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Menezes VanjaPotySandesGomes D

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

VANJA POTY SANDES GOMES MENEZES

DESACELERANDO OU UMA ODE AO SOL, AO CAMINHAR E


ÀS BORBOLETAS: PRÁTICAS DE MEDITAÇÃO E YOGA NO
TREINAMENTO DO ARTISTA DA CENA

SLOWING DOWN OR AN ODE TO THE SUN, TO WALK AND


TO THE BUTTERFLIES: MEDITATION AND YOGA PRACTICES
FOR TRAINING THE PERFORMING ARTIST

CAMPINAS
2018
VANJA POTY SANDES GOMES MENEZES

DESACELERANDO OU UMA ODE AO SOL, AO CAMINHAR E


ÀS BORBOLETAS: PRÁTICAS DE MEDITAÇÃO E YOGA NO
TREINAMENTO DO ARTISTA DA CENA

SLOWING DOWN OR AN ODE TO THE SUN, TO WALK AND


TO THE BUTTERFLIES: MEDITATION AND YOGA PRACTICES
FOR TRAINING THE PERFORMING ARTIST

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade


Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos
para a obtenção do título de Doutora em Artes da Cena, na
área de concentração em Teatro, Dança e Performance.

ORIENTADORA: PROFª DRª JULIA ZIVIANI VITIELLO

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À


VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA
ALUNA VANJA POTY SANDES GOMES
MENEZES E ORIENTADA PELA PROFª DRª
JÚLIA ZIVIANI VITIELLO.

CAMPINAS
2018
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3596-370X

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Poty, Vanja, 1986-


P859d PotDesacelerando ou uma Ode ao Sol, ao caminhar e às borboletas : práticas
de meditação e yoga no treinamento do artista da cena / Vanja Poty Sandes
Gomes Menezes. – Campinas, SP : [s.n.], 2018.

PotOrientador: Júlia Ziviani Vitiello.


PotTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Pot1. Atores - Treinamento. 2. Meditação. 3. Yoga. 4. Processo criativo. 5.


Escrita performativa. I. Vitiello, Júlia Ziviani, 1954-. II. Universidade Estadual de
Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Slowing Down or an Ode to the Sun, to walk, and to the butterflies
: meditation and Yoga practices for training the performing artist
Palavras-chave em inglês:
Actors - Training
Meditation
Yoga
Creative process
Performative writing
Área de concentração: Teatro, Dança e Performance
Titulação: Doutora em Artes da Cena
Banca examinadora:
Júlia Ziviani Vitiello [Orientador]
Lygia Arcuri Eluf
Marcelo Ramos Lazzaratto
Mathilda Yakhni
René Marcelo Piazentin Amado
Data de defesa: 31-01-2018
Programa de Pós-Graduação: Artes da Cena
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

VANJA POTY SANDES GOMES MENEZES

ORIENTADORA: PROFª DRª JULIA ZIVIANI VITIELLO

MEMBROS:
1. PROF ª DRª JULIA ZIVIANI VITIELLO
2. PROF ª DRª LYGIA ARCURI ELUF
3. PROF. DR. MARCELO RAMOS LAZZARATTO
4. PROF ª DRª MATHILDA YAKHNI
5. PROF. DR. RENÉ MARCELO PIAZENTIN AMADO

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de


Artes da Universidade Estadual de Campinas

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da


banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica
da aluna.

DATA DA DEFESA: 31/01/2018


Em memória de Iago Lunière,
obrigada por tudo que você me ensinou.

Para Caju, Zeca e Titi,


as coisas mais gostosas da minha vida
e nascentes do amor que transborda todos os dias.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais Eva e Dias, por todo apoio, incentivo e amor de
sempre. Pelas passagens e caronas, pela alegria quando passei no
doutorado, pela preocupação constante com o meu bem-estar e por cuidar
dos meus bebês Zen, Zaca e Loro. Por serem porto seguro. Por existirem.
Ao meu amor Gustavo/Caju que, com sua doçura, redefine cotidianamente
as palavras companheirismo e delicadeza. Por toda ajuda, pelo cuidado
e pelo colo. Por ter embarcado comigo nessa jornada louca que é se
tornar adulto e por segurar na minha mão quando tenho medo, lembrando
sempre que vai ficar tudo bem. Juntos seguimos.
À minha querida orientadora Julia, por ter me acolhido quando eu
mais precisei e, principalmente, por ter me ensinado as diferenças
entre pesquisa EM arte e pesquisa sobre arte. Obrigada por ser um
exemplo de resistência e carinho neste ambiente acadêmico que por
vezes mais parece um rolo compressor.
À Luiza, a amiga e designer mais bonita e ponta firme que poderia
existir. Obrigada pelas madrugadas regadas a café e por sonhar esta
tese junto comigo. Obrigada também à querida Talita que, mesmo brava,
deixou eu invadir sua casa e roubar sua esposa um pouquinho. Obrigada
ainda à Raquel que chegou arrasando para completar o time!
À Fabielle Vieira, pelo olhar sensível para o meu trabalho
registrado em fotos lindas de viver e por toda disposição.
A todos os meus alunos e ex-alunos por cada troca, inspiração e
perguntas. Sem vocês esta tese não existiria. Obrigada especialmente
aos estudantes que cederam os depoimentos e imagens que coloriram
estas páginas. Sou eternamente grata.
Aos professores do Colegiado do Curso de Teatro da Universidade do
Estado do Amazonas, pelo apoio desde o começo deste caminho. Obrigada
pelas conversas, pelo auxílio quando precisei viajar para assistir
as aulas do Programa e dar aulas ao mesmo tempo, por segurarem as
pontas nas adversidades e por me cederem os últimos seis meses de
afastamento para poder escrever. Torço muito para que sigamos criando
e que encontremos a paz necessária para não deixar que a universidade
nos engula. Força!
Às queridas Annie e Eneila por acreditarem no projeto de extensão e
pela extensão da ajuda de suas famílias: obrigada Marquinhos pelo sítio
lindo e pelas intromissões nas cenas e ao Rebelo pelas fotos na praia.
Ao querido Taciano e ao Ateliê 23 pelo carinho e pela cessão do
espaço de treinamento.
À querida Débora pela força com a tradução do resumo. Saudades!
Ao Grupo Matula de Teatro e à querida Melissa Lopes, por toda
ajuda quando entrei na Unicamp e pela guarida segura quando precisei
ficar em Barão Geraldo para as disciplinas intensivas e seminários.
Neste sentido, muito obrigada também à professora Verônica Fabrini, à
Brisa Vieira e à Gabriela Bagattini.
À Ana Cristina Colla e à Mathilda Yakhini, pelas importantíssimas
sugestões no exame de qualificação.
À querida Cecília Almeida Salles, por toda atenção e ajuda.
Às professoras Lygia Eluf e Mathilda Yakhini, e aos professores
Marcelo Lazzaratto e René Piazentin – meu primeiro mestre de yoga –,
por terem aceitado o convite para participar da banca de defesa.
Aos integrantes do grupo de pesquisa “Técnicas, poéticas,
processos na pesquisa em dança a partir das abordagens somáticas” pelo
companheirismo. Obrigada por terem acolhido uma estranha do teatro
e compartilharem comigo seus estudos que muito influenciaram esta
investigação.
Aos queridos Bruno Harlyson e Robson Lourenço por toda ajuda no
dia da defesa do trabalho, e às queridas Renata Bosco e Cris Eclipse
pelas fotos do epílogo.
Ao meu querido mestre de yoga Ricardo Sá e ao seu mestre Edson
Moreira por todos os ensinamentos. Obrigada às companheiras da formação
em Yoga Livre, sinto saudade das nossas risadas.
À querida Karen Berlt, amiga e fisioterapeuta mais incrível que me
fez voltar a andar. Agradeço cada passo.
À sangha Shambhala/Brasil por todo brilho que vocês me trazem,
especialmente ao sastri York Stillman pelo auxílio com materiais de
estudo, dicas, incentivo e ensinamentos e ao querido Moisés Santana, que
aceitou fazer parte da banca. Obrigada também aos amigos espirituais dos
diferentes níveis do aprendizado Shambhala que cruzaram meu caminho.
A todos os amigos pela companhia, pelas farras, jantares e passeios.
Obrigada pelo carinho e pelo “ouvido amigo”. Obrigada por serem minha
família em Manaus ou extensão da família paulistana. Amo vocês!
À querida Dona Dalva e a Ivete, pela manutenção cotidiana.
À Universidade do Estado do Amazonas, pela concessão do semestre
de afastamento e pela bolsa de produtividade acadêmica que financiou
parte da realização desta pesquisa.
Existiram momentos de crise, de crescimento, de
mudança. Mas o treinamento foi, para mim, um tao, uma
via, um modus vivendi, uma maneira de me colocar em
jogo a cada dia e dialogar com o meu ofício. Para não
me deixar ser absorvida pela rotina, para não perder a
capacidade de me maravilhar.
Roberta Carreri
RESUMO

ou

Práticas de Meditação e Yoga no Treinamento


do Artista da Cena

A pesquisa em primeira pessoa exercita a escrita performativa para


refletir acerca do processo de criação de um treinamento para artistas
da cena organizado a partir da articulação entre yoga e meditação,
trazendo como principais referências o Budismo Shambhala e o Hatha Yoga.
A discussão fundamenta-se em minha prática artístico-pedagógica como
docente de interpretação na Universidade do Estado do Amazonas e como
coordenadora do projeto de extensão “Núcleo de Práticas Meditativas
no Treinamento do Artista” da mesma universidade. Além da documentação
e do mapeamento das descobertas realizadas em sala de aula, o trajeto
metodológico permeia a bricolagem como estratégia e, portanto, me
arrisco a encontrar um lugar de fala como pesquisadora fundado em
minha experiência pessoal com o objeto de estudo, articulando-o
com as subjetividades dos artistas envolvidos neste percurso e com
estratégias de análise crítica derivadas de horizontes diversificados
– a auto-etnografia, a cartografia e a crítica de processos criativos
influenciam as veredas de elaboração desta tese-criação. As investigações
bibliográficas e de campo levaram à organização de caminhos para o
trabalho prático com diferentes grupos de estudantes e com a comunidade
acadêmica, incitando a discussão acerca dos punctums fomentados por
um arcabouço de exercícios voltados para a construção de um repertório
cênico/meditativo de estímulo do artista e indagando as possibilidades
de desenvolvimento de ações físicas através da meditação caminhando,
das posturas do yoga, de práticas respiratórias, do treinamento da
concentração e do canto de mantras. Ao mesmo tempo, busquei percorrer
o caminho do meio do treinamento cênico explorando os meandros entre
impulso e partitura física, contemplação e movimento, relaxamento e
prontidão do ator/performer.

Palavras-chave: Atores – Treinamento; Meditação; Yoga; Processo


Criativo; Escrita Performativa.
ABSTRACT

or

Meditation and Yoga Practices for Training


the Performing Artist

This first-person research exercises the performative writing to reflect


about a creative process of a training for performing artists organized
from the articulation between yoga and meditation, bringing as main
references the Shambhala Buddhism and the Hatha Yoga. My artistic-
pedagogical practice as an acting teacher at the Amazonas State
University and as coordinator of the extension project “Nucleus of
Meditative Practices for Training Artists” at the same university is
the base for this discussion. In addition to documenting and mapping
the breakthroughs made at the classroom, the methodological pathway
also permeates bricolage as a strategy. Therefore, I venture to find
a place of speech as a researcher based on my personal experience
with the object of study, articulating it with the subjectivities
of the artists involved in the research and with strategies of
critical analysis derived from diversified horizons. self-ethnography,
cartography and the critique of creative processes influence the paths
of elaboration of this thesis-creation. The bibliographical and field
investigations led to the organization of routes for the practical
work with different groups of students and the academic community. It
incited the discussion about the punctums fomented by a framework of
exercises aimed at the construction of a scenic / meditative stimulus
repertoire for the artist and inquiring about the possibilities of
developing physical actions through walking meditation, yoga postures,
breathing practices, concentration training and mantras chants. At the
same time, I sought to cross the middle path of the stage training by
exploring the intricacies between creative impulses and the physical
score, contemplation and movement, relaxation and readiness of the
actor/performer.

Keywords: Actors – Training; Meditation; Yoga; Creative Process;


Performative Writing.
ÍNDICE DE IMAGENS
1º Capítulo
1. Eu, Vanja Poty, nos ensaios com o Núcleo de Práticas Meditativas
no Treinamento do Artista realizando a postura yogue da Criança -
Balásana. Foto: Fabielle Vieira. (p. 19)
2. Artista participante do Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento
do Artista na postura yogue Sukhasana. Foto: Fabielle Vieira. (p.22)
3. Artista participante do Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento
do Artista na postura yogue da Árvore - Vrkshásana. Foto: Fabielle
Vieira. (p. 30)
4. Artista participante do Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento
do Artista na postura yogue da Montanha – Tadásana. Foto: Fabielle
Vieira. (p. 33)
5. Artista participante do Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento
do Artista executando o Anjali Mudra em sua partitura física. Foto:
Fabielle Vieira. (p. 35)
6. Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista na postura yogue da Saudação Ascendente das
Mãos Estendidas – Hasta Uttanásana. Foto: Fabielle Vieira. (p. 38)
7. Artista participante do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista na postura yogue do Alongamento Intenso da
Coluna – Uttanásana. Foto: Fabielle Vieira. (p. 38)
8. Artista participante do Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento
do Artista na Postura Equestre - Ashwa Sanchalanásana. Foto: Fabielle
Vieira. (p. 42)
9. Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista na postura yogue Chaturanga Dandásana. Foto:
Fabielle Vieira. (p. 42)
10.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista na postura yogue da Saudação de Oito Pontos –
Astanga Namaskara. Foto: Fabielle Vieira. (p. 43)
11. Artista participante do Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento
do Artista na postura yogue da Serpente – Bhujangásana. Foto: Fabielle
Vieira. (p. 43)
12.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista na postura yogue do Cachorro Olhando para Baixo
– Adho Mukha Svanásana. Foto: Fabielle Vieira. (p. 47)

2º Capítulo
13. Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista realizando o exercício Desaceleração. Foto:
Fabielle Vieira. (p. 56)
14.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista realizando o exercício Desaceleração. Foto:
Fabielle Vieira. (p. 65)
15.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista realizando o exercício Desaceleração. Foto:
Fabielle Vieira. (p. 66)
16.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista em Dança Meditativa. (partes I, II e III).
Foto: Fabielle Vieira. (p. 74)
17. Artista participante do Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento
do Artista em exercício de meditação. Foto: Fabielle Vieira. (p. 76)
18. Artista participante do Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento
do Artista em Dança Meditativa. Foto: Fabielle Vieira. (p. 77)
19. Artista participante do Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento
do Artista em Dança Meditativa. Foto: Fabielle Vieira. (p. 80)
20.
Processo de formação da mandala coletiva no treinamento. Foto:
Fabielle Vieira. (p. 83)
21. Exercício de dharana – concentração sobre a vela. Foto: Fabielle
Vieira. (p. 93)
22.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista realizando o exercício Desaceleração. Foto:
Fabielle Vieira. (p. 96)
23. Imagens representantes dos pontos de pressão dos pés: parte I -
apoio tripodal/ parte II – arco longitudinal e arco transverso do pé.
FONTE: SEJENOVICH, 2016, p. 06. (p. 97)
24.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista massageando e investigando os pés com bolinhas
de tênis. Foto: Fabielle Vieira. (p. 98)
25. Eu, Vanja Poty, nos ensaios com o Núcleo de Práticas Meditativas
no Treinamento do Artista exercitando os pontos de apoio dos pés com
um bastão de madeira. Foto: Fabielle Vieira. (p. 99)
26.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista compondo movimentos a partir das possibilidades
de utilização dos pés. Foto: Fabielle Vieira. (p. 99)
27. Eu, Vanja Poty, no Caminho de Santiago de Compostela em 17 de maio
de 2007. Foto: Vanja Poty. (p. 102)

3º Capítulo
28.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista realizando o Exercício de Limpeza do espaço
cênico. Foto: Fabielle Vieira. (p. 106)
29.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista na postura yogue Adho Mukha Svanásana, realizando
o Exercício de Limpeza do espaço cênico. Foto: Fabielle Vieira. (p.
108)
30. Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista exercitando caminhos de purificação psicofísica
através da prática de Ásanas dentro de um igarapé. Foto: Fabielle
Vieira. (p. 110)
31.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista na postura yogue Adho Mukha Svanásana, realizando
o Exercício de Limpeza do espaço cênico. Foto: Fabielle Vieira. (p.
110)
32.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista em exercício contemplativo com as chamas das
velas. Foto: Fabielle Vieira. (p.120)
33. Pintura do artista El Greco: A Boy Blowing on an Ember to Light a
Candle / Soplón (1570-1572) (p.121)
34.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista na vivência dos Ásanas em meio à natureza
(partes I e II). Foto: Fabielle Vieira. (p. 123)
35.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista na vivência dos Ásanas em meio à natureza
(partes I e II). Foto: Fabielle Vieira. (p. 123)
36.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista na vivência dos Ásanas em meio à natureza
(partes I e II). Foto: Fabielle Vieira. (p. 125)
37. Artista participante do Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento
do Artista acionando diferentes punctums psicofísicos na composição da
partitura física. Foto: Fabielle Vieira. (p. 127)
38. Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista realizando Ásanas de equilíbrio e sustentação
em trio (partes I, II e III). Foto: Fabielle Vieira. (p. 132)
39.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista realizando Pranayamas (partes I e II). Foto:
Fabielle Vieira. (p. 134)
40.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista em exercício de concentração e estímulo no
ponto entre as sobrancelhas. Foto: Fabielle Vieira. (p. 135)
41. Artista participante do Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento
do Artista realizando Pranayama. Foto: Fabielle Vieira. (p.139)
42.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista realizando Pranayamas com a utilização de
Bandhas (partes I e II). Foto: Fabielle Vieira. (p. 141)
43.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista investigando a Dança das Oposições (partes I,
II e III). Foto: Fabielle Vieira. (p. 146-147).
44.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista investigando a interligação entre o canto de
mantras e as partituras físicas e vocais (partes I, II, III e IV).
Foto: Fabielle Vieira. (p. 148-149).

4º Capítulo
45. Eclipse solar. Fonte: https://pixabay.com/ (p. 154).
46.
Imagem de minha ressonância magnética do joelho. Edição: Raquel
Thomé. (p. 155).
47.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista em processo de criação cênica em meio à natureza
(partes I e II). Foto: Fabielle Vieira. (p. 158)
48.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista exercitando uma forma de reverência em meio à
natureza. Foto: Fabielle Vieira. (p. 160)
49. Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista exercitando a reverência (partes I, II e III).
Foto: Fabielle Vieira. (p. 161).
50.
Artistas participantes do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista em processo de criação cênica em meio à natureza
(parte I) e praticando yoga (parte II). Foto: Fabielle Vieira.(p. 162)

5º Capítulo
51. Eu, Vanja Poty, atenta às observações da Banca na defesa desta tese
em 31 de janeiro de 2018. Foto: Gustavo Rosa. (p. 166)
52. Eu, Vanja Poty, na abertura do programa performativo de defesa
desta tese em 31 de janeiro de 2018. Foto: Gustavo Rosa. (p. 167)
53. Eu, Vanja Poty, atenta às observações da Banca na defesa desta tese
em 31 de janeiro de 2018. Foto: Cris Eclipse. (p. 168)
54. Eu, Vanja Poty, realizando a ação de limpeza do espaço/ contêiner
durante o programa performativo de defesa desta tese em 31 de janeiro
de 2018. Foto: Gustavo Rosa. (p. 171)
55. Eu, Vanja Poty, realizando a Desaceleração com o público durante o
programa performativo de defesa desta tese em 31 de janeiro de 2018.
Foto: Gustavo Rosa. (p. 171)
56. Eu, Vanja Poty, realizando a Saudação ao Sol durante o programa
performativo de defesa desta tese em 31 de janeiro de 2018. Foto:
Gustavo Rosa. (p. 173)
57. Eu, Vanja Poty, realizando pranayamas durante o programa
performativo de defesa desta tese em 31 de janeiro de 2018. Foto:
Renata Bosco. (p. 173)
58. Eu, Vanja Poty, meditando com o público e com a Banca durante o
programa performativo de defesa desta tese em 31 de janeiro de 2018.
Foto: Gustavo Rosa. (p. 173)

Projeto gráfico e ilustrações por Luiza Poli Franco e Raquel Thomé, em


parceria com a pesquisadora Vanja Poty.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ou BREVE INTRODUÇÃO 19

CAPÍTULO 1 21
(re)Começo ou como cheguei até aqui saudando o sol
Vem comigo? 24
diálogo com antepassados 25
modo antropofágico 26
caminho do meio 26
tese-criação 27
Medusa 31
Saudação ao Sol 34
docente 36
uma pontada me desperta 48
treinamento do ator 52
técnica, processo e poética 54

CAPÍTULO 2 57
Desacelerando ou uma ode ao caminhar e às borboletas
Desaceleração 58
meditação caminhando 61
AULA DE INTERPRETAÇÃO V 64
sentimento da beleza 67
punctums 70
presença autêntica 71
Dança Meditativa 72
crisálida 73
matéria 76
dharma art 78
mandala 81
tríades 82
rigor 84
Cavalo de Vento 85
inacabamento 88
chama de uma vela 92
pés 95
“o chão como um mestre zen” 101
peregrina 103

CAPÍTULO 3 107
Pro meu corpo ficar odara ou é tempo de limpar a casa para poder voar
limpeza 108
contêiner 108
purificação ritual 110
descoberta da elegância e da beleza 110
materialismo espiritual 112
vazio 112
fisiologia sutil 115
alquimia 115
tantrismo 115
relaxamento 116
pistas 117
partituras físicas e matrizes de movimento 119
investigação do corpo 119
harmonização das vias energéticas do corpo 121
prana 121
ásanas 122
permanência nas posições 122
minimalismo no treinamento 124
simbologias e arquétipos 125
punctums 126
manifestação do indizível 128
yün 129
wangthang 129
caminho do meio 131
pranayamas 132
fogo sagrado respiratório 133
bandhas 133
mula bandha 135
uddiyana bandha 135
ponto entre as sobrancelhas 135
bhastrika e ujjayi 138
hara 141
mantras 143
Bija 144
dança das oposições 145
partituras sonoras 152

CAPÍTULO 4 155
Um salto para a apreciação do eclipse ou isso não é uma despedida
dralas 157
reverência 159
tempos da encenação 163
entre mente e coração 164
resistência 165

CAPÍTULO 5 167
Epílogo: cinco procedimentos-girassóis para a defesa de
uma tese-criação ou como os fins de ciclo me comovem

BIBLIOGRAFIA 176

ANEXOS 184
19

APRESENTAÇÃO
O trabalho aqui apresentado
é um convite à viagem
psicofísica: methaphorae
ou BREVE INTRODUÇÃO (gr.) caminhar de
um ponto a outro sem
sair do lugar.
A escrita performativa em primeira proponho a
pessoa busca aproximar criadora, desaceleração
criatura e leitor: juntos, da percepção
atravessaremos veredas discursivas utilitária da vida e o encontro
verbais e não verbais, reveladoras do artista com o sentimento da
do processo de criação de um beleza resultante do cultivo
treinamento para artistas da cena de si meditativo/performativo.
que se desenvolve a partir das Recorrências imagéticas
Recorrências imagéticas trarão
técnicas do yoga e da meditação. pistas para a leitura do trabalho:
peço especial atenção à sequência
A obra de arte é aberta. Portanto,
de fotos, às posturas yogues
na concepção artística da tese,
evocadas por grafismos, às marcações
o texto fomenta a participação
de punctums que saltam à vista do
de seu fruidor por meio da
leitor como indícios do curso deste
evocação das sensações da autora
rio, à organicidade sinestésica da
– e dos artistas participantes da
forma dos textos, e aos fios de
investigação – em sua experiência
tinta que nos guiam por este
tanto no momento da escrita,
labirinto.
quanto na pesquisa de campo. Para
este intento, a forma do ensaio
foi escolhida pois, em seu formato
livre, é capaz de dissolver
certas formalidades acadêmicas
e abordar
abordar de maneira
maneira poética
poética o
percurso de encontro da artista- Vamos?
pesquisadora consigo mesma, com
uma prática pedagógica e com uma
linguagem cênica e de treinamento.
A escrita é um corpo que
dança por meio de imagens,
imagens,
palavras, linhas,
linhas, cores,
cores,
texturas e sons. A cada capítulo,

Obs: Para melhor visualização dos capítulos desta tese no formato PDF, recomendo a opção
de exibição “Rolagem em Duas Páginas” no seu computador. Nesse formato, ajuste o leitor de
modo que as páginas pares estejam do lado esquerdo da tela. Para isso, configure o seu leitor
para “Mostrar página de rosto em duas páginas” (“Visualizar > Exibição da Página > Mostrar
página de rosto em exibição em duas páginas”). Em outros programas de leitura, utilize a
opção “Inverter exibição” na guia “Exibir” ou com o botão direito do mouse para ajuste.
20
21

ou

sobre como cheguei até aqui saudando o Sol

O senhor me escreveu dizendo que desejaria ver os resultados


concretos do seu trabalho. Pois bem, permita-lhe que lhe
diga: resultados concretos não se veem nunca. Os resultados
concretos (sobretudo em uma arte fugaz como o teatro) nascem
e morrem num abrir e fechar de olhos, e penso que seja errado
ligar-se a eles. Acredite em mim, tenho o direito moral de
falar-lhe desta maneira. Possui-se de verdade somente aquilo
de que se fez experiência, sendo assim (no teatro), aquilo
que se sabe e que pode ser verificado no próprio organismo, na
própria individualidade, concreta e cotidiana. É exatamente
aqui que se encontra a semente de nossas investigações:
o artesanato (direção? arte do teatro?) construído e
experimentado no próprio organismo vivente que, com relativa
certeza, nos acompanha (GROTOWSKI in BARBA, 2006, p.131).

Tranquilidade. Inspira fundo. É hora do monólogo de abertura.


CORAGEM. Expira soltando o ar devagar, irradia e começa...
Hora de arrumar a casa, o ser artista que estava fechado faz tempo
para balanço. Olha o Sol. Abre as janelas para entrar luz, tira o pó
e os panos dos móveis, coloca um mantra para tocar e para centrar em
si, preparando o espaço:

Aum bhur bhuvah


svaha
tat savitur varenyam
am bhargo
devasya
dheemahee
dhiyo yo nah prachodayat...1

1  O Gayatri mantra é um dos mais importantes da religião hindu, trazendo em seu canto devocional um pedido a divindade
Sol (Savita) por inspiração, espiritualidade e discernimento (MIRANDA, 2014). Georg Feuerstein traduz o canto: “Om. Terra.
Meia-região. Céu. Deixe-nos contemplar o esplendor mais excelente do Savitri [Sol], que ele possa inspirar as nossas visões”
(FEUERSTEIN, 2005, p.92)
22

Sukhasana
23

Canta para o Sol o mantra Gayatri, entrando em contato com as


múltiplas simbologias e com a manifestação desta grande estrela de
fogo. Edson Moreira (2006), define mantra como uma técnica de união do
sujeito com a consciência divina por meio de seus aspectos sonoros,
de modo que o praticante transforma-se na divindade tutelar do
mantra durante sua meditação. Portanto – pelo menos enquanto durar
o canto –, sou o Sol: fonte de calor, luz e encanto; manifestação da
divindade em culturas diversas; arquetípico e permeado de mitologias
que evocam um ritual diário de nascimento, apogeu e morte; por
vezes adorado e por outras temido; metáfora inspiradora de uma
sociedade iluminada2.
Respira. Revive em si estas experiências da humanidade.
Esquece essa figura triste. Canta. Reconhece o ambiente, despe a
dor pelo avesso e rega as plantas murchas, traz os gatos e os amores.
Lembra das viagens, das cenas e dos encontros marcantes da vida. Lava
a varanda, passa um pano nesse chão sujo e, quem sabe, se tudo der
certo, faz um almoço para receber os amigos.
Repete o Gayatri até cansar, até estar bem, enquanto separa uma almofada
para a meditação e um tapete para a prática de yoga, bem como um cinto e uns
dois bloquinhos3. Esta preparação, este (re)começo, traz consigo a intenção
do mantra: o discernimento e a capacidade de enxergar os problemas em
sua luz natural e com a visão clara, sem ignorá-los ou amplificá-los pela
influência de Maya – epíteto que representa nossas ilusões, nosso olhar
difuso para a realidade em que vivemos e que nos aprisiona em um mundo de
fantasia e enganos. Espero que assim caminhe a investigação.
Se acalma. Senta em Sukhasana
sukhasana 4 – postura de pernas cruzadas –,
prestando atenção na respiração para se concentrar. Foco na respiração
completa – torácica e abdominal –, olhos abertos e mãos nos joelhos.
Medita. Da meditação desponta a lembrança de que esta tese se inicia
pela constatação de um histórico de tentativas, erros, acertos e
fracassos artísticos. Ela evidencia o desejo de libertação das amarras
da necessidade de sobrevivência que lhe enviaram para a outra ponta
do país e transformaram-se em terceira perna.

2  O termo sociedade iluminada é utilizado pelo mestre tibetano Chögyam Trungpa Rinpoche para se referir a um reino
lendário no Himalaia chamado Shambhala: uma comunidade mitológica da tradição tântrica budista na qual a bondade e
a sabedoria inatas de cada ser –“que não pertence a nenhuma cultura ou religião em particular, nem é exclusividade do
Ocidente ou do Oriente“(TRUNGPA, 2013, p.27) – se faziam presentes em suas ações, pois estes haviam despertado de
seus padrões habituais. Trungpa se inspira neste local utópico para difundir os ensinamentos contemplativos budistas no
ocidente, propondo caminhos para – a partir do cultivo de si proveniente da meditação –, elevarmos a experiência cotidiana da
sociedade ao nível do sagrado, nos engajando com gentileza no mundo em que vivemos emanando ziji – confiança brilhante
e radiante como o sol nascente. Aprofundaremos o tema no próximo capítulo.
3  B.K.S Iyengar (2014) chama estes recursos de suportes: objetos voltados para o bom alinhamento do corpo, para o
alongamento, relaxamento, meditação e para a sustentação de algumas posturas. Estes são materiais como tapetes
emborrachados, blocos de espuma e madeira, mantas, cintos de pano, almofadas, bandagens, bolas de tênis, entre outros.
Com eles, a prática de yoga fica mais fácil, confortável e proveitosa.
4  Camargo (2008) recorda que existem muitas variações para os nomes das posturas de yoga – ásanas – nas diferentes
tradições e escolas. Visando a acessibilidade desta tese, optei por apresentar denominações de posições já consagradas pelo
uso corrente, dando preferência, na maioria das vezes, às nomenclaturas utilizadas por Iyengar e por Kaminoff.
24

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já


não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu
tivesse perdido uma terceira perna que até então me
impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um
tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei
a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que
nunca tive: apenas duas pernas. Sei que somente com
duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência
inútil da terceira me faz falta e me assusta, era
ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim
mesma, e sem sequer precisar me procurar. É difícil
perder-se (...) Até agora, achar-me era já ter uma
ideia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa
organizada eu me encarnava, e nem mesmo sentia o
grande esforço de construção que era viver. A ideia
que eu fazia de pessoa vinha de minha terceira perna,
daquela que me plantava no chão. Se tiver coragem,
eu me deixarei continuar perdida.
Clarice Lispector.
A Paixão Segundo G.H.

Perdida, porém cheia de encontros. Preenchida de vazios e de novas


paixões, é preciso reaprender a andar com duas pernas. Controlar a
ansiedade burocrática e competitiva da chegada, ser tartaruga e perceber
quão bonito é o caminho. Deixo aqui um convite para você me acompanhar.
Vem comigo?
Pega na minha mão. Juntos seguimos. Ao longo das veredas que se
bifurcarão por essas páginas, vamos investigar o yoga e a meditação no
treinamento de artistas da cena como possibilidades de libertação da
terceira perna. O encantamento com a vivência contemplativa me levou a
refletir sobre caminhos para a elaboração de um treinamento meditativo
voltado para o ator/performer que influenciasse diretamente seu
processo de criação. Estas práticas acalmam mas também desassossegam,
desencadeando potências de metamorfose tanto na natureza da matéria
corpo, quanto nas inquietudes e nas emoções do artista.
Vamos rememorar encontros que tive com diferentes grupos de
artistas (e comigo mesma) voltados para o estabelecimento de um espaço
sacralizado para a prática cênica, por meio da preparação corporal
através do Hatha Yoga5 e de vivencias meditativas influenciadas pelo

5  Sistema de pensamento hindu voltado para o desenvolvimento do ser por meio da integração entre corpo e espírito, e que
busca despertar energias latentes na coluna vertebral (chakras) a partir da disciplina psicofísica. Gulmini (2002) afirma a
maioria dos tipos de yoga que conhecemos hoje no ocidente derivam dos tratados do Hatha Yoga, principalmente do Hatha
Pradipika, de Svatmarama, datado de 1400 d.C. Segundo Souto (2009), a palavra Hatha assume significados distintos ao
longo da história do yoga: no tratado Mahabharata é empregada no sentido de ausência de esforço, no Yoga Vashita significa
força, e na literatura Natha refere-se a união dos canais energéticos Pingala e Ida do corpo humano, representantes do Sol
(Ha/ Surya) e da Lua (Tha/ Chandra).
25

budismo Shambhala6 que estimulam a reinvenção de seus praticantes. A


pesquisa acontece de modo experimental: articula conceitos, princípios,
ideias e imagens por meio da vivência; nela, sujeito e objeto de
estudo muitas vezes são uma única pessoa, em constante diálogo consigo
mesma. Desta articulação entre conceitos e práticas incorporadas
expostos a novos conhecimentos e procedimentos espero compor
uma reflexão geradora de uma possível metodologia de treinamento nas
artes da cena, na qual a filosofia e a prática do yoga, a meditação
e os procedimentos criativos de artistas que se aproximam destas
tradições em seus trabalhos – como Marina Abramović,
Constantin Stanislavski, Jerzy Grotowski, Kazuo Ohno
e Yoshi Oida – conversam.
Este diálogo, quan- do vivenciado pelo outro –
alunos, artistas da comu- nidade, colegas professo-
res – gera espaços de tro- ca de experiências acerca do
trabalho prático do ator/ performer, estimulando o
estabelecimento de novos conhecimentos. Com ênfase
na observação do artista de si mesmo, investigo co-
letivamente procedimentos técnico-metodológicos e de
linguagem associados à con- dutas ritualizadas de comu-
nicação artística. Veremos ao longo dos capítulos que
a pesquisa de campo desta tese ocorre com diferentes
grupos de atores/performers: turmas de estudantes das
disciplinas Interpretação IV e V ministradas por mim
na Universidade do Estado do Amazonas nos anos 2015,
2016 e 2017; e atores desta mesma universidade, colegas
professores do Curso de Te- atro e artistas da comuni-
dade manauara participan- tes do projeto de extensão
“Núcleo de Práticas Medita- tivas no Treinamento do Ar-
tista”, que coordeno desde agosto de 2016.
Cabe ressaltar que a tese se deixará atravessar
por criações de artistas que, de alguma maneira, se
alimentam deste universo em suas práticas. Entretanto,
a investigação não pretende ater-se à aplicação dos
trabalhos destes criadores. O estudo busca estabelecer um
processo cênico motivado pelo conhecimento de si, pensando o
teatro para além do espetáculo, meditando sobre os lugares
possíveis do treinamento do artista da cena.
E u g e n io Barba (1994) estabelece as bases de sua
pesquisa cênica a partir do que ele chama de diálogo com antepassados
– uma conversa autodidata, prática e intelectual com artistas
reformadores do teatro do século XX, realizada muitas vezes à distância
por meio de livros, espetáculos e exposições. Tal como o encenador
italiano, o estudo e a admiração pelo processo criativo de artistas que
transitam pela experiência meditativa foi vital para a elaboração desta

6  O budismo Shambhala foi sistematizado por Chögyam Trungpa a partir da confluência de ensinamentos contemplativos de
tradições orientais distintas: a espiritualidade pré-budista xamânica da Ásia Central – Bön; as linhagens budistas tibetanas
Nyingma e Kagyü; o budismo Zen japonês; e o Confucionismo e Taoísmo chineses. O encontro desses caminhos espirituais tem
como fundamento da prática a meditação voltada para a construção de uma sociedade iluminada – de modo que, em sua maioria,
seus mestres e praticantes não se encontram reclusos em mosteiros, unindo atividade espiritual e secular, absoluta e relativa.
26

pesquisa. Ao mesmo tempo, é importante destacar que estes criadores


inspiram os caminhos da tese de modo antropofágico, porém não são
eles o foco da investigação: eles se misturam entre exercícios e
procedimentos como mestres imaginários que pegavam na minha mão
com palavras doces e de encorajamento quando me sentia sozinha e
insegura para praticar e escrever sobre uma “arte com influências
orientais”, nebulosa e distante do que me era até então conhecido,
mas que me enfeitiçava como o canto de uma Yara.
Rita de Almeida Castro (2012) recorda que, nas práticas cênicas
ocidentais, a ideia exótica de oriente perpassa por culturas de
grande diversidade e que, muitas vezes, estes corpos orientais
idealizados por nós estão em boa parte destituídos da imagem
arquetípica de disciplina e perfeição formal que carregamos
conosco. Deste modo, é preciso saber interpretar criativamente os
códigos destas técnicas – no caso, yoga e meditação – adaptando-
os com discernimento ao ambiente em que estão inseridos. A
pesquisadora associa este intento com a prática do artista que,
Barba (1994), nomeia como ator do polo sul: livre de normas fixas
em seu processo criador, contudo sem grandes incentivos, e que
portanto pode se deparar com a dificuldade de desenvolver suas
paixões de modo contínuo e organizado.
Como ancestrais profissionais, meus antepassados
acompanharam as mudanças que ocorreram em mim durante o
percurso da tese: tornei-me budista, meu corpo e meu cotidiano
se modificaram com o yoga, um desejo confuso de criação e
uma insatisfação artística aflorou-se e se transformou em um
núcleo de pesquisa que me instiga e me alimenta todos os dias.
Ademais, pude compreender que esta ideia de oriente mágico se
recriava e variava a cada ensaio em um contexto brasileiro e
amazonense, e que aceitar minha condição de neófita e ocidental
na vivência de técnicas indianas e tibetanas milenares me
dava liberdade para assimilá-las sem medo durante o percurso
de experimentação artística. Caminho este que está apenas
em seu começo, sendo a base de um projeto poético que se
estenderá por toda uma vida.
Procuro, ao longo da vivência que traçaremos de mãos
dadas, não me deixar levar pelo exotismo e por sincretismos
fáceis em respeito às tradições espirituais as quais estou
vinculada. Ao mesmo tempo, compreendo que minha prática ainda
é recente e tateante, por isso não tenho a intenção de trazer
aqui um aprendizado oficial budista ou do yoga, ou mesmo uma
metodologia para ser aplicada prontamente, mas sim a discussão
sobre uma possibilidade de treinamento em processo de construção,
distante dos resultados finais e acabados.
Jean Lancri ressalta que uma tese em artes encontra sua
originalidade no caminho do meio entre conceito e sensibilidade,
teoria e prática, razão e sonho, cientificismo e magia. A investigação
acontece no espaço de articulação entre estas categorias, brotando
pelo meio das experiências criativas e de vida do pesquisador,
27

intercruzando-se com outrem: outros artistas inspiradores, ou mesmo


teorias e conceitos que se conectem com sua obra e sua busca. Este
outro, o antepassado de Eugenio Barba, “é antes uma espécie de
lugar, um local bem estranho de onde o sujeito humano vai tirar
algo com que alimentar seu desejo, seja o desejo de saber, seja o
desejo de empreender uma pesquisa” (LANCRI, 2002, p.21).
Entre arte e vida, esta perspectiva de estudo se relaciona
com a filosofia budista: propondo o desenraizamento dos nossos
lugares seguros e incentivando a experiência acadêmica como um
salto no vazio. No caminho da vacuidade não existem modelos
metodológicos fechados para agarrar-nos, os procedimentos
científicos de base são abertos e passíveis de reinvenção no
encontro com subjetividades distintas. Pouco preocupada com
a pureza da pesquisa, a via in medias res assume-se com mais
perguntas do que respostas. Para Lancri, compete a arte lançar
dúvidas no espírito do tempo, misturando ética e estética
em uma racionalidade claudicante e impermanente que lhe é
própria.
A pesquisa de campo revela uma potência de forças, de
intenções, de constante movimento, de modo que a escrita também
deve seguir por estas veredas: cada pesquisador fica a cargo
de inventar as estratégias de composição adequadas para o seu
percurso, afastando-se dos modelos de estudo habituais em
ciências humanas. Neste sentido, esta investigação emprega a
bricolagem metodológica como estratégia de elaboração de uma
tese-criação. Ambos conceitos se relacionam com os estudos de
Sylvie Fortin (2009; 2014) acerca dos caminhos da pesquisa
em arte na abordagem qualitativa pós-positivista. Esta parte
do pressuposto de que a realidade é múltipla e cheia de
possibilidades, a depender de construções sociais e culturais
do pesquisador, que deve encontrar um lugar de fala fundado em
sua própria experiência com o objeto de estudo, inseparável de
sua subjetividade. A teoria vem de dentro para fora, ao invés
de ser exógena ao percurso do artista pesquisador.
Na tese-criação, as questões da pesquisa apresentam-
se a partir de “interação entre a experimentação prática
de um processo artístico e a compreensão teórica dos temas
deste percurso” (FORTIN, 2014, passim). Ou seja, neste enfoque
investigativo, “o caminho se faz ao caminhar”7. Tal procedimento
inspira a bricolagem metodológica de estratégias de análise
crítica, coleta de dados, teorias e métodos que, derivados
de horizontes diversificados, fogem dos enquadramentos de
investigação tradicionais, gerando novas formas de conhecimento
e de escrita acadêmica. Portanto, a prática metodológica é
antropofágica assim como o diálogo com os artistas que inspiraram
a tese, devorando, digerindo e reelaborando modelos de investigação
formando um mosaico a ser desvendado pelo pesquisador. Deste modo,
a auto-etnografia (FORTIN, 2009; 2014), a cartografia (ÉSCOSSIA;
KASTRUP; PASSOS, 2009) e a crítica de processos criativos (SALLES,

7  Fragmento do poema Caminhante, de Antônio Machado.


28

1998, 2006, 2008) influenciarão as veredas de elaboração desta tese-


criação.
Para Fortin (2014), na auto-etnografia as reações somáticas do
pesquisador também são parte da investigação e devem ser combinadas com
os outros dados da pesquisa, como documentos, entrevistas e anotações de
campo. Nela, a expressão das experiências pessoais do artista está aliada
à perspectiva pós-colonialista de que a pesquisa não deve representar
os acontecimentos de modo autoritário, mas evocar uma narrativa com
base na vivência sensível e corporal do pesquisador – seus saberes
encarnados –, “ultrapassando a aventura propriamente individual do
sujeito”. Deste modo, entende-se que toda descrição é uma interpretação
dos fatos a partir da memória e da seleção de informações e, por isso, na
tese-criação o pesquisador busca formas de escrita que reflexionem seus
processos de criação como realmente são – descontínuos, fragmentários e
muitas vezes liminares8 –, levando em conta tanto dados não discursivos
(som, imagem e movimento), quanto discursivos.
Nesta medida, a cartografia como caminho de investigação busca acompanhar
processos e não representar objetos de estudo: pensando a escrita acadêmica
por meio da multiplicidade de formas de um percurso vivido e observado.
Assim, a investigação cartográfica é uma atitude que vai de encontro às
totalidades e às generalizações, e que compõe a realidade a partir da
desestruturação das normas tradicionais de pesquisa qualitativa, pensando
em pistas fluidas que possam ajudar o pesquisador na construção
de mapas móveis, que se modificam a cada momento.
Em um sistema acêntrico, como conceber a direção metodológica?
A metodologia, quando se impõe como palavra de ordem, define-se por
regras previamente estabelecidas. Daí o sentido tradicional de
metodologia que está impresso na própria etimologia da palavra:
metá-hódos. Com essa direção, a pesquisa é definida como um caminho
(hódos) predeterminado pelas metas dadas de partida. Por sua vez, a
cartografia propõe uma reversão metodológica: transformar o metá-hódos
em hódos-metá. Essa reversão consiste numa aposta na experimentação
do pensamento - um método não para ser aplicado, mas para ser
experimentado e assumido como atitude. Com isso não se abre mão do
rigor, mas esse é ressignificado. O rigor do caminho, sua precisão,
está mais próximo dos movimentos da vida ou da normatividade do vivo
(ÉSCOSSIA; KASTRUP; PASSOS, 2009, p.10-11).
Deste modo, a investigação é guiada pela prática, que dita as
leis e se constrói a partir das vivências empíricas da pesquisadora.
Portanto, a reflexão dos caminhos de criação deste estudo se imbricará na
organização da rede de interações ocorridas nos treinamentos meditativos
ministrados por mim, visando à observação dos percursos de experimentação
a partir do registro documental de diários de bordo (meus e dos artistas
envolvidos), fotos, vídeos e entrevistas. Neste sentido, a escrita da tese

8  Schechner (2012), afirma que os rituais transformam as normas da vida cotidiana e modificam os sujeitos. São liminares os ritos
de passagem que, em espaços especialmente demarcados, corroboram para o entendimento e para a afirmação de novas categorias
sociais ou identidades, como a elaboração e defesa de uma tese, por exemplo (POTY, 2015, passim). Por sua vez, as artes da cena
podem ser liminares (transformadoras) ou liminoides (que transportam o sujeito apenas por um determinado período de tempo) por
consistirem em processos estéticos ritualizados. Ao longo desta pesquisa veremos como as práticas meditativas podem, por meio
da evocação de um ritual, colaborar na construção de espaços sagrados para a cena e para o treinamento do ator.
29

está associada à crítica de processos criativos como metodologia, assim


como é desenvolvida por Cecília Salles (1998; 2006; 2008), que pensa o
estudo dos percursos de criação artística a partir do reconhecimento de
que estes se constituem de rede complexa de camadas sobrepostas, de modo
que não podem ser analisados de forma linear. Por meio da utilização dos
documentos de processo já elencados, serão analisados os caminhos de
construção do treinamento: identificando tendências, imagens geradoras,
acasos, desejos comunicativos, procedimentos criativos, momentos de
experimentação e escolhas artístico-pedagógicas.

P E N S A N D O

Aprendi com Pema Chödrön, outra mestre imaginária/antepassada, a


utilizar este expediente quando divago durante uma sessão de meditação. A
partir desta anotação mental não me angustio mais no decorrer da prática
ao qualificar os pensamentos e sentimentos como levianos ou virtuosos, e
com gentileza posso restabelecer a atenção para os ciclos respiratórios.
Deste modo, aprendo a ficar cada vez mais presente, pois “quando
dizemos pensando, estamos apontando para a natureza vazia dos
pensamentos, para a transparência dos pensamentos e emoções”
(CHÖDRÖN, 2014, p.50). Sem julgamento, retorno para o aqui e
agora. Acendo uma vela e um incenso, medito por mais alguns
minutos com os olhos abertos contemplando a floresta que salta
da minha varanda.
O tempo passa. O corpo pede movimento. Coloco a almofada
em um canto e desenrolo o tapete de yoga. Me sinto aérea,
sonhadora, e ainda tem tanta coisa para arrumar... Fico em
pé no meio do tapete para postura da árvore – vrkshásana
Vrkshásana. O pé
direito é apoiado inteiro no chão e a perna esquerda se dobra
como um triângulo na perna direita, enquanto as mãos em prece na
frente do peito e a respiração completa completam a estabilidade
da posição. Viajo em perguntas: Como construir um alicerce
com as próprias raízes? Como fazer brotar a semente que ficou
descuidada nos anos anteriores e me deixar atravessar por ela
como girassóis em direção ao sol? Como o cuidado comigo motiva
o cuidado com o outro proposto nesta tese?

A árvore está em toda parte ao mesmo tempo. A velha raiz


– na imaginação não existem raízes jovens – vai produzir
uma flor nova. A imaginação é uma árvore. Tem as virtudes
integrantes da árvore. É raiz e ramagem. Vive entre o céu
e a terra. Vive na terra e no vento. A árvore imaginada é
insensivelmente a árvore cosmológica, a árvore que resume
um universo, que faz um universo. Para muitos sonhadores,
a raiz é um eixo da profundidade. Ela nos remete a um
passado longínquo, ao passado da nossa raça (BACHELARD,
1993, p.230).

