Exu e Os Ibejis
Exu e Os Ibejis
Exu e Os Ibejis
Aprovado em:26/12/2020
Publicado em: 31/12/2020
RESUMO
O texto tem como objetivo problematizar a persistência pela aniquilação da vida no cenário da educação.
A perspectiva da educação brasileira convive historicamente com seus inimigos íntimos: o espírito
antidemocrático, a aniquilação do diverso e a morte da criatividade. Alguns elementos que persistem na
perpetuação dos inimigos da educação são: a vocação de um espírito antidemocrático, a antipoética e a
morte do espaço público de discussão. Esses elementos são produtores de forma cultural de mortes,
fundamentados pelo racismo. Irei caminhar nas paisagens das filosofias africanas e da educação
antirracista. Para isso, mobilizarei os personagens de Exu e do Ibeji na tentativa de responder a seguinte
problematização: quais as formas possíveis de caminharmos humanamente juntos?
ABSTRACT
The text aims to problematize the persistence for the extinction of life in the education scenario. The
perspective of brazilian education has historically coexisted with its intimate enemies: the anti-
democratic spirit, the extinction of the diverse and the death of creativity. Some elements that persist in
the perpetuation of the enemies of education are: the vocation of an anti-democratic spirit, the antipoetic
and the death of the public space for discussion. These elements produce a cultural form of death,
reasoned on racism. I will walk in the landscapes of african philosophies and anti-racist education. For
this, I will mobilize the characters of Exu and Ibeji in an attempt to answer the following question: what
are the possible ways of walking humanly together?
INTRODUÇÃO
1
Doutor em Difusão do Conhecimento pelo Programa de Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em
Difusão do Conhecimento pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: lcarlosfsantos@gmail.com.
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9476764912050820.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0514-5324.
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Muniz Sodré (1988), no livro A verdade seduzida, persiste por um outro conceito de cultura. E, segundo Sodré,
a palavra cultura foi utilizada em alguns momentos da história da humidade como uns dos grandes articuladores
do genocídio, que se faz alternar por “semiocídios
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O Epistemicídio (racismo epistêmico) é compreendido nesse texto como um combate ontológico ao
pertencimento, sendo esta uma expressão trabalhada por autores como Nelson Maldonado Torres (2010); Mogobe
Ramose (2011) e Sueli Carneiro (2005).
4
Segundo Ronilda Ribeiro “Os orixás são, segundo Awolalu e Dopamu (1979), deuses com d minúsculo.
Emanações do Ser Supremo, dele possuem atributos, qualidades e características e têm por propósito servir à
vontade divina no governo do mundo. Algumas destas divindades são primordiais, isto é, participaram da criação
do mundo; outras são ancestrais que por suas vidas exemplares, foram deificados e outras personificam forças e
fenômenos naturais.” (RIBEIRO, p.1996, p. 61).
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O conceito “poética do genocídio” é trabalhado na tese O poder de matar e a recusa em morrer: filopoética
afrodiaspórica como arquipélago de libertação, defendida em 2019, por Luís Carlos Ferreira dos Santos, no
Programa Multidisciplinar e Multiinstitucional em Difusão do Conhecimento (UFBA). A tese compreende que a
necropolítica, forma de subjugar as vidas ao poder de morte, cria mundos de mortes. Ela é a derrota da filosofia, é
o antipensamento e o aniquilamento da memória. É a força dos espaços vazios que movimentam a poética do
genocídio. A criação de mundos que se aniquilam é uma das moradas da força poética do genocídio.
6
O Todo-o-mundo é um conceito cunhado e desenvolvido pelo filósofo martinicano Édouard Glissant. O “Todo-
o-mundo” é o inextricável do uno, é este emaranhado de partes que configura o uno. A totalidade-mundo é
constituída dos arquipélagos, que, por sua vez, é formado por paisagens, que são como categorias do sendo, conduz
para além de si-mesmo e faz conhecer o que está em nós.
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Referência ao livro de Achille Mbembe Políticas da Inimizade.
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Alusão ao livro de Frantz Fanon, Os condenados da Terra.
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É importante ressaltar que este trabalho foi publicado em 1999.
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Segundo Juana Elbein dos Santos e Deoscoredes Santos: “[...] Exu como princípio vital dinâmico de todo ser
faz dele o elemento que ajuda formar, desenvolver, mobilizar, crescer, transformar, comunicar” (SANTOS;
SANTOS, 2014, p. 26).
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A filosofia da educação a partir do signo Exu tem como fundamento o diverso. Exu é
“essencialmente o princípio vital e dinâmico de todo ser e de toda coisa que existe. Sem Exu, a
existência, suas representações e transformações não aconteceriam, a vida não se
desenvolveria” (SANTOS; SANTOS, 2014, p. 28). A morada de Exu é a encruzilhada. A
encruzilhada é a morada de comutar o que é irredutível. Nela, a transparência não encobre e
nem aniquila com seu brilho intenso as múltiplas possibilidades. Na encruzilhada são
potencializadas as comunicações.
Exu é o signo do diálogo, da potencialização das relações. Uma outra característica de
Exu é da invenção do tempo. O aforismo nagô: “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que
atirou hoje” representa esta ação de invenção do tempo. O presente transita para o passado, pois
a pedra jogada está no meio de uma ação. Essa imagem é muito importante para qualificar as
ações para o debate acerca de uma filosofia da educação afro-brasileira. De acordo com a
interpretação do professor Muniz Sodré (2017) acerca do aforismo citado:
É o agora, o presente, que funda o tempo por meio da ação. Na dinâmica de Exu não há
fim nem começo, tudo é devir, processo. Nesse caso, a temporalidade se concretiza no
acontecimento. A leitura é do contraponto à temporalidade ocidental, na perspectiva do tempo
inventado por Exu. Segundo Sodré:
[...] com Exu a temporalidade não é constituída, mas constituinte, isto é, uma
dimensão da experiência que inventa o tempo por meio da articulação dos
eventos seguidos pela origem, isto é, por um protoacontecimento que
engendra um destino comum a todos e faz aparecer até mesmo o inexistente.
Nessa dimensão, o indivíduo está ao mesmo tempo atrás e diante de si mesmo.
(SODRÉ, 2017, p. 188).
A ação de Exu não está dentro do tempo, ele o inventa. No aforismo citado, a
reversibilidade que afeta os componentes temporais estabelecidos incita poética e
filosoficamente a uma tomada de consciência dos intervalos, das pausas. O aforismo remete ao
orixá Exu como aquele que pode vir a ser capaz de reinventar a memória, inventar o tempo. O
presente é um constante vir a ser e ter sido. Exu é o contratempo da “poética do genocídio”
(SANTOS, 2019), a qual aniquila o diverso e a multiplicidade.
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Portanto, uma segunda resposta, para a pergunta do texto, desde a ação poética de Exu,
se dá na urgência de inventar um contratempo no acontecimento. A pedra lançada por Exu é o
lançar-se no imprevisível, é a morada da utopia, mas não é um movimento de futuro, é uma
ação do presente. A poética do contratempo de Exu é a utopia, um acontecimento do aqui e
agora.
Para dialogar com o tempo do ibeji faremos uso do mito “Os Ibejis enganam a Morte”.
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Em outras versões mais difundidas, o Ibeji aparece como filhos dos orixás Iansã e Xangô. A escolha por essa
versão do mito se dá por uma questão técnica.
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A beleza presente no mito revela a perspectiva de que educar pela cultura tem o objetivo
de educar as sensibilidades para um engajamento e encantamento do mundo e do humano. O
tempo inventado pelo Ibeji nos traz como princípio a defesa da vida, a criatividade como
dinamizadora da ação e a afirmação da coletividade. O imaginário presente na educação
brasileira, o “deixar morrer e fazer morrer”, a necropolítica (MBEMBE, 2018), atualiza a
antipoética, ou seja, o apagamento da criatividade, produz a morte do espaço público de
discussão, a coletividade e tem como fim o desencantamento da vida dos povos ameríndios e
dos afro-brasileiros.
A experiência mito-poética narrada pelo Ibeji sinaliza uma temporalidade em que o
presente é o acontecimento. Na dinâmica cultural moderna ocidental, o passado é esquecido.
Enquanto na filosofia africana o passado não deve ser esquecido, na dinâmica ocidental
moderna, o que tem mais força é a projeção de futuro e a criação dá-se em relação com o
abandono do passado.
Flor do Nascimento, no artigo intitulado Temporalidade, memória e ancestralidade:
enredamentos africanos entre infância e formação, apresenta um diálogo sobre a infância a
partir das regiões africanas de línguas bantas e iorubá. O seu discurso é situado na “África
negra” e na relação produzida pela diáspora, principalmente as dos terreiros de candomblé. O
texto aborda as categorias de memória, temporalidade e infância, em diálogo com categorias
filosóficas das tradições iorubá e bantu na diáspora brasileira. A imagem da temporalidade da
infância é compreendida desde a tradição da “África negra”, em diálogo crítico e criativo com
a imagem trazida por Nietzsche nos primeiros discursos de Zaratustra. Enquanto em Nietzsche
a criança deve esquecer o passado para construir o futuro, todavia, na dimensão iorubá e bantu,
as crianças são vinculadas ao passado e ao presente. A relação intrínseca da criança com o seu
passado constrói, no imaginário social e cultural, uma compreensão da importância de ter
ciência de seus antepassados, da sua história. Segundo Flor do Nascimento:
O tempo com o qual a criança está conectada aqui é expresso nessa repetição
do dinâmico, do instável, do incerto, com um compromisso com esse passado
que a todos rege. Não há aqui um eterno retorno do mesmo, mas um eterno
retorno da pirueta, que tem sempre o compromisso com o chão, que vem antes
(FLOR DO NASCIMENTO, 2018, p. 589).
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Referência ao livro de Édouard Glissant Une nouvelle région du monde. Esthétque I.
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O movimento Harlem Renaissance defendia a afirmação da humanidade negra, nos Estados Unidos, por meio
dos movimentos culturais. Sugiro como referência para o entendimento do Pan-africanismo e do Harlem
Renaissance o texto O renascimento do Harlem – panafricanismo e a luta contra a inferioridade racial (1920-
1930), de Gustavo de Andrade Durao. Disponível em: <http://www.ileel.ufu.br/anaisdosiliafro/wp-
content/uploads/2014/03/artigo_SILIAFRO_27.pdf>.
14
O movimento da negritude é a perpetuação do ideal do Panafricanismo e do Harlem Renaissance em solo francês.
Sugiro a leitura de Kebenguele Munanga em Pan-Africanismo, Negritude e Teatro Experimental do Negro. São
Paulo: Revista Ilha, v. 18, n˚ 1, pp. 107-120. Junho, 2016.
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Não é novidade a defesa de uma educação que paute o diverso e traga como imagens
norteadoras o universo simbólico da cultura afro-brasileira. O movimento negro educador15 e a
pedagogia afro-brasileira Irê Ayô16, por exemplo, representam estas pedras que reinventam a
memória e o tempo de uma educação antirracista, com o comprometimento de educar para a
coletividade, para a firmação da vida e da criatividade. É uma ação filosófica que oferece modos
de caminhar em relação.
A filosofia da educação, nessa perspectiva, tem como finalidade a defesa da estetização
da vida negra como um dos modos de afirmar o “todo-o-mundo”, de enfrentar o racismo. É
uma resposta ao tempo da monocultura e da colonialidade da vida. Portanto, a filosofia da
educação afro-brasileira tem como objetivo caminhar junto na medida em que politiza uma
educação da sensibilidade.
A filosofia da educação afro-brasileira parte da sabedoria e da raça, da invenção do
tempo com a urgência e necessidade da disputa da cidadania. Educar o Brasil para uma
educação antirracista é defender a ampliação e manutenção das liberdades.
