Schlick 1
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Schlick 1
Moritz Schlick
M. Schlick, Allgemeine Erkenntnislehre, Verlag von Julius Springer, Berlim, 1a ed. 1918; 2a ed. revista,
1925. Tradução para o inglês, General Theory of Knowledge, trad. A.E. Blumberg, Springer-Verlag, Viena,
Nova Iorque, 1974. Trechos retirados desta tradução, por Osvaldo Pessoa Jr.
[385] [...] Primeiro, como é que transferimos proposições sobre instâncias percebidas para
instâncias não percebidas? Como é que aplicamos juízos que se encaixam em eventos dos quais
tivemos experiência anterior para eventos dos quais ainda não tivemos experiência?
Segundo, que tipo de validade atribuímos para proposições desta espécie, já que não
podemos afirmar sua validade absoluta?
Terceiro, com que justificativa fazemos tal afirmação?
Essas três questões constituem o problema da indução. Pois este é o nome dado para a
extensão de uma proposição de instâncias conhecidas para as desconhecidas, transferindo uma
verdade de alguns casos para muitos, ou como se diz usualmente, inferindo o geral a partir do
particular. [...] [386]
Por outro lado, a indução gera conhecimento no grau mais elevado; é através da indução que
obtemos o conteúdo de todas as nossas ciências da realidade. Mesmo assim, a indução não pode ser
melhor explicada pela experiência do que pelo pensamento, já que ela estende nosso conhecimento
para casos dos quais ainda não temos experiência alguma, quais sejam, casos que estão temporal e
espacialmente distantes.
Creio que há apenas uma resposta para a questão da origem real das proposições obtidas
indutivamente, e que a filosofia já está de posse desta resposta há muito tempo, graças acima de
tudo a Hume.
A questão, como é evidente em sua formulação, é de natureza psicológica. Nossa habilidade
de tomar conhecimento adquirido em certos casos e aplicá-lo para outros casos deve estar fundada
em certas características factuais de nossa vida mental. Se, em cada investigação de algum objeto A
nós encontramos nele o objeto B repetidamente, então esperamos que onde quer que o conceito A
seja aplicável, o conceito B também possa ser usado para designar o mesmo objeto, levando assim
imediatamente a uma correlação única. Por exemplo, eu muitas vezes observei que papel queima
quando eu o jogo em fogo. E estou convencido que a carta que estou segurando em minha mão irá
queimar imediatamente se eu jogá-lo na lareira, apesar de hoje ser a primeira vez que eu vi esta
carta e essas madeiras. Afora circunstâncias especiais, considero o juízo “Papel é inflamável” como
válido em geral. Novamente, nunca vi minha janela coberta de geada a não ser quando a
temperatura do lado de fora é bem baixa; portanto, sempre que as janelas estão cobertas com lindos
cristais, posso definitivamente esperar ter a sensação de frio intenso quando eu deixar a casa. A
proposição de que gelo só pode existir no frio foi por mim obtida através da indução.
Se perguntarmos a que capacidade humana devemos conhecimento deste tipo, encontramos
como única base psicológica a habituação. E a habituação, por sua vez, repousa inteiramente em
processos de associação. A imagem da queima tem sido firmemente ligada à combinação das idéias
de papel e fogo, e a imagem de frio ao aparecimento de geada. Estou por natureza equipado com um
mecanismo de associação que me permite, sem delongas, esperar o segundo termo tão logo apareça
o primeiro, supondo que tenha tido experiência da união dos dois de maneira suficientemente
freqüente. Este é um arranjo biologicamente favorável; [387] o homem não poderia viver sem ele,
pois senão não seria capaz de ter um comportamento que lhe preserve a vida. [...] [388]
A coisa notável sobre a resposta que encontramos à primeira questão da indução é que ela
nos remete para os mesmos processos reconhecidos nas seções precedentes como as raízes
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subjetivas da noção de causalidade. Aqui se revela a interconexão entre o problema da causalidade e
o da indução. De fato, eles não são solúveis independentemente um do outro; um está encerrado no
outro. Essa conexão geral de habituação da qual falamos – e com cuja suposição mesmo um único
caso pode, sob certas circunstâncias, bastar para estabelecer uma proposição indutiva – não é nada
mais do que a conexão causal, ou melhor sua imagem especular subjetiva. [...] [389]
A primeira questão levantada pelo problema da indução – como de fato chegamos a juízos
sintéticos geralmente válidos – pode ser considerada respondida por meio dessa referência a
processos psicológicos e biológicos. Consideremos agora a segunda e mais difícil questão: Que tipo
de validade tais juízos têm para nós, em vista do fato de que eles não são válidos de maneira
absoluta e acima de qualquer dúvida? [...]
