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Conto Salma Ferraz

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Conto a ser trabalhado nos dias 28/09 e 05/10 (Professora Christina Ramalho)

Referência completa: FERRAZ, Salma. Bis coitos. In: ______. Nem sempre amar é tudo. Blumenau:
Edifurb, 2012, p. 27-40.

Biscoitos

Dai-me uma mulher tão nova como a


resina e o cheira da terra. Como uma
flecha em seu flanco, cantarei...
Começa o tempo onde a mulher começa.
Helberto Hélder

Eu sou romântica e pessoas românticas gostam de guardar coisas. Este conto ainda não está
pronto, porque resolvi passar minhas férias todas catalogando minhas cartas, meus cartões, meus
papéis de presente, minhas flores secas. Não sei se isto é um presságio, mas lendo os diários de
outras duas loucas românticas – Frida Kalho e Florbela Espanca – senti-me impulsionada a catalogar
minhas memórias. Pedi de presente no natal algo bem barato e útil: caixas coloridas. Estou em pleno
verão de 2007, na Ilha de Santa Catarina, este caríssimo pedacinho de terra perdido no mar,
compartimentando minha vida: caixas do ex, outra caixa de outro ex, fotos, cartões e tudo o mais
que a desvairada e estúpida imaginação romântica possa arquivar.
O interessante é que minha melhor amiga, Roseli, é a erupção romântica de uma plantação
de girassóis se exibindo na passarela do sol do meio-dia. Minha açucarada amiga também gosta de
Florbela e Frida, coleciona emoções e é a proesia em pessoa. Nós somos tão românticas que não
enviamos flores para as pessoas que amamos – enviamos sementes, intenções de flores, flores a
haver: não te esqueças de mim, sempre viva, amor suíço gigante vermelho. Essa nossa mania de

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eternizar os musos tem nos causado dois problemas; primeiro, a falta de espaço para este aleph de
tumultuadas memórias acumuladas em quatro décadas de nossas vidas. O segundo, contar com a
compreensão do atual muso para tantas caixas.
Mas a personagem deste conto, graciosa como ela só, não suportava lembranças. Para
Aurora, recordar fantasmas que em seus frios túmulos deveriam silenciosamente permanecer. Ela
não guardava nada, quando rompia um namoro metia fogo em tudo, não sobrava um mísero cartão.
Achava a própria ideia de almas gêmeas simplesmente ridícula e não se considerava uma mulher
romântica, já que não era adepta da existência cor-de-rosa. Ela amava o tempo presente, os
homens presentes. Combinando com seu nome, ela costumava caminhar quase de madrugada, pela
Beira-Mar, queria e vivia o amanhecer, o pôr do sol era arcaico demais para ela. Águas passadas não
movem moinhos, mas atrapalham namoros. Ela achar que as pessoas tinham uma propensão
natural para o sofrimento, parece que gostavam de sofrer não só a dor do presente, mas a dor do
passado também.
Aurora tinha e não tinha sorte com seus namorados. Tinha sorte porque sempre fora, apesar
de não acreditar nisto, amada por eles; e azar porque, por causa do seu ciúme, não conseguia
entender uma mania comum a todos eles. Seus ex-namorados eram maravilhosos, e, apesar das
muitas diferenças, tinham todos um defeito em comum (do ponto de vista dela, não do meu):
gostavam de engavetar, com cor e dor, as lembranças das ex-namoradas.
Em julho de 2001, ela tinha dezoito anos e seu primeiro namorado vinte e três. Ele era
paulistano macarrônico com cristalinos olhos azuis e estudava medicina da UFSC; eles namoravam
há quase um ano. No entanto, o namoro não deu certo por causa de caixinha arredondada de
deliciosas bolachas dinamarquesas Queen’s – Apple Cinnamon Cookies. Ele tinha uma ex que fora
sua primeira mulher e, por isso, guardava todas as cartas em uma caixa decorada com um castelo
azulado. Como ia contando, o namoro terminou antes de completar um ano, quando, numa tarde,
ao chegar inesperadamente no apartamento dele no bairro universitário da Trindade, ela o
encontrou sentado no sofá com a caixa de bolachas aberta e diversas cartas espalhadas no tapete
da sala, tudo isso ouvindo Andrea Bocelli. Ela pediu que ele escolhesse ou ela ou a caixa de biscoitos.
Ele respondeu rapidamente:
— Orra meu, você não está entendendo... Fico com a caixa biscoitos.
Enraivecida, ela o apelidou de o paulista das bolachas dinamarquesas.
Passaram-se alguns meses e, no final de 2001, ela arrumou um outro namorado, que tinha
a alma gaudéria. O gaúcho vivia com sua família há mais de dez anos na Ilha e, nas festas
tradicionalistas, além da pilcha, usava um lenço vermelho que lembrava o Garibaldi da nossa
querida Anita. Todas as tardes, em sua loja de materiais esportivos, o roxo e doente colorado,
enquanto sorvia seu mate, ouvia pensativo e triste um CD com o hino do Internacional. Ele guardava
com especial carinho aquele CD e não desgrudava dele por nada.
O namoro era vermelho, ela o presentara com uma camisa oficial do Inter e pedia que ele
fizesse amor usando aquele manto sagrado. Ele, contente, obedecia, e ela cantava suavemente uma
musiquinha que aprendera quando viajara com ele para assistir a uma partida no Beira-Rio:
colorado, colorado, nada vai nos separar... Ela simpatizava com o Fernandão e o Sóbis, com toda a
esquadra rubra, e já começava a amar a nação colorada, mas resolveu fazer uma marcação cerrada,
quase homem a homem, quando notou que seu amado tinha um apego exagerado àquele CD.
Compreendeu tudo quando leu a dedicatória da capa: Para o mais varonil de todos os colocados...
Da tua imortal colorada... Ela, por mais que tentasse não pensar naquele adjetivo, cada vez que
ouvia o hino do Inter imaginava todas as glórias coloradas, as sendas de vitórias que aquela metida
gaúcha já tinha desfrutado em cima do seu touro.
Ela tinha uma implicância tepeêmica com o ontem de seus namorados. Que mania as
pessoas têm de deixar as coisas suspensas entre o passado e o futuro! Para que lamber feridas já

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cicatrizadas? Parece que alguns humanos tinham um prazer quase mórbido em ficar remoendo
aquilo que foi e o que não foi. Ela sentia algo ruim em relação ao passado dos seus namorados,
sentia-se excluída daquele tempo. A namorada que pertencia ao passado deles ganhava o estatuto
de um mito, era algo intocável e ela simplesmente não podia competir com uma Afrodite. A mãe do
rapaz, a qual não simpatizava com o jeito despachado de Aurora, teve um sádico prazer ao informá-
la de que o hino do Inter lembrava ao seu filho de uma monumental deusa gaúcha de lindos cabelos
negros. No dia em que iriam completar um ano de namoro, ela o encontrou excitado diante da
televisão assistindo ao jogo do Inter. Suportou até o final o jogo, mas explodiu quando ele em pé
começou a cantar o hino do Inter, comemorando a heroica vitória dos colorados: Glória do desporto
nacional/ Oh, Internacional/ Que eu vivo a exaltar / Levas a plagas distantes/ Feitos relevantes/
Vives a brilhar/. Ele apertava a capa do CD contra o sofrido coração vermelho, chorava e entoava o
hino do Inter, e ela não sabia se ele chorava pela vitória dos colorados ou pela eterna gaúcha.
Chacoalhou-o com modos nada delicados, tomou a capa do CD das suas mãos e, vermelha de raiva,
gritou:
— Você escolhe, ela ou eu?
Se as mulheres fossem mais inteligentes, jamais pressionariam um homem, nem dessa
forma, nem de nenhuma outra maneira. Esse é o tipo de pergunta que não se faz a nenhum ser
testosterônico, principalmente se esse ogro testosterônico for gaúcho e colorado. Eles adoram ser
desafiado e dizer orgulhosamente não. Perguntas assim despertam o instinto do macho adormecido
das cavernas. Cara leitora, se os homens são de Marte e as mulheres de Vênus, eu não sei. Para
mim, homens não é uma questão de planeta, mas de veneta! Ele, com a nobre alma colorada
ofendida, respondeu aumentando o som:
— Mas bah guria! Que ciúme mais besta!. Escolho ela!
Aurora foi chutada para escanteio, expulsa de campo, recebeu cartão vermelho sem dó nem
clemência e foi rebaixada para a série B. Desse namoro ó sobrou sua paixão pelos atacantes do Inter
e o zombeteiro apelido dele: colorado das glórias.
Em julho de 2002, Aurora completara dezenove anos e teve um namorinho rápido com um
legítimo manezinho da Ilha, criado na tainha e no pirão. O rapaz era fotógrafo, e com a sensualidade
dos seus trinta anos e suas longas madeixas lembrava o tipo latin lover de um Antonio Banderas.
Beijava como se reunisse em sua boca, ao mesmo tempo, todos os beijos de final de novelas
televisivas e, além do mais, coisa rara na Ilha, ainda mantinha aquele jeitinho sensual de falar
cantadinho. O namoro acabou na primeira visita que ela fez a casa dele na sossegada praia do
Sambaqui. Penduradas por tudo quanto era parede, fotos e mais fotos, compondo uma imensa
galeria de despudoradas ex-sereias, explícitas ninfas nuas e seminuas. Ela não aprendia e,
ingenuamente, pediu que ele escolhesse entre aquela exposição permanente de sereias nuas em
pelo ou ela, Ele, como um apreciador de obras de fartas carnes e curvas, respondeu:
— Tás tola, tás tola, nega. Clar’ qui fic’ ax fotu.
Esse namorado ela denominou de o encantador de sereias.
Final de 2002 e ela, com apenas dezenove, já estava quase desanimada com aqueles seres
de venetas que cultuavam as mulheres de algum lugar do passado. Detestava solidão e por isso
arrumou outro chamego. O homem era um típico nordestino: vinte e cinco anos, cabra da peste,
adorava forró, bonito da moléstia, curtido pelo sol e criado comendo carne de sol e baião-de-dois.
Ele havia chegado de Caruaru, trabalhava vendendo redes na Praia da Daniel e também era um
colecionador de memórias, ou melhor, colecionava roupas bregas que ganhara de várias
namoradas, dos rincões mais distantes do nordeste. Era a florífera camisa que Marinalva de
Fortaleza comprara na feirinha de Iracema; era a girassoica gravata que Glória de Caruaru lhe
presenteara; era um fedorento chapéu de couro que Francineide comprara para ele na Feirinha de
João Pessoa; e um botom com a foto benzida do padim ciço que uma falsa beata lhe enviara de

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Juazeiro do Norte. Enfim, tinha uma boutique Severina, composta por quatro grandes malas,
fornecida por quinquilharias presentadas por amantes de todo o nordeste. Como ele mesmo
afirmava em suas breguíssimas declarações: era um retirante do amor. Cada vez que usava uma
peça de roupa, atrás dela vinha a narração de uma estória de amor severino que ele, com bom
macho nordestino, arretadamente desfiava com todas as minúcias.
Aurora suportava tudo isso porque nunca homem algum a dengara tanto quanto ele. O
namoro não durou nem três meses e acabou na primeira vez que tentaram fazer amor. Ele teve a
infeliz ideia de contar para ela a estória daquela bermuda verde reluzente que guardava as marcas
íntimas da mulher mais quente ela já conhecera no nordeste. Ela pediu que ele tirasse a bermuda e
ele todo gabola e arrotando vitória, aceitou achando que ia vadiar na areia banhado pelo luar, que
finalmente encontrara as maravilhas do sul do Brasil. Ela saiu correndo, e jogou os sentimentos e a
bermuda do matuto no mar. O sertão virou mar e foi o maior forrobodó. A correnteza levou a
relíquia dos retirantes amores do nordestino e ele ficou lá pelado, no maior aperreio, gritando:
— Arre égua... Agora deu... Tu vai acabar nus caritó, sua fia da gota-serena, lesada das
ideia...
Ela, mangando, o apelidou de manequim de brechó.
Estava desanimada com esses passados freudianos dos ex-namorados. Eles deveriam vir
com a garantia do selo ISO 9000 – sem lembranças. Aurora estava sofrendo de passadonoia.
Chegara o verão de 2003 e ela conheceu um atlético descendente de alemães que havia
sido criado em Blumenau comendo marreco e bolo de cuca. Ele morava na Ilha da moça faceira, da
velha rendeira tradicional, Ilha da velha figueira, há dez anos. Era surfista, bronzeado, cabelos
clareados pela ação do sol, rosto coberto constantemente de protetor solar. Filho de pais ricos, ele
passava seus dias entre a Joaquina e a Mole azarando e parafinando sua prancha, junto a centanas
de outros filhos do sol. A Mole era a passarela das curvas, silicones, barrigas-tanque; e a Joaquina
possuía as melhores ondas do país e as mulheres mais esculturais da Ilha da Magia e da Carestia.
Aurora se apaixonara pelo conjunto, mas o que mais a encantava era a cor da pele dourada, seus
cabelos parafinados e o cheiro de mar do rapaz. Ele era malhadíssimo, ou, como diziam na língua
do surf, adrenalizadoramente chocante, e por causa disso, ela entrou na academia e começou a
fazer regime para não passar vergonha entre as deusas da Mole. Antes de começarem a namorar,
ela lhe fez umas perguntas que ele achou muito estranhas:
— Você coleciona cartas antigas em caixas de bolachas?
— Não.
— Você coleciona CDs de antigas namoradas?
— Não.
— Você guarda fotografias das ex?
— Não
— Você guarda as roupas que ganhou de mulheres?
— Não. Tô nem aí pro passado. Acabou, acabou.
Ah, ela estava muito feliz. Este era o homem da onda, do presente. Com ele, certamente ela
não teria problemas, já que ele nem conhecia o termo revival. Ele não guardava absolutamente
nada das antigas namoradas, que, aliás, deveriam ter sido muitas. O cavaleiro parafinado era cabeça
feita, olhava o futuro e não o passado. Como ela desejava aquele filho do mar... Ao olhar para aquele
corpo dourado, imaginava como seria fazer amor com ele nas dunas da Joaquina, nas areias quentes
e fofas da Praia Mole. Para surpresa de Aurora, nas duas primeiras vezes em que fizeram amor ele
preferiu os famosos motéis que ficavam na rodovia em direção às praias do norte da Ilha. O homem
maresia era simplesmente delicioso no sexo, presentado pela natureza, perfeito em tudo. Possuía
uma cabeleira obscena e realizava com elas todas as manobras sexsurf: aéreo na junção, aéreo 180,
aéreo 360.

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Porém, sempre existe um porém. Aurora achou muito estranho um fato curioso: nas duas
vezes que fizeram amor, ele preferiu o escuro total. Ela ficou ruminando quais motivos levariam
aquele deus dourado a só amar no escuro. Ele tinha um corpo perfeito, e ela vivia na academia, e
queria exibir seu corpo agora mais enxuto e sem nenhuma gota de celulite. Nas duas vezes em que
estiveram no mesmo motel, durante os rala e rola do amor, ela tentou acender a luz do abajur,
gesto que ele, abruptamente, interrompeu. Depois ela queria desfilar para ele com sua lingerie nova
e ele, que estava todo empolgado para mais uma transa, simplesmente perdeu a vontade e pediu
para irem embora. Ela não entendeu nada, mas depois compreendeu que o problema não era com
ela. Ele não quis o desfile, porque precisaria acender a luz. Será que ele tinha fobia de luz? Ou era
um vampiro? Era impossível, já que ele passava o dia inteiro debaixo do sol abrasador de verão.
Aurora se lembrara que no motel, quando saiu do banho, a luz do quarto já estava toda apagada.
Resolveu que na próxima vez que saíssem decifraria aquele mistério. Um dia no entardecer
na Praia Mole, ela, visto que a praia estava deserta, ficou provocando o filho do sol. Ele estava
completamente excitado, mas quando notou que o sol ainda estava no horizonte, desconversou e
pediu para irem embora.
Num sábado à noite, foram a uma festa na El Divino e ele, alertado pelos amigos sobre os
efeitos de um poderoso coquetel afrodisíaco, bebeu mais do que deveria. Saíram e ela, a pedido
dele, dirigiu o carro para o mesmo motel. Parece que ele conhecia bem aquele motel,
principalmente o painel de controle que ficava na cabeceira da cama, já que lidava com ele com
muita desenvoltura. Chegaram e, como das outras vezes, fizeram amor no escuro e, exaustos,
dormiram. Aurora acordou no meio da noite, estranhando o quarto escuro. Silenciosamente, ligou
o abajur com a luz bem fraquinha e qual não foi sua surpresa ao notar uma pequena montanha no
meio da cama, que se erguia levando consigo o lençol de cetim. Sim, seu surfista estava tendo uma
ereção noturna, e que ereção! O lençol parecia um mar branco que se erguia em torno daquele
Cambirela só dela e de mais ninguém. Ela se movimentava vagarosamente, não queria acordá-lo de
forma alguma. Foi aproximando sua cabeça em direção àquele avermelhado monólito, sua mão foi
puxando aos poucos o lençol que deslizava suavemente. Ela queria sentir de perto aquela natureza
que exuberava em generosos centímetros. Foi aproximando seu rosto, enquanto manuseava
delicadamente o lençol com uma das mãos. Posso ver a cena. Quando a última ponta do lençol
descobriu aquela fartura lascivamente loira, sua mão ficou parada no ar, seu rosto gelado, seus
olhos azuis arregalados. Completamente alucinada viu aparecer diante de si, em alta definição,
esplendorosos 22 cm em forma de outdoor, numa propaganda nada enganosa. Em letras grandes e
com espaço razoável entre elas, saindo da base do pênis e indo até a cabeça na curvatura, gravado
em carne e músculo, um nome de mulher com uma espécie de dedicatória: LU FOREVER
Seu sexo deu uma comichão de ódio, sua onda fora cortada numa manobra radical por
aquele pênis de Pandora. Aquilo era evidentemente um penifarsante. Maldito surfista, que deixara
que uma mulher com nome de cadela autografasse seu sexo. Ela estava transtornada e pensou em
cometer um penicídio. Como ele pudera fazer aquilo com ela? Ela dormira com a Lu, fizera sexo com
a Lu, fora possuída pela Lu, justamente ela que nunca tivera tendência para ser lésbica fora
penetrada por uma vadia, sentara sobre uma mulher, gozara com uma mulher, forever. Quem afinal
fora aquela desavergonhada luluzinha, por causa de quem ele resolveu ostentar essa lembrança
para todas as outras mulheres que passassem pela sua vida e pelo seu pênis? E ela pensando que
todos aqueles centímetros lhe pertenciam. Não só não lhe pertenciam como ainda estavam
marcados, como um touro com a marca de sua vaca. Aquele pedaço – e que pedaço - tinha ou teve
um dia uma dona e ainda forever. Pensou em acordá-lo e fazer um escândalo do tamanho daquele
pênis jumentar. Acordar para quê? Ele falara a verdade quando dissera que não colecionava caixas
de biscoitos, CDs, fotos, roupas de ex-namoradas. Simplesmente ela omitira que tinha um pênis
autografado e, afinal, ela não havia perguntando isso.

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Ela escorregou cuidadosamente da cama, pé por pé, juntou suas coisas numa sacola e,
atrapalhadamente, vestiu suas roupas. Antes de sair, caminhou descalça em direção a um espelho
de parede e escreveu com batom, na vertical, em letras enormes: Lu forever. Foi até a portaria do
motel e completamente perturbada chamou um táxi. Saiu dali com duas únicas certezas: jamais
olharia para aquele surfista do pênis autografado e que odiaria para sempre qualquer mulher que
tivesse nome começado com Lu. Ao chegar ao seu apartamento, lavou incessantemente seu sexo,
parecia que trazia em si, nas entranhas, o nome e o sabor de uma mulher que no fundo ela invejava.
Imagina o que ela deveria ter feito em cima da cama, para que ele lhe prestasse aquela homenagem
forever. Lembrou-se de todos seus ex, afinal o que significava uma caixinha de bolachas recheada
de cartas, um CD do Inter, umas fotografias amareladas penduradas na parede, umas roupas bregas
comparados com um enorme pênis autografado? Era o passado sexual ostentado naquele pênis
camaleônico. As manias dos seus ex agora lhe pareciam um grão de areia perto daquela celebridade
penial – Lu forever – ostentada na vertical por aquele porn actor. Toda essa decepção foi resumida
numa zombeteira alcunha: Don Picone.
Chegara o inverno de 2003 e Aurora já estava há quase seis meses sem namorado. Desistira
de namorar de novo, depois de sua última tentativa frustradíssima. Ela completaria 20 anos no final
de julho. Estava tão triste eu não convidara as amigas, porque não queria comemorar nada. Sua
tristeza aumentava com o inverno e piorava quando a lua imensa surgia no julho gelado na Ilha onde
a lua vaidosa, sestrosa, dengosa, vinha se espelhar.
Nunca fizera tão frio em Floripa. Numa noite chuvosa ela estava tomando uma deliciosa
canja no restaurante Verdilha, próximo à UFSC, e qual não foi sua surpresa ao perceber o paulistano
das bolachas dinamarquesas se servindo no bufê de sopas. Ele parecia estar indeciso entre tantas
sopas, e ela, tomando seu copo de vinho, começou a contemplá-lo de longe. Lembrou-se dos
ardentes carinhos trocados entre eles nos bosques da UFSC, de como ele era carinhoso, de como
ele nunca tivera olhos para nenhuma outra mulher, exceto aquela da caixa de bolachas. Mas, afinal,
ela tinha sido a primeira mulher dele, essas coisas deveriam marcar mesmo. Ele continuava a se
servir e ela notou que ele ficava mais bonito ainda vestido de branco e que muitas garotas o olhavam
com olhares gulosos. Ele era inteligente, belo, romântico, e, o melhor: tinha gostado muito dela.
Mas, já havia se passado quase dois anos, ele já deveria estar noivo, já que faltava pouco para se
formar.
Aurora ficou emocionada quando ele, ao enxergá-la, veio entusiasmado em sua direção,
disfarçando a emoção, já que o prato de sopa tremia em suas mãos. Conversaram quase duas horas,
beberam vinho e foram os últimos a sair do restaurante. Colocaram todas as fofocas em dia, riram
muito e, em frente à Avenida geral do Bairro Córrego Grande, tiveram que se despedir porque os
dois estavam de carro. Na hora do adeus eles se atrapalharam com os guarda-chuvas e com as capas
de chuva. Foi um abraço especialmente emolhado. Quando se afastaram, Aurora carinhosamente
passou a mão naquelas madeixas loiras e desajeitadas e perguntou-lhe:
— Estás namorando alguém?
— Não, sua boba, sou um cdf, lembra-se? Não tenho tempo. Só tinha pra você, mas...
— Toma um chá comigo na semana que vem...
— Semana que vem. Claro, final de julho é teu aniversário. Aceito o convite. Quando?
— Na sexta, às cinco. Tudo muito simples, não vou fazer nada especial.
Novamente se abraçaram e demoraram mais ainda. Os dois saíram dali pensando em tanta
coisa, como haviam perdido tempo, como tinham sido especiais um para o outro e como haviam
acabado por uma bobagem amanteigada.
A sexta chegou e Giordano apareceu com uma blusa de lã linda terracota, uma calça preta
impecável. No apartamento de Aurora, o chá estava sobre a mesa enfeitada com uma cestinha de
flores. Ela havia caprichado na roupa e na mesa. Ela vestia um vestido de xadrez e a mesa estava

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bem servida com uma louça especial com motivos ingleses e, além disso, havia chá de maçã, cuca
de banana, compotas, geleias e uma enorme caixa de biscoitos dinamarqueses da marca Queen’s –
Apple Cinnamon Cookies. Giordano olhou para aquela caixa de biscoitos dinamarqueses e só
conseguiu fazer uma pergunta:
— Você não odiava biscoitos dinamarqueses?
— A gente muda de gosto.
— E de ideias?
— Também. A vida ensina...
— Quer dizer que você não implicaria mais com minha caixinha de lembranças?
Aurora lembrou-se do último episódio de sua vida, pensou o que era afinal uma caixa de
biscoito perto de um coito com Lu Forever e respondeu categoricamente:
— Não
— Posso te confessar uma coisa?
— Claro, amor.
— Agora tenho duas caixas?
— Duas?
— Guardei todas as tuas lembranças numa caixinha de bolacha igualzinha a esta daqui. Você
não foi a primeira mulher da minha vida, mas foi a mais especial de todas elas.
Aurora retirou um biscoito colocou na boca e deu-lhe um beijo amanteigado e apaixonado
de sua vida. Casaram-se, comeram muitos biscoitos e tiveram uma linda filha com cara de princesa
dinamarquesa...
Aqui, excepcionalmente, o amor foi tudo.

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