A perspectiva de educar na deriva de Exu e do Ibeji traduz a dimensão estética para
engajar e educar uma ação. A abordagem acerca do racismo tem a estética e a ética como
elementos mobilizadores, pois o racismo é um problema de ordem da sensibilidade e de atitude.
A ação da violência contra os corpos racializados requer uma resposta ética-estética. A
perspectiva da filosofia da educação afro-brasileira busca problematizar o racismo na esfera da
sensibilidade.
A lógica de atuação do racismo busca matar a imaginação criativa. A atitude na luta de
uma educação antirracista segue na trajetória de potencializar a “filopoética do educar”
(SANTOS, 2019), pois é fundamental na luta contra o racismo “[...] criar conceitos e fecundá-
15
O texto faz referência a Nilma Lino Gomes (2017).
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O texto faz referência a Vanda Machado (2013).
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2 CONCLUSÃO
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funcionam como estratégia sensível do horror e do terror da hierarquização das vidas. O racismo
antecede a formação da sociedade brasileira, por isso, para enfrentar a violência do racismo, é
necessário está engajado na disputa do “[...] que há de mais humano no homem: a liberdade”
(FANON, 2008, p.184).
É imprescindível navegar à deriva no tempo, da memória e do imaginário escravagista.
No terror do tempo do racismo, a resposta é a poética do tremor do contratempo de Exu e do
Ibeji.
A filosofia da educação afro-brasileira intenta ser um pensamento afinado com a sua
própria paisagem, no intuito de enfrentar a diminuição e redução das liberdades. A filosofia da
educação, a partir do imaginário africano e dos seus arquipélagos, tem a pedagogia antirracista
como legado político e epistemológico.
Na leitura mito-poética das paisagens conceituais Exu e Ibeji, tanto o primeiro quanto o
segundo reinventam um contratempo ao mundo desertificado pela lógica da exploração do
racismo. A morada do humano está cada vez mais esgotada. Os símbolos mítico-poético
oferecem como caminho para o problema levantado, uma saída ética: ao invocar a coletividade
e a defesa da vida, através da sensibilidade, da dimensão estética. É uma paisagem ético-estética
na produção de um outro humanismo.
A dimensão de uma filosofia afro-brasileira da educação, partindo da estética,
potencializa o ser, viver e morar numa dinâmica a qual criamos e, por isso, participamos.
Portanto, a pedra jogada por Exu e o batuque do Ibeji sinalizam que a filosofia da educação,
desde a poética do contratempo, tem como finalidade enfatizar uma imaginação diversa, uma
ação em que “o Outro do pensamento é a estética criada por mim, por vocês, para nos
associarmos a uma dinâmica em que participamos” (GLISSANT, 2011, p. 149).
Desta maneira, ensaiamos respostas para tal questionamento: quais as formas possíveis
de caminharmos humanamente juntos? Primeiro, é necessário jamais esquecer a defesa da
multiplicidade cultural presente no pensamento filosófico. Segundo, a invenção do contratempo
por meio da ação e, por fim, a beleza como força poética de fortalecimento da coletividade. Isto
é, a paisagem ética-estética como caminho para a afirmação da vida.
A imaginação criativa e afirmativa da vida é um sentimento que parte com sujeitos
sensibilizados e, consequentemente, engajados a criar conceitos e fecundá-los de imaginação.
A poética de Exu e do Ibeji, a dimensão ético-estética, sinaliza a importância de escapar do
pensamento fixo e totalitário, por isso, a resposta para pergunta acima não pode ser desatrelada
de uma ordem “onto-epistemológica”. A poética presente no Ibeji e em Exu tem como horizonte
a paisagem do mundo e a sua fronteira estará sempre aberta. A filosofia da educação afro-
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brasileira preserva o particular, tendo em vista que a totalidade dos particulares garante o
diverso. Todavia, é um particular que se coloca sempre em Relação. A caminhada somente será
possível com a afirmação do singular em deriva para o todo-o-mundo.
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