Relação de Dependência Revertida Na Díade Mãe-Bebê
Relação de Dependência Revertida Na Díade Mãe-Bebê
Relação de Dependência Revertida Na Díade Mãe-Bebê
Abstract
1
A DEPRESSÃO TRANSMITIDA ATRAVÉS DA RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA
REVERTIDA NA DÍADE MÃE-BEBÊ
Introdução
Neste trabalho procuro discutir, sob o vértice da teoria winnicottiana, a demanda de
dependência que se apresenta na díade mãe-bebê e suas derivações na relação
analítica, assim como o manejo da técnica psicanalítica e a compreensão da dinâmica
emocional que pode vir a se estabelecer na relação transferencial. Destaco a relação de
dependência revertida como geradora e transmissora de uma experiência emocional
depressiva difícil de ser transponível sem um trabalho analítico.
Saliento a importância do manejo do tipo de dependência na situação analítica, em
especial a demanda de dependência revertida, ilustrando com fragmentos de uma
análise. A seguir, dirijo-me às derivações do conceito de objeto transicional enquanto
uma metáfora, positiva ou negativa, útil para a compreensão das relações de
dependência na díade mãe-bebê e suas repercussões no setting analítico.
Acredito que a investigação clínica sobre o tipo de demanda à dependência que se
apresenta na relação analítica vai determinar o manejo da técnica e a compreensão da
dinâmica emocional que pode vir a se estabelecer na transferência e contratransferência.
Segundo Winnicott1, nos primeiros momentos da relação mãe-bebê, a mãe experimenta
uma regressão à dependência que a possibilita compreender e atender o desamparo
vivido pelo bebê. O bebê, por sua vez, vive uma relação de dependência absoluta. Assim,
se estabelece uma relação fusional na díade mãe-bebê que, a seu tempo, através da
desilusão e dos fenômenos transicionais, essa demanda à dependência vai se alterando
a favor do desenvolvimento do bebê. Se a mãe não pôde viver esses primeiros estágios
da relação mãe-bebê suficientemente bem, ela experimenta uma demanda à
dependência revertida 2, que vai se reeditar na relação com seu bebê e na relação
analítica.
O manejo da temática de dependência na situação analítica
Qual a importância para nosso trabalho analítico de se distinguir o tipo de demanda de
dependência emocional que o bebê estabelece com a mãe e, em especial, da mãe em
relação à criança, demanda de dependência revertida?
Os aspectos estruturantes ou fundantes da realidade psíquica do sujeito
necessariamente nos remetem a relação mãe-bebê. Todos os autores, Freud, Klein,
Winnicott, Lacan..., em suas metapsicologias, apontam para a história da evolução do
bebê que, em algum momento, terá que "transitar" nessa relação inicial e iniciante mãe-
bebê, para se constituir num sujeito-ser individual. Nesse sentido, Winnicott chama
atenção para o fenômeno transicional como um fenômeno intermediário fundamental
para propiciar o desenvolvimento psíquico do bebê.
Essa preocupação, a meu ver, é fundamental para nortearmos nossa práxis e técnica
psicanalíticas, e verificarmos que tipo de transferência o paciente psicótico/borderline vai
estabelecer com o analista, e os possíveis fenômenos contratransferenciais que podem
ser despertados (no analista).
1
D. W. Winnicott, “Teoria do relacionamento paterno-infantil” in: O ambiente e os processos de maturação:
estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional, Porto Alegre, Artes Médicas, (1960) 1990, p. 38-54.
2
Conceito definido por Raquel Z. Goldstein no trabalho "El Niño como Objeto Transicional de la Madre:
Demanda de Dependência Revertida", anais do III Encontro Latino-Americano Sobre o Pensamento de
Winnicott, 1994.
