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Artigo - Objetos e Memória

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Letras de Hoje Let. Hoje, v. 53, n. 4, p. 463-468, out.-dez.

2018
Estudos e debates em linguística, literatura e língua portuguesa
http://dx.doi.org/10.15448/1984-7726.2018.4.33008
Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS
e-ISSN: 1984-7726 | ISSN-L: 0101-3335

Pela superfície do mundo: objetos e memória na


literatura brasileira contemporânea
By the surface of the world: objects and memory in contemporary Brazilian literature

Regina Dalcastagnè
Universidade de Brasília. Brasília, Distrito Federal, Brasil.

Resumo: Contam os especialistas em falsificação de quadros que não é o rosto ou a mão do


retratado que delata o falsário – ali ele terá tomado todas as precauções. Seu erro aparecerá
em um detalhe pouco importante, talvez na indumentária ou na curva de uma orelha, onde ele
se sentirá mais à vontade e, sem se dar conta, deixará uma assinatura: sua própria pincelada.
Abandonando, então, o foco no enredo, ou nos protagonistas das narrativas, procuro pensar a
literatura brasileira contemporânea a partir de elementos considerados secundários, quando não
irrelevantes: os objetos que compõem a cena. Seus significados, muitas vezes evocadores da
memória das personagens, ou dos seus, marcam a situação de homens e mulheres no mundo
contemporâneo e revelam algo sobre a perspectiva autoral. Este texto, inspirado em diferentes
narrativas e mesmo nas artes visuais, é um breve percurso pelas inquietações que fundamentam
esta reflexão.
Palavras-chave: memória; objetos; narrativa brasileira contemporânea.

Abstract: The experts in fake paintings tell us that it is not the face or the hand of the portrayed
that betrays the forger – she will have taken all precautions in these features. Her mistake will
appear in an unimportant detail, perhaps in the dress or curve of an ear, where she will feel more
at ease and, without realizing it, will leave a signature: her own brushstroke. Abandoning, then,
the focus on the plot, or the protagonists of the narratives, I try to think contemporary Brazilian
literature from elements considered secondary, if not irrelevant: the objects that make up the
scene. Their meanings, often evocative of the memory of the characters or their relatives, mark
the situation of men and women in the contemporary world and reveal something about the
authorial perspective. This text, inspired by different narratives and even in the visual arts, is a
brief journey through the concerns that underlies this reflection.
Key words: memory; objects; contemporary Brazilian narrative.

A realidade é esta folha


Este banco esta árvore
Esta terra
É este prédio de dois andares
Estas roupas estendidas na muralha.
Stela do Patrocínio

Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional,
que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação
original seja corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR
464 Dalcastagnè, R.