Aproveito o equilíbrio e fecho os olhos para apreciar a


30

Vrkshásana
31

paisagem interior. Momento de encarar as inquietudes vividas


durante a trajetória do doutoramento. A verdade é que fui para a
banca sentindo-me como sobrevivente de um tsunami. Novo projeto,
nova orientadora, um processo criativo interrompido forçosamente,
dificuldades de adaptação e afastamento na universidade em que
leciono, noites sem dormir, um acidente de carro, uma bengala,
trancamento de matrícula, recém nascidas paixões, uma nova crença
e a coragem acanhada de experiência que foi ficando cada vez mais
forte após a qualificação. Ao longo deste trajeto, um desassossego
já antigo e dissimulado se fez bastante presente: percebi-me cada
vez mais professora e pesquisadora e cada vez menos artista, vi que
estava me transformando em teórica de teatro, ao invés de fazedora
de teatro. Não sabia mais se tinha essa “coisa”: se era artista,
atriz ou performer, ou professora, ou mesmo provocadora/orientadora
de processos artísticos de outrem. Sabia apenas que, muitas vezes,
nos últimos anos, me senti incapaz de criar.

Este incômodo virou dor,


que virou apatia,
que virou medo.

Estava distante da criação e pouco afetada pelas


potências de vida, incapaz de atravessamentos.
Congelada. Paralisada. Transformada
Transformada em
em
pedra pelo olhar de Medusa.
Cheerbrant e Chevallier (2008)
apresentam o poder petrificante da Górgona
como representação da estagnação e da culpa
que se revelam a partir do conhecimento de si.
Neste contexto, esta tese é como um espelho que
aponta, reconhece e subverte a imagem distorcida
do eu - imerso na percepção utilitária do mundo e
pouco atento ao potencial das artes da cena como
práticas do despertar deste estado anestesiado
de existência.

Socorro não estou sentindo nada. Nem medo, nem


calor, nem fogo, não vai dar mais pra chorar,
nem para rir. Socorro alguma alma mesmo que penada me
empreste suas penas. Já não sinto amor, nem dor, já não
sinto nada. Socorro alguém me dê um coração, que esse já não
bate nem apanha, por favor, uma emoção pequena qualquer coisa...
Alice Ruiz
Socorro
32

Assim, a pesquisa é ritual e direciona o olhar para as dinâmi-


curativa, fruto de um processo de cas civilizatórias da sociedade
vida. Fonte de impulso. Percebi ocidental, pois nela experien-
que, desde o mestrado, preocu- ciamos outros ritmos de criação e
pei-me em demasia com o proje- de vida. As práticas meditativas
to artístico dos outros – amigos, geram rupturas no anulamento do
alunos, orientandos, mestres – e sujeito-artista, propondo o es-
pouco comigo mesma. No doutorado tabelecimento de pausas e respi-
não podia mais depender de mule- ros que transformam seus proces-
tas, cuidar mais uma vez somente sos criativos.
dos outros, portanto decidi pro-
É importante ressaltar que
por um projeto de cultivo de um eu
fazem parte desta crise convicções
adoentado, perdido. Ao invés de,
surgidas a partir de minhas refle-
como crítica, pensar e acompanhar
xões acadêmicas, que conside-
a arte de outrem como na
ro fundamentais. Acredi-
pesquisa anterior, me
to que as descobertas
propus a gerar proce-
do processo criativo
dimentos – expres-
são mais importan-
sos em gestos, pa-
tes que o produto
lavras e movimen-
a ser apresentado
tos na atuação e
e que, por isso
no treinamento.
mesmo, o lugar
Com o obje- central do tea-
tivo de refletir tro hoje talvez
acerca do trei- não seja mais o
namento do ar- lugar do espetá-
tista, ingressei culo – ou seja, da
no doutorado com apresentação de um
a pretensão de in- resultado –, e sim
vestigar e elaborar do caminho da inves-
caminhos para a experi- tigação e do cultivo de
mentação deste sistema, fo- si, da prática ritual perdi-
mentando as tensões entre arte da com a vida contemporânea. Por
e vida nos processos pedagógi- isso, não consigo (e nem quero) me
cos de formação do ator. Acredito encaixar no modelo comercial, em-
que, tanto na arte como na vida, presarial, e de constante adapta-
a lógica do processo deve subs- ção a editais que parte do merca-
tituir a lógica do produto. Neste do artístico assumiu nas últimas
sentido, a influência do yoga e da décadas para sua sobrevivência.
meditação nas práticas de trei- Logo, unida a artista esquecida,
namento que serão propostas aqui de mãos dadas, caminha a docente
não se encontra somente nas vi- – que instiga, busca e se propõe a
vências introspectivas e nas pos- investigar diferentes possibili-
turas antes do trabalho artísti- dades da prática reflexiva em arte
co propriamente dito. A vivência na academia.
33

Tadásana
34

Abro os olhos, sinto a luz


exterior e me preparo para a Saudação ao Sol
(Surya Namaskar), uma sequência de posturas do yoga
que data do início do século XX, quando Krishnamacharya –
mestre indiano considerado pai do yoga moderno – alia princípios
da ginástica britânica e das lutas nativas de sua região em sua
prática, investigando a fluidez de movimentos para unir ásanas
(posições) isolados em uma coreografia do yoga. Saraswati (2011)
declara que boa parte das tradições espirituais antigas incorporam
em seus ritos alguma forma de reverência ao sol e que, no Rig Veda
– tratado indiano datado entre 1.700 e 1.100 A.C –, ele é comparado
a um deus brilhante com o cabelo em chamas que observa as gerações
passarem e inspira inteligência: removendo fraquezas, curando doenças,
escravizando demônios e zelando por seus adoradores. Através de seus
raios, brilha tudo o que é bom para a humanidade.

P E N S A N D O

Inspiro profundamente, solto ar e com ele os conceitos, posiciono


os pés paralelos bem apoiados no chão e as mãos abertas ao lado do
corpo para a postura da montanha, Tadásana
tadásana. Este ásana representa o
começo e o fim de um ciclo, por ser a posição de referência para qual
regressamos após diversas sequências de movimento. Fecho os olhos,
expiro e mantenho a atenção no centro do peito, no Anahata chakra9,
que se abre para receber o calor do dia, contemplando o percurso até
aqui e unindo as mãos em Anjali Mudra10.

A primeira vez que pratiquei yoga foi em 2003, com dezessete


anos, em uma aula no curso técnico de interpretação que fazia antes
da universidade. Naquele momento, a Saudação ao Sol era apenas mais
um aquecimento do corpo para o ensaio de um espetáculo, divertido de
se fazer em grupo. Em 2005, quando entrei para a companhia de teatro
do professor René Piazentin, que havia trazido o yoga para as aulas,
percebi que a prática concentrava, aproximava a consciência de si
para o espaço da cena e para o coletivo, alongava e deixava o corpo
presente. Ainda assim, realizávamos a sequência de movimentos da

9  Chakras são centros de energia do corpo, conectados pela coluna vertebral e produtores de estados psicofísicos.
Os sete chakras principais são: Muladhara, Svadhishthana, Manipura, Anahata, Vishuddha, Ajna e Sahasrara. Veremos
ao longo dos capítulos que cada um está associado a uma parte do corpo e um mantra. O Anahata é o quarto chakra,
localizado no plexo cardíaco, responsável pelas emoções altruístas e pelo funcionamento dos pulmões e coração,
“fazendo circular oxigênio fresco e energia vital” (JOHARI, 2010, p.138). O termo deriva do sânscrito an (negação) e
ahan (golpear, atacar).
10  Mudras são gestos rituais utilizados nos cultos e danças indianas. Zimmer (2015), entende-os como uma complexa
linguagem das mãos (apesar de também poderem ser realizados em outras partes do corpo) que revelam diferentes estados
do ser na relação com o divino. O Anjali mudra é um gesto de conexão do ser com o próprio centro, harmonizando os dois
hemisférios do corpo. É também utilizado como cumprimento, agradecimento e manifestação de respeito em diversas
tradições espirituais.
35

Anjali Mudra
36

Saudação ao Sol e logo nos voltávamos para outras atividades, de modo


que o yoga não estimulava o ato criativo de forma direta.

O momento com os alongamentos


também serviu como uma forma de
integrar o grupo no início do dia de trabalho,
buscando não só o alongamento em si mas a concentração
e o aspecto coletivo. Exemplo disso é a Saudação ao Sol,
que após algum tempo de prática efetivamente não age
necessariamente como um alongamento no sentido estrito
do termo, mas lida com diversos outros fatores –
foco, percepção do grupo, equilíbrio, etc.
(PIAZENTIN, 2007, p. 82).

Em 2009, no meio do mestrado e assustada com a primeira grande


vivência da pesquisa acadêmica, descobri um grupo de Hatha Yoga na
universidade em que estudava e decidi participar. Na época, queria
apenas me tranquilizar um pouco e alongar o corpo moído de muitas
horas do dia encurvada na biblioteca. Comecei as aulas e logo veio
o encantamento: foi o momento de conhecer outras posturas, meditar,
descobrir técnicas de respiração – pranayamas – e sentir os benefícios
da prática frequente e prolongada. O mestrado acabou e continuei no
grupo até mudar de cidade em 2011, com algumas interrupções e retornos.
Quando comecei o trabalho como docente de interpretação na Universidade
do Estado do Amazonas, quase que intuitivamente trouxe o yoga para as
aulas. Em um primeiro momento, o foco estava somente nas posturas, visando
ao alongamento, à propriopercepção11 e a concentração dos estudantes
antes do trabalho de atuação propriamente dito. Aos poucos, comecei a
perceber que, muitas vezes, os movimentos do yoga vivenciados no início
das aulas reverberavam nas cenas produzidas: seja como numa brincadeira
nos exercícios de Commedia Dell’Arte sobre os animais, em um gesto na
partitura física de um artista, ou mesmo na sutileza energética presente
na concentração e execução de um programa performativo apresentado.
“Há tantos ásanas como espécies de animais. Há 84 milhões descritos
por Shiva”, diz o primeiro aforismo da lição sobre ásanas do Gheranda
Samhita (apud SOUTO, 2009, p.289) – tratado indiano de autor desconhecido,
datado de 1700 d.C. Muitas das posturas do yoga são baseadas em animais
(como leão, águia, gato, cobra, pombo, peixe, etc.) e, em paralelo, as
máscaras da Commedia Dell’Arte são zoomórficas: de modo que os atores
fundamentam suas partituras físicas a partir da inspiração nos animais
referidos na máscara de cada personagem. Algumas vezes, durante as aulas
de interpretação ministradas por mim, estes dois universos se cruzavam
nas improvisações dos estudantes, assim como a vivência meditativa
transparecia nas cenas apresentadas nas classes de atuação contemporânea.
Cabe lembrar que, na antiguidade ocidental, o artista esteve
abertamente vinculado aos processos espirituais: como dançarino,
cantor, portador de máscara e xamã da tribo, o trabalho do ator era

11  Termo cunhado por Charles Sherrington em 1906 e que se refere à capacidade de reconhecimento e percepção da
organização do próprio corpo e de seus movimentos, a partir do “conjunto dos comportamentos perceptivos que concorrem
para este sexto sentido que recebe o nome de cinestesia” (SUQUET, 2008, p.515-516). Consciência corporal.
37

sagrado e de contribuição inquestionável para a “elevação da alma”.


Deste modo, entendo que o yoga e a prática meditativa na formação do
artista podem suprir essa carência de rituais por meio do processo
criativo. Tais rituais pendem para a valorização do treinamento que, a
partir do estímulo do corpo e do inconsciente, traz impulsos e estados
artísticos que, como em transe, fomentam poderes de metamorfose por
meio da evocação do sagrado. Não o sagrado de um deus, ou uma divindade;
mas o valor cultural do sagrado, de ação contra o hábito.
Para Guénoun (2007), a crise do teatro está permeada por duas
dinâmicas aparentemente opostas: ao mesmo tempo em que as salas de
teatro estão vazias, grupos e mais grupos de pessoas estão interessadas
na prática cênica. Ou seja, quanto mais se amplia o desejo de se fazer
teatro, menos se assiste teatro, que sobrevive aos trancos e barrancos
do público gerado pelos diversos cursos livres, teatros amadores e
universidades que proliferam a cada momento12.
Nunca se fez tanto teatro: praticamos em escolas, hospitais,
prisões, igrejas, praças, empresas, retiros, etc. Então por que os
teatros estão vazios? Minha hipótese é que talvez ainda não tenhamos
entendido que a potência do teatro hoje está muitas vezes em sua prática
e não na organização de um espetáculo, isso acontece devido à tomada de
consciência de si em que o processo cênico é protagonista. Neste sentido,
fazer teatro hoje é uma forma de resistência que vai de encontro ao
assujeitamento do ser, característico da sociedade de consumo. Isso não
é novo no ocidente, desde Stanislavski a criação cênica moderna perpassa
por esta questão, principalmente a partir do treinamento do artista, que
é também meditativo. Veremos que o mestre russo estudou profundamente o
yoga, e que “seu sistema é recheado de elementos dessa prática a fim de
que os atores transcendessem suas limitações físicas e adentrassem em
estados de consciência mais elevados” (GOLDSCHMIDT, 2012).
É interessante lembrar que no oriente o treinamento do artista
está ligado a uma prática de si espiritual (podemos lembrar das danças
indianas Odissi e Kathakali, das danças-teatro tradicionais de Bali,
por exemplo). No Kathakali, o treinamento começa aos oito anos de idade
e pede dedicação exclusiva, pois o artista também é um sacerdote. Já
no ocidente, o treinamento artístico pode esvaziar as angústias da
ausência de rituais na sociedade – ou de rituais que ainda façam sentido
–, de modo que este desejo impulsiona o processo criativo.

Solto as mãos e elevo os braços ao lado do corpo,


na largura dos ombros e acima da cabeça, curvando a coluna
para trás trazendo para dentro de mim a energia solar,
engolindo-a durante a inspiração. A posição Hasta Uttanasana
ativa o tubo digestório a partir da abertura do vishuddha chakra
- responsável pela comunicação e localizado na garganta. O termo
deriva das palavras sânscritas visha (impureza) e shuddhi (purificar):
“têm-se o vishuddhi como capaz de purificar o próprio veneno” por

12 Vale ressaltar que o teatro comercial e de massa que tem seu público garantido, porém trabalha com pressupostos
distintos. Não é deste tipo de teatro que falamos aqui.
38

Hasta Uttanasana

Uttanásana
39

meio da atuação da glândula tireoide (MOTOYAMA, 2014, p.224). Através


dele, questões difíceis de serem organizadas saltam para fora, tal
como um problema de pesquisa, uma tendência artística, ou mesmo uma
imagem geradora que inspira e faz brotar um percurso poético.
Por meio do estímulo do ponto de energia do pescoço, recordo que
a docência em nível superior contribuiu para o direcionamento do meu
olhar para os procedimentos da formação do artista. No novo ambiente,
me deparei com um grupo de estudantes/atores ansiosos pela prática
cênica, mas ao mesmo tempo, contagiados pelo mercado e, na maioria
das vezes, pela vontade de trabalhar apenas em função de uma eventual
estreia, distantes de qualquer forma de treinamento. Já no primeiro
momento, pude perceber que a obrigatoriedade mercadológica e pedagógica
da apresentação cênica no final do semestre podia sufocar o processo de
investigação dos ensaios e dos artistas como sujeitos de suas criações.
Paralelamente, as temáticas das dramaturgias selecionadas para os
cursos estimulavam tanto à expressividade dos estudantes, quanto o diálogo
dos mesmos com as práticas meditativas. Adelice Souza (2015) recorda
que trabalhar artisticamente com o yoga não significa restringir-se a uma
criação voltada para motes ou peças hindus, e que as simbologias evocadas
pela prática podem conectar-se com narrativas provenientes de diferentes
culturas. No percurso desta pesquisa, trabalhei com textos de Federico
García Lorca (Assim que Passem Cinco Anos), Guy de Maupassant (A Morta),
August Strindberg (Rumo a Damasco), Heiner Müller (MedeaMaterial, Peça-
Coração, Sísifo, A Libertação de Prometeu, Hamlet-Machine, Heracles 2 ou
a Hidra, entre outros) e Eurípedes (Medéia e As Troianas) nas aulas de
interpretação e no projeto de extensão. A escolha destas obras fundamentou-
se na experiência de seleção dramatúrgica grotowskiana: para o encenador
polonês era importante investigar as bases arquetípicas do texto dramático,
buscando fontes criativas permeadas por situações-chave da humanidade,
que estimulassem um trampolim de descobertas para atores e público.
Contudo, como professora de interpretação na universidade, me intriga
perceber que, apesar de experimentar estados artísticos muito potentes
em sala de aula, a maioria dos estudantes não consegue transpô-los para
as apresentações públicas. Neste sentido, as inquietações vivenciadas
em minha prática docente reverberam neste percurso de pesquisa. Assim,
nos últimos anos, penso em estruturar estes experimentos pedagógicos
de forma mais sistemática.

Movimento e respiração estão em sincronia. Expiro e curvo
para frente a articulação do quadril, mantendo a coluna estirada até
colocar as mãos no chão, pressionando a testa nos joelhos – levemente
flexionados – para alongar a coluna lombar, preparando-a para a prática.
Enquanto me situo na postura de extensão intensa da coluna, uttanásana
Uttanásana,
entro em introspecção e relaxo para aliviar as tensões enquanto sinto o
sangue ir para a cabeça, oxigenando o cérebro. Contraindo a parte inferior
do abdômen contra as coxas, me concentro no ponto do chakra Svadhistana,
localizado na região sacral e ligado aos órgãos sexuais e aos rins,
responsável pelo inconsciente, pela criatividade e pela consciência de si –
o termo deriva das palavras sânscritas sva (si mesmo) e adhistana (morada).
Meditando na postura, agradeço os momentos de confusão necessários para
conseguir chegar até aqui. Em meio a tantos de aviões, conexões e caronas,
40

esta tese, que um dia pareceu impossível, parece que vai sair.

Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego, sou um


dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por
mês. Eu devia agradecer ao senhor por ter tido sucesso na
vida como artista, eu devia estar feliz porque consegui
comprar um corcel 73. Eu devia estar alegre e satisfeito por
morar em Ipanema depois de ter passado fome por dois anos
aqui na Cidade Maravilhosa. Ah! Eu devia estar sorrindo e
orgulhoso por ter finalmente vencido na vida mas eu acho isso
uma grande piada e um tanto quanto perigosa.
(...)

Desenrolo a coluna em blocos13 e posiciono a perna esquerda esticada


para trás até chegar em Ashwa Sanchalanasana
Sanchalanasana, ou postura equestre. Joelho
esquerdo no chão e perna direita à frente dobrada. Mãos no chão, braços
estendidos, cabeça para trás e retroflexão da coluna. Nesta postura de
enfrentamento e coragem, a imagem do cavaleiro traz consigo a lembrança
de como o yoga voltou para a minha vida como as rédeas em um cavalo
desgovernado, prestes a saltar em um precipício. Imersa em uma
crise pessoal como artista, zonza de inúmeras viagens entre
Manaus e São Paulo ocorridas para que eu pudesse frequentar
as aulas do doutorado e dar aulas em Manaus ao mesmo
tempo, sempre carregando malas, sem pouso seguro e
enlouquecendo, regressei para a prática após
alguns anos ausente tentando encontrar
um porto seguro durante a
tempestade.

(...)
Eu é que não me sento no trono de um apartamento, com a boca
escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar. Porque
longe das cercas embandeiradas que separam quintais, no cume calmo
do meu olho que vê assenta a sombra sonora de um disco voador.
Raul Seixas
Ouro de Tolo

Ao longo de dezoito meses, vivi a sensação de não pertencer a lugar


algum. Nesta fase, o yoga era a única atividade na qual me sentia habitando o
instante presente, pois quando estava em Manaus ministrando aulas passava boa
parte do tempo pensando no que estava perdendo das atividades das disciplinas
do Programa, e quando estava em Campinas assistindo as aulas me angustiava
com as obrigações docentes na outra ponta do país. Aos poucos, comecei a
perceber que a prática – distante de um arcabouço cultural estereotipado

13 Sejenovich (2016) recorda que nosso organismo está inteiramente conectado por meio das fáscias. Deste modo, se
imaginarmos nosso corpo na prática de yoga como um sistema de blocos sustentado por um eixo, assim como propôs Ida
Rolf, podemos alinhar nossa estrutura física de forma a interagir com a gravidade em todas as posturas.
41

pelo contexto ocidental e new age –, transforma o sujeito a partir de uma


espécie de descondicionamento psicofísico, e que se assemelha em demasia com
a noção de via negativa grotowskiana que pesquisamos nas artes da cena: com
gentileza, o cavalo selvagem foi sendo domado com o treino diário passo a
passo, até poder correr em liberdade sem estar confinado em um espaço fechado.

Não educamos um ator, em nosso teatro, ensinando-lhe alguma


coisa: tentamos eliminar a resistência de seu organismo a
este processo psíquico. O resultado é a eliminação do lapso
de tempo entre impulso interior e reação exterior, de modo
que o impulso se torna já uma reação exterior. Impulso e
ação são concomitantes: o corpo se desvanece, queima, e o
espectador assiste a uma série de impulsos visíveis. Nosso
caminho é uma via negativa, não uma coleção de técnicas, e
sim erradicação de bloqueios (GROTOWSKI, 1976, p.3).

Praticava yoga de seis a sete vezes na semana e, esporadicamente, mais


de uma vez ao dia. Este fato, somado às inúmeras viagens, me fez buscar uma
escola com flexibilidade de horários. Foi assim que descobri a modalidade
Bikram, na qual a prática é realizada em uma sala aquecida a quarenta graus:
o calor revigora, elimina toxinas e, principalmente, libera as tensões do
corpo facilitando o desenvolvimento das posturas. Este estilo de yoga foi
criado nos anos setenta pelo indiano Bikram Choudhury. A primeira vista,
a prática é interessante para iniciantes pois estes podem estabelecer o
próprio ritmo a cada ásana, que prepara o corpo para o seguinte a partir
de uma sequência fixa de vinte e seis movimentos, realizados duas vezes
cada. Assim, o corpo vai se familiarizando com as séries enquanto o sujeito
aprofunda sua relação com os exercícios desenvolvidos. Por outro lado,
com o tempo descobri que o calor muitas vezes faz com que ultrapassemos
os limites do nosso corpo, ocasionando lesões. Ademais, a temperatura do
ambiente pode causar tonturas e desmaios em alguns casos, e a prática
também trabalha com hiperextensões de joelhos e coluna lombar que podem
trazer problemas se não forem realizadas com cuidado.

Perna direita para


trás, pressão na palma das mãos,
abdômen contraído e o corpo inteiro em linha reta.
É hora da postura da prancha apoiada nos quatro membros ou
Chaturanga
Chaturanga Dandásana
Dandásana – para mim uma das posições mais difíceis, por exigir
resistência e força de vontade na permanência. Nela, todo o peso do corpo
é sustentado pelas mãos e pelos pés: na postura sinto o abdômen tremer, os
dedos fraquejarem, a cabeça pesar e a respiração faltar. É sempre
uma luta não desistir, ou não “dar o truque”, fingir
que estou fazendo. Seguir remando quando a
correnteza quase derruba o barco.

As práticas do yoga e da meditação proporcionam o desenvolvimento


de uma série de competências interessantes para a atuação do artista.
Eliade (2015), afirma que, muito antes do estudo da psicologia, ascetas
indianos refletiam acerca do inconsciente a partir da delimitação e
controle dos condicionamentos fisiológicos, culturais e religiosos. As
42

Ashwa Sanchalanásana

Chaturanga Dandásana
43

Astanga Namaskara

Bhujangásana
44

vivências yogues permeiam o desejo de supressão de hábitos, visando o


esforço psicofísico, o desapego e a “emancipação do relacionamento com
o mundo”, abolindo a dispersão e os automatismos.
Neste contexto, as provocações meditativas são, para o artista,
uma espécie de dado incompleto, um quebra-cabeça, um jogo que exige
dele o uso da imaginação transformadora. Incitado por sensações,
este usa o corpo mente para tornar concreto o estímulo, sempre de
forma pessoal e, consequentemente, única. A partir deste pensamento,
esta investigação prontifica-se à procura de estímulos para o artista
que desenvolvam sua criatividade, ativem suas fantasias por meio da
abertura do corpo mente e promovam o encontro de sua linguagem.

Finalmente posso relaxar os braços doloridos da prancha, mantendo


cotovelos ao lado do corpo e quadril erguido, colocando joelhos e peito
Astanga namaskara
no chão em astanga Namaskara, ou saudação de oito pontos. A postura é
uma homenagem, simbolizando o respeito e a entrega do yogue ao poder
do sol. Sinto o plexo solar ativo, também da posição anterior, por
meio do Manipura chakra, localizado na região do umbigo, cujo elemento
é o fogo que, para a medicina ayurvédica indiana, é responsável pela
digestão: “o fogo na região do umbigo ajuda na digestão e na absorção
do alimento, o que supre o corpo todo com a energia vital para a
sobrevivência” (JOHARI, 2010, p.131). O termo deriva das palavras
sânscritas mani (joia) e pura (morada). É o principal chakra ativado
na Saudação ao Sol, justamente por sua localização no centro da coluna.
A posição é um agradecimento e, durante sua prática, com ela canto
o mantra Om Pooshne Namah algumas vezes, que em sânscrito expressa uma
saudação ao fogo sagrado e a sua energia que dá força e desperta. Em
minha trajetória, parte deste despertar ocorreu devido ao encontro com
Julia Ziviani, minha orientadora. Estar com ela em uma disciplina de
Laboratório de Criação foi de grande importância para o “desvio de rota”
desta investigação. Naquele primeiro semestre de 2014, imersa nas práticas
de yoga, me deparei com a educação somática e suas diferentes técnicas e
abordagens pensadas para o desenvolvimento do processo de criação e também
para uma terapêutica do artista. O encantamento inicial com a vivência
trouxe também um incômodo: desde o princípio de minha formação como atriz
– antes mesmo da universidade, ainda no curso técnico – as práticas de
expressão e consciência corporal foram negligenciadas em detrimento da
atuação. Estas eram tidas como um preparo importante para o corpo do ator,
mas não propulsoras da criação de fato. Eram mero aquecimento, e não
fontes de um conhecimento de si sempre constante e dinâmico.
Percebi todavia que, mesmo na universidade em que leciono, as disciplinas
somáticas encontravam-se concentradas em uma carga horaria ínfima, apenas nos
dois primeiros semestres da formação, esmagadas em meio de muitos outros
cursos14. Consequentemente, salvo algumas exceções, os estudantes estavam
distantes da consciência de que o corpo artista é “uma confluência de dinâmicas
sutis mediante a alquimia das sensações internas” (SUQUET, 2008, passim).

14 No atual projeto pedagógico do Curso de Teatro da Universidade do Estado do Amazonas, essas falhas foram corrigidas e
os estudantes contam com cento e vinte e cento e oitenta horas (licenciatura e bacharelado, respectivamente) de práticas
corporais nos três primeiros semestres do curso.
45

Este encontro alegre na disciplina Laboratório de Criação me fez


perceber com mais clareza que meu corpo também não andava vibrátil –
termo empregado por Suely Rolnik (2006) ao pensar a obra da artista
Lygia Clark – pois não se apropriava das forças que o afetavam em suas
micropercepções. CRISE. ANGÚSTIA. O QUE FAÇO AGORA?

Para mim pessoalmente, o mais importante, não é a coisa


que eu proponho, isso seria um exercício para a vida. Se a
pessoa, depois de fazer essa série de coisas que eu dou,
se ela consegue viver de uma maneira mais livre, usar seu
corpo de uma forma mais sensual, se expressar melhor, amar
melhor, comer melhor, isso no fundo interessa muito mais
que um resultado (Lygia Clark in CLARK, 1973).

Será que não é essa crise da ausência, essa vontade de preenchimento


nunca satisfeita, que acalora o processo criativo? Mudando de orientação
tive a oportunidade de repensar a pesquisa de doutoramento a partir
de reflexões e procedimentos que já norteavam o projeto anterior, tais
como a investigação das aproximações entre arte e vida e das funções
do treinamento do artista, mas agora com base nas práticas de yoga.

Da saudação de oito pontos me arrasto para a postura da serpente,


bhujangásana. Mantendo a barriga para baixo, ergo o tronco levando a cabeça
Bhujangásana
para trás, dobrando levemente os cotovelos para apoiar as mãos ao lado
da pelve pressionando-as contra o chão. Iyengar (2016) afirma que, nesta
posição, devemos nos dispor como uma cobra prestes a atacar, contraindo
a região do períneo (ânus e uretra) em mulabandha15, distribuindo energia
pelo corpo e acalmando a mente. A postura ativa o Muladhara chakra – ou
chakra de raiz, pois nele estão localizadas as terminações mais baixas
e instintivas da coluna vertebral -, morada da Kundalini, centro das
forças espirituais e potenciais do corpo, representada por uma serpente
enrolada três vezes e adormecida na região do cóccix. Esta simboliza
Shakti, a manifestação feminina do deus Shiva.
A Kundalini é uma concentração energética. Para Alicia Souto (2009),
ela pode ser relacionada com os impulsos nervosos da coluna vertebral,
de modo que seu despertar é psicofísico: voltado para a ampliação da
consciência do corpo mente. O objetivo central da prática de hatha yoga
é o desenvolvimento da atenção para esses pontos de energia da coluna
que trazem consigo uma sabedoria expandida. Esta inteligência se atrela
ao sibilar desta cobra, pois em sua ascensão ela canta o som da criação
divina – nada –, é preciso estar vigilante e aberto para ouvi-lo.

O yogin deve fixar sua mente no som que escuta quando


seus ouvidos estão tapados com as mãos, até conseguir o
estado de perfeita estabilidade. (HATHA PRADIPIKA 4:82,
apud SOUTO, 2009, p.227).

15  Bandhas são contenções que ajudam a regular o fluxo de energia (prana) do corpo por meio da respiração. Mula significa raiz,
base ou fundação e “com a contração dessa região, a energia do abdômen inferior, cujo curso é descendente, é levado a subir para
unir-se ao prana vayu, que reside na região do peito” (Iyengar, 2016, p. 452). Veremos mais sobre os bandhas no terceiro capítulo.
46

Enquanto respiro lentamente, uma vibração me inspira e recordo do


triângulo invertido no centro da imagem do Muladhara chakra, conhecido
como tripura (três mundos). Este expressa os três modos da experiência
yogue: conhecer, fazer e sentir (JOHARI, 2010, p.108-109). Nesta
tese, esses caminhos se embaralharão durante a escrita, de modo que,
metodologicamente, conheço fazendo, sinto e reflito, ajo na sensação.
No meio do triângulo no qual se envolve a Kundalini, encontramos o
svayambhu linga – efígie associada ao falo e representação da energia
masculina do deus Shiva –, cujo nome é derivado do sânscrito “nascido
de si mesmo”. Assim, a imagem também se relaciona com a escolha da
primeira pessoa com a qual me comunico neste suporte acadêmico.
Jerzy Grotowski define sua pesquisa cênica como um “brincar de
Shiva”. Para o encenador, o deus hindu – fundador do yoga, patrono
do teatro e rei dos dançarinos, que em seu baile destrói as formas
para transformá-las –, simboliza a potência criativa do artista que
dança a realidade buscando contemplar a pluralidade de seus aspectos
ao invés de representá-la em uma ilusão. Impulsionado pela cadência
impermanente do universo, Shiva incita o processo criativo do teatro
de Grotowski através de seu “pulsar, movimento e ritmo“(GROTOWSKI,
2007, p.39).
Estar atento aos impulsos e sonoridades psicofísicas é objetivo
tanto do yoga quanto do teatro. A partir do momento em que o ator/
yogin se encontra em estado de alerta, suas pulsões e emoções reagem
naturalmente ao movimento do corpo. Essas práticas causam um efeito no
inconsciente, revelando um arcabouço de vivências e ativando memórias
ancestrais e arquetípicas que redesenham a expressão do ser no mundo.

P E N S A N D O

Expiro para sair da postura da serpente abaixando a cabeça e o


tronco, dobrando os cotovelos ao lado do corpo e afastando os pés um
do outro. Inspiro e expiro novamente colocando os dedos dos pés no
chão, erguendo os quadris e esticando os braços enquanto mantenho a
mesma disposição do ásana anterior com as mãos empurrando o solo. Aos
poucos, levo a cabeça em direção aos pés e tento apoiar os calcanhares
no chão.
A posição do cachorro olhando para baixo,
adho mukha Svanásana
Adho Mukha svanásana, traz introspecção e,
por trabalhar contra a força da gravidade,
sinto a vibração solar no Manipura
chakra sendo comprimido, os batimentos
cardíacos diminuírem e o sangue descer
para a cabeça, respiro na calmaria
e minha mente vagueia distraída e
me transporta para outro lugar,
totalmente distinto:
47

Adho Mukha Svanásana


48

Chuva, trânsito e música tocando sem cinto no banco traseiro. Meu


baixinho no rádio do carro enquanto companheiro vai conversar com
converso com meu companheiro que ela. Recordo de tirar fotos com
está ao volante esperando uma o celular, alguém me ensinou
senhora atravessar a faixa de isso, ou li na internet?
pedestres. Rio de alguma coisa, Confusão. Os carros buzinam,
observo pensativa o retrovisor a senhora que atravessava
ao meu lado e só então percebo desaparece entre as gotas que
um automóvel lá longe, caem em meu óculos embaçado.
em alta velocidade, se Ligo para meu pai do outro
aproximando cada vez mais lado do país e o indago
de nós. Lembro de sentir sobre o que fazer, nunca
os músculos enrijecerem, havia batido antes.
notar que o carro de trás
- Pai, estamos bem,
começava a desviar e murmurar
não se assusta, mas preciso
que não ia dar tempo.
perguntar uma coisa...
- Vai bater.
- Tem que fazer B.O, a
Com o impacto, meus moça não tem seguro, deixa
pés saem do chão, os quadris que eu falo com a sua mãe,
flutuam, a coluna arqueia para não liga para ela. Tem que
frente e volta para o banco ligar no seguro e avisar.
devido ao impulso do cinto e meus
Será que a gente consegue sair
joelhos colidem com toda força no
dali? Nosso carro subiu no meio fio
painel do veículo. Susto. Respiro.
e o celtinha da moça parece bastante
Não sinto nada e meu companheiro
destruído. Buzinas. Saindo da segunda
está bem. Abro a porta, grito e
delegacia sinto uma fisgada no meu
chuva, a moça do carro de trás
joelho direito. Durante à noite muita
machucou a barriga e tem crianças
dor. Hospital.

Uma pontada me desperta. O protesto do corpo me traz para


o momento presente. Contraio o pescoço olhando em direção ao umbigo
para me readequar à postura, tentando distribuir igualmente o peso
entre mãos e pés. Giro os ombros para fora, elevo os quadris e dobro
alternadamente os joelhos para aliviar a tensão. Respira. Vai passar...
.
.
.

Não vai.

Preciso reconhecer meus limites.

Inspiro e olho para a frente, na expiração coloco a perna esquerda entre


as mãos, encosto o joelho direito no tapete e inclino a cabeça para trás com a
coluna em retroflexão. Retorno para a postura equestre, ashwa sanchalanásana,
alongando o lado do corpo que faltava e iniciando o ciclo de fechamento da
Saudação ao Sol. A posição estimula o Ajna chakra – palavra derivada da raiz
sânscrita “comando” –, também conhecido popularmente como terceiro olho,
centro da intuição e da visão psicofísica. Segundo o tratado Hatha Pradipika,
49

de Svatmarama, a localização deste centro de força – situado no meio da testa


entre as sobrancelhas – encontra-se na ligação dos dois principais canais
de energia do corpo, Ida e Pingala que, em equilíbrio, acessam o estado de
samadhi, detentor da energia suprema e da consciência absoluta do universo.

Os dois olhos físicos


representam o Sol e a Lua; o terceiro olho,
o fogo. Esses são os três princípios básicos da
consciência manifesta. No sexto chakra, as nadis Ida
e Pingala terminam nas respectivas narinas. Os três
“rios” de Ida (corrente lunar), Pingala (corrente
solar) e Sushumna (corrente neutra, central)
encontram-se em Triveni, a sede principal da
consciência (JOHARI, 2010, pp.163-164).

A neutralidade do chakra é ideal para a meditação pois, através dele,


o yogue pode perceber-se divino e “toda dualidade cessa” (JOHARI, 2010,
passim). Buscando acessar esta consciência cósmica e evitar divagações,
inspiro e elevo o olhar para o alto sem me mover, observando fixamente o
ponto entre as sobrancelhas de modo estrábico. Mantendo a posição, fecho os
olhos e respiro lentamente enquanto murmuro o mantra AUM (OM) que, segundo
a tradição hindu, é a vibração sonora mais elevada, o som do universo.
Em meio à concentração e o contato do joelho machucado com o chão na
postura equestre, percebo o quanto minha prática meditativa mudou nos últimos
anos. Na busca de ver o lado bom da vida, o acidente foi um acaso criativo
bastante interessante para o percurso desta tese. Estava arrasada pois a
pesquisa que mal havia começado chegava ao fim com a batida – que revia em minha
mente a cada momento de frustração. Lembro-me como se fosse hoje do choro sem
fim na conversa via skype com minha orientadora que, tentando me tranquilizar
e me ajudar a encontrar um caminho análogo para a pesquisa, recomendou a ida
a um centro de meditação que havia conhecido na cidade em que se encontrava
nos Estados Unidos e que tinha sede em São Paulo, chamado Shambhala.
Um novo mundo se abriu: conheci uma outra manifestação espiritual do
Sol, o Sol do Grande Leste, metáfora utilizada por Chögyam Trungpa Rinpoche
– mestre e criador do budismo Shambhala – para representar o ideal de
gentileza e bondade desta tradição. Neste contexto, O Sol do Grande Leste
transcende a ideia de ou mau, apresentando-se como uma abertura para a
contemplação do brilho inato da existência: além do tempo, do espaço e dos
conceitos, ele estimula a gratidão por estarmos vivos e a percepção e confiança
no mundo sagrado que nos rodeia. Este símbolo incita o engajamento para a
construção de uma sociedade iluminada através da visão ritualística da vida
e do cultivo rigoroso da meditação. Com a prática podemos irradiar estas
qualidades do despertar com presença e atenção plenas que, na investigação
da prática do artista da cena, são atributos fundamentais.

Depois de milhões de anos brilhando


O Sol não diz para a Terra
- “Você me deve um favor”.
Imagine um amor como esse.
HAFIZ
50

Cassiano Sydow Quilici (2015) recorda que a conversação entre as artes


performativas ocidentais e o budismo tem trilhado um caminho relevante
para a história da arte contemporânea. O diálogo tem contribuído para a
elaboração e problematização de pedagogias da cena como o treinamento e a
formação do ator: em sala de ensaio, artistas se inspiram nos procedimentos
budistas e de outras tradições orientais para o caminho do autoconhecimento
para o qual estas se dirigem, dilatando-o para a comunicação artística com
o outro – atores e público – e para a vida.
O cultivo de si meditativo relaciona-se com a cultura agrária, de plantio,
semeadura e crescimento. Sakyong Mipham Rinpoche (2013), mestre e herdeiro
da linhagem Shambhala, declara que o emprego abrangente da palavra cultura
reflete as qualidades de paciência, sutileza e vigilância que a humanidade
necessita para desenvolver-se. Ao contrário da noção moderna do termo, que
separa os elementos considerados suaves da civilização dos elementos duros
ou mais efetivos para o seu progresso, cultura no contexto budista expressa
uma rede de valores e procedimentos de dignidade e confiança manifestas e o
reconhecimento da bondade em nós mesmos, no outro e na sociedade.
Quilici pensa esta noção de cultivo budista como “uma prática
multifacetada que visa florescer certas qualidades humanas latentes” (2015,
p.191). No treinamento do artista a experiência está baseada em uma ética
que reflete a atenção e a vigilância para as ações do cotidiano, bem como
a desconstrução dos padrões habituais do performer: este exercita a
lapidação da percepção no aprendizado disciplinado e preciso da técnica.
Neste sentido, Mipham (2013) afirma que uma das palavras tibetanas para
meditação é familiaridade, de modo que a vivência necessita de tempo e
dedicação para se revelar, deixar de ser semente e brotar da terra.
Estou ciente que, na pesquisa de campo desta tese, estamos ainda eu e
os artistas envolvidos arando o solo deste caminho. No percurso, o Sol que
falamos aqui pode ser também representado pelo fogo do deus Shiva: elemento
de morte e renascimento, que purifica e transforma o sujeito na superação
do processos de decomposição da carne. Portanto, evoco a metáfora da chama
buscando derreter com ela procedimentos criativos cristalizados para,
como uma fênix, que ressurgir artisticamente das cinzas.
O acidente automobilístico também despertou o interesse para a anatomia
vivencial e para a pedagogia do movimento. Sejenovich (2016) recorda que o
olhar vivencial para o yoga tem como objetivo o entendimento de nossa estrutura
física por meio da experiência. Segundo esta perspectiva, os desassossegos
da alma são também inquietudes físicas e, portanto, podemos reconhecer nossa
amnésia sensomotora e rememorar a história de nossos corpos e de seus padrões
habituais na prática de yoga, subvertendo-os com a vivência.
Depois de muito pranto e fisioterapia, abandonei a bengala e pude retomar
a prática, participando de duas formações profissionalizantes importantes
para a pesquisa: a primeira para ser professora de Hatha Yoga e a segunda
no Método Bertazzo de Reeducação do Movimento. Ambos os cursos me tornaram
mais atenta aos detalhes de cada gesto – meus e dos estudantes –, pois
tive que reaprender a fazê-los contornando a dor. Cabe lembrar que o corpo
se reeduca através da dor, porém acredito que existam outros caminhos
possíveis e, por isso, me abro para estas veredas no treinamento proposto.

P E N S A N D O
51

Abro os olhos e, partindo da postura anterior, exalo trazendo o


pé direito paralelo ao esquerdo, mantendo as mãos ao lado do corpo
voltando para uttanasana
Uttanasana, postura de extensão intensa da coluna. Aos
poucos, estico levemente os joelhos e, mantendo os braços e a cabeça
estendidos, alongo a coluna para frente enquanto inspiro. Na expiração,
aproximo a barriga das coxas e a testa dos joelhos, sem tirar as mãos
do chão.
Observo a respiração tranquila e sinto os batimentos cardíacos
diminuírem na permanência da posição. Camargo (2008), recorda que a
sensação de estabilidade proporcionada pela prática do yoga cria um
ambiente favorável à observação de si meditativa. Nas veredas desta
investigação, começaremos deste lugar de concentração no próximo capítulo:
Desacelerando
Desacelerando ou
ou uma
uma Ode ao Caminhar e às Borboletas.
Este aborda uma parte da pesquisa de campo com estudantes de interpretação
da Universidade do Estado do Amazonas e com os integrantes do projeto de
extensão Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento do Artista, voltada
principalmente para a meditação Zen caminhando – Kinhin –, que nesta tradição
é praticada entre as sessões de meditação sentada, mas que no treinamento
foi realizada de forma autônoma, inspirada nas vivências da Cia Club Noir e
da performer Marina Abramović. A partir do estímulo desta prática, reflito
acerca do que escolhi chamar de Dança Meditativa: procedimento voltado
para o movimento expressivo e de improvisação após a meditação caminhando,
que estimula a manifestação das sensações e pulsões dos artistas durante
o treinamento. Ainda, motivada pela vivência com Ivaldo Bertazzo, procuro
soluções para queixas dos estudantes na prática da meditação caminhando,
tais como falta de equilíbrio e coordenação motora, corpo pesado e desgaste
físico.
Também serão investigados preceitos do yoga clássico sistematizados
pelo sábio indiano Patañjali entre II a.C e II d.C, são eles: a contemplação
de um objeto – dharana – e dhyana, a meditação focada tanto na atenção plena
quanto na consciência panorâmica, influenciada pelo budismo Shambhala.
Este primeiro momento da experimentação surgiu da necessidade de refletir
sobre as dificuldades de imersão em um processo criativo na sociedade de
consumo, que a cada instante fomenta a percepção utilitária do sujeito.

Ao inspirar, retiro as mãos do chão e desenrolo


lentamente a coluna até trazer os braços acima da cabeça com as
palmas viradas para frente, arqueando as costas para trás. Assim que
retorno para a postura ascendente das mãos estendidas, Hasta Uttanasana ,
estico os joelhos, olho para cima alongando peito e abdômen e transfiro
o peso do corpo para os calcanhares projetando os quadris para frente,
reverenciando o sol novamente.

A Saudação ao Sol é a primeira série de posturas que ensino para


os estudantes, provavelmente por trazer consigo uma memória afetiva
pessoal e por fomentar a consciência de si para trabalho do artista:
ampliando o fluxo de energia do corpo – a partir da ativação dos chakras
ao flexionar a coluna vertebral para trás e para frente –, alongando e
fortalecendo os principais grupos musculares. Como uma dança, a sequência
52

traz a fluidez dos movimentos e da respiração podendo se repetir de forma


ininterrupta, elevando a circulação sanguínea e ativando o plexo solar,
morada do Manipura chakra. Este, segundo Hiroshi Motoyama (2014), exerce
importante papel na relação do ser com o mundo que o circunda, fomentando
a percepção, a concentração, a motivação e autoestima.
Acredito que o treinamento do artista da cena tenha funções parecidas.

Assim, ao longo do terceiro capítulo, Pro meu corpo ficar Odara16
tempo de
ou é tempo de limpar
limpar a casa
casa para
para poder
poder voar, discorro acerca
da experiência com ásanas e pranayamas na prática meditativa com os
estudantes de interpretação e com os participantes do projeto de extensão
da Universidade do Estado do Amazonas aqui proposta. Os primeiros são
posturas físicas que preparam e purificam o corpo para a vivência da cena
e os segundos são exercícios de controle respiratório que também purificam
trazendo concentração e calor para o corpo, e que podem ser expressivos.
A escrita permeará a contemplação de exercícios yogues pensados para a
construção de repertório de cênico/meditativo de estímulo do artista, a
partir das imagens e sensações inspiradoras (punctums) que estes evocam
no corpo mente do ator/performer ao longo do processo criativo.
Ao mesmo tempo, a partir das experiências de Constantin Stanislavski,
Jerzy Grotowski e Yoshi Oida, busco caminhos para a elaboração de ações
físicas a partir das posturas do yoga e das práticas respiratórias. Nesta
parte da tese, trago a reflexão sobre o corpo como documento do processo
de criação – alternando tensões entre fluxo e forma, contemplação e
movimento, concentração e impulso na vivência da cena. Ademais, reflito
acerca da elaboração do contêiner no ambiente de criação artística:
o princípio é pensado por Chögyam Trungpa para o estabelecimento de
lugares adequados para a meditação, e foi utilizado neste capítulo
principalmente a partir do exercício de limpeza do espaço de ensaio.
O conceito de treinamento do ator transcorre por ideias e procedimentos
bastante diversos ao longo da história recente do teatro. Contudo, é
importante observar que, no ocidente, esta noção têm suas origens em meados
do princípio do século XX, quando artistas como Ettiénne Decroux, Vsevolod
Meyerhold, Jacques Copeau e Constantin Stanislavski adaptam exercícios
militares e de combate para a sala de ensaio. Maria Brígida de Miranda
(2004), apoiada nos estudos foucaultianos, ressalta a necessidade de
problematização do termo, no sentido da compreensão de que os discursos
acerca das metodologias de trabalho do artista da cena na contemporaneidade
estão permeados de ideologias de controle, adestramento e normatização dos
corpos. Para a autora, é preciso desnaturalizar a lógica de produtividade
e docilidade psicofísica por detrás do treinamento, buscando desenvolver
práticas artísticas para além de seu arcabouço disciplinar e de eficiência.

Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho


sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos,
de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra
em uma maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e
o recompõe. Uma “anatomia política” que é também igualmente
uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se

16  Referência à música de Caetano Veloso. A palavra Odara é derivada do sânscrito “paz, tranquilidade” e, ao mesmo tempo,
no idioma africano Yorubá significa “tudo o que é bom”.
53

pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente


para que façam o que se quer, mas que operem como se quer, com
as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina.
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em
termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças
(em termos políticos de obediência) (FOUCAULT, 2003, p. 119).