2
A captação das fantasias do paciente, que se refletem na contratransferência, dependerá
do grau em que o próprio analista perceba seus processos contratransferenciais, ou seja,
a continuidade e a profundidade de seu contato consciente consigo mesmo. 3
Aqui cabe a pergunta de qual é de fato o papel do analista. O paciente que estabeleceu
uma relação com uma figura materna da qual não pôde depender, deve reviver com o
analista a confusão e o desamparo dessa experiência. Não teria o analista, como a mãe
suficientemente boa, que suportar transitoriamente, as amorfias e os estados caóticos,
sem orientação do paciente, para que esse possa viver em segurança este estado de
não-integração? E, ainda, posteriormente, venha penetrar na área da transicionalidade e
chegar a usar o analista como uma pessoa real e separada, tendo ele mesmo o
sentimento de ser? E será o analista capaz de suportar todo esse processo, que inclui a
desilusão, tão imprescindível para o desenvolvimento e crescimento emocional?
É preciso entender a natureza do desamparo que se instala na regressão à dependência.
Não se trata aí de satisfação do desejo porque o paciente (como o bebê) é ainda muito
imaturo para desejar algo. Se nesses casos o analista atuar como um objeto gratificante
será esta a função analítica necessariamente boa? Penso que esta seria uma má
interpretação do que descreve e prescreve Winnicott. É comum o analista, ao tentar
promover um ambiente facilitador e a regressão, atender à demanda de desamparo do
paciente, pensando não poder frustrá-lo ou desiludí-lo. Confunde o analista ideal
gratificante com o analista suficientemente bom.
Quando destaca a importância do manejo nas vivências de dependência, Winnicott
privilegia os sentimentos de desamparo infantil que precisam ser vividos tal qual
emergem e, nesse sentido, ele altera a visão kleiniana que privilegia os sentimentos
sádicos.4 Disso também deriva uma noção errônea de que o analista winnicottiano não
poderia frustrar o paciente, gerando muitas vezes uma relação analítica idealizada.
Winnicott está preocupado com a natureza e o momento da interpretação analíticas,
como assinala Elsa Oliveira Dias:
“a interpretação que excede a necessidade regressiva pré-verbal e pré-libidinal do paciente,
que ainda está fundido no analista, constitui-se numa invasão porque destaca, antes do
tempo, a existência separada deste e remete a um eu que ainda não está lá para ser
encontrado. Esta consciência pode ser prematura e repete o padrão de invasões
ambientais. Um outro perigo: a interpretação baseada em vida pulsional confirma, para o
paciente, que uma comunicação só pode se dar em termos do envólucro, da organização
neurótica, do falso self patológico, com o qual ele recobriu a ausência de si. Por outro lado,
é preciso, que vagarosamente, o bebê ou o paciente regredido, entre em contato com a
existência do não-eu. Nesse sentido, a interpretação, livre da chave pulsional, pode ter
outro caráter e servir de limite: 'Se não fizer nenhuma (interpretação), o paciente fica com a
impressão de que compreendo tudo. Dito de outra forma, eu retenho uma certa qualidade
externa por não acertar sempre no alvo ou mesmo estar errado’ (Winnicott, 1962, p. 153)”. 5
Raquel Z. Goldstein nos mostra, em seu trabalho, que a mãe ao se identificar com o bebê
experimenta uma condição regressiva normal, adequada e necessária, revivendo sua
relação original com a própria mãe. 6 Isso é "necessariamente" bom, porque só assim a
mãe poderá realizar a função de holding, descrita por Winnicott. É através dessa espécie
3
H. Racker, Estudos sobre Técnica Psicanalítica, Porto Alegre, Artes Médicas, 1992.
4
D. W. Winnicott, “Dependência no cuidado do lactente, no cuidado da criança e na situação psicanalítica”
in: O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional, Porto
Alegre, Artes Médicas, (1963) 1983, p. 225-233.
5
E. O. Dias, Aquém do Princípio do Prazer, Anais do III Encontro Latino-Americano Sobre o Pensamento
de Winnicott, 1994.