Naqueles tempos1, muito antes do calendário, o que temporalidade2. Dizem de homens e mulheres, de
marcava o início das festas era o movimento dentro e em crianças e velhos – e de suas circunstâncias3. Não só a
torno da casa: cortinas sendo arrancadas, camas erguidas, sua presença, mas também sua ausência é significativa
escadas apoiadas nas janelas, do lado de fora, para a nas narrativas. Na primeira vez em que falei sobre a
limpeza. Também se avançava pelo terreiro e pelo quintal, representação de objetos na literatura em sala de aula,
varrendo, capinando, queimando o lixo, espantando os uma aluna, neta de um pedreiro nordestino que ajudou a
bichos que, teimosos, sempre voltavam. Era como uma erguer Brasília, se deu conta de que em sua família não
lufada de vento e, no final, tudo se aquietava, tudo havia nenhum móvel – um guarda-roupa, uma mesa, uma
cheirava a lençóis ao sol, à cera recém passada, à seiva cadeira, sequer – que fosse um legado do passado. Só
de pinheiro: era natal! Então, vinham os presentes baratos coisas muito pequenas, que puderam ser enroladas em
(embora às vezes houvesse uma bicicleta vermelha), a uma trouxa e trazidas no caminhão. O mesmo aconteceu
família reunida, a mesa farta. Mas se fosse para juntar tudo muitas décadas antes, com imigrantes pobres que, quando
isso em uma única imagem, bastaria estender de novo a muito, esconderam no fundo das malas algumas fotos,
colcha de casamento de minha mãe. Ela aparecia nesses cartas, uma corrente barata, um relógio sempre atrasado.
momentos, e era subtraída de nossos olhos pouco tempo Talvez fosse mais do que muitos refugiados podem
depois. Talvez residisse exatamente aí o seu encanto – não transportar hoje e, certamente, do que os africanos
era coisa para ficar à mostra, como o tapete da entrada ou escravizados, acorrentados nos porões sujos dos navios,
a toalha de mesa de final de semana. A colcha, colorida puderam trazer consigo4.
e brilhante como um vitral medieval (não sabíamos, Para muitas dessas famílias, o legado material nunca
naquela época, o que era um vitral medieval) iluminava a incluiu joias, xícaras, quadros e tapetes, nenhum livro
casa e dizia que, sim, era tempo de festas. raro, sequer um vestido de noiva. O que nos sobra para
Minha mãe morreu, meu pai, também, a casa em marcar a superfície do mundo com a presença dos que
que vivíamos foi demolida, meus irmãos e irmãs têm vieram antes de nós são, muitas vezes, instrumentos de
seus próprios rituais natalinos, mas a colcha permanece trabalho: a tesoura de costura de minha mãe, o prumo de
comigo. Fica guardada em uma caixa, no alto do guarda- madeira de meu pai, ambos desgastados por suas mãos
roupa. Vez ou outra eu a procuro, só para reencontrar a firmes, pelo uso constante. Aos poucos, esses objetos
infância e seu cheiro festivo. Minha cama, muito grande, acabarão se perdendo, também, quebrados, largados em
não a comporta, afinal, era a colcha de casamento de uma caixas de mudanças, confundidos com outras tralhas.
operária da indústria têxtil brasileira nos anos 1950. E, Abandonados pelo esquecimento, se juntarão, enfim, ao
nisso também, ela é representativa. Não é de crochê, nem anonimato das coisas.
bordada à mão, não se trata de patchwork ou de algum É significativo um trecho do livro Becos da memória,
desses mimos feitos de linho e guardados em baús para de Conceição Evaristo, em que as lavadeiras da favela
o enxoval. É apenas uma colorida e resistente colcha tentam manter intacta a tina de uma amiga recém falecida.
industrializada, com bordados florais vibrantes em azul, Todos os dias elas a molhavam com a água já usada, para
verde, vermelho e dourado. Foi um presente de uma evitar que rachasse ao sol. Buscam resguardar, assim,
amiga, provavelmente operária, também. Alguém que a os laços com aquela que se foi. Mas, mesmo com seus
conhecia bastante, pois a colcha era a cara de minha mãe cuidados, o objeto que a representa aos poucos se abre em
– na época em que ela usava vestidos floridos e batom gretas, perde forma, e acabará por desaparecer também
vermelho, quando ainda andava de bicicleta para fazer (EVARISTO, 2006, p. 149-50). Com o fim da favela, e a
compras e fumava escondida. dispersão das mulheres que compartilharam com a velha
Um objeto pode contar muitas histórias, pode Filó o trabalho diário, os resquícios de sua passagem pelo
nos reconectar com pessoas e com o passado, pode mundo se apagam – para retornarem, bem mais tarde,
ser triste ou alegre, pode guardar calor e perfume. Em como imagem poética na escrita da filha de uma de suas
seus arranhões e desfiados, no puído ou na pequena companheiras.
mancha que sobrou, até no simples desgaste do material É que as coisas, dentro da cena literária ou de nossas
nos reencontramos com as vidas que esbarraram ali, vidas, muitas vezes precisam de uma narrativa para
ou que o empunharam. Muito mais do que uma obra
de arte, intocável por natureza, são esses objetos 2 Stallybrass (2012), em O casaco de Marx: roupas, memória, dor, pensava
“vulgares” que nos dão a dimensão do humano e sua essa temporalidade colocando em contraposição roupas e joias. Seu texto
inspirou esta pesquisa.
3 Appadurai (2008 [1986]), em A vida social das coisas: a mercadoria

