Violência Sexual - Não Há Apenas Uma Vítima
Violência Sexual - Não Há Apenas Uma Vítima
Violência Sexual - Não Há Apenas Uma Vítima
RESUMO
Com o presente artigo pretende-se analisar a violência sexual infantil intrafamiliar e seus
participantes (abusador e vítima), bem como a família envolvida. Nessa tragédia social
todas aquelas pessoas são vítimas e por isso merecem atenção quando se almeja uma
proteção abrangente e por isso eficiente.
1Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Estadual do Norte do Paraná, Campus de Jacarezinho/PR;
Professor no Curso de Graduação em Direito do Centro Universitário Unitoledo de Araçatuba – SP; Juiz de
Direito do Estado de São Paulo.
ABSTRACT
With this article we intend to analyze the intrafamily child sexual abuse and its participants
(abuser and victim) and the family involved. In this social tragedy all those people are
victims and therefore deserve attention when it aims a comprehensive and
efficient protection.
INTRODUÇÃO
A violência sexual infantil traz efeitos traumáticos tanto para quem dela participa
(como autor ou vítima) como àqueles que a presenciam. Quando ela se instala no âmbito
familiar é capaz de comprometer toda a estrutura familiar e o desenvolvimento sadio dos
integrantes.
Daí a importância e a necessidade de se contribuir, minimamente, com o estudo do
tema violência sexual infantil intrafamiliar. Optando-se, ademais, por um estudo
psicossocial dos envolvidos no fenômeno.
Assim, procurou-se abordar a distinção entre abusador sexual infantil e pedófilo,
bem como se as informações existentes acerca do autor do abuso sexual infantil. Também
se debruçou sobre a dinâmica psicossocial da violência sexual infantil, com conceitos como
síndrome do segredo e da adição, bem como as consequências do abuso para a vítima e a
importância da família envolvida no abuso: tanto no aspecto preventivo como após a
ocorrência da violência.
A violência pode ser conceituada como uma relação de forças retratada pela injusta
dominação em um polo e a coisificação no outro.
Infere-se que na base daquela definição está a noção de liberdade, haja vista que a
violência representa dominação, ou seja, submissão de alguém por meio da força (contra a
vontade) até ao ponto de coisificar o submisso, aniquilando lhe a condição humana.
Em especial quanto à violência sexual, o atentado à liberdade da vítima fica ainda
mais evidente, já que retira dela a prerrogativa de decidir acerca de seu corpo, dos seus
desejos sexuais.
No caso da violência sexual infanto-juvenil essa relação impositiva é incrementada
por mais duas desigualdades, as de gênero e geração (ARAÚJO, 2002, p. 5).
Nessa esteira, como bem destaca Hélia Barbosa apud Hisgail (200, p. 21), pode-se afirmar
que a violência sexual se caracteriza pela “utilização pelo adulto, do corpo da criança ou do
adolescente para fins sexuais sem o consentimento da vítima, que sofre coação física,
emocional ou psicológica”.
As pesquisas indicam que a forma mais recorrente daquela violência é a praticada
por pessoas do sexo masculino contra vítimas mulheres. Ademais, normalmente ocorrem
no âmbito familiar, perpetrados por pessoas próximas sentimentalmente da vítima,
frequentemente o genitor ou padrasto (ARAÚJO, 2002, p. 6; HABIGZANG et al, 2005, p. 343).
A presença daquelas desigualdades é uma constância no abuso sexual infanto-
juvenil. É interessante a tabela colacionada por França Júnior (2003, p. 26), a qual informa
que em países como Canadá, República Dominicana, Noruega, Bélgica, Estados Unidos,
Costa Rica, Finlândia, Espanha e Austrália há franca predominância de vítimas do sexo
É bem verdade que a fidedignidade das pesquisas realizadas sofre uma fissura em
razão do alto índice de cifras negras nessa espécie de infração penal. Normalmente a
amor (MOREIRA, 2010, p.99), de sorte que em termos corretos toda pessoa que nutre amor
por criança seria um pedófilo.
Mas convencionou-se denominar como pedófilo todo indivíduo que sente atração
sexual por crianças, daí a confusão com o termo abusador sexual infanto-juvenil.
