoz ao commandante
os seus planos, e concordarão ambos em que o melhor
meio seria plantar um redueto na barra da ilha do
Periá, posto importante, que ainda os Francezes não
havião oecupado, e aonde necessariamente devião ir
dar os reforços, como único porto que os pilotos
portuguezes conhecião; e que para manter abertas
HISTORIA DO BRAZIL. 97
16li
as communicações entre aquelle ponto e Guaxenduba,
se buscasse algum canal, que passasse pela vizinha
ilha das Guayabas, desconhecida dos Francezes, couza
não difficil de descobrirse com auxilio dos índios.
Marcou-se para este serviço o dia seguinte, mas na 16 j e n0v.
mesma tarde veio um soldado dizer a Campos em
segredo, que era intolerável o que estavão soffrendo,
e que elle com setenta outros ião safar-se por terra,
único meio de salvação possivel, o que lhe commu-
nicava pelo respeito que lhe votava, e para saber se
havia boa razãopara esperar prompto soecorro, sei^o
porião fogo á pólvora, obrigando assim o resto do
exercito a seguir-lhes os passos. Asseverou Campos a
este homem que todas as medidas estavão tomadas
para obter immediatamente reforços, acerescentando
que esperava que não incendiassem a pólvora sem
que o inimigo estivesse por cima d'ella, se por ven-
tura viesse antes dos soecorros. Agradeceu-lhe e aos
amigos a confiança que n'elle tinhão posto, e pro-
metleu não lhes atraiçoar o segredo. Approvou Jero-
nymo d'Albuquerque esta prudente resposta de Diogo,
e disfarçadamente se tomarão precauções para segu-
rar o deposito, meltendo a pólvora entre as provi-
çnpo Berredo.
suea. 278-2S0.
Mandou-se agora Rangel com cento e vinte solda- SaheRangei
dose trinta dos melhores frecheiros índios a exami- aESSíSr.
nar todas as avenidas da ilha das Guayabas, sendo
este o primeiro passo para execução dos planos de
98 HISTORIA DO RRAZ1L.
ioi i. Diogo de Campos. Comsigo levarão guias para a praia
onde devião embarcar, e que ficava a quatro legoas;
perderão-se comtudo no caminho, e apoz vinte e
quatro horas de incessantes fadigas, vadeando ora
arroios ora lodo, que lhes dava pelos peitos, volverão
ao acampamento. Impaciente d'esta demora, offere-
ceu-se Diogo a ir em pessoa por água com o enge-
nheiro em chefe lodo o caminho. Em quanto aguar-
davão a maré, appareceu o inimigo á foz do porto, e
então virão os Portuguezes quanta razão tinhão de
alegrar-se, por não terem Rangel e a sua gente atinado
com o caminho, achando-se assim concentrada toda
a força, tal qual era.
investem Vinha Ravardière em pessoa com sete navios e
os Francezes . T-,
comos quarenta e seis canoas, quatro centos hrancezese
Portuguezes.
quatro mil Tupinambás. Viu elle que os Portuguezes
estavão irregularmente acampados, e o seu forte
levantado sem arte perto d'uma eminência, que
completamente o dominava. Immediatamente desta-
cou metade da sua força a apoderar-se d'esle posto
importante. Ia esta gente dividida em duas compa-
nhias, com mandada uma por Pratz e a outra por
Pizieu, e com o costumado ardor dos Francezes sal-
tarão todos á água, querendo cada qual ser o pri-
meiro a ganhar a terra. Com esla precipitação molha-
rão polvorinhos e bandolas. Vendo esta impaciência,
alirárão-se os índios fora das canoas, cobrindo im-
mediatamente a praia; formidáveis de verem-se ei;, >
HISTORIA DO BRAZIL. 99
1614
elles, com suas plumas, seus broqueis variegados de -
muitas cores, e sobre tudo pelo seu numero. Não
tinha Albuquerque força com que estorvar-lhes o
intento; trazia cada Tupinambá seu lio de fachinas,
e principiarão a fortificar-se, em quanto Pizieu abria
trincheiras d'alli até á praia, para conservar com-
municação com a frota. Apoz um ligeiro tiroteio
foi Diogo de Campos consultar com o commandante,
que achou a olhar por um óculo para o inimigo
através das espingardeiras do forte. « Senhor, lhe
disse, não é este tempo para olhar por vidros. » —
« Que cumpre fazer, senhor capitão? » foi a resposta.
Tornou-lhe Diogo : « Confiar em Deus e servir-nos de
nossos braços, que não lhe vejo outro remédio. Se
ao mesmo tempo Os accommettermos por dous lados,
seguramente os bateremos, e Deus nos dará um dia
glorioso. » Mandou Albuquerque dar .immediata-
mente uma boca cheia de biscouto e um golo de
vinho a cada homem, esahiu, deixando apenas trinta
inválidos no forte.
Dividindo o grosso da sua pequena força em dous
corpos de setenta Portuguezes e quarenta Tapuyas
cada um, para si tomou um e deu o outro a Diogo,
encorporada a maior parte dos alliados n'uma reserva .
pequena, que ficou ás ordens de Gregorio Fragoso.
Devia Diogo atacar o inimigo na ribeira, em quanto
Jeronymo se encarregava de forçar o cabeço. Avan-
çava o primeiro encoberto pela espessura, alguns dos
100 HISTORIA DO RRAZIL.
Gi
\ '*• seus porem mexião-se com tão tardio e remisse- passo,
que bem se deixava ver que de boa wntade corre-
rião em sentido opposlo. Virou-se elle e perguntando-
lhes com aspecto severo, se não erão ja os mesmos
homens que em Periá se havião amotinado por não
se verem assaz perto do inimigo, jurou que extende-
ria morto a seus peso primeiro que tentasse fugir.Da
parte d'um homem de tão bem conhecida resolução,
e com uma pistola engatilhada, produziu esta ameaça
o desejado effeito. Animou-os também dizendo que a
coragem dos Francezes jamais ia alem da primeira
explosão. Cobrarão valor os soldados, e elle ordenou
que o corpo de reserva investisse pelo flanco o i ni-
migo no mesmo momento que elle o caregasse pel;a
Berredo. frpnlp
290-4.
Ia dar-se o signal do combate quando appareceu
um cometo com uma caria de Ravardière para o
commandante. Abriu-a Diogo, pois que nem Jero-
nymo entendia francez, nem havia tempo que per-
der. Maravilhava-se o general francez da incompa-
ravel temeridade dos Portuguezes, que assim se
aventuravâo a atacar o maior monarchada christian-
dade dentro d'aquelle território de que elle em
nome de S. M. havia tomado posse. Comtudo, por
amor da coragem que esta temeridade implicava, e
para poupar sangue christão, offerecia ao general
portuguez termos honrosos, dando-lhe quatro horas
para considerar se queria acceital-os ou correr os
HISTORIA DO BRAZIL. 101
azares da guerra. Diogo mandou inteirar o comman- 1614-
dante do conteúdo d'esta carta, o mais resumida-
mente possível, dizendo-lhe que uma das máximas
de Ravardière era proseguir nos preparativos em
quanto negociava, e conjurando-o que não concedesse
ao inimigo a vantagem d'esta demora, mas desse o
signal. Depois de ver-se no campo da batalha, não
conhecia Albuquerque fraquezas, e rompeu o con-
fliclo na ribeira.
Levou Diogo de vencida as primeiras trincheiras; Derrotados
r . Francezes.
do outeiro descerão os Francezes (ignorantes do pe-
rigo que a elles próprios ameaçava, pois o comman-
dante tomara um desvio pela floresta) a soccorrer os
seus conterrâneos, e por breve espaço viu-se elle
exposto a dous fogos; mas Fragoso com os seus Ta-
puyas carregou-os pelo flanco, e Jeronymo vendo a
posição de Diogo, cahiu também inesperadamente
sobre os inimigos, mudando de marclja. Curto mas
sanguinoso foi o conflicto. Os Francezes e os seus
aluados abandonarão a ribeira e retirárão-se para as
suas obras no cabeço. Immediatamente poz Diogo
fogo ás canoas que tinhão sido puxadas para terra.
Seguirão os Portuguezes a victoria, e assaltando estas
obras, completamente derrotarão o inimigo. Ao prin-
cipio não se abalou Ravardière a soccorrer a metade da
sua força que entrara em fogo, tão grande a sua con-
fiança na superioridade numérica d'ella, tão pro-
fundo o seu desprezo dos que a combatião; quando
102 HISTORIA DO BRAZIL.
viu o perigo era ja ,tardc. Não podia chegar nas suas
lanchas por falta de água, agora que vasara a maré;
as canoas tinhão ficado em secco e fora de alcanço,
de permeio uma margem lodosa. Tenlou operar uma
diversão investindo o forle, mas também alli o pouco
fundo o impedia de approximar-se, e com a sua
pobre artilharia mantinhão.os inválidos uma viva
canhonada. Pizieu, que commandava o destacamento
francez, cahiu. Cento e cincoenla dos seus compa-
triolas ficarão mortos no campo, nove forão feitos
prizioneiros; alguns estavão armados de espingardas
de dous canos, então invenção nova. Baterão-se com
grande denodo, preferindo morrer com o seu com-
mandante a entregarem-se. Tirando partido do
triumpho, queimou Diogo ao inimigo todas as ca-
noas que tinhão sido aladas para terra, quarenta e
seis em numero, e algumas d'ellas de setenta e cinco
palmos de comprimento e vinte e cinco remos por
banda. Todas forão destruídas com os seus esquipa-
menlos. Entre os Portuguezes onze mortos, dezoito
feridos. Nem cirurgião nem ambulância havia na
expedição; appareceu porem um rapaz que sabia
como ligar uma ferida, e na falta de qualquer outro
medicamento applicava o óleo de copaiba, ou de
azeitona, ou trapos molhados, e punha-se a psalmear
o enfermo.
De parte a parte se passou a noute em grande des-
assocego. Apezar de vencedores não desconhecião os
H1ST,0RIA DO BRAZIL. 103
J01í
Portuguezes a desproporção de suas forças. Pozerào- -
se guardas dobradas, pois índios hostis tinhão desem-
barcado bastantes para os manterem alerta e inquie-
tos; faltavão provisões; o inimigo os bloqueava com
seus navios, e meio de salvação nenhum se via.
Incapazes de se preoecuparem do futuro, celebrarão
os índios alliados toda a noute com cantares e danças
a sua victoria, e as mulheres percorrião o campo can-
tando as proezas de seus maridos, e proclamando os
nomes dos inimigos que elles havião vencido e cujas
cabeças havião quebrado. No correr da noute veio o
cacique da ilha ter com os Portuguezes, informando-
os de que os Francezes estavão na maior consterna-
ção. A manhã confirmou a noticia, pois em signal de
lucto tinha o inimigo colhidas todas as bandeiras, e
nem tambor nem clarim se lhe ouvia a bordo dos
navios. Dos prizioneiros soube Albuquerque que a
toda a hora se esperavão de Cuma na terra firme seis
ou setecentos índios, que devião reunir-se ao arma-
mento francez, e preparou-se para novo assalto. Com
effeito appareceu logo d'ahi a pouco este esperado
reforço em dezaseis canoas grandes, a demandar o
rio Mony, onde desembarcar. Ainda houve tempo de
oecupar a ribeira com cem mosqueteiros, e os índios
atravessarão para o outro lado. Alli muitos saltarão
Jorna<ia
em terra; mas encontrarão fugitivos da derrotada
° do Maranhão.
K 64 5
véspera, e apenas sabida a má fortuna de seus ami- "-
gos, reembarcárão e retirárão-se mais depressa do
104 HISTORIA DO RRAZIL.
1614
- que havião vindo, levando muitos de seus conterrâ-
neos, que ávidos aproveitarão esta occasião de csca-
Berredo.
298-514. pulirem-se.
Enceta Procurou Ravardière desabafo á sua cólera n'uma
Ravardière .
uma
carta ao general portuguez, na qual o accusava de
conespon- ° r a • x
víbüquerque. haver violado as leis da guerra retendo-lhe o cometa,
e lhe lançava em rosto a crueldade dos Tapuyas. Mais
moderada foi a resposta de Albuquerque : insistia no
direito do rei de Hespanha e Portugal sobre todas
estas terras, queixando-se da não provocada aggressão
da parte dos Francezes, e especialmente da traiçoeira
bandeira de tregoa. Pelo que tangia á barbaridade
imputada aos seus alliados, dizia ter enterrado o
melhor que poderá os Francezes que havião cahido,
não sendo verdade que fosse mutilado algum dos
seus cadáveres, embora um dos Tupinambás de Ra-
vardière cortasse o braço a um Portuguez morto den-
tro das trincheiras, que sem elle teve de ser sepul-
tado. Mas disto me não maravilho, acerescentava,
pois estou velho, e ha muitos annos que ando costu-
mado a taes couzas. Ravardière gabava-se do bom
Iractamento que dava aos índios prizioneiros, po-
dendo alias vingar-se n'elles. A isto alludia o Portu-
guez na sua resposta, dizendo que se o commandante
francez julgasse a propósito enforcal-os, mao serviço
faria aos seus conterrâneos prizioneiros no arraial,
mas que n'este ponto era senhor de sua vontade. Um
dos navios que os Francezes tinhão capturado, estava
HISTORIA DO BRAZIL. 105
1614
prestes a dar á vela para Portugal, e a bordo se lhe -
havião achado cartas, em que os soldados referião,
e por ventura exageravão as difficuldades e perigos
em que sevião. Ravardière mandou estas cartas ao
commandante portuguez, pensando com isto fazer
algum mal, mas Albuquerque as devolveu com uma
resposta ambigua, dizendo que verdadeiro era o con-
texto das cartas, comtudo como alguém se podia ter
equivocado no sentido, as devolvia para que com
mais vagar fossem lidas.
Motivou islo uma carta ja muito mais moderada da Aju.tão-se
termos
parle do commandante francez que perguntava pelos vaenmaf^eos
nomes dos prizioneiros, convidando Albuquerque a P°rtnsuezes.
abrir negociações; também lhe pedia que escrevesse
em francez ou hespanhol. Respondendo, lamentou o
Portuguez que mais Francezes n'elle não tivessem
tido confiança, salvando assim as vidas. « Enterrei os
mortos, dizia, como a minha própria gente, a quem
é a floresta honroso monumento. O corneta vos dirá
o estado em que estamos. Melhor o teríamos tractado
se estivéssemos no nosso próprio paiz, mas aqui
somos homens que vivemos d'uma mão cheia de fa-
rinha, e uma posta de cobra, quando a podemos
haver, e os que d'esle passadio não gostarem, não
busquem a nossa companhia. » Mais e mais cortez
se foi tornando a correspondência. Ravardière fez a
Jeronymo um comprimento por usar do mesmo nome
que o grande Albuquerque, removeu a frota para a
106 IIISTOBIA DO DRAZIL.
iel4
- ilha das Guayabas, e manifestou o desejo de que lho
mandassem a conferir com elle Diogo de Campos,
por que fallava francez, e também por que em outros
tempos ja tinhão pelejado os dous um contra o outro
quando Diogo servia o príncipe de Parma. Foi pois
o ajudante general com Gregorio Fragoso de Albu-
querque a bordo da nau de Ravardière, vindo dous
officiaes francezes entregar-se como reféns nas mãos
de Jeronymo.
Passou-se em mutuas disculpas e reciprocas civi-
lidades a entrevista, que mais foi visita do que con-
ferência. Mas na manhã seguinte propoz Ravardière
estes termos: haveria paz até fins do anno seguinte,
cessando n'este meio tempo todos os actos de hosti-
lidade, travada entre as duas parles por falta de se
entenderem mutuamente as intenções e com grande
perda de sangue chrislão; dous fidalgos um portu-
guez e outro francez irião a França, e outros dous da
mesma fôrma a Hespanha, para exporem o caso a
SS. MM. Christianissima eCatholica; nenhum dos
Portuguezes ou dos aluados d'elles poria pé, sem
previa permissão, dentro do raio de dez legoas dos
fortes e portos francezes, exceptuados os comman-
dantes e seus criados, que teriâo plena liberdade de
passar e repassar; que logo que chegasse a resolução
final das duas cortes, aquelle dos dous partidos que
recebesse ordem de evacuar o paiz, o faria sem mais
detença dentro do prazo de Ires mezes; finalmente
HISTORIA DO BRAZIL. 107
que d'ambas as partes se porião em liberdade os 1014-
prizioneiros. Obrigou-se Ravardière a retirar imme-
diatamenle os seus navios, deixando livre ingresso
ao abastecimento que esperavão os Portuguezes, e
exigiu d'clles a promessa que, embora recebessem
reforços, não renovarião as hostilidades.
Altamente vantajosos como erão estes termos,
comludo quando Albuquerque os expoz aos seus offi-
ciaes, observarão estes que como indispensável pre-
liminar devia Ravardière apresentar a patente que
linha do rei de França, d'outra fôrma devia ser
olhado como pirata, bannido do seu paiz por heresia,
e homem com quem nenhum calholico podia traclar.
Depressa se preencheu esta formalidade, apresen-
tando Albuquerque primeiro os seus papeis, e disfar-
çando assim a exorbitância de tal exigência. Assi-
gnárão-se então os artigos, e no dia seguinte 29denov.
i / ~ n ,, ÍVrredo.
levantarão os fcrancezes o bloqueio. 320351.
Mal se virão assim desassombrados os Portuguezes, Tumulto
, . entre os
fizérão uma procissão em acção de graças, e princi- Tupinambás.
piárão a fabricar uma egreja á sua divina proteclora
com a invocação de N. S. da Ajuda1. O cirurgião
francez teve ordem de ir tractar dos Portuguezes
feridos, e Ravardière pediu que Diogo de Campos e
Fr. Manoel da Piedade fossem ao Maranhão apaziguar
os Tupinambás amotinados, por supporem que
1
Para ella deu uin dos missionários frànce/.es um frontal de altar
e unia vestimenta bordada pelas mãos da duqueza de Guise.
108 HISTORIA DO BRAZIL.
düH
- segundo o tractado devião ser repartidos entre as
potências signalarias e vendidos como escravos, da
mesma fôrma que Pero Coelho vendera os Tapuyas
depois da sua jornada de Ibiapaba; tão fresca lhes
vivia ainda na memória esta acção detestável. Conse-
guirão socegal-os Diogo e o frade, e feito isto, forão
ao convento dos capuchinhos, que apezar de não
acabado ainda, podia ja conter vinte missionários
debaixo da obediência de Fr. Archanjode Pembrock,
chegado, havia poucos mezes, com dezasele irmãos.
D'elle souberão que a rainha regente chamara ao
reino Bavardière, cujo proceder, dizia o franciscano,
não se podia tolerar n'uma colônia calholica entre
selvagens; por quanto embora muitas virtudes o
adornassem, os abomináveis erros da sua heresia
todas lornavão de nenhum proveito. Pizieu devia
substituil-o no commando. Talvez isto tivesse desgos-
tado Ravardière, e o pouco interesse que ja tomava
pela colônia, pôde até certo ponto explicar o haver
elle proposto aos Portuguezes termos mais vantajo-
sos do que elles tinhão direito de exigir, nem razão
para esperar.
lastrucções Foi Gregorio Fragoso escolhido para a embaixada
dos |-v , . .

eommissarios a 1'ariz em companhia de Pralz. Continhão as suas


poitujjuezes. _

instrucçõês alguns factos curiosos que devia expor


ao embaixador hespanhol. Havia de insistir*no desde
muito tempo cabido e sustentado direito dos Portu-
guezes a estas terras, do qual as suas muitas expedi-
HISTORIA DO BRAZIL. 109
im
ões a este mesmo ponto da costa erão prova incon- -
testavel. Não se podia dizer por occupar um paiz que
tinha mais de Ires mil habitantes portuguezes, e mui-
tas cidades e villasbem conhecidas, e em verdade, se
a falta de moradores era motivo para se tomar posse
d'um logar, e assenhoreal-o por direito de occupação,
lambem Silves no Algarve, eAlgeziras perto de Gi-
braltar, podião ser tomadas com egual titulo. Devia
pintar o estado florescente da colônia dos Francezes ;
tinhão encontrado novas madeiras e novas tintas,
uma pescaria de pérolas, pedras preciosas, por amor
das quaes andavão ja brigados, e, segundo elles pró-
prios, dizião minas de lapislazuli. Tão pouco devia
esquecer o damno que provinha, de haverem elles
fundado um porto, onde os piratas, que infestavão o
Brazil e a fronteira cosia da África, a todo tempo
tinhão certeza de serem bem recebidos e encontrar
provisões. Muitos Portuguezes alli se tinhão visto em
ferros, que, arrastando as suas cadeias, havião sido
obrigados a trabalhar nos campos como escravos,
mais crua tyrannia, dizia-se, do que a dos mouros da
Berberia. Tomados pelos piratas, tinhão estes des-
graçados sido conduzidos para alli, onde em tão mí-
sero captiveiro os conservavão, afim de que não
levassem a nova aos estabelecimentos brazileiros,
desejando os Francezes que alli os deixassem tran-
quillos em quanto possível para que mais seguros se
arraigassem. Accrescentava-se que os colonos estavão
110 HISTORIA DO BRAZIL.
161i
- solicitando a protecção da Inglaterra, para o caso de
abandonal-os a França, e isto se altribuia á religião
de Ravardière, e ás suas relações com o conde de
Montgomery, que tinha mil parentes no primeiro
d'estes reinos.
Fizerão-se estas instrucçõês no firme presupposto,
que jamais allespanha desistiria das suas pretenções
ao Maranhão ; e Albuquerque, calculando com a ex-
pulsão dos Francezes como couza que mais cedo ou
mais tarde havia de ter logar, explicava ao embaixa-
dor quanto seria para desejar-se conservar alli todos
os que podessem ser induzidos a mudar de naciona-
lidade, pois que ja estavão estabelecidos e ligados
com os naturaes, e conhecião o paiz, pelo que o
supplicava que invidasse todos os seus esforços para
a favor d'estes se fazer uma excessão ao interdicto
contra colonos estrangeiros. Adoptada esta medida,
dizia elle, menor difficuldade haveria em colonizar
a terra; os Tupinambás íicariào quietos, e podia-se
passar a expellir do Cabo do Norte os Hollandezes que
Berredo.
501-512 alli principiavão a fortificar-se á foz do Amazonas.
Com estas instrucçõês embarcou Fragoso com
Pratz para França n'um navio francez. Diogo de
Campos offereceu-se a ir á Hespanha, e Albuquerque
de tão boa mente acceitou a proposta, que os mali-
ciosos pensarão que era vontade dever-se livre d'elle.
Não merecia o commandante esta imputação : Diogo
foi por suppor que assim melhor serviria a expedição,
HISTORIA DO BRAZIL. 111
e o outro com prazer o deixou ir, por saber que a 1614-
negociação a ninguém podia ser confiada, que mais
lhe zelasse o feliz êxito, nem que mais hábil fosse
para a bom fim leval-a. Para a viagem tiverão os
Portuguezes de comprar aos Francezes por-duzentos
mil reis a caravela tomada na bahia de Guaxenduba \ Berredo.
Não forão por muito tempo guardados os termos <jUebrno os
, , . P ,. T Tortu^nezes
do traclauo; intracçoes pequenas, senão abertamente o nadado.
auetorizadas, forão pelo menos permittidas por am-
bas as partes. Passado pouco affluirão a Albuquer-
que ossoecorros, uns da Bahia e Pernambuco, tra-
zidos por Francisco Caldeira de Castello Branco;
outros de Portugal conduzidos por Miguel de Sequeira
Sanhudo. Becebidos estes reforços, fez elle saber a
Ravardière, que da sua corte lhe havião chegado.in-
strucções, declarando estas terras patrimônio legi-
timo da coroa de Portugal, pelo que se via na neces-
1
Aqui termina o excellente diário d'esta jornada, que Beredo en-
corporou na sua historia. D'esla circumstancia se infere com altruma
probabilidade, que fosse elle esctipto pelo próprio Diogo de Campos,
sendo a sua partida o ultimo faeto que se refere. Principia a T, de
agosto de 1GIÍ e finda a 4 de janeiro de 1615. Se se attender a que
a historia da conspiração, que so podia ser sabida dos dous comman-
dantes, se acha n este escripto, attingirá esta desconfiança o grau de
quasi certeza.
Depois da publicação da primeira edição d esta obra, foi o próprio
diário impresso pela Academia Real de Lisboa, na sua Collecção de
!\oticias para a Historia e Geographia das Nações Ultramarinas
que vivem nos Domínios Portuguezes, ou lhes são vizinhas. 1.1, n° 4.
Ahi se dá elle por indubitavel obra de Diogo de Campos, impressa do
manuscripto original.
112 HISTORIA DO BRAZIL.
161
*- sidade de dar por findo o Iractado; esperava porem
que com a amizade dos dous não succederia o mesmo,
e que Ravardière a preservaria, entregando a ilha,
caso em que lhe assegurava bom tractamento, e re-
tirada livre para os seus soldados. Demasiado seguro
da victoria ao principio, deixara-se o commandante
francez também abater demasiado pelo primeiro
revés. Quiz negociar ainda. Enviou-se-lhe Caldeir,;,
e elle concordou em evacuar a ilha do Maranhão den-
tro de cinco mezes com todos os seus fortes, sobre
condição que os Portuguezes lhe pagariâo a artilharia
alli deixada, fornecendo-lhe transporte para toda a
õi de jni. sua gente. 0 historiador portuguez diz que não lhe
falecião de todo as esperanças de receber n'este co-
menos reforços taes, que lhe permiltissem fallarao
estipulado, mas em penhor da sua boa fé, entregou
o forte deltapary 1 , de que Albuquerque desde logo
tomou posse.
Envião-se Entretanto chegara Diogo de Campos a Lisboa, e
noVas forças, deixando que o companheiro Maillart fizesse quantas
representações e queixas quizesse, ponderou com ur-
gência ao governo a necessidade de enviar sem perda
de tempo reforços consideráveis. Era então viso-rei
de Portugal D. Aleixo- de Menezes, esse arcebispo
cujo nome é tão celebre na historia dos christãos do
Malabar; e elle, reputando piratas os Francezes do

1
Também chamado de S. José. F. P.
HISTORIA DO BRAZIL. ' H3
1614
Maranhão, affectou-se indignado de que com elles se
tivesse feito mesmo um traclado, posto que por este
se entregasse de facto a colônia nas mãos dos Portu-
guezes, nem mais nem menos que se a houvessem
conquistado em boa guerra aberta. Não se perdeu
tempo. Deixando a Maranhão em janeiro, chegara
Diogo em março a Lisboa. Com o sobrinho Martim
Soares e soccorros adequados voltou a Pernambuco,
onde achou o governador Gaspar de Souza, activando
egualmente os seus aprestos, em conseqüência dos
avizos que de Guaxenduba havia recebido. Montava
toda a força a novecentos homens em sele galeões e
duas caravelas. A Alexandre de Moura, antigo capitão
mór de Pernambuco, se deu o commando das forças
de terra 1 ; Diogo de Campos era o almirante, e a 5 de
outubro entrarão n'esse mesmo porto da ilha do
Periá, onde os Francezes havião fundado á sua pri-
meira chegada, mas que por desmazelo e para sua
própria ruina, assim havião deixado duas vezes
aberto ao inimigo. Albuquerque foi a bordo; viu que
Moura viera com poderes supremos como general,
trazendo ordem expressa para quebrar as estipula-
ções que vigoravão, e completar sem demora a con-
quista.
Sem murmurar submetteu-se Albuquerque a este Entre<ra
impolitico cerceio da sua auctoridade, passando a ^ O j I . *

1
Com o titulo de governador geral d'armada e conquista. F. P.
114 ' HISTORIA DO BRAZIL.
10,4 - cumprir as ordens do governador com a mesma
complacência, como se ellas nenhuma quebra impli-
cassem da sua própria palavra e honra. Investiu o
forte de S. Luiz, aonde todos os Francezes se havião
acolhido. Ravardière, agora no habito de sujeitar-se
a quanto lhe impunhão, consentiu em render-se
immediatamente e sem condições. Foi pois entregue
o forte. Deu-se o commando a Campos e o general
francez com mais de quatrocentos de seus conterrâ-
neos, Ia forão velejando no rumo da França. Alguns
poucos, ligados por casamentos com os naturaes,
ficarão na ilha. Assim se perdeu para a França o
Maranhão por culpa de Ravardière : contentasse-se
elle ao principio com interceptar aos Portuguezes os
supprimentos, o que a sua superioridade por mar
muito bem lhe permitlia fazer, que estes terião, ou
procurado retirar-se por terra, caso em que muitos
338-I0Õ' havião de perecer, ou capitulado sem um tiro.
Do convento dos capuchinos tomarão posse os fra-
l
Expedição
d ra u e s
ao°pari. ^'^ acompanhavão a expedição. Moura, em vir-
tude da auctoridade de que vinha revestido, nomeou
Jeronymo de Albuquerque capilão-mór da conquista
do Maranhão, e Caldeira também capilão-mór da
descoberta e conquista do Grão Pará, nome meio
portuguez, meio tupi, com que se designava o rio
das Amazonas. Tinhão se apanhado todas as infor-
mações que Ravardière colligira sobre esta desco-
Berredo. berta, e ainda antes do fim do mez, encetou Caldeira
401-3. ' '
HISTORIA DO BRAZIL. 115
a sua jornada com duzentos homens em tres navios. 1614.
Entrou a frota na perigosa barra de Seperará, hoje J»™J»0o
a da cidade de Belcm, e depois de ter desembarcado
em muitos logares mao grado dos índios, escolheu
Caldeira posição para o seu novo estabelecimento,
dando a estas conquistas o nome de Grâo-Pará, por
se reputar sobre as margens do immenso rio; enga-
nava-se porem, pois que se achava n'uma vasta bahia
formada pelas fozes do Maju, Acará e Guamá. Aqui
desembarcou a 5 de dezembro, dia de S. Francisco
Xavier, e alçando a imagem d'este saneto, principiou
a ediíicar uma cidade com o nome e invocação de
N. S. de Belém. Mal escolhido fora o local: sete ou
oito legoas atraz deixara Caldeira uma ilha chamada
do Sol, que Berredo diz ser em todas aquellas para-
gens a melhor situação para uma colônia. Belém
porem fica entre pantanaes, e em logar tão indefen-
sável que, segundo a mesma competente auetoridade,
apezar de todas as^suas obras exteriores e fortifica-
ções, é na difticuldade da barra, a seis legoas da
cidade, que consiste a sua maior segurança. Depressa
venceu Caldeira a tal ou qual defeza que oppozerão os
naluraes, e tão habilmente os soube pôr de feição,
que elles próprios o ajudarão a erguer a fortaleza.
As novas da sua fortuna resolveu mandal-as por
terra, e foi o alferes Pedro Teixeira enviado ao Mara-
nhão n'esta difficil mas importante commissão. Ten-
tarão os naturaes de Cayté exterminal-o a elle e a sua
116 HISTORIA DO RRAZ1L.
leu; genie, mas Teixeira os reduziu á obediência, tomando
posse'd'aquelledistrictoque, mais tarde se tornou
uma das capitanias dependentes do Pará. Em S. Luiz
(pois assim devemos chamar aquelle logar agora que
se tornou portuguez) foi recebido com tanto pasmo
quanta alegria, como a primeira pessoa que fizera
esta jornada; e de lá voltou por mar, levando arti-
lharia e
ÍOMIIIV munições e paga para a tropa.
Nos seus despachos para Lisboa ponderava Caldeira
a grande importância de suas descobertas, e a neces-
sidade de assegural-as contra outras nações europeas.
Nas ilhas sem conta erão os índios numerosos e pací-
ficos, e a terra, pelo contrario de outras partes
d'aquelle estado, excellente para o plantio de canna
de assucar e estabelecimento de engenhos. Actual-
mente produzia abundância de algodão, pita, tabaco
e uma linla escarlate extrahida de certas fructas;
erão estes os gêneros de que os estrangeiros vinhão
á procura. Também havia pérolas, dizia elle, e mui-
tos indícios de minas de prata e outras riquezas.
Sadio era o paiz, excellentes os ares, e nada em
summa o resto do Brazil comparado com estas novas
descobertas. Outras nações porem cobiçavão a posse
d'esle paraizo. Os índios o havião informado de que
uma colônia de Inglezes com mulheres e filhos se
estabelecera rio acima, cento e vinte legoas alem da
sua fortaleza; c que os Hollandezes, plantado um
forte na margem do norte, alli tinhão fundado en-
HISTORIA DO BRAZIL. 117
ml
genhos. Demais, entre os índios que elle persuadira -
a virem estabelecer-se á roda de Belém, encontrara
um Francez e um Hollandez, que dous annos antes
linhão sido deixados entre os indígenas, para lhes
aprenderem a lingua; e ambos havião declarado que
em maio ultimo esperavâo da Hollanda uma expe^-
dição de quinze navios, mandada a fundar no rio um
estabelecimento permanente. Em conseqüência des-
tes despachos recebeu o governador Luiz da Silva carta do
1
. Arcebispo de
instrucçõês de Lisboa para reforçar ímmediatamente ^f^";!
Caldeira e ir-lhe preparando mais soecorros. *6?6.dMs'.
Entretanto não ficara Caldeira ocioso. Tendo sabido Teixeira
Queima
um
navio
que u m alteroso navio hollandez estava ancorado n a boPandez.
costa, a quarenta legoas de Belém, despachou
Teixeira com vinte homens em duas canoas a abor-
dal-o. Defenderão-se os Hollandezes como quem sabia
que pouca clemência tinha q u e esperar, n e m os
Portuguezes tiverão outro meio de vencer, senão
pondo fogo ao navio, em quanto estavão a bordo, e
retirando-se depois nas canoas. So u m Hollandez
escapou. Foi o casco a pique e m pouco fundo, e
apenas curadas as feridas que n a acção recebera,
voltou Teixeira e tirou do m a r as peças, reforço que
não parecerá sem importância para a nova colônia,
se nos lembrarmos de quão mal provido de artilharia
havia ido Albuquerque. Grande revés foi este para os
Hollandezes, que, se traficavão com proveito n o rio,
tendo feitorias estabelecidas e m muitas das ilhas d a
118 HISTORIA DO BRAZIL.
mL
sua embocadura, com nenhum perigo havião contado
da parte dos Portuguezes, nem de fôrma nenhuma
estavão preparados para alli competir com elles.
insurreição Guarnecidos todos os fortes da ilha do Maranhão e
dos

Tupinambás. C ü n l j n e n t e adjacente, voltara Moura a Pernambuco,


ficando Albuquerque a edificar uma cidade á volta
do forte de S. Luiz com o mesmo nome e o mesmo
padroeiro. No primeiro anno tudo foi bem, mas os
naturaes d'eslas partes pertencião pela maior parte a
tribus que para alli se havião retirado, fugindo á
tyrannia dos Porluguezes; nem tinhão esquecido o
que a seus pães ouvirão, nem as mais recentes atro-
cidades de Pedro Coelho, e para os fazer sacudir a
forçada obediência, pouca instigação bastava. Mathias
de Albuquerque, filho de Jeronymo, commandava
em Cuma, populoso districto perto da ilha; parecião
mui contentes os selvagens, dando até esperanças de
se converterem, e ficava tudo em apparente tranquil-
lidade, quando o pae o chamou a S. Luiz. Durante a
sua ausência passarão por alli alguns Tupinambás
vindos do Pará com cartas de Caldeira para Jero-
nymo. Havia um índio de Cuma, por nome Amaro,
que apezar de criado pelos Jesuítas no Brazil, era mui
affeiçoado aos Francezes, recordando com má von-
tade seus antigos amos. Tomou elle as cartas, eaffec-
lando lel-as deanle dos caciques, que não conhecendo
as letras não podião convencel-o de falsidade, fel-os
crer que todos os Tupinambás devião ser declarados
HISTORIA DO BRAZIL. 119
escravos apenas se recebessem aquelles despachos. 1614.
Foi quanto bastou. Na mesma noute cahirão os selva-
gens sobre a guarnição, composta de trinta homens,
matárão-nos Iodos durante o somno, e logo despa-
charão a todas as suas hordas mensageiros que exci-
lassem uma insurreição geral. Mas Mathias de Albu-
querque lhes reprimiu o ataque de um lado, e
Caldeira o antecipou do outro. Sabendo este que elles
lhe querião accommeller a sua nova cidade, ou fin-
gindo sabel-o, poza ferro e fogo os Tupinambás do
Pará, sendo maior que a offensa o castigo. m-uv..
Por este tempo morreu Jeronymo de Albuquerque; Morte
rie J
, , , • i i i - d'Albu-

c 'ntava setenta annos de edade, e os cuidados do-go- querque.


v rno, e a ancicdade de supprimentos que vinhão
menos regularmente do que se esperava e carecia,
lhe accelerarião o termo da existência. Para suecessor
nomeou Antônio, seu filho mais velho, com Bento
Maciel Parente e Domingos da Costa Machado por
accessores. Antônio entendeu que de nenhum havia
mister. Domingos da Costa não estava disposto a
impôr-lhe a presença d'um conselheiro mal visto;
não assim Maciel, que do pouco caso em que lhe
tinhão a auetoridade se mostrou resentido em termos
taes, que Antônio Albuquerque primeiro o fez reco-
lher prezo, e depois o mandou para Pernambuco com
Domingos, que alli ia embarcar para Portugal a re-
querer a recompensa de seus serviços. iw.edo.
M- i i i , «0-450.
IN a o era so do lado do Maranhão e Amazonas, que
120 HISTORIA DO DRAZIL.
1614
- as tentativas de aventureiros particulares para se es-
mtureiro
vcnturfiiros
inglezes
inglezes tabelecerem na America portugueza, inquietavão o
no Brazil.
governo hespanhol. Gondomar, cujos talentos di-
plomáticos o facto atlesta de ter sido o seu nome
então mais conhecido na Grã Bretanha do que na sua
própria pátria, descobrira durante a sua residência
em Londres que alguns aventureiros inglezes appa-
relhavão navios para sé estabelecerem e fortificar
n'um porto entre o Espirito Saneto e o Rio de Janeiro.
Tinhão reconhecido o logar, e estribavão as esperan-
ças em Ires Brazileiros que com elles havião tomado
parte na empreza, por nomes Gaspar Ribeiro, João
Gago e Manoel de Oliveira. Parecem estes indivíduos
ter sido mamelucos, pois que os Inglezes confiavão
no conhecimento da lingua indígena, e ligações que
elles tinhão no paiz; ora as únicas relações que em
commetlimento d'esta ordem podião ser de utilidade,
devião ser com as tribus naturaes. Erão porem ho-
mens de alguns haveres, e tinhão jogado na aventura
considerável cabedal. Também n'isto se meltérão
alguns Francezes, se de boa fé, ou como espiões de
Gondomar, não é liquido; o que é certo é qued'elle
receberão seiscenlos ducados, fosse como indemni-
zação pelas perdas soffridas com o mallogro da es-
peculação, fosse como paga de seus serviços. Senhor
de todo o conluio, achou o embaixador meios de
acção sobre os senlimentos e receios dos sócios bra-
zileiros. Ribeiro e Gago forão levados a sacrificar todo
HISTORIA DO BRAZIL. 121
1614
o capital que havião arriscado nos aprestos, a reco- -
nhecer a sua falta, fazer acto de contricção, e entre-
gar-se á mercê d'el-rei. Antes d'isto ja o governador
general Gaspar de Souza recebera ordem de estar
de sobre avizo,*para fazer abortar o plano, e prender
estes homens por traidores, apenas chegassem ao
Brazil, onde provavelmente devião preceder os seus
associados inglezes. Agora encarregárâo-no de re-
muneral-os.com honras e mercês1 pelo grande sa-
crifício, feito, e pelo meritorio proceder que havião
tido, abandonando o caminho errado que trilhavão,
e resolvendo viver e morrer como christãos e verda-
deiros Portuguezes no serviço de seu rei legitimo.
Tão fácil não se deixou persuadir Oliveira, irmão
de Gago; Gondomar disse que era impossível con-
vcrtel-o, cego como o diabo o tinha posto com o
medo de que o rei o mandaria enforcar, se o hou-
vesse á mão, e lambem com as vantagens de que
gozava entre os Inglezes, e perspectiva de ainda
maiores lucros. Mas depois de escripto isto, tão
pouco estava o embaixador o acostumado a poupar-
se a esforços no desempenho de seus deveres offi-
ciaes, tornou a mandar chamar Oliveira para fazer
mais uma tentativa antes de fechar os despachos, e
nYlla foi feliz. Asseverou-lhe Gondomar que se per-

1
Tão illegivelmente está escripta no despacho original a remune-
ração, que se lhes concedia, que não, pude descobrir, nem mesmo
conjecturar, que somma os algarismos querião exprimir.
122 HISTORIA DO RRAZIL.
1G14
- sistisse no seu intento, em todas as egrejas e por
todo o Brazil seria proclamado traidor, e o medo
d'esta infâmia pôde sobre elle mais que todos os ou-
tros motivos. Yirão-se agora sem um so guia os In-
glezes, cujos navios estavão ja de verga d'alto; a sua
melhor esperança era perdida, e Gondomar, con-
cluindo que a empreza por força seria abandonada
(como parece que succedeu), congratulou a corte por
não haver outros subditos hespanhoes envolvidos em
D
Ag!delèíl.' similhantes desígnios.
Ai.ieias Dor mais desarrazoado que seja o governo hespa-
pira defeza nhol na sua política e remisso nas surfs medidas,
da costa. . .
jamais adormeceu na sua vigilância. Em conseqüên-
cia talvez d'este frustrado plano procurárão-se agora
meios de evitar que inimigos, como indiscrimina-
damente se chamavão todos os estrangeiros, desem-
barcassem no Brazil, cortassem pau do mesmo nome,
e se fixassem no paiz. Recommendou-se ao governa-
dor que estabelecesse de cem a duzentos índios n'uma
aldeia, sobre o rio Magnahé, de fronte da ilha de
Sancta Anna, onde soião desembarcar os interlopos,
c que fundasse um estabelecimento similhante sobre
o Pernipe, onde os inimigos cortavão as madeiras
colorantes, principal mercadoria que a este vedado
paiz vinhão buscar. Um índio, chamado Manoel de
Souza, que pelos seus grandes serviços era muito es-
limado, devia commandar um dos novos aldeamen-
tos: era elle então principal da aldeia de S. Lourenço
HISTORIA DO BRAZIL. 123

do Rio de Janeiro que pertencera a seu avô Marti- 4615-


mão1, pessoa tão distincla no seu tempo que el-rei
D. Sebastião, pelos seus merecimentos, lhe mandara
o habito da ordem de Christo. Amador de Souza,
filho do mesmo Martimâo etio de Manoel, seria o
capitão do outro. A cada aldeamento se daria um Je-
suíta, Entendeu-se que embora estes índios não po-
dessem tolher o desembarque aos contrabandistas
(o que so com uma armada forte se conseguiria),
podião comludo suas ciladas e emboscadas tornar-se
tão faties, que não mais se atrevessem os extranhos
a cortar madeiras; e em caso de necessidade do Rio
lhes iria sotcorro de tropas, não sendo grande a
distancia. Os índios para estes estabelecimentos ha-Car(a Regia
vião de ser Carijós, trazidos da villa de S. Paulo.
Também se expedirão ordens para reparar e aug-
nientar os fortes das capitanias da Parahyba e Espi-
rito Saneio para pol-os a coberto de qualquer sor-
preza. Tinha havido tenção de fortificar a ilha de
Ferniio de Noronha, mas por emquanto sobeesteve-se
Despacho.
na execução, para atlender a outras couzas que pa- Msu,de16187de
xeccrâo mais instantes. Até ao estreito de Magalhães intenção de
,. . fortificar
se exlendia o ciúme da corte d'Hespanha: inquietou- °Meas„l^esdc
se ella por terem alguns estrangeiros examinado
aquelle passo, obtendo da sua navegação conheci-
mentos mais exaclos do que possuião os subditos de
Sua Magestade, e mandou por tanto aD. Luiz de Souza
1
Era este Martimâo, ou Martim Âffonso, o famoso Marigboya. F . P.
124 HISTORIA DO RRAZIL.
1617
ordem de expedir duas caravelas que explorassem
bem, uma por um lado e outra por outro, todo
aquelle canal, levantando mappas, e averiguando se
não haveria alguma posição que, bem fortificada,
dominasse a passagem. 0 lamentável êxito da tenta-
tiva de Sarmiento n'este mesmo sentido trinta annos
antes (quando quatrocentos Hcspanhoes com trinta
mulheres alli forão postos em dous estabelecimentos,
onde perecessem á necessidade e outras misérias in-
separáveis de tão mal concebidas e peor executadas
emprezas), parece que ja em Madrid se não lem-
bravão d'elle; mas outrotanto não suecedia no Brazil,
e posto que o governador, tendo representado uma
vez sobre as difficuldades do projecto, recebesse or-
Despachos.
5?
.m i°6ne dem Qe c u m P n r as suas instrucçõês, se appareces-
15 e
i6 iíT' sem bons pilotos, abandonou-se a idéia á vista de
i6i8!n" suas ulteriores representações,
ciúme a Mostrava o governo da metrópole não ter menos
esKgêirot. consciência da importância dos seus domínios brazi-
leiros, do que da sua pouca segurança; e se uma
extrema vigilância e uma desconfiança sempre alerta
podessem preservar de perigos uma colônia remota,
sem ser precizo cuidar em meios adequados de de-
feza, nada teria empecido o Brazil. Nenhum governo
podia ser mais aclivo em colher informações sobre
os desígnios de seus inimigos, e n'este empenho bem
o servião òs seus agentes. Aprestárão-se em Amster-
dão dous navios para uma d'essas aventuras de com-
HISTORIA DO BRAZIL. 125
mercio e pirataria, que n'aquella epocha era vulgar 1017.
fazerem-se de sociedade. Tinhão os armadores suas
relações com certas pessoas no Brazil, que se havião
compromettido a apromptar carregamentos de pau
brazil, e levar-lhes ao mar em barcos de pescaria;
mas, se falhasse esta parte do plano, devião os navios
pôr-se a corso em busca de prezas, e em ultimo caso
tentar uma investida contra o Maranhão. Fez-se saber
isto ao governador para que os mercadores estivessem
de sobre avizo e armassem seus navios: recommendou-
se-lhe também que provesse não so a que não soffresse
desfalque a renda, mas também a que não padecesse
quebra a fama, couza especialmente para considerar-
se. Com este rebate mais se exasperou o ciúme con-
tra os estrangeiros, e expedirão-se ordens de expulsar
do Brazil todo o forasteiro, fosse quem fosse, que
alli estivesse estabelecido, sem respeito a pessoa ai- {^^'dè1
guma, embora tivesse tirado licença para residir. sept. 1617.
Não passara comtudo ainda um mez e ja esta orde-
nança era revogada, encarregado o governador de
remetter á metrópole uma lista de todos os exlra-
nhos que houvesse no Brazil, con informações sobre
o comportamento de cada um, opinião em que era
tido, importância de seusteres, e modo devida que
seguia. Se contra alguns houvesse justos motivos
de suspeitar que se empregavão em mercancia de
contrabando, ou a entregarem-se a ella excitavão os
estrangeiros, devião prezos ser remettidos para Lis-
126 HISTORIA DO BRAZIL.
,617
- boa com as provas que contra elles houvesse, ou in-
Despaciio. ternados ser postos em logares onde d'elles nada
Ms. 8d'out. .

1617. podesse recear-se.


Medo dos Até dos Argelinos se temia um desembarque no
Argelinos. . .., ,

Brazil. Tinhão elles ultimamente saqueado a ilha de


Sancta Maria, levando captivos a maior parte dos
5 de dez.moradores de Porto
Souza ordem para Saneto. Recebeu
precaver-se, não pois D. Luiz
fossem estes de
ini-
1617
Despacho
ifii7. - r i '
Ms. " migos extender até ao Novo Mundo as suas depreda-
ções. Pouco depois ordenou-se ao governador que
regressasse a Bahia, tendo expirado o prazo da sua
L L
D". Ms. °
^ifiiíT' residência em Olinda, nem sendo mais necessa na
0
alli a sua presença para prover á conquista do Mara-
nhão. Mandou-se-lhe uma esquadra para guardara
costa, mas logo se declarou que as rendas da coroa
outra nenhuma despeza mais comportavâo. 0 go-
verno da índia concedera uns novos direitos de con-
sulado para fim análogo, e devia D. Luiz consultar
com as câmaras sobre o modo de levantarem-so os
fundos precizos. Um imposto como o do consulado
em Portugal, era o que ao governador se lembrava
que propozesse. Deu-se-lhe por mui recommendada
a urgência do caso, sendo tão numerosos e aventu-
reiros os inimigos, e crescendo o mal com a tardança
do remédio; devia pois empregar todos os meios de
Despachos, persuadir os povos a annuirem aos propostos tribu-
r l
Ms. 14 d'ag., , . i-
28 d'ag, tos, tao claramente se reconhecia nas câmaras o th-
6 de nov., '
de d • reito-de lançar fintas.
1618.
HISTORIA DO BRAZIL. 127
Por este tempo parece a corte de Madrid ter*re- 1618
ceado da parte da Hollanda alguma couza mais do doCfiihòde
r
, _ D. Antônio.

que a sua habitual actividade em mercadejar com os


índios, ou do que os seus antigos projectos de fundar
estabelecimentos no Amazonas. Os agentes portugue-
zes em Flandres denunciarão queD. Manoel, filho do
prior do Crato D. Antônio, a quem succedera nas
pretenções, enlrctinha correspondência com o Brazil.
A pessoa que se indicava como em communicação
cem elle, era um tal Francisco, que tinha o posto de
capitão na Parahyba, perto da cidade da Bahia, e
relações judaicas na Hollanda. Um franciscano, por
nome Fr. Pedro da Annunciação, chegara ultima-
mente a Flandres para este negocio, e apparelhavão-
se alli com destino ao Brazil navios em que devia ir
o sobrinho d'um certo Gabriel Ribeiro, de quem
Francisco eslava á espera. Sem confiar implicita-
mente n'esta informação, não deixou o governo
hespanhol de inquietar-se com um plano que nas
suas conseqüências podia por ventura fazer reviver
as pretenções da casa de D. Antônio. Incumbiu pois
o governador de preparar-se contra qualquer em-
preza que podessem tentar os Hollandezes, inque-
rindo com a maior reserva sobre o caracter e con-
ducla de Ribeiro, e procedendo como por mais
acertado tivesse o bem da justiça e da coroa, de modo
que, a haver verdade n'isto, se pozesse termo a qual- cana itegia.
quer receio d'esla parte. ^ide^pt.
128 HISTORIA DO RRAZIL.
1618
' Aos Judeos disfarçados, e a esses desgraçados, a
chrfftaos* quem a opprobriosa denominação de christãos novos
novos ' , • • i
no Brazil. expunha ao desprezo e ódio de seus visinhos, devia
na verdade ser fácil tornarem-se mãos subdilos no
Rrazil, vivendo como vivião debaixo de continua im-
pressão da injustiça e sem razão que soffrião. Nem
lhes falecião motivos para recearem que o mais
infernal systema de perseguição que jamais inventou
a maldade dos homens, estivesse a ponto de. ampliar-
se a uma parte dos domínios portuguezes, cflja
maior fortuna era ter até então escapado a similhante
flagello. A inquisição, que ainda mais do que de
outro qualquer paiz foi a desgraça de Hespanha e
Portugal, prendera ultimamente no Porto quasi todos
os mercadores de origem judaica, por mais remota
que fosse. Neste acto, como em todos os da mesma
natureza, fora a superstição pretexto, a cobiça mo-
tivo. Muitas das victimas estavão envolvidas nocom-
mercio com o Brazil, e o inquisidor-geral requereu
do governo que ajudasse o saneto officio a haver a
porção da fazenda d'ellas, que se achasse nas mãos
dos seus agentes n'esle paiz. Derão-se pois a D. Luiz
de Souza instrucçõês que nomeasse para este cffeito
um ministro confidencial a quem prestaria lodo o
apoio. Mais se lhe ordenou que remettesse uma lista
de todos os christãos novos do Brazil, com as mais
minuciosas informações que podesse colher sobre
seus haveres e logares de residência, apontando par-
HISTORIA DO BRAZIL. 129
ticularmenle os que dentre elles podessem ser sus- ltil8-
peitos de manter relações com os estrangeiros. Peza- M^lodenov.
das como forão as alribulações que os Hollandezes
pouco depois acarretarão sobre o Brazil, não é impro-
vável que a guerra que se seguiu obstasse á intro-
ducção do saneto officio alli, medida que parece me-
ditava então a corte de Madrid.
No governo de D. Luiz de Souza forão reguladas e Dospczasdo
l.stado.
fixadas asdespezas do estado, tendo reinado até então
grande desordem e irregularidade nos pagamentos.
Os vencimentos todos do governador e de vinte apa-
niguados não passavão de dous contos, incluindo
quatrocentos mil reis que annualmenle se devião
distribuir em remuneração de serviços públicos. A
renda annual do bispo e.do seu cabido erão dous
contos oitocentos e oitenta e quatro mil reis; os vigá-
rios de doze parochias da capitania da Bahia tinhão
cada um sua congrua de setenta e tres mil nove-
centos e vinte reis; oitenta e dous mil reis por anno
erão a consignação dos capuchinhos da cidade; outro
tanto tinhão os benedictinos e cento e vinte os Jesuí-
tas. 0 maior ordenado civil e judicial era de quatro-
centos mil reis, c o maior soldo militar de cento e
setenta e dous mil e oitocentos reis. A despeza total
da capilania da Bahia era de dezoito contos, seis-
cenlos e oitenta e um mil oitocentos e quarenta reis;
com as do Rio de Janeiro gastavão-se menos qui-
nhentas libras; e em todo o Brazil, incluindo todos
150 HISTORIA DO BRAZIL.
1618
os seus estabelecimentos civis, judiciaes, militares e
Regimento, ecclesiasticos, não se gastavão por anno mais de
Ms. de. 24
dout.i6iG. quinze mu libras.
Propostapara Tão pouco custava então a administração d'estas
r
adminis- . . .
\lfu™a°l colônias, e comtudo era o governo mais rico da Eu-
PaM brazil. r Q p a ^ue g e q u e ; x a v a u e n g 0 poder fazer mais despezas
para protegel-as, nem pagar o que se havia gasto com
a jornada do Maranhão e aventuras no Amazonas.
Nomeou-se uma meza para cobrar por via de exe-
Despacho. cução todas as dividas de que o lhesouro real fosse
3
Ms. de 10 de . \
jmi.i6i7. credor. As décimas das capitanias do norte (e erão
estas as mais productivas) arrendárão-se em 1618
por sessenta e sete mil cruzados, devendo parte ser
paga em roupa para a guarnição como de costume.
Ficava esta somma aquém do producto dos annos
anteriores, pois que se allega ler sido o preço mais
alto que se pôde obter, tendo-se plantado menos
Despacho, canna, e havido mortalidade entre os escravos. 0 pau
r
Ms. de 29 de '
I r 8,
28de*-uí brazil era remettido para a metrópole por conta do
a?. dee 1628. rei, até que se podesse fazer um conlracto vantajoso;
continuado por alguns ajinos este systema, taes in-
convenientes n'elle se acharão, e tão activo foi o con-
trabando, que o governo tomou em consideração se
não lhe seria melhor entregar este ramo dos seus
negócios inteiramente nas mãos dos Jesuítas, que,
pela sua grande e amplo-derramada influencia enlre
os índios, mais facilmente do que ninguém poderião
excluir os interlopos. Qualquer que podesse ter sido
HISTORIA DO BRAZIL. 131
o resultado d'esta deliberação, perdeu-se de vista o 1618.

plano com o rebentar d'uma contenda, não pelo


trafico n'um artigo de producção, mas pelo domínio
do próprio solo.
0 principio do governo n'esta epocha parece ter Pesca
r l
° de balei
de baleias.

sido que todos os gêneros de grande valor commer-


cial produzidos pela natureza, erão realengos, perten-
cendo lanto á coroa em virtude de tal máxima tudo
o que d'estes produetos se podia converter em the-
souro, como d'ella seria esse mesmo thesouro, se fosse
achado em espécie. No caso de minas preciosas era o
principio reconhecido pelo direito europeo, e quando
o ampliarão ao pau brazil, parece ter-se admittido o
direito exclusivo como um privilegio que a coroa
adquirira pelas suas despezas com a descoberta e
colonização do paiz. 0 que n'isto havia d'impolilico
ninguém o suspeitara, e até agora nenhum outro
effeito mao se notara, do que o da grande tentação
que se offerecia ao commercio de contrabando. Mas
a ampliação d'este principio ás águas ter-se-ia limi-
tado á pesca das pérolas, a não ter sido a cobiça d'um
indivíduo que no governo de Gaspar de Souza propoz
pagar ao thesouro cincoenta mil reis por anno pelo
privilegio exclusivo de matar baleias. A' impopula-
ridade da medida não se attendeu, e a somma,
mesquinha como era, foi acceita na bem fundada
esperança de maior beneficio para o futuro. Com
effeito dentro de poucos annos ja a renda tinha
17,2 HISTORIA DO BRAZIL.
lcl8
- subido a doze vezes aquella quantia, e ao lindar o
governo de D. Luiz de Souza appareceu uma offerla
para arrendar esta pescaria por cinco annos a scte-
centos mil reis annuaes, e pagar a renda em Lisboa,
onde poderia ser applicada para o serviço geral do
estado, bastando a demais receita do Brazil para suas
despezas, e sendo esta evidentemente um excesso
liquido. Pareceu a proposta em extremo vantajosa,
lendo-se receado abatimento no conlraclo, por ler
havido grande falta de assucar no anno precedente, e
Despacho. ~
,I e 8 ,e
nov i6 22' descido proporcionalmente o preço de todas as couzas.
D. Luiz porem, cuja administração chegara ao seu
termo, representou francamente ao rei que a justiça
e legalidade d'esle monopólio erão mui questioná-
veis; que como medida fiscal era desnecessário para
o estado, sendo para o povo oneroso nos seuseffeilos
direclos sobre o commcrcio. Ha\ia muitos Jesuitas,
dizia elle, que em conversa tinhão emittido a opi-
nião que similhante couza não podia ler fundamento
legal nem equitativo. O rei podia lançar um imposlo
sobre cada baleia que se apanhasse, e sobre o azeite
que d'ella se extrahisse; era esta sua indubitavcl
prerogativa, se lhe parecesse bom fazel-a valer,-e
todas as pessoas serião em consciência obrigadas a
pagar o direito; mas converter em monopólio uma
pesca que era livre, era o que como soberano catho-
lico e christâo não podia. Tão livre era no Brazil a
linguagem do direito no reinado dos Philippes. Nem
HISTORIA DO BRAZIL. 133
d618
d'isto havia necessidade, proseguia o ex-governador,
pois que pagas todas as obrigações do thesouro,
deixava elle no erário, ao entregar a administração,
um saldo de cincoenla e quatro mil e seiscenlos cru-
zados, dos quaes dez mil em dinheiro; e o conlracto
se tornaria intolerável oppressão, aeceitando-se os
lermos do proponente, que exigia que não se lhe
laxasse o preço ao azeite. Poria isto á mercê do con-
Iraclador os engenhos para os quaes era este pro-
ducto de tão indeclinável necessidade. Talvez se
aüendesse a esta parte da representação de D. Luiz
de Souza, mas não era provável que um governo
que embora prospero no Brazil, se achava envolvido
cm grandes despezas na Europa, abandonasse um
monopólio que lhe havião posto nas mãos, c toda a
pescaria continuou desde então a fazer se ja por con-
lracto, ja por conta da coroa. M^itfe;
Também no governo de D. Luiz de Souza se pro- ,,esca
dl |,er0 ÍIS
palou que na capitania de S. Vicente havião Gonçalo '
da Cos'a d'Almeida e João Percs descoberto uma
pesca de pérolas. Duvidoso era o valor do achado, e
deixou-se que os aventureiros por certo espaço o ex-
plorassem em próprio proveito; mas o governador
recebeu instrucçõês secretas para protegera pescaria,
se fosse profícua, contra corsários e interlopos eu-
ropeos de qualquer nação que fossem. M^d^VTd.-
Havião-se renovado as pesquizas em busca de ouro,
. , , Cata de onrn.
proseguindo-se 11 ellas com muila perseverança no
134 HISTORIA DO BRAZIL.
1618. governo de D. Francisco de Souza, e activando-as
especialmente Salvador Corrêa de Sá no Rio de Ja-
neiro. Mas como á espectativa não correspondesse o
Despacho, resultado, declarárão-se as minas abertas a todos os
"ovdi67i8e subditos d'el-rei, para que nellas trabalhasse quem
quizesse, conforme as leis, e pagando o quinto, como
Noticia
de minas de se praclicava nas índias hespanholas. Por este mesmo
prata.
tempo offereceu-se um certo Melchior Dias Morea a
mostrar ao governo riquíssimas minas de prata que
havia descoberto, promctlendo-se-lhe em recompensa,
se assim o cumprisse a fidalguia, o cargo de admi-
nistrador das mesmas minas, e, a respeito da con-
Despacho. cessão de terras que requeria, todos os favores que
dez. i6i7.c s e lhe podessem fazer sem lesão de terceiro. Mas
como as de Roberio Dias acabarão em tristes decep-
27
mâr.' i6i8. ções estas offertas brilhanles. A corte porem apren-
dera a cuidar no Rrazil em outros produetosque não
fossem so os melaes preciosos. Exigiu informações
sobre o algodão e outras plantas, das quaes, se dizia,
podião fazer-se mechas para serviço do exercito e da
armada. Em Sergipe tinhão-se encontrado minas de
Minas
de salitre salilre, de que se podião tirar por anno dous mil
quintaes. Grande falha d'esle artigo havia em Por-
tugal, e o rei mandou estabelecer no Rrazil uma fa-
brica de pólvora : devia ir de Lisboa uma pessoa
perita n'esle mister, e ^e em outra parle das colônias
apparecesse mais salilre, havia o governador de rc-
melter para a melropole amostras avulladas. Enlen-
HISTORIA DO BRAZIL. 135
1618
dia-se que a pólvora poderia fazer-se mais barata no -
Brazil do que na mãe pátria, e contava-se com que
. , . Despachos.
alli se fabricasse bastante para o próprio consumo, e MS. de 29 d«
1 l l
jun. e 5 de
<lez 161T
para exportar para esta. - -
Entretanto viu-se a capitania do Pará perturbada C^
S
B^,S
por dissenções serias. Andava Antônio Cabral, sobri-
nho de Caldeira, inimizado com um capitão chamado
Álvaro Neto, bom soldado, e geralmente estimado,
e um dia, no logar mais publico da villa, cahindo
sobre elle, assassinou-o. Ao alarido que se fez, acu-
dirão Paulo da Rocha e Thadeo de Passos, amigos
íntimos do morto, e vendo Caldeira no ajunetamento,
d'elle exigirão justiça. Mas o commandante, que fora
um tanto avesso a Neto, não estava disposto a tomar
as devidas medidas para castigo do matador. Não
poderão os capitães ver isto, e tão livremente ma-
nifestarão a sua justa indignação, que percebendo-se
a si próprios em perigo, acolherão-se ao convento
dos frades de Saneto Antônio. Reprimindo por em
tjuanto o seu resentimento, mandou Caldeira recolher
o sobrinho á prizão ; mas passados alguns dias deixou
que o supplicassem para suspender o processo, at-
tendeu ás solicitações que lhe fazião, sobre pretexto
de se carecer dos serviços do prezo contra os índios
rebellados, e pol o em liberdade. Soltando então os
diques á sua cólera contra os dous capitães que se
havião asylado, mandou uma partida de soldados
que se apoderassem d'elles.
130 HISTORIA DO BRAZIL.
leis. Pouco casu fazem os Porluguezesd'umhomicídio':
Caldeira . . . .
deposta peio uma ma policia e peor religião tirão-lhes todo o re-
ceio de castigo, tanto .humano como divino, mas tudo
o que cheira a sacrilégio os horroriza. Forão os sol-
dados de ma vontade ao seu mandado, e voltarão
nada feito; um dos frades tinha recebido d'elles
uma contusão accidental, o que mais lhes augmen-
tara o horror. Mandou então o commandante setenta
homens a arrombarem o convento ; derão estes traça
como gastar o resto do dia com uma palissada exte-
rior, e retirárão-se, dizendo, que fora imprudente
enlrar com noute fechada. Impaciente aguardou Cal-
deira a aurora, que lhe havia de pôr nas mãos os
seus inimigos; mas ao romper d'alva achou amoti-
nada toda a guarnição, que, carregando-o de ferros,
elegeu em seu logar Rallhazar Rodrigues de Mello,
o official que havia sido mandado a forçar o con-
vento. Acceitou este o commando, pretextando coac-
ção, restabeleceu a ordem, e mandou avizo do que
havia suecedido ao governador D. Luiz de Souza, e
á corte de Madrid. A guerra com os índios rebella-
tlos, como oschamavão, continuava ainda, nem havia
derrotas que intimidassem este povo bravo e oppri-
rnido. Amaro, que com a sua manha provocara a
insurreição, foi feito prizioneiro e despedaçado na
boca d'uma peça. Acommcltérão os naluraes o forte
1
Como qua-' todas a,- proposições geraes é falsa semelhante a>sei-
c;uo. F. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 137
de Belém, e todos os esforços dos Portuguezes forão 10ltí-
precizos para a defeza, mas morto por um tiro feliz B ^ ^
m i6um
o coudel dos assaltantes, retirárão-se estes. - -
Entretanlo tinha Domingos da Costa entregado Domingo,
Maciel nas mãos do novo governador, D. Luiz de ^ ^
Souza, em Olinda, que era então, como logar mais
visinho do theatro da acção, o Maranhão, a residên-
cia do governador general. Mas as accusações escrip-
tas de Anlonio de Albuquerque não poderão tanto
como a defeza pessoal do accusado; innocentado de
toda a culpa foi Maciel tomar o commando contra
os Tupinambás, e D. Luiz, confirmando com uma
palentea nomeação de Antônio de Albuquerque para
a capitania, deu-lhe por ajudante Domingos da Costa,
e no caso de não concordarem os dous sobre matéria
de importância, devia ter voto decizivo o ouvidor
yeral Luiz de Madureira. Desconfiou porem que Al-=
buquerque não acceitaria a capitania com estas con-
dições, e logo nomeou Domingos da Cosia para suc-
ceder-lhc, se assim acontecesse. Bom fundamento
tinha a desconfiança, pois que Albuquerque, alle-
gando ler de ir a Madrid por causa da morte do pae,
resignou o governo. 469471.'
0 mesmo navio em que ia Domingos paraS. Luiz, r.cmettem-se
levou também Jeronymo Fragoso de Albuquerque, Portugal o»
J
° l i ' amotinados-
primo de Antônio de Albuquerque, nomeado para a «leBeiem.
capitania do Pará. As suas instrucçõês erão remelter
prezos para Portugal o assassino Cabral, seu tio Cal-
138 HISTORIA DO BRAZIL.
cio deira, Balthazar Rodrigues, que acceitara o governo
das mãos dos amotinados, e os dous ofíiciaes que
C e
e ntoMaciei havião capitaneado a revolta. Apenas feito isto, prin-
Bento
cipiou o novo capilão-mór a proseguir d'um lado na
guerra contra os míseros Tupinambás, em quanto
Bento Maciel, que de Pernambuco trouxera oitenta
soldados e quatrocentos frecheiros indígenas, come-
çava da opposta praia de S. Luiz a sua carreira de
extermínio até Relem, matando e arrastando á escra-
vidão quanto índio apanhava. Trazia ordens para
inquerir ainda mais sobre a sèdição, e posto que os
mais culpados tivessem ja fugido ou sido remettidos
para Portugal, uns poucos de pobres diabos que por
sua desgraça se havião deixado ficar, julgando a
parte que tinhão tomado mui insignificante para
haver de altrahir altenção, forão prezos e embarca-
dos para a metrópole, onde jazerão annos e annos
nos cárceres, com pouca probabilidade de jamais se
lhes instaurar o processo. Executada esta parte da
sua commissâo, tornou Maciel a atirar-se aos selva-
gens. Dizia o capitão-mór que bastava ja de vingança
tomada, sendo tempo de conceder a paz, mas Maciel
respondeu que, lendo sido nomeado para o com-
mando n'esta guerra, era a elle que locava dizer
quando havia de ter fim. Sentiu Jeronymo Fragoso
toda a insolencia d'esta resposta, faleceu-lhe porem
o tempo de promover a demissão d'esle homem
damninho e sanguinário, pois morreu dentro de
HISTORIA DO BRAZIL. 139
16i9
poucas semanas, lendo nomeado seu primo Mathias '
d'Albuquerque para sueceder-lhe. O povo o depoz,
pretendendo que nenhum capitão tinha poder de
nomear suecessor, e elegeu Custodio Valente e um
frade para o governo. Teixeira vociferou contra estas
medidas, mas reconciliárão-no com ellas, admit-
tindo-o como terceiro á governança. Macielquiz fazer
• valer o seu direito á auetoridade, mas como lh'o
não admitlissem, foi por deante no seu nefando tra-
fico de caçar índios para vendel-os escravos. Não
tardou que Valente embarcasse para Portugal; o
frade não se vendo assaz popular na sua nova qua-
lidade, recolheu-se ao convento, e ficou o governo
nas mãos de Teixeira. Veio então Maciel a Belém,
onde tentou suscitar contra elle um levantamento,
mas, sendo o novo commandante tão activo como
vigilante, nada conseguiu, e vendo gorarem-lhe todos
1(i 20
os planos, voltou ao Maranhão, onde ergueu um '
üíiielo.

forte á embocadura do Itapicurú. r,i-m.


Com a administração de Domingos da Costa ia 1021.
prosperando o Maranhão. Parece que o governo.de ao cM'aers^ll3o
Madrid julgou estes novos estabelecimentos d i g n o s ,ios0A0çôres.
de mais atlenção, do que o Brazil jamais merecera
desde a morte de D. João III. Jorge de Lemos Biten-
cjurl, sobre promessa d'uma commenda que valia
quatrocentos mil reis, levou dos Açores duzentos co-
lonos, aos quaes logo se seguirão outros quarenta
cujo fornecimento o provedor-mór d'estas ilhas,
H„ H I S T O R I A DO BRAZIL
Mui. membro da mesma familia, conlraclou também com
a coroa. Chegarão estes reforços mui opportunos para
encherem o vácuo que as bexigas havião deixado na
colônia. Os índios soffrérão terrivelmente, passando
poucos do terceiro dia depois de manifestada a mo-
léstia. Mas não consta que a doença alcançasse d'enlre
os naturaesos que vivião inimigos dos Portuguezes,
tão vasto espaço de devastação se havia posto de
permeio,
u neno. No anuo seguinte veio Diogo de Mendonça Furludo
doSSão. por governador general. Com elle vinha Antônio
Moniz Barreiros, rico morador de Pernambuco que
havia barganhado com o governo o oflicio de prove-
dor-mórda fazenda real, obrigando se a erigir dous
engenhos de assucar na conquista do Maranhão. Afim
de tornar esle negocio mais lucrativo a todos os res-
peitos para elle mesmo, achou meios de persuadir
o governador a dar-lhe ao filho a capitania de S. Luiz,
apezar de haver muitos outros pretendentes, que
todos devião ter melhores direitos, e apezar de não
ser o jovem Barreiros manifestamente de edade, para
coníiar-se-lhe similhante cargo. A islo se obviou
obrigando-o a consultar sobre lodosos negócios im-
portantes com Fr. Luiz Figueira, jesuíta, que com
outro da.mesma ordem o acompanhava. Mal pozerão
estes Jesuítas pé no Maranhão, logo contra elles se
excitou uma assuada. Com tanta resolução e perse-
verança tinlia a Companhia combalido oiniquopro-
HISTORIA DO BRAZIL. III
10-21.
ceder dos Portuguezes para com os nattiraes, e o
execrando systema da escravidão, que não podia
deixar de ser temida e odiada pelos senhores d'escra-
vos. Não bastou, para proteger estes padres, o seu
caracter religioso, e o .senado da câmara de S. Luiz
leve de requerer ao capilão-mór que os fizesse sahir
da capitania o mais depressa possível; mas Figueira,
que presente estava ao fazer-se este requerimento,
respondeu que havião de fazcl-o em postas se querião
que abandonasse o exercício do seu dever n'aquelle
logar. Tanto o novo capitão, como o seu predecessor
Domingos, invidárão toda a sua aucloridade e in-
fluencia, buscando apaziguar o povo. Para socegar-
llie os clamores, foi precizo que os dous Jesuítas
assignassem uma promessa escripta de jamais se in-
gerirem com os índios mansos, sob pena de desterro
immedialo, c perda de todos os bens que podesse
. • lierreilo.
possuir a sua ordem. 492 96.
Por este tempo foi Maciel legalmente nomeado ca- Mac d
r> i - i i capitão do
Pará.
pilão-mor do Para, depois de por duas vezes ter
tentado fazer-se tal a si mesmo por meios indevidos.
Arreceava-seopovo de sua bem conhecida crueldade,
mas elle achou desafogo para ella nos pobres índios
entre os quaes fez Teixeira por sua ordem terríveis
estragos. Na primavera do anno seguinte chegou
Luiz Aranha de Vasconcellos em commissão especial
de Madrid, para explorar o Amazonas e reconhecer
todos os logares oecupados pelos Hollandezes e outros
142 HISTORIA DO BRAZIL.
im
- interlopos. Suas instrucçõês mandavão-no ir a Belém
consultar com Maciel, e alli decidir em concelho com
elle, com o capitão da sua caravela e os dous pilotos,
de que lado principiar a exploração, se da banda da
capital, se do norle, onde se suppunha acharem-se
estes intrusos. Resolveu-se que principiaria do lado
Berredo. , , »
499-501. dO S U l .
E.pediòo Não tardarão a chegar a Belém repetidas noticias
ao Curupá e , , . 1 i • • • n
bocas do de achar-se Aranha cercado de inimigos no no lu-
Amazonas.
rupá, e Maciel sahiu immediatamente a soccorrel-o
com setenta soldados c mil frecheiros indigenas n'uma
caravela e vinte e duas canoas. Achou Aranha ja de
volta : era falsa a nova de ter sido cercado, mas
tinha encontrado colonos no Curupá, e outros ramaes
do grande rio, não podendo por falta de força effec-
tuar o seu reconhecimento. Resolveu-se que elle
volveria atraz, e Teixeira com elle no outro navio,
em quanto Maciel costearia com as canoas, sondando
todos os rios até ao Curupá, que seria o logar da
juneção. Effectuou-se esta, tendo-se Teixeira que se
separara do outro, visto em grande perigo de baixios,
correntes, tempestades, falta de piloto, e numerosos
barcos inimigos que frequentavão aquellas paragens.
Ao mesmo tempo chegou de Belém outro destaca-
mento, que Maciel ordenara que o seguisse. No Cu-
rupá acharão aventureiros hollandezes, inglezes e
francezes, com trincheiras para defeza do porto, e
grande copia de naturaes por auxiliares. Maciel os
HISTORIA DO BRAZIL. 143
expediu d'este posto, investiu muitas das suas outras
feilorias que queimou, e seguiu para a ilha dos
Tocujús, uma das da barra do Amazonas. Havia aqui
muitas e bem fortificadas feilorias, que todas forão
abandonadas á approximação dos Portuguezes. Pre-
parava se Maciel para dar caça aos fugitivos no inte-
rior da ilha, quando-soube que em soecorro d'elles
vinha um navio de considerável força: investiu-o e
queimou-o, perecendo toda a tripolação excepto um
moço, com tão atroz crueldade se fazia n'aquelles
tempos a guerra por mar! Tinha sido intenção de
Maciel formar um estabelecimento na ilha dos Tocu-
jús, mas abandonando o projecto voltou a Curupá,
e alli, n'um logar chamado Mariocay, plantou um
forte que ainda hoje conserva o nome de Saneto An-
tônio, sob cujo padroado foi erguido. Preenchido
assim o fim da expedição, regressou a Belém.
A partir d'este tempo, assumiu Maciel o titulo de
Primeiro Descobridor e Conquistador dos rios das
Amazonas e do Curupá; Luiz Aranha, que primeiro
do que elle havia entrado no Curupá, tomou o mesmo
falso e pomposo cognome, aprazendo-lhes a ambos
esquecer que havião encontrado Europeos no ultimo
rio, que a gigantesca corrente havia sido navegada
por Orellana e pelo desesperado aventureiro Lope de
Aguirre vindos do outro lado do continente, e que
este mesmo labyrinlho de ilhas e canaes, que era o
mais que elles tinhão visto, havia sido explorado mais
\\\ HISTORIA DO BRAZIL.
'621- d'um século antes por um dos seus próprios conlcr-
raneos, piloto da costa, por nome Meirinho, e cujo
roleiro para uso dos que tentassem a mesma difficil
MI Ci navegação, existia ainda.
1024. Com razão se considerarão em Madrid como de
o Maranhão o-rande importância estas conquistas, e sendo as an-
e o Para & *•

" t o " 1 ligas capitanias ja vastas bastante para um so gover-


in
'XT nador, e as communicações do Maranhão para Per-
nambuco lão difficeis pelo constante vento leste,
forão as conquistas do Maranhão e Pará separadas
do governo geral do Brazil, com o titulo de Estado,
para cujo primeiro governador foi nomeado Fran-
cisco Coelho de Carvalho. Mas ja os dias mãos do
Brazil se approximavão, e em logar de .alargarem
os seus estabelecimentos n'aquelle paiz, virão-se os
MS-tfiB Portuguezes a ponto de perder quantos ja possuiào.
HISTORIA DO BRAZIL. 145
. • , 1622.

CAPITULO XIV

Formação d'uma companhia das índias Occidenlaes na Hollanda. S. Sal-


vador tomada pelos Hollandezes e restaurada pelos Hespanhoes e Por-
tuguezes commandados por D. Fadrique de Toledo. — Negócios do
MaranhSo. — Fazem os Hollandezes sahir nova expedição e apoderão-se
de Olinda e do Recife.