Ao mesmo tempo, para Miranda, não se trata de condenar estas


experiências cênicas em tom de recusa, mas sim de reinventá-las a partir
de “estruturas que facilitam uma divisão mais igualitária de poder,
que privilegiam a subversão de hierarquias e promovem uma circulação
de poder” (MIRANDA, 2003, p.111). Portanto, escolho empregar esta
terminologia na presente investigação devido às suas possibilidades de
disseminação do estudo e de encontro com os meus pares dentro e fora da
academia, compreendendo o treinamento mais próximo a um cuidado de si
(FOUCAULT, 2006) do que a um vigiar e punir atrelado à carga simbólica
autoritária do militarismo: ocupar-se de si corresponde, neste sistema
de pensamento, a um conjunto de procedimentos que nos unem à noção do
sagrado a partir do questionamento estético e filosófico da existência.
Neste sentido, acredito que faz parte do processo de cultivo do
artista da cena a subversão, a apropriação e o transbordamento de
conceitos e epistemologias como forma de resistência. Somos filhos
de alguém (GROTOWSKI, 2011) e percebo que os antepassados artísti-
cos que constituíram as bases desta pesquisa também se apropriaram –
cada qual à sua maneira e oscilando entre os meandros de subversão e
respeito –, dos modelos de treinamento que lhes foram inspiradores.
Assim, nos interessa aqui a reflexão e o questionamento acerca dos
conceitos de espontaneidade e estrutura no treinamento do artista
da cena.
O binômio é apontado por Motta Lima (2005) como nuclear na
prática artística de Grotowski em diferentes fases de sua trajetória.
Para a pesquisadora, é no embate entre organicidade e composição que
acontece o equilíbrio do ofício do ator/performer. Na ação física a
estruturação reforça os processos interiores do artista – que tendem
a arrefecer com o tempo –, sendo preenchida por suas motivações.
Tal como na memória involuntária da obra de Marcel Proust, as ações
demarcadas “abrem as portas das associações e das lembranças do
ator, que reage relacionando-se intensamente com o espaço e com seus
companheiros de cena” (LOPES, 2010, p. 139).

Inspira. Hora de celebrar o fim deste ciclo. Expiro unindo as


mãos, levando-as para o centro do peito e alongo a coluna para cima
removendo o excesso de curvatura das regiões lombar e torácica.
Fecho os olhos e percebo os pés paralelos apoiados no chão, sentindo
calcâneo e metatarsos ativos e a linha central de gravidade na base
da coluna. Observo o equilíbrio e a distribuição do meu peso na
54

posição, e respiro calmamente abrindo os braços ao lado do corpo,


voltando para Tadásana
Tadásana , postura da montanha.
Cheguei. Consegui. Noto a frequência dos batimentos cardíacos,
a respiração e as sensações de calor, tranquilidade e força provo-
cadas pela prática. Agora podemos recomeçar. Camargo ressalta que a
sequência “libera endorfinas, oxigena todo o corpo e tonifica o sis-
tema nervoso, gerando uma sensação de bem estar e paz interior, fa-
cilitando o domínio das emoções” (2008, p.50-51). Estas impressões,
somadas a auto observação meditativa suscitada pela experiência, me
fazem recomeçar tudo outra vez como uma dança, progredindo de forma
gradual o número de ciclos de repetição da série e brincando com
ritmos de fluidez e permanência nas posturas.

Tempo de começar de novo.

O quarto capítulo dessa tese, Um salto para a apreciação


apreciação
do eclipse ou isso não é uma despedida , traz as considerações
em processo acerca do percurso de elaboração desta tese-criação. O
relato busca diluir as crises artísticas elencadas neste capítulo
introdutório, relacionando-as com as potencialidades criativas e
de resistência do corpo mente desencadeadas pelo cultivo de si
meditativo. Além disso, trago a reflexão acerca do procedimento de
reverência no treinamento do artista da cena e discorro brevemente
sobre as experiências do Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento
do Artista em ambientes de natureza. Embrionária, esta vivência
ainda precisa de tempo para florescer, de modo que apontarei este e
outros caminhos possíveis para a continuidade do estudo.
O capítulo Epílogo: procedimentos-girassóis para
Epílogo: cinco procedimentos-girassóis
a defesa de uma tese-criação ou sobre como os fins de ciclo
me comovem traz o desfecho da investigação a partir do relato do
processo de criação de um programa performativo com o formato de
demonstração de trabalho/desmontagem cênica para a apresentação
desta pesquisa para a banca. Neste sentido, percebo que o trajeto
de criação do treinamento aqui proposto só foi possível devido a
um fluxo contínuo de metamorfose das minhas limitações físicas e
inseguranças em poesia. Portanto, orientada pela professora Julia
Ziviani, técnica, processo e poética integram-se em uma tríade à
pesquisa: yoga e meditação são técnicas reinventadas nas veredas
percorridas ao longo do processo criativo da tese e, juntas,
transformam-se em uma poética, no encontro da pesquisadora com
sua linguagem.
55

Cuidar de si. Rever o próprio corpo. Rever a técnica no próprio corpo.


Se não dói, eu fecho os olhos até que ele grita. A dor é autoritária,
me faz ouvir. Eu não consigo por quê? O que está acontecendo?
Quais as técnicas que utilizei? Com que suportes trabalhei? Posso revê-los?
Procedimentos de natureza geral vão ganhando colorido no processo
criativo específico.
Não consigo determinar pontos iniciais ou finais, mas acho que me
aproximei de algum lugar.
Abandonei a terceira perna?
Será?
Ou ela vai e vem, e é preciso estar atenta e forte?

Abro os olhos, contemplo a paisagem, me sinto energizada e viva.


Agradeço ao Sol pela vivência. Tiro as coisas do meio da sala – tapete,
velas, cinto -, tomo impulso e começo a caminhar pelo espaço.
Hora de de s a c e l e r a r .
56
57

ou

uma Ode ao Caminhar e às Borboletas

O que quer que alguém esteja tentando aprender, é necessário


que tenha a experiência de modo direto, em vez de extraí-
la de livros ou mestres, ou apenas com a adaptação a um
padrão já estabelecido. Foi isso que ele descobriu e,
nesse sentido, Buddha foi um grande revolucionário na sua
maneira de pensar. Ele negou até mesmo a existência de
Brahma, ou Deus, o Criador do mundo. Ele não pode aceitar
nada que não tivesse primeiro descoberto por si mesmo
(TRUNGPA, 1995, p.14-15).

Calcanhar, dedinho, dedão...


calcanhar, dedinho, dedão...
calcanhar, dedinho, dedão.

Como um mantra, relembro a organização da marcha para tentar


caminhar. Como é que eu esqueci? Será que algum dia eu soube disso, ou
simplesmente saí andando por aí sem prestar atenção? Falta coragem: os
pés falham sem força – ou colocam força demais no chão –, os joelhos
tremem e a respiração acelera enquanto olho para minha bengala no
canto do consultório com saudade. Os três metros de corredor daquela
clínica pareciam o percurso de uma maratona.
- Vai! Não pensa muito. Me estimula à fisioterapeuta que espera na
linha de chegada.
- Não sei se eu já consigo.
- Anda!
Percebo que, a princípio, a gente se desloca no espaço com a
simplicidade aprendida na primeira infância, mas vamos adquirindo
vícios ao longo do caminho. Em apenas três meses, mancar com a perna
direita e colocar todo o peso do corpo na perna esquerda e na bengala
já havia se transformado em algo mecânico, de modo que todo o restante
do registro dos meus então vinte nove anos de vida parecia distante.
Como desenvolver procedimentos para dissolver estes padrões habituais?
Bertazzo (2015) recorda que a locomoção humana se orienta a partir
58

do olhar, que se volta para a linha do horizonte. Ao mesmo tempo,


em uma contínua batalha anti-gravitária, caminhar depende de nossa
organização para ficar em pé e vice-versa. Ora, naquele momento, só
conseguia olhar para o chão com medo de cair e sempre que possível
corria para apoiar-me na cadeira mais próxima para não sentir o peso
do corpo sobre os joelhos. Comecei a rir comigo mesma, pois conseguir
andar do jeito que a fisioterapeuta pedia levaria uma eternidade.
- Pronto! Viu que não foi tão difícil? Agora só falta abaixar as
mãos para os lados do corpo para não parecer uma equilibrista, olhar
para cima, flexionar levemente os joelhos e ganhar velocidade. De novo.

E de novo,
de novo
de novo
(...)

É curioso pensar que, ao longo de todo o segundo semestre do ano de


dois mil e quinze, trabalhei exaustivamente a marcha com os estudantes17
de interpretação da Universidade do Estado do Amazonas e que, poucos
meses depois, me vi batalhando com o equilíbrio, com a gravidade e com
os pontos de pressão do pé no chão da mesma forma que eles. Em sala de
aula, nos dedicamos ao andar a partir dos estímulos de um exercício
chamado Desaceleração, que conheci em dois mil e onze nos ensaios
com a atriz Juliana Galdino na Companhia Club Noir18. Na prática
do grupo, o exercício se dava da seguinte maneira: ao chegarmos
no teatro, tirávamos os sapatos e começávamos a caminhar bem
devagar pelo tablado em silêncio, concentrados na ação, atentos
à música de fundo, que geralmente era calma e orquestrada,
e ao espaço; a vivência durava em média vinte minutos –
podendo tanto se estender por mais tempo nos ensaios, como
ser de menor duração em dias de apresentação –, visava
à concentração e o estabelecimento de um estado de
prontidão distinto do habitual, e depois dela
partíamos para o processo de criação do
espetáculo propriamente dito.

17 No período entre agosto e dezembro de 2015, elaborei, como parte do trabalho de campo da presente investigação, as
bases do treinamento meditativo desta tese a partir das práticas da disciplina Interpretação V do Curso de Bacharelado
em Teatro da Universidade do Estado do Amazonas. A disciplina contempla em sua ementa o teatro performativo e o treina-
mento do ator/ performer. Deste modo, tive liberdade para exercitar com o coletivo a prática meditativa como preparação
do performer, buscando estabelecer brechas em nossos padrões habituais e fissuras no sistema de busca de conforto pes-
soal que permeia parte das vivências de nossa cultura. Ao longo deste capítulo, privilegiarei a reflexão acerca de algumas
práticas do treinamento, como a meditação sentada e caminhando. Os ensaios ocorreram duas vezes por semana (um dia
normal de aula e um dia extra de treinamento), quatro horas por dia, com doze estudantes. De 2015 até os dias de hoje, as
práticas de meditação sentada e caminhando fazem parte das aulas de interpretação que ministro e das experiências do
projeto de extensão Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento do Artista, coordenado por mim.
18  Grupo de teatro sediado na cidade de São Paulo, fundado por Juliana Galdino e Roberto Alvim. A atriz descreve as
práticas da companhia a partir dos procedimentos de imobilidade do ator, valorização das palavras e escuridão da cena,
“trazendo à tona o inconsciente dos textos” (GALDINO, 2010, p. 117).
59

Lívia Piccolo, pesquisadora do processo criativo da companhia,


revela que a intenção do exercício está na percepção dos impulsos
e tensões do artista que, na técnica, expurga vícios e excessos de
atuação dando adeus à ansiedade e às sensações cotidianas de seu corpo.
No percurso da caminhada, o ator transforma sua qualidade de presença
conectando-se com o ambiente e consigo mesmo e, a partir deste estado
desacelerado, está livre para dizer o texto desencobrindo e descascando
suas palavras, pois cada uma delas “é uma usina de energia e de sensações
físicas, concretas” (PICCOLO, 2013, p.89). Deste modo, na prática do
grupo, a Desaceleração dá vazão para a descoberta das ressonâncias
do texto dramático no corpo do artista.
Apesar de na época não entender muito bem a importância do
exercício – vivenciando-o apenas como um aquecimento interessante
para a prática cênica –, minha primeira experiência com a
Desaceleração constituiu uma imagem geradora potente para o
desenrolar desta tese. Alguns anos depois, em março de dois
mil e quinze, tive a oportunidade de vivenciar outra forma
do exercício, chamada Slow Walking (Caminhada Lenta). Esta
é parte integrante do Método Abramović, desenvolvido pela
performer sérvia Marina Abramović, e que esteve presente
na exposição Terra Comunal – Marina Abramović + MAI em
cartaz entre março e maio daquele ano no Sesc Pompeia/
SP. O Método é voltado para os fruidores das performances
da artista que, a partir de uma série de atividades, se
preparam para a apreciação das obras e também vivem a
experiência performativa, em um processo de desconexão
das distrações cotidianas.

A Caminhada Lenta é um exercício de encontrar a


imobilidade através do movimento. Enquanto
caminha lentamente, você não apenas abranda
o corpo, a respiração e os pensamentos, mas
todo o espaço ao seu redor. Os participantes
atentam para cada ação de dar um passo:
erguer o pé, movê-lo adiante, pousá-lo no
chão e transferir o peso. Neste exercício,
não há linha de chegada. Os participantes
ficam à vontade para fazer uma ação que
realizamos todo do dia sem pensar em
um destino (PEISINGER in REBOUÇAS;
VOLZ, 2016, p. 137).

Na Caminhada Lenta, os procedimentos são distintos da Desaceleração


do Club Noir. No Método, antes de começar, guardamos nossos pertences
e, somente se quisermos, tiramos os sapatos e outros acessórios; em
seguida praticamos por trinta minutos uma série de exercícios chamada
Aquecimento dos Sentidos, conduzida através de um vídeo por Abramović e
Lynsey Peisinger, e que estimula a visão, a audição, o olfato, o paladar,
o tato e a respiração por meio de alongamentos, pranayamas e kriyas19;

19  Kriyas são técnicas complementares de purificação do corpo no Hatha Yoga, responsáveis por limpar seus resíduos e
trazer energia para o praticante. São divididas a partir do modo de limpeza – que pode ser por ar, água, fricção ou movimen-
60

depois recebemos fones isoladores de som e, em silêncio, guiados por arte-


educadores treinados pela artista, somos divididos em quatro grupos e
realizamos quatro tipos de atividades a partir das posturas fundamentais da
meditação budista, cada uma com trinta minutos e em ordens diferentes
para cada coletivo: em três delas (sentar, deitar e ficar em pé) nos
relacionamos com esculturas criadas pela artista chamadas Objetos
Transitórios20 e na restante caminhamos muito lentamente em linha
reta, prestando atenção nos movimentos necessários para a marcha e
em nossas reações ao exercício.
Com o tempo e em meio a estas práticas introspectivas,
o caminhar se transforma em vivência meditativa. Peisinger
(2016) relata que a experiência é a sistematização e a síntese
dos quarenta anos da carreira artística de Abramović, e que
a simplicidade das ações propostas fomenta trocas de energia
entre o público e o encontro com o silêncio e
com o momento presente. Cabe lembrar que viver o
instante presente é um conceito fundamental, tanto
na performance, quanto nas tradições espirituais
orientais. A artista sérvia, segundo Wescott
(2015, p. 124), tem “fome por esoterismo” e,
em sua trajetória, voltou-se para o misticismo
budista, taoísta e hindu, de forma que suas
ações performativas são influenciadas por estes
universos.
Ademais, desde 1979, a artista organiza um workshop chamado
Cleaning the House – Limpando a Casa - voltado para performers
e estudantes de performance com duração de cinco a sete dias em
meio à natureza. Neste, exercícios realizados em desaceleração –
como caminhar, sentar, beber água, se vestir e escrever o próprio
nome lentamente – são utilizados para a experimentação de novas
formas de relação com o tempo e para treinar o autocontrole e a
autopercepção dos artistas envolvidos. A caminhada é realizada
de diversas formas em exercícios como pisar na terra e sentir
o corpo, andar pela natureza por várias horas de olhos fechados
ou abertos, caminhar em círculos, de costas enxergando através
de um espelho, entre outras variações.
Na vivência da oficina, o performer treina formatos
intensivos da Caminhada Lenta do Método Abramović – pensada
para espectadores de suas obras, portanto mais suave – andando
por quatro, oito, ou doze horas. Mary Richards (2010) declara
que essas práticas são como rituais de purificação e preparação
do corpo mente do artista que, neste percurso, se abre para os
fluxos de energia que fazem parte do processo criativo. Deste

to – e pela região do corpo a ser higienizada: craneonasofaríngea, gastroesofágica ou ano-retointestinal. Um dos kriyas
utilizados por Abramovic no Aquecimento dos Sentidos é o trátaka, ou yoga dos olhos. No exercício movemos e piscamos
os olhos em várias direções até produzir sensações de leveza e relaxamento. Cabe ressaltar que também existe uma
tradição hindu chamada Kriya Yoga, difundida por Lahiri Mahasaya na Índia e por Paramahansa Yogananda no ocidente,
porém não é desta escola que falamos aqui.
20 Os Objetos Transitórios são camas, cadeiras e pedestais feitos de madeira e cristais escolhidos pela artista de acordo
com suas qualidades energéticas, visando à interação do público a partir de três posturas do corpo: em pé, sentado e deitado.
61

modo, as práticas de lentidão do workshop baseiam-se na premissa


de transformação de experiências aparentemente ordinárias em
extraordinárias, exercitando a atenção para o corpo em movimento
e sua relação com o espaço, muitas vezes alcançando um estado
meditativo: a desaceleração é psicofísica, nosso ritmo interno
também diminui.
Caminhar por longos períodos de tempo exercita potenciais de
repetição que nos retiram da vida cotidiana. Logo, andar não tem
mais um propósito utilitário nesta prática, convertendo-se em uma
cerimônia de ação contra o hábito. Na performance The Lovers: The
Great Wall Walk – Os Amantes: A Caminhada pela Grande Muralha –, de
1988, Abramović caminha dois mil quilômetros ao longo de três meses
de travessia pela Grande Muralha da China para encontrar seu então
parceiro criativo e de vida Ulay, que vinha do sentido oposto, e
terminar a relação de doze anos. Mary Richards recorda ainda que, no
trajeto, “a dor, a exaustão e o ato repetitivo de caminhar eram formas
de deixar o corpo para trás para que um novo estado de consciência
pudesse ser alcançado” (RICHARDS, 2010, p.99). Nas ações da artista
sérvia, atingir e superar os limites físicos funciona como um portal
para a criatividade.

Minha terceira experiência com o exercício ocorreu poucos meses


depois, no Centro Shambhala de Meditação São Paulo, por meio da
prática da meditação caminhando. Nesta vivência, as indicações variam
de acordo com o tipo de meditação desejada e com os níveis dos
praticantes em seus respectivos tempos de aprendizado. De início,
pude conhecer a forma considerada mais básica, a meditação Kinhin:
a prática é realizada no zen budismo entre as sessões de Zazen –
meditação sentada – e se caracteriza pelo alinhamento de ritmos entre
caminhada e respiração, sendo considerada uma forma de meditação
dinâmica. Deshimaru (2002) ressalta que o exercício se desenvolve
a partir de uma atitude de dignidade e nobreza do praticante, que
busca um apoio firme e silencioso nos pés, que influencia tanto em
seu equilíbrio e tranquilidade no espaço de prática, quanto em suas
vivências cotidianas.
O budismo Shambhala bebe da tradição japonesa em muitos de seus
aspectos, sobretudo devido à amizade de Chögyam Trungpa Rinpoche
com o mestre zen Shunryu Suzuki Roshi. Deste modo, tanto a forma
básica de meditação – primeiro sentada, depois caminhando – quanto
a disposição e cerimoniais das salas de meditação são abertamente
influenciados pelo zen budismo. Práticas como caligrafia, cerimônia do
chá (Chado), arranjos de flores (Ikebana), poesia (Haiku), bem como
meditação caminhando (Kinhin), o arquerismo (Kyudo) e a prática de
refeição contemplativa (Oryoki) zen também fazem parte do aprendizado.

Um mestre Zen disse em certa ocasião: “Caminhar uma milha


para o leste é caminhar uma milha para o oeste”. Isso é
liberdade vital. É essa liberdade perfeita que temos de
alcançar (SUZUKI, 2010, p.32).
62

Shunryu Suzuki reflete na passagem acima sobre a natureza da


prática zen: nela, a liberdade está em encontrar serenidade em tudo
que realizamos, não somente na inatividade do Zazen. Com o treinamento
prosperamos pouco a pouco neste intento, aproximando-nos dele pela
repetição constante das técnicas e pela despreocupação com uma linha
de chegada inexistente. Podemos traçar um paralelo deste pensamento
com a prática da meditação caminhando, que também não tem começo nem
fim, ou mesmo algum alvo a ser atingido – apranihita: ausência de meta
–, caminhamos pelo prazer de caminhar e “simplesmente andamos devagar,
de forma descontraída, mantendo um leve sorriso nos lábios”(HANH,
1985, p.09).
No aprendizado Shambhala a instrução básica para a vivência
de Kinhin é a seguinte: após meditar por vinte minutos sentados
com as pernas cruzadas e os olhos abertos, língua encostada no
palato, dentes separados e a atenção na respiração, nos levantamos
e caminhamos em círculo por dez minutos em velocidade um pouco mais
lenta que a rotineira, utilizando como pontos de referência os mesmos
procedimentos que empregamos sentados, porém adicionando a
atenção para a transferência de peso dos pés no chão na dinâmica
da marcha. Completam a postura de meditação as
mãos que se fecham na altura do plexo cardíaco,
mão direita envolvendo a esquerda, protegendo
o guerreiro21 como se estivéssemos segurando uma
espada desembainhada imaginária durante a
prática.
A princípio esta soma de indicações
requer atenção para ser assimilada, entretanto o
que importa é estabilizar o corpo mente no momento presente
e poder experienciar o agora, o instante. Repousamos na calma e
deixamos nosso fluxo de pensamentos seguir como um rio, observando-o
de longe e sem prender a atenção nele. Caminhamos sem esforço ou
julgamento, experimentando a sensação do sagrado em nossas ações.
Sakyong Mípham, porém, declara que o início é duro e que, muitas vezes,
somos escravos dos nossos pensamentos e dos nossos estados emocionais,
de modo que a meditação gera tédio, preguiça e até mesmo ansiedade e
desespero. Neste contexto, o mestre recorda o provérbio tibetano que
enuncia que levar budismo para uma nova cultura é como “cultivar uma
flor sobre uma rocha” (MÍPHAM, 2003, p.27): portanto, o treinamento
meditativo, tal como a flor, necessita de condições adequadas para
criar raízes e florescer.
Para Thich Nhat Hanh – monge vietnamita fundador do movimento
Budismo Engajado –, a meditação caminhando se diferencia de nossas
caminhadas rotineiras de deslocamento pois, em sua prática, cada passo
é como uma reverência. Nos aterramos e, sem pressa, deixamos de lado
ansiedades e preocupações, treinando o prazer de andar experienciando

21 Nas tradições Mahayana do budismo, são guerreiros bodhisattvas aqueles que “cultivam a compaixão e a sabedoria
e têm a valentia de viver com o coração aberto” (MÍPHAM, 2003, p.32) adentrando o coração de Buda – bodhichitta – por
meio da meditação, a partir da qual acessam o sentimento de compaixão para com os outros. Em Shambhala, o termo
guerreiro é proveniente da palavra tibetana pawo, que significa a qualidade de quem é corajoso, daquele não tem medo de
sair de sua zona de conforto.
63

o momento presente, sem nos preocupar em chegar a lugar algum. Ao


longo da prática, compreendemos que “corpo e mente são dois aspectos
da mesma realidade” (2000, passim), de modo que, para o mestre, apesar
da estabilidade da meditação sentada, o movimento faz desta forma de
meditação a mais interessante para a união psicofísica do sujeito dentre
as posturas descritas por Buda: em pé, sentada, deitada ou caminhando.

Paz é todo passo.


O sol vermelho e brilhante é meu coração.
Toda flor sorri comigo.
Como e verde e fresco tudo que cresce.
Como é frio o vento que sopra.
Paz é todo passo.
Ele transforma em alegria o caminho interminável.
(HANH, 2000, p.79).

No Cankama Sutta – aforismo sobre a meditação caminhando do tratado


Anguttara Nikaya (29 A.C), parte integrante dos Textos Canônicos Pāli
da tradição budista Theravada22 –, andar com atenção e reverência
traz cinco benefícios: capacidade de percorrer longas distâncias,
ampliação do vigor, prevenção de doenças, boa digestão e concentração
duradoura. Ajahn Nyanadhammo (2013), mestre Theravada da Tradição
Floresta, interpreta o sutra Cankama destacando que a resistência era
fundamental na época de Buda que, para transmitir seus ensinamentos,
teve que atravessar países a pé. Ademais, o vigor trazido pelo movimento
da prática sobrepuja a sonolência da meditação sentada, de modo que
seus estímulos sensoriais e o comprometimento físico fomentam o foco
no instante presente.
Desde a minha primeira experiência em Shambhala pude perceber que
a prática de Kinhin me atraía mais do que a de Zazen. Naquele momento,
sentia o acolhimento dos passos do grupo na sala de meditação, bem como
os cheiros, texturas, sons e formas do ambiente: era como se meu corpo
se inebriasse com a técnica, de modo que regressava para a meditação
sentada irritada com a pressão da postura nos joelhos e sem vontade, o
que foi se modificando com o tempo. Ainda influenciada pela vivência da
Caminhada Lenta de Abramović, compreendi que a qualidade de presença
desenvolvida na meditação caminhando seria de grande valia para o
trabalho do ator/performer.
Vejo que estas práticas contribuíram para os procedimentos que
propus aos estudantes no curso ministrado na universidade. Além disso,
alguns dias antes de iniciar o treinamento com os estudantes, tive
a oportunidade de participar da obra Caminhada Silenciosa, produzida

22  Após a morte do Buda Siddharta Gautama em 483 A.C, as diferenças na interpretação de seus ensinamentos deram
origem a tradições diversas: a escola Theravada ou Hinayana (veículo estreito) é a mais antiga delas, datada de 330 A.C,
considerada a “doutrina dos anciãos” e tem ênfase na disciplina meditativa do praticante e nos ensinamentos canônicos
budistas, fundamentais para todas as visões, mas sem tolerar as revisões posteriores aos ensinamentos. As tradições
Mahayana (grande veículo) e Vajrayana (veículo indestrutível) surgiram posteriormente – em 240 A.C e 700 D.C respecti-
vamente – e têm como principal desígnio a compaixão amorosa voltada para a liberação do sofrimento de todos os seres.
Entretanto, a escola Vajrayana – visão do budismo Shambhala e tibetano – emprega técnicas tântricas de controle de
energia como meios hábeis (upaya) para a iluminação, bem como a orientação direta de um mestre/guru.
64

pela artista Vivian Caccuri, e que aconteceu em Manaus. A


performance consiste em um trajeto de oito horas pela
cidade residente, com um grupo de quinze pessoas em
média, visitando lugares com “atividade acústica
especial”23. O voto de silêncio permeia as atividades
programadas que, no caso da Amazônia, contrastaram-se
entre cidade e floresta: começamos pelo caótico centro
velho da cidade, fomos até o porto, pegamos um barco
e fizemos uma longa trilha pela mata, com direito a
banho de rio e cachoeira. Ao final do dia, voltamos para
a urbe e brindamos com um jantar coletivo o retorno ao
mundo das palavras.
A vivência foi desafiadora. De início, o calor, o silêncio,
o peso da mochila e os mosquitos me torturavam. Com o tempo, a
exaustão física e o contato com a natureza tornaram o estado meditativo
algo natural, como em um retiro, de modo que a fala e o conforto já
não tinham tanta importância. Lembro-me que voltar a conversar foi
bastante difícil, era como se observar fosse mais importante que
dizer, e como se as palavras se desfizessem na respiração. Na prática,
a meditação tornou-se uma atitude misturada com a vida, na qual ver,
ouvir, contemplar e experienciar faziam parte da apreciação do mundo.
Percebo agora o desafio de trazer e propor esse universo para os
estudantes da universidade. Como apresentar estas práticas estudadas
e vivenciadas a jovens cujos cotidianos versam em torno de desejos e
ritmos tão distintos desta proposta? Eles conseguiriam transbordar esta
experiência para a prática cênica?
AGOSTO DE 2015. AULA DE INTERPRETAÇÃO V. Chego à universidade
pronta para preparar o jardim e instaurar um ambiente de florescimento
dos estudantes/artistas por meio do treinamento meditativo.
Desejo frustrado.
Logo no primeiro dia, um erro da secretaria na organização das salas
nos deixou desabitados. Depois da rodar o prédio atrás de uma sala e lidar
com a burocracia necessária para a solicitação do novo espaço, estávamos
todos esgotados, dispersos e irritadiços. Este acaso levou-me – antes mesmo
de apresentar o plano de disciplina e visando o aproveitamento do tempo que
nos restava – a estabelecer um pacto de silêncio com o coletivo e propor
uma prática de Desaceleração de quinze minutos com música e depois quinze
minutos sem música. O exercício pareceu fluir apesar de notar dificuldades de
concentração e equilíbrio no grupo: a trilha sonora de Arvo Pärt24 acalmou
os ânimos para podermos tentar a segunda parte sem música voltada para a
meditação caminhando. Pedi para os atores buscarem apoio na respiração e na
dinâmica do caminhar e que, quando tivessem dificuldades para centrar-se,
contemplassem suas trajetórias como artistas e suas intenções para a última
disciplina de atuação do curso. Após a primeira parte do treinamento,
solicitei a criação de quadros vivos feitos com o corpo a partir das imagens

23  Afirmação retirada do endereço eletrônico http://viviancaccuri.net/filter/silent-walk/Silent-Walk


24 Compositor estônio, cujas músicas localizam-se em um estilo chamado “minimalismo sacro”. Suas obras foram as
primeiras a serem trazidas para os ensaios devido à minha memória afetiva com o exercício Desaceleração: as melodias
de Part eram muito utilizadas no ensaios da Companhia Club Noir.
65

que surgiram para o coletivo ao longo da prática meditativa. Por último


fizemos uma roda, conversamos sobre o planejamento para o semestre e sobre
as impressões que ficaram deste nosso primeiro encontro.

Tivemos a primeira aula prática com a desaceleração


apresentada pela professora e foi unânime entre os alunos a
receptividade. Foi um momento importante para redescobrirmos
nossa mente e nosso corpo no espaço e no tempo. Minha mente
age muito rápido para tudo, tenho a imaginação fértil a todo
instante, mas nessa aula não consegui pensar em nada, a mente
não tinha cor ou forma. A música atravessou de certa forma
minha mente que não pude pensar (...) Desacelerar agora para
mim tem uma importância significativa, pois agora consigo
perceber e enxergar meu corpo e dos meus colegas, ou seja,
um corpo tenso que na maioria das vezes não percebemos e que
acabamos acumulando toda a tensão em uma determinada parte,
seja na ponta dos dedos, no rosto ou mesmo no andar (Diário
de Bordo de NR*, 25 ago.2015).

Observo que – nesta breve descrição que elaborei para esse capítulo
–, o começo marcado pela desorganização em relação ao espaço externo
foi fundamental para apresentar o treinamento de Desaceleração que
realizo até os dias de hoje no projeto de extensão com estudantes,
colegas professores do Curso de Teatro e artistas da comunidade no
Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento do Artista. A partir das
referências citadas acima – Desaceleração, Caminhada Lenta, Meditação
Caminhando e Caminhada Silenciosa – e do desejo de aliar meditação e
caminhar no treino com os estudantes, utilizei a prática para resolver
um problema – a dispersão do coletivo –, deixando de lado a vivência
yogue que havia planejado para o dia. Cecília Salles (2006) recorda
que os nós das redes de criação se dão a partir de interações complexas
entre as tendências do artista, seu ambiente e o acaso. Estes, juntos,
fomentam procedimentos de experimentação e de testagem de ideias, que
reorganizam o pensamento criativo de forma flexível.
Portanto, cabe ressaltar que a investigação do exercício não deseja
ater-se à simples aplicação das experiências vividas anteriormente, e
sim estabelecer um olhar antropofágico como caminho para a pesquisa:
deglutindo estas referências e transformando-as em linguagem artística
a partir das dinâmicas do processo criativo do treinamento. Para tal,
66

a troca com os estudantes foi de grande valia para o percurso, pois a


partir de seus relatos, questionamentos, dificuldades e acertos, pude
estabelecer um estado de permanente reorganização do estudo, em um
movimento dialógico entre dúvidas e certezas rumo ao desconhecido.

A simples introdução que fizemos creio que não só em mim,


mas na maioria dos colegas, causou certa curiosidade, um
estímulo para sabermos o que viria nas próximas etapas.
Senti-me meditando e relaxada, sensações de formigamento e
ao mesmo tempo relaxamento no corpo. A mente tornou-se leve,
as preocupações por um instante se esvaíram ao realizarmos
o exercício de desaceleração e senti-me mais
disposta ao final do mesmo para continuarmos
com as atividades, disposta no sentido
de “perder as amarras”, estar entregue
ao exato momento. Como ponto negativo
percebo meu sedentarismo atrapalhando
(...) sinto o corpo pesado, ossos
rangendo e sobrepeso que me atrapalham
na técnica e em minha disposição, pois
ainda que estivesse em um processo
anteriormente, não estava dando o meu
melhor. O desafio para essa disciplina
não é somente chegar ao fim do semestre,
mas recuperar e despertar novamente
minha veia artística, saber o que me
move, estou com esperança e boas
expectativas, espero alcançá-
las! (Diário de Bordo de OD*,
25 ago.2015).

Uma das principais características tanto desta turma, quanto dos


demais discentes do Curso de Teatro, é a conciliação entre estudo e
trabalho. Logo, boa parte do grupo chegava aos nossos encontros vespertinos
apressada e estressada – com o calor, o barulho, a demora do ônibus,
etc. –, imersa nos dilemas do cotidiano e em seus padrões psicofísicos
habituais. Desta maneira, a prática ocasional do primeiro dia tornou-
se propícia para a dissolução deste estado de agitação, pois, em sua
simplicidade, contrastava com o aprendizado das posturas do yoga, que de
início parecem difíceis de assimilar e desafiadoras para um corpo cansado.
Fayga Ostrower (2014) preocupa-se com a constante alienação dos
indivíduos e afirma que o afastamento de si mesmo separa o ser de seu
potencial criativo. Para a artista, nos desintegramos a cada dia por
conta do bombardeio de informações e deveres a que somos submetidos para
sobreviver. Em meio à crescente aceleração do ritmo do viver, a maioria
das pessoas não consegue perceber o mundo de modo significativo e, por
consequência, não estabelece relações entre seus múltiplos elementos:
ou seja, não ativa a própria sensibilidade e desaprende a criar.
Neste sentido, o fazer artístico tem como principal finalidade a
intensificação da vida, “ampliando em nós a experiência de vitalidade”
(OSTROWER, 2014, p.28). Para isso, devemos buscar condições de
67

existência que promovam nossas potencialidades em um processo de


renovação espiritual e de conscientização interior. A noção espiritual
levantada por Ostrower relaciona-se com a sustentação de um estado
de tensão psíquica durante o processo criativo do artista, como
uma capacidade de engajamento para manter um nível profundo de
sensibilidade. Criar é, portanto, um desassossego, um caminho para
a comunicação com o meio e com a nossa individualidade que amplia a
consciência de si e do mundo, assim como a meditação.
Começo a entender como os estudos e experiências realizadas
nestes três últimos anos podem ser uma possibilidade de chegar a este
caminho para a criação. Veremos que a prática meditativa estimula o
estabelecimento de suspensões na dispersão cotidiana e a observação
de si, de modo que, pensada para o treinamento do artista da cena,
pode gerar interações entre sujeito, linguagem, ambiente e memória.
Por meio dela, o ator/performer entra em contato com sua inteligência
associativa e se dá conta de seu poder imaginativo. Os procedimentos
estimulam o processo artístico e sua poética, motivando a percepção
de si, do corpo, do texto e das imagens que invadem o artista.
Nos encontros seguintes continuamos trabalhando a Desaceleração
como ponto de partida do treinamento. Compreendo que, naquela época,
utilizei procedimentos apreendidos das referências citadas acima:
o próprio nome do exercício veio da minha experiência na Companhia
Club Noir, bem como a primeira parte dele, realizada com música ao
princípio dos ensaios; a segunda parte do exercício, realizada sem
música e com a atenção na dinâmica da marcha partiu da Caminhada
Lenta; o voto de silêncio do coletivo veio da Caminhada Silenciosa e
das vivências de Shambhala; e, por fim, os apoios dos artistas durante
a prática, como a observação da respiração e da marcha derivaram da
Meditação Caminhando.
Recordo que, preocupada com uma possível monotonia das aulas
e com o desejo inconsciente de entreter os estudantes, tentei por
alguns encontros variar os caminhos, propondo coisas novas a cada dia
e me distanciando do aprofundamento da prática. Com o tempo, entendi
que, não só estava reproduzindo as dinâmicas da sociedade de consumo,
pensando o treinamento como algo funcional e descartável, como estava
ignorando o fato que se apresentava ao meu olhar:
Não tem jeito de não começar com a Desaceleração, eles chegam na
aula muito dispersos. Estabelecer também jogo do silêncio: 20 minutos
(exercício: 10 minutos com música, 10 minutos sem música)
Nesta anotação em meu diário de tese, datada de primeiro de
setembro de dois mil e quinze, reconheço que, naquela situação em
que me encontrava, não era possível iniciar o treinamento de outra
maneira. Este documento do processo criativo da tese ressalta a
necessidade do coletivo de vivenciar o sentimento da beleza (DUARTE
JÚNIOR, 2000, passim): o conceito relaciona-se com a percepção não
pragmática do mundo e com a suspensão da visão rotineira da vida.
Em contraposição à postura racionalista da civilização ocidental, a
beleza não pode ser medida de forma objetiva, habitando a relação
entre sujeito e objeto a partir da sensação do aqui e agora, antes
mesmo da apreensão mediada pelos símbolos e pelos conceitos.
68

Amor, beleza, encantamento: quantas palavras proibidas em


nosso rigoroso meio acadêmico, sempre cioso por definir seus
objetos de estudo em termos de qualidades objetiváveis,
isto é, mensuráveis — coisa que, definitivamente, não
parece possível com estas três, dentre tantas outras aqui
empregadas. Contudo, é preciso ousar; é preciso furar a
crosta cientificista que vem tornando as reflexões acadêmicas
impermeáveis à vida que realmente importa: aquela levada a
efeito em nosso dia-a-dia, semelhante às dos cientistas e
luminares de conhecimentos parciais — na verdade, a única
vida que se tem, em que pese as abstrações conceituais com
as quais se escrevem teorias, tratados e teses. A vida é
exercida, antes de tudo, valendo-se desses saberes sensíveis
e conhecimentos que o arrogante intelectual apressa-se
logo em classificar como “não-científicos” ou próprios do
“senso comum”, feito este não contivesse qualquer verdade
ou validade prática (DUARTE JÚNIOR, 2000, p. 32-33).

Duarte Júnior, a partir da investigação de Gilberto Kujawski


(1988), assegura que caminhar é um dos fundamentos da humanidade e que
conecta-se diretamente com os nossas sensações e sentimentos. Porém,
na organização das grandes cidades, o andar está reduzido à uma ação
mecânica de transporte, sufocado entre a supervalorização dos carros e
a busca do corpo perfeito nas esteiras das academias de ginástica. Não
deambulamos mais descompromissados pelas ruas, nos sentimos
inseguros e pouco atraídos pela sujeira e pela violência,
além de perceber a atividade como perda
de tempo.

Adriano Labbucci sublinha o fato de a caminhada ser um exercício


de liberdade e autonomia. Sua premissa se apoia na capacidade
subversiva da prática como possibilidade de “(r)e(s)xistência
a motorização selvagem e desmedida” (LABBUCCI, 2013, passim) das
formas contemporâneas globalizadas. Neste andamento, a experiência
promove ações de insubordinação à cultura da velocidade e do consumo,
distanciando-se das dinâmicas do mercado através da aceitação de sua
lentidão intrínseca em comparação aos outros meios de transporte: não
podemos andar com o objetivo de chegar rápido a algum lugar, é preciso
contemplar e compreender o tempo das coisas do mundo, despertando os
sentidos para o ambiente e para nossos estados de espírito, pois são
eles que vão ditar o ritmo da marcha.
Não conseguimos caminhar carregando coisas em excesso, portanto a
humildade é a qualidade intrínseca desta vivência. Através dela faz-
se imperativa a escolha entre ter e ser/agir, de modo que o caminhante
precisa abandonar posses e apetrechos para poder seguir seu percurso. O
autor afirma que a raiz etimológica da palavra humildade vem de humilitas
69

(lt.), termo que relaciona-se abertamente com húmus, com a terra. Na


tradição cristã, é o contato dos pés no chão – literal e metafórico
– que nos torna humildes no reconhecimento de nossas limitações
e nos auxilia no encontro com o deus e com a sua real natureza,
o barro de que somos constituídos. Não é de se estranhar que o
símbolo da soberba nesta tradição seja justamente um animal sem
pernas, a cobra que se arrasta traiçoeira e orgulhosa desafiando os
mandamentos desta divindade: “humilitas é a condição imprescindível
para caminhar com Deus” (LABBUCCI, 2013, p.58).
O autor recorda ainda do ensinamento budista de Sogyal Rinpoche,
autor do Livro Tibetano do Viver e do Morrer, sobre o desapego
e o despreendimento como práticas de vida que se dão a partir
da compreensão da impermanência dos fenômenos. Nesta
tradição, precisamos da meditação para nos desfazer do
excesso de peso – material, emocional e mental – e
estar presentes no aqui e agora. O desprendimento é
como uma passagem para o vazio, uma abertura para estar
no mundo com atenção e encanto. Porém, na dinâmica das
grandes cidades, vivemos amedrontados e nos encerramos
em condomínios fechados e shopping centers, de modo que
a busca por segurança triunfa sobre a liberdade. Logo,
também devido a desigualdades sociais diversas, a ação
de flanar sem rumo pelo espaço da urbe transforma-se em
estranheza, em uma atividade de “vagabundos” e de pessoas
mal intencionadas.
Rebecca Solnit (2016) corrobora com o pensamento
do pesquisador italiano ao manifestar que a cultura do
medo e a gentrificação fundaram um estilo arquitetônico
hostil e violento – com muros, grades, cercas elétricas
e espetos antimendigos nas calçadas – que desumaniza
os sujeitos. Ao mesmo tempo, os espaços públicos ou se
privatizam ou se abandonam e, para quem não tem acesso a
estes paraísos artificiais de privilégio, não existem muitas
possibilidades de engajamento com a prática do caminhar.
Quando a apropriação destes espaços não acontece, as pessoas
perdem também um pouco do conhecimento do próprio corpo,
esquecendo-se de suas capacidades motoras imersos em uma
lógica de produtividade na qual andar aberto para a apreciação
torna-se desperdício de tempo.
A autora afirma que estes acontecimentos incitam a opressão
do corpo vivo em atividade. Distante de utilitarismos, o ato
de caminhar livremente é fonte de conhecimento e observação de
si e do mundo: serena as angústias psicofísicas e desencadeia
o filosofar, em coletivo associa-se aos ritos e aos movimentos
sociais de resistência, subverte a separação entre corpo e
mente cartesiana e, finalmente, passa a ser entendido como arte
a partir dos experimentos performativos da década de sessenta
do século passado, ativando experiências da beleza em artistas
e fruidores. O aqui e agora da marcha excita nossos sentidos
por meio da ativação de signos não verbais constantes, como
cores, cheiros, imagens e texturas. Nosso corpo movimenta-
se encarnando e congregando saberes, revelando o “parentesco
70

consanguíneo do saber com o sabor: saber implica em saborear elementos


do mundo e incorporá-los a nós (ou seja, trazê-los ao corpo, para que
dele passem a fazer parte)” (DUARTE JÚNIOR, 2000, p. 133).
Neste contexto, a cada experimento com o grupo de estudantes,
ficava mais claro que a Desaceleração, além de conectar o ator consigo
mesmo, aquecer o corpo e fomentar uma atmosfera propícia para a prática
artística, também estimulava os sentidos e a criação, tornando-se parte
dela. Para aprofundar o exercício, passei a propor mudanças na iluminação
da sala com velas e abajures, produzindo diferentes ambientes no espaço
de prática: provocando o olfato do coletivo com incensos, tocando o corpo
dos artistas – com à devida autorização – ajustando posturas e aliviando
tensões desnecessárias, sugerindo a visão periférica e a conexão entre
ser e espaço, e buscando sonoridades diversas para a primeira parte do
treinamento – cantos gregorianos, experimentos eletroacústicos, músicas
de câmara, mantras hindus, toques de cítara e de tigelas tibetanas. Percebi
que todos estes elementos transformavam-se em portas de entrada para o
movimento, incitando punctums durante a vivência:
pontos musculares e Renato impulsos ativadores
do artista. Ferracini (2012)
empresta o termo de
Roland Barthes (2006) para
pensar as zonas de intensidade
do trabalho do artista da cena, nas
quais este consegue escapar de seus
clichês expressivos e desautomatizar-se.
No contexto da imagem fotográfica, Barthes
define o termo punctum como um “ponto de
aguçamento dos sentidos”, que atravessa o
fruidor no contato com a obra de arte e
que, por meio de sua força de expansão, o
transporta de seu estado rotineiro. No
trabalho do ator, o punctum encontra
sua morada no detalhe e relaciona-se
com uma picada que fere e ativa
pontos sensíveis do artista
No treinamento e, por consequência, sua meditativo –
m a i s precisamente subjetividade. na segu n d a
parte do exercício de Desaceleração,
sem música – observo que a ação de caminhar traz
consigo um estado de dilatação psicofísica para o ator. Ferracini (2012,
p.188) nomeia esta condição de “estado de trabalho”, que se atrela a
ativação de punctums de primeira camada, que ocorrem antes da codificação
de matrizes corporais em partituras físicas. Esta proposta também
favorece a dinâmica buscada a cada ensaio, pois vamos ressaltando estes
pontos em sua complexidade, de modo que as qualidades pré-expressivas25
e as zonas de jogo do artista são ativadas com maior facilidade.

25 Como observei em trabalho anterior (POTY, 2015, passim), para Eugenio Barba, na formulação da antropologia teatral,
a hipótese do comportamento pré-expressivo do artista da cena é fundamental. Esta se baseia nas noções de memória
física e ancestral, provenientes de níveis biológicos e transculturais de organização performativa. A pré-expressividade
evoca princípios que retornam nas mais diversas técnicas cênicas e tradições coletivas, de tempos e culturas distintas,
anteriores ao espetáculo.
71

Assim, o que chamamos de “estado” é um punctum, ou punctuns,


ativados, tendo seu lado expansivo controlado, contraído.
É justamente esse controle que coloca o corpo em um estado
de ação na inação, inação esta aparente, pois o esforço em
controlar e manter o punctum sem seu caráter expansivo faz
com que tenhamos toda uma relação não cotidiana com nossa
musculatura, o que dá a sensação interna, para o ator, de
uma “dilatação corpórea” e para o espectador, de fora, de
uma “presença não natural” do ator. Criamos um estado em
intenção que prepara o corpo cotidiano para o mergulho em
uma zona intensiva (FERRACINI, 2012, p. 183).