Sob a ótica psiquiátrica, a pedofilia se enquadra como um transtorno sexual em razão de
fantasias sexuais frequentes com crianças. Uma espécie de parafilia.
O Manual Diagnóstico e Estático de Transtornos Mentais (DSM-IV) da Associação de
Psiquiatria Americana, 4ª edição, define parafilia como:
Da mesma forma, o mencionado Manual destaca que para que um transtorno sexual
seja considerado pedofilia, o indivíduo deve ter 16 anos de idade ou mais e ser pelo menos
cinco anos mais velho do que a criança.
Com efeito, pedofilia e abuso sexual infanto-juvenil não são sinônimos. Nem todo
pedófilo é abusador, assim como nem todo abusador é pedófilo.
O indivíduo pode ter a criança como seu objeto de desejo sexual, mas jamais passar
da cogitação. Então não será um abusador. Embora também necessite de atenção
especializada para conter seus instintos sexuais, já que é um potencial abusador.
De outro lado, é possível que o agente efetive a prática de atos sexuais com uma
criança, mas não se enquadre no conceito de pedófilo, pois não é portador de transtorno
sexual (parafilia). O pedófilo possui distúrbio mental compulsivo, repetirá seu
comportamento sempre, como o mais forte dos vícios (MOREIRA, op cit, p. 107). Já o
abusador pode ter praticado o fato ocasionalmente, como uma forma de aliviar suas
tensões, sem a presença da compulsividade à prática de sexo com crianças como nos casos
de pedofilia.
No mesmo sentido, Abdalla-Filho e Moreira (2012, p. 392) ensinam que
perfil psicológico e sua história de vida, são técnicas que poderão orientar qual a resposta
estatal mais adequada àquela situação. Sem prejuízo, por óbvio, de também debruçar-se
acerca da vítima do trágico abuso sexual.
Com razão já se escreveu que em caso de abuso sexual infanto-juvenil intrafamiliar:
À luz da psicologia, Trindade (2013, p. 39-44) ensina que há várias teorias que
procuram explicar os aspectos psicológicos da pedofilia.
Destaca-se a visão psicanalista, para quem o pedófilo seria uma pessoa imatura, cuja
fase de desenvolvimento psicossexual estacionou na infância. Ele apresenta uma espécie de
fantasia pela qual apenas poderia ter prazer sexual com criança. Ademais, por força da
incapacidade em manter relacionamentos amorosos com pessoas de sua idade biológica,
procura crianças (pois elas possuem a mesma idade psicossexual dele), uma vez que se
sente incapaz de conquistar uma pessoa adulta.
Nessa esteira, classifica-os em pedófilos predadores e não predadores. Aqueles são
os que expressam outras necessidades por meio do sexo, normalmente é agressivo e sádico
com as crianças ignorando o sofrimento destas e justificando sempre a justeza do seu
comportamento.
Os não predadores, de seu turno, são subdivididos em regressivos e compulsivos.
Regressivos são aqueles que normalmente têm atração sexual por adultos, mas submetidos
a situações estressantes ou sob pressão, regridem a uma condição mais primitiva,
interessando-se sexualmente por crianças. Já nos compulsivos a atração sexual por crianças
é permanente e não apenas em situações estressantes ou sob pressão. Normalmente são
hábeis em aliciar a criança conquistando a confiança desta, tornam-se seus melhores
amigos. Mas perdem o interesse sexual quando atingem o objetivo sexual, pois a criança
deixa de ser vista como inocente, que é a característica mais atrativa para essa espécie de
pedófilo (TRINDADE, 2013, p. 41).
Então, numa análise psicodinâmica, quanto aos pedófilos, sabe-se que sua
maturidade mental estacionou na infância, daí porque a atração por crianças: por
identificação. A despeito de serem normalmente tímidos, são narcisistas e têm consciência
da necessidade de uma boa imagem social como álibi ou até mesmo para facilitar a sua
aproximação com as vítimas.
Por isso a negação do abuso é uma constante. Quando muito, o pedófilo se escusa
afirmando que a vítima lhe seduzira ou que estava fazendo o bem a ela com a iniciação
sexual. Mesmo cuidando-se de vítimas crianças.