sob uma perspectiva cultural, traz uma reflexão sobre a importância dos
1 Este texto faz parte do projeto “A superfície das coisas: objetos e memória objetos na vida social.
na literatura brasileira contemporânea”, contemplado com uma bolsa de 4 Para uma discussão atual sobre a circulação de objetos em redes

Produtividade em Pesquisa do CNPq. migratórias, ver Rodrigues (2012).

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continuar existindo, ou mesmo para começar a existir. tadas nos cérebros, cemitérios clandestinos, peixeiros,
No romance Outros cantos, de Maria Valéria Rezende, padeiros, missa de sétimo dia, pau para matar a cobra
o objeto de estima entra na trama aos pedaços. Fátima, e ser mostrado, a percepção do fato antes do ato,
gonorreias mal curadas, as pernas para esperar ônibus,
enfrentando a miséria no sertão nordestino, trabalha e
as mãos para o trabalho pesado, lápis para as escolas
cria os filhos como pode enquanto o marido desaparece
públicas, coragem para virar a esquina e a sorte para
na cidade em busca de dinheiro. Ao longo dos meses, o jogo de azar. Levaram também as pipas, lombo
sem qualquer outro contato (eles são analfabetos), vão para polícia bater, moedas para jogar porrinha e força
chegando ali as peças de uma máquina de tear. “Suportes, para tentar viver. Transportaram também o amor para
traves, cunhas, pentes e liços, chavetas e cavilhas de dignificar a morte e fazer calar as horas mudas (LINS,
jacarandá” (REZENDE, 2016, p. 20) são recebidos 1997, p. 18).
alegremente, como sinal de vida do marido e esperança de
algum rendimento futuro. A narradora do livro parte antes Descartáveis como os objetos que transportam,
de ver a máquina da amiga montada, mas nós já havíamos esses homens e mulheres insistem em existir e talvez sua
tido acesso à descrição detalhada de uma delas, em pleno parafernália esteja aí para nos dizer exatamente isso: “nós
funcionamento. Ao contrário da tina da velha Filó, que ocupamos, sim, um lugar no mundo, e o marcaremos com
se desfaz diante de nós, o tear de Fátima é um objeto em nossos restos”. Lembro aqui de um conjunto de imagens
expectativa, algo que virá a ser. de Janine Moraes, repórter fotográfica de Brasília,
Se há uma diferença entre esses objetos marcados produzidas quando ela acompanhou a violenta retirada
pelo contato físico e carregados de afeto e uma tela ou de dezenas de famílias sem teto de um acampamento
uma escultura, por exemplo, ela existe também em relação em Planaltina, na periferia da capital, em 2016. Após
aos objetos descartáveis, que se desmancham com o uso. o cassetete, o trator, o corre-corre, as paredes sendo
Eles são comuns em espaços pobres, sempre atulhados levadas ao chão, as pessoas voltam para recuperar seus
de coisas: vasilha de plástico, brinquedo quebrado, gibi objetos, que, empilhados ao relento, dão a dimensão
sem capa, imagem de santo, radinho de pilha. Basta do desconsolo de suas existências. São colchões sujos,
lembrar do início do romance Cidade de Deus, de Paulo geladeiras arranhadas, plantinhas meio mortas em potes
Lins, com a descrição da chegada dos novos moradores de margarina, espelhos partidos, brinquedos, livros
e toda a sua parafernália. É uma poética lista de tralhas rasgados5. Com um mínimo de empatia, quase nos vemos
que inclui seus próprios corpos, verdadeiras “telas de ali, juntando os pedaços com eles, entre os escombros.
representações”, nos termos de Stuart Hall (2003 [1998] :
p. 342), que lembrava que aos negros escravizados muitas
vezes o corpo foi o único capital cultural que restou – o
“objeto” em que podiam materializar sua cultura. Assim,
as personagens de Lins entram na trama trazendo junto
seu passado e sua história fraturada, negra e pobre. Muito
mais do que mobiliar seus barracos, eles demarcam seu
espaço, moldam seu ambiente – pelo menos até serem
arrastados, mais uma vez, para outro lugar:

Os novos moradores levaram lixo, latas, cães vira-


latas, exus e pombagiras em guias intocáveis, dias para
se ir à luta, soco antigo para ser descontado, restos de
raiva de tiros, noites para velar cadáveres, resquícios Figura 1. Fotos de Janine Moraes.
de enchentes, biroscas, feiras de quartas-feiras e as
de domingos, vermes velhos em barrigas infantis,
revólveres, orixás enroscados em pescoços, frango Mas as coisas também podem nos revelar experiências
de despacho, samba de enredo e sincopado, jogo do e personagens que por vezes nem estão ali, como em
bicho, fome, traição, mortes, jesus cristos em cordões algumas das narrativas de Eles eram muitos cavalos, de
arrebentados, forró quente para ser dançado, lamparina Luiz Ruffato, por exemplo, onde a descrição dos objetos
de azeite para iluminar o santo, fogareiros, pobreza em uma sala “diz” de seu dono antes mesmo que ele entre
para querer enriquecer, olhos para nunca ver, nunca em cena, se é que ele entra. Muitas vezes é suficiente a
dizer, nunca, olhos e peito para encarar a vida, despistar
a morte, rejuvenescer a raiva, ensanguentar destinos,
fazer a guerra e para ser tatuado. Foram atiradeiras, 5 As fotos de Janine Moraes sobre o Acampamento Maria da Penha
revistas Sétimo Céu, panos de chão ultrapassados, Resiste, em Planaltina (DF), de maio de 2016, podem ser vistas em:
ventres abertos, dentes cariados, catacumbas incrus- <https://www.janinemoraes.com/#/ocupacao-maria-da-penha-resiste/>.

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lista de conteúdo de uma gaveta, uma estante, um armário Por fim, podemos ter ainda os corpos sem história,
– todos devidamente abarrotados6 – para imaginarmos seu eles próprios objetos a serem narrados. E aqui remeto à
ocupante7. Os objetos falam de sua classe, de seu gênero, obra intitulada Réquiem NN, de Juan Manuel Echavarría,
talvez até de sua raça, dos lugares por onde andou, de produzida entre 2006 e 2016 e que utiliza três formatos: a
seus afetos e sua solidão, fazem com que nos sintamos fotografia, o vídeo e o cinema11. Ele conta a história dos
próximos de suas experiências, por compartilharmos dos “Ningún Nombre” – as centenas de corpos trazidos pelo
mesmos produtos8, ou então muito distintos em relação rio a Puerto Berrío, um vilarejo ao norte de Medellín –,
aos seus gostos “pessoais”, que talvez nem sejam tão homens e mulheres mortos nos conflitos com a guer-
pessoais assim, já que refletem as influências sociais9. rilha ou com o tráfico na Colômbia. Sem qualquer
Isso porque até mesmo a arte e o consumo artístico são tipo de identificação, (daí os NN, de Ningún Nombre,
predispostos a “desempenhar, independentemente de os Sem Nome), eles foram sendo “adotados” pelos
nossa vontade e de nosso saber, uma função social de moradores do povoado, que cuidam de suas tumbas,
legitimação das diferenças sociais” (BOURDIEU, 2007 rezam por eles e lhes pedem graças12. São um pouco
[1979], p. 14). como as personagens desmemoriadas e desconhecidas,
Essa “ausência comentada” – não dos objetos, objetos sobre os quais narradores e outras personagens
mas das pessoas às quais eles remetem – se manifesta só podem fazer inferências e imaginar passados, como
visualmente na série de fotografias do salvadorenho Fred em Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo,
Ramos sobre crianças e jovens assassinados em diferentes e As confissões prematuras, de Salim Miguel, por
países da América Latina. Suas fotos apresentam apenas exemplo.
roupas e pequenos objetos que eles portavam quando
foram mortos, e que são preservados pela polícia forense
para uma possível identificação pelos familiares. O
que mais choca nas imagens é justamente a ausência
dos corpos – franzinos, pequenos –, subtraídos pela
violência10. Quase dá para ver nossos filhos preenchendo
um moletom vermelho, ou grudados naqueles fones de
ouvido imprestáveis, mas as manchas de sangue e de
fogo, os rasgões e as perfurações logo impedem que
continuemos qualquer aproximação. E temos de voltar a
imaginar a criança que realmente viveu ali, sua história e
a daqueles que a perderam.
Figura 3. Réquiem NN, de Juan Manuel Echavarría.

As obras que citei, muito rapidamente, aqui, parecem


partir do princípio de que não é possível descrever o mundo
sem incluir nessa descrição as coisas que carregamos
conosco, em caixas, nos bolsos, na memória, mas também
em nossa pele ou ossos. Basta ver os estandartes e as
assemblages de Arthur Bispo do Rosário, por exemplo,
Figura 2. Fotos de Fred Ramos. – belíssimas obras produzidas durante décadas em um
6
manicômio depois que Deus lhe mandou “reconstruir o
Em Miller (2013), temos uma reflexão interessante sobre a profusão de
objetos na sociedade contemporânea. mundo”13 – para entender o significado dos objetos em
7 Um bom exemplo desse procedimento está no capítulo 32 do romance,
nosso imaginário e na nossa relação com o espaço em
intitulado “Uma copa” (RUFFATO, 2001, p. 65-68).
8 Marcando nossa presença no mundo, uma vez que, nos termos de Renato que vivemos. As coisas nessas narrativas demarcam o
Ortiz, a “mundialização não se sustenta apenas no avanço tecnológico. Há espaço das personagens, moldando seu ambiente, seja
um universo habitado por objetos compartilhados em grande escala. São pelo excesso, seja pela falta. Servem, ainda, para nos
eles que constituem nossa paisagem, mobiliando nosso meio ambiente”
(ORTIZ, 1996 [1994], p. 107). revelar diferentes modos de experimentar diferentes
9 Bourdieu lembra que “o gosto classifica aquele que procede à classifi-

cação: os sujeitos sociais distinguem-se pelas distinções que eles operam


entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu intermédio, exprime- 11 Para uma discussão da obra de Echavarría, ver Rubiano (2017).
se ou traduz-se a posição desses sujeitos nas classificações objetivas” 12 O trabalho de Juan Manuel Echavarría, que antes se tornar artista plástico

(BOURDIEU, 2007 [1979], p. 13). era escritor, pode ser encontrado em: <http:/www.jmechavarria.com/
10 A série completa pode ser encontrada no site do autor: <http://fred-ramos. chapter_requiemnn.html>.
com/site/view/id/3>. 13 Sobre Arthur Bispo do Rosário, ver Hidalgo (1996).