Esta zona de intensidade do ator/performer se assemelha com a


noção de presença autêntica cunhada por Chögyam Trungpa (2013). O
mestre recorda que o termo é derivado da palavra tibetana wangthang,
que significa “campo de poder“. Neste sentido, através da meditação
o praticante pode irradiar uma qualidade de expansão psicofísica no
espaço, assim como o artista por meio do treinamento pois, muitas
vezes, em cena esta potência aparece como um vislumbre e, para saber
como sustentá-la, é necessário constância e disciplina.
No contexto desta investigação, o processo de desaceleração trabalha
a dissolução de expectativas e temores do performer para que, por
meio da repetição da ação e do desenvolvimento da atenção plena, este
acesse o estado de trabalho mencionado por Ferracini. No budismo, esta
capacidade de concentração derivada da meditação é chamada shámatha
e se manifesta na estabilidade psicofísica no instante presente,
serenando o movimento dos pensamentos e emoções. Trungpa (2013) afirma
que a meditação shámatha se relaciona à abertura e percepção do corpo
mente isenta de conceitos, que ocorre de forma simples e direta, como
se a consciência se expandisse.
Exercitamos a serenidade da mente discursiva a partir da precisão
da técnica: concentrando-nos no fluxo respiratório, no toque da sola
dos pés no chão e na postura, nos distanciando do ego e de seus
múltiplos filtros que embaraçam nossa percepção direta dos fenômenos.
Portanto, a atenção plena é o estado de permanência da tranquilidade
da consciência, desvinculada da necessidade da construção social de
uma identidade imutável. Daniel Plá (2012), professor e pesquisador
das práticas meditativas no contexto das artes da cena, declara que o
desenvolvimento desta prática de foco nos coloca como testemunha alerta
dos eventos que ocorrem em nós mesmos e ao nosso redor. Entretanto, não
nos deixamos comprometer por eles, não nos perdemos em meio aos estímulos
de pensamentos, emoções e memórias pois estes são como suportes para o
exercício da concentração do ator, que acessa a realidade a partir do
surgimento da experiência da organicidade em seu treinamento.
72

Em shámatha, conseguimos detectar os momentos do exercício nos


quais adentramos nossa zona de conforto ou divagamos em nossa mente
discursiva. Quando isto ocorre, repousamos a atenção na respiração e
no caminhar e voltamos a praticar. No aprendizado frequente com os
estudantes, pude estender a experiência de prontidão da Desaceleração
para a expressão das sensações psicofísicas do coletivo durante o
treino, foi então que nasceu a Dança Meditativa.

As borboletas estão voando,


a dança louca das borboletas...
Zé Ramalho

DEZOITO DE SETEMBRO DE 2015. Anotações em diário de campo. Mais um


dia de treinamento pessoal e organização dos exercícios de yoga para as
aulas na salinha do meu apartamento. A cada vez o mesmo sufoco: limpar
o chão, colocar a mesa e as cadeiras na varanda, arrastar o sofá,
trancar os gatos no quarto e o companheiro no escritório, desligar o
celular e o interfone, fechar as janelas por conta do barulho, separar
tapete, toalha, blocos e cintos, pegar o diário e canetas, acender
uma vela, sentar na posição de lótus, respirar e começar. Naquele dia,
resolvi quebrar a sequência semanal e praticar a Desaceleração. Já
fazia algum tempo que não realizava este treinamento, pois geralmente
precisava observar os estudantes nas aulas e, em casa, me desanimava
devido ao espaço pequeno e cheio de estímulos.
De início, notei em mim as mesmas dificuldades que reparava no
coletivo de estudantes, como o estabelecimento de uma forma de andar,
os problemas de equilíbrio, o esquecimento da respiração e o excesso de
pensamentos – a maioria sobre esta tese, pois me sentia inspirada com
ideias e, por isso, precisava refazer os passos até então percorridos.
Aos poucos, com o passar da prática, me senti em paz e este estado de
tranquilidade favoreceu a vontade de dançar.
Sem me dar conta, coloquei para tocar a trilha sonora do filme
Elena, o qual havia assistido novamente por aqueles dias e já havia
inspirado outros processos criativos. As sonoridades da obra de Maggie
Clifford e Fil Pinheiro trazem consigo atmosferas oníricas e suaves
que, caracterizadas pela repetição de frases musicais e melodias,
estimulam a prática meditativa.
A Desaceleração e os estímulos afetivos da música reverberaram
em movimentos sutis e lentos, de modo que me sentia em um processo
não estático de meditação. Uma fagulha interna de vez em quando me
lembrava da abertura do corpo pelo espaço, do uso dos planos – alto,
médio e baixo –, da necessidade de fluidez e vigor em alguns momentos
e, principalmente, do desejo de persistência para não desistir. Dancei
por mais ou menos uma hora e ao parar anotei as imagens que surgiram
durante o exercício, pensando na importância do empenho físico ativo
para as descobertas criativas do artista. Como parte integrante do
estado de presença em que me encontrava, relembrei das palavras do
dançarino Kazuo Ohno.
73

A partir de uma
crisálida, transformou-
se numa borboleta. É certo que
havia uma energia em combustão por mim
desconhecida. “Não dá mais, eu não posso
mais do que isso”. Mas tem a continuação. Assim
vocês podem se transformar numa borboleta. Aí
está o xis da questão. As asas transformadas
da borboleta eram extremamente imaturas. Tocaram
o ar, nesse instante, mas no começo não podiam
voar. Esse curto espaço de tempo... que tempo é
esse? Como age o espírito? É a consciência que age?
Acho que não. Não consigo explicar, mas esse curto
espaço de tempo para a borboleta conseguir voar,
isso é dança pura. Extratemporal, num certo sentido.
Nenhum artifício, nenhum expert pode criá-lo. Afinal
do que se trata? (OHNO, 2016, p. 196).

O aforismo de Kazuo Ohno é como um mergulho nos


microcosmos da criação artística, nos quais as experiências
psicofísicas de organicidade pelas quais passamos em sala
de ensaio são difíceis de serem colocadas em palavras. Neste
sentido, para o artista, “o corpo é a instância de conexão
entre o micro e o macrocosmo, e a dança, consequentemente, seria
o movimento de fagocitose recíproca entre a alma e o universo”
(PERETTA in OHNO, 2016, p. 249). As imagens da borboleta e da
crisálida evocadas pelo dançarino relacionam-se com o símbolo do
casulo utilizado por Chögyam Trungpa Rinpoche para representar
o processo de libertação de nossos medos e padrões habituais a
partir da meditação.
Esta redoma é formada por nossos condicionamentos pessoais
e culturais, criando uma barreira em nossas vivências cotidianas
e impedindo o contato direto com o mundo. Para Trungpa (2013,
passim), a necessidade que faz o casulo é o medo e o desejo de
proteção do ego. Tememos perder o controle e ser desafiados em
certas experiências. Temos medo da morte, medo de nos afastar da
noção construída de quem somos, medo de que os outros possam nos
trazer problemas, entre tantos outros temores. Romper a crisálida
requer coragem e confiança na prática meditativa pois, na visão de
Shambhala, é neste momento que começa o nascimento do guerreiro,
quando o sujeito se dispõe a experienciar os fenômenos da vida,
inclusive o medo, permitindo-se ser vulnerável. Não seria
este estado de vulnerabilidade e medo do desconhecido algo
inerente ao processo de criação?
A meditação traz consigo doses homeopáticas
de vivências incondicionadas: neste estado,
reconhecemos nossas potências e transformamos
a visão meramente conceitual que temos das
coisas, percebendo o quanto estamos
limitados às emoções e
74

Dança meditativa
75

aos pensamentos no nosso dia-a-dia e em nossa zona de conforto. Na


Dança Meditativa sentimos corpo e mente conectados de modo que podemos
compreender as qualidades energéticas da nossa relação com o cosmos,
treinando a abertura para encantamentos tanto na arte, como na vida.

Quando corpo e mente estão adequadamente sincronizados, nossas


percepções são nítidas e sentimo-nos livres da dúvida, livres
dos tremores, das vacilações e da miopia que caracterizam
a ansiedade e que tornam o nosso comportamento inteiramente
impreciso (...) Sincronizar a mente e o corpo é olhar e ver
diretamente, para além da linguagem. Não por falta de respeito
pela linguagem, mas porque nosso diálogo interno tende a se
tornar tagarelice subconsciente. Quando sentimos que podemos
relaxar e perceber o mundo diretamente, nossa visão pode
expandir-se. Podemos ver no ato, pois estamos plenamente
acordados. Nossos olhos começam a se abrir, tornam-se cada
vez mais arregalados e podemos então ver o quanto o mundo
é colorido, fresco e preciso; cada ângulo possui uma
fantástica nitidez (TRUNGPA, 2013, p. 55-57).

Quando nos damos conta que estamos presos no casulo “queremos


nos esticar, dançar, andar e até pular” (TRUNGPA, 2013, p. 64).
Corpo e mente sincronizam-se no aqui e agora, no instante presente.
Percebemos a beleza de ter um corpo e sentir seu sabor e intensidade,
e que os pensamentos são transparentes, nós que os colorimos imersos
em fantasias e padrões: podemos observar o seu fluxo, mas não podemos
nos apegar a eles como verdades absolutas. Contemplamos o sentimento
da beleza em todas as coisas.
Encorajada pela vivência e reflexão a respeito dos procedimentos
da Desaceleração na pequena sala do meu apartamento, alguns dias
depois trouxe a experiência do exercício para o treinamento com os
estudantes. Substituí a prática de quadros vivos após a Desaceleração
pela Dança Meditativa: ao parar de caminhar, estimulava o grupo
a dançar e expressar as sensações da prática, percebendo o que
o corpo estava pedindo no momento. Aos poucos, acrescentava
a possibilidade do coletivo realizar matrizes e
repetições de movimento, instigadas por pulsões
de expressividade todavia não codificadas pela
mente discursiva.
Neste sentido a dança é como
uma viagem, pois abre rupturas na percepção
cotidiana do tempo, trazendo consigo movimentos
de transformação na paisagem/gente e seus afetos, além
da dissolução de territórios obsoletos. Na vivência com
o coletivo, pude observar que o exercício trazia impulsos
criativos escondidos por detrás das máscaras sociais do artista.
Descobri que, no contexto da meditação e no contexto desta
pesquisa, primeiro é preciso dar vazão às imagens arquetípicas que
invadem o ator para depois elaborar partituras físicas.
No ritual sagrado deste treinamento, percebo que é mais
importante encarnar os símbolos do que tentar codificá-los
semioticamente a cada instante. A Dança Meditativa é como um
76

veículo26 da investigação de si e do inconsciente coletivo, de modo


que o grupo deve deixar-se habitar pelas forças da natureza – vitais
e instintivas – escapando da hierarquia do ego.

Ao início das práticas meditativas pude


perceber uma outra forma de preparação
do ator mais relacionada ao ser
humano que age do que ao vir-
tuose em interpretação. Seria
uma forma de busca pelo pro-
cesso e não pelo produto
e isso me despertou inte-
resse. Eu estava diante
de uma possibilidade de
me rever, de me olhar
por outro ângulo (...)
Os constantes desa-
fios das práticas me-
ditativas me forçaram
ou, melhor dizendo, me
propiciaram, um conta-
to mais aprofundado co-
migo mesmo pelo momento
único de concentração e
observação do eu que pude
desfrutar em meio ao caos
dos tempos modernos. Isso
incomoda porque despertar in-
comoda. A luz dói nos olhos de
quem acorda depois de longo tem-
po de sono. Rever conhecimentos que
possuo e adquirir novos conhecimentos é
como esse acordar. Pretendo incluir estas práticas em minha
jornada de treinamentos individuais na medida do possível a
fim de poder alcançar uma melhor concentração e presença cê-
nicas e redescobrir constantemente novos caminhos (Diário de
Bordo Semestral de QP*, 17 dez.2015).

Quando se trabalha com temas aparentemente abstratos, como as práticas


meditativas e as terapêuticas artísticas da existência, é fácil perder-se
na sedução aérea do imaginário, fugir da matéria. Neste sentido, a vivência
criativa dos encontros com os estudantes me levou à associar o treinamento com
as investigações de Gaston Bachelard (1993) acerca da imaginação material.
Segundo o autor, a imaginação está permeada de elementos evocadores de forças
da natureza: assim podemos estabelecer, no âmbito da criatividade, uma “lei
dos quatro elementos” para analisar os processos artísticos conforme suas
associações com o fogo, o ar, a terra ou a água. Estes elementais apoiam-se
em mitologias diversas de ação consciente e inconsciente sobre os sujeitos,
relacionados às vivências mnemônicas e culturais destes.

26 Referência à Arte como Veículo, termo cunhado por Peter Brook para nomear a última etapa de trabalho de Jerzy Gro-
towski, baseada no despertar de uma arte de viver por meio da prática cênica. Nesta etapa da pesquisa do artista, o ator/
performer encontra-se desobrigado de suas preocupações com o espectador, verticalizando os aspectos rituais e sagra-
dos do treinamento, como observamos em trabalho anterior (POTY, 2015, passim).
77

Pude perceber que as matérias são antes concretas que imaginárias,


e que o artista, de certa forma, é um alquimista. Interventor e escritor
ativo de sua matéria corpo, o ator manipula-a como argila, inicialmente
por meio da abertura para as imagens que ocorrem durante a dança e depois
pela transformação destas em metáforas de trabalho que estimulam à criação
de sequências de movimento. Deste modo, nas rodas de conversa após os
ensaios, descobria que os estudantes muitas vezes se sentiam dançando
como gotas d’água, como cascatas, rios, barcos em mar revolto; ou mesmo
flutuando com o vento, como balão, como pássaros ou astronautas na lua;
todavia podiam perceber-se duros como pedras, desfazendo-se como pó,
quebrando como folhas secas, descascando a pele como uma cobra; ou, ainda,
podiam experimentar o corpo queimando, purificando-se, ardendo em brasa.
Neste contexto, dançar atua como lembrança arquetípica de nossas
potências poéticas, como trampolim ritual de transporte: metaphorae,
que em sua raiz etimológica grega significa ir de um ponto a outro sem
sair do lugar. A corporeidade ancestral nos aproxima do rito e nos
descoloniza por meio do espaço de ação da matéria sobre a vida. Após
o exercício, no momento de organização e sistematização de partituras
físicas, os estudantes/atores se perguntam: quais as dinâmicas
musculares e os punctums que foram evocados durante o baile da Dança
Meditativa? Quais as variações de cada um deles? Àquele movimento era
maremoto ou orvalho? Sinto-me como fagulha ou incêndio? E os matizes
de cinza entre estas dicotomias, como se dão na organização da cena?

O corpo se expressa sabemos disso, mas essa forma microscópica


que mergulha no meu próprio “eu” é uma viagem fantástica.
Pensando em graus Celsius que mensuram temperaturas altas e
baixas do ambiente, assim pensei esse treino. A introspecção
seria medida numa escala abaixo de zero, isso é apenas uma
analogia. Esse aforismo tem como referência o exercício que
me fez entender que também há muitas coisas internamente em
mim até então desconhecidas e não dominadas. As práticas
desenvolvidas, as descobertas do corpo e os grunhidos que
partiam de mim após os comandos são muito pessoais (...). É
necessário alfabetizar o corpo mente para que se desenvolva
o universo interior. O que posso pensar agora é em um grande
rio muito caudaloso,
que era até então,
incógnito. Houve uma
hora que me vi num
Os planos redemoinho e iria
transitavam entre adentrar em um lugar
consciente e desconhecido, mas de
inconsciente, alguma forma recuei,
passei a dominar senti algum tipo
meus movimentos, de interferência e
acessar ideias, voltei para o plano
sentir a mais confortável,
respiração e acho que me assustei,
não causar o e o medo não me deixou
fadigamento dos embrenhar, não sei
músculos (Diário explicar, precisaria
de Bordo de LN*, de mais leitura para
27 abr.2016). pensar e escrever
sobre o assunto.
78

Bachelard (1993) ressalta a noção do ser como homo faber que, em


seu trabalho com a matéria constrói, modela e transforma as coisas do
mundo. Em paralelo, Ostrower (2014) recorda a importância do contato com
a matéria na prática artística pois, por meio de suas delimitações e
especificidades, podemos tanto reconhecer um caminho de pesquisa, quanto
conduzir a criação para novas direções, distintas do plano elaborado
inicialmente. O artista da cena que conhece bem a materialidade do próprio
fazer – o corpo – reestrutura-se em conjunto com a obra, reconhecendo seus
valores éticos e culturais, ressignificando-os a partir de transferências
simbólicas no percurso de experimentação e construção de uma linguagem.
A matéria norteia a ação criativa e, ao moldá-la, o ser “deixa a sua
marca, simboliza e indaga, movido pela sua pergunta ulterior, que é pelo
sentido do viver” (OSTROWER, 2014, p. 53). A Dança Meditativa é parte deste
processo, pois a partir da ampliação do contato do artista com sua intuição
e com a compenetração não verbal na Desaceleração, sua coreografia do instante
o leva a acessar um estado psicofísico de contemplação de si e do espaço. A
prática se relaciona com a noção de dharma art – elaborada por Chögyam Trun-
gpa (2008) para especificar a atitude de sinceridade do sujeito durante o aqui
e agora de seu processo criativo, encarnada e distante de exibicionismos.
No budismo, o conceito de Dharma faz referência aos ensinamentos
de Buda sobre os princípios desta tradição. Porém, como Stcherbatski
(2000) recorda, Buda compreende estes preceitos como “processos
contínuos, impessoais e infinitos”, que nos aproximam da realidade e de
suas manifestações. O significado comum do termo simboliza o que está
conforme a justiça, a verdade e a virtude. Ao mesmo tempo, para Trungpa,
dharma art se relaciona com os processos criativos que ocorrem a partir
do estado meditativo do artista, mas que não necessariamente fazem parte
das doutrinas budistas: trata-se uma arte espiritual sem dogmas, na qual
o sujeito exercita a clareza do corpo mente e o esvaziamento do ego para
acessar o estado de trabalho necessário para a elaboração de sua obra.

A dificuldade reside em que, se nos tornarmos demasiado


conscientes de nós mesmos ao criar uma obra de arte, ela
deixará de ser obra de arte. Quando grandes artistas se acham
totalmente absortos no trabalho, produzem obras-primas, não
porque têm consciência dos seus mestres, mas porque ficam
inteiramente absortos no trabalho. Não contestam, limitam-se
a executá-lo. Produzem a coisa certa acidentalmente (TRUNGPA,
1993, p. 219-220).

O artista que dialoga com tradições espirituais contemplativas, além


de treinar o cultivo do estado concentração e atenção – shámatha – para o
desenvolvimento de suas obras, precisa se relacionar com o ambiente que o
circunda e se expressar nele. Através da prática de consciência panorâmica
– vípashyana – ficamos mais sensíveis e vulneráveis para criação por meio
do despertar dos cinco sentidos. Como ferida aberta, tudo no mundo nos
lembra que devemos estar presentes e a percepção da experiência direta
dos fenômenos afeta nossos procedimentos artísticos: cada coisa que
vivenciamos desperta curiosidade, as cores do cotidiano parecem frescas
e novas como se as tivéssemos vendo pela primeira vez.
Na técnica vípashyana, sentimos a expansão do nosso corpo mente para
79

o espaço: aguçamos as percepções sensoriais da consciência, nos dando


conta dos detalhes ao nosso redor como não separados de nós. Refinamos
a sensibilidade para estarmos mais receptivos aos estímulos de nossas
experiências e às epifanias da prática meditativa. Trungpa recorda que
este estado de espirito – em confluência com o estudo – pode produzir uma
obra prima, porém precisamos organizar a vida visando gerar beleza,
preparando o jardim e “limpando a casa”27. Através da disciplina –
cozinhar e comer bem, limpar o espaço de trabalho, usar
roupas adequadas, etc. – e do compromisso
com a prática, passamos a compreender as
doses de energia necessárias para vivenciarmos
o processo criativo da melhor maneira possível e
a apreciar as coisas que nos rodeiam. Habitamos a
dignidade de nossas ações.
Observo que, em um primeiro momento, a Desaceleração
relaciona-se com a noção de shámatha,
trazendo para o artista da cena a necessidade
do desenvolvimento da precisão vigilante de
suas ações e pensamentos para que o corpo mente
atinja estabilidade e possa repousar no agora. De
início, para cessar as distrações, as fantasias e o
discurso interno do ator/performer, o treinamento requer o afastamento do
cotidiano para “recolher a luz dispersa e focá-la em direção a nós mesmos”
(MIPHAM, 2003, p. 74). A regularidade da prática traz brilho e clareza
para o sujeito, conectando-o com a realidade através da contemplação da
existência e da dissolução do ego.
A partir deste “estado de trabalho” relaxamos na técnica para apreciar o
nosso redor em vípashyana: na consciência panorâmica
desenvolvemos um campo de forças psicofísico
e, a partir dele, experienciamos o cosmos como
mágica, imersos em um mar de sinestesias durante a
Dança Meditativa. Nos movemos livremente pelo espaço,
presentes em nossa própria carne e sentindo os batimentos
cardíacos, o suor escorrendo nas costas, os sons da sala de
ensaio, os cheiros e o gosto na boca, as cores, o toque dos pés no chão
e as pessoas ao nosso redor. Dançar é como um conhecimento intrínseco,
como uma sabedoria latente que nos aproxima da vivência imediata dos
fenômenos, como um insight. Para Trungpa, é este comportamento
inspirado que define um artista, e nele arte
e vida se misturam.
Há uma diferença entre uma
abordagem mindfulness (Skt.
shamatha) da arte e uma abordagem
awareness (Skt. vípashyana) da arte. No
caso da atenção plena, há uma sensação de dever e restrição;
demandamos a nós mesmos o desenvolvimento de uma atenção
minuciosa e precisa. Embora a tensão de estar atento possa
ser muito leve – estamos apenas tocando a ponta do processo

27 Como vimos anteriormente, Limpar a casa é o nome de uma oficina de criada por Marina Abramovic para o treinamento
de artistas para performances de longa duração. A vivência se assemelha a um retiro espiritual, pois é realizada na na-
tureza e propõe exercícios de concentração e resistência psicofísica, além de jejuns prolongados e votos de silêncio.
80

de respiração e existe uma sensação de libertação na ação


– no entanto, ainda é uma demanda que colocamos em nós
mesmos. No caso da experiência de consciência panorâmica,
o que existe é simplesmente a apreciação. Nada está nos
incomodando ou exigindo nada de nós. Em vez disso, por meio
da prática de vípashyana simplesmente nos sintonizamos com
o mundo fenomênico, tanto interiormente como externamente
(TRUNGPA, 2008, p.25).

Plá (2012) recorda que, na visão budista, apesar das práticas de


shámatha e vípashyana terem diferentes aspectos, elas não são independentes
uma da outra, mas técnicas meditativas complementares. Assim são a
Desaceleração e a Dança Meditativa no treinamento aqui proposto: dialogam
entre si para estimular tanto a disciplina, quanto a liberdade do ator/
performer em seu processo criativo.
Podemos relacionar a Dança Meditativa com fase da Estruturação do
Self da artista brasileira Lygia Clark. A afirmação da vida como potência
criadora é fundamental para Clark, que constrói objetos relacionais
que interagem com o fruidor em sessões terapêuticas nas quais este,
desterritorializado, “vomita sua fantasmática” por meio da experiência
afetiva do corpo. Sua obra é terapêutica no sentido estético, e visa
à emancipação do imaginário através do rompimento dos processos de
automatização gerados pela sociedade de consumo.

Ah! Esse dia foi bem especial, “egoísticamente” falando.


Eu estou passando por turbulências gigantes na minha vida
e quando cheguei para a aula estava ausente de energias
saudáveis para o momento. Cheguei a pedir à Prof.ª Vanja
para não participar, apenas assistir, mas ela pediu que eu
tentasse pelo menos o primeiro momento e assim o fiz. Foi
bonito poder dar um pouco a vazão necessária para estar/ser/
viver o momento. Não é muito fácil descrever em palavras,
mas a (boa) sensação de ter a liberdade do tempo e do espaço
para que você exista naquele momento foi o caminho que mais
81

iluminou minha mente na aula. Naturalmente isso deve ter


provocado outras possibilidades e sensações nos colegas que
compartilhavam o mesmo tempo e espaço, mas aquele momento me
trazia uma sensação de que eu estava produzindo discursos
que se espalhavam na sala, não necessariamente eu conseguia
(ou queria) ouvir os dos demais, pois girava sem parar.
Como disse anteriormente foi egoísta em algum nível, mas
foi importante para o meu processo pessoal, o que acredito
também fazer parte de um processo maior. Saí mais leve e
com mais força pra continuar a vida do lado de fora da sala
(Diário de Bordo Semestral de ST*, 27 abr. 2016).

Relembrando Clarice28, perder-se significa abrir-se para espaços


potenciais, para o desconhecido. No treinamento, a potência da meditação
caminhando e do movimento expressivo trouxe impulsos de beleza escondidos
por detrás das angústias de ST*. Ao longo dos exercícios, repousamos
em um estado de espírito desperto, que traz luminosidade para nossos
percursos artísticos e de vida, de modo que “a obra de arte é criada
por uma sacralidade básica, independente da fé religiosa particular do
artista ou de sua verdade” (TRUNGPA, 2008, p.129).
Deste modo, praticar dharma art fundamenta-se na manipulação de
energias sutis e na convicção criativa a partir delas. Irini Rockwell
(2002), que foi por dez anos professora de dança e arte terapia da Naropa
University29, define energia como “a vitalidade básica da nossa existência”:
são potências inatas e da natureza que ocorrem na experiência e que se
manifestam através de distintas qualidades, texturas, imagens, cheiros,
cores, etc. Estas energias juntas, como um prisma, formam uma mandala que
nos convida a dançar em liberdade, sem as máscaras e filtros que na vida
cotidiana nos impedem de expressar a plenitude de ser.

“Viver na mandala significa abandonar o ponto de referência do eu.


É viver no momento, ser capaz de se manifestar sem referência ao
ego” (ROCKWELL, 2002, p. 187). Acessar esta qualidade
de presença não é algo que pode ser ensinado
como uma equação matemática, porém podemos
preparar um ambiente propício para sua
descoberta. Neste espaço de abertura, ser
artista não é uma característica egóica,
um rótulo que vendemos para a sociedade,
mas a expressão psicofísica da beleza
intrínseca da vida que transcende
noções dicotômicas de bom ou ruim. A
partir desta prática ativamos prajna,
a inteligência natural do corpo mente
que articula-se com o conhecimento não
conceitual, de discernimento intuitivo.
Um estado de espírito no qual a inspiração
acontece espontaneamente, sem estratégias.

28  Ver primeiro capítulo.


29  Universidade de inspiração budista fundada em 1974 por Chögyam Trungpa Rinpoche, localizada na cidade de Boulder,
Colorado/EUA.
82

Trungpa (1995) observa que, na cultura tibetana, conhecer é um


ato, e não o saber em si. Por um lado, nesta ação a vivência é direta
e ocorre sem filtros do ego e, por outro, somente podemos acessá-la
por meio de upaya, o caminho favorável para este ato ser colocado
em prática. Para podermos nos soltar neste estado transcendente,
no qual nos conectamos com as percepções sensoriais, precisamos de
meios hábeis de treinamento, pois meditar é também uma capacidade que
demanda exercício e disposição – a partir dela, começamos a escavar
fissuras em nossos limites.

A inspiração genuína não é particularmente dramática. É


muito comum. Ela vem de se estabelecer em seu ambiente e
aceitar situações como naturais. Fora isso você começa a
perceber que você pode dançar com estes elementos. Assim,
a inspiração vem da aceitação e não de ter um flash súbito
surgindo em sua mente. Inspiração natural é simplesmente
ter algo em algum lugar que você pode se relacionar,
por isso traz uma sensação de estabilidade e solidez. A
inspiração tem duas partes: abertura e visão clara, ou em
sânscrito, shunyata e prajna. Ambas são baseadas na noção
de mente original, tradicionalmente conhecida como Mente
de Buda, que se estabelece como uma página em branco, sem
territorialismos ou competitividade, é aberta (TRUNGPA,
2008, p.119).
Rockwell (2002) afirma que dedicar-se às diferentes qualidades de
energia não deve ser algo acadêmico, mas sim experiencial. Para lidar
com estas forças precisamos passar por três estágios: aprender – töpa
– explorando sem julgamento técnicas, exercícios e reflexões o sujeito
se conhece, tem confiança em si mesmo e inspira-se; contemplar – sampa
– entrando em contato com as energias e utilizando-as como ponto de
referência, colocamos o objeto de estudo em ação com tranquilidade e
respeito, abertos para processos intuitivos; e incorporar – gompa –
encontrando a integração psicofísica da prática, vivenciando o agora.
A pesquisadora declara ainda que estas etapas, apesar de não serem
idênticas, se relacionam a três aspectos do processo de criação,
de modo retroalimentativo: abrir-se para o instante presente sem
pontos de referência; sentir a beleza do desabrochar das ideias e
inspirações, elaborando-as continuamente; e adicionar toques pessoais
trazendo nossa energia para a obra, organizando definições e formas.
Consigo assimilar estas tríades do conhecimento e da criação com o
percurso de experimentação que estou desenvolvendo com os estudantes.
Neste sentido, Desaceleração, Dança Meditativa e Partitura Física30
são caminhos de intermediação simbólica com a vida e com a criação
artística que descobri por meio das experiências meditativas desta tese.
Desaceleramos e abrimos as janelas do corpo mente para começarmos a nos
perceber como sujeitos, com potencialidades e dificuldades criativas e,
assim, encontramos um estado de disponibilidade e inspiração liberto
de tantas travas e pensamentos de autocontrole. Dançamos a partir
das reações psicofísicas aos estímulos do caminhar e experimentamos

30  Aprofundarei esta terceira parte da tríade no terceiro capítulo desta pesquisa: Pro Meu Corpo Ficar Odara ou é tempo
de limpar a casa para poder voar.
83

as sensações, os sentidos e os sentimentos da prática agindo sobre


nós, corporificando as qualidades do primeiro estágio. Mediamos e
interpretamos as relações entre nós, a meditação e as temáticas da
criação por meio de procedimentos contínuos de síntese e representação
psicofísica da prática, de modo que, como seres simbólicos, nos
colocamos no mundo através das linguagens da cena.
Cabe ressaltar que a pesquisa em artes da cena é efêmera e complexa
e que, nela, permeiam uma constelação de signos transitórios. Portanto,
as três fases do processo de criação e do conhecimento – aprender,
contemplar e incorporar – agem de forma dinâmica tanto na Desaceleração,
quanto na Dança Meditativa e na Partitura Física. Como em qualquer
processo de criação, o intercâmbio entre linguagens, ideias e sensações
se dá de forma contínua a cada momento, trazendo novas possibilidades
para a prática.
No contexto budis-
ta, a mandala também
pode significar um
grupo de pessoas que
caminham juntas em
busca de um objetivo
comum: espiritual,
p r o f i s s i o n a l ,
artístico ou domés-
tico. T r ago isso
p o i s , é importante
lembrar que, como em
qualquer processo de
criação, esbarrei –
e ainda esbarro – em
dificuldades ao longo
da investigação
na organização dessa mandala. Nas disciplinas que ministro na
universidade e no projeto de extensão que coordeno, mesmo com um
dia extra de aulas nos encontrando por duas vezes na semana, o que é
raro – uma parte dos estudantes faltava muito, chegava atrasada, não
treinava em casa e parecia negligente. Os artistas mais envolvidos
também passavam por alguns obstáculos, como preguiça ou sonolência ao
realizar os exercícios, dificuldades de concentração, dores no corpo,
falta de equilíbrio e coordenação motora, além de limitações de espaço
para realizar a Desaceleração fora da sala de ensaio. Como qualquer
treinamento, a frequência da prática é essencial e requer organização
e regularidade.
Muitas vezes recorri a caminhos intuitivos na tentativa de solucionar
estes problemas. Ostrower (2014) afirma que a intuição nos possibilita
lidar com situações inesperadas e que, por meio de articulações entre
consciente e inconsciente, agimos de forma espontânea atravessados
por imagens referenciais de origem cultural e vivencial. Aos poucos,
vamos buscando alguma coerência em nossas escolhas criativas, intuindo
a partir das relações com o ambiente em que estamos inseridos, com a
nossa memória e com nossos desejos criativos.
84

Como um dos antídotos para os impedimentos


apresentados, busquei instituir rigor no trei-
namento. Conversei com a turma e, juntos, ela-
boramos um termo de compromisso para o cur-
so que trazia diretrizes importantes para
o andamento do semestre, tais como: a
utilização de “roupas de trabalho” de
cores neutras e sem estampas; a ali-
mentação leve antes da prática; o
estabelecimento de quinze minu-
tos de aula como o tempo limite
para os atrasos; e a obriga-
toriedade da manutenção do
treinamento para além dos
horários de aula. Estes
tópicos me ajudaram a
tratar os obstáculos
das faltas e dos
atrasos, da so-
nolência e da
preguiça.

Trungpa (2008) declara que, para sincronizar corpo e mente em estado


meditativo, devemos nos educar por meio da disciplina. É importante
entender que arte é vida e que, por consequência, o modo como nos
vestimos, como realizamos nossa higiene pessoal, como nos alimentamos
e como chegamos ao espaço de ensaio, são também atividades criativas
e influenciam na prática artística. Nesta perspectiva, fazem parte do
processo artístico toda e qualquer experiência, de modo que, como
artistas, devemos tratar nossa vida com respeito. Gradativamente, esta
atitude transforma-se num cultivo de si, representando a reverência
por si mesmo, pelo outro e pela vida e, sem dúvida, contribuindo para
a criação.
O mestre adverte que, muitas vezes, geramos dicotomias em nossas
vidas pois as fatiamos em categorias que não dialogam entre si, tais
como estudo, trabalho, família e prática meditativa. Este processo
induz a um modo esquizofrênico e neurótico de existência que atrapalha
os percursos criativos, pois a atenção plena e a consciência panorâmica
não conseguem se desenvolver adequadamente nestas condições. Assim,
apesar da Desaceleração e da Dança Meditativa parecerem frutíferas e
libertadoras em sala de ensaio, percebi a necessidade e a importância
de levar as ações de contemplação para a rotina dos estudantes.
Logo, para tentar colaborar com a situação, passei também a realizar
práticas de meditação sentada e de contemplação de objetos e mantras
com o grupo, pois assim este teria mais possibilidades de repertório
para treinar no dia-a-dia.
É importante ressaltar que o intuito da elaboração deste treinamento
não é a simples reprodução e aplicação de técnicas meditativas
provenientes de diferentes tradições orientais. Portanto, busquei na
85

práxis o diálogo entre estas experiências e teorias, descobrindo


possibilidades de investigação e exercícios de estímulo do ator/performer
a cada ensaio. Deste modo, para fomentar as práticas extraclasse dos
estudantes, trouxe para os encontros caminhos contemplativos oriundos
do yoga clássico, sistematizados pelo sábio indiano Patañjali na obra
Yogasutra – em algum período entre II a.C e II d.C - e do budismo
tibetano, como a prática de lungta – Cavalo de Vento –, alegoria que
simboliza a qualidade de energia que afasta os obstáculos psicofísicos
do sujeito: a potência do vento equivale a uma corrente de movimento
vital da existência que, através do treinamento meditativo, podemos
montar e domar como um cavalo.
No contexto budista, o vento também pode simbolizar as pulsões
psicofísicas de nossas emoções. A partir da prática meditativa
exercitamos o corpo mente e, consequentemente, o fluxo eólico de
pensamentos e de estados emocionais para que, com o tempo, comecemos
aos poucos a domar nosso “cavalo selvagem” – que, em seu descontrole,
carrega ilusões e distrações cotidianas. Para o mestre Sakyong Mipham,
o Cavalo de Vento é “a capacidade de cavalgar a força e a vitalidade
inerentes da consciência desperta” (MIPHAM, 2008, p.37), como um campo
de força que surge quando experienciamos o momento presente.
Trungpa (2013), recorda que é a partir do Cavalo de Vento que
a presença autêntica do praticante se revela, de modo que, através
dele, este descobre diferentes formas de expressão da vitalidade –
contentamento, alegria, destemor e sabedoria – em sua relação com o
mundo. Como sol que alvorece, o procedimento é um meio hábil para o
ator/ performer acessar a prontidão do fazer artístico, o estado de
trabalho que ás vezes se perde no meio do treinamento, elevando sua
inspiração no instante da ação cênica. Esta experiência de apreciação
direciona a atenção para o momento do ensaio ou da cena, trazendo a
sensação abertura para o ambiente e para outro, bem como a sincronia
psicofísica do artista.
No budismo Shambhala, a instrução para a técnica consiste em
diferentes passos, que variam de acordo com os níveis dos aprendizes.
Trungpa Rinpoche inspirou-se na simbologia do Ikebana – arte japonesa
voltada para a elaboração de arranjos florais – para desenvolver a
vivência. Nela, as metáforas do céu, da terra e da humanidade são
evocadas para trazer inspiração para a cavalgada: o céu traz consigo
o espaço absoluto que move o meditador como uma página em branco
prestes a beijar um pincel, transmitindo em sua abertura um salto
para a experiência do vazio; a terra é a base relativa e prática
dos ensinamentos, referente ao chão que nos apoia e impulsiona na
caminhada; e a humanidade se dá na união destes dois princípios no
coração do praticante através da manifestação do instante presente
meditativo.
Iniciei a vivência de lungta com o Núcleo de Práticas Meditativas
no Treinamento do Artista no primeiro semestre de 2017 utilizando a
prática de cinco etapas, que ocorre da seguinte maneira: em primeiro
lugar o artista estabelece uma boa postura, tentando abandonar o
pensamento discursivo; depois abre a percepção para a sola dos pés e
para o topo da cabeça – a partir das metáforas do céu e da terra –,
sentindo a base do corpo e a vastidão do espaço; em seguida conecta
86

estes dois pontos de apoio no centro do peito, que se abre como um sol
radiante descascando suas camadas protetoras e sentindo o calor da
consciência desperta no instante presente – metáfora da humanidade;
depois disso, o praticante se entrega para a sensação de presença que
se espalha pelo corpo e busca ser genuíno com as impressões do momento,
sem interpretá-las; por fim, o artista irradia para fora de si o calor
do centro do peito e a qualidade de energia descoberta, ampliando-a
para o espaço ao redor e para o coletivo.
Ao longo da pesquisa de campo, a prática se mostrou de grande
valia para trazer de volta à prontidão do ator/performer que divaga
tanto na prática da Desaceleração, quanto na Dança Meditativa e na
Partitura Física. Nas experiências atuais com o grupo, começamos o
ensaio estabelecendo uma roda, entrando em contato com o espaço e, com
uma reverência ao coletivo, elevamos o Cavalo de Vento para iniciar os
trabalhos do dia. Da mesma maneira terminamos o ensaio, em círculo com
a prática de lungta e uma reverência de encerramento. Percebi que, para
trazer a abertura para prática meditativa, a técnica de cinco passos
é interessante pois o artista tem tempo para conectar-se com o corpo,
o agora, o ambiente e com as suas emoções, expandindo sua percepção
psicofísica para começar a vivência criativa do dia reconhecendo estas
sutilezas. A mesma observação é válida para o término do ensaio, pois
com o cultivo de si e do grupo podemos readentrar o cotidiano com a
nossa capacidade de apreciação desperta, de modo que arte e vida se
misturam.
Para acessar o Cavalo de Vento imerso no processo criativo,
compreendi que o procedimento de cinco passos era demasiado longo e
poderia atrapalhar o artista que se descobria perdido no meio de seu
percurso expressivo. Desta maneira, trouxe para os encontros a técnica
de três passos que, como um sopro, traz a brisa do instante presente
para ator/performer que contempla e se inspira nesta qualidade de
energia para poder continuar agindo com disponibilidade em cena. A
experiência de evocar o Cavalo de Vento em três passos se dá seguinte
forma: primeiro aprimoramos nossa relação com nosso corpo e emoções
buscando estabelecer um estado de presença; depois, a partir desta
condição de abertura sentimos brotar a confiança na genuinidade de
nossas ações; e, por último, irradiamos para o espaço as sensações da
prática e seguimos desempenhando o que estávamos fazendo anteriormente.

Voltando aos quinze dias que realizamos nossa prática


ininterrupta, em silêncio, sendo genuínos, estando presentes
e reverenciando o Cavalo de Vento, foi como se abrisse o
meu coração para o universo, o silêncio me levou para uma
esfera muito particular, o meu autoconhecimento, em busca
de realizar melhor meu oficio, não só por uma estreia, mas
para mim mesma, meus sentidos, meu eu, com a energia a
mil e muita disposição para criar e me experimentar (…)
No jogo cênico descobri que não posso querer ter conforto,
estar presa. Sentimentos: estado de batalha, presença,
busca interior, montada em um cavalo, vigiando uma guerra
com resistência, com velocidade e as vezes desacelerando,
acelero e corro, isso é minha estratégia que acabou se
tornando matriz de movimento (Diário de Bordo de MJ*, 18
set.2017).
87

Os relatos da atriz em seu diário de bordo revelam o diálogo entre


espontaneidade e estrutura na construção de sua matriz de movimento
com o apoio da prática do Cavalo de Vento. Plá declara que, no contexto
de busca da organicidade do artista na prática cênica, “não se pode
controlar ou prender o vento, mas se pode cavalgá-lo, abrir corredores
por onde ele pode correr, assim não se cristalizam as formas, mas se
retorna aos pontos de relação” (PLÁ, 2012, p.73). Neste sentido, elevar
lungta pode ser um veículo para a percepção da experiência direta da
criação, de modo que o artista cultiva a si mesmo e, consequentemente,
seu processo criativo, a partir deste ponto de referência e apoio.
Para Chögyam Trungpa, o procedimento afasta as dúvidas do
praticante, trazendo a confiança em suas capacidades. A técnica foi
elaborada no início da década de 1970, quando o mestre tibetano
cria o Mudra Theater Group, companhia teatral que fundou com seus
estudantes baseada em princípios meditativos voltados para a cena,
cuja sistematização foi chamada de Mudra Space Awareness – ou Gesto
de Consciência Panorâmica no Espaço (tradução literal). Esses
experimentos são de difícil acesso, pois Trungpa nunca realizou
demonstrações de trabalho, apenas esparsas apresentações.
As informações que temos é que o coletivo se encontrava três
vezes por semana para exercitar procedimentos influenciados pela dança
monástica tibetana, pelo teatro experimental ocidental da época e suas
reinvenções da noção de sagrado – Living Theatre, The Byrd Hoffmann
School of Birds, Open Theatre, as práticas de Meredith Monk, entre outros
–, e pela noção de meditação na ação: experiência contemplativa que
se expande para a vida e para o engajamento com o mundo. Os princípios
do grupo relacionavam-se com algumas das práticas que são defendidas
nesta tese – como a desaceleração das atividades cotidianas para depois
reconstruí-las cenicamente; a elaboração de movimentos precisos e
lentos acompanhados de respiração intensa; a meditação caminhando como
forma de trabalhar a experiência de shámatha-vípashyana fomentando a
relação do ator com o espaço que o circunda e a transformação dos seus
modos habituais de utilizar os sentidos por meio da meditação.

Esteja presente
Seja genuíno
Solte e irradie

Instrução de
Chögyam Trungpa Rinpoche
para a elevação do
Cavalo de Vento

Durante o treinamento pude observar que, com a técnica, os artistas


ativam o foco para suas ações e, em boa parte das vezes, chegam a
encontrar novos gestos expressivos tanto na Dança Meditativa, quanto
na Partitura Física. No exercício de Desaceleração o procedimento serve
como estímulo para o ator/performer que tem dificuldades de concentração
e de abertura para a superação de seus limites, principalmente quando
realizamos a prática por um longo período de tempo. Ao contrário do que
88

observei no início da pesquisa de campo, com as mudanças de horário


dos encontros do grupo para a manhã ou para a noite nos semestres
posteriores – 2016 e 2017 –, e com as alterações de maturidade e
personalidade das turmas, a Desaceleração não era adequada para
iniciar os trabalhos em algumas ocasiões: os estudantes tinham sono,
se cansavam com facilidade, demoravam muito a se concentrar, desistiam
ou mesmo achavam a experiência maçante, de modo que precisei buscar
outras estratégias de ação para aliar ao exercício, como o Cavalo de
Vento.
Este fato demonstra o maior aprendizado que tive ao longo da
investigação: no treinamento do artista da cena e na elaboração da
tese-criação é preciso saber lidar com a impermanência. Não existem
fórmulas e soluções concretas, apenas pistas de um caminhar que
funcionam (ou não) em um contexto específico, com um grupo específico de
pessoas. Portanto, a poética do inacabamento se fez presente durante
toda a pesquisa e as vivências que estão sendo aqui reveladas foram
constantemente adaptadas às necessidades de cada coletivo com quem
trabalhei e sigo trabalhando, como o Núcleo de Práticas Meditativas
no Treinamento do Artista.

Como os atores bem sabem, no instante em que se


está emocionalmente preso num estado fixo, a
interpretação nos escapa (…) Um bom cavaleiro
se esforça conscientemente para unir-
se a seu cavalo, deixando-o mover-se
livremente, ao mesmo tempo que está no
controle de cada ação. Damos ordens ao
cavalo, estamos no comando. O cavalo
segue nossa vontade, mas quando estamos
montando bem o cavalo se esquece de
nós, e nós nos esquecemos do cavalo.
O impulso do cavalo e o impulso do
cavaleiro unem-se até que não haja mais
separação. Não basta apenas adquirir
uma dinâmica do corpo (cavalo) e uma
mente tranquila e alerta (cavaleiro). É
preciso também encontrar meios de reuni-
las, para que esses dois opostos possam
facilmente trabalhar numa harmonia relaxada
(MARSHALL apud OIDA, 2001, p.73-74)

Para Yoshi Oida – ator japonês que se relaciona


com o zen budismo e outras tradições orientais em seus trabalhos – a
mente dos atores é como o cavaleiro e o corpo é como o cavalo. Juntos
eles passeiam por diversos territórios psicofísicos – campos abertos e
densas florestas – sem demonstrar agitação ou instabilidade. Em busca do
equilíbrio de suas ações artísticas, o ator/performer medita para não se
sentir prisioneiro de suas emoções ou estados de ânimo. Esta qualidade
de serenidade não traz rigidez para a cena, “mas uma prontidão fluida que
nos permite responder às mudanças do mundo à nossa volta” (OIDA, 2001,
p.72): o Cavalo de Vento alivia as oscilações e confusões do artista,
trazendo disponibilidade para as inspirações e pulsões criativas que
ocorrem na efemeridade de cada momento do ensaio/apresentação.
89

Imersa em indagações acerca da prática do exercício de Desaceleração,


em julho de dois mil e dezessete tive a oportunidade de acompanhar
um ensaio do grupo Dançaberta – dirigido por minha orientadora Julia
Ziviani Vitiello – que preparava-se para a estreia do espetáculo
Resvala em Silêncios, no qual o procedimento é parte da investigação do
processo criativo. Na obra, a companhia investiga as possibilidades do
silêncio tanto na dança, quanto em nosso cotidiano, cujos significados
vão além da ausência de ruídos no ambiente, ampliando-se para
experiência contemplativa do artista. Ao assistir aos aquecimentos e
preparações para a coreografia, pude observar que o coletivo trabalhava
a manipulação corporal dos artistas ao longo da Desaceleração, bem
como jogos de transição entre este exercício e a aceleração dos corpos
para a liberação do estado ensimesmado do artista que pode ocorrer
durante a prática.
Este acaso criativo no percurso da pesquisa me trouxe um estalo: era
preciso trazer para o treinamento uma contraposição a Desaceleração,
pois muitas vezes a Dança Meditativa não era suficiente para dar
conta dos múltiplos aspectos da atuação, minimalistas ou dinâmicos.
Neste sentido, estou aos poucos descobrindo maneiras de buscar este
equilíbrio, seja com os ásanas e exercícios de respiração do hatha
yoga, com o engajamento do artista na limpeza do espaço de trabalho, ou
mesmo com o aumento paulatino da velocidade do procedimento meditativo,
ou com o estabelecimento de um dinamismo interno quando a ação cênica
está ralentada e vice-versa31.

Posteriormente, descobri que uma das categorias de exercícios do


Mudra Space Awareness de Chögyam Trungpa Rinpoche era a intensificação
corporal em contraposição ao relaxamento. Craig Smith (2005) revela que
o procedimento de intensificação fomenta o comprometimento psicofísico
do artista e, ao mesmo tempo, pode ser interessante para trabalhar
oposições corpóreas – com partes relaxadas e outras mais tonificadas –,
desenhando no espaço matrizes de movimento com uma gama de energias
variadas. O pesquisador afirma ainda que as experiências de intensificação
e relaxamento eram trabalhadas no grupo a partir dos pés subindo
até a cabeça, o que se relaciona com as metáforas do céu e da terra
estabelecidas pelo mestre na prática do Cavalo de Vento.

Pés, contrários aos céus. Assim, eles se tornam o elo


natural, aquele através do qual nos ligamos à terra. Sua
oposição à cabeça cria como que uma linha mestra, da base
ao ponto mais alto do corpo, que possibilita os membros,
isto é, as pernas e os braços estarem conectados ao potente
torso, a liberdade necessária para se moverem em sincronia
(...) Esta curiosidade própria dos pés, congênita neles,
faz parte inerente da vida do corpo que, no seu movimento
ininterrupto, contam com eles para explorarem lugares e
situações diferentes. Experimentar, descobrir e saborear
cada novo percurso. Pois nada substitui a deliciosa
sensação proveniente do equilíbrio entre ter os pés na

31  Aprofundaremos essas práticas no próximo capítulo.


90

terra e abraçar o espaço. O sentimento de segurança para


voar, ser quase levado pelo vento, mas permanecer firme
como as árvores o fazem. Seus galhos e folhas podem ser
violentamente impulsionados pelo ar, quase arrancados pela
violência dos ventos, mas sabem que, quando o vendaval
terminar, eles continuarão sólidos no tronco da árvore
(VITIELLO, 2004, p. 44).