Apesar das tentativas de se traçarem um perfil genético e psicológico do abusador
sexual infantil, não é possível afirmar que exista uma causa determinante. O que há são
diversos fatores que podem de alguma forma contribuir para a eclosão do abuso sexual
infantil. Assim, pode-se dizer que a explicação do abuso sexual infanto-juvenil é
multifatorial.
Nessa esteira, faz todo sentido a afirmação de Trindade (2013, p. 43-44), baseado em
autores estrangeiros (Finkelhor e Sanderson), quando elenca fatores individuais do agente,
ligados também à pessoa do abusador, da vítima e da família; bem como fatores sociais e
culturais, todos agrupados em quatro condições que precisam estar presentes para que o
abuso aconteça.
Logo, infere-se que afora aquelas questões ligadas ao gênero e geração, a violência
sexual infanto-juvenil não possui rosto próprio. Ou seja, é impossível afirmar que alguém
seja mais propenso a ser autor.O mais próximo que se alcançou é a constatação de fatores
de risco de um abuso sexual infanto-juvenil.
Nesse sentido, Habigzang citando Koller (op cit. p. 342) elenca os nominados fatores
de risco:
essa não é uma estatística capaz de retratar com fidelidade as características sociais do
abuso sexual infantil.
Novamente é preciso considerar a cifra negra existente nessa espécie de infração
penal. Por terem limitadas alternativas, ao tomarem conhecimento de um abuso sexual
infantil no seio familiar, as famílias menos abastadas se socorrem do auxílio da polícia, dos
órgãos de defesa dos direitos da criança e do adolescente ou da rede pública de saúde.
Então, por imperativo legal (art. 245, da Lei nº 8.069/90) aqueles órgãos devem deflagrar o
procedimento oficial de verificação de situação de risco daquela criança ou adolescente,
inclusive por meio de investigação criminal, fazendo com que aquela situação se torne
conhecida nas estatísticas oficiais.
De outro lado, em famílias mais abastadas, o comportamento é totalmente inverso. A
polícia, o conselho tutelar e de forma geral as agências estatais apenas são comunicadas do
abuso sexual infantil quando inevitáveis tais comunicações. A condição socioeconômica dos
envolvidos permite que a situação tente ser solucionada por vias alternativas, como a ajuda
psiquiátrica ou psicológica.
Contudo, a questão econômica, embora não possa ser considerada uma
promovedora do abuso sexual infantil intrafamiliar, pode ser catalogada como fator
facilitador quando o abusador é o provedor do lar e submete todos os demais integrantes
da família aos seus caprichos. Nessas situações, ele não encontra limites ao seu instinto e o
abuso sexual acaba se tornando um segredo familiar em nome da sustentabilidade dos seus
integrantes.
Não há dúvidas de que a melhor política de tratamento da violência sexual infanto-
juvenil intrafamiliar é a preventiva, já que evita todos os danos decorrentes do abuso
sexual.
4 Da vítima
intrafamiliar em um bebê de meses de idade com o de uma criança com idade escolar.
A capacidade de intelecção, sobretudo de compreensão das circunstâncias a seu
redor, da criança em fase estudantil é superior e por isso é mais propensa a armazenar o
fato abusivo durante toda a sua vida.
A repetição da violência sexual intrafamiliar, sem dúvida, em razão da submissão da
vítima a estresses contínuos, tem o condão de trazer maior dano psicológico a ela se
comparado a um episódio único e isolado.
O emprego de violência física ou o tipo de ameaça utilizada pelo abusador para
conseguir o silêncio da vítima também atuam de forma diferenciada no psiquismo da
vítima, podendo contribuir para quadros traumáticos mais agudos. Na realidade, as
circunstâncias externas do abuso em geral – como a forma que ele é praticado e tipo de
abuso sexual ocorrido – podem alterar substancialmente as consequências da experiência
abusiva à vítima.