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Figura 4. Assemblages de Arthur Bispo do Rosário.

lugares; ou para definir a subjetividade de protagonistas Referências


e narradores, inscrevendo-os na vida e delimitando-os
APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: a mercadoria
nas hierarquias sociais. Falam de poder e de desigualdades, sob uma perspectiva cultural. Tradução Agatha Bacelar. Niterói:
da miséria e do mais completo abandono. Refletem, EduFF, 2008 [1986].
ainda, em sua superfície muitas vezes desbotada e com
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento.
fissuras, a memória daquilo que já não tem substância no Tradução Daniela Kern e Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo/
mundo – confirmando, de algum modo, nossa existência Porto Alegre: Edusp/Zouk, 2007 [1979].
e a daqueles que amamos. EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte:
Ao encerrar esse texto – no apartamento onde vivo Mazza, 2006.
há quase 20 anos, tão longe da casa de minha infância FIGUEIREDO, Rubens. Passageiro do fim do dia. São Paulo:
– levanto os olhos para imaginar que objetos ali dentro Companhia das Letras, 2010.
guardariam minhas próprias narrativas. Lembro então HALL, Stuart. Que ‘negro’ é esse na cultura negra?. In, Da
de um trecho do romance Noite dentro da noite, de diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik.
Joca Reiner Terron (2017, p. 158): “Ao desgrudar as Tradução Adelaine La Guardia Resende et al. Belo Horizonte/
Congas da lama, enquanto pedalava no caminho de Brasília: Editora UFMG/Representação da UNESCO no Brasil,
volta para casa com a espada enlaçada à bolsa de pano 2003 [1998].
nas costas, pensou na verdadeira utilidade dos objetos: HIDALGO, Luciana. Arthur Bispo do Rosário: o senhor do
fazer com que nos lembrássemos de situações que, não labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
fosse por sua presença de coadjuvantes, pelo compa- REZENDE, Maria Valéria. Outros cantos. São Paulo: Com-
nheirismo silencioso das coisas que testemunham panhia das Letras, 2016.
nossa passagem, seriam inacessíveis”. Percebo, nesse RUFFATO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. São Paulo:
momento, que circulo por um território povoado de Boitempo, 2001.
memórias. Do souvenir barato na estante à tinta de LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das
canetinha vermelha acrescentada a uma tela por meu Letras, 1997.
filho, do arranhão no pé da mesa à caixa com as tirinhas MIGUEL, Salim. As confissões prematuras. Florianópolis:
completas de Calvin e Haroldo que ganhei um dia de Letras Contemporâneas, 1998.
meus orientandos, tudo me reconecta com minha história MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos
e com as pessoas que amo. Daí a dificuldade dos mais sobre cultura material. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro:
velhos de se desfazerem de seus objetos, especialmente Zahar, 2013.
quando precisam abandonar a própria casa. Cada coisa ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. 2. ed. São Paulo:
eliminada é um testemunho apagado de sua, de nossa, Brasiliense, 1996. [1994].
presença no mundo. E, então, apenas a narrativa pode, de PATROCÍNIO, Stela. Reino dos bichos e dos animais é o meu
algum modo, lembrar de nossa existência, ainda que pela nome. Org.
história de um outro. Viviane Mosé. Rio de Janeiro: Azougue, 2001.

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RODRIGUES, Maria Daniela Filipe. A escala das coisas: Sites:


circulação de objectos em redes migratórias cabo-verdianas. <https://www.janinemoraes.com/#/ocupacao-maria-da-penha-
Dissertação de mestrado. Faculdade de Ciências Sociais e resiste/>
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2012.
<http://fred-ramos.com/site/view/id/3>
RUBIANO, Elkin. Réquiem NN, de Juan Manuel Echavarría:
entre lo evidente, lo sugestivo y lo reprimido. Cuadernos de <http://www.jmechavarria.com/chapter_requiemnn.html>
Música, Artes Visuales y Artes Escénicas, v. 12, n. 1, p. 33-45, <http://museubispodorosario.com/bispo/obra-vida/>
enero-jun. 2017.
STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória,
dor. Org. e tradução Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, Recebido: 11/07/2018
2012. Aprovado: 15/10/2018

TERRON, Joca Reiner. Noite dentro da noite. São Paulo: iD Regina Dalcastagnè <rdal@unb.br>

Companhia das Letras, 2017. Professor e pesquisador da Sorbonne Université.

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