Os símbolos da terra, do céu e da união entre ambos no centro


do peito do meditador são representações utilizadas em tradições
espirituais diversas, tanto orientais, quanto ocidentais. Na prática do
Cavalo de Vento, estes signos figuram qualidades de sensação que incitam
o trabalho do ator/performer, tais como: a estabilidade e força
provenientes do solo, a vastidão do corpo no espaço da cena e do
firmamento, e a expansão solar e intuitiva que irradia nossas
percepções artísticas no instante do treinamento. Ao sentir os
pés no chão, nosso corpo mente se equilibra na gravidade e nos
permite estar presentes, criando uma base que empodera e traz
pertencimento para a prática cênica. A medida que elevamos
esta potência ao longo da coluna em direção ao topo da cabeça,
vamos soltando nossos pontos de referência e abrimos nossa
mente discursiva rumo ao insondável: a experiência estética
que ultrapassa os conceitos que podem ser ordenados em uma
tese. Finalmente, respiramos e permitimos esta vivência
criativa inominada estender-se para o ambiente e para
o outro – nossos parceiros artísticos – dissolvendo-se
no espaço.
Essa dissolução, para Trungpa (2013), relaciona-se
com a capacidade de conseguir relaxar e dançar em
meio a disciplina da prática. O mestre afirma que
esta qualidade relaxada não é simples, pois emana
através da sintonia com o ambiente
para a sua apreciação, como um
sopro de energia autogerada do sujeito.
Neste sentido, essa experiência da beleza tem
um frescor que precisa renovar-se a cada momento, a cada
instante de distração do artista em sua prática.

Uma das novidades desse modulo é o cavalo de vento. Esse


exercício evoca nossa natureza interior provocando um
certo vigor que é determinante, pois essa força nos leva
a concentração e orientação que é forma essencial da
pesquisa. Nossa essência tem tudo a ver com essa metáfora,
e o que mais me chama atenção é o poder que as palavras
passaram a ter para mim, estou aprendendo a ouvir e
sentir mais tudo ao meu redor (...) A potência de nosso
interior é acionada com o exercício cavalo de vento,
sendo este basal, quando acionado faz o encontro corpo e
alma acontecer. Esse aprendizado propaga em mim ânimo e
base para potencializar minha observação enquanto atriz
(Diário de Bordo de LN*, 24 ago.2017).
91

Em suas aulas, Yoshi Oida traz da espiritualidade japonesa e


chinesa a conexão entre céu e terra na geografia do corpo do ator,
promovendo uma fisicalidade cênica fluida como água entre estes dois
pontos. Para o ator, dançamos essas metáforas mesclando três direções
ao mesmo tempo – para cima, para baixo e para fora –, de modo que nossa
coluna age como uma ponte que liga essas fontes de energia e, ao longo
deste treinamento, “nos sentimos suspensos e equilibrados por essas
duas forças, portanto a ação física se tornará mais fácil e obteremos
foco para nossa concentração”(OIDA, 2001, passim). No contexto do
exercício, a verticalidade da espinha dorsal nos recorda que estamos
vivos, pois a postura ajuda a romper com nossos padrões habituais e
a dissolver nosso casulo, abrindo pequenos raios de sol no meio das
nuvens do ego e dos pensamentos: relaxamos na vastidão do espaço.

Havia um famoso ator de kabuqui, que morreu há cerca de


50 anos, que dizia: “Posso ensinar-lhe o padrão gestual
que indica olhar para a lua. Posso ensinar-lhe como fazer
o movimento da ponta do dedo que mostra a lua no céu.
Mas da ponta do seu dedo até a lua, a responsabilidade é
inteiramente sua”.
Yoshi Oida

Em paralelo a estes questionamentos, me indagava preocupada sobre


como estas experiências sensoriais simbólicas ainda tão sutis em meu
próprio corpo reverberavam nos estudantes. Aos poucos pude compreender
que estas imagens – budistas ou de outras tradições espirituais
milenares – não deveriam ser encaradas como uma verdade rígida e
encarnadas de modo homogêneo no corpo mente dos sujeitos: cada uma
delas carregava em si mesma cargas metafóricas geradoras que, em
contato com as diferentes subjetividades dos artistas envolvidos,
traçava caminhos possíveis para a criação de cada um. Gaston Bachelard
(1989) recorda que os símbolos derivam do encontro entre múltiplas
tradições, constituindo-se em uma teia complexa de matizes culturais
que se sobrepõem uns aos outros e que serão reanimados de distintas
maneiras de acordo com os estados de ânimo e referências de quem os
contempla.
Visando incitar as práticas extraclasse dos estudantes – já que
alguns deles levaram o Cavalo de Vento para as suas vivências cotidianas
–, trouxe para os encontros caminhos contemplativos oriundos do yoga
clássico e do hatha yoga, que veremos ao longo do próximo capítulo.
O que importa agora é falar sobre dharana, um exercício pautado no
treinamento da concentração a partir da observação de único ponto,
sistematizado por Patañjali na obra Yogasutra. Para este sistema,
a contemplação acalma os pensamentos e prepara para a meditação
propriamente dita, “produzindo a fusão da consciência concentrada com
o seu objeto de concentração” (GULMINI, 2002, p. 264).
Comecei trazendo para os encontros o exercício mais conhecido de
92

concentração yogue: a contemplação fixa da chama de uma vela. Como os


participantes da investigação relatavam dificuldades em permanecer no
estado meditativo da Desaceleração – sempre breve e “em flashes” –,
percebi que precisava oferecer apoios para o fortalecimento da atenção
dos artistas. Moreira (2006) recorda que dharana é um treino importante
para a estabilidade do corpo mente, pois o objeto contemplado funciona
como suporte para a permanência da consciência, que não se perde
divagando em fantasias como muitas vezes acontece na meditação.
Escolhi uma vela aromática para facilitar o percurso de
observação e, sentados em roda na sala escurecida, dirigimos o
olhar para o centro da chama, lembrando sempre de respirar
e tentando piscar o mínimo possível. De início praticamos
por cinco minutos e, ao longo dos ensaios, passamos para
dez minutos. Ao terminar o exercício, fechamos os
olhos imaginando a chama observada no ponto entre
as sobrancelhas – Ajna chakra – por
alguns minutos e depois refazemos
a prática.

Para Bachelard (1989), a chama da vela impulsiona o fazer artístico


porque é constituída de uma substância poética ativa que, como impulso
vital, nos excita o imaginar. Como operadora de imagens, a flama
estimula os devaneios criativos e atrai o olhar para suas cores
brilhantes: branco, azul, vermelho e amarelo se misturam em direção
a verticalidade do cosmos. Para o pensador, a chama traz consigo uma
pulsão de Ícaro, através dela rompemos as barreiras de nossos casulos
de conforto e qual borboleta recém-parida ascendemos em direção ao Sol
glorioso.
Transcendendo a realidade cotidiana, a crisálida desafia nosso
medo de cair no chão e se oferece em sacrifício às belezas da vida e
às metamorfoses do astro rei que acalenta e, ao mesmo tempo, arde. O
fogo transforma o meditador em filósofo potencial que, ao contemplar
sua luz trêmula, encontra o agora e o vir a ser expandindo-se no
espaço. A chama dança e brinca com nossa presença, em suas constantes
mutações conclama fantasias e indagações acerca de nossa existência
desacelerando o tempo – que se dilata, podendo ser leve ou pesado
e, por vezes, gerar angústia e irritação ao observador principiante
ou, ao contrário, escorrer para acima da vela trazendo instantes de
sublime por meio de sua sensação de leveza.

Nos foi solicitado que sentássemos em roda ao redor da vela,


esta aula seria mais introspectiva no que diz respeito
a nossa movimentação, neste dia faríamos um exercício de
concentração, ainda com o intuito de desaceleração, mas sem
andar pelo espaço. Devo dizer que esta foi uma das melhores
aulas para mim. Sentados no círculo nos foi solicitado que
olhássemos para a chama da vela que encontrava-se ao centro
da roda e tentássemos esvaziar a mente criando uma relação
93

de desaceleração do pensamento. Respirei fundo e me pus a


observar a chama minuciosamente até que me sentisse
mais a vontade em um ponto específico, durante
este “caminhar” com o olhar, pude sentir
uma espécie de relaxamento adentrando
o corpo, porém era algo que me
mantinha em estado de alerta e não
com “sonolência”, em determinado
ponto fixei o olhar no meio da
chama e pude então meditar. A
partir desse momento sentia
como se meus sentidos e
percepção das coisas ao
redor estivessem dilatando,
quanto mais fixamente olhava
para a chama, mais a minha
visão periférica destacava-
se, conseguia observar
mesmo as pessoas e detalhes
mais distantes (...) Devido
a dilatação e “aguçamento”
dos sentidos pude observar
detalhes mais minuciosos, até
mesmo os pequenos movimentos
de quem estava fora da roda e,
tudo isso, sem tirar os olhos da
chama da vela. Este fato me remete à
questão de nos silenciar para prestarmos
atenção ao que ocorre no cotidiano e que as
vezes passa por nós de forma atropelada e também
à questão citada por Grotowski de que “a arte do performer
torna-se um veículo para algo maior: uma transformação
profunda do sujeito, dos seus modos de perceber e agir”
(Diário de Bordo Semestral de OD*, 27 out.2015).

Lilian Gulmini (2002) recorda que, se a vivência da concentração


é bem sucedida, podemos através dela chegar à meditação. O retorno
positivo de parte das turmas me estimulou a seguir com a prática,
aprofundando-a a partir das observações relatadas. Notei que muitos
encontravam dificuldades em permanecer na quietude sentados, pois
sentiam dores no corpo que atrapalhavam a concentração e, por isso,
verticalizei a prática de ásanas32; todavia reparei que os estudantes
lacrimejavam muito e sentiam a vista cansada, portanto trouxe exercícios
de yoga para olhos e massagens faciais.
Patañjali afirma em seu tratado que, dependendo do estado de
concentração, é possível fundir a consciência com o objeto contemplado
(samapatti). Neste sentido, o corpo mente mistura-se ao artefato
escolhido em um processo sinestésico de integração com a matéria, de
modo que o objeto se transforma em um veículo para a percepção sutil da
realidade. Desta maneira, aos poucos o praticante consegue controlar
os movimentos da consciência33.

32  Veremos no próximo capítulo.


33  “3.1 – Concentração é a retenção da consciência num ponto.
94

Com o tempo, passamos a praticar dharana com diferentes


objetos: flores, mandalas, copos d’água ou mesmo artefatos
pertencentes a personagens que estavam sendo construídos, ou
que simbolizassem a relação do ator com uma dramaturgia, com
um programa performativo, ou com um desejo de criação. Acredito
que, somente o fato de buscar cuidadosamente um objeto que tenha
relação com uma vivência artística já incite o processo criativo de
cada artista, de modo que a prática pode trazer ideias para uma
partitura física, mudar o rumo de uma cena, ou ainda ressignificar
um gesto, um olhar, uma pausa para respiração durante a palavra
expressiva.
Nas vivências do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista a contemplação da chama da vela
transformou-se em prática constante. Os participantes
aderiram o procedimento em suas vidas diárias e, em sala
de ensaio, por vezes realizamos o exercício ao final do dia
de treinamento, ou mesmo quando a desconcentração se faz
presente de forma incisiva no coletivo. Acredito que ainda
preciso aprofundar as experiências com os outros objetos
de concentração citados acima, pois em boa parte das ocasiões
precisei trazer a chama para a serenar o estado de agitação do
grupo: os próprios estudantes sentem falta da vela e perguntam por
ela quando porventura esqueço de colocá-la no centro da roda em que
praticamos os ásanas, por exemplo.

Não existe, para nós, um paradoxo inútil em colocar


tantas fantasias sobre a chama de uma vela? O mundo
anda depressa, o século se acelera. O tempo não é
mais o das lamparinas e das palmatórias. Somente
sonhos decrépitos se ligam às coisas sem uso. A
resposta a essas objeções é fácil: os sonhos e
as fantasias não se modernizam tão rapidamente
quanto nossas ações (...) As fantasias da
pequena luz nos levam de volta ao reduto da
familiaridade. Parece que existe em nós cantos
sombrios que toleram apenas uma luz bruxuleante.
Um coração sensível gosta de coisas frágeis
(BACHELARD, 1984, p.14).

Para Bachelard, o chiaro-oscuro da chama reflete os matizes


de cinza de nosso psiquismo. A vela é testemunha da página
em branco que observa a promessa de construção da poesia, o
artista medita sobre ela para aprender a lidar com o vazio. Plá
(2012) recorda que, no budismo tibetano, o treinamento preliminar
da prática de shámatha também se dá a partir da contemplação de um

3.2 – Meditação é a continuidade da atenção unidirecionada nesta cognição.


3.3 – Isto resulta, de fato, na integração: a aparição do objeto em sua totalidade, como que esvaziado de natureza
própria.
3.4 – O trio unificado chama-se controle.
3.5 – Da sua conquista, vem à luz o saber intuitivo”(PATAÑJALI apud GULMINI, 2002, p.295).
95

objeto. Neste contexto, para a consciência poder se tornar


objeto de si mesma, é preciso antes direcionar a atenção
para um ponto e buscar estabilizar-se nele durante um
determinado período de tempo. O pesquisador declara ainda
a importância de estabelecer o foco para elementos simples e
coisas neutras para depois poder praticar contemplações mais
elaboradas. Talvez por isso a vela ainda esteja tão presente
nas vivências de minha pesquisa de campo, tivemos necessidade de
permanecer nela por uma temporada e, quem sabe agora, possamos dar
mais atenção para artefatos mais complexos.
Ao longo dos semestres nos quais trabalhei estas práticas com os
estudantes, de tempos em tempos os coletivos reclamavam de dores na
execução dos exercícios em sala e nas meditações extraclasse. Parte
das turmas manifestava nos diários de bordo as sensações de peso
excessivo, de falta de equilíbrio e coordenação motora tanto na
Desaceleração, quanto na prática de ásanas e nas partituras
físicas.
Mípham (2003) observa que sentir dor durante a meditação
– como pressão nos joelhos, tensão nos ombros e incômodos
na coluna – é um obstáculo que nos impede de desfrutar
a prática. O mestre afirma que precisamos aprender a ser
compreensivos conosco, de modo que vamos nos acostumando com
as posturas – sentadas e em pé – de forma progressiva numa
disciplina gentil. Portanto, é importante preparar-se para a
experiência com suavidade e precisão, tanto com exercícios de
yoga, quanto com a prática regular e constante.
Naquela primeira experiência com os estudantes, ainda tateando
às dinâmicas do treinamento e comprometida com as apresentações de
final de semestre, tentei sanar os problemas de desconforto reportados
apenas intensificando a prática de ásanas nas aulas. Nos semestres
seguintes, reorganizando as disciplinas e buscando caminhos para a
coordenação do projeto de extensão Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista, percebi que era preciso refletir mais acerca
do ambiente em que estava inserida, detectando suas deficiências,
criando alternativas e revendo os excessos da técnica de posturas
yogues.
Em princípio, preocupei-me com as dificuldades encontradas na
Desaceleração, como a falta de equilíbrio, o peso no corpo e a dor
ao caminhar por um longo período de tempo. Sejenovich (2016),
afirma que é necessário ampliar nossa percepção para compreender
as zonas do corpo mais relevantes para o alinhamento nas posturas
de yoga, dirigindo nossa atenção para a anatomia da prática.
Seguindo esta lógica, os pontos do corpo mais proeminentes na
meditação caminhando são os pés que, para a autora, geralmente
estão esquecidos ou oprimidos em sapatos incômodos.

Somente depois do pesar do corpo e da sensação de estado


de pertencimento, é que não pensei em nada, meu corpo me
levava e me aguentava, parecia flutuar, o pé comandava (...)
Mas demorou esse processo, afinal na minha vida pessoal sou
96

muito acelerada e às vezes pensava até como iria pisar, e


depois o peso do corpo era tanto, que me desequilibrava e me
equilibrava de novo até conseguir  me deixar levar, com um
tripé de sentimentos: cansaço, concentração e leveza (Diário
de Bordo Semestral de MJ*, 17 dez.2015).

Acredito que esta preocupação inicial com os pés e com a caminhada


se deu devido ao acidente de carro relatado no capítulo anterior. No

primeiro semestre de 2016, com os joelhos machucados, saía da amnésia


sensomotora para, através da dor, repensar a ação da gravidade sobre
o meu corpo e sobre os corpos dos estudantes. Neste contexto, muitas
vezes, o consultório médico e a prática de treinamento artístico se
misturavam: enquanto lutava com os pontos de apoio do pé a partir dos
estímulos da fisioterapeuta, pensava o desenho de uma boa fisiologia
podal nos exercícios propostos em sala de aula.

CALCANHAR
DEDINHO
DEDÃO

Os pontos de pressão do pé no chão – calcâneo, cabeça do quinto


metatarso e cabeça do primeiro metatarso – formam arcos plantares que
distribuem o peso do corpo por meio de forças de oposição que impulsionam
a marcha e amortecem os impactos. Neste vaivém entre flexibilidade e
resistência, Sejenovich propõe que, a partir da consciência de si,
deixemos a batalha com a gravidade substituindo-a p e l o d i á l o g o
a m o r o s o s o entre peso e contrapeso. P o r t a n t o , é i m p o r t a n t e
97

exercitar a estrutura dos pés,


compreendendo sua forma,
visualizando o triângulo de
apoio podal e estimulando seus
sensores.
Bertazzo (2012) reforça
a importância de modelar,
massagear, movimentar e
provocar o triângulo de sustentação dos pés para o equilíbrio e
para a transmissão da força muscular pelo corpo. Entre cada ponto de
apoio plantar existem formas abobadadas distintas: o arco longitudinal
que desenha-se do calcanhar ao dedinho de m o d o
retroalimentativo, amortecendo e distribuindo o peso do
corpo; e o arco transverso que se dá entre o dedinho e o
dedão do pé, cuja função é redistribuir o peso e provocar a
propulsão do caminhar. Deste modo, para aprofundar a Desaceleração,
procurei trabalhar com os estudantes diferentes formas de
despertar os pés para o exercício, ampliando sua percepção.
Pensando novamente na possibilidade de manutenção do treinamento
em horários extraclasse, busquei a interação com materiais simples,
fáceis de serem adquiridos e utilizados em casa. Em primeiro lugar,
peço para o grupo colocar-se em tadásana34, postura yogue da montanha,
fechando os olhos e observando como habitam o corpo naquele
momento, investigando apoios, dores e incômodos. Depois disso,
ainda em pé, massageamos calcâneo e metatarsos com bolinhas de
tênis, colocando o peso do corpo nestes pontos para que,
aos poucos, a bola parada abra estas zonas, que cedem ao
contato contínuo com o objeto. Mudamos a bolinha de lugar
de quando em quando, massageando livremente a fáscia plantar, abrindo
dedos e falanges.
Após uns cinco minutos de exercício, largamos a bolinha e, mais
uma vez em tadásana – posição de referência anatômica –, sentimos a
diferença entre o pé estimulado e o não trabalhado e, assim, ampliamos
nossa percepção corporal. Depois caminhamos pelo espaço para reforçar
as sensações da prática, e então exercitamos o outro lado. Bertazzo
afirma que exercícios como este incitam tanto os sensores do periósteo
– membrana com terminações nervosas que envolve o osso – quanto os
da pele, “enviando ao sistema nervoso central informações sobre os
diferentes desenhos assumidos pelo pé durante a locomoção” (BERTAZZO,
2012, p.102).
Ao terminar a prática, os estudantes caminham pelo espaço levando a
atenção à dinâmica da marcha, localizando os pontos de apoio trabalhados
e a transferência de peso até que, com o tempo, não precisem mais pensar
tanto nestes elementos, pois o treino estimula a organicidade motora.
A vivência – que pode também ser associada à massagens entre os dedos
e calcanhares para modelar os arcos – serve como aquecimento para os
encontros, trazendo o equilíbrio e a consciência da linha central dos
pés, favorecendo a Desaceleração.

34  Ver primeiro capítulo.


98

Os exercícios com as bolas tiram o stress de pontos


específicos que vão sendo tensionados. A fricção entre
os dedos foi difícil mas deixou um tanto de alivio que
foi percebido antes mesmo de pegar o outro pé. Quando
me auto massageei a atenção se voltou para mim, isso

fez com que aumentasse minha percepção. Aos


poucos fui desacelerando, compreendendo e
tentando abranger outros campos interpessoais.
Assimilar a massagem e seus benefícios propicia
ao indivíduo sinais que alertam o corpo, deixando-o mais
disposto (...) Os exercícios de base foram bem proveitosos
e me fizeram encontrar outras formas corporais, na hora
de desacelerar me ajudou bastante, gastei menos energia
muscular (oxigênio) e meu corpo alcançou serenidade. Esse
ponto é importante falar porque, o corpo e mente se fundem
(Diário de Bordo de LN*, 04 mai.2016).

Outro exercício trabalhado em sala de aula prepara o corpo para


a marcha a partir da interação dos pés com um bastão de madeira.
Adaptado da vivência com Ivaldo Bertazzo, neste treino os estudantes
equilibram-se em bastões posicionados verticalmente no chão, criando
um trilho que deve ser atravessado de uma ponta a outra sem cair.
Ao longo da prática, os artistas devem tentar olhar para o horizonte
orientando seus deslocamentos pelo espaço, e lembrar dos apoios dos pés
na transferência de peso evitando movimentos de inclinação do tronco.
Bertazzo (2014) recorda que a instabilidade da prática traz tônus para
a musculatura deixando-a mais ativa e alerta e que, ademais, gera uma
zona de prontidão importante para a reorganização motora do sujeito.
Variações do exercício servem para a estimulação tátil dos pés, assim
99

como a vivência com as bolinhas de tênis: podemos subir horizontalmente


no bastão massageando os apoios e abrindo os dedos como um papagaio
no poleiro, buscando suporte no centro do corpo - localizado na bacia.
Também podemos movimentar os tornozelos estimulando sua propulsão ou

apoiarmos no meio dos pés abrindo seus arcos. Após a prática, retomamos
a caminhada distribuindo o peso entre os pontos e buscando suavizar o
impacto dos pés contra o chão, prestando atenção na alternância sutil
entre flexão e extensão das pernas, sem forçar as articulações dos
joelhos.
Julia Ziviani Vitiello (2004) recorda que cabe aos pés a função de nos
conduzir pelos caminhos. São eles que, a despeito de serem considerados
meramente utilitários em comparação aos devaneios intelectuais e às
emoções, trazem suporte e equilíbrio metamorfoseados em porto seguro
para um corpo que se estrutura no espaço e enfrenta os desafios do tato:
atraindo e se opondo ao que o chão lhe oferece. Os pés são fonte do contato
primeiro com as forças da natureza e, maleáveis, adaptam-se as intempéries
dos trajetos. Nas artes da cena, os pés precisam vencer as dificuldades
estruturais que lhe são características para serem capazes de sustentar
a presença cênica. Suas tensões podem desestabilizar a composição do
corpo do artista e, se devidamente relaxados e com prontidão, convertem-
se em uma passagem para fluxos energéticos distintos, provenientes tanto
das “entranhas da terra” (VITIELLO, 2004, p.46) quanto dos impulsos
psicofísicos do ator/performer ao longo de seu processo criativo.

Raízes poderosas do corpo, seu suporte


possibilita que a estrutura do torso se
mantenha erguida, e que de seu tronco
central surjam os braços, para se
projetarem através do espaço e deixarem
a cabeça livre para seguir em direção
à luz, como fazem as árvores com o sol
(VITIELLO, 2004, p.47).

As práticas de anatomia vivencial


despertam a inteligência psicofísica
e facilitam a meditação caminhando.
100

Esta, para Deshimaru, deve evocar o andar de um tigre,


pois o animal desloca-se pela selva seguro de seu centro,
com equilíbrio e tranquilidade, de modo que “o apoio do pé é
firme e silencioso, como o passo de um ladrão” (DESHIMARU, 2002,
passim). Refletindo sobre esta e sobre outras metáforas budistas
para a compreensão do modo de caminhar da meditação, recordei dos
procedimentos de composição física para treinamento do ator elaborados
pela atriz italiana Roberta Carreri – do grupo Odin Teatret – que
vivenciei entre 2009 e 2010 ao longo da pesquisa de campo do mestrado
(POTY, 2015). Em diferentes etapas de sua trajetória, a artista concebeu
diversas imagens para dar suporte para o ator encontrar a sua presença
cênica nos exercícios e para poder criar na relação com o espaço e com
os seus companheiros de cena: na caminhada, muitas vezes realizada em
slow motion, buscamos maneiras diferentes de mover o corpo no ambiente,
inspirados por imagens voltadas para a reverberação de associações
físicas/criativas no instante da cena.
A partir desta lembrança, em ensaios voltados para a preparação de
partituras, trouxe para o final da instrução do exercício de Desaceleração
metáforas para fomentar a criação do grupo. Os artistas deviam
pisar no chão como se estivessem tocando areia quente, ou ondas
do mar, pregos, cubos de gelo, barro, fogo em brasa, dentre
outras imagens que se modificavam de acordo com a temática
das cenas ou com as necessidades do coletivo. Por vezes,
ficávamos por pouco tempo em uma imagem que se mostrava
banal ou desinteressante, por outras, nos alongávamos em
uma delas por diversos ensaios, como a imagem de pisar
em corpos mortos dilacerados pela guerra que se estendeu
por todo experimento do Núcleo de Práticas Meditativas no
Treinamento do Artista com a obra As Troianas.

Quando nos foi dito que estávamos em um local cheio de


corpos espalhados pelo chão, senti repulsa e em todos os
sentidos meu corpo não era mais o mesmo (...) Esses corpos
representavam, pelo menos para mim, a classe dos menos
favorecidos da sociedade, na qual eu me incluía. Sentia meu
corpo “morto” pisando em mortos, uma sensação estranha mas
necessária para que o universo da tragédia grega pudesse
vir à tona. O calor excessivo do espaço contribuiu para
que essas partituras tivessem maior veracidade. Um lamento
profundo ecoava do espaço, dos nossos corpos e mentes. Um
clamor pela vida se fazia necessário, e assim entre corpos,
suor e calor fomos criando movimentações individuais e
coletivas (Diário de Bordo de NR*, 16 out.2017).

A experiência amplia o repertório de movimentos do ator/


performer, trazendo consigo a continuidade da atenção dada aos
pés na Desaceleração, pois através dela desenvolvemos o exercício
aprofundando os princípios investigados. Ao mesmo tempo, pude perceber
que esta tentativa de sistematização de um treinamento se dava na
organização e posterior recriação de procedimentos provenientes de
diferentes tradições orientais e artistas inspiradores, inserindo
neles princípios que eu mesma inventava: aos poucos sentia-me mais
101

segura de minhas intenções com a prática proposta e transformava-a


a partir de processos intuitivos ou de descobertas provenientes da
repetição cotidiana de cada exercício.
Carreri (2011), ao refletir acerca dos exercícios de
acrobacia realizados nos primeiros anos do Odin Teatret, fantasia
“o chão como um mestre zen”(2011, p.46), trazendo despertar e foco a
cada queda. No contexto da tese, o chão também foi um mestre zen, porém
de formas distintas, de modo que desde a postura da montanha precisamos
estabelecer as bases podais/terrenas para crescer com elas em direção
ao céu. Desaceleramos e nos concentramos em como tocamos o chão, em como
ele se torna impulso para o deslocamento, em como a caminhada decidida
traz consigo a meditação e em como é bonito poder construir matrizes
de movimento buscando burlar criativamente esta estrutura aparentemente
fixa, passando por cima do tédio inicial com o treinamento.
Depois de aprender a como nos aterrar no solo, podemos brincar
com o equilíbrio e logo retornar a ele. Os impulsos metafóricos das
imagens trazem aos pés situações de jogo com a transferência de
peso, com a lentidão e a aceleração, com a precisão dos detalhes,
com as reverberações do estímulo através do corpo dos atores. Os
pés investigam mudanças drásticas na ação ou alterações mínimas
na intenção e na qualidade de energia do andar, reagindo
às metáforas e tentando dialogar com os temas propostos:
para Barba (2012), eles são como um microcosmo potente
para o ator e, portanto, precisam se desfazer do molde
dos sapatos apertados do dia-a-dia e desaprender a
reprodução automática da maneira de caminhar cotidiana.
São eles a base da atuação, quem decidem a configuração do
corpo e suas nuances na cena e, em liberdade, devem buscar
autodeformações criativas a cada obra.
O diretor italiano recorda ainda da Caminhada Deslizante dos
teatros Nô e Kyogen japoneses. Nestas duas linguagens artísticas, os
pés deslizam lentamente sem nunca desgrudar do chão como se flutuassem,
de modo que, nesses teatros, os artistas passam boa parte de sua
trajetória treinando rakobi – esta técnica específica de caminhar –
para o desenvolvimento de movimentos precisos e sutis. No palco desses
teatros existe ainda uma passarela chamada hanamichi, ou caminho das
flores, que divide a plateia ao meio e na qual os artistas entram e saem
de cena executando estes andares com diferentes estilizações: “é ao
longo desse caminho que ganha forma a flor maravilhosa, o mais alto grau
da arte do ator, segundo Zeami” (BARBA, 2012, p. 225).

Quando somos recém-nascidos, exploramos as possibilidades


de nossas mãos e pés. Mas, do momento em que começamos
a caminhar, nos dedicamos a utilizar nosso corpo de
modo mais funcional. Com o tempo nos tornamos tão
hábeis a ponto de podermos caminhar sem sequer pensar
nisso. Caminhar passa a fazer parte da técnica
cotidiana do corpo e, como tal, transforma-se
em um automatismo. O propósito do trabalho de
composição com as pernas e pés é experimentar
novas possibilidades (...) Para cada imagem,
mudo a direção e a velocidade no espaço,
102

buscando evitar as pausas, que são o resultado típico


da defasagem produzida pela separação entre pensamento
e ação (CARRERI, 2011, p.57).

Yoshi Oida (2001) afirma que, no teatro Nô, o movimento do corpo


muitas vezes se restringe às pernas e aos pés. Os artistas desenvolvem
uma aparência de serenidade apesar do esforço, de modo que parecem
sentados em seus próprios quadris, transmitindo tanto estabilidade
quanto fluidez no caminhar. As pontas dos pés agarram o solo e o foco
de energia se volta na reverberação do andar para o plexo solar –
hara –, centro de força que sustenta o ator em sua ação. Enquanto o
ator caminha não pensa em mais nada, pois o artista Nô se preocupa em
simplesmente executar sua atividade. Em meio a este estado de prontidão
muitos temas e imagens podem florescer a cada dia, para atores e para
espectadores.

P E N S A N D O

Cansada de tanto escrever, divago por alguns minutos mirando a


parede do meu quarto de adolescente na casa dos meus pais, até me
deparar com uma fotografia empoeirada em um painel, escondida por entre
postais e por minha antiga coleção de imãs de geladeira dos lugares
que tive a oportunidade de conhecer. Um punctum. Na imagem, em frente
ao portão de uma casa de pedra com jardim há um espelho de trânsito
e, refletida nele, me vejo dez anos
mais nova no meio de uma bifurcação
com um cajado amarrado no braço e uma
mochila nas costas, empunhando a câmera
que registrava a imagem. 17 DE MAIO
DE 2007, tinha acabado de completar
vinte um anos, os joelhos ainda não
doíam e, nesse protótipo de selfie,
me encontrava no meio do percurso do
Caminho de Santiago de Compostela para
Finisterre – fim do mundo –, destino das
primeiras peregrinações pagãs à região
por ser o ponto mais ocidental da Europa
e o último reduto de terra conhecido
antes da invasão das Américas. Essa é a
única imagem que tenho minha ao longo
da experiência, as outras se perderam
entre caixas de mudança e cds de arquivo
que já não servem para muita coisa.
Insight. Saio do contexto oriental
e recordo que minha primeira experiência
meditativa com a caminhada se deu em uma
atmosfera cristã, a despeito de nunca
103

haver frequentado igrejas ou mesmo ter sido batizada. Me lembro bem do


impulso que ocasionou a ação: as muitas brigas e desentendimentos com
minhas companheiras de república ao longo do período de intercâmbio
na Universidade de Santiago. Após um dia especialmente difícil na
véspera de um feriado, caminho até o centro da cidade para fazer
meu passaporte/salvo conduto de peregrina, depois p e g o u m
ônibus e vou a uma loja de departamento comprar os
suprimentos necessários, chego em casa e organizo
a mala. Parto na manhã seguinte sozinha com vinte euros nos
bolsos e a cidade ainda escura, com um mapa na mão e em busca dos
desenhos de conchas – símbolos deste caminho – que indicavam o
percurso.
Labbucci (2013), recorda da máxima latina solvitur ambulando
– caminhando se resolve – que se relaciona com este acontecimento
de minha trajetória. Ao longo da marcha, o prazer e a curiosidade
afloram e, aos poucos, o estado contemplativo provocado por essa
atividade dissolve as angústias do sujeito. As complicações e
problemas relacionados ao lugar que o caminhante ocupa no mundo
ficam em suspenso durante suas andanças e, a depender do tempo e
do comprometimento com a jornada, podem resolver-se no processo de
transformação do ser ao longo do caminho.
Para Frédréric Gros (2010), as peregrinações são como um
exílio. Aquele que perambula não tem parada fixa, dorme onde puder e
faz amigos na mesma medida em que se despede deles ao longo da
viagem. Na tradição católica, a vida também é um exílio – nossa morada
original é o paraíso, portanto nos conectamos temporariamente ao
divino com os passos terrenos – de modo que o cristão é um caminhante
passageiro neste mundo. Nesta conjuntura, caminhar é um chamado
do deus para espalhar a Boa Nova e abandonar o conforto na
demonstração da fé, escolhas estas que provam o desprendimento
material do meditador e sua devoção.
Gros ressalta que a vagarosidade do andarilho evidencia a
autoconfiança e o foco que se manifestam na regularidade de
seus passos. Não é preciso precipitar-se, as horas passam devagar
quando são degustadas: respiramos e mergulhamos cada vez mais na
mata escura, encarnando as quatro estações do ano durante o
trajeto. A demora traz familiaridade às paisagens e n q u a n t o
o tempo do caminhante escorre lento como gotas de chuva fraca
e “mais parece que a presença se instala lentamente no corpo”
(GROS, 2010, p. 43).
Para o pensador francês, a ascese se dá através do
cansaço e da humildade da caminhada, podendo ser acompanhada
por jejuns e preces em seu trajeto para a intervenção do santo
em algum assunto particular. Na Idade Média a peregrinação
era também uma punição, uma forma de exilar os ditos hereges e
isolar criminosos. Os pés, muitas vezes descalços e amarrados
por correntes, chegavam às paragens rachados ou em carne viva, e
eram lavados pelos monges na chegada do peregrino – costume que
permanece até os dias de hoje pois os caminhantes tiram os sapatos
ao avistar a Catedral de Compostela, construída em homenagem ao
santo, para poderem realizar a última parte do caminho descalços.
104

Humildade: aquele que caminha é o mais pobre dentre os


pobres. O pobre tem exclusivamente o corpo por única
riqueza. O caminhante é filho da terra. Cada passo é uma
confissão de gravidade. Cada passo prova que há uma ligação
e martela a terra como uma sepultura definitiva, prometida.
Mas é também que a caminhada é árdua, ela requer um esforço
repetido. Não se aborda corretamente um lugar sagrado sem
ter sido purificado pelo sofrimento, e caminhar exige um
esforço indefinidamente reiterado (GROS, 2010, p. 117-118).

A mitologia do Caminho de Santiago fundamenta-se na história do



apóstolo que, decapitado a mando de Herodes, teve o corpo transportado
por discípulos em um navio que encalhou nas praias galegas. Seus
restos mortais foram encontrados no século VIII em um antigo santuário
construído em sua homenagem, local onde foi erguida a famosa catedral
visitada pelos andarilhos. Ao longo do trajeto, monastérios e pensões
dão abrigo aos andarilhos, que compartem entre si suas histórias e
alimentos disponíveis. Solnit ressalta que, para o peregrino, além da
imaterialidade do sagrado, existe uma “geografia do poder espiritual”
(2016, p.92). O sujeito vai de encontro ao local do milagre esperando a
ação da presença santificada deste espaço em sua vida. Confiante na ajuda
do deus e no poder psicofísico de sua força de vontade, o caminhante
congrega em sua atividade crença e obra, corpo e espírito.
Quando no meio da madrugada me desponta a ideia de escrever
sobre esta experiência, uma lembrança empoeirada surge no formato de
um diário, que apartava minha solidão ao registrar as impressões do
percurso. Com sorte, talvez ainda o encontre enfiado em algum lugar do
quarto adolescente. Logo me engajo a desmantelar caixas de papelão na
procura do troféu mofado, gasto, com flores secas entre as páginas e
anotações românticas para os amores platônicos da estrada... Aqui está
ele. Nas páginas empoeiradas me deparo com a inocência da escrita pouco
madura, com as indagações da época e, surpreendentemente, com imagens
do exercício da caminhada que reverberam ainda hoje em meus devaneios
criativos: delimitando tendências e o andamento de um projeto poético.

Depois de me perder, encarar o frio, fugir de cão bravo e


vaca desesperada, aprender que o cajado é essencial, morrer
lentamente durante 35 quilômetros (2 me achando!), ter saudade,
ver gente, trocar olhares e conversas tímidas com um par de
olhos espanhóis profundos que lia a Ilíada, sentir o coração
bater mais forte de medo, chorar de emoção, conhecer lugares
de sonho no meio do nada, refletir moinhos de vento (...) Matei
o último gigante, dancei o baile, voei e queimei simbolismos.
Indescritível o sentimento de ter passado por tudo isso. Liguei
para casa e chorei... Amanhã vou ver o sol nascer.
Finesterre,
20 de maio de 2007

É engraçado identificar neste relato tão antigo um trajeto deveras


105

parecido com o processo criativo desta tese. Merlin Coverley (2014)


associa a peregrinação com uma jornada em direção a um objetivo sagrado
que o escritor, como caminhante, percorre durante os labirintos de
sua obra. Neste sentido, caminhar é tanto uma alegoria espiritual e
artística, quanto a evocação de uma experiência direta, geográfica
e corporificada do poeta que caça no meio das palavras as cores da
paisagem e de suas pegadas metafóricas.
Na estrada desta investigação, me esqueci de onde vinha e
abandonei o mapa traçado logo no princípio do caminho. Me perdi
por tantos quilômetros que, com o frio desértico da crise, tive a
sensação de transformar-me em pedra/Medusa até a chegada da primavera
e suas borboletas: foi somente nesta estação/capítulo que aprendi a
contemplar e dissolver meus bloqueios. Achei os passos, e as saudades
da casa cerrada trouxeram uma trilha afetiva aparentemente conhecida,
porém barrenta, na qual era preciso andar lentamente e com cuidado
para não escorregar. Sempre devagar como tartaruga, nas bifurcações do
trajeto encontrei amigos, apreciei teorias e encantamentos estéticos,
me emocionei ao encarnar metáforas que cavalgavam o vento. E agora?
Sei que alguns gigantes ainda estão escondidos pelas veredas, mas
consigo dançar o silêncio da jornada solitária da escrita sem ter
medo do vazio. A cada etapa sinto abafada a tagarelice interior e
os ouvidos podem serenar, abrindo-se para os ruídos da floresta. Da
montanha em que agora me encontro pressinto uma pequena luz rosada
que anuncia a alvorada. Será que se caminhar mais um pouco vai dar
tempo de ver o amanhecer?

Corre.

Não corre.

Aprecia...

Festina lente: lentidão e movimento andam juntos.

Inspiro fundo, retomo as forças e empunho a cartografia recém-


desenhada. Sigo em frente me guiando pelo calor do sol (que logo vem)
e pelas linhas coloridas do mapa, cantando Clara Nunes baixinho como
um mantra:

- O
 Sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de
chegar aos corações, do mal será queimada a
semente, o amor será eterno novamente...
106
107

ou

é tempo de limpar a casa para poder voar

Peça de Limpar IV

Escreva tudo o que


você teme nessa vida.
Queime o papel.
Despeje óleo de ervas com
aroma doce sobre as cinzas.
(ONO, 2017, p. 31)


01 DE AGOSTO DE 2017. Anotações em meu diário de tese:

Limpeza dignidade do encontro precariedade do ofício.

Estava nervosa. Aquele era o primeiro dia do treinamento intensivo


de duas semanas pensado a partir das proposições desta tese. A ideia
era aprimorar as condições do trabalho dos participantes do projeto
Núcleo de Práticas Meditativas no Treinamento do Artista, pois
costumávamos nos encontrar em um ambiente de extensão acadêmica,
vivenciando dificuldades típicas desta formatação: como apenas dois
dias de ensaio por semana, entradas e saídas de integrantes a todo o
tempo, falta de espaço físico para o acesso constante aos materiais
de prática, estudantes ausentes em épocas de provas e TCCs, infinitos
feriados, desorganização e sujeira do ambiente quando ensaiávamos após
o horário dos cursos regulares, entre outros.
Nas aulas de interpretação que ministro, a atmosfera não era muito
distinta, apenas tínhamos um dia a menos por semana para trabalhar. Alguns
discentes que faziam parte da extensão também estavam matriculados nas
disciplinas e, com este grupo, podia perceber uma diferença qualitativa
relevante tanto no treinamento, quanto na apresentação dos trabalhos.
Porém, estes eram poucos.

Cansaço
108

Confesso que é uma luta diária não desanimar em meio a este


tumulto. A ansiedade surgia pois, assim como sugerido no exame de
qualificação, chegava a hora de ter um retorno de como os procedimentos
do treinamento investigado funcionariam numa perspectiva de imersão
voltada para um ambiente de laboratório. Cheguei mais cedo ao espaço de
ensaio escolhido para este propósito – era interessante sair um pouco
da atmosfera da universidade – buscando organizar o material, verificar
o ambiente e minhas anotações. Parte dos artistas já estavam presentes
e, portanto, tive ajuda para subir os baús com os tapetes de yoga,
bloquinhos, cintos, velas, incensos, tigelas tibetanas, entre outros.
A sala estava um pouco empoeirada e bagunçada e, para podermos começar,
era importante definir o local no qual os suportes ficariam durante estas
semanas e limpar o recinto.
Quando finalmente encontramos os materiais para a limpeza, percebo
que alguns atores passavam o pano de uma forma diferente, centrada,
indo e voltando decididos percorrendo linhas retas ao atravessar a
sala e alongando todo o corpo com as mãos que se arrastavam pelo chão
em um ritmo constante. Naquele encontro inicial, preocupada com os
procedimentos do dia, atarefada na recepção dos atores e adaptando-me
ao espaço, acabei não perguntando o que é que eles estavam fazendo.
Como o procedimento se repetiu nos ensaios seguintes, indaguei curiosa
sobre a prática e descobri que a mesma havia sido descoberta poucos
dias antes em uma oficina com o coletivo potiguar Clowns de Shakespeare,
que esteve na cidade por meio do projeto Palco Giratório do Sesc/BR.
Os estudantes revelaram que achavam a experiência apropriada para
os nossos ensaios pois, na execução do exercício, recordavam-se da
postura yogue Adho Mukha Shvanasana – cachorro olhando para baixo –, que
trabalhávamos em nossos experimentos com a Saudação ao Sol e com a prática
de estabelecimento do contêiner no espaço do treinamento. O contêiner é
um princípio criado em 1979 por Chögyam Trungpa Rinpoche para se referir
a procedimentos voltados para a proteção do ambiente de meditação, que
funcionam a partir do estabelecimento de fronteiras que sustentam e
purificam as experiências espirituais vivenciadas naquele lugar.

Durante os meses anteriores, vivenciamos o contêiner a partir


da busca por uma atmosfera propícia para a criação no ambiente
de trabalho cênico. Daí o comentário que abre este capítulo:
o espaço de prática do treinamento do ator/performer tanto na
universidade, quanto fora dela, costuma ser – em sua maioria –
bastante improvisado e pouco inspirador para os artistas envolvidos.

No contexto do grupo, a situação não era diferente, pois


em nossa instituição temos apenas uma sala minimamente adequada
para as aulas práticas, ensaios e treinamentos. Ademais o
recinto muitas vezes encontrava-se em situação de limpeza
precária após as apresentações das disciplinas, passou por
infiltrações por causa do ar condicionado, funcionava como
depósito dos materiais dos alunos, entre outras complicações.
Como elevar aquele local tão maltratado e impulsionar o coletivo?
109

A ação de estabelecer o contêiner relaciona-se com a organização


de um ambiente apropriado para a experiência do sagrado. Tal espaço
deve nutrir a prática do meditador e fortalecer a transmissão dos
ensinamentos. Como relatado no capítulo anterior, ainda que de forma
intuitiva, desde as primeiras vivências da Desaceleração propus
mudanças na iluminação, nos cheiros e nos sons da sala de ensaio,
procurando fomentar a prontidão e o estado de trabalho dos artistas
envolvidos. Na cultura de Shambhala, a estrutura física é vital para
a expressão do sujeito, pois é a partir de sua forma que a vacuidade
pode se manifestar.

Sem forma, o poder se dissipa. O poder espiritual é recolhido,


estabilizado, acumulado, sustentado e mantido através de
objetos físicos e lugares incorporados: sem estrutura
e contêiner, não há expressão – nenhuma manifestação.
Nossas instalações espirituais são como vasos físicos que
permitem que a visão espiritual se enraíze e se espalhe
(STICK, s/d, p.2).

Nesta tradição, todos se envolvem na composição do contêiner:
arrumando o espaço, organizando as flores, o altar, as lamparinas e
oferendas, varrendo o chão, tirando o pó das almofadas de meditação,
etc. Para transpor este conceito para o treinamento do artista da
cena, fui aos poucos designando tarefas para os integrantes do
projeto, como ir buscar os tapetes de prática, procurar uma vassoura
no almoxarifado da universidade, distribuir as bolinhas de tênis,
organizar os sapatos e as bolsas, trazer flores ou frutas para
oferecer ao coletivo, acender os incensos, entre outras. Desta
maneira, no momento em que os atores trouxeram o exercício de
limpeza para nossos encontros, já havíamos conversado sobre a
necessidade de respeitar a sacralidade e a dignidade do nosso
ofício. Alegro-me com o engajamento e com a apropriação dos
elementos do treinamento pelos artistas envolvidos, pedindo
para os propositores da ação ensinarem os procedimentos de
limpeza do espaço ao restante do coletivo, inclusive
a mim. A partir disso, iniciamos todos os
encontros do grupo desta maneira.
O exercício é resgatado das artes marciais orientais, de rituais
budistas e xintoístas, e dos teatros clássicos japoneses Nô e Kyogen
por Yoshi Oida (1999), que sistematiza a prática para inspirar a
purificação do artista e do ambiente de trabalho através do ato. Desta
maneira, limpar não tem por objetivo apenas a remoção da sujeira como
algo preliminar ao ensaio: a experiência se dá a partir de uma posição
específica que ativa o corpo e a respiração ampliando a consciência
do ator/performer para o espaço da cena e para o momento presente,
treinando sua concentração e seu autocuidado.
Cabe ressaltar que a limpeza traz consigo uma carga simbólica
que perpassa por diversas culturas, de modo que, para o processo
criativo acontecer, “permanecer apenas num estado ordinário não é
suficiente, precisamos purificar nossa existência, então aquilo que
iremos comunicar ficará claro para ser compreendido” (OIDA, 2012, p.
110

28-29). Neste sentido, a água é um elemento de purificação ritual e


costuma ser ofertada nos altares budistas representando a amplitude
e a clareza da mente dos meditadores. No teatro Nô, os artistas se
lavam antes de entrar em cena, influenciados tanto pelo budismo,
quanto pelo xintoísmo.
Oida revela que, no xintoísmo, o
caminho para a iluminação se dá através
de misogi: vivências de limpeza do
corpo e do espaço que nos reaproximam
de kami, as forças do universo e da
natureza presentes em todos nós,
mas que perdem o seu brilho com o
passar do tempo. Nesta tradição, o
banho psicofísico deve ocorrer em
rios, mares ou cachoeiras – nunca
em águas paradas. Para o artista
japonês, esta lavagem ritual se
relaciona com a prática teatral pois
esta, tal qual a uma ida a igreja ou
o contato da pele com água benta, pode
fomentar a sensação de purificação da
alma, como se tomássemos uma ducha fria
a cada experiência com a obra artística.
Esta organização do ambiente de trabalho
do ator se mostrou bastante potente no resgate
das qualidades catárticas do treinamento. Percebi que, por ser uma
proposta que os próprios artistas trouxeram para os ensaios, estes
se abriam para o estado de concentração desse primeiro momento com
mais facilidade e, consequentemente, estavam mais presentes nas outras
ações de estabelecimento do contêiner já elencadas e com o corpo
aquecido. Chögyam Trungpa recomenda esse processo de elevação do espaço
e do sujeito por este fomentar a descoberta da elegância e da beleza
do mundo ao seu redor, como se o meditador estivesse em um estado
constante de apreciação estética.

Descobrimos a elegância e a beleza porque


começamos a perceber a quantidade de
energia e esforço necessários para
produzir e apresentar o que se tem
de melhor (...) Para isso precisamos
aprender a comer de forma apropriada,
cozinhar devidamente, limpar a casa
e o quarto, dedicar-nos as nossas
roupas. É preciso trabalhar com a nossa
realidade básica. Então vamos para
além disso, e começamos a ter conosco
algo muito mais substancial. E para
além disso, iniciamos nossa produção
artística no mundo. Isso acontece da
mesma maneira em minha tradição do
Budismo Kagyü. O caminho é longo e árduo;
não podemos de repente nos tornarmos bons
em algo (TRUNGPA, 2008, p.07).
111

Neste sentido, na prática de dharma art vida e treinamento se


misturam. Seus ensinamentos baseiam-se em experiências voltadas para a
amplitude do olhar do artista, que se volta para a sacralidade do mundo
nas pequenas coisas. Para o mestre, a arte não poderia ser elitista
e separar-se do cotidiano das pessoas, pelo contrário, deveria estar
presente dos afazeres domésticos às cerimônias mais elaboradas. Em
1980, Trungpa Rinpoche expôs no Instituto de Arte Contemporânea de Los
Angeles a obra Discovering Elegance, na qual recriava um apartamento com
seis ambientes recheados de ikebanas, móveis provenientes de tradições
orientais e ocidentais de tempos históricos distintos, e outros
objetos que elevavam a qualidade de presença do espaço e fomentavam
o contêiner. A instalação tinha como objetivo inspirar ações para a
elevação da beleza no dia-a-dia dos fruidores da exposição, visando
que estes transformassem seus ambientes de vida como desejassem.
Talvez estas ações de organização do local de treinamento não
façam muito sentido para o leitor, porém acredito que este ambiente
delimitado pelo contêiner pode penetrar no estado de trabalho do
artista da cena. Stephen Di Benedetto (2010), ressalta que a provocação
dos sentidos no teatro contemporâneo acessa bases fisiológicas tanto
de artistas, quanto de espectadores, afetando seus comportamentos
e gerando outras formas de conhecimento, tanto sensoriais, quanto
intuitivas. O pesquisador associa a prática com o desenvolvimento de
awareness: a consciência panorâmica de integração do ser com o espaço
trazida pela meditação vípashyana.

Gosto do cheiro dos


incensos e de ver as formas
que a fumaça faz no ar. Me
sinto em um ambiente mágico,
um mundo diferente do cotidiano.
Nesse dia preferi ficar próximo a um incenso e começar meu
contêiner. Meus alongamentos foram aos poucos ganhando
espaço, ia superando as dificuldades corporais aos poucos.
A meditação estava acontecendo em meu corpo e mente.
Procurava explorar os limites do meu corpo ao máximo
até onde conseguia ir (...) Como são purificadores dos
ambientes nossos corpos se deixam guiar por sensações
positivas tornando a prática mais rica (Diário de Bordo
de NR*, 16 out.2017).

É difícil colocar em palavras esse tipo de experiência. Para


Benedetto, a recepção dos diferentes estímulos ocorre antes na pele
do que no intelecto, acionando imagens, memórias, cheiros e outras
qualidades propícias para a criação que ficam em suspenso na prática do
artista, de modo que apenas uma parte desse arcabouço desponta em sua
consciência imediata. No contexto do treinamento, a Dança Meditativa
facilita o processo de trazer para o movimento estas percepções primeiras
e, agindo em conjunto com o tempo das ações, através dela o
ator/performer consegue decantar estas múltiplas informações
fragmentadas.
A experiência sinestésica age como gatilho para as
sensações e emoções do artista. Aos poucos aprofundei a
112

atenção para as potencialidades de cada estímulo trazido para a sala


de ensaio e percebo hoje que, por vezes, apesar de cada elemento estar
no ambiente por uma razão, os simbolismos evocados poderiam deslizar
para um materialismo espiritual. O termo foi elaborado por Chögyam
Trungpa para refletir acerca das deturpações do sagrado que ocorrem
devido aos desvios do ego na experiência de uma tradição, de modo que
esta pode se tornar apenas um rótulo, um status através do qual nos
projetamos no mundo.
Por meio desta distorção, não nos aprofundamos nos ensinamentos
e ficamos presos a uma camada superficial da prática e a uma identidade
“ultraespiritual” autocentrada e discursiva, pouco relacionada a ação.
Utilizamos os elementos do aprendizado para forjar um estilo de vida
meditativo, solidificando os conceitos ao invés de abrir-nos para eles
como em um salto para o vazio. Neste sentido, o budismo se relaciona
com a noção de via negativa formulada pelo encenador polonês Jerzy
Grotowski: não somos seres concretos nessa cultura, essa sensação
se dá por meio de máscaras que vestimos para fortalecer a imagem
que esboçamos de nós mesmos e para nos proteger da dor. É preciso
aprender a deixar ir e, camada por camada, soltar as
nossas defesas tanto na vivência da tradição,
quanto no treinam ento artístic o .
Somos fluidos e transpa- rentes como
água, nos moldamos a par- tir das
formas da partitura físi- ca para
depois dissolver e recome- çar. Oida
(1999) ressalta que só no encontro com o vazio é que podemos nos movi-
mentar, de modo que a cons- ciência
do artista deve ser ampla e líquida,
capaz de penetrar nos diver- sos espa-
ços. Tokiashi Takeshita (apud ANDRAUS;
BONFITTO, 2014) explica que a noção de
vazio no budismo se relaciona com a cessação
da tagarelice mental dos sujeitos, que passam a não
elaborar e interpretar os impulsos de pensamento que
surgem a cada momento. Atravessados por este estado de disponibilidade,
ultrapassamos a dualidade entre corpo e mente e sentimos a dilatação
psicofísica – e consequentemente artística – na abertura para o encontro
com os estímulos que nos rodeiam.

Para experienciar o vazio do corpo, é preciso antes, no


estado de contemplação fazer uso de todas as aberturas do
corpo, resultando disso uma sensação de vazio nas partes
sólidas. Ou, considerando-se o habitante do corpo puro
espaço, pode-se levar essa consideração além do espaço,
reconhecendo um vazio ainda mais refinado (CAMPBELL, 2008,
p.217).

Joseph Campbell (2008) recorda que, nesta tradição, as coisas


do universo são desprovidas de uma essência, de modo que as formas
todas da natureza e as manufaturadas, bem como a própria noção de eu,
estão conectadas a este vazio primordial, ilimitado e sem fronteiras.
113

Compreendo que a estrutura do contêiner é como um cultivo do solo para


o estado de vacuidade florescer no ator/performer e, portanto, precisa
ser constantemente revista para manter o seu frescor. Dessa maneira,
apesar de por vezes observar nas vivências do projeto tendências para
o materialismo da prática, busco desviar a atenção do coletivo dos
clichês e do exotismo sedutor oriental que nos distancia da presença
autêntica de nossas ações na cena.

Vai desabar água


Algodão vai,
Desabar água
Pra lavar o que tem que limpar
Pra lavar o que tem
Vai desabar água e é pro nosso bem

Gero Camilo
Vai Desabar
...
...
...
...
...
...
...
...
...
...
...

Chuva forte em noite de ensaio ardente. Era o nosso primeiro


encontro após o término do treinamento intensivo. 21 DE AGOSTO DE 2017.
Saudávamos o Sol em uma grande roda. Estávamos de volta à universidade.
A mesma sala judiada e com os entulhos da reforma do prédio largados
no corredor que dá acesso ao local de ensaio – escrevendo assim até eu
penso que parece mentira. Do lado de fora vento e dilúvio, os sons do
aguaceiro harmonizavam a prática. Alguém brincou que o exercício que
realizávamos havia se transformado numa dança da chuva, pois haviam
apenas poucas gotas antes de começarmos. Podia sentir a concentração
do coletivo apesar do clima doce de brincadeira. A água caía intensa
e o movimento dos corpos moldava o vazio do espaço como esculturas
bailando no azul.
114

Antes de iniciarmos mais uma série do exercício um ator lança a


pergunta: e se a gente fosse fazer yoga lá fora?
– Lá fora?
De repente o silêncio é atravessado por muitas vozes: – Será? –
Nossa, vamos? – Mas gente... – Já fui! (risadas) – Vem povo! – Tô indo,
beijo!

Fomos.

Cachoeira que escorre pelos poros lambendo a pele. Vento frio


e quentura por dentro. Aos poucos saímos da sequência e cada um vai
propondo uma postura que dialogue com o momento. Os olhos embaçam de
chuva e lágrima. Das pequenas grandes alegrias. Força da natureza que
transporta e transforma. Sacode. Convida à viagem psicofísica.

E é tão simples.

Me sinto povoada por imagens que vão e vem. Líquidas elas passeiam
submergindo os artistas: a rua da casa lá na periferia em que a gente
corria por entre as gotas e fazia um trenzinho para escorregar na queda
d’água do escoadouro; bolhas de sabão; cheiro de azul e cimento molhado;
tombos de bicicleta; um exercício de uma disciplina do doutorado;
nadar no útero e colo de mãe, que está tão longe. Saudade. A água
esfrega, irriga e renova. Refresca. Assombradas as pessoas dos outros
cursos e da administração começam a surgir pelas janelas do edifício.
Não nos importamos. O chão está limpo e seguimos nos movendo dando
continuidade ao percurso da lavagem.

A chuva é uma visita miraculosa do poder celeste, natural


e imensa, necessária e temida, purificadora, libertadora,
dissolvente, inundante, mitigante e doce. A chuva precipi-
ta o crescimento, a mudança, o repouso, a purificação e...
o desastre. A imagem da chuva nas mitologias de muitos po-
vos representa a penetração da terra por forças celestiais
descendentes e fertilizantes e indica o casamento sagra-
do do céu e da terra (...) Como símbolo e metáfora,
os pormenores das chuvas refletem estados
psíquicos internos. Quando somos inun-
dados, somos emocionalmente arreba-
tados (RONNBERG, 2012, p. 62).
115

A tempestade amansa e afina, a calmaria se


estabelece. As batidas periódicas das gotas espaçadas
tornam-se música. Silêncio. Aqui e agora. Chevalier e Gheerbrant
(2008) recordam do mito hindu no qual, nas noites chuvosas de lua,
as gotas carregam consigo o néctar sagrado do deus Soma, transportado
em cada pingo d’água que, dissolvidos na terra e em nós, transformam-
se no elixir da vida. Filho de Indra, divindade responsável pelas
tormentas, Soma/Lua é a fonte da bebida fecunda com o mesmo nome
que fomenta prosperidade e sabedoria. Da chuva forte brota a planta
sublime da imortalidade utilizada pelos sacerdotes em seus rituais
alquímicos: “Flui, Soma, em dulcíssima e inebriante corrente. Dá
nos o fulgor, dá-nos o céu, dá-nos tudo o que há de melhor. Faz
chover abundantes riquezas” (RIG VEDA apud CROW, 2005, p.96).
Assim me sinto, de alma lavada e nutrida. Os contornos habituais
entre externo e interno, corpo e mente, tornam-se fluidos. Torrente
e yoga purificam trazendo consigo a força gerada pelo elixir de
Soma. Mircea Eliade (2015) associa a prática do hatha yoga com as
experiências de limpeza aqui narradas, pois em seus meandros esta
tradição codifica uma série de procedimentos de purificação psicofísica
que também atuam na higiene de nossos canais energéticos, podendo ser
tanto de preparação anterior aos estados contemplativos considerados
mais elevados, quanto a própria vivência superior meditativa.
Estes exercícios dividem-se em práticas respiratórias,
treinamentos de meditação e contemplação de objetos, instruções para
a alimentação do praticante e para seu comportamento em sociedade,
as próprias posturas ou mudras – gestos codificados –, o canto de
mantras, automassagens com óleos e, por fim, técnicas fisiológicas
para a limpeza dos olhos, da boca, da língua e dos dentes, do nariz
e da garganta, da bexiga e da uretra, do estômago, dos intestinos
e do reto. Juntas, estas vivências ascéticas disciplinares podem
ampliar-se através do contato com uma fisiologia sutil traduzida
em sensações e estados para além da consciência, “inacessíveis
aos profanos” (ELIADE, 2015, p.197).
Tarthang Tulku Rinpoche (2012), ao tratar das técnicas do yoga
budista e tibetano, chega a conclusões similares. Para o mestre,
este treinamento está interligado a um olhar transparente, aberto
para o universo, que se dá a partir da limpeza do organismo e dos
sentidos que se refrescam a cada exercício. Na experiência, o corpo
se dissolve como nuvem e nos deparamos com a expansão da atenção
plena, de modo que matéria e energia se encontram, estimulando nossa
apreciação do mundo: contatamos o vazio do espaço e de nós mesmos,
aliviando tensões e diluindo nossos padrões habituais.
Tanto Mircea Eliade, quanto Tarthang Tulku e Georg Feuerstein – um
dos mais célebres pesquisadores ocidentais do yoga – pensam o processo
de purificação da prática yogue como uma forma de alquimia espiritual.
Eliade recorda da exaltação da figura da lavadeira no tantrismo35 que,

35  Caminho místico e filosófico pan-indiano popularizado no século IV d.C e assimilado pelo budismo tibetano, pelo jainismo
e pelo hatha yoga hindu. O Tantrismo baseia-se tanto em princípios femininos quanto masculinos em sua visão do cosmos
e se caracteriza pela valorização de experiências físicas no contato dos seres com o divino, fomentando “a exploração do
potencial espiritual inerente ao corpo”(FEUSTEIN, 2005, p.236).
116

enquanto afasta as sujeiras em sua atividade, preenche-se de sabedoria


e capacidades mágicas, tornando-se emissária da vacuidade e guia
mística. Sua casta inferior tinha grande apelo para esta tradição pois,
para além de seu caráter popular e de sua desqualificação social, seu
simbolismo expandia-se para o princípio tântrico de complementação de
opostos e, portanto, “o mais nobre e precioso está oculto justamente no
mais baixo e vulgar” (ELIADE, 2015, p.218). Neste sentido, a matéria-
prima do alquimista, a fonte que seria transformada em ouro, também
se encontrava nos elementos mais ordinários da natureza, de modo que
fomentar a aliança entre extremos era parte desta operação.
Por um lado, o praticante de yoga busca um corpo mente indestrutível
como um diamante – vajra – e sutil como éter, atuando sobre as impuras
matérias psicofísicas para transformá-las nestes elementos. Por outro
lado, o alquimista persegue o ouro para alcançar a imortalidade por
meio do percurso de purificação da matéria. Sendo assim, ambos estão
à procura dos mesmos ideais em suas trajetórias: a ascese se dá no
contato e no aprimoramento das formas humanas e da natureza.
Nas experiências alquímicas e hatha yogues, para além da transmutação
do corpo, “os limites do ego perdem a sua rigidez” (FEUESTEIN, 2006,
p.461). Através deste intento, os praticantes desses costumes passam
pela vivência de morte e renascimento, dissolvendo e regenerando suas
substâncias (lt. solve et coagula) na tentativa de recriarem a si
mesmos. Porém, ao contrário do que possa parecer, este processo de
domínio da própria matéria não está relacionado a um isolamento do
mundo, mas sim atrelado à ideia de existência incondicionada e livre.

P E N S A N D O

Estar no mundo e engajar-se. Sair da condição de isolamento...


Como? Já não sei nem dizer quantas vezes me peguei inquieta apreciando
essas propostas ao longo desta investigação. Muitas vezes a prática
yogue/meditativa traz consigo um estado ensimesmado para o sujeito
que, mesmo com a sensação de amplificação psicofísica no espaço,
tem dificuldades para expressar esta qualidade de presença devido ao
relaxamento causado pela experiência.
Como repensar as técnicas desta tradição para além do caminho
de autoconhecimento para o qual estas se dirigem, ampliando-as para
a comunicação artística com o outro – atores e público – a partir
do contato com o ambiente em que estávamos inseridos? Angustiava-me
não saber direito de que maneira a prática poderia se estabelecer no
trabalho do ator. Queria me distanciar um pouco da simples vivência
de um aquecimento mas, ao mesmo tempo, compreendia que este aspecto
era também relevante. Aquecer-se, o que isto significa? O calor da
simbologia solar era como um guia que me chamava, suas pegadas se
sobrepunham ao longo do caminho... Talvez esteja mesmo falando de
aquecimento, mas como ampliar este experimento para o brilho de uma
fisiologia sutil?
117

Céu e terra

Caminho do meio

Quietude e movimento

Precisei relembrar a cada momento que existem infinitas formas de


yoga e escolas, de modo que, no percurso de experimentação nas salas de
ensaio e de aula, em meio a diversas tentativas e deslizes, a pergunta
que se fez mais presente foi esta: qual o lugar do yoga no treinamento
do artista da cena? Ou melhor dizendo: qual é o meu olhar para o yoga
neste treinamento?
Era importante dialogar outra vez com os antepassados, com outros
artistas que também percorreram o curso deste rio. Ir atrás das pistas,
contemplar as flores que brotam a cada procedimento. Repetir, tentar
mais um pouco, abandonar e reabrir caminhos, fazer escolhas e voltar
atrás. Olhar nos olhos dos alunos-artistas e aprender com eles.
Como um mantra, a cada dia reiterava para mim mesma que o
que eu estava fazendo não era um curso de yoga, e sim alguma
outra coisa que ainda não sabia bem para onde me levaria. Tinha
consciência que esta não era uma pesquisa sem fundamentos, e que os
suportes desta investigação poderiam trazer respostas para as minhas
proposições. Compreendia que simplesmente reproduzir os exercícios
e o formato habitual de uma aula de hatha yoga à moda ocidental
no treinamento era o trajeto mais fácil a se fazer – apesar de
perceber em determinadas ocasiões no projeto de extensão que era
isto o esperado pelos estudantes. Para poder dançar ao longo deste
labirinto sem desespero, devia contemplar suas possibilidades de
perto, começar do princípio, abrir-me para a tradição.
Foi assim que reencontrei Patañjali. O sábio indiano escreveu a
obra Yogasutra – considerada a principal expressão do yoga clássico e
o tratado mais antigo desta prática – em algum período entre II a.C e
II d.C. Eliade (2000) declara que as técnicas e princípios filosóficos
deste tratado derivam da organização de ensinamentos bastante
remotos, anteriores ao período de sua escrita. A obra volta-se para
a explanação acerca da concentração, da meditação e da iluminação
dos sujeitos, a partir da proposta de isolamento dos praticantes,
por meio do afastamento entre espírito e matéria. Neste sentido,
Lilian Gulmini (2002) relata que o Yogasutra é fonte de um
processo de séculos de apropriação dos rituais periféricos
autóctones indianos pelo sistema dominante da época do povo
indo-europeu arya que, dentre os feitos, sistematizaram
a língua sânscrita – culta e sacerdotal, distante
do cotidiano das pessoas.
118

O que caracteriza
o yoga não é somente seu
aspecto prático, senão também
sua estrutura iniciática. Um indivíduo
não aprende nada do yoga por si mesmo; é
necessária a supervisão de um mestre (guru).
O yogin começa por abandonar o mundo profano
(família, sociedade) e, guiado por seu guru, dedica-
se a transcender sucessivamente os comportamentos e
os valores próprios da condição humana. Esforça-se para
‘morrer para esta vida’, e aqui se nota com a máxima
clareza a estrutura iniciática do yoga. Assistimos a uma
morte seguida de um renascimento a um outro modo de ser:
aquele representado pela liberação, pelo acesso a um modo
de ser dificilmente descritível no profano, o qual as
escolas indianas expressam com diferentes nomes: moksa,
nirvana, asamrkta, etc. (ELIADE, 2000, p. 13).

Heinrich Zimmer (2015) corrobora para este pensamento ao


relembrar que, na história da dominação indiana pelos aryanos,
o conhecimento e a filosofia eram fontes de poder. As culturas
invadidas transformavam-se em uma casta chamada sudra, sem
direito à sabedoria e à participação nos rituais religiosos dos
conquistadores. Mesmo o yoga, de origem popular e com múltiplas
escolas, por vezes não consegue escapar deste sistema de exclusão:
portanto, a obra de Patañjali, apesar de trazer consigo uma
diferença de mentalidade por tratar de uma prática nativa destes
povos oprimidos, une essas duas tradições, de modo que o afastamento
do praticante das coisas do mundo faz parte do tratado.
Para o pensador, no primeiro aforismo de sua obra, “o yoga é a
supressão dos movimentos da consciência” (PATAÑJALI apud GULMINI,
2002, p.120). Logo, yoga é um sistema de meditação e sua prática
não está condicionada apenas à elaboração de posturas, como dita
o senso comum do ocidente, mas à extinção dos condicionamentos e
limitações psicofísicas do sujeito. A raiz etimológica sânscrita
da palavra yoga vem de yuj, que significa união/integração entre
o ser e sua natureza divina.
No contexto do tratado, a prática meditativa yogue
possibilita a saída da ignorância metafísica, pois, por meio
dela, não nos aprisionamos mais aos fenômenos cotidianos.
Para isso, é preciso disciplina e desapego, de modo que o
descondicionamento progressivo do indivíduo é um processo que
provém de oito etapas interdependentes que incluem tanto
princípios morais, quanto práticas psicofísicas. São elas:
yama – deveres éticos e de autocontrole, que estabelecem
refreamentos sobre pensamentos e ações, tais como
ahimsa (não violência), satya (verdade), asteya
(não roubar), brahmacarya (conservação da energia
vital/sexual) e aparigraha (desapego); niyama –
normas de conduta do sujeito com a sociedade,
constituídas em disciplinas psicofísicas
como saucha (pureza e limpeza do corpo
mente); santosa (contentamento
119

incondicionado),
tapas (esforço não egoísta
em cada ação), svadhyaya (educação
e observação de si mesmo) e isvara
pranidhana (entrega e dedicação ao divino);
ásana – posturas físicas para a meditação
que alinham corpo e espírito trazendo quietude;
pranayama – controle da energia vital a partir da
respiração, que altera estados de consciência e a saúde
psicofísica; pratyahara – prática de interiorização
consciente por meio do recolhimento do corpo mente e dos
cinco sentidos, retraindo-os; dharana – concentração em
um único ponto, que acalma os pensamentos e prepara para a
meditação propriamente dita, “produzindo a fusão da consciência
concentrada com o seu objeto de concentração” (GULMINI, 2002,
p. 264); dhyana – fluxo de atenção contínuo que transforma-
se em meditação, estado em que conectamos o corpo mente com a
consciência divina; samadhi – dissolução completa da dualidade
que ocorre através da meditação, na qual não existe mais a noção
de ego e o ser se ilumina.
Apesar do Yogasutra tratar fundamentalmente do ásana sentado
voltado para a meditação – pensando as posturas apenas como fontes
de imobilidade e estabilidade do corpo – e requerer o isolamento,
percebi que poderia me inspirar em parte de suas técnicas para
pensar o treinamento. Ao longo da pesquisa, investigamos pranayamas,
os procedimentos de concentração – dharana – relatados no capítulo
anterior, bem como os nyamas de purificação a partir da mistura do
conceito com técnicas complementares provindas do hatha yoga tântrico,
mais voltado para o corpo e para as posturas, tais como: a limpeza
psicofísica realizada através da respiração, do canto de mantras e de
bandhas – contrações dos esfíncteres anais, genitais, do diafragma,
da garganta e dos olhos. Inicialmente, o objetivo destas vivências
era proporcionar um repertório contemplativo para os artistas,
de modo que estes pudessem realizar a manutenção do treinamento
fora do horário de aula. Com o passar do tempo, vivenciamos estas
práticas buscando o aprofundamento da investigação e à construção
de cenas, partituras físicas e matrizes de movimento.
Como dito anteriormente, o tantrismo relaciona-se a um yoga
alquímico e pressupõe o engajamento do meditador nas coisas
da vida. Isso se deve “à irresistível força tântrica que
implica nova vitória de fontes populares pré-aryas” (ELIADE,
2015, p.173) que traz consigo o regresso a uma prática
yogue relacionada ao misticismo indiano autóctone. Neste
sistema, a investigação do corpo volta a ser o principal
caminho para a liberação dos sujeitos, de modo que
espontaneidade e criação trabalham em conjunto com
pensamento e purificação.
A partir dessa explanação, assumo ter
esclarecido o porquê de ter escolhido
fundamentar o treinamento a partir
destes princípios, porém gostaria
de acrescentar ainda algumas
120

informações. Por um acaso criativo, em Manaus a única formação disponível


para ser instrutora de yoga no início da pesquisa de campo desta tese
– o Yoga Livre, sistema criado pelo brasileiro Edson Moreira, que viveu
durante muitos anos na Amazônia – tinha claras influências do tantrismo em
suas técnicas, de modo que percorri este caminho lado a lado da vivência
do treinamento com os estudantes e, portanto, o diálogo entre ambas as
práticas se deu de forma retroalimentativa. Além disso, após o acidente
de carro relatado no primeiro capítulo, aprofundei as experiências
contemplativas a partir do contato com o budismo Shambhala, que faz parte
da escola Vajrayana, representante dos ensinamentos tântricos tibetanos.
Desta maneira, o tantrismo é como um elo de ligação – comum ao budismo
e ao hinduísmo – entre as tradições que inspiraram esta tese: sua raiz
etimológica liga-se à manifestação do desenvolvimento psicofísico e do
processo contínuo do sujeito em busca da libertação, que precisa ser
tecida como uma trama dia após dia (ELIADE, 2000, passim).

O tantrismo, porém, leva a consequências extremas a


concepção que a santidade só é realizável em um “corpo
divino” (...) o corpo não é mais “fonte de sofrimento”,
mas o instrumento mais seguro e completo que o homem tem
à disposição para “conquistar a morte”. E, visto ser
possível obter a liberação a partir desta vida, o corpo
deve ser conservado o maior tempo possível em perfeitas
condições, precisamente para facilitar a meditação. Como
veremos adiante, a alquimia indiana propõe uma finalidade
semelhante (ELIADE, 2015, p.192).

A noção de morte, assim como é enfatizada por Eliade, relaciona-se ao


simbolismo do renascimento nesta cultura. Neste sentido, o engajamento
cotidiano do meditador para converter a matéria psicofísica em ouro e
em liberdade depende de um esforço voltado para a sacralização da vida.
Mirella Schino (2012) ressalta que, no contexto do treinamento teatral,
a alquimia é como um espaço de transmutação do artista pesquisador,
pois este recria o ambiente de laboratório afastando-o da perspectiva
científica: apesar do rigor, o artista alquimista reflete alguma tradição
mística e conduz suas intervenções primeiro exercitando a si próprio
e a um coletivo criador para depois pensar em possíveis espectadores.
Sua prática dialoga com uma pedagogia do ensaio, na qual a apresentação
de um resultado pode ser ou não
uma finalidade.
Schino recorda ainda que,
para além da química, o elixir
da vida era obtido através
de técnicas coreográficas,
ginásticas e extáticas, de
modo que o meditador passava
por procedimentos iniciáticos
similares aos do treinamento
cênico. Nos laboratórios
teatrais, encenadores pedagogos
do século XX promoveram seus
experimentos para, juntamente
121

com os atores, pensarem caminhos para a


manifestação da presença e da prontidão
criativa na vivência do ensaio, estruturando
sistemas e metodologias abertos para este
fim. De forma empírica, artistas mergulham
em processos de criação para investigar
a si mesmos e resplandecer em cena “como
as figuras nas pinturas de EI Greco, como
se fosse possível ‘iluminar’ por meio de
técnica pessoal, tornando-se uma fonte de
‘luz espiritual” (GROTOWSKI, 1976, p. 18).

Por que o Teatro-Laboratório polonês era um


laboratório? Primeiro, para evitar ser um teatro
de repertório, o que era comum na Polônia. Segundo,
para evitar ser um teatro, para evitar a necessidade de
produzir espetáculos. Mas isso não era uma simples questão
de malandragem em relação a um nome oficial. O Teatro-
Laboratório e os laboratórios posteriores de Grotowski
eram laboratórios na mais pura essência de sua visão
global e pela sua semelhança com a tradição alquímica (...)
Tínhamos chegado ao coração do problema: um laboratório é
um lugar onde se tem a oportunidade de seguir por qualquer
estrada, testar qualquer ramo da arte do ator de um modo
não condicionado à necessidade de preparar um espetáculo. É
um lugar onde o conhecimento da arte do ator cresce, e não
onde esse conhecimento é aplicado (SCHINO, 2012, p. 36-37).

Na experiência do hatha yoga, para que esta expansão luminosa do


sagrado evocada por Grotowski ocorra no sujeito, é necessário buscar a
harmonização das vias energéticas do corpo. Este caminho é simbolizado
pela união entre o Sol e a Lua, princípios complementares e dinâmicos
que atuam na vivência yogue e que representam os dois principais canais
de energia do corpo mente, Pingala – avermelhado, solar e repleto de
vitalidade – e Ida – lunar, meditativo e pálido –, que se encontram
na base da coluna vertebral e seguem juntos até o topo da cabeça. Para
o hatha yoga tântrico, esses canais invisíveis – nadis – espalham-
se por nossa estrutura física tal como veias carregando consigo o
sopro cósmico prana, força vital que nos sustenta e preenche. No
canal central Sushumna que está atrelado à coluna, entrelaçam-se Ida
e Pingala cruzando-se em espiral: a primeira está localizada
no lado esquerdo do corpo e associa-se a qualidades de
relaxamento, a segunda encontra-se no lado direito e provoca
o aquecimento, portanto ambas trabalham alternadamente para
trazer o equilíbrio psicofísico.
Os sete chakras principais se encontram a cada volta de
Ida e Pingala na coluna vertebral, distribuindo-se ao longo da
linha média do corpo. Como vimos no primeiro capítulo, a base
concentrada de onde partem estes condutos de energia localiza-se
no períneo e chama-se Kundalini, sendo representada pela imagem
de uma cobra adormecida, morada de nossas forças potenciais. O
intento fundamental da prática de hatha yoga é o desenvolvimento
122

desses pontos energéticos por meio da ascensão desta serpente e, por


isso, é preciso purificar e desobstruir as nadis a partir do treinamento.
Tal como elencado acima, este processo de purificação é permeado por
diversos procedimentos. Com tantos caminhos possíveis, aos poucos fui
trazendo para a sala de aula e para o projeto de extensão exercícios
que, na minha experiência pessoal, pareciam ser os mais potentes para
o trabalho do artista da cena. Neste percurso, era importante “não
converter a prática e a experiência teatral numa doutrina” (TAVIANI
apud SCHINO, 2012, p. 47), e sim inspirar-se nessas tradições para
refletir acerca de suas potencialidades no treinamento do ator. Para
Ferdinando Taviani, podemos pensar o teatro como um veículo ou como
uma morada não religiosa que habitamos no lugar de determinada crença,
ou seja, como uma ponte laica para o ritual sagrado da cena e uma
fonte de investigação espiritual do artista sobre si mesmo.

O teatro tem a honra de ser utilizado no lugar de uma


religião. Pode-se dizer que, nesses casos, (…) o ritual do
palco, que entre os rituais é talvez o menos ditatorial e o
menos carregado de crenças ou superstições se sobrepondo,
pode se assemelhar a um ritual religioso somente para uma
mente confusa. Quanto mais o ritual do palco for consciente
e preciso, maior será a demonstração de sua independência
da esfera religiosa (TAVIANI apud SCHINO, p. 47).

Após algum tempo dedicado exclusivamente à Saudação ao


Sol, trouxe, aos poucos, outras posturas para os encontros com
os estudantes. Como a Desaceleração já desenvolvia a concentração
necessária para o estabelecimento do “estado de trabalho”, era
preciso refletir acerca das possibilidades da prática dos ásanas: em
que momento do treinamento ela deveria ser inserida? Como motivar os
artistas a ultrapassarem as dificuldades iniciais para vivenciar as
reações do próprio corpo como um caminho para a investigação de si,
distante da competitividade de quem consegue alongar-se mais ou menos?
De que maneira deveria fomentar a autonomia do coletivo para os treinos
individuais se algumas posturas pareciam extremamente complicadas à
primeira vista, ou deveras relaxantes?
A preocupação mais elementar com a experiência das posturas
era fomentar a exploração das potencialidades psicofísicas dos
artistas sem provocar incidentes ou mesmo machucar alguém.
Portanto, nas disciplinas semestrais nas quais não havia tanto
tempo disponível para o aprofundamento da prática, era
preciso abandonar ásanas muito complexos – como os
de inversão ou de hiperextensão das articulações
– e conduzir a vivência com mais cautela.
No princípio deste treinamento verticalizei
a permanência nas posições para conseguir
observar com tranquilidade o alinhamento do
coletivo, alterar gestos que poderiam ser perigosos e me
familiarizar com as limitações dos estudantes e com as minhas
– já que, na época, também reaprendia a realizar os movimentos do
yoga com segurança por meio do auxílio de minha fisioterapeuta.
123

Ao longo dos encontros pude notar que a lentidão e a sustentação


estática dos ásanas por um tempo prolongado, apesar de muitas vezes
promoverem o relaxamento do qual eu fugia, também desenvolviam a atenção
e a propriopercepção dos artistas que, aos poucos, reajustavam os
movimentos quando aproximavam-se da dor ou percebiam-se desalinhados.
Richard Shusteman (2012) revela que, em diversas tradições filosóficas
– tanto ocidentais quanto orientais –, o cultivo do corpo é também
voltado para o autoconhecimento do meditador. Para o autor, é importante
recordar que nossos saberes se baseiam nas percepções sensoriais e,
portanto, o corpo é o elemento primordial da apreciação do mundo e
necessita ser treinado para tal.
Shusteman propõe a noção de somaestética como um campo
interdisciplinar de estudo que ocupa-se do desejo de uma percepção
psicofísica aprimorada, abarcando sentimentos, inspirações e estados de
espírito tanto na filosofia, quanto nas práticas corporais e criativas.
A ideia está baseada nas investigações do filósofo Michel Foucault
(2006)36, de modo que o treinamento psicofísico do artista é visto
como uma de forma de despertar a consciência crítica e questionar
a dominação através da compreensão das hierarquias de poder e da

36 Ver primeiro capítulo


124

tentativa de não reproduzi-las em nossas experiências artísticas e de


vida: tornando-se também fonte de fortalecimento do caráter e do corpo
do ator/performer diante das opressões sociais e do cotidiano.

O reconhecimento do treinamento somático como meio


essencial para a virtude e treinamento filosóficos está no
coração das práticas asiáticas de hatha ioga, de meditação
Zen, e do tai chi chuan. Como insiste o filósofo japonês
Yuasa Yasuo, o conceito de “cultivo pessoal” ou shugyo
(obviamente análogo ao “cuidado de si”) é pressuposto
pelo pensamento oriental enquanto “fundamento filosófico”,
porque o “verdadeiro conhecimento não pode ser obtido
simplesmente por meio do pensamento teórico, mas somente
por meio do reconhecimento ou percepção corporal (tainin
ou taitoku)” (...) Ioga e meditação buscam aprimorar a
acuidade, a saúde e o controle dos sentidos por meio do
cultivo de maiores atenção e domínio de seu funcionamento
somático, ao mesmo tempo que nos libertam da distorção
das garras de maus hábitos corporais, que prejudicam a
performance sensorial (SHUSTEMAN, 2012, p. 48-49).

Neste sentido, o treinamento artístico envolve o cuidado crítico do


sujeito, permeado de autocultivo. A prática do hatha yoga voltada para
o processo criativo do ator/performer relaciona-se a uma “ginástica
espiritual análoga aos exercícios físicos” (SHUSTEMAN, 2012, p.45)
pois, para esta tradição, o corpo é como um veículo para a elevação
psíquica e cognitiva. Para fomentar este estado, percebi que era
importante construir uma atmosfera de confiança entre os estudantes
nas experiências com os ásanas em sala de aula, de modo que, em
círculo, íamos estabelecendo as sequências em coletivo, distantes
de exibições virtuosísticas competitivas e auxiliando uns aos outros
em suas dificuldades. Desta maneira, os artistas eram orientados a
movimentar-se com leveza e a ouvirem os próprios corpos, descobrindo
seus limites pessoais e ultrapassando-os com delicadeza. Ao mesmo
tempo, era importante saber distinguir a dor da preguiça, sobrepondo
a cada encontro nossa tendência usual de buscar conforto, nossos
casulos.
Neste primeiro momento, a imobilidade das posturas aos poucos
dilatavam as vivências psicofísicas cotidianas e de criação, tais como
ficar em pé, respirar e se alongar. É como se arassem o terreno para
a contemplação afetiva de nossos estados artísticos e sensações com
acuidade e vigor, distantes da “ânsia constante de nossa cultura por
intensidades cada vez maiores de estímulo somático na busca
pela felicidade” (SHUSTEMAN, 2012, p.76-77).
Assim, descobri que o encontro com a fisiologia
sutil poderia se dar a partir da busca por um
minimalismo no treinamento, através
do qual as ações de limpar
o espaço, caminhar
lentamente e alongar-
se com precisão
ultrapassavam sua
125

aparente banalidade e
tornavam-se fonte da ex-
pressividade latente do
artista da cena.

Com o teu corpo impuro,


você não vai ter acesso ao
conhecimento. Preparar o
corpo como se ele fosse vaso,
a terra tem que estar boa,
fértil, com água, com ar,
para poder nascer a planta, e
a flor vai ser a última coisa,
mas a flor é consequência
disso tudo, o lótus. A flor
que nasce do lodo vai do mais
impuro ao puro, de uma forma
mais grosseira a algo mais
sutil (DAMIGO in CASTRO,
2012, p.80).

Com persistência e
paciência os estudantes se
abriam para a apreciação
estética e sensorial das
imagens que surgiam a cada
postura, concatenando
a prática física com a
experiência do sagrado.
A desintoxicação do
corpo por meio das posições, tal como apresentada por Marcos Damigo,
reflete o princípio de limpeza dos canais energéticos – nadis – como
apontado nas páginas anteriores. Portanto, é a partir do contato com
a densidade do corpo na prática de ásanas que atravessamos sensações
psicofísicas e criativas rumo aos aspectos sutis desta tradição.
Adelice Souza (2010) ressalta que cada postura carrega consigo distintas
simbologias e arquétipos, de modo que a inspiração artística pode
florescer por meio do diálogo com estas posições.
É importante lembrar que, tanto a nomenclatura dos ásanas, quanto
sua execução, são de arcabouço mimético e naturalista pois reproduzem
as formas dos animais e de outros elementos da natureza, criando “uma
manifestação física e visual da forma divina”(SOUZA, 2010, p. 206).
Dessa maneira, os gestos, na prática do hatha yoga, expressam qualidades
metafóricas que necessitam ser verticalizadas para poder ampliar-se
para além do pleonasmo característico de sua codificação, impulsionando
a dramaturgia do ator/performer. No contexto deste treinamento, foi
preciso tomar cuidado com as poéticas físicas evocadas pela prática
yogue, pois muitas vezes me percebi impondo aos artistas a transposição
dos maneirismos das posturas para a composição de suas partituras
físicas, limitando sua liberdade criativa37.

37  Cabe ressaltar que não estou desvalorizando aqui as manifestações artísticas que têm como base estes pressupostos,
126

James Slowiak e Jairo Cuesta (2013)


recordam que Jerzy Grotowski, nos primeiros
espetáculos do Teatro das 13 Filas, também tentava instituir
um estilo específico para o coletivo. Com o tempo, o encenador
compreendeu que o processo criativo não era uma oportunidade para
a demonstração de seus conhecimentos, e sim um espaço de liberdade
voltado para o desenvolvimento pessoal dos artistas envolvidos.
Sendo assim, os atores do coletivo deveriam aprender a encarnar as
formas da natureza sem tentar reproduzi-las mimeticamente, revelando-
as por meio da organicidade de sua prática, de modo que a estrutura
de seus movimentos não escondesse os “mistérios” e a verdade por trás
de suas ações.
Os autores declaram que, para o encenador polonês, o arquétipo é
como a manifestação representativa de tendências mitológicas e humanas
comuns, que age por meio de motivos e temáticas intrínsecos a todas as
culturas. No contexto de sua obra, era importante criar equivalentes
cênicos para estes elementos simbólicos da atuação: através da liberação
das resistências psicofísicas, os artistas do grupo encontravam o
ato total na experiência encarnada do treinamento, pois através dela
conseguiam “conectar-se com as raízes do mito, revelando uma camada
mais humana, profunda e íntima”(CUESTA;SLOWIAK, 2013, p. 136). Neste
sentido, o diálogo entre espontaneidade e estrutura na prática do
ator/performer deve dar vazão a seus impulsos criativos, de modo que
os arquétipos evocados na cena atuem como um trampolim de descobertas
tanto pessoais, quanto artísticas.
Voltando ao treinamento proposto por esta tese, aos poucos fui
descobrindo que a vivência dos ásanas acionava o contato com faíscas
energéticas de expressividade que atraiam e incitavam os processos
criativos do coletivo: eram como lampejos de inspiração que revelavam
imagens e sensações que iluminavam como punctums a experiência artística.
Desta maneira, ao invés de forçar a reprodução das posturas nas
partituras físicas dos estudantes, pude perceber que, como em minhas
primeiras tentativas com o yoga em sala de aula – antes mesmo de iniciar
o doutorado –, os movimentos da prática reverberavam por si
só nas criações do grupo, principalmente
no caso do projeto de extensão, no qual
os encontros eram mais constantes.
Neste sentido, redobrei a atenção
para os afetos registrados nas
partituras, pois muitas vezes um
olhar, um gesto, um sorriso ou
uma intenção poderiam estar
i n u n d a d o s pelo arcabouço
metafórico desta tradição.

porém a presente investigação tem como parte de seus objetivos a composição de poéticas não-miméticas por meio do
treinamento. Portanto, admiro tanto os gestos sacralizados executados por uma dançarina Odissi, quanto os símbolos
evocados pelos movimentos de um ator do Kathakali, compreendendo que boa parte das linguagens cênicas tradicionais
orientais perpassam por essas veredas criativas iconográficas. O próprio Natya Sastra – tratado de Bharatamuni datado de
algum período entre II a.C e II d.C – ao refletir acerca da estética e da poética das artes performativas indianas, deixa claro
que o repertório codificado de movimentos destas manifestações se conecta com qualidades de energia sutis em meio à
representação cênica.
127

Um pormenor apodera-se de toda a minha leitura; é uma


mutação viva do meu interesse, uma fulguração. Através
de qualquer coisa que a marca, a foto deixa de ser uma
qualquer. Essa qualquer coisa fez tilt, provocou em mim
um pequeno estremecimento, um satori, a passagem de um
vazio (...) O studium é sempre codificado, o punctum não,
a incapacidade de dar nome é um sintoma característico de
perturbação. O efeito é seguro, mas é indetectável, não
encontra o seu signo, o seu nome; é radical e, todavia,
desemboca numa vaga de mim próprio; é agudo e abafado,
grita em silêncio (BARTHES, 2006, p. 58-60).

Como vimos no capítulo anterior, Roland Barthes denomina punctum


como uma fisgada de agitação psicofísica que tilinta animando os nossos
sentidos na apreciação da obra de arte. Similar a um detalhe que atrai
nossa atenção em uma fotografia, o punctum anima os estados do artista
da cena e provoca a imaginação, como se estes pontos estimulassem seus
desejos de criação para além da postura yogue, chamando-o para uma
experiência de aventura na elaboração da ação física. Barthes ressalta
em seu ensaio as diferenças entre posar para uma câmera, fabricando de
forma instantânea um corpo artificial e projetado a partir da ideia que
temos de nós mesmos e do papel que queremos difundir para a sociedade,
e ser atravessado por imagens fotográficas que nos afetam: tal qual
uma flecha algo salta da cena e nos fere e, no diálogo com essa breve
morte, a efemeridade da contemplação nos aproxima do instante teatral,
cortante e fugaz como um Cavalo de Vento.
É fato que, no treinamento do artista da cena, muitas vezes
testemunhamos pequenos milagres difíceis de serem reproduzidos no
palco. Ainda assim, o contato com a pontada
da prática nos instiga a continuar
pesquisando em busca dessa experiência
de morte e renascimento, de modo
que “caracterizar-se é como
apresentar-se como um corpo
simultaneamente vivo e morto,
é como um teatro primitivo,
como um quadro vivo, a
figuração do rosto imóvel e
pintado sob o qual vemos
os mortos” (BARTHES, 2006,
p.40). Essa sensação de
mistério trazida pela
punhalada do punctum nos
abre novamente para o
contato com o vazio pois,
por meio deste estado de
disponibilidade, sentimos
o corpo expandir-se no
espaço e temos a necessidade
de mergulhar em nossas
ações artísticas para poder
128

colori-lo melhor.
Renato Ferracini (2012)
propõe a transposição deste conceito
fotográfico de Barthes para o trabalho
do ator/performer a partir da ativação de
impulsos e contrações musculares, sensações e
imagens que, na prática do treinamento, estimulam
o artista na composição de matrizes de movimento e
ações físicas. Relacionando a noção de punctum com a
prática de ásanas no treinamento aqui proposto, aos poucos
percebia que, com a repetição constante de algumas posturas,
os estudantes adentravam tanto em suas simbologias, quanto em
suas sensações corpóreas na vivência das posições, expandindo-
as para seus processos criativos. Deste modo, estes pontos
são como “portas de entrada corpóreas para a recriação da ação
física” (FERRACINI, 2012, p. 178) e, para além do estabelecimento
de um estado de trabalho favorável para a experiência cênica38,
fomentam manifestações musculares das emoções e dos estados de
espírito do artista: geram zonas de jogo e improvisação, nas
quais os percursos de criação podem tanto ser controlados
simbolicamente pelo ator/performer, quanto experienciados
com toda sua intensidade, como em um mergulho sinestésico.

Fico tentando entender como tudo isso se


constrói em segundos de velocidade, de
repente estou em uma montanha, lá estava
eu com ventos soprando em meu corpo, podia
sentir o vento gelado, foi incrível. Em
seguida o céu e a terra ficaram próximos e
pude ver as nuvens escuras passando sobre
minha cabeça, estava sozinha porém não tinha
medo, pelo contrário tinha um sentimento de
descoberta, tudo era novo e eu não estava ali à
toa, teria de ver e sentir tudo que o local poderia
me proporcionar (...) Os arquétipos são naturais quando
estamos em estudo, nessa fase é muito interessante porque
tudo muda em seu cotidiano, a respiração, sono, inquietações
são apenas alguns dos itens que posso pensar no momento, e só
dou conta disso porque o yoga modificou minha mente e corpo,
consigo ficar mais no presente e dar conta de algumas mudanças
ou coisas que me tocam (Diário de Bordo de LN*, 24 ago.2017).