É compreensível que num relacionamento afetivo haja a presença da confiança e do
sentimento de estima pelo próximo, o que instintivamente redunda na expectativa de
proteção entre os envolvidos. Daí porque o grau de afetividade existente entre a vítima e o
abusador pode influenciar sobremaneira as consequências traumáticas para a pessoa
abusada.
Nesse trilhar o abuso sexual infanto-juvenil intrafamiliar, quando perpetrado pelo
pai em face dos filhos, é potencialmente danoso. Pois, representa a quebra de todas as
expectativas legítimas da prole em relação ao seu genitor: de cuidado, de carinho, de amor
etc.
A reação da família após a revelação do abuso sexual por parte da vítima, bem como
a existência de equipe especializada para acolhê-la nesse difícil momento, também são de
Não há dúvidas de que o ser humano tem uma história e que está
envolvido por circunstâncias. O homem é, a um só tempo,
determinado e determinante, personagem e autor, refém e herói de
sua própria biografia. Assim como existem fatores de risco para uma
determinada condição, e a pedofilia pode ser uma delas, existem,
também, fatores de proteção que, interpondo-se na história de cada
um, evitam que um determinado comportamento aconteça. O homem
não é um mero mecanismo de causa e consequência, um feixe de
estímulos-respostas. Entre o estímulo e a resposta, intercalam-se
infinitas agências organísmicas que também fazem parte do processo
de constituição do sujeito. Afora isso, a capacidade de superação que
habita em cada ser humano é sempre surpreendente e serve tanto à
vítima quanto vitimizador, pois o homem é capaz de superar
infinitamente o homem.
haja um determinismo em tais estudos, sugere-se que essa relação de causa e efeito só pode
ser evitada caso a pessoa vitimada receba auxílios externos e seja dotada de uma
personalidade resiliente.
Em seus relatos, Habigzang et al (2005, p. 345) afirmam que a vítima de abuso sexual
infantil tem fortes tendências a apresentar problemas com a sexualidade, inibição afetiva e
social (introversão ou isolamento), sintomatologia psicológica, agressividade confrontativa,
falta de limites, dificuldades na escola e – em casos extremos- tentativa de suicídio.
A experiência da violência sexual infantil intrafamiliar é deveras traumatizante para
a vítima, que normalmente é pessoa de tenra idade, incapaz de entender a razão pela qual o
seu genitor – de quem ela apenas esperava carinho e afeto- nutria preferência sexual por
ela.
Vale destacar as palavras de Andrade (1998, p. 29), que resolveu descrever o abuso
sexual que sofrera de seu genitor:
O momento da violência sexual é tão traumático para a vítima que não raro ela
procura meios de se afastar da realidade vivenciada.
Para tanto, ela se dissocia de seu corpo imaginando que não é ela a criança abusada; ou
tenta ingressar em estados alterados de consciência como se estivesse dormindo; finge que
a parte de baixo de seu corpo, durante o intercurso vaginal ou anal, não existe.
Esse processo de acomodação ao abuso, pela qual passa a vítima, tudo porque não vê
outros meios de se salvar, contribui ainda mais para que a violência sexual intrafamiliar
permaneça como um segredo entre vítima e vitimador.
Acomodando-se com o abuso sexual, a vítima passa a negar a sua existência, haja
vista que psicologicamente é como se aquele momento não tivesse existido. De fato, em
termos psicológicos, como a vítima se dissociou de seu corpo, ela não vivenciou o momento
do abuso. E por isso em alguns casos ela acredita que não ocorreu a violência.
Como explica Furnis (2002. p. 35) é um fenômeno semelhante ao que passaram os
presos dos campos de concentração. Um processo adaptativo para garantir a sobrevivência,
já que, naquele momento, o abuso para a vítima se apresenta inevitável.
Não se ignore que a violência sexual atinge a vítima em tenra idade, fase em que sua
personalidade ainda está em plena formação. Ademais, é perpetrado por aquele incumbido
afetivamente de zelar pelo bem estar da criança e fornecer-lhe afeto e amor.
Toda essa situação causa na vítima uma confusão sentimental. Ela queria
experimentar o carinho e o amor de seu genitor, mas recebe sexo. Então a criança não
aprende a distinguir o prazer sexual do amor paternal, o que lhe pode ocasionar distúrbios
com sua sexualidade.