6
R. Z. Goldstein, El Niño como Objeto Transicional de la Madre: Demanda de Dependencia Revertida,
anais do III Encontro Latino-Americano Sobre o Pensamento de Winnicott, 1994
3
de regressão a serviço do outro, o bebê, que a mãe poderá compreender, de forma
criativa, seu infante, suas comunicações, identificando-se com suas necessidades e
vulnerabilidades. Como em qualquer exercício de holding, essa identificação não é
paralisadora, estagnante, mas pelo contrário, é metabolizadora para favorecer o
desenvolvimento do outro. A mãe suficientemente boa
“é capaz de se identificar com o bebê, receber suas demandas e gestos espontâneos,
suportar e dar suporte, permanecer lá e, sem alteração da qualidade de sua presença estar
disponível para cuidar do bebê nos momentos de tranqüilidade do holding. E assim se inicia
a humanização do bebê, e o pensar e o fantasiar se vinculam a essas experiências
primitivas. Se tudo correr bem as experiências relativas aos fenômenos transicionais virão
naturalmente e serão uma passagem para o bebê poder lidar com as ansiedades de perda
e separação”.7
A relação de dependência revertida emerge quando a mãe não sendo capaz de assumir
a função, que acabo de descrever, e angustiada ou ansiosa com o desamparo do bebê,
impele esse a ter apenas aquelas necessidades que ela possa suprir e não outras. Desse
modo, o bebê constrói uma forma de ser para evitar angustiar a mãe, cuidando dela.
Com isso, o bebê retém o gesto espontâneo e fica impedido de constituir o seu próprio
self, isto é, "o bebê vai se constituir a partir da casca e não do cerne", e não de dentro de
si.8 Vou tratar mais detalhadamente desse aspecto logo a seguir.
Raquel aponta, como a mãe suficientemente boa pretende no cuidado materno "não ser
tudo" para o bebê e nem que o bebê seja "tudo" para ela. Cabe à mãe nesta relação
sustentar a desilusão, a ruptura (função paterna), para "derrotá-lo" deste mundo
onipotente e o bebê poder nascer psiquicamente. Mas, estará o analista preparado para
tal tarefa de desilusão, fortemente experenciadas com pacientes que possuem essas
características?
Voltando à questão sobre a natureza do desamparo do paciente é preciso notar que o
analista ao invés de dar suporte a essas angústias pode favorecer uma relação
apaziguadora, isto é, "ótima" ao invés de suficiente, que é uma armadilha montada no
espaço analítico, da qual o analista deveria escapar, buscando "o campo da mãe
suficientemente boa", envolvendo o manejo do holding que contém o handling. O grau
dos estados caóticos e de não-integração do paciente e da elaboração dos aspectos
contratransferências do analista podem tornar mais complexo este campo.
A dependência revertida
Passo agora a relatar alguns fragmentos clínicos da análise de uma paciente de 35 anos,
casada e que tem uma filha, na qual acredito que podemos observar a dinâmica de uma
demanda de dependência revertida.
Lia conta que é comum sentir muito medo quando vai se deitar e a luz se apaga. Nessa
hora, especialmente quando seu marido viaja, sente medo de estar com alguma doença,
passa e repassa em sua mente se fechou a porta, se ligou o alarme da casa, se os
carros estão na garagem, onde está sua filha. Aí se recorda que está no quarto
dormindo.
Nestes momentos nada a assegura. Na maioria das vezes, o desamparo é tão grande
que coloca sua filha em sua cama para lhe fazer companhia, quando ela não vai por
conta própria. Então, se acalma e, como se tivesse sua mãe ao lado, adormece. A filha
7
D. W. Winnicott, “Objetos transicionais e fenômenos transicionais” in: O Brincar & a Realidade, Rio de
Janeiro, Imago, (1953) 1975, p. 16.
8
D. W. Winnicott, “A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional” in: Textos selecionados: da
pediatria à psicanális, Rio de Janeiro, Francisco Alves, (1950-5) 1988.
4
agora cuida dela e sua mera presença funciona como um holding necessário para
acalmar sua turbulência emocional e poder se entregar ao sono.
Lia relata momentos de muito desamparo desde muito pequena, quando ela ainda era
sua mãe viajava às vezes por dois meses. Ela ficava com os avôs.
Na pré-adolescência, quando as vivências de desamparo se reeditam, sua mãe ficou
muito doente. Recorda-se de suas visitas ao hospital. São lembranças dolorosas das
quais não gosta de rememorar. Descreve uma relação conflituosa e distante com a mãe,
e com o pai, com quem não pôde e não pode contar. Podemos imaginar que Lia não teve
uma mãe suficientemente boa e não pôde internalizar um ambiente protetor. Daí,
também, suas crises de medo e, ainda, de hipocondria, que ela relata com freqüência,
indicando uma realidade interna vazia e amortecida.
As noites de domingo são terríveis, freqüentemente cai num vazio, numa confusão
interna. A única coisa que a acalma é pensar que vai me encontrar na segunda-feira.
Raramente falta às sessões e procura trazer um material "interessante" para me agradar.
Não pode ser espontânea. As coisas duras, brigas com o marido, coisas que a
angustiam, que saem de seu campo de controle e sente que não consegue lidar, ela
procura esquecer e quando chega a me relatar, estas estão distantes emocionalmente
pois as transformou em fatos históricos. Não quer me preocupar e se tornar uma paciente
pesada para mim. Desse modo, anuncia que não pode depender.
Estes fragmentos ilustram a situação emocional de dependência revertida, na sua
vivência com a mãe, com a filha e agora na situação transferencial com a analista.
Refletindo sobre este caso clínico, vemos como Lia se perde em relação ao tempo e ao
espaço, não reconhece o que já fez, não localiza onde está e onde está a filha, não pode
ficar só. Aponta para uma vivência de desamparo, de falta de holding interno, de uma
experiência primitiva que falhou no período da não-integração, quando o que ela
necessitava era entregar-se ao ambiente e deixar-se cuidar. Deixada a si mesma, perde-
se, desorienta-se, desorganiza-se emocionalmente.
Quando cuida da analista repete na transferência a impossibilidade de viver a
dependência e ao mesmo tempo tenta descobrir quem é a analista e se pode confiar.
Nunca pôde depender. Provavelmente não pôde contar com a constância e sustentação
emocional que deveria ser oferecida no início da vida pela mãe suficientemente boa e
relaxar diante de alguém com quem de fato pudesse contar. Sua mente foi então
obrigada a fazer o papel do ambiente protetor, ficar alerta o tempo todo para cuidar da
mãe e não pesar. Hoje não pode ser simplesmente a mãe suficientemente boa.
Superprotege a filha, não a imagina como alguém com recursos próprios que possa
suportar frustrações, ausências e separações, e também não a deixa depender dela.
Dizendo para si mesma, estar tomando conta da filha, Lia depende da filha para acalmar
seus medos, para dormir.
No sentido geracional, posso imaginar que esta paciente que viveu este nível de
desamparo com uma mãe ausente e deprimida fica identificada com a filha
desamparada, tornando-se uma mãe "ótima-intrusiva" para atender ao seu desamparo e
não ao da filha.
Não pôde viver a ilusão da onipotência e transfere para a relação analítica a experiência
de não poder reviver a situação de dependência absoluta com a analista.
Quando Lia cuida da analista e traz somente as coisas boas, como presente que sacia a
analista, parece uma tentativa de comunicar que as interpretações podem ser vividas
como invasivas, o que é típico da experiência de dependência absoluta. O que o paciente
necessita, no resgate do estado de não-integração, é que o analista permita-lhe viver tal
5
qual é, entregue a si mesmo e à sua confusão, sem a tarefa prematura de ordenação do
caos. Para tanto, é preciso que o analista possa suportar e sustentar essa situação sem
apressá-la e sem, ele próprio, sucumbir à necessidade de organizar tudo e dar-lhe
sentido. É importante neste cenário que o analista possa sobreviver a estes momentos de
não-existência a que o paciente o obriga, em função de viver, pela primeira vez, a ilusão
de onipotência. Mais tarde, ele terá que sobreviver, a favor do crescimento do indivíduo,
aos ataques destrutivos do paciente, referentes à sua tentativa de colocar o analista fora
da área do controle onipotente.
Com estas vivências de confusão, medo e desamparo poderíamos pensar que a paciente
traz seus aspectos psicóticos, abrindo espaço para encontrar seu verdadeiro self. A sua
possibilidade de vir-a-ser, a sua capacidade de ter um self temporo-espacial parece ter
ficado abalada, sobretudo do ponto de vista da personalização: residência da psiquê no
corpo e da imagem de si mesma, que não pôde ser refletida pelo rosto da mãe. Diz
Winnicott em seu trabalho O Papel de Espelho da Mãe e da Família no Desenvolvimento
Infantil:
"Alguns bebês não abandonam inteiramente a esperança e estudam o objeto e fazem tudo
o que é possível para ver nele algum significado que alí deveria estar, se apenas pudesse
ser sentido. Alguns bebês, tantalizados por esse tipo de relativo fracasso materno, estudam
as variáveis feições maternas, numa tentativa de predizer o humor da mãe, exatamente
como todos nós estudamos o tempo. ... Se o rosto da mãe não reage, então o espelho
constitui algo a ser olhado, não a ser examinado." 9
Não apenas a mãe ausente e deprimida, como a de Lia, mas também outros tipos de
distúrbios emocionais da mãe podem interferir na facilitação ou não da constituição do
self do bebê, como Winnicott assinala no trabalho O Relacionamento Inicial entre uma
Mãe e seu Bebê:
"Num extremo, temos a mãe cujos interesses próprios têm caráter tão compulsivo que não
podem ser abandonados e ela é incapaz de mergulhar nessa extraordinária condição que
quase se assemelha a uma doença, embora, na verdade, seja bastante indicativo de boa
saúde. No outro extremo, temos a mãe que tende a estar sempre preocupada, e nesse
caso o bebê torna-se sua preocupação patológica. Essa mãe pode ter uma capacidade
especial de abdicar do próprio self em favor da criança, mas qual o resultado final disso? É
normal que a mãe vá recuperando seus interesses próprios à medida que a criança lhe
permite fazê-lo. A mãe patologicamente preocupada não só permanece identificada ao seu
bebê por um tempo longo demais, como também abandona de súbito a preocupação com a
criança, substituindo-a pela preocupação que tinha antes do nascimento desta." 10
É possível que a mãe não possa se separar do bebê tão logo seja necessário para ele se
desenvolver. E então, perdura a dependência revertida, em que o bebê vem atender à
demanda de necessidades emocionais da mãe, que não pode se separar dele, mantendo
a fusão inicial. O bebê, então, "aprende a ter aquelas necessidades que dão à mãe a
sensação de se sentir viva" 11 e atuante, encarregando-se de mantê-la assim. Caracteriza-
se, portanto, uma vinculação patológica mostrando a dependência da mãe em relação ao
bebê, não dando lugar para que a dele aconteça e muito menos para que venha a se
tornar uma individualidade, apontando para uma demanda de dependência revertida. A
patologia da avó transitando pela neurose da mãe culminará em uma psicose do neto ou
neta. Então, teríamos a transmissão da patologia, não uma transmissão genética, mas
uma transmissão através de relações de interdependência, em três gerações, por meio
9
D. W. Winnicott, “O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil” in: O Brincar & a
Realidade, Rio de Janeiro, Imago, (1967) 1975, p.155.
10
D. W. Winnicott, “O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê” in: A família e o Desenvolvimento
Individual, São Paulo, Imago, (1960a) 1993, cap. 2, p.22.
11
E. O. Dias, “A Regressão à Dependência e o Uso Terapêutico da Falha do Analista”, Percurso, Ano VII,
nº 13, São Paulo, 1994, p.71.
6
das identificações mórbidas 12. Essa questão de como a Psicanálise pode contribuir na
prevenção da doença mental é uma preocupação constante em toda obra de Winnicott.
A perspectiva de chamar atenção não só para a questão do analista, mas para a figura
da mãe, que é o paradigma do analista para Winnicott, da realidade de sua
personalidade, de seus conflitos identificatórios, de seu narcisismo na estruturação da
personalidade do paciente-criança, é uma forma de expandir as conseqüências teórico-
clínicas do pensamento de Winnicott, ocupando-se dos dois elementos da díade, mãe e
bebê. Esta proposta poderia derivar também, em uma reflexão interessante sobre a
formação analítica e suas vicissitudes.
O conceito de objeto transicional
Raquel Goldstein propõe que na situação de dependência revertida o bebê funcione
como objeto transicional da mãe. Posso compreender o uso do conceito de objeto
transicional, visto sob o vértice da mãe, somente enquanto uma metáfora positiva ou
negativa, que pode nos ser útil para compreendermos a dinâmica das relações primitivas
de dependência que pode se estabelecer na díade mãe-bebê e na dupla analítica.
Winnicott descreve o objeto transicional, como aquele objeto intermediário e necessário
do mundo de fantasias do bebê, que é a zona intermediária entre o objeto subjetivo e o
objeto real, e que como tal, o ajudará a lidar com a separação e a ausência da mãe, e
sobreviver a essa desilusão, tão sofrida e frustrante que envolve o crescimento
emocional. É aquele objeto que emerge do campo de ilusão presente na relação mãe-
bebê, fundamental para desenvolver a curiosidade e a criatividade do bebê. 13 Como
coloca Raquel Goldstein em seu trabalho O Objeto Transicional de Winnicott: "É
impossível aprender a separar-se, sem a ilusão de novos reencontros gratificantes". 14
Poderíamos pensar o objeto transicional enquanto uma metáfora positiva na díade mãe-
bebê. Nesse caso a mãe se identificaria com seu bebê e reexperimentaria momentos de
ilusão vividos na sua infância, brincando com ele. É em função dessa identificação que
ela é capaz de compreender e atender as necessidades do bebê. Nestes momentos
iniciais da relação com o bebê, a mãe estaria se remetendo a momentos vividos como
fenômenos transicionais. O bebê, por sua vez, ser vivo e imaginário (objeto transicional
da mãe), propiciaria à mãe, se ela mantém a criatividade, a identidade materna, ele
ensina a mãe a ser mãe no exercício próprio da maternidade, e nesta função ela pode vir
a se realizar psiquicamente. Nesse sentido se contextualiza um momento de transição
inicial da relação mãe-bebê, até que a mãe possa permitir a desilusão, superando esse
momento fusional de logo após o nascimento.
No sentido metafórico negativo, a relação de dependência da mãe para com o bebê
evidenciaria um fenômeno transicional patológico da mãe. O tipo de preocupação
materna é determinante para que o bebê possa vir a ter um desenvolvimento normal.
Pode ocorrer, no entanto, que o bebê não se constitua em algo externo a essa mãe, pois
no processo de constituição do objeto subjetivo dessa (da mãe) houve uma falha. A
criança, então, poderia ser para a mãe um prolongamento de si mesma, um nada, uma
coisa-infante, e a mãe apenas repetiria com o bebê, seu próprio desamparo, sem poder
oferecer a maternagem ativa que ele necessita. A mãe, por sua vez, poderia vir a se
12
M. C. P. Silva, A Herança Psíquica na Clínica Psicanalítica, São Paulo, Casa do Psicólogo, FAPESP,
2003.
13
D. W. Winnicott, “Objetos transicionais e fenômenos transicionais”, in: Textos selecionados: da pediatria
à psicanálise. Rio de Janeiro, Francisco Alves, (1951) 1988, p. 389-408.
14
R. Z. Goldstein, “O objeto transicional de Winnicott”, in: Baranger W. & cols. Contribuições ao Conceito
de Objeto em Psicanálise. São Paulo, Casa do Psicólogo: Clínica de Psicanálise Roberto Azevedo, (1981)
1994, cap. 9, p. 157.
7
constituir para este bebê numa mãe intrusiva, narcísica, caótica, imprevisível ou morta.
Assim poderia se caracterizar a situação de dependência revertida onde o conceito de
objeto transicional, enquanto objeto vivo e imaginário, só poderia ser utilizado enquanto
uma metáfora negativa, como uma tentativa de construção imaginária e fictícia do sujeito
que repete uma patologia emocional muito primitiva.
E como esta metáfora se daria transposta para a dupla analítica, quando o paciente não
encontra um analista continente e não pode dele depender?
No trabalho com pacientes difíceis, com uma possível demanda à dependência revertida,
poderia o analista funcionar como a mãe, que pode agora corrigir o percurso que a mãe
real não foi capaz de proteger, no sentido de não ter propiciado as condições necessárias
(previsibilidade, segurança, regularidade, etc)? Quem sabe não terá o analista que se
oferecer não só como mãe presente, constante, confiável, que deixa seu bebê-paciente
brincar sozinho, na sua presença, na companhia da mãe-analista, como quer Winnicott,
mas mais ainda tenha que permitir que seu bebê-paciente venha, brevemente e
transitoriamente, a tomá-lo como uma espécie de objeto transicional corretivo. Enquanto
metáfora, o analista está ali para ser criado pelo paciente como um fenômeno
transicional. Como aponta Raquel Goldstein em seu trabalho O Objeto Transicional de
Winnicott: "O analista pode ser tomado como um objeto transicional, se oferece para a
transicionalidade, mas esta não se desenvolve de imediato senão pelo contrário, pois
está travada primitivamente em seu processo de formação; isto se evidencia na repetição
das carências na transferência". 15
O analista então viverá com o paciente momentos de dependência absoluta, e aos
poucos, através da dependência relativa, irá possibilitando a distinção do eu e não-eu,
povoando seu mundo interno. Poderá, então, permitir que o paciente possa lidar com os
percalços do mundo interno e externo (situações de separação), acumular suas
experiências de vida e, rumo à independência, sua percepção ir se tornando quase
sinônimo de criação.16
15
R. Z. Goldstein, op cit., p. 161.
16
D. W. Winnicott, “Dependência no cuidado do lactente, no cuidado da criança e na situação psicanalítica”
in: O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional, Porto
Alegre, Artes Médicas, (1963) 1983, p. 225-233.
8
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Dias, E. O.: Aquém do Princípio do Prazer, Anais do III Encontro Latino-Americano Sobre
o Pensamento de Winnicott, 1994.
Dias, E. O.: A Regressão à Dependência e o Uso Terapêutico da Falha do Analista,
Percurso, Ano VII, nº 13, São Paulo, 1994, p.71.
Goldstein, R. Z.: O objeto transicional de Winnicott, In. Baranger W. & cols. Contribuições
ao Conceito de Objeto em Psicanálise. São Paulo, Casa do Psicólogo, Clínica de
Psicanálise Roberto Azevedo, (1981) 1994, cap. 9, p. 157 e 161.
Goldstein, R. Z.: El Niño como Objeto Transicional de la Madre: Demanda de
Dependencia Revertida, anais do III Encontro Latino-Americano Sobre o Pensamento
de Winnicott, 1994.
Racker, H.: Estudos sobre Técnica Psicanalítica, Porto Alegre, Artes Médicas, 1992.
Silva, M. C. P.: A Herança Psíquica na Clínica Psicanalítica, São Paulo, Casa do
Psicólogo, FAPESP, 2003.
Winnicott, D. W.: A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional, in: Textos
selecionados: da pediatria à psicanálise, Rio de Janeiro, Francisco Alves, (1950-5)
1988.
Winnicott, D.W.: Objetos transicionais e fenômenos transicionais, in: Textos
selecionados: da pediatria à psicanálise, Rio de Janeiro, Francisco Alves, (1951) 1988,
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Winnicott, D.W.: Objetos transicionais e fenômenos transicionais, in: O Brincar & a
Realidade, Rio de Janeiro, Imago, (1953) 1975, p. 16.
Winnicott, D.W.: Teoria do relacionamento paterno-infanti, in: O ambiente e os processos
de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional, Porto Alegre,
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Winnicott D.W.: O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê, in: A família e o
Desenvolvimento Individual, São Paulo, Imago, (1960a) 1993, cap. 2, p.22.
Winnicott, D.W.: Dependência no cuidado do lactente, no cuidado da criança e na
situação psicanalítica, in: O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a
teoria do desenvolvimento emocional, Porto Alegre, Artes Médicas, (1963) 1983, p.
225-233.
Winnicott, D.W.: O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil, in:
O Brincar & a Realidade, Rio de Janeiro, Imago, (1967) 1975, p. 155.