É difícil escrever aqui sobre a manifestação do indizível


que nos toca durante a performance artística e no treinamento.
Ele se revela aos poucos na dilatação psicofísica da
presença cênica e, para Barthes, sua única tradução
possível é o ar, que serve de analogia para a conexão
entre corpo e alma, “para o vazio no qual as palavras
falham” (BARTHES, 2006, p.119): é através desse
ar que podemos contemplar as potencialidades

38  Para saber mais, buscar a explanação sobre os punctums de primeira camada no segundo capítulo.
129

expressivas dos
sujeitos, seus mistérios e
formas. Assim, o ar irradia por
entre os meandros de nossos corpos e
através dele nos conectamos com o instante
precioso em que nossas máscaras cotidianas
desaparecem e estamos presentes naquilo que fazemos
ou observamos.
Podemos relacionar a noção de punctum com a ideia
de yün do budismo tibetano. O yün revela a qualidade
de riqueza inerente aos fenômenos e às coisas – pessoas,
objetos, animais, plantas... –, expressando-se tal como o
“ar” de algo que nos atrai e que não conseguimos explicar
exatamente o porquê. Neste sentido, Chögyam Trungpa Rinpoche
(s/d) acredita que o nosso yün pessoal pode se conectar
com o yün dos elementos que contemplamos, provocando a
sensação de abertura em nosso corpo mente, de modo
que passamos a apreciar o que nos rodeia com
reverência e contentamento. Portanto, através
do exercício meditativo, aprendemos a cultivar
estados brilhantes como o ouro que trazem consigo
wangthang – campo de energia individual que
se manifesta através da presença autêntica do
praticante.
No contexto desta investigação, pude perceber
que os estudantes – consciente e inconscientemente
– projetavam o yün que descobriam nos ásanas para
suas criações. Desta maneira, os pontos de força
das partituras físicas brotavam da mistura entre
uma miríade de yüns: pessoais, yogues, artísticos,
do ambiente e do contêiner, entre outros. Para Chögyam
Trungpa essas qualidades despontam nebulosas, pois antes
mesmo de formularmos quaisquer pensamentos sobre elas, voam
pelos ares feito borboletas enquanto tentamos agarrá-las. Ao
mesmo tempo, seu bater de asas penetra na carne e nos desperta
e, por meio do treinamento, aos poucos conseguimos brincar
com eles, tocando-os e recombinando-os como bem desejamos,
transportando-os para a cena.

Foi pedido que fizéssemos nossos próprios


aquecimentos e depois deixássemos livre o
corpo a mover-se pela sala nos diferentes
planos: baixo, médio e alto. O curioso aqui
foi que realizei minha sequência antiga de
movimentos mas incluí variações, me via
em meio aos exercícios criando imagens
que gostaria de manter levando-as
para a performance e estas saíam
de forma espontânea, outra
questão interessante, é
o fato de que muitas
vezes, pelo menos
para mim,
130

não estou pensando nos exercícios de yoga, mas quando


percebo de alguma forma eles são incluídos nas sequência.
É como se o próprio corpo criasse uma memória coreográfica
e o cérebro trouxesse uma variação (Diário de Bordo de
*OD, 22 set. 2015).

A esta altura da escrita da tese, presença autêntica – wangthang


– e presença cênica se confundem. O mestre tibetano revela que,
a partir do contato genuíno com o yün, ansiamos compartilhar essa
experiência com as pessoas que estão a nossa volta. Da mesma forma,
tal qual o ofício artístico, a qualidade de riqueza da experiência
está inteiramente distante de uma opulência material, revelando o
sentido de beleza e prontidão na contemplação das coisas do mundo.
Como um convite à viagem, é preciso dar um salto e arremessar estes
pontos sensíveis para fora: desenhando no ar suas formas com o corpo,
atuando sobre eles e, com isso, desfazer nossos casulos com a confiança
necessária para poder renascer ao longo do processo de criação.

Uma separação, uma morte, um nascimento ou


uma doença é como uma gota d`água. Podemos
afogar-nos nela ou dela nos nutrir.
Sakyong Mípham Rinpoche

A confiança luminosa que rompe o


casulo é chamada ziji no Tibet. É ela que rega o
botão de nossa expressividade “oferecendo um campo de poder no qual
podemos desdobrar nossas asas e começamos a brilhar” (MÍPHAM, 2008,
p. 156). Na vivência das aulas e do projeto de extensão, como em
qualquer outro treinamento cênico, era evidente que os artistas
mais experientes conseguiam exercitar alguns elementos da prática
com mais facilidade, enquanto outros não demonstravam interesse
pelos aprendizados e acabavam cumprindo-os como mera obrigação
das disciplinas ou mesmo não passavam muito tempo no Núcleo de
Práticas Meditativas no Treinamento do Artista. Ainda assim, passo
a passo os coletivos foram se familiarizando com a caminhada, com o
contêiner, com as posturas e seus pontos de apoio, de modo que, com
algumas turmas mais comprometidas e com os estudantes do projeto
de extensão, intuí que era o momento de ampliar o repertório
meditativo dos grupos, indo de encontro à questão do relaxamento
fomentado pela experiência do yoga.
131

A dificuldade em fazer exercícios físicos como parte da


preparação está em como fazê-los da maneira adequada.
Se trabalharmos muito pesadamente, ficaremos cansados
e sem energia física para entrar em cena. Por
outro lado, se estivermos demasiadamente relaxados
e calmos isso também não será produtivo; ficamos
com sono e não estaremos vivos o suficiente no palco.
No palco é como se estivéssemos participando de um
jogo. Por isso alegria e energia, aliadas a calma
e concentração é o ideal. Precisamos das duas
coisas. E não é fácil encontrar uma preparação que
trabalhe com os dois extremos (...) Além do mais,
o programa exato da preparação é algo difícil de
ser formulado; depende de qual tipo de atuação
estamos fazendo. Se for uma apresentação muito
dinâmica, temos de fazer exercícios dinâmicos
para evocar a energia necessária. Mas se for
algo mais calmo, concentrado, temos de acalmar nossa
energia (OIDA, 2012, p.56-57).

Yoshi Oida (2012), reflete em sua escrita parte das indagações


que me acompanharam durante a pesquisa de campo desta tese:
como dialogar com estas tradições meditativas no treinamento e,
ao mesmo tempo, percorrer o caminho do meio entre pulsão e
foco, movimento e contemplação? Neste sentido, foi preciso
ponderar de forma cuidadosa acerca das potencialidades dos
sistemas de base escolhidos, adaptando-os com delicadeza
para que estes instigassem o trabalho do ator/performer sem
perder suas características fundamentais. Para o artista
japonês, simplesmente reproduzir os exercícios clássicos dessas
culturas também não é o adequado, todavia, com a regularidade
da prática, vamos descobrindo aberturas da tradição que fazem
brotar nossos desejos criativos de forma expressiva na cena.
Tentando despertar o corpo mente do coletivo, permitindo
que suas energias fluíssem e irradiassem através do
“ar”, passei a reorganizar os procedimentos yogues exercitados
em busca de um “relaxamento solto, mas também forte e concentrado,
de boa qualidade, trazendo força e solidez, e um corpo vivo e
dinâmico” (OIDA, 2012, passim). Logo, não houveram grandes
transformações no repertório de posturas já trabalhado em sala
de aula, porém experimentei apresentar sequências mensais
para os grupos, verticalizando- as durante aquele período para
fomentar a autonomia dos treinos individuais e os processos de
criação dos coletivos, que poderiam tanto combiná-las como alterá-las
artisticamente em suas práticas. Algumas estavam voltadas para o
equilíbrio ou eram mais vigorosas, buscando o aquecimento intenso do
corpo e da respiração; outras tinham a base sentada e eram mais
relaxantes; umas fazíamos em duplas ou em trios para integrar o grupo;
ou, ainda, eram séries de ásanas cujas simbologias estavam de alguma
forma conectadas com as temáticas das dramaturgias que estávamos
pesquisando no momento, entre outras.
132

Além da Saudação ao Sol como sequência-base do treinamento, fomos


exercitando diferentes ritmos para a realização desta e de outras
séries, com movimentos fluidos e interconectados ou de permanência
e força, alterando o número de repetições a cada encontro para
treinar o condicionamento psicofísico dos grupos. Swami Saraswati
(2011) recomenda que, após a familiarização das posturas, devemos
ir aos poucos inserindo dinâmicas respiratórias nas sequências –
inalando durante os ásanas de abertura do peito e do abdômen e
exalando no fechamento de ambos nas curvaturas para frente –, além de
aprofundar outros pranayamas, o entendimento da ativação dos chakras
a cada movimento e a capacidade de alongamento em cada gesto. Em um
primeiro momento, segui por estas veredas a partir da investigação da
respiração característica de cada posição e do aprofundamento físico
das posturas, com cada artista aprendendo a lidar com suas próprias
capacidades e limitações.

Os diferentes estilos de hatha yoga tinham efeitos


autônomos muito diferentes. Por exemplo, a Ashtanga, com
seu movimento fluido e veloz e sua ênfase nas Saudações ao
Sol, trabalha bastante os músculos e então estimularia
o sistema simpático. Em oposição, Iyengar, com sua
ênfase em posturas estáticas, parecia lhe conferir uma
dominância do parassimpático (...) Uma boa prática de
yoga envolvia posturas que percorriam o ciclo através
do acelerador e do freio de modo que o sistema autônomo
chegasse a um treinamento completo (BROAD, 2013, p.
134-135).

Como já estávamos nos dedicando a exercícios “parassimpáticos”


e contemplativos que estimulavam a desaceleração e serenavam o ritmo
do dia-a-dia dos praticantes, era importante trabalhar com elementos
“simpáticos” no treinamento, fomentando a prontidão e o engajamento
dos coletivos. Assim, em busca de “um fogo interior mais forte e
disponível” (OIDA, 2012, p.15) para as experiências deste laboratório,
recordei de Mircea Eliade (1979), que associa os yogues alquimistas
aos ferreiros, pois os primeiros cultivam o calor psicofísico por meio
da manipulação da respiração, transformando o corpo em ouro a partir
dessa e de outras estratégias de purificação. Eliade ressalta que é
através do fogo que podemos modificar as qualidades das substâncias da
natureza, metamorfoseando gradualmente suas formas e intervindo no
meio ambiente, de modo que sua existência manifesta o poder de uma
força mágica que modifica os fenômenos – e consequentemente a vida –,
reverenciada em rituais de diversas culturas.
133

Este “calor mágico” trazia resistência psicofísica para os ascetas


indianos e seu domínio promovia o acesso a estados não condicionados
de contemplação e de existência. O forno do alquimista aproximava-o do
sagrado e dos deuses, pois acelerava a passagem do tempo transmutando
matérias vivas que morriam para depois renascer como fênix, e que
em sua forma aperfeiçoada, faziam-no transcender a condição humana,
provocando “uma vitória em relação aos processos de putrefação da
carne” (POTY, 2015, p. 173). Da mesma forma, acredito que as sensações
ocasionadas pela presença cênica também possam s e r
ardentes, pois quando nos sentimos plenamente tocados
pelo processo artístico degustamos o derretimento
de nossos hábitos cristalizados, encontrando
forças para nos renovar
a cada ensaio, a cada
ciclo criativo.

A vivência vigorosa das posturas yogues traz consigo o


fogo sagrado respiratório, que entusiasma e dá força para o corpo durante
os movimentos, devido ao aumento da frequência cardíaca. O texto tântrico
Hatha Pradipika – escrito por Svatmarana (In SOUTO, 2009) e datado de
algum período entre os séculos XIV e XVI desta era –, afirma que, dentre
os três tipos de pranayamas, o primeiro e mais leve produz calor, o
intermediário gera palpitações na coluna vertebral e o mais sublime
nos faz levitar. Portanto, parte do caminho alquímico para a elevação
da Kundalini no hatha yoga tântrico se dá a partir da orquestração
dos ritmos da inspiração e da expiração (aumentando, equilibrando ou
diminuindo suas velocidades) e da retenção ou supressão do ar durante
estas atividades: retraindo ou não os diafragmas pélvico, respiratório
e vocal, procurando aumentar ainda mais o aquecimento psicofísico por
meio da utilização de bandhas – contrações bloqueadoras das energias
que circulam pelos canais do corpo do praticante. A integração entre
todas estas ações nos faz vibrar, pois “assim como as impurezas dos
metais são queimadas pelos foles sobre o fogo, as impurezas do corpo
são consumidas e os defeitos retificados pelo controle e pela regulação
da respiração” (Manusmriti In SOUTO, 2009).
Esta limpeza das passagens energéticas do corpo ocorre devido
à atuação do prana, fonte cósmica de vida que nos alimenta através
do contato com o ar e da qual dependemos para sobreviver. Como
vimos, a ação sobre este alento vital – que no budismo tibetano pode
134

ser associado ao Cavalo de Vento e na medicina


chinesa ao Chi – pode ter objetivos distintos:
que vão desde a prontidão e o calor psicofísico
obtidos por meio dos exercícios de ampliação
das capacidades de inspiração e de eliminação
dos gases residuais na expiração, passando pelo
florescimento das potencialidades criativas e
vibratórias dos sujeitos em sua interação com o
espaço, até chegar na quietude característica da
transcendência espiritual proveniente da completa
purificação de nossos estados psicofísicos.
Deste modo, na organização do treinamento do
artista da cena, era preciso investigar vias de
utilização dos pranayamas que movessem o “fogo”
dos coletivos apenas até seu segundo estágio –
expressivo e ativo –, sem deixar que os estudantes
se acalmassem em demasia, interrompendo assim
seus fluxos inventivos.
Naquele momento, na vivência da Desaceleração,
a respiração já era um objeto de contemplação ao
longo da caminhada, fomentando a concentração e a
serenidade dos artistas no início dos ensaios e, portanto, acercando-
se ligeiramente da terceira etapa dos pranayamas, mais voltada para
a meditação em si. Ademais, na execução das sequências de ásanas mais
intensos, nos aproximávamos da primeira fase deste sistema, esquentando
nossos corpos e estados psicofísicos, ampliando a sensação
de foco no instante presente. Entretanto, para além
destas ações que pareciam trabalhar com as extremidades
da prática, tinha ainda o desejo de trazer também
para os encontros outros pranayamas, intuindo que
estes poderiam expandir o arcabouço expressivo dos
estudantes, mas não sabia bem como. Decidi começar
pelos bandhas pois, para Iyengar (1983), são eles
que previnem que as energias dos sujeitos se dissipem
durante a prática de yoga, tanto nos ásanas, quanto
nas experiências respiratórias, de modo que pareciam
ser bastante relevantes para a sustentação dos estados criativos no
trabalho do ator/performer.
Para falar de bandhas, é preciso compreender os diferentes fluxos
de circulação da energia prana que, em sua atividade, se assemelha
a condutos elétricos que percorrem os meandros do corpo através das
nadis. Georg Feuerstein (2016), recorda que estas correntes ramificam-
se em cinco andamentos complementares chamados vayus (ventos): prana
– potência de inalação da força vital, cujo epicentro localiza-se no
coração e se move do nariz ao umbigo absorvendo as forças cósmicas;
apana – ação de exalação e excreção dos resíduos psicofísicos,
atuando principalmente entre o ânus e o umbigo; vyana – responsável
pela distribuição destas qualidades energéticas por todo o corpo,
operando sobretudo através dos sistemas respiratório e circulatório;
samana – atividade respiratória centrada no abdômen que ativa o
fogo digestivo, facilitando a assimilação de nutrientes tanto
físicos, quanto metafísicos; udana – ligado à garganta e à
135

cabeça, responsável pela fala, pelo pensamento e pelo


sono, funcionando como porta de entrada para a transcendência
dos sujeitos. Neste sentido, os bandhas agem a partir do diálogo
com estes cinco ventos, por meio da contração dos esfíncteres do
corpo, regulando o fluxo do prana “do mesmo modo que condensadores,
fusíveis e interruptores controlam o fluxo de eletricidade” (IYENGAR,
2016, p.439).
A partir de bloqueios e retenções de músculos semi-voluntários,
ativamos cada um dos bandhas visando à canalização de nossas correntes
prânicas para áreas específicas do corpo durante a prática de yoga. No
contexto do treinamento aqui proposto, utilizei
duas formas desta manipulação energética que me
pareceram ser as mais pulsantes para a criação
cênica, sendo elas: mula bandha – fechamento
da região do períneo (ânus e uretra) durante
todo o ciclo respiratório que se dá através do
movimento vertical da musculatura, realizado
de baixo para cima relacionando-se com prana
e apana; e uddiyana bandha – retração do
abdômen em direção à coluna que faz com que o
diafragma se eleve no sentido do tórax durante
a expiração, vinculada a prana, apana e samana.
Além disso, desde o começo da pesquisa que, antes
de começar as séries de posturas, pratico com
os estudantes um exercício chamado bhrumādhya
ou sambhavi mudra – a depender da escola de
yoga –, que consiste na fixação do olhar para o
ponto entre as sobrancelhas, sendo considerado
parte de um subgrupo dos bandhas chamado
drishti, voltado para posições específicas dos
olhos durante a meditação.
A noção de terceiro olho é bastante conhecida
tanto no ocidente, quanto no oriente, e está
associada ao Ajna chakra, centro da intuição
e da sabedoria na tradição hindu, referente ao
ponto no qual se encontram as vivências do mundo
fenomênico com o absoluto espiritual. Assim, no
início da pesquisa, antes de conhecer o Cavalo
de Vento, trouxe para os ensaios o foco do
olhar para o ponto entre as sobrancelhas quando
percebia que o grupo estava disperso e que a visão
periférica da Desaceleração ainda era difícil
de assimilar. Nestes momentos, pedia para os
estudantes pararem a caminhada por um instante
e, sentindo o apoio dos pés no chão na postura
da montanha – tadásana39 –, se concentrassem
por alguns instantes neste ponto com os olhos
semicerrados para depois retomarem o exercício.
Aos poucos, o bhrumādhya passou a

39  Ver primeiro capítulo.


136

estabelecer a abertura das séries de yoga assemelhando-


se a um contêiner físico, de modo que com ele o grupo
desenvolvia a atenção necessária para a prática –
devido às suas qualidades de estimulação dos nervos
óptico e olfativo que, juntos, podem despertar o
sistema nervoso central, “transcendendo a mente,
o intelecto e o ego” (MOTOYAMA, 2014, p.92).
Esta preparação psicofísica foi ganhando novos
contornos ao longo dos ensaios e, nos dias de
hoje, é também realizada com o uso de óleos
essenciais aromáticos. Desta maneira, o
processo de acionamento deste ponto tornou-se
mais um ritual de limpeza desempenhado pelo
coletivo, porém voltado para o autocuidado
por meio do toque da massagem – abhyanga –
que acaba estendendo-se para o restante do
corpo, ativando-o para a prática dos ásanas.

Os óleos auxiliam na meditação. O relaxamento


torna-se parte do aquecimento pois o óleo esquenta
a pele, causando uma sensação de conforto e
entrega, uma entrega do corpo ao espaço liberando
sensações olfativas. Creio que esse momento
inicial serve para que possamos manter nossa
concentração, e assim executarmos os exercícios
com mais precisão (Diário de Bordo de NR*, 16
out.2017).

Muitas vezes, as técnicas de mula bandha e


uddiyana bandha foram exercitadas coletivamente
no treinamento. Desta maneira, as contrações
de seus respectivos esfíncteres serviram para o
estabelecimento de bases de apoio físico para os
artistas tanto na respiração, quanto na vivência
das posturas e das matrizes de movimento. Estas
retrações estimulam, respectivamente, os chakras
Muladhara e Svadhisthana durante o mula bandha,
e os chakras Svadhisthana e Manipura durante o
uddiyana bandha – portanto, por nos relacionarmos
com estes três pontos de energia, pouco a pouco
suas características foram trazidas para os ensaios.
Neste sentido é importante ressaltar que, na tradição
hindu, os três primeiros chakras manifestam as forças
instintivas dos sujeitos, em contraposição às experiências
de compaixão e espiritualidade dos chakras superiores:
ligadas à sobrevivência e à estabilidade e em mula bandha, e
à vitalidade e à expansão de si em uddiyana bandha.
Nas experiências com os estudantes, o emprego destes bandhas
ocorreu antes mesmo da prática dos pranayamas, pois era preciso
instituir uma base forte para os coletivos na vivência da Desaceleração.
De forma intuitiva, percebia que o uso destas retenções musculares no
treinamento do ator/performer trazia consigo um estado de prontidão
137

quase que instantâneo, de modo que os atos de pisar no


chão, caminhar e executar as ações das partituras
pareciam mais vivos a partir do contato com estes
recursos meditativos. Com o tempo, descobri que
estas contrações, apesar de terem sido pensadas
para a prática de posturas e respirações yogues,
também haviam sido investigadas por Yoshi Oida
através do olhar para as suas potencialidades
de interação com o trabalho do artista da
cena, a partir das experiências dos teatros
Nô e Kyogen, nas quais as retrações anais e
abdominais intensificam o canto e as ações
vigorosas dos artistas.
Oida ressalta que, para além da limpeza
do espaço cênico, é preciso também purificar
nosso corpo para a criação. Para este
intento, o artista propõe uma preparação do
ator/performer a partir do cuidado com os
nove orifícios do corpo – olhos, orelhas,
narinas, boca, ânus e uretra – como um
aquecimento de nossos sentidos. Recorda ainda
que, tanto nas artes marciais, quanto nas
tradições teatrais japonesas, é importante
conservar o ânus comprimido enquanto se
está trabalhando, pois esta ação fomenta
o ânimo e o foco de seus praticantes “como
se algum canal estivesse se aberto em seus
corpos” (OIDA, 2001, passim), aproximando-
se da atividade característica da ativação
do chakra Muladhara, moinho de energia que é
morada da serpente Kundalini. O ator todavia
afirma que este ponto é igualmente estimulado
na meditação taoísta e em algumas danças
africanas, de modo que sua execução relaciona-
se com a ascensão das qualidades energéticas
existentes na base da coluna que espalham-se
por todo o corpo em ondulações, ampliando as
potencialidades de movimento destes praticantes e
dos artistas destas tradições.

No Japão, todas as artes marciais e as


tradições teatrais ressaltam vivamente
a importância de manter o ânus contraído
quando se está trabalhando. É evidente que,
na vida cotidiana, nós o mantemos relaxado.
Mesmo quando interpretamos, não é necessário
mantê-lo cerrado o tempo todo. Porém, nos momentos
mais importantes, quando alguém precisa dar um
soco muito forte, ou tem de usar muita potência de
voz, o ânus deve ficar intensamente cerrado. Isso dá
energia ao corpo e à voz, proporcionando mais força e
mais foco na ação (…) Quando apertamos o ânus, levamos o
foco para essa área do corpo. Percebo isso quando faço esse
138

exercício, como se fosse uma sensação de “choque”. Talvez


algum tipo de “canal” tenha sido aberto no meu corpo,
permitindo a entrada de uma energia externa. De certa
forma, essa área é um ponto de partida para a energia do
corpo (OIDA, 2001, p.32).

Como dito anteriormente, na vivência da tese esta potencialidade


física foi trabalhada no contexto da Desaceleração em um primeiro
período da pesquisa. Os estudantes permaneciam em pé e, comprimindo
esta musculatura, tentavam se conectar com o solo e começavam a
caminhar a partir deste apoio. Nos dias atuais, a prática do mula bandha
é fomentada em situações diversas: durante o exercício dos ásanas
auxiliando a permanência em posturas mais desafiadoras, na experiência
dos pranayamas, na organização de partituras físicas, na apresentação
de cenas, ou mesmo em qualquer momento no qual os artistas se sentirem
sem forças para a realização de suas atividades.
Compreendo que, em comparação ao Cavalo de Vento, a experiência
do mula bandha está mais relacionada a um despertar encarnado do
ator/performer no instante da ação, mobilizando energeticamente todo
seu corpo para deixá-lo alerta; enquanto a prática do Cavalo de Vento
está voltada para a concentração psicofísica do artista e para a
irradiação de seus sentidos, inspirações e emoções para a todo o seu
corpo, para os companheiros de grupo e para a cena. Ainda assim, é
importante dizer que é possível que os efeitos de ambos os exercícios
se misturem, complementando um ao outro de forma retroalimentativa
no treinamento.
A experiência com o uddiyana bandha se deu principalmente a partir
da Saudação ao Sol pois, como vimos no primeiro capítulo, o Manipura –
solar, quente e vital – é o chakra mais desenvolvido nesta sequência.
Além disso, quando passei a estudar caminhos para introduzir novas
técnicas respiratórias yogues na prática com os estudantes, observei
que as vivências que integravam este bandha se aproximavam do objetivo
desta etapa do treinamento, de breve afastamento da perspectiva
relaxante de suas tradições de base.
Desta maneira, escolhi trazer para os ensaios duas modalidades de
pranayamas das oito elencadas no tratado Hatha Pradipika, as técnicas
bhastrika e ujjayi: a primeira é conhecida como respiração de fole,
associando-se ao instrumento utilizado pelo ferreiro para assoprar e
incitar o fogo em sua oficina pois, por meio de um movimento similar
de vaivém realizado pelo diafragma respiratório em uddiyana bandha, o
praticante bombeia o ar para fora do corpo na exalação com velocidade
e força suficientes para produzir ruído; a segunda é também chamada
de respiração vitoriosa ou sussurrante, e nela a contração parcial da
glote em jalandhara bandha tanto na inspiração, quanto na expiração,
se une aos movimentos de contração e expansão do diafragma respiratório
estimulando o fogo digestivo e, em sua atividade, provocando sons
parecidos com a dinâmica das ondas do mar – indo e vindo, retornando
ao oceano para depois voltar e rebentar na areia.
139

A prática chamada “Cavalo de Vento” nos foi apresentada


como um eixo para promover uma regressão, no sentido de
um retorno ao estado desenvolvido anteriormente, somente
caso houvesse um desvio. O que ocorria diversas vezes,
principalmente, quando o grupo passou a criar intimidade
(...) O prana seria o que possibilitaria essa habilidade de
manutenção de um estado construído por um viés meditativo?
Interrogo-me, pois a respiração aliada a uma preparação
pré-ensaio proporcionavam-me experiências muito ricas em
material criativo. Todos os ensaios mais significativos para
mim, foram aqueles que tiveram ênfases nos pranayamas. Posso
afirmar que, tanto no intensivo, quanto nos ensaios que
canalizavam uma atenção especial à respiração,
foram os momentos de mais entrega e mais
criativos que tive. Recordo-me de um dos
encontros do intensivo em que trabalhamos
dois tipos de respiração, ujjayi e
bhastrika, e várias imagens surgiram
compondo o parto do Menelau. O texto
dramático que estávamos trabalhando era
a tragédia de Eurípedes, As Troianas,
e meu personagem era o rei Menelau.
Todas essas imagens não surgiram
somente por causa dos exercícios de
respiração, acredito que a leitura
do texto me possibilitou a construção
dessas imagens e, posteriormente,
proporcionou a matriz de movimento
do personagem: “Menelau, lama, Nau,
Navegar, não alcançar o sol. Flor de
lótus que não brota”; “Pés alheios para
massacrar pela dor de amor não concretizado”;
“O Anahata é o meu lamento, lamento de um ego
ferido” (Diário de Bordo de SK* 21 nov.2017).

O relato de SK* revela possibilidades de articulação dos pranayamas


com o percurso criativo do treinamento proposto no processo de composição
de um personagem. Como sempre, devo ressaltar que as narrativas aqui
elencadas partem de experiências individuais distantes de uma verdade
absoluta; entretanto, acredito que o processo deste estudante desvende
algumas vias de ação desta técnica no desenvolvimento expressivo do
ator/performer, tais como: presença e entrega no instante presente,
manutenção dos estados meditativos e fomento da inspiração do artista.
Neste sentido, nas vivências com os coletivos, notei que estas
duas práticas respiratórias – ujjayi e bhastrika –, em seu vigor,
promoviam tanto a concentração, quanto a vitalidade dos estudantes,
aproximando-se do caminho de treinamento que eu investigava.
Atreladas aos bandhas, as sonoridades sibilantes de ujjayi
e cortantes de bhastrika atuavam como mantras ao longo o
treinamento, construindo atmosferas interessantes para as
cenas. Ao mesmo tempo, a oxigenação sanguínea e cerebral
provocada pela repetição constante destas técnicas aquecia
os corpos fomentando a prontidão dos artistas. Desta
maneira, divagando por entre sons que fomentavam
imagens, punctums e sentimentos, percebi
140

q u e
a junção das diferentes
características destes pranayamas me levaram a
refletir acerca das potencialidades expressivas destes fluxos
respiratórios na prática com os estudantes. Assim, os ruídos de
entrada e saída do ar poderiam incitar partituras vocais e sonoras
que fariam parte da elaboração poética dos textos a serem ditos pelos
atores e, da mesma maneira que as contrações dos bandhas estimulavam
seus movimentos, estes poderiam brincar com seus zumbidos, melodias
e sopros, compondo-os de acordo com seus impulsos criativos e com as
proposições de cada cena, interagindo com o silêncio instaurado pela
meditação e pelo contêiner como bem entendessem.
Para além destas potencialidades de ação dos pranayamas nos
experimentos deste treinamento, é sabido nos dias de hoje que o mestre
Constantin Stanislávski investigou as conexões entre a prática do yoga
e o trabalho do ator durante sua trajetória. Contudo, os frutos desta
pesquisa – que constituem parte relevante de suas experiências –, foram
censurados de seus livros pelo regime stalinista por serem considerados
demasiado espirituais e, portanto, se distanciarem da ideologia vigente,
de modo que “o grande homem do realismo socialista no teatro não poderia
ser inspirado pelos estudos místicos de eremitas Indianos”
(TCHERKASSKI, 2012, s/p). Neste sentido, o resgate
recente destes estudos traz à tona questões sobre o
seu Sistema que poderiam ser melhor compreendidas
sob a luz desta tradição, como o termo energia por
exemplo: segundo o pesquisador Sergei Tcherkasski,
este era originalmente chamado de prana, emanando
do artista da cena e irradiando de seu corpo e
alma como um círculo de fogo que conectava-o com
o ambiente, com os outros atores e com o público.

Como o termo “prana” foi se tornando cada vez menos


ideologicamente aceitável, na [década de] 1930 Stanislávski
passou a substituí-lo frequentemente com a palavra
“energia”. No entanto, em seu trabalho prático, ele ainda
usava o termo “prana” e, mais importante, os próprios
princípios iogues (...) Stanislávski salienta: “Tenha em
mente que você nunca será capaz de curvar-se a menos
[que o] prana seja liberado depois de cada movimento.
A plasticidade do movimento é impossível sem [o] prana.
Você deve necessariamente liberar todo o prana... Você irá
extrair esse prana do seu coração e emanar este prana ao
[seu] redor”(TCHERKASSKI, 2012, s/p).

A expansão desta força vital do artista para o espaço se dá a partir


dos raios provenientes do plexo solar, que está localizado um pouco
abaixo do coração. Vicente Mahfuz (2015) recorda que o prana permeia
a pesquisa de Stanislávski sobre o trabalho do ator sobre si mesmo e
que este centro de energia do corpo era considerado pelo mestre como
um “segundo cérebro” dos sujeitos, fonte de suas emoções, desejos
e potencialidades criativas. O autor destaca que esses raios
141

s o l a r e s
energéticos fundamentavam a
comunicação das qualidades sutis e psíquicas inerentes à
prática cênica, de modo que, por meio do treinamento do yoga e de
seus pranayamas, o ator poderia aprender a “manifestar o conteúdo
espiritual da personagem ao público, dominando a cena” (MAHFUZ,
2015, p.119).
Como vimos no capítulo anterior, Yoshi Oida ressalta que no Japão o
termo hara corresponde ao principal centro de energia do corpo humano,
igualmente situado na região do plexo solar e que “ultrapassa a noção
de um lugar fixo, sendo o núcleo de todo o self” (MARSHALL in OIDA,
2001, p. 35). Neste sentido, o ponto referido tanto por Stanislávski,
quanto por Oida, relaciona-se com o uddiyana bandha e com os chakras
Manipura e Svadhistana, trazendo consigo uma segunda fonte de apoio
para o artista da cena, que pode trabalhar em conjunto com a contração
do mula bandha em suas atividades. A consciência do movimento a partir
do hara no contexto das artes performativas e marciais japonesas
traz força, equilíbrio e ânimo para
seus praticantes, de modo que a
concentração neste ponto age como
uma ponte entre o céu e a terra,
razão e emoção que, assim como o
segundo cérebro do mestre russo,
transforma-se em um caminho do meio
no processo de manipulação criativa
dos fluxos energéticos investigados
nestas tradições.

Stanislávski descreve a fluência do prana


dentro do corpo: “O centro cerebral
parecia ser a sede da consciência, ao
passo que o centro nervoso do plexo solar
seria a sede da emoção. A sensação era a
de que meu cérebro mantinha intercâmbio
com meus sentimentos”. Aqui, Stanislávski
classifica o plexo solar como a fonte
geradora de emoções do ser humano, e a
ideia de “intercâmbio” entre o cérebro e
o plexo solar sugere o reconhecimento do
corpo humano como uma unidade psicofísica
(...) Dessa forma, o vínculo resultante da
conexão energética “mente-emoção-corpo”
resultaria na habilidade que o ator tem
de “comungar” consigo mesmo e com outros
atores em cena, como narra Stanislávski:
“Desde o instante em que fiz a descoberta,
pude comungar comigo mesmo em cena, quer
audível, quer silenciosamente, e com
perfeito domínio de mim” (STANISLAVSKI,
2008, p. 240). Essa proposta de auto
comunhão do ator é descrita por
Stanislávski (apud WHYMAN,
2008, p. 79-80) em
142

seu diário de 1912, no qual escreveu que atuou bem em uma


de suas apresentações devido à “comunhão com o plexo solar”
(MAHFUZ, 2015, p. 115-116).

Talvez as metáforas que mais nos aproximem da noção de hara e


plexo solar sejam as sensações de “borboletas no estômago” ou de
“frio na barriga” que vivenciamos quando estamos diante de situações
de adrenalina. Oida recorda que, tanto no teatro Nô, quanto no zen-
budismo e nas artes marciais, é deste centro de gravidade que partem
nossos anseios e desejos expressivos de comunicação com o mundo.
Desta maneira, o artista precisa exercitar a atuação deste ponto de
força em sua prática, para saber como agir, interagir e deslocar-se
no espaço a partir dele.

P E N S A N D O

MUITO

E a tese-criação, como fica?

Às vezes é difícil colocar no papel informações que, apesar de


relevantes para o entendimento da pesquisa, destoam um pouco do teor
poético almejado para a escrita. Ainda assim, vagueando por entre
as palavras ditas me emociono ao perceber que artistas provenientes
de lugares e culturas tão distintas têm seus princípios criativos
interligados através das influências de diferentes tradições. Que
inconsciente coletivo é este que nos aproxima? O que será que
dele gera o encantamento e a inspiração criativa? Como dialogam
apreciação e expressividade?
Só sei que as experiências da beleza transformam nossos percursos
artísticos e, quando menos esperamos, nos vemos realizando coisas
inimaginadas. Muitas vezes me voltei para os antepassados em períodos
de crise ou mesmo em instantes de dúvida sobre esta investigação.
Ao longo das experiências das aulas e do projeto de extensão, o
contato com as vivências de Stanislávski, Grotowski, Oida, Abramović,
Trungpa e tantos outros trouxe consigo o alento necessário para
procurar soluções para os dilemas em que me encontrava, por isso
estes artistas estão tão presentes nas páginas acima.
Lembro como se fosse ontem, pois encontrava-me inundada por
uma destas grandes confusões que habitamos durante o trajeto de uma
tese: os joelhos doloridos, a vida seguindo seu curso em meio a
dificuldades que estavam tirando-me a paz e o sono e, como um susto,
assim como quem não quer nada, um sopro de vida me atravessa com
celebração e canto... Era yün que se revelava a partir de um novo
143

espaço de treinamento pessoal que reverberaria no treinamento


aqui proposto. AGOSTO DE 2015, chego atrasada para um curso de
formação em uma escola desconhecida – na verdade, um dos poucos
lugares com aulas de yoga em Manaus, pelo menos na época – e me
deparo com um professor batucando em um instrumento de barro e
cantando com o grupo alguns mantras. A sala à meia luz, o cheiro
de incenso, os sons e as vozes suspendiam o tempo e estremeciam os
corpos. Era isso. Yoga também é voz.
O pensamento evidenciava o óbvio, porém, naquele exato momento,
buscava fugir dos mantras no treinamento com os estudantes porque
entendia que estes reverberavam os clichês da prática: o estereótipo
namastê/gratidão recheado de materialismo espiritual que nos afasta
das potencialidades da tradição. Entretanto, o que deveria fazer
com aquela experiência? A música cessou e os sons das respirações do
coletivo coloriam o silêncio. O espaço vibrava, eu vibrava. Sentia
vontade de dançar.
Qual caminho seguir?
Já não me recordo bem a ordem dos fatos. Estava quebrando a
cabeça refletindo como transportar a vivência para esta investigação.
Logo eu, sempre com tanto receio de me aproximar dos caminhos da
voz no teatro. Ao mesmo tempo, percebia que os estudantes tinham
bastante dificuldade em utilizar a palavra em suas criações, parecia
até que o silêncio meditativo as engolia no treinamento. Sabia que
precisava tomar uma atitude, mas não achava nem um pouco adequado
cantar para os deuses em uma sala de aula, pois esta ação poderia
remeter a uma prática religiosa e fugiria do propósito sacro/laico
da investigação. Como evitar equívocos e superficialidades?
Iyengar (2016) ressalta que é possível fazer de um mantra um
objeto de concentração e que, na filosofia indiana, a linguagem oral
e a memorização e repetição destes hinos são fundamentais para
os rituais. Neste contexto, o universo existe a partir de suas
qualidades de vibração e, portanto, os ritmos encantatórios e de
repetição dos mantras são passagens para o contato com cadências
que personificam as divindades. Eliade (2012) recorda que os fonemas
recitados servem de suporte para a concentração do yogue, conduzindo
a respiração que se transforma de acordo com a métrica evocada.
Assim, o praticante aproxima-se da amplitude da consciência no
processo de entonação dos cantos, passando por “momentos de Khumbhaka
(retenção do ar) e Rechaka (exalação do ar), através de um trabalho
diafragmático rigoroso” (MIRANDA, 2014 , p. 15).

LAM
VAM
RAM
YAM
HAM
AUM
AUM
144

Bija. Termo sânscrito que significa semente. Que despontou da


terra para que eu pudesse regar suas potencialidades em um treinamento
recém cultivado. Mantras são fórmulas invocatórias sagradas de acesso
ao divino, cujas vibrações sonoras conduzem os sujeitos a estados
energéticos de abertura e disponibilidade para o contato com o absoluto,
com o vazio. Seus sons são como uma ponte que conecta o indivíduo
consigo mesmo, com os fenômenos e com o cosmos, que no tantrismo
tem como origem primordial o mantra AUM (OM/HUM). Este som semente
é bija, uma trepidação monossilábica que representa as divindades,
os elementos da natureza, ou os principais chakras a partir de
sonoridades e localizações corpóreas específicas para cada um deles:
os mantras LAM, VAM, RAM, YAM, HAM, AUM, AUM – cantado uma oitava
acima – simbolizam os centros de energia Muladhara, Svadhistana,
Manipura, Anahata, Vishudhi, Ajna e Sahashara, respectivamente40.

Um mantra é um símbolo no sentido arcaico do termo:


é, simultaneamente, a realidade simbolizada e o sinal
simbolizante. Existe uma correspondência oculta entre
as letras e as sílabas “místicas” (matrka, “as mães”,
bija, “as sementes”) e os órgãos sutis do corpo humano,
e entre esses órgãos e as forças divinas adormecidas
e manifestadas no cosmos. Trabalhando com um símbolo
despertam-se todas as forças que lhe correspondem em
todos os níveis do ser (ELIADE, 2012, p. 183).

Mircea Eliade (2000) declara que os fonemas evocados pelos


mantras corporificam os elementos que eles representam. Desta maneira,
cada ciclo de repetição deve ser executado a partir de uma finalidade
específica e, portanto, é preciso concentração para integrar-se a
estes objetivos. Deste modo, o treinamento é primordial para adquirir
familiaridade com a prática, adentrando-a a partir do silêncio
meditativo que se abre para a ação destas sonoridades em nossos
corpos, fomentando a criação. É através dos sentidos aquecidos
que este estado de serenidade inicial evoca poderes inconscientes
adormecidos que se assemelham às forças da natureza e do cosmos: são
neles que os bijas estão plantados, seus significados e intenções
partem destas fontes arquetípicas de vida para simbolizar experiências
espirituais complexas.
Neste sentido, escolhi transportar os bija mantras para os ensaios
buscando o desenvolvimento de experimentações relacionadas à cena,
pois para cada sonoridade cantada o artista precisava concentrar-se
na vibração de uma parte do próprio corpo, investigando sensações
que poderiam estimular tanto a partitura física, quanto à construção
das personagens ou de figuras performativas.
Para tal intento, primeiro sentei com os estudantes em roda
e ensinei a sequência monossilábica de mantras relacionados aos
chakras, explicando o significado de cada um deles. Após esta primeira
parte do exercício, fechamos os olhos e, durante o canto, levamos a
atenção para cada parte do corpo evocada, sentindo as vozes ressoarem

40  Ver primeiro capítulo.


145

ao longo da coluna e as consequentes impressões da prática. Depois


disso, caminhamos pelo espaço em Desaceleração enquanto recitávamos
a sequência. Por fim, trabalhamos a Dança Meditativa a partir do
incentivo de cada parte do corpo evocada: aos poucos, cada um
poderia retomar sua sequência de partituras escolhendo os pontos
psicofísicos que reverberavam com maior vigor na criação artística
em andamento, repetindo os bija mantras que melhor contribuíssem
para suas criações.

Os mantras nos auxiliaram a entrarmos em concentração e


em um novo estado. Lam, Vam, Ram, Yam, Ham, Om, Om era
a sequência de palavras que repetimos constantemente
desacelerando mais uma vez. Meu corpo já queria falar
ou experimentar movimentos com a sonoridade que ativava
outros lugares. Quando recebemos a instrução para
deixar o corpo falar, foi espontâneo e natural, descobri
diversas partituras novas, como se não houvesse ninguém
além de mim e daquela sonoridade. Foi muito interessante
o progresso da turma com relação a estar presente em um
processo (Diário de Bordo de CC* 27 out.2015).


Com o tempo, descobri que estes pontos de energia cantados
nos mantras eram também punctums físicos que traziam consigo
potencialidades de detalhamento das ações dos estudantes que,
ao observarem os locais de onde partiam seus impulsos para a
cena, sentiam-se livres para jogar e improvisar com eles. Desta
maneira, o coletivo aproximava-se em suas partituras da noção de
dança das oposições, concebida por Eugenio Barba (2012) para refletir
acerca dos contrastes entre as diferentes direções do movimento
cênico. Em contato com a vibração psicofísica dos pontos bija –
situados do períneo ao topo da cabeça, passando por toda a coluna – o
grupo compunha suas ações artísticas através de tensões energéticas
contrapostas trabalhando “múltiplas partes do corpo em extensão e
retração simultâneas ou em sentidos direcionais antagônicos” (POTY,
2015, p. 83).
Ao longo dos encontros passamos a exercitar a Desaceleração
cantando bija mantras, de modo que o apego excessivo das turmas
às músicas iniciais do treinamento cessou. A aproximação destes
caminhos espirituais sonoros nos levou a apreciar a musicalidade do
contêiner com mais frequência no treinamento. Desta maneira, passamos
a exercitar a concentração – dharana – a partir da contemplação dos
ruídos do ambiente e de seus entornos, deixando um pouco de lado
as melodias de base para desenvolver outro aspecto da consciência
panorâmica/vípashyana.
Ademais, iniciamos a prática de mantrásana – realização de
posturas yogues concomitantes ao canto de mantras – visando à
intensificação do aprendizado meditativo. Os estudantes ainda treinavam
em casa, evocando sonoridades específicas na construção corpórea
de cada personagem, descobrindo sensações e desejos performativos
atravessados pela vibração: moviam os ombros para frente do peito
protegendo a região YAM; caminhavam flutuando por aí estimulados pelo
topo da cabeça, território manifesto do chakra AUM; abriam bem a
146

Dança das Oposições


147

Dança das Oposições

Dança das Oposições


148

Canto de Mantras/ Partitura Física

Canto de Mantras/ Partitura Física


149

Canto de Mantras/ Partitura Física

Canto de Mantras/ Partitura Física


150

base das pernas e aterravam-se ao chão instigados pelo mantra LAM;


corriam uns atrás dos outros incitados pelo chakra Svadhisthana/VAM,
localizado na área genital, entre outros.
Adelice Souza ressalta que a vivência dos bija mantras estimula o
potencial dramatúrgico do corpo dos artistas e que, consequentemente,
“as nossas expressões verbais e escritas, nada mais são que a
manifestação do poder destes centros” (SOUZA, 2015, p.11). Entoamos
estes fonemas a partir de nossas qualidades mais instintivas
procurando alcançar atributos mais sutis e, por meio deste vaivém
energético, podemos dialogar com os diversos temas presentes em
uma obra, tecendo junto com estes nossos desejos e potencialidades
criativas. Neste sentido, nossas intenções ao cantar o mantra se
misturam às nossas ações artísticas e, como em um quebra-cabeça,
remontamos dramaturgicamente o nosso corpo embaralhando impulsos,
gestos e tensões psicofísicas em função da cena.

Quando começamos a utilizar o texto nos ensaios, começou


a surgir um problema que era uma fala muito superficial
que não se comunicava com nossas ações corporais na
cena, uma fala muito melodramática. Para solucionar essa
questão nos foi proposto compô-las a partir de alguns
mantras (...) Compor as falas dos personagens, a partir
dos mantras, possibilitavam um texto que estivesse
em concordância com a composição corporal perseguida
durante o processo. Surgiram muitas melodias durante
os exercícios focados na composição desse texto. Porém,
surgiam dificuldades quando não havia tido uma ênfase
nos exercícios de respiração, pelo menos eu sentia essa
necessidade. Uma base fortalecida me proporcionava
experimentar outras possibilidades no momento de
descontruir o texto e, também, ajudava na manutenção
das criações (Diário de Bordo de SK* 21 nov.2017).

Uma questão remanescente no percurso da pesquisa e que permeou


todos os grupos, foram as dificuldades em trabalhar com as palavras
no treinamento. Assim, quando passávamos para as etapas criativas
de articulação entre corpo e voz nos exercícios, muitas vezes os
gestos dos estudantes se perdiam, a concentração se esvaia e a
dramaturgia do corpo, até então coesa, custava a interagir com a
dramaturgia textual. O relato de SK* expõe algumas das estratégias
que articulei no projeto de extensão Núcleo de Práticas Meditativas
no Treinamento do Artista – no qual temos mais tempo hábil de
investigação – para buscar soluções para estes problemas, das quais
falarei brevemente por aqui pois estes caminhos ainda precisam ser
aprofundados.
Durante o percurso da prática no projeto de extensão, o
encantamento com os bija mantras tomou conta dos participantes em
alguns momentos. Desta maneira, o grupo solicitava constantemente
que eu os ensinasse outros mantras, buscavam cantos via internet,
utilizavam a prática em outras disciplinas da universidade, entre
outras ações que me fizeram despir das angústias a respeito destes
151

cantos no processo criativo para compartilhá-los com o coletivo. A


partir deste momento, pude perceber que suas melodias inspiravam
partituras vocais diversas e que as palavras do texto dramático também
poderiam reverberar no espaço permeadas de meditação, de modo que
passei a propor aos artistas que contemplassem as dramaturgias como
mantras, cantando suas sonoridades sem preocupações em expressar
uma simbologia linear.
A Desaceleração tornou-se um caminho fértil para estes
experimentos. Andando pela sala o coletivo entrava em contato com
a respiração para cantar os textos e brincar com suas sonoridades
e ritmos, com os ruídos de entrada e saída do ar, com as pausas
e os pontos de apoio da voz. Por vezes as palavras arranjavam-
se como música, ou mesmo transformavam-se em sussurros, gritos,
ou sopros. A cantiga de um companheiro de cena influenciava as
ações ou mesmo a expressão vocal de outro ator, revelando imagens
psicofísicas que estavam além da superfície do enredo trabalhado,
evocando perspectivas inusitadas de suas palavras. Neste sentido,
as fórmulas encantatórias dos mantras reverberavam na vibração da
voz do artista.
Serguei Therkasski (2012) recorda que Stanislávski, em sua
experiência com cantores de ópera e posteriormente no trabalho com
atores em seus últimos anos de vida, voltou-se para a revelação
espiritual das palavras no processo de criação. Neste sentido,
a fala do artista da cena carregava consigo a capacidade de
manifestar o prana imerso no interior das personagens, de
modo “que através das ondas vocais as partículas de nossas
próprias almas vão para fora ou para dentro” (STANISLAVSKI in
TCHERKASSKI, 2012). Assim, para o mestre russo, os sons são
repletos de magia e necessitam ser contemplados com cuidado
na manufatura da obra de arte: é preciso meditar sobre eles
para compreender a atividade do prana nos fonemas, para
então poder expressá-los.
Yoshi Oida (1999) corrobora para este pensamento ao
ressaltar que é trabalho do ator/performer recuperar
o poder de comunicação ritual das palavras. O ator
japonês viveu em um mosteiro budista Shingon41 por
alguns meses e, em sua pesquisa, descobriu que
nesta tradição a vivência dos mantras articula
movimento, expressão sonora e intenção – shin,
ku e yi, respectivamente. A harmonização
destes três elementos é também objetivo
da prática do artista, de modo que a
fala não deve enfraquecer sua presença
física. Para tal intento, é
fundamental entrar em contato com
os pontos energéticos do corpo,
treinando as diferentes
forças vibracionais da
voz.