Quando o abusador e vítima são do mesmo sexo, a confusão com a sexualidade pode
ser ocasionada porque a vítima de certa forma é estimulada ao ser tocada pelo abusador.
Esse estímulo, que em uma criança nada tem a ver com satisfação sexual de um adulto,
poderá no futuro confundi-la. Ela pode acreditar que tenha sentido prazer sexual e achar
que é homossexual.
A autoestima da criança também é afetada com a violência sexual infanto-juvenil, já
que ela se sente suja, impura e indigna.
Também é comum relatos de inibição afetiva e social por parte da vítima. De fato,
como o abuso foi praticado por pessoa de confiança da vítima (pai/padrasto), ela terá sérias
O abusador sabe que seu comportamento é proibido, bem como que ele é prejudicial
à vítima. Mas a criança está para o abusador como um objeto de alívio de suas tensões, ela
não passa de um instrumento de satisfação sexual.
A vítima funciona como uma droga que lhe dá, através do ato sexual, gratificação
sexual e alívio (BITTENCOURT, 2009, p. 63). A excitação que a criança provoca no abusador
é o elemento aditivo, pois cria uma estranha dependência do vitimizador pela criança.
Essa característica de reiteração do abuso sexual é particularmente destrutiva à
vítima em razão do sentimento de culpa que ela desenvolve a cada vez que é abusada.
Em razão da pouca maturidade, a vítima se sente culpada pelo abuso tão somente
por ter participado dele. Tal sentimento é reforçado quando o abusador profere ameaças
Dificilmente conseguia ficar livre dele [pai abusador]. Via, como num
filme, o rosto de meu pai, as surras que levávamos, os abusos sexuais.
Minha dignidade havia morrido e sobrara um corpo vazio (ANDRADE,
1998, p. 95).
Vale ressaltar que esse pode ser o início de um ciclo de violência, já que:
5 A família envolvida
Para efeitos do abuso sexual infantil, o estudo da família ganha especial relevo
porque se percebe que a existência de disfunção familiar é frequente em casos de violência
sexual infantil intrafamiliar.
Na pesquisa de Habigzang et all (2005, p. 342), constatou-se que:
conduta delinquente.
De outro lado, Furniss (2002, p. 60) também identifica famílias em que o abuso
sexual é utilizado como uma fuga dos conflitos subjacentes existentes entre os membros.
Ignoram-se tais conflitos para responsabilizar a violência sexual infantil intrafamiliar como
o fator da desagregação da família. Nessas famílias há um sério risco de seus integrantes se
voltarem contra a criança vitimada, responsabilizando-a como um bode expiatório.
Assim como o comportamento do grupo familiar pode representar fator de risco
quanto à violência sexual infantil intrafamiliar, a postura da família – após a revelação do
abuso- repercute diretamente na intensidade do trauma vivenciado pela vítima. E pode ou
não contribuir à superveniência de uma vitimização secundária e até terciária.
Quando a vítima tem como aliada a sua família, o seu processo psicológico parece
fortalecer-se e a abusada desenvolve uma estrutura psicossocial para lidar com o trauma
vivenciado. O inverso também, infelizmente, é correto.
Nas palavras de Habizgang et all (2005, p. 346-347):
Contudo, afirmar-se que a genitora não tem responsabilidade legal pela violência
sexual vivenciada pela filha de forma alguma significa dizer que a mãe deva ser alijada do
foco interventivo estatal.
Ela tem papel fundamental no restabelecimento daquele núcleo familiar e no próprio
processo terapêutico da vítima e, por que não dizer, também na recuperação do
vitimizador.
Há um sentimento natural de cuidado para com a filha que culmina com a
autopunição da genitora ao tomar consciência da violência sexual vivenciada pela filha.
À medida que a genitora se inteira do abuso sexual que ocorria sob seus olhos, a
descarga emocional que lhe acomete pode ser insuportável se aquela mãe não contar com
um acompanhamento psicossocial.
Soma-se aos sentimentos de impotência e de fracasso no seu projeto maternal a
sensação de ser traída pelo seu parceiro sexual. Nem é preciso dizer que todas essas
circunstâncias são tormentosas para a mãe. Essa sensação de remorso pelo ocorrido e de
frustração sentimental em relação ao abusador podem chegar ao extremo de a mãe
suicidar-se. Daí a imperiosidade de ela também ser objeto de preocupação, a despeito de
não poder ser considerada responsável pelo ocorrido.
Ademais, segundo experiência de Furniss (2002, p. 30), não há relatos de “casos de
prolongado abuso sexual da criança dentro do contexto familiar em que a criança não tenha
tentado comunicar abuso a alguém dentro ou fora da família”.
Nesse sentido, é crucial a função da genitora como protetora da vítima. Pois, embora
a violência sexual também ocorra em lares onde a mãe é próxima da filha e a esta dispense
atenção e cuidados, apenas naqueles em que não há o estreitamento do vínculo mãe-filha é
que o abuso sexual se prolonga no tempo (FURNISS, 2002, p. 53).
Com efeito, na quase totalidade dos casos em que a vítima, de alguma forma
(explícita ou implicitamente) tentou revelar o abuso sexual para sua genitora e esta não lhe
deu os devidos créditos, há também uma ruptura do vínculo de confiança entre a mãe e a
filha.
A vítima, desalentada porque a mãe não lhe protegera, passa a responsabilizar esta
pelo ocorrido. O que apenas contribui para o remorso da genitora e agudiza mais o
problema, haja vista que a cisão do relacionamento mãe-filha faz com que a vítima perca
uma poderosa aliada em seu processo terapêutico de recuperação.
Ademais, em casos mais extremos é possível que a aversão materna tome
proporções tão crônicas que a filha encare a mãe como uma comparsa do abusador.
Em um de seus relatos, Andrade (1998, p. 88-89) revela que ela
Tinha brigas constantes com minha mãe. Ela ficava muito nervosa
quando eu a acusava, e me batia com um sarrafo na cabeça. Só sabia
me ridicularizar e me colocar culpa. Era comum que ela me rogasse
praga, dizendo que um dia alguém me daria o troco para que eu
nunca mais roubasse o que era dela [referindo-se ao genitor
abusador]. Num desses episódios eu ri, lhe dizendo:
- Você acha que eu iria querer o seu marido para quê? Para que ele
violentasse a minha filha?!
Não resisti e comecei a chorar, me desabafando:
- Você acha que eu queria vocês como meus pais?! Eu tenho vergonha
de ser sua filha! Eu preferia ter morrido a ser sua filha! Você é tipo de
mãe que não merece respeito. Nunca fez questão de lutar por nós!
Há, outrossim, relatos em que se instala uma verdadeira competição entre mãe e
filha no tocante a quem será a parceira sexual do genitor abusador.
A mãe, então, também precisa ser incluída como sujeito de direitos e pessoa digna de
atenção por parte do Estado em caso de violência sexual infantil intrafamiliar. Embora não
seja legalmente responsável pelo ocorrido, salvo raríssimas exceções em que há a
consciência e vontade de a genitora compactuar com a violência sexual.
Ademais, a própria família, porque o aludido abuso repercute em todos que o
vivenciaram, igualmente necessita da atenção estatal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência sexual infantil intrafamiliar é tema deveras complexo e suscita diversas
discussões. Então, paradoxalmente, a conclusão na realidade representa apenas o início de
uma reflexão em termos de pesquisa científica. Não se tem a pretensão de esgotar o debate
sobre o tema e sim de contribuir ao pensamento científico oferecendo à comunidade
acadêmica uma abordagem acerca dos envolvidos nesse recorrente drama humano.
Ela é uma das formas mais perversas de manifestação da violência no âmbito
familiar, notadamente quando assume a forma incestuosa (de pai contra filhos). Além de
representar uma desigualdade de gênero e de geração, já que a forma mais comum de
manifestação do incesto é do pai/padrasto contra a filha.
Ao cabo da análise ora proposta, pode-se afirmar que as expressões “pedófilo” e
“abusador sexual infantil”, conquanto causem traumas semelhantes às vítimas, não são
sinônimas.
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