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A Ararinha e o Encantado Do Arari

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A ARARINHA E O ENCANTADO DO ARARI

Luiz Antonio Simas

Uma das maiores aventuras civilizatórias da brasilidade é a do encontro entre a


tradição do culto aos voduns do Maranhão, na linha do Tambor de Mina, e a
pajelança indígena do Pará. O Tambor de Mina ganhou outras cores,
absorvendo novas entidades ao seu panteão. Essa é a força arrebatadora da
encantaria de caboclo.

Não custa lembrar que na encantaria o termo caboclo não é sinônimo de


indígena, podendo ser utilizado para nomear entidades de variadas origens. Os
caboclos, ou encantados, se organizam em famílias, com um chefe e suas
linhagens, que abrangem turcos, índios, reis, nobres, marujos, princesas,
beberrões, arruaceiros, tangedores de boiadas, bichos e canoas.

As encantadas e encantados não são espíritos dos mortos; são pessoas, ou


animais, que viveram, mas não chegaram a morrer; sofreram antes a experiência
do arrebatamento: foram madrugar no invisível. De vez em quando saem de lá
e vêm à terra, para dançar, dar conselhos, curar doenças, jogar conversa fora e
matar a saudade. Seguem abaixo as principais famílias encantadas:

FAMÍLIA DO LENÇOL: A família mais famosa de encantados. No fundo do mar


da praia dos Lençóis - em Curupupu - mora o Rei Dom Sebastião, que encantou-
se durante a batalha de Alcácer-Quibir. Essa família é formada apenas por reis
e fidalgos. A vinda do Rei Dom Sebastião ao corpo de uma sacerdotisa é muito
rara, alguns afirmam que ocorre de sete em sete anos. Da família fazem parte
ainda, dentre outros, Dom Luís, o Rei de França; Dom Manoel, conhecido como
o Rei dos Mestres; a Rainha Bárbara Soeira; Dom Carlos, filho de Dom Luís, e
o Barão de Guaré. Em alguns ramos da encantaria fala-se na FAMÍLIA DA
GAMA , que também seria formada por reis, rainhas e fidalgos.

FAMÍLIA DA TURQUIA: É chefiada por um rei mouro, Dom João de Barabaia,


que lutou contra os cristãos. É a esta família que pertencem as irmãs Mariana,
Jarina e Herondina, as princesas que vêm ao mundo não apenas na forma de
turcas, mas também como marinheiras, ciganas, índias ou aves de belas
plumagens. Em algumas casas, a Família da Turquia é incorporada à Família do
Lençol.

FAMÌLIA DA BAHIA: Família de encantados farristas, que gostam de beber, têm


a sexualidade aflorada e vivem arrebatados em mundanidades, como em
esquinas, bares, rodas de samba e capoeiras.

FAMÌLIA SURRUPIRA: Família composta por índios que não foram


catequizados; versados nos segredos da pajelança. Trabalham com as artes da
cura e são profundos conhecedores da medicina das plantas.

FAMÍLIA DA MATA: Também conhecida como "família de Codó", é formada por


vaqueiros, boiadeiros, índios e negros que saíram do litoral maranhense e forma
arrebatados nas matas próximas à cidade de Codó.

FAMÍLIA DA BANDEIRA: Formada por desbravadores das matas, caçadores de


onça, mateiros e pescadores que se encantaram durante suas atividades.

Confesso meu especial apreço pela cabocla Mariana; ela é encantada e


encantadora; uma turca que passou pelo arrebatamento ao chegar ao Brasil,
com suas irmãs Rondina e Jarina e seu pai, Dom João de Barabaia. Desde
então, cruza caboclamente as nossas terras, se apresentando como índia,
cigana, marinheira e arara de belíssima plumagem voadeira. Entre o humano e
a natureza, afinal, ensina a encantaria que há imbricamento, e não dicotomia.

Tomando Mariana como exemplo, percebo que, mais do que fenômeno religioso,
a encantaria é um campo fecundo para se pensar as artes da alteridade, do
trânsito pelo transe, da necessidade de se relacionar com o outro, da aventura
de pensar as linguagens do corpo como campo de possibilidade plurais para
experiências de liberdade.

A encantaria traz o cruzamento entre as diferenças que se encontram no


arrebatamento. O encantado é um encorpado que já nem corpo é e só corpo
tem. É aquele que se colocou disponível para mudar, alterar o corpo, transformar
a experiência, atravessar e enxergar de outras formas a vida como caminho de
negação da mortandade. No ponto de chamamento do encantado Japetequara,
rei da família Surrupira, tanto estrondo deu aldeia, que aldeia balanceou! E o
índio velho brasileiro, caboclo de Canindé, bradou na Barra do Arari às margens
que tangenciam o dia: Lagoa grande secou, todos morreram, eu não morri!

Quem não vê nisso um manancial para a elaboração reflexões é porque está


mesmo normatizado pelas gramáticas enfadonhas do desencanto. Neste
aspecto, não há saída para a crise em que estamos mergulhados até o pescoço
se nossas perspectivas de reconhecimento do outro não forem alargadas,
inclusive no terreno fértil da teoria do conhecimento e das reflexões sobre o ser.

Chama a batalha! Urge o enfrentamento no campo das representatividades e na


disputa política imediata. Mas isso não contradiz, antes pelo contrário, a tarefa
de arrebatar cotidianamente o mundo pela mirada das alterações das gramáticas
de percepção da vida, para que não sejamos cachorros que tentam morder os
próprios rabos.

A saída está na nossa cara. Ela exige, todavia, que a resistência seja só um
aspecto do ato maior da retomada da existência como pernada transformadora
de mundo. Reexistir: isso é coisa que Mariana faz em sua trajetória
descolonizada e sublime de cabocla da Turquia e, ao mesmo tempo, ararinha
nossa. Enquanto Japetequara canta no Arari, ela é pássara que, burlando a
morte, alça voo maior do que a vida que lhe fora reservada.

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