41  Tradição japonesa de budismo esotérico. É considerada um ramo da escola Vajrayana assim como o budismo tibetano.
152

Uma vez que os sons aaah e iiii têm qualidades diferentes,


eles nos trarão sensações físicas diferentes. Quando
emitirmos os sons, vamos degustá-los e observar como muda
a dimensão interna. Notem o caráter particular de cada
sonoridade. Então podemos juntar outros sons (…) Segundo
o budismo esotérico japonês, quando nascemos, fazemos o
simples som aaah como um deus. Conforme o tempo passa,
e nos tornamos “educados” e adestrados para responder à
demanda da sociedade, tornamo-nos um personagem com um
estilo vocal apropriado. O claro e aberto som aaah se
foi. Então gastamos o resto de nossas vidas trabalhando
para recuperar o primordial e puro aaah, na expectativa de
reencontrar nossa divindade inata (OIDA, 2001, p.142-143).

Neste contexto, a composição de partituras sonoras também demanda


meditação, pois a prontidão contemplativa nos leva a “abrir os ouvidos
para a atmosfera que está sendo construída” (OIDA, 2001, passim)
para podermos agir criativamente sobre os sons, saboreando-os. Tanto
o exercício de repetição constante dos cantos, quanto a trepidação
recorrente da coluna vertebral dos bija mantras, incitam o estado de
trabalho do artista: portanto, no diálogo entre estes estímulos e a
dramaturgia textual, é possível afastar-se inicialmente dos significados
lógicos da obra de base, desfrutando deste intercâmbio a partir de
arcabouços psicofísicos que ultrapassam o intelecto.

Silêncio

Creio que cheguei em algum lugar

Até este instante, tudo o que foi proposto aqui de alguma maneira
dialoga com este objetivo primeiro de ultrapassagem da tagarelice dos
pensamentos. E ao mesmo tempo fui tão falante por entre estas páginas...
Contudo, estou segura que esta escolha criativa da escrita foi necessária
para que o leitor pudesse percorrer comigo esse percurso de busca
procedimentos e possibilidades para o treinamento do artista da cena.
153

Será?
Aaah...

(...)

Pausa

Difícil parar de escrever.


Misturar informação com pulsão poética me tira do sério. Foram
muitos dados para um curto espaço de tempo. No entanto, estes
acontecimentos foram fundamentais para eu poder chegar até aqui e
desnudam possibilidades de uma poética de treinamento.
Vislumbro o local de uma possível chegada. Ou quase. Por ora,
vamos deixar a experiência da tese decantar. As frases sonham por si
só e a luz do sol de um fim de ciclo se aproxima. Ela machuca à vista
mas aquece a pele. Lacrimeja. Ainda assim, acredito que o cultivo
de si meditativo pode potencializar tanto a arte, quanto a vida.
Em meio a visão turva causada pelas águas que banham meus olhos,
vislumbro possibilidades reais de interface das artes da cena e com
esta preparação do sujeito artista.
E agora, para onde vamos?
154
155

ou

isso não é uma despedida

amanheça
disse a lua
e o novo dia veio
o show têm que continuar disse o sol
a vida não para pra ninguém
ela arrasta você pelas pernas
quer você queira prosseguir ou não
este é o presente
(...)
você chegará até fim
do que é apenas o começo
continue
vá abrir a porta para o resto disto

tempo42

(KAUR, 2017, p.55).

Esteja presente
- não tenho mais medo -
Abro os olhos.

A luz brilhante da página em branco queima a retina e, em sua vastidão,


anuncia o encerramento de um ciclo. 21 DE AGOSTO DE 2017, algumas horas
antes de tomar um banho de chuva. É dia de eclipse e por isso procuro
pelos armários minhas ressonâncias para poder vê-lo. Onde será que
estão? Ouço ao longe a risada gostosa da infância e me recordo da emoção
vivida e do clima de brincadeira da lua ao esconder o sol lá nos idos dos

42 Tradução livre realizada pela autora.


156

anos no-
venta. Estava na segunda série
talvez? Lembro da professora constantemente
preocupada verificando se tínhamos as radiografias em mãos e
da turma em festa por termos saído da aula mais cedo para o evento.
Encontro finalmente o envelope amassado. Está quase, precisamos
descer. Corre senão perdemos o prazo. São pouco antes das quatro
horas da tarde e só tem a gente esperando no solário do prédio. Um
privilégio. Temos o espetáculo só para nós e para algumas crianças que
surgem curiosas pelas janelas. Vai começar.
Um amigo resolve meditar e decidimos fazer o mesmo todos juntos
por alguns minutos. Que bonitos são os afetos. O calor, o vento no
rosto e o barulho da floresta se sacudindo despertam os sentidos. É
agora. Distribuo as chapas e, sobrepondo-as umas nas outras, miramos
um sol tingido pela sombra da lua que coincidia em despontar. A
claridade dói nos olhos e não conseguimos permanecer por muito tempo
na observação. É importante descansar por alguns segundos antes de
voltar a contemplar.
Procuro esconder do grupo as gotas d’água teimosas que insistem
em escapar das pálpebras. Naquele momento, cercada de pessoas que amo,
me dou conta que aquelas folhas de acetato azul atravessadas pela
luz do eclipse são testemunhas da força curativa do tempo. Àqueles
ossos tortos ali retratados já não doem tanto e, sustentada por estes
joelhos bambos, entendo que consegui transformar a crise em poesia. Se
não houvesse o susto, provavelmente os procedimentos de treinamento
aqui relatados seriam bastante distintos.
Precisei compreender minhas próprias limitações para descobrir
como jogar com elas, rodeando-as para poder encontrar o melhor ângulo
de atravessamento e superação. A Medusa derreteu-se e deu lugar a uma
mulher não tão insegura de suas potencialidades e menos preocupada com
uma posição social/acadêmica de grande artista ou algo semelhante,
pois tudo o que deseja é fazer bem o ofício que escolheu distante desses
materialismos. Quiçá este tenha sido o mais importante ensinamento
de Chögyam Trungpa Rinpoche (2008) para mim, advertir-me que ser
artista/pesquisadora não é um status ou um rótulo que nos massageia
o ego pois, desta maneira, limitamos nossos percursos criativos para
o trabalho artístico literal, que nem sempre transborda para vida.
Para o mestre, é necessário preparar-se para ultrapassar essa neurose
e estar presente no instante da atividade artística, experienciando a
beleza da criação em sua forma mais simples e, assim, desabrochar para
a apreciação do mundo fenomênico em toda a sua amplitude.

O nome artista não é uma marca registrada. O problema do


século XX é que tudo se tornou comercializável, todos são
mercenários, todos precisam ter um rótulo: ou você é um
157

dentista, um artista, um encanador, um lavador de pratos,


ou o que for. E o rótulo do “artista” é o mais problemático
dentre todos estes (...) Algumas pessoas dizem que se
não há neurose, elas não podem tornar-se boas artistas.
Essa visão da arte é oposta ao sentido de paz e frescor.
Ela enfraquece a possibilidade de apreciação da beleza
intrínseca. Fundamentalmente, a arte é a expressão da
beleza incondicional, que transcende as noções de bom ou
ruim. A partir desta beleza incondicional, que é serena,
surge a possibilidade de relaxamento e, assim, poder
perceber o mundo fenomênico e os nossos próprios sentidos
devidamente. Não é uma questão de talento (TRUNGPA, 2008,
p. 150-151).

Na cultura de Shambhala, a capacidade de abertura para contemplar


o que nos rodeia é como um sopro de ar fresco que traz consigo
prontidão tanto para a ação cênica, quanto existencial. Neste sentido,
para podermos criar em sintonia com a noção de dharma art, precisamos
ser capazes de enxergar, cheirar, ouvir, degustar e sentir a vastidão
e, para tal intento, nossa percepção não pode estar anestesiada.
Epifania. Volto no tempo e experimento o eclipse adentrando pelos
meus poros unindo céu e terra e, tocada por este atravessamento, percebo
no vento a inspiração para a escrita deste capítulo. A sensação é de
conseguir encaixar uma peça importante de um quebra-cabeça impermanente
e estar de bem com essa fluidez.
É só o começo.
Os pássaros com suas cantorias de fim de tarde, a paisagem e o
brilho daquele disco solar que cegava e seduzia convidavam os dralas
para dançar conosco. Estas qualidades de energia e proteção vivas
do xamanismo tibetano são anteriores ao budismo, representando a
vitalidade inerente a todos os elementos do cosmos – cotidianos o u
espirituais – que nos circundam e que, porém, muitas vezes não
conseguimos acessar por não estarmos atentos. É graças a esta
ausência que preparamos o contêiner, para atrair essas qualidades
potentes para perto de nós. Mais do que algo concreto, a noção de
drala evoca uma experiência do sagrado que irradia a partir dos
sentidos e que é facilmente encontrada através do contato com a
natureza, apesar de também existir em diferentes espaços.
Sakyong Mipham Rinpoche declara que os dralas vinculam a
nossa vastidão pessoal com a vastidão do universo e que, a
partir desta conexão, nos afastamos dos pontos de referência
do eu. Deste modo, tal vivência é importante para o ator/
performer, pois o aproxima de uma desmesura criativa que não
se apega à rótulos ou medos. Em conjunto com a meditação,
este caminho contemplativo dialoga com a impermanência,
gerando flexibilidade e movimento para nossos percursos
artísticos e para os conceitos que nos
embaraçam. Neste sentido,
aos poucos vamos percebendo
que “o eu que imaginamos
ser sólido e contínuo é, na
verdade, apenas uma reunião de
158

ingredientes, de modo que estamos dando nome a uma


ilusão” (MIPHAM, 2008, passim).
Entretanto, sabemos que sem o devido treinamento esta
magia torna-se ainda mais efêmera, passando por nós a partir de
pequenos vislumbres do dia-a-dia e despedindo-se tão rapidamente
quanto sua aparição. Talvez por isso que, em determinado momento
da investigação com o Núcleo Práticas Meditativas no Treinamento
do Artista, praticar do lado de fora da sala de ensaio em espaços
da floresta transformou-se em uma necessidade do coletivo, mais do
que um novo procedimento a ser estudado. Nestas vivências, além do
contato com diferentes suportes durante os treinos da Desacelaração,
da Dança Meditativa e do hatha yoga – terra, areia, grama, água, céu
– aprofundamos o exercício da meditação vípashyana experimentando a
consciência panorâmica em ambientes propulsores da presença cênica:
nos quais os sons, os cheiros, o visual, a sensação tátil do calor
e do vento são capazes de verticalizar a
experiência contemplativa dos fenômenos e,
consequentemente, do processo artístico.
Deixar-se atravessar esteticamente
pela natureza ainda é uma etapa tateante
dos experimentos do grupo. Ainda assim,
acredito que a intensidade da prática seja
um caminho interessante tanto para revigorar
as pesquisas da sala de ensaio, quanto
para fomentar o cultivo cotidiano do ator/
performer. Aos poucos, vamos transpondo este
exercício para o nosso dia-a-dia, de modo
que, gradativamente, esta capacidade de
apreciação pode ampliar-se para a vida dos
artistas envolvidos que desfiam seus casulos
e, no pleno voo da experiência da beleza,
sintonizam-se a esta sabedoria elementar da
existência que é livre de conceitos.
Para Chögyam Trungpa é a partir deste
estágio de conexão com o mundo sagrado que
estamos prontos para construir a sociedade
iluminada43. Este senso de esplendor gera
yün e, portanto, tal encantamento atravessa
nossos corpos como uma flecha, transformando
nosso modo de agir na vida e na arte e, assim,
aprendemos a perceber e a nos relacionar
com estas riquezas energéticas no instante
presente, desejando compartilhar suas
poesias com as pessoas a nossa volta. Logo,
cá estou eu por estas linhas irradiando para
um possível leitor o alento de inspiração
florescido por meio do eclipse.

43 Ver primeiro capítulo.


159

Venho buscando uma relação direta com a


natureza, relação esta em que meu corpo
possa sentir e fazer parte do todo que
o compõe. As práticas meditativas tem me
auxiliado nessa busca por um corpo cada vez próximo
da natureza. Um corpo que respira corretamente.
Um corpo que se desafia a ir cada vez mais longe
nas suas possibilidades corporais. Um corpo que sente
o espaço e dialoga com ele. Pude sentir a energia da
natureza quando fomos fazer o treinamento no sítio de
uma professora que também faz as práticas meditativas.
Foi maravilhoso, pois como não tinha luz elétrica pudemos
voltar no tempo e preparar o espaço com a luz do sol, da
lua e das estrelas. Luzes de velas também auxiliaram na
iluminação dentro da casa. Distribuímos as tarefas e fomos
para o nosso contêiner preparar o espaço da meditação. Eu
lembro que ia acender as velas e posicioná-las pela casa
(...) Comecei a limpar o espaço de fora e quando dei por
mim tinha feito um grande círculo na terra. Ficou perfeito.
Sons diversos ecoavam da mata, com a brisa do vento e com
o calor da fogueira que acendi minutos antes de começarmos
a meditação (Diário de Bordo de NR*, 16 out.2017).

O treinamento meditativo fomenta a disponibilidade do ator/


performer que se conecta com a obra, com os colegas e com o espaço
“como uma flor que se abre na primavera”(MIPHAM, 2008, p.177). No
entanto, cabe ressaltar que estas sensações de integração e entusiasmo
relatadas por *NR vão e vem e que, apesar de perceber que o treinamento
na natureza traz consigo uma injeção de vitalidade para o coletivo,
sua necessidade de manutenção é constante e por vezes confundiu-se com
uma mera atividade de passeio no projeto de extensão. Ademais, no único
momento que tentei transpor esta experiência para as disciplinas de
interpretação que ministro, não obtive um bom retorno dos estudantes
pois estes não enxergaram muito sentido na proposição, preferindo
voltar para a sala de ensaio. Desta maneira, percebi que ainda preciso
de mais tempo para refletir acerca das possibilidades desta vivência
no trabalho do artista da cena, de modo que o aprofundamento desta
prática será desenvolvido na continuidade desta investigação, após a
defesa da tese.
Lentamente, a lua despede-se de nós e o sol volta a brilhar após o
eclipse. Meu corpo mente agradece a oportunidade de ser beija-flor e poder
extrair o néctar dos yüns e dralas, nutrindo-se dele criativamente.
Ami Ronnberg (2012) afirma que a simbologia do eclipse relaciona-
se ao universo onírico, representando a capacidade provisória do
inconsciente de ofuscar o ego que, como que passando por uma limpeza,
pode reaparecer iluminado. Chevalier e Gheerbrant (2008) declaram que
fenômeno também indica o potencial dramático dos processos de morte e
renascimento nos ciclos da natureza, provocando em quem o contempla a
sensação de abertura para novas possibilidades e abrindo caminho para
o porvir.
Sem que os outros vejam, ensaio uma reverência tímida para rematar
esta vivência antes de voltar para casa. O procedimento evoca um
protocolo que, tanto do budismo, quanto das artes maciais orientais,
160

simboliza a demonstração de respeito ao entramos e


sairmos de um espaço sagrado, ao saudarmos um parceiro
de prática ou um mestre. Em pé ou sentados, com as mãos
apoiadas nas cristas ilíacas ou na parte superior das coxas e
de cabeça erguida, curvamos o tronco para frente visando demarcar
o ambiente, um cumprimento ou o momento de início do treinamento
meditativo. Na experiência do projeto de extensão, o ato fomenta a
sensação de apreço pelo trabalho cênico e pelos colegas criadores,
ao fechar ou abrir as práticas do dia após a limpeza da sala e dos
aquecimentos individuais.
Oida (2012) recorda que a ação está relacionada à respiração,
pois expiramos ao longo do exercício de curvatura expandindo nossas
potências – prana, chi, energias – para o espaço e para nossos parceiros
de cena. A partir do contato com o centro do corpo o hara se ativa, de
modo que o artista aciona sua prontidão e presença para o treinamento,
sintonizando neste gesto céu e terra, razão e emoção, inspirando-os e
exalando-os para o ambiente como na prática do Cavalo de Vento.

Curvamo-nos juntamente com o nosso parceiro. Isto não


se dá por motivos religiosos. Também não se trata de
uma mera formalidade. Quando nos inclinamos, esse gesto
está relacionado com a respiração. Quando nos curvamos,
expiramos. Este é um padrão físico. E, conforme expiramos,
nossa energia vai para o nosso parceiro. Isso nos ajuda
a desenvolver a respiração, com o nosso parceiro, e nos
possibilita trocar energia. Curvar-se também ajuda a fazer
conexão com a linha central do corpo. Além disto, quando nos
curvamos ao mesmo tempo em que nosso parceiro, é possível
sentir a relação especial que nos separa. Quanto mais nos
acalmarmos, encontrarmos essa tranquilidade, mais livremente
nos movimentaremos. Na realidade, uma simples ação pode
conter numerosas possibilidades (OIDA, 2012, p.26).

No budismo Shambhala, a
reverência é uma forma de
consideração pela linhagem, pela
tradição, pelos professores e
pelos ensinamentos.
161

Desta maneira, não devemos realizar esta ação de


forma imediata ou com pressa, e sim elevar primeiro o Cavalo
de Vento para depois, unindo movimento e respiração, oferecer
esta experiência com delicadeza para um espaço, um grupo ou uma
pessoa específica. Portanto, é preciso antes reconhecer a dignidade
do outro para poder executar este gesto e, assim, é importante que
possamos de alguma forma compartilhar nosso coração na prática. Acredito
que este feito seja bastante relevante para o trabalho do artista da
cena, resgatando através de sua intenção o valor de nosso ofício – ou
mesmo nossa autoestima – em contraposição à sua imensa precariedade,
representando no ato sua sacralidade e riqueza intrínseca.
Lembro-me da impressão de celebração ao reverenciar o final do eclipse
após os insights criativos que o fenômeno me proporcionou. A lua tímida
no céu ainda claro de fim de tarde revelava ainda uma outra simbologia
deste acontecimento: o aspecto hatha do entrelaçamento entre sol (ha)
e lua (tha) que, em seu equilíbrio de opostos, faz parte dos desígnios
dessa tradição do yoga. Ao longo do processo de ligação entre estas
duas qualidades de energia, é interessante recordar que o hatha yoga
tântrico se distingue do yoga clássico de Patañjali devido suas diferentes
estratégias para a transcendência de seus praticantes. Assim sendo, o
corpo deste yogin não é extático em sua meditação, pois seu
constante movimento – voltado para a purificação dos canais de
energia e, consequentemente, para o balanceamento destes
dois princípios cósmicos complementares – é como um
veículo para a elevação.
Assim, durante o percurso de investigação do treinamento aqui proposto
– quando ainda estava imersa em dúvidas evocadas pelas dicotomias entre
relaxamento e engajamento do artista da cena –, percebi que precisava me
distanciar um pouco do objetivo central de iluminação dos sujeitos que
é parte integrante dos caminhos contemplativos orientais que fundamentam
esta tese. Portanto, as linhas de fechamento desta pesquisa aproximam-
se dessa descoberta pois, inspirada
pelo olhar de Tcherkasski (2016) para
a prática de Stanislávski, compreendi
que a transcendência ou mesmo o acesso
a estados extremamente alterados de
consciência muitas vezes impossibilitam
o trabalho criativo do ator/performer.
Neste sentido, ao investigar
os diários de processo criativo de
Stanislávski no período de pesquisa
da prática cênica/yogue no Estúdio de
Ópera do Teatro Bolshoi (1918-1938),
Tcherkasski descobre que o mestre russo
propõe uma divisão de sete etapas para
a criação. Assim, o autor sugere um
outro olhar para estas categorias do
treinamento organizado pelo artista,
162

conectando-as com o percurso de oito fases do yoga clássico – angas –


desenvolvido pelo sábio indiano Patañjali. Sua proposição é que Stanislávski
não almeja alcançar em seu Sistema a última fase das disciplinas de
descondicionamento psicofísicas descritas no tratado Yogasutra, ou seja,
o samadhi: a iluminação. Este componente é substituído pela felicidade
dos artistas envolvidos no treinamento que, transbordando da arte para a
vida, permeia os estados criativos destes sujeitos.

A primeira etapa é a concentração, a segunda – a vigilância,


a terceira – o destemor, a criação corajosa, a quarta – a
tranquilidade criativa. E, da mesma forma que a transição
para os assuntos elevados do raja yoga depois das quatro
primeiras etapas do hatha yoga, depois das quatro etapas do
“trabalho sobre si mesmo”, conduzindo à unificação interior
do ator com ele mesmo, Stanislávski designa objetivos
artísticos profundos. O movimento ascendente continua até a
quinta etapa – “trazendo todos os poderes de seus sentimentos
e pensamentos, transferidos para a ação física, para a
máxima tensão, a precisão da ação heroica”. A sexta etapa
é conectada ao cultivo da atração do ator [pelo] palco, a
nobreza que ele usa para purificar as paixões que ele retrata.
Aqui, completamente no espírito do Budismo, Stanislávski
fala sobre “os momentos fatais quando o espírito humano
aspira libertar-se da paixão”. E, finalmente, “a última etapa
sem a qual é impossível viver na arte. É a felicidade”. E
essa luta pela felicidade da criatividade como a coroa do
processo de formação do ator contém a mais significante lição
para as gerações futuras e a essência da posição ética de
Stanislávski (TCHERKASSKI, 2016, p.62-63).

Ao que parece, este caminho de


felicidade é mais relevante para a
criação do que a elevação. Perdido
por entre abstrações metafísicas
transcendentais, o artista encerra-se
em si mesmo e só consegue voltar para
a cena com bastante esforço envolvido.
Deste modo, é preciso que o organizador
da prática meditativa saiba dosar

com cuidado os procedimentos de


contemplação no processo cênico
para que o próprio treinamento
não se transforme em um casulo
para o coletivo: ou seja, em um
ninho afetuoso e confortável que
163

os aquieta, afastando-os da expressividade.


Sei que não existe um momento ideal para o rompimento da crisálida
investigativa do treinamento e para um bater de asas expressivo que
sobrevoe diferentes proposições estéticas. Precisei lidar com este apego
excessivo ao treino/casulo e com algumas outras dificuldades de criação no
projeto de extensão devido ao formato desta experiência: de apenas dois
encontros por semana e sem tempo para ensaios extraclasse. Além disso,
muitas vezes os estudantes chegavam aos encontros cansados de suas outras
atividades na universidade, preenchidos pelo desejo de relaxamento por
meio da meditação e enxergavam na vivência proposta um caminho de fuga
de suas preocupações diárias.
No entanto, pude observar que a atitude do coletivo se modificou
quando propus uma prática de imersão do treinamento por duas semanas
intensivas voltadas para a experiência da tragédia grega As Troianas, de
Eurípedes, procurando seguir a sugestão da banca no exame de qualificação.
A vivência foi como um vislumbre das potencialidades desta investigação na
perspectiva de uma companhia teatral, caminho este que transformou-se no
principal intento de continuidade desta pesquisa, somado à investigação
de outras possibilidades pedagógicas contemplativas tanto no ensino,
quanto na extensão.
Contudo, apesar dos obstáculos do percurso, estou ciente dos
potenciais do arcabouço expressivo aqui reunido tanto para o estímulo da
dramaturgia do ator/performer, quanto para o fomento de sua inspiração.
Alegro-me em saber que os exercícios de
contemplação – de si, do corpo, do espaço
e das experiências de beleza que nos
circundam – que propus ao longo dos
capítulos por vezes se expandiram
para os grupos artísticos e para os
estágios docentes dos estudantes
que participaram da investigação.
Assim, crianças das séries iniciais
do ensino básico manauara brincam de
fazer ásanas e elevam o Cavalo de Vento em sala de aula; atores
desaceleram, cantam mantras ou executam sequências de posturas em seus
ensaios; estudantes defendem seus trabalhos práticos de conclusão de
curso executando movimentos inspirados no yoga; coletivos se reúnem
para investigar as relações entre as vivências do yoga em dupla e às
técnicas circenses, entre outros casos.
Outra descoberta interessante ao longo destes anos de trajetória
como doutoranda, foi perceber em mim uma nova relação com os
tempos da encenação tanto ao orientar, quanto ao assistir a espetáculos
cênicos diversos. Parece que meu olhar para as dinâmicas da cena dilatou-
se através da prática da meditação, de modo que não ando mais tão
encantada com seu ritmo ágil e preenchido de timing, mas sim atraída
pelo florescimento estético de espaços de respiro, silêncios, pausas,
contemplação e delicadeza na “dramaturgia temporal do teatro”(LEHMANN,
2008, p. 287). Hans-Thies Lehmann ressalta que, apesar do caráter efêmero
da linguagem cênica que transtorna atmosferas e andamentos de uma obra
a cada dia de apresentação, a temporalidade não figurativa da encenação
no teatro pós-dramático – compartilhada entre artistas e espectadores
164

– pode jogar com os relógios biológicos dos sujeitos: sobrepondo-os em


camadas, arrastando-os para diferentes lados ou suspendendo-os por entre
instantes que flutuam afastados de uma lógica de representação formal.
Desta maneira, uma das múltiplas facetas da utilização do tempo
no teatro contemporâneo é o alargamento da duração de suas ações,
desacelerando a experiência de fruidores e atores. Porém, para esta
vivência criativa ocorrer, é preciso que o artista não seja dominado pela
lentidão e pelo estado hipnótico evocado, engajando-se na construção
de imagens físicas escultóricas que surgem em cena para depois se
dissolverem. Neste sentido, Lehmann declara que este formato da linguagem
contemplativa da encenação relaciona-se com os punctums de Roland Barthes
a partir da noção de dilatação temporal que, constituída por uma sucessão
de movimentos similares à fotografias, incita centros psicofísicos de
sensações que intensificam a vivência da obra.

O sol se pondo, como é


lindo! – neste instante os olhos que
sempre precisariam estar vendo algo... mas não
é bem assim, não há necessidade de ver. Neste mundo,
quando o sol – “ah, que lindo!” – pouco a pouco vai se
pondo, se pondo, o que importa é se o seu sol interior está
se pondo ou não. O sol se pondo...“ah, que lindo” é o pensamento
do coração. No entanto, não há necessidade de acompanhar, de
acertar os passos com o sol que se vai (...) Ao fixar o sol, o
sol que se deita, vocês são iluminados por ele. Os olhos assim,
abertos. É o pensamento, chega a arrepiar.

Kazuo Ohno

Em meio a apreciação daquele céu furta-cor semelhante às asas de


algumas borboletas, percepções alaranjadas, lilases e rosadas tingiam
minhas projeções poéticas para a elaboração desta tese-criação. Assim,
durante o percurso da pesquisa, muitas vezes o pensamento se fez
sensação, de modo que estas se sobrepunham aos conceitos aqui elencados.
Este caminho da escrita me recorda da concepção budista de que a mente
está localizada no coração: o termo pāli citta pode ser traduzido tanto
como um, quanto como outro e, portanto, nesta tradição intelecto e
emoções andam de mãos dadas irradiando para o espaço e para o restante
do corpo a partir da abertura do centro do peito do meditador.
Para Yoshi Oida (2001) é a fluidez do diálogo entre mente e coração
– kokoro – que, somada ao domínio de alguma técnica, nos torna
artistas. Logo, a prática do ator/performer reside no caminho do
meio entre objetividade e subjetividade44, de modo que a cognição
perpassa por seus estados de espírito antes de transformar-se em forma

44 Afirmação em palestra realizada no Sesc Pinheiros/SP em 07 de dezembro de 2017.


165

nos processos criativos. Chögyam Trungpa Rinpoche declara que esta


mente-coração pulsante, em sua imensa abertura por meio da meditação,
transforma-se em um “genuíno coração de tristeza”. Este fato ocorre
pois, ao apreciarmos a nós mesmos e às coisas do mundo sem o costumeiro
véu de nossos casulos – que nos impedem de enxergar a realidade
tal como ela é –, somos tomados por uma melancolia alegre “que se
manifesta porque nosso coração está absolutamente exposto, em
carne viva”(TRUNGPA, 2013, p.48).
Este ardor é terno e doce. Meus olhos/mente/
coração lacrimejam devido sua exposição
direta à luz do dia que se vai... Respiro.
Um punctum/voz desponta na memória psicofísica:
são tempos difíceis para os sonhadores, anuncia
o narrador do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. Apesar
da obra ter se tornado um lugar-comum devido à constante repetição
mercadológica tanto de sua linguagem, quanto de seus expedientes
criativos, a colocação do personagem inquieta. No contexto nacional,
ela rememora o cruel momento histórico no qual estamos inseridos – de
amplitude das desigualdades, de desrespeito às diferenças, de violência
contra as classes sociais oprimidas ou contra qualquer pessoa que vá
de encontro ao espírito do tempo, da perseguição aos artistas e à
universidade. Como sonhar uma tese, um processo de criação meditativo
em meio a este clima de desesperança que nos embala?
Para além dos meandros do treinamento aqui investigado, acredito
que na atual conjuntura dos acontecimentos, as práticas contemplativas
são para o artista da cena como um suporte tanto para a sobrevivência,
quanto para a resistência necessária para a construção de uma sociedade
iluminada. Desta maneira, o olhar atento para a vivência dos fenômenos,
por meio da proposição primeira do cultivo de si, fomenta o despertar
do desejo de cuidado do outro e do mundo para aqueles que as praticam.
Logo, na busca pela liberdade, dançamos entre relaxamento e engajamento,
arte e vida e, assim, podemos transformar o ambiente que nos circunda
a partir de um longo percurso de transformação individual e coletiva.
Tomara. Que assim seja...
166
167

ou

sobre como os fins de ciclo me comovem

Campinas, 31 de janeiro de 2018.


Sala AD01- DACO/Unicamp
14:30

Recepção/Acolhimento:

(Elevar o Cavalo de
Vento antes de abrir a
porta da sala. Coragem.
Não é preciso ter pressa.
É agora. Dar o salto ...
Ir para fora e observar.
PAUSA. Dar cinco toques na
tigela tibetana sentindo
as vibrações atravessarem
o espaço. Reverência.
Apresentar-se e falar da
investigação. Pedir para
todos tirarem os sapatos.
Deixar a banca entrar
primeiro, depois os demais.
Fechar a porta. Cantar o
mantra Gayatri45. Começar).

45 Ver primeiro capítulo.


168
169

Introdução à pesquisa:

Bem vindos!
Enfim chegou o esperado dia.
Respira...

Camomila para acalmar e para ralentar o voo das borboletas no


estômago que aparecem quando me emociono / café para despertar e para
trazer forças para o rompimento da última casquinha de casulo. Caminho
do meio: o resumo de um processo de investigação entre os meandros
da desaceleração e aceleração do corpo-artista em seu treinamento -
permeados de articulação entre contemplação e movimento, relaxamento
e prontidão, impulso e partitura física.
A bricolagem metodológica e antropofágica me acompanhou desde o
início desse trajeto. Nela, diferentes artistas e formas de estudo
inspiram os passos da tese, misturando-se entre si. Para este momento
especial, preparei mais uma combinação de referências com a base
da mesma massa de pão e pesquisa autoetnográfica: grupos de teatro
europeus chamam de demonstração de trabalho; nós da América Latina
nomeamos desmontagem cênica – quiçá um amalgamado de ambas com um
tempero de programa performativo. Afinal, estamos aqui em um evento
liminar, transformador. Dia 31 de janeiro de 2018, que com delicadeza
nos reservou até mesmo uma super lua brilhante e seu eclipse para
coroarem o encerramento deste rito de passagem solar.
Hatha Yoga: Sol e Lua reunidos.
Punctums psicofísicos que emergiram durante a escrita e a pesquisa
de campo, sessões de yoga e meditação me revelaram o desejo de que
esta fosse uma defesa amarela e também brilhante – ziji46 –, digna das
potencialidades da longa jornada que aqui se encerra e da nova que se
inicia. Portanto, tal qual girassol que dança com a luz do dia, compartilho
com vocês cinco procedimentos artísticos que foram selecionados deste
percurso de experimentação para serem aqui apresentados.
É tempo de desabrochar, mesmo consciente de que a investigação
artística é inacabada como pequeno botão de flor que necessita de
paciência e vigilância para ser cultivado. No cuidado e cultivo de si
e do outro, o fim é um começo que revela a janela aberta para o porvir.

Vamos juntos?

46 Ver primeiro e terceiro capítulos.


170

Gosto bastante de prosear (PechaKucha47: modelo de apresentação/


bate-papo japonês que vocês vivenciarão a seguir), mas preciso também
ser sucinta. Logo, aqui anuncio as cinco ações-procedimentos-poesia
que serão apresentadas:

Primeiro Girassol – Contêiner: Limpeza do Espaço.

(Observar a transição de slides a cada passagem: iniciar a


ação com os baldes e terminar espremendo o pano. Atravessar
a sala limpando por seis vezes).

Limpo para estabelecer um ambiente adequado para a contemplação


acontecer. Rompo com a precariedade do ofício cênico e protejo o local
da meditação e da cena. É preciso elevar-se: construir uma mandala,
purificando tanto o artista quanto seu arredor.

Segundo Girassol – Desaceleração.

(Convidar o público para desacelerar comigo. Quando (se)


levantarem, indicar as instruções do exercício e verificar se
precisam de ajuda. Dar duas voltas ao redor da sala: até a
metade posicionar as mãos como espada no centro do peito e,
após, deixar os braços soltos. Observar a transição de slides a cada
dois trechos percorridos. Realocá-los em seus lugares e falar da Dança
Meditativa no último slide).

Calcanhar, dedinho e dedão vão passo-a-passo abrindo passagens


para a experiência da beleza nas pequenas coisas. Assim, caminho atenta
para cores, formas, cheiros e texturas e vou aos poucos derretendo
a percepção utilitária do mundo, tentando desanestesiar-me de meus
padrões habituais e encontrar a presença cênica: o estado de trabalho
do artista. Menção honrosa para a Dança Meditativa, exercício de
improviso do treinamento investigado que, devido a este formato e ao
tempo previsto para esta apresentação, não será demonstrado.

47 Estilo japonês de apresentação de trabalhos no qual os slides não contêm palavras – apenas
imagens – visando promover a comunicação e o encontro entre sujeitos (o termo PechaKucha é tra-
duzido como bate-papo ou conversa informal). A regra é expor vinte projeções de vinte segundos
cada, totalizando seis minutos e quarenta segundos de fala. Para a defesa da pesquisa, inspirei-
me nesta metodologia e misturei-a com este programa performativo: subvertendo-a, separei seis
minutos para cada procedimento-girassol, trazendo seis fotografias – uma por minuto – de cada um
deles enquanto exercitava as ações do treinamento selecionadas e discorria sobre o percurso de
criação das mesmas.
171

Contêiner

Desaceleração
172

Terceiro Girassol – Ásanas: Posturas do Yoga.

(Saudação ao Sol, explanação e slides se misturam. Pegar


o tapete de yoga enrolado no canto da sala, estendê-lo e
começar a se movimentar e a falar. Lembrar de articular
movimento e respiração).

A Saudação ao Sol foi meu primeiro encantamento/desassossego.


Foi também meu contato inicial com a união entre os universos do
treinamento do artista da cena e das tradições orientais. Assim como
os outros girassóis, os ásanas podem trazer consigo imagens e sensações
inspiradoras para a cena: punctums criativos permeados de simbologias.
Despertam a percepção e o domínio psicofísico do ator, cultivando sua
expressividade.

Quarto Girassol – Exercícios de Respiração: Pranayamas.

(Indicar duas formas de pranayama: ujjayi e bhastrika48.


Trazer a metáfora das ondas do mar, associando a respiração
com uma onda que ganha força com a correnteza, secando
a praia quando vai e quebrando na areia quando retorna.
Observar a transição de slides mais rápida, a depender de cada
tipo de exercício. O último slide é de recuperação e retorno à
respiração natural).

Solto o ar e com ele os conceitos e pensamentos. Abro-me para


o contato com o alento vital (prana ou chi) que atua na limpeza
dos canais energéticos do corpo. Respiro e sinto tanto fogo e como
calmaria vibrando ao longo dos movimentos de inspiração, expiração e
contenção. O apoio do plexo solar e dos esfíncteres do corpo durante a
ação respiratória geram pontos de força e sensibilidade para o artista
da cena.

Quinto Girassol – Meditação.

(Trazer instruções para uma prática de dois minutos de


meditação sentada com o coletivo. Soar a tigela tibetana após
todos haverem entendido, marcando o início do exercício.
Finalizar com o toque da tigela).

48 Ver terceiro capítulo.


173

Ásanas

Pranayamas Meditação
174

Viver o
instante presente.
Exercitar a atenção, o
foco e as sensações. Primeiro a
partir da concentração em um objeto
para, depois, desenroscar as rodinhas
da bicicleta e dar um salto no vazio. Com
este momento de pausa procuro centrar-me
antes de ouvir os apontamentos da banca. Dois
minutos de meditação coletiva: foco no fluxo
respiratório, nos cheiros e ruídos da sala. Assim,
no espaço entre mente e coração, findo esta série.

Reverência.

Sorte para nós.

PS: Lembrei há pouco que o jardim de infância no qual estudei


pequenininha se chamava Sol Girassol e que eu ia de uniforme amarelinho
para escola. Será que estas imagens geradoras caminharam sempre comigo
esperando o momento certo de desaguar? Que bonitas são as voltas que
essa louca vida dá e que potentes são os afetos. Sorte a minha, é tempo
de celebrar.
175
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184

ANEXOS
185

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO - 2015

Você está sendo convidado(a) como voluntário(a) a participar de uma investigação


realizada dentro do contexto da disciplina “Interpretação V” do curso de Bacharelado
em Teatro da Universidade do Estado do Amazonas e parte integrante do Doutoramento
em Artes da Cena/ UNICAMP da pesquisadora Vanja Poty Sandes Gomes Menezes.
Fundamentada nas práticas do cuidado de si investigadas por Michel Foucault, a pesquisa
visa a refletir sobre a formação do artista a partir da problematização do treinamento
do ator/performer. Suas principais referências são a yoga e suas práticas meditativas –
vistas a partir do viés da educação somática –, e às criações de Jerzy Grotowski, Marina
Abramovic e Lygia Clark. Essa ponderação tem como base o tratamento dado ao corpo
em suas experiências artísticas, propondo um processo de investigação prática do ator
em suas potencialidades físicas e imaginativas. Contudo, o estudo não pretende ater-se
à aplicação dos trabalhos destes artistas, e sim estabelecer um processo pedagógico
cênico motivado pelo do conhecimento de si, pensando o teatro para além do espetáculo,
bem como sua necessária relação com o desenvolvimento humano.
Essa investigação não oferece riscos ao seu participante. Você será esclarecido(a)
sobre a pesquisa em qualquer aspecto que desejar. A sua participação é voluntária
e a recusa em participar não irá acarretar qualquer penalidade. Sua participação no
estudo não acarretará custos para você e não será disponível nenhuma compensação
financeira pela sua participação.
Seu nome e imagem somente serão liberados na publicação que resultará deste estudo
com a sua autorização. O material coletado, ademais, não será utilizado para fins
diversos do que está apontado neste documento. Caso queira, você poderá ter acesso
a uma cópia digitalizada da versão final da investigação, contendo reflexões a partir da
suas entrevistas, diários de bordo e vivências no semestre.

Uma cópia deste consentimento informado será fornecida a você.


186

DECLARAÇÃO DO(A) PARTICIPANTE

Eu, __________________________________________________________ fui


informada(o) dos objetivos da pesquisa acima de maneira clara e detalhada e esclareci
minhas dúvidas. Sei que em qualquer momento poderei solicitar novas informações e
negar minha participação no trabalho. Em caso de dúvidas poderei entrar em contato
com a professora e pesquisadora Vanja Poty Sandes Gomes Menezes pelo e-mail poty.
vanja@gmail.com.
Declaro que concordo em participar desse estudo. Recebi uma cópia deste termo de
consentimento livre e esclarecido e me foi dada a oportunidade de ler e esclarecer as
minhas dúvidas.

_______________________________
Vanja Poty Data: __/__/__

_____________________________________
Nome do Voluntário Data: / /

187

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO - 2016

Você está sendo convidado(a) como voluntário(a) a participar da investigação


DESACELERANDO OU UMA ODE AO SOL, AO CAMINHAR E ÀS BORBOLETAS:
PRÁTICAS DE MEDITAÇÃO E YOGA NO TREINAMENTO DO ARTISTA DA CENA,
dentro do contexto do Projeto de Extensão do Núcleo de Prática Meditativas no
Treinamento do Artista na Cena da Universidade do Estado do Amazonas e parte
integrante do Doutoramento em Artes da Cena – Unicamp da pesquisadora Vanja Poty
Sandes Gomes Menezes.
A Pesquisa visa a refletir sobre a formação do artista a partir da problematização do
treinamento do ator/performer. Suas principais referências são o yoga e suas práticas
meditativas – vistas a partir do viés da educação somática. Esta ponderação tem como
base o tratamento dado ao corpo em exercícios de desaceleração do ritmo cotidiano do
artista, propondo um processo de investigação prática do ator em suas potencialidades
físicas e imaginativas. O estudo pretende estabelecer um processo pedagógico cênico
motivado pelo conhecimento de si, pensando o teatro para além do espetáculo, bem
como sua necessária relação com o desenvolvimento humano.
Essa investigação não oferece riscos previsíveis ao seu participante. Você será
esclarecido(a) sobre a pesquisa em qualquer aspecto que desejar. A sua participação
é voluntária e a recusa em participar não irá acarretar qualquer penalidade. Sua
participação no estudo não acarretará custos para você e não será disponível nenhuma
compensação financeira pela sua participação.
Seu nome e imagem somente serão liberados na publicação que resultará deste estudo
com a sua autorização. O material coletado, ademais, não será utilizado para fins
diversos do que está apontado neste documento. Caso queira, você poderá ter acesso
a uma cópia digitalizada da versão final da investigação, contendo reflexões a partir da
suas entrevistas, diários de bordo e vivências do grupo de pesquisa.
Uma cópia deste consentimento informado será fornecida a você.
188

DECLARAÇÃO DO(A) PARTICIPANTE

Eu, __________________________________________________________ fui


informada(o) dos objetivos da pesquisa acima de maneira clara e detalhada e esclareci
minhas dúvidas. Sei que em qualquer momento poderei solicitar novas informações e
negar minha participação no trabalho. Em caso de dúvidas poderei entrar em contato
com a professora e pesquisadora Vanja Poty Sandes Gomes Menezes pelo e-mail poty.
vanja@gmail.com.
Declaro que concordo em participar desse estudo. Recebi uma cópia deste termo de
consentimento livre e esclarecido e me foi dada a oportunidade de ler e esclarecer as
minhas dúvidas.

_______________________________
Vanja Poty Data: __/__/__

_____________________________________
Nome do Voluntário Data: / /

189

DECLARAÇÃO

Eu, _____________________________________________________, portador da Cédula de


Identidade no_________________ inscrito no CPF sob no _________________, residente à ____
______________________________________, no ______, na cidade de __________________,
AUTORIZO o uso de minha imagem em foto ou filme, sem finalidade comercial, para ser utilizada
na pesquisa DESACELERANDO OU UMA ODE AO SOL, AO CAMINHAR, E ÀS BORBOLETAS: PRÁTICAS
DE MEDITAÇÃO E YOGA NO TREINAMENTO DO ARTISTA DA CENA e publicações decorrentes,
tais como tese de doutoramento, livros, artigos científicos e obras artísticas da autora, desde
que relacionadas ao estudo. Declaro ter sido informada(o) dos objetivos da pesquisa acima
de maneira clara e detalhada e esclareci minhas dúvidas. Por esta ser a expressão da minha
vontade, declaro que autorizo o uso acima descrito sem que nada haja a ser reclamado a título
de direitos conexos à minha imagem ou a qualquer outro.

Manaus, __ de Dezembro de 2016.

_______________________________ (assinatura do declarante)


190

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO - 2017

Você está sendo convidado(a) como voluntário(a) a participar da investigação


DESACELERANDO OU UMA ODE AO SOL, AO CAMINHAR E ÀS BORBOLETAS:
PRÁTICAS DE MEDITAÇÃO E YOGA NO TREINAMENTO DO ARTISTA DA CENA,
dentro do contexto do Projeto de Extensão do Núcleo de Prática Meditativas no
Treinamento do Artista na Cena da Universidade do Estado do Amazonas e parte
integrante do Doutoramento em Artes da Cena – Unicamp da pesquisadora Vanja Poty
Sandes Gomes Menezes.
A Pesquisa visa a refletir sobre a formação do artista a partir da problematização do
treinamento do ator/performer. Suas principais referências são o yoga e suas práticas
meditativas – vistas a partir do viés da educação somática. Esta ponderação tem como
base o tratamento dado ao corpo em exercícios de desaceleração do ritmo cotidiano do
artista, propondo um processo de investigação prática do ator em suas potencialidades
físicas e imaginativas. O estudo pretende estabelecer um processo pedagógico cênico
motivado pelo conhecimento de si, pensando o teatro para além do espetáculo, bem
como sua necessária relação com o desenvolvimento humano.
Essa investigação não oferece riscos previsíveis ao seu participante. Você será
esclarecido(a) sobre a pesquisa em qualquer aspecto que desejar. A sua participação
é voluntária e a recusa em participar não irá acarretar qualquer penalidade. Sua
participação no estudo não acarretará custos para você e não será disponível nenhuma
compensação financeira pela sua participação.
Seu nome e imagem somente serão liberados na publicação que resultará deste estudo
com a sua autorização. O material coletado, ademais, não será utilizado para fins
diversos do que está apontado neste documento. Caso queira, você poderá ter acesso
a uma cópia digitalizada da versão final da investigação, contendo reflexões a partir da
suas entrevistas, diários de bordo e vivências do grupo de pesquisa.
Uma cópia deste consentimento informado será fornecida a você.
191

DECLARAÇÃO

Eu, _____________________________________________________, portador da


Cédula de Identidade no_________________ inscrito no CPF sob no _________________,
residente à __________________________________________, no ______, na cidade
de __________________, AUTORIZO o uso de minha imagem em foto ou filme, sem
finalidade comercial, para ser utilizada na pesquisa DESACELERANDO OU UMA ODE
AO SOL, AO CAMINHAR, E ÀS BORBOLETAS: PRÁTICAS DE MEDITAÇÃO E YOGA
NO TREINAMENTO DO ARTISTA DA CENA e publicações decorrentes, tais como
tese de doutoramento, livros, artigos científicos e obras artísticas da autora, desde que
relacionadas ao estudo. Declaro ter sido informada(o) dos objetivos da pesquisa acima
de maneira clara e detalhada e esclareci minhas dúvidas. Por esta ser a expressão
da minha vontade, declaro que autorizo o uso acima descrito sem que nada haja a ser
reclamado a título de direitos conexos à minha imagem ou a qualquer outro.

Manaus, __ de Agosto de 2017.

_______________________________
(assinatura do declarante)
192

DECLARAÇÃO DO(A) PARTICIPANTE

Eu, __________________________________________________________ fui


informada(o) dos objetivos da pesquisa acima de maneira clara e detalhada e esclareci
minhas dúvidas. Sei que em qualquer momento poderei solicitar novas informações e
negar minha participação no trabalho. Em caso de dúvidas poderei entrar em contato
com a professora e pesquisadora Vanja Poty Sandes Gomes Menezes pelo e-mail poty.
vanja@gmail.com.
Declaro que concordo em participar desse estudo. Recebi uma cópia deste termo de
consentimento livre e esclarecido e me foi dada a oportunidade de ler e esclarecer as
minhas dúvidas.

_______________________________
Vanja Poty Data: __/__/__

_____________________________________
Nome do Voluntário Data: / /

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