É costume dizer que proposições obtidas por indução não possuem o caráter da certeza; elas
possuem validade apenas provável. Mas o que significa isso?
Quando digo “A é provavelmente B” (por exemplo, forças químicas são provavelmente de
natureza elétrica), eu não pretendo com isso correlacionar definitivamente os conceitos A e B com o
mesmo objeto, ou seja, designar o objeto B como sempre, com certeza, encontrável novamente em
A. Pelo contrário, a correlação de B com o objeto atual é uma tentativa, correlação esta que eu
espero que seja única. Em outras palavras, a proposição “A é B” representa uma hipótese.
Todo conhecimento da realidade consiste, rigorosamente falando, de hipóteses. Nenhuma
verdade científica, quer pertença à história ou à mais exata das investigações sobre a natureza, é
uma exceção. Nenhuma verdade científica está em princípio segura contra o perigo de que em
alguma época ela possa ser refutada e portanto tornar-se inválida. Apesar de haver inúmeras
verdades sobre o mundo real que ninguém que tenha conhecimento delas possa duvidar, mesmo
assim nenhuma delas pode ser completamente despida de seu caráter hipotético. [...] [392]
Deve-se portanto reconhecer que o conceito de probabilidade, em sua aplicação ao mundo
real, ainda apresenta muitos mistérios profundos. E até que estes sejam resolvidos, o problema do
tipo de validade possuído por proposições obtidas através da indução não será definitivamente
dominado. Mas já que todos os juízos universais sobre a realidade são obtidos através da indução, a
importância fundamental do problema fica manifesto. Talvez o conceito de probabilidade seja
último e não mais analisável – algo a ser aceito como uma maneira elementar de descrever o
mundo. [...] [393]
Ao passo que agora sabemos como chegamos a elaborar proposições indutivas e que tipo de
validade afirmamos para elas, ainda não sabemos nada sobre se esta afirmação é justificada. A
terceira questão levantada pelo problema da indução é dirigida precisamente a essa quaestio juris.
Ela portanto requer novas considerações de um ponto de vista inteiramente diferente. [...] [394]
Que a causalidade e portanto a inferência indutiva não podem ser estabelecidas por prova
racional foi percebida desde cedo com o auxílio de uma linha de argumentação empirista. Mesmo
assim, as pessoas se consolavam considerando que a validade e a confiança de tais inferências são
garantidas pela experiência. Mas aí Hume mostrou que sob nenhuma condição a experiência seria
capaz de satisfazer a responsabilidade com a qual tinha sido imbuída. [...] [396]
A busca por conhecimento tem inicialmente raízes biológicas (ver § 13). O homem é ele
mesmo uma parte da realidade, e se ele trabalha nas ciências daquela realidade ele se verá dirigido a
conexões reais que o ligam à realidade. E estas, em última análise, são de natureza prática. [...] [397]
[...] A consciência está adaptada ao mundo; suas expectativas subjetivas são geradas por
processos objetivos, e coincidem com esses processos precisamente porque estão assim adaptadas.
Em acordo com isso, a justificação prática do princípio causal – uma teórica não é possível –
está no fato de que nossas primeira e terceira questões sobre indução se fundem uma com a outra,
não importa o quão claramente eles se distingam teoricamente. [...]