Se Philippe IV tivesse cahido nas mãos d'um mi-


nistro prudente, seria pela paz, pela restituição do
Palatinado e pelo casamento da infanta com o prín-
cipe inglez, que terião terminado as tregoas de doze
annos com a Hollanda : ter serião poupado muitas
misérias á Europa, e a Hespanha houvera tido tempo
de refazer-se de suas exhaustas forças. Mas Philippe
e Jaime I forão bigodeados nas suas disposições paci-
ficas pelos seus favoritos, e Olivares e Buckingham
são auctores dos crimes e desgraças que se seguirão.
Com razão prezavão os Hollandezes sobre todas as
couzas a liberdade : depois da liberdade vinha a ga-
nância. Atacando as colônias hespanholas, empobre-
cião o inimigo, e a si próprios se enriquecião ao
mesmo tempo. Era o que no oriente havião feito com A
tão bom resultado que pozerâo-se agora a olhar para hollandeza
ft"dias
Occidentaes.
a America, e propoz-se a encorporação d'uma com
U
146 HISTORIA DO BRAZIL.
1622
- panhia das índias Occidenlaes, cujo fim principal
devia ser fazer conquistas no Brazil. Serias objecções
militavão contra esta proposta. Ponderava-se que era
a Hollanda mui pequena para tão ambiciosos pro-
jectos; que para duas companhias seria difficil achar
gente; e que os productos do Brazil e das possessões
asiáticas erão tão similhantes que uma companhia
faria mal á outra, trazendo ao mercado gêneros
quasi os mesmos. 0 Iriumpho, se triumpho hou-
vesse, excitaria a inveja das potências europeas ora
amigas, e da inveja cedo nasceria a hostilidade.
Mas não havia que contar com a victoria. Como os
da índia não erão os estabelecimentos portuguezes
no Brazil; alli se tinhão os colonos no decurso d'um
século ligado com os naturaes, que lhes darião pode-
roso auxilio contra quaesquer invasores, cumprindo
recordar que tilo fáceis como ilh as tomadas se não
defendião conquistas n'um continente.
Em resposta a estas objecções dizia-se que os na-
turaes ardião por arrojar o jugo dos Portuguezes, e
que estes mesmos, uns por ódio a Castella, outros
por seus casamentos com christãos novos, e conse-
qüente receio da inquisição, ou de boa mente farião
causa commum com os Hollandezes, ou fraca resis-
tência lhes opporião, para o que bastava Iractal-os
bem e dar-lhes e plena liberdade de consciência.
S. Salvador e Olinda, as duas praças, cuja posse mais
importava haver, erão ambas accessiveis por mar; e
HISTORIA DO BRAZIL 147
i m
vencidas ellas, fácil era o caminho do Pacifico, e á
mãoficavãoos thesouros do Peru. Assim ficaria pri-
vada a Hespanha dos próprios meios da.guerra. E
que se arriscava com a tentativa? Do estado nada se
exigia senão homens que serião levantados e manti-
dos á custa da companhia, e que, não sendo assim
utilmenle empregados fora, podião tornar-se peri-
gosos dentro do paiz. Também como é costume, se
perverteu o christianismo, fazendo-o servir aos fins
da ambição e da avareza, e como motivo para invadir
o Brazil se allegou que uma religião pura iria por
este meio assentar-se na America. Prevalecerão estes
argumentos: organizou-se a companhia ', derão se-
lhc plenos poderes, e prohibiu-se por vinte annos a
todos os outros subditos das Provincias Unidas o
commercio com a America, e com a fronteira costa
da África do Cabo da Boa Esperança ao Trópico de pr. io.5'
. S. Giuseppc.
Câncer. Todos os seis annos devia a companhia dar „p-5]-
1
Cespedes.
L% 5 c u
conta do seu estado. ' - -
Não erão indignos dos vastos meios postos á sua 1623.
disposição os espíritos da nova companh ia, que re-
solveu principiar as suas operações por uma tenta-
tiva contra a capital do Brazil. Tomou-se esta ousada
determinação por se conhecer melhor a importância
d'esta posição, do que o caracter dos Portuguezes,
1
A carta de encorporação e regulamento da companhia podem
achar-se na Historie van de West-lndische Compagnia por Joannes
de Laet, e na obra grande de A.ilzema, t. I, p. 62.
148 HISTORIA DO BRAZIL.
1623
- dos quaes se esperava menos resistência do que da
• parte dos Hespanhoes, como gente mais fácil de ga-
nhar-se por amiga, ou de obrigarse por pacifica a
ippareiha-se viver auieta e sujeita. Depressa se apparelhou uma
J l
uma frota
contra • .
o Brazil.
frota ao commando de Jacob Willekens; por almi-
rante lhe pozerâo o famoso Pedro Pietersz Heyn, que
de simples marinheiro se erguera áquelle posto.
Hans Vandort foi por general de terra. Por intermé-
dio dos judeos estabelecidos no Brazil, se colherão
todas as informações necessárias, que era n'aquelles
dias a Hollanda o so paiz da christandade onde este
opprimidissimo povo vivia tranquillo, e pilotos hol-
landezes erão de todas as couzas com que mais fun-
damento havia para contar-se. Mas assim como os
Hollandezes compravão informações, também as
vendião : e houve em Amsterdão mercadores que
mandarão recado a Lisboa, advertindo o governo
que se a ameaça se dirigia contra a índia, o golpe
era destinado ao Brazil. Egual admoestação fez a
infanta Isabel de Flandres para Madrid. Mas nada
podia despertar Olivares : era systema da côrle hes-
panhola enfraquecer Portugal por todos os modos,
e ou não deu credito á denuncia, ou não considerou
quaes serião para as suas próprias colônias as conse-
qüências de perderem-se as portuguezas.
Dispersão Sahiu a frota em dezembro de 1625; um temporal
ila armada
a dispersou á vista de Plymouth, e so em Cabo Verde
se pôde effectuar de novo a juncção. Passada a linha,
. HISTORIA DO BRAZIL. 149
1623
abrirão os commandantes as suas instrucçõês, e
acharão ordem de atacar S. Salvador, capital do
Brazil. Nenhuma commissão lhes podia ser mais bem
vinda, mas nova tempestade contrariou-lhes as espe-
ranças, e outra vez se dispersou a armada. Vandort
foi repellido para Serra Leoa; Willekens forçou o
rumo contra o vento, e ganhou o Morro de S. Paulo,
a doze legoas da Bahia, onde se poz a capear ao largo,
aguardando Vandort : também esperava que esta
demora diminuiria a inquietação que causara o seu
apparecimento, suppondo os Portuguezes que elle
teria vindo alli arribado.
Descuidavão-se os Brazileiros a si próprios quasi s. salvador
tanto, como a corte de Madrid se esquecia d'elles.
Bardejava o Hollandez perto da costa a doze legoas
da capital havia ja tres dias, e ainda o governador *
nenhum avizo recebera; e o primeiro que lhe foi so
rezava d'um navio. Não tardarão novas mais certas,
e então principiou elle a fortificar postos longamente
demais abandonados; passou revista ás suas forças,
que monlavão a mil e seiscentos mosqueteiros1 cm
dezaseis companhias, e reuniu na visinhança quantos
podião pegar em armas. Era então bispo da Bahia
D. Marcos Teixeira, personagem que exercera cargos
na universidade de Coimbra, na sé de Évora e na

1
Compunha-se este exercito irregular de moradores ás pressas ar-
madas e sem practica alguma d'arte da guerra; não passando de 80
homens a tropa de linha, segundo o testimunho de Brito Freire. F. P.
150 HISTORIA DO BRAZIL.
1623
- inquisição de Lisboa, com o credito que podião dar
laes officios. Beinava entre elle e o governador al-
guma má vontade, c talvez isto motivasse divergência
de opinião na actual conjunctura. Terião combatido
os que do Beconcavo havião sido chamados para
defeza da cidade, se o inimigo se houvera mostrado,
quando elles esperavão; poucos dias bastarão para
arrefecer-lhes o ardor, e sentindo os males de sua
ausência de casa e dos negócios, perdida a paciência
persuadirão-se a si e aos outros que os Hollandezes
so havião vindo como de costume a piratear navios.
O bispo injustificavelmente lhes augmentou o descon-
tentamento, dizendo publicamente que não cria no
perigo, e que maior mal se faria a estes indivíduos
detendo-os, do que poderião compensar os serviços
« que auferisse o estado; e não contente ainda com
usar de tão damninha linguagem na conversação, no
Tamaio de mesmo sentido pregava do púlpito. O resultado foi
r r
Vargas. 35. - ° .
B"to Freire, que as forças ruraes, animadas com o exemplo de
insubordinação da parte de quem por primeiro dever
tinha inculcar a obediência, amotinadas desertarão
da cidade. Não tardou o prelado a ter razão de arre-
pender-se do seu próprio feito; e querendo reparal-o
quando avizos repetidos não deixarão mais duvida
sobre a força e designios dos Hollandezes, offereceu
ao governador seus próprios serviços pessoaes, com
os da sua casa e do seu clero, para defeza da cidade;
pois, dizia, embora lhe incumbisse pelejar mais com
HISTORIA DO BRAZIL. 151
1623.
orações do q u e com a r m a s , confiava q u e o S e n h o r ,
o r d e n a n d o - l h e que arriscasse a vida pela salvação d e
suas ovelhas, lhe daria forças para sacrifical-a se
fosse mister, e o ajudaria contra u m i n i m i g o rebelde
não so ao r e i , mas lambem a Deus. E r a notório
quanta a sua pobreza, não tendo elle n u n c a recebido o
q u e estado lhe devia para sua sustentação, mas ainda
lhe restava a l g u m a baixela, e se a quizessem para
m a n t e n ç a dos soldados, serviço de S. M. ou b e m da
cidade, p r o m p t a estava : finalmente, pedia ao gover-
nador q u e , esquecido q u a l q u e r desagrado, lhe m a r -
casse u m logar onde melhor aproveitasse. Forão pois
elle e os seus criados e o seu corpo de clérigos
postados na sé, onde desde logo p r i n c i p i a r ã o a m o n -
tar g u a r d a . Pela sua parte não ficou o governador
atraz em generosidade : offereceu sustento a q u e m •
d'elle carecesse, para que n i n g u é m sob pretexto de
fome abandonasse a* cidade. Mas demasiado tempo
se havia perdido na inacção : taes, como Willekens os
esperava, forão os effeitos da longa indecizão, e
q u a n d o , reunida outra vez a sua frota, e içado o san-
guineo pavilhão com u m braço e m p u n h a n d o espada
nua, se apresentou deante de S. Salvador, poucos
preparativos achou, e poucos meios de defeza. Aidenburgh.

Avislada a frota e com a grandeza do perigo d e a n t e


dos olhos, postou o governador á pressa as suas t r o -
pas nos pontos de defeza, e e r g u e u na praça u m a
forca, declarando q u e q u e m abandonasse o seu posto
152 HISTORIA DO RRAZIL.
1623.morreria d'aquella morte affrontosa. Pozerão-se os
navios debaixo da artilharia d'um baluarte que ficava
ao mar, tripolados elles próprios para a defeza; e o
Tamaio bispo andou n'um escaler exhortando a fazerem va-
de Vargas. r
fí56
- lentemente o seu dever os que estavão a bordo. Lm
quanto o inimigo se conservou a distancia, forão as
peças bem servidas, de modo que o navio hollandez
que vinha na frente ficou desarvorado, e morto o
seu capitão, homem de grande fama. Então fez Heyn
largar Ires lanchas com vinte homens em cada uma.
Vendo-as avançar e suppondo que os vinhão abordar,
acobardárão-se os Portuguezes, e fugirão para terra.
Alguns, que com o cuidado da própria conservação
nem tudo havião esquecido, pozerão fogo ao maior
dos navios'; d'este se communicou o incêndio a mais
Ires, e como prêmio da sua fácil victoria levarão os
Hollandezes oito.
Animado com isto, resolveu Willekens accom-
metter a bateria que também havia sido bem servida.
Quatorze baleis se tripolárão com vinte marinheiros
cada um, e o próprio Heyn se poz á frente. Não so
do terrapleno, mas também da praia se lhes fazia
fogo vivo. Erguia-se a muralha da bateria oito ou
nove pés acima da água, e sendo este o ponto mais
1
Tamaio de Vargas diz que os Hollandezes os incendiarão. Não erão
elles tão loucos, que fossem destruir o que tão brevemente devia
pertencer-lhes. Podemos seguir sem hesitação os auctores hollandezes,
pelo que toca aos seus próprios movimentos.
HISTORIA DO BRAZIL. 153
efficaz de defeza, havia alli postados de quinhentos 1025-
a seiscentos homens. Mas a sorte dos navios e a reso-
lução com que avançava o inimigo intimidou-os. Foi
o cornela de Heyn o primeiro homem que trepou,
e o mesmo Heyn o segundo1; aquelle foi morlo, mas
os marinheiros escalarão o muro, uns com o auxilio
de seus croques, outros com o dos hombros dos com-
panheiros. Este perigoso feito custou apenas quatro
mortos e dez feridos aos Hollandezes. Os Portuguezes j. deLaet.
V. 14.

metterão-se ao mar e escaparão; e Heyn, vendo que


o logar ficava ao alcance de tiro da praia, que crescia
a noule, e que a sua gente estava mui fatigada e
quasi exhausla a pólvora, encravou as peças e volveu
á armada.
Emquanto os marinheiros jazião este rude serviço,
desembarcavão mil e duzentos homens de terra e
duzentos e quarenta de mar ao commando do sar-
gento-mór Albert Schouten. Não se oppoz a menor
resistência, embora se visse na praia grande copia
de gente armada de arcabuzes, arcos e lanças, com
um official a cavallo para commandal-a. Porem mal
o inimigo poz pé em terra, desappareceu esta desor-
denada multidílo. Dous homens2 ião na expedição

1
Este feito d'armas é assumpto d'uma gravura n'um livro hollan-
dez popular : As vidas dos Almirantes.
- Frederico Rutter e Rodrigo Petrin os chama Tamaio de Vargas,
mas seus nomes erão Dirck de Ruyter e Dirck Pieterszoon Colser. E
este um exemplo das metamcrphoses por que passão no portuguez e
154 HISTORIA DO RRAZIL.
1625. que tinhão sido prizioneiros na Bahia, e, conhe-
cendo bem a localidade, servião ora de guias aos
seus; estreita era a passagem, e um punhado de ho-
mens resolutos podia ter causado grande damno aos
invasores, que desassombrados marcharão até aos
subúrbios. Alli lhes fez frente o filho do governador,
e com bravura tal que os Hollandezes perderão al-
guma gente, chegando, segundo a sua própria con-
fissão, a ver-se em risco de serem baralhados, a não
terem sido os esforços pessoaes de Schoulen. A posi-
ção que lão tardios havião escolhido os Portuguezes,
era insustentável, e o inimigo alojou-se nos arrebal-
des, á espera da manhã. Entretanto guarnição e
moradores, dando tudo por perdido, evacuarão a
praça. Foi o bispo o primeiro a retirar-se, levando
seiscenlos homens. Tomou elle o único partido ra-
zoável ; debaixo do domínio do terror pânico, nada
havia que fazer, e ainda que a coragem dos Portu-
guezes se não desmentisse faltara totalmente quem a
dirigisse.
Ao romper o dia trouxerão os Hollandezes duas
poças de campanha, fazendo-as jugar contra as por-
tas da cidade; sobre as muralhas porem se mostrou
um Portuguez com uma bandeira branca, dizendo-
lhe que podião entrar seguros que estava deserta a
praça. Nem acreditar querião elles ao principio em
hespanhol os nomes hollandezes. A cidade de Zutphen (conhecida como
o logar onde Sidney foi ferido de morte), Vargas a chama Izutifel!
HISTORIA DO BRAZIL. 155
tanta fortuna, e ao abrir-se a porta entrarão em or- i623-
dem de batalha, e com a maior cautela. O governador
com seu filho, e alguns homens de sua casa, tentou de-
fender o seu paço, como se esta vã ostentação de valor
pessoal podesse excusar-lhe ou altenuar-lhe á inércia
do anterior procedimento1. Os Hollandezes porem
não quizerão malal-o 2 , e assim sem combate, nem
sequer demonstração de defeza, lhes cahia nas mãos
a capital do Brazil. Nem aqui parou a sua boa for-
tuna, e doze navios entrarão no porto antes que po-
desse saber-se da conquista. Forão enormes os despo-
jos. Um que n'elles teve seu quinhão, diz que os F. Giuseppe.
soldados medião ouro e prata aos chapeos cheios, e cespedes.
que muitos paravão Irezentos ou quatrocentos florins
n'um lance de dados. Era que o governador a todos AWenimrgh.
os moradores prohibira sob pena de morte tirar da
cidade couza alguma de seus haveres, julgando assim
impedil-os de abandonar a praça. Achárão-se muitas
imagens de prata, entre as quaes treze de tamanho e
valor maiores, representando a Virgem Maria e os
Tamaio de
d o z e apOStoloS. Vargas. 40.

1
Fr. Giuseppe de S. Teresa diz, que elle não quiz render-se em
quanto não lhe promettérão a liberdade, mas que apezar d'esto Wille-
kens, com brutal infidelidade, o retivera prizioneiro. Esta accusação
<om a própria absurdidade se refuta.
'- Não se pode attribuir a van ostentação de valor pessoal a he-
róica resistência do governador Mendouça; nem tão pouco deve ser
tachado d'inerte o seu procedimento ulterior, achando-se, como o con-
fessa Southey, baldo de recursos para oppòr-se á invasão hollandeza.
F. P.
156 HISTORIA DO RRAZIL.
1623
- Assumiu Vandort o commando, conforme suas ins-
s
Sntee°s a trucções, e principiou a fortificar a praça ; tinha em
Cidade
' Flandres aprendido a arte da guerra e era soldado de
grande credito. Deparou as fortificações antigas, e
accrescentou-lhes outras novas, no que se emprega-
rão dous hábeis engenheiros. Até se quiz abrir um
corte através da lingua de terra em que estava assen-
tada a cidade, insulando-a assim, mas achou-se de-
masiada a distancia. Espalhárão-se proclamaçòes,
offerecendo liberdade, gozo pleno de seus bens, e
livre exercício de sua religião a todos que se submet-
lessem; attrahiu isto muitos negros, muitos indíge-
nas e obra de duzentos christãos novos, que traba-
lharão por persuadir outros a seguirem-lhes o exem-
plo. Expostos como anda vão aos insultos d'um povo-
supersticioso e beguino, e sempre.com o medo da
inquisição deante dos olhos, nada lhes podia ser mais
bem vindo do que esta mudança de senhores.
Tinhão os Portuguezes supposto ao principio que
esta expediçãp hollandeza tinha por único fim o
saque, não a conquista, e por isto fora talvez que tão
fraca resistência havião opposto. Mas agora que se
Itefazem-se
os
Portuguezes
acharão nos malagaes sem casa nem abrigo, e com
mulheres e filhos á roda de si, salteou-os a vergonha;
e quando virão que o inimigo em logar de carregar
navios e embarcar com o roubo, andava fortificando
os muros e preparando-se para assenlar-se como
senhor nó Brazil, renascerão-lhes os brios nacionaes
HISTORIA DO BRAZIL. 157
e principiarão a ver como recuperar a honra própria 16'2"
e a do seu paiz. Beunirão-se o bispo e os principaes
funccionarios civis e militares no Espirito Saneio,
uma das aldeias de índios no Beconcavo, onde tinhão
os Jesuítas uma residência; e considerando Mendouça
morto para todos os fins do estado, abrirão as vias
de suecessão, que havião tido a precaução de levar
na fuga. Era Mathias de Albuquerque, então gover
nador de Pernambuco, a pessoa n'ellas nomeada.
Mandou-se-lhe recado da sua nomeação, e passou-se
a eleger quem commandasse até que elle chegasse.
Antão de Mesquita de Oliveira, o ouvidor geral, foi
o primeiro escolhido; a sua avançada edade lhe não
deixava forças para tamanho cargo. Nomeárão-se
então os dous coronéis1 Lourenço Cavalcante d'Albu.-
querque e João de Barros Cardozo; dous chefes não
fazião liga. Posta pois de parte esta eleição, não tar-
dou a conferir-se o commando ao bispo D. Marcos Cb?Ioes'
l
m . . R. Pitta.
leixeira. 4, g3s.
Não passou este prelado ex abrupto do seu caracter 0 bispo
episcopal para o militar. Vestiu primeiro o habito .mamS"
de penitente, fez preces publicas, e depois tomou
armas, trazendo uma roupeta por sobre o arnez e
uma cruz ao peito; para mais distineção usava de
chapeo verde, talvez porque era esta entre os Portu-

1
Nessa epocha não se conhecia na Hespanha e Portugal a patente de
coronel, empregando-se em seu lugar a de mestre de campo. F. P.
158 HISTORIA DO RRAZIL.
1625. gUeZes a còr da esperança1, e por estandarte alçou
o crucifixo. A sua primeira medida foi prohibir a
cultura do assucar e do tabaco, cm que os Hollan-
nezes começarão a traficar, ainda anles de finda a
primeira semana. Compunha-se a sua força de mil e
quatrocentos Portuguezes e duzentos e cincoenta
índios 2 . Foi postar-se sobre o Rio Vermelho acerca
d'uma legoa da cidade, fortificando o seu campo com
a artilharia d'um navio que havia escapado, niel-
tehdo-sepor um rio do Recôncavo. 0 seu povo ganhara
animo, e forão a seu favor os primeiros recontros.
Vandort sahiu com uma partida a reconhecer terreno
e cahiu n'uma cilada : um chuveiro de seitas lhe
matou o cavallo, ferindo a elle próprio, e depois o
acabou'Francisco de Padilha. Activo e valoroso em
extremo, não era este um inimigo generoso : deixou
que os índios mutilassem o cadáver do capitão hol-
landez, e como prova do seu feito levou, sem nariz
nem orelhas, a cabeça ao bispo! Fora Vandort trintaa
annos soldado, e os próprios Portuguezes lhe gaba-
vão o honroso proceder e rigorosa disciplina que
mantinha. Melhor fortuna não teve Allert Schoutens,
que succedendo no commando nf.o tardou a ser

1
Sempre foi distinctivo dos bispos o chapeo preto com borlas
verdes. F. P.
2
Cespedes diz, obra de 1,200 ao todo, mas a estatisca supra
acha-se na Jornada Bahia, e funda-se na auctoridade dos despachos
do próprio bispo. Tamaio de Vargas diz 400 Portuguezes.
HISTORIA DO BRAZIL. 159
morto por uma bala de mosquete. O irmão Willem, ,C23*
a quem se devolveu o mando, era muito inferior á
sua posição, e cada dia ia crescendo a fama das armas
portuguezas e diminuindo a das hollandezas. Com
característica barbaridade' se fazião de parte a parle
as hostilidades. Dos Portuguezes se disse que matarão
um official, que mandavão para Pernambuco, por-
que tendo chiguas nos pés, não podia marchar tão
depressa como querião os conductores, e os Hollan- Jornada
dezes em represálias fizerão sahir os seus prizionei- c-23-
ros, e amarrados uns aos Outros, os arcabuzárão. 0
bispo não desprezava meio espiritual ou temporal
que podesse estimular o animo do seu povo, e em
virtude do seu cargo de commandante em chefe ar-
mou cavalleiros Padilha e outros tres officiaes que se
havião assignalado.
Comtudo apezar d'estes revezes que lhes deverião jornada de
Hsvn
contra
ter resfriado a confiança, tinhão-se os Hollandezes a
Angola.

si próprios por tão fortes, por tão fracos os Brazilei-


ros e a Hespanha tanto por baixo, que Willekens se
fez de vela para a Hollanda com onze navios carre-
gados de despojos, deixando os outros a Heyn, que
poucos dias depois partiu em infructifera expedição
1
Aldenburgh refere alguns actos de atroz crueldade da parte dos
Brazileiros; mas falia, como da couza mais natural do mundo, de ter
o coronel (Schoutens) entregue um prizioneiro portuguez aos negros,
que o fizessem em portas, e de terem este brincado com elle, como
fazem os gatos com um rato!
160 HISTORIA DO BRAZIL.
um para Angola. Vastos erão os projectos da companhia
das índias OccidentaeS; queria assenhorear-se de
Loanda, e assim d'um golpe assegurar o suppri-
mento de negros ás suas próprias conquistas no Bra-
zil, fechando aos Portuguezes o seu mercado costu-
mado. Mas Loanda tinha sido soccorrida a tempo, e
a vigilância do governador Fernão de Souza desba-
ratou todos os intentos do inimigo, baldando-lhe as
traças. Mais feliz não foi Heyn n'uma investida que
de volta para a Bahia, deu ao Espirito Saneio, insti-
gado por um Flamengo, que lendo previamente alli
residido e sido condem nado á morle por certo crime,
fora perdoado, e regressando á pátria, pozera-se ao
Assalto
serviço da Hollanda. Succedeu achar-se n'aquella
contra o
Espirito villa Salvador de Sá, filho do governador do Rio de
Saneto.
Janeiro, de marcha para o Recôncavo com soecorros,
e Heyn, perdidos mais de cento e vinte homens em
dous mallogrados assaltos, abandonando a empreza,
seguiu para a Bahia. Achou as armadas de Portugal
Jornada
e Hespanha de posse da enseada, e, faltando-lhe for-
da Bahia. ças com que combatel-as, velejou para a Europa.
C. 21.
Medidas: Grande alvoroto causarão em Madrid as novas da
<lo °fovcruo -
hespanhoi. perda da Bahia. A corte, que advertida do golpe
nada fizera para evital-o, percebeu-lhe depois de re-
cebido todas as conseqüências, inquietando-Se pro-
vavelmente ainda mais com dizer-se que os Inglezes
Tamaio de ™o u n i r s u a s f or Ç as ás hollandezas, e fazer rei do
Vargas. 60. rj raz i[ 0 eleitor palatino. Dignas da sua superstição
HISTORIA DO BRAZIL. 161
e da sua pujança forão as medidas adoptadas pela ,623-
corte hespanhola. Mandou ordem aos governadores Bljt0 Freire
de Portugal que inquerissem dos crimes que havião expedes.
acarretado esta visitação da vingança divina, e con-
sequentemente os punissem. Preces, que pela sua
repetição em nove dias successivos se chamavão no-
venas ', se mandarão fazer por todo o reino, rezando-
se depois da missa uma ladainha e orações formula-
das para esta occasião. N'um dos nove dias devia
sahir uma procissão solemne do povo em todas as
cidades, villas e aldeias, e dos religiosos em todos os
mosteiros. Expoz-se o sacramento em todas as egrejas
de Lisboa. Esquipou-se a grande armada do Oceano,
como a chamavão os Castelhanos, para restaurar a
cidade perdida, e quatro esquadras sahirãologo do
Tejo com reforços para os logares que mais em perigo 1624
se reputarão. Foi n'uma D. Francisco de Moura .a
tomar o commando na Bahia2, outra singrou para
Pernambuco, outra para o Rio de Janeiro, e a quarta
para Angola.
Bem conheciáo os Portuguezes o valor das suas
colônias; a cidade de Lisboa deu cem mil coroas
para despezas do governo na restauração de S. Sal-
vador ; o duque de Bragança contribuiu espontânea-

1
Rogamos encarecidamente aos lectores que não se esqueçam que
o auctor é protestante, e que por isso não perde occasião ^achinca-
lhar a nossa sancta crença. F. P.
- Com o simple titulo de capitão-mór do Recôncavo. F. P.
ii. H
162 HISTORIA DO BRAZIL.
1624
mente com vinte mil, o de Caminha com dezaseis
mil e quinhentas. Os nobres vendo, que pela pri-
meira vez se mostrava zelosa do bem de Portugal a
corte de Madrid, e lisongeados por ter-lhes el-rei
escripto de seu próprio punho, requerendo-lhes seus
serviços, offerecérão com promptidão sem exemplo
as pessoas e a fazenda. Em verdade Philippe se diri-
gira a elles por um modo que lhes açulava todo o
orgulho do patriotismo. Não duvido, dizia elle, que
taes vassallos em tal occasião por me servirem se
sacrifiquem, e que mais necessidade haverá decon-
tel-os que não embarquem, do que de incital-os a
fazerem-no. Pois, por minha fé, tanto os amo e es-
timo que me alegrara de arriscar na jornada minha
própria pessoa, provando-lhes o meu desejo não so
de conservar essa coroa, mas de augmental-a e en-
grandecel-a, como taes vassallos merecem. Animados
com taes exhortações, embarcarão como voluntários
homens que tinhão exercido os mais altos cargos,
entre outros Affonso de Noronha, que ja fora viso-
rei da índia. Não houve família nobre em Portugal
que para este armamento não desse um de seus
filhos, decidindo a sorte muitas vezes entre irmãos
qual d'elles havia de ser o aventureiro, mui ambi-
ciosos todos, para que de molu próprio renunciasse
algum os seus direitos a ser da partida.
Reinava em Lisboa a maior azafama : dia e noute
Jornada
da^ia. se trabalhava nos aprestos, revezando-se a gente.
HISTORIA DO BRAZIL. 165
1624.
Concedeu-se um jubileo a quantos embarcassem
n'esta importanlejornada contra um inimigo herege,
e para corroborar-lhes o zelo catholico, derão-se-lhes
bandeiras, cm uma das quaes se via a representação
da milagrosa Conceição, e cm outra a imagem de
sancta Thereza. A D. Manoel de Menezes se deu o
commando da força portugueza, composta de 4,000
homens em 26 navios1, que devião fazer juncção
com os Hespanhoes em Cabo Verde. Pela primeira
vez tomava Olivares a peito-o interesse de ambos os
paizes, e quando um astrologo, famoso n'aquelles
tempos, lhe disseque receava que a lua de janeiro
encontrasse a armada fora do porto, respondeu o
favorito que mais temia que ella a achesse dentro \

1
F. Bertolameu Guerreiro da-nos uma resenha das provisões que
levou este armamento : 7,500 quintaes debiscouto, 884 pipas de vi-
nho, 1,518 dietas de água, 4,190 arrobas de carne, 5,739 de peixe,
1,782 de arroz, 122 quartos de azeite, 95 pipas de vinagre. Queijos,
passas, figos, legumes, amêndoas, ameixas seccas, assucar, doces, es-
peciaria e sal em abundância; 22 caixões de medicamentos, 2 phy-
sicos, um cirurgião quasi que por navio, 200 camas para os doentes, e
copia de meias, sapatos ecamizas; 510 peças de artilharia, 2,504
balas redondas e de cadeia, 2,710 mosquetes e arcabuzes, 209 quin-
taes de chumbo embalas, 1,555 piques e meios piques, 202 quintaes
de mechas, 500 de pólvora e mas 500, que a armada espanhola devia
trazer de Cadiz e Sevilha. O dinheiro que se levava para os casos for-
tuitos erão 20,000 cruzados em reales. Jornada da Bahia, c. 17.
Também Tamaio de Vargas faz alarde dar provisões de boca e de
guerra e dos instrumentos que ião na armada. O carvão de pedra
figura na sua lista e carvão doce, que não sei o que seja, para refinar
a pólvora. P. 6 1 .
2
Comtudo foi Olivares depois da sua queda aceusado perante a
164 HISTORIA DO RBAZ1L.
162i
- Deu elle pressa á expedição, que, apezar d'isso, se
esquipou mais vagarosa que a portugueza, tendo esta
de esperal-a quasi nove semanas no fatal clima de
Cabo Verde, com grande dispendio de vidas. Levavão
os Hespanhoes quarenta velas e oito mil soldados ao
commando de D. Fadrique de Toledo. Tão poderosa
i625- armada jamais cruzara até então a linha.
Entretanto recebera Mathias de Albuquerque no-
x
Morte do *

i.ispo^apea.io v a g j a s u a c h. a m a c [ a ao governo em virtude das vias


commando. ^ s u c c e s são, e também por nomeação directa da
metrópole. Apresentar-se em pessoa no theatro da
acçào não fora prudente. Não havia reunir tropas
sufficientes para expulsão dos Hollandezes, e o sys-
tema adoptado de pical-os, atacando-lhes os poslos
avançados, e malando-lhes as forrageadores, produzia
o effeito seguro de enfraquecel-os e desanimal-os, e
para este serviço uma força mais regular teria sido
de menos prestimo e mais sujeita a perdas. Conten-
tou-se pois Albuquerque com mandar Francisco Nu-
nes Marinho de Sá ' a tomar o commando, para que
podesse o bispo voltar toda a sua attenção ás couzas
espirituaes, obstando especialmente a que o inimigo
disseminasse suas doutrinas heréticas, o que os Por-
tuguezes temião mais ainda do que a força das armas.
Inquisição de crer a astrologia e consultar astrologos. Llorente, Hisl.
de rinquisilion, c. 3i.
1
Chamava-se este governador da Parahyba, delegado por Mathias
d'Albuquerque para fazer as suas vezes na Bahia, Francisco Nunes Ma-
rinho d'Eça. F. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 165
De Madrid se recommendou mui particular vigilan- 1625-
cia contra este perigo. Seis mezes estava ja o bispo da Baíua.
em campo, tendo commandado durante trez ; as in- Ce|i>|Je>-
acostumadas fadigas da vida militar, e de tal cargo,
forão maiores do que podia elle soffrer, e pouco de-
pois da chegada de Francisco Nunes entregou o es-
pirito nas mãos do Creador. Como morresse no campo,
enlerrárão-no n'uma capellinhaemTapazipe, d'onde
havia expellido os Hollandezes: com nenhuma pedra
se lhe marcou o jazigo n'estes tempos de confusão, e
quando mais tarde quizérão os Portuguezes honrar-
lhe devidamente as cinzas, ja o logar estava esque-
cido '.
Com egual proveito foi o mesmo systema de guerra chegada
J
. . . ° da armada
continuado por t rancisco Nunes, e depois por D. Fran- Jus°b'^spa"
cisco de Moura, á sua chegada de Lisboa, para tomar
* Se lhe tivessem achado os restos, teriâo sido boas relíquias,* pois
que aos amigos do falecido bispo não faltarão razões com que pro-
pol-o candidato á sanctidade. 0 chronista real, Tamaio de Vargas, lhe
foi conferindo por própria auctoridade o titulo, e as honras de mila-
groso. Diz elle : Amábale cada uno como á padre y venerábale
como á santo, no oyendoolro nombre de Ia aclamacion de todos;
porque verdaderamentc d zelo en Ia defensa de Ia religion, Ia
caridad con su pucblo, ei exemplo en todos los exercidos de vir-
lud, le califcaban en todas Ias ocasiones por tal, dando ei cielo
testimonios de Io que se servia de sus acciones con los favores que
hazia á aquel campo por su intercesion; porque faltando algu-
nas vezes por Ia noche Ia pólvora 6 los viantenimientos, â Ia ma-
nam todo se cumplia, con tanta copia que alribuian los soldados
a diligencia mas que humana esta provision, llamando guerra
milagrosa a Ia que asislian, y reverenciando en qualquiera accion
mas a su prelado, como causa destas maravillas. FP. 46.
166 HISTORIA DO RRAZIL.
1625
- o commando. A L28 de março de 1625 apparecérâoá
vista da enseada as armadas combinadas de Portugal
e Hespanha. Animados e enlhusiasmados a este as-
pecto, entenderão os Brazileiros que tão grande terror
devia elle incutir nos Hollandezes como lhes inspi-
rava coragem a eiles, e querendo para si toda a
gloria da cidade restaurada, inveslirão-na precipita-
dos, e forão repellidos mui cortados. Adeanlou-se
mais cautelosa a armada; D. Fadrique sabia que po-
derosos reforços se havião levantado na Hollanda, e
receava não tivessem chegado antes delle. Averi-
guado que lal se não dera, entrou na enseada com
rufos de tambores e toques de clarins, bandeiras
despregadas e pavezados os navios promplos para a
acção. Também os navios, muros c fortes hollande-
zes deixavão esvoaçar todas as suas flammulas e ban-
deiras, içadas quer em honra de amigos quer em
desafio a inimigos, como quer que viessem estes
recemchegados. Com grande cuidado linha sido for-
tificada a cidade segundo os melhores princípios da
engenharia, sciencia em que nenhum povo tinha a
experiência dos Hollandezes; noventa e duas peças
de artilharia a defendião, e o Forte Novo atirava com
balas irtcendidas.No porto havia dez navios de guerra
e dezoito mercantes. Vendo a força da praça e sabendo
que não podia tardar a frota da Hollanda, convocou
D. Fadrique um concelho de guerra em que propoz
desembarca» tres mil homens, c deixar o grosso da
HISTORIA DO BRAZIL. 167
força a bordo para interceptar ao inimigo os soe- 1625-
corros. Objectou-se que com tão pouca gente apenas
se poderia formar um acampamento, sendo assim
impossível cançar o inimigo conservando-o alerta em
differentes pontos. A conclusão foi que desembarca-
ria metade do exercito, e que a armada se prolon-
garia de Tapagipe até Saneto Antônio, bloqueando
assim os navios no porto, o cortando todos os suppri-
mentos ao mesmo tempo. Sem opposição se effectuou si de março.
o desembarque, pois que a guarnição, composta de
dous a Ires mil homens de todas as nações, alem de
grande numero de negros (a maior parte provenientes
dos navios de Angola, que havião sido aprezados), Ce6s)pfJes
G 1U >pe
eslava dividida, nem tinha um chefe hábil. - r? 6Íí *
Um lanço das fortificações ficara imperfeito, em Fazem os
parte por que Willem Schoutens se fiava na profun- " i ™
sortida feliz.
didade do fosso, e mais ainda, por que com dema-
siada confiança contava com a actividade do seu pró-
prio governo e prostração da Hespanha. Costumava
dizer que o mais que tinhão de fazer, era domar os
naluraes, sendo impossível que a armada hespanhola
chegasse primeiro que a hollandeza; e ao ver entrada
na enseada uma frota, affirmava ser a sua, até que
tão manifesta foi a verdade, que elle não mais pôde
illudir-se a si próprio com suas obstinadas presup-
posições. Desde logo se tractou de fortificar aquelle
ponto. Não passou desapercebida esta fraqueza, nem
faltou quem aconselhasse ao general sitiante que por
168 HISTORIA DO RRAZIL.
1625
alli salteasse a cidade: foi elle ao principio da mesma
opinião, mas reflectindo que em taes tentativas sem-
pre a perda recahe sobre a flor do exercito, e que o
inimigo, conscio do seu ponto vulnerável, o eslava
fortificando, achando-se apercebido para a defeza,
optou por approxes mais lentos e seguros. Mas as
iropas continhão o inimigo em menos respeito do
que fazia o seu commandante; andava em confusão
o campo e pouco ou nada se velava. Perceberão-no
os sitiados, e uma manhã sahiu Hans Ernest Kijf
com dous troços de trezentos homens cada um, sor-
prehendeu o arraial, e foi fazendo grande matança,
até que julgou prudente retirar-se. Entre os mortos
contou-se o mestre de campo D. Pedro Osório.
Motim Tendo aprendido a appreciar os recursos e adi-
das tropas . .
hoiiamiezas. vidade dos Hollandezes, aprestara o governo hespa-
nhol esto armamento em escala conveniente. As-
segurara-se porem ao commandante, que acharia
dinheiro na Bahia e em Pernambuco, e em ambos
os logares nada de novo, alem de que na natureza do
paiz e falta de meios de transporte lhe surgião diffi-
culdades desconhecidas nas guerras europeus. Re-
missa não fora a companhia hollandeza em apromptar
soecorros para a praça; apenas sabida a sua tomada
apercebera com grande presteza duas poderosas
esquadras, o se uma serie de furacões violentos e
ponteiros as não houvesse detido nos portos da Hol-
landa, bem podia tel-as D. Fadrique ja achado á sua
HISTORIA DO BRAZIL. 169
chegada na Bahia. Felizmente para elle estava com- 1625-
pletamente relaxada a disciplina da guarnição, e o
conynandanle hollandez muito abaixo do importante
cargo que occupava. Um inimigo mais hábil muito
teria molestado os sitiantes, que nas suas operações Tamaio de
tudo tinhão de acarretar á mão e força de braços
somente, mas depois da primeira sortida o único
esforço que fez Willem Schoutens foi tentar incendiar
a armada do bloqueio, lançando-lhe de noute dous
brulotes. Ao primeiro movimento dos dous navios,
os barcos de vigia hespanhoesdesconhecendo-lhes a
intenção, derão rebate que o inimigo buscava evadir-
se por mar, e n'esta crença toda a armada poz-se ao
panno para perseguil-o; a não ter sido isto, talvez
tivessem os Hollandezes colhido algum resultado do
seu estratagema. Um dos brulotes foi cahir entre
dous dos maiores navios, mas ja não a tempo de
causar-lhes damno; o outro atracou a almiranta, che-
gando a derreter-lhe d'um bordo o alcatrão, mas os A^ndano. 4
° ' Tamaio de
Hespanhoes depressa evitarão o perigo, e fazendo Vargas' 1U

largar um bole impedirão a fuga aos homens do bru-


lote. Alguns morrerão queimados, e um, que se lan-
çara ao mar, foi apanhado para lhe amarrarem um
pezo aos pés e tornarem a aliral-o á água!
Conscio do grande perigo a que escapara, resolveu
D. Fadri(|ue destruir sem mais detença os navios
dos Hollandezes. Para fugir a isto leváráo-nos estes
para perto dos fortes, mas desguarnecerão-se assim
170 HISTORIA DO BRAZIL.
1025
- do lado da praia : abriu-se na rocha um caminho por
onde descer a artilharia, e com ella se melteu a
pique a maior parte das embarcações1. #
Entretanto tornava-se descontente a guarnição,
clamando contra o desmando do chefe, que esquecido
de todos os seus deveres entregava-se a devassidòes
de toda a espécie2, até que a final, levantando-se, o
prendeu, pondo Kijff em seu logar. So serviu este
motim de tornar mais violento o espirito faccioso da
soldadesca. Schoulens dispunha ainda d'um partido
1
Dous notáveis exemplos derão de seus sentimentos religiosos os
sitiantes. Um soldado mulato atirou-se ao meio do inimigo, e com
risco imminente trouxe um corporal (segundo pareceu a seus cama-
radas), que prezo a uma lança, tinha em zombaria sido arvorado como
pendão. 0 outro caso foi mais curioso : tendo um Hollandez mantido,
que os chamados irmãos do Salvador erão filhos de José e Maria, não
descançou Francisco de Melo de Castro em quanto não obteve licença
de o reptar por esta opinião, não so blasphcma e herética, mas tam-
bém offensivã da Virgem. Recusou o Hollandez a requesta, por con-
veniências justificadas (era mui provavelmente algum capellão), que-
dando bastantemenle acreditada Ia piedad con ei deseo, como vic-
loriosa Ia causa por sujusticia. Tamaio de Vargas, 122.
Tinhão ido n'esta jornada capellães tanto francezes como inglezes,
que pregavâo todos os domingos. Aldenburgh, §177. Tiverão a impru,
dencia de pregar ao alcance de tiro de peça dos sitiantes, que de certo
entenderão que seria uma acção extremamente meritoria matar estes
herezes no próprio acto de suas damnadas devoções. Um domingo pois
principiarão a fazer fogo sobre a egreja durante o serviço divino, e
como uma bala levasse as pernas a trez da congregação, deu-se o Pastor
por avizado, para buscar lugar mais seguro. Aldenburgh, 201.
2
.1. de Laet diz na sua linguagem clara e sem rodeios, que em
logar de olhar pela defeza da cidade hy gingh liever inde hoeren-huy-
sen, ende blcef op A' Hof sitteu swelghende ende suypende. \rer-
liael van W. Indien, 51.
HISTORIA DO BRAZIL. 171
162S
poderoso; erão cançados do cerco os.mercenários
francezes e inglezes, e seguros de obterem quartel,
sem honra própria nem nacional que defender,
abhorridos de aguardar soecorros, e, couza muito
peor, convencidos de que sem unanimidade não havia
defeza possível, declararão que não se batião mais.
1 J
# Capitulãoos
N'estas circumstancias nada servia a coragem deKijff, Hollandezes.
que teve de mandar deputados a capitularem. Os
termos furão que D. Fadrique lhes daria navios e
mantimento para voltarem á Hollanda, salvo-con-
duclo e armassufíicientes para sua defeza em viagem.
Havia um registro em que se havião inscriplo os que
tinhão querido conservar seus bens, submettendo-se
aos conquistadores; exigiu o general esta lista, para
punir os delinqüentes, mas os Hollandezes ou a escon-
derão ou a destruirão, proceder sobre honroso polí-
tico, pelo qual os próprios Portuguezes merecida-
mente os elogiarão. Mas os negros e os christãos novos
(quer dizer Judeos constrangidos a professarem a lei Brit0§181.
**«''6
de Chrislo), que tinhão confiado na proclamação dos
Hollandezes, forão abandonados por estes, sendo al-
guns justiçados pelo vencedor. No I o de maio (com
especial satisfacçâo dos Hespanhoes por ser dia de
S. Philippel, patrono do seu rei) abrirão-se as portas,
desfraldando-se os estandartes da Conceição e de
1
Ao sin mysterioso reparo de una y otra gente, y alboroxo de
Ia Catholica, diz Tamaio de Vargas, que, com o verdadeiro espi-
rito dos seus conterrâneos d^quelle século, olhava esta como uma
17- H I S T O R I A DO B R A Z I L .
u
'-" Sancta Thereza da torro da calhodral, segundo as
ordens expressas do próprio rei. Desembarcou um
batei cheio de sanclos, trazidos provavelmente entre
os outros maleriaes para supprir o logar dos que
terião sido derrelidos ou mutilados pelos Hollandezes,
e os religiosos celebrarão a extraordinária ccremonia
de açoutar os púlpitos profanados pelos capellàes
heréticos! Também desenterrarão os hereges, que
havião sido sepultados dentro do recineto da cidade,
levando-os para terreno não sagrado fora dos muros.
Mostrou-se cmnludo algum respeito á memória de
Vandort, como para allenuar a maneira vergonhosa
porque depois de iirorto fora mutilado. Deixarão que
o corpo repouzasse no seu túmulo, nem do monu-
mento lhe lirárão o escudo, a espada, as esporas <•
o pendão carmezim, em quanto a "uarimào bollan-
Aldenlmigli. ' . "
S232- deza se demorou na Bahia.
Menos havia solfiido a cidade na sua tomada do

guerra religiosa. Ucvela-se o t c sentimento no mote feliz que po/ ao


seu livro, e que não pouco prazer devia dar-lhe ao ailul-u :

Justinus
l \ T. Pompeii Ilistor. lib. XIX
\h 1'IHLIPPO, cujus Hostes,

insignibus Dei canspeelis, conseienliii deliclorinn lerrili, abjecti*


armis fugam cupessitnl; pmnasque violalxrcligimtis sanguivc et c;r-
dibus suis peniltint. ÍNCMMI:IU. (JI.VMÍH IA m^ AILIMIMNK.S HATH>M>
I'IIILIPI'0 GLiiiii» DEKI i : illum vindicem mcrilrtjii; illum ultorem
rclitjiotium, iptad orbis viribusexpiari ilebuit, solum, qui píneula
cxigeret, exsúlhse úigmtm.
HISTORIA DO BRAZIL. * 173
1625
que agora na sua restauração. Os Hollandezes vinhão
a conquistar o paiz para o conservarem, e por isso
tinhão procurado conciliar os naturaes, nem, sancti-
ficada pela sua causa, havia a longa guerra susten-
tada na pátria desmoralizado a nação. Mas os Hespa-
nhoes e Italianos do exercito de D. Fadrique tinhão
sido criados entre todos os excessos da vida militar;
os Portuguezes não forão remissos em adquirir os
vicios de seus camaradas, e assim não houve logar
publico nem particular que ficasse immune de suas
\ lireeeyra.
violências. A perda dos sitiantes fora de cento e vinte k-*> P-5?
i lamaio de
e quatro mortos e cento e quarenta e quatro feridos, a"^;
Alguma difficuldade havia em cumprir as condi- Dimcuidade
~ T ? * J 1 1 1 1 de mandar os

çoes. fora tempo em que um general hespanhol Hollandezes


nenhuma intenção teria de dar-lhes execução, mas Europa.
ja a Hespanha não tinha nas suas forças essa con-
fiança, que promettia impunidade a qualquer quebra
de tractado; a nação, posto que negando sempre a
culpa de Alva, tinha consciência da infâmia que ella
acarretara sobre o paiz, e o seu antigo caracter hon-
rado renascia. D. Fadrique tinha a peito regastar em
toda a plenitude a sua palavra, nem estava menos
ancioso de descartar-se dos Hollandezes do que estes
de se sentirem em liberdade. Escasseavão os viveres;
o paiz á volta da Bahia tinha sido theatro da guerra,
e por conseguinte apezar da sua fertilidade natural
nem para a armada dos vencedores offerecia viclua-
Ihas, quanto mais para abastecer os prizioneiros.
17 4 HISTORIA DO R R A Z I L .
1625. Sem perda de tempo mandou o general ás outras
capitanias por todos os gêneros que cilas podião for-
necer : a Pernambuco por farinha de trigo, biscouto,
vinho e azeite; a Boipeba, Ilheos e outras parles ao
sul, por farinha de mandioca. Imme lialamente se
conheceu o que bem se podia ter previsto, a saber
que a mãe pátria não mandava para o Brazil mais
farinha de trigo, vinho e azeite do que o necessário
para consumo dos moradores mais abastados, e que
não havia onde achar sobresalentes. Era velha e ava-
riada a farinha de trigo que obliverào, e ainda que
houvessem querido fazer biscoutos, nem padeims
havia, nem fornos. Tiverão pois de conlentar-se mm
farinha de pau, e ainda bem, que d'ella poderão
haver quasi dezenove mil alqueires, quantidade com
que apenas se podia viver a meia ração. Bepanirão-se
navios velhos, c apressou-se a construcção de novos.
Tanto tardava o esperado armamento da Hollanda,
que ja sobre sua demora corrião vários boatos ou
tomara outro rumo, ou tormenlas o havião disper-
sado. Vierão comtudo novas de ter elle passado as
Canárias a .'» de abril, e pouco depois um navio por-
tuguez que tinha sido tomado pela frota bollandeza
e depois retomado, noticiou a sua próxima chegada.
lmmediatamente se embarcarão os dous mil prizit i-
neiros em navios desmantelados, fundeados debaix o
da artilharia da fortaleza. Mais difficil era pai I o
general dispor da sua própria força; muitas embar
HISTORIA DO BRAZIL. 175
16&
cações estavão encalhadas, outras sem aguada nem
victualhas, mas apromplárão-se quantos se poderão
esquipar, e resolveu-se aguardar no porto o ini- Cespedes.
6, 13.
migo.
che a
A 22 de maio appareceu á vista uma armada hol- s »ma
1 l
armada
hollam,ezn
landeza de trinla e quatro velas, commandada por
Boudewiin Hendrickszoon, e entrou á enseada, sup-
pondo S. Salvador ainda em poder de seus compa-
triotas. 0 aspecto das bandeiras catholicas depressa
desenganou Hendrickszoon, que com a sorpreza que
isto lhe causou deixou escapar o ensejo de obter assi-
gnalada victoria, sendo tudo confusão entre Hespa-
nhoes e Portuguezes. Heyn lhes teria anniquilado a
armada, que com a anciã de desafiar o inimigo,
corria a dar nos baixios. Mas a força do almirante
não era para retomar a cidade; tinha a bordo muitos
doentes, e por mais avizado houve demandar um
porto, em que elles podessem restabelecer-se, do que
com risco de mutilar na acção a própria frota, causar
ao inimigo um damno de que nenhum proveito tira-
ria. Fez-se pois na volta do norte, e impcllido pelo
furacão passou Olinda, onde o povo, contando ja com
ser accommettido, se apercebia para a defeza. Le-
vou-o o vendaval até á Bahia da Traição, onde deu
fundo; alli estavão os Petiguares4dispostos a ligar-se
1
Brito Freire (§ 286) falia como bom homem do rigor com que
estes naturaes forão punidos, por haverem recebido bem os Hollan-
dezes. « Ja que deixamos de recompensal-os, diz-ellc, quando antiga-
17ti HISTORIA DO B R A Z I L .
I625
- com quem lhes apparecesse como libertador, c o
Hollandez desembarcou os seus doenles, fortificando-
se o melhor que pôde. Achava-se então no Berilo
Francisco Coelho de Carvalho, primeiro governador
do Maranhão e Pará, depois d* separadas estas das
outras capitanias e arvoradas em Estado. Alli aca-
bava de chegar, caminho do seu novo governo,
quando veio a nova da tomada deS. Salvador, sabida
a qual, lhe pedirão que ficasse onde eslava, para de-
feza de províncias mais em perigo do que as d'elle.
uerredo. Apenas este capitão ouviu que Hendrickszoon desem-
§ 517, aIS
barcara a sua gente, reuniu tropas de Pernambuco e
Parahyba, com que ir desalojal-o. Não fallavào ao
commandante hollandez forças com que resistir, c
alguns de seus officiaes julgavão tão favorável a po-
sição para os fins da Companhia, que cumpria man-
lel-a e fundar alli um estabelecimento. Movia-os
também um honroso sentimento de humanidade, de
que poucos exemplos offerece a historia do seu sé-
culo. Allegárão a crueldade que haveria em abando-
nar os Petiuuares, que se tinhão mostrado amigos
fieis, ao seguro e severo castigo que os Portuguezes
lhes não pouparião. Mas a esl.i consideração nenhum
pe/o se deu; resolveu-se deixai-os que olhassem por
si como podessem, por quanto crescia ç numero dos
doentes, e Hendrickszoon, vendo-se assim diariamente

mente nos servirão, também devêramos agora moderar-lhes o r.iv-


liiio. n
HISTORIA DO BRAZIL. 177
)0 23
enfraquecido, e receando que a armada hespanhola '
o perseguisse, reembarcou e deu á vela, ficando-lhe
cheio de sepulturas o acampamento.
Se não houvesse partido, ja D. Fadrique estava
preparado para bloqueal-o com a sua frota da Bahia,
desembarcando 800 homens para cooperarem com
uma força pernambucana de 1,000 Portuguezes e
1,500 índios. Os Petiguares padecerão, como se ha-
via previsto. A tarefa de punil-os pelo que se chamou
quebra de fé ao seu rei, foi confiada aos Tobajares,
sob o commando d'alguns Portuguezes que nenhuma
repugnância sentirão a este deshumano officio em
que os emprega vão.
A má fortuna da expedição hollandeza porem ape-
nas principiara no Brazil. Metade da armada investiu
Porto Ri o, d'onde foi rechaçada com grande perda;
a outra metade, tentando sorprehender S. Jorge da
Mina, foiegualmenterepellida. Hendrickszoon mor-
reu do contagio, e os sobreviventes, cançados de pi- G Giuseppc.
ratear, e desanimados, amotinárão-se a final, obri- c.esPedk
gando os ofliciaes a voltar á Hollanda. BarWs.
1'. lfi.
Suscitou-se questão sobre a força que deveria
deixar-se para guarda da cidade. D. Juan Faxardo
aconselhava 1,200 homens pelo menos, e compostos
das tres nações, Portuguezes, Hespanhoes e Italianos,
invocando o principio que cada um sentiria maior
estimulo de ser o primeiro a cumprir seus deveres.
O marquez de Cropani era de opinião, que o numero
n. 12
178 HISTORIA DO BRAZIL.
1625
« fosse de 2,000, não se deixando Italiano nenhum. O
commandante resolveu deixar so mil, e esses todos
Portuguezes, não podendo, entendia elle, o paiz,
exhausto como estava, sustentar mais, e se se mistu-
rassem as tres nações, ou mesmo duas que fossem,
mais facilmente produzirião os sentimentos de na-
cionalidade, animosidade e rixas, do que emulação
útil. O saque que se havia retomado ao inimigo, e de
que não era possível dispor com vantagem, foi divi-
dido pela tropa segundo o posto de cada um, pri-
meira distribuição d'este gênero feita a um exercito
hespanhol. Também os índios tiverão seu quinhão.
Com e^ual generosidade se houve o general com a
guarnição hollandeza, cujas bagagens não registrou
ao embarque, tendo-lhe mostrado sempre humani-
dade e cortezia, com que ella não conlava, e que com
gratidão reconheceu depois derestituidaa seus lares.
ncs.iu Egualmente fatal ás duas partes foi esta jornada
da armada , ,
ponugueza. da Bahia. D. Fadrique deixou o novo governador,
D. Francisco de Moura Bolim, com guarnição suffi-
ciente na cidade, e fez-se de vela para a Europa , le-
vando as tropas hollandezas. Do marquez de Ibino-
josa tinha recebido avizo de que se propunhào os
1
Fizera elle uma occasião saliir a sua gente, para passar-lhe re-
vista n'iuna formosa manhã, quando, como não é raro na líahia, e
freqüentíssimo no Maranhão, no decurso de uma hora se cobriu lodo
o ceo, principiando a chover a cântaros. Eu ei liraiil hasta los ciclo-
micnlen, exclamou o general, dizendo do clima o que pensava do
povo. Yieyra, Senti., t. i, p. '2ítj.

i
HISTORIA DO BRAZIL. 179
\0-í\
Inglezes accommettel-o em viagem, e em virtude
d'csta mal fundada denuncia, singrou para leste em
latitude 35°, pensando evitar inimigos com quem
não estava em estado de bater-se. Foi-lhe o resultado
mais desastroso ainda, do que se houvera cabido em
cheio no meio d'elles. Tempestades dispersarão a
armada; tres navios hespanhoes e nove portuguezes
forão a pique, escapando apenas uma pessoa, um
frade Trinilario, apanhado depois de ter boiado dous
dias agarrado a uma prancha. A almirante aferrou
a ilha de S. Jorge, alagando-se, apenas a deixou a
tripolaçào, que das fadigas do mar e falta de alimento
tanto havia soffrido que bem poucos se restabelece-
rão. Outros dous navios da armada forão capturados
por uma esquadra hollandeza. 0 Almirante de
Quatro Villas com D. Juan de Orellana a bordo teve
ainda mais desgraçada sorte. De conserva com outro
dera este galeão combate a uma rica nau hollandeza
que vinha da costa da África e capturou-a; a preza
incendiou-se1, e o Almirante ardeu com ella, pere-

1
Tamaio de Vargas diz, « era costume desesperado d'estes he-
reges, antes do que cahirem nas mãos dos catholicos, porem termo a
suas vidas por meio do fogo, dando assim principio ao seu eterno cas-
tigo no mesmo elemento. Sepultão até certo ponto a razão e o senti-
mento em copia de vinho e de pólvora, e mettendo-se no porão, man-
dão algum moço ignorante chegar fogo aos barris, e Ia. vão voando
para o inferno, a soffrer o castigo devido a seus erros. » P. 162. Que
humana linguagem esta do chronista real! Mas é caracleristica do seu
século, paiz e religião.
Acredita-se geralmente que aguardente e pólvora torna a carne
ISO HISTORIA DO BRAZIL
1 Ü25 cendo a maior parle da tripolação. Menezes, que
sahira do Tejo com vinte e seis navios, voltou com o
único em que ia. O rei de llespanha, reconhecendo
o zelo com que o havião servido Portuguezes nVsta
jornada, concedeu a todos os fidalgos por mais uma
vida as pensões e logares que tinhão de sua coroa, o
que, como requeria a justiça, não se extendeu me-
ramente aos que voltarão, mas a quantos tinhão em-
barcado. 0 historiador hespanhol, Ccspedes, observa
que esla doaçlo excedeu cm generosidade quantas
jamais havião feito os anteriores reis de Portugal.
Eiveeyra admitte a grandeza e liberalidade das con-
cessões, mas accrescenla que era'como se Philippe
anlevisse ja a próxima emancipação de Portugal e
qui/.osse ser tão generoso á custa alheia.
ifeitosd.s Tinhão-se os prizioneiros hollandezes apartado da
.a "ifoíiando. armada ainda a tempo de escaparem aos desastres.
Na Hollanda imputárão-lhes maisá própria relaxação
e desobediência do que á superioridade dos llespa-
nhoes a perda da cidade 1 , pelo que todos os olha vão

morta. Sei isto d'um dos Teslimunhos Vivas de William Muntington,


(|ue tinha sido desertor, e tomara esta receita antes de receber as chi-
baladas.
1
.1. de Liei aftirma que elles tinhão na cidade provisões para tres
ou quatro mezes, e Avendano na resenha que faz do material apn-
hendido, refere 6,000 fanegas de farinha de trigo, e '2,000 pipas de
vinho, quantidade incrível. Mas Aldenburgh, cujo diário mostra ser
muito fiel, diz que o mantimento era escaso e que se comião cavallos,
cães e gatos. Era uma grande impievidencia matar os gatos, por
quanto, acere-centa elle, tornárão-se tão numerosos ratos e ratazanis,

1
HISTORIA DO BBAZIL. 181
1625
• , i i i • -

como homens que tinhão deshonrado o seu paiz, e


merecião o desprezo dos inimigos. Mas a restauração
deS. Salvador, e mais ainda a mal aventurada ex-
pedição de Hendrickszoon desanimara os Hollandezes;
reviverão com nova força os argumentos que se ha-
vião feito valer contra o estabelecimento da Compa-
nhia das índias Occidentaes, e até aquelles que favo-
recião os projectos ambiciosos d'ella, confessarão que
quanto mais longe da pátria se empregavão os sol-
dados, menor era o respeito á auetoridade, e mais
difficil refreal-os. Mas o príncipe de Orange, perli-
naz nas suas idéias, oppoz-se ao partido da paz, e
como a guerra contra uma poderosa potência marí-
tima é uma loteria que sempre tentará aventureiros,
prevaleceu a sua política. Becuperada a Bahia, re- CoDlinuão o
i i • 1 • j 1 • Hespanhoes
cahirão os Hespanhoes na sua habitual indolência, a descuidar*
1 _ do Brazil.

nem se tomarão medidas para segurar o Brazil, por


mais lamentável que tivesse sido o modo por que se
manifestara a sua falta de segurança. Bepelidas per-
das por mar obrigárão-nos a final a pensar em algum
remédio, e concordou-se em que o melhor seria ter
na America uma poderosa força naval. Besolvido
isto, era a primeira questão saber onde se construi-
ria e esquiparia esta armada... na Europa, onde
havia á mão os materiaes, ou no Brazil e índias hes-
que não deixavão a gente dormir na cama, atrevendo-se aos pés, mãos
o cabec,i.
18'2 H I S T O R I A DO B R A Z I L .
"'-" panholas, onde abundavão madeiras melhores?
Esta questão não chegou a resolver-se, nem o minis-
tério satisfeito com ler ventilado o negocio, atirou ao
estado em que a achou, deixando que seguissem as
Brito Freire.
§3oi. couzas seu caminho.
oliveira Xinguem molestou Francisco de Moura no seu
^nvernador.

governo, até que no anno seguinte foi rendido por


27
"'" Diogo Luiz de Oliveira. Tinha esle novo governador
servido muitos annos nos Paizes Baixos, e oecupado
cargos importantes, no que tudo havia adquirido
grande reputação e muita experiência como soldado
e como estadista. Mas devia agora haver-se com um
inimigo marítimo, contra cujo desesperado espirito
de empreza, não havia talento militar que valesse.
Outra vez entrou Heyn na enseada da Bahia com oito
navios grandes e quatro hiales. Já se sabia que elle
andava na costa, c com receio d'esta visita tinhão-sc
collocado debaixo da artilharia da fortaleza dezaseis
navios que estavão no porto, e guarnecido de Iropa
quatro dos maiores que, postos do lado de fora como
baterias, protegessem os outros. Oliveira ainda não
julgou isto sufficiente, e assestou quarenta e duas
pezas grandes debateria em differenles ponlos para
bater o inimigo, se commellessc a tentativa. O vento
eril t e , T a l
JílT,!'na 1 I I e v n vei,, > guinando contra elle, metter
o seu navio enlre as duas maiores baterias flucluan-
tesdos Portuguezes, postando-sede maneira quees-
les nem dos fortes nem da praia lhe podia fazer
HISTORIA DO BRAZIL. 183

fogo , sem ferirem os seus próprios conterrâneos. 1627-


1

Dous únicos navios da sua frola o poderão seguir e


vir ás mãos com o inimigo. N'esta brilhante acção
recebeu Heyn duas feridas. Dentro de meia hora
linha afundido uma das baterias fluetuantes ; as ou-
tras encalharão e os doze navios mais pequenos ne-
nhuma resistência podião oppôr. Vierão os Hollan-
dezes em botes, picárão-lhes as amarras, e levárão-nos
todos, excepto tres dos menores que estavão vazios.
Não podendo porem pôr a nado o navio de Heyn, Brit0 Frejfe
que, sobre ter soffrido na acção grandes avarias, §30S'
ficara em secco ao vasar a maré, ateárão-lhe fogo;
outro dos seus navios voou, e em ambos perderão
elles mais de trezentos homens2. No dia seguinte
passou o almirante revista ás suas prezas; as quatro
maiores carregadas as mandou para a Hollanda, ou-
1
J. de Laet no Novis orbis diz que assim mesmo a fizerão, evU
dentemente exagerando a maravilha d'uma acção ja assaz maravilhosa.
Para prova do contrario basta ver que alguns escriptores portuguezes
arguem Oliveira por não ter mandado fazer fogo dos fortes, indes-
culpável como teria sido sacrificar assim a sua própria gente.
2
A auetoridade de Brito Freire acha-se confirmada por uma breve
narrativa da acção, impressa sob este titulo : Le siége de Ia Ville de
Groll, au pays de Frise, par le Princc dOrange. Enscmble, Ia
Dcffaite de Ia Flotte Espagnolle dam Ia Baye de Todos los Santos,
au Rrcsil, par les Hollandais, 1627. Este boletim, como se pôde
chamar, dá como de 32 o numero dos navios que Hejn atacou, em
quanto Laet o eleva a 36. Brito Freire quer que fossem apenas 16, e
aceusa Lael de exageração gratuita : elle próprio é digno de credito no
mais subido ponto. Dos materiaes e artilharia que se encontrarão nos
dous cascos que ficarão, se inferiu que era intenção dos Hollandezes
tomarem segunda vez a cidade.
l.U HISTORIA DO BRAZIL.
1027 Iras quatro reuniu-as á sua frota, o o nsio que-
mou-as.
Vinte e quatro dias se deixou Heyn ficar na en-
seada, voltando outra vez a ella depois d'um cruzeiro
para o lado do sul, e então tenlou capturar quatro
navios n u m dos rios do Recôncavo. Mais diflicil e
perigosa ainda do que a primeira era esla cm preza.
Estavão as embarcações algumas milhas pelo rio
acima, e nenhuma precaução se havia desprezado,
tanto para as pôr seguras, como para cortar a reti-
rada ao inimigo. 0 almirante pavezoti os seus baleis
de couros crus tirados das prezas que fizera, subiu a
corrente, e, se não pôde apanhar os quatro barcos,
trouxe um, e a melhor parte do carregamento de
todos. NYsla acçào cahiti Padilha, o matador de Van-
dort. Depois d'esla façanha, Heyn, vendo «pie nada
lhe restava que fazer, deu á vela, cnconlrmi a frota
do México, e caplnrou-a toda. Ksla apprehensào, a
maior que jamais se tem feito no mar, indemnizou
a Companhia das Índias Occidenlaes amplamente de
Iodas as perdas soffridas; viu-se ella em eslado de
emprestar dinheiro ao governo, e com maior ambi-
ção que nunca renovou os seus planos de conquista.
Um dos seus capitães', que infestava a costa do Bra-

1
(àirnelisCornelisz Jol, hoineiii de grande nomeada no seu tempo. O
Portuguezes escrevem-lhe i> mune .lolo, c eostuiiião chamai-o l'é d<
l'au, da sua perna de madeira, liadu/indo asMin a alcunha que o
Hollandezes lhe da vão de HoaW-beeii.
H I S T O R I A DO B R A Z I L / 185
ml
zíl, apoderou-se da ilha de Fernão Noronha, forlifi- -
cou-a e principiou a colonizal-a; esta medida, se
houvesse sido efficazmente executada, poderia ter
sido fatal aos Portuguezes, elles porem ainda com
tempo o perceberão, e immedialamente fez o gover-
nador sahir uma expedição de força sufficiente que
aprizionou os colonos, queimou-lhes as casas, e des- .
31
truiu-lhes as plantações. °-
0 5
Com Francisco Coelho viera um reforço de missiona- , ^s "» .
•* do .Maranhão.
rios capuchinhos debaixo da obediência de Fr.Chris-
tovão de Lisboa, que n'estas conquistas occupava o
cargo de custodio da sua ordem, equivalente ao de
provincial. Em quanto o governador se demorava em
Olinda, Fr. Christovão, julgando em S. Luiz mais
necessária a sua presença, para alli seguiu com os
seus irmãos. Levou comsigo um decreto que privava
os colonos de seus direitos sobre os índios alliados1,
osquaes, tendo de livres o nome, tinhão de escravos
a realidade; e os colonos submelterão-se, quiçá com
medo dos poderes ecclesiaslicos de quem vinha como Berredo.
519-522.
visitador e commissario da Inquisição. Feito isto,
seguiu para Belém, onde tentou pôr em execução o
mesmo decreto. Mas alli ainda o povo estava mais
1
Removia todas as mercês das administrações das aldeias dos
Índios. Estas administrações devião ser equivalentes ás que os Hes-
panhoes chamão encomiendas. Não se davâo os índios como escravos
a estes concessionários, mas davão-se os serviços d'elles : era mais
uma servidão do que uma escravidão, com a differença que se fazião
trabalhar os servos como escravos.
ISO HISTORIA DO BRAZIL.
1627. disposto do que no Maranhão a oppòr-se ao que lhe
contrariava os interesses do momento, e o senado da
câmara inventou um pretexto para suspender o ediclo
real : dirigia-se, dizião os vereadores, ao governador
do Estado, pelo que, sem que este chegasse, nada se
podia fazer para dal-o á execução. Fr. Cbristovào
teve por prudente sujeitar-se a esta demora, empre-
hendendo entretanto uma expedição missionária para
explorar o rio Tocantins. De volta resolveu tenlar se
pelo terror poderia levar os colonos a obedecerem e
achando-se a ponto de sahir de Belém, publicou uma
pastoral em que excommungava todos os que conti-
nuassem a conservar as suas administrações, como
estas concessões se chamavão. A câmara renovou o
seu requerimento th; adiamento, observando que elle
próprio reconhecera a validade do fundamenlo alle-
gado, aguardando com paciência selemczes; aceres-
centou também, que especificando a carta regia uni-
camente as administrações de S. Luiz, não seincluião
necessariamente as do Grão Pará; que ainda que
assim fosse, o senado appellava para o rei contra o
decreto, e que se elle custodio persistia na sua excom-
niunhão, também d'ella appellava, pois que os co-
lonos por si mesmos havião conquistado o paiz, nem
podião conserval-o sem fazerem trabalhar para si os
naluraes. Fr. Chrislovão era franciscano, ordem
então infensa aos Índios, por que Las Casas, que pri-
meiro se levantara como defensor d'aqnella raça op-
HISTORIA DO BRAZIL. 187
primida, fora dominicano : talvez isto explique a 1627-
facilidade com que elle cedeu, retirando a sua de-
nunciação, acto que por muito tempo lhe tornou
popular a memória entre os Portuguezes do Pará.
Logo depois da sua partida, requererão os Jesuítas
licença á câmara para fundarem um convento em
Belém, e o procurador por parte do povo recusou-a,
allegando que ja havia na cidade dous mosteiros, e
que estando dado todo o terreno, faltava logar para
terceiro. A verdadeira causa da recusa foi medo do
systema que os Jesuítas seguião a favor dos indígenas;
o erro politico de estabelecer instituições monasticas
n'uma colônia nova não entrou em linha de conta.
Restaurada S. Salvador, e sendo ja excusados os commetti-
T, mentos dos
seus serviços n aquellas paragens, passou t rancisco Hoiiandezss.
Coelho a tomar posse do seu novo governo; acompa-
nhou-o a S. Luiz o novo capitão-mór do Grão Pará,
Manoel de Souza d'Eça. Exemptas do seu quinhão no
perigo geral não tinhão ficado estas províncias do
norte. Duas vezes havião os Hollandezes acommeltido
o forte do Ceará, e ambas Marlim Soares os repellira
com grande perda. De novo entrou no Curupá uma
partida de duzentos Hollandezes; Teixeira os desba-
ratou, perseguiu-os até ao rio de Philippe, destruiu
alli duas feilorias fortificadas, e, não deixando pedra
sobre pedra, arrazou terceira, a que os fugitivos se
havião acolhido. Entretanto fizera-se Maciel mereci-
damente impopular com o seu gênio tyrannico; mas
IKK HISTORIA DO RRAZIL.
todas as vezes q u e o povo se d i s p u n h a a levantar-se
em tumulto declarado tinha elle arte de dar-lhe ás
idéias differenle direcção, armando sempre alguma
expedição nova contra os míseros índios que elle ia
exterminando com desapiedada e ineançavcl barba-
ridade. Succedeti que reunida n'uma de suas grandes
lestas de embriaguez unia partida de Tupinambás,
rolando a conversa sobre valcntias, e de quão facil-
mente darião cabo dos Portuguezes, se qui/.essem,
apontarão alguns com bazofia o meio por que isto se
consiguiria. Não passava isto do tagarelar de ebrios,
vã bravata do que poderia fazer-se, não' revelação
involuntária do que se meditava; mas bastou para
que o feroz Maciel, lançando a mão a vinte e quatro
caciques, 11'esse mesmo dia os fizesse literalmente
despedaçar por alguns de seus inveterados inimigos,
os Tapuyas. Bárbaro como era o povo de Belém, esta
atrocidade o encheu de horror; e se não fosse o espe-
rar-se todos os dias o novo governador, nem lodo o
talento e ousadia d'estc desalmado o lerião preservado
muito tempo dos justos effeilos da indignação po-
pular.
dl.,,.-,*>-,.. Ja Manoel de Souza tinha servido com distineção
J
<'JU'iTiil;tprlo-
1
'-""'"' n'estas conquistas, pelo que foi alli recebido com
universal alegria. Também elle, como todos os seus
predecessores, era de opinião que não podia a colônia
subsistir sem escravos; porem menos sanguinário
que Maciel, preferia ás da violência aberta as vias do
HISTORIA DO BRAZIL. 189
trafico. Offerecia este systema melhor pé de defeza in-n.
aos amigos da escravidão em Portugal, mas em ver-
dade era ainda mais perverso e detestável, junetando
a traição ao crime de injusta guerra. Foi Teixeira o
escolhido para estas expedições commerciaes, acom-
panhado do capuchinho Fr. Christovão de S.José.
Subirão os dous o Amazonas até uma aldeia dos Ta-
puyusus, e sabendo d'elles que traíicavão com uma .
populosa nação do rio Tapajós, que do nome d'este
se chamava, metterão-se por elle, e encontrarão esla
nova Iribu dos Tapuyas n'uma situação a que não
faltava encanto de bosque ou água para tornai a deli-
ciosa. Eslava este povo mais adeantado do que os seus
visinhos; do que viu e d'elles pôde tirar inferiu
Teixeira que estes selvagens devião as suas maiores
luzes ao commercio com os territórios hespanhoes, o
que porem não era possível. Esta descoberta foi o
único resultado da viagem; o mais que o agente pôde
trazer forão algumas redes primorosamente traba-
lhadas, e mais algumas bagatelas, mas escravos pre-
zavão-nos muito alli para que houvessem de vendei-
os. De fado o prizioneiro que não é immolado passa
a ser olhado como um dos da Iribu, e a mera inferio-
ridade de condição depressa se esquece onde não ha
outra desegualdade real ou imaginaria.
Fez-se esta expedição sem que se praclicassem
excessos, mas as iniquidades que de ordinário se
perpetra vão, vierão a ser tão clamorosas que o gover-
190 HISTORIA DO BRAZIL.
1627
nador do Maranhão prohibiu absolutamente taes
excursões, prohibição para a qual a obstinação do
povo e a avareza dos da governança souberão obter
taes modificações que depressa a tornarão phantas-
tica. Depois d*isto foi Teixeira empregado em destruir
1629. um estabelecimento novo formado na ilha dosTacu-
jos pelos interlopos; a que nação estes pertencião
ninguém nol-o diz, sabendo-se apenas que o com-
mandante era um írlandez por nome James Purcel'.
Apozlonga e poríiada defeza capitularão, sendo extra-
ordinariamente favoráveis as condições que obtiverão,
pois que permittindo-se-lhes levar todos os seus ha-
veres, prometteu-se-lhes passagem livre para Por-
tugal. Fm despeito de todos estes esforços para ex-
tirpai-os, teimavão os Inglezes e Hollandezes em
mandar navios a estas paragens, e formar estabele-
cimentos para cultura do tabaco, concorrência que
'ssZt&i. sensivelmente prejudicava o commercio do Pará.
iV,1Mr-i)(> Entretanto preparava a Companhia das índias oc-
uma'ZCí cidentaes novas investidas contra o Brazil. Não era
evnedir.lo . , , r> i • J

contra avizado accommetter segunda vez a Bahia; por de-


1'crnaiiiliiico. ° •

mais dura fora a experiência que se fizera dos espí-


ritos dos Portuguezes n'aquella província, nem havia
que esperar coadjuvação de negros e Judeosja uma
vez tentados á revolta c depois abandonados. Pelas
prezas procedentes de Olinda, que freqüentemente
1
Gemes Parcel.
HISTORIA DO BRAZIL. 191
162í
se capturavão, sabia-se do estado de Pernambuco, *
offcreccndo ellas próprias vivas provas das riquezas
daJerra1. Calculou-se que n'esta capitania poderião
annualmente carregar de assucar cento e cincoenta
navios: também seus portos erão outras tantas esta-
ções, donde sahirião os corsários a interceptar os
galeões da índia. Afim de conservar o desígnio tão
secreto como fosse possível, esquipou-se em diffe-
rentes porlos a armada, que sahiu por esquadrilhas,
sendo Cabo Verde o logar de reunião. Mas segredos
d'csta natureza jamais se escondem, se á cata d'elles
andão agentes hábeis. Segunda vez mandou a infanta
Isabel avizo á corte de Madrid, asseverando que era
Pernambuco o logar ameaçado. Immediatamente se
expedirão ordens a Oliveira que reparasse e augmen-
lasse as forlificações da Bahia, sendo possivel que
tornasse a ser este o fito dos Hollandezes, e provesse
á segurança de Olinda. Obedecendo, fez o governa-
dor seguir Pedro Corrêa da Gama para aquella ci-
dade, onde as obras de defeza progredião com um
vagar, conjunctamente attribuivel ao caracter do
povo, á incredulidade com que elle recebeu a noti-

1
Diz-se (Castr. Lus., 1, § 28) que também aqui forão os Judeos, ou
Christãos novos que convidarão os Hollandezes. É isto tão pouco pro-
vável, depois do que succedera na Bahia, que com segurança poderia
olhar-se como accusação falsa, se Fr. Manoel do Salvador nos não as-
sinasse razão sufficiente e justificação plena do comportamento d1 esta
gente, dizendo que ella soubera que ia estabelecer-se a Inquisição em
Pernambuco. Valeroso Lucideno, p. 10.
192 HISTORIA DO BRAZIL.
um
- cia, e á secreta persuasão em que estava de que,
G.Giuseppc. vindo os Hollandezes, não havia em Olinda quem
P. 89.
'"^V:"5' podesse resistir-lhes.
„ , Eslava Mathias de Albuquerque por este tempo em
Matluas de .
Al q
ma nTàre Madrid; a capitania de Pernambuco era do irmão
para o lirazil. ,, ,, . • «• • • ,

d elle, ninguém pois podia ler mais interesse em


defendel-a, sendo esta uma das razões porque o no-
mearão general com podeies independentes do go-
vernador. Outro motivo imputou-se a Olivares : erão
tão insignificantes os reforços que mandava, que bem
devia crer que pessoa menos interessada não acceita-
ria a commissào 1 . Os historiadores portuguezes car-
rega o de supererogatorias culpas a memória d'eslc
infeliz ministro. Se não se derão forças, proveio de
Lisboa a culpa, que não de Madrid. Um dos governa-
dores de Portugal achava-se por casamento aparen-
II. 1'ill.t.
t, i .*>s. tado com os Albuqiierques, polo que devemos presu-
mir que não faltaria nem interesso em levantar forças
sufficienles nem vontade para concedel-as; mas
sobre terem sempre os concelhos d'aquelle governo
carecido de vigor, falecião agora lambem os meios,
não se tendo ainda resarcido as pezadas perdas do
ultimo armamento. Obtidos alguns homens e malc-
Leriaes poucos 2 , fez-se Albuquerque cm outubro
narisNi». de |I)"2Í) de vida para o Recife,
i*. i;>. '
1
Sumido a assew ração de au. toi d.,.-, Memórias diárias da Guerra
de Pernambuco apenas com vinte e si pio soldados partira de Ij>l oa
Mathias dAlliuquerquc. Y. ]'.
- K iclia Pitta diz lre> caravelas. G. (iiusepjie apenas uma. 0 | m -
HISTORIA DO BRAZIL. 195

Sobre terreno tão desegual se achava edificada a i&2J-


cidade de Olinda, que quasi por impossível se tinha
fortifical-a com segurança: a sua maior defeza parece
ter sido um convento de Benedictinos fortificado perto
da praia. Pelo sul forma o rio Bebcribe o porto do
Varadouro : estreito isthmo de areia lhe é ribeira
austral, e sobre ella crescera outra cidade a quatro
milhas de Olinda, chamada de Saneio Antônio do
Recife. Fora este o logar tomado por Lancaster, que E-iado
r 1
° de Olinda.
da sua situação o chamou Cidade Baixa. Crescera,
por que entre o recife de areia e outro que era de
penedia, havia um porto commodo e seguro. Mathias
de Albuquerque ao chegar achou Corrêa, dando
frouxo impulso a obras insufticientes; uma guarni-
ção de 130 homens; as fortalezas taes quaes erão
ainda não reparadas; a pouca artilharia que havia,
quasi inútil, por falta de carrelas e artilheiros; pou-
cas armas, e ninguém que fosse dextro no seu ma-
nejo. Quarenta annos antes ja o auetor das Noticias
apontava a necessidade de segurar este logar impor-
tante, mas nem o seu memorial, nem o resultado da
expedição Lancaster, produzira sobre o governo o
menor effeito. Alguns dos moradores mais reflecti-
dos bem vião o perigo; do alto do púlpito se pregava
que se o povo se não arrependia da sua preguiça e
de seus peccados, não tardaria Olinda a ser escrava
meiro é mui deleixado para ser crido, o segundo por demais mali-
cioso.
194 UISTORIA DO BRAZIL.
[&>'.'. dos Hollandezes '; e as pessoas mais principaes, que
ouvião a advertência , exasperadas expulsavào da
egreja o pregador. Depois da sua chegada ainda o
general perdeu tempo, como se elle próprio duvi-
dasse da realidade do perigo contra o qual fora
mandado a prover. A rainha da llespanha dera ulti-
mamente á luz um filho, não lendo tido ale enlào
senão filhas que tão depressa morrião, que anles de
feitos os vestidos de gala para seus nascimentos, se
rcqueriào outros de luclo para seus funeraes: o nas-
cimento d'um príncipe e herdeiro, sempre motivo
de regosijo, o era pois agora dobradamenle. Fora
Mathias que trouxera a noticia, e como comprimentos
lisongeiros coslumão ser mais acceitos á ròrlo do
que serviços reaes, em logar de trabalhar por pòr
Olinda em estado de defeza, so traclou de festas e
Casl. Lu folgares, e pompas e galas, nem em toda a cidade se
'V,§V;li! cuidava em outra couza2. No meio d'osla> inoppor-
lunas oecupações chegou uma pinai i mandada pelo
governador de Cabo Verde com a\izo, de que a ar-
mada hollandeza, que alli estivem dous mezes a

1
O prosador Fr. Antônio llosado custava di1 tri<<-:i>lilljns; suas pala-
vras crào : .Soa mais díffercnça do que a de uma so letra, está
Olinda clamando por Olumla ; e por Olunda ha de ser (thrazadti
Olinda, que onde falta lauta a justiça da terra, não tardara
muito a do ceo. li. Freire, Sj ."7 .
- K Minimamente injusta similhanto aceusarão, por quanto Mal lua-
dWlbuquerque empri.^ou convonicntemrnte os fraco* 1.1 ur-os do «pio
di-punha pira a dolrza da capitania. V. I'.
HISTORIA DO BRAZIL. 195
162
reunir-se, dera a vela para o Brazil. A própria im- °-
minencia do perigo offerecia um argumento para
duvidar d'elle: se os Hollandezes demandassem Per-
nambuco, dizia-se, deverião necessariamente ter
chegado antes do avizo, que dera á vela depois
d'elles. Continuarão pois valentemente as festas, gas-
tando-se de má vontade um pouco de trabalho com
1
Cast. Lus.
2
as obras de defeza. > I 6-
De mais de cincoenla velas se compunha a armada chegada d..
1
armada
hollandez;l
hollandeza, ás ordens de Henderick Loucq, que vinha
como general em chefe; Pieter Adriaenszoon era al-
mirante, e o coronel Diderich van Wardenburch
commandava as tropas. Tinha velejado da Hollanda
em divisões pequenas; oito navios com o general a
bordo forão esbarrar na altura de Tcneriffe com a
armada hespanhola composta de quarenta velas, mas
pelejando com denodo, e manobrando com destreza,
escaparão os Hollandezes, c a Deus renderão a gloria
d'uma salvação, que nenhuma razão tinhão para es-
perar. Chegarão a Cabo Verde en septembro, mas so
em fins do mez seguinte sahirâo o Texel as forças de
Wardenburch. Contava a expedição toda cerca de
7,000 homens, metade dos quaes erão soldados.
Effectuada a juneção, suspendeu-se o ferro a 26 de
dezembro, e a 15 de fevereiro de 1630 appareceu
a armada á vista de Olinda, oito dias depois do
avizo.
Entretanlo tinha-se discutido se conviria remover
196 HISTORIA DO BRAZIL.
sl9 parte dos moradores e da propriedade; aconselhava»»
alguns esta precaução, dizendo que os homens com-
bateriâo mais desassombrados, sabendo cm segu-
rança as famílias, e nada receando porellas. Preva-
leceu porem a opinião de que onde mais havia que
perder maior esforço se fazia para a defeza, e publi-
cou-se um bando, prohibindo que ninguém se reti-
rasse da cidade, nem d'clla removesse couza alguma.
Não podemos porem levar a mal a desobediência
áquelles que apezar d'esla ordenança vião a pardo
perigo a pouca esperança de se oppòr uma resistên-
Cast. Lns.
cia efficaz : as principaes riquezas forão pois secre-
J. de Lael. .
15, c. 2G. lamente tiradas da cidade.
Apenas do cabo de Saneio Agostinho se avistou a
armada hollandeza, mandou-se recado a Olinda, onde
ao apparecer o inimigo estava em armas Ioda a força
tal qual era. A' inlimação que Loucq mandou fazer,
respondeu-se com uma descarga de mos<|uclaria con-
tra o escaler, c de parle a parte rompeu a canhonada.
Achavão-se os Hollandezes perto bastante para que a
sua artilharia sorlisse effeito, mas o mar ia tão ca-
vado que era impossivel fazer certeira a mira. .Não
poderão entrar no porto, por que na barra se havião
afundido barcos que vedassem a passagem. Km-
quanlo continuava a canhonada, deixou Warder-
burch a armada divertir o inimigo, e seguindo com
dezaseis navios par a Pau Amarello, obra de trez a
quatro legoas ao norle da cidade, alli poz em terra
HISTORIA DO BRAZIL. 197
com Ioda a segurança quanta gente pôde desembar- 1629.
car antes de fechara noute. Dormirão na praia, pondo
guardas do lado das malas, e na manhã seguinte sal-
tou o resto das tropas.
A primeira medida do commandante foi despedir
os navios, para que n'elles não pozessem os soldados
os olhos como meios de retirada, ficando apenas
algumas canhoneiras armadas de onze bocas de fogo
ao lodo. Dividiu depois as suas tropas em tres divi-
sões, cuja artilharia consistia em sos quatro peças
de campanha. Pouco depois das ave-marias chegou a
Olinda a noticia d'estc desembarque. Muitos, que por
obediência ao edicto não se tinhão ainda retirado da
cidade, não poderão agora resistir ao terror pânico
que se apoderou d'elles; as mulheres e crianças fugi-
rão para o campo; os maridos seguirão as esposas e
os filhos ião atraz para prolcgercm os pães; os
objectos mais porlateis e preciosos erão apanhados
á pressa, e muitas couzas cahião com a precipitação
da fuga. Alguns alirárão-se a roubar as mulheres c
as crianças, chegando-se a dizer que os Portuguezes
soffrérão mais da sua própria canalha do que do
inimigo. Muitos escravos aproveitarão o ensejo de se
emanciparem, oestes como fossem homens ou bru-
lacs por natureza, ou sedentos de vingança pelos
mãos Iractos recebidos, dobravão a confusão, sa-
queando as casas e deilando-lhes fogo.
IN"a manhã seguinte poz-sc Wardenburch em mar-
198 HISTORIA DO RRAZIL.
"'^ cha, acompanhando-o as canhoneiras ao correr da
a<
ic"de fev. cosia. Um punhado de homens acobertados com o
de 1630

mato o fizerão soffrcr o baslanle para provar quão


facilmente um inimigo activo o houvera derrotado.
Ao chegar ao rio Doce achou-o crescido de mais, para
se avenlurar a passal-o. Do outro lado algumas obras
se havião erguido, guarnecidas com alguma gente
para defeza d'eslc vantajoso posto; mas apenas ella,
vasando a maré, viu os Hollandezes disporem-se a
vadear a correnle com água pelos peitos, cahiu-lhe
a alma aos pés. As canhoneiras romperão o fogo, não
tão efficaz que fosse irresistível, n\:\< desde logo se
levantou uma voz que este ataque da banda do mar
11. Freire
fi, 33-2.
lhes cortaria a retirada, e os defensores niellérão
pernas. Mathias, que ficara no Recife, illudido pelo
fogo que a armada entrelinha depois da partida de
Wardenburch, chegou ao ponto do perigo real exac-
tamenlea tempo de leslimunhar a vergonhosa fuga
do seu destacamento. Dt balde tentou ineller a genle
em lorma, e como renovar a acção com as tropas que
trazia, e em quenâo havia mais que fiar, seria des-
esperado commcllimento, resolveu retirar-se e de-
fender o passagem do rio Tapado, que ainda ficava
entre os Hollandezes e Olinda. Baldado intento; os
que á margem do Doce havião deixado o animo, nào
<» recobrai ifio facilmente ,í do Tapado; ainda o com-
mandante Ia não linha chegado e ja a maior parle da
genle lhe linha debandado, pelo que os ofliciaes c
HISTORIA DO BRAZIL. 199
1C50
os poucos soldados que reslavão lhe aconselharão que
r
Cast. I.U-
se recolhesse á cidade. 2, ie, n.
Wardenburch poderia ter-se servido do inimigo Ennãoos
1
, . . . Hollandezes

fugitivo como de guias, mas um mulato prizioneiro na cidade.


o conduziu por caminho mais seguro, e sem resis-
tência entrou elle na parte alta da cidade. Foi Salva-
dor de Azevedo o único official portuguez que fez o
seu dever; reuniu um punhado de bravos, e tomando
posse do collegio dos Jesuítas alli se defendeu com
denodo, até que desfeitas cahirao as porlas. 0 redueto
á entrada de Olinda lambem por momentos deteve
os vencedores. Orgulhosos com o triumpho, parecia-
lhes a estes que mostrarem-se bastaria para obrigar
a guarnição a render-sc : uma viva descarga de mos-
quetaria e grossos canhões os desenganárão. Havia
porem no baluarte dous Hollandezes, Àdrian Frank
e Cornelis Jan, que o alraiçoárão.
Entregou-se agora a cidade ao saque, e o resto do
dia passou-se em excessos, que desdourâo não so a
victoria mas até a natureza humana 1 . Em Portuguez,
cujo nome era André Pereira Themudo, não pôde
ver a profanação das egrejas; elle so com a fúria
d'um Malayo que se vota á morte, investiu uma par-
tida d'cstes saqueadores, matando muitos antes que
podessem subjugal-o. Os despojos forão poucos para
1
Taes excessos devem ser lançados por conta dos aventureiros,
escoria de Iodai as nações que tanto abundaram no exercito hollan-
dez. F. I».
w
-i'Mi HISTORIA DO B R A Z I L .
1030. 0 que espcravão os Hollandezes; se se tivessem posto
a perseguir os fugitivos em logar de saquearem casas
e egrejas, a maior parle dos moradores e das rique-
zas moveis de Olinda lhes teria cabido nas mãos. Mas
primeiramente se entregarão a todas as paixões bru-
laes e depois ao delírio e loucuras da embriaguez.
1 nsmeltiãoos pés nos sapatos de taeào alio das damas
de Olinda, arremedando-lhes pelas ruas o andar;
outros cnvcrgavf.o as vestes dos sacerdotes e irman-
dades religiosas; outros apoderando-sc das varas dos
ofliciaes de justiça, divertião-se com macaquear os
irnij,,'.. aclosda auetoridade. Comtudo no meio d'esla confu-
são salvou Wardenburch a cidade de ser queimada
pelos escravos, que d'csta forma qtieri.o exprimir a
alegria que sentião, recuperada a natural liberdade.
Fnsinados pela experiência da Bahia, enlendião os
llollande/.es que maior mal do que bem lhes resul-
taria dos serviços ifesla gente, em parle por que a
ferocidade africana a levaria a cruéis represálias, e
em parte por que muitos dVnlrc cila reprcscnlarião
papel dobre, para o que lhes não fallarião nem occa-
sião, nem arte, nem coragem. Tanto pezo se achou
n'estas razões que deixados ficar mui poucos apenas
d'estes negros fugidos, se expulsarão todos os outros,
que fossem ler com s.rUS antigos senhores, e obrar
como inimigos declarados, se assim lhes conviesse.
tiiuMjucrqut Resolvera Mathi.is <le Albuquerque retirar-se pri-
'.í;'",i''" ilicitamente sobre o rio Tapado e depois sobre a ei-
HISTORIA DO BRAZIL*. 201
1ü3
dado, mas sem sequer parar em nenhum d'estes pon- o\
tos, viu-se levado mais pela cobardia dos seus do
que pelo valor dos contrários, até ao Recife. De menor
extensão do que Olinda era esta praça melhor forti-
ficada. Para defendel-a bastaria a força com que elle
sahira, mas tal havia sido a deserção na retirada,
que ao recolher-se achou-se o general sem gente com
que guarnecer as obras. O mais que se podia fazer
era guardar o passo entre as duas cidades : mandou
pois levantar uma trincheira que cortasse a estrada,
pensando ao menos demorar os Hollandezes, mas
estes descobrirão outro caminho, e os Portuguezes
retirárão-se. Não restando mais esperança de defen-
der o Recife, mandou Albuquerque pôr fogo aos
navios e armazéns, ardendo trinta embarcações e
muitos milhares de caixas de assucar alem d'oulras
mercadorias de grande valor1. Vendo a conflagração,
sentiívo os Hollandezes mais a perda dos seus des-
pojos, do que se alegrarão com esta prova de aban-
donar o inimigo a defeza. Se porem pouca preza
restava á rapacidade, não faltava pasto á intempe-
rança. Tanto nas casas do Recife como nas de Olinda
encontrarão os conquistadores fartura de vinho, en-
tregando-se a seus bestiaes appeliles com excesso tal,
que os próprios escravos, que olhando-os como in-
venciveis em torno d'elles se havião apinhado na
1
.1. de Laet diz que os Portuguezes n'um documento official ava-
liarão a su i perda cm 2,000,000 de ducados.
202 HISTORIA DO BRAZIL.
iG
J° esperança de obterem a liberdade, agora, vendo-os
jazer por terra insensíveis, os desvalijavão de seus
despojes. Houve alguns que, correndo a dar com o
general portuguez lhe disséráo, que se quizesse aca-
bar com os Hollandezes, baslava-lhe pical-os como
odres de vinho. Olfereceu-se uni eampoiiez para
cahir sobre elles com alguns de seus camaradas, mas
temeroso de traição deixou Albuquerqueperdero en-
sejo.
i«vc.-iíin-e Faltava reduzir ainda os dous fortes de S. Fran-
o« fortes. . -,
cisco e S. Jorge, nem eiuqtianlo estes estivessem em
poder dos Portuguezes podia a armada entrar no
porto. 0 segundo que, ficando do lado de Olinda,
devia ser o primeiro investido, linha apenas Ires
peças de ferro sem carretas, rudemente montadas em
li aves, exacl.imentc como os primitivos colonos de
Pernambuco as havião assestado contra os selvagens.
Mais de oitenta pessoas não cabião no forle, cuja
construcção não impunha mais respeito do que a
força da sua guarnição; mas a posição era impor-
tante. Tinha Antônio de Lima o commando, e infec-
cionados do terror geral todos os seus soldados o
abandonarão á excepção de sete. Mandou elle ao ge-
neral avizo da deserção e pedido de reforço. Ao che-
gar esta mensagem suecedeu estar presente João
Fernandes Vieyra, niancebo de dezasele annos. Na-
tural do Funchal na Madeira, embarcara com so-»
onze annos para o Brazil em busca de fortuna, Ira-
H l s T o R I A DO BRAZIL. '205
lK0
zendo por único capital os seus talentos. Offereceu -
este joven immediatamenle os seus serviços, e ou-
tros vinte lhe seguirão o exemplo; acceila a offerta,
preparou-se Lima para defender o seu posto com este
punhado de homens'. Cinco dias se passarão sem
que se desse ataque algum : na quinta noute tenta-
rão os Hollandezes sorprehender o forte. Mas quem
viera voluntário oecupar similhanle posto não era
para dormir n'ellc : com as traves, preparadas para
reparar a fortaleza, fazião os defensores lombar as
escadas dos assaltantes; as granadas de mão arre-
messadas entre elles, aliravão-nas outra vez para
fora anles da explosão, e assim repellirão o ataque
com considerável mortandade de inimigos. Mas dez
homens da tão pequena guarnição, linhão ficado
mortos ou feridos. Alguns dos próprios soldados,
que ultimamente linhão desertado do forte, tendo-o
por insustentável, voltarão agora a elle, envergo-
nhados de que outros o defendessem, bebendo animo
no esforço extranho, tão fáceis como antes havião
servido cobardia no terror alheio. Não erão porem
obras aquellas, que por largo espaço se deixassem
manter, e os Hollandezes baterão os muros até que
pouco mais forão do que um montão de ruinas. Al-
buquerque fez uma fraca demonstração de querer

1
Acha-se hoje exuberantemente provado que nem-uma parte to-
mou João Fcrnandez Vieira na defeza do forte S. Jorge nem a ella se
adiou ptvsonte. F. P.
201 HISTORIA DO RRAZIL.
103:.. SOCt . 01TO ro forle : a sua genle havia perdido o animo,
empalhou até que a maré, crescendo, tornou diflicil
de nadear a Beberibe, e depois fez dYsla difliculdade
pretexto para retirar-se sem nada haver tentado.
<-. G uso|i['i
1'. tC». Rendeu-se pois a praça com condições honrosas, e
Brito Fieii
§ :> 31
£, fL
f.aít. Ia -'oão Fernandes Vievra salvou a bandeira, passando-a
CgVlit.' . , ,
2, S-M--.N. a volta do corpo .
Em seguida foi intimado o forte de S. Francisco.
Fm tenente oppoz-se á pusillanimc inclinação do ca-
pilão, dizendo que com a espada na mão sempre se
oblinhão melhores condições do que com ella na
bainha; mas prevalecerão conselhos mais baixos, e
1
Os Hollandezes c\ijjii-".o dYsles bravos um juramento de não
pecarem em arma- por seis me/cs contra os invasores, mas elles, qur
não se tinhão rendalo min siniilhante condição, também a cila se nãn
iiuizorão sujeitar ajíora, pelo que forão pre/.os, porem soltos passadas
I oucos dias. Tal é a versío portuiíiioza ; a hollandeza é outra. Si-pimdn
islã eompunlia-sc a guarnição de SI) ;i |)|) lioiuens; não se llic pci -
inittiu sahir da praia com honras militares, e depois recusará» qua-
renta prestar o juramento a que se havião oln i^ado i\os termos da
capitulação. Por conseguinte forão desarmados e reu.ellidos prezos
para Olinda, onde no nulro dia derão o juramento, e furão postos cm
liberdade. (./. de Laet, lN'.i-)!M).)
fionlradirtorias como são estas duas versões , parece-me qr.e em
nenliuiiia ha falsidade direela ou intencional. Os lermos forão prova-
velmente os ipie dizem os Hollandezes. mas é natural que metade dos
l'ortugUeZe> naili soubessem da condição, c no estado de exallaeào c
ctuiiplet.i indisciplina, se recusassem ao juramento. A prizão tTuiua
noule podia induzd-os a snjeitai-su a cm compromisso coiiiplllsoi .o,
ijiie elle- cm taes ciicuinslancias pouco escrupulfi lerião em qiieljiar,
ou rntfo o comn.amianto l.ollandez (que pai ei e ler qm i ido lazer a
iMieira com coi\czia c u m p r a , e conciliar se o | ovo) pol-os-ii em li-
lurdade [ara l m a r - s o do cuidado do iMia:dul-os.
H I S T O R I A DO B R A Z I L . 20o
,U3Ü
o mais que pedirão os si liados foi licença para man-
darem recado a Mathias d'Albuqtierque e tçes dias
de tregoas, findos os quaes se renderião, se não fos-
sem soecorridos. Nem Ires horas foi a resposta, a que
se acerescentou a ameaça de não dar quartel, se a
praça fosse levada de assalto : á vista d'isto entregou-
se o capitão e a armada hollandeza entrou no porto
em triumpho. Nove dias depois chegarão reforços.da
Hollanda'.
Contava Olinda ao caíiir nas mãos dos Hollandezes
'2,000 moradores, afora cerca de 130 religiosos. Pos-
suía um collegio de Jesuítas, um convento Benedic-
lino, outro Carmelita 2 e outro Franciscano; um

1
A curta narração que Ericeyra nos faz da perda de Olinda está
recheada de inexactidòes. Diz elle que Albuquerque antes de partir de
Portugal, protestara contra a mesquinhez das forças que lhe davão ;
(pie nenhum tempo perdeu em pôr ludo no melhor estado de defeza
possível; e que por muito tempo defendeu valentemente a passagem
do rio Doce contra numero superior. Com a costumada malícia atira o
Carmelita * toda a culpa sobre Olivares, mas sempre confessa que o
povo de Olinda não acreditava no perigo. Raphael de Jesuz e Rocha
Pitta estão de accordo em censurar Albuquerque : o primeiro exprime
a opinião de João Fernandes Vieyra, juiz inquestionavelmente compe-
tente, o segundo pinta provavelmente o comportamento do general
segundo os sentimentos com que era recordado no Brazil.
2
J. de Laet erra chamando-o Dominicano; os frades d'esta ordem
jamais fundarão casa no Brazil —não sei porque feliz sorte para o paiz,
— e o convento Carmelita está marcado na vista que elle deu da ci-

' Ha manifesto equivoco nesta citação; porquanto o conde da Ericeir:


nunca foi carmelita; o auetor quiz talvez referir-se a Frei José de S. The
a
reza, carmelita descalço, e auclor duma estimada Istoria delle giterre
dei regno dei Brasile. F. P.
2IHI HISTORIA IMI l;n AZlr.
10o
°- mosteiro de freiras, uma Misericórdia, tino igrejas
parochhies, d'umadas quaes dizem (^conquistadores
que era mui formosamente edificada, e cinco ermi-
dasna cidade c suas cercanias. A força militar com-
punha-se de tres companhias regulares, nominal-
mente de cem homens cada uma, mas cuja quinta
parle por via de regra eslava no hospital, e de Ires
companhias dos moradores, com egual numero de
praças. Os commerciantes e mercadores abastados
diz-se que não erão menos de duzentos, a alguns tios
quaes se calculavào fortunas de L2 0,000, de 00,000
e até de 00,000 cruzados.
0 Becifc, como porto, e por conseguinte foco prin-
cipal dos negócios, tinha também uma população
considerável; pela ordem tio tamanho era então a
terceira villa de Pernambuco, sendo Iguaraçu a se-
gunda. Oitenta a noventa navios aqui carregavào Io-
dos os annos de assucar e pau brazil, sendo este
ultimo reputado o melhor que o paiz produzia. Dos
livros da alfândega se via que nos quatro annos
de lli*20 a lü'25 não tinhão sido importados menos
de IÒ,4ÕO escravos de Angola para a capitania. Km
verdade era muitos dos engenhos tamanhos como
aldeias não pequenas. Os Hollandezes dizião que Per-
nambuco era o paraizo do Brazil e valia bem um

dade. Ve-ta estampa, dá-se ao togai o nome de Maiim dolii.da de


Pernambuco. Ainda pois não edura em desuso a antica deitou iua "
aboriiíena de Marinj.
HISTORIA DO BRAZIL. 207
reino. Este paraizo, em que abundavão os escravos, 1630.

oassucar e o tabaco, estavão elles resolvidos a faze-


rem-no seu. Do porto e da capital ja erão senhores,
e tão seguros estavão da conquista, e determinados a
ffuardaroque ganhassem, que na expedição ja tinhão
levado todo o pessoal para a administração das colô-
J. de Lacl.
nias conquistadas. 191.
208 H I S T O R I A DO B R A Z I L .
IfV.O

CAPITULO XV

\.-ampamcnlo do Bom Jesus. — Calabar deserta para os Hollandezes e


faz mudar a fortuna da poeira. — Negros dos palinares. — Itcilur-
eão d i ilha de Itamar íca, Rio loande, 1'araliybn, acampamentoc Sazarelli,

iiefazcm-se Mas cm Pernambuco, como antes na Bahia, mal


Portuguezes. tinlião os Portuguezes abandonado a cidade, que logo
se reorganizarão, recobrando animo. Mais a falia de
direcção do que de coragem devemos altribuir o seu
feio proceder anterior; nenhuma previsão linha ha-
vido, nada de preparativos contra o perigo que se
avisinhava, e quando este afinal lhes estourou sobre
as cabeças, o primeiro pensamento de cada um foi
assegurar um asylo á sua família, abandonada a es-
perança de salvar a cidade. Depois de tudo perdido,
e retirados todos para as brenhas e desvios, era a voz
dos bravos a que se escutava, que so esses davào
iTito Freire, agora conselhos, recaliindo o commando sobre aqncl-
les que a natureza creara para mandar. Lra lambem
do caracter do general obrar com acerto, quando lhe
deixavào tempo para considerar; homem vagoroso e
político, faltava lhe presença de espirito, e perlur-
HISTORIA DO BRAZIL. 209
J635
bavão-no os casos repentinos \ Disse elle agora aos
Portuguezes que os Hollandezes conquistavão pelo
lucro e não pela gloria; que cobiçavão Pernambuco
pelo assucar e tabaco que produzia, e que por isso o
melhor plano de operações era manter o campo, e
impedil-os de cultival-o. Immediatamente se princi-
piarão obras sobre um outeirinho equidislanle de
Olinda e do Recife, a uma legoa de cada um d'estes
logares, e cuatro canhões tirados d'um navio hollan-
dez naufragado erão toda a artilharia. Com alegre
azafama se proseguia n'estas obras, e ao passo que
ellas se adeantavão crescia o numero dos trabalha-
dores, vindo alguns a residirão abrigo d'ellas, outros
a reunirem-se ao arraial, e com tal presteza se hou-
verão todos, que ja o acampamento do Bom Jesus
E fermío
estava cm estado defensável antes que os Hollandezes ° arra,ial do
1
Bom lesuz.
o soubessem principiado. Occupavão-se os conquis-
tadores com arranjarem-se na cidade e regular o
governo das suas conquistas, quando devião ter se-
guido o primeiro triumpho; mais tarde conhecerão
o erro, mas ao principio alegrou-os a noticia dos
preparativos do inimigo, pois quantos mais Portu-
guezes se reunissem, mais decizivo seria o golpe,
entendião elles, e maior o espolio. Hadrian Frank,
que conhecia bem o paiz, offereceu-sea guiar por um
rodeio os seus patrícios ao arraial para sorprehen-
1
Injusta nos parece similhante apreciação do caracter de Mathias
d'Albuquerque. F. P.
210 HISTORIA DO RRAZIL.
1630. uei_0) mas Mathias de Albuquerque vigiava, o em
logar de aguardar o assalto, foz sahir uma partida
ao encontro dos assaltantes. Com esta não conlavào
J ae
§i93 '' os Hollandezes, c não podendo resistir ao ímpeto da
C
' " s ' investida, fugirão, deixando quarenta no campo.
Emboscadas. Afoutárão-se com a victoria os Portuguezes; sa-
bendo que o general hollandez ia do Recife a Olinda
com uma escolta de 000 homens, postos de embos-
cada o sorprehendérào; desbaratada a sua gente,
morto um dos pastores hollandezes, ler-se-ia elle
próprio rendido, se o seu cavai Io, recebendo ligeira
ferida, o não tivesse arrebatado em desesperada car-
reira. E Ia foi elle deixando perto de |0 mortos. Tanlo
foi crescendo o perigo de passar d'uma praça á ou-
tra, que fi/erào os Hollandezes um regulamento,
ordenando que todas as vezes que uma partida esti-
vesse para tentar a jornada, se disparassem duas
peças, e sahisse d'ambos os pontos um destacamento
a segurar o caminho.
Estabelecerão agora os Portuguezes uma porçf;»»
de postos avançados debaixo de officiaes, que pela
maneira por que devião combater, se ehairiárân
capitães de emboscadas. Um d'esles postos foi con-
fiado ao Jesuíta Manoel de Moraes e ao seu rebanho
de índios, de que elle fizera conjunctainenle chris-
tãos e soldados. Camarão ' o cacique Ca rijo, oecupava
1
Era ousado guerrilheiro natural do Ceará e fora levado a l'ern ou-
buco por Martim Soares Moreno. K. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 211
1030.
outro com o seu povo; e João Fernandes Vieira tinha
o commando d'uma partida, que noute e dia devia
estar en campo. À força principal compunha-se de
agricultores, que vinhão ao acampamento quando
podião furtar tempo ás suas occupações, e reliravão-
se quando a sua presença era necessária em casa, de
modo que continuamente vinhão e ião, mas os que
tinhão fugido da cidade ou moravão na immediata
visinhança do inimigo, estabelecerão alli a sua resi-
dência fixa. Mas grandes trabalhos se passavão. O
mantimento era necessariamente escasso quando si-
milhanle multidão se reunia de improvizo em simi-
lhante logar, suecedendo muitas vezes não terem os
soldados mais do que uma espiga de milho para
ração. Be roupa ainda eslavão peor do que de sus-
tento, pois expulsos de suas casas, como havião sido
aquclles homens, nada tinhão salvado. 0 que mais
lhes custava era apparecerem sem sapatos, pois que
andar calçados era um signal com que se distinguião
dos escravos, e ao principio também não podia esta
falta deixar de ser um mal real, mormente n'um
paiz infestado de chiguas. Contra estas adoptárão-se
os preserva li vos de que fazião uso os indigenas, e para
removerem o pezacfelo moral, deitarão os officiaes
fora os seus sapatos, andavão descalços como ás pra-
as1. Achou se isto depois tão conveniente n'um paiz

1
Stedman marchou descalço durante a sua terrível campanha no
•212 HISTORIA DO BRAZIL.
IO:J0
- cortado de rios e lagoas, que havia muito ja que
n.Freire, cessara a necessidade, e ainda durava o habito. Na
estação chuvosa inulilizavão-se tão freqüentemente
as mechas que Wardenburch achou necessário ar-
J. .le Laet. , . . . .

i''«. mar de lusis uma companhia.


Apeno de Entretanto fortificavào-se os Hollandezes nos seus
M parles, novos domínios, o que poderão lazer sem interrupção,
depois de terem os Portuguezes, tentando duas vezes
estorval-ós, sido de ambas rechaçados com grande
perda. Um boato de que abi vinha D. Fadrique de
novo com poderoso armamento, a tractar os Hollan-
dezes de Pernambuco, como fizera aos da Bahia, ani-
mou muito os Portuguezes, e o inimigo, quer acre-
ditasse quer não, teve a prudência de obrar como se
a couza eslivesse imminentc, aiignientando as fortiíi-
cações n'essa conformidade. Perto dos seus quartéis
demorava uma ilhota, d'um tiro de pistola em com-
primento, e coberta de arbuslos e mato rasteiro, onde
aves de varias espécies soião pousar de noute, vindo
ás seis da larde, e indo-se ás seis da manhã, cm tão
grandes bandos que escurecião os ares : apezar da
visinhança dos Hollandezes, e do freqüente atirar a
todas as horas, não abandonarão estes pássaros o lo-

Surinão, seguindo o conselho que lhe dera um negro velho, c a que


elle acreditou ter devido a vida. Talvez seja impossível a introducção
desla practica num exercito, e perigosa a tentativa, mas em longas
marchas ecom mao tempo, concorrem ella tanto para a comniodidade,
como para a saúde e conservação da tropa.
HISTORIA DO BRAZIL. 21
1630
gar, em quanto se não cortou o arvoredo para lenha
e para as fortificações.
De Portugal não chegavão recursos, e Albuquer-
que, cançado de esperar, foi de desesperado assaltar
Olinda, sendo repellido com grande mortandade. Na
guerra irregular estava porem sempre doladod'elle
a vantagem, nem tardou que os Hollandezes sentis-
sem falta de viveres: linhãoem verdade o mar aberto,
mas o paiz era do inimigo. Água não havia no Be-
cife, senão a que se tirava de poços abertos na praia,
e quede tão imperfeitamente filtrada mal servia de
água doce; pão tinhão de comel-o hollandez, e de
queimar lenha da Hollanda, apezar de terem a flo-
resta ao pé da porta, tão bem guardavão os Portu-
guezes as avenidas1. Se se aventuravão a sahir em

1
Joannes de Laet nos conta um caso, que caracteriza o deshu-
mano svstema de guerra que então se seguia. Tinhão-se capturado e
levado para o Recife muitos navios de escravos vindos de Angola. Aos
negros varões pouco importava servir senhores hollandezes ou portu-
guezes, ou pegar em armas d'um ou outro lado; mas as mulheres e
crianças consumião mais mantimento do que convinha no estado em
que se achavão as provisões; por isto e pela vida que os soldados fa-
zião com estas Mulheres (chamavão-se a religião e a moral em apoio
d'uma medida que tinha por único fim economizar viveres), forão
expulsas do Recife as negras e o seus filhos, e conjunctamente os Por-
tuguezes aprizionados nos navios negreiros. Serião ao todo cento e
vinte pessoas. Não se tinhão ellas ainda afastado muito das trincheiras,
quando uma partida de índios ao serviço dos Portuguezes fez fogo
sobre ellas, matando sete ou oito; fugirão as pobres mulheres para
traz com as crianças nos braços em direcção á cidade, mas ao ap-
proximarem-se da emboscada hollandeza, também d'alli lhes fizerão
fogo. D'ambas as partes fora isto engano fatal, não crueldade dehbe-
21 i H I S T O R I A DO BRAZIL.
1030. ] J U S C ; 1 u e mantimento ou fruclas, cabiào nas ciladas
dos emboscados. Quanto aos Portuguezes faltavào-
lhes munições, c tinhão de derreter os seus utensí-
lios de eslanho, e o chumbo das suas redes de pes-
caria, com que fazer balas; mas as certeiras armas
dos índios nãofalhavào, nem era pequena a perda que
os Hollandezes soffriào com este vexatório e acabru-
nhador systema de guerra, linhão de haver-se com
um inimigo exasperado e implacável que os odiava
dobradamenle como hereges c como invasores. Os
Hollandezes affirmão que Albuquerque não consentiu
em mitigação alguma dos horrores da guerra, que
queria ver feita com lodo o rigor, não dando, nem
pedindo quartel, e recusando até resgatar o seu pró-
prio confessor, um pobre Franciscaiio, que cahira
nas mãos do inimigo. Também accusào os Portugue-
zes de terem envenenado os poços donde hebiao os
J ''o l a e t . , . .

104. Hollandezes .
i.iciinào-bc Tinha Albuquerque oulros inimigos alem dos Ilol-
aljruns
colonos a
submette-
rem-se. rada, antes tiverão os llollanile/es a humanidade de deixar voltar os
sobreviventes. Jaerlisrk Yerhael, I'.• 8. «
1
Jol sahiu com os baleis para o que J. de Laet (bania ilha de An-
tônio Vaz a fazer acuada nos cacimbas, ou poros abertos na areia : a
sua vista fugirão alguns Portupne/es, que eslavão envenenando a
água. Iioiis soldados morrerão de repente depois de lerem bebido
d'ella, os oulros restabelecerão-se com soecorros médicos, \s--iin narra
Laet o caso a p. l ü i . I'uz cm e.rifo a palavra de repente, que elle
emprega, porque faz duvidar da accusai ão : uma tai raiada impru-
dente de a".ua fria pôde mais facilmente causar morte repentina, do
que qualquer veneno, que iVcsla fôrma se adminístias-e.
HISTORIA DO BRAZIL. 213
làndezes. Habitantes havia que, comtanlo que ven- J63°-
dessem os seus produetos, pouco lhes importava
quem era o comprador; destituidos de lodo o senti-
mento de patriotismo,*so suspiravão por traficar com B-Jfâre'
os conquistadores. Tres indivíduos que se aventura-
rão a iniciar este commercio, forão descobertos e
enforcados. Havia porem muilos cujos desejos erão
os mesmos, en'uma noute lançou-se fogo á casa em
que o general dormia, tendo elle por mais prudente
atlribuir a culpa ao acaso do que procurar e punir o
culpado. De facto, o jugo dos Hollandezes poderia
ter sido voluntariamente recebido, a não ter sido a
differença da religião. Esse mal que sobre todos
(orna um povo descontente, a falta de justiça, era
severamente sentida em Olinda; commettião os po-
derosos as maiores iniquidades, e não havia alcançar
reparação d'ellas. Pouco antes de chegarem os Hol-
landezes, clamou um dos moradores voz em grita na
praça do mercado : « Onde estão os irmãos da Mise-
ricórdia? A justiça é morta aqui em Pernambuco,
por que não vêem elles a enlerral-a? » Esta perver-
são da lei, e geral corrupção dos costumes na infeliz
Ccapitania, é reconhecida dos Portuguezes. A Bahia era
melhor governada como sede da administração, e
ninguém, á excepçào dos christãos novos, queria alli
bem aos invasores.
Tractando sempre de augmenlar o numero dos Expe( ,j c5o
<e,,s contra a ilha
parciaes, expunhão-se os Hollandezes o menos """"'ddoe "
maraca.
llamai
216 HISTORIA DO BRAZIL.
1630 q u e p0diào á insidiosa e mortífera guerra em que
erão tão mestres os seus inimigos. Fortificavão os
pontos mais seguros nas visinhanças do Becife, e
preparavão-se a extender por mar as suas conquistas,
dirigindo contra a ilha de Itamaraca, oito legoas ao
norte de Olinda, a primeira expedição. Era-lhes de
summa importância a posse d'es(e logar, onde se po-
dião haver provisões c madeira não menos indispen-
sável. Melhor cultivada do que povoada eslava a ilha,
que media cerca de dez legoas de circumferencia;
contava vinte e tres engenhos, mas o principal esta-
belecimento, chamado villa da Conceição, compunha-
se de cento e trinta moradores apenas, alem d'uma
guarnição de sessenta homens, commandados por
Salvador Pinheiro, o governador. Insignificante como
era esta força, não foi aos Hollandezes fácil a con-
quista, c em logar de persistirem na tentativa, plan-
tarão um forte a tiro de mosquele da fronteira terra
firme, dominando a entrada d'um porlo em que acha-
vão fundo navios de trezentas toneladas. N'esle re-
dueto, que chamarão Forle Orange, deixarão oitenta
homens com doze peças de artilharia, e voltarão ao
Becife. Quasi defronte do novo forte ficava a antiga
villa de Iguarassu, que os Portuguezes mandarão
l
t. i'iT' immediatamenle reforçar, para que o inimigo não
t. Freire. * 1 i
jsic, passasse a outra banda.
xjue.* Entretanto não tinha a perda do Becife causado
n M-Xiii. pequena inquietação e perplexidade na corte de Ma-
HISTORIA DO BRAZJL. 217
drid. Conscios da miserável fraqueza a que estava ™30.
reduzida a sua grande monarchia, redigirão os esta-
distas hespanhoes um melancholico memorial de
suas atribulações e perigos, para ser presente a Oli-
vares e ao próprio rei. Se se fazia sahir uma armada
a restaurar Pernambuco, devia dar á vela em agosto
por causa da monção, mas não era possível aprestal-o
no correr do anno. Assim, quando ella chegasse, ja
os Hollandezes estarião vinte mezes de posse da sua
conquista, nem havia que duvidar que empregarião
elles este tempo em fortificarem-se e segurarem-se.
Na costa de Pernambuco não havia outro porto alem
da Parahyba, agora que o Becife era perdido, nem
aquelle admitlia navios de grande porte. Onde pois
acharia abrigo a armada, ou onde desembarcaria
tropas e artilharia n'uma costa em que até uma
ligeira briza podia sossobrar embarcações? Perto do
inimigo nenhuma esperança de effectuar um desem-
barque, experimentado como elle era na guerra, e
preparado como devia estar, e ao longe o paiz coberto
de matagaes e paues, desfiladeiros perigosos que
passar, e rios que atravessar, e tudo isto com con-
trários, que de toda a vantagem sabião tirar partido.
Mas dado que todas estas difficuldades se vencião,
que se punhão as tropas em terra, e se assentava
cerca ao Becife, devia este sitio ser negocio de tempo,
e durante elle que havia de ser da armada?Cruzando
n'uma costa aberta e exposta, so por milagre esca-
-218 H I S T O R I A DO B R A Z I L .
paria a algum desastre grande. Se entrasse a oiaoào
chuvosa antes de rendida a praça, serião as tropas
dizimadas pela doença, nem sem infinito perigo e
grande perda se deixaria effectuar o reembarque.
Tão pouco, estaria a armada cm estado de volver á
Europa, e onde se aprovisionarião e darião ciena os
navios?
Ainda isto não era tudo. 0 primeiro custo do ar-
mamento, a parte com que a llespanha devia carre-
gar, serião dous milhões: restava ainda a despeza dos
reforços e fornecimentos, e vinte navios havião de
ser também esquipados para a costa da llespanha.
Por quanto, achando-se no Brazil a armada, ficava
desguarnecido o litoral do reino, e, allento o estado
das giiarnições, não era impossível que em qualquer
ponlo fizesse algum inimigo conquistas que pozessem
em sobresalto a monarchia inteira. Também lirarião
expostas as índias. A França tinha então oitenla ou
cem navios prompb s para serviço, c poderia sttppòr-
se que em quanto as forças da llespanha se empre-
gavão em Flandres, na Itália ou no Brazil, não per-
cebesse ella quão fácil seria atacar as índias? Havana
era o único logar capaz de resistir, c esse mesmo,
não sendo soecorrido, podia cahir; e perdido clicou
Carthagena, ou Porto Bello, acabavão as remessas de
dinheiro, que ale um bloqueio d'aquelles portos
podia demorar por annos. Considerando pois todas
estas difficuldades e inmensura\<;is males, e a perita
HISTORIA DO BRAZIL. 219
lotai do Brazil, que era segura se se mallograsse o fim 163°-
da expedição, o único expediente seguro, e que pro-
mettia alguma esperança, seria mandara Albuquer-
que dous mil homens de tropas escolhidas com um pol^cr0ece'Ms.
chefe resoluto que o ajudassem a elle e ao povo do de'0PiSo.
paiz a continuar com as hostilidades, cujo um seria
cançar os Hollandezes, desenganal-os dos esperados
lucros, e afinal induzil-os, segundo todas as probabi-
lidades, a abandonarem o paiz1.
Adoptou-se o parecer. Despachárão-se com diffe-
rentes intervallos nove caravelas, com gente de
guerra que desembarcando onde podesse, fosse en-
corporar-se á gente do acampamento do Bom Jesus.
Algumas d'eslas embarcações forão aprezadas pelo
cruzeiro inimigo, e dos soldados que chegarão a saltar
em terra poucos alcançarão o logar; do seu destino.
Não sefizerãomaiores esforços, por que a corte pre-
feria deixar os Pernambucanos libertarem-se por § sss, ÕSS.
si mesmos como podessem, e esperava que a vexatória
guerra que elles fazião, frustrando o principal fim
dos Hollandezes, os induziria por fim a desistirem
da empreza. Também se dizia que os Albuquerques
confirmavão a corte e os governadores de Portugal
n esta opinião, esperando rehaver com o tempo o que
havião perdido, e receando que, se a corte enviasse

1
0 curiosissimo documento que deixo aqui extractado foi trans-
cnpto do original, em poder do marquez de Gouvea, herdeiro do conde
de Portalegre, D. João da Silva.
2'2o HISTORIA DO BRAZIL.
1630. grandes forças a reconquistar a capitania, não lhes
seria esta restituida, com o fundamento de ter sido
perdida nos azares da guerra 1 . Mudou-se porem de
política apenas se soube em Madrid que os Hollan-
dezes apparelbavão para Pernambuco uma poderosa
armada ás ordens de Adriaen Jansz Paler, general de
grande credito, c de Martin Tbiisz como almirante;
consistia esla força em 0,500 praças, e ião tam-
bém como colonos muitas famílias hollandezas, e
judeos ricos q ue querião erguer suas tendas n'anuella
L 1
(.lllK'|iJiO. ° - e 1

i'.u-2. t e r r a 0 c c jd e f l | a i
promissão. Também se suppoz
ua
que a frota cruzaria cm busca dos galeões do México,
na esperança de segunda preza como a de Heyn.
Sabido islo, esquipou-se cm Lisboa uma armada;
erão castelhanos a maior parte dos navios, mas a
despeza so Portugal carregou com ella. Teve D. An-
tônio de Oquendoo commando, e a armada dirigia se
á America hespanhola, mas devia primeiro lançar
soecorros no Brazil. Dez caravelas com mil homens,
Portuguezes, Hespanhoes e Napolitanos e doze ca-
nhões de bronze, erão destinadas a Pernambuco;
n'ellas ia Duarte de Albuquerque, o senhor da capi-
tania. Devia a armada demandar primeiro a Bahia,
mal pensadas instrucçõês, salvo se se queria evitar o
1
A maneira por que Brito Freire refere este boato, mostra quão
geralmente era acreditado. Diz elle : Creio, que so da malícia nasceu
esta murmuração, mas t orna foi Ião publica, os reneraveis respei-
tos da historia me obriijárS,, n escreeel-a. querendo omilill-a,
§ 402.
HISTORIA DO BRAZIL. 221
,63
inimigo, pois' que derão ao almirante hollandez °
tempo de a ferrar o Becife, desembarcar as suas tro-
pas e munições, preparar tudo para a batalha, e
sahir a dal-a com dezaseisbons navios. §403-9.
Ac,1 nava
A armada de Oquendo compunha-se de vinte ga- ° '-
leões de guerra, das doze caravelas com tropas para
Pernambuco e Parahyba, e vinte e quatro vasos mer-
cantes carregados de assucar da Bahia, que ião de-
baixo do seu comboio. Ao apparecerem as velas ini-
migas, aconselhárão-no que tiradas dos transportes
as tropas, as distribuísse pelos navios de guerra e
pelas embarcações mercantes maiores, mas elle,
julgando-se ja assaz forte, mandou-as descahir a so-
tavento. Travada a acção, ganhou elle o vento ao
navio de Pater, e harpoou-o, seguindo-se um con-
flicto desesperado: bem querião os Hollandezes safar-
se, mas Juan Coslelho, um dos capitães hespanhoes,
saltando a bordo do inimigo, passou um cabo á volta
do mastro do traquete, serviço que lhe custou a vida.
Orçou segundo navio a accommetter Oquendo pelo
outro bordo. Cosme do Conto Barbosa, vendo-o, met-
teu entre os dous o seu barquinho, que foi imme-
diatamente ao fundo, sendo elle próprio apanhado
do mar e feito prizioneiro; mas parece que esta atre-
vida manobra salvou o general hespanhol. Egual-
mente bem secundado não foi o commandante hol-
landez pelos seus capitães, a alguns dos quaes faltou
o animo n'este dia. Não tardou a pegar fogo o navio
•222 H I S T O R I A DO R R A Z I L
1050
de Palcr, e os Hespanhoes tantas balas sobre elle
faziáo chover, que não havia esperança de atalhar as
chammas 1 . Oquendo cortou agora o cabo que o
prendia ao navio inimigo, e cuja destruição era in-
evitável, mas o seu próprio vaso eslava tão comple-
tamente desmantelado, que sem auxilio não poderia
evitar a mesma sorle. Juan de Prado veio dar-lhe
reboque. Salvar o navio hollandez era impossível,
mas Paler, como muitos oulros, poderia ter prova-
velmente escapado á morte, nadando para os Hes-
panhoes, que apanhavào a gente que vião no mar;
cm logar porem de tental-o, tomou a bandeira, en-
rolou-a á volla da armadura, e precipitou-se nas
ondas de cabeça para baixo4. Entretanto atracou o
almirante hespauhol o hollandez, e foi a pique.
Acção sanguinosa foi esta, bravamente pelejada de
parte a parte : os Iles-panhoes tinhão a vantagem do

» Fr. Manoel Salvador diz (Vai. lueideno, p. lõ) que para o in-
cendiarem, envolverão os lantiiLMiozes uma bala em panno embreado,
e atirárão-na ao casco do navio hollandez.
s
Concordãu os Pu;tu.Sfiic/e* referindo isto em honrado seu ininnuo,
nem amisão os Hollandezes de se haverem portado mal na acção. J. d''
Laet porem aflirma que dos capitães hollandezes poucos li/erão o si u
dever: não imputa culpa a Palcr, mas também nada quer saki: d«
ter-se este sacrificado com a bandeira, antes diz que d. pois de se trv
sostido duma corda ao costado do navio em quanto pode, na espe-
rança de que viria algum bote salvar-lhe a. vida, cahiu 0 comniaiidaii.c
a final exhausto de forças *.
' Continua .Vtscher [les llollaitdais au lirésil) a versou de I.aet e püc
em duvida as palavra* aUribuidas ao almirante hollainle/., cujo verdadeiro
nome era Adriaan Janszoon Paler. V. I'.
HISTORIA DO BRAZIL. 225
numero, os Hollandezes a da grandeza dos navios e 103°-
do pezo do metal : egual foi a perda d'ambos os lados,
ao todo uns tres mil homens. Ao cahir da noute
ainda as duas armadas estavão á vista. Ao conde de
Bagnuolo (Giovanni VincenzoSan Felice), que tinha
o commando dos reforços destinados a Pernambuco,
ordenou Oquendo que, seguindo a costa, entrasse
no primeiro porto que podesse; mas primeiro julgou
necessário dos mil homens tomar trezentos, para
supprir em parte a perda soffrida. Ao amanhecer não
se avistava o inimigo, e Oquendo, cingindo-se ás
suas instrucçõês, proejou á Hespanha a comboiar os
galeões, mas é de crer que não fosse tão prompto em G Gill,eiip,
obedecer ás ordens que trazia, se desejasse renovar B.Freire.
1 J
§ 407-23.
a acção.
Entretanto acostou-se Bagnuolo á terra, ganhando HoUa0„jezCí
queim;n
o porto da Barra Grande, a trinta legoas do acampa- Olinda.
mento do Bom Jesus. Uma caravela, commandada
por Antônio de Figueiredo, separou-se da frota, e
acossada do inimigo correu ao norte, até que entrou
no rio Potengi1. Nenhuma tentativa se fez de al-
cançar a Parahyba, prova de que erão os Hollande-
zes os senhores do mar. Desembarcarão comtudo as
tropas a salvamento, fazendo juncção com Mathias
d'Alhuquerque apoz difficil e penosa marcha. Sa-
1
Nome indígena do que vulgarmente se chama Rio Grande, e pre-
ferivel por que o portuguez serve conjunctamentepara designar o rio,
a província e a capital, sobre haverem outros muitos Rios Grandes.
221 H I S T O R I A DO R R A Z I L .
16:,
°- bendo que os Portuguezes linhão recebido reforços,
não sabião os Hollandezes quão insignificantes estes
erão. A chegada de Bagnuolo os inquietou; eslavão
as suas próprias forças consideravelmente desfalca-
das, e acharão que os Portuguezes, lendo ja mani-
festado tão firme propósito de resistência, agora
engrossados com esles soecorros mais audazes se
tornarião. Toda a força activa que havia em Olinda,
noBecifee fortes adjacentes, não chegava a 1,000 ho-
mens 1 . Julgarão pois agora os Hollandezes necessá-
rio concentrarem-se no Becife, antes que alli fossem
atacados, e resolverão abandonar Olinda, resolução
lanto mais de boa mente adoptada, quanto maior
era o perigo de passar d'um logar para o oulro. As-
sentado isto, mandarão perguntar a Mathias dWlbu-
querque se queria resgatar a sua cidade, alias seria
queimada. Bespondeu este : « Queimae-a, se a nào
podeis guardar, que nós saberemos edificar outra
melhor. » Tirarão pois os Hollandezes o sino, c os
maleriacs das casas que podião servir-lhes para suas
edificações e obras no Becife, e depois entregando o
logar ás chammas, toda esta florescente cidade foi

' Tinhão os Hollandezes Í>,XM) soldados validos, 180 doentes,


91 rapazes, ?!• tambores e cometas, 102 negros, alem d'algumas pes-
soas pertencentes ao trem das bagagens, e outras avulsas. Os serven-
tes negros erão i>7í>, e T27>, o menor numero creio eu, erão mulhe-
res; e em Olinda havia 90. A bordo dos navios havia 2,2 iO homens.
O numero total de pessoas a sustentar era de poluo mais de 7,0(10 e
."liii no Forte Orariüc ./. de Laet, 248.
HISTORIA DO BRAZIL. 225
preza do fogo, excepto um único pardieiro de barro, >631-
que ficou illezo em quanto ardião em torno casas,
egrejas e conventos.
Não tardou que os Hollandezes soubessem quão A Parahyba
diminutos os reforços chegados aos Portuguezes, e
como en razão do mao proceder dos chefes devião
antes enfraquecel-os do que tornal-os mais fortes.
Bagnuolo instalou-se á parte, indo Duarte d'Albu-
querque aquartelar-se com o irmão, cada um com a
sua gente. Ambos estes novos commandantes con-
cordavão numa couza, e vinha a ser em favorecer as
tropas regulares que havião trazido, tractando de
resto os habitantes armados, posto quede facto fos-
sem estes a força e a esperança da capitania : elles
a havião defendido, e elles a restaurarião, se restau-
rada tinha de ser. De pressa descobrirão os Hollan-
dezes esta miserável política, e preparárão-se a tirar
d'ella partido : abrirão relações com Bagnuolo, que
imprevidente as admittiu; seguiu-se uma troca mu-
tua de cortezias e presentes entre os commandan-
tes, o que desgostou os Portuguezes, e ao inimi<m
offereceu ensejo de sondar e apalpar os descon-
tentes.
Encerrando-se no Becife, tinhão os Hollandezes até
aqui deixado os Portuguezes concentrarem n'um
ponto único as suas forças, e conservavão-se como
gente sitiada, posto que tivessem bastante tropa dis-
ponível, e fossem senhores, do mar. Agora porem
15
226 HISTORIA DO RRAZIL.
1C31
- resolverão adoplar medidas mais ousadas, e fizerào
sahir 5,000 homens a atacar a Parahyba. Conhece-
rão-se então as más conseqüências de Olinda des-
truída : em quanto os Hollandezes a occupavão, não
podião os Portuguezes deixar de distrahir parte das
suas forças para vigial-a. Acontecera ter sido aquella
a estação da gente levantada na Parahyba, e como
esta ja para aquelle effeito não fosse necessária,
deixou-a Mathias d'Albuquerque voltar a suas casas,
fazendo conjunetamente seguir os duzentos homens
destinados a reforçarem aquella capitania. A cara-
vela de Figueiredo, que linha corrido acossada até
ao Potengi, e era reputada perdida, também d'ai li
velejou para a Parahyba, onde chegou a salvamento
exactamente n'esta critica conjunetura. Levava a
bordo oito peças de artilharia e alguns bons enge-
nheiros, sobre ir carregado de munições, de que na
praça se sentia grande mingoa.
iDeLichtuar Um forte chamado do Cabedello defendia a barra:
cerco ao ,
, rf,\ne, „ estava em miserável estado, tendo-se demolido as
do Cabedello. '
obras antigas, e achando-se por completar as novas
que devião substituil-as. Lichthart, que commandava
as forças navaes ', queria forçar a entrada, mas o
commandante de terra convenceu-o de que era correr
excusado perigo, pois que as tropas depressa se as-
' Segundo o testemunho de .Netscher não foi o almirante Lichthart,
e sim o tenente coronel Callenfels quem commandou esta expedição.
F. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 227
1631
senhorearião do logar. Infeliz conselho! Fácil era -
passar pelo forte, e a Parahyba teria cahido. João de
Matos Cardozo, o capitão do forte, era um velho de
muita experiência e reputação; consigo tinha 60 ho-
mens da sua própria guarnição, e 160 vindos de
Pernambuco, e con esta gente sahiu a fazer frente
ao inimigo. Ao prepararem-se para saltarem terra,
notarão os Hollandezes que os Portuguezes, postados
mais longe do forte, erão os que estavão em melhor
ordem, em quanto que os que lheficavãomais próxi-
mos, se mostravão descuidados, dando-se por segu-
ros com a protecção d'elle : desembarcarão pois
d'este lado, abrindo na areia uma trincheira para se
cobrirem. Impediu esta trincheira a marcha de
600 homens que vinhão da villa; seguiu-se um vivo
tiroteio, sendo os Portuguezes repellidos para as flo-
restas, através das quaes ganharão comtudo o forte.
De noute erguerão os Hollandezes um reducto que
os Portuguezes de manhã accommettérão e levarão
de assalto, perdendo a vida Jeronymo de Albuquer-
que Maranhão, irmão de Antônio, capitão da Para-
hyba. Godinho, que commandava o reforço trazido
por Oquendo, morreu também victima d'uma ridí-
cula confiança no diminutivo da sua estatura. Pas-
seava sobre a muralha, quando lhe pedirão que
descesse, por ter o inimigo assestado a alguma dis-
tancia duas peças que jogavão n'aquella direcção : a
sua resposta foi que não havia artilheiro que acer-
228 HISTORIA DO BRAZIL.
,c51
- (asse em tão pequeno alvo, e dentro em poucos mi-
B. Freire. .
§ «•». nulos estava feito em pedaços.
Lffd-.nu.ioos Apenas sabido o fim da expedição dos Hollandezes,
V
llollainl.ze, ' . '
o cerco, mandou Mathias d'Albuquerque tjualro companhias
em soccorro da Parahyba. Na mesma tarde do dia da
sua chegada derão ellas um assalto ao inimigo, e na
manhã seguinte principiarão a levantar trincheiras
cm frente ás que os sitiantes linhão erguido. Sucee-
' derâo-se alguns combales bem feridos. Tentarão os
Hollandezes sem resultado impedir o inimigo de con-
cluir estas obras; atacárão-nas de noule com a mesma
má fortuna, e outra vez no dia immcdiato á hora
que sabiáo deverem os Portuguezes e Hespanhoes
estar á meza ou a dormir a sesta, c so a guarda ordi-
nária no seu posto. Foi este um renhido conílielo :
os Portuguezes perderão perto de cem homens, entre
os quaes o commandante dos últimos reforços, e um
Franciscano descalço, que animava os soldados dando-
lhes absolvição de seus peccados e combatendo á sua
frente. Mais um assalto e teria cabido o forte; mas
os Hollandezes tinhão sofírido tanto, que levantarão
o cerco, deixando no campo grande parle do seu
trem e cento e oitenta mortos.
M.iiocrada Contra o Bio Grande se dirigiu agora a primeira
oiVràTrio expedição. Este estabelecimento devia-o Portugal aos
Orande. . . . . . _. . _ . .
missionários Jesuítas, linhaoos naturais d aqui in-
festado seriamente Pernambuco, cujo commandante
Manoel Mascarenhas se vira a final obrigado a mar-
HISTORIA DO BRAZIL. 229
charcontra elles em pessoa; desbaratou-os, mas de 1631-
pouco servia pôr em fuga umas poucas de tribus sel-
vicolas, que apenas partido o inimigo voltavão aos
antigos paradeiros e inveterados hábitos de devasta-
ção. Os Jesuítas os pacificarão, ganhando cento e
cincoenta hordas á alliança portugueza. Era um dos
padres tão mestre na architectura militar como na
de egrejas: levantou a planta d'um forte, os seus
irmãos derão aos índios o exemplo de trabalhar nas
obras carregando pedras ás costas; elles o principia-
rão e concluirão, e depois de feito ficou sendo a for-
taleza mais segura do Brazil, não pelo avantajado da
sua posição, mas pela solidez das suas obras e excel- Iie [ ( .^ n
lencia da sua construcção. Coroava elle um rochedo fl Uò
á entrada do rio Potengi, e a meia legoa ficavão al-
gumas habitações poucas, que n'este raro-povoado
paiz tinhão obtido o titulo de cidade. Pensarão os
Hollandezes sorprehender este logar, mas um navio
portuguez os havia avistado, e ainda levou a noticia
á Parahyba a tempo de poder o governador mandar
para alli seu irmão Malhias d'Àlbuquerque Maranhão
com trezentos*Europeose egual numero de naturaes;
assim guarnecidas erão as fortificações por demais
formidáveis para que podessem ser investidas com G- Gi^ppe.
probabilidade de triumpho. § wfTík
•Considerável era ainda o commercio entre Porlu- ln,porl:nicia
gal e Pernambuco, apezar da perda da capital e do de Kam-éth
seu importante porto. Dos navios que se aventuravão,
230 HISTORIA DO BRAZIL.
651. grande parte era tomada, e poucos escapavão sem
combate, mas os lucros dos que chegarão ao seu
destino erão taes que uma viagem dada a salvo ani-
mava mais os aventureiros, do que muitas perdidas
podião desacoroçoal-os. Vendião as suas mercadorias
europeas por preços enormes, onde havia tantos
compradores e tão pouco quem satisfizesse a de-
manda, e compravão os productos do paiz muilo
abaixo do seu valor pela necessidade que todos linhão
de vender. Um porto sete legoas ao sul do Becife era
o grande mercado d'cste trafico; chamavão-no Pontal
de Nazaré th, d'um serro com uma famosa capella no
viso, onde uma imagem de Nossa Senhora de Naza-
reth fazia milagres e era visitada dos romeiros. A
boca do porto formava-a uma abertura n'esse arre-
cife, que se exlende ao correr da costa de Pernam-
buco; quatro canhões de ferro a dominavam, e na sua
marcha do logar onde desembarcara até ao acampa-
mento do Bom Jesus, erguera alli Bagnuolo dous
reduetos. A guarnição compunha-se de sessenta pra-
ças, que acabavão de ser reforçadas do Porto dos
Afogados com duas vezes este numero. Foi a este
logar que os Hollandezes se atreverão em seguida;
mas percebendo logo maior demonstração de resis-
tência do que esperavão, costeárào mais meia legoa,
pensando desembarcar n'um braço de mar, que fll-
gures se mettia pela terra dentro. Succedeu porem
que uma partida de cincoenta mosqueteiros por alli
HISTORIA DO BRAZIL. 231
mi
passasse, escoltando uma somma considerável de -
dinheiro remetlida pelos mercadores da Bahia aos
seus correspondentes aqui para ser empregada em
assucar, sendo este então o modo usual de paga-
mento. Esta gente, vendo os Hollandezes prepararem-
se para saltar em terra, postou-se a coberto na espes-
sura, fazendo um fogo constante e mortifero sobre
os bateis, que immediatamente se fizerão ao largo
aterrados da grande perda que soffrião da parte de
invisíveis inimigos. Concluiu logo o commandante
que dos reduetos se teria feito sahir um destacamento
grande para obstar ao desembarque; a força que
n'elles ficara devia pois estar mui desfalcada, e fácil
seria sorprendel-a e subjugal-a. Nada tão especioso
como este raciocinar; ao darem os Hollandezes o
assalto acharão alli toda a força dos Portuguezes,
forão rechaçados com perda de setenta homens, e á
historia de Nossa Senhora de Nazareth aceresceu
mais um milagre. Apezar d'isto, julgou Bagnuolo
prudente'plantar aqui um forte, e foi em pessoa
conslruil-o, sendo velho e experimentado enge-
nheiro. Ninguém afora elle próprio ficou satisfeito
com a obra; mal escolhido o logar e por demais longe
D. Freire.
da barra. § *&•
Principiavão ia os Portuguezes a desesperar de rroposta.ie
1 l
" ° comprar aos
soecorros efficazes da metrópole, inquielando-os por "^"^f*
isso tanto mais os boatos que os Hollandezes adrede conqui£l;i;-
propalavão de estar a chegar um poderoso arma-
2.12 \ HISTORIA DO BRAZIL.
1632
- mento da Hollanda. NYste estado de dcsacoroçoa-
mento tentou-se uma miserável negociação. Fm tal
Pedro Alvares, que tendo sido prizionciro dos Hollan-
dezes conhecia alguns dos seus*ofliciacs, foi enviado
com instrucçõês secretas de Duarte e Mathias d'Albu-
querque, para ver se o inimigo estaria disposto a
evacuar a sua conquista, recebendo como resgate
os milhares de caixas de assucar em que se concor-
dasse. Fazendo entes de razão sobre esta proposta,
suppozerão os Hollandezes que os Albuquerques re-
correrião a este meio como ao único de preservarem
os seus grandes interesses no paiz, que tanto serião
perdidos para elles se os conquistadores se mantives-
sem na sua posse, como se a recuperasse o rei, que
em tal caso quereria ser indemnizado dos seus sacri-
fícios. Alguns forão de opinião que convinba nego-
ciar sobre esta base, não para vendera praça, mas
para obter parte do assucar. Apoy. madura delibera-
ção julgou-sc porem impolilico animar similhanlcs
propostas; os Portuguezes acreditarião que mais cedo
ou mais tarde se abandonaria a conquista, e nenhum
quereria confiar nos Hollandezes pondo-sc debaixo
da sua protecção, ao que ja alguns parecião inclinar-
se. Declarou-se pois a Pedro Al vares que era intenção
dos Hollandezes guardarem e extenderem suas con-
quistas; mas que se quizesse aconselhar os Albu-
querques a disislirem de sua inútil opposição,
deixando os conquistadores na posse mansa e paci-
HISTORIA DO BBAZIL. 233

fica do paiz, devia esperar bom galardão. O plano do 1632-


inimigo era agora tirar aos Portuguezes toda a espe-
rança e reduzil-os á maior miséria, destruindo os
engenhos e assolando o paiz.
Alé aqui pouco tinhão os Hollandezes que enso- caiabar
berbeccr-se com o tnumpho das suas armas. Havia „ „°s.
* Hollandezeí.
dous annos que erão senhores do Becife, e nada mais
tinhão adeantado, se não erguerem um forte na ilha
de Itamaracá; todas as outras tentativas havião abor-
tado, e os Portuguezes desbaratados ao principio quasi
que sem combate, possuião ja os hábitos e a confiança
da vida militar. Um deserlor veio restabelecera su-
perioridade dos invasores. Foi este um mulato1
nascido em Pernambuco, por nome Domingos Fer-
nandes Caiabar, que tinha servido dous annos entre
os seus conterrâneos, sido ferido duas vezes e ganho
alguma reputação. Se, commetlido algum crime,
fugiu para escapar ao castigo; se o tractamento rece-
bido dos commandantes o desgostou; ou se, o que é
mais provável2, com a traição, esperou melhorar de
fortuna, é o que se não sabe. Mas foi o primeiro Per-
nambucano que desertou para os Hollandezes, e se
a estes fosse dado d'entre todos fazer selecção de um,
' Todos ns nossos chronistas qualificam a Caiabar de mameluco e
não de mulato. F. P.
- Inelinamo-nos para este hypothese pelas razões que minuciosa-
mente expendemos em um trabalho nosso e que denominamos : 0
llrazil Hollandez, e que mereceu as honras da publicação no T. 25
da Rev. Trim. do Instituto llist. e Geogr. do Brazil. F. P.
234 HISTORIA DO BRAZIL.
1632. ng0 i er ião escolhido outro, tão activo, sagaz, empre-
hendedor e desesperado era elle, nem havia quem
melhor conhecesse o paiz e a costa. Foi recebido com
ostentoso agasalho. A indiscrição de Bagnuolo deu
aos Hollandezes occasião de subornarem outro a
quem tentou o acolhimento feito a Caiabar; e dentro
em pouco não podião os Portuguezes fazer movi-
mento que os Hollandezes o não soubessem anles.
Alguns soldados napolitanos desertarão, e Bagnuolo,
desejando rehavel-os á mão, mandou ao Becife offe-
recer prizioneiros hollandezes em troca. Os mensa-
geiros forão relidos alguns dias sem obterem au-
diência; fez isto crer aos Portuguezes que alguma
expedição se preparava, c logo a todos os postos que
julgarão mais expostos, mandarão recado, que se
tivessem de sobreaviso especialmente a Nazareth,
Serinhaem elguarassú.
Chegou tarde a advertência. Caiabar emprehen-
dera guiar os Hollandezes a esta ultima villa, e en-
tregal-a nas mãos d'elles : tão seguro ia do seu
feito, que levou comsigo iOO negros para trazerem
os despojos. Sahirào os Hollandezes á meia noute,
atravessarão as ruinas de Olinda, e sorprchcndérào
a villa, estando os moradores a ouvir missa. A má
fortuna que os invasores até agora havião experi-
mentado, fel-os tractar os Portuguezes como inimigos
de quem tinhão de tirar vingança, não como povo
cujas boas graças lhes importava conciliar. Os ho-
HISTORIA DO BRAZIL. 235
mens que encontravão assassinavão-nos, e as mulhe- ,633-
res despojavão-nas, rasgando-lhes com brutal fereza
as orelhas para arrancar os brincos, e corlando-lhes
os dedos por amor dos anneis l . Saqueada e quei-
mada i a villa, pozerão-se em marcha para casa,
trazendo como prizioneiros algunsFranciscanos, que
elles pela sua profissão especialmente odiavão, e á
frente por escarneo o celebrante com suas vestes
sacerdotaes, qual o havião feito descer do altar.
Tinhão-se mandado bateis a esperarem-nos na praia
mais perto, e ao entrarem em triumpho no Becife
ouvirão-se no campo portuguez os brados de alegria.
Os homens, que havião ido a advertir do seu perigo
este mal fadado logar, voltarão agora com novas da
sua destruição, e logo depois os mensageiros de Ba-
gnuolo tanto tempo retidos no Becife sem alcança-
rem audiência, forão despedidos com uma insolente
resposta do commandante hollandez, que não podia
n'aquella occasião atlender á proposta, acabando de
chegar d'uma excursão a Iguarassú, cançado do tra- i^io^li.
balho do dia. § 'm"i£\.
Antes que o terror d'esta assoladora expedição se ORÍO
desvanecesse no animo dos Portuguezes, guiou Ca- sorjrehèn-
ilido.
labar os Hollandezes a segunda, dez legoas ao sul,

1
Com muito bons fundamentos contesta Netscher esta asserção de
Southey. F. P.
2
Não nos consta que Iguarassú fosse queimada ; e ignoramos as
provas em que se firma o auctor para escrever similhante coisa. F. P.
236 HISTORIA DO RRAZIL.
1C32
- onde saquearão e queimarão outro estabelecimento;
depois levou-os ao Bio Formoso, sorprehcndendo
cinco navios ja quasi abarrotados. Advertidos por
este desastre, edificação os Portuguezes alli um forte,
montando-o com duas peças e guarnecendo-o com
vinte homens ao commando de Pedro d'Albuquerque,
mesquinha defeza contra similhante inimigo. Caiabar
voltou e investiu o forlim, mas jamais cumprirão
soldados mais resolutamente o seu dever do que
este punhado de Portuguezes. Aguentárão-se até
cahirem mortos dezanove; o vigésimo, posto que
ferido em tres partes, atravessou o rio a nado, e o
commandante acliárão-no estirado por terra, com um
tiro de mosquete nos peitos. Forão os Ilollandezt >s
assaz generosos para testimunharem a sua estima a
tão valente capitão, e tendo-o traclado com especial
cuidado, depois de restabelecido o pozerão em terra
na America hespanhola, donde voltou á metrópole,
B
§ «££" que o galardoou com o governo do Maranhão.
Embaraço e Não forão estes os únicos serviços que Caiabar
in e
Ba gnuVe prestou aos Hollandezes; ensinou-lhes o systema de
guerrear, com que tanto havião soffrido, e mostrou-
lhes como oppòr emboscada a emboscada, de modo
que na primeira tentativa de sorprehenderem o ini-
migo cahirão os próprios Portuguezes n'uma cilada.
Confundido por estas repelidas perdas, ja Bagnuolo
não sabia que fazer, nem de que lado apereober-.se
para a defeza; sempre os seus destacamentos chegi-
HISTORIA DO BRAZIL. 257
103
vão tarde de mais, e exactamenle a tempo de pre- -
senciarem os estragos que ião a evitar. Assim alena-
zado e perplexo, deixou-se elle ficar por algum
tempo n'um estado de continuo sobresalto, mas de
inacção : envergonhado preparou-se para assaltar o
forte Orange, mas com tão pouca precaução o fez,
que sabida a sua intenção, foi soccorrida a fortaleza.
Tentou comtudo a empreza, despiu o mais próximo
estabelecimento portuguez da sua artilharia para
guarnecer as próprias baterias, e desenganado a final
de que nada faria contra tão sólidas obras, retirou-
se, deixando estas peças ao inimigo. Não admira
que os Brazileiros o suspeitassem de traição: ha um
certo grau de imbecilidade que com ella facilmente
se confunde, pois que produz os mesmos effeitos1.
Entretanto mandou a companhia das índias Occi- os
Hollandezes
envi
dentaes ao Brazil dous directores, Matlhiis Yan Ceu- ?°
commissa-
rios.
len e Jchan Gijsselingh, como commissarios, inves-
tindo-os de plenos poderes, tanto para evacuarem o
paiz, caso não vissem esperança de melhor futuro,
como para proseguirem na conquista com vigor
novo. Trouxerão consigo tres mil homens com pro-
visões e munições em abundância. Menos satisfeito
com este reforço do que offendido por lhe cercearem
a auetoridade, resignou Wardenberg o commando e
1
Summamente injusto é similhanle juízo de Southey acerca do
conde de Bagnuolo, a cuja perícia deveu-se a retirada para Sergype e
a defeza da Bahia contra Napan. F. P.
238 HISTORIA DO BRAZIL.
1632
- embarcou-se para a Hollanda, sendo substituído por
Laurens de Bimbach, velho e experimentado soldado
que de boa mente acceitou o supremo commando
militar sujeito á direcção dos commissarios. Depressa
tomarão estes a sua resolução : os azares da guerra
erão agora a seu favor, e persistindo, havia esperança
de conquistar todo o paiz. Principiarão pois por fazer
aos Portuguezes uma proclamação, em que depois
de offerecerem protecção a todos, que se submellcs-
sem, proleslavão com singular descaro que os Hol-
landezes erão innocentes deante de Deus edo inundo
de quaesquer desgraças e estragos que resultassem
da prolongação das hostilidades jaecrescentando que,
se o povo persistisse na sua opinião, devia preparar-
se para todas as extremidades d'uma guerra justa da
parte d'un inimigo, cuja paciência e clemência li-
V>'; 2981' nn
^ ° s ' u 0 P o s l a s á m £ u S u u r a prova.
Tiverão os commissarios a fortuna de descobrir as
relações secretas que com os Portuguezes tinha um
certo Leonardt Van Lom, funecionario civil no Becife.
Este miserável aventureiro viera da Hollanda a per-
suasões d'alguns Portuguezes de Amsterdâo para
servir de espia, com promessa de que receberia cin-
coenta mil ducados, se em conseqüência das suas
revelações se restaurasse a cidade. Todos os que to-
marão parte n'esle Compromisso jurarão solemnc-
mente que, se um fosse descoberto, não denunciaria
os outros, e sobre isto ouvirão missa e partirão uma
HISTORIA DO BRAZIL. 239
hóstia. Van Lom comtudo tornou-se suspeito, e sendo 1632-
descoberto, confessou tudo. Cortárâo-lhe dous dedos
da mão direita, e foi depois decapitado e esquarte-
jado; quanto ao mulato, que servira de mensageiro
na correspondência com os Portuguezes, foi estran-
gulado e decapitado.
Havia sobre o rio dos Afogados um posto deconsi- victorias
. . . dos

deravel importância, como situado onde principia a Hollandezes.


fértil planície de Capibaripe * : tendo-o assaltado no
anno anterior, havião os Hollandezes sido repellidos
com considerável perda. Benovando agora com maio-
res forças a tentativa, tornárão-no, e passando adeante
guiados por um desertor até segunda estação, egual-
mente a ganharão. Na sua defeza se distinguiu o
Franciscano Fr. Belchior; com um chuço por arma,
matou quanto Hollandez se lhe poz ao alcance pelo
que e por outros serviços análogos, levando-se-lhe
também em conta os merecimentos religiosos, foi
depois feito bispo. D'ahi a pouco salteárão os Hollan-
dezes terceira estação, com maior perda para os Por-
tuguezes e menor para elles próprios. Tinhão adop-
tado agora esse execrável modo de guerra que os
Hespanhoes practicavão ao principio contra os índios,
e ensinavão cães a perseguir os fugitivos que se em-
brenha vão pelos pantanaes. Tomadas estas estações,
erigirão na primeira um forte, que chamarão Wil-
lem, guarnecendo-o com força sufficiente.
1
Alias Capeberibe. F. P.
240 HISTORIA DO BRAZIL.
1Gy
- Animados com estas viclorias, resolverão os Hol-
Assaltão os , , . ,
Hoiiandi-zes,o landezes assaltar o a c a m pl a m e n t o , e com o verdadeiro
acampa-

'"repeiiiVs1 " e s p i l u ü d'um desertor, recomiiiendou-lhcs Caiabar


que escolhessem o dia de sexta feira saneia ', em que
, os Portuguezes estarião entretidos com as ceremonias
da sua religião. Se enlravão o acampamento, dizia-
se, era d'elles a província. Commelteu Bimbach cm
pessoa a einpreza á lesta de tres mil homens', mas
os Portuguezes *ouberão-lhe en tempo do desígnio ;
concentrarão pois as suas forças e ao approximarem-
sc os assaltantes, romperão contra elles um fogo
terrível. Talvez por falta de outras carregavão-se com
balas de mosquele as peças, o que tornava mais mor-
tíferos os tiros, cahindo o próprio Bimbach. A sua
morte derramou a confusão entre os Hollandezes, e,
se os Portuguezes os tivessem perseguido na retirada,
teriâo ganhoassignalada victoria; mas Bagnuolo, que
prezo pela gola, assistia á acção sentado numa ca-
deira, reprimiu o ardor dos seus, dizendo que a fuga
do inimigo era provavelmente um estratagema para
allrabil-os a uma cilada, e assim se perdeu a ocea-
10
'"- sião que não volta. Do pouco cuidado que á llespa-
nha merecião estas colônias é prova nào ter Mathias
d'Albuquerque, apezar de dever a cavallaria ser da

» Concorda a mór parte dos chromstas que fora este assalto ia


quinta-feira (Tendoen<;as. F. P.
* Diz iNetscher que apenas mil e duzentos homens cominand.ua
Rimbach. F. P.
HISTORIA DO BBAZIL. 241
maior utilidade para os Portuguezes e dar-lhes deci- 'm:>-
dida vantagem sobre os invasores, podido nunca obter
mais do que uma companhia e essa mais nominal do s*í KJ&
que real, pois queso vinte praças erão montadas. §46477-
Tendo sido quem aconselhara este desgraçado as- i * ™
salto, receava Caiabar não estivessem por tal os Hol- 'lelUimain<:
landezes indispostos contra elle, e para restabelecer
o seu credito propoz a Sigismundo Van Schoppe, o
novo commandante, conquistar a ilha de Itamaracá.
0 primeiro mallogro de egual tentativa fora mais
devido á culpa dos próprios invasores do' que aos
meios de defeza que possuíssem os Portuguezes, por
isso fez-se agora sahir uma força adequada. Depressa
perceberão os Hollandezes que havia no forte falta
de gente e de munições, e duas mulheres que apre-
hendérão no bosque, conlárão-lbes que tudo quanto
era do sexo feminino tinha sido posto fora pela escas-
sez dos viveres. A' primeira intimação respondeu com
bravura o capilão Salvador Pinheiro : não estava tão
mal provido como suppunhão, disse, e em ultimo
caso sabião os Portuguezes roer solas, quando o ser-
viço do rei o exigia. Mas ao fazer-se-lhe segunda
intimação por intermédio d'estas mesmas mulheres,
vendo que era descoberta a sua fraqueza, pediu elle
suspensão de armas por quatro horas; concederão-lhe
duas, e n'esse espaço capitulou com condição de sahir
a guarnição com armas na mão e mechas accesas, e
levar as imagens e alfaias de egreja, e todos os mora-
n. 10
242 HISTORIA l><i BRAZIL.
i6od dores que quizrssein abandonar a ilha. poderião lam-
bem fazel-o livremente transportando com sigo os
seus haveres. Assim se rendeu a villa da Conceição e
com ella toda a ilha. Os Hollandezes cantarão 7V
Deiiin na abandonada egrcja, dando salvas de alegria
por esla fácil e importante conquista. Marchava Ma-
thias dWlbuquerque a soccorrer a praça quando lhe
chegou a noticia do seu rendimento, c nVslas mar-
chas e contramarchas se exlenuavão de corpo e espi-
rito as tropas brazileiras. Iguarassú tinha sido reoc-
cupada pelos Portuguezes depois da sua destruição
pelos Hollandezes, e Figueiredo, o mesmo official que
tanto a tempo trouxera soecorros ao forte do Cabe-
dello, e se distinguira na sua defeza, aqui com man-
dava: impossível era porem defender este posto contra
inimigo tão superior, pelo que foi abandonado á
approximação d'elle. Foi esta uma perda considerável
para os Portuguezes, qued'alli liravão supprimenlos
de genle, dinheiro e nianliiiicnlo. A maior parle das
riquezas que se tinhão podido salvar d'01inda aqui
estavão depositadas, e entre os despojos que eahirào
c. ii.ii. agora nas mãos do inimigo acharão se ouro c jóias
J
->w 'à;.»i'!' em considerável quantidade.
M.iir^í? u.if«
Como logar onde em perfeita segurança dos Por-
d» -ti u n i a .
tuguezes podião fazer suas plantações, era a ilha de
llamaracá da maior importância para os Hollandezes.
Dous Francezes vindos da Europa a eslabcleccrem-sc
na ilha de Fernão Noronha, para aqui forão enviados
HISTORIA DO BBAZIL. 243
com obra de trinta negros d'ambos os sexos, a fim de" 103r'
cultivarem differentes gêneros para uso da compa-
nhia D'aqui também os Hollandezes infestavâo o
norte de Pernambuco. Emprehendérão uma expe-
dição contra um logar que elles próprios chamão
Mongianguape onde tinhão os Jesuítas uma residên-
cia, e para onde se havião retirado as tropas da guar-
nição de Iguarassú. Não erão estas assaz numerosas
para poderem resistir com a menor esperança de
bom resultado, e ainda descobrirão o inimigo a
tempo de effectuarcm a sua retirada. Vingárão-se os
Hollandezes sobre o logar, queimando todas as suas
vistosas habitações, que como taes as descrevem.
Procederão assim por que os Jesuítas mantinhão os
espíritos do povo alli e em todas as partes do paiz,
pelo que por força havia de ser destruido esle ninho.
Com o mesmo sentimento de vingativa hostilidade se
enviou de Ilamaracá um destacamento contra o en-
genho de- João da Costa Brandão, por ser homem
activo na defensão do paiz. A casa de residência e
todas as obras com alguns 1000 pães de assucar nas
formas, tudo foi preza das chammas, e aos demais
edifícios fez-se o mal que o tempo permittiu. 3oie, SM!
Quando na Europa se regulavâo as hostilidades Esta-
unicamente pelas leis que ás partes belligeranles «Se
de guerra.
aprazia pôr a si mesmas, chamava-se a guerra boa
ou má, segundo o espirito com que se fazia : na má
não devia o mais fraco esperar clemência. Mas pelos
2U HISTORIA DO RRAZIL.
ItlJ.I fins do século décimo sexto foi prevalecendo geral-
mente o systema moderado, posto que mais pela
mutua vantagem que n'isso ia para todos, do que por
que se tivessem tornado mais humanos os principies.
De natureza anômala fora até aqui a guerra no Bra-
zil : dava-se ou não se dava quartel, e os prizioneiros,
se não erão immolados, nem por isso deixavào de
ficará mercê do aprezador. Bagnuolo propoz agora
que se pozesse termo a este systema, que levava a
tantos actos de barbaridade, e que sefizessea guerra
segundo os princípios seguidos nos Paizes Baixos.
Com prazer foi aeceita a proposta, e concordou-se nas
condições. Não se queimaria egreja alguma, nem se
deslruirião ou desacatariam imagens; mas se de den-
tro de qualquer templo se oppozesse resistência, ou
se alguém tentasse fortificar-se em alguém, não seria
em tal caso obrigatório este artigo. Km batalha,
recontro, emboscada, ou de qualquer fôrma que um
soldado cahisse no poder do inimigo, logo que pedisse
quartel, nenhum mal mais se lhe faria, entregando
o prizioneiro as suas armas e quanto comsigo levasse,
exceplo camiza, calças, gibão, meias e sapatos. 0
resgate d'um mestre de campo, oifi-rcll-herr, ou
coronel, foi fixado 11'uin inez de soldo; um lenenle
coronel, sargenlo-niôr 1; commissario de ordcnaiiças
devia pagar na mesma razão; um capitão quarenta
cruzados de dez real es de prata eida um ; um tenente
o soldo d'um mez; um a I feres ou porta-bandeira
HISTORIA DO BRAZIL. 215
quinze cruzados; um sargento ordinário, nove; um le;
soldado razo, quatro. Os prizioneiros devião requisi-
tar do commandante da praça para onde fossem
remettidos um tambor que aos seus conterrâneos
levasse avizo do numero e nomes d'elles, e o resgate
devia ser pago dentro de vinte dias depois de feita a
notificação; passados trinta dias sem se fazer inteiro
pagamento tanto do resgate como da conta das come-
dorias, perderia o prizioneiro o direito a quartel,
ficando á mercê do aprezador. A taxa para mantença
d'um soldado foi fixada n'um real de prata por dia.
Os marinheiros forão comprehendidos n'eslas condi-
ções, quer aprizionados em combate por mar ou por
terra, quer atirados á costa pela força do tempo; mas
os que viessem em navios pertencentes á coroa
d'Hespanba serião excepluados, excepção que os Por-
tuguezes não devião teradmiüido, salvo entendendo-
sc que estes serião trocados na Europa.
Outra prova de que os Hollandezes representavão
o papel do mais forte na eslipulação d'estas condi-
ções é que o respeito dos paizanos devião seguir-sc
as mesmas regras que nos Paizes Baixos entre os
subdilos do rei e as Provincias-Unidas, pois que em
virtude d'este artigo os habitantes que fizessem causa
commum com os invasores, ficavão exemplos do
justo casligo que alias receberião. índios e negros
devião pagar a metade do resgate d'um soldado, mas
se se servissem d'armas defezas, não terião direito a
246 HISTORIA RO BRAZIL.
10". quartel. Não se havia de atirar com balas envene-
nadas, mastigadas, entrançadas ou encadeadas, nem
com pedaços de ferro ou chumbo. Tão pouco se devia
fazer uso de espingardas de cano raiado' (é este talvez
o único caso em que a moderna practica de guerra
é menos escrupulosa do que o costume d'aquellcs
tempos); as armas de fogo legaes erão arcaluizes,
mosquetes, espingardas de fuzil, clavinas o pistolas.
Nenhuma offensa se faria a qualquer prizioiieiro, e
os clérigos, mulheres e crianças terião as vidas salvas.
O resgate d'um capellão fixou-se n'um mez de salá-
rio, e o d'um religioso, ou padre d'aldeia, em quatro
moedas de oito. Pregadores, preleilores o mlesias-
ticos da communidade hollandeza serião equiparados
a cappellães. Se um so homem fizesse muitos pri-
zioneiros, ficaria detido o principal dVnlrc estes, e
serião soltos os oulros, obrigando-se estes pelos
respectivos quinhões de resgate para com o seu repre-
sentante forçado. Todo o prizioneiro convicto de ler
occullado a sua verdadeira qualidade e condição, c
negado a verdade, seria castigado como merecia para
exemplo. Quem quebrantasse estes termos, ou vio-
lasse o quartel dado, seria punido do morte para
plena salisfacção da parte contraria. Todos os prizio-
neiros existentes serião sem resgate postos em liber-
dade por ambas as parles. Esles artigos forão assi-

1
Rifle barrelled guns.
HISTORIA DO BRAZIL. 247
lü53
gnados por Mathias d'Albuquerque e Bagnuolo d'um -
lado, e por Van Ceulen e Sijsselingh do outro. ' 351.°c'
Debalde recorrião os Brazileiros ao seu governo Emprehen-
dem os
em busca de auxilio efficaz; persuadida, ou affec- afJ™S0 m]

lando-se persuadida de que não tardião os Hollan- ' menln.


dezes a cançar-se d'uma conquista, tão obstinada-
mente disputada, parecia a corte de Madrid com a
sua inércia querer entregal-a a elles. As perdas que
em lantos combates soffrião os Portuguezes por
nenhuns reforços erão reparadas, nem contavão ja
mais de 1200 homens, em quanto que o inimigo
continuamente estava recebendo supprimentos de
tropas e maleriaes. Perceberão os commissarios a
fraqueza dos Portuguezes, e pensando entrar o acam-
pamento por meios mais vagarosos, porem mais se-
guros e menos arriscados do que assaital-o, resolverão
pòr-lhe cerco em regra. Bagnuolo estava então au-
sente, inspeccionando as suas novas obras no Naza-
relh. Mathias de Albuquerque apenas soube do que
se preparava, mandou-o chamar, reuniu toda a sua
pequena força, fez sahir do acampamento quem não
podia pegar em armas, e poz fogo aos cannaviaes na
direcção em que podião encobrir os movimentos do
inimigo. Occupárão os sitiantes as suas posições, mas
uma difficuldade havia que continuava a ser insupe-
rável. Os quartéis ficavão apenas a meia legoa do
forte Willem', comtudo era quasi impossivel arrastar
1
llonslruido 110 local do antigo forte Emilia. F. P.
248 H I S T O R I A DO B R A Z I L .
63:>
os canhões nem mesmo a tão curta distancia, por um
paiz coberto de arvores e cannas de assucar. entre as
quaes estavão sempre alerta os Portuguezes e os seus
Índios. Ia então o rio Cabibaripe1 inchado das chu-
vas cabidas entre as montanhas. Os Hollandezes em-
barcarão onze poças de artilharia no casco d'um
navio, que forão levando á sirga; se o volume d'agua
assim engrossado.lhes era a favor, a crescida rapidez
do corrente mais os contrariava, e tão grande foi a
difíiculdade que isto occasionou, que posto tivessem
partido ao pôr do sol, ainda ao nascer d'elle estavão
a um bom tiro de canhão da sua posição mais
próxima. Uma partida de Portuguezes que eslava de
guarda os sentiu, e atacando immedialamcnle este
importante comboi, d'ambas as partes vierão soc-
corros; mas a final ficarão os Porluguezcs senhores
da artilharia, e tanto pelo terem perdido como pela
MÓi-sà' difíiculdade de trazerem outra, disistirão do assedio
l . a s l . Liis.

r.. § ii-^. os Hollandezes.


rxpidieu. A maior distancia foi a seguinte expedição de Ca-
is Aladas. ] a l i; , r . Quarenta c seis legoas ao sul do Becife licavào
sobre a costa uns lagos de água salgada, junclo dos
quaes, pelo muilo peixe que alli havia e pela fertili-
dade do paiz, tinhão crescido alguns eslabelecimenliis
importantes. Da sua situação se chamavão estes lo-
«ares jjitjntis ou Alagoas. Bemolos como erão do

i Alia.- Capelieiibc. F. I'.


HISTORIA DO BRAZIL. 249
1C35
tbeatro da guerra, nem por isso ficavão fora do aí- -
cance de Caiabar, que lá levou os Hollandezes, e
queimou a primeira aldeia. Descrevem estes a po-
voação como não somenos que Iguarassú e egual-
mente bem edificada. Também queimarão muitas
casas boas dos arredores. Procurarão uma grande
porção de pau brazil, que um dos prizioneiros disse
ter sido por alli algures enterrada ou escondida por
falta de opportunidade de exportação, mas receando
algum estratagema, desistirão da busca. A segunda
aldeia, que ficava a um dia de jornada, soube defen-
der-se melhor. Este systema de guerra era lerrivel
para os habitantes do paiz, mas dizia melhor com o
espirito vingativo d'um desertor, do que com as
vistas dos Hollandezes, da parte dos quaes havia tanta
falta de política como crueldade em assolar uma
lerra que esperavão possuir. Nem tardou que obti-
vessem vantagens mais importantes.
Francisco de Yasconcellos da Cunha veio de Lisboa s Jos
com dous galeões e cinco caravelas, Irazendo seiscen- uí^iofpo,
, - . Va.-coi.tello.-.
tos homens e muilos suppnmentos de todo o gênero,
soecorros de grande importância para as débeis
forças dos Portuguezes. Chegou a frola á vista da
Parahyba, Ires legoas ao norte da barra, perto do
rio Mamangoape, onde eslava estacionado um official
portuguez com alguns dos melhores pilotos da costa,
por ser paragem freqüentada dos navios de Lisboa.
Um destes pilotos linha avistado um navio hollan-
2:»0 H I S T O R I A DO R R A Z I L .
dez, que disparados alguns tiros de peça, se fizera
no rumo do sul; apenas apparcceu a esquadra, sahiti
elle a dar parle d'islo, accrescenlando que erão estes
tiros signal para reunir outros navios que andavão
cruzando de conserva. Aconselhou pois ao comman-
dante que se acolhesse áquelle porto, dizendo que a
pilolal-o vinha. Em logar de seguir imniediatainente
o conselho, reuniu Yasconccllos os seus officiaes, e
deixou-se persuadir por"elles a seguir trinta legoas
para o norte até ao Potengi. De manhã achou-se
perto da Bahia da Traição e viu Ires navios hollan-
dezes, que vinhão a inveslil o. Das caravelas umas
encalharão, outras entrarão no Potengi, onde forão
tomadas. Não tentarão os Hollandezes abordar os
galeões com receio das tropas, mas tal fogo fizera o
sobre elles, que obrigarão o mais pequeno a varar
em terra, salvando-se a gente, parle da carga e dez
peças d'arlilharia. 0 outro sustentou a acção pelo
resto do dia, e de noute melleu-se á Bahia Formosa,
onde Yasconccllos desembarcou immedialamcnte a
sua gente. De manhã entrarão lambem os Hollan-
dezes e da primeira bordada meltérão no fundo o
11. 1 ' i r Í I ' C . navio, ja meio despedaçado do combate da véspera.
Síll»T-ll.
D'esla deserta enseada removeu Yasconccllos a
tropa e o material que pôde salvar, para uns enge-
nhos de assucar, que fica vão cinco legoas terra aden-
tro. Apenas d'islo se soube no acampamento, ordenou
Mathias d'Àlbuquerque que os artigos menos volu-
HISTORIA DO BRAZIL. 251
1G33
mosos e mais preciosos seguissem por terra, embar- -
cando o resto em Cunhau, porto que ficava a seis
legoas d'alli, onde quatro barcas da Parahyba esla-
rião promptas pare recebel-os. Escoltou pois Vascon-
cellos o seu material até á praia, viu o melter a bordo,
e dando tudo por feito, voltou aos seus quartéis. Mal
linhão as barcas suspendido ferro, quando virão vir
entrando um galeão hollandez e quatro sumacas,
embarcações ligeiras que serviâo para entrar nos rios
que não admillião outras de maior calado. Debaldc
tentarão os Portuguezes escapar; pozerâo fogo a tres
das suas barcas e a quarta foi tomada. Mas agora
virão-se os aprezadores a seu turno cm perigo,
deixando-os avasante na barra a tiro de escopeta da
praia. Depressa teve Vasconcellos avizo d'isto e volveu
atraz a atacar o inimigo; cahiu a noule, estava elle
a uma legoa do lheatro da acção, e os seus officiaes
persuadirão-no a desviar-se um pouco para onde fi-
ca vão uns pastos nos quaes a gente poderia descançar
e refrescar. Nem a elle nem a nenhum dos seus con-
selheiros cnlrou na cabeça que a maré não esperaria
por elles, e quando na manhã seguinte chegarão á
praia onde iiião os Hollandezes! EsLcs com a pressa
de safarem-se linhão deixado de revistar uma das
barcas, que incendiada pelos Portuguezes, não havia
com tudo ardido, e o que n'ella se achou foi o que
escapou de lodo este comboio, tendo perdido Yascon-
ccllos nãoso os seus sele navios, mas também tres
2ò2 HISTORIA DO RRAZIL.
1655. AJndos em seu soccorro. Durante todo o correr da
guerra nunca os Portuguezes soffrérão maior perda,
nem quiçá maior dcsaire. Dos seiscentos homens
que vinhão na armada, apenas cento eoitenta chega-
rão ao acampamento.
I ehuo^do Foi Bagnuolo agora a Parabvba a inspeccionar um
ItioGrame
novo forte, chamado de Saneto Antônio, que se es-
tava erguendo do lado opposto do rio defronte do do
Cabedello para melhor dominar a entrada. Malhias
d'Albuquerque o acompanhou. Emquanto ambos as-
sim estavão oecupados, sabiu do Becife uma esqua-
dra contra o Bio Grande, logar para alacar o qual
linhão vindo da Hollanda ordens reiteradas : o des-
tacamento era forle, e mais formidável o tornava
achar se Caiabar a bordo. Pedro Mendez de (iouvoa
comniandava a importante praça do Bio Grande;
tinha treze peças c oitenta e cinco homens, com que
bem podia defender tão segura fortaleza, e mandou
pedir soccorro á Parahyba, como á eslação mais
próxima. Solido com era o forle, tinha a grande
desvantagem de ficar-lhe a cavalleiro uni oulciro de
areia, que nem todos os esforços dos Portuguezes po-
derão lirar d'alli, pois mal o arrazavão, njlindava o
vento outro no mesmo logar, o que talvez fosse de-
vido ao próprio forte, e Caiabar sabendo d'is(o, paru
alli conduziu o.s sitiantes. No segundo dia foi Couvi a
ferido, achando-se sobre as muralhas, e impossibili-
tado de fazei' couza alguma, em conseqüência do que
HISTORIA DO BRAZIL. 253
principiou a affrouxar na defeza a guarnição in- in-
fluenciada por um desertor de Bahia e um prizio-
neiro, que linha por menagem o recincto da forla-
leza. Com estes homens fez Caiabar a sua barganha
e elles vencférão a praça. Tres caravelas cahirão nas
mãos do conquistador. No próprio dia do rendimento,
celebrarão os HollanSezes um officio de graças na
capella do forte, admirados de terem tão depressa e
tão facilmente tomado uma praça que os Portuguezes
tinhão por inexpugnável pela sua posição e solidez.
Na manhã seguinte, chegarão da Parahyba 500 lio- | 5 ^ £
meus, que tiverão a mortificação de ver o estandarte |f§ £'
hollandez flucluar sobre a melhor fortaleza do Brazil. 369.
Oito annos jazera em ferros no Bio Grande um Fidéiida.u
J
d'um
índio, chamado Jogoarari' pelos seus conterrâneos, cacique,
e Simão Soares pelos Portuguezes. O seu crime fora
ler desertado para os Hollandezes quando estavão na
Bahia, mas elle protestava ter ido unicamente a bus-
car sua mulher e filho, que tinhão cahido nas mãos
do inimigo. Aos juizes faltava virtude própria para
acreditar na alheia, c apezar do índio ser lio de Ca-
marão, o melhor alliado dos Portuguezes, tinhão-no
estes conservado oito annos em cárcere tão duro. Os
Hollandezes pozçrão-no em liberdade. Immediata-
mente foi ter com a sua tribu : sangrão ainda, disse,
os signaes das minhas cadeias; mas é a culpa, não
1
Parece-nos melhor a ortographia dos nossos chronistas escrevendo
lajuary o nome d1 este indígena. F. P.
251 HISTORIA in> RRAZIL.
163
3.
o castigo que infama. Quanto peor me tradárão os
Portuguezes, tanto maior será o vosso e o meu me-
recimento, conservando-nos lieis ao serviço dVUfs,
especialmente agora, que o inimigo os ajnrla. Ou-
virão-lhe os seus as razões e elle levou aos seus op-
pressores um corpo de alliados constantes, com os
quaes os serviu tão bem, que mereceu na historia
menção honrosa.
Fazem o, Mas lambem os Hollandezes acharão alliados entre
llollamlezcs „„ . , , , ,. .
aiiianms os naturacs, e os Portuguezes sotlriao dos Índios dez
entre °
ns selvagens. v e z c s m a j o r (|ailini) do filie CailSavão. Do Becife SC
enviarão alguns Tapuyas á capitania do Lio Grande
antes da tomada do forte, para que da força e poder
que tinhão os Hollandezes de conquistar o paiz e da
resolução em que estavão de o fazerem, informas-
sem os seus conterrâneos. Ao desembarcarem enlro-
garão ao capilão hollandez uma corda com dezoito
nós, dizendo-lhe que cada dia desdesse um, e pro-
mellendo estar de volta ao desatar-se o ultimo. Mas
depois de ter aguardado vinte c Ires dias, fez-se o
navio de vela sem os índios. Nove annos antes d'csta
epocha tinha Bandervijn Ilendrichsz levado jovens
indígenas da Bahia dafraiç o para a Hollanda, onde
forão cuidadosamente educados ao geilo dos Hollan-
dezes, sendo cinco dentre elles enviados por diffe-
rentes vezes aos .landins, tribu tapuya, que habitava
no sertão da capitania, e passava por ainda mais
barbara do que qualquer outra da mesma raça.
HISTORIA DO BBAZIL. 255
1635
Tendo assim pois communicações abertas com estes -
selvagens, mandou Garstman, commandante hollan-
dez no Bio Grande, dizer a Jandovi1, cacique d'elles,
que era tomada a villa, e convidal-o a mudar-se com
os seus para mais perto, afim de poderem operar
todos de concerto contra o commum inimigo. Tre-
zentos guerreiros annuirão ao convite, de virem to-
mar vingança nos filhos dos que da costa lhes havião
,,. , J. de Laet.
repellido os pães. 577.
0 joven Jandovi, filho do regulo, e um cacique Expioraçío
n . . do paiz pelos
por nome Lopun, que era seu parente, lorão envia- Hollandezes.
dos por Garslman ao Becife para serem teslimunhas
da força dos Hollandezes, e poderem de sciencia
própria desenganar a sua tribu da opinião, que ou-
lros Tapuyas lhe havião transmittido, sobre estarem
os invasores grandemente desfalcados em numero e
prepararem-se para evacuar o paiz. O concelho do '
Becife desejava ardentemente empregar os Jandins
contra os Portuguezes, segundo repetidas instrucçõês
queda Companhia havia recebido, e para preparar
as couzas n'este sentido e determinar o modo de as
levara effeito, fez partir com os dous caciques, na
volta d'estes, Jacob Stackhouwer, um dos seus mem-
1
Se o cacique derivava o nome da tribu, ou esta d'aquelle, é o
que não sei. Os Portuguezes dão o nome do povo, e os Hollandezes o
do chefe, designando os selvagens pela voz genérica de Tapuvas. Por
este tempo empregarão os Hollandezes o maior cuidado em tomai- co-
nhecimento com os naturaes, dos quaes e a respeito dos quaes tiiv-
v"ào as informações que podião.
256 HISTORIA DO B R A Z I L .
,ü3
"> bros, e o coronel Jaeob Christopher Artischau Arti-
szensky, ipie ullimamenlc chegara para tomar o
commando, mas reconhecendo que na sua nomeação
linha havido engano, consentira em servir debaixo
de Schuppe \ Era um fidalgo polaco que, lendo jul-
gado prudente deixar a pátria por causa das suas
opiniões socinianas, se pozera ao serviço da Ilol-
dilestâàtder I a n n a *- ^° chegarem estes ao Bio Grande, acharão
weSen. que Caracará, o Buzzardo, não se queria aventurar
§1,521. . i • - i i •
a entrar em ajustes no nome de seu irmão o Jandovi
mais velho, pelo que mandarão a este um interprete
por nome Antônio Parapoara, para concordar com
elle sobre uma jornada contra os Portuguezes, e «t>-
bre o preço que pelos seus serviços devia receber.
Durante a ausência do interprete, Slackhouwer c Ar-
tiszensky, acompanhados d'um destacamento snfíi-
• ciente, explorarão o sertão até' certa distancia, pas-
sando as nou lesem casas abandonadas que encontra vão
aqui ealli pelas matas, onde nãoapparcccu viva alma:
os moradores tinhão fugido com medo dos Hollande-
zes e ainda mais dos Tapuyas, pois ja sabião que estes
ião agora ser soltos contra elles. .Ia os selvagens
1
Em vez de Srliuppo escreve Nelsi lier Sthl.nppc. V. I'.
4
Na obra, donde tirei esta noticia, ai lm o mune (teste ollieial is-
cripto Arti-cliofsky *. Yiima relação da ^íierni dos (kisaros contra i
Polônia da-lhe o auetor o nome de Arcisscnskv e HS 1'ortugue/e- o
cliainâo Arquichofle, quasi aleachofra.

* Parece-nos ser esta a verdadeira orlngrapliia do nome II<J illustrc Po-


laco que tanto se illustrou ao serviço il.i llollamli. I•'. I>.
HISTORIA DO BRAZIL. 257
. . . • , 1033.
havião principiado a exercer a sua vingança sobre o
oado, quando nada mais encontravão que trucidar,
e dentro d'um cercado, onde tinhão sido mortos por
gosto, apparecérão as assadas de mais de duzentos
animaes. 0 paiz pareceu aos Hollandezes tão agra-
dável e fértil como podia desejal-o o coração do ho-
mem, mas maravilhou-os que os Portuguezes fossem
dar o nome de Bio Grande ao Potengi, que quatro
legoas acima do forte deixava de ser rio, posto que
na sua foz fosse tão largo como o Mães. Os naturaes
porem lhes disserão que a torrente havia sido anti-
gamente muito mais considerável, e mostrarão um
leito secco por onde ella correra. 0 que tinha sido
feito das águas não o sabião, mas alguns d'elles
tinhão seguido este canal secco tres semanas pelo J. de Laet
-101-2.
sertão dentro, vivendo decaça, raizes e cajus.
Às hordas tapuyas, que obedecião a Jandovi, erão d0s™f^°,
chamadas Tararynck pelos visinhos, e olhavão como
sua uma extensão de terras banhada por cinco rios.
0 primeiro d'estes, conhecido por dous nomes, Wa-
rarugi e Ociunou, dizião alguns que ficava a cinco
dias de jornada do Potengi, indo mulheres e crian-
ças no farrancho, outros que a dez. 0 Quoaouguh
corria a um dia de jornada mais para Ia, e o Ocioro
a outros dous. Nenhum d'esles nomes se pode ja
reconhecer1. A pouco menos de dous dias mais
1
Salvo suppondo que o Ociunou e Ocioro, por um engano possível,
trocassem na lista a sua ordem natural, caso em que o segundo bem
poderia ser o mesmo que o Ceará Mirim.
ii. 17
2.\8 H I S T O R I A DO B R A Z I L .
,,::
* ' adeante ficava o Upanema, ainda assim chamado '; e
meio dia alem o AVoroiguh. Todos estes rios se in-
culcavão consideráveis. Também havia dous lagos
salgados, um perlo da cosia, o outro no interior, a
que um soldado hollandez, que o foi ver, calculou
oito milhas de circuinferencia. Julgavào-se estes Ín-
dios cgualmente com direitos ao Ceará, d'onde ali-
menlavão a esperança de expellir os Portuguezes.
A nação que se reputava senhora legitima dYsle
vasto território compunha-se de cerca de 1,000 pes-
soas, divididas em duas tribus, uma debaixo do
mando de Jandovi, a outra quecomprehendiaa maior
parte da mocidade, debaixo de Wesetyawa. Cinco
nações estavão alliadas com esla; os Arykcuma ou
Aeiki, de quem era cacique Coctaouly, povo fraco
cuja alliança parece ter sido um estado de sujeição;
os Juckeryjou ás ordens de Marikaou, «pie ja linhão
servido no arraial do Bom Jesus contra os Hollande-
zes; osKereryjou ou 0cioneciou\ debaixo de Nonhu
(quando oceorre esta dupla nomenclatura, uma é a
designação tupi, oulra a tapuya3, do que se pôde
inferir que em ambas as línguas era significativo o
nome); os Pajoke sob Kidoa, e os Aponoryjou sob

i Denomina-se hoje AppoiK. F. P.


* lie lal modo se acham desfigurados estes nomes qm: difíicll («'
achar os seus correspondentes nas nossas chronicas. F. P.
'• Como ja fixemos ver nunca a palavra taputpi designou trihii alguma
entre os indígenas do Brazil : sendo synonvma da de bárbaro com
que cs Tupis niilii0sca\aiii us seus contrários. K. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 259
Jarepo. Todos estes confinavão com Jandovi pelo ser- 1G "
tão, e como elle estavão separados do Bio Grande por
um paiz que a falta de água tornava difficil de atra-
vessar. Por inimigas tinhão quatro nações: os Jenho
debaixo de Kischonou, que vivião tão perdidos pelo
interior, que de nenhum povo christão tinhão nem
sequer conhecimento; os Woyana, cujo cacique era
Waracapo-wassu; os Carary, que obedecião a Kinioou-
koiou, elicavâo muito atraz do acampamento; e os
Carary-wassu, ou Carary Grandes, que linhão por
chefe Ca rapo ta, e habitavão na mesma direcção. Estas
tres ultimas tribus linhão servido os Portuguezes
contra os Hollandezes. 0 povo de Jandovi nada sabia
dos Aymorés, que, segundo os Hollandezes, nunca
passarão para o norte do S. Francisco. Taes forão as
informações sobre o paiz e seus selvagens habitantes
que os Hollandezes obtiverão dos alliados Tapuyas. ' 403.M
0 interprete que linha sido enviado a Jandovi Negociações
,, „ ,. . com Jandovi.

trouxe resposta que elle nao podia vir com o seu


povo, por não se achar água no verão entre o Ociu-
nou e um cabeço alto chamado iMoytyapoa, numa
distancia de tres dias de jornada, excepto alguma
pouca aqui e alli nas fendas dos rochedos e essa sa-
lobra. Suppoz-se que seria isto máo humor, pelo
que se lhe mandou uma carta em devida forma,
manifestando o desejo que o s senhores hollandezes
linhão de ver Jandovi, rei dos Tararynck, para ajus-
tarem com elle quanto havião de dar-lhe por cada
260 HISTORIA DO B R A Z I L .
103 expedição contra os Portuguezes. Sentiào, dizia a
missiva, que d'outra vez, qtrt; viera ao Bio Grande,
tivesse regressado pouca» satisfeito, mas escusavão-se
de toda a culpa, pois que não lhe sabendo das inten-
ções, tinhão ido tractar d'oulras couzas necessárias,
alem de que não fora favorável o vento para trazel-os.
Para outra vez que desse a conhecer o seu intenlo,
para que elles podessem cooperar, o que era impos-
sível sem tal recado prévio. Davão-lhe parle que csla-
vão a ponto de tomara Parahyba, e emquanlo alli
estivessem cnlrctidos, iria boa parle de suas tropas
reunir-se a elle, e assolar o paiz para cortar ao ini-
migo lodosos soecorros por terra, sendo os Hollan-
dezes senhores do mar, o que seria de grande van-
tagem para elle Jandovi e seu povo, pois que não
faltavão engenhos com abundância de despojos para
todos. Também lhe mandarão presentes e mais llic
terião mandado se houvessem achado Tupis para
cargueiros através do paiz secco, pois que não havia
(jue fiar nos subditos de Jandovi, que ja uma voz
tinhão aberto uns pacotes que lhe erão destinados c
furtado o que ia dentro. Assim mesmo o presentearão
com um vestido húngaro carmezim e outro còr de
laranja; alguns fardos de artigos de veslidura mais
pequenos, duas dúzias de camizas, tres hallabardas
pequenas douradas, tres facões prateados, uma dúzia
de machados, duzentas navalhas, e uma immensi-
dade de contas decorai e outras fraudulagens. A cada
HISTORIA DO BRAZIL. 261
Tararynck que linda vindo ao Bio Grande se deu uma 1633-
camiza, algumas navalhas e uma boa ração de vinho
para dous dias de jornada.
Assim attrahidos pelo cheiro dos presentes, da ra- l H o ^ e °* s
pina e da vingança, affluirão os selvagens de Jandovi deVnhan.
á cosia, onde tomarão terríveis represálias por pas-
sadas offensas. Os Portuguezes os tinhão pela. mais
barbara das tribus tapuyas, e n'esla occasião bem
juslificárão'a sua preeminencia na deshumanidade,
assassinando mulheres e crianças, velhos e doentes,
na ausência dos que terião defendido suas familias,se
não andassem em armas alhures, sem suspeita d'esta
invasão terrível. Por este tempo dous marinheiros
hollandezes, que feitos prizioneiros com seis camara-
das tinhão sido postos a trabalhar nas forlilicações de
Cunhau, da caravela onde eslavão detidos no rio sal-
tarão á água, nadarão para a margem do norte, c
chegarão ao forte do Bio Grande. As informações
dadas por estes .homens induzirão os Hollandezes a
emprebender uma expedição contra aquella praça,
indo Stackhouwcr por mar e Artiszensky por terra
com pouco mais de duzentos homens, sendo a quinta
parle Tapuyas. Approximou-se este ullimo na escu-
ridão, os cães dentro do forle fizerão o seu dever,
. mas a guarnição apezar de assim despertada não se
quiz incommodar a ir ver se havia perigo, e graças a
esta indesculpável negligencia foi sorprehendida,
perdendo-se sem difíiculdade uma fortaleza muito
262 HISTORIA D o RRAZIL.
,r,: 3
' capaz de resistir a similhanle ataque. O capitão Ál-
varo Fragoso dWlbuqucrque foi feito prizioneiro com
treze homens, onze forão mortos, o resto escapou
pela fuga. Quando Stackhouwcr chegou, ja a partida
de terra estava de posse da fortaleza. São era intenção
dos Hollandezes guardal-a, pelo que despindo-a de
tudo, carregarão o que lhes fez conta n'uma caravela
que por falta de conhecimento do canal bateu nas
pedras n'um logar onde nada pôde salvar-se. Ar-
liszensky explorou o rio, para verse alli se poderia
facilmente desembarcar gente que marchasse con Ira
a Parahyba : mas havia no caminho Ires rios que
lornarião por demais difficil a marcha. Feito isto
voltou ao Becife. Assim que Jandovi soube de tal,
mandou recado aos Hollandezes que muito folgava
com haverem elles tomado o forte; senlia porem
terem dado quartel aos Portuguezes em logar de
exterminal-os todos, acerescentando que se aquella
devia ser a practica, não contassem com elle.
o5 Tiimims. Ao mesmo tempo tinhão os Portuguezes outro ini-
migo incommodo. Obra de trinta legoas pelo sertão
dentro ficavão extensas florestas de palmeiras cha-
madas o s / V z / w m ; era alli o refugio dos negros que
se evadião á escravidão, eque provavelmente escolhé-
rãoo sitio pela similhança que offerccia comjjscena-
riodo seu próprio paiz. Das myriadas d'esles desgra-
çados, que linhão sido importados no Brazil, muitos
alli havião achado asylo na suecessão dos tempos;
HISTORIA. DO BBAZIL. 263
163:
elles se tinhão multiplicado; conslantes deserções '
lhes engrossavão o numero, que n'esta epocha se or-
çava em trinta mil 1 . Vivião em aldeias que chamavão
mocambos, e á maior das quaes se davão seis mil
habitantes. Compunha-se de tres ruas, cada uma de
quarto de legoa de cumprimento, sendo os ranchos ,
contiguos com seus quintaes nos fundos. A selva
suppria de fructas e caça este povo, que comtudo pro-
vidcnle e industrioso cultivava a terra, de modo que
a todo o tempo abundava o sustento. Duas vezes por
anno se recolhia o milho, sendo ambas as colheitas
celebradas por festas que duravão uma semana. Con-
servava ainda esta genle alguns resquícios de cbristia-
nismo, religião de que lhes havião infundido princí-
pios tão corruptos', que nem estes homens, ignorantes
como erão, poderião tornal-os mais dissimilhantesdo
seu divino prototypo. Bem como da religião lambem
da justiça guardavão algum resaibo. Todas as tardes
se fazia em cada aldeia uma chamada para ver se
alguém faltava; findo isto principiava a dança, que
durava até á meia noule. Occasionava esta practica
uma singular inversão dos hábitos ordinários da vida
natural, pois, tendo-se deitado Ião tarde, levantavão-
se os negros ás nove ou dez horas da manhã. Mas a
1
0 auetor deixou-se aqui guiar pela hyperbolica narrativa de Brito
Freire que orça nesse numero a população palmcirense; temos motivos
para crer que nunca passou ella da mitade. F. P.
1
Seria mais verídico Southey si dissesse que os negros haviam
adulterado as puras c sanetas practicas do christianismo. F. P.
264 HISTORIA DO BRAZIL.

1035. região que elles habilavào linha duas desvantagens :
era sujeita a falta de água na estação secca, e não
ficava assaz longe no scptão. Em verdade actualmentc
pouco perigo podia provir-lhes d'esta visinhança dos
estabelecimentos portuguezes; facilitava a fuga dos
irmãos e offerccia pasto a essa incessante guerra de
pilhagem, em que parecem consistir as maiores deli-
cias do homem nos degraus semi-barbaros do seu
progresso. Por vezes os atacavão os colonos, armavão-
lhcs ciladas quando ião á busca de água, e assolavão-
lhes os campos; mas elles pela sua parle também
levavão a destruição aos estabelecimentos mais próxi-
mos, causando maior damno do que rccebião. 0
districlo d'elles era um labyrintho em que ninguém
mais se entendia, mas os fugitivos, que de continuo
os procuravão, serviào-lhes de guias, dando-lhes in-
formações sobre o lado para onde melhor dirigiria»»
as suas correrias. A guerra que fazião era sem pie-
dade, exceplo para com os da sua cor, a respeita dos
quaes era practica estabelecida receber em pé <!<•
1 . . !» ftt- perfeita egualdade os desertores, e reler escravos os

'g ^;'.'J; que erão feitos prizioneiros'. Alenazados por eslcs


inimigos e pelos desapicdados Janduis, mal podião
os Portuguezes fazer frenlc aos Hollandezes, que
triumphavão agora por Ioda a parte.
1
Sabemos per testiiiiiinlias ledeili^iias que os l',iln.eirei,ses faziam
escravos os piaso- qi e em suas CIIII ei ias apri/iuiiav.uii ; receie min rnine
ieuaes unicamente os que voluntário- se lhes apresentavam. I . I'.
HISTORIA DO BBAZIL. 265
Em fins de fevreiro sahiu do Becife o commandante ^ ^
hollandez, levando uma força tão considerável, que 7 ^ | d "
s

Mathias d'Albuquerque entendeu poder sorprehen-


der-lhe a praça. O seu intento era atear-lhe fogo e
destruir os depósitos. Havia um logar onde o Bebe-
'ribe era vadeavel na vasanle, e o melhor forte do
inimigo dominava este vau, defendido também por
um navio de oito peças e cincoenta homens de tripu-
lação. Martim Soares Moreno foi enviado com qui-
nhentos homens a tentar esta passagem á meia noute;
ora nadando, ora vadeando effectuárão-na uns cem,
e pensando que os companheiros os seguião, avança-
rão para o isthmo de areia que liga Olinda ao Becife.
Aqui eslavão ainda por completar as obras; derão
rebate as senlinelas, mas os Portuguezes, atacando-as
logo, romperão avante. 0 premeditado intento tinha
porem sido atraiçoado por um Portuguez que, ha-
vendo-o sabido d'um desertor, avizara o comman-
dante de Ilamaracá, pelo que estava prevenido o
inimigo. Apezar de tudo não causou pequena confu-
são o repentino do assalto. Um dos commissarios,
que ficara com o commando, metleu-se no primeiro
escaler que encontrou e fugiu para a ilha; outras
fugião d'esla para a cidade. Infelizmenle os Portu-
guezes, embora conduzidos por um de seus melhores
ofüeiaes, não sustentarão a empreza com a mesma
ousadia com que a havião commcltido : os fortes e
o navio vigia linhão aberto fogo sobre o vau, e em-
2C6 HISTORIA HO B R A Z I L .
bora estes tiros ao acaso pouco damno podcsseni
causar, aterrarão o grosso dos assaltantes. Os que
estavão ja na água, retrocederão, os que ainda não
linhão entrado ífella, preferirão não o fazer, e qua-
trocentos da partida abandonarão assim á sua sorte
os que tinhão sido mais valorosos do que elles. Kstcs
valentes, sentindo chegar o dia, o vendo que ninguém
i s apoiava, tiverão de retirar-se pelo vau, levando
ás costas os feridos. Os Portuguezes, ignorando que
o seu intento linha sido atraiçoado, acreditarão que
se lodo o destacamento tivesse feito o seu dever tão
bem como os cem, ter-sc-ia n'aquellc dia restaurado
o Becife; e os próprios Hollandezes reconhecerão que,
segundo todas as probabilidades, lhes lerião os as-
saltantes deslruido os depósitos, se o Senhor os não
11. freire.
§ .-illl-ti.
houvera livrado de tão grande calamidade, deixando- "
.1. de laet
3S.J-V. os pela sua misericórdia, saber do que se preparava.
tiaqueconira A avtillada força, cuja ausência do Becife animara
\azarelli
os Portuguezes a este atrevido assalto, dirigira-se a
ir," i Parahyba. Desde o principio do anno tinhão os Hol-
landezes recebido consideráveis supprimonlos e re-
forços, c reputando lanlo o arraial como Nazaré th
fortes de mais para serem alacados com perspectiva
de bom resultado, resolverão tentar fortuna contra
a Parahyba, qwe linhão repelidas vezes recebido or-
dem de tomar, e sem a qual jamais poderião manter
se na posse pacifica do norte do Brazil. lira inleuçào
d'elli s assaltar um forte recentemente construído á
H I S T O R I A DO B R A Z I L . 267
entrada do rio da banda do norte, e ainda não aca-
bado nem bem guarnecido, pois que os Portugueses
nãoreceavão um ataque formidável conlra elle, sobre
confiarem na facilidade com que podia ser soccor-
* rido do Cabedello, que ficava defronte. Mil e qui-
nhcnlos homens embarcarão para esta jornada em
duas esquadrilhas; a primeira chegou e principiou
a pôr as suas tropas em terra, a outra encontrou
vento rijo na altura da foz do rio, nem pôde approxi-
mar-se sem risco imminente. Emquanlo uma parle
perdia tempo á espera da outra, a guarnição do Ca-
bedello, que ao principio entrara em duvida se seria
com cila o negocio, percebeu claramente o desígnio
do inimigo, e mandou para a outra banda reforços
que os Hollandezes não poderão interceptar, e os
commandantes, vendo então que persistir no assalto
era exporem-se a uma perda seria e sem resultado,
rcembarcárão. Não poderão comludo soffrer o pen-
samento de que tão grandes prepatalivos havião de
dar em nada, e, suppondo que se teria tirado gente
do acampamento e do cabo de Saneio Agostinho para
defeza da Parahyba, determinarão investir aquelle
. ultimo. A conquista dVste logar, bem o conhecião
elles, era o primeiro passo que se devia dar para
subjugar Pernambuco; era alli qu/> os Brazileiros
recibião soecorros de gente e maicriaes, era alli que
embarcavão os seus produclos. Sena entrarem pois
r > - p i •> ~ n 1 44 de mar.
de m

no liccile para aqui velejarão. Commandava na praça i63i


2tj8 H I S T O R I A DO B R A Z I L .
IOÕÍ. pedro Corna da Gama com trezentos e cincoenla
homens, inclusive os moradores, achando-se parle
desla força eslacionada no forle de Nazarelb, a inútil
obra de Bagnuolo, que por afastada demais nem do- .
minava a barra nem a villa. Os dous redueti s da foz '
forão «Tuarnecidos, e quatro companhias destacadas
para Tapoão, uma legoa ao norte, onde alias poderia
ler desembarcado o inimigo, marchando em direi-
lura para a villa chamada do Pontal, que ficava fora
do alcance de tiro das fortalezas da barra. Por falia
de outra força ficou este logar entregue unicamente
aos moradores, quasi todos genle do mar.
us Foi Tapoão, como se soppozera, o logar onde se
ll(,Ilamle/«>
|v.iss.rm)>e'a tentou o d e s e m b a r q u e . Achando-o o demasiado bem
lialeriiis
e lomâo a
eiilaile.
" i i a r d a d o , forão os Hollandezes cosleando ale chega-
r e m ao sitio c h a m a d o As P e d r a s , o n d e fizerao se-
gunda tentativa. Apparccérão cem h o m e n s , que
v i n h ã o do a c a m p a m e n t o a defender este posto im-
p o r t a n t e , e quarenta dos mais velozes ainda o al-
cançarão a tempo de o b s l a r e m ao desembarque.
Onze navios do i n i m i g o se s e p a r a r ã o agora do resto
da frota, e apezar de ser estreitíssima a barra, c
difficil a e n t r a d a , avenlurárão-se a passar por entre
as baterias. Im d'elles, perdido o leme, encalhou,
mas os oulros rojnpendo forão fundearem Ircnle a
villa, visto o que, fugirão immcdialamenle os ma-
rinheiros que a defendião. Ainda liveião tempo de
pôr logo aos armazéns, em que se consumirão duas
HISTORIA DO RRAZIL. 269
mil caixas de assucar, mas os Hollandezes tomarão ,63í -
quinze barcos de vários tamanhos, em que havia
mil e trezentas oulras afora grande quantidade de
pau brazil.
Caiabar ia nas lanchas, que levavão mil homens Calalm.
de tropas de desembarque. Meia legoa ao sul havia as lanchas.
pelo recife uma entrada para o porto, tão estreita
em verdade, que jamais se pensara que a mais pe-
quena canoa a podesse passar, mas nada escapava a
este homem'; formara elle melhor juizo,e introdu-
zindo por alli as lanchas, foi desembarcar a gente
no Pontal, onde ella principiou immediatamenle a
fortificar-se. Singular era agora a situação das partes
belligerantes : o porto eslava em poder dos Hollan-
dezes, que alli tinhão dez dos seus navios, mas so
podião communicar com o grosso da sua força por
meio de botes pelo canal descoberto por Caiabar,
sendo os Portuguezes ainda senhores da barra. Ma-
thias d'Albuquerque, seu irmão Duarte e Bagnuolo
chegarão do acampamento com trezentos homens.
Apenas sabido o designio do inimigo não tinhão
perdido tempo em mandar reforços a este importan-
tíssimo logar, seguindo-os desde logo em pessoa; a
sua força reunida era agora considerável e passarão
1
J. de Laet confere a Schuppo o merecimento da descoberta do
canal, que, segundo elle, nem era conhecido dos Portuguezes. A nar-
rativa, que attribue este feito a Caiabar, é mais provável; não era elle
cxtranho no logar, como o commandante hollandez, c podia muito
bom ler-se até ja como contrabandista servido d'esta passagem.
27o HISTORIA 1)0 R R A Z I L .
1631
a atacar os Hollandezes na villa. A poderá rã o-se d'unia
bateria, e avançarão para as trincheiras erguidas
pelos invasores. Conhecião estes a insuflicicncia das
suas obras, levantadas á pressa, e lançados em con-
fusão, fugirão muitos a nado para os navios. Exac-
tantente n'oste momento appareceu uma partida de
Portuguezes, que tinha recebido ordem de marchai
pela floresta, e destrahir a attençào do inimigo, in-
quietando-o pelo lado opposto; enlre os seus próprios
conterrâneos se levantou o grito de que erão Hollan-
dezes alli postados para lhes cortarem a retirada, e
debalde tentarão os chefes desenganal-os, e tornar
a metlel-os em forma, era forle demais o terror. Po-
zeráo-se em desordenada fuga, a artilharia dos navios
principiou a jogar sobre elles, e n'esla desgraçada
investida perderão "210 homens, quando so o próprio
.!. r . e I pavor infundado lhes podia lolher que recobrassem
Pontal. D'oulras vezes dislinguiáo-se os Portuguezes,
como os heroes d'IIomero, pelo zelo em levarem do
campo os seus mortos, para o que ião sempre mu-
nidos de cordas, mas n'csta acção1 tão depressa fugi-
rão que nem poderão prestar este piedoso oflicio aos
seus irmãos cabidos.
Apezar de assim rechaçados erão Ião fortes os Por-
tuguezes que o inimigo viu que nada mais tinha a
1
Yella se servirão os Hollandezes d'umas pecinhas de metal, de
nova invenção, com que, diz J. de Laet, como se fosse com mosqueteft,
lecebèràd Os PurtiiíMic/es. Serião bacamartes?
HISTORIA DO BRAZIL. 271
1G ,i
ganhar aqui contra elles. Os navios achavão-se fora "
do alcance de canhão, mas sendo tão estreita a barra
que mal dava passagem a um, não havia meios de
sahir com tão pequena perda como a soffrida na en-
trada. Preparárão-se os reductos, e Mathias alli se foi
postar com as suas tropas. Confiava este general que
os Hollandezes lhe havião de cahir nas mãos, e mani-
festava esta confiança a Bagnuolo. Este, que conhe-
cia melhor os inimigos, abanava a cabeça e dizia-lhe
que não fosse tão seguro da sua preza. Um Hollandez,
contava elle, fora condemnado á morte em Flandres,
e encerrado n'uma alta torre. Um dos seus amigos
observou que as andorinhas' alli entravão e sahiâo
por uma janellaaberta; apanhou n'umalçapão uma
d'estas aves, amarrou-lhe á volta um fio, e deixou-a
voar. Ella, como de costume, voltou á torre; o pri-
zioneiro, vendo o fio, puxou por elle uma corda, que
o amigo prendera da outra extremidade, e descendo
por ella, escapuliu-se. Bagnuolo vira quão inespera-
damente os Hollandezes havião feito entrar as suas
lanchas, e receava agora que se safassem com os na-
vios por algum meio egualmente difficil de prever-se.
Não se enganava. Elles alargarão o canal por onde
Caiabar metlera as lanchas; depois descarregando os
navios, e tombando-os a um lado, por não haver água
1
~ li. Freire.
§538 9
para as quilhas, assim os arrastrárão para fora. "
M h d Au
Postos d'esta sorte a salvo os navios, e levados os ^ 'u|r 'u e
despojos, deixarão os Hollandezes uma grossa força umptrLilt0.
-272 HISTORIA DO B R A Z I L .

para defeza da villa, e como em prova da resolução


em que estavão de se manterem na perpetua posse
das suas conquistas, pozeráo á ilha dentro do recife
nome Walcheren, e chamando Gijsseling o forte.
Nazarelb era pois perdida para os Portuguezes como
porto, mas não a esperança de rehavel-a, e em lodo
o caso importava-lhes muito guardar os reductos c o
forle. Conservárão-se pois alli os generaes para tira-
rem partido de qualquer oppoiTunidade que se offe-
recesse, e fizerão para a llespanha instante* pedidos
de soecorros efficazes. Os Hollandezes pela sua parte
despachavão commissarios para a Hollanda a re-
presentarem as bi lias esperanças que lhes sorrião, c
animarem a Companhia das índias Occidenlaes a
invidar maiores esforços para a conquista d'um im-
pério, que em tal caso ja não podia escapar-lhe. In-
trelantosuppoz-se no Becife, que achando-sc assim
oecupada em Nazareth a força principal dos Portu-
guezes, poderia o arraial do Bom Jesus ser entrado,
u dcu-se-lbc um assalto sem effeito. Da mesma forma
conjecturou Mathias dAlbuquerque que a guarnição
do Pontal teria sido desviada em parle para este ata-
que, e com egual má fortuna investiu a villa'. Então
fizerão os Portuguezes outra infeliz insinuação para
compra da paz. Sobre pretexto de que as condições
em que se concordara a respeito de quartel, não erão

' Equivoca-se o auetor chamando de villa a povoarão do Pontal.


K, P.
HISTORIA DO BBAZIL. 273
1634
assaz claras, pediu Bagnuolo uma conferência, e
deputou pela sua parle o veedor geral a encontrar-se
com o tenente Bijma por parte dos Hollandezes. Mas
o negocio real do veedor era offerecer á Companhia
das índias Occidentaes o pagamento de todas as des-
pezas feitas, se quizesse evacuar o paiz. Esla pro-
posta representou-a elle como altamente vantajosa,
dizendo que jamais poderia a Companhia tirar pro-
veito "d'estas conquistas, pois que os Portuguezes
podião retirar-se para á Bahia, onde havia terra que
fartasse, e d'onde a todo o tempo lhe podião pôr a
ferro e fogo as plantações. Preparava-se, accrescen-
tou, um grande armamento para soccorrel-os, sendo
culpa dos próprios Brazileiros não ter ainda chegado,
pois que, encurralados os Hollandezes no Becife,
havião elles mandado dizer que possuião forças suffi-
cientes para a restauração d'aquella praça. Agora
porem não tardaria o armamento, e se se fazia esta
proposta era em bem de todos e para evitar mais
desgraças, não por qualquer outro motivo, nem a
necessidade a dictava, como Deus e o tempo mostra-
rião. Se os Hollandezes não quizessem dar ouvidos a
isto,fizessemo que podessem para conquistar o paiz,
que os Portuguezes havião de fazer outro tanto para
frustrar-lhes os planos. A resposta foi altiva, que a
vender as conquistas que fizessem não erão vindos os
Hollandezes, mas a alargal-as e manlel-as por Suas Al
J. de Lacl.
tezas os Estados, o principed'Orange e a Companhia 392-5.
274 HISTORIA DO RRAZIL.
163i
- Ein logar dos soeeorros que com tanta confiança
rero'rços°da espcravào os Portuguezes, checarão da Bahia duzentos
l
nollanda. . , .
homens, e insignificante como era o retorço, loi dií-
ficil achar-lhe provisões, nem linhão os soldados
paga ou vestidos alem do dinheiro que o general
adeantava do seu bolsinho. Jamais houve colônias
tão cruelmente descuidadas pelo seu governo. Quasi
pelo mesmo tempo chegarão á Parahyba cento e trinta
homens vindos de Lisboa, d'onde Irazião a noticia de
que na Hollanda se aprestava outro armamento
grande, e de facto não tardou muito que não voltas-
sem os commissarios com 0,000 homens, de modo
qtic a força que a Hollanda mandava a conquistar o
Brazil excedia na razão de mais de trinta por um a
li. Kitiie.

S3i;u-:i que a llespanha enviava a defendel-o.


Aoulra
Pan.tivi»
vez. Assim reforçados, resolverão os Hollandezes tornar
atacaila
a acommetler a Parahyba. Era esta então uma for-
mosa villa 1 com seus seleccntos moradores próprios,
e muitos outros que vindos das partes do paiz subju-
gadas pelo inimigo, alli havião buscado asylo. Tinha
uma casa de Misericórdia, um convento de Benedicti-
nos, outro de Carmelitas, e ainda outro de Capuchi-
nhos, e havia nas visinhanoas dezoito engenhos de
assucar. A situação fora mal escolhida, a tres legoas
do porto, rio acima, em terreno baixo e rodeado de
matagaes; não era pois logar saudável e como ponto
1
Chamada nesse tempo Philippéa em honrado monarcha hespaiih»!
que governava Portugal e suas cnluni.is. V. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 275
1634
mililar valia muito mais do que a villa o forte do
Cabedello, que dominava a entrada. Ficava este do
lado sul da barra, e fora melhorado depois do ultimo
ataque. Do outro lado estava o forte de Saneto Antô-
nio, ainda por acabar, e a tiro de peça de ambos, no .
banco d'areia duma ilha fluvial chamada deS. Bento,
erguia-se uma bateria de sete canhões guarnecida
por quarenta soldados. 0 numero da genle estacio-
nada n'estes postos, na villa e nos differentes reduc-
tos, elevava-se a novecentos. Bepellido o primeiro
ataque não perdera o capitão-mór, Antônio d'Albu-
querque Maranhão, tempo em preparar-se para se-
gundo, e enviara logo o seu irmão Mathias a expor ao
rei e aos ministros o estado da capitania. Pouco frueto
colheu d'estas representações, e a Parahyba como
Pernambuco ficou abandonada á sua sorte.
Apparecérão os Hollandezes deante do porto com 4 de dez.
11
.l 1634.
1
dous mil e quatrocentos homens , em trinta e dous
navios. Contra forças tão superiores impossível era
a defeza da praia em todos os seus pontos. Apenas a
maré encheu o precizo, varou o inimigo os bateis em cerco d0
forte
d
terra, vindo o próprio Schuppe á frente, e assim sem ° cabedeiio.
mais perda alem da de quatro botes quevirou a res-
saca, desembarcarão seiscentos homens antes que se
lhes podesse oppôr o menor estorvo. Seguiu-se um
tiroteio em que os Portuguezes levarão a peor, mas
1
Os escriptores portuguezes os elevão a mais de 5,000.
276 HISTORIA DO B B A Z I L .
•O" que foi de pequena conseqüência, salvo ter cabido
prizioneira uma das principaes personagens da capi-
tania. Bento do Rego Bezerra, que não tardou a ar-
ranjar-se com os Hollandezes, contribuindo depois
grandemente para a reducção do paiz á obediência
d'elles. Julgando que seria o Cabedello o primeiro
logar atacado, reforçou-o Antônio d'Albuquerque,
estabelecendo o seu quartel general em Saneto An-
tônio, onde recebesse e distribuísse os supprimentos
que viessem da villa. Principiarão os Hollandezes
como elle previra, por cercar o forte principal, mas
ficavão expostos ao fogo da bateria do banco de San
Bento, e importava-lhes segurar este posto, não so
porque os incommodava, mas também por que cm
quanto elle estivesse em poder dos Portuguezes, pas-
sa riao a salvo os botes da villa. Uma divisão da ar-
mada ás ordens de Lichthart passou pois a barra com
espesso nevoeiro, que tão felizmente a encobriu que
so a virão dos fortes quando estava ja entre elles.
Oitocentos homens desembarcarão na ilha. Dos qua-
renta que alli estavão destacados, cahirão vinte e seis;
o resto demandou a nado umas lanchas, que chega-
rão tarde demais para soccorrcl-os, mas ainda a
tempo de salval-os, e ao entrarem a bateria encontra-
rão os Hollandezes alli so o commandante. Formarão
aqui segundo redueto contra o Cabedello, onde logo
no primeiro dia matarão ou ferirão Irinhi homens.
Em extremo difficil se tornou agora metter soe-
HISTORIA DO BRAZIL. 277
corros no forte : por terra era de nove legoas a dis- 1634-
lancia, e lá estava o terrível Caiabar para mostrar
ao inimigo todos os torcicollos do paiz; restava ape-
nas a água, e por essa a única esperança de passar
era debaixo do fumo das baterias. Aproveitavão pois
os Portuguezes a noute, cobrindo-se com couros o
melhor que podião. Antônio Perez Calháo comman-
dava uma lancha, que de Saneto Antônio atravessava
para o Cabedello : uma bala, que lhe matou um dos
seus camaradas e feriou dous, também lhe partiu o
braço direito com que ia governando. Correu o ir-
mão a tomar o leme, mas elle recusou entregal-o,
dizendo : «Para me sueceder no posto, ainda tenho
este irmão mais chegado, » e mostrava o braço es-
querdo. Logo uma bala de mosquete lhe varou o
peito, e ellesahiu. Poz-se agora o irmão ao leme :
também elle foi ferido na mão direita, e soecorreu-
se da esquerda. Forçou a lancha a passagem e ambos
os irmãos se restabelecerão dos seus ferimentos,
mas foi sua única recompensa a fama que alcançarão. §'IT^OI!
Tinhão agora os sitiantes assentado quatro bale-
1
Rende-se
oforte
nas contra o forte; de dia e de noute o batião até -
que lhe desmontarão quasi todas as peças, matarão
ou ferirão todos os artilheiros, excepto a seu capitão,
e quando este a final levou também um tiro de mos-
quete, não havia ja quem servisse os poucos canhões
que ainda poderião fazer fogo. N'esta conjunetura
chegou Bagnuolo á villa com trezentos homens, nu-
278 H I S T O R I A DO B R A Z I L .
lfô4
- mero por demais pequeno para emprehendcr couza
alguma efficaz conlra o inimigo.
Entretanto tornou-se insustentável a praça e sahi-
i\ o dous capitães a propor a capitulação. Exigirão
que os deixassem partir-se com suas bagagens, mu-
nições, e provisões, armas carregadas, niechas ac-
cezas, com bandeiras despregadas, e o estandarte
real, dando-se-llies botes, em que se passassem para
a Parahyba. Os Hollandezes so queriam deixal-os sahir
com honras militares para cm navios da Companhia
serem transportados ás Antilhas, aos Açores ou alhu-
res, conforme se concordasse. Pronietléráo os Porlti-
giiezes responder em cinco horas, e exigirão então
que os deixassem sahir com o estandarte e uma peca
de dezoito, e que os ofliciaes c metade da guarnição
podessem ficar no paiz. Os Hollandezes não quizeráo
exemplar do rigor das condições mais de cincoenta
homens. Dos negociadores portuguezes um era velho
ecomedido, o outro joven e fogoso. Este, a quem os
Hollandezes chamão D. Gaspar, perdeu as estribei-
ras, e depois de ler Schuppe assignado a convenção,
arrancando o papel das mãos do seu collega, devol-
veu-o ao comniandanlc hollandez, que, cncolerizado
a seulurno, rasgou-o, dizendo a Gaspar que a espada
o ia ja ensinar a faltar em outro lom. Um honroso
s. nlimeiilo de indignação arrastara o Portuguez a
este passo irrelleclido, mas cahindo em si, com la-
grimas de vergonha reconheceu a suafalta; eSi lujppc,
HISTORIA DO BRAZIL. 279
rcí-peitando o sentimento e compadeccndo-se da in- 1634
discrição, mandou lavrar outra vez a capitulação,
permittindo em logar de cincoenta que ficassem no
Brazil cem homens entre officiaes e soldados, esco-
lhidos pela guarnição. Marcou-se para o dia seguinte
um officio divino em acção de graças, segundo o
costume d'estes conquistadores, rigorosos observa-
dores das formulas da religião, e prégarão-se ser-
mões não so em hollandez, mas também em inglez
c francez, prova de que o numero de exlrangeiros 5 de Lact
ao serviço cVclles devia ser mui considerável.
Voltava Antônio d'Albuquerqüc de suas improfi-
cuas conferências com Bagnuolo, quando soube que
o Cabedello capitulara. Agora queria elle sustentar o
fortede Saneto Antônio, mas os Italianos de Bagnuolo
recusarão destacar para alli; também o comman-
dante protestou que era impossível a defeza, havendo
apenas sete barris de pólvora, e, tendo desertado a
maior parte dos artilheiros, composta de Allemães
e Inglezes, e muitos dos soldados ido a traclar dos
seus próprios negócios. Nomcou-se outro comman-
dante, um dos que tinhão estado no Cahedello du-
rante o cerco, c que se declarou promplo a sepultar-
se debaixo d'aquellas ruinas. Entretanto resolverão
os conquistadores marchar direitos sobre a Parahyba,
pois que com esta praça nas mãos terião aberto todo
o paiz para o sul até Goyana. Offerecia a em preza •
suas difficuldades; a estrada do Cabedello seguia
280 HISTORIA DO B R A Z I L .
3
»6 *- encostada a uma lagoa pequena, onde era dominada
por um entrincheiramento, dentro do qual pouca
gente bastava para impedira marcha d'um exercito.
Mas esta defeza, que podemos attribuir ao talento
militar de Bagnuolo, foi frustrada pela traição de
Bezerra. Bevelou elle aosHollandez.es, e alguns dos
prizioneiros confirmarão esta informação, que en-
trando n'uma angra chamada Tambaja Grande, po-
dião metler-se depois á estrada entre a trincheira c
a villa. Artiszensky reconheceu o logar, e ja os Hol-
landezes se prepara vão para desembarcar alli na
noute seguinte, quando dous Francezes desertados
do forte de Saneto Antônio vierão dizer-lhes como a
guarnição eslava alli mui desfalcada por deserções,
e mal provida de munições, sendo provável que so
rendesse apenas contra ella sefizesseuma demonstra-
ção séria. Inspeitárão os invasores que fosse isto es-
tratagema para atlrahil-os a uma emboscada, c em
logar de fazerem qualquer movimento, contentárão-
se com mandar um tambor a intimar o forte. Em
resposta pediu a guarnição tregoas por tres dias, para
mandar recado ao governador. Hecusárão-nas os
Hollandezes, mais, segundo elles contão, por gra-
cejo, do que por esperarem que a praça se rendesse.
Com grande admiração dVlles porem chegarão de-
putados a traclar da entrega, posto que não tivesse
desembarcado um so homem na margem do norle, <•
o forte, mesmo no seu estado incompleto, fosse mais
HISTORIA DO BRAZIL. 281
1634
seguro que o do Cabedello, e tão de perto cercado de
água, que sem grande difíiculdade erão impossíveis
os approxes. Cessou comtudo a admiração logo que
souberâo que quasi toda a guarnição linha fugido
com receio de ser aprizionada e transportada para
as índias Occidentaes. Sete pessoas era quanto res-
tava, provavelmente os officiaes, que pedirão que os
deixassem sahir com a bandeira real, e, para salva-
rem a honra, disparar alguns tiros por cima da ca-
beça dos Hollandezes, com elevação tal, que não
.podesse resultar o menor damno. Assegurou-se
Schuppe de que não se meditava traição, e assim tão
facilmente se assenhoreou do forte.
Bagnuolo previra esta perda; queixavão-se os Bra- Tomat|a
zileiros de que elle so antevia males sem saber reme- da rarah*)a-
dial-os, mas era isto n'elle má sorte, não culpa. Com
forças tão inferiores ás do inimigo de que lhe valeria
a experiência militar? Declarou agora aos moradores
da*Parahyba que era impossível defender-lhes a villa,
pelo que lhes aconselhava que não perdessem tempo
em retirar-se com suas famílias. Immediatamente
principiarão os soldados a saquear; erão Hespanhoes
e Italianos, que o povo olhava egualmente como
estrangeiros. Pouco importava porem o seu berço,
erão mercenários que com a mesma rapacidade terião
despojado amigo e inimigo, e aos quaes cabe a des-
culpa que se por suas mãos se não pagavão de seus
duros serviços, outra paga não a vião. Estes desgra-
2S2 HISTORIA RO RRAZIL.
d634
- çados pozerão a villa a saque. Alguns moradores
mais resolutos, incendiadas as casas, seguirão o
exercito na sua retirada; mas do pouco que poderão
levar, forão despojados pelos soldados, crueldade que
obrigou muitos a voltarem c subníeltercm-sc aos
Hollandezes. Cançados de mãos dias deixou-se ficar o
maior numero, alegres de veiviu-se sol» qualquer
aucloridade capaz de prolegol-os. 0 exemplo de Be-
zerra determinou muitos, eo d'otilroBrazileiro rico,
por nome Duarte Gomez da Silveira, que depois de-
gasto muilo cabedal, c perdido o único filho na de-#
léza da Parahyba con Ira os Hollandezes, passou-se
para estes, serviu-os como agente secreto, e obteve do
general d'cllcs passaportes, que distribuía pelos que
podia persuadir a sujeitarem-se. Promettia-llies em
nome do general o livre exercício da religião catho-
lica, "(tzo pacifico tios seus bens, e mercadorias euro-
i.ust. Lus. ' n i
"íí. Freire', peas dos armazéns do Becife, que poderião receber
" a credito e pagar em gêneros da producção do pai/..
x,)
de'sihen... render-se o segundo forle rclirou-se Antônio
dAlbuquerque para a villa, não a sabendo abando-
nada, e pensando fazer alli finca pé : estava ja oceu-
pada pelos Hollandezes, que celcluavão com salvas a
sua victoria. Tinhão estes achado dous armazéns na
ribeira e tres navios queimados pelos fugitivos; fume-
gavão ainda ruinas e cascos e pelo rio corria o assucar
dei relido. Oueria Albuquerque porlar-se agora onde
podesse defender o paiz, mas perdido havião os seus
HISTORIA DO RRAZIL. 283
1034.
toda a confiança e todo o animo; dizião que nada
valião ja esforços, e nada se pôde fazer. Duas com-
panhias de indígenas, recrutadas nas aldeias mais
próximas, desertarão para o campo dos conquista-
dores, e todos os índios da capitania feslejavão os
novos senhores, escolhendo o mesmo partido os do
Rio Grande. Abandonado como se viu do seu governo,
e privado de toda a esperança, que maravilha é que
o povo da Parahyba curvasse a final a cerviz a um
jugo contra que tanto e tão bravamente luetara!
Antônio d'Albuquerque descobriu que Silveira servia
secretamente de agente dos Hollandezes, e remetteu-o
prezo ao commandante em chefe. Achou este meios
de avizar os Hollandezes, que destacando logo uma
força, o libertarão em caminho. Com tão feliz lance
bem poderá elle dar-se por satisfeito, mas ainda quiz
vingar-se de Albuquerque e adquirir novos títulos á
gratidão dos Hollandezes entregando-o nas mãos
d'elles. IVeste intuito atrevidamente foi ter com o
capitão portuguez, dizendo que da sua innocencia
bem claras provas linha dado agora a Providencia,
primeiro permillindo que os Hollandezes o libertas-
sem quando injustamente prezo, e depois dando-lhe
escapar também a elles. Erão porem poucos em nu-
mero, acerescentou, e se os Portuguezes quizessem
esperal-os, farião d'elles fácil preia. Deixou-se Albu-
querque enganar, mas outros houve que formarão
juízo diverso, e Martim Soares com especialidade
284 HISTORIA DO BRAZIL.
165i
- instou para que sem perda de tempo se despejasse o
logar. Tomou o commandante este feliz conselho e
Silveira deixou-se ficar atraz, para reunir-se aos Hol-
landezes. Mas estes, estomagados por não ter elle
cumprido o que piomeltera, e suspeitosos de que
quem tentava com tão complicada traição burlar os
seus compatriotas, não estivesse fazendo contra elles
jogo mais encoberto ainda, prenderão-no, e cm
estreito cárcere o tiverão annos. Entretanto retirou-
se Antônio d'Albuquerque para Pernambuco, ecomo
ainda quando tivesse sido possível, não fora político
castigar todos os suspeitos de correspondência com o
inimigo, affectou ter Silveira pelo único culpado.
„ , A tomada da Parahyba tornou os Hollandezes se-
Estailo •>

da Parahyba. n | ) o r e s u e ( 0 u a a capitania, que ao iiivaderem elles


o paiz achava-se em estado de crescente prosperidade.
Pelo lado do sertão erão indefinidos os seus limites
e pela costa marcava-os um marco sobre o riacho
Taperabu, partindo com Itamaracá, c outro ao norte
do Camaralubi 1 partindo com o Bio Grande. Ira
Parahyba a única cidade*, tão dispersa a população,
que nem aldeias havia ; mas na realidade pode com
pouca impropriedade a cada engenho chamar-se uma
aldeia, sendo de setenta a cento e ás vezes de mais
o numero de pessoas de todas as cores empregadas
em qualquer dYstes eslabelccimenlos. Não erão os
' (àin aratiha é a ileiiiiiuiiiaeãii que hoje lhe ilaruos.F. P.
1
Nessa epochajião era a Parahvha ti ladc e sim \illa. r. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 285
1634
donos que cultivavão as terras, mas os chamados -
lavradores das cannas, e depois de tirado do assucar
o dizimo d'el-rei, separavâo-se tres quintos para o
senhor do engenho e o resto ficava ao lavrador. A
cidade, chamada N. S. das Neves1, perdeu esta invo-
cação mal applicada n'um paiz onde nunca gelava,
e tomou o seu nome do rio sobre que estava assen-
tada, embora a lisonja hespanhola quizesse pôr-lhe
o de Philippea, e os Hollandezes por egual motivo a
crismassem Frederickstadt. Comparárão-na em ta-
manho a Gertruydenbergh, mas tão bem edificada
não era. As casas feitas de madeira e barro, e caiadas
por fora e por denlro, erão cobertas de folhas de
palmeira. Compunhão-se de dous andares, dos quaes
o debaixo servia para lojas e outros misteres simi-
Ihanles. Também na cidade havia algumas bellas
cazas de pedra, sendo de cantaria as esquinas, soleiras
e hombreiras de porlas e janellas. Coberta de quasi
impenetráveis matagaes que se olhavão como indicio
da riqueza do solo, se via a maior parle do paiz, e
passava como provérbio no Brazil, que terra que bem
se vestia a si, bem vestia o dono.
Sele aldeias de índios havia n'esta capitania. ]ndios n.esla
Pinda-una, que de todas era a perder de vista a capitntania.
'
maior, contava mil e quinhentas pessoas, das outras
1
.Não foi dada similhante denominação pelo motivo que dá Southey,
c sim por ser mui devota para os Portuguezes a invocação de N. s]
das Neves em lembrança d'um antiguo sanctuario que no seu paiz exis-
tia. F. P. i r
286 H I S T O R I A DO RRAZIL.
10:4
nenhuma mais de trezentas. Ainda se apinhavão cm
vastos dormitórios os moradores, ainda itsavão tia
desconfiada moda de porlas baixas, por onde de galas
entravão e sabião. 0 capitão portuguez, que residia
em cada uma, recebia um tostão mensal por Índio,
que alugava para fora, e este ultimo linha cinco varas
de estopa por vinte e cinco dias de serviço. Que admi-
ração pois que elles se reputassem felizes sacudindo
o jugo, e pondo-se debaixo da prolocção dos Hollan-
dezes, que merecidamenle havião ganho cnlrc os
índios algum credito pelo modo porque se portarão
para com os que havião sido eondomnados á escra-
vidão em pena de se lerem ligado com Hendricksz
durante a estada (Peste na Bahia da Traição. As suas
pessoas forão declaradas livres por publico pregão,
ordenamlo-se a quem tivesse alguns ao seu serviço
que em continente os pozesse cm liberdade.
Gemiam aqui escravos alguns Tapuyas do Mara-
nhão, raça pequena e fraca, inimiga do trabalho c
realmente incapaz de supporlar as pezadas tarefa»
que lhe impunhão; o mau traclamenlo o o desespero
J. de l . i e l .
tornava esles infelizes propensos ao fatal costume de
452, ô.
comer terra. Tinhão os Porlugiiczes um anexim brutal
que dizia que quem quizer tirar proveito dos sons
negros ha de nianlel-os, fazel-os trabalhar bem, c
surral-os melhor; e o estado dos sentimentos popu-
lares, quesimilhante rifão indica, mostra quão dura
seria a condição do escravo.
HISTORIA DO BRAZIL. 287
Fr. Manoel de Moraes, Jesuita, que por vezes tinha 103i
«overnado todas as aldeias d'estas capitanias do dui^fjSlíita.
norte, aproveitando a opportunidade que tinha na
conquista dos Hollandezes, renunciou as ordens, e
offereceu-lhcs os seus serviços, exemplo único de tal
apostasia. Segundo elle havia seis aldeias na Para-
hyba ', e egual numero no Bio Grande 2 ; mas tanto
havião soffrido dos Hollandezes e dos hostis Tapuyas,
que não podião dar mais de oitocentos guerreiros,
nem passava de tres mil toda a sua população; em
quanto que Itamaracá e Pernambuco, nada tendo
padecido dos Tapuyas, podião pôr em campo mais de
mil índios, apezar de não contar cada uma mais de
tres aldeias \
1
llopcbi e Para-wassu, ambas entre o Rio Grande eCunhau; Igapua
do outro bando do Rio Grande, sete milhas ao norte da fortaleza;
Pirari, a duas milhas de Cunhau; Vnjana ou Goacano, a sete milhas de
Cunhau para o lado do Rio Grande; Itaipi, sete milhas ao oeste do Rio
Grande.
* Jaraguazu, ou Eguararaca, a tres milhas da Parahyba por terra,
mas sete pelo rio acima, que era o caminho ordinário, que se seguia;
Jaknigh, uma milha alem; Yapoão, Igapuão ou Pontal, a cinco milhas
do forte do norte da Parahyba; Tapoa ou Urekutuwa, a boas dez mi-
lhas da cidade, para as cabeceiras do rio; Inocoça, a quatro legoas cami-
nho de Goyana; Pinda-una, a seis milhas da Parahyba mesma direcção.
0
S. João de Caarese, a cerca de onze legoas de Itamaracá e duas
de Goyana; seiscentps habitantes, entre os quaes duzentos guerrei-
ros; S. André de Itapeterica, a nove milhas de Itamaracá, duas de
Goyana; mil e trezentos moradores, mais de quinhentos guerreiros.
Tabuçurania ou N" S* da Assumpção, a sete milhas de Itamaracá, de
Goyana cinco; seiscentos moradores, cento e oitenta guerreiros. Erão
estas na capitania de Itamaracá. A grande proporção de combatentes,
mostra quão poucas crianças se criavão, ou talvez se deixavão nascer.
288 HISTORIA DO BRAZIL.
I63i. Fez-se com os Parahybanos uma convenção as-
' E siírnada, que pagarião aos Hollandezes os dízimos,
habitantes. O i I I D _
como pagavào anles ao r e i , e os mesmos direitos
q u e sob o antigo r e g i m c n , obrigando-se a Companhia
a n~o lançar, nem na Hollanda nem n o Brazil, novos
impostos sobre os seus bens ou pessoas, nem obrigar
n i n g u é m a pegar en a r m a s c m serviço d'ella. Devia
prestar-se u m j u r a m e n t o d e fidelidade, c se chegasse
u m a r m a m e n t o hcspanhol assaz forte para ocetipar
de novo o paiz, dar-se-ia aos que o tivessem prestado
todo o auxilio para se passarem para bordo dos na-
vios com todos os seus liaveres moveis. 0 vagar com
que vinhão os moradores a tomar o j u r a m e n t o , mos-
trava a pouca vontade com q u e se submetliào, mas
o exemplo da sua submissão levou o povo do Rio
Grande a acceitar as mesmas condições.
cerco posto Seguindo a victoria, reduziu Scbuppc Ioda a capi-
ao ea
xaz™eiii tania de Itamaracá, que fica entre Pernambuco c
Parahyba. Era ja fácil de ver em perigo tanto o ar-
raial do Bom Jesus, como Nazarclh, nem faltou quem
As aldeias de Pernambuco irão Mocni^h, ou S. Miguel, a sete milhas
dOlinda, onde Camarão era cacique dos Potiguares* e Kstevào Tiiiu
dos Tobajares; seisrentos habitantes, cento e setenta bons mosquetei-
ros. Caheté ou V S* de Pajuca, mil e cem almas, qualioi entos guer-
reiros; doze milhas d'Olinda. S. Miguel d'lguna, vinte milhas ao sul
(TOlimla ; setecentas pessoas, duzentos combatentes " .

Philippe Camarão (ou Palig, como lhe chamavam os seus) era nioçaíarn
dos Carijos, e não dos Pilaguares. V. P.
" Inexactos nos parecem todos estes cálculos e erradas as posições lopo-
graphicas. F. P.
c
HISTORIA DO BRAZIL. 289
IO.JÍ
aconselhasse que, abandonado aquelle posto, se eon-
centrasse toda a força n'esle, onde tinha aberto o
mar e podia ser soccorrida. Mas o arraial tinha
ja crescido, tornando as proporções de villa, nem
a Mathias d'Albuquerque lhe soffria o coração des-
truir o que elle mesmo erguera, defendendo-o por
tanto tempo contra um inimigo muito superior em
forças. Nazareth era o posto mais importante, e por
tanto alli ficou com o irmão e Bagnuolo, deixando
Andrés Marim a defender o acampamento com cin-
coenta homens, não contada a milícia da terra. Am-
bos os logares forão accommettidos ao mesmo tempo,
commandando Schuppe em pessoa a divisão que
avançava contra Nazareth e marchando a outra ás
ordens de Àrtizcnsky. Muitos combates se pelejarão
deante do campo, em quanto fazião os seus aproches ,
os sitiantes. N'um d'elies encontrou um mosqueteiro
portuguez o commandante dos Hollandezes : este,
vendo o arcabuz apontado á testa, enlregou-se. To-
mou-lhe o aprezador as rédeas do cavallo e assim o
ia levando; esquecera porem, provavelmente por
mal entendida confiança na honra do seu prizioneiro,
de exigir d'este uma bengala grossa e comprida, que
tanto lhe servia de arma como de bastão de com-
mando, lendo por castão um martello çom uma
ponta afiada. 0 Polaco, aproveitando .o ensejo, des- c»si. i.u*
carregou um golpe no seu aprezador, e cravando ao 3, § 89.
mesmo tempo as esporas no cavallo, escapuliu-se.
n. 10
290 HISTORIA RO BRAZIL.
1634. D'elle contâo os Hollandezes outro facto, que lhe faz
mais honra. Um tiro recebido n'um braço o pren-
dia á cama'n'uma occasião em que os sitiados fize-
rão uma sorlida vigorosa e bem succcdida. Desper-
tado ao estampido do fogo, ergueu-se da cama,
montou meio vestido como estava o cavallo de Sta-
chouwer, que por acaso estava aparelhado e enfrcado
á porta, e correndo ao theatro da acção, com a sua
presença e exemplo animou os Hollandezes de modo
que os Portuguezes forão rechaçados d'um reduclo
'-ít;i" que ja havião tomado.
, ..piiuia o De dia e de noute mantinhão os sitiantes um fogo
incessante contra o acampamento. Chovião sobre elle
bombas e granadas, algumas das quaes quasi enve-
nenaváo os Portuguezes com o seu nocivo fumo. A
mesma impossibilidade de escapar a estes terríveis
projectis, ensinou aos sitiados como tornal-os menos
destruidores; apenas cahião deitavão-lhes por cima
couros molhados, que ou apagavão a media, ou que-
bravão a força da explosão. Também abrirão cavas,
em que punhão os feridos, e depositavào em segu-
rança a pólvora, servindo a terra (Festas excavaçòes
para levantar novas obras ao passo que ião sendo
demolidas as antigas. A final principiarão a faltar
munições e mantimenlo; do apuro em que se viáo,
mandarão recado a Mathias d'Albuqucrque, que não
sabia como valer-lhes, em poder do inimigo o ter-
reno entre Nazareth o o arraial, e elle sem tropas
HISTORIA DO BBAZIL. 291
bastantes com que forçar a passagem. Forão convi- *654-
dados para este serviço os moradores mais próximos,
nem deixou de haver alguns que o emprehendossem,
perigoso como era. Não havia outro meio senão con-
duzir as provisões ás costas de negros, e os Hollan-
dezes tinhão comminado pena de morte contra quem
tentasse abastecer o acampamento, e promettido a
liberdade a todo o escravo que denunciasse simi-
lhante propósito. Ja havião suppliciado um Portu-
guez por assim ter cumprido o seu dever para com a
pátria. Marim alguma vingança tirou d'este assassi-
nato, executando tres pessoas convictas de darem
avizo ao inimigo. Em taes circumstancias impossível
era aguantar por muito tempo, e apoz tres mezes de
cerco entregou-se o arraial do Bom Jesus, com con-
dição de que a guarnição sahiria com as honras mi-
litares, e teria passagem livre para as índias hespa-
nholas.
Exigirão-se condições honrosas para a milícia da Nefariu
terra. Schuppe, que viera assistir á capitulação, ne- ^ ^ t o s '
nhumas quiz conceder, dizendo que erão desneces-
sárias, tornando-se os habitantes subditos da Hol-
landa, cujo dever e interesse era protegel-os e
concilial-os por todos os meios possíveis. Apezar
d'isto commettérão os conquistadores as mais atrozes
crueldades contra esta brava genle, sendo os que
linhão alguma couza de seu, martyrizados até paga-
rem integralmente a somma que se lhes marcou,
292 HISTORIA DO BRAZIL.
1031 e m resgate de suas vidas, a que não sei porque ar-
gúcia de lógica marcial, se dizia haverem perdido o
direito como traidores ao principe dOrange. D'esta
forma * levantarão os Hollandezes a melhor de vinte
e oito mil coroas, e foi assim que no oriente c ocei-
dente tornarão tão infame a sua historia, e detestá-
veis os seus nomes, como na própria pátria forão
gloriosos os seus feitos, e dignos de serem recorda-
§ ooo-'-! dos pela mais remota posteridade 2 . Forão arrazadas
l l
:ast. Lus.
">, § 80-92. as fortificaçòes do acampamento do Bom Jesus.
Tentativas Entretanto estava a outra divisão do exercito hol-
le «oceorer

NaA.reth. ] an dez postada no Engenho dos Algodões, a uma


legoa do forte de Nazareth, donde podia dominar o
paiz e corlar ao forle e aos reductos todo o soccorro,
esperando assim reduzil-os com pequena perda. Ma-
thias d'Albuquerque estabelecera o seu quartel ge-
neral em Vilh Formosa, logar aberto a seis legoas
' Kstã visto que os llollandives de nenhuma crueldade fazem men-
ção. Mas, secundo referem, devião os habitantes render-se á di.scriejo.
a Alie inwoondcrs sullen hun geven in ouse macht, om mel lutcr le
doen ais hei mis sal ghelieven, » palavras que conferem ampla li-
cença aos vencedores. J. de Laet acerescenta, que e.sles prizioneiros
forão mais de duzentos em numero, fora suas mulheres e íilhos, e
que se resgatarão a si e aos seus bons por ciumenta mil gulden *.
- Fácil é de \cr que o so o ciiiine d'um Inglez contra os seus rivaes
nas índias poderia dictar a Southev taes expressões, r . P.
Com energia icpclle XeUelier as (traves ncciisa<;òes que aos seus com-
patriotas faz Southey e sii*le.iit.i que alguns excessos que por esla oecasiàu
se coininelleram foram obra dos mercenários de todas as nai;òes da Europa.
Incünauio-iios pela asserçãu do historiador hollandez, sempre tio impar-
cial c bem informado r . I'.
HISTORIA BO BRAZIL. 293
para o sul, d'onde destacou Bagnuolo vinte e cinco .1634.

legoas mais para o sul, a defender e fortificar Porto


. Calvo. Villa de bastante importância era esta pelas
muitas fazendas e pastos dos seus arredores, e fora
mui perto d'ella, em Barra Grande, que havião des-
embarcado os reforços vindos na armada de Oquendo.
Tinhão os Hollandezes segurado este ultimo logar
como primeiro passo para extenderem n'esla direcção
suas conquistas, e os moradores de Porto Calvo, con-
tando ja com cahirem-lhes nas mãos, estavão em
segredo arranjando-se com elles. Era necessário, se
tanlo fosse possivel, manter este logar; comtudo mal
podia Albuquerque enfraquecer-se destacando tão
grande força como para isso era precizo. Perto estava
o inimigo e era mister prover-se a si mesmo de mu-
nições e metter provisões no forte. Antes de fugirem
tinhão alguns habitantes da Parahyba occultado dous
saccos de munições; mandárão-se por elles alguns
Índios, mas forão apanhados e mortos pelos Hollan-
dezes. Uma única arroba de pólvora era quanto
restava ainda ao general, que para da sua própria
gente esconder esta mingoa, encheu de areia alguns
barris, pondo-lhe a guarda do costume. Da gente dos
campos mais visinhos se formarão sete companhias
de emboscadas, dê quinze homens cada uma, excepto
uma, que, composta de treze irmãos, do seu nome
se chamava dos Baptistas. Por terra nenhum soccorro
podia vir a Nazareth; por todas as vias o tentou Ma-
294 HISTORIA DO BRAZIL.
mi
- thias d'Albuquerque obter todas egualmenle balda-
das. Mandou índios com farinha ás costas, ou com
junctas de bois, que mais fáceis se guiavão do que .
nenhum outro animal; tomarão os mais escusos des-
vios, mas de nada lhes valeu, tão bem batião os Hol-
landezes o campo em todas as direcções. No rio Seri-
nhaem, perto da Villa Formosa, havia tres barcas
desmanteladas; Albuquerque apparelhou uma para
o mar, e carregou-a de provisões, dando o commando
a Diogo Bodrigues, que viera com noticias de Naza-
reth. Deu este á vela ao pôr do sol, e chegou a salva-
mento á meia noute, tendo audazmente passado por
uma porção de cruzadores hollandezes. Sahir do
porto era impossível, bem que a barra estivesse ainda
em poder dos Portuguezes. Bodriguez pois, com risco
imminente, voltou por terra a Serinhaem, melteti-se
na segunda barca, que entretanto se reparara, e car-
regara. Descobrindo-o, o perseguiu o inimigo, mas
elle, não abandonado ainda da sua boa fortuna,
varou a embarcação em terra perto da barra, em
logar onde da carga nada foi perdido.
Abandonado Sabido dos Hollandezes que eslava Bagnuolo a for-
u
'orto Calvo, *

Bagnuolo tificar Porto Calvo, desembarcou Lichthart, que com-


»s ff/goas. mandava as forças navaes, parte da sua gente, e com
um destacamento da guarnição *da Barra Grande
marchou contra elle, na esperança de tomar as obras
antes de concluídas. Avizado da vinda do inimigo,
sahiu-lhe Bagnuolo ao encontro com toda a sua força
HISTORIA DO BBAZIL. 295
e parte dos moradores d'aquelles em quem mais I65Í.
podia fiar-se, ou antes d'aquelles de quem menos
desconfiança linha, onde erão suspeitos todos. Nem
era extranho que não tendo os habitantes do paiz fé
na protecção do general, a não podesse ter este na
lealdade d'elles. Os guias o levarão errado a uma
situação onde uma parte apenas da sua força podia
enlrar em acção, e immedialamente-derrotado, leve
de retirar-se para a Lagoa do Norte, dezanove legoas
mais ao sul, tomando tão prompto esta resolução
que se rosnou ter elle, antes de marchar de Porto
Calvo, ja assentado em abandonal-o, devendo-lhe o
recontro com o inimigo servir meramente de pre-
texto. Não lhe picou Lichlhart a retirada, tractando
os Hollandezes primeiro de saquear o logar depois
de segural-o. Fortificarão duas das casas maiores e a 1035.
egreja nova, incluindo nas linhas d'uma fortaleza
regular a antiga, que ficava n'uma eminência; deixa-
rão quinhentos homens de guarnição na sua con-
quista e assim se tornarão senhores d'este importante n. n•eire.
districto. § G41-2.

Em seguida se fez uma tentativa de desalojar Ma-


thias d'Albuquerque, único estorvo ao cerco de Naza-
reth. Accommetteu-Ihe o inimigo o posto avançado,
composto de cento e trinta homens. Avançarão elle e
o irmão a soccorrel-o com outra lanta gente, que era
toda a força que lhes restava, mas esmagados pelo
numero tiverão de retirar-se sobre o rio. Pcrseffuirão-
296 HISTORIA DO RRAZIL.
16.3 nos os Hollandezes, até que os Portuguezes, nem na
fuga vendo a salvação, com a coragem do desespero
de novo fizerão frente ao inimigo, e, desbaratando-o,
iierois.no recuperarão o ia perdido posto. NYsln acção cahiu
r
.le D. Maria J 1 1 •
<iesonza. Estevão Velho, filho de D. Maria de Souza, uma tias
mais nobres damas da família. Ja n'esla guerra per-
dera ella dous filhos e o genro, e ao cliegar-lhe a
noticia d'esia nova desgraça, chamando os dous que
ainda lhe restavão, dos quaes um de quatorze annos
deedade, e o outro um anno mais moço, disse-lbes:
« Hoje foi vosso irmão Estevão morto pelos Hollan-
dezes; a vós agora toca cumprir o dever de homens
honrados n'uma guerra cm que se serve a Ileus, ao
rei e á pátria. Cingi as espadas, e quando vos lem-
brar o triste dia em que as pondes á cincta, inspire-
vos elle, não magoa, mas desejo de vingança, que
quer vingueis vossos irmãos, quer succumbaes como
elles, nem degenerareis dYdles, nem de mim. » Com
esta exbortação os enviou a Mathias d'Albuquerque,
pedindo-lhe que por soldados os contasse. De tal
tronco não podia desdizer a prole, e de tal màe se
mostrarão dignos os filhos.
(Jualro vezes tentara a terceira barca passar do
Tomada _ _ '
de .\:i7,n-eih. Serinhaem a .Nazareth, e outras lanlas tivera de re-
troceder, mas a final logrou o intento, lim navio
enviado das Alagoas foi capturado. Outro meio de
mandar provisões não restava agora alem das janga-
das, cada unia das quaes levaria quando muito dous
HISTORIA DO BRAZIL. 297
alqueires de arroz; vinte chegarão a salvo. A grande 1635
apuro se via entretanto reduzida a guarnição; alguns
tinhão desertado, pela maior parte Napolitanos, para
os quaes, sem interesse na causa que defendião, soldo
hollandez ou soldo hespanhol era tudo um. Os que
se conservarão fieis supportárão com heróica constân-
cia as privações, morrendo muitos de inanição no
seu posto. É sempre penoso ler taes soffrimentos,
mas dobradamenle o é quando d'elles nenhum resul-
tado se colhe. A's Alagoas chegarão vindas de Por-
tugal duas caravelas com reforços, e esperança dou-
tros muito maiores, que ja tinhão ficado prestes a
largar. Mandou Bagnuolo esta nova a Mathias d'Al-
buquerque, aconselhando-o que, abandonado o forle,
viesse reunir-se a elle, sendo aclualmente aquella
posição a melhor para o quartel general, próprios os
portos e fértil o paiz. Mathias reuniu um concelho
de guerra : opinarão os officiaes unanimemente que
na presente conjunctura nada mais avizado podia
fazer-se, e apenas sabida esta resolução, capitularão
o forte e a barra com as mesmas condições que o B. Freire.
§ 649-50.
acampamento1.
1
Rendida a constância aos pés da impossibilidade, diz Raphael
de Jesus, 5, § 95. t'm artigo da capitulação foi que os padres sahi-
i ào com suas pistolas nos cinctos como soldados. / . de Laet, 471.
298 HISTORIA DO RRAZIL.
1655.

CAPITULO XVI

Emigração de Pernambuco. — Ucstauração de Torto Calvo e supplicio do


Caiabar. — Envião-se reforços ao conluiando de Roxos, que é desbara-
tado e morto. — Succcdc no commando Bagnuolo, que fnt r«»i felici-
dade uma guerra de devastação. — Chega Mauritz, conde «le Na^sau,
como governador general dos Hollandezes; sabias medidas que toma;
persegue os Portuguezes até ao rio de S. Francisco, e Bagnuolo, aban-
donando a capitania de Sergipe, retira-se para a Bahia.

„ . . Fazendo-os saber a sua resolução de evacuar


Knngraçao
Pernambuco, aquella parte da capitania, offereceu Mathias d'AI-
buquerque aos moradores de Pernambuco escoltar
os que quizessem emigrar. Foi infinitamente maior
o numero dos que preferirão ficar debaixo do domí-
nio dos conquistadores. A' ingratidão não menos que
ao deleixo da corte de Madrid deverão isto os Hol-
landezes. Antônio Bibeira de Lacerda cahira no campo
da batalha, e nada se havia feito pela sua família :
caso vulgar era este, mas sendo Lacerda uma das
principaes pessoas da provincia, e uma das mais es-
timadas também, d'este exemplo inferirão os que
andavão em menor estimação quão pouca esperança
devião ter de recompensa. Tal foi a razão que mui-
tos derão da sua decisão de se submetterem aos
Hollandezes, preferindo todo e qualquer governo ao
HISTORIA DO BRAZIL. 299
ingrato da Hespanha. Apezar de tudo ainda emigra- 1635
rão umas oito mil pessoas, entre as quaes a viuva de
Lacerda. Com seus bens moveis, seu gado e seus
negros fazião todos uma grande comitiva. Precediào-
na sessenta índios a abrir caminho; seguia-se um
corpo de tropa, vinhão depois os emigrantes, e, pro-
tegendo-a, fechava uma força militar a retaguarda.
Atraz de todos vinha o leal Camarão com oitenta dos
seus. Digno é de notar-se que os dous homens, que
até agora mais se havião distinguido da banda dos
Portuguezes, erão este cacique Ca rijo, e Henrique
Dias, um negro, crioulo e originariamente escravo,
que á testa d'um corpo dos da sua côr, em todas as
occasiões se assignalava. Para honra dos Brazileiros,
todos aquelles d'entre elles que mais terras possuião
em Pernambuco, as abandonarão agora, preferindo
o desterro ao jugo exlrangeiro; queixavão-se da Hes-
panha que os esquecia, nào da própria má fortuna :
esta com resolução a supportavão, como homens
dignos de a melhorarem. Foi uma triste transmigra-
ção : crianças nascião nas matas durante a marcha,
e nas selvasficavãoenterrados os fracos e os velhos. § 651-7.'
Perto de Porto Calvo levava o caminho, nem era Trai .o de
de esperar que a guarnição hollandeza deixasse pa.ssar SocUom oTa
. • , 1 11 • Hollandezes.
um tal comboi, sem tentar esbulhar estes míseros
emigrantes do pouco que salvavão. Sebastião do
Souto, natural d'aquelle logar, e um dos que se ha-
vião submetlido aos conquistadores, julgou favorável
500 HISTORIA DO RRAZIL.
16ÕÕ. occasião esta de servir os seus conterrâneos, e quando
Mathias dWlbuquerque fez alto a curta distanciada
villa, para repellir qualquer surtida que podesse
fazer-se, pondo Õ60 soldados com alguns índios de •
emboscada, offereceu-se aquelle para sahir a reco-
nhecer. Picard, governador hollandez, deixou-o ir.
Montou Souto a cavallo, approximou-se das sentinc-
las portuguezas a ponlo de expòr-se ao seu fogo, e á
vista d'ellas deixou cahir uma carta. Foi esta levada
ao general, e dizia que Caiabar chegara na véspera
a Porto Calvo com um reforço de duzentos homens,
mas que estivessem de sobreavizo os Portuguezes,
promptos a aproveitar o ensejo de que o auetor da
g658-9. , n i ss jva a todo o risco os informaria.
nesuuração Conseguido assim o seu fim, voltou Souto a galope,
Porto calvo. e disse a Picard que não era mais do que uma mão
cheia de soldados alli postados para o impedirem de
oecupar o passo, c aprezar toda a riqueza movei de
Pernambuco. Fácil se deixou persuadir» o comman-
dante, e sahiu pela volla das tres horas da tarde com
o que se lhe figurou um troço de gente bastante,
12 de juiho levando Souto na sua companhia. 0 atraiçoado con-
selheiro abandonou-o, reuniu-se aos Portuguezes
emboscados, e com tal vigor deu sobre os Hollan-
dezes que estes fugirão, deixando cincoenla no campo.
Tão de perto os perseguirào os vencedores, que d'en-
volla com elles entrarão as portas da principal forta-
leza, que loniáião apoz espantosa matança, ficando
HISTORIA DO B B A Z I L . 501
1005.
vivos apenas quarenta e cinco homens d'uma guar-
nição que contava cento e dez. Entretanto chegou
Albuquerque com o reslo das suas tropas, e, pen-
sando completar a victoria, passou a investir a Egreja
Nova e as duas casas fortificadas. Crescia rápida a
escuridão : exaltados com o triumpho avançarão im-
prudentes os Portuguezes e perdérão_cerca de oitenta
homens. Não desanimarão porem, e no correr da
noute segurarão Iodos os passos por onde poderia o
inimigo mandar por soccorros, alias estaria alli em
qualro dias força muito superior ás d'elles, e, sa-
bendo que os Hollandezes de necessidade havião de
render-se dentro em pouco por falta de água, poze-
rão-lhes sitio. Sobre fortes pilares de pau estavão
edificadas as casas, provavelmente assim elevadas
para ficarem fora do alcance das inundações. Ao ap-
proximarem-se assaz os Portuguezes, temerão os
Hollandezes não fossem aquelles fazer-lhes fogo de
baixo através do soalbo, e, para conjurar o perigo,
lançarão sobre o pavimento terra que amortecesse as
balas. Na sexta noute assaltarão os Portuguezes a
casa mais pequena, e de dentro os que escaparão,
refugiárão-se na outra, a que também Picard e Caia-
bar se acolherão da Egreja Nova, concentrando todo
o restante da força ifesta que era a posição mais forte.
Mas era impossível manter-se sem água, e Caiabar
percebeu agora chegara a sua ultima hora. Offerece-
rão-se condições honrosas aos Hollandezes, insistindo
302 HISTORIA DO BRAZIL.
1655 porem na entrega d'este desertor ; debalde lhe dizião
os companheiros que morrerião antes de n'isto con-
sentirem, bem sabia elle que não era couza que se
acreditasse nem esperasse. Bespondeu pois que era
homem perdido, mas que a misericórdia de Deus o
punia agora, para o não condemnar eternamente, e
aconselhou que se acceitassem os termos propostos,
que erão serem os invasores remettidos para a lles-
panha e d'alli para a Hollanda. Sobre estas condições
capitularão 080 homens, numero maior do que o
dos sitiantes. De boa vontade os houvera trocado Ma-
thias dWlbuquerque, mas o general hollandez re-
cusou, dizendo que melhor do que os Portuguezes
podia prescindir de gente, nem precizava d1 esta que
tão mal se comportara.
suppiitm N'esta villa tinha nascido Caiabar; alli commel-
de Caiabar

terá antes alguns crimes atrozes ', e alli terminou a


sua carreira, sendo enforcado, e a sua cabeça e quar-
tos expostos na palissada da fortaleza. Com tanta
paciência recebeu a morte, dando tantos signaes de
sincera contrição de todos os seus malefícios, acom-
panhada de tão devota esperança de perdão, que o
sacerdote que lhe assistiu aos últimos momentos
nenhuma duvida conservou sobre a salvação do pa-
decente. O con fosso r foi Fr. Manoel do Salvador,
1
Os mais graves chrouistas ( nino linto Freire e Fr. José de S. The-
reza, não faliam nesses crimes atrozes attnlniiilos a Caiabar pelo Ytt-
leroso Liteideno e seu compellador o Caslrioto Lusitano. V. I'.
HISTORIA DO BRAZIL. 503
que mais tarde tomou não vulgar parte n'esta longa 1635.

contenda, de que nos deixou singular e interessan-


tíssima historia. Pediu o penitente que os bens que
linha no Becife, e o soldo que lhe devião os Estados,
fosse tudo, pagas as dividas, entregue a sua mãe
Angela Alures, pedido que fielmente foi cumprido
pelo bom do frade. Interrogado se sabia d'algum
Portuguez que estivesse em traiçoeira correspondên-
cia com o inimigo, respondeu Caiabar que sobre
este capitulo muito sabia, não sendo das mais baixas
as pessoas implicadas, mas que a tal respeito queria
consultar com o seu confessor, não desejando gastar
o pouco que de vida lhe restava em fazer aceusações
e depor perante um escrivão, quando tinha de arre-
pender-se de seus peccados e pôr-se bem com Deus.
0 que elle revelou a Fr. Manoel foi communicado
ao general, que por mais prudente teve nada fazer
publico l .
A crença de que tudo isto suecedera para a salvação
eterna de Caiabar, foi confirmada pela lembrança
d'um caso notável, a que elle uma vez devera a vida.
Logo depois da sua deserçãofizera-lheMathias d'Al-
buquerque grandes offerecimentos para que aban-
donasse a parcialidade do inimigo; a resposta inso-

1
Julgamos conveniente prevenir o leitor contra esta historieta con-
tada pelo próprio confessor, Fr. Manoel de Salvador, que soh o pseu-
donymo de Fr. Manoel Callado foi o auetor do citado Valeroso Luci-
deno. F. P.
504 HISTORIA DO RRAZIL.
655
> - lente do mulato exasperou o general, que se abaixou
então a recorrer a meios indignos e detestáveis de
tirar vingança, servindo-se de Antônio Fernandez,
primo de Caiabar, que, como levado pelo exemplo
d'este, devia passar-se para os Hollandezes, e alli es-
preitar occasião de assassinal-o. Em conseqüência
d'isto Fernandez, encontrando Caiabar n'uma de
suasalgaras, ou fossados, o convidou com a voz e com
os gestos a que se detivesse, recebendo-o em sua
companhia, e correu pelo valle abaixo a dar com elle
no villáo intento que trazia. Enredou-sc-lhe o cinctu-
rão como corriaca,- sahiu-lhe da bainha a espada, e
escorregando-lhe um pé ao mesmo tempo, cahiu com
o peito sobre a ponta da arma, morrendo instantanea-
mente. Acreditou-se então que Caiabar assim fora
b
é 666^7? preservado para ser o ílagello de Pernambuco, al-
f,, §102.' cançando-o o castigo, apenas concluída a obra l .
Arrazadas as íbrlificações de Porto Calvo, enter-
Betira-sc •« '
1
"buquerque " rou Mathias d'Albuquerquc na floresta as peças que
iiãgoas. alli tomara. Depois proseguiu na marcha para as
Alagoas, onde se dispersarão os emigrados, tomando
cada um para onde melhor lhe parecia, uns para o
Bio de Janeiro, o maior numero para a Bahia. De-
pressa correu Schuppe a soccorrer o posto tão ines-
peradamente investido. A perda alli soffrida c a vista
1
Diz-se de Caiabar que erão taes a sua forca muscular e agili-
dade, que tomado pelas pontas um touro, o derribava e subjugava.
; . de Laet, 478.

/
HISTORIA DO BRAZIL. 305
da cabeça e quartos de Caiabar empalados na palis- 1635-
sada, o exasperarão. Mandou encerrar estes restos
n'um caixão, enterral-os na egreja com honras mili-
tares e vingar-lhes a morte, passando á espada quanto
Portuguez se encontrasse nas matas. Becorrérão os
aterrados moradores a Fr. Manoel que intercedesse
por elles, o que mais fácil se lhe tornava, por fallar
Artiszensky, como Polaco que era, mui corrente-
mente o latim. Pela sua intercessão foi com effeito
revogada a ordem, e o povo voltou a suas casas, sub- Valeroio ,
mettendo-se aos conquistadores. De quatrocentos sol- l'l"ࣙ'
dados afora índios se compunhão agora os destroços
das forças portuguezas reunidas nas Alagoas, e com
elles se resolveu fortificar o estabelecimento do sul
como o que por natureza era mais defensável, aguar-
dando alli reforços. Quinze dias não erão ainda de-
corridos quando veio Artiszensky com um grosso
destacamento a tomar posse de Peripueira, logar
alto sobre a costa. Alli plantou um reducto no viso
da eminência e outro sobre a praia, pensando cortar
assim as communieações entre o general portuguez
e o povo dos campos, mas o único resultado foi abrir-
se um caminho pelo sertão.
Entretanto tal uso faziâo do Becife os Hollande- «eceios
zes, que chegarão a sobresaltar a corte de Madrid hespanhofa.
apezar da sua apalhia. Alli "linhão creado arsenaes
navaes de tal magnitude, que ja não era de mister
;ipparelhar na Hollanda essas armadas destinadas a
n. 20
300 HISTORIA DO BRAZIL.
1635. interceptarem os galeões da índia; alli se podião
construir e esquipar. Cornelis ,Iol, que ja adquirira
grande nomeada com os muitos cruzeiros leliz.es que
emprehendera, sahindo da Hollanda n'um so navio,
tornou no Becife o commando de quatorze, abaste-
cidos para sele mezes. Com esla força de novo se
' apoderou da ilha de Fernào de Noronha, lendo a
pequena guarnição, alli posta pelos Portuguezes,
0
"' ['.'íw.' ' sustentado um cerco de doze dias. Não era sem im-
portância esta ilha como logar para refrescar, sendo
escassa no Becife a água doce. Feito isto, velejou a
interceptar a frota do México, que encontrou no
canal deBahama : alguns de seus capitães, que não
gostavão de servir debaixo d'elle, cumprirão mal o
seu dever, pelo que forão despedidos cinco o decla-
rados infames. Graças ao mao comportamento dos
seus subalternos, levou Jol a peor, mas o risco im-
minenle em que se havião visto estes navios carre-
gados de ihesouros, fez sentir a sua imprudência á
corte de Madrid, de modo que o próprio rei ordenou
aos seus ministros que da restauração de Pernam-
buco fizessem seu particular cuidado. A primeira
pessoa de quem esles naturalmente se lembrar,»»,
foi de D. Fadrique de Toledo, que ja restaurara
S. Salvador, e convidárão-no a tomar o commando.
Tinha D. Fadrique alguma reputação que perder,
seguira attento o curso da guerra, e conhecendo o
estado do paiz e a força do inimigo, respondeu que
HISTORIA DO BRAZIL. 307
com doze mil homens bem providos de tudo se en- 1633-
carregava da empreza, mas não com menos. Irritado
com o reparo que esta resposta encerrava, o mandou
Olivares metter na cadeia1 onde faleceu. Becorreu-
sc em seguida a D. Philipe de Silva, que respondeu,
que absolutamente ignorante das couzas do mar,
era impróprio para o commando; e esta excusa se
lhe acceitou, embora devesse parecer que com a no-
meação d'um bom almirante ficava sanado este único
defeito. Deu-se o commando a final a Antônio de.
Ávila y Toledo, marquez de Vaiada, e em quanto
maiores forças se apercebião, mandou-se D. Luiz de
Boxas y Borja adeante como mestre de campo gene-
ral com mil e selecentos homens, a render Mathias
d'Albuquerque. § 670-5!*
Foi u m poderoso armamento este, composto de Che ali0Eíli
trinta velas ás ordens de D. Lopo de Hozes e D. Bo- „«££,.
drigo Lobo, que em S. Salvador havião de desembar-
car Pedro da Sylva, novo governador general, e
receber a bordo o seu predecessor Oliveira, devendo
este assumir então o commando e expellir de Curaçoa
os Hollandezes. Assim tivessem estes commandantes
possuído talentos sufiicienlesou mesmo zelo bastante,
que grave damno poderião haver causado aos Hollan-
dezes, infligindo-lhes talvez até um golpe mortal!
Nove navios carregados de productos do Brazil aca-
1
Ha equivocaçào do auctor quanto ao lugar da prisão de D. Fadri-
que, que foi encerrado n/um torre e não na cadeia. F. P.
308 HISTORIA DO RRAZIL.
1635. R av5o d e U ar á vela para a Hollanda; estes bem
os podião elles ter capturado, mas por que o piloto
obstinada e falsamente lhes dizia que os seus pró-
prios vasos demandavão águas mais fundas, desisti-
rão da caça, fazendo-se na volta do mar, quando a
terem inlrepidamente desembarcado e investido o
Becife, tel-o-ião necessariamente tomado, achando-se
então como se achava a força do inimigo derramada
por cem legoas de costa, de Peripueira até ao Potengi.
So duzentos homens tinha Schuppe comsigo na ca-
pital d'estas conquistas, e ao ver acercar-se a armada
hespanhola logo se deu por perdido. Os moradores
portuguezes, contando ja ao apparecer tão grande
frota ver desembarcar os seus conterrâneos, estavão
promptos a levantar-se contra os conquistadores,
chegando alguns a tomar armas. Mas os generaes,
nem sequer aguardando informações, governarão
para o cabo de Saneto Agostinho, onde receberão as
primeiras novas de terra, levadas por um homem
que se aventurou a sahir ao mar n'uma jangada.
Tolheu-lhes alli o tempo o desembarque, e IIozcs não
quiz pôr as tropas em terra no rio Serinhaem, em-
bora os seus próprios officiaes o conjurassem a fazel-o,
e lh'o aconselhassem Mathias d'Albuqucrque c Ba-
gnuolo, que mandarão a bordo Martim Soares Mo-
reno a reforçar o que por escripto diziao. Obstinado
na sua opinião, seguiu Iíozcs para a barra das Ala-
goas, e alli na Ponta de Jaraguá desembarcou Boxas
HISTORIA DO BRAZIL. 309

com o seu material e tropas. Duarte d'Albuquerque 1635


recebeu ordem de conservar a auetoridade civil em
Pernambuco, de que era senhor, e seu irnuo Mathias
chamado á corte exactamente quando tinha adqui-
rido a experiência de que totalmente carecia ao che-
gar, voltou á llespanha para com arguições ser re-
cebido por um ministro cujo proceder fora mil vezes
peor que o d'elle'.
Mal assumiu o commando, preparou-se Boxas a v^t^f0
marchar contra o inimigo. Fallava dos Hollandezes co™taen-
com desprezo, pensando inspirar confiança aos sol-
dados, fazendo-os crer que so aos erros e incapaci-
dade do antigo commandante se devião os soífridos
desastres; se era artificio, era pouco generoso, e se
elle realmente sen lia a confiança que inculcava,
mostrava uma presumpção de que nada bom havia
a esperar. Bagnuolo o aconselhou, que mandasse
adeante um destacamento; outros representavão que
era indispensável deixar atraz uma força considerável
que guardasse o material, achando-se o inimigo tão
perto por terra e com doze navios á vista. Forão ati-
rados ao vento esles conselhos. Consumidas erão ja
as provisões trazidas da Hespanha, e depósitos, donde
supprir-se não os havia: a muilo custo achou o com-
missario traças como arranjar rações para oito dias.
Àndavão os Hollandezes um tanto inquietos por
1
Como ja fizemos ver nada tinha de reprehensivel a condueta de
Mathias dWlhuquerque. F. P.
TIO H I S T O R I A DO R R A Z I L .
1635. suas conquistas. Muitas vozes havião os militares
proposto que se expellissem das Alagoas os Portugue-
zes, que nunca os deixarião estar seguro por terra
emquanlo fossem senhores d'aquella posição. Mas
exigia isto crescido numero de embarcações miúdas,
que coslumavão andar empregadas alhures, com
maior proveito dos particulares, e menor vantagem
para o publico serviço. Com grande desgosto do
exercito se havia pois dado de mão á einpreza, e so
agora de tal descuido se percebião as perigosas con-
seqüências. Derão-se ordens para segurar melhor o
Forle Orange cm Itamaracá c o Cabedello, mas o
perigo eslava mais perto da sédc dos domínios hol-
landezes, e em máo tempo rebentou, quando com a
demora de remessas da Hollanda estavão mal provi-
dos os depósitos, e havia mais de duzentos soldados
inválidos por causa das tliiguas.
Com a chegada d'um armamento, de que por
muito o haverem esperado ja principiavão a desespe-
rar, cobrarão animo os Pernambucanos. Já o povo
da Várzea não trazia gado e farinha de mandioca cm
pagamento do tributo em espécie que d'clle se exigia.
E onde havia pouco so encontravão a forçada submis-
são de obsequioso servilismo recebião agora os inva-
sores respostas altivas e decididas. Muitos Hollande-
zes forão mortos nas casas dos Portuguezes, outros
abertamente nos campos c pelas estradas. O povo de
Serinhaem assassinou os doentes que alli tinhão
HISTORIA DO RRAZIL. 311
ir>ã
ficado. Interceptavão-se cartas, e prendião-se padres -
e negros, empregados como agentes da correspon-
dência que fervia agora entre o exercito e os Portu-
guezes dentro do território hollandez. Severos casti-
gosseimpunhão, mas o rigor em taes casos augmenta
o resenlimento da oppressão e da injustiça, e deses-
perando de por outros meios porem cobro a esta
correspondência, propozerão Artiszensky e Stack-
houwer ao concelho assolar o paiz entre Peripueira
e Porto Calvo, arrancando a mandioca, queimando
as cannas de assucar, destruindo os engenhos e ha-
bitações, removendo os moradores com seus gados
e bens moveis, e eslabelecendo-os em casas con-
fiscadas e terras abandonadas. Àpprovou-se a me-
dida, e ás portas das egrejas e engenhos se afüxárào
editoes convidando todas as pessoas a obedecerem
dentro de tres semanas a esla ordem de compulsória
1
J. de laet.
4804
transmigração. '
c ba
D'esta vigorosa medida nasceu uma conseqüência |^t u u££
que não tinha sido mettida em conta. Vendo se pri- pelas maU,s-
vados dos recursos que os seus conterrâneos lhes
teriào proporcionado no paiz aberto, resolverão os
Portuguezes marchar através das selvas por caminho
que se reputava impracticavel e jamais havia sido
tentado. Souto, que depois das suas proezas em Porto
Calvo de continuo molestava os Hollandezes devas-
tando-lhes as terras que possuião, foi agora mandado
adeante com vinte Portuguezes e alguns índios pou-
512 HISTORIA DO BRAZIL.
1G35>
cos a abrir caminho e tirar informações. Selecentos
homens ficarão na Lagoa' ás ordens de Bagnuolo, e
com dobrado numero se poz Boxas em marcha no
idejan.i636. principio do anno. Cada homem levava a um hombro
o mosquete e ao outro as provisões, indo carregados
de munições os índios. Um d'estes alliados deixou as
fileiras em busca de alimento e Boxas o mandou arca-
buzar: foi o primeiro caso de tal disciplina no Brazil,
e assim o consignão os historiadores portuguezes
P
B. Freire. '
§680-93. mais para horror do que para exemplo.
Grandes difficuldades havia que vencer; em muitos
logares não podião passar os cava 11 os, e tinhão os
peões de marchara um de fundo. Mas era-lhes favo-
rável a estação secca, tornando vadeaveis os panta-
naes que alias ninguém teria atravessado. Não lardou
a chegar recado de Soulo de haver Schuppe oceu-
pado Porto Calvo com seiscentos homens. Tinha este
commandante ameaçado Fr. Manoel do Salvador de
mandar enforcal-o, quando foi a interceder pelos
moradores, e agora Une razões de desejar ter antes
cumprido a ameaça. Fosse o que fosse, como cremita
Paulista era Fr. Manoel um Portuguez ás direitas.
Apenas se soube que estavão a chegar reforços, pe-
garão em armas elle e o seu rebanho, reunindo-se
setenta e seis homens ao todo, munidos de escopetas,
espadas e escudos. De dia comião e bebiào em casa

' Mias Alajoa-.


HISTORIA DO BRAZIL. 313
1636
do frade, de noute armavão ciladas ao inimigo, -
matando assim vinte da guarnição, afora seis, que
aprizionárâo. Em despique lançarão os Hollandezes
fogo a uma casa, em que arderão duas crianças. No
dia seguinte dizia o frade missa quando viu uma par-
tida de sele Hollandezes descer um outeiro a alguma
distancia, e concluiu o serviço por uma practica em
que convidava os ouvintes a não terem misericórdia
com aquelles homens, recordando unicamente as
duas crianças. Effeclivamente foi toda a partida apa-
nhada e morta. Com proezas como estas se entreteve
o frade cerca de tres semanas antes de receber auxilio
algum. Foi então que Francisco Bebello, que em
muitas occasiões se havia distinguido no correr d'esta
guerra, foi mandado adeante a deter o inimigo em
Porto Calvo emquanto não chegava o corpo principal
do exercito. Andava este homem costumado a com-
mandar partidas pequenas, e agora quando lhe dis-
serão que levasse a força que quizesse, tomou duas
companhias apenas. Tão bem forão tomadas estas
medidas, que Schuppe, que so viera a Porto Calvo
para em pessoa ver assolar o paiz, por pouco não foi
apanhado. E ao chegar a quatro legoas do logar de-
pois de seis dias de marcha pelas florestas, soube
Boxas que se Bebello houvesse trazido um destaca-
mento mais forte, ter-lhe-ião sorprendido os Hollan-
dezes cahido nas mãos. Immediatameníe se lhe man-
dou considerável reforço, mas Schuppe não esperou
514 HISTORIA DO RRAZIL.
1636. p e i a s u a chegada, retirando-se em continente para a
Barra Grande. No logar por elle evacuado acharão os
Portuguezes depósitos de munições de boca e de
Marcha Roxas guerra. Logo constou que Artiszensky vinha de Peri-
Aru°s"enasky pueira em soccorro de Schuppe, e Boxas, que absolu-
tamente ignorante da topographia do paiz não pedia
conselhos aos que a conhecião, marchou-lhe ao en-
contro, tornando a enfraquecer-se com deixar qui-
nhentos homens em Porto Calvo. Ao cahir da noute
chegarão as suas guardas avançadas á vista do ini-
migo, seguindo-se uma refrega, a que a escuridão
veio pôr termo. Começou agora o general a reconhe-
cer a própria imprudência, pois esta pequena amostra
lhe mostrara quanto a guerra nas matagaes do Brazil
era diversa da sciencia que elle aprendera na Eu-
ropa. Chamou os seus officiaes a conselho; repre-
scnlárão-lbe estes que tinha elle tão pouco tempo de
estada no paiz que ainda não podia distinguir do ini-
migo a sua própria gente sem ver-lhe as bandeiras;
que considerasse bem o risco de envolver-se n'uma
acção contra forças tão superiores, pois dizia-se que
Artiszensky trazia mil e quinhentos homens; e que
mandasse chamar immcdialamente as tropas de Porto
Calvo, visto ficar longe de mais a Lagoa. A isto an-
nuiu o general e expediu a ordem.
siiuaçüo 0 primeiro conflicto fora-lhe mais vantajoso do
eriliea dos •,, , . i • í

üniiamiezes. que o próprio Boxas sabia; Ires companhias de mos-


queteiros hollandezes havião sido derrotadas, com o
HISTORIA DO BRAZIL. 515
que tanto desanimou a genle de Artiszensky, ja in- 1636:
quieta pela sorte de Schuppe e das tropas sob o seu
commando, que mostrou a maior repugnância a dar
batalha. Defronte um do outro estavão agora os dous
exércitos, cada um na sua eminência. Percebeu Ar-
tiszensky que jogava tudo sobre um dado, e em ir
d'um batalhão a outro gastou a noute, animando os
seus soldados; se vacillavão um so momento, tudo
era perdido, lhes dizia, nem abaixo de Deus devião
pôr a esperança senão em seus braços direitos. Im-
possível era escapar pela fuga a um inimigo que
elles ja sabião quão veloz era quando batido, nem
havia misericórdia que esperar d'um povo arrogante
e sedente de sangue, a quem tantos males tinhão
causado. So constância e valor os podião salvar segu-
ramente, e recommendava-lhes que não desperdi-
çassem munições de longe, mas guardassem os tiros
para quando vissem os peitos dos contrários ás bocas J. de Lael.
das espingardas. 501.

Baldadas não forão estas exhorlações. Erão osHol- movimento


1 J i_- J e precipitado
landezes um povo que sabia encarar de frente o <ie Roxas.
perigo, nem lhes faltava esforço, quando de esforço se
tractava. Muito osvexou de noute a sede com a gente,
que na véspera supporlara comprida marcha sem
ver água desde o meio dia, interpostos entre ella e
um arroio os Portuguezes. Ao romper d'alva fizerão-
se preces publicas, e com sincera devoção, sob a im-
pressão de imminente risco : assaz perto estava o
5IC HISTORIA DO RRAZIL.
1656. inimigo para ouvil-as. Feito isto tocarão as trombe-
tas a alvorada e os tambores rufarão a despertar.
Nenhuma resposta da parte dos Portuguezes. 0 único
cuidado de Boxas havia sido não se tivessem os Hol-
landezes retirado a coberto da escuridão, escapando-
Ihe assim. Apenas raiou a luz destacou elle alguns
mosqueteiros a oecupar um regato ao lado do ou-
teiro, d'onde incommodárão o inimigo com algum
effeito; mas Artiszensky não se deixou arrastar a um
movimento imprudente, atacando os Portuguezes
sobre a eminência em que estavão postados. Melhor
suecedida foi uma tentativa da parte d'clle para in-
duzir estes a abandonarem a vantagem da sua po-
sição. Mandou fazer fogo com uma peça para o logar,
onde na ala esquerda do seu exercito eslava Boxas
perto d'uma arvore grande, num sitio (Ponde me-
lhor se avistava o campo. Como um desafio parecerão
tomar isto os Hespanhoes, que em vez de aguarda-
rem as tropas de Porto Calvo, pozerão-se immediala-
mente em movimento pelo outeiro abaixo a investir
o inimigo. Os que romperão a acção avançarão, le-
vando tudo adeanle de si, temerariamente talvez,
mas com uma temeridade que podia dar em victo-
ria. N'um momento infeliz, os mandou Boxas fazer
alto em quanto outro corpo marchava a apoial-os;
passou-se palavra, mas este modo de transníitlir or-
dens causou confusão, tornando-se bem depressa
impossível remediar a mal leito.
HIST.ORIA DO BRAZIL. 317
Apeou-se o general, e tomado um pique, melteu- 1636.
se entre os lanceiros, que ainda não tinhão sido
rotos, e procurou sustentar a batalha; mas os Por-
tuguezes debandarão e não poude relel-os. Uma bala deMorte Roxas
e derrota do
de mosquete feriu Boxas n'uma perna; no cavallo stuexercito
que elle teria então montado, fugira covardemente
um dos seus officiaes. Tinha a face voltada para o
inimigo, quando recebeu nas costas outra bala, que
o derribou logo. Dentre a sua própria tropa partira
o pelouro. Levantou-se o general, e dizendo que não
era nada, pediu um cavallo. Mas ao tentar metter o
pé no estribo, exclamou : « E impossível que isto se
me fizesse entre fidalgos portuguezes, » e cahindo
segunda vez, expirou. Não podia o tiro deixar de ter
sido accidenlal. Fr. Manoel e Henrique Telles de
Mello levarão o corpo de Boxas para uma monta,
apenas rendido o ultimo suspiro, e cobrindo-o de
folhas seccas, voltarão á batalha. Bebello e Camargo,
homens assaz experimentados para terem previsto
uma derrota, e em tal caso ainda ganharem fama,
fizerão frente aos vencedores, e tomando as melhores
posições, salvarão os fugitivos. Na ultima armada
viera o habito de Christo e o titulo de Dom para este
leal cacique Carijó, e bem merecidas havião sido taes
honras. Contente com a sua victoria, não quiz Artis-
zensky aventural-a, acossando o inimigo, e voltou a
Peripueira.
No segundo dia depois da batalha foi Fr. Manoel
518 HISTORIA DO RRAZIL.
ICCO.
com Henrique Telles e uma partida de negros cm
busca do cadáver de Boxas. Contarão os mortos no
campo, apanharão quantos mosquetes por alli jazião,
escondendo-os nas balsas até melhor occasião, e le-
varão o corpo 11'uma rede. 0 frade cavou com os seus
escravos uma sepultura perto da própria habitação
ao lado da floresta, e alli enterrou o cadáver mellido
n'um caixão cheio de terra e barro, não sem ler pri-
meiro tomado uma bolsa, que Boxas trazia 11'uma
occulta algibeira do collele debaixo do braço. Esta-
vão nVIla as duas chaves douradas d'uma caixinha,
em que o finado guardava a sua patente e instruc-
çõês, as insígnias da ordem de Sancliago e um sa-
quinho de relíquias.
Grande não foi a perda dos Portuguezes, mas esta
acção salvou as conquistas aos Hollandezes, que ti-
verão n'ella quarenta mortos, outros tantos mal feri-
dos, c mais uns quarenta cujos ferimentos os não
impcdião de marchar sem auxilio exlranho. Lança-
rão-se os mortos 11'unia cova, que se cobriu de ra-
mos, e depois atlendeu-se aos feridos. A final forma-
rão as tropas poi batalhões, para de joelhos renderem
graças : Artiszensky agradeceu-lhes o modo por que
n'aquelle dia se havião portado, e derão-sc Ires des-
cargas em honra de tão assignalada victoria. Dos
prizioneiros souberão os Hollandezes que Boxas des-
embarcara com dous mil homens e vinte peças
(Partilharia, tendo o armamento custado em Porlu-
HISTORIA DO BRAZIL. 319
i m
gal oitocentos mil cruzados. Tinhão elles orçado em
mil e oitocentos homens a força que entrara em
acção da parte dos Portuguezes, mas o sargento-mór
também aprizionado asseverou-lhes que não passara
de mil e cem, contados duzentos índios n'esle nu-
mero. Bagnuolo prendeu o próprio filho, por se haver
conduzido mal n'esle dia, e em ferros o remelteu
para a llespanha.
Tinha o tenente general Andrada avançado uma suecede
•° Bagnuolo ni
le^oa nasua marcha de Porto Calvo, quando lhe che- commando.
gárão novas do desbarato e morte de Boxas. Aconse-
lhárão-no alguns officiaes, que sem perda de tempo
se retirasse, abandonando a villa: com menor desaire
o faria ja, dizião, do que depois de apparecer o ini-
migo, sendo agora prudência o que mais tarde havia
de ser fuga. Com mais bravura e acerto representa-
vão oulros que os fugitivos demandarião a villa, e
falhando-lhes este refugio, que seria d'el!es, chegados
de fresco da Europa e sem practica do paiz? Que alli
se acolhcrião era certo, se Arliszensky os perseguiria,
duvidoso. A esta melhor opinião se inclinou Andrada.
Betirou pois sobre Porlo Calvo, e em quanto se repa-
ravão e melhoravão as fortificações, apresentou as
cartas selladas de suecessão que Boxas lhe havia
deixado. Era Juan Ortiz o nomeado para o com-
mando, morrera porem na Lagoa : rompeu-se pois
o segundo sello e appareceu o nome de Bagnuolo,
visto o que quizerão soldados e moradores persuadir
520 HISTORIA DO BRAZIL.
1630. Andrada a que assumisse elle próprio o commando,
declarando-se alguns até por constrangel-o a isso. Ao
chegara Lagoa a noticia da nomeação de Bagnuolo,
também alli foi mal recebida, sendo Duarte dWlbu-
querque convidado a reunir na sua mão a auctori-
dade militar á civil. Ainda em bem que o respeito
que as tropas tinhão a este, e que as induzia a si-
milhanle acclamação, lhe permitliu também aquie-
tal-as.
Os primeiros aclos de Bagnuolo manifestarão essa
mesma espécie de irresolução que ja o fizera impo-
pular; mandou ordem de evacuar Porto Calvo, e
logo depois despachou um mensageiro a rovogal-a;
depois pensando sobre mais madura reflexão, que
posto tão importante não devia ser abandonado, para
lá marchou em pessoa. Antes de partir escreveu so-
bre o estado das couzas um memorial para o novo
governador general Pedro da Silva, rcpresenlando-
lhe a elle e a Hozes, que se a armada hespanhola ao
desaferrar da Bahia seguisse ao correr da costa, po-
deria provavelmente descarregar um golpe tremendo
sobre o inimigo, agora que linha este divididas as
H. Freire. „

§Tã7-i4. torças.
occupãoo- Avançou Bagnuolo para Porto Calvo, onde reuniu
Portuguezes
i'o°rtòracIiío e 01,ocentos
homens, c d'alli poz-se a talar as
terras possuídas pelos Hollandezes. Deplorável era
na verdade a condição dos habitantes (Festas pro-
víncias conquistadas. Parece ler sido desejo dosllol-
HISTORIA DO BRAZIL. 321

landezes, como indubitavelmente teria sido a sua 1636-


verdadeira política, reconciliar os colonos com o
jugo que lhes impunhão, e favorecer os casamentos
mixtos. Oulro systema que seguião era fazer entre o
povo proselytos á religião reformada, mandando
para este effeito buscar pregadores, e pondo em gyro
livros controversistasescriptos em lingua hespanhola.
Por toda a parte onde pôde fazer-se ouvir, trium-
pha sempre o protestantismo, e assim tem sido tam-
bém sempre o maior afan do clero catholíco evitar
que suas ovelhas leiâo couza alguma em que se ex-
ponha a monstruosa corrupção do papismo *. Queixão-
se os Portuguezes do bem que forão succedidos estes
ministros no seu empenho; não consta porem que
fosse grande o resultado colhido, para isso faleceu o
tempo. Andavão vigilantes os padres, e se os Brazi-
leiros odiavão como hereges os seus conquistadores,
mais ainda ficarão odiando a heresia como religião
dos seus oppressores, pois que, por mais sincera-
mente que os Hollandezes desejassem conciliar os
seus novos subditos, neutralizava-lhes a intenção um
systema de suspeitosa crueldade, a que, gerando um
crime oulro crime, se entregão quasi invariável- ,, ,, ,
mente conquistadores e tyrannos. Nem tantos decre- iioiiandms
tos do governo, nem o rigor todo com que erão estes
executados, logravão impedir que muitos colonos
1
Nada ha de mais inexacto do que esla proposição de Southey
F.P.
u 21
5-2-2 H I S T O R I A DO RRAZIL.
1636. nãoentretivessem intelligcncia secreta com os seus
conlerraneos, trabalhando sempre por a si próprios
se libertarem; o este proceder envolvia no mesmo
perigo os que de coração se havião dado a seus novos
senhores.
A primeira medida foi tomar aos moradores todas
as armas, sendo impossível confiar n'ellcs apoz tan-
tas provas do ódio justo e inveterado quevotavão aos
invasores. Ainda isto não pareceu sufficienlc; re-
solveu-se meltel-os todos dentro de limites onde po-
dessem ser vigiados de perto, e, ampliando o plano
seguido antes da derrota de Boxas, assolar lodo o paiz
fora da linha de demarcação, e deixar de permeio
entre as próprias conquistas e o território portuguez
trinta e duas legoas de deserto. Declarou-se pois aos
Brazileiros que durante os primeiros quinze dias do
mez seguinte lhes era livre ir ás matas fazer farinha
das plantações que lá linhão, e trazer seus bois, car-
neiros e cavallos, mas que lindo esse prazo receberião
os índios ordem de destruir as roças, queimar as
casas, cortar o gado, e matar todo o indivíduo que
1. deiaci. encontrassem alem dos limites agora prrscriplos.
Assim referem os Hollandezes as couzas, mas os Por-
tuguezes affirmào que a tyrannia foi mais longe : a
menor suspeita baslava para se incorrer na pena de
morte, e os ricos erão certos de serem suspeitos.
.Não era a morte o mais que este mísero povo linha
de soffrer; recorria-se aos tractos para dcscobrii
HISTORIA DO BBAZIL. 323
onde havia thesouros, e as mulheres se vião expostas 1C56-
aos excessos d'uma soldadesca brutal e infrene. Se os
commandantes querião reprimir estas atrocidades,
fallecia-lhcs o* poder, nem em paiz Ião selvagem se
deixava sopear o soldado, nem, onde impera a lei B. Freire.
r
§ 711-23.
marcial, ha horror que debaixo da sua sancção se o * ^ -
não possa perpetrar impunemente l . Açutavão-se
hordas de Tapuyas e Pitagoares contra os Portugue-
zes, que até accusão os Hollandezes de terem entregue
crianças a estes cannibaes que as devorassem ; mas
por certo é impossivel que seja similhante accusação
verdadeira.
Não foi a morte de Boxas uma desgraça para o seu Guerra di,
exercito. Em campos regulares e paizes cultos não epre J
era onde se aprendia a fazer a guerra do Brazil. Ja
tres capitanias se tinhão perdido em quanto os velhos
gencracs aprendião experiência, e ainda bem que
não foi precizo repassar as mesmas licções. Havia
agora munições, cuja falta se sentia antes da che-
gada d'esles reforços. Mathias d'Albuquerque ter-se-
ia visto sem poder a não ter sido a generosa previ-
dência de Lourenço Guterres, que servia de meirinho
da correição em Pernambuco. 0 tempo em que
poderia ler salvado toda a sua fazenda movei, em-
1
Raphael de Jesus particulariza algumas crueldades dos Hollande-
zes. Parece que estes andarão na eschola de Alva, e horriveis como
são essas particularidades, o que em Amkrjna se fez não as torna in-
críveis. Expressamente accusa este escriptor os commandantes.
324 HISTORIA DO BRAZIL.
1656.
pregou-o este verdadeiro servidor do seu paiz, em
transportar onze barris de pólvora com o auxilio dos
seus negros, escondendo-os em logar seguro para ao
lem
LucS P ° do maior apuro entregal-os ao seu general.
26
'• ' Não faltavão agora matérias de guerra, e também
tinhão isto os Portuguezes a seu favor, que lhes che-
gava agora a vez de tomar a offensiva, sendo em tal
paiz mais fácil a aggressão do que a defeza. Impa-
cientes de colher o producto de suas conquistas an-
davão os Hollandezes, que so por amor do assucar e
do tabaco havião invadido o Brazil; mas apenas se-
nhores das plantações de Pernambuco começarão a
sentir os mesmos males que tinhão causado a seus
antigos donos. Partidas de Portuguezes com seus
índios e negros talavào os campos em todos os sen-
tidos; rompião dos bosques, punhão fogo aos canna-
viaes, queimavão os celleiros, salteavão as moradas
do inimigo, e retiravão-se tão rápidos como havião
avançado, por sarças e brejos, aonde os Hollandezes
se não aventuravão a seguil-os. Souto, Camarão, e
Henrique Dias, o negro, forão os que mais se assi-
gnalárão n'estas correrias assoladoras. De Souto se
faz especial menção, como de quem indiscrimina-
damente saqueava amigo e inimigo, e tão traiçoeiro
fora o serviço, que em Porto Calvo prestara ao seu
paiz, que não ha villania que d'clle se não devesse
secunda esperar. Extenuados com o que n'esta guerra de
d'- depredação sollriao, nem podendo sunnorlar a sus-
1'ernaiiibuco. * > i i
HISTORIA DO BRAZIL. 325
1636
peilosa crueldade dos Hollandezes, resolverão os Per-
nambucanos emigrar, e quatro mil pessoas se poze-
rào debaixo da escolta de Camarão. Com segurança
conduziu este hábil cacique, que com as suas tropas
indígenas ja por duas vezes repellira Artiszensky e
uma força superior de Hollandezes, os emigrantes
através setenta legoas de paiz inimigo. Muitas famí-
lias, não chegando a tempo para acompanhal-o,
tentarão seguil-o. Depressa exhaurirão estes desgra-
çados as poucas provisões que comsigo poderão levar.
Mal soube da sua chegada mandou-lhes Bagnuolo
alguns soldados ao encontro com mantimenlos, mas
antes que estes soecorros lhes chegassem, ja quasi
quatrocentos Portuguezes se contavão deixados mor-
tos pelo caminho, e muito maior ainda do que a
conta foi a perda.
Os repetidos damnos soffridos convencerão os chcga
Hollandezes de que impossível lhes era tirar proveito %a"sàu.e
dos engenhos de assucar sem serem inteiramente
senhores do paiz, pelo que escreverão para a Hol-
landa pedindo grandes reforços e um general de
maior auetoridade. Por algum tempo voltara a cor-
rente dos acontecimentos a favor dòs Portuguezes; o
inimigo abandonara a sua posição em Peripueira e
Bagnuolo transferindo da Lagoa para Porte Calvo a
sua artilharia, aqui se fortificou. As mescladas tropas
da Companhia hollandeza, tão promptas a receber
soldo d'uma nação como d'outra, freqüentemente
52'» HISTORIA DO BRAZIL.
1656. p a r a elle deserlavão; d'ellas e dos prizioneiros soube
que no Becife se esperavão reforços formidáveis.
Pouco lhe aproveitava o conhecimento d'um perigo,
contra o qual nenhuns meios tinha de precawr-so.
Duas caravelas enviadas com provisões demandarão
por isso a Bahia, d'onde com muita difíiculdade foi
levada a carga por terra para Porto Calvo. Em quanto
este mesquinho c insufliciente soccorro era tudo
quanto recebia o general dos Portuguezes, trabalhava
acliva a Companhia das índias Occidenlaes por se-
gurar as suas conquistas. As despezas delta, desde a
sua organização até ao presente, subiào a quarenta
e cinco milhões de florins. N'esle lapso de tempo to-
mara cila ao inimigo quinhentos e quarenta e sele
navios, indo mais de trinta milhões de florins, pro-
dueto d'estas prezas, para o cofre publico; causara
aos Hespanhoes um prejuizo de cerca de duzentos
milhões, e importara da África mercadorias, no va-
lor de quatorze milhões e seiscentos mil florins.
Agora resolveu ella mandar um general com poderes
illimitados, e forças sufficientes para completar c
segurar as conquistas no Brazil. Foi Jan Matirilz,
conde de Nassau, o designado para este importante
commando, homem digno de ter sido o fundador de
mais duradouro império. Vinte e dous navios se Ilio
prometlérão, numero que' foi depois reduzido a
doze, com 2,700 homens; e estes mesmos tão vaga-
rosamente se esquipavão, que elle por mais avizado
HISTORIA DO BRAZIL. 527
1C3fi
houve ir indo adeante com sos quatro velas. Em ja- -
neiro de 1657, um anno depois do desbarato e morte Bar]iEUS,
P 26 30.
l
de Roxas, aportou Nassau no Becife .
Um so momento não perdeu Nassau á sua che- deM^asu
gada. Era que em verdade não havia tempo que per-
der; tanta audácia havia a fortuna inspirado ás par-
tidas dos Portuguezes, que nem a estrada entre
Olinda e o Recife era ja segura, e ou se havia de pôr
promplo cobro a estas devastações, ou os estabeleci-
mentos de fabrico de assucar, cujos dízimos erão tão
importantes, que por 280,000 florins se arrernala-
vão, tinhão de cessar. Distribuiu 2,600 homens pelas
differentes guarnições, formou um exercito de quasi
5,000, e poz de parte 600 para a guerra de depre-
dações. Depois olhou pelo estado dos seus depósitos.
As assoladoras correrias de Camarão e Souto durante
todo o anno anterior havião produzido a escassez, e
mal era possível abastecer as guarnições e achar pro-
visões ás tropas para uma expedição de dous mezes.
Tudo supportárào Hollandezes com paciência, ex-
cepto rações curtas2, costumados comoandão a trazer '
sempre repleto o estômago; prorompião em alaridos
1
Durante a viagem lançou-lhe o mar uma bagem a bordo na al-
tura de üunkirk, c algumas perdizes lhe pouzárão nos mastros vindas
da costa da Inglaterra. Refere Barlaeus estas couzas como agouros de
que a terra e o mar obedecerião... a Kassau.
i
Nec enim, sueti ad satietatem nutriri nostrates, inediam fe-
runt, quttm aliunde e confragosa et paupere terra veniens miles
jacile tolerai: São palavras de Barlasus.
528 HISTORIA DO BBAZIL.
1030 os soldados e toda a aucloridade e bellas promessas
dos officiaes erão poucas para apazigual-os. Procla-
mou-se que todo o mundo poderia trazer ao campo
hollandez comestíveis á venda; isto porem se fazia,
não fosse o inimigo saber do apuro que reinava e
também para illudir as tropas com a esperança de
supprimenlos. Ao inspeccionarem-se as munições
descobriu-se falta de mechas, culpa dos que na Hol-
landa havião disposto as couzas, mas na casca d'uma
planta parasita sem folhas se achou um substituto,
que se tinha a vantagem de ser inextinguivel, tam-
ü
33-1is' bem se consumia mais depressa.
Marcha Preparado tudo, mandou .Nassau fazer preces pu-
rontraaSTorto blicas, e poz-se em marcha em busca do inimigo,
indo adeante por água as tropas bisonhas, que elle
julgou prudente poupar quanto possível 1 .
A' noticia da chegada d'este exercito mostrou Ba-
gnuolo a costumada indecizão : prohibiu que ninguém
removesse família nem cabedal e logo depois man-
dou elle mesmo ludo quanto era seu para as Alagoas
com uma escolta de Italianos. Ueuniu-se um con-
celho de g u e r r a ; Duarte d'Albu(fucrquc e Andrada
insistirão na necessidade de oecupar os passos e picar

• Barlaus dá-lhe uma forca de T.OO infaulcs, SUO homens da ar»


mada, 600 Brazileiros, e um corpo de (avaliar.a. Ilnlo Freire eleva-a
a 0,000, Itaphael de Jesus a 5000 Hollandezes e innuiueravvis índios.
Kste esriiplor, metlendo Harlaus á hulha por exagerar o numero
dos Portugueses, diz d'ellc : Escreveu e pintou,... e pintou em ludo
a que escreveu. I. 5, § l'J7.
HISTORIA DO BRAZIL. 529
os Hollandezes na sua marcha, mas como se o gene- W™'
ral so lhes houvesse pedido conselho pelo prazer de
rejeilal-o, até as tropas postadas no rio Una, que
Nassau tinha de atravessar, e onde se lhe podia oppor
vantajosa resistência, forão recolhidas, principiando-
se a levantar dous reductos, que, diz Brito Freire, so
aproveitarão ao inimigo. N'um d1elles, apezar de
nunca se concluir, assentárão-se tres peças.
Desembarcando com o seu destacamento na Barra Bagnuolo
abandona

Grande, fez Artiszensky sem opposição a sua juneção r°><° caivo.


com Nassau sobre o Una, e avançarão ambos até duas
legoas de Porto Calvo sem que do seu movimento ti-
vessem os Portuguezes a menor noticia. A' sua vista
Bagnuolo, que os deixara reunirem-se e não moles-
tados effecluarem a sua marcha, deu ordem de ac-
commcltel-os. Seguiu-se uma valente porem desor-
denada sortida; Camarão distinguiu-se como sempre,
e sua mulher, agora conhecida pelo christão e nobre
nome de D. Clara, a cavallo lhe pelejou ao lado. A'
testa dos negros ostentou Henrique Dias a costumada
bravura. Uma bala o feriu no punho esquerdo, e,
julgando-a. envenenadal, mandou amputar a mão,
dizendo que uma lhe bastava para servir o seu Deus
e o seu rei; para se vingar cada dedo lhe teria logar
• . ,, , Valeroso
de mao, e antes queria morrer d uma vez do que i-ucideno.
consumir muito tempo na cura. A perda dos Portu- §-7U8%e-
1
Por que se dizia que os Olandczes tiravam com balas ervadas
com toucinho, e que aos feridos logo lhes davam herpes.
330 HISTORIA DO BRAZIL.
!6r>o, guczcs, que pela quantidade não foi grande, foi ter-
rível pela qualidade, que os poucos que cahiráo
erão valentes o sabião cumprir o seu dever, assigna-
lando-se entre elles Cosme Vianna, o ultimo de cinco
irmãos todos mortos n'esta guerra. Durante a acção
postou-se Bagnuolo 11'uiii reducto, a observar-lhe o
resultado, para segundo elle tomar suas medidas.
Plano Ião mal traçado, so por misérias podia acabar,
e lendo visto o que devera haver previsto, mandou a
Alonso Ximenes que escoltasse os moradores para as
Alagoas, partindo elle mesmo de noule acompa-
nhado de Duarle dWlhiquerque e Andrada, de cuja
presença esperava protecção conlra a sua própria
genle, de quem se arreceava. Em quanto não fechava
de lodo a noute assentou Nassau o seu campo n'um
valle debaixo do forle, (Ponde dcsperdiçavãoos Por-
tuguezes as suas munições fazendo-lhe fogo por cima
da cabeça. Ao raiara aurora mandou Miguel Giher-
ton, tenente governador de Porto Calvo, saber as or-
dens de Bagnuolo : nenhumas deixara, nenhuma
noticia dos seus próprios desígnios e movimentos,
nem o mensageiro achou senão abandonados reduc-
tos. A' guarnição so restava acolher-se ao forle; in-
cendiou pois as casas e armazéns e encravou as peças
nas muralhas, mas o que se faz a medo, é .sempre
mal feito, e antes da noute ja estas mesmas peças jo-
gavão contra a fortaleza.
Pairava ainda a armada hollandeza fora da barra
HISTORIA DO BRAZIL. 331
do Bio das Pedras, que passando por Porto Calvo cahe 1656«
no mar cinco legoas mais abaixo. Manoel de França Porto calvo.
alli fora postado a guardar o rio com cento e oitenta
homens, para que não entrassem as chalupas do ini-
migo. Quando viu que sem reforço o não consigui-
ria, mandou recado a Bagnuolo, mas tendo em vão
por dous dias esperado soecorros d'um general fu-
gido, teve de abandonar o posto, começando então a
vir sem interrupção artilharia e provisões da armada
para o acampamento. Quatro baterias se plantarão
guarnecidas de dezasele peças. Poucos como erão e
desanimados com o abandono de Bagnuolo, fazião os
sitiados de noute vigorosas sortidas, e de dia servião
bem a sua artilharia. Apoz um cerco de quinze dias1
estando ja mui arruinado o forte, intimou Nassau o
commandante que se rendesse, escrevendo-lhe uma
carta tão honrosa para os nobres sentimentos que a
havião dictado, como para o valor e caracter d'aquelle
a quem se dirigia. Giberlon pediu vinte e cinco dias
para poder receber instrucçõês de Bagnuolo : uma
resposta curta e secca concedeu-lhe apenas vinte e
quatro horas. De facto ja não era sustentável a praça2.
Com condições honrosas capitularão os Portuguezes:
havião de sahir com suas armas, bandeiras e uma

1
Os Sr;. Warnhagen e Netscher affirmam que fora o cerco de
treze dias. F. P.
8
Arcem Povacaona.n a chama Barlaeus, parecendo ter tomado
palavra povonção pelo nome do logar.
332 HISTORIA DO RRAZIL.
1630 p Ê ç a d'artilharia; os soldados com suas mochilas, os
officiaes com suas bagagens; também se lhes devia
proporcionar passagem para as índias, trocando-se
os prizioneiros de parle a parte. Concluido isto, en-
trou Nassau na fortaleza, onde assentou Giberton e
os demais officiaes á sua própria meza, traclando (no
dizer de Brito Freire, o melhor e mais imparcial
historiador desta guerra) os vencidos a todos os
respeitos como a si próprio se quereria ver tractado
se tivesse sido sua a sorte de cahir prizioneiro. Karcl
Nassau, sobrinho do conde 1 , e homem de mereci-
mento real e grandes esperanças, fora morto durante
o assedio. Cerca d'um mez antes de investida a praça
linhão os ossos de Boxas sido desenterrados pelo seu
sobrinho, e depositados com honras militares na
egreja, pendurado na parede ao lado um escudo com
as armas do fallecido. Este escudo arrancárão-no os
soldados hollandezes e apresentárão-no ao seu ge-
neral, que o mandou para o Becife, onde fosse collo-
cado no seu próprio palácio em memória honrosa
d'um soldado valente.
Abandona Alem dos índios restava ainda a Bagnuolo uma
as
Aw!gôas. força de mil e duzentos homens. De fácil defeza e
bem situada para ser soecorrida da Bahia e da Eu-
ropa era a villa de Madantlla* nas Alagoas, mas

1
Diz Xetscher que Carlos de .Nassau era primo de Maurirui. F. I'.
s
É esta uma expressão vulgar, usada nas províncias do Norte, (pie
corresponde á palavra Magdalena. F. P.
HISTORIA DO BRAZIL. "33
1636.
perdida tinha o general toda a confiança nos seus
soldados, que pela sua parle com melhor funda-
mento nenhuma punhão n'elle l . Quasi que nem
aguardando que o perseguissem, abandonou esta
posição, retirando se para a villa de S.Francisco a
oito legoas da foz do grande rio do mesme nome, a
cuja margem eslava assentada5. Aqui linha também
abertas as communicações por água; entre elle e os
perseguidoresficavao rio Piagui, que não sendo va-
deavel offerecia o melhor posto do mundo para for-
midável resistência. Apenas porem lhe constou que
o vinhão os Hollandezes perseguindo, renovou Ba-
gnuolo a fuga, e atravessando o S. Francisco foi reti- B. Freire
rando sempre, até chegar á cidade de Sergipe. § 775-8.

Entretanto mal deixara Porto Calvo seguro poz-se


Nassau com rapidez tal no encalço do exercito fugi-
tivo, que qualquer general menos aclivo que Ba-
gnuolo cm retirar, teria sido alcançado. Atravessou
o Piagui em jangadas alli mesmo feitas de ramos
ligadas com cipós; lá lhe ficarão afogados alguns
soldados poucos, servindo o perigo da passagem que
deveria ter sido absolutamente impracticavel á face
d'um inimigo, para mostrar a importância do posto

' Como do costume é neste lugar injusto Soulhey para com o


conde de Bagnuolo. F. P. •
s
0 auclor equivocou-se. Não se chamava villa de S. Francisco, o
sim do Penedo, nem se acha situada a oito legoas da foz de grande
rio, mas a sete, em um terreno elevado e pedregoso, d'onde se deriva
o seu nome. F. P.
354 HISTORIA DO RRAZIL.
tose. q U e s o abandonara. Tão de perto perseguia elle Ba-
gnuolo, que as suas guardas avançadas ainda chega-
rão a S. Francisco em tempo de aprezar as bagagens
dos que fugiâo adeanle; mas alcançado este rio de-
sistiu Nassau da caça, tendo por melhor segurar o
que ja ganhara do que continuar a correr atraz de
quem tf o veloz fugia.
o rio Na sua foz mede o rio S. Francisco cerca de oito
S. Francisco.
milhas de largura; suas águas turvas mancháo o
oceano porespaço de quatro ou cinco, sentindo-se-lhe
ainda a esta distancia a força da corrente. A barra é
má, nem a podem entrar navios de mais de cincoenla
toneladas, sendo o canal de sudoesle o mais fundo.
Embarcações miúdas a sobem por vinte legoas até ás
primeiras cachoeiras, acima das quaes ainda podem
navegar umas oitenta ou noventa legoas até ao cha-
mado Sumidouro, onde o rio sabe d'um canal subter-
râneo \ pelo qual corre dez ou doze legoas2. De

A natureza d'esle canal explica-se provavelmente pelo que os


viajantes americanos da ultima expedição dos capitães l.ewis e Claile
nos cuiitã.i do Rttfl (jangada) do Rio Vermelho; é, di/cin elles, uma
coberta natural, ipie esconde todo o rio iftitna extensão de uY/asetc
legoas, e que continuamente uugincnta com a lenha de alluvião que
oda a cheia traz coinsijjo. lista coberla, que por muito tempo não
passou de paus trazidos pela própria corrente, sustenta aj;ora uma
vegetação de tudo quanto abunda nas vizinhas florestas, sem evceptuar
arvores de considerável uilto, poilendo-se passar e repassar o rio, s<m
sequer se dar pela sua existência. Philipp's Colt. of Contemjiorary
Yoyages. Vol. o, p. 107.
- Iliz o Sr. General P. d'A. Bellegarde que o rio S. Fra-u isco M ria
HISTORIA DO BRAZIL. 5?g
m<i
outubro a janeiro, crescendo as. águas, alagão todas
as numerosas ilhas do rio, que por serem assim inun-
dadas, so juncos produzem, de que os índios se
servem para as suas frechas. Fertilissimas as mar-
gens, e riquíssimas de peixe as águas, sem cessar se
disputavão os índios com as armas durante os pri-
meiros séculos depois da descoberta a posse d'esta
parte do paiz. Grandes esforços se havião feito para
alcançar as nascentes do rio, que se dizia sahir do
famoso Lago1 a cujas bordas eslava assentada a
fabulosa cidade de Manoah, onde os moradores se
adornavão de ouro. De todas as capitanias se havião
emprehendido jornadas de descoberta para estas ca-
beceiras; o próprio governo da metrópole por isto
se interessou, e Duarte Coelho d'Albuquerque duas
vezes foi a Portugal para ajustar os termos da desco-
berta e conquista, a que todavia jamais deu princi-
pio, por lhe recusar a corte as honras que requeria.
Por ordem do governador Luiz de Brito d'Almeida se
commetteu a empreza. Mas tudo/oi baldado, e quem
chegou mais longe, foi João Coelho de Souza, que
penetrou até cem legoas acima do Sumidouro2.

navigavel por mais de 24 legoas si fosse destruída ou torneada a fa-


mosa cachoeira de Paulo Affonso. F. P.
. * Também Nieuhoff (P. 7) conta que grande porção de ouro em po
se encontrava no lago donde se dizia nascer este rio, e que havia alli
excellente salitre.
* « Como relata em seu diário, » diz o auetor das Noticias, mas
também este diário jamais se imprimiu, nem provavelmente existe ja.
336 HISTORIA 1)0 BRAZIL.
1630. Collocada n'um ponto onde a corrente muito se
conlrahia entre as suas margens a villa de S. Fran-
cisco, ou, como ás vezes a chamavão, o Penedo',
dominava o rio. Contava Bagnuolo que o logar se
aguanlasse por algum tempo, mas não era o exem-
plo que o general dera para infundir brios nos habi-
tantes, e de feito nenhuma resistência se oppoz. Não
escapou a importância da situação a Nassau, que alli
erigiu um forle, chamando-o Maurício do seu pró-
prio nome. Cruzou o rio, e mandou que todos os
moradores da banda d'alem se passassem com suas
famílias á ribeira do norte, para que fossem volun-
tários ou constrangidos dar auxilio aos Portuguezes,
e podesse elle assolar esla fronteira do seu próprio
território. As tribus que moravào sobre este rio falla-
vão uma linguagem que ninguém do exercito de
Nassau comprehendia, mas este com gestose presentes
lhes deu a entender o que queria, convidando-os a
opporem-se aos Portuguezes que tentassem reenirar
na perdida província. Tomadas estas sabias medidas
subiu o próprio conde cincocnla legoas pelo rio
acima a explorar o paiz; as viçosas savanas que a
corrente banha, e os muitos rebanhos, alguns de mil
e quinhentos, oulros de muitas mil cabeças, que
n'ellas andavão pastando, e encherão de admiração
pela riqueza da terra. Assaz ressumbra isto d'uma

1
I)"onde Barlajus fabricou a palavra latina Openada l
HISTORIA J)0 BRAZIL. ">7
l636
caria que elle dirigiu ao seu parente o príncipe
(FOrange, pedindo-lhe que instasse com a Compa-
nhia para que remettessea este delicioso paiz quantos
colonos allemães podesse achar, e se estes não fosse
possível havei os, que se despejassem as cadeias e as
galés, transportando os criminosos para aqui, onde
com útil e virtuoso trabalho se purgassem de seus
delidos '. Pedia mais soldados, achando-se enfra-
quecido o exercito com piquetes deslacados, guarni-
ções deixadas, e pela morte. De armas também care-
cia, mechas, tambores e trombetas, legumes e
conservas; viveres frescos não faltavão, mas não erão
dos que servião para prover uma frota. Bandeiras
egualmenle lhe havião de remetler e faxas côr de
laranja para os soldados, afim de distinguil-os e
alental-os : se fossem desattendidos estes pedidos,
tudo perigaria, dizia elle, pois so o respeito que lhe
tributavão, mantinha em ordem as tropas. Bem foi a
Portugal que rasteiros ciúmes e baixas considerações
neutralizassem a influencia d'esle grande homem;
que, se lhe tivessem seguido os planos, seria hoje o
Brazil uma colônia hollandeza s . So a falta das neces-
sárias provisões lhe tolheu que tirando vantagem do
terror do inimigo e da confiança das suas próprias B. Freire.
tropas, marchasse direito sobre a Bahia. Raria-.us.' u.

1
Triste e pernicioso systema de colonisação, de que tantos males
tem resultado. F. P.
s
Ter-se-hia, pelo contrario, acelerado a no*sa independência. F. P.
11 oo
358 HISTORIA DO RRAZIL.
*657. Com não menos zelo do que talento regularão
R
w l ° ° entretanto os officiaes civis no Becife os negócios
internos da conquista. Todas as pessoas estabelecidas
n'esta cidade e na de Olinda para fins commerciaes
forão arrigimentadas por companhias, cada uma das
quaes tinha seus officiaes e bandeira, assegurados
assim os serviços d'aquelles cuja lealdade era sus-
peita. As leis da Hollanda relativas ao matrimônio
forão coercitivamente postas em execução, quando
se tornou necessário um freio. Conciliáráo-se os ju-
deos, permittindo-se-lhes a guarda do seu sabbado,
e os christãos tiverão ordem de sanclificar o septimo
dia desde lanto profanado; lomárão-se medidas para
conversão dos alliados indígenas, abrirão-se escholas
para os seus filhos, e fizerão-se catechismos para
elles. Querendo-se reedificar Olinda, peiinittirão-sc
alli todas as construcçòcs, prohibindo-se a lirada de
materiaes das ruinas para outras parles. Mandárão-
se dous (lepulados.ao serião' á cata de minas, acom-
panhados de guias portuguezes e naluraes : effecli-
vamenteappareceu prata, mas a veia, que á primeira
vista se figurava rica, enganou as esperanças que
fizera conceber. Dizia-se que os Albuquerques linhão
extraindo muito ouro de certas minas em Pernam-
buco, e para achal-as se fizerão pesquizas, porem
mudadas. Egualmente em não se procurarão as mi-

' Missi ia CouhfiirceiMs, sãoas palavras de liaria us.


HISTORIA DO BRAZIL. 339
nas de Capaoba '. O historiador hollandez é de pare- 1637
cer queosPortuguezescom falsas informações illudião
os conquistadores, alias não teriâo as minas escapado
a buscas tão pertinazes. As minas comtudo existião,
mas os que lhes sabião do segredo guardavão-no para Baria-us
melhores dias.
Começara agora a estação chuvosa e Nassau,
deixando Schuppe com 1600 homens no seu novo
forte, volveu ao Becife. Bem necessária era a sua
presença aqui, onde de toda a sua auctoridade e
popularidade se carecia para sofrear um bando de
conquistadores, entre os quaes era a licença ja habito
inveterado. 0 seu próprio historiador confessa que
os peculatos, impiedades, roubos, assassinios, e
luxuriainfrened'esta genle a tornara infame; pas-
sava em rifão que nada era peccado d'aquelle lado
da linha, e na verdade era como se o diclado fosse
artigo de fé, tão habituaes e atrozes os crimes. Uma
rígida justiça depressa conteve estes miseráveis. Nas-
sau, dizBarlaeus, fez mais homens de bém do que
veio achar, e todos fazião agora o seu dever, quer
por que lhes volvesse a boa vontade, quer por que
lhesfizessemsentir a necessidade d'isso. Até agora
nenhuma regularidade se observara na dislribuiçào
dos gêneros, improvidencia de que erão os desper-
dicios a natural conseqüência; com risco imminenle

1
Fodinx Capaovaenses.
340 HISTORIA DO BRAZIL.
«37. de provocar uma sedição, poz Nassau cobro a este
abuso^ fixando a ração que a cada soldado havia de
dar-se. Também a receita publica passou por salu-
tares reformas, e dos dízimos do assucar c farinha,
das pescarias, barcas de passagem, e t c , se apurava
considerável somma. Grandes fraudes se havião com-
metlido sob a capa da confusão em que andavão os
pezos e medidas, o que porem de prompto se proveu
de remédio, reduzindo todos ao padrão d'Amslerdáo.
Apoz isto cuidou Nassau em reparar quanto pos-
r
Sabias
,n d dc s y e
\a's saU i l o s estragos da guerra, para o que muito con-
correu a confiança posta nos seus talentos e proba-
bilidade de que o seu nascimento e influencia lhe
tornariâo permanente a aucloridade. \enderão-se
como propriedade publica os engenhos de assucar
abandonados, e pela somma enorma que produzirão
em tempos de tão pouca segurança, se pôde julgar
do seu numero e importância. Dcrão de vinte a cem
mil florins cada um, recebendo a Companhia das
índias Occidentaes ao lodo dous milhões. Procurou-
se induzir os Portuguezes a voltarem ás suas terras,
estabelecendo-se debaixo do domínio hollandez; cada
colono era olhado por Nassau como amigo, pois que
contribuía para augmentar a producçáo de que ca-
reciâo os conquistadores, e era interessada na defeza
dos seus campos; cada fugitivo pelo contrario lhe era
uni inimigo, e da mais formidável espécie, pois que
a necessidade o obrigava a saquear, e o conhecimento
HISTORIA DO BRAZIL. 341
1637
dopaiz'lh'o permittia fazer com vantagem. Forão
estes os termos offerecidos aos Portuguezes : inteira
e plena liberdade de consciência; conservação das
suas egrejas á custa do Estado; não havião porem de
receber visitador da Bahia, nem se admittirião novos
frades em quanto houvesse bastantes para celebração
das ceremonias da religião. Ficarião sujeitos ás leis
hollandezas, pagando os mesmos impostos que os
outros subditos do Estado, e o Concelho Supremo
marcaria dous dias para dispensar-lhes justiça. Tor-
narião a entrar no gozo dos seus bens, e quaesquer
escravos que lhes fugissem depois de prestado pelo
senhor o juramento de fidelidade, lhes serião resti-
tuidos; observava-se porem que entregar os que an-
tecipadamente havião fugido para os Hollandezes e
os tinhão servido, seria vil e abominável, nem se devia
pensar em tal. Permiltir-se-lhes-ia trazer espada
para defeza própria contra os negros dos Palmares.
Estas concessões e a generosidade com que Nassau
tractara os prizioneiros, diminuirão a aversão que os
Portuguezes votavão aos seus conquistadores. Tam-
bém para com os indigenas adoptou elle um systema
de beneficência, bem que nào faltassem homens po-
derosos, que com toda a seccura nacional do caracter
hollandez quererião ver tractar como brutos estes
desgraçados, impondo-lhes jugo ainda mais cruel
do que o dos antigos déspotas nos peores dias de sua
tyrannia.
512 HISTORIA DO RRAZIL.
11 : 7
'- Ventilava-se por este tempo a questão de saber se
Deliberações . *n i T. * *1 J
sobre a sede sc removeria para a ilha de Itamaracá a sede do go-
do povcrno.
verno. Beunia este logar as duas grandes venlagens
de madeira e água : a islo respondia-se que com o
trabalho dos escravos se obtinha madeira, posto que
mais cara, e água do Beberibe, a meia hora de dis-
tancia, bastando em caso de necessidade, para o
consumo indispensável, a quedavão as fontes. Uma e
outra posição erão egualmenle salubres; o Becife
tinha um bom porto, o que não succcdia na ilha, e
alem cFisso era ja cdiíicado e povoado, em quanlo
que no outro local tudo eslava por fazer. Prevalece-
rão considerações apresentadas por Nassau c polo
Concelho a favor da actual residência. A' vantagem
capital de Itamaracá, a de ser uma ilha, parece não
se ter attendido : erão então os Hollandezes por de-
Nieuiioff. mais poderosos para que houvessem de temer um
Barlwus. 52. COrCO.
A capitania Entretanto chegara Bagnuolo a Sergipe, d'EI-Bci,
si-ípe. cidade primeiramente chamada de S. Christovão l e
depois assim do nome do rio que ao pé lhe corria.
Sila a quatro legoas do mar continha cerca de cem
casas, com quatrocentos currais para o gado, uma

1
A cidade de S. Cliristovam que deve seu ir une a tlhrislovaill de
Barra, jjowrnador interino da Bahia, em Cujo tempo começou a con-
quista e civilisaeão d"anti»a capitania, nunca trocou o seu nome pelo
de Serj-ipe : deixou porem modernamente de ser a capital da província,
que agora é Aracaju. F. {'.
HISTORIA DO BRAZIL. 543
egreja malriz, uma Misericórdia e dous conventos. 1€3L
So a embarcações pequenas dava entrada a barra. A %
capitania, de que era esta a capital, exlendia-se qua-
renta e cinco legoas, separando-a da Bahia que lhe
demorava ao sul, o rioTapicuru, e de Pernambuco
ao norte o S. Francisco. Havia sido doada a Christo-
vão de Barros, em galardão dos seus serviços na re-
ducção dos selvagens. Oito engenhos havia dentro do
seu distrito, onde erão da melhor qualidade o tabaco
e sem numero os rebanhos.
D'aqui mandou Bagnuolo avizo á Hespanha; tam- Apela Souto
bem escreveu para S. Salvador ao governador Pedro conquíItadL
da Sylva, offerecendo-se a ir com as suas tropas em
soccorro d'aquella cidade, certo de que Nassau, com
a confiança do triumpho e da força, passaria a in-
vestil-a. Desdenhosa foi a resposta, que melhor seria
ficar onde estava, do que acarretar sobre a Bahia a
má sina de Pernambuco. Apoz isto nenhuma alter-
nativa lhe restava, e estabelecendo o seu quartel
general em Sergipe, d'alli renovou esse systema de
guerra de depredação com que tão bem se havia
dado. No forte Mauricio tractavâo os Hollandezes de
tirar d'esta capitania o gado, na vã esperança de
cortar os supprimentos á Bahia, e sem cessar se suc-
cedião as refregas. Entretanto cruzava Souto tres
vezes o S. Francisco em jangadas, o que os Hollan-
dezes havião reputado impossivel, largo como é
aqucllc rio, e cahindo sobre elles quando menos o
314 HISTORIA DO RRAZIL.
,057
- pensavão, outras tantas vezes levava a destruição e a
ruina até quasi ás portas do próprio Becife. \exado
por taes incursões, e vendo que o S. Francisco lhe
não era fronteira segura, fez Nassau, a quem tres
mezes de febre impedido de ir em pessoa, marchar
Gijsseliiigh, membro do Grão-Concellio, com dous
mil homens, a fazer juneção com Schuppe, e ambos
e
§'-87-9i." cxpellirem de Sergipe o inimigo.
nacnuoio Sabia Bagnuolo que novas forças tinhão chegado
a
sergipe. ao forte Maurício, mas importava-lhe também saber
o seu numero. Com Ires camaradas passou Souto o
rio a nado, entrou n'uma casa, e apoderando-se
d'um o fli ciai hollandez, trouxe-o para o acampa-
mento. Reuniu-se então uni concelho. Alguns espí-
ritos mais bravos forão de opinião que mais se care-
cia de reputação com que resistir ao inimigo, do
que de gente, e que convinba fazer frente; alias que
fazer, se abandonavão Sergipe, e a Bahia os não
queria receber? A isto retrucou-se que a Bahia agora
acceitaria goslosa os soecorros que antes rejeitara
desdenhosa, por quanto não se podia arrancar das
espadas em Sergipe, sem que de S. Salvador se lhes
visse o fuzilar. Demais era alli o verdadeiro logar de
provar brios, que guardando a cabeça do Estado se
defendia o lodo. A estes argumentos se rendeu Ba-
gnuolo, e mandando unia partida a assolar a fogo o
paiz que deixava atraz, de novo se poz em retirada
com os mi^eros emigrados das conquistadas proviu-
HISTORIA DO BRAZIL. 315
cias. Mais uma vez tiverão estes desgraçados de pas- 1637
sar pelos horrores d'uma fuga. Os Pitagoares como
mastins os forão acossando por todo o caminho; e
os tristes que rendidos de fadiga ou por qualquer
accidente ficavão atraz, erão sem dó despedaçados
por estes selvagens. Outros mais felizes cahiâo nas
mãos dos Hollandezes; muitos perecerão nas malas
mordidos das cobras1. Exhauslos de soffrimentos
muitos houve, que resolverão submetler-se ao ini-
migo, de quem obtiverão passaportes para regressar
ás abandonadas habitações. Os próprios chefes a
quem se communicava esla resolução, a animavão;
melhor era, dizião, este alvitre para o serviço do rei;
lá a todo o lempo cstarião promplos a ajudar os seus
conterrâneos aberta ou secretamente, valendo mais
que fossem para onde poderião coadjuvar os solda-
dos, do que seguir o exercito e carecer do auxilio
d'ellcs. Ainda assim não pôde o maior numero dos
Pernambucanos soffrer a idéia da submissão, edeses-
peradamenle forão por deante, sem saberem onde
nem quando teria fim a fuga. § m,e'mi
Na Torro de Garcia d'Ávila'achou Bagnuolo um
o Isetira-se
mensageiro com ordem do governador general para para8anBahia.

1
Em (pianto a partida fazia alto foi uma mulher lavar roupa num
regato, e depoz o filho n'uma mouta; logo depois ouvindo-o gritar,
voltou-se e viu uma onça a devoral-o. Perdidos á esta vista- os senti-
dos, caliiu na água com o rosto para baixo, afogando-se n'um arroio,
que mal lhe dava pelo tornozelo, li. Freire.
346 HISTORIA DO BRAZIL.
16n?
fazer alto alli, até que se resolvesse onde se aquarle-
larião as tropas. Respondeu que depressa iria a con-
sultar com elle a este respeito. Sahiu-lhc porem .
Pedro da Sylva ao encontro, recebendo-o com honras
que devião fazel-o esquecer o duro da primeira men-
sagem. Discutiu-se a questão; queriáo uns que as
tropas fossem immediatamente postadas em Villa
Velha, a meia legoa da cidade, que se levantassem
fortiticações e se pozesse tudo em estado de defeza.
Era esta a opinião de Bagnuolo e dos seus officiaes.
Oulros, que não podião crer que tivesse Nassau forças
com que pensar em similhante empreza, enlendião
que os soldados so servirião de estorvo, e que com re-
pararem-se as forlificações nada mais era precizo.
Prevaleceu este parecer.
Entretanto entravào Schuppe e Gijssclingh em
Sergipe, queimavão casas e engenhos, deslruião todas
as arvores fruetiferas e plantações, e feito isto vollavào
ao forle Maurício. Assim em logar de tomarem de-
baixo da sua protecção os abandonados moradores,
procurando concilial-os com bom Iraclamento, enxo-
tárão-nos para a Bahia, auginentando as forças da
capital com um bando de homens que o desespero c
a memória de soffridas injustiças tornavão formidá-
veis. Em toda esta campanha fez-se na capitania de
Sergipe horrendo estrago entre o gado. Diz-se que
Bagnuolo afugentara oito mil cabeças e inalara cinco,
para não deixal-as ao inimigo, e que os Hollandezes
HISTORIA DO BRAZIL. 347
destruirão tres, afora o grande numero, que, atra- 1657-
vessando o rio, levarão para as suas"proprias pro- "ggoTJ»?'
Barteus. 63.
VinCiaS. .\ieuhoff. 7.
348 HISTORIA DO BRAZIL.
1ÜÕ7.

CAPITULO XVII

5. Jorge da Mina accommeltido e tomado pelos Hollandezes. — Tomada


do Ceará. — Põe Nassau debalde cerco a S. Salvador. — Declarào os
Hollandezes livre o commercio do Brazil. — Estado dassuas capitanias.
— Edifica-se nova cidade perto do Recife. — Chega o conde da Torre;
perde grande parle da sua gente por moléstia, e apoz quatro acções in-
decizas corre com o temporal. — Retirada de Vidal e llarbalho. — O
marquez de Monte Alvão vizo-rei. — Re/oluçào em Portugal.— llepu-
>i^rio do vizo-rei.

Ataqucconira Em quanto isto se passava no Brazil assentou Nas-


S. Jorj;e . . .

.ia Mina. sau no império portuguez o golpe mais pezado, que


esle havia soffrido desde a perda de Ormuz. Nicolaas
van Aperen, que commandava o forte hollandez de
Mouree na costa do Ouro, lhe mandara avizo como
seria fácil tomar S. Jorge da Mina, com cujos offi-
ciaes tinha elle Ypcren suas relações, sobre haver ja
tomado o pulso á guarnição. Em 1ÚL2o tinhão os Hol-
landezes soffrido severa e vergonhosa derrota deante
(1'aquelle estabelecimento, o mais importante da costa.
Mil e duzentos homens havião desembarcado em
Commando ás ordens do vice almirante Jan Dircksz
Lam. Um corpo de negros os assaltou em quanto
desprevenidos e suffocados de calor; sorprehendidos
c tolhidos de terror, nenhuma resistência oppozcrào
HISTORIA DO BRAZIL. 349
os Hollandezes, mas alirárão-sc ao mar, onde quem 1657-
não sabia nadar pereceu. Forão mortos quasi qui-Bari^ st.
nhentos, sendo as cabeças levadas como tropheos aos ^-gj,-
emChurchill.
t65
Portuguezes. -
A lembrança d'este caso tornara mais cautelosos
os Hollandezes, e por ventura menos vigilantes os
Portuguezes. Durante a estação chuvosa, em que pela
maior parte se interrompião no Brazil as hostilida-
des, embarcou Nassau 800 soldados em nove navios
cujo commando deu a Jan Koin, um dos do Conce-
lho Supremo. Atravessou este para a África com prós- &**£"•
pera viagem, avistou-se com Van Yperen, e fez um
tractado com alguns regulos do paiz, que assaz
franca c judiciosamente lhe declararão que, manten-
do-se ncutraes durante a contenda, farião depois causa
commum com o vencedor. Dividiu Koin a sua força
cm Ires batalhões, dando o primeiro a Willem Latan,
o segundo a Jan Godlaat e reservando para o seu
commando immediato a retaguarda. N'esta ordem
° i'. d'ag.
avançou para o castello : de repente rebentão das
selvas mil alliados pretos dos Portuguezes e na con-
fiança da sua primeira victoria sobre os Hollandezes,
pouco faltou que não ganhassem segunda. Do desta-
camento da vanguarda cahirão oitenta, com muitos
officiaes, entre os quaes o próprio Latan, mas os ne-
gros, em logar de seguirem a fortuna, parárão a
cortar as cabeças aos mortos, expondo-se assim ao
fogo do segundo batalhão. A mortandade que sof-
350 HISTORIA DO BRAZIL.
1637. frérão os aterrou, e durante o resto do assedio mais
solícitos se mostrarão em guardar-se a si, do que
em molestar os invasores.
nende-se Koin cortou um caminho pela lloresla até ao viso
' d'um ouleiro, d'onde, levantando baterias, princi-
piou a lançar contra o castello granadas que Ia não
clicgavào. Alguns negros, que elle ganhara á sua
parcialidade, deráo um assalto á villa, e forão recha-
çados; não obstante tão bem estava o commandante
hollandez inteirado do humor da guarnição, e co-
bardia ou traição do governador, que o intimou a
render-se, se não querião ser Iodos passados á es-
pada. E sem mais tirle nem guarle, quatro dias de-
pois da chegada do inimigo, antes de ter soffrido o
menor damno e de lhe ler cabido um so soldado, en-
tregou o miserável que alli commandava, o logar
mais importante e forte que possuião na África Oc-
cidental os Portuguezes. Tão infames como o aclo da
rendimento forão as condições, a saber que a genle
seria desembarcada na ilha de S. Thomé com a roupa
tfid-ag do corpo e nada mais. No castello assim vilmentc
entregue havia trinta boas peças de bronze, nove
mil arrateis de pólvora, oitocentas balas grandes de
ferro, trezentas de pedra, e outras mais pequenas
em abundância; as armas de mão jazião ferrugenlas
no arsenal. Posta guarnição cm S. Jorge da Mina,
mandarão os Hollandezes uma chalupa a intimar o
forte de Alzyn, mas aqui acharão um governador
HISTORIA DO BRAZIL. 351
1657
d'outra tempera, que lhes declarou que até á ultima -
havia de defender o seu posto. Contentando-se com
1
Barlaeus.
a brilhante conquista que fizera, voltou pois Koin D,";. 8 0 *».
„ .. Barbot.' 167."
ao Recue.
Entretanto dera-se a Lichthart a commissão de ir Tomada
do Ceará.
fazer o mal que podesse nas visinhanças da Bahia,
que tinha Nassau olhos fitos na capital do Brazil, es-
perando aplanar o caminho da sua conquista com
pol-a em apuro de mantimento. Tendo feito grandes
estragos na bahia de Camamú, correu o almirante
com o vento até aos Ilheos, que atacou, sendo porem
repellido pelos moradores1. Forão agora convidados
os Hollandezes a voltar a outras partes as suas armas:
as tribus indígenas do Ceará recorrerão a elles que
as libertassem, tendo qualquer jugo por preferível
ao que supportavâo, agora que Martim Soares, cujo
prudente proceder antigamente as havia conciliado,
milhava na guerra de Pernambuco. Pouco se aven-
turava em invadir esta capitania, onde tinhão os Por-
tuguezes apenas um fortim, defendido por trinta
soldados, e duas peças de ferro, e os selvagens fize-
rão ver que a despeza da conquista depressa seria
rcsarcida com a producçâo do paiz, algodão, pedras
1
Os Hollandezes dizem, que elle entrou a villa, mas nào julgou
que valesse a pena destruil-a. Ora destruir era o so e único fim d'esta
jornada, e por tanto sigo sem hesitar a narração de Brito Freire,
lanto mais que nunca tive razão de pòr em duvida a veracidade d'este
bem informado e sincero historiador.
352 HISTORIA DO BRAZIL.
,{í37
preciosas, sal de numerosas salinas ao longo da costa,
âmbar, que cada tormcnta lançava á praia, o madeira,
especialmente uma formosissima cõr de violeta. Por
demais tentadora era a occasião para ser desprezada,
posto que Nassau nunca antes tivesse pensado em ex-
tender as suas conquistas para o lado da linha. En-
viou-se Joris Garstman, e rendeu-se o forte, que
iiariaius.66. coroava um oulciro juncto d'um ribeirão, em que
B. Freire.

% 810-U. embarcações pequenas podem achar porto.


itqupscfazia Novos edictos c regulamentos se promulgar.'o
agora no Becife. Decrelárão-se penas severas contra
quem de qualquer modo defraudasse a renda publica,
e eslabelecerão-se patrulhas para segurança do paiz,
que bandos de salteadores devastavão com incança-
vel actividade. Como havia escassez.de farinha a Iodos
os que empregavão negros se impoz a obrigação de
plantarem mandioca nos mezes costumados de ja-
neiro e agosto, o (pie provavelmente não fazia o pelas
muitas incursões dos Portuguezes. Prohibindo todos
os processos frivolos se procurou mitigar o furor li-
tigioso, e fazer desapparecer a freqüência do assassi-
nato por meio de leis rigorosas.- As ordenações rela-
tivas á religião indicavão um espirito de intolerância,
que principiava a manifestar-se ao passo que os con-
quistadores se ião tendo por mais seguros. Bestrictos
os Judeos na celebração publica das suas ceremonias,
ordenou-se também aos calholicos da Parahyba que
dentro do recinto de suas egrejas encerrassem as
HISTORIA DO BRAZIL. 353
l637
procissões. Nenhum templo mais se havia de erguer
sem permissão do senado, nenhum casamento cele-
brar-se sem se lançarem os pregões á moda dos Hol-
landezes ; e aquelles que ao formarem um novo en-
genho de assucar o quizessem mandar benzer, havião
de recorrer para isso a um padre "reformado, não a
um papisla1. Os homens da governança no Recife
remettérão amostras de ouro das minas para a Hol-
landa, onde fossem ensaiadas; era que elles ja se
phantasiavão seguros senhores do paiz, em quanto
estas medidas, a que a previa affectação de iIlimi-
tada tolerância dava seus laivos de traição, tornando-
os merecidamente mais odiosos, lhes solapavão o
único fundamento sobre que poderião ter assentado
o seu poder.
Aguardava Nassau soccorros, ao restabelecer-se 1638.
de sua longa enfermidade. Insoffrido de repouzo,
aproveitou elle este meio tempo para percorrer a
capitania da Parahyba e o Potengi, reparando os
logares que lhe parecerão bons para se conservarem
e dando-lhes novos nomes. A' villa da Parahyba
antes chamada do nome de Philippe, deu agora o de
Frederico, príncipe d'0range; ao forte do Cabedello,
antes de Sancta Catharina, deu o de Margarida, em

1
Lastima Netscher que o conde de Nassau, cedendo ás importu-
nações dos ministros protestantes, revogasse os edictos que em porol
da liberdade de consciência, e tolerância religiosa, tão sabiamente pro-
mulgara. F. P.
554 HISTORIA DO BRAZIL.
1638. honra de sua própria irmã, e o de Ceulen, que o
tomara, ao do Bio Grande. Aqui lhe enviarão os Ta-
puyas presentes, recebendo oulros em troca, como
penhores de amizade e alliança. Succedeu ser captu-
rado um navio de Lisboa com muitas cartas a bordo.
N'eslas se dizia que se ficava apparelbando poderosa
armada para o Brazil; dos que as escrevião uns repu-
tavão isto mero pretexto para levantar dinheiro,
andando a corte de Madrid tão occupada com couzas
que mais de perto a tocavão, e especialmente com os
tumultos de Évora, que mal poderia attender aos seus
remotos dominios; outros pelo contrario affirmavào
que o levante estava abafado, que Oquendo havia ja
sido nomeado para o commando da expedição, e que
esta sem duvida alguma daria á vela. Nenhum cui-
dado deu isto a Nassau; durante o inverno não podia
vir a armada, alem de que inclinava-se elle mais a
dar credito a outras cartas, que pinlavão o rei dlles-
panba como por demais entregue aos seus diverti-
mentos, para que houvesse de dar um so pensamento
ao Brazil. Em todo o caso escreveu á Companhia das
índiasOccidentaes que era indispensável mandar-lhe
reforços com que podesse resistir aos Hespanhoes, se
viessem, ou tirar partido do seu descuido, se ficas-
sem ; e pediu navios que servissem para o duplo fim
u e ;irros
^09*^' lar a frota inimiga elevar para casa assucar.
Na sua volta da Parahyba achou Nassau une linhão
Preparativos •' 1
aTailia. chegado provisões de boca e de guerra, porem so-
HISTORIA DO BRAZIL. 555
163».
mente duzentos soldados. A estação das operações
militares iâ correndo, e apezar da decepção que tão
parco reforço lhe causou, resolveu elle atacarS. Sal-
vador sem mais perda de tempo. A sua gente, que
as passadas victorias havião tornado confiada, o insti-
gava a fazel-o, e até traidores houve na capital do
Brazil que o convidarão a commetter aempreza, assc-
verando-lhe que por falta de soldo estavão promptas
a amotinar-se as tropas; que Bagnuolo e o governa-
dor andavão desavindos; e que o povo se inclinava a
favor dos Hollandezes pela generosidade com que
tinhão sido tractados os que se havião submettido.
Era na verdade um inimigo generoso o conde Mau-
rício. Bagnuolo escreveu-lhe, pedindo a entrega d'al-
gumas mulheres e crianças, cujos, maridos e pães
andavão no exercito portuguez, offerecendo por ellas
considerável resgate; a resposta foi que antes queria
que lhe agradecessem do que lhe pagassem o bene-
ficio, e aprestou üm navio de propósito para levar
esta genle á Bahia. 0 povo, cuja primeira explosão
de sentimentos é sempre justa até certo ponlo, sejão
quaes forem as suas opiniões, applaudiu altamente
esta acção; algumas cabeças mais atiladas, como as
chamào, rebaixárão-lhe o merecimento, observando
que o navio vinha a espionar o estado da cidade. É
certo que os marinheiros hollandezes havião de tomar
nota do que podessem, mas culpa era dos Portugue-
zes se aquelles alguma couza vião em detrimento
356 HISTORIA DO BRAZIL.
1638. d'estes. A Nassau não lhe fallavão inlelligencias tanto
no Recôncavo como na cidade1, e dYsses que em toda
a acção generosa suspeitão sempre um motivo baixo,
é que mais devemos desconfiar.
Marclia Na mais descuidada segurança vivia o povo da
""to"? Bahia em geral. Longa e desastrosa experiência pelo
S. Salvador. . ° ° m i n
contrario tornara Bagnuolo cauteloso, lambem elle
tinha suas espias: estas o informarão de que os úl-
timos despachos d'Amsterdáo representavão a llespa-
nha occupada demais para pensar no Brazil, e que
Nassau reunia no Becife toda a sua força naval.
D'aqui inferiu Bagnuolo immcdiatamente que a
Bahia ia ser investida, e partindo sem demora da
Torre de Garcia, foi postar-se cm Villa Velha, ás
portas da cidade. Isto o fiz sem consultar o governa-
dor, e até contra os desejos d'elle e dos cidadãos,
mas tão convencido estava da exaclidão das suas no-
ticias que nada pôde dissuadil-o. Collocárào-se postos
avançados, e concordou-se em que'um dia seria Ba-
gnuolo e oulro o governador, que havia de dar as
ordens, conchavo, de que nenhum mal podia provir
B
§s,iíiT' em quanto estava longe o perigo 2 .
1
Se dermos credito ao que nus refere llarleo (lies, gest. sub
comitê )lauritw in Brasília, p. 164), o denodado guerrilheiro D. An-
tônio Philippe Camarão entrou em negociações com .Nassau para aban-
donar a causa portii^ueza. I". P.
1
Lemo> nos melhores chronislas e historiadores que o governador
«reral do Brazil Pedro da Nelwi, que se mostrara a principio hostil ao
conde de Bagnuolo, levara depois o seu e. ivalheirisino em renunciar cm
suas mãos toda a auetoridade militar. F. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 357
Entretanto mandou-se Souto com João de Maga- 1638
lhães e sessenta tiomens a Pernambuco, d'onde desouti
trouxesse noticias mais certas. Ao chegarem ao San
Francisco, atravessou-o Magalhães acima do forte
Maurício com quarenta e cinco dos da parlida, tendo
Souto marcado tempo e logar para todos se encon-
trarem nas Alagoas. Este seguiu com os restantes
quinze homens pela ribeira até á barra, onde se
dispoz a atravessar o rio em jangadas. Estava alli por
acaso fundeada uma pinaça hollandeza, cuja tripo-
lação composta de dez pessoas veio a terra. Cahiu-lhe
Souto em cima, matou seis, mandou Ires dos seus
com os outros quatro prizioneiros para a Bahia, e
passou o rio na embarcação assim aprezada. Um
colono da margem opposta, a quem se dirigiu para
obter informações, lhe disse que dous navios do
Recife acabavão de chegar a Cururuipe, dez legoas
d'alli, onde os Hollandezes tinhão levantado trin-
cheiras á volta d'uma egreja abandonada, perto da
praia, guarnecendo-as com vinte e cinco homens.
Souto tinha apenas doze; sem embargo arremetteu
contra estas trincheiras ao romper do dia, matou
dezoito Hollandezes, e fez um prizioneiro, fugindo-
lhe os outros seis. Na ignorância do que havia suc-
cedido desembarcarão os capitães dos dous navios
antes do meio dia e forão mortos ambos, encontrando-
se na algibeira d'um uma carta, com a noticia de
ter Nassau communicado ao Concelho a sua intenção
358 HISTORIA DO RRAZIL.
1658
de atacar S. Salvador, desígnio que foi approvado.
Eutrão os Chegada á capital esta nova, não pode mais o povo
Ilollandeze:
lollandezes o i
i
dê-Todísos
Sanctos.
fechar os olhos ao perigo. Jamais se achou cidade
menos preparada. Com uma indolência que mal se
pode crer, linha elle visto anno apoz anno os pro-
gressos do inimigo sem cuidar na própria defeza.
Não se crigião obras novas nos logarcs onde erão evi-
dentemente necessário, e sem reparos se deixavào
as antigas. Desmontada a artilharia, nem as carretas
estavão promptas nem as balas á mão : havia por
acaso alguma farinha nos armazéns, mas tudo o mais
faltava. Tal era o eslado de S. Salvador, quando cinco
dias apenas depois que se começou a acreditar na
sua vinda, apparccérão os Hollandezes á vista. Extra-
11 .1'aljl.
1l3X. ordinariamente rápida havia sido a viagem do Becife,
tendo durado seis dias n'uma estação cm que se
costumavão gastar quatro a seis semanas Segundo os
Portuguezes traziào elles 7,SOO homens, contando
marinheiros e índios, em quarenta navios'. Simu-
larão um desembarque cm Tapoão, a unia legoa da
entrada da babia, mas logo a entrarão, deitando ferro
em Tapagipe, defronte das capellas de Nossa Senhora
da Escada e de San Braz. Impossível fora guardar
todos os ponlos da costa e este havia sido um dos que
por necessidade se deixarão abertos. Aqui saltou o

1
Segundo o calculo de \elsclier levara omisigo T>, SOO soldados C
marinheiros; alem de 1,(!()() indígenas. F. P.
HISTORIA DO RRAZIL. 559
I638
inimigo em terra de tarde, avançando na manhã se- -
. . B. Freite.
guinte para os muros. § 855 6.
Mil e quinhentos homens contava a guarnição de Tumultos
n â CHIí)fl^

S. Salvador e as tropas de Pernambuco pouco passa-


vão de mil; por felizes se davão agora o governador
e o povo com terem estas forças, que outr'ora com
tanta insolencia havião rejeitado', e ultimamente de
tãomá vontade recebido. Nassau fez alto sobre uma
eminência: de differenles postos marcharão tres bri-
gadas, formando.em linha para fazer-lhe frente, e
da cidade sahirão o governador, Bagnuolo e Duarte
d'Albuquerque com as tropas para apoial-as. Algum
tempo cstiverão os dous exércitos a tiro de canhão
um do outro, sem que nenhum avançasse ao ataque.
Disse então Bagnuolo ao governador que não lhes
ficava bem abandonar o abrigo dos muros, sahindo
d'aquella forma ao encontro de forças superiores em
campo aberto; o que lhes cumpria fazer era defender
a cidade, que, se passavão a noute alli, podia de
manhã ser investida pelo inimigo. Isto o disse assaz
alto para ser ouvido de quantos estavão perto; mui-
tos houve que na sua vã bravura desapprovárão o
conselho, mas todos o seguirão, retirando-se para
dentro de portas. Ao ver esta retirada enraiveceu-se
a gentalha, que não pensa, levantando um alarido
como se a cidade tivesse sido trabida. Tocou-se o sino
da Câmara, so tangido quando havia que deliberar
sobre negócios da maior importância para o publico,
360 HISTORIA DO BRAZIL.
1658. e espalhou-se um grito, que se os aetuaes comman-
dantes não combatião e defendião o povo, poria este
outros que o fizessem. Pouco faltou que o desconten-
tamento não prorompesse em motim declarado. In-
tervierão o bispo e Duarte d'Albuquerque, cuja
submissão mais do que aucloridade aquietou o povo,
a quem se prometleu fazer a vontade. Em conse-
qüência d'islo marchou Bagnuolo na manhã seguinte
uma legoa com todas as tropas a dar batalha aos Hol-
landezes, que procurou no logar da véspera, devendo-
se crer para honra d'elle, que sabia não os encon-
traria alli. Havia o inimigo tomado outra posição, e
se cahisse sobre a cidade, agora que Ioda a força
regular estava fora, poderia tel-a entrado quasi sem
resistência. Mas é que os Hollandezes sabião tão
pouco dos movimentos de Bagnuolo, como este dos
d'elles, e o general recolheu-se a salvo, tendo satis-
feito o vulgacho com esta arriscada condescendência.
No quarto dia do seu desembarque tomou Nassau
Hendem-se '
uatrofortes. p 0 s S e d'um alto, fora de tiro de canhão da cidade, e
a bala de mosquete da capei Ia de Saneto Antônio.
Passava este edifício por ser poslo importante; alli
levantara o ultimo governador Oliveira trincheiras,
que o desmazelo havia deixado cahir em ruinas, e
agora que erão precizas é que se trabalhava índias.
Da posição que oecupavão balião os Hollandezes a
cavalleiro o Forte do Rosário, e o reduclo da Água de
Menimos que protegia a praia; desde logo forão to-
HISTORIA DO BBAZIL. 361
mados ambos. No forle havia seis peças; tres que l638
erão de bronze levárão-nas os Portuguezes para as
trincheiras de Saneio Antônio; as outras, que erão de
ferro, arrebentárão-nas: duas, que estavão no re-
dueto, tiverão de deixal-as. Aqui nenhuma culpa
houve da parle dos commandantes, que fizerão quanto
poderão em defeza de postos insustentáveis, mas o
forle de Monserrate, com seis peças, foi entregue
sem resistência, e lambem o de S. Bartholomeu,
posto que defendido por dez canhões, e guarnecido
por setenta homens. A tomada d'esta importante es-
tação assegurou a Nassau communicação aberta com
a sua armada, e o povo da Bahia principiou a acre-
ditar que nada emprehendia aquelle homem que lhe g ^.^
não sahisse á medida dos seus desejos. §884_G-
Para maior perigo da cidade lavrava a insubordi-
nação entre as tropas. Os capitães da guarnição não
querião obedecer ás ordens de Bagnuolo, nem os de
Pernambuco ás do governador. N'esta conjunetura
reparou Pedro da Sylva os erros anteriores : vendo R
desde logo que a continuar esta falta de disciplina, ™™J»
devia perder-se infalivelmente a praça, foi ter com ° n " s m S c
, . de Bagnuolo
Bagnuolo, pedindo-lhe que sobre si so tomasse o
commando durante o sitio. Até esta acção foi enve-
nenada pela más línguas; disserão que fora ella
prudente, pois que se o assedio terminasse em bem
para Portugal, caheria a honra a Bagnuolo, quer
tivesse o commando nominal, quer não, de modo que
."tl-2 HISTORIA DO R R A Z I L .
I,i:,s
a única couza de que o governador se descartava,
cedendo a auetoridade, era da responsabilidade da
perda da cidade, se se verificasse. Mas o proceder de
Pedro da Sjlva é digno d'allos encomios : sabia que
Bagnuolo era melhor soldado, e ao bem publico sa-
B. freire.
s>i:-s. crificava a própria hicrar* hia '.
Troca de Como general andara Bagnuolo muitas vezes er-
prizioneiros
rado, c sempre infeliz. Conhecia a sua própria im-
popularidade, e este acto de não esperada confiança
parece quasi lel-o regenerado; o zelo, aetividade e
intrepidez, que desenvolveu agora, tornárf o-no tanto
objecto de admiração, como antes o havia sido de
ódio e desprezo. Deixou Sylva a commandar na ci-
dade e foi portar-se na capclla de Saneio Antônio,
onde dia e noute se trabalhava nas trincheiras. Che-
gou um corneta do campo inimigo; trazia cartas
para ambos os commandantes, dizendo que de Per-
nambuco viera na armada um Franciscano descalço,
a fallar ao custodio sobre negócios da ordem. Simi-
Ihante mensagem em tal occasião, e vinda de Hol-
landezes hereges, foi recebida com bem cabida sus-
peita, pelo que se lhe deu uma evasiva resposta
negativa. No dia seguinte voltou o mesmo homem a
ver se os Portuguezes quereriáo dar os seus prizio-
neiros pelos que havião sido feitos nos fortes. Os

1
Com estas nobres expiessões repara Southej as injustiças que por
mas d'uma vez irrogáiVao distinrtu "eneral italiano, conde de Üa-
"IIUIIJ. K. P.
HISTORIA DO RRAZIL. - 363
prizioneiros, que os Portuguezes linhão em seu po- 165f?
der, erão apenas dezoito, e com uma cortezia, que os
acontecimentos posteriores provarão ter sido effeito
do medo, não da generosidade, forão vestidos e pos-
tos em liberdade 1 .
0 fim principal por que duas vezes se mandara consternaço
um mensageiro com recados de Ião pequena monta, Ja cidad*,
era provavelmente observar o estado das trincheiras.
Bagnuolo lhe mandara vendar os olhos antes de ad-
millil-o á sua presença, mas era evidente que as
obras não estavão Completas, pois que n'ellas se tra-
balhava ainda, c Nassau mandou J ,500 homens a 21 a>br.
1608.

assallal-as. Forão repellidos com perda de 200, van-


tagem que aos Portuguezes cuslou a vida d'alguns
valentes. Mandasse Maurício dobrado numero, que
leria tomado trincheiras e cidade : tão pouco estava
esta preparada ainda, que quando ao dar-se agora o
rebate se forão a fechar as portas, viu-se que uma
não trancava. D'um extremo tinhão passado ao outro
os moradores de S. Salvador; os que não acreditavão
na existência do perigo antes de visto o inimigo,
julgavão agora impossível a resistência, começando
não so a pensar em capitulação, mas até a fatiar em
tal, e suspirar por uma passagem para a pátria cm
transportes hollandezes. Havia porem quem tivesse

1
Porque desvirtua Soulliey esta tão louvável e cavalheiresca acção
do general italiano? F. P.
564 H I S T O R I A DO RRAZIL.
1o:,s
melhores sentimentos. Um official, que com entra-
nbavel magoa vira a facilidade, com que havião sido
tomados os fortes, e a pusillanimidade do povo, foi _
um dia ao paiol antes de amanhecer para distribuir
pólvora e achou debaixo da poria uma mecha acceza;
o horror e a indignação ao descobrir assim que havia
traidores dentro dos muros, forão taes, que perdidos
"§ 851-5!' logo os sentidos, morreu doudo furioso.
Aba^ec- Nem tinha Nassau um exercito sufficiente com que
,i™c?da°ic. cercar a cidade, nem conhecia assaz o paiz para
occupar os postos mais importantes. Dos seus erros
tiravão partido os Portuguezes, que sempre alerta
lhe picavão os quartéis, abastecendo de continuo a
cidade. Neste serviço se dislinguirão particularmente
Souto e Bebello, mettendo o segundo na praça, de
duas expedições, mais de mil rezes bovinas e um re-
banho de carneiros. Até o mar era mal guardado dos
Hollandezes, e emquanto no campo dos sitiantes se
sentia escassez, recebião os sitiados provisões em
abundância.
,\br,,no- Completas estavão agora as obras em Saneto An-
u
«11 1
llollaiiilcz *
as sua>
leltcna* tonio, e Bagnuolo, cuja presença se não fazia mais
preciza, recolheu-se á cidade, dirigindo logo para
outro logar a sua atlenção. Os prizioneiros o infor-
marão de que Nassau meditava occupar outra posição
mais próxima, donde com mais vantagem batesse a
cidade. Sabido isto, julgou o commandante portu-
guez necessário segurar as Palmas, posto d'onde
HISTORIA DO RRAZIL. 365
D. Fadrique de Toledo muito vexara os Hollandezes i(338.
quando estes erão senhores da Bahia. Assim prevenido
aos seus desígnios, abriu o inimigo as suas baterias
no Io de maio. Hoje em dia, em que a obra da des-
truição se faz em tão tremenda escala, similhanles
baterias quasi excitão o riso; na maior, que ficava
fronteira a Saneto Antônio do lado do mar, não se
montarão mais de seis peças de vinte e quatro; e nas
outras do lado de lerra duas de egual calibre. Jamais
talvez se fizesse guerra con meios tão desproporcio-
nados ao intento : duas nações se disputavão um
império não menor em extensão do que a Europa ci-
vilizada, e nunca d'ambos os lados chegarão as forças
a quinze mil homens.
Taes quaes erão fazião similhantes baterias effeito Cartas
contra similhantes muros : á noule tinhão demolido tadas.
os lanços contra que jogavão, na manhã seguinte
novas obras apparecião da parte de dentro. Da Egreja
Nova vexavão os sitiados com considerável effeito os
de fora; levantarão mais obras exteriores, e para
supprir a conseqüente reducção da guarnição, man-
darão buscar cento e cincoenta homens de duzentos
que estavão constantemente de serviço no Morro de
S. Paulo. Por este tempo forão parar ás mãos de
Nassau algumas cartas aprehendidas n'um navio de
Lisboa; os que as escreviâo desesperavão da sorte do
Brazil; quanto a mandarem-se forças para restaurar
Pernambuco, isso, dizião, era impossível; todas erão
366 HISTORIA DO RRAZIL.
1638. poucas para defender a llespanha, nem o thesouro
tinha com que supprir as despezas. Estas cartas man-
dou-as elle a Bagnuolo, pensando que nada o desa-
coroçoaria tanto. Pouco depois forão descobertos e
enforcados Ires espiões dos Hollandezes.
Outra vez poz a própria precipitação e insubordi-
nação em perigo os Portuguezes. Constrangidos tive-
rão os commandantes de prometter que fariáo uma
sortida a atacar o inimigo nas suas trincheiras. Bem
• sabíão elles que seria isto ruína certa, mas oulro
meio não tinhão de evitar uma calaslrophe immi-
nente, sendo precizo inculcar assentimento, e fixar
hora para a empreza : pouco antes de raiar o dia, que
era o momento designado, mandarão secretamente
dar um rebate falso, e o povo, persuadido que os
vieyra Hollandezes havião descoberto o desígnio, deu-se per
Sermõeí.
s. ne satisfeito.
Batalha nas Alguns prizioneiros trazidos por Souto á cidade,
declararão todos que reinava no acampamento a
escassez, couza tão pouco provável, que não querião
acredital-a os sitiados, embora estes homens cada
um separadamente a aflirmassem. Não contara Nas-
sau com a resistência que encontrava, e pensou que
as poucas provisões que levava chegarião até se tomar
a cidade; enganou-se e os seus forrageadores, pouco
practicos do paiz, mal podião compelir com homens
como Souto, Camarão e Henrique Dias. A final re-
solveu sal tear as trincheiras de Saneio Antônio e pio-
HISTORIA DO BRAZIL. 367
1638
vocar o desfecho do cerco. A's sele horas da tarde do '
T i c • • •f i -li ~ 18 de maio
dia to principiarão o assalto tres mil homens. Ca- •
nhárão o fosso e alli se entrincheirarão, depois arre-
mettérão ás portas. Aqui se tornou sanguinolento o
combate. Era tão estreito o logar, que nenhum tiro
se perdia; as balas ardentes e granadas dos assal-
tantes produzião inteiro effeito, e as traves e pedras
dos sitiados cahião sobre as cabeças dos de fora. Por
extranha imprevidencia deixarão os Hollandezes de
dar rebate em outros postos, pelo que poderão os
Portuguezes concentrar aqui todas as suas forças.
Uns atacavão no fosso os assaltantes, outros os recha-
çavão das portas. Todas as tropas das obras exteriores
acudirão á acção; Nassau levou o resto das suas forças
ao assalto e este tornou-se batalha general, de que
devia depender a sorte do assedio. Os Hollandezes
cederão, pois pelejavão com desvantagem. Maurício
deu ordem de matar quem fugisse, e desesperados
voltarão elles á carga, mas nada lhes valeu. Os Portu-
guezes, conhecendo o terreno que pizavão, linhão na
escuridão uma confiança que os seus contrários não
podião sentir; tinhão também para a defeza um
estimulo que lhes dobrava o esforço, e repellirão o B. Freire.
§ 870-9.
inimigo.
De manhã propoz Nassau uma tregoa, que foi ac- Morte
ceita, para enterrar os mortos. Os Hollandezes tinhão
deixado cerca de quinhentos no campo, e cincoenta
prizioneiros, os Portuguezes perdido uns duzentos
368 HISTORIA DO RRAZIL.
1638
entre mortos e feridos1; mas tão pouco peritos erão
os cirurgiães d'estes, e tão falhos estavão das couzas
mais necessárias, que matarão mais gente do que
immolara o inimigo. Mais do que um bravo cahiu
n'aquella noute; e aqui concluiu a sua carreira Se-
bastião de Souto, cujos inexhauriveis recursos, incan-
çavel actividade e impávida coragem nos fazem
lastimar a maneira traiçoeira por que principiou a
servir o seu paiz, e a brutal rapacidade com que in-
discriminadamente roubava nas suas correrias amigo
e inimigo. Custou-lhe a vida uma bravata no ardor
da peleja. Cães, bradou aos Hollandezes, a todos vos
heide arrancar as almas, que sou eu o capitão Souto,
deante de quem tantas vezes fugistes em Pernam-
buco! Logo uma fila inteira do inimigo o tomou por
Vai. Luc.
Pi5
- alvo.
crueldade C° m vergonhosa crueldade se vingarão da sua
Hollandezes. derrota os Hollandezes. Nas suas ligeiras embarca-
ções explorarão o Beconcavo, e onde quer que desco-
brião uma casa desguardada passavão tudo á espada.
Uma das victimas d'estc baixo resentiinento foi João
de Matos Cardoso, o mesmo que tão brilhantemente
defendera o forte do Cabedello na Parahyba; agora
com mais de oitenta annos de edade foi assassinado
1
Achamos mais razoável o calculo de P. Varnagcn que orça a
perda dos Hollandezes em trezentos e vinte septe mortos e cincoenla e
dois prisioneiros: e da nossa parte em cento c tantos mortos e fe-
ridos. F. P.
HISTORIA DO RRAZIL. 369
no seu retiro. Mais uma semana continuarão os si-
tiantes a fazer fogo contra a cidade, onde pouco
damno e. nenhum receio causavão, sendo pelo con-
trario elles próprios que soffriâo muito, pois com
extranha imprudência fora Nassau assentar o seu
campo a tiro de canhão da praça, e n'uma posição
onde pântanos impossíveis de se passarem o impedião
de ir atacar as baterias que o incommodavão. Dia e
noute mantinhão os Portuguezes a sua canhonada,
pensando que a chuva reteria nos quartéis os solda-
dos ; muitos buscarão nos bosques abrigo a este risco,
e o resultado foi principiar a doença a devorar tanta
gente como a guerra 1 . No fim d'oilo dias d'esta louca
perseverança renunciarão á empreza, abandonando
parte das suas provisões e quatro peças de bronze,
afora quanto havif.o tomado nos fortes. Quarenta dias 20 de maio.
durou o cerco, sendo a perda do inimigo avaliada cm
dous mil pelos Portuguezes2. Belirárão-se os Hollan-
dezes ainda em boa occasião, quando ja se havião
disposto as couzas para atacal-os pela retaguarda,
principiando-se a fazer movimentos que bem podião
obrigal-os a renderem-se. Effectuado o embarque, ' e0vac"l:'^<'
mandou Nassau todos os prizioneiros para terra,
pedindo em Iroca os que lhe havião feito : recusou-se.

1
Piso descreve este contagio. L. 1, c. 15. De fluxii a!vi l.epa-
tico.
8
Segundo o testemunho de Netscher perderam os Hollandezes mil e
cem homens neste commettiinento. F. P.
ir. 24
5T0 HISTORIA DO RRAZIL.
1638. Os estragos commettidos no Bcconcavo servirão de
razão á recusa, mas como Bagnuolo, accedendo a
proposla análoga, soltara prizioneiros no principio
do assedio, vestindo-os de mais a mais, inipulou-se
B. Freire, a medo a acquiescencia d'então, a arrogância a excusa
§888-92." ,,
Barlrcus. 84. d a g o r a .
O grande erro de Nassau nas suas operações contra
a Bahia, foi expellir de Sergipe os restos do exercito
pernambucano, reforçando assim a guarnição com
mil e duzentos soldados veteranos, que, na phrase de
Vieyra, erão os ossos da guerra, e pelo seu valor e
sormões. experiência dignos de serem venerados como reli-
1 * 8( p. 108. *
quias. Nas circumstancias do cerco acharão os mora-
dores curiosos motivos de practicas devotas. Eslava
o mar aberto ao inimigo e durante todos os quarenta
dias que os Hollandezes ficarão deante da cidade
jamais se tinhão fechado as portas nem de noute nem
de dia. L< nibrárão-se pois de que com razão se cha-
mara de cidade do Salvador aquella povoação, pois
que ninguém sen.V» o Senhor seu salvador e patrono,
podia ter fechado ao inimigo todas as entradas,
w. i'. nu. o s i a n d 0 abertos o maré a terra. Os sitiantes tinhão
assentado os seus quarleis e plantado suas baterias
defronte da egreja de Saneto Antônio, e fora no dia
d'este saneto que havião levantado o cerco com desba-
rato, perda e vergonha. E aqui estava outra prova
da intervenção divina a favor dos Portuguezes. Dis.se-
se-lhes n'um sermão de graças que da cadeira de
HISTORIA DO BRAZIL. 371
1658
S. Pedro fora saneto Antônio chamado a arca do Tes- -
tamento, por que no seu espirito se coníinhao os
mais profundos mysterios da divindade. A própria
infallibiüdade havia declarado que este saneto era a
Arca : que typo mais verdadeiro se poderia imaginar
dos Hollandezes do que esse ídolo dos Philisteos meio
homem meio peixe?... e vede, Dagão cahiu de rosto Sermões.
112, 117.
para o chão deante da Arca!
Ingrato ás tropas pernambucanas não foi o povo
de S. Salvador; reconhecendo que a ellas se devia
a salvação, presenteou-as o senado da câmara da
cidade com um donativo de mil e seiscentos cruzados.
Da Hespanha vierão honras e recompensas para mui-
tos que durante o assedio se havião distinguido. Ba-
gnuolo obteve segundo titulo italiano4 e Pedro da
Sylva foi feito conde de San Lourenço. Os militares
lhe aferirão o proceder por um falso padrão de honra,
por demais geralmente reconhecido, e, mofando
d'elle, dizião que tanta humildade melhor assentava
n'um frade da Arrabida do que n'um commandante.
A corte pelo contrario o applaudiu, decbrando que
pozera elle um exemplo digno de imitar-se. Alta-
mente louvável foi em verdade este comportamento;
so um sábio assim podia pensar, so um valente assim
proceder.
Com a lembrança de que o conhecimento que
1
Uni principado no reino de Nápoles, sugeito nessa epocha a Hes-
panha, e encorporado hoje na monarchia italiana. F. P.
372 HISTORIA DO RRxZIL.
I638
- d'esta fôrma obtivera da cidade, lhe permittiria con-
quistal-a, mal podesse dispor de forças adequadas,
se consolou Nassau do seu mallogro. O panegyrisla,
seu historiador, observa que esta jornada pouco custou
Barteus
á Companhia, dando quasi que para as despezas os
P. 85.
despojos, entre os quaes quatrocentos negros. Bem
sabia Barlaeus a quem escrevia, nem a outrem que
não a similhante corporação offereceria tal consolo,
ou fallaria de ganhos e perdas n'uma occasião em que
as armas hollandezes tinhão sido não so rebatidas,
mas até cobertas de infâmia '. San Salvador teria ne-
cessariamente cabido se maiores que os desatinos
dos sitiados não tivessem sido os dos sitiantes. Isto o
confessarão os Portuguezes, altribuindo a sua salva-
ção, abaixo de Deus, á ausência de Schuppe e Arti-
szensky, homens que pela sua experiência erão mais
para lenier-se do que o próprio Nassau.
ileinescnla- Nas suas cartas á Companhia, Nassau clamava alto
çõe- de
>as^.iu á por soccorros. Guerra, dizia, enfermidade e traba-
Companhia
lhosas marchas n'um paiz como o Brazil dia por dia
lhe ião consumindo o exercito; grilavào os soldados
que os rendessem em tão duro e improficuo serviço,
e toda a sua arte tanto de conciliação como de seve-
ridade, era pouca para mantel-os na ordem, (juatro
mil homens erão necessários para as differentes guar-
nições; e se toda a sua força nem a isto chegava,

1
Onde está a infâmia no mallogro d'um feito (Turmas? I •'. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 375
como havia de avançar para o inimigo? Como resistir- 1638-
lhe se este avançasse sobre elle? Como guardar o paiz
contra incursões1? Pedia e requeria pois 3,600 ho-
mens; ficaria então com sete mil, e assim não so
esperava, mas sabia de positivo que alguma couza
se faria digna da Companhia. Tinha esta commettido
emprezas que fazião honra ao século e á nação hol-
landeza, cumpria poisleval-asa cabo; o dado estava
lançado, e passado, não o Bubicão, mas o Oceano;
agora ou se havião de pôr os meios para se conse-
guirem os fins, ou iria tudo pela água abaixo. Des-
cendo depois ao tom mercantil, disse que o assucar
d'aquelle anno, não falhando a colheita, devia render
á Companhia 600,000 florins. Mas faltavão mari-
nheiros, tanto assim qiie oitocentos soldados tinhão
de servir a bordo dos' navios. Que mandassem pois
uma armada a fazer face ao inimigo, se este se mos-
Irasse^e a levar para a pátria os produetos.
Agitou-se por este tempo na Hollanda entre a A rompanhia
Companhia das índias Occidentaes a questão de saber íme 0 com-
1 x
mircio do
lirazil
se lhe conviria continuar com o seu monopólio ou -
franquear o commercio do Brazil. Contra a proposta
innovação dizia-se que a Companhia perderia os seus
grandes lucros actuaes, abarrotar-se-ia o mercado,
depreciando-se consequentemente os gêneros euro-
1
Eis o verdadeiro motivo do mão êxito da expedição á Bahia, e não
á falta de talentos militares, que mais do que Schkoppe e Artischofsky
possuia Mauricio de Nassau. F. P.
374 HISTORIA DO BRAZIL.
163?. peos, e que aquella deliciosa região affluirião colo-
nos que, augmenlando e multipHcando-se alli, e
tornando-se a final mais fortes do que a mãe pátria,
sacudiriáo a dependência. Quiz-se sobre isto ouvir
Nassau. Bcspondeu este que o que havião sido ja não
erão os lucros da Companhia. A principio fazião ludo
os dircctores, agora concedião-se contraclos : a prin-
cipio regorgilavão de assucar os armazéns dos Por-
tuguezes, c cscasseando os gêneros europcos pedidos
em escambo, vendião-se com enorme proveito, an-
ciosos os da terra por se verem livres de produclos
constantemente em risco de serem preza do inimigo.
Mais seguro agora o paiz, crescera a propriedade
hollandeza. Melhor era, declarando livre o comnier-
cio, eximir-se á carga do monopólio. Não podia a
Companhia comprar gêneros bastantes com que
abastecer o mercado, a tanto lhe não alcançavào os
fundos; e que faria das mercadorias particulares que
houvessem deixado entrar no paiz? Não podia com-
pral-as sem prejuízo d'ella, comprando-as pelo
preço que alias obterião dos donos, querendo
tomal-as por menos. E n'este ultimo caso conlraban-
dearião os particulares a sua fazenda.
Depois, fallando como estadista, ponderou a neces-
sidade de colonizar o Brazil; assim, disse, se roluis-
teceria o paiz, podendo-se diminuir as guarnições,
sem que o Estado deixasse de sentir-se sejMirn. W»ra
so pelo medo se conlinhão os Portuguezes; tira-se-
HISTORIA DO BRAZIL. 375
se-lhes porem a esperança de verem restabelecido o 1638.
seu próprio governo, e tornar-se-ão bons subditos.
Mas não atravessarião colonos os mares para mor-
rerem de fome em paiz extrànho, e em quanto man-
tivesse a Companhia o seu monopólio, cortaria todas
essas espectativas de fortuna que sos podião attrahir
aventureiros. Ja os Brazileiros se queixavão das res-
tricções que lhes impunhão; com representações diá-
rias o acabrunhavão, dizendo, que cornos Hollande-
zes havião tractado viverem debaixo do governo d'ellcs
como debaixo do portuguez, podendo vender o pro-
duclo de seus moinhos a seu próprio gosto, e não á
vontade de oulros; se lhes tiravão esta liberdade,
preferirião antes passar;se a outra parte, e correr os
azares da fortuna, do que soffrer similhante escra-
vidão. Soltae vossos enxames, disse elle, sobre estes
novos paizes e dae terras aos soldados licenciados;
sejão colônias vossos postos avançados e guarnições,
que foi assim que Boma subjugou o mundo '. Adop-
tado este parecer, declarou-se livre o commercio,
reservando-se a Companhia o trafico d'escravos, ar-
tigos de guerra e pau brazil. Mas a todos os altos
funcionários seprohibiu absolutamente o commercio
para que pelo amor do ganho não abusassem do
Barlseus.
poder. 8"-90.
Segurados todos os postos que lhe parecerão em reedição
de Joí.
1
Honra ao illustre varão que no decimo-septimo século sustentava
lacs princípios! F. P.
376 HISTORIA DO BRAZIL.
ica«. risco de serem accommettidos, preparava Nassau uma
expedição que fosse queimar no Bcconcavo os enge-
nhos de assucar, quando chegou Jol com poderosa
armada. Com inveja recordava ainda a Companhia a
rica victoria deHeyne, e na esperança de encher os
seus cofres com despojos eguaes, despachara este
velho e excellente marinheiro. A força que elle levou
do Becife, suspendeu os projectos de Maurício. Cheio
de esperanças em proveitosos triumphos, deu Jol á
vela e encontrou effectivamenle a armada mexicana
nas alturas de Cuba : mas os seus capitães o aban-
donarão. Quatro vezes travou o velho marujo reso-
lutamente a acção, e outras tantas se deixarão estes
traidores ficar cobardemente aó largo, ou virárão de
bordo no momento do perigo, ale que a final escapa-
rão os Hespanhoes. Em altos brados clamou Jol por
vingança em nome da pátria e no seu próprio. Os
culpados forão remetlidos para a Hollanda, mas ha-
vendo em todos os paizes meios de illudir em casos
taes a justiça, com tanto que os delinqüentes tenhão
amigos poderosos que os protejão, ficarão impunes.
Lison^eira perspectiva se offercccu a Nassau agora.
< amarão com Mensageiros de Camarão vierão dizer-lhe que offen-
iiaiuiLve.. ( JJ ( J 0 p 0 r J5 a g n u 0 ] 0 desejava aquelle cacique assentar
pazes com os Hollandezes, e volver ás suas próprias
terras. Com prazer comprarião estes a amizade de
tão audaz e terrivel inimigo, e assim com presentes
e favorável resposta despedirão os emissários: mas
HISTORIA DO BRAZIL. 577
Camarão tinha-se aferrado d'alma e coração a uma 1638-
causa, que desde tanto e tão bravamente servia, e
antes da volta d'elles ja^o resentimento se lhe desva-
necera '. Oitocentos Tapuyas, resentindo-se egual-
mente do Iractamento recebido do general, deixarão
a Bahia. Mas de balde se offereceu o ensejo, e debalde
clamava Nassau, enviando carta apoz carta, que não
era o ceo nem os fados que lhe invejavão a victoria,
mas os seus próprios conterrâneos. Promessas lhe
chegarão que fartavão, e promessas foi o mais que
veio. Falho de meios com que proseguir nos seus Bwzõesdas
cipitanias
houand
planos de conquista, divertia-se com dar armas ezas.
heráldicas ás províncias hollandezes ; a Pernambuco
uma donzella, n'uma mão uma canna de assucar e
na outra um espelho em que se mira de si satisfeita;
a Itamaracá um cacho d'uvas, que a visinha ilha
produzia melhores que nenhuma outra parte do
Brazil; tres pães de assucar á Parahyba, e uma ema
ao Bio Grande, onde abundavão estas aves. Todos
estes emblemas forão esquartelados no sello grande
do senado, sobre o qual se via a figura da justiça,
sem que por isso se notasse a essência nas medidas.
Pouco depois da mallograda expedição de Jol forão
prezos muitos dos mais abastados Portuguezes por
1
Ha equivocação manifesta na data d'este feito a que já alludimos.
Quando se deram as desintelligencias de Camarão com Bagnuolo, estava
este acampado no sitio denominado Torre de Garcia a"1 Ávila, ante-
riormente ao ataque da Bahia por Nassau. F. P.
378 HISTORIA DO RRAZIL.
38
6 suspeitas de conspiração. Averiguado o caso, uns
forão encarcerados, outros deportados para a Bahia,
e ainda outros sentenciados, a mais longínquo de-
gredo. Mais minuciosas investigações nenhuma prova
offerccérào da supposla conjuração, comtudo, cor-
rendo o boato de esperar-se uma armada hespanhola,
nem se absolverão nem condemnárão os prczos, mas
deixárào-nos ficar na cadeia.
voiu Logo em princípios do anno seguinte voltou Ar-
aoBrazii, tiszenskv ao Brazil com um retorço pequeno, c m-
J
masdesgos-
tosovac-sf struecões para vigiar em segredo o proceder de .\as-
outra vez " I ~ o i
.embora. ^.^ ^J^r^ v m q,,0 c o m pouCO tillO SC llOUVe.
Lavrava-lhe no coração inveterado ódio, quiçá pro-
1039. vocado pela nomeação do conde Maurício para o
governo, cargo a que elle próprio se julgava com
direito; e tão arrogante se lhe foi tornando a lin-
guagem, que não tardou que a não podesse tolerar o
governador general. Depressa proporcionou o pró-
prio Artiszensky famoso ensejo para decidir de qual
dos dous devia predominar a auetoridade : dirigiu
aos direclores da Companhia na Hollanda uma carta
de queixumes c deixou-a ler publicamente antes de
enviada. Nawiu appellou para o Senado, respon-
dendo cheio de indignação, mas satisfactorianienle
á^ aceusações que lhe faziào, e que por frivolas, não
merecem aqui menção, referindo-se quasi todas a
pontos de ceienionial e etiqueta militares, despreza-
dos pela fona da necessidade. Todo o Senado lhe deu
HISTORIA DO BBAZIL. 379
1639
razão, pelo que se fez o accusador de vela para a Hol-
landa, e deixando desgostoso o seu serviço (posto que
recebesse uma medalha em prêmio dos seus feitos)
, • Barlaeus.
entrou para o da sua própria patna. 103-7.
Voltando á Hollanda pouco mais ou menos pelo Estado .ia
, ~ Companhia
mesmo tempo, apresentou um dos senadores a Com- hoiiandeza.
panhia das índias Occidcntaes minucioso relatório
sobre o estado das suas conquistas. Possuía ella agora
seis províncias de Sergipe ao Ceará. A primeira d'cstas
linha sido transformada n'um deserto por Gijsselingh
e Schuppe ao conquistarem-na; na ultima havia
apenas um forte guarnccido por quarenta homens,
mas fornecia ás vezes alliados aos Hollandezes, sup-
prindo-os dos artigos que os naturaes junctavào para
trafico. Pernambuco, a mais importante d'estas capi-
tanias, contava cinco villas, Garassú ou Iguaraçú,
Olinda, Becife, Bella Pojuca l e Serinhaem afora,
differcntcs aldeias em tamanho eguaes a villas pe-
quenas. Havia alli antes da invasão hollandeza cento
e vinte um engenhos, cada um dos quaes uma aldeia,
mas trinta e quatro d'enlre estes estavão abandonados.
Em Itamaracá trabalhavão ainda quatorze, de vinte
e Ires que florescião anles da conquista. A Parahyba
s :ffrera menos : dezoito engenhos estavão alli em
ser, tendo apenas dous sido destruídos. Ao Bio Grande
que possuirá originariamente dous, restava um. Con-
1
Escreve-sc mais commummcnte Ipojuca. F. P.
380 HISTORIA DO RRAZIL.
H'Ct». tavão pois as capitanias hollandezas todas junctas
cento c vinte engenhos a trabalhar e quarenta e seis
extinclos. Os dízimos do seu producto andavão arren-
dados assim : os de Pernambuco por J iS,500 florins;
(s de Itamaracá e Goyana por 19,000; os da Para-
hyba por ò4,000. Um imposto chamado a Pensão
sobre os engenhos de Pernambuco arrematara-o por
'20,000 florins João Eernandez Vieira, cujo nome j
appareceu, nem tardará a tornar-se conspicuo na
historia do Brazil. Os pequenos dízimos, como os
rariius.101. chamavão, fazião monlar o total a "280,900 florins.
Muito havia soffrido o paiz com a invasão liollan-
l
lalla

de (oionos. jgyj,. regiões inteiras jazião assoladas, lendo morrido


mais gente do que o vagaroso curso da natureza podia
supprir em muitos e compridos annos. A cidade do
Becife prosperava na verdade : era a sede do governo,
principal posto militar e naval, e o grande mercado
comniercial em que se apinbavão as casas onde quer
que apparecia espaço. Hollandezes havia que espe-
rançosos previào ja o dia em que a sua capital se
tornaria outra Tyro, e se estes homens tivessem po-
dido inspirar aos conterrâneos os seus próprios espí-
ritos generosos e empn hendedores, realizada veria-
mos a prophecia. Clamavão elles por colonos;
mandae-nos, dizião, os vossos menesleriaes, que mal
aclião na pátria com que supprir as vilães necessida-
des, e aqui depressa se tornarão ricos. Tres, quatro
e seis florins por dia era o jornal de pedreiros e car-
HISTORIA DO BRAZIL. 381
pinteiros; e os officios mechanicos, de que carecião 16JJ'
os engenhos de assucar, ainda erão mais bem pagos.
Tres classes de homens, se dizia, fazião falta no Bra-
zil : capitalistas, que especulassem em engenhos d'as-
sucar; artezãos e operários que depois de juneto
algum pecúlio se entregassem á agricultura, fixando-
se no solo adoptivo como no natal o terião feito. Com
tal gente depressa se tornaria a ver o paiz tão flo- Bariajus.
rescente como o havião encontrado os Hollandezes.
So o terror podia manter sujeitos os Portuguezes, osjudeos.
mas muitos judeos da mesma nação tinhão vindo da
Hollanda a habitar um paiz onde podião fallar a sua
língua e seguir a sua religião. Excellentes subditos
exercíÃo elles a característica industria da sua raça,
seguros de gozarem-lhe os fruetos debaixo d'um go-
verno livre. Também alguns Brazileiros-Portuguezes
tirando alegres a mascara que por tanto tempo havião
trazido confrangidos, unirão-se aos seus irmãos da
synagoga.O ruidoso júbilo, com que se pozerão agora
a celebrar as suas ceremonias, allrahiu demasiado a
attenção; nos catholicos excitou horror, e os próprios
Hollandezes, menos liberaes do que as suas leis, pre-
tenderão que não se extendia ao Brazil a tolerância
da Hollanda; annuiu o senado, por ventura compar-
lindo os sentimentos do vulgo, e d'aqui nasceu o
edicto, ordenando aos judeos que celebrassem mais
particularmente os seus ritos
Pouca razão de alegrarem-se com a mudança de 0s S - W a s e n s
582 HISTORIA DO BRAZIL.
1639. senhores tinhão os selvagens indígenas, cujo numero
das Alagoas ao Potengi, ja se avaliava agora em
menos de dous mil combatentes. A única couza que
os podia induzir a trabalhar um pouco, erão os gê-
neros europeos, agora mais fáceis de se consegui-
rem '; mas apezar disto exigia-se maior serviço dos
índios, mais escassos e caros os negros, lendo alguns
acompanhado ao exilio os seus bons senhores, oulros
passado-se para os Hollandezes para obterem a liber-
dade, e ainda oulros mais avizados ido reunir-se aos
seus irmãos dos Palmares. Nada podia persuadir os
selvagens a conlractar os seus serviços por mais
de vinte dias; em cada aldeia residia uni inspector
hollandez para obrigal-os a dar conta do seu traba-
lho, e fazer lambem que fossem devidamente pagos
por quem os empregava. Antes de findo o prazo do
serviço costumavão elles pedir o seu salário com uma
desconfiança para que provavelmente lhes não falta-
rião motivos; e uma vez pagos não raro fugião,
deixando por acabar a tarefa. Muitos serviços antes
feitos pelos negros se exigião agora dos índios, do
Missionários que erão freqüentes fugas o resultado. Alguns mis-
hollaiulezcs. . . 1 11 1
sionanos hollandezes trabalhavão por ensinar-lhes
em vez d'uma crença papisla oulra calvinisla, mas
faltavão instrumentos de conversão, nem a theologia
1
0 panno de linlio de Osnahurgo era o ai ti»o que elles mais esti-
mavão, fartos ja do fabricado em Ruão e Steinfurt. í\ curiosa esta moda
entre selvagens. Barlieus, 121).
HISTORIA DO BBAZIL. 383
de Calvino tinha com que supprir á falta de sanctos 163!>-
e imagens, rosários, cruzes, cirios e água benta,
bonecada e pompa theatral d'um systema em que
fora difficil dizer qual das duas couzas, experteza ou
perversidade, leva as lampas á outra'.
A força militar dos Hollandezes no Brazil não pas- Força dos
Hollandezes.
sava de 6,180 homens, a que, segundo se cria, po-
derião accrescer uns mil índios. Toda esta gente era
preciza para as guarnições, sendo impossível dispor
d'alguma para proseguir nas conquistas, nem mesmo
para defender o paiz contra as depredações das par-
tidas portuguezas. Debaixo d'outro qualquer ministro
que não fosse Olivares, bastaria á Hespanha uma
campanha para extirpar estes invasores. No seu me-
morial confessou effectivamen te o senador hollan-
dez, que mais ao deleixo do inimigo do que á própria
força era devida a segurança. Poucos como erão an-
davão meio nús e esfomeados os soldados: era que as
conquistas carecião que da Hollanda lhes mandassem
mantimento, expulsos os lavradores, cujo logar mal
o podem supprir soldados e mercadores. Tão escassas
as provisões que sobre pena de morte se impoz aos
naturaes a obrigação de abastecerem o Becife, de-
creto que inevitavelmente havia de aggravar o mal
que se propunha palliar. Todos os que possuião terras
forão obrigados por lei, sob pezadas penas, a plantar
1
É singular que possam os preconceitos religiosos levar um homem
como Southey a escrever similhantes couzas! F. P.
38-i H I S T O R I A DO R R A Z I L .
1059
de mandioca uma certa porção; confeccionárão-se
registros dos proprietários territoriaes, c nomeárão-se
officiaes que andassem vendo se se cumpria o edicto.'
Cada lavrador havia de apresentar quatro vezes por
anno a quantidade fixada, cujo preço era marcado
B
i5w. ' P e '° senado duas vezes por semana.
s

Edifica Tal e r a a condição das conquistas hollandezas no


raTacio""1 Brazil, quando o conde Mauricio de Nassau, como se
1639 trabalhasse para uma nação cujas idéias fossem tão
vaslas e atrevidas como as d'elle, principiou a edifi-
car uma cidade e uni palácio. Ficava entre os rios
Capivaribi' e Biberibi uma ilha estéril, chamada de
Saneto Antônio ! d'um convento de Capuchinhos que
alli havia : quiz elle que o senado a fortificasse, como
posição importante, se jamais o Becife chegasse a ser
sitiado, mas a despeza era immcdiata, o perigo re-
moto, e rejeitou-se o conselho. Besolveu-se então
plantal-a, por que as arvores offerecerião algum
abrigo á cidade se o inimigo se postasse no terreno
que se eleva alem do Capivaribi. Depressa se ampliou
o designio, e o conde fez alli um jardim para si.
Assaz chata e próxima da água era a posição para
encantar um Hollandez, mas o methodo por que elle
dispoz os seus bosques arremedava a magnificência
dos reis bárbaros. Com pasmo de quantos vião trans-

' Alias Capiharibe. F. P.


1
É mai* conhecida esta ilha pela denominação da d'Antônio Vaz.
F. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 385
plantou para esta ilha selecentos coqueiros acabados
de crescer. A possibilidade da operação por todos era
negada1, mas judiciosamente executada, começarão
as arvores logo no anno seguinte a dar abundante
colheita. Egualmenle se plantarão alli em toda a bei-
íeza do seu pleno desenvolvimento, larangeiras,
limoeiras, cidreiras, romanzeiras,e todas as arvores
indigenas do paiz. E aqui erigiu elle para si uma
habitação, a que poz nome Friburgo1; dos lados lhe
ergueu duas torres que scrvião também para signaes
e atalaia, e rodeando-a de forlificações, tornou-a
conjunctamente um baluarte e um adorno para a
cidade.
Achando-se mui apertada ja no Becife a população, Edificação
propoz Nassau fundar n'esta ilha nova cidade, ao Mauricia
que annuiu o senado. Depressa se esgotarão com
canaes os pântanos, demarcárão-se ruas e rapida-
mente se erguerão casas. Debaixo do governo trans-
ado por vezes se discutira se não valeria mais aban-

1
Ilascum transferri non posse omnium esset opinio, sciteef-
fossas, petorilis, trium quatuorve miliarium spalio, vectari et
pontonibus transfluvios deportari in insulam jussit. Translalas,
non labore sotum, sed et ingenio, excepit amica tellus, eaque fce-
cunditateprxter omnium spcm implevit annosas arbores, ut primo
ab insitione anno, mira nascendi aviditate, fructus dederint co-
piosissimos. Jam septuagenária et oclogenarix erant, veterique
provérbio fidem imminuere, arbores annosas non esse transferen-
das. Barlaeus, p. 144.
* VRIJBURG (Sem-cuidados) chamava-se este palácio, ou antes al-
caçar. F. P.
ii. i5
386 HISTORIA DO RRAZIL.
1639. donar Olinda c edificar aqui : acabou-se agora de
deslruir aquella cidade, deinolindo-se os edifícios
que restavão ainda, e empregando-se os maleriaes
na nova, a que em honra do fundador se deu o nome
de Mauricia. Bestava ainda unil-a por uma ponte ao
Becife, e por 210,000 florins se contraclou a obra.
Foi o architeclo construindo pillares de pedra ate
chegar ao ponto mas fundo, que era de onze pés
geométricos, e desesperado abandonou a empreza.
Cem mil fiorins estavão ja gastos. Muita genle houve
que exultou com o mallogro d'uma obra que lhe ia
prejudicar os seus mesquinhos interesses particula-
res, e levantou-se um clamor contra Maurício, o auc-
lord'um projecto impracticavel. Encarregou-se então
elle mesmo da execução : o que não de pedra, podia
fazer-se de madeira, e no Brazil a havia, que cm
dureza e duração pouco cedia ao granito. Concluída
em dous nozes, abriu-se a ponte : obra ja digna de
virM.i memória por si, e muito mais por ser a primeira
Sfimnrb
T p'"ü-k d'esta natureza na America porlugueza. O senado,
que havia feito coro com a multidão, motejando da
empreza em quanto incerta, reconheceu agora o seu
merecimento, e pagou a obra por conta da Com-
panhia, certo de breve reembolso pelo produeto da
laxa da passagem.
Lançou então Nassau outra ponte sobre o Capiva-
ribi, abrindo assim communicação entre o Becife e
o lado opposto do paiz através Mauricia. Perto dYsla
HISTORIA DO BRAZIL. 387
ponte edificou na ilha para si outra casa, que, como 1630
Friburgo, servisse não menos de recreio que de de-
feza, e a que derão os Portuguezes o nome de Boa
Vista1. A todos os respeitos erão úteis estas obras,
mas sobre tudo por que mostrando a resolução em
que estavão os Hollandezes de manter suas conquis-
tas, e a fé que tinhão nos meios de o poderem fazer,
tiravão a esperança aos Portuguezes, concorrendo
para que resignados soffressem um jugo que tão
pouca probabilidade tinhão de jamais sacudir. Con-
ferindo-lhe o titulo honorário depatronus, mostrou
o senado quando reconhecia o mérito do conde, e
approvava as suas medidas.
Entretanto se preparavão poderosos esforços para clieoa
expellir do Brazil estes conquistadores. Não lhe sof- ° Torre.*1
frendo mais a paciência ver como erão tractadas de 1659.
resto e quasi que abandonadas ao inimigo estas im-
portantes colônias, obteve um dos ministros portu-
guezes audiência d'el-rei, e tão energicamente lhe
representou as fataes conseqüências de similhante
systema, que Olivares viu que para manter-se*nas
boas graças do monarcha era precizo um grande es-
forço. Esquipou-se armada mais poderosa do que ja-
mais dera outra vez á vela para a America, confiando-
se o commando ao conde da Torre, D. Fernando Mas-
carenhas, conjunclamente nomeado governadorgene-

1
Schoonzigl em hollandez. F. P.
388 HISTORIA DO RRAZIL.
IG39
- ral do Brazil. Nunca se viu deitar mais miseravel-
mente a perder armamento tão vasto. A sua primeira
e fatal desgraça veio-lhe de Miguel de Vaseoneollos,
esse ministro portuguez, em quem um povo ultrajado
devia brevemente tomar vingança exemplar pelos
crimes commetlidos contra a pátria. Este homem,
querendo fazer-se na còrle um merecimento do seu
zelo e actividade, insistiu em que a esquadra portu-
gueza não aguardasse no porto os Hespanhoes, mas,
para mostrar quão ligeira se apromptara, seguisse
L.2, p. si., até Cabo Verde, onde leria logar a juneção. Mais fácil
é perverter nos animaes o instineto do que vencer a
obstinação cm homens da governança. Tinha este
sido sempre o costumado logar de reunião, e porque
assim fora, devião as armadas continuar a ir para
alli, embora tivesse o clima de decimar, e por ven-
tura de reduzir á metade as tripulações. Tremenda
mortandade foi o resultado, perecendo mais d'um
terço da gente, tanto marinheiros como soldados'; e
ao chegar a armada a Pernambuco, onde, para to-
mar o Becife, bastaria bloqueal-o por pouco tempo,
havia tantos doentes a bordo, que o commandanie
teve de demandar a Bahia como hospital. Alli re-
:ia
càftULuVJ crutou gente, mas um anno inteiro "se passou antes
3, § 1«.
1
Piso, no seu capitulo de Morbis contagiosis (L. I, r. 18), falia
disto com a maior siiirridade. Anno lfi?i!l, MIGNO NOMIIIIM *i CUM-
MODO, juxta Sinum omnium Sancionem, terliu pars elttssis Hispâ-
nicas maligna et contagiosa febre c.riineta.
HISTORIA DO BRAZIL. 589
que a expedição podesse tornar a sahir ao mar'. 1639
Alguns dias antes de dar outra vez á vela, fez o Quatroacçõet
novo governador sahir André Vidal de Negreiros a navaes'
assolar as províncias do inimigo á frente das tropas
que melhor conhecião o paiz. Devião dividir-se em
partidas pequenas de modo que melhor se sustentas-
sem e illudissem o inimigo, fazendo ao mesmo tempo
maiores depredações, e*em tempo ajustado devião
reunir-se á vista do mar, e fazer juncção com as for-
ças de desembarque. Pontuaes seguirão estes homens
as suas instrucçõês, pondo a ferro e fogo ludo por
onde passavão, e no momento convencionado acha-
vão-se no seu posto : appareceu effectivamente a ar-
mada á vista, e elles incendiarão as plantações e
engenhos nos arredores do Becife, com o que distra-
hissem a attenção do inimigo. Mas a longa demora
dera a Nassau tempo de preparar se contra o perigo, .
e Vidal passou pelo desgosto de ver em logar d'um
desembarque uma acção naval. Deu-se o primeiro
combate a 12 de janeiro de 1640 entre Itamaracá e 1640
Goyana. Foi morto o almirante hollandez, e de parte

1
I)u Tertre refere um boato, a que dá credito, de que n'este anno
se fizera enlre os reis da llespanha e da Inglaterra um tractado
pelo qual se obrigara este a mandar dezoito navios tripolados por Ir-
andezes para ajudarem a expellir do Brazil os Hollandezes, sob con-
dição de que, feito isto, ajudariào também os Hespanhoes a deitar os
Francezes fora de S. Kitts, e estabelecer alli em logar d'elle€ estes
mesmos Irlandezes. A historia parece ter também achado credito entre
os Francezes. Hist. des Antilles, 1, p. 155.
390 HISTORIA DO BRAZIL.
1Gi0
a parte nem se ganhou grande ventagem, nem se
soffreu grande perda. Seguiu-se nova acção no oulro
dia entre Goyana eCabo Branco; terceira no dia im-
mediato ao mar da Parahyba, e quarta á foz do Po-
tengi no dia 17, arrastando ventos e correntes os
Portuguezes assim cada vez para mais longe do seu
destino 1 . Assim pôde uma força muito inferior evitar
que uma armada de oitenta e sete velas e duas mil e
quatrocentos peças de artilharia fizesse couza alguma:
levou esta em todas as acções a melhor pelo (pie toca
á mera peleja, mas vencida pelo inimigo quanto á
manobra 8 , viu mallograr-se-llie completamente o
1
Ficou a ahniranta com o damnodas quatro refrezas e Saneia Bar-
bara com a honra. «Ponde vos,» diz Yirvrano seu sermão dYsta saneia,
o no galcam S. Domingos, capitania real de nessa armada nas quatro
batalhas navaes de Pernambuco, sustentando a balaria de trinta e
cinco nãos olandezas; c que lie o que se via dentro e fora em toda
aquella formosa e temerosa fortaleza nos quatro dias dYsles conflitos.'
' Jogava o galeam sessenla ineyos canhões de bronze cm duas cubertas;
tinha guarnecidos por buin e oulro bordo o convez, os caslellos de popa
e proa, as duas varandas e as gáveas com seiscentos mosqueteiros. K
sendo um Ethna, que lentamente se movia vomitando labaredas e
rayos de ferro e chumbo por tantas bocas maiores o menores; dando
todos c recebendo pólvora, carregando e descarregando pólvora, o
tendo nas mesmas mãos os murrões com duas médias acesas, ou cs
botafogos fincados junto aos cartuchos; e que bastando qualquer faísca
para excitar um total incêndio, e voar em liuni momento toda aquella
maquina; que entre tanta confusam, e wsiiihanea do pólvora e lupi,
estivesse o galeam trcmolaiido as suas bandeiras Iam seguro <; senhor
•do campo, como huina roca batida so das ondas, <• nani das balas;
•luriii negará que supria alli a vigilância e patrocínio de saneia liar-
liara, »> que nenhuma providencia humana poderá evitar? n Tom. 7,
i». 501.
- Mão o adniittc comtudo Yieyra, nam provavelmente a suspeitou
HISTORIA DO BRAZIL. 591
intento. Tornou-se o tempo agora tal, que renun- 1040.

ciando a toda a esperança de ganhar outra vez a Bahia


n'aquella estação, abandonou o governador uma em-
preza para que tão grandes preparativos se havião
feito. Bagnuolo tentou e levou avante a sua volla por
mar; mas por tão diflicil era tido o commettimento,
que mais acertado pareceu desembarcar quatorze
legoas ao norte do Potangi o grosso da força militar
composto de 1,500 homens ás ordens de Barbalho,
ejunctamente Camarão e Henrique Dias com a sua
genle, deixando-os effectuar uma retirada de trezen-
tas legoas por paiz inimigo, e paiz como o Drazil,
sem mais provisões para a marcha do que as que cada
homem podia levar comsigo. Tendo-os desembarcado
singrou o conde da Torre com vento em popa para
as índias Occidenlaes, d'onde passou a Europa. Ape-
nas chegado a Lisboa, foi mettido na torre de S. Ju-

sequer. Refere elle o successo com essa valentia sua particular e ani-
mação, que lhe caracterizão a inimitável linguagem : « Oh, juízos e
conselhos oceultos da Providencia, oh, ira divina ! Vitoriosas sempre
sem controvérsia as duas armadas em quatro combates suecesivos na
parte superior das ondas; furtadas porem as mesmas ondas pela parte
inferior, e como minadas as nãos pelo fundo, e pelas quilhas, de tal
sorte as arrancou do sitio ja ganhado a fúria das correntes, que por
mais que forcejaram pelo recobrar, nunca lhe foi possível. Assim ven-
cido da sua própria vitoria aquelle grande poder, e fugindo seu fugir
(por que fugia o mar, em que navegava), podendo mais a desgraça
que o valor, a natureza que arte, e o forçado destino que o dos braços,
perderam os derrotados e tristes conquistadores o mar, perderam a
terra, perderam a empresa, per leram a esperança; e nós que n'elles
a tínhamos fundada, também a perdemos. » Sermões, t. 5, p. 4'22.
3!>'2 H I S T O R I A DO R R A Z I L .
íüio liào, onde jazeu sem processo, posto que não sem
pena, até que a acclamação de D. João IV lhe deu
Ci. (ou- ppe.
21 j . occasião de servir o seu paiz e libertar-se a si.
Abatimcnlo
Não tinhão vencido os Hollandezes, mas logrando
Portuguezes. com o favor do tempo afastar das suas costas forças
muito superiores, linhão colhido Iodas as vantagens
da victoria. Instituiu Nassau regosijos por um suc-
cesso que poderá ser mais glorioso, mais proveitoso
não. e mettendo alguns dos seus capilães em processo
por máo comportamento, castigou vários e suppli-
ciou um 1 . Tão ruinoso e inesperado mallogro abateu
os espíritos aos Portuguezes mais do que as múlti-
plas derrotas e perdas até então soffridas. Principia-
rão a comparar com a do inimigo a própria condição
e recursos. Fallavão desanimados da quantidade da
anilharia do Hollandez, tanto de bronze como de
ferro; das suas fortalezas tão bem guardadas; dos
seus navios tão numerosos, tão abundantemente pro-
vidos, tão perfeitamente esquipados; das armas dos
seus soldados tão limpas, tão polidas, tão brilhantes,
que mais parecião prata do que ferro ao lado das dos
Portuguezes. Até os ânimos mais fortes reconhecerão
o desesperado da situação. Do púlpito lhes diziào que
dispersas e arrebatadas ninguém sabia para onde as
armas reaes c as armadas, so nas armas e exércitos

1
I Jnt o foião degradados, passando-se-llies unia espada por cima da
cabeça. Espalhou-se lóra do paiz um boato exagerado de lerem os
Hespanhoes perdido sessenta navios. Du Tertee, I, p. 15ti.
HISTORIA DO RRAZIL. 593
1C4(K
do ceo devião pôr toda a sua esperança, e na prolec-
ção e poder da sanctissima Virgem. « Tornemos
todos! » dizia o pregador, devotamente o seu rosário
nas mãos, « demos volta a esta funda todos os dias
ires vezes, e todas tres ao redor da cabeça, não so
rezando, mas meditando seus sagrados mysterios; na
primeira volta os gozosos do primeiro terço, na se-
gunda os dolorosos do segundo, na terceira os glo-
riosos do ultimo. E se assim ofizermosIodos com a
união, continuação e perseverança (que é a que dá
força e efficacia ás orações humanas), eu prometto á
Bahia, em nome da mesma Senhora do Bosario, que
não so se conservará livre e segura de todo o poder
dos inimigos que por mar a infeslão e por terra a
ameação; mas que este será um certo e presentissimo
soccorrer, ainda que faltem todos os oulros, para
que todo o Brazil fazendo o mesmo se recupere e j ^
T 5 m
restaure. » - '
*
Bazão tinha o pregador, que havia o Brazil de Retirada
dever a sua restauração aos indomáveis brios do seu Barbaiho.
povo, sustentados e exasperados pela crença reli-
giosa. Do que podem homens assim determinados viu
então o mundo um exemplo. A Vidal, que ao longo
da costa acompanhara a armada, até ver o desespe-
rado rumo que levava, nenhum alvitre restava na
escolha das suas medidas; que fazer, senão tornar a
dividir as tropas, e seguir regressando o mesmo
curso de devastações? Não tardou Barbalbo a vir
ôíH HISTORIA DO BBAZ1L.
1640. encorporar-se a estes homens, e abi foi o exercito
assolador, levando a destruição aonde chegava, fi-
zerão prizioneiro o governador áo Bio Grande, pas-
sarão á espada toda a guarnição da Goyana, eao sahir
do Becife uma força grande contra elles, embrenhá-
rão-se no serião, que muito melhor conheciào do que
o inimigo. Muitos Pernambucanos, cançados (Punia
sujeição que armava contra elles os seus próprios
conterrâneos, sem que deixassem de ser suspeitados
e opprimidos pelos Hollandezes aproveitarão o ensejo
de sahir do paiz. Muitos padecimenlos os aguardavào
na marcha; o* alforges, que alguns dos que licavão
atraz, arroja vão de si, quando perseguidos, aehavào-
se cheios de assucar por falta de outro alimento.
Barballio porem chegou a salvo á Bahia com pouca
perda alem da oceasionada pelas fadigas e trabalhos
do caminho'.
.•vssoiaçãodo -'as antes disso ja Nassau começara a sanguinosa
obra das represálias. Dous mil Tapuyas tinhão ulti-
mamenle descido do interior ao Bio Grande o offere-
cido alliança aos Hollandezes; mal esla havia sido
acceila, quando elles, como amostra do que da sua
fidelidade se devia esperar, cahirão sobre doze po-
bres colonos portuguezes, trucidando-os Iodos. As

1
Barheus (p. lS.7.) diz que eil<- inalava o, seus próprios dm-iilcs,
o que é tão falso quão incrível, embora o Hollandez des- ulpo o caso
dura necessitutis ac mililitc. lege. D que é verdade c que (piem cabia
abi iicava, e se o inimigo o encontrava, não lhe dava quartel.
HISTORIA DO BRAZIL. 393
164
mulheres e crianças d'estes selvagens forão por pre- °-
caução política aquarteladas como reféns na ilha de
Itamaracá, em quanto se soltavão os homens contra
a Bahia. A seguinte medida de Nassau foi expulsar
das províncias conquistadas todos os religiosos, e
depois despachou Jol a pôr o Beconcavo a ferro e
fogo, emquanlo, ausente o grosso da força, nenhuma
resistência se podia alli oppôr. Cumprirão-se á risca
as instrucçõês, e n'aquella vasta bahia, então a mais
prospera de toda a America, não escapou um so en-
genho. Com isto esperava elle pôr em apuros de
renda e mantimento a cidade, aplanando o caminho
para a futura conquista.
N'esle misero estado veio o marquez de Monte Chega
1
o marquez de
Alvão, D. Jorge Mascarenhas, achar o Beconcavo, ao MonteAMo
chegar ao Brazil com o titulo de viso-rei. 0 desgra- ™°-rei-
çado desgoverno, que tantas calamidades acarretara
sobre o paiz, pintou-lhe Vieyra n'um memorável
sermão, pregado á sua chegada, com a força e intre-
pidez que caracterizâo os discursos d'este eloqüentís-
simo orador e homem extraordinário. « Muitas occa-
siòes ha tido o Brazil de se restaurar, disse elle,
muitas vezes tivemos o remédio quasi entre as mãos,
mas nunca o alcançamos, porque chegamos sempre
um dia depois. Como havia de aproveitar a occasião
a quem a tomou pela calva sempre? E como estamos
tão lastimados das tardanças, o primeiro bom an-
nuncio que temos, senhor, é sabermos que nos vem
0't' HISTORIA DO B R A Z I L .
Í040.
a saúde nas azas, e que voando mais que correndo,
partiu Vossa Excellencia a restaurar este Estado sem
reparar nos novos inconvenientes que da ultima for-
tuna sobrevierão, nem em quão descabido está o
Brazil das forças, e do poder com que Vossa Excel-
lencia acceilou a restauração d'elle. Aconteceu-lhc a
Nossa Excellencia com o Brazil o que a Chrislo com
Lázaro. Chamárão-no para curar um enfermo : Ecce
i/nem amas infirmalur, e quando chegou foi-lhe ne-
cessário resuscitar um morto. Morlo está o Brazil, e
ainda mal por que tão morto e sepultado, fumegando
estão ainda e coberlas de cinzas essas campanhas. É
verdade que nunca se viu esta província tão auclori-
zada como agora, mas podem-lhe servir os títulos de
opilaphios, que poisa vemos levantada a vice-reino
entre as mortalhas, bem se pode dizer por ella lam-
bem : Que depois de morta foi rainha. »
Passou a expor como quatro geiieraes1 havião eom-
mandado em chefe desde que o inimigo invadira
Pernambuco, entregando cada um ao seu suecessor
a guina em peor estado do que a recebera, e propoz-
se explicar a condição do Brazil e as causas da sua
enfermidade, que Iodas achou simbolizadas no seu
texto. Era este, segundo o costume da Egreja catho-
hca, tirado do evangelho do dia, nem na apparencia
podia haver nada menos applicavel ao proposto as-
« Grande conjectura de ser a enleni.í 'a.l.. i,:„rlal, mudarmos lantn
v(•/<•« de cabeceira.
HISTORIA DO RRAZIL. 397
sumpto do seu discurso : Ut fada est vox salulationis 1610.

tux in auribus méis exultavit in gáudio infans. Mas


sabia Vieyra com phantastica ingenuidade, tirar de
toda a palavra todo o sentido; e citando o texto da
Vulgata, achou o ponto da applicação na palavra
infans.
« Bem sabem os que sabem a língua latina (excla-
mou o pregador), que esta palavra infans, infante,
quer dizer o que não falia. N'este estado estava o me-
nino Baptisla quando a Senhora o visitou, e n'este
esteve o Brazil muitos annos, que foi a meu ver a
maior occasião de seus males. Como o doente não
pôde fallar, toda a outra conjectura difficulta muito
a medicina. Por isso Chrislo nenhum enfermo curou
com mais difíiculdade, e em nenhum milagre gastou
mais tempo, que em curar um endemoninhado
mudo. 0 peor accidente que teve o Brazil em sua
enfermidade, foi o tolher-se-llie a falia; muitas vezes
se quiz queixar justamente, muitas vezes quiz pedir
o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as
palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência,
e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos
de quem o devera remediar, chegarão também as
vozes do poder, e vencerão os clamores da razão. Por
esta causa serei eu hoje o interprete do nosso en-
fermo, ja que a mim me coube em sorte, que lam-
bem são João fatiou por si, senão por boca de sancta
Isabel. Na primeira infoçmação da enfermidade con-
308 HISTORIA DO BBAZIL.
,wo
- siste o acerto do remédio; c assim procurarei que
seja muito verdadeira, e muito desinteressada; falha-
remos, ja nos é licito, para que se não diga do Brazil
o que se disse da cidade de Amidas, que a perdeu o
silencio : Silentiinn Amidas perdidit. E como a causa
é geral, fallarei também geralmente, que não é razão
nem condição minha que se procure o bem universal
com offensas particulares.
« A enfermidade do Brazil, senhor, é como a do
menino Baptista, peccado original. S. Thomas e os
theologos definem o peccado original com aquellas
palavras tomadas de S. Anselmo : Est privatio justi-
íi;r debilw. Que o peccado original é uma privação,
uma falta da devida justiça. Bem sei de que justiça
fallão os theologos, e o sentido em que entendem as
palavras; mas a nós que so buscamos a similhança,
servem-nos assim como soão. K pois a doença do
Bfazil : 1'rivtUio jusliliie debita', falta da devida jus-
tiça, assim da justiça punitiva, que castiga máos,
como da justiça distributiva, que premia bons. Prê-
mio e castigo são os dous pólos em que se revolve e
sustenta a conservação de qualquer monarebia; e
por que ambos estes faltarão sempre ao Brazil, por
isso se arruinou e cahiu. Sem justiça não ha reino,
nem província, nem cidade, nem ainda companhia
de ladrões que possa conservar-se. Assim o prova
S. Agostinho com a aucloridade de Scipião Africano,
eo ensinão conformemenlcTulIio, Aristóteles, Platão
HISTORIA DO BRAZIL. 399
c todos os que escreverão de republica. Em quanto 1640.
os Bomanos guardarão egualdade, ainda que n'elles
não era verdadeira virtude, floresceu seu império, e
forão senhores do mundo; porem tanto que a intei-
reza da justiça se foi corrompendo pouco a pouco,
ao mesmo passo enfraquecerão as forças, desmaiarão
os brios, e vierão a pagar tributo os que o receberão
de todas as gentes. Isto estão clamando todos os reinos
com suas mudanças, todos os impérios com suas
ruinas, o dos Persas, o dos Gregos, o dos Assyrios.
Mas para que é cançar-me eu com repetir exemplos,
se prego a auditório catholico, e temos auctoridades
de fé? Regnum de genle in gentem transfertur propter
iiijmtitias, diz o Espirito Saneto no cap. x do Eccle-
siastico. Que a causa por que os reinos e as monar-
cbias se não conservão debaixo do mesmo senhor, a
causa por que andão passando inconstantemente de
umas nações a outras, como vemos, é propter injus-
titias, por injustiças. As injustiças da terra são as
que abrem a porta á justiça do ceo. E como as nações
extranhas são a vara da ira divina : Amir virga fu-
ror ia mei, com ellas nos castiga, com ellas nos des-
terra, com ellas nos priva da palria; que é mui
antiga razão d'Estado da providencia de Deus, quando
se não guarda justiça na sua vinha, dal-a a outros
lavradores : Vineam suam locavitaliis agricolis. Pois
se por injustiças se perdem os Estados do mundo, se
por injustiças os entrega Deus a nações extrangeiras,
400 HISTORIA DO RRAZIL.
164
°- como poderíamos nós conservar o nosso, ou como o
poderemos restaurar depois de perdido, senão fa-
zendo justiça? O contrario seria resistir a Deus, e
porfiar contra a mesma fé.
« Sem justiça se começou esta guerra, sem justiça
se continuou, e por falta de justiça chegou ao mise-
rável estado em que a vemos. Houve roubos, houve
homicidios, houve desobediência, houve outros de-
lidos muilos, e tão enormes, que não sei se chegarão
a tocar na religião; mas nunca houve castigo, nunca
houve um rigor, que fizesse exemplo. Muilos bandos
se lançarão muito justos, muilas ordens se derão
muito acertadas; mas, como disse Aristóteles, as leis
não são boas por que bem se mandão, senão por
que bem se guardão. Que importa que fossem justos
os bandos, se não se guardavão mais que se se man-
dasse o que se prohibia? Que importa que fossem
acertadas as ordens, se nunca foi castigado quem as
quebrou, e pode ser que nem rcprehendido? Baste
por lodo encarecimento n'esta maioria, que em onze
annos de guerra continua e infelice, onde houve
tantas rotas, tantas retiradas, tantas praças perdidas,
nunca vimos um capitão, nem ainda um soldado,
que com a vida o pagasse. Oh ! aprendamos, apren-
damos sequer de nossos inimigos, que n'esta ultima
fortuna tão grande que tiverão, quando com um po-
der tão desegual nos derrotarão a maior armada que
passou a linha; a dous capitães sabemos que degol-
HISTORIA DO BRAZIL. 401
lárão no Recife, e a outros inhabilitárão com sup- 1640
plicios menos honrosos, so por que andarão remissos
em acodir ásua obrigação. Pois se o inimigo quando
ganha dá mortes de barato, se quando consegue o
intento, se quando se ve victorioso sabe cortar cabe-
ças, nós que sempre perdemos, e nem sempre por
falta de poder, por que não atalharemos a novas per-
das com castigo exemplar de quem fôr a causa? Por
que ha de ser conseqüência na guerra do Brazil, se
me renderem passarei a Hespanha, e despachar-me-
ei? Ha razão mais indigna de catholicos?
« Toda esta falta de castigo, toda esta remissão de
culpas nasceu de uma razão d'estado, que ca se prac-
ticou quasi sempre : que se não hão de matar os
homens em tempo que os havemos tanto mister :
que não é bem que se perca em uma hora um sol-
dado, que se não faz senão em muitos annos : que •
justiçar um homem por que matou outro, é curar
uma chaga com outra chaga, e que se não remedeião
bem as perdas, accrescenlando-as : que a primeira
máxima do governo é saber permittir, e que se ha de
dissimular um damno, por não o evitar com outro
maior : como se não fora maior damno a destruição
de toda a republica, que a morte d'um particular,
como se não fora grande expediente resgatar com
uma vida as vidas de todos : Expedit ut unus mo-
riatur homo, ne tota gens pereat. Ah! triste e mi-
serável Brazil, que por que esta razão d'eslado se
li 26
40'2 HISTORIA DO RRAZIL.
1640. praclicou em li, por isso es triste e miserável. »
Era do púlpito que no Brazil se fazia ouvir a opi-
nião publica, como succcdia também na Inglaterra
antes das gazetas e periódicos. Dava Vieyra voz aos
sentimentos dos mais illustrados dos seus conterrâ-
neos, representando assim os males do paiz, c os
abusos que o havião posto á beira do abysmo; mas
nos casos que referiu como exemplos da utilidade do
castigo em grande escala, deixou-se desnorlear pelo
calor da sua imaginação vivida : « A conquistar dila-
tadissimas províncias (exclamou) caminhava Moysés,
general dos Israelitas, e não duvidou degollar de uma
vez vinte e quatro mil homens, como se té na Escrip-
lura, por que entendia como expcrimenlado capitão,
que mais lhe importava no seu exercito a observância
da justiça que o numero dos soldados. Quem pelejou
nunca no mundo com numero mais dcscgual que
Judas Macabeo? E com tudo nem os exércitos de
Apollonio, nem os ardis de Serão, nem os elcpliantcs
de Antiocho o poderão jamais vencer, antes elle sahiu
sempre carregado de despojos e de victorias : por
que? Por que primeiro tirava a espada contra os seus,
e depois contra os inimigos. Pelejava com poucos
soldados, e mais vencia, por que poucos com justiça
é grande exercito. Alagou Deus o mundo com o dilú-
vio universal, e para restauração d'clle não guardou
mais que Noé com tres filhos seus em uma arca. Pois,
senhor, parece que poderamos replicar, quercis res-
HISTORIA DO BBAZ1L. 403
1040
taurar o mundo, quereil-o restituir a seu antigo es-
tado, e para uma facção tão grande não guardaes
mais que quatro homens em um navio? Sim ; que
depois d'um castigo tão grande, depois d'uma justiça
tão exemplar, quatro homens e um so navio bastão
para restaurar um mundo inteiro. Vede se nos sobe-
jarão sempre soldados para restaurar o Brazil, se nos
não faltara a justiça. »
Passou depois a fallar da justiça distributiva, cuja
falta não era menos fatal ao Estado : « Quando David
quiz sahir a pelejar com o gigante, perguntou pri-
meiro : Quiddabitiirviro, qui percasserü Philistxum
hunc? Que se ha de dar ao homem que matar este
Philisteo? Ja n'aquelle tempo se não arriscava a
vida senão por seu justo preço, ja então não havia
no mundo quem quizesse ser valente de graça. Ne-
cessário é logo que haja prêmios para que haja sol-
dados ; e que aos prêmios se entre pela porta do me-
recimento : dem-se ao sangue derramado, e não ao
herdado somente : dem-se ao valor e não á valia;
que depois que no mundo se introduziu venderem-se
as honras militares, converteu-se a milícia em lalro-
cinio, e vão os soldados á guerra a tirar dinheiro com
que comprar, e não a obrar façanhas com que re-
querer. Se se guardar esta egualdade, entrará em
osperanças o mosqueteiro, e soldado de fortuna, que
também para elle sefizerãoos grandes postos, se os
merecer; e animados com este pensamento, os de que
404 HISTORIA DO BRAZIL.
1610
hoje se não faz caso, serão leões e farão maravilhas;
que muitas vezes debaixo da espada ferrugenla e>lá
escondido o valor, como talvez debaixo dos talizes
bordados anda dourada a cobardia. Nenhuns serviços
paga Sua Magestade hoje com mais liberal mão que os
do Brazil, e comtudo a guerra enfraquece, c a repu-
tação das armas cada vez cm peor estado, por que
acontece nos despachos o de que ordinariamente se
queixa o mundo, que os valorosos levão as feridas, é
os venturosos os prêmios. D'esta desegualdade se se-
gue, que o effeito dos prêmios militares vem a ser
contrario a si mesmo, por que cm vez de com elles
se animarem os soldados, antes se desanimão e ilesa-
lenlão. Como se animará o soldado a buscar a honra
por meio das bombardas e dos mosquelcs, se ve em
um peito o sangue das balas, c n'oitro a purpura das
cruzes?
« Mas (proseguiu o orador) muitas graças sejão
dadas a Deus, que para remédio d'esle grande mal
não so lemos justiça na terra, se não justiça de sol.
Sol para allumiar, para conhecer, para distinguir:
justiça para premiar com egualdade Quando
aqui (na Bahia) estivemos sitiados no anno de trinta
e oito, tirava o inimigo muitas balas ao baluarte de
Saneio Antônio; os pcloums, que acerlavão, ficavão
enterrados na trincheira, os que erravão, voavão por
cima, vinhão rompendo os ares com grande ruido, e
os que andavão por estas ruas, aqui se abaixava um,
HISTORIA DO BRAZIL. 405
m0
acolá se abaixava outro, e muita genle lhes fazia cor- -
tezias demasiadas. De sorte que o pelouro, que errou,
esse fazia estrondos, a esse se fazião as reverências :
e o oulro, que acertou, o outro, que fez sua obriga-
ção, esse ficava enterrado. Oh! quantos exemplos
d'estes se acharão na guerra do Brazil! Quantos forão
mais venturosos com seus erros, que outros com seus
acertos! Algum, que sempre errou, que nunca fez
couza boa, nomeado, applaudido, premiado, e o que
acertou, o que trabalhou, o que subiu a trincheira,
o que derramou o sangue, enterrado, esquecido,
posto a um canto. Importa pois que não roube a ne-
gociação o que se deve ao merecimento; que se des-
enterrem os talentos escondidos, que sepultou a for-
tuna, ou a sem razão; que não haja benemerilo que
não seja bem afortunado; que se corte a lingua á
fama, se for injusta; que se qualifiquem papeis, que
se examinem certidões, que nem todas são verda-
deiras. Se forão verdadeiras todas as certidões dos
soldados do Brazil, se aquellas rumas de façanhas em
papel forão conformes a seus originaes, que mais
queríamos nós? Ja não houvera Hollanda, nem
França, nem Turquia, todo o mundo fora nosso.
« Não pretendo dizer com isto que não merecem
muito os soldados d'esta guerra, por que antes tenho
para mim, como é opinião de todos, que não ha sol-
dados no mundo, nem que mais valentes sejão, nem
que mais sirvão, nem que mais trabalhem, nem que
406 HISTORIA DO BRAZIL.
1640. ma j s mereção. » Dcmorando-se depois nos trabalhos
por que havião passado, e referindo-se á ultima
expedição commandada por Vidal Barbalho, « n'esta
jornada ultima e milagrosa (disse o pregador), onde
se não deu quartel, o mesmo foi ser ferido que morto,
deixando os amigos aos amigos, e os irmãos aos
irmãos, por mais não poderem, ficando os miseráveis
feridos n'esses matos, n'essas estradas, sem cura, sem
remédio, sem companhia, para serem mortos a san-
gue frio, e cruelmente despedaçados dos alfanges hol-
landezes, pelo rei, pela pátria, pela religião, pela fé.
Oh! valorosos soldados, que de boa vontade me deli-
vera eu agora com vosco, pregando vossas gloriosas
exéquias! »
Em seguida fez notar o máo tractamento da tropa,
cc Não ha infantaria no mundo, nem mais mal paga,
nem mais mal assistida; é possível que hão de andar
descalços e despidos uns corpos tão ricos de valor?
Descalços e despidos os soldados do rei das llespa-
nhas, do mais poderoso monarcha do mundo? Bem
sabemos a quanta cstreileza está reduzida a fazenda
real no tempo presente, mas quando el-rei n'esle
estado não tivera outra couza, a camiza, como dizem,
• havia de tirar para vestir taes soldados. Nenhum
monarcha do mundo chegou nunca a tanta pobreza,
como Christo, Bedemplor nosso, na cruz, c com ludo
tanto que se viu com titulo de rei sobre a cabeça : Rei
Judieorum, moso os vestidos exteriores, senão a túnica
HISTORIA DO BRAZIL. 107
1640.
interior deu aos soldados, e não a soldados que de-
fendião a fé, senão aos soldados que o crucificavão.
E que fizerão esses soldados logo? Tomarão os vesti-
dos do Senhor, e pozerão-se a jogal-os. Pois se o ver-
dadeiro rei se despe, para que os soldados tenhão que
jogar, quanto mais se deve despir, para que tenhão
que vestir? E mais quando elles são tão valentes, è tão
briosos, que andando tão rolos, e tão despidos, que
poderão ter esquecido o vestir, nem por isso se esque-
cem do investir. E certo, senhores, não haveria
muito de que nos espantar, quando assim o fizerão.
Quando Deus perguntou a Adão por que se escondera
no bosque do paraizo, respondeu elle: Timui,'eo quod
imdus essem, et abscondi me : Senhor, olhei para
mim, vi-me despido, por isso temi e me escondi. O
mesmo poderão fazer os soldados d'csla guerra, te-
merem e esconderem-se na occasião, e quando lhes
perguntassem por que, responder: Timvi eo quod
nudus essem, et abscondi me : Escondi-me em um
mato, temi a morte, não quiz pelejar com os Hollan-
dezes, por que quando olho para mim, vejo-me des-
pido, e não quero dar o sangue por quem me não dá
de vestir. Isto poderão dizer os nossos soldados como
filhos de Adão, mas como filhos e descendentes d'a-
quclles Portuguezes famosos, ^pelejão, trabalhão,
cansão, morrem, e quando olhão para si como an-
dão despidos, veem-se a si e fazem como quem são.
E se sem vestir e sem comer obrarão até aqui Ião
408 HISTORIA DO R R A Z I L .
1640 valorosamente, agora que a cuidadosa providencia
do marquez viso-rei, que Deus guarde, de nenhuma
couza mais tractou, que de trazer com que vestir
e sustentar esta infantaria, que farão ou que não
farão? »
Entrou depois o pregador n'uma veia salyrica,
tanto mais pungente, quanto mais jocosa. « Mas como
a experiência ensina, que para a saúde ser segura e
firme, não basta sobrcsarar a enfermidade, se não se
arrancão as raizes, e se cortão as causas d'ella; é
necessário vermos ultimamente, quaes são e quaes
forão as causas d'esta enfermidade do Brazil. A causa
da enfermidade do Brazil, bem examinada, é a mesma
que a do peccado original. Poz Deus no paraizo ter-
real a nosso pae Adão, mandando-lheque o guardasse
e trabalhasse; elle parecendo-lhe melhor o guardar
que o trabalhar, lançou mão á arvore vedada, tomou
o pomo, que não era seu, c perdeu a justiça, em que
vivia, para si e para o gênero humano. Esta foi a
origem do peccado original, e esta é a causa original
das doenças do Brazil, tomar o alheio, cúbicas, inte-
resses, ganhos e conveniências particulares, por onde
a justiça se não guarda e o estado se perde. Perde-se
o Brazil, senhor, digamol-o em uma palavra, por
que alguns ministros deS. M. não vêem ca buscar
nosso bem, vêem ca buscar nossos bens. Assim como
dissemos que se perdeu o mundo, por que Adão fez
so a metade do que Deus lhe mandou em sentido
HISTORIA DO BRAZIL. 409
1640.
averso, guardar sim, trabalhar não : assim podemos
dizer que se perde também o Brazil, por que alguns
de seus ministros não fazem mais que a metade do
que el-rei lhes manda. El-rei manda-os tomar Per-
nambuco, e elles contentão-se com o tomar. Se um
so homem, que tomou, perdeu o mundo, tantos ho-
mens a tomar, como não hão de perder um Estado?
Este tomar o alheio, ou seja o do rei, ou o dos povos,
é a origem da doença : e as varias artes e modos, e
instrumentos de tomar são os symplomas, que, sendo
de sua natureza mui perigosos, a fazem por momen-
tos mais mortal. E, se não, pergunto, para que as
causas dos symplomas se conheção melhor. Toma
n'esta terra o ministro da justiça? Sim, loma. Toma
o ministro da fazenda? Sim, toma. Toma o ministro
da republica? Sim, toma. Toma o ministro damilicia?
Sim, toma. Toma o ministro do Estado? Sim, toma.
E como tantos symplomas lhe sobreveem ao pobre
enfermo, e todos acommeltem a cabeça, e o coração,
que são as partes mais vitaes, e todos são atlractivos
e conlractivos do dinheiro, que é o nervo dos exércitos
e das republicas, fica tomado todo o corpo, e tolhido
de pés e mãos, sem haver mão esquerda, que casti-
gue, nem mão direita, que premie, e faltando a jus-
tiça punitiva, para expelliros humores nocivos, e a
distributiva, para alentar, e alimentar o sujeito, san-
grando-o por outra parte os tributos em todas as
veias, milagre é que não tenha expirado.
410 HISTORIA DO R R A Z I L .
1040
« Como se havia de restaurar o Brazil (não fallo de
hoje, nem de hontem, que a enfermidade é muito
antiga, ainda mal), como se havia de restaurar o
Brazil, se ia o capitão levantar uma companhia pelos
logares de fora, e por lhe não fugirem os soldados,
trazia-as na algibeira? E como apoz esle ia logo oulro
do mesmo humor, que os trazia egualmcnlc arreca-
dados, houve pobre homem n'estes arredores, que
sem sahir da Bahia, como se quatro vezes fora a Ar-
gel, quatro vezes se resgatou com o seu dinheiro.
Como se havia de restaurar o Brazil, se os manli-
mentos se abarcavão com mão d'el-rei, e talvez os
vendião seus ministros, ou os ministros de seus mi-
nistros (que não ha Adão que não tenha sua Eva),
pondo os preços ás couzas a cubiça de quem vendia,
e a necessidade de quem comprava? Como se havia
de restaurar o Brazil, se os navios, que suslentão o
commercio e enriquecem a terra, havião de comprar
o descarregar, c o dar qucrena, e o carregar, c o
partir, e não sei se também os venlos? Como se havia
de restaurar o Brazil, se o capitão de infantaria, por
comer as praças aos soldados, os absolvia das guardas
e das outras obrigações militares, envilccendo-se em
officios mechanicos os ânimos que hão de ser nobres
e generosos? Como se havia de restaurar o Brazil, se
o capilào de mar e guerra fazia cruel guerra ao seu
navio, vendendo os manlimenlos, as munições, as
enxarcias, as velas, as enlenas, c, se não vendeu o
HISTORIA DO BBAZIL. 411
1610.
casco do galeão, foi por que não achou quem lh'o
comprasse? E como mais ou menos, por nossos pec-
cados, sempre houve no Brazil alguns ministros
d'estas qualidades, que importava que os generaes
illustrissimos fossem tão puros como o sol, e tão in-
corruptíveis como os orbes celestes? Digo isto, por
que sei que o vulgo é monstro de muitas cabeças,
que não se governa por verdade, nem por razão, e se
atreve a pôr a boca no mesmo ceo, sem perdoar nem
guardar decoro ainda ao maior planeta. O certo é
que muitas couzas se dizem, que não são, e ha suc-
. cessores de Pilatos no mundo, que por se lavarem as
mãos a si, lanção as culpas á cabeça. Que havião as
cabeças de executar, meneando-se com taes mãos, e
obrando com taes instrumentos? Desíazia-se o povo
em tributos e mais tributos, em imposições e mais
imposições, em donativos e mais donativos, em
esmolas e-mais esmolas (que até á humildade d'este
nome se sujeitava a necessidade, ou se abatia a cú-
bica), e no cabo nada aproveitava, nada luzia, nada
apparecia. Por que? Por que o dinheiro não passava
das mãos por onde passava. Muito deu em seu tempo
Pernambuco: muito deu e dá hoje a Bahia, e nada
se logra; por que o que se tira do Brazil, tira-se do
Brazil, o Brazil o dá, Portugal o leva.
« Com terem lâo pouco do ceo os ministros que
isto fazem, temol-os retratados nas nuvens. Àpparece
uma nuvem no meio d'aquella bahia, lança uma
412 HISTORIA DO RRAZIL.
1640.
manga ao mar, vae sorvendo por occulto segredo da
natureza grande quantidade de água, e depois que
está bem cheia, depois que eslá bem carregada, da-
lhe o vento, e vae chover d'aqui a trinta, d'aqui a
cincoenta legoas. Pois, nuvem ingrata, nuvem in-
justa, se na Bahia tomaste essa água, se na Bahia le
cncheste, por que não choves também na Bahia? Se a
tiraste de nós, porque a não dispondes comnosco? Se
a roubaste a nossos mares, porque a não restilues a
nossos campos? Taes como isto são muitas vezes os
ministros que vêem ao Brazil, e é fortuna geral das
parles ultramarinas. Partem de Portugal eslas nu-
vens, passão as calmas da linha, onde dizem que
lambem refervem as consciências, e em chegando,
vcrbi gratia, a esta Bahia, não fazem mais que chu-
par, adquirir, ajunctar, encher-se (por meios occul-
tos, mas sabidos), e ao cabo de Ires ou quatro annos,
em vez de fertilizarem a nossa terra com a água (pie
era nossa, abrem as azas ao vento, e vão chover a
Lisboa, esperdiçar a Madrid. Por isso nada lhe lu /.
ao Brazil, por mais que dê, nada lhe monta c nada
lhe aproveita, por mais que faça, por mais que se
desfaça. E o mal mais para sentir de todos é que a
água que por lá chovem c espcrdição as nuvens, não
é tirada da abundância do mar, como n V l r o tempo,
senão das lagrimas do miserável e dos suores do
pobre : que não sei como atura ja lanlo a constância
e fidelidade d'esles vassallos.
HISTORIA DO BRAZIL. 413
« Muitos Irances d'estes tens padecido, desgraçado 16í0
Brazil, muitos te desfizerão para se fazerem, muitos
edificão palácios com os pedaços de luasruinas, mui-
los comem o seu pão, ou o pão não seu, com o suor
do teu rosto : elles ricos, tu pobre : elles salvos, tu
em perigo : elles por ti vivendo cm prosperidade, tu
por elles a risco de expirar. Mas agora alegra-te,
anima-te, torna em ti, e dá graças a Deus, que ja
por mercê sua estamos em tempo, que, se concor-
rermos com o nosso suor, ha de ser para nossa saúde.
Tudo o que der a Bahia para a Bahia ha de ser: tudo
o que se tirar do Brazil, com o Brazil se ha de gas- sermões.
lar. » P- 'í^-'m-
Da chegada do viso-rei agourava Vieyra os mais convenção
felizes resultados, e a boa vontade com que olhava oVÍSMSCOS
, . Hollandezes.

aquelle um pregador, que tao ousado e fielmente


pintava a má administração geral dos negócios, pa-
recia implicar o desejo, se não a intenção, de pôr
cobro a taes abusos. Mas faltou-lhe o tempo para
realizar ou desmentir estas esperanças. O seu pri-
meiro cuidado foi fazer cessar o modo bárbaro de
hostilidades em que degenerara a guerra. Cançadas
estavão ambas as parcialidades de similhante modo
de guerrear ', e entabulárão-se negociações para
1
D'elle nos traça Vieyra uma espantosa pintura : « O mar infes-
tado, os portos impedidos, as costas com perpétuos rebates ameaça-
das, as campanhas talada?, as lavouras abrazadas, as casas despovoa-
das e destruídas, as cidades e villas arruinadas, os templos e os altare
414 HISTORIA DO BRAZIL.
1640. mutuamente acabar com elle, sendo incerto qual das
duas deu o primeiro passo que cada uma imputa á ou-
tra. Não houve porem d'ambos os lados egual sinceri-
dade. Frustrada a ultima grande expedição, nenhuma
razão tinha o viso-rei para esperar que oulro esforço
se fizesse em pro da restauração do Brazil, sabendo
alias muito bem que os Hollandezes avaliavão a im-
portância d'estas conquistas pelo ultimo saldo das
suas contas do anno. Valia pois mais do que balei-os,
estragar-lhes o commercio. Convencido d'isto, re-
correu, a deshonroso artificio, e cmquanto com os
Proceder Hollandezes negociava para prevenir toda a guerra
traiçoeiro do
vi-o-rei. de depredações, despachava secretamente Paulo da
Cunha c Henrique Dias a talar-lhes os domínios.
Depois dirigiu-se officialmcnte a Nassau c ao Conce-
lho Supremo, dizendo que alguns dos seus soldados

profanados, as pessoas de todo estado c condicain, de todo sexo e


idade, desacaladas, e por mil modos opprimidas : as prisoens, cs des-
terros, as pobiezas, as fomes, as sedes, huns mortos nos bosques,
outros mirrados nos desertos, fugindo dos homens para ser pasto das
aves e das feras; as molheres e meninos innocentes entregues á fúria
e voracidade dos bárbaros, e os mesmos cadáveres com horror da na-
tuic/a inceslamente afrontados ; as mortes deshumanas a sangue frio,
as traiçoens, as crueldades, as sevicias, os martuios, e tantos outros
gêneros da herética hrania, contrários a toda a fc e direito das gentes
e de nenhum modo comprehendidos debaixo do nome de guerra : esla
he a guerra que padecemos. » Serm., t. .">, p. 412.
Sobrecarregado como este quadro poderá parecer, devia haver no
todo d'elle demasiada verdade, alias se não teria arriscado a des-
cripção ao próprio tempo e no próprio thcalro da guerra : sobre tudo
o não faria tal homem.
HISTORIA DO RRAZIL. 415
desertados com medo do castigo, procurarião prova- 1640
velmente com o favor de Sua Excellencia passar-se
para a Europa; era também muito de recear-se que
elles commettessem alguns excessos na sua marcha,
pelo que pedia que, succedendo assim, fossem seve-
ramente punidos. Aventurou o viso-rei esta mentira,
fiado em que era a sua gente por demais practica do
paiz, e experta no seu officio, para deixar-se agarrar
ou atraiçoal-o a elle. Nem n'islo se enganou, e a
commissão foi plenamente executada; dividiu-se a
tropa em partidas pequenas, com seus dislriclos de
devastação traçados e logares de reunião aprazados,
e mais uma vez foi Ioda Pernambuco posta a ferro e Cast. Lus.
§ 154-6.
fogo.
Entretanto recuperava o duque de Bragança o Revolução
Ihrono, sua legitima herança, havia tanlo usurpada Portugal.
pela casa d'Âustria. Mandou-se uma caravela com
ordens para a Bahia, c desembarcando so, foi o ca-
pitão communicar ao viso-rei a importante nova que
trazia. Immediatamenle se tomarão medidas para
impedir que fosse pessoa alguma a bordo; e convo-
cados os superiores das ordens religiosas e os prin-
cipaes da cidade, leu-lhes o viso-rei os seus despa-
chos, pedindo a cada um o seu parecer. Votou a
maioria por adiar-se até ao dia seguinte a decizão :
era quê temião o poder da Hespanha e duvidavão da
estabilidade do novo governo. Mas ja o marquez tinha
tomado o seu partido, e declarou que ninguém lhe
Ü6 HISTORIA DO RRAZIL.
,64
°- sahia d'alli antes de se assentar em alguma couza.
Ouvido o que, o mestre de campo, João Mendes de
Vasconcellos, levando a mão á espada, exclamou :
Acciamação «Temos um rei do nosso próprio sangue portuguez,
l l
de D. Joao-IV ,
noBraiii. rj j 0 g 0 ) dUqUe de Bragança, a quem de direito per-
tence o reino, como sabe lodo o mundo. Que nos do-
temos pois em ouvir pareceres? Beal, real por dom
João, quarto do nome, rei de Portugal! » 0 viso-rei,
vaieroso que so esperava por um voto d'estes, repetiu : « Viva
Lucideno. . . ,, , ,
i*. los. ei rei D. João IV e que ninguém se lhe opponha ! »
Beunirão-se dous regimentos para desarmar a parle
hespanhola da guarnição, e tomadas todas as devidas
precauções, sahiu o viso-rei com o estandarte de Por-
tugal, o senado da câmara de S. Salvador, e os prin-
cipaes moradores, e proclamou rei D. João IV. Com
o mesmo enthusiasmo que nas provineias do reino,
foi a noticia recebida no Brazil, e por todas as capi-
tanias se repetiu a acciamação sem que contra ella
se erguesse uma única voz. Communicada a Nassau
a nova d'uma revolução que, tornando Portugal ini-
migo da llespanha, devia por conseguinte ser seguida
d'um tractado com a Hollanda, mandou o viso-rei
seu filho D. Fernando a Lisboa a prestar obediência.
É o viso-rei Infelizmente para a familia Mascarenhas, dous
remcltido
prezo para o outros filhos, que estavão em Portugal, preferindo
ao patriotismo a lealdade, tinhão fugido para Madrid,
e sabida a fuga, foi o Jesuíta Vilhena mandado á Ba-
hia com instrucçõês para depor o viso-rei, se visse
HISTORIA DO RRAZIL. 417
,Gi()
que seguia as mesmas partes, e nomear Barbalho,
Lourenço de Brito Corrêa e o bispo governadores
conjunctos. Apezar de ter achado que o viso-rei pro-
cedera como tocava a um Portuguez, communicou
Vilhena indesculpavelmente as suas instrucçõês aos
dous interessados, a quem faltou a virtude para re-
sistir á tentação da auctoridade. Nem lhes bastou que
D. Jorge, ao notificarem-lhe a deposição, deixasse
com prompta obediência o palácio, retirando-se para
o collegio dos Jesuítas : alli foi posto em custodia, e
com elle dous amigos, que afora a dedicação á sua
pessoa, nenhuma outra culpa tinhão.*Dous officiaes,
que elle tinha mandado prender por um assassinato
commettido com dia claro, forão saltos. Depois met-
terão-no a bordo d'uina caravela, em que o querião
mandar prezo para o reino. Antes que ella desse á
vela entrou no porto um navio com bandeira hespa-
nhola; immediatamenle capturado, achárão-se-lhe a
bordo carlas para o marquez, umas d'4el-rei dHespa-
nha, outras dos filhos fugitivos, e todas conjurando o
que persistisse no que chamavão o seu preito e leal-
dade. Como se fossem provas de traiçãb remetterão-
se estas cartas para Portugal com o prezo : e o viso-
rei alem da ignomínia e injustiça com que fora
tractado, teve ainda de chorar o proceder dos filhos
e prizão conseqüente de esposa, de que tudo teve Ereceyra
P. 154-7.
conhecimento durante uma miserável viagem.
U HISTORIA DO BRAZIL.
030.

CAPITULO XVIII

Negócios do Maranhão. — Alguns missionários de Quilo, fugindo pelo


Jlapo abaixo, entregão-se ao rio, e cliegão a Bclem. — Sobe Teixeira o
Amazonas. — Regressa com elle Acima, que explora o curso do rio. ,

os inglezes Emquanto meio Brazil mudava de senhores, ficara


no f a r á .
o Maranhão até agora illeso d'esla guerra. Conlinua-
vão porem differenles aventureiros a procurar firmar
pc n'estas parles, e cada vez mais formidáveis se
havião tornado suas tentativas desde a perda d'01inda.
Outra vez se esforçarão os Inglezes por formar um
estabelecimento na ilha dos Tocujos1; duzentos se for-
tificarão sobre o Bio de Philippe, e ja se dizia que
um reforço de quinhentos homens se achava a ca-
minho para unir-se a elles. Desde logo se alliárão
com estes recemchcgados os Tapuyas, sempre promp-
tos a entregarem-se a quem lhes offcrcccsse protec-
ção, certos de que nenhum jugo haveria mais intole-
rável do que o dos Portuguezes. Muitas tribus, que se
tinhão submellido a estes insaciáveis tyrannos, que
taes erão elles por este tempo no Maranhão c Pará,

1
Tucujúse não Tocujos. F. 1'.
HISTORIA DO BRAZIL. 419
ávidas aproveitarão o ensejo da revolta, nem havia 1630.
ja que duvidar que as que ainda se conserva vão
obedientes principiavão a vacillar. Coelho, o gover-
nador general d'este novo Estado, não perdeu tempo
em fazer sahir contra estes competidores uma força
considerável commandada por Jacome Baimundo de
Noronha, ultimamente nomeado capitão do Pará. O
commandante inglez era um tal Thomas, soldado
velho, que servira com gloria nos Paizes Baixos;
aqui porem teve de suecumbir, tentou fugir de noute
n'uma lancha, e foi agarrado e feito em postas, se- .
gundo a habitual barbaridade com que todas as na-
ções egualmente se faziâo a guerra no novo mundo.
Entregou-se então o forte, que os vencedores arrazá- „
o ' i Berredo.
rãosem deixar pedra sobre pedra. §t98-6os.
A seguinte tentativa dos Inglezes ainda teve logar
entre os Tocujos. Foi n'ella por capitão Boger Fray'.
Mandou o governador seu próprio filho Feliciano
Coelho contra este aventureiro, que também foi ven-
cido e morto, deslruindo-se egualmente o forte
Cumaú2, ediíicado pelo Inglez. Não tardou que che-
gasse de Londres um navio com quinhentos emi-
grantes para esta infeliz colônia, que elles provavel-
mente teriâo salvado, se mais cedo chegassem. Quatro
1
Frycr talvez, ou Frerc, ou qualquer outro nome similhante.
Quem o historiador portuguez quiz indicar pelo titulo de conde de
Brcchier, não tive a felicidade de adivinhar.
* Camaú escrevem Baena e Accioli. F. P.
420 HISTORIA DO BRAZIL.
1030.
d'estes homens forãoaprizionados ao desembarcarem
e remetlidos para a cidade de S. Luiz. O que d'elles
se pôde tirar foi que havia a colônia sido fundada á
custa de Thomas, conde de Rrcchier, e que em Flu-
shing ficava o navios com forças hollandezas e inglezas
a bordo para a conquista do Amazonas. Talvez esta
gente tivesse lambem ella sido enganada com simi-
lhante noticia. Inquietou-se Coelho, e tomou as pre-
cauções que pôde contra o esperado ataque. Especial-
mente tinha elle a peito removera capital do Pará,
para logar mais commodo e sobre tudo mais defen-
sável, que não era Belém tão grande, que tornasse
mui difficil a medida para a qual obteve a final
auctorizaçào de Madrid. Taes estorvos porem lhe
pozerão por deante homens cgoislas e interessados,
que, frustrado o plano, ainda hoje se vè a cidade no
mesmo mal escolhido sitio. Mesquinhas disputas en-
tre o povo do Pará co seu capitão Luiz do Bego, e
uma tentativa de Coelho, para constituir ao filho uma
capitania, primeiro no Curtipy, que lhe foi tirada e
dada a Álvaro de Souza, e depois em Camula 1 , con-
sumirão o resto da vida d'cste governador. Perdido
o arrimo, abandonou o filho o paiz, voltando a Por-
Ürrrctl.i
s (i-io-üií!. tugal.
1C30. Anmorte de Coelho deixou vago o g o v e r n o . Segundo
A
Morte
de Coelho o curso regular das couzas, não apparecendo cartas

' Alias Camela. F. I'.


HISTORIA DO BRAZIL. 421
dè successão, devia Antônio Cavalcante de Albuquer- 1636
que, que o fallecido deixara a commandar no Mara-
nhão durante a sua ausência (pois finara-se em Be-
lém) continuar no governo, até ser o logar provido
na Europa. Um habitante da ilha do Maranhão, mal
o governador fechou os olhos, partiu de Belém para
S. Luiz n'uma canoa, obrigando os Índios a arrancar
a voga de maneira que viagem, que costuma levar
vinte e cinco dias, fel-a elle em quatorze. Esperava
este homem favor e protecção de Jacomo Baimundo,
pelo que lhe communicou a nova, antes que ninguém
d'ella soubesse. Tinha Baimundo muitos amigos, e
apezar da opposição de Cavalcante, de tal modo soube
fazer valer a sua influencia, que o senado da câmara
o elegeu governador. Egualmente inefficaz foi a op-
posição em Belém. Formou-se uma conspiração para
1637.
depol-o e reintegrar Cavalcante no poder de que
illegalmente fora privado; foi porem descoberta e
Baimundo usou d'uma moderação talvez sem exem-
plo em casos taes. Plenamente convictos os conspira-
dores, não os molestou elle nem na vida, nem nos
membros, nem na fazenda, nem sequer na libertade,
contentando-se com separar os que lhe parecia peri-
goso deixar unidos. Medidas de maior rigor não terião
sido mais efficazes; ganhou o amor do povo com esta
clemência, e prendeu pela gratidão os que talvez não ...
J
Berredo.
1 1 j § 613-57.
lograra reprimir pelo medo.
Não lhe tardou opportunidade de tornar memora- Missão
42t! HISTORIA DO BBAZIL.
1037. ve] n ahistoria do Maranhão e da America do Sul o
seu governo. Dous annos antes tinha sido enviada de
Quilo aos índios do rio Ahuarico uma missão fran-
ciscana. Um capitão por nome Juan de Palácios offe-
receu-se com alguns soldados poucos para escoltal-a,
compartindo os perigos e a gloria da expedição, que
chegou á província dos Encabcllados, onde o Ahua-
rico faz juncção com oNapo, demorando se alli al-
guns mezes a tentar sem resultado a obra da conver-
são. De cançados retirárão-se alguns missionários,
mas o maior numero persistiu na empreza, até que
Palácios foi assassinado pelos selvagens; então fugirão
possuidos de terror. Dous irmãos leigos e seis solda-
dos perderão porem o animo ao pensarem na tre-
menda jornada de regresso ao Pcrú, e, desesperando
de vencel-a, entregarao-se ao rio, como ja antes fizera
Orellana. Domingos de Brieba e André de Toledo
erão os nomes dos frades; os dos soldados não os
guardou a historia. Todos chegarão a Belém sãos e
salvos.
Assim foi segunda vez navegado o Amazonas de
Quito até ao mar, e comtudo pouco ou nada se ficou
sabendo do seu curso. Tão desfigurada com as fábu-
las do descobridor e adulterada com as mentiras do
Dominicano que o acompanhara, havia sido a histo-
ria da primeira viagem, que o mais para que servia
era para induzir aventureiros em erros. Orsuacnlrara
no rio-mar pelo Ucayali e pelo Guallaga, mas o diário
HISTORIA DO BBAZIL. 425
que d'esta exlranha expedição se escrevera, somente 1677
se occupava com as atrocidades de Aguirrc, poucas Acuíiu.
Traducç.lo
informações dando a respeito da extensa tira de paiz ingl. C. 13.
por elle percorrida. Quanto a estes últimos viajantes, Man. Bodri-
vinhão todos tranzidos de terror, e ao tornarem a ver- L. |"ec.' 5.
se entre christãos, so poderão dar uma vaga relação
de nações anthropophagas, a que havião escapado.
A única couza que resullava clara, era que nada
obstruía a navegação d'este poderoso rio por um Berredo.
9. § 658-63.
curso de mais de tres mil milhas.
Fácil é de imaginar com oue espanto não serião Teixeira
•3 1 1 mandado a
vistos estes homens em Belém, e quão cordialmente 0eatéxmazoL^
Quito.

recebidos. Forão remettidos para S. Luiz, onde o


governador os interrogasse em pessoa. Conscio da
usurpada auetoridade, anhelava Baimundo cobrir
com o brilho d'algum serviço relevante o feio do
crime, e nada para isso lhe pareceu mais próprio do
que explorar a navegação interna entre o Brazil e o
Peru, e tal alliança cimentar com os naluraes, que
jamais se atrevessem os Hollandezes a attentar poi
esta via contra o Potosi. Serviço era este que a corte
especialmente recommendara a Maciel, quando capi-
tão do Pará, e depois a Coelho, nenhum dos quaes
achara lazer para tão difficil empreza. Também se
diz que por este tempo revolvia o governo hespanhol
um projecto de trazer os thesouros do Peru, Quito,
Popayan e.até do Novo Reino pelo rio giganle a Belém,
d'onde acharião para a Europa mais curto e seguro
424 HISTORIA DO RRAZIL.
1637.
caminho. De tão feliz e inesperada opportunidade de
l
Gomberville. .
levaravan
m^destma- l e este importantíssimo objectojançou Rai-
e mun
i)isse°rt p.52. d o ávida mão.
Declararão se os viajantes promptos a volver bem
acompanhados ao Quito pelo mesmo caminho que
havião trazido, e consequentemente preparou-se uma
expedição, de que Teixeira havia de ser o chefe. Re-
ceando sempre uma invasão dos Hollandezes, n~o
queria o povo do Pará separar-se d'uma porção tão
considerável da sua força, qual a que tinha sido
fixada para este-serviço, e sobreesteve-se na partida,
emquanto contra ella se mandava uma representação
a S. Luiz; mas peremptória foi a resposta de Bai-
mundo, e a 28 d'oulubro de 1637 partiu Teixeira de
Belém' com setenta soldados e mil e duzentos fre-
cheiros e remadores indígenas, prcfazendo com mu-
lheres e escravos um total de dous mil pessoas, que
se embarcarão.em quarenta e cinco canoas.
chegada ^ a ' s a 0 í I u e e r a 0 c a P a z e s de prestar havião tomado
ao Quito. s o b r e s i o s g U i a s . a c o r r e n t e o s trouxera-para baixo,
e emquanto ella os arrastava, estavão seguros de se
acharem na verdadeira estrada; mas encontrar pas-
sagem pelos intrincados canaes d'este prodigioso rio
acima, era obra de muita paciência e grande difíicul-
dade. Muitos dos índios desertarão, e lodo o esforço,

1
Não foi de Belém e sim "de Cametá que partiu a expedição de
Pedro Teixeira. F. P.
HISTORIA DO BBAZIL. 425
toda a influencia, toda a arte de Teixeira foi preciza 1037
para impedir que o resto os seguisse. O estratagema
que melhor effeito surtia, era asseverar-lhes que
estavão a chegar ao termo da viagem, e mandou
Bento Rodrigues de Oliveira com oito canoas adeante,
como para preparar quartéis. Era este Brazileiro de
nascimento, costumado a similhanle modo de viajar,
e senhor da lingua tupi, que fallava como a ma-
terna; criara-se entre os naturaes, e, homem de
grande penetração, entendia-lhes a natureza e os
olhares como a linguagem, de sorte que muito o
respeitavão os índios, crendo d'elle que lhes sabia ler
no pensamento. Foi elle reconhecendo o caminho e
deixando signaes e instrucçõês em todos os pontos e
estâncias do rio, o que aos outros servia de não pe-
quena excitação para que proseguissem a ver dia por
dia as novas que n'estas estações encontravão; e
Teixeira sempre a levantar-lhes os espíritos abatidos
com protestações de que mais um bocado de perseve-
rança chegaria- ao termo da viagem. Assim forão
avançando até que a 3 de julho do anno seguinte che-
garão ao logar onde Palácios tinha sido morto, e
aqui, tendo por necessário assegurar-se a retirada,
postou o commandante a maior parte do seu pequeno
exercito sobre as margens de formoso rio, onde cahia
na grande corrente, e o commando deu-o a Pedro
da Costa Favella e Pedro Bayão de Abreu. Com o t^ag.
resto seguiu para Payamino, primeiro estabeleci-
426 HISTORIA DO BRAZIL.
1058. 'jnenlo dos Castelhanos n'esta direcção1, e que fica
na província de Quixos,'a cerca de oitenta legoas de
Quito. Aqui deixara Bento Bodrigues suas canoas e
recado que partia por terra para Quito. Seguiu-o
Teixeira por paiz montanhoso e agreste até alcançar
Baeza, logar então chamado cidade, mas hoje um
deserto. Ja então se sabia da sua vinda, e ordens erão
dados para suppril-o de todo o necessário a elle e á
sua gente. Ao approximar-se de Quito, o clero, a
câmara, eos moradores lhe sahirão ao encontro em
procissão; corridas de touros se derão em memória
Acuiia.
Acima. i • ,
ci5-i7. da sua viagem, e em quanto com as honras que me-
W. Itoilr. . . . . .
L 2, c. 6. recia o festeiavão, rcmettião ao viso-rei do Pcrú o
Berredo. » '
§ 679 8-. ujarj0 e niappa do rio por elle preparados.
Manda o Ao conde de Chinchon, enlão viso-rei, de tão grande
viso-rei do

Peru levantar conseqüência pareceu esta expedição no estado em


no
- que se achavão os negócios, que deu ordem a Teixeira
para voltar pelo mesmo caminho, a verificar e aper-
feiçoar a sua planta, levando comsigo duas pessoas,
que, seguindo para Madrid, apresentassem a el-rei
as informações colhidas. Alguma difficuldade houve
em achar estas pessoas. Juan Vasquez de Acuíía, cor-
1
No logar onde o rio Payamino entra no Amazonas. Ha perto
d'este logar um porto, chamado do nome do rio, e onde os Hespanhoes
se havião fortificado, erguendo uma villa para manter sujeitos os
Quixos (Acuiia, Trad. Ingl., c. !.">). .Win rio, nem lo^ar d'este nome
se encontrão no mappa grande de D. Juan de Ia Cruz. Do ponto diffe-
rente escolhido por Teixeira para o reemharque se ve porem que deve
o Pavamino ter sido um dos affluentes do Coca.
HISTORIA DO BRAZIL. 427
regedor de Quito, offereceu sua pessoa e fazenda para 1C38-
este serviço, requerendo que se lhe permittisse for-
necer á sua custa tudo o necessário; não se acceitou
a offerta, quiçá por ser indispensável alli a sua pre-
sença; outros aventureiros qualificados para o cargo
não apparecião, até que recorrendo-se ao provincial
dos Jesuítas, nomeou este Fr. Christoval de Acuna,
irmão do corregedor, e então reitor do collegio de
Cuenca, e Fr. André de Arlieda, professor de theolo-
gia nas escholas de Quitol. Levarão ordem de levan-
tar a planta do rio, notando quanto houvesse que
nolar. Acompanhárão-nos quatro religiosos da ordem
de Nossa Senhora das Mercês, um dos quaes, por
nome Fr. Pedro de Ia Rua Cirne, fundou mais tarde
conventos da sua regra em Belém eS. Luiz.
Ao emprehender-se esta descida pelo maior rio do Nascentes <k
. . . . . . , Amazonas.
mundo, muitas e diversas erão as opiniões sobre a
origem d'este. Em Lima se lhe dava por nascente o
lago de Lauricocha, entre as montanhas visinhas de
Huanuco de los Cavalleros, queficaa cerca de setenta
legoas da capital do Peru. Na província de Popayan
reclamava-se a mesma honra para o Caqueta ou Ju-
purá, posto que sem razoável fundamento, sendo
este rio, apoz um curso de setecentas legoas, tragado
por outro muito maior do que elle Outros derivavão
o Amazonas do Guamaná e do Pulca, que nascem
1
Ja uma vez dissemos que os Jesuítas não eram frades e sim
clérigos regulares. F. P.
428 HISTORIA DO BBAZIL.
1638. a c e r c a Qe 0-llQ j e g 0 a s u e Q u j t 0 e s.-,0 a s fontes do

Coca. Com uma parcialidade fácil de explicar-se pre-


feriu Acuna esta opinião. Fritz, o missionário, pelo
contrario mantém a primeira, e Berredo o segue.
Teem elles razão quando affirmão que é o Ucayali a
corrente principal, e não o Novo Maranhão, ou Lau-
ricocha, como com mais propriedade tem sido cha-
mado; mas é da mais remota nascente que devemos
traçar este potente rio, e essa é um lago perto de
Arequipa, d'onde rebenta o Apurimac.
i6 deie». Tão difficil achara Teixeira o caminho de Pava-
J
1639. . _
Beembarca mino, que na volta preferiu embarcar perto d'um
r l
Teixeira.
estabelecimento chamado Archidona, sobre uma
das correntes que formâo o Napo, e onde ainda
hoje os missionários das bandas de Quito costumão
Condamine. f „ _ „ l _ • r i ~ •
p. i7. iazei-o para ir as poucas reducçoes que teem sobre
este rio. Não pequena alegria causou a sua chegada
a Pedro da Costa e ao destacamento que com elle
estava. Por muito tempo não se havião conservado
em termos amigáveis os Encabellados : temião os sel-
vagens, que n'elles se vingasse a morte de Palácios,
e os Portuguezes não ião longe de aproveitar a occa-
sião para a desforra. Rebentara a guerra, muitos dos
naturaes havião sido mortos, e mais de setecentos
feitos prizioneiros. O nome vernáculo d'esta nação
ninguém o refere; os Hespanhoes lhe pozerão nome
do costume singular de deixar crescer os cabellos até
incommodo comprimento, ás vezes até abaixo do
HISTORIA DO BRAZIL. 429
joelho, moda commum a ambos os sexos. Vivião em 1639.
continua guerra com cinco tribus limitrophes da
mesma banda do rio1. Por arma tinhão o dardo, e
erão anthropophagos; cobrião de folhas de palmeira
suas casas, arte em que revelavão bastante engenho.
Aqui se deteve Teixeira alguns mezes, tirando vin-
gança d'esta gente2, e construindo novas canoas,
por lerem sido destruídas com a guerra a maior parte
das que alli deixara. E aqui, segundo os Portuguezes5,
Berredo.
tomou elle posse das suas descobertas para a coroa §To££
r x
Aijufía. 50.
de Portugal em nome de Philippe IV, tomando mãos M^,od1'^uez

' Os Senos, Becabas, Tamas, Chufias e Ramos.


4
Pagarão, diz Acuiia, as vidas dos nossos índios, que tinhão morte
com mais do triplo das d'elles; módico castigo, comparado com os
morosos que ein taes casos soem impor os Portuguezes! M. Rodri-
guez, p. 125.
3
Negão os Hespanhoes que fosse este o logar ; e Fritz, no interesse
d'elles, sustenta que foi perto do Chuchivara, umas cem legoas mais
abaixo. Condamine com mais probabilidade o fixa á foz do Yupura;
mas o auto original, a que se refere, como tendo-o visto em Belém,
não é datado do Guayaris, nem faz menção da chapada elevada que
elle adduz como um dos signaes pelos quaes se pôde determinar a
situação (P. 94-98). Impossivel é averiguar a verdade, nem, que se
podesse, fora de importância. N'aquella epocha nenhuma significação
podia ter um limite entre conquistas portuguezas e hespanholas n'a-
quellas partes; e do próprio auto (que Berredo imprimiu) se ve, que
nenhuma intenção sirnilhante tinha Teixeira, escolhendo somente
este logar, seguindo suas instrucçõês, como o melhor que encontrara
para assentar um estabelecimento. Condamine com pouco desculpavel
negligencia raciocina d'uma interpretação forçada de Acuiia contra a
sua linguagem explicita, quando este auctor diz expressamente que
o Ahuaricu se chamava rio do Ouro, e é da foz d'este que está datado
o auto.
150 HISTORIA DO- BBAZIL.
1659
cheias de terra, e atirando-as ao ar, emquanto pro-
clamava que se alguém soubesse de causa justa ou
impedimento, que a este posse se oppozcsse, appare-
cesse e o declarasse ao escrivão. Não se apresentando
contradictor algum, apanhou o escrivão terra, que
poz nas mãos de Teixeira, fazendo assim entrega e
apprehensáo para a coroa de Portugal.
os omaguas. O paiz fronteiro, entre o Napo e o Curaray, que
confluem quarenta legoas abaixo da terra dos Enca-
bellados, possuião-no quatro tribus, das quaes afora
o nome * nada mais se refere. Oitenta legoas abaixo
da sua juncção cabem estes rios no Ucayali, então
chamado Ttinguragua, e sessenta legoas mais adeante
colloca Acuiia a tribu dos Omaguas. D'este povo al-
guma couza ouvira Orellana, pois que falia d'um
cacique chamado Aomagua, e fácil era o equivoco
entre o nome do chefe e o da tribu. Provavelmente
não estavão estes índios ainda então assentados sobre
a margem do rio. Não se diz que elles os visse, que,
se o fizesse, mal lhe podia haver escapado a singular
deformidade artificial com que das outras nações se
distinguião. Conseguião-na, apertando a testa e o
toutiço ás crianças entre duas taboas, com que lor-
navão perfeitamente chatas as cabeças, operação cujo
fim era procurar a maior similhança possível com a
condamine. lua cheia, para elles o ideal da belleza d'um rosto

1
Os Ahigiras, Jurussunez, Zapatás, e Vguitas.
HISTORIA DO RRAZIL. 451
humano. O craneo por conseguinte desenvolve-se I6'í)
para os lados, similbando mais uma malfeita mitra
do que cabeça humana. Actualmenteteem cahido em
desuso estas taboas de compressão, contentando-se
aquelles selvagens com moldar "a cabeça á força de
expremel-a entre as mãos1. D'esta practica se cha- Rihe>r°-5'5-
mão elles a si próprios Umanas, que quer dizer ca-
beças chatas, palavra que os Hespanhoes escreverão
Omaguas, e pela mesma razão os Portuguezes os
chamarão Cambebas na lingua tupi. Ainda mais sin-
gular se tornava esta moda por trazerem as mulheres Acufia
tanto cabello, que lhes occultava a deformidade. Com
razão se poderia suppôr que praclica tão desnatural
os tornaria estúpidos; tão longe porem estavão de ter
com esta distorção soffrido desarranjo algum inlel-
lectual, que tanto as relações mais antigas como as
mais modernas concordão em represental-os a tribu
mais civilizada, racional e dócil de toda a margem
do rio. Não muitos annos depois da viagem do Orel-
lana, alguns d'estes índios, que transplantados para
1
Os May.pcV.Htça).a dos antigos passão por terem propagado este
achatamento artificial. (Hippocrates, citado por sir T. Browne, nos
Erros vulgares, B. 6, c. 10.) É isto porem errôneo segundo todas
as probabilidades, pois que de certo não o propagão os Omaguas. Hip-
pocrates parece ter fallado theoricamente, que era por demais remoto
ofacto, para lhe ter chegado ao conhecimento. Berredo (§ 719) men-
ciona a opinião de que os Omaguas adoptárão esta moda, como irrecu-
sável distinctivo das outras nações, para que jamais fossem escravizados
sobre pretexto de serem anthropophagos. Mas o costume ja entre
elles prevalecia antes que nenhum caçador d'escravos tivesse alcan-
çado esta parte do sertão.
432 HISTORIA DO RRAZIL.
1639. a província de Quixos debaixo do domínio hespanhol,
fugirão nesta direcção por acharem intolerável o
jugo, havião achado aqui o grosso da sua nação, e
communicado-lhe as artes aprendidas de seus antigos
senhores. Cultivão e preparão o algodr.o, de que te-
cem panno de tão variegadas cores, que outras tribus
cobiçando-o pela sua bellcza, se cntregão a activo
trafico com elles para obtel-o. Andão ambos os
sexos decentemente vestidos; rude mas não incon-
venientemente feitas são suas vestes um sacco com
aberturas para os braços. Armas lhes são a seita e o
pau de arremesso. Matão o mais valente dos seus
prizioneiros, não para devoral-o, mas para se livra-
rem d'um inimigo perigoso; os cadáveres atirão-nos
aos rios guardando por trophcos as cabeças. Aos ou-
tros, quepoupão, tomão extraordinário affecto, e se
alguém lhes propõe vender um captivo, offende-os a
proposta como couza monstruosa que não podem ou-
M. liodriffuez. • i . i • 1 r>, ~ . . . .

r.125. vir : de tudo o mais se deslarao, mas nada pode ín-


duzil-osa vender uma creaturahumana. Embriagão-
secom duas hervas, uma chamada floripondio pelos
Hespanhoes, outro curupá na própria lingua d'elles;
vinte e quatro horas dura a embriaguez, e visto di-
zer-se que produz extranhas visões, deve assimilhar-
se á do ópio. Da curupá fazem uma espécie de rape,
que lomão por meio d'um junco bifurcado, inserindo
os dous braços nas duas ventas, e sorvendo depois o
Condamine. ... ,
r. 7o. po com ridículas visagens.
HISTORIA DO BRAZIL. 455
Foi dos Omaguas q u e nos veio o caoutchouc, ou 1659
gomma elástica. Forão os Portuguezes do Pará os
primeiros que lhe aprenderão a serventia; d'ella
fazião sapatos, botas e até vestidos, tornando-a a sua
impenetrabilidade da maior utilidade n'um paiz,
onde tão a miúdo se viaja por pantanaes. Servião aos
Omaguas de syringas garrafas d'esta gomma, uso
que so n'estes últimos annos foi conhecido na Ingla-
terra. E é costume entre elles apresentar uma a cada cond imine.
77.
hospede no principio d'um festim '. Ribeiro, M».
QuandoTeixeira fez a sua viagem possuião os Oma-
guas as ilhas do rio por mais de duzentas legoas d e
extensão, sendo tantas as suas aldeias q u e m a l se
perdia uma de vista eis que j a apparecia outra. Me-
dem algunas d'estas ilhas u m a área considerável, e
era n'aquelle tempo numerosíssima a nação, posto
que em n e n h u m a das margens possuisse terras. An-
dava ella em guerra com os Urinas ao sul e com os
Tucunas ao norte, tribus que ainda são suas inimi- OiTucuuas
gas. Acredita a ultima n a metempsychose, practica
a circumcisão e excisão, e adora u m ido!o caseiro
chamado Ita-ho; mais pertinazmente do que outros
nenhuns selvagens americanos se moslrão aferrados

1
Servem-lhes talvez estas garrafas para ostentar dextreza no beber,
esguichando o licor para dentro da boca, como os Tupinambás atirão
a farinha de mandioca. Também os Hespanhoes das classes baixas usão
muito erguer a borracha, ou garrafa de couro acima da cabeça, e
deixar sahir d'ella um jorro ao bebercm.
11. 28
434 HISTORIA DO BRAZIL.
'639. aos seus erros supersticiosos. Aldearão os Portugue-
zes alguns d'estcs índios, porem jamais foi possível
fazel-os renunciar á crença na divinidade d'estas
hediondas figuras. Quasi todas as tribus que povoão
este rio, usf.o d'um signal dislinctivo: o dos Tucunas
é uma linha preta estreita traçada das orelhas ao na-
riz. Os homens cingem os rins com um tecido da
casca d'uma arvore, que chamão Aichama; as mu-
lheres andão nuas. São insignes na arte de empalhar
aves, que malão com o sarbacan ou canna de soprar;
mui tos d'estcsbellissimos pássaros, cxlorquidosd'elles
como tributo, são remettidos para a Europa. Os Uri-
nas, de quem faz menção Acuna, são chamados
1
Ribeiro. Ms. ' ,
immas Mayurunas pelos Portuguezes, e habitão sobre o no
Yanari ou Javari. Trazem calva a coroa da cabeça,
o resto coberto de cabello, e as faces c nariz com
muitos buracos, por onde passão espinhos; lambem
usão de pennas de arara nos cantos da boca, e fios
de conchas pendentes das orelhas, ventas e lábio in-
ferior. Tão bárbaros como a presença são os seus cos-
tumes ; devorão os inimigos e os seus próprios.doen-
tes e inválidos compartem a mesma sorte, sem que,
segundo se diz, o filho poupe o pae, nem o pae o
Kibjiro. Ms. filho.
Tres dias se detiverão os aventureiros n'uma ilha,
que ficava no meio do paiz dos Omaguas, e aqui,
apezar de acharem-se a 5" de lat. sul, acharão o
tempo Ião frio, que tiverão de vestir mais roupa,
HISTORIA DO RRAZIL. 435
1059
sendo esta, segundo lhes disserão, a temperatura or-
dinaria nos mezes de junho a agosto, em que o vento
dominante passa por sobre a serra do sul coberta de
neve. O importante rio Pulumayo cahe no Amazonas
do lado do norte dezaseis legoas abaixo d'esta esta-
ção. Tendo as cabeceiras entre as montanhas, que
ficão perto da cidade do Pasto, vem durante todo o
seu extenso curso recebendo as águas de não menos
de trinta rios consideráveis, entre os quaes se conta
um braço do Jupurá, que assim liga as duas grandes
correntes do Popayan. Annos antes da viagem de
Teixeira tinhão alguns Hespanhoes tentado descel-o,
partindo d;aquella província, engodados por historias
de ouro achado n'elle : mas acharão as ribeiras ha-
bitadas de numerosas e guerreiras tribus', que com
alguma perda os obrigarão a retroceder. Nas rique-
zas do rio ainda se continua a fallar, mas a ferocidade
d'estas nações intimidou de tal forma os aventureiros
que nenhum tentou mais ja não a conquista, mas
nem mesmo a descoberta. Cincoenla legoas mais
abaixo e do lado do sul fica a foz do Yetan ou Yutan,
que vindo das bandas de Cuzco, segundo as informa-
ções que poderão obter os missiqnarios, atravessa a

1
Erão os Yurunas (de quem ja se fallou), os Guataycus, os Yaca-
liguaras, os Parianas, os Zigús, os Aucais, os Cimas, e outros mais
para cima, cujos nomes Acuha não ouviu, chegando so a saber que
erão muitas hordas d'um povo, que os Omaguas insulanos chamavão
Omaguas-yete, isto éos verdadeiros, os originaes Omaguas.
436 H I S T O R I A DO RRAZIL.
1039. parte menos conhecida da America do Sul, embora
passe por ser de fácil navegação, correndo mansa-
mente e com bastante fundo '. Situada a quatorze
legoas abaixo do Yelan, era grande e forte a ultima
aldeia dos Omaguas, como logar fronteiro. Erão estes
selvagens os senhores do rio, e tal a sua superiori-
dade, que por uma extensão de cincoenla legoas
nenhum estabelecimento d'outra nação se assentava á
vista das duas margens. Os Curis e Guayrabas ao norte
c os Cachiguaras e Tucuris ao sul tinhào no interior
suas aldeias, descendo pelos braços menores ou ca-
naes marginaes do rio, quando sobre este tinhão de
aventurar-se. Nenhum d'estes aldeamentos se avistou
em quanto Teixeira não chegou ao Yurua 2 , a vinte e
1
Os nomes dos I abitantes são, como os re'ere Acuiia, Tepunas,
Guanurus, Ozuanas, Mornas, Naunas, Conomonus, Marianas, e
mais perto do Peru, uma nação i'Omaguas que nas orelhas e nariz
trazião ornalos de ouro. Suppôe Acuiia a infeliz expedição de Orsua
emprehendida em busca.do paiz d'estes últimos índios, que não
achou, por ter tomado o braço oriental em legar do occidental, en-
trando assim pelo Yurua no Amazonas. Também Ribeiro o faz descer
o Yurua. Xisto porem certamente se illudem. Nenhuma duvida pode
haver sobre ter Orsua vindo pelos Guallaga e Ucayali abaixo, como se
ve da obra de Pedro Simoii, que segundo todas as probabilidades tinha
á vista o diário a que allude Acosta.
iVeste logar da narrativa de Acuiia interpola Fr. Manoel Rodri^uez
uma opinião sua de serem as tribus de Yetan descendentes d'esses
Pertivianos fugidos com o ultimo Inca, e dignas de que os missionários
saião a buscal-as.
- Acuiia bem quizera que a este rio se pozesse o nome de rio dei
Cuzco, por ter visto uma carta ou roteiro de Orellana, que o fazia
correr ao norte e ao sul d'aquella cidade.
Sobre o Yurua teve Ribeiro noticia do duas tribus extraordinárias
HISTORIA DO R R A Z I L . 457
10
quatro legoas da ilha fronteira dos Omaguas, e trinta "°
e oito do Yetan. Segundo o que Acuna ouviu aos In-
M.Rodriçuoz.
dios, vinhão estes dous rios d'uma so nascente, for- °m.
1 1 1 . ,. Berredo.
72 3
mando um delta com o Amazonas, em que se perdião. § --
Vinte legoas mais abaixo principiava o território o-
Ciirieirari>,
dos Curiciraris na ribeira do sul en'um paiz mon-
tanhoso : extendia-se por oitenta legoas. Era uma
tribu populosa esta, cujas aldeias quando muito
nunca distavão mais de quatro horas de viagem entre
si, succedendo ás vezes marchar-se meio dia a sahir
d'uma e entrar em outra contiguamente. Poucos
moradores se deixavão ver; quasi todos linhão fugido
para as serras por haver-se espalhado o falso boato
de que vinhão os Portuguezes matando e escravi-
zando por onde passavão. Era a raça mais tímida de
todo o rio, mas também a mais adeanlada em artes,
embora andasse inteiramente nua. Tinhão bem pro-
vidas as casas e erão excellentes oleiros estes índios,
excedendo n'isto os próprios Tupinambás, pois que
em cuja existência ainda em 1774 se acreditava... erão os Carcanas,
raça de anões, cuja estatura não passava de cinco palmos, e os Ugi-
nas, que tinhão caudas de tres ou quatro palmos de comprimento, ap-
pendice que explica a sua origem, pois também os chamão Coalata-
puya, filhos de macacos. Ribeiro (homem de letras e pouco crédulo)
nenhuma opinião emitte sobre os Pigmeos, mas-a respeito dos filhos
de macacos tinha visto um depoimento jurado em 1768 pelo Carme-
lita Fr. José de S. Thereza Ribeiro, vigário de Castro d1 Avelãs, que
elle conheceu. N'este depoimento declarava o bom do Carmelita haver
visto um índio d'esta nação despir-se para metter-se na água,
tinha um rabinho macio da grossura do dedo pollegar, e de meio
palmo de comprimento.
438 HISTORIA 1)0 RRAZIL.
1030
não so fazião pucaros, pralos e outros utensílios para
usos similhantes, mas até fornos e frigideiras, e de
todas eslas couzas tinhão sorlimenlo para o trafico
com outras tribus. Quando Teixeira subia o rio pro-
curou na primeira aldeia d'esle povo uns ornalos de
ouro, que se trazião nas orelhas enariz; não tardarão
os selvagens a perceber com quanta soffreguidão erão
buscados estes dixes, e como nunca mais appareces-
sem com elles, suppoz que os teriào prudentemente
escondido. Ensaiado o ouro em Quito, achou-se ser
de vinte e um quilates. Não pôde então Teixeira por
falta de interpretes saber d'onde viera este melai;
provido porem d'elles na volta, aprendeu esla histo-
ria : Um pouco mais acima, do lado do norte, ficava
a foz do Yurupau; tomava-se por este rio, c depois
pela terra dentro, jornada de tres dias, até ao Jupurá,
e deste passava-se ao rio do Ouro, chamado Yquiari,
e alli nas fraldas d'uma serra, se achava o ouro em
grãos, que balidos lomavão a forma que se lhes
queria dar. Os que os apanhavão chamavão-se yuma-
guaris, apanhadores de melai, que a palavra yuma
seapplicava indiscriminadamente ao ouro e ao ferro
dos exlrangeiros. A nação que fornecia este ouro era
a dos Amanagus. Foi consignada em mappas esta
informação, para ser causa de muita mallograda
expedição emprehendida pelos Portuguezes.
Quatorze legoas mais abaixo chegou Teixeira á foz
(Peste rio, a que nos mappas hespanhoes se dá o nome
HISTORIA DO RRAZIL. 439
165
de Grão Caqueta, mas que os Portuguezes chamão °-
Jupurá ou Yupurá, como Acuiia o, ouviu denominar
no próprio logar. Vem-lhe este nome da tribu yu-
purá, que a seu turno o toma d'uma fructa de que
faz um pastel prelo e mal cheiroso que lhe serve de
alimento. E este o rio que no Popayan passa por ser
a fonte principal do Amazonas; afora o rio Negro é
o maior confluente, e a não lhe quebrarem nume-
rosas ilhas o immenso volume das águas, seria abso-
lutamente innavegavel. O seu curso, como os do rio
Negro e Amazonas, vem de leste para o oeste, to-
mando para o sul na latitude de 5o e alguns minutos,
antes de perder-se n'este ultimo. A um mez de viagem
ac/hia da foz ha corredeiras e cachoeiras. Entre a
embocadura e estas cataraclas, recebe em si diffe-
rentes rios consideráveis; pelo sul, ou margem es-
querda, o Acunani, Manarapi, Yuamiani, Auame-
merim e o Purui densamente povoado; e os Cunacua
e Arapi, dos quaes por um curto sangradouro se passa
para o Iça. Acima das cachoeiras, até onde os Portu-
guezes o teem navegado, encontrão-se do mesmo lado
o Caninari e o Meta, que pelo Perida communica com
o Iça. Pela margem direita recebe o riacho Maraá1,
o lago Cumapi, outro riacho chamado Menáa, que
por um sangradouro entre as cabeceiras communica
com o Urubaxi, e por meio d'este com o Negro, o
1
Erroneamente chamado um lago por Condamine, que torna a
errar quando diz que elle communica com o Urubaxi. Ribeiro, Ms.
410 HISTORIA DO RRAZIL.
mm Uacapu-paraná1, oYacarapi e o Apuaperi, que ébein
povoado, e por meio do Uaopes tem communicaçào
com o Negro. Acima das cachoeiras ficão o Muruti-
paraná, o Uania, Ira-paraná, e o Yari, alem do qual í
nenhum explorador passou.
Diz Condamine que o Jupurá deságua no Amazo-
nas por oito bocas, e assim se traçou no mappa; mas
Ribeiro, que em 1775 visitou officialmente os esta-
belecimentos portuguezes n'aquellas partes, verifi-
cou não ter elle mais do que uma. Os Ires canaes
mais acima são outros tantos braços, que correm do
Amazonas para o Jupurá, chamados o Auate-paraná,
ou rio do Milho, o Manhama, que communica com
elle, e o Uaranapú. Estes canaes, que misturando-se
com ellas lurvão as águas puras do Jupurá, facililão
grandemente a navegação; não ha aqui nem perigo
nem difíiculdade; em perfeita segurança vão as ca-
noas deslizando-se ao som da corrente, ou vencem-na
ao menor impulso do remo. Em mil voltas vão eslas
águas serpejando por entre bosques cheios de aves,
e veigas cobertas d'innumeraveis ovos dê tartaruga.
As quatro correntes mais abaixo3 vêem dos lagos
Amana eCudayas.
1
Mostrão estes paraníts que anda por aqui a raça tupi, salvo se
orão esles nomes, o que não é tão provável, impostos pelos índios
dos Portuguezes, ou pelos próprios 1'ortuguezes na lingua tupi.
- Teem sido os caçadores de escravos, que tão longe hão explorado
este rio.
5
Duas d'ellas chama-as Acuiia braços do rio Araganatuba. São ha-
HISTORIA DO BRAZIL. 441
1039
'QuaJ.ro legoas abaixo do Jupurá entra do lado sul -
o Tefé1, que os Paguanas senhoreião mais acima,
num paiz accidentado, em que abundão os pastos.
Vinte legoas ainda mais abaixo fica o Acaricoara2, Acitt ii oura.

que forma uma bahia de grande extensão, antes de


misturar com a turva corrente suas águas límpidas.
Principiava o território do Jurimanas s duas legoas
abaixo da fronteira dos Curiciraris, tribu esta ultima
que possuía a porção mais escolhida do rio lodo,
aquella porem era a nação mais guerreira que lhe
habitava as margens. Ficava do lado do sul, assenho-
reando as ilhas por mais de sessenta legoas, e era
excessivamente numerosa; raça mais alentada do
que os outros selvagens, bem feita e destemida. Cinco
dias se detiverão os Portuguezes n'uma de suas ci-
dades, como com razão podião chamar-se, exten-
dendo-se por uma legoa as casas, em cada uma das
quaes vivião quatro e cinco famílias, ás vezes mais.

bitados, diz elle, por vinte e uma nações; as dosYaguanais, Mucunes,


Mapianas, Aguainaus, Huirunas, Mariruas, Yamoruas, Terranus, Si-
guiyas, Guanapuris, Piras, Mopitynus, Yguaranis, Aturiaris, Macaguas,
Musipias, Guayacaris, Anduras, Caguarans, Mariamumas e Guanibis.
Segundo as noticias colhidas no Novo Reino, acerescenta elle, fica o
Lago Dourado no paiz que possuião estas tribus. M. Rodriguez, p. 129.
1
O Tapi de Acuiia.
2
O Catua de Acuiia; ambos estão consignados no mappa, mas a
relação de Acuiia confirma a auetoridade dos escriptores portuguezes
que os identificão, por quanto falia expressamente d'este lago ou ba-
hia, que elle forma na embocadura.
3
Yorimau escreve Manoel Rodriguez. Acuiia provavelmente es-
creveu Yorimau.
442 HISTORIA DO BRAZIL.
ií>30. ^q U j a ] c a r i ç O U Teixeira cerca de oitocentos alqueires
de farinha de mandioca, que, com os que trazia
ainda, podir.o chegar para o resto da viagem. O
grosso d'esla tribu habitava trinta legoas mais abaixo,
n'uma ilha grande formada por um braço do rio,
que partia a encontrar um dos aflluentes; aqui e
sobre esía ultima corrente erão bastissimos os seus
estabelecimentos, e todas as outras tribus os temião
e respeitavão. Numerosos e valentes porem como erão,
desapparecérão ja inteiramente, sendo o resto da
nação levado em 1709 por alguns Jesuítas hespanhoes
iubeiro. Ms. para uma reducção.
o rio Perus. O primeiro rio considerável em seguida c o Yana-
puary, agora chamado Perus ' pelos Portuguezes,
tendo, como muitos outros, tomado o nome da tribu
mais poderosa das suas margens. Cabe no Amazonas
do lado do sul por quatro canaes, e apezar de pedre-
goso, é navegável o seu leito. Aqui se ouviu fallar
n'uma tribu chamada dos Curigueres, que mora vão
a dous mezes de viagem por esle rio acima, e que,
lendo dezaseis palmos de altura, erão tão bravos no
animo como gigantescos no corpo. Alguns índios ap-
parecérão, que pretendendo tel-os visto ja, offerece-

1
O Cuchiguara de Acuiia, indubitavelmente a "mesma palavra que
Cochinvara, que ainda hoje designa um dos seus canaes. làa este o
nome d'uma das suas tribus; as outras erão as dos Cumavaris, üuaquia-
ris, Cuyaciyayanes, Curucuruz, Qualansis, Mnluanis e Curigueres, que
são os lilhos de Anak, de quem falia o lexto.
HISTORIA DO RRAZIL. 445
rf o-se a servir de guias aos Portuguezes para aquelle 1(j3°-
paiz, dizendo, como que para tentai-os, que trazião
esles gigantes nus nas orelhas e nariz pcnduricalhos
de ouro de tamanho, devemos presumil-o, convinha-
vel a taes orelhas e taes narizes. Tornão-se notáveis
os Perus, que derâo nome ao rio, pelos seus obslina- 0sPerus
dos jejuns expiatórios, durante os quaes nenhum
estado de doença ou fraqueza vale como excusa para
quebral-os, morrendo effeclivãmente muitos de absti-
nencias. Os que teem sido aldeados pelos Portuguezes
é precizo á força obrigal-cs a comer por cslas occa-
siões, que não poderão ainda os missionários tirar-
lhes o costume. De todos os affluenles do Amazonas
é esleo que mais cacao produz, salsaparrilha e óleo
de copaiba, mas ja não é populoso, que lhe teem
rareado as tribus as continuas incursões dos Muras,
selvagens que são o flagello d'este rio, e provavel-
mente os mesmos que os Aymorés, dos quaes tanto
em outros tempos havião soffrido as capitanias do sul
do Brazil.
Abaixo da foz d'este rio era a margem austral ha- o» caripunas
e Znrini:s.
bitada pelos Caripunas e Zurinas, tribus que prima-
vào na arte de entalhar. Erão suas cadeiras ordiná-
rias cortadas da forma de qualquer animal, não
admirando os Portuguezes menos o engenho e a bel-
lezacom que erão talhados, do que o commodo do
assento que offerecião. Tão naturalmente feitos são
seus Ídolos, diz Acuiia, que muilos lerião ainda que
44i HISTORIA DO BRAZIL.
1639 aprender os nossos esculplores, se quizessem imital-
os; verdade é que so fallava elle d'esses esculptores,
cujo officio era fazer sanctos e crucifixos, mas isto
mesmo implica um grau de habilidade, raras vezes
encontrado entre selvagens. Servia-lhes de arma o
pau de arremesso, com tanto primor fabricado, que
de todas as tribus era mui anciosamcnte procurado.
d rio Neia-o. Sessenta legoas abaixo do Perus, deságua do norte
o rio Negro. Adeante, quando tractarmos dos esta-
belecimentos portuguezes n'aquellas partes, descre-
veremos o curso d'eslerio, o maior affluenle do Ama-
zonas, e a immensa região que elle abre. Acuna
calcula-lhe legoa emeia de largura na sua foz, erro
extraordinário, pois que não mede ella mais do que
uma milha, embora em outras parles se espraie a
corrente pela prodigiosa largura desele e oito legoas.
É Guiari o nome indigena d'esle rio, e mais acima
Ueneya. Chamão-no Negro1 os Portuguezes, da cor
de suas águas, que pela sua profundidade e clareza
parecem pretas ao misturarem-se com as do turbido
Amazonas. Tremendo é o conflicto d'estas duas pode-
rosas torrentes. Arremessa-se o Negro através da cor-
rente do outro, e por muitas legoas se lhe distinguem
ainda as límpidas águas.
Por este rio acima e por oulro que n'ellc vem mor-
1
C.nrana, como segundo Acuha o chamavão alguns indianas, si-
gnifica o mesmo. Outro nome, por que, diz elle, o conhecido era
Guaranaquazanas.
HISTORIA DO BRAZIL. 445
1639
rer, chamado Paraná-meri, ou o rio pequeno, ouviu -
Acuna dizer que havia muitas nações1, das quaes a om
£di™íd0
o Amazonas
e
mais remota trajava vestidos e chapeos, do que con- ° orinoco.
cluiu que teria esta aprendido esta moda d'alguma
cidade hespanhola, que devia ficar perto. Um dos
braços do.rio Negro, lhe disserão, communicava com
oulro rio immenso, que desaguava no Atlântico, e
sobre o qual estavão estabelecidos os Hollandezes: este
concluiu elle que devia ser o rio de Philippe, cuja
foz se chamava o Mar d'Agua Doce, sendo a primeira
corrente d'alguma magnitude perto do Cabo do Norte,
e pela qual, segundo elle também, sahira Aguirre ao
Oceano. N'esta opinião de que não podia haver com-
municação entre o Amazonas e o Orinoco, persistirão
por muito tempo pertinazmente os geographos; mas
sobre o facto ja não resta duvida, sendo mais uma
prova das relações extraordinárias que entre si man-
tinhão estas tribus, e do alcance dos seus conheci-
mentos geographicos, o tel-o Acuna sabido da boca
d'ellas a tão grande distancia d'este ultimo rio 2 . A'
1
Os Caniciures, Aguayras, Yacuncaraes, Cahuayapiris, Manacurus,
Jammas, Guanamas, Curapanagris, Guarianas, Caguas, Acerabaris e
Curupatabas. Sobre o Rio Branco apenas refere os Guaranaqua-
zanas.
2
Queixa-se Gumilla (c. 24) de que tivessem os Portuguezes do Ma -
ranhão em 1737 achados caminho para o Orinoco, d'onde pnncipia-
vão a levar os moradores, para reduzil-os á escravidão. D'uma carta
de P. Bento da Fonseca (então Procurador Geral do Maranhão) e que
anda juncta aos Annaes de Berredo, se ve que os missionários desco-
brirão esta communicação dous annos mais tarde.
416 HISTORIA DO B R A Z I L .
1639
barra do rio Negro notou elle algumas boas posições,
onde se podião plantar fortes, não faltando para isso
pedras á mão : mas recommendou que antes se for-
tificasse a embocadura do Branco, com o que lhe
parecia que se fecharia aos Hollandezes este canal,
fruslrando-se-lhes n'esta direcçro efficazmçnle os de-
sígnios de engrandecimento 1 .
n d'out. Aqui se considerarão os Portuguezes quasi em casa,
1039.
prova de que as suas excursões se extendiao as vezes
até tão longe. E com que se havião de recolher agora
apoz tantos Irabalhos? Dous annos havião gasto ja
n'esla jornada, e nenhum ouro linhão encontrado,
nenhuma conquista feito; e quanto ao mérito da des-
coberta, queixavão-se não sem razão, que era couza
de pouca valia na corte de Madrid, tendo muilos
corrido eguaes perigos, c prodigalizado o seu sangue
para alargar os domínios da llespanha, morrido

1
>io memorial que dirigiu á coroa, recommendou elle que das
bandas de Quito se formassem estabelecimentos sobre os rios, que
mais prompta communicação offcrecem com a corrente grande, lista
medida, dizia elle, evitaria que os Hespanhoes do Peru mandassem
por contrabando as suas riquezas para casa, aproveitando esta via, o
que alias farião indubitavelmente, não so para fugir aos direitos de
Cartagena, mas também por minorarem o risco dos piratas. Esperava
porem que se tomassem medidas taes, que se tornasse esta a estrada
ordinária. Outra razão, que allegava, era que estes postos avançados frus-
trarião quaesquer planos de conquista que podessem forjar os Hollan-
ezes contra o Peru, de accordo com os Portuguezes, que havião fal-
tado á lealdade para com S. M. A" margem do exemplar que tenho
á vista, se lê a resposta que ao texto deu algum Portuguez : Mente o
Padre.
HISTORIA DO BRAZIL. \\1
n'uma csterqueira, sem acharem quem lhes valesse. 1659-
Com eslas queixas se dirigirão a Teixeira, pedindo-
lhe, que pois era propicio o vento, os deixasse entrar
no rio Negro, onde tomassem escravos com que pa-
gar-se dos seus trabalhos. Vendo a sua gente prestes
a levantar-se, se recusasse, permilliu-o Teixeira. Mas
intervierão os dous Jesuítas, como lhes cumpria. Ce-
lebrarão primeiro missa e depois protestarão contra
tão flagrante injustiça. O commandante, que so com
receio de que não podesse evital-o, annuira ao que
desapprovava, folgou com ver a sua inclinação apoiada
pela áucloridade d'estes padres, cuja influencia era
grande tanto pela hierarchia como pelo caracter. Man-
dou proclamar pela esquadrilha o protesto, ordenando
conjunctamente aos que ja tinhão entrado no rio
Negro, que retrocedessem, ordem a que, posto que c.rAcuna.
e£"67
67.
m tuirz.
de má vontade, obedecerão. -
0 rio immediato, vindo do sul, chamavão-no o™
n 1 rr • • 11 Madeira.

Cuyari os naturaes; mas quando leixeira lhe trans-


pozera a foz na ida para cima. pozera-lhe nome Ma-
deira, pela quantitade de lenha q*ue via vir por elle
abaixo. A descripção do curso do Madeira, que entre
1
Fr. Manoel Rodriguez (p. 153) aventura uma curiosa etymologia
d'esta palavra. « Prova (diz elle) vir o rio do Pcrú, pois que é Cuyari
uma palavra da lingua dos Incas, derivada do verbo cuyani, amar,
queé o amo, amas d'aque]le idioma, e tem os seus elegantes modos
de conjugação. Cuyari, o nome do rio, significa ama-me, sendo tão
boa a corrente, que os índios lhe exprimião a belleza, asseverando
que ella mesma lhes eslá dizendo que a amem. »
US HISTORIA DO BRAZIL.
1039. o s Y\0b secundários da America meridional é dos mais
importantes, achará logar mais adeante. Das infor-
mações colhidas d'alguns Tupinambás, que a havião
descido, concluiu Acuna, que por esta corrente de-
via de ser a communicaçào mais curta entre a Hes-
panha e o Polosi.
o rio sara.». Abaixo do Madeira, porem do lado do norte, entra
o Saraca, depois de recebido o Urubu. Communica
com um labyrintho de lagos e canaes, mas sendo ele-
vado o terreno, nem na maior altura das águas se
arreceia de inundações. Estavão aqui os naturaes l
providos de utensílios de ferro, que recebião de tri-
bus mas visinhas do mar, as quaes a seu turno os
havião, segundo dizião, de homens brancos como os
Portuguezes, e que usavão das mesmas armas, dis-
tinguindo-se porem em terem vermelhos os cabellos.
N'esta descripçào facilmente se reconhecerão os Hol-
landezes2. Viviãoeslas tribus em paiz farto de milho,
mandioca e varias fructas, e no qual abundavão a
caça e a pesca; erão numerosíssimas e crcscião rapi-
damente em população.

1
Acuiia diz que se chamavão elles collectivamente Carabuyanas,
posto que divididos em dezaseis tribus, a saber : Caraguanas, Po-
toanas, Urayaris, Masaearuanas, Quererus, Cotocarianas, Moaearanas,
Oiorupianas, Quinarapianas, Tuynamalnas, Araguanaynas, Marigiuna-
uas, Yaribarus, Varucaguacus, Cumaruruayanas, e Ycuruanaris.
- Tinhão-se elles por este tempo, segundo Acuiia, apoderado da fez
dalgum rio Dulce, que chamavão, diz elle, Philip-IIodias. iXão sei (|ue
rio seja. Berredo entende que erão os Hollandezes do Surinam. § 730.
HISTORIA DO BRAZIL. «9
Vinte c oito legoas abaixo da foz do Madeira fica 1639'
uma ilha grande, que pelos aventureiros foi compu- TuPinaSmbá5
1 1 ' d o
Amazonas
tada em sessenta legoas : era possuída dos Tupinam-
bás, de cujo nome se chamava. Fallava este povo 1
uma língua familiar a todos os Brazileiros portugue-
zes; pelo que vierão immediatamente d'elles as in-
formações que se colherão, não podendo nenhuma
má comprehensão, nem má reproducção da parte
d'um interprete allerar a substancia d'ellas. Seus
avós, disserão, tinhão emigrado de Pernambuco e
cercanias a fugir dos Portuguezes. Formarão e leva-
rão avante esta resolução os habitantes de oitenta e
quatro aldeias. Seguirão as fraldas d'uma grande
cordilheira, que lhes ficava á esquerda, atravessando
nas cabeceiras os rios que vão morrer no mar do
Norte. Não podia pela difíiculdade da alimentação
conservar-se unida tão grande multidão; forão estes
ficando n'um logar, aquelles em outro, e os pães dos
da ilha seguirão sempre avante até chegarem aos
Hespanhoes do Peru, nas vertentes do Madeira (deve
ser o Beni, ou antes talvez o Mamoré), onde perma-
necerão por algum tempo. Succedeu porem que um
dos seus fosse açoutado por um Hespanhol por haver

1
Zomba Berredo da simplicidade de Acuiia, que foi acreditar no
que ouviu, e nega que podessem estes índios ser Tupinambás, que ein
parte nenhuma, diz elle, existiâo então encorpora los, senão sobre o
Tocantins e pelos arredores do Pará. Parece esquecer que com o Jesuíta
vinha Teixeira, que devia saber se erão Tupinambás ou não.
23
450 HISTORIA DO BRAZIL.
1639. m o r l o u m a vacea, e indignados por tal affronta, ou-
tra vez levantarão campo, c descendo o Amazonas,
alli vierão estabelecer-se. Posto que em numero infe-
riores a qualquer outra tribu do rio, tão insigncs
frecheiros erão, que ja havião exterminado umas,
posto em fuga outras, e submettido nas suas visi-
nhanças quantas a sujeição não preferirão as fadigas
e os perigos da emigração.
Fabubs Entre os seus visinhos do sul, contarão elles, havia
contadas por .-, »
<*<
'* duas raças notáveis : os Guayacis, que erao pygmeos
s
Tupinambás. ,
do tamanho de criancinhas, e os Mulayces, cujos pes
estavão voltados para traz, de modo que quem, igno-
rando esta particularidade, lhes seguisse o rasto, cada
vez mais se afastaria d'elles. Ha não sei que encanto
em acreditar couzas extraordinárias, e se os Tupi-
nambás tivessem ouvido fallar d'estes povos, nada
mais natural do que referirem as maravilhas que se
lhes figuravão faclos; mas devião saber que estavão
contando falsidades, pois que accrescentavão que es-
tas nações lhes erão tributarias, pagando o seu tri-
buto em machados de pedra, que faziâo com muila
arte, sendo este o seu único emprego. Sobre a ribeira
do norte, disserâo mais, havia sete províncias bem
povoadas, cujos moradores, sustentando-se de fructos
e animaes bravios, erão tão pusillanimcs, que jamais
se fazião entre si a guerra, nem lh'a fazião as outras
tribus de tanto que os desprezavão. É isto uma fábula
como a dos homens que tinhão os calcanhares para
HISTORIA DO BRAZIL. 451
1639
deante; jamais será populosa a tribu que confia do -
acaso a sua subsistência, nem houve nunca selvagens
que existissem sem guerra. Nenhuma nação d'ella
tem vivido exempta. Uma única communidade de
christãos ha no mundo, e essa infelizmente das mais
pequenas, assaz simples para tomar no seu sentido
obvio, literal e claro a prohibição que nos fez da
guerra o nosso divino Salvador, e assaz conscienciosa
para observal-a á risca, vencendo os próprios estí-
mulos da natureza. Havia outra tribu, da qual, quando
estavão em paz, obtinhâo sal, vindo de outras, que
ficavão alem. Esta noticia de tão necessário artigo de
consumo pareceu a Acuna de grande importância
para a conquista e colonização do rio; mas se por
esta via se não podesse obter sal, poderia achar-se,
disse elle, em grande abundância sobre um dos af-
fluentes na direcção do Peru, onde dous aventureiros
tinhão descoberto ultimamente uma pedreira inteira
de sal de rocha, com o que entretinhão os naturaes
um prospero trafico.
As historias dos Tupinambás ainda vierão confir- As Amazonas.
mar Acuna mais na crença, e m que estava, á cerca
da existência das Amazonas; ja a esle respeito havião
sido inqueridos em Quito certos índios, que outr'ora
tinhão habitado sobre o grande rio, e eguaes infor-
mações se havião tirado na cidade de Pasto no Po-
payan, especialmente d'uma índia, que dizia ter
estado nopaiz d'aquellas mulheres. Durante toda a
452 HISTORIA DO BRAZIL.
1639. viagem veio Acuna repelindo as suas perguntas:
ninguém ignorava a existência de similhanle nação
e todos erão accordcs nas noticias que delia da vão.
Não é crivei, diz elle, que a mesma mentira, tão pa-
recida com a verdade, se espalhasse entre tantas tri-
bus, fallando tão diversas línguas, e derramadas por
tão grande extensão de paiz. Foi aqui que elle obteve
a final as mais plenas e satisfactorias individuações.
Trinta e seis legoas abaixo da ultima aldeia dos Tupi-
nambás, e pelo lado do norte, fica a boca do Cunuris,
assim chamado da primeira tribu que sobre as suas
margens se encontra. Alem delia moravào os Apan-
tos, depois os Taguans, e depois os Guacarasj.era
este ultimo o povo com que trafica vão as Amazonas,
enlretendo essas relações sem as quaes se extinguiria
depressa esla nação feminina. Iào os Guacaras uma
vez por anno ao paiz d'ellas, que era cheio de mon-
tanhas, por sobre as quaes se erguia um cabeço calvo
chamado Yacamiaba. Apenas os vião subir o rio
sahiào-ihes as Amazonas ao encontro, empunhando
as armas, mas apenas se desenganavão que erão os
seus amigos, mettião se-lhes nas canoas, e tomando
cada uma a primeira rede que encontrava, levava-a
para casa, onde a armava, e o Guacara, a quem ella
pertencia, era seu companheiro durante a estação.
Um índio, que dizia ler na sua infância acompanhado
o pae n'uma d'estas excursões, affirmou que na volta
trazião os homens todos os rapazinhos do anno ante-
HISTORIA DO BBAZIL. 453
rior, mas geralmenle asseverava-se que erão mortos 1639>
logo ao nascer. Era isto o que Acuna acreditava, e se
em toda a historia ha alguma verdade, é esta ultima
versão a mais crivei, alias não tardaria a dar-se in-
conveniente desproporção entre machos e fêmeas na
tribu paterna.
0 testimunho de Orellana e do seu dominicano Testimunhos
sobre
acerca das Amazonas pode ser suspeito, mas nenhuma de^ucmulheres.
te nc a
mif n a^0
razão ha para duvidar da veracidade de Acunha :
o que refere por certo o ouviu narrar. É curioso o
assumpto e bem digno de todas as investigações pos-
síveis na historia d'este paiz. Ao descer orioem 1743
não perdeu Condamine occasião de liral-o a limpo.
De todas as differentes tribus que lhe povoão as mar-
gens, ouviu elle a mesma historia, concordando todas
em terem-se estas mulheres retirado terra adentro
pelo rio Negro ou algum dos outros que correm na
mesma direcção. Um índio de S. Joaquim dos Oma-
guas disse-lhe que talvez em Coari encontrasse um
velho que havia visto as Amazonas. N'este logar soube
que era morto o velho, mas viu o filho Punilha, de
setenta annos de edade, que era o capitão dos índios
d'aquella reducção. 0 avô, contou este, achava-se no
aldeamento de Cochinvara, uma das fozes do Perus,
quando passarão as Amazonas, vindas doCaiami, que
deságua entre o Tefé e o Coari: fallara com quatro
d'ellas, uma das quaes trazia uma criança ao peito,
e de todas recordava os nomes. Atravessarão o grande
454 HISTORIA DO BRAZIL.
1639. r j 0 e tomarão na direcção do Negro. Condamine
Condamine. . . , . , , • 1 1
p.ioo. omitle muitas particularidades por julgal-as pouco
prováveis. Fora para desejar que elle as tivesse repe-
tido : nem sempre o improvável é falso, e muitas
vezes a ficção nos dá a chave da verdade, sobre serem
curiosas na Europa ainda as mesmas fábulas inven-
tadas pelos índios no coração da America do Sul.
Ribeiro perguntou por Pumilha ' em 1774, mas,
como era de esperar, tinha morrido; descobriu po-
rem um homem de setenta annos, que se lembrava
bem do fallecido, de cuja boca ouvira muitas vezes a
mesma historia contada a Condamine; e esta narra-
tiva ainda o velho a corroborava, sendo elle natural
de Cochinvara, onde affirmava ser tradição corrente
haverem na indicada epocha passado por alli as Ama-
zonas a caminho para o norte pelo rio Negro2.
Um índio de Morligura, perto de Belém, offcreceu
a Condamine mostrar-lhe um rio que levava ao paiz
das Amazonas : era o Irijó, por cuja foz passou de-
pois o viajante francez entre Macapá e o cabo do
Norte. No dizer d'aquelle indígena devia navegar-se
o rio até certas cachoeiras, depois do que restava
uma jornada de alguns dias pelas matas da margem

• Diz Ribeiro que o nome d'este índio era José da Costa Punilha e
que tinha o posto de sargento-mór da ordenança.
2
Depois da leitura da luminosa Memória do Sr. Dr. A. Gonsalves
Dias, inserta no tomo 18 da Rev. trim. do Inst. Hist. e Geogr. Br.,
não é mais licito crer na existência das Amazonas. F. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 455
lG39
occidenlal, e uma serrania que era mister atravessar. -
Entre os Topayos i achou Condamine umas pedras
verdes, cortadas todas e algumas imitando figuras de
animaes, embora fosse inexplicável de que meio se
poderião ter servido os índios para conseguil-o, pois
que ellas resistião á lima. Grandes virtudes imagi-
nárias se teem altribuido a estas pedras2, pelo que
erão mui prezadas dos insulanos de Caribs, alem de
terem muitas d'ellas até chegado á Europa. Dizião
os Topayos que lhes vinhão ellas de seus pães, tendo-
as estes obtido das Cougnantainsecouina, as mulhe-
res sem marido. Um soldado velho contou em Cayena

• Segundo elle erão os Topayos os resquícios dos Tupinambás do


Amazonas. São provavelmente os Topajós dos Portuguezes.
2
Condamine diz que ellas nem em forma nem em rigidez differião
da Jade Orienlale, e que sobre ellas se escrevera um tractado com o
titulo de Pierre divine. Refere-se a uma das cartas de Voiture a ma-
demoiselle Paulet, agradecendo o presente d algumas d'estas pedras.
0 modo por que o Francez exprime a sua gratidão é assaz caracte-
rístico : — Si les pierres que vous mavez donnécs ne peuvent rom-
pre les miennes, elles rrCen feront au moins por ter Ia douleur avec
patience: et il me semble quejene me dois jamais plaindre de ma
colique, puisqiCelle m'a procure ce bonheur. (Cart. 23.)"Da disser-
tação juncta á traducção da viagem de Acuna por Gomberville, ve-se
que estas pedras vogavão em Pariz como medicina. Mas melhor será
remetter o leitor para a Narrativa Pessoal de Ilumboldt (Vol. 5,
p. 380-387), onde se acha o assumpto tractado com uma vastidão de
•conhecimentos e uma força de combinação peculiares ao mais com-
pleto de todos os viajantes.
3
Elles portent aussi des colliers, mais de gros grains de crystal
et de pierres vertes qui viennenl de terre ferme, vers Ia rivière
des Amazones et qui ont Ia verlu de guèrir du haut mal; c"est leur
plus précieux bijoiti Le Sieur de Ia Borde. C. G.
456 HISTORIA DO BRAZIL.
IÜ59. a Condamine que havia ido n'uma partida de desco-
berta que em 1726 penetrara até aos Amiconanes,
nação longo-orelhuda que habitava o paiz acima das
nascentes do Oyapoc e perto da cabeceira d'outro rio,
que vae desaguar no Amazonas. As mulheres d'a-
quella tribu trazião d'cstas pedras verdes ao pescoço,
e quando se lhes perguntava d'onde lhes havião
vindo, respondião que das mulheres que não tinhão
marido, e cujo paiz ficava a sele ou oito dias de jor-
nada para o oeste.
Todas estas noticias e muitas outras, que Conda-
mine não julgou necessário recordar, concordão,
d'onde quer que viessem, em colloear as Amazonas
no coração da Guyana, única parte da America me-
ridional que os Europeos jamais explorarão. Outras
informações, colhidas mais tarde por dous dos gover-
nadores de Venezuela, aponlão para o mesmo centro.
As relações que os Hespanhoes ouvirão no Paraguay
assignavão a esta nação de mulheres mui diversa
situação, mas cumpre não esquecer, que se ella emi-
grou d'este logar para o paiz que mais tarde se lhes
deu por sede, fica Cochinvara, onde tão positiva-
mente se affirma terem ellas passado, na linha recta
que devião ter seguido. Condamine, embora julgasse
não assaz provada a existência presente das Amazo-
nas, não pôde impugnar os testimunhos da passada.
Ribeiro confirma e corrobora estes testimunhos, c
coniludo olha ludo como uma fábula. 1'ódc ser ver-
HISTORIA DO RRAZIL. 457
1639
dadeira a sua opinião, mas a razão em que a funda
é por certo fallaz. Mantém elle que em tal clima
nenhum ajunctamenlo de mulheres se podia resolver
a viver separado do outro sexo. Com pouco proveito
porem deve ter lido a historia e observado a huma-
nidade quem não aprendeu que instituições políticas,
seja qual fora sua força para exaltar a natureza hu-
mana, são sempre capazes de amoldar-lhe, preverter-
lhe e até extinguir-lhe os instinctos. É o argumento
alem d'isto vergonhoso para o auctor e inapplicavel
á matéria; se fora verdadeiro (o que absolutamente
nego) colheria a respeito das communidades de frei-
ras da nação do escriptor, e não das Amazonas, que,
como as aves, tinhão todos os annos o seu tempo de
cio. A existência d'uma tal tribu, a ser possivel ave-
rigual-a, seria honrosa para a nossa espécie, debaixo
do ponto de vista da sua origem, que não podia ser
senão a resistência á oppressão. A sorte das mulheres
é ordinariamente terrível entre selvagens; bem po-
dião as d'uma horda ter perpetrado o que das Danaides
se diz, cedendo porem a mais atroz provocação; e se,
como succede, estavão ellas costumadas a seguir aos
combates os maridos, nada ha que possa parecer im-
provável em estabelecerem-se ellas como tribu inde-
pendente, assegurando com similhante systema de
vida ás suas filhas a mesma liberdade que para si
tinhão sabido conquistar1. Se nunca jamais tivesse-
' Humboldt no seu ultimo tomo [Narrativa Pessoal, vol. 5, p. 387-
453 HISTORIA DO BRAZIL.
1639 mos ouvido fallar nas Amazonas da antigüidade,
acreditaria eu sem hesitar nas da America, mas nem
por isso se torna menos provável a existência d'estas:
e comtudo forçoso é admiltir que a verdade possível
se antolha suspeita pela sua similhança com a fábula
conhecida.
RÍO das Trinta e seis legoas abaixo do Cunuris, e do lado do
Trombetas. . , , , . . .
norte, colloca Acuiia o lliximena, hoje dicto n o das
Trombetas. Aqui se contrahe tanto o Amazonas que
por quatro legoas não passa d'uma milha a sua lar-
gura 1 . Tão favorável posição para assegurar a nave-
gação do rio não podia passar desapercebida, e de
facto observa o Jesuíta que uma fortaleza de cada lado
a dominaria efficazmente, podendo ao mesmo lempo
servir de alfândegas, onde se registrasse quanto pas-
sasse para cima ou para baixo. Os Portuguezes teem
Bn u m rorte n a r ü e r a
8 T32°' ' i do norte, chamado de Saneto An-
tônio, que calculão ficar a setenta legoas do Madeira.
Cresce aqui em abundância o pau cravo, bem como
sobre todos os rios d'estas partes. N'este logar, a mais
de 5G0 legoas do mar, se sentirão distinclamenle as
marés.
o Tapajós. Quarenta legoas mais abaixo entra do sul o Tapajós,
rio immenso, assim chamado da tribu que lhe asse-

394) exprime uma opinião similhante, e é com a maior satisfacção


que, quando nos encontramos sobre o mesmo terreno, vejo as minhas
exposições e deducções confirmadas por tão alta auetoridade.
4
0 conde Pagan chama isto o Bosphoro do rio.
HISTORIA DOIRRAZIL. 459
1639
nhorea a embocadura. Bem conhecida era esta nação
dos Portuguezes, que a temião muito, por serem her-
vadas as suas settas com tão subtil veneno, que a
mais pequena picada dava inevitavelmente morte.
Tentativas se tinhão feito para reduzir por meios
pacíficos estes selvagens, e persuadil-os a irem al-
dear-se com os índios mansos. Para cahirem em tal
erão elles finos e prudentes de mais, comtudo mostra-
vão-se dispostos a tractar com os Portuguezes em
termos amigáveis, compartindo com elles o proveito
que do livre trafico podia tirar-se. Fez a flotilhaalto
deante d'uma das aldeias d'estes Tapajós, que conte-
ria suas quinhentas famílias; apresentárâo-se redes,
aves, peixe, farinha e fruetas para escambo, mani-
festando os indígenas a maior confiança e boa von-
tade em lodo este commercio. Offerecérão agasalho
aos Portuguezes, se quizessem vir eslabelecer-se nas
suas terras, mas emigrarem e renunciarem elles á
sua liberdade era couza em que se não devia pensar.
Com magoa achou Acuna os Portuguezes n'um forte
que pelo seu nome do Desterro devia ser um posto
avançado, preparando-se para uma correria contra
este povo inoffensivo e amigo. Procurou ainda dis-
suadil-os, e do commandante da partida obteve a
promessa de sobreestar na expedição até segunda
ordem do governador. Era este commandante o joven
Bento Maciel, digno filho de seu sanguinário pae,
que sendo agora governador, para desgraça do Pará,
460 HISTORIA DO BBAZIL.
1659. 0 fizera sargento-mór. O moço malvado empenhou a
sua palabra que suspenderia a expedição, e apenas
Acuna deu costas, partiu para ella. Não tendo inten-
ções hostis, e tomados assim desorpreza, acceilárão
os Tapajós a paz que esles desalmados lhes offerecião.
Maciel exigiu a entrega das flechas, quando elles ja
não estavão em estado de recusal-a. Apenas apanha-
das estas armas, cercou os homens, quaes ovelhas
n'um curral, como Acuna se exprime indignado,
soltando.os alliados contra a aldeia. Taes forão os
excessos que estes commetlérão, e tal o tractamenlo
que derão ás mulheres, que um Portuguez que em
má hora consentira em ser da partida, protestou a
Acuna que se era assim que se havião de obter escra-
vos, jamais os queria possuir, querendo antes mil
vezes largar os que ja tinha, do que teslimunhar sc-
Aeufra. <:. -4. gunda vez tão horrendas scenas.
Não era bastante a gente que cahira cm poder de
Maciel e da sua partida, pelo que a ameaçarão com
novas e inauditas crueldades, se não arranjasse mais
escravos em troco dos quaes por outro lado se lhe
prometteu a liberdade. Fixou-se o resgate em mil
escravos, e os Tapajós mandarão a buscal-os. Duzen-
tos apenas se poderão achar, tendo o resto fugido ao
ver prizioneiros os senhores, e entregue ao saque a
aldeia. Ja islo porem não foi pequena preza, e os
Portuguezes pozerão em liberdade os donos, con-
fiando tanto na palavra desles pobres selvagens, que
HISTORIA DO BRAZIL. 461
contarão receber como devidos os restantes oitocen- 163s-
tos. Embarcarão então as suas victimas para Belém e
San Luiz, servindo esta fortuna de lenlar outros mal-
vados a prepararem nova e maior expedição da mesma Acuiia. C. 75.
natureza'. Conseqüência de tão intolerável deshuma-
nidade foi tornarem-se inimigas figadaes dos seus
oppressores todas as tribus que povoavão este rio, e
posto que na sua foz lbe houvessem os Portuguezes
erguido um forte, ainda até ao tempo que escrevia
Berredo, que foi pelos annos de 1 745, o não tinhão
podido explorar alem das primeiras cachoeiras. Mui-
tas tentativas se tinhão feito na crença de que ricas
minas havia por descobrir nos montes que lhe bor-
davão o curso. Algumas pedras se encontrarão que
pelo pezo devião.conter ouro, mas o metal, se é que
o era, evaporava-se ao fogo. Duas vezes tinhão ten-
tado os Inglezes, mas de balde, eslabelecer-sc sobre
este rio. Da primeira toda a partida succumbira, da
segunda forão tantos os mortos que o navio teve de
retroceder. Quando Acuna alli esteve ainda viu guar-
dadas como tropheos de victoria as armas europeas
ganhas n'estas pelejas.

1
M. Rodriguez omittiu esta historia, provavelmente por alheia do
seu principal assumpto. Berredo passou-a por alto por outro motivo :
julgava necessários os escravos, e sem se embaraçar com o modo por
qua erão obtidos, esforçava-se sempre por arredar da vista as atroci-
dades do trafico. Por conseguinte todas as vezes que falia na opposição
forte d^aquelle gentilismo, jamais faz a menor allusão á vilania com
que se provocava tal resistência.
462 HISTORIA DO BBAZIL.
1639. Quarenta legoas abaixo do rio dos Tapajós entra
cJuplba. no Amazonas pela margem opposta o Curupatuba1,
onde tinhão os Portuguezes um aldeamento de índios
mansos, chamados do nome do rio. Tinha esta cor-
rente, comparativamente pequena, fama de riquís-
sima. A seis dias de viagem por ella acima, dizião os
índios, achava se grande copia de ouro á orla d'um
riacho, que passava pelas fraldas d'uma serra dieta
de Yaguaracuru. N'um logar não mui distante, que
chamavão Picuru, cavara-se um metal branco, mais
duro que o ouro, e de que antigamente se tinhão feito
facas e machados; mas tão depressa se tornavão
rombos estes instrumentos, que por inútil se despre-
zara a matéria prima. Também havia n'aquellas
partes dous serros, dos quaes um continha enxofre,
e o outro, por nomeParaguaxo, brilhava, dizião ainda
elles, ao sol, e quando era clara a lua, como crave-
jado de jóias. E muitas vezes no seu cimo se ouvião
explosões, signal de que havia alli pedras preciosas2.

1
Yriquiriqui o chamão os naturaes.
2 Refere Vasconcellos que subia uma serra com o seu companheiro,
quando do interior d'ella ouviu um ruido extraordinário. Era como a
• descarga de muitas peças de artilharia ao mesmo tempo, tornando os
penedos e cavernas da montanha ainda mais horrendo o som. Pergun-
tando-se um ao outro os dous o que seria, nenhum soube a que attri-
buir couza tão descommunal, até que, inqueridos os índios, disserão
estes na sua lingua llá ae cera, parece explosão de pedra. E assim
era, por que passados dias se achou o logar onde rebentara uma ro-
cha, que das suas entranhas, com a explosão que ouvirainos, quaes
gemidos de parturiente, dera á luz um lhezourinlio. Era uma pinha do
HISTORIA DO BRAZIL. 465
1639
Effectivamente encontrão-se n'aquelles logares bellos *
crystaes, octogonos e triangulares. N'esfct direcção se

feitio e tamanho d'um coração de boi, cheia de jóias de differentes


cores, umas brancas como crystal transparente, as outras d'um for-
moso vermelho, e algumas entre vermelhas e brancas, imperfeitas,
ao que parecia, e ainda não completamente formadas pela natureza.
Todas estavão postas por sua ordem, como os grãos d'uma romã den-
tro de uma casa ou casca, mais rija que o mesmo ferro, e que, ou
fosse com a força da explosão, ou de bater contra os penedos, onde
cahiu, fez-se em pedaços, descobrindo assim a sua riqueza. A philo—
sophia d'estas couzas bem se deixa perceber. Pois quando as opera-
ções do sol e da natureza estão formando o mais polido nascimento
de tão finas jóias nas entranhas d'um penedo duro, necessariamente
uma quantidade maior do contendo d'esse penedo deve reduzir-se a
uma quantidade similhante d'estas pedrinhas, que devem ser produ-
zidas, pois quanto mais finas são, mais duras; e quanto mais duras,
mais partes componentes devem encerrar em mais breve espaço. Ora
a natureza não admitte o vácuo, nem ao ar é possivel penetrar a grossa
pedra, e evitar que elle se forme. No mesmo momento pois que a
força do sol é tão grande, que está a ponto de formar um vácuo na
formação da obra, que tem em mãos, oppôe-se a natureza e n'esla
lueta rebenta o penedo, e fica a producçâo imperfeita. L. 1, p. 612.
Também Azara menciona a crença n'estas romãs mineraes : o //
y a dans quclqiies emlroüs des pierres que Von appelle cocos, et
qui renferment des cristaux à faceites groupés comme des grains de
grenade. Leurs couleurs varient, mais les plus granais et les plus
bcaux se trouvent dans lesmonlicules de Maldonado. Les gens du
pays supposent que le sac qui forme ces cristaux penetre dans
rintérieur de lapierre, et qtien le remplissant, ils font crever Ia
croüte pierreuse, avec un bruit plus fort quecelui d'une bombe.
Nas Noticias do Brazil (1. 2, c. 75) se diz que a esmeralda se
forma dentro de crystaes, até que rebenta. Quando os naturaes achão
um pedaço de crystal, que lhes parece conter uma d'eslas esmeraldas,
põem-no as rogo, fazendo-o assim estourar; com o que porem muito
perdem a cor e o brilho da pedra.
Todos os naturaes da Bahia e S. Vicente affirmavâo que no sertão
d'estas capitanias se achavão debaixo da terra grandes pedras redondas,
•it'.4 H I S T O R I A DO B R A Z I L .
1C59
- extendem terras alagadiças, computadas em oitenta
legoas de comprimento, produzindo todo este ter-
reno, diz Berredo, arroz tão excellente como o de
Berredo.
§ "oi- Veneza.
o rio Mapau. Sessenta legoas mais abaixo, e lambem do lado do
norte, nola Acuiia o Ginipapc1, que Berredo chama
Mapau. Produzem suas margens cacao c salsaparri-
lha que farle, e maravilhas se conlão das riquezas
d'este rio, a ponlo de observar aquelle escriptor, que,
a ser tudo verdade, não ha oulro tão rico nem no
Peru, nem no Novo Reino. Seis legoas acima da sua
embocadura ficava o forte do Desterro, cuja guarni-
ção constava de tres soldados, força que de pouco

que alli rebentavão com o estampido d'uma espingarda. Quando ou-


viâo a explosão cavavão no logar, e encontravão esta pedra redonda
estourada em quartos como uma romã, e estes quartos cheios de pe-
drinhas de crystal regular oitovado d'um lado, mas ásperas do lado,
que adherião á madre. Aprescnlando-se algumas d'cslas pedi inhas ao
governador Luiz de Brito, reputou-as elle brillantes, mas o diamaiile
d'um annel facilmente as cortou. Noticias, p. 2, 75.
Também ás vezes se achão á margem do Paraná pedras brutas re-
dondas ou ovaes do tamanho d'uma romã ou até da cabeça d'uni
homem, e que estourão como canhões. Chamão-se cocos de mina.
Dobrizhoffer, que o refere (t. 1, p. 229), lastima nunca ter encontrado
nenhuma em todas as suas viagens.
Mas a historia mais ridícula sobre pedras preciosas é a que conta
Gumilla (c. 25) de engolirem as aves no Novo Reino esmeraldas brutas,
retendo-as no papo até ficarem polidas, de modo que nada mais vulgar
do que comprar um homem uma gallinha, e ao ahril-a, achar-lhe den-
tro uma ou duas esmeraldas de grande luvco.
' Lo Lruhucuara, que vem desafiar do mesmo lado, nenhuma
menção faz Acuna, ape/ai de ser rio de egual grande/a.
HISTORIA DO RRAZIL. 405
podia servir contra os Hollandezes desde muito cubi- ,036-
çosos da posse d'um paiz tão favoravelmente situado
para o cultivo do tabaco. Para estabelecer este, aban-
donara-se um posto avançado trinta e seis legoas mais
abaixo. Pareceu a Acuna mui preferível a antiga po-
sição, e provavelmente de facto o era, mas governava
agora o Maranhão Maciel, infinitamente mais atlenlo
aos modos como escravizar os naturaes, do que como
precaver-se d'ura inimigo perigoso.
Aqui, derramando-se por paiz plano, e inchado ciicsso
^ , , / , a Belém.
com as águas de trinta e seis caudalosos rios, trazados
durante o seu curso, mostra-se o Amazonas como um
mar que innumeraveis ilhas dividem em canaes in-
finitos'.Habilavão-nas muitas tribus, fallando diffe-
rentes línguas, mas entendendo quasi todas o tupi.
Por entre estes labyrinthos vae rolando a portentosa
corrente, até ao Oceano, adoçando-lhe as águas até
quarenta legoas de distancia, de modo que podem os
navios fazer aguada depois de perdida desde muito a
terra de visla. Aqui deixou Teixeira o Amazonas, sin-
grando para o sul, através da foz do Xingu2, que
mede duas legoas de largura. D'aqui passou pelo
estreito de Tanajepuru ao Paraitu, e depois por outro
1
Ilerder affirma que o Amazonas não desce dous quintos de pol-
legada por mil pés, e que n'esta parte do Brazil pode um homem
viajar por um espaço egual á maior largura da Allemanha sem erguer-
se um so pé acima do nivel do Oceano. Philosophia da Historia,
tomo 1.
- O Parnahyba de Acuna.
466 HISTORIA DO RRAZIL.
1639
- estreito chamado aclualmente Limoeiro, por lembrar
a sua eslreiteza a idéia da prizão para a embocadura
do rio dos Tocantins. Costumavão, segundo se diz,
os Francezes carregar navios com terra das margens
rPesle rio, e extrahir-lhe na Europa o ouro; mas ti-
nhão sido expulsos d'alli, sem que até então houves-
sem os Portuguezes auferido da sua victoria oulro
proveito que não fosse o descartarem-se de taes visi-
nhos. Alguns aventureiros de Pernambuco, tendo
uma vez vindos do sertão com um padre á sua frente
alcançado as cabeceiras d'este rio, linhão tentado ex-
ploral-o até á sua foz, mas mortos todos pelos Tocan-
tins, havia o calix do padre sido encontrado entre
estes índios pouco antes da viagem de Teixeira. D'aqui
metteu-se a esquadra por outro estreito, chamado
Igarapemerim, que quer dizer canal estreito para
canoas, peneirando por elle no Moju, um dos tres
rios que formão a bahia de Belém. A 1 '2 de dezembro
M.ito.irifML.z. u e |(359 entrou Teixeira n'aquclla cidade, onde foi
Berredo.
"> 5C-'J.
recebido com as merecidas honras.
Mil e oitocenlas legoas dera Orellana ao curso do
Amazonas; Acuna compulou-o em P27G contadas da
foz do Napo, e 1550 ao tudo, tomado das suas nas-
centes. D'estas a mais remota fica porem a muito
maior distancia do que elle calculou. Como senhor
absoluto de todos os outros, diz elle, extende este rio
braços a recolher dos seus vassallos o devido tributo
de águas, Irazendo-as para o canal principal; e qual
HISTORIA DO BRAZIL. 467
o hospede, tal o official, que sabe a recebel-o; para 1639
correntes menores um menor, e maior para as maio-
res, e quando vem um de quasi egual poder, vae o
grande Amazonas em pessoa a agasalhal-o. Desde o
mar até ao rio Negro nunca a profundidade na veia
principal é menor de trinta braças, variando de vinte
a doze mais para cima, sem descer de oito, assevera
Acuna, mesmo perto das cabeceiras. As ilhas que
forma são por demais numerosas para serem con-
tadas, e de todos os tamanhos, havendo muitas de
quatro e cinco legoas de circumferencia, não poucas
de dez e de vinte, e passando de cem a ilha grande
dos Tupinambás. Muitas das mais pequenas erão cul-
tivadas pelos que habitavão as maiores mais próxi-
mas, e sendo ás vezes inundadas, era extraordinária ^
105
a sua uberdade. -
Milho e mandioca erão o principal sustento vege- Alimento
. _ . . , . das tribus
tal dos moradores, que punhao a ultima ao abrigo ouviaes.
das inundações regulares, mettendo-a em poços fun-
dos hermeticamente tapados á prova de água. A
mesma raiz lhes fornecia o licor de que fazião uso,
e da farinha fazião biscoutos delgados que conser-
vavão na parte mais alta de suas casas, o mais longe
que podião da humidade, e fervendo-os em água, e
deixando-os fermentar, preparavão uma beberagem
que servia para todas as occasiões. Havia uma festa
de beber no tempo da sementeira ou plantio, e outra
pela colheita; chegava um hospede assim se lhe fazião
468 HISTORIA DO RRAZIL.
10
"''" as honras; embriagavão-sc quando alegres, embi ia-
gavão-se quando tristes. Outros licores fermentados
se fazião de varias fructas, e guardavão-se em cânta-
ros de barro de grande capacidade, ou em madeiros
ocados en fôrma de vasos, ou em enormes cestos, de
tão apertado entrançado, c tão bem calafelados com
gomma que nada deixavão vasar.
Entreassuasraízes alimentieiasliguravào lambem
a batata, e uma espécie de tubera 1 , que chamavão
papas. Comião a banana, o pinhão, o cacao, a Ri-
mara, e uma espécie do avelã, a que Acuna dá esle
nome pela casca espinhosa que tem, masque no Pei ai
se chama amêndoa da terra, como mais similhanle
a esta frueta. É porem da água que tirão estas tribus
o seu principal sustento, tanto de carne como de
peixe. 0 nianatee acha-se por toda a parte no Ama-
zonas, segundo Acuna, desde a sua origem ale á sua
foz. Chamão-no os Portuguezes peixe boi, como os
buecaneiros o chamavão vacca marinha, pela confi-
guração da cabeça, posto que não lenha chifres, e
por orelhas dous orifícios apenas : está no lodo da
fôrma e na boca a similhança. Maiores do que um
grão de ervilha não são os olhos, sendo do tamanho
d'um cavallo o animal; amphibio não pôde dizer-se,
que nunca deixa a água, tendo apenas em logar de
pernas duas barbatanas grandes, uma década lado

:
Criadillas de tkrra.
HISTORIA DO BBAZ1L. 469
da barriga, perto das espaduas, onde e mais grosso
o corpo, começando a adelgaçar-se gradualmente
dous pés mais para traz, até terminar na cauda, que
é chata. As telas da fêmea ficão debaixo d'estas bar-
batanas. Um pello curto, como cerdas brandas, nasce *
da pelle grossa e rija, de que os naturaes fazem es-
cudos, difficeis de furar com uma bala de mosquele.
Ha outra espécie aqui chamada boi de azeite, por
ser quasi todo gordura, chegando um so a dar perto
de cem canadas de azeite. O alimento favorito do
peixe boi n'este rio é a canna brava, planta que
fluetua sobre a água, balouçando-se em compridas
e pczadas raizes e erguendo-se cerca de seis palmos
acima da tona : em alguns dos canaes do Amazonas
cresce basta a ponto de obstruir completamente a
navegação. Também nas ribeiras pasta este animal,
lirando para isso a cabeça fora da água. Posto que
incapaz de mover-se em terra ve-se elle obrigado a
vir freqüentemente acima para respirar como se
fora amphibio, o que é causa da sua morte, sendo
então que os índios, postos á espreita, lhe lanção o
harpeo. Seccavão-lhe estes a carne, não tendo outro
meio de preserval-a na falta de sal, que substituião
pela cinza d'uma espécie de palmeira, boa para dar
gosto á comida, mas incapaz de cural-a.
Tinhão comtudo os naturaes um meio fácil de con-
servar provisões frescas para o inverno. Quando as
tartarugas vinhão a terra pôr seus ovos, ião elles
470 HISTORIA DO BRAZIL.
I6 9
° apanhal-as, e virando-asde costas, seguravão quanlas
querião. Depois, perfurando a concha, é passando-Ihe
uma corda, amarradas umas ás outras em molhos as
lançavão ao rio, prezas a uma canoa. Preparava-se
uma espécie de repreza ou tanque com espeques Ião
bem revestidos de terra ou barro da parte de denlro,
que como n'uma cisternaficavaretida a água da chuva.
Aqui se soltavão as tartarugas, sustentadas, diz Acuna,
§ioT. com ramos de arvore.
O modo usual de matar o peixe era com seitas ou
paus de arremesso, servindo a seita de boia depois de
ferido o alvo. Quando estavão baixas as águas, c seccas
as communicaçôes entre o rio e as suas lagoas, trilu-
ravão os índios uma de suas plantas rasteiras, c lan-
çando-a n'estes lagos logo viào vir o peixe á lona
rapidamente envenenado. Yeslas paragens se encon-
tra o peixe electrico, que os naturaes chamão pn-
ruquv.
Era freqüente a anta e o moschus moschiferus',
nem faltava a paca, espécie de lhama mais pequena.
Menciona Acuna o veado, e o yguanha, yagoli, e o
cocia como bom alimento. Perdizes erão numero-
síssimas. As aves domesticas linhão vindo do Peru,
passando de tribu em tribu por todo o curso do rio,
tão depressa se propaga, mesmo entre selvagens, todo
o beneficio grande e obvio. Aves aquáticas abunda vão

1
Espécie de cal ra monteza, de que se tira o aliniscai.
HISTORIA DO BRAZIL. *7l
1637.
alem de toda a expressão. Se Orellana careceu de
mantimenlo na sua viagem, foi somente por faltarem-
lhe os meios de obtel-o. Teixeira, que não tinha ini-
migos que recear, nem outra couza que fazer, senão
explorar com vagar o rio, todas as tardes dava fundo,
indo dormir em terra: o primeiro cuidado era le-
vantar cabanas de ramos entrançados, para o que
servião muitas vezes os da arvore do cacao, tão basta
crescia ella. Depois partião os índios da armada, uns
com cães para as florestas, outros com arcos e settas .
para o rio, nem tardava que voltassem carregados
de pesca e caça em profusão tal que Acuna diz que
lhe irazia isto á memória os pães e peixes milagrosos.
Deliciosa foi na verdade a viagem de Acuiia, pre- rng^d.
viamente conciliados os indígenas por todo o cami-
nho, e sufficiente a força que o acompanhava para
tirar todo o receio. Se um batelão soffria avaria
ou se virava, não faltarão outros que lhe des-
sem soccorro. Também navegava ao som d'agua.
Se escrevera a viagem rio acima, teria tido de
fallar de labyrinthos de canaes, correntes violen-
tas, e d'uma praga de insectos, que não dão tregoas
nem de noute nem de dia \ D'entrc estes é o

i Des mouches, diz Lescarbot, fatiando do Canadá, qui sontfort


importunes non-seulement là oii nous estions, mais aussi par tout
ce nouveau monde, et au Brésil mane, si bien que ce nest pas
merveille si Beelzebub pritice des mouches tient Ia un grand em-

^ Vuma das terríveis marchas de Stedman erãotaes e tantas as nu-


472 HISTORIA DO BRAZIL.
u,ú!l
- pium ' o mais terrível; insecto excessivamente pe-
queno, faz a sua peçonhenta picada uma ferida
do tamanho da cabeça d'um alfinete acompanhado
de dôr cruciante; no decurso d'um dia lição mãos
e cara coberlas d'cslas feridas, e muilos Item mor-
rido da inflammaçào que ellas produzem. So nas
horas do dia comttido perseguem estes inimigos,
e a mais leve cobertura basta para guardar d'elles.
A mutuça é um moscardo que também so atormenta
vens de mosquitos, qúe com as baionetas cavavão os soldados na terra
buracos, em que mcttião a cabeça, tapando a entrada, cobrindo o
pescoço com as suas redes, e jazendo de barriga para baixo : dormir
em qualquer outra posição era absolutamente impossivel. Elle mesmo,
por conselhos d'um negro, trepou ao cimo da arvore mais alta que
acliou, e armando alli a sua rede entre os ramos, dormiu quasi cem
pés acima dos seus companheiros, que nem podia ver pelos milhões
de mosquitos que lhe licavão por bai\o, nem ouvir pelo incessante
zumbir d'esles incoininodos insectos. T. 2, p. 93.
Ha no paiz do Orinoco formada por uma espécie de abelha uma
certa substancia, que as tribus fixas queimão incessantemente nas suas
habitações, e que eflicazmente as protege contra todos os insectos
alados. Chamão-na comejou, c Gumilla diz que nem é terra, nem cera.
T. 1, c. 9.
As sementes da arnotla maceradas em sumo de limão, e mistura-
das com água e a resina, que tressua d'uma arvore chamada morona,
ou com óleo de castor, compõem uma tineta escarlate, com que todos
os índios se pintão o corpo, e até o cabello, o que lhes dá á pelle seus
visos com uma lagosta cozida : também untão os corpos nus com cu-
raba ou oleo de carangueijo. Serve esta unlura não so para evitar a
demasiada-transpiração em climas ardentes, mas também paia livrar
dos mosquitos.
1
Diz Ribeiro que o pium pasta nas flores do macaçu, arvore vene-
nosa, que mata instantaneamente homens e brutos. Com ella costuma"
os Índios empeçonhar as águas, para matarem o peixe. Onde mais
abunda esta arvore, tanto maior a praga do pium.
HISTORIA DO BBAZIL. 473
1039
de dia. Mas quando estes perseguidores se retirão, -
succedem-lhes os marinins, que, sendo quasi mi-
croscópicos, enxerem uma ferreloada aguda e dolo-
rosa : a sua hora de martyrizar é ao pôr do sol. A
carapana e a muroçoca andão por fora dia e noute
e ferrão através das dobras de qualquer roupa,
excepto seda forte : são estes os insectos mais im-
portunos, por não deixarem repouzo, mas o pium
é bem mais terrível. Os emplastros e unturas dos
índios os defendem contra estes inimigos. Ao descer
o rio evita-se a praga, seguindo o meio da corrente,
que até lá se não aventurão laes insectos.
Ao Jesuíta, que nada soffreu d'esta praga, a mais
vexatória a que pôde expôr-se um homem, figurou-
se a terra um paraizo, e como tal a descreve. Nas
immediações das serras do Quilo queixa-se, é ver- _
dade, de intenso calor, porem mais para baixo vêem
as brizas do mar refrescar a atmosphera. A riqueza
da producção vegetal motivou mais justa admiração;
erão savanas cobertas das mais lindas flores, e ar-
vores, como nenhuma apresenta a Europa, que com
ellas se compare em belleza, grossura e elevação. E
aqui, diz Acuna, teem os naturaes o maior armazém
de simplices contra moléstias, que jamais se desco-
briu. Produz aqui a terra canna-fislula como nenhu-
resse encontra, a melhor salsaparrilha, as mais esco-
lhidas gommas e resinas; mel silvestre por toda a
parte, tanto para sustento como para medicina; o-
47i HISTORIA DO B R A Z I L .
1,9
cera, que embora preta, arde tão bem como qualquei
outra. Tabaco da melhor qualidade crescia espontâ-
neo. O óleo de andiropa é inestimável para feridas,
e a copaiba excede o melhor balsamo. Finalmente,
concluo o padre, ha aqui tantos milhares de hervas
e arvores que a Dioscorides e Plinio não faltaria que
fazer so para classifical-as. Em parle nenhuma, in-
formou elle á corte de Hespanha, se podem mais
facilmente construir navios, faltando apenas o ferro;
cordame da casca de certas arvores se fazia como do
melhor canamo; alcalrão, no mesmo logar se prepa-
rava; para amarras abi estava a embira, para velas
crescia o algodão, e para trabalhadores lambem não
faltavão homens.
de^íbu" O numero de tribus que então povoavão o rio,
orçou-o Acuna em mais de cento e cincoenta, Pal-
iando todas differentcs línguas. Não faz menção de
longos intervallos ermos como no tempo deOrcllana,
antes diz que confinavão tão de perto entre si estas
nações, que muitas vezes ouvia uma os golpes de
machados nas aldeias da outra. Com tudo em dçspeilo
d'esta intima visinhança vivião cm estado deperpelua
guerra, alias, por mais extenso que fosse o paiz, não
poderia sustental-as todas, entendeu o.Jesuíta, esque-
cido de que em quanto erão freqüentadas as margens
dos rios por amor do peixe, ficava deserto o sertão.
Muitas d'estas tribus fugirão á vista da flotilha porlu-
-gueza, nenhuma offereceu hostilidades. Fácil e se-
HISTORIA DO BRAZIL. 475
1030.
gura era a fuga; apenas chegados a terra tomavão os
índios suas leves canoas, e correndo com ellas para
o lago ou lagoa mais próxima, de novo embarcados
zomba vão de toda a perseguição.
A arma usual era o pau de arremesso, chamado
1
0pau
arremesso.
estática, de que se servião os Peruvianos. Arco e Ire-
chas porem erão bem mais formidáveis. Alguns
índios usavão de escudos de canna entrançada, que
não erão tão bons como os feitos de pelle de peixe
boi. Erão de cedro as canoas, e o trabalho de cortar
madeira para ellas, poupava-o o rio. Arrancadas pelas
cheias, vinhão estas altas arvores boiando pela cor-
rente abaixo, não tendo o índio mais do que lançar
o gancho a uma, eprendel-a á sua choça, até que as
águas descendo a deixassem em secco. Machados erão
conchas de tartaruga, servindo de corte a parte mais
dura, que é a que se pôde dizer que fica entre as
espadoas. Um osso da queixada d'um peixe boi fazia
as vezes de cabo, e com instrumentos como estes
fazião mezas, assentos c outros trastes, tão bem, posto
que não lâo facilmente como se se servissem do me-
lhor ferro. Algumas tribus tinhão machados de pedra,
que fazião mais depressa o serviço. De cinzeis, plainas
e verrumas lhes servião os dentes e prezas de ani-
maes.
Tinhão idolos de sua própria fabrica, distinguindo- WoU».
se cada um por qualquer attributo apropriado, como
o deus do rio pelo peixe na mão; outro presidia ás
476 HISTORIA DO RRAZIL.
if>39. sêmen lei ras e colheitas; e um terceiro era o dispen-
sador da victoria. Nenhumas ceremonias de cullo se
practicavão, e esquecidos jazião os idolos n'um canto,
até que se carecia d'elles para a semeadura, pesca
ou guerra. Estão os idolatras sempre dispostos a en-
grossar o numero de suas divindades. Sobre um ca-
cique que hospedou Teixeira, /ez grande impressão
o poder dos deuses portuguezes, por terem preser-
vado a flollilha em.tão dilalada viagem, c assim pediu
ao commandanle que lhe deixasse um que a elle e ao
seu povo os protegesse, soecorrendo-os em suas neces-
sidades. Oulro índio, que confessando o desprezo
em que linha os idolos, a si próprio se arvorara em
objecto de adoração, foi convidado pelos Portuguezes
a reconhecer o Deus verdadeiro. Acudiu elle ao cha-
mado para se deixar doutrinar, mas ao dizereni-lhe
estes que o seu Dens era invisível, foi-se não conven-
cido, continuando, fosse por insania ou fraude, a
pretender que o adorassem.
conjura- Por toda a parte tinhão os selvagens os seus conju-
radores, nem ha estado social em que não appareçào
alguns indivíduos assaz arleiros e sagazes para vive-
rem á custa da credulidade alheia. Em tão grande
veneração erão lidos estes imposlorcs, que guardados
os seus ossos na rede em que dormião quando vivos,
armava-se esta n'uma cabaça para esse fim reservada.
Algumas tribus queimavão os morlos nas suas habita-
ções; outras queimando-os egualmente, lançavão na
HISTORIA DO BBAZIL. 477
163y
fogueira quanto havia pertencido ao finado, mas de -
qualquer fôrma que se celebrassem osfuneraes, du-
ravão por muitos dias, invariavelmente acompanha-
dos da indefectível bebedeira.
Em geral tinhão as tribus do Amazonas a pelle
menos escura do que as demais nações brazileiras.
Erão bem feitos aquelles índios e de boa estatura,
fácil comprehensão, dóceis e dispostos a receber dos
seus hospedes instrucç~o, dando-lhes em troca auxi-
lio. Os alliados dos Portuguezes, que dos seus senho-
res so havião aprendido insolencia, novos vicios e
novos modos de maldade, freqüentemente maltracta-
vão este povo inoffensivo sem que elle buscasse vin-
gança, o que mais se deve attribuir á sua prudência
do que á exempçâo de sentimentos vingativos. Com
justa indignação falia Acuna do systema seguido pelos
Portuguezes contra este gentio. Que as suas repre-
sentações podessem chegar a fazer impressão efficaz
sobre o governo, não é muito provável, mas antes de
elle chegar a Madrid estava feita a revolução que a
seu legitimo dono resliluiu a coroa de Portugal. Ja a
navegação do Amazonas não era de conseqüência
para os Hespanhoes, e para d'clla tirar partido faltava
lazer aos Portuguezes : vierão porem melhores tem-
pos em que d'algum p 'estimo forão as noticias obti-
das com a viagem de Te:xeira.

FIM DO TOMO SEGUNDO.


1

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ÍNDICE
DO TOMO SEGUNDO

CAI'IHLO XII. — Os Francezes expulsos do Parahyba. — Os Pitagoares.


— Os Inglezes no Brazil. — Expedição de Fenton. — Principio de hos-
tilidades. — Withrington assola o Recôncavo. — Morte de Barreto. —
D. Francisco de Souza governador. — Exploração de minas de prata.
— Jornada de Cavendish. — Toma Sanctos, queima S. Vicente, é re-
pellido do Espirito Saneto, e morre de pezares. — Lancaster toma o
Recife. — Raleigh desvia os aventureiros, dirigindo-os para a Guiana.
— El Dorado I
CAP. XIII. — Expedições partidas do Maranhão. — Os Tapuyas. — Van-
tagens obtidas pelos Jesuítas e diminuição dos indigenas.— Pacificação
dus Aymorés. — Estabelecimento no Ceará. — Expedição dos Fran-
cezes á ilha do Maranhão. — Espnlsa-os Jeronymo de Albuquerque. —
Fundação da capitania do Pará, c cidade de Belém. — Destruição dos
estabelecimentos hollandezes na foz do Amazonas 3C
C Ar XIV — Formação d'uma companhia das índias Occidentaes na Hol-
landa. — S. Salvador tomada pelos Hollandezes e restaurada pelos Hes-
panhoes e Portuguezes connnandados por D. Fadrique de Toledo. —
Negócios do Maranhão. — Fazem os Hollandezes sahir nova expedição
e apoderão-se de Olinda e do Recife 14')
Cu>. XV. — Acampamento do Bom Jesus. — Caiabar deserta para os
Hollandezes e faz mudar a fortuna da guerra. — Negros dos palmares.
— Reducção da ilha de itamaracá, Rio Grande, Parahyba, acampamento
c Nazareth .'.*.... 208
480 ÍNDICE.
CAP. XVI. — Emigração de Pernambuco. — Restauração de Porto Calvo
e supplicio de Caiabar. — Envião-sc reforços ao conmmiido de Roxos,
que é desbaratado e morto. — Sueco le no commando Bagnuolo, que
faz com felicidade uma guerra de devastação.— Chega Maurilz, conde de
Nassau. como governador general dos Hollandezes; sabias medidas qnç
toma; persegue os Portuguezes ali- ao rio de S. Francisco, o Bagminlo,
abandonando a capitania de Sergipe, retira-se para a Bahia. . . -!>S
CAP. XVII. — S. Jorge da Mina accommettido e tomado pelos Hollan-
dezes. — Tomada do Ceará.— Põe Nassau dcbalde cerco a S. Salvador
• — Declarão os Hollandezes livre o commercio do Brazil.— Estado das
suas capitanias. — Edifica-sc nova cidade perto do Recife. — Chega o •
conde da Torre; perde grande parte da sua gente por moléstia, e apoz
quatro acções indecizas corre com o temporal. — Retirada de Vidal e'
Barhalho.— 0 marquez de Monte Alvão viso-rei. — Revolução em Por-
• tugal. — Deposição do viso-rei ."ÍS
CAP. XVIII. — Negócios de Maranhão. -*. Algums misionarios de Quito,
fugindo pel* Napu abaixo, enlregão-se ao rio, c chegão a Bclem.— Sobe
lexcira o Amazonas. — Regressa com elle Acuna'. que explora o curso
do rio j IX
«7 M

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