O Problema Do Sofrimento
O Problema Do Sofrimento
O Problema Do Sofrimento
C.S.LEWIS
Título do original em inglês publicado pela Wm. Collins Sons & Co. Ltd.
THE PROBLEM OF PAIN
Tradução de Neyd Siqueira
1ª edição brasileira em dezembro de 1983
2ª edição brasileira em setembro de 1986
O Autor
Índice
Prefácio
l. Introdução
2. A Onipotência Divina
3. A Bondade Divina
4. A Maldade Humana
5. A Queda do Homem
6. O Sofrimento Humano
7. O Sofrimento Humano (continuação)
8. O Inferno
9. O Sofrimento dos Animais
10. O Céu
Apêndice
Prefácio
Quando o Sr. Ashley Sampson sugeriu-me que escrevesse este livro, pedi licença
para fazê-lo anonimamente, desde que, se tivesse de dizer aquilo que realmente penso
sobre o sofrimento, seria forçado a fazer declarações aparentemente tão fortes que se
tomariam ridículas se alguém soubesse quem as fizera. O anonimato foi rejeitado como
inconsistente com a série; mas o Sr. Sampson afirmou que eu poderia escrever um
prefácio explicando que não vivia de acordo com os meus princípios! E é este divertido
programa que estou agora levando a cabo. Deixem que confesse, imediatamente, nas
palavras do bondoso Walter Hilton, que através de todo este livro "sinto-me tão distante
de sentir realmente aquilo que falo, que não posso senão pedir misericórdia e desejar
alcançar tais sentimentos na medida do possivel"1. Todavia, justamente por essa razão,
existe uma crítica que não pode ser feita contra mim. Ninguém pode afirmar: "Ele zomba
de cicatrizes onde não existiu ferimento algum", pois eu nunca, em nenhum momento,
estive num estado de espirito em que até mesmo a idéia de sofrimento grave fosse menos
do que intolerável. Se qualquer homem está a salvo do perigo de subestimar este
adversário, eu sou esse homem.
Introdução
Há poucos anos, quando eu era ateu, se alguém me perguntasse: "Por que você
não crê em Deus?" minha resposta teria sido mais ou menos esta: "Veja o universo em
que vivemos. Sua maior parcela consiste de espaço vazio, completamente escuro e
inconcebivelmente frio. Os corpos que se movem nesse espaço são tão poucos e tão
pequenos em comparação com o espaço em si que, mesmo que cada um deles fosse
considerado como estando abarrotado, até o seu ponto máximo, de criaturas
perfeitamente felizes, ainda assim seria difícil crer que a vida e a felicidade fossem mais
do que um subproduto do poder que fez o universo.
"Da forma como está porém os cientistas pensam que muito poucos dentre os
sóis do espaço - talvez nenhum deles exceto o nosso - possuem quaisquer planetas; e
em nosso sistema é improvável que qualquer planeta exceto a Terra tenha vida. A própria
Terra existiu sem vida por milhares de anos e pode continuar existindo durante outros
milhões quando a vida a tiver deixado. E, como é ela enquanto dura? É organizada de
material tal que todas as suas forças só podem viver à custa umas das outras.
"Nas formas inferiores, este processo impõe a morte; mas nas superiores surge
uma nova qualidade chamada de percepção, a qual as capacita a se associarem com o
sofrimento. As criaturas provocam sofrimento ao nascer, vivem infligindo sofrimento, e
sofrendo morre a maior parte. Na mais complexa de todas as criaturas, o homem, existe
ainda uma outra qualidade que chamamos de razão, mediante a qual ele é capaz de
prever o seu próprio padecer que desde então é precedido de forte angústia mental, e de
prever sua própria morte embora almeje avidamente a permanência.
"Ele também capacita os seres humanos, através de centenas de invenções
engenhosas, a infligir muito mais dor do que de outra forma poderiam provocar uns nos
outros ou nas criaturas irracionais.
Este poder foi por eles explorado ao máximo. A sua história é, na sua maior parte,
um registro de crimes, guerras, doenças e terror, com apenas aquela pitada de felicidade
suficiente para dar-lhes, enquanto dura, um medo agoniado de perdê-la; e, quando ela se
perde, a miséria pungente da lembrança. De vez em quando eles melhoram um pouco a
sua condição e surge o que chamamos de civilização. Mas, todas as civilizações
desaparecem e, mesmo enquanto perduram, infligem sofrimentos peculiares suficientes
para exceder qualquer alívio que tenham proporcionado aos padecimentos normais do
homem.
"Que nossa civilização fez isso, ninguém pode negar; que ela desaparecerá como
todas as que a precederam, é bastante provável. Mesmo que isso não aconteça, e então?
A raça está condenada. Toda raça que surge em qualquer parte do universo está
condenada; pois o universo, segundo dizem, está cansado, e irá transformar-se um dia
em uma infinidade uniforme de matéria homogênea a baixa temperatura. Todas as
histórias acabarão em nada: toda vida se mostrará no final como sendo apenas uma
contorção transitória e sem sentido sobre a face idiota da matéria infinita. Se você me
pedir para acreditar que esta é a obra de um espírito benevolente e onipotente, replico
que toda evidência aponta na direção oposta. Ou não existe espírito por trás do universo,
ou então existe um espírito indiferente ao bem e ao mal, ou seja, um espírito perverso".
Existe uma pergunta que jamais pensei em fazer. Nunca notei que a própria força
e simplicidade do caso dos pessimistas nos colocava imediatamente diante de um
problema.
Se o universo é mau, ou mesmo um tanto mau, como foi possível aos seres
humanos atribui-lo à atuação de um Criador sábio e bondoso? Os homens são tolos,
talvez; mas não tão tolos assim. A inferência direta do preto para o branco, da flor do lodo
para a raiz virtuosa, da obra sem sentido para um obreiro infinitamente sábio, faz vacilar a
crença. O espetáculo do universo como revelado pela experiência jamais pode ter sido a
base da religião: deve ter sempre sido algo a despeito do qual a religião, adquirida de
uma outra fonte, foi mantida.
Seria um erro replicar que nossos ancestrais eram ignorantes e portanto
entretinham agradáveis ilusões sobre a natureza, as quais o progresso da ciência desde
então dissipou.
Durante séculos, em que todos os homens criam, o tamanho e o vazio do
universo já eram conhecidos. Podemos ler em alguns livros que os homens da idade
Média pensavam que a Terra era plana e que as estrelas estavam próximas, mas isso é
uma mentira. Ptolomeu lhes dissera que a Terra era um ponto matemático sem tamanho
em relação à distância das estrelas fixas - uma distância que um texto popular medieval
estima como sendo de cento e dezessete milhões de milhas. E em tempos ainda mais
antigos, mesmo no início, os homens devem ter tido a mesma sensação de imensidade
hostil de uma fonte ainda mais óbvia.
Para o homem pré-histórico, a floresta circundante deve ter sido suficientemente
infinita, e aquilo que era sobremaneira estranho e inquietaste, que temos de buscar na
idéia de raios cósmicos e sóis sem calor, vinha fungar e uivar toda noite à sua porta. O
sofrimento e desperdício da vida humana foi com certeza igualmente óbvio em todos os
períodos. Nossa própria religião começa entre os judeus, um povo espremido entre
grandes impérios guerreiros, continuamente derrotado e aprisionado, familiarizado com a
Polônia ou a Armênia com a trágica história dos vencidos. Não passa de tolice colocar o
sofrimento entre as descobertas da ciência. Deixe este livro de lado e reflita durante cinco
minutos sobre o fato de que todas as grandes religiões foram primeiro pregadas e
praticadas longamente, num mundo onde não existia o clorofórmio.
Em toda época, então, uma inerência a partir do curso dos acontecimentos neste
mundo até a bondade e sabedoria do Criador teria sido igualmente descabida; e jamais foi
feita.2 A religião tem uma Origem diferente. No que se segue, deve ficar entendido que
não estou principalmente argumentando a verdade do cristianismo, mas descrevendo a
sua origem - tarefa essa, a meu ver, necessária, se devemos colocar o problema do
sofrimento em seu cenário correto.
2 I.e., jamais feita nos primórdios de uma religião. Depois de a fé em Deus ter
sido aceita, "teodicéias" explicando, ou justificando, as misérias da vida, irão naturalmente
surgir com bastante freqüência.
3 XVI I, XXÍÍ.
4 Fasti, III, 296.
5 Aen. VII, 172.
Não sabemos até que ponto na história este sentimento retrocede. Os homens
primitivos com toda certeza acreditavam em coisas que iriam fazer nascer em nós esse
sentimento se crêssemos nelas, e parece então provável que a reverência numinosa seja
tão antiga quanto a própria humanidade. Nossa principal preocupação não é, porém,
datá-lo. O importante é que de uma ou outra forma ele veio a existir e se difundiu, não
desaparecendo da mente humana com o desenvolvimento do saber e da civilização.
Esta reverência não é resultado de algo implícito do universo visível. Não existe
possibilidade de argumentar a partir do simples perigo até o "misterioso", e menos ainda
ao plenamente numinoso. Você pode dizer que lhe parece muito natural que o homem
primevo, cercado por perigos reais e portanto amedrontado, viesse a inventar o misterioso
e o numinoso. De certa forma isso é verdade, mas vamos primeiro entender o nosso
significado. Você acha isso natural porque, partilhando da natureza humana com seus
ancestrais remotos, pode imaginar-se reagindo aos perigos da solidão da mesma forma; e
esta reação é sem dúvida "natural" no sentido de conformar-se à natureza humana. Ela
não é de maneira alguma "natural", entretanto, no que se refere à idéia do misterioso ou
numinoso já estar contida no conceito de perigo, ou que qualquer percepção deste ou
qualquer rejeição da mágoa e da morte que ele possa trazer conseguisse transmitir a
menor compreensão do pavor fantasmagórico ou reverência numinosa a uma inteligência
que ainda não tivesse qualquer idéia sobre os mesmos.
Quando o homem passa do medo físico para o temor e reverência, ele dá um
verdadeiro salto, e passa a apreender algo que jamais poderia ser transmitido, como é o
perigo, pelos fatos físicos e deduções lógicas extraídos deles. A maioria das tentativas de
explicar o numinoso pressupõe a coisa a ser explicada - como quando os antropólogos a
fazem derivar do temor dos mortos, sem explicar por que homens mortos (com certeza a
espécie menos perigosa de homens) deveriam atrair este sentimento peculiar. Contra
todas essas tentativas, devemos insistir que o temor e a reverência se acham numa
dimensão diferente daquela do medo. Eles são uma espécie de interpretação que o
homem dá ao universo, ou uma impressão que obtém dele. Assim como enumeração
alguma das qualidades físicas de um bonito objeto jamais poderia incluir a sua beleza, ou
dar a menor idéia do que consideramos beleza a alguém que não possua experiência
estética, assim também nenhuma descrição fatual de qualquer ambiente humano poderia
incluir o misterioso e o numinoso ou sequer aludir a eles.
Ao que parece então, só existiam dois pontos de vista que podemos manter com
relação à reverência. Ou se trata de uma simples distorção da mente humana, que não
corresponde a nada objetivo e não serve a nenhuma função biológica, mas que não
mostra qualquer tendência de desaparecer dessa mente, mostrando-se no seu mais pleno
desenvolvimento no poeta, filósofo ou santo; ou, por outro lado, se trata de uma
experiência direta daquilo que é verdadeiramente sobrenatural, a que pode ser
apropriadamente dado o nome de Revelação.
O numinoso não se identifica com o que é moralmente bom, e o homem cheio de
reverência irá provavelmente, se deixado aos seus próprios recursos, pensar no objeto
numinoso como "transcendendo o bem e o mal". Isto nos leva ao segundo fio ou elemento
na religião.
Todos os seres humanos de que a história ouviu falar reconhecem algum tipo de
moralidade; isto é, eles têm em relação a certas atitudes propostas o sentimento que se
expressa através das palavras:
"Devo" ou "Não devo". Essas experiências se assemelham à reverência em um
aspecto, a saber, elas não podem ser logicamente deduzidas do ambiente e das
experiências físicas do homem que as sofre. Você pode tentar escolher entre "quero" e
"sou forçado a", "será bom" e "não ouso" quanto tempo quiser sem tirar dessas frases
qualquer ilação em relação a "devo" ou "não devo". Assim sendo, mais uma vez, as
tentativas de converter as experiências morais em outra coisa, sempre pressupõem
exatamente aquilo que estão tentando explicar - como quando um famoso analista a
deduz do parricida pré-histórico. Se o parricídio produziu uma sensação de culpa, isso foi
porque os homens julgaram que não deveriam tê-lo cometido: se não se sentissem assim,
não teria produzido sentimento de culpa. A moralidade, assim como a reverência
numinosa, é um salto; nela, o homem ultrapassa qualquer coisa que possa ser
"transmitida" nos fatos da experiência. Ela possui uma característica demasiado notável
para ser ignorada. Os conceitos morais aceitos pelos homens podem diferir - mas todos
concordam em prescrever um comportamento que os seus adeptos falham em praticar.
Todos os homens estão igualmente condenados, não por códigos de ética
estranhos, mas pelo seu próprio, e assim todos têm consciência de culpa. O segundo
elemento na religião é a consciência, não apenas de uma lei moral, mas de uma regra
moral tanto aprovada como desobedecida. Esta consciência não é uma inferência lógica
nem ilógica dos fatos da experiência; se não a trouxéssemos à nossa experiência, não a
encontraríamos nela.
Ou se trata de uma ilusão inexplicável, ou de revelação.
A experiência moral e a experiência numinosa estão tão longe de ser a mesma
coisa que podem coexistir por longos períodos sem estabelecer contato mútuo. Em
muitas formas de paganismo a adoração dos deuses e as discussões éticas dos filósofos
pouco têm a ver umas com as outras. O terceiro estágio no desenvolvimento religioso
surge quando o homem os identifica - quando o Poder Numinoso em relação ao qual
sentem reverência se toma o guardião da moral que consideram obrigatória. Mais uma
vez, isto pode parecer-lhe muito "natural". O que pode ser mais natural para um selvagem
perseguido ao mesmo tempo pela reverência e pela culpa do que pensar que o poder que
o apavora é também a autoridade que condena seu erro? E isso é, na verdade, natural
para o ser humano, embora não seja o mais óbvio.
O comportamento real desse universo assombrado pelo numinoso não se
assemelha de modo algum àquele exigido de nós pela moralidade. Um deles parece
destrutivo, cruel e injusto; o outro nos impõe as qualidades opostas. A identificação dos
dois também não pode ser explicada como a satisfação de um desejo, pois não satisfaz o
desejo de ninguém.
O que desejamos é nada menos que ver essa Lei cuja autoridade crua já é
insuportável, armada com as reivindicações incalculáveis do numinoso. De todos os
saltos dados pela humanidade em sua história religiosa, este é com certeza o mais
surpreendente. Não é de admirar que muitas seções da raça humana o tivessem
recusado; a religião não-moral e a moral não-religiosa existiram e continuam a existir.
Talvez um único povo, como povo, deu o novo passo com perfeita decisão - isto é, os
judeus: mas grandes personagens em todos os tempos e lugares também o deram, e
somente os que fazem isso estão a salvo das obscenidades e barbaridades da adoração
imoral ou do moralismo frio e triste da autoretidão.
A julgar pelos seus frutos este é um passo em direção a uma saúde melhor. E
embora a lógica não nos obrigue a dá-lo, é difícil resistir – mesmo no paganismo e no
panteísmo a moral está sempre surgindo, e até mesmo o estoicismo, quer queira quer
não, se vê dobrando o joelho diante de Deus.
Mais uma vez pode ser loucura, uma loucura congênita ao homem e
surpreendentemente feliz em seus resultados, ou pode ser revelação. Se for revelação,
será então real e verdadeiramente em Abraão que todos os povos vão ser abençoados,
pois foram os judeus que identificaram plena e inequivocamente a Presença terrível
assombrando os picos escuros das montanhas e nuvens com "o Senhor justo" que "ama
a justiça".9
9 si 11.7
A Onipotência Divina
“Se Deus fosse bom, Ele desejaria fazer suas criaturas perfeitamente felizes, e se
Deus fosse todo-poderoso poderia fazer tudo o que quisesse. Mas as criaturas não são
felizes. Portanto, falta a Deus bondade, poder, ou ambas essas coisas". Este é o
problema do sofrimento em sua forma mais simples. A possibilidade de responder a ele
depende de mostrar que os termos "bom" e "todo-poderoso", e talvez também o termo
feliz, são ambíguos: pois deve ser admitido desde o início que se os significados
populares ligados a essas palavras forem os melhores, ou os únicos possíveis, então o
argumento é irrespondível. Neste capítulo farei alguns comentários sobre a idéia de
onipotência e, no seguinte, sobre a de bondade.
Onipotência significa "poder para fazer tudo, ou todas as coisas".1
1 O significado original em latim pode ter sido "poder sobre ou em tudo". Estou
dando o que julgo ser a idéia corrente.
É bastante comum, numa discussão com um incrédulo, ouvir dizer que Deus, se
existisse e fosse bom, faria isto ou aquilo; e então, se declaramos que o ato proposto é
impossível, receber a resposta: "Mas pensei que Deus fosse capaz de fazer tudo". Isto faz
surgir a questão da impossibilidade.
No uso ordinário da palavra, impossível geralmente subentende uma cláusula
suprimida iniciada com as palavras salvo se, ou exceto, ou ainda a não ser que. Assim, é
impossível para mim ver a rua de onde estou sentado escrevendo agora; isto é, é
impossível ver a rua salvo se eu subir ao andar superior de onde posso olhar por cima do
prédio que interfere com a minha visão. Se eu tivesse quebrado a perna diria: "Mas é
impossível subir ao andar superior" - querendo indicar, porém, que é impossível a não ser
que apareçam alguns amigos que me levem até lá. Vamos avançar agora para um plano
diferente de impossibilidade, dizendo:"É, de qualquer forma, impossível ver a rua
enquanto eu permanecer onde estou e o prédio intermediário continuar onde está".
Alguém poderia acrescentar: "a não ser que a natureza do espaço, ou da visão, fosse
diferente do que é".
Não sei o que os melhores filósofos e cientistas responderiam a isto, mas eu teria
de replicar: "Não sei se o espaço e a visão poderiam possivelmente ter sido de uma
natureza tal como a que você sugere."
Fica então claro que as palavras poderiam possivelmente referem-se aqui a
alguma espécie absoluta de possibilidade ou impossibilidade diversa das possibilidades e
impossibilidades relativas que temos considerado. Não sei se ver para além da esquina é,
neste novo sentido, possível ou não, pois não sei se se trata ou não de uma
autocontradição.
Sei porém muito bem que se for auto-contraditório é absolutamente impossível. O
absolutamente impossível pode ser também chamado de intrinsecamente impossível
porque leva consigo a sua impossibilidade, em lugar de tomá-la de empréstimo de outras
impossibilidades que, por sua vez, dependem de outras ainda. Ele não contém qualquer
cláusula do tipo "salvo se". É impossível sob quaisquer condições e em todos os mundos
e para todos os agentes.
"Todos os agentes" aqui inclui o próprio Deus. A sua onipotência significa poder
para fazer tudo que é intrinsecamente possível, e não para fazer o que é intrinsecamente
impossível. É possível atribuir-lhe milagres, mas não tolices. Isto não é um limite ao seu
poder. Se disser: "Deus pode dar a uma criatura o livre-arbítrio e, ao mesmo tempo,
negar-lhe o livre-arbítrio" não conseguiu dizer nada sobre Deus: combinações de palavras
sem sentido não adquirem repentinamente sentido simplesmente porque acrescentamos
a elas como prefixo dois outros termos: "Deus pode". Permanece verdadeiro que todas as
coisas são possíveis com Deus: as impossibilidades intrínsecas não são coisas mas
insignificâncias (praticamente não existem). Não é possível nem a Deus nem à mais fraca
de suas criaturas executar duas alternativas que se excluem mutuamente; não porque o
seu poder encontre um obstáculo, mas porque a tolice continua sendo tolice mesmo
quando é falada sobre Deus.
Deve ser porém lembrado que os raciocinadores humanos com freqüência
cometem erros, seja argumentando a partir de dados falsos ou por falha no argumento em
si. Podemos chegar assim a pensar coisas possíveis que na verdade são impossíveis, e
vice- versa.2
2 E,g., todo truque de magia faz algo que, para a audiência, com sua informação
e poder de raciocínio, parece contraditório.
3
A Bondade Divina
O amor pode suportar e pode perdoar.., mas o Amor jamais pode reconciliar-se a
um objeto que cause desamor... Ele jamais poderá, portanto, reconciliar-se com o seu
pecado, porque o pecado por si mesmo é incapaz de ser alterado; mas Ele pode
reconciliar-se à sua pessoa, por que esta pode ser restaurada.
1 Lc 12:57
2 Jr 2:5
Depois dessas preliminares penso que será seguro sugerir que alguns conceitos
da bondade divina que tendem a dominar nossos pensamentos, embora raramente
expressos em tantas palavras, estão sujeitos a críticas. Quando nos referimos à bondade
de Deus hoje, estamos indicando quase que exclusivamente seu amor; e nisto talvez
tenhamos razão. E por amor, neste contexto, a maioria de nós quer dizer bondade - o
desejo de ver outros felizes, e não a própria pessoa; não feliz deste ou de outro modo,
mas apenas feliz. O que realmente nos satisfaria seria um Deus que dissesse a respeito
de qualquer coisa que gostássemos de fazer: "Que importa se isso os deixa contentes?"
Queremos, na verdade, não tanto um Pai Celestial, mas um avô celestial - uma
benevolência senil que, como dizem, "gostasse de ver os jovens se divertindo" e cujo
plano para o universo fosse simplesmente que se pudesse afirmar no fim de cada dia:
"todos aproveitaram muito". Não são muitos os que, devo admitir, iriam formular uma
teologia exatamente nesses termos: mas um conceito semelhante espreita por trás de
muitas mentes. Não me julgo uma exceção: gostaria imenso de viver num universo
governado de acordo com essas linhas.
Mas desde que está mais do que claro que não vivo, e desde que tenho razões
para crer, mesmo assim, que Deus é Amor, chego à conclusão que meu conceito de amor
necessita correção.
Eu poderia, sem dúvida, ter aprendido até mesmo dos poetas que Amor é algo
mais rigoroso e esplêndido do que a simples bondade: que até o amor entre os sexos é,
como em Dante, "um senhor de terrível aspecto". Existe bondade no amor, mas amor e
bondade não são confinantes, e quando a bondade (no sentido dado acima) é separada
dos demais elementos do Amor, ela envolve uma certa indiferença fundamental ao seu
objeto, e até mesmo algo semelhante ao desprezo em relação a ele. A bondade consente
com facilidade na remoção do seu objeto - temos todos encontrado indivíduos cuja
bondade para com os animais constantemente os leva a matá-los a fim de que não
sofram. A bondade desse tipo não se preocupa com o fato de o seu objeto tomar-se bom
ou mau, desde que escape ao sofrimento.
Como as Escrituras afirmam, os bastardos é que são estragados: os filhos
legítimos, que devem continuar a tradição da família, são corrigidos.3 Para aqueles com
quem não nos preocupamos absolutamente é que exigimos felicidade sob quaisquer
termos: com nossos amigos, nossos entes queridos, nossos filhos, somos exigentes e
preferimos vê-los sofrer do que ser felizes em estilos de vida desprezíveis e desviados.
Se Deus é amor, Ele é, por definição, algo mais do que simples bondade. E, ao que
parece, de acordo com todos os registros, embora tenha com freqüência nos reprovado e
condenado, jamais nos considerou com desprezo. Ele nos prestou o intolerável
cumprimento de nos amar, no sentido mais profundo, mais trágico e mais inexorável.
A relação entre Criador e criatura é naturalmente única e não pode ser
comparada a qualquer das demais relações entre uma criatura e outra. Deus está, ao
mesmo tempo, mais distanciado e mais próximo de nós do que qualquer outro ser. Ele
está mais distante de nós porque a completa diferença entre aquilo que possui o Seu
princípio de existência em Si Mesmo e aquilo a que a existência está sendo transmitida é
tal que comparada a ela a diferença entre um arcanjo e um verme é praticamente
insignificante. Ele faz, nós somos feitos: Ele é o original, nós os derivados. Mas, ao
mesmo tempo, e pela mesma razão, a intimidade entre Deus e até mesmo a menor das
criaturas é mais próxima do que qualquer outra que as criaturas possam alcançar umas
com as outras.
Nossa vida, a qualquer momento, e suprida por Ele: nosso pequenino e milagroso
poder de livre-arbítrio só pode operar nos corpos que a Sua energia contínua mantém
vivos - nosso próprio poder de pensar é o Seu poder comunicado a nós. Uma relação
assim singular só pode ser entendida através de analogias: dentre os vários tipos de amor
conhecidos entre as criaturas, chegamos a um conceito inadequado mas útil do amor de
Deus pelo homem.
O tipo mais inferior, que é chamado de "amor" apenas como uma extensão da
palavra, é aquele que o artista sente por um artefato. A relação entre Deus e homem é
assim retratada na visão de Jeremias sobre o oleiro e o barro,4 ou quando o apóstolo
Pedro fala da igreja inteira como de um prédio no qual Deus trabalha, e dos membros
individualmente como sendo pedras.5 A limitação de tal analogia é, naturalmente, que no
símbolo o paciente não tem percepção, e que certas questões de justiça e misericórdia
surgidas quando as "pedras" estão realmente "vivas" permanecem, portanto, não-
representadas. Mas, de toda forma, trata-se de uma analogia importante.
3 Hb 12:8
4 Jr 18
5 I Pe 2:5
6 jr 2.2
7 Ez 16:6-15
8 Tg 4:4,5
Quando o cristianismo diz que Deus ama o homem, isso significa que Ele o ama
realmente; não se trata de um interesse indiferente quase um "desinteresse" em nosso
bemestar, mas que, numa verdade terrível e surpreendente, somos os objetos do seu
amor. Você pediu um Deus de amor, e já tem. O grande espírito que invocou tão
levianamente, o "Senhor de terrível aspecto", está presente: não uma benevolência senil
que sonolentamente deseja que você seja feliz à sua própria moda, nem a gélida
filantropia de um magistrado consciencioso nem mesmo o cuidado de um hospedeiro que
se sente responsável pelo conforto de seus hóspedes, mas o próprio fogo consumidor, o
Amor que fez os mundos, persistente como o amor do artesão pela sua obra e despótico
como o amor do homem por um cão, providente e venerável como o amor do pai pelo
filho, ciumento, inexorável, exigente, como O amor entre Os sexos.
Como isto pode ser, não sei: supera nosso poder de raciocínio explicar como
quaisquer criaturas, para não dizer criaturas como nós, possam ter um valor tão
prodigioso aos olhos de seu Criador. Trata-se certamente de um peso de glória não só
além de nossos méritos mas também, exceto em raros momentos de graça, além de
nosso desejo; estamos inclinados, como as donzelas na velha peça teatral, a protestar
contra o amor de Zeus.10
Mas o fato parece Indiscutível. O Impassível fala como se sentisse paixão, e
aquilo que contém em si mesmo a causa de sua própria e de outras bênçãos, fala como
se pudesse sentir-se carente e ansioso. "Não é Efraim meu precioso filho? filho das
minhas delícias? Pois tantas vezes quantas falo contra ele, tantas vezes ternamente me
lembro dele; comove-se por ele o meu coração".11 "Como te deixaria, ó Efraim? Como te
entregaria, ó Israel? Meu coração está comovido dentro em mim".12
"Ò, Jerusalém, quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta
os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!"13
O problema de reconciliar o sofrimento humano com a existência de um Deus que
ama só é insolúvel enquanto associarmos um significado trivial à palavra "amor" e
considerarmos as coisas como se o homem fosse o centro delas. O homem não é o
centro.
9 Ef 5:27
10 Prometheus Vinctus, 887-900
11 Jr 31:20
12 Os 11:8
13 Mt 23:37
Deus não existe por causa do homem. O homem não existe por sua própria
causa. "Porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e
foram criadas".14
14 Ap 4:11
Não fomos feitos em princípio para amarmos a Deus (embora fôssemos também
criados para isso), mas para que Deus possa amar-nos, para que nos tomemos objetos
em que o amor divino possa sentir "agrado". Pedir que o amor de Deus se satisfaça
conosco na condição em que nos encontramos, é pedir que Deus deixe de ser Deus:
porque Ele é o que é, o Seu amor deve, na natureza das coisas, ficar impedido e sentir
repulsa por certas nódoas em nosso caráter, e porque já nos ama ele precisa esforçar-se
para nos tomar dignos de amor. Não podemos sequer desejar, em nossos melhores
momentos, que ele se reconcilie com nossas impurezas presentes -não mais do que a
jovem mendiga poderia querer que o rei Cophetua se satisfizesse com os seus andrajos e
sujeira, ou que um cão, tendo aprendido a amar o homem, pudesse desejar que este
tolerasse em sua casa a criatura violenta, coberta de vermes e poluente da alcatéia
selvagem.
O que chamaríamos aqui e agora de nossa "felicidade" não é o alvo principal que
Deus tem em vista: mas, quando formos aquilo que Ele pode amar sem impedimento,
seremos de fato felizes.
Posso perfeitamente prever que o curso de meus argumentos venha a provocar
um protesto. Eu havia prometido que ao passar a compreender a bondade divina não nos
seria pedido que aceitássemos uma simples inversão de nossa própria ética. Mas pode
ser objetado que tal inversão foi justamente o que nos pediram que aceitássemos. A
espécie de amor que atribuo a Deus, pode ser dito, é exatamente do tipo que nós seres
humanos descrevemos como "egoísta" ou "possessivo", e contrasta desfavoravelmente
com a outra espécie que busca primeiro a felicidade do ente amado e não a satisfação
daquele que ama. Não estou certo de que seja assim que me sinto mesmo em relação ao
amor humano. Não acho que devo dar muito valor à amizade de um amigo que se importe
apenas com a minha felicidade e não proteste se cometo uma desonestidade. De todo
modo, o protesto é aceito, e a resposta para ele colocará o assunto sob uma nova luz, e
corrigirá o que tem sido unilateral em nossa discussão.
A verdade é que esta antítese entre o amor egoísta e o altruísta não pode ser
aplicada sem ambigüidade ao amor de Deus pelas suas criaturas. Conflitos de interesses
e portanto oportunidades seja de egoísmo ou generosidade, ocorrem entre os seres que
habitam um mesmo mundo: Deus não pode de forma alguma competir com uma criatura,
assim como Shakespeare não o faz com a personagem Viola. Quando Deus se toma
Homem e vive como uma criatura entre as Suas próprias criaturas na Palestina, Sua vida
é então de supremo auto-sacrifício e o leva ao Calvário. Um moderno filósofo panteísta
declarou: "Quando o Absoluto cai no mar se transforma em peixe"; do mesmo modo, nós,
cristãos, podemos apontar para a Encarnação e dizer que quando Deus se esvazia da
sua glória e se submete àquelas condições únicas sob as quais o egoísmo e o altruísmo
têm um claro significado, Ele é considerado como inteiramente altruísta. Mas, em sua
transcendência, Deus - como a base incondicional de todas as condições - não pode ser
facilmente visualizado dessa forma.
Chamamos o amor humano de egoísta quando ele satisfaz suas próprias
necessidades à custa daquelas do objeto - da mesma forma que um pai mantém em casa
os filhos que deveriam, para o seu próprio bem, ser colocados no mundo. A situação
implica em uma necessidade ou paixão por parte do ser amado, e a desconsideração ou
ignorância culpável das necessidades deste por parte de quem ama. Nenhuma dessas
condições está presente na relação entre Deus e o homem. Deus não tem necessidades.
O amor humano, conforme nos ensina Platão, é filho da Pobreza - de uma carência ou
falta; ele é causado por um bem real ou imaginário no ser amado, que é necessário ou
desejado pelo amante. Mas o amor de Deus, longe de ser causado pela bondade do
objeto, faz surgir toda a bondade que este possui, amando-o primeiro para fazê-la existir e
depois tornando-a digna de amor real, embora derivado. Deus é Bondade.
Ele pode conceder o bem, mas não pode necessitá-lo ou obtê-lo. Nesse sentido
todo o Seu amor é infinitamente desprendido pela sua própria definição; ele tem tudo a
dar e nada a receber. Assim sendo, se Deus fala algumas vezes como se o Impossível
pudesse sofrer paixão e a plenitude eterna pudesse ter qualquer carência, e carência
daqueles seres a quem concede tudo a partir da sua simples existência, isto só pode
significar, caso signifique algo inteligível para nós, que o Deus do milagre tomou-se capaz
de sentir tal anseio e criar em Si mesmo aquilo que nós podemos satisfazer. Se Ele nos
quer, esse desejo é de sua própria escolha. Se o coração imutável pode ser entristecido
pelas marionetes que ele mesmo fez, foi a Onipotência Divina, e nada mais, que assim o
sujeitou, voluntariamente, e com uma humildade que excede todo entendimento.
Se o mundo não existe principalmente para que possamos amar a Deus, mas
para que Ele possa amar-nos, esse mesmo fato, num nível mais profundo, é assim para o
nosso bem.
Se aquele que em Si mesmo tem tudo escolhe necessitar de nós, é porque
necessitamos de quem nos necessite. Antes e por trás de todas as relações entre Deus e
o homem, como agora aprendemos no cristianismo, abre-se o abismo do ato divino do
puro dar - a eleição do homem, do nada, para ser o amado de Deus, e portanto (em
algum sentido) o necessário e desejado de Deus, que a não ser por esse ato nada
necessita nem deseja, desde que Ele eternamente possui, e é, toda bondade. E tal ato foi
feito a nosso favor. É bom que conheçamos o amor, e é melhor ainda conhecermos o
amor do melhor objeto, Deus. Mas conhecê-lo como um amor em que fomos
primariamente os cortejadores e Deus o cortejado, no qual buscamos e Ele foi achado,
em que a sua conformidade às nossas necessidades, e não a nossa às dEle, vieram
primeiro, seria conhecê-lo numa forma falsa à própria natureza das coisas. Pois somos
apenas criaturas: nosso papel deve ser sempre o do paciente para o agente, da fêmea
para o macho, do espelho para a luz, do eco para a voz. Nossa mais elevada atividade
deve ser a resposta, e não a iniciativa. Experimentar o amor de Deus de forma verdadeira
e não ilusória portanto é experimentá-lo como nossa rendição à Sua exigência, nossa
conformidade ao Seu desejo: experimentá-lo de maneira oposta seria um solecismo
contra a gramática do ser. Eu não nego, naturalmente, que num certo nível podemos falar
corretamente da busca de Deus pela alma, e de Deus como receptivo ao amor da alma.
Mas a longo prazo, a busca de Deus pela alma não passa de um aspecto ou aparência
(Erscheinung) da busca da mesma por Ele, desde que a própria possibilidade de
amarmos é um dom dEle para nós, e desde que nossa liberdade não passa de uma
liberdade de resposta melhor ou pior. Eu pe nso então que nada distingue tanto o teísmo
pagão do cristianismo como a doutrina de Aristóteles de que Deus move o universo,
sendo Ele mesmo imutável. como o Amado move o que ama.15 Quanto à cristandade,
"Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos
amou".16
15 Met., XII, 7.
16 I Jo 4:l0
Desse modo, Deus não possui a primeira condição do que é chamado amor
egoísta entre os homens. Ele não tem necessidades naturais, nem paixão, para competir
com o Seu desejo do bem do amado: ou se existir nEle algo que tenhamos de imaginar
de acordo com a analogia de uma paixão, um desejo, Ele se encontra ali pela Sua própria
vontade e por nossa causa. A segunda condição também está em falta. Os interesses
reais de uma criança podem diferir daqueles que a afeição do pai exige instintivamente,
porque a criança é um ser isolado do pai com uma natureza que possui suas próprias
necessidades e não existe unicamente para o pai nem encontra perfeição total em ser
amada por ele, e que o pai não compreende inteiramente. Mas as criaturas não são assim
isoladas de seu Criador, nem Ele deixa de entendê-la. O lugar para o qual Ele as destina
em Seu esquema de coisas é o lugar para o qual são feitas.
Quando o alcançam, sua natureza é preenchida e sua felicidade alcançada: um
osso quebrado foi colocado no seu lugar no universo, a angústia passou. Quando
queremos ser outra coisa que não aquela que Deus quer que sejamos, devemos estar
desejando, de fato, aquilo que não nos fará felizes. Essas exigências divinas que, aos
nossos ouvidos naturais, soam como as de um déspota e pelo menos como as de alguém
que ama, na verdade nos levam aonde deveríamos querer ir se soubéssemos o que
queremos.
Ele exige nossa adoração, nossa obediência, nossa prostração. Supomos que
essas coisas podem beneficiá-lo de alguma forma, ou tememos, como o coro de Mílton,
que a irreverência humana possa acarretar a "diminuição da sua glória"? Ninguém pode
diminuir a glória de Deus recusando-se a adorá-lo, como não poderia o lunático apagar o
sol escrevendo a palavra "escuridão" nas paredes de sua cela. Mas Deus deseja o nosso
bem, e nosso bem é amá-lo (com esse amor responsivo próprio das criaturas) e para
amá-lo devemos conhecê-lO: e se O conhecermos, iremos de fato prostrar-nos sobre a
nossa face.
Se não o fizermos, isso mostra que o que estamos tentando amar não é ainda
Deus - embora possa ser a mais achegada aproximação de Deus que nossos
pensamentos e fantasia podem alcançar. O chamado, todavia, não é apenas para a
prostração e reverência; mas para um reflexo da vida divina, uma participação da criatura
nos atributos divinos que está muito além de nossos desejos presentes. Somos
convidados a "revestir-nos de Cristo", a nos tomarmos como Deus. Isto é, quer o
queiramos quer não, Deus pretende dar-nos aquilo de que necessitamos e não aquilo que
agora julgamos desejar. Mais uma vez ficamos embaraçados com o cumprimento
intolerável por demasiado amor e não por falta dele.
Mesmo isto, talvez, ainda esteja aquém da verdade. Não se trata simplesmente
de que Deus nos fez arbitrariamente de modo que Ele seja o nosso único bem. Em vez
disso, Deus é o único bem de todas as criaturas: e por necessidade, cada uma delas deve
encontrar o seu bem nessa espécie e grau da fruição de Deus que é própria à sua
natureza. A espécie e grau podem variar de acordo com a natureza da criatura: mas que
jamais possa haver qualquer outro bem é um sonho ateu. George Macdonald, numa
passagem de que não me lembro agora, representa Deus dizendo ao§ homens: "Vocês
devem ser fortes com a minha força e abençoados com a minha bênção, pois nada tenho
além disso para criar-lhes." Essa é a suma. Deus dá o que Ele possui, e não aquilo que
não possui: Ele dá a felicidade que existe, não aquela que não existe. Ser Deus - ser
como Deus e partilhar da Sua bondade em resposta de criatura - ser miserável - essas
são as três únicas alternativas. Se não aprendermos a comer o único alimento que cresce
no universo - que qualquer universo possível jamais poderá fazer crescer - então iremos
ficar eternamente famintos.
A Maldade Humana
Os exemplos dados no último capítulo tinham como objetivo mostrar que o amor
pode causar sofrimento ao seu objeto, mas apenas na suposição de que esse objeto
precisa ser alterado a fim de tomar-se inteiramente digno de ser amado. Por que os
homens precisam de tanta alteração? A resposta cristã - de que usamos nosso livre-
arbítrio para nos tomar excessivamente maus - é tão conhecida que praticamente não
precisa ser expressa. Fazer, porém, com que esta doutrina ganhe vida real na mente do
homem moderno, e até mesmo dos modernos cristãos, é muito difícil.
Quando os apóstolos pregavam, eles podiam supor como certa, mesmo em seus
ouvintes pagãos, uma percepção real do fato de merecerem a ira divina. Os mistérios
pagãos existiam para acalmar este sentimento, e a filosofia de Epicuro alegava livrar os
homens do medo do castigo eterno. Foi contra este pano de fundo que o Evangelho
surgiu como boas notícias. Ele trouxe notícias de uma possível cura para os homens que
sabiam achar-se mortalmente enfermos. Mas tudo isto mudou. O cristianismo tem agora
de pregar o diagnóstico - que é por si mesmo péssimas notícias - antes de ganhar a
atenção dos ouvintes para ensinar-lhes a cura.
São duas as causas principais. Uma delas é o fato de que por cerca de um século
temos nos concentrado de tal forma em uma das virtudes - "bondade" ou misericórdia -
que a maioria de nós não acha que é necessário nada além de bondade para ser
realmente bom ou de crueldade para ser realmente mau.
Desenvolvimentos éticos assim assimétricos não são incomuns, e outras épocas
também tiveram as suas virtudes favoritas e curiosas insensibilidades. E se uma virtude
deve ser cultivada à custa das demais, nenhuma delas possui mais valor do que a
misericórdia - pois todo cristão deve rejeitar por completo essa propaganda sub-reptícia a
favor da crueldade que tenta expulsar a misericórdia do mundo rotulando-a de
"Humanitarismo" e "Sentimentalismo".
O problema real está em que "bondade" é uma qualidade fácil de ser atribuída a
nós mesmos em bases absolutamente inadequadas. Todos se sentem benevolentes se
nada acontecer para aborrecê-los no momento. O homem se consola então facilmente a
respeito de todos os seus outros vícios, através de uma convicção de que "seu coração
está no lugar onde deve estar" e de que "não mataria uma mosca", embora de fato jamais
tivesse feito o menor sacrifício por um semelhante. Pensamos que somos bons quando
somos apenas felizes: não é assim fácil, na mesma base, imaginar que somos
temperantes, castos ou humildes.
A segunda causa é o efeito da psicanálise na mente do público, e, em particular, a
doutrina das repressões e inibições. O que quer que essas doutrinas signifiquem
realmente, a impressão que deixa ram na maioria das pessoas é que o sentido de
Vergonha é algo perigoso e nocivo. Temos nos esforçado para vencer esse senso de
recuo, esse desejo de ocultar, que ou a própria natureza ou a tradição de quase toda a
humanidade associou à covardia, à lascívia, à falsidade e à inveja. É-nos dito para "pôr
tudo para fora"; não para que nos humilhemos, mas com base no fato dessas "coisas"
serem muito naturais e que não devemos envergonhar-nos delas.
Todavia, a não ser que o cristianismo seja totalmente falso, a percepção de nós
mesmos que temos em momentos de vergonha deve ser a única verdadeiramente real; e
mesmo a sociedade pagã tem geralmente reconhecido a "sem-vergonhice" como o ocaso
da alma. Na tentativa de remover a vergonha destruímos uma das defesas do espírito
humano, exultando loucamente como exultaram os troianos quando quebraram as suas
muralhas e fizeram entrar o Cavalo em Tróia. Não sei de nada que possa ser feito além
de começar a reconstrução o mais depressa possível. É um trabalho tolo remover a
hipocrisia removendo a tentação de ser hipócrita: a "franqueza" das pessoas que
desceram abaixo da vergonha é uma franqueza muito medíocre.
A recuperação do velho sentido de pecado é essencial ao cristianismo. Cristo tem
como certo que os homens são maus. Até que sintamos ser verdadeira esta sua
suposição, embora sejamos parte do mundo que Ele veio para salvar, não nos integramos
na audiência a quem Suas palavras são dirigidas. Falta-nos a primeira condição para
compreender o que Ele fala. E quando os homens tentam ser cristãos sem esta
consciência preliminar de pecado o resultado quase sempre se manifesta através de um
certo ressentimento contra Deus como alguém que está sempre fazendo exigências
impossíveis e sempre inexplicavelmente zangado. A maioria de nós sente às vezes uma
simpatia secreta pelo fazendeiro agonizante que respondeu às palavras do Vigário sobre
o arrependimento, perguntando: "Mas, que mal eu fiz a Ele?" É justamente esse o ponto.
O pior que fizemos a Deus foi abandoná-lO - por que não pode Ele devolver a gentileza?
Por que não viver e deixar que os outros vivam? Que direito tem Ele, entre todos os
seres, de ficar "zangado"?
É fácil para Ele ser bom!
No momento porém em que o homem sente uma culpa real - momentos esses
demasiado raros em nossa vida - todas essas blasfêmias se dissolvem. Podemos sentir
que muito pode ser justificado pelas fraquezas humanas - mas não isto, este ato
incrivelmente baixo e repugnante que nenhum de nossos amigos teria praticado, de que
até mesmo um patife como X se envergonharia, que jamais permitiríamos por coisa
alguma que fosse publicado. Em momentos como esse ficamos realmente sabendo que
nosso caráter, como revelado nesse ato, é, e deveria ser, odioso a todos os homens
bons, e, se houver poderes superiores ao homem, a eles também. Um Deus que não
considerasse tal coisa com desgosto implacável não seria um ente bom. Não podemos
sequer desejar um Deus assim – seria como desejar que todo nariz no universo fosse
abolido, que o perfume do feno, das rosas, ou do mar jamais voltasse a deliciar qualquer
criatura, porque nosso hálito cheira mal.
Quando simplesmente dizemos que somos maus, a "ira" de Deus parece uma
doutrina bárbara; mas tão logo percebemos nossa maldade, ela parece inevitável, um
simples corolário da bondade divina. Manter sempre à nossa frente a percepção derivada
de um momento como o que descrevi, aprender a detectar a mesma corrupção real e
indesculpável sob mais e mais de seus disfarces complexos, é portanto indispensável
para uma verdadeira compreensão da fé cristã. Não se trata naturalmente de uma nova
doutrina. Não estou tentando produzir nada esplêndido neste capítulo, mas simplesmente
procurando fazer com que meu leitor (e, mais ainda, eu mesmo) atravesse a pons
asinorum - dando o primeiro passo para sair de um paraíso insensato e da completa
ilusão. Mas esta ilusão tomou-se, nos tempos modernos, tão forte, que devo acrescentar
algumas considerações tendentes a fazer com que a realidade se mostre menos incrível.
1. Somos enganados porque olhamos a superfície das coisas. Supomos não ser
muito piores do que Y, que todos reconhecem como um indivíduo decente, e certamente
(embora não devamos anunciá-lo em voz alta) melhores do que o abominável X. Mesmo
num nível superficial estamos provavelmente enganados quanto a isto. Não esteja tão
certo de que seus amigos o consideram tão bom quanto Y. O próprio fato de você tê-lo
escolhido para comparação é suspeitoso: ele está provavelmente muito acima de você e
seu círculo.
Mas, suponhamos que tanto Y como você não pareçam "maus". Até que ponto o
comportamento de Y é enganoso é assunto entre ele e Deus. A fachada dele pode não
ser falsa, mas você sabe que a sua é. Isto lhe parece um simples artifício, porque eu
poderia dizer o mesmo a Y e a cada homem por sua vez? Mas é justamente esse o ponto.
Todo homem, que não é muito santo nem muito arrogante, tem de "conformar-se" à
aparência exterior de outros homens: ele sabe que existe em seu íntimo algo que está
muito abaixo até mesmo de seu mais casual comportamento em público, mesmo sua
conversa mais livre.
Naquele instante enquanto seu amigo hesita procurando uma palavra, quais os
pensamentos que passam pela sua mente? jamais faiamos toda a verdade. Podemos
confessar jatos pouco atraentes - a covardia mais baixa ou a impureza mais vil e mais
prosaica - mas o tom é falso. O próprio ato de confessar - um olhar hipócrita infinitamente
pequeno - uma pitada de humor - tudo isto contribui para dissociar os fatos do seu próprio
"eu".
Ninguém poderia adivinhar quão familiares e, num certo sentido, apropriadas à
sua alma essas coisas são, como elas fazem parte do resto: bem no fundo, no calor de
seu íntimo, elas não fazem soar uma nota tão discordante, não parecem tão estranhas e
desligadas do restante de você, como aparentam quando colocadas em palavras.
Subentendemos e com freqüência cremos que vícios habituais são atos únicos e
excepcionais, e cometemos o erro oposto em relação às nossas virtudes - como o mau
jogador de tênis que chama sua forma normal de seus "maus dias" e considera como
normais seus raros sucessos. Não penso que seja nossa falta o fato de não podermos
dizer a verdade a respeito de nós mesmos; o murmúrio persistente e íntimo, em todo o
decorrer de nossa vida, causado pelo despeito, pela inveja, pela lascívia, pela cobiça e
pela autocomplacência, simplesmente não se revela em palavras. Mas o importante é que
não devemos considerar nossos pronunciamentos inevitavelmente limitados como um
registro completo do pior que temos dentro de nós.
5. A sociedade maior com que contrasto aqui o "bolsão" pode não existir segundo
algumas pessoas, e em qualquer caso não temos experiência quanto a ela. Não
encontramos anjos ou raças não decaídas. Mas podemos ter algum vislumbre da verdade
mesmo em nossa própria raça. As diferentes eras e costumes podem ser consideradas
como "bolsões" em relação umas às outras. Afirmei, algumas páginas atrás, que as
diferentes idades sobressaíam em diferentes virtudes. Se, então, você jamais for tentado
a pensar que nós, os modernos europeus do ocidente, não podemos ser realmente tão
maus porque, falando em termos comparativos, somos humanos - se, em outras palavras,
você julga que Deus possa estar satisfeito conosco nessa base - pergunte a si mesmo se
acha que Deus deveria alegrar-se com a crueldade das eras cruéis pelo fato de se
sobressaírem pela coragem ou castidade.
Através da consideração de como a crueldade de nossos ancestrais se afigura a
nós, você pode ter um vislumbre de como nossa fraqueza, mundanismo e timidez teria
parecido a eles, e portanto como ambos devemos parecer aos olhos de Deus.
2 Tg ll13
3 serious Call, cap. 2.
Minha opinião, é que toda tristeza que não seja provocada pelo arrependimento
de um pecado concreto, acelerando o processo de emenda ou restituição; ou que, tendo a
piedade como origem não leve à ajuda ativa, é simplesmente má; e julgo que todos
pecamos por desobedecer desnecessariamente a injunção apostólica de nos "rejubilar"
tanto quanto por qualquer outra coisa. A humildade, depois do primeiro choque, é uma
virtude animadora: é o incrédulo generoso, tentando desesperadamente reter a sua "fé na
natureza humana" que é realmente triste. Tive em mira um efeito intelectual e não
emocional: tentando fazer com que o leitor acredite que sumos, na verdade, no presente,
criaturas cujo caráter deve ser, em alguns respeitos, um horror para Deus; e, quando
realmente percebemos isso, um horror para nós mesmos. Creio ser este um fato: e noto
que tanto quanto mais santo é o homem, tanto mais ele discerne esse fato. Talvez você
tenha imaginado que esta humildade nos santos seja uma ilusão piedosa da qual Deus se
ri. Esse é um erro dos mais perigosos. Ele é teoricamente perigoso porque faz com que
você identifique uma virtude (1.e., uma perfeição) com uma ilusão (i.e., uma imperfeição),
o que resulta em tolice. Ê praticamente perigoso porque encoraja o homem a considerar
seus primeiros vislumbres e sua própria corrupção como os primeiros sinais de um halo
ao redor de sua tola cabeça. Nada disso.
Você pode ter certeza que quando os santos dizem que eles - até mesmo eles -
são vis, estão registrando a verdade com correção cientifica.
Como surgiu este estado de coisas? No capitulo seguinte vou registrar tudo o que
sei a respeito da resposta cristã a essa pergunta.
A Queda do Homem
1 N. P. Williams, The Ideai fj the Fall and of Originai sin, pág. 516.
2 De Civitate Dei XIV, xiii.
Quando pode seguir esse plano sente que não está auferindo mais do que o que
lhe cabe por direito e se isso não acontece sente-se prejudicado, esbulhado.
A pessoa que ama, em obediência a um impulso imprevisto, que pode estar cheio
de boa vontade e do desejo e necessidade de não se esquecer de Deus, abraça o ser
amado e então, inocentemente, experimenta uma emoção de prazer sexual; mas o
segundo abraço pode ter em vista esse prazer, pode ser um meio de alcançar um fim,
pode ser o primeiro passo da estrada em declive que leva à consideração de um
semelhante como uma coisa, um instrumento a ser usado para o seu prazer. Dessa forma
a flor da inocência, o elemento de obediência e disposição para aceitar aquilo que vier, é
eliminado de toda atividade.
Os pensamentos experimentados por causa de Deus – como aquele em que nos
empenhamos no momento - são continuados como se fossem um fim em si mesmos, e a
seguir como se nosso prazer em pensar fosse o fim, e finalmente como se nosso orgulho
ou celebridade fosse o fim. Desse modo o dia inteiro, e todos os dias de nossa vida,
estamos nos desviando, escorregando, afastando - como se Deus fosse, para nossa
consciência presente, um plano inclinado suave no qual não há apoio.
Na verdade, nossa natureza agora é tal que precisamos escapar; e o pecado, por
ser inevitável, pode ser venial. Mas não foi Deus que nos fez assim. A gravitação para
longe de Deus, "a jornada em direção ao ego habitual", deve ser, ao que pensamos, um
resultado da Queda. O que aconteceu exatamente quando o homem caiu, não sabemos;
mas se é legítimo fazer conjeturas, ofereço o seguinte quadro: um "mito" no sentido
socrático,3 uma narrativa plausível.
Durante longos séculos Deus aperfeiçoou a forma animal que iria tomar-se o
veículo da humanidade e a imagem de Si mesmo. Ele deu-lhe mãos cujo polegar podia
ser aplicado a cada um dos dedos, e mandíbula, dentes e garganta articulados, assim
como um cérebro suficientemente complexo para executar todos os movimentos materiais
dando Julgar ao pensamento racional. A criatura pode ter existido durante séculos neste
estado antes de tomar-se homem: pode ter sido até mesmo inteligente o bastante para
fazer coisas que o arqueólogo moderno aceitaria como prova de sua humanidade. Mas
não passava de um animal porque todos os seus processos físicos eram dirigidos a fins
puramente materiais e naturais. Então, na plenitude do tempo, Deus fez descer sobre este
organismo, tanto na sua psicologia como fisiologia, uma nova espécie de consciência que
podia dizer "eu" e "mim", que podia olhar para si mesma como um objeto, que conhecia
Deus, que podia fazer juízos quanto à verdade, beleza e bondade, e que estava tão acima
do tempo que podia percebê-lo passar.
3 Isto é, um relato do que pode ter sido o fato histórico. Não devendo ser
Confundido com "mito" na opinião do Dr. Niebuhr (1.e., uma representação simbólica da
verdade não-histórica.)
Deus poderia ter suspenso este processo através de um milagre: mas isto -
falando por metáfora algo irreverente - seria declinar o problema que Deus, Ele mesmo,
tinha estabelecido ao criar o total de um mundo contendo agentes livres, apesar de, e por
meio de, sua rebelião contra Ele. O símbolo de um drama, uma sinfonia, ou uma dança, é
útil aqui para corrigir um certo absurdo que pode surgir se falarmos demasiado a respeito
de Deus planejar e criar o processo do mundo para o bem e de esse bem ser frustrado
pelo livre-arbítrio das criaturas.
Isto pode levantar a idéia ridícula de que a Queda tomou Deus de surpresa e
atrapalhou os seus planos, ou então - mais ridículo ainda - que Deus planejou tudo para
condições que, Ele bem sabia, jamais iriam ser cumpridas. De fato, como é natural, Deus
viu a crucifixão no ato de criar a primeira nebulosa. O mundo é uma dança em que o bem,
procedente de Deus, é perturbado pelo mal que sobe das criaturas, e o conflito resultante
é resolvido pela suposição do próprio Deus da natureza sofredora que o mal produz. A
doutrina da Queda voluntária afirma que o mal que produz assim o combustível ou a
matéria-prima para o segundo e mais complexo tipo de bem não é contribuição de Deus
mas do homem. Isto não quer dizer que se o homem tivesse permanecido inocente, Deus
não poderia então ter inventado um todo sinfônico igualmente esplêndido - supondo que
insistamos em fazer perguntas desse tipo.
Mas deve ser sempre lembrado que quando falamos do que poderia ter
acontecido, de contingências fora de toda realidade, não sabemos na verdade do que
estamos falando. Não existem tempos nem lugares fora do universo existente em que
tudo isto "poderia acontecer" ou "poderia ter acontecido". Penso que a maneira mais
significativa de afirmar a verdadeira liberdade do homem é dizer que se existirem outras
espécies racionais além dele, em alguma outra parte do universo atual, então não é
necessário supor que elas também tenham decaído.
Nossa condição presente é então explicada pelo fato de que somos membros de
uma espécie estragada. Não quero dizer que nossos sofrimentos sejam uma punição por
ser aquilo que agora não mais podemos deixar de ser, nem que sejamos moralmente
responsáveis pela rebelião de um ancestral remoto. Se, todavia, digo que nossa condição
presente é de pecado original, e não simplesmente de infortúnio original, isto se deve ao
fato de nossa experiência religiosa real não permitir que a consideremos de qualquer
outro modo. Em teoria, suponho que poderíamos dizer: "Sim, nós nos comportamos como
vermes, mas isso porque somos vermes. E, afinal de contas, isso não é culpa nossa."
Mas o fato de sermos vermes, longe de ser sentido como uma desculpa, é uma vergonha
e um sofrimento para nós maior do que qualquer dos atos que ele nos leva a cometer. A
situação não é assim tão difícil de entender como alguns pensam. Ela surge entre os
seres humanos toda vez que um menino realmente mal educado é introduzido no seio de
uma família decente. Eles procuram lembrar-se de que "não é culpa dele" ser um
valentão, um covarde, um mexeriqueiro e um mentiroso. Mas, de qualquer jeito, como
quer que o tenha adquirido, seu caráter é detestável. Eles não só o odeiam, como devem
odiá-lo. Não podem amar o menino pelo que é, podem apenas tentar transformá-lo
naquilo que não é. Nesse meio tempo, embora o menino não tenha tido sorte em ser
criado desse modo, você não pode com justiça chamar o seu caráter de uma
"infelicidade" como se ele fosse uma coisa e o seu caráter outra. É ele - ele mesmo - que
aborrece, age covardemente e gosta disso. E se começar a emendar-se irá
inevitavelmente sentir vergonha e culpa daquilo que está começando a deixar de ser.
Com isto eu disse tudo que pode ser dito no único nível em que sinto que posso
tratar do assunto da Queda. Aviso porém mais uma vez meus leitores que este nível é
raso. Nada dissemos das árvores da vida e do conhecimento que sem dúvida ocultam
algum grande mistério: e nada dissemos da afirmação paulina de que "em Adão todos
morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo".6 É esta passagem que serve
de base à doutrina patrística de nossa presença física nos lombos de Adão e à doutrina
de Anselmo de nossa inclusão, por ficção Legal, no Cristo sofredor. Essas teorias podem
ter sido adequadas em sua época, mas nada me acrescentam, e não vou inventar outras.
Os cientistas nos afirmaram recentemente que não temos direito de esperar que o
universo real possa ser retratado, e se concebermos imagens mentais para ilustrar a
física quântica estaremos então nos distanciando da realidade e não nos aproximando
dela.7
Temos ainda menos direito de exigir que as realidades espirituais mais elevadas
possam ser retratadas, ou sequer explicadas em termos de nossos pensamentos
abstratos.
Observo que a dificuldade da fórmula paulina está na partícula "em", e que esta é
usada com freqüência no Novo Testamento em sentidos que não podemos entender
completamente. O fato de podermos morrer "em" Adão e viver "em" Cristo parece implicar
que o homem, como realmente é, difere muito daquele apresentado por nossas
categorias de pensamento e nossas três imaginações dimensionais; que a separação -
modificada apenas por relações causais - que discernimos entre os indivíduos, é
equilibrada na realidade absoluta, por uma espécie de "comunicação" da qual não temos
qualquer idéia.
É possível que os atos e sofrimentos de grandes indivíduos-protótipos como Adão
e Cristo sejam nossos, não mediante ficção legal, metáfora ou causalidade, mas de algum
modo muito mais profundo. Não existe questão, naturalmente, de indivíduos se fundindo
numa espécie de continuidade espiritual como acreditam os sistemas panteístas; isso fica
excluído por todo o teor da nossa fé. Pode, entretanto, haver uma tensão entre a
individualidade e algum outro princípio. Cremos que o Espírito Santo possa estar
realmente presente e operando no espírito humano, mas nós não aceitamos isto, como os
panteístas, no sentido de que somos "partes" ou "modificações" ou "manifestações" de
Deus.
Podemos ter de supor, a longo prazo, que algo deste tipo seja verdade, em grau
adequado, até mesmo com respeito aos espíritos criados. Isto é, cada um, embora
distinto, está realmente presente em todos, assim como talvez tenhamos de admitir "ação
à distância" no nosso conceito de matéria. Todos terão notado como o velho Testamento
parece às vezes ignorar nosso conceito do indivíduo. Quando Deus promete a Jacó que
"irá para o Egito com ele e certamente o fará sair de lá novamente",8 isto é cumprido seja
pelo sepultamento do corpo de Jacó na Palestina ou pelo êxodo dos descendentes de
Jacó do Egito. É perfeitamente justo associar esta noção com a estrutura social das
primeiras comunidades, nas quais o indivíduo é constantemente esquecido a favor da
tribo ou família.
6 I Co15:22
7 Sir James Jeans, The Mysterious Universe. cap. 5
8 Gn 46:4
O Sofrimento Humano
Desde que a vida de Cristo é de toda forma mais penosa à natureza, ao “eu” e ao
"mim" ( pois na verdadeira vida de Cristo, o "eu", o "mim", e a natureza devem ser
esquecidos, perdidos, e eliminados inteiramente.)em cada um de nós, portanto, a
natureza na realidade abomina essa vida.
Theologia Germanica, XX.
1 Em Lugar de "malvados", talvez fosse preferível dizer "as piores criaturas" Não
rejeito de forma alguma o ponto de vista de que a "causa eficiente" da doença, ou alguma
doença, possa ser um outro ente criado e não o próprio homem (veja Capítulo IX). Nas
Escrituras, Satanás se acha particularmente associado à doença em Jó, Lucas 13:16, 1
Co 5:5 e provavelmente em I Tm 1:20.
Concordamos assim com Aristóteles que aquilo que é intrinsecamente certo pode
ser perfeitamente agradável, e quanto melhor o homem, mais gostará dele; mas estamos
de acordo com Kant a ponto de afirmar que existe um ato certo - o da auto-entrega - que
não pode ser desejado ao máximo pelas criaturas decaídas a não ser que seja
desagradável. E devemos acrescentar que este ato de retidão inclui toda demais justiça, e
que o cancelamento supremo da queda de Adão, o movimento de "recuo a toda
velocidade" pelo qual retraçamos nossa longa jornada do Paraíso, o desfazer do velho e
duro nó, deve ser feito quando a criatura, sem qualquer desejo de apoiá-lo, reduzida à
simples vontade de obedecer, aceita o que é contrário à sua natureza, e faz aquilo que só
pode ser motivado por uma única coisa. Um ato assim pode ser descrito como um "teste"
da volta da criatura a Deus: por essa razão nossos pais disseram que as tribulações
foram "enviadas para provarnos".
Um exemplo conhecido é a "provação" de Abraão quando recebeu ordem para
sacrificar Isaque. Não me preocupo agora com a historicidade ou moral dessa história,
mas com a pergunta óbvia: "Se Deus é onisciente ele deveria ter sabido o que Abraão iria
fazer, sem necessidade de qualquer experiência; por quê, então, esta tortura
desnecessária?" Mas como salienta Sto. Agostinho,5 o que quer que Deus soubesse,
Abraão de qualquer forma não sabia que sua obediência podia suportar tal ordem até que
o acontecimento o ensinasse: e a obediência que não sabia que iria escolher, não pode
ser dito que escolhesse.
A realidade da obediência de Abraão foi o ato em si; e o de que Deus tinha
conhecimento sabendo que Abraão "obedeceria" foi a obediência real dele naquele
monte, naquele momento. Dizer que Deus "não precisaria ter realizado a experiência" é
dizer que, pelo fato dele saber, a coisa conhecida por Deus não precisaria existir.
Se a dor algumas vezes destroça a falsa auto-suficiência da pessoa, todavia na
suprema "Provação" ou "Sacrifício" ela lhe ensina a auto-suficiência que verdadeiramente
deveria ser sua - a "força, que, quando dada pelo Céu, pode ser chamada sua
propriedade": pois então, na ausência de todos os motivos e apoios simplesmente
naturais, ela age nessa força, e só nela, que lhe é conferida por Deus mediante sua
vontade rendida. O que é humano irá tornar-se realmente criativo e realmente nosso
quando for inteiramente de Deus, e este é um dos muitos sentidos em que aquele que
perde a sua alma irá achá-la. Em todos os demais atos nossa vontade é alimentada pela
natureza, isto é, através de coisas criadas e não pelo "eu" - através dos desejos
provocados por nosso organismo e hereditariedade. Quando agimos por nós 1mesmos,
isto é, por Deus em nós, somos colaboradores ou instrumentos vivos da criação: essa a
razão pela qual um ato assim desfaz com poder desagregador o aspecto de falta de
criatividade que Adão transmitiu a sua espécie. Assim sendo, da mesma forma que o
suicídio é a expressão típica do espírito estóico, e a luta a do espírito guerreiro, o martírio
sempre permanece como o ato supremo e a perfeição do cristianismo. Este grandioso ato
foi iniciado para nós, feito a nosso favor, exemplificado para nossa imitação, e
comunicado inconcebivelmente a todos os crentes, por Cristo no Calvário.
O grau de aceitação da morte alcança ali os limites máximos do imaginável e
talvez os supere; não apenas todos os suportes naturais, mas a própria presença do Pai a
quem o sacrifício é feito abandona a vítima, e a sua entrega a Deus não vacila embora
Ele a "desampare".
6 Hb 9:22
7 PIatão, Phoed, 81, A (cf. 64,A)
8 Keats, Hyperion, III, 130
9 Mc 10:27
É isso que a palavra significa. Estou apenas tentando mostrar que a velha
doutrina cristã de nos "aperfeiçoarmos através do sofrimento"10 não é inacreditável.
Provar que ela é agradável está fora de minhas cogitações.
10 Hb 2:10
Para avaliar a credibilidade da doutrina devem ser observados dois princípios. Em
primeiro lugar, devemos ter em mente que o momento atual da dor no presente é apenas
o centro do que pode ser chamado de sistema de tribulação total que se amplia através
do temor e da piedade. Os efeitos positivos que essas experiências possam ter
dependem do centro; assim, mesmo que a dor em si não tivesse valor espiritual, mas o
medo e a piedade tivessem, a dor te- ria de existir para que pudesse haver algo a ser
temido e compadecido.
Não se pode também duvidar que a piedade e o temor nos ajudam em nossa
volta à obediência e à caridade. Todos nós já experimentamos o efeito da piedade,
tornando mais fácil para nós amar os que não provocam amor, isto é, amar ao próximo
não porque ele seja de qualquer forma agradável a nós, mas por ser nosso irmão. O
benefício do medo que a maioria de nós aprendeu durante o período de "crise" que levou
à guerra atual.
Minha própria experiência é mais ou menos a seguinte. Estou progredindo ao
longo da estrada da vida em minha condição usual, satisfeita e decaída, absorvido num
encontro agradável com amigos marcado para amanhã ou um pouco de trabalho que
estimula minha vaidade hoje, um feriado ou um livro novo, quando de repente uma
pontada no abdome que pode indicar doença séria, ou uma notícia nos jornais
ameaçando o mundo de destruição, faz ruir o meu castelo de cartas. Sinto-me a princípio
vencido, com todas as minhas pequenas alegrias desfeitas como brinquedos destroçados.
A seguir, devagar e com relutância, pedaço a pedaço, tento enquadrar- me no estado de
espírito em que deveria sempre estar. Chamo minha atenção para o fato de que todos
esses brinquedos não tinham o propósito de apossar-se do meu coração, que meu bem
real está num outro mundo e que meu único e verdadeiro tesouro é Cristo. E, talvez, pela
graça de Deus, venha a ter êxito, e durante um dia ou dois me tomo uma criatura que
depende conscientemente de Deus e que extrai a sua força das fontes certas. Mas no
momento em que a ameaça desaparece, toda a minha natureza salta de volta aos
brinquedos: fico até ansioso, que Deus me perdoe, para banir de minha mente a única
coisa que me sustentou sob a ameaça, porque ela está agora associada à miséria
daqueles poucos dias.
Fica então muito clara a terrível necessidade da tribulação. Deus me teve apenas
por quarenta e oito horas e mesmo assim à força de ameaças, de tirar de mim tudo o
mais. No momento em que Ele embainha a espada, me comporto como um cachorrinho
quando o odiado banho acaba - sacudo-me o melhor que posso e corro a recuperar
minha confortável sujeira, se não for no monturo mais próximo, pelo menos no primeiro
canteiro de flores. É por isso que as tribulações não podem cessar até que Deus nos veja
transformados ou julgue que nossa transformação é agora impossível.
Em segundo lugar, quando estamos considerando a dor em si - o centro de todo o
sistema tribulativo - devemos ter cuidado de aplicar-nos àquilo que conhecemos e não ao
que imaginamos. Esta é uma das razões por que a parte central deste livro é dedicada ao
sofrimento humano, e o dos animais foi relegado a um capítulo especial. Nós conhecemos
o sofrimento humano, enquanto só podemos especular sobre o dos animais. Mesmo
dentro da raça humana é preciso extrair nossa evidência de circunstâncias que pudemos
observar. A tendência deste ou daquele novelista ou poeta pode representar o sofrimento
como absolutamente negativo em seus efeitos, como se produzisse e justificasse toda
espécie de maldade e brutalidade no sofredor. E, naturalmente, a dor, assim como o
prazer, podem ser recebidos dessa forma: tudo o que é dado a uma criatura com livre-
arbítrio deve ter dois gumes, não pela natureza do doador ou do que foi dado, mas pela
natureza do recipiente.11
Os resultados negativos da dor podem ser multiplicados se os observadores
ensinaram constantemente aos que estão sofrendo que esses são exatamente os
resultados certos e nobres que devem manifestar. A indignação quanto ao sofrimento de
outrem, embora seja uma paixão generosa, precisa ser bem controlada éi fim de não
roubar a paciência e humildade dos que sofrem e semear a ira e o cinismo em seu lugar.
Não estou, porém, convencido de que o sofrimento, se lhe for poupada tal
indignação intrometida e vicária, tenha qualquer tendência natural para produzir tais
males. Não achei que as trincheiras estivessem mais cheias de ódio, egoísmo, rebelião e
desonestidade do que qualquer outro lugar. Vi uma grande beleza de espírito em alguns
indivíduos que muito sofreram. Vi homens, que no correr dos anos se tornaram melhores
e não piores, e vi a última doença produzir tesouros de força e mansidão por parte de
alguns que bem pouco prometiam. Observo em personagens históricos amados e
reverenciados, como Johnson e Cowper, traços que seriam admitidamente intoleráveis
caso tivessem sido eles mais felizes. Se o mundo for de fato um "vale de formação de
almas", ele parece em termos gerais estar fazendo o seu trabalho.
Quanto à pobreza - a aflição que atual ou potencialmente inclui todas as demais
aflições - não ousaria falar por mim mesmo; e os que rejeitam o cristianismo não irão
comover-se com a declaração de Cristo de que a pobreza é abençoada. Aqui, porém, um
fato notável vem em minha ajuda. Os que repudiam com desdém o cristianismo como um
simples "ópio do povo" desprezam os ricos, isto é, toda a humanidade exceto os pobres.
Eles consideram os pobres como as únicas pessoas dignas de serem poupadas da
"liquidação", e colocam neles a única esperança da raça humana. Mas isto não é
compatível cem a crença de que os efeitos da pobreza sobre os que a sofrem são
inteiramente negativos; implica até mesmo em que eles são bons. O marxista vê-se então
concordando realmente com o cristão em relação a essas duas crenças que o
cristianismo paradoxalmente exige - que a pobreza é abençoada, mas mesmo assim deve
ser removida.
O Sofrimento Humano
(continuação)
Todas as coisas que são como deveriam ser conformam-se a esta segunda lei
eterna; e mesmo aquelas coisas não conformadas a esta lei eterna, todavia, de algum
modo, são ordenadas pela primeira lei eterna.
HOOKER. Laws of Eccles. Pol. 1, 3, 1.
Vou apresentar neste capítulo seis proposições necessárias para completar nosso
relato do sofrimento humano as quais não são interdependentes e devem, portanto, ser
dadas em unia escala arbitraria.
l. Existe no cristianismo um paradoxo no que se refere à tribulação. Bem-
aventurados são os pobres, mas através do "juízo" (i.e., da justiça social) e esmolas
devemos remover a pobreza sempre que podemos evitar a perseguição fugindo de cidade
em cidade, e é permitido orar para que sejamos poupados, como fez nosso Senhor no
Getsêmani.
Mas, se o sofrimento é bom não deveria ele ser procurado em vez de evitado?
Respondo que ele não é bom de si mesmo. O que é positivo para o sofredor em
qualquer experiência penosa é a sua submissão à vontade de Deus e, para os
espectadores, a compaixão despertada e os atos de bondade a que esta os leva.
No universo decaído e parcialmente remido podemos distinguir: (1) o simples bem
procedente de Deus, (2) o simples mal produzido pelas criaturas rebeldes, e (3) a
exploração desse mal por parte de Deus para atender ao seu propósito redentor, que
produz (4) o bem complexo para o qual contribuem o sofrimento aceito e o pecado de que
nos arrependemos. O fato de Deus poder extrair o bem complexo do simples mal não
desculpa - embora pela misericórdia ele possa salvar - os que praticam o simples mal.
Esta distinção é essencial, As ofensas devem sobrevir, mas ai daqueles que as praticam;
os pecados realmente fazem abundar a graça, mas não devemos fazer disso uma
justificativa para continuar pecando. A crucificação é em si mesma o melhor, assim como
o pior, de todos os eventos históricos, mas o papei de )udas continua simplesmente
sendo mau. Podemos aplicar isto primeiro ao problema do sofrimento alheio. O homem
misericordioso visa o bem de seu próximo assim como a "vontade de Deus", colaborando
conscientemente com o "bem simples". O homem cruel oprime seu semelhante e o
mesmo acontece com o simples mal. Mas ao praticar esse mal, ele é usado por Deus,
sem seu conhecimento ou permissão, para produzir o bem complexo - e assim o primeiro
homem serve a Deus como filho e o segundo como instrumento.
Você irá certamente realizar o propósito de Deus, de qualquer forma que possa
agir, mas fará diferença em sua vida se servi-lO como Judas ou como João. O sistema
inteiro, por assim dizer, é calculado em relação ao conflito entre homens bons e maus, e
os frutos positivos da força, paciência, piedade e perdão para a crueldade do homem
cruel, pressupõem que o homem bom geralmente continua a buscar o simples bem. Digo
"geralmente" porque o homem tem algumas vezes o direito de ferir (ou mesmo, em minha
opinião, de matar) seu semelhante, mas apenas quando a necessidade é urgente e o bem
a ser alcançado óbvio, e no geral (embora nem sempre) quando o que inflige a dor possui
autoridade definida para fazê-lo - a autoridade paterna derivada da natureza, a do
magistrado ou soldado derivada da sociedade civil, ou a do cirurgião, procedente na
maioria das vezes do próprio paciente.
Transformar isto numa provisão geral para a humanidade aflita porque "a aflição é
boa para ela" (como o lunático Tamberlaine de Marlowe se gabava de ser o "flagelo de
Deus") não seria quebrar o esquema divino mas apresentar-se como voluntário para o
posto de Satanás dentro desse esquema. Se você fizer o trabalho dele deve ficar
preparado para receber o salário pago por ele.
O problema sobre como evitar o nosso próprio sofrimento admite uma solução
semelhante. Alguns ascéticos fizeram uso da autoflagelação. Como leigo, não ofereço
opinião sobre a prudência de tal regime; mas insisto em que, quaisquer que sejam os
seus méritos, a autoflagelação difere muito da tribulação enviada por Deus. Todo mundo
sabe que jejuar é uma experiência diferente daquela de não jantar seja por acidente ou
pobreza.
O jejum coloca em campos opostos a vontade e o apetite - a recompensa sendo o
domínio próprio e o perigo o orgulho: a fome involuntária sujeita ao mesmo tempo os
apetites e a vontade à vontade de Deus, fornecendo uma ocasião para nos submetermos
e nos expondo ao perigo da rebelião. Mas o efeito redentor do sofrimento jaz
principalmente em sua tendência a reduzir a vontade rebelde. As práticas ascéticas, que
por si mesmas fortalecem a vontade, só são úteis pelo fato de capacitarem a vontade a
colocar sua casa (as paixões) em ordem, como um preparo para oferecer o homem inteiro
a Deus. Elas são necessárias como um meio; como um fim seriam abomináveis, pois ao
substituir o apetite pela vontade e interrompendo-se nesse ponto, estariam simplesmente
trocando o ser animal pelo diabólico.
Foi dito portanto com verdade que "somente Deus pode mortificar". A tribulação
faz o seu trabalho num mundo onde os seres humanos estão naturalmente buscando, por
meios comuns, evitar o seu próprio mal natural e alcançar o seu bem natural,
pressupondo também tal mundo. A fim de submetermos a vontade a Deus, devemos ter
uma vontade e esta precisa de objetos.
A renúncia cristã não significa uma "apatia" estóica, mas disposição para preferir
Deus a alvos inferiores embora legais.
Assim sendo, o Homem Perfeito levou ao Getsêmani uma vontade, e uma
vontade forte, de escapar ao sofrimento e à morte se tal fuga fosse compatível com a
vontade do Pai, combinada com uma disposição perfeita para obedecer caso não fosse.
Alguns dos santos recomendaram uma "renúncia total" no próprio limiar de nosso
discipulado. Penso, porém, que isto só pode significar uma disposição total para toda
renúncia particular 1 que possa ser exigida, pois seria impossível viver de momento a
momento nada desejando além da submissão a Deus como tal. Qual seria então o
material da submissão? Pareceria contraditório dizer: "O que quero é sujeitar o que quero
à vontade de Deus", pois o segundo o que não tem conteúdo. Sem dúvida todos nós
temos muito cuidado em evitar o nosso próprio sofrimento: mas uma intenção
devidamente subordinada no sentido de evitá-lo, fazendo uso de meios legais, está de
acordo com a "natureza" - isto é, com todo o sistema de serviço da vida da criatura para a
qual o processo redentor da, tribulação é calculado.
1 Cf. Brother Lawrence, Practice of tbe Presence of God, Palestra IV, Novembro
25, 1667. A única "renúncia sincera" que existe "de tudo a que somos sensíveis não nos
leva a Deus".
3. Desde que os assuntos políticos cruzaram aqui nosso caminho, devo deixar
claro que a doutrina cristã de auto-rendição e obediência é puramente teológica, e de
forma alguma política. Quanto a formas de governo, autoridade e obediência civis, nada
tenho a dizer. A espécie e grau de obediência que uma criatura deve ao seu Criador é
uma coisa singular em vista de a relação entre criatura e Criador ser única: nenhuma
inferência pode ser extraída dela em associação a qualquer proposição política qualquer
que seja ela.
4. A doutrina cristã do sofrimento explica, creio eu, um fato muito curioso sobre o
mundo em que vivemos. A felicidade e segu- rança estáveis que todos almejamos nos
são negadas por Deus pela própria natureza do mundo: mas alegria, prazer e diversão,
Ele espalhou por toda parte. Jamais estamos seguros, mas temos muita alegria e algum
êxtase.
Não é difícil saber por quê. A segurança que desejamos nos ensinaria a
descansar o coração neste mundo e seria um obstáculo à nossa volta a Deus: uns poucos
momentos de felicidade no amor, um belo cenário, uma sinfonia, um encontro alegre entre
amigos, um banho ou um jogo de futebol, não têm essa tendência. Nosso Pai nos
refresca na jornada fornecendo algumas estalagens agradáveis, mas não nos encoraja a
aceitá-las como se fossem o nosso lar.
O Inferno
Num capítulo anterior foi admitido que somente a dor que pode despertar o
homem perverso para uma noção de que nem tudo esta bem, pode da mesma forma
levá-lo a uma rebelião final e sem arrependimento. Foi admitido sempre que o homem
possui livrearbítrio e que todas as concessões feitas a ele são portanto de dois gumes. A
partir dessas premissas segue-se diretamente que a obra divina de remir o mundo não
pode ter certeza de êxito com respeito à Cada alma individual. Alguns não serão remidos.
Não existe doutrina no cristianismo que eu gostasse mais de remover do que esta, se
tivesse esse poder. Mas ela tem o pleno apoio das Escrituras e, especialmente, das
próprias palavras de Nosso Senhor; foi sempre mantida pela cristandade; e está
fundamentada na razão. Quando jogamos deve haver a possibilidade de perder o jogo.
Se a felicidade de uma criatura se acha na autorendição, ninguém mais pode realizar
essa rendição. além dela mesma (embora muitos possam ajudá-la nesse sentido) e ela
pode recusar. Eu estaria disposto a pagar qualquer preço para poder dizer sinceramente:
"Todos serão salvos". A minha razão, porém, replica: "Com ou sem o consentimento
deles?" Se disser: "sem seu consentimento", percebo imediatamente uma contradição;
como pode o ato supremo e voluntário da auto-rendição ser involuntário? Se disser "com
seu consentimento", minha razão replica, "Como, se não quiserem ceder?"
Os sermões dominicais sobre o inferno, como fazem todos eles, são dirigidos à
consciência e à vontade e não à nossa curiosidade intelectual. Quando eles nos
despertam para a ação, convencendo-nos de uma terrível possibilidade, terão
provavelmente feito tudo o que pretendiam fazer; e se o mundo inteiro fosse composto de
cristãos convictos seria desnecessário dizer uma palavra sequer a mais sobre o assunto.
Como as coisas se acham, porém, esta doutrina é uma das bases principais para se
atacar o cristianismo como sendo bárbaro, e impugnar a bondade de Deus. Dizem-nos
que se trata de uma doutrina detestável - e, na verdade, também a detesto do fundo do
coração - e somos lembrados das tragédias nas vidas humanas que têm origem nessa
crença. Quanto às demais tragédias resultantes do fato de não crermos na mesma, pouco
se fala nelas. Por essas razões, e só essas, torna-se necessário discutir o assunto.
O problema não é simplesmente o de um Deus que destina algumas de suas
criaturas à ruína final. Seria esse o problema se fôssemos maometanos. O cristianismo,
leal como sempre à complexidade do que é real, nos apresenta algo mais intrincado e
mais ambíguo - um Deus tão cheio de misericórdia que se torna homem e morre torturado
para impedir a ruína final de suas criaturas e que, porém, onde falha esse remédio
heróico, parece pouco disposto, ou até mesmo incapaz, de sustar a ruína por um ato de
simples poder. Eu afirmei loquazmente pouco atrás que pagaria "qualquer preço" para
remover esta doutrina. Mas menti. Eu não poderia pagar um milésimo do preço que Deus
já pagou para remover o jato.
Este é um problema real: tanta misericórdia e, ainda assim, existe o inferno.
Não vou fazer qualquer tentativa no sentido de demonstrar que a doutrina é
tolerável.
Não nos enganemos; ela não é tolerável. Penso, entretanto, que pode ser
demonstrado que ela é moral, mediante uma crítica das objeções geralmente feitas, ou
sentidas, em relação à mesma.
Primeiro, existe uma objeção, em muitas mentes, quanto à idéia de castigo
retributivo como tal. Isto foi tratado parcialmente em outro capítulo. Dissemos então que
todo castigo se tornaria injusto se as idéias de demérito e retribuição fossem removidas
dele; e um núcleo de retidão fosse descoberto no próprio íntimo da paixão vingadora, na
exigência de que o perverso não permaneça perfeitamente satisfeito com a sua maldade,
que ela venha a parecer-lhe o que corretamente parece a outros - um mal. Eu disse que a
dor finca a bandeira da verdade na fortaleza rebelde. Estávamos então discutindo o
sofrimento que poderia ainda levar ao arrependimento. E se isso não acontecer - se
nenhuma outra vitória além de enterrar a bandeira no solo jamais tenha lugar? Vamos ser
honestos conosco mesmos. Imagino um homem que tenha ficado rico ou poderoso
através de uma série contínua de traições e crueldades, explorando com fins puramente
egoístas os sentimentos nobres de suas vítimas, rindo de sua ingenuidade; que, tendo
alcançado assim o sucesso, faz uso dele para sua própria gratificação, cobiça e ódio e
finalmente perde o último vestígio de honra entre malfeitores, traindo seus cúmplices e
zombando de seus derradeiros momentos de desilusão desnorteada.
Suponhamos, ainda, que ele faça tudo isso, não (como gostaríamos de imaginar)
atormentado pelo remorso ou mesmo apreensão, mas comendo como um adolescente e
dormindo como uma criança saudável - um homem alegre, sadio, sem um cuidado no
mundo. Confiante até o fim de que só ele encontrou a resposta para o enigma da vida,
que Deus e o homem são tolos de quem se aproveitou, que seu modo de viver é
completamente satisfatório, cheio de sucesso, inatacável. Temos de ser cuidadosos neste
ponto. A menor indulgência da paixão vingativa é um pecado mortal. A caridade cristã
aconselha-nos a empreender todos os esforços para a conversão de alguém assim:
preferir a sua conversão, mesmo ao risco de nossa própria vida, talvez de nossa própria
alma, do que o seu castigo; e preferir isso infinitamente. Mas esse não é o ponto.
Suponhamos que ele não venha a converter-se, que destino no mundo eterno você
consideraria adequado para ele? Será que pode realmente desejar que um indivíduo
desse tipo, permanecendo como é (e ele deve ter capacidade para tanto se tiver livre-
arbítrio), seja confirmado para sempre na sua felicidade presente - deveria ele continuar,
por toda eternidade, a manter-se perfeitamente convencido de que a última risada será
sua?
Se você não puder considerar isto como tolerável, será apenas a sua maldade -
apenas o despeito - que impede que o faça? Ou você encontra agora esse conflito entre a
Justiça e a Misericórdia, que algumas vezes lhe pareceu uma parte obsoleta da teologia,
atuando em sua mente, e tem a sensação de que ele vem do alto, e não de baixo? Você
não é movido pelo desejo de ver sofrer essa miserável criatura, mas por uma exigência
verdadeiramente ética de que, cedo ou tarde, o direito deve vencer, a bandeira deve ser
plantada nessa alma tremendamente rebelde, mesmo que não seja seguida de uma
vitória melhor e mais ampla, ia própria misericórdia dificilmente poderia desejar que um
indivíduo assim continue eternamente satisfeito em sua deplorável ilusão. Tomás de
Aquino falou a respeito do sofrimento o mesmo que Aristóteles falou da vergonha: tratava-
se de algo que não era bom em si mesmo, mas que poderia apresentar certos aspectos
bons em determinadas circunstâncias. Isto é, se o mal está presente, a dor ao reconhecer
o mal, sendo uma espécie de conhecimento, é relativamente boa; pois a alternativa seria
que a alma ignorasse o mal, ou ignorasse que o mal é contrário à sua natureza, "sendo
ambas", diz o filósofo, "manifestamente prejudiciais".1 E penso que, embora tremendo,
concordamos.
A exigência de que Deus deva perdoar tal homem enquanto permaneça como é,
está baseada numa confusão entre tolerar e perdoar. Tolerar um mal é simplesmente
ignorá-lo, tratá-lo como se fosse um bem. Mas o perdão precisa ser tanto aceito como
oferecido caso deva ser completo: e a pessoa que não admite culpa não pode aceitar
perdão.
Iniciei com o conceito de inferno como um castigo retributivo e positivo inflingido
por Deus, por ser essa a forma em que a doutrina é mais repelente, e queria tentar
resolver a objeção mais forte. Mas, naturalmente, embora Nosso Senhor fale com
freqüência do inferno como de uma sentença infligida por um tribunal, Ele também diz em
outro ponto que o juízo consiste no próprio fato de que os homens preferem as trevas à
luz, e que sua "palavra" e não Ele julga os homens.2 Temos, portanto, liberdade - desde
que os dois conceitos, a longo prazo, significam a mesma coisa - de pensar na perdição
deste perverso, não como uma sentença imposta a ele, mas como o simples fato de ele
ser o que é. A característica das almas perdidas é "sua rejeição de tudo que não seja
simplesmente elas mesmas".3 Nosso egoísta imaginário tentou transformar tudo o que
encontra em uma província ou apêndice do EU. A preferência pelo outro, isto é, a própria
capacidade de gozar do bem, é apagada nele exceto até o ponto em que seu corpo ainda
o arrasta a um contato rudimentar com o mundo exterior. A morte remove este último
contato. Ele alcança o que deseja - viver inteiramente para si mesmo e tirar o melhor
proveito do que descobre em seu interior. E o que encontra ali é o inferno.
Outra objeção se prende à aparente desproporção entre a danação eterna e o
pecado transitório. Se pensarmos na eternidade como um simples prolongamento do
tempo, é mesmo desproporcional. Mas muitos rejeitariam esta idéia de eternidade. Se
pensarmos no tempo como uma linha - que é uma boa imagem, porque as partes do
tempo são sucessivas e duas delas não podem coexistir; i,e., não existe largura no tempo,
apenas comprimento - provavelmente pensaríamos na eternidade como sendo um plano
ou mesmo um sólido.
Assim sendo, toda a realidade de um ser humano seria representada por uma
figura sólida.
Esse sólido seria principalmente a obra de Deus, agindo através da graça e da
natureza, mas o livre-arbítrio humano teria contribuído com a linha-base que chamamos
de vida terrena: e se você traçar sua linha-base torta, todo o sólido irá ficar no lugar
errado. O fato de a vida ser curta ou, no símbolo, que contribuímos apenas com uma linha
pequena e fina em toda figura complexa, poderia ser considerado como uma misericórdia
divina. Pois se até mesmo o traçado dessa pequena linha, deixada ao nosso livre-arbítrio,
é tão mal feito que pode prejudicar o todo, quanto mais estragaríamos a figura se mais
dela nos fosse confiado? Uma forma mais simples da mesma objeção consiste em dizer
que a morte não deveria ser final, que deveria haver uma segunda oportunidade.4
Acredito que se um milhão de oportunidades tivessem qualquer probabilidade de ajudar,
elas seriam dadas. Mas um professor sempre sabe, mesmo quando os alunos e os pais
não sabem, que é realmente inútil fazer um estudante repetir uma determinada prova. O
fim deve chegar um dia, e não é necessária uma fé muito forte para crer que a onisciência
sabe quando deve ser esse dia.
4 O conceito de uma "segunda oportunidade" não deve ser confundido nem com
o Purgatório (para as almas já salvas) nem com o Limbo (para as almas que já estão
perdidas).
5 Mt 25:34,41
Pode haver grande parte de verdade no ditado: "o inferno é inferno, não de seu
próprio ponto de vista, mas do ponto de vista celestial". Não acredito que isto interprete
mal a severidade das palavras de Nosso Senhor. Somente aos condenados é que seu
destino poderia parecer menos do que insuportável. E deve ser admitido que, nestes
últimos capítulos, à medida que pensamos na eternidade, as categorias de dor e prazer,
que nos prenderam por tanto tempo, começam a retroceder, enquanto bens e males mais
vastos surgem no horizonte. Nem a dor nem o prazer como tais têm a última palavra.
Mesmo se fosse possível que a experiência (se pode ser chamada assim) dos perdidos
não contivesse dor mas muito prazer; ainda assim, esse prazer negro seria de um tipo tal
que faria qualquer alma, ainda não condenada, voar para as suas orações num terror de
pesadelo: mesmo que houvesse sofrimentos no céu, todos os que têm entendimento os
desejariam.
Uma quarta objeção é que nenhum homem caridoso poderia considerar-se
abençoado no céu enquanto soubesse que uma única alma continuasse ainda no inferno;
e se for assim, somos então mais misericordiosos que Deus? Por trás dessa objeção
existe uma imagem mental de céu e inferno coexistindo numa época unilinear como
coexistem as histórias da Inglaterra e América: dessa forma a cada momento os bem-
aventurados poderiam dizer:
"As misérias do inferno estão agora continuando". Mas eu noto que Nosso
Senhor, embora enfatizando os terrores do inferno com grande severidade, no geral não
destaca a idéia de duração, mas de finalidade.
A entrega ao fogo destruidor é geralmente tratada como o fim da história e não
como o começo de outra nova. Não podemos duvidar que a alma perdida esteja
eternamente fixada em sua atitude diabólica; mas se esta fixidez eterna implica numa
duração sem fim - ou que dure mesmo - não podemos dizer. O Dr. Edwyn Bevan faz
algumas especulações interessantes sobre este ponto.6
Sabemos muito mais sobre o céu do que sobre o inferno, pois o céu é o lar da
humanidade e portanto contém tudo o que está implícito numa vida humana glorificada:
mas o inferno não foi feito para homens. Ele não é de forma alguma paralelo ao céu, mas
a "escuridão lá fora", a borda externa em que o ser se desvanece no nada.
Finalmente, é objetado que a perda final de uma única alma significa a derrota da
onipotência. E assim é. Ao criar seres com livre-arbítrio, a onipotência desde o início se
submete à possibilidade de tal fracasso. O que você chama de derrota, eu chamo de
milagre: pois fazer coisas que não são Ele mesmo, e tornar-se assim, num certo sentido,
capaz de sofrer resistência por parte das obras de suas próprias mãos, é o mais
surpreendente e inconcebível dos feitos que atribuímos à divindade. Acredito realmente
que os perdidos são, de certa forma, rebeldes bem sucedidos até o fim; que as portas do
inferno são fechadas por dentro. Não quero dizer que os fantasmas não desejem sair do
inferno, da maneira vaga como uma pessoa invejosa "deseja" ser feliz: mas eles
certamente não querem nem sequer os primeiros estágios preliminares daquele auto-
abandono através do qual a alma pode alcançar qualquer bem. Eles gozarão para sempre
da horrível liberdade que exigiram, e são portanto auto-escravizados; da mesma maneira
que os justos, para sempre submissos à obediência, se tornam através de toda
eternidade cada vez mais livres.
6 Symbolism and Belief, pág, 101.
E o nome que o homem desse a todos os seres viventes, esse seria o nome
deles.
Gênesis 2:19
Para descobrir o que é natural devemos estudar os espécimes que retêm a sua
natureza e não os que foram corrompidos.
ARISTÒTELES, Politics, I, v, 5.
Até aqui falamos do sofrimento humano; mas todo o tempo "um lamento de dor
inocente enternece o céu". O problema do sofrimento dos animais é estarrecedor; não
pelo fato de eles serem tão numerosos (pois, como vimos, não é sentida mais dor quando
sofre um milhão do que um único ser), mas porque a explicação cristã da dor humana não
pode ser estendida à dos animais. Ao que sabemos, estes são incapazes seja de pecado
ou de virtude: por- tanto, nem merecem sofrer nem podem ser aperfeiçoados pelo
sofrimento. Ao mesmo tempo, jamais devemos permitir que o problema do sofrimento
animal se torne o centro do problema da dor; não por ser insignificante - tudo o que
fornece uma base plausível para duvidar da bondade de Deus é sem dúvida importante -
mas por estar fora do alcance de nosso conhecimento. Deus nos deu dados que nos
permitem, até certo ponto, compreender nosso próprio sofrimento: mas não nos deu
detalhes nesse sentido sobre os animais. Não sabemos por que foram feitos nem o que
são, e tudo o que dizemos a respeito dos mesmos é especulativo. A partir da doutrina de
que Deus é bom, podemos com toda confiança deduzir que a aparência de crueldade
divina despreocupada no reino animal é uma ilusão. O fato de o único sofrimento que
conhecemos (o nosso próprio) revelar-se como não sendo crueldade, irá tornar mais fácil
acreditar nisso. A partir desse ponto, tudo o mais é adivinhação.
Podemos começar eliminando parte do engano apresentado no primeiro capítulo.
O fato de as vidas vegetais fazerem "presa" umas das outras e se encontrarem num
estado de competição "implacável" não tem qualquer importância moral. A "vida" no
sentido biológico nada tem a ver com o bem e o mal até que surge a sensibilidade. As
próprias palavras "presa" e "implacável" não passam de simples metáforas. Wordsworth
acreditava que toda flor "goza do ar que respira", mas não há razão para supor que
estivesse certo.
Não há dúvida de que as plantas vivas reagem aos danos de maneira diferente da
matéria inorgânica; mas um corpo humano anestesiado reage de outro modo ainda, e tais
reações não provam sensibilidade. Estamos naturalmente justificados ao falar da morte
ou eliminação de uma planta como se isso fosse uma tragédia, desde que saibamos estar
usando uma metáfora. Fornecer símbolos para as experiências espirituais pode ser uma
das funções do reino mineral e vegetal. Não devemos, porém, cair vítima de nossa
metáfora.
Uma floresta onde metade das árvores esteja matando a outra metade pode ser
uma floresta perfeitamente "boa": pois sua bondade consiste em sua utilidade e beleza e
ela não possui sensibilidade.
Quando observamos os animais, surgem três perguntas: Em primeiro lugar vem a
questão do fato. O que os animais sofrem? Em segundo, a questão da origem. Como a
doença e o sofrimento entraram no mundo animal? E, terceiro, há a questão de justiça.
Como o sofrimento do animal pode ser reconciliado com a justiça de Deus?
1. A longo prazo, a resposta à primeira pergunta é esta: Não sabemos. Mas
algumas especulações podem ter um certo mérito Devemos começar fazendo distinção
entre os animais, pois se o macaco pudesse compreender-nos ele não gostaria de ser
classificado juntamente com a ostra e a minhoca numa classe única de "animais" e
contrastado com os homens. Fica claro que em certos aspectos o macaco e o homem são
muito mais parecidos entre si do que qualquer deles se assemelha à minhoca. No nível
inferior do reino animal não precisamos supor que exista algo que possamos reconhecer
como sensibilidade. Os biólogos, ao distinguir o animal do vegetal, não fazem uso do
sentido ou locomoção, ou outras características desse tipo, como o leigo naturalmente
faria. Em algum ponto, porém, embora não possamos dizer onde, a sensibilidade
naturalmente é introduzida, pois os animais superiores possuem sistemas nervosos
bastante semelhantes aos nossos.
Mas, neste ponto devemos distinguir ainda a sensibilidade da consciência. Se
você não tinha ainda ouvido falar desta distinção, penso que vai considerá-la
surpreendente, mas ela possui grande autoridade e você estaria errado ao pô-la do lado.
Suponhamos que três sensações se sucedam - primeiro A, depois B, depois C. Quando
isto acontece com você, passará então pelo processo ABC. Mas, veja o que está então
implícito. Isso implica em que existe algo em sua pessoa que se acha suficientemente
fora de A para notar A indo embora, e suficientemente fora de B para notar B começando
e passando a encher o lugar que A deixou vago; e ainda algo que reconhece a si próprio
como mantendo-se o mesmo através da transição de A para B e de B a C, para que
possa dizer: "Passei pela experiência ABC".
Isto é então o que eu chamo de Consciência ou Alma e o processo que acabei de
descrever é uma das provas de que a alma, embora experimente o tempo, não é em si
mesma absolutamente "temporal". A mais simples experiência ABC como uma sucessão
exige uma alma que não seja ela mesma um mero suceder de estados, mas sim um leito
permanente em que rolam essas diferentes porções do fluxo das sensações, e que se
reconhece a si própria como sendo a mesma sob todas elas.
É quase certo, entretanto, que o sistema nervoso de um dos animais superiores
lhe apresenta sensações sucessivas. Não se segue daí que ele possua qualquer "alma",
nada que reconheça a si próprio como tendo tido A e esteja agora tendo B, e a seguir
observe como B se afasta para dar lugar a C. Se ele não tivesse tal "alma", o que
chamamos de experiência ABC jamais ocorreria. Haveria, na linguagem filosófica, uma
"sucessão de percepções"; isto é, as sensações ocorreriam de fato nessa ordem, e Deus
saberia que estavam ocorrendo, mas não o animal.
Não haveria "uma percepção da sucessão". Isto significa que se você desse duas
chibatadas em tal criatura, infringiria na verdade duas dores: mas não existiria um "eu"
coordenador que pudesse reconhecer: "'eu senti duas dores, dois golpes". Mesmo numa
única dor, não existe "eu" para dizer: "sinto dor" - pois se pudesse separar se da
sensação - o leito do fluxo – suficientemente para dizer "sinto dor", poderia também então
ligar as duas sensações como sendo a sua experiência. A descrição correta seria: "a dor
está tendo lugar neste animal"; e não, como comumente dizemos: "Este animal está
sentindo dor", pois as palavras "este" e "sentindo" na verdade introduzem a suposição de
que se trata de um "eu" ou "alma" ou "consciência" superando as sensações e
organizando-as em uma "experiência" como fazemos. Tal sensibilidade sem consciência
– admito - não podemos imaginar: não porque nunca ocorra em nós, mas porque, quando
isso acontece, nós nos descrevemos como estando "inconscientes". E com razão. O fato
de os animais reagirem à dor de forma semelhante à nossa não é, naturalmente, uma
prova de que tenham consciência; pois nós também podemos reagir sob os efeitos do
clorofórmio, e até mesmo responder perguntas quando estamos dormindo.
Até que ponto da escala essa sensibilidade inconsciente pode estender-se, não
quero nem adivinhar. É certamente difícil supor que os macacos, o elefante, e os animais
domésticos superiores não tenham, em algum grau, um "eu" ou alma que associa as
experiências e dá lugar à individualidade rudimentar. Mas pelo menos uma grande parte
do que parece ser sofrimento no animal, não necessita sê-lo em qualquer sentido real.
Podemos ser nós que inventamos os "sofredores" mediante a "falácia patética" de ler nas
batidas do coração um "eu" para o qual não haja evidência real.
3. Em último lugar, vem a questão da justiça. Vimos que parece haver razão para
crer que nem todos os animais sofrem como pensamos. Mas alguns, pelo menos, fazem
crer que possuem um "eu", e o que pode ser feito com relação a esses inocentes? Vimos
também que é possível acreditar que o sofrimento dos animais não é obra de Deus, tendo
sido iniciado pela malícia de Satanás e perpetuado pela deserção do homem de seu
posto. Todavia, se Deus não o provocou, Ele o permitiu e, mais uma vez, o que deve ser
feito a favor desses inocentes? Fui advertido para nem sequer levantar a questão da
imortalidade dos animais, a fim de não ir fazer "companhia a todas as velhas
solteironas".8 Não faço objeção a essa companhia. Não desprezo a virgindade nem a
velhice; e algumas das mentes mais sagazes que conheci habitavam os corpos de
solteironas. Nem me abalo com perguntas jocosas como: "Onde você vai colocar todos os
mosquitos?" - pergunta essa a ser respondida em seu próprio nível, salientando que, se o
pior acontecer, um céu para os mosquitos e um inferno para os homens poderiam ser
muito convenientemente conjugados.
O completo silêncio das Escrituras e da tradição cristã quanto à imortalidade dos
animais é uma objeção mais séria; mas ela seria fatal apenas se a revelação cristã
mostrasse quaisquer sinais de ser propositada como um système de la nature
respondendo a todas as questões.
Mas, não é nada disso: a cortina rasgou-se em um ponto, e num ponto apenas,
para revelar nossas necessidades práticas imediatas e não para satisfazer nossa
curiosidade intelectual.
Se os animais fossem, de fato, imortais, é improvável, pelo que discernimos do
método de revelação de Deus, que Ele tivesse revelado esta verdade. Até mesmo a
nossa imortalidade é uma doutrina que surge tardiamente na história do judaísmo.
Portanto, o argumento do silêncio é muito fraco.
7 Lucas 13:16
8 Mas também com J. Wesley, sermon LXV. The Great Deliverance.
A grande dificuldade em supor que a maioria dos animais seja imortal é que a
imortalidade quase não tem significado para uma criatura que não seja "consciente" no
sentido explicado acima. Se a vida de uma salamandra for simplesmente uma sucessão
de sensações