Claudia Davis
Claudia Davis
Claudia Davis
CLAUDIA DAVIS
Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação da PUC-SP
cdavis@fcc.org.br
RESUMO
O objetivo desse artigo é identificar como os conceitos de Vigotski foram apropriados por autores
vinculados à área da Psicologia da Educação que divulgaram seus trabalhos no Brasil, bem como
suas metas e o momento em que tais idéias foram aqui utilizadas. Serviram de base para a
pesquisa os artigos publicados nos Cadernos de Pesquisa – revista da Fundação Carlos Chagas –, que
citavam, nas referências bibliográficas, alguma obra de Vigotski. Foram encontrados 37 artigos,
entre 1971 e 2000. A produção foi organizada por década e analisada por meio de categorias
construídas a posteriori. Os resultados mostram que os trabalhos que fizeram uso dos conceitos de
Vigotski não avançaram suficientemente do ponto de vista teórico, ficando restritos aos processos de
desenvolvimento e aprendizagem, bem como à relação entre pensamento e linguagem.
VIGOTSKI L. S. – PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO – DESENVOLVIMENTO COGNITIVO –
CADERNOS DE PESQUISA
ABSTRACT
O texto apresenta alguns dos resultados da pesquisa desenvolvida como requisito parcial para a
obtenção do título de mestre em educação: Psicologia da educação da PUC-SP.
by authors related to Education Psychology in Brazil, as well as their aims and the moment in
which such ideas were here employed. The basis for this research was the whole of articles
published in Cadernos de Pesquisa, journal of Fundação Carlos Chagas, which mentioned, in
their bibliographical references, any work of Vygotsky. Since 1971 up to 2000, 37 articles were
found. The production was organized by decade and analysed through categories built a posteriori.
The results have shown that works based on Vygotsky concepts not only did not advance sufficiently
from the theoretical point of view, but were also restricted to development and learning processes
and to the relationship between thought and language.
VYGOTSKY – EDUCATIONAL PSYCHOLOGY – COGNITIVE DEVELOPMENT – CADERNOS
DE PESQUISA
1 Ainda não há no Brasil uma padronização na forma de grafar o nome do autor. As edições
norte-americanas e portuguesas utilizam Vygotsky, enquanto nas Obras escogidas, de tradu-
ção espanhola, a grafia adotada é Vygotski. Em outras traduções espanholas e também em
trabalhos publicados recentemente no Brasil, é utilizada a grafia Vigotski, que mais se aproxi-
ma da russa. Esta última será adotada no trabalho, porém, serão respeitadas as formas utiliza-
das pelos autores referenciados no texto.
idéias de Vigotski, sobretudo por uma limitação de tempo. Daí o fato de sua
abrangência ter sido reduzida: investigaram-se apenas os artigos encontrados
nos Cadernos de Pesquisa, que publica estudos referentes a diferentes discipli-
nas, como: Educação, Psicologia, Psicologia da Educação, Sociologia da Edu-
cação, Filosofia da Educação, entre outras.
MÉTODO
Com relação aos objetivos dos textos, 21,6% deles eram “estudos teó-
ricos”; 29,8% relacionavam-se ao processo “ensino-aprendizagem”; 18,9%
referiam-se à “educação infantil”; 24,3% à “formação e prática docente”, e 2,7%
Sobre o tema educação infantil, 2,7% dos textos tiveram como objeti-
vo o “resgate da importância da atividade física no desenvolvimento infantil”
(apenas na década de 1990) 10,8% discutiram a “relação com e sobre crian-
ças em creche” (2,7% na década de 1980 e 8,1% na década de 1990), e 5,4%
se referiram “à construção, à importância do brincar e às concepções de in-
fância” (apenas na década de 1990).
Outro tema abordado nos textos, a formação e prática docente, refe-
re-se à “produção do fracasso escolar” (2,7% na década de 1980), “forma-
ção docente” (2,7% na década de 1980 e 8,1% na década de 1990), “iden-
tidade do professor” (2,7% na década de 1980), “prática docente com relação
à saúde” (abordado apenas na década de 1990 representando 2,7%) e “re-
lações interpessoais no cotidiano escolar” (2,7% em cada uma das décadas
estudadas).
Objetivos como “análise ou proposta de um programa de alfabetização”,
“relações com e sobre crianças em creche” e “formação e prática docente”
foram os que mais se destacaram na década de 1990. Todos eles estão rela-
cionados à situação educacional brasileira no período, que buscou deslocar o
foco dos problemas da figura do aluno para outros aspectos, como o papel do
professor e a relação didático-pedagógica.
A “análise ou proposta de um programa de alfabetização” cresceu em
meio a tentativas do setor educacional de encontrar melhores maneiras de al-
fabetizar os alunos, já que as propostas da pedagogia tradicional não atendiam
mais às necessidades nem do aluno nem do professor.
Os textos que trataram da “educação infantil”, especificamente das “re-
lações com e sobre crianças em creche”, corresponderam às discussões cul-
minadas com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases – LDB – em 1996.
Nela, a educação infantil é concebida como etapa integrante da educação bá-
sica, fazendo-se necessário esclarecer qual a importância dessa primeira etapa
da educação formal e como esta poderia auxiliar e/ou intervir no desenvolvi-
mento do processo educacional.
Na década de 1980, também começaram as discussões sobre a relevân-
cia, para o desenvolvimento infantil, de crianças pequenas relacionarem-se com
outras de mesma idade, não restringindo nem privilegiando as relações dessas
crianças com adultos, notadamente com os pais. Tais discussões buscam mos-
trar que a creche pode ser um local educativo e não cumprir apenas a função
de guarda, cuidando das crianças durante o período de trabalho dos pais.
TABELA 1
CONCEITOS DE VIGOTSKI UTILIZADOS PELOS AUTORES
Década
Total
Conceito Especificidade 80 90
do conceito %
% %
concepção e função da linguagem 1,4 1,5 2,9
concepção e função da escrita 5,7 4,3 10,0
Linguagem
leitura e escrita 1,4 1,4
desenho (arte na infância) 1,4 1,4
relação sentido/significado 1,5 1,4 2,9
Pensamento e mediação semiótica-simbólico 1,4 7,2 8,6
linguagem relação entre pensamento e linguagem 1,4 4,3 5,7
funções psicológicas superiores 1,4 1,4
gem (34,5%), que são justamente aquelas que sofreram modificações por parte
de seus organizadores e tradutores, principalmente nos pontos em que Vigotski
discute o método científico que adota. Se considerarmos que a versão em
português (do Brasil) para as duas obras teve como base a versão inglesa (que
fez as alterações) do original russo, verifica-se que 68,3% das obras consulta-
das nos textos pesquisados apresentam problemas.
Obras que sofreram várias traduções não são geralmente fiéis às idéias
do autor, podendo implicar prejuízos na apropriação de seus principais con-
ceitos, principalmente quando somente elas são consultadas. Ainda que este
seja o caso dos textos de Vigotski, não estamos afirmando que problemas de
tradução implicariam necessariamente, inviabilidade de uso; tampouco sugeri-
mos que a apropriação dos conceitos de Vigotski por todos os autores dos
textos analisados apresenta problemas2. Mas é importante alertar sobre o as-
sunto, para que outras fontes sejam buscadas para melhor aprimoramento e
apreensão de tais conceitos.
As outras obras de Vigotski consultadas foram pouco utilizadas, talvez
pelo fato de muitas delas serem editadas em outra língua que não a portugue-
sa. Esse fato dificulta tanto o acesso ao conjunto da obra vigotskiana, como a
elaboração de uma visão mais ampla e aprofundada acerca do pensamento do
autor. Além disso, exceção feita às obras em português, as demais só se en-
contram disponíveis em poucas livrarias (aquelas que trabalham com importa-
ção) e com preço mais elevado do que os livros nacionais. Esse é o caso, por
exemplo, de Obras escogidas, da editora Visor, da Espanha. A isso se somam
as condições objetivas de trabalho do professor (desvalorização da profissão,
má remuneração, falta de condições adequadas de trabalho, entre outras) em
todos os níveis da educação no Brasil, impondo limites concretos para se es-
tudar Vigotski.
É interessante notar, também, que houve pouco interesse das editoras
brasileiras em traduzir os trabalhos de Vigotski. Assim, depois da obra Lingua-
gem, desenvolvimento e aprendizagem, publicada em 1988, somente em 1996
foram publicadas outras, como Estudos sobre a história do comportamento:
símios, homem primitivo e criança e Teoria e método em psicologia. A partir de
1998, aparecem outras: O desenvolvimento psicológico na infância (1998), Psi-
2 Sobre a forma pela qual alguns autores se apropriaram dos conceitos vigotskianos, ver Duarte
(2001).
para aqueles que se vinculam a outras vertentes teóricas. De fato, tanto para
o avanço científico como para se criticar uma teoria, é necessário o conheci-
mento de suas bases epistemológicas. Daí a importância de se dar nome à teoria
ou identificar a qual escola ela está vinculada.
Os textos que nomearam a escola de Vigotski foram separados em dois
grupos: os que consideraram que há uma base interacionista e/ou construtivista na
teoria vigotskiana e os que priorizaram o aspecto histórico. No primeiro grupo
alocamos os que denominaram a escola de Vigotski interacionista (2,6% na déca-
da de 1990, não aparecendo na década anterior), sociointeracionista (12,9% sen-
do 7,7% na década de 1980 e 5,2% na década de 1990), construtivista ou
socioconstrutivista (2,6% nas duas décadas, totalizando 5,2%) e, ainda, cognitivista
(2,6% apenas na década de 1980), totalizando 23,3% dos textos analisados. O
termo interacionista está, aparentemente, relacionado aos estudos de Janet, cien-
tista francês que, para alguns pesquisadores, teria influenciado tanto Piaget como
Vigotski, em razão de estes privilegiarem a interação do indivíduo com o meio.
Piaget teria dado ênfase aos aspectos biológicos na interação, enquanto Vigotski,
aos aspectos sociais. Daí o termo sociointeracionista, em que o prefixo “sócio”
marca a diferença teórica entre Piaget e Vigotski.
A denominação construtivista sinaliza que Vigotski, assim como Piaget, par-
te do princípio de que o conhecimento é construído. O termo “sócio” no socio-
construtivismo teria a mesma função que tem na palavra sociointeracionismo. A
justificativa para se colocar a teoria de Vigotski entre as cognitivistas reside no fato
de esse autor ter estudado as funções psicológicas superiores que compõem o
aparato cognitivo do homem. A autora de um dos textos analisados posiciona-se
da seguinte forma sobre a denominação da escola de Vigotski:
...há muitos pontos em comum entre Vigotski e Piaget, a começar pela linha
cognitivista, construtivista-interacionista, que se encontra na base teórica dos tra-
balhos de ambos.(...) Apesar do termo (...) vir tradicionalmente ligado à obra de
Piaget, acreditamos não ser impertinente, portanto, aplicá-lo às posições teóricas
de Vigotsky e Luria, ressalvando tratar-se aqui, evidentemente, de um sociointera-
cionismo, cujo enfoque principal é de raiz histórico-dialética, visto sob a luz da teoria
marxista. (Rocco, 1990, p.26-27)
A palavra história (psicologia histórica) para mim significa duas coisas: 1) abordagem
dialética geral das coisas – neste sentido qualquer coisa tem sua história (...); 2) his-
tória no próprio sentido, isto é, a história do homem. Primeira história – materialis-
mo dialético, a segunda – materialismo histórico. As funções superiores, diferente-
mente das inferiores, no seu desenvolvimento, são subordinadas às regularidades
históricas (...). Toda a peculiaridade do psiquismo do homem está em que nele são
unidas (síntese) uma e outra história... (2000, p. 23)
A palavra social em aplicação no nosso caso tem muitas significações: 1) mais geral –
todo cultural é social; 2) sinal – forma do organismo, como instrumento, meio social;
3) todas as funções superiores constituíram-se na filogênese, não biologicamente, mas
socialmente; 4) mais grosseira – significação – os mecanismos dela são uma cópia do
social. (2000, p.26)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ples nem tampouco fácil de ser aplicado à realidade, exigindo, entre outras
coisas, superar o aparentemente percebido, tentando alcançar a essência dos
fatos. Para isso, cabe aprofundar a formação, estudando as obras de Marx,
Leontiev e Luria, por exemplo.
A categoria “conceitos vigotskianos utilizados” demonstrou que os pes-
quisadores relegaram a segundo plano os estudos sobre a consciência, a rela-
ção entre sentido/significado e as emoções, restringindo, muitas vezes, a con-
cepção de homem adotada por Vigotski ao aspecto da interação. Quando se
aborda a mediação semiótica, alguns autores desconsideram que o signo sur-
ge a partir da atividade do indivíduo. E estudar o signo, sem a dimensão da
atividade, é descaracterizar a obra vigotskiana.
As análises deste trabalho indicaram que Vigotski parece ser “famoso” só
de nome. Pouco se sabe, de fato, dele e de sua produção. Parece que os pes-
quisadores que divulgaram seus trabalhos nos Cadernos de Pesquisa trabalha-
ram na zona de desenvolvimento real de Vigotski, não em sua zona de desen-
volvimento proximal. Dessa maneira, fica patente a necessidade de sistematizar
o que foi apropriado e produzido acerca de Vigotski no Brasil, algo apontado
por Oliveira desde 1993. Sugerimos, assim, a elaboração de um “estado da
arte”, que permita visão mais ampla da penetração da proposta de Vigotski no
Brasil. Parece ser também importante avaliar a forma pela qual os trabalhos do
autor articulam-se com o de seus colaboradores e continuadores. Esperamos
que este trabalho contribua para a compreensão do que foi apropriado de
Vigotski no Brasil, fornecendo, ainda, para aqueles que pouco conheciam sua
obra, melhor apreensão de seus propósitos e conceitos, o que lhes permitirá,
quem sabe, identificar-se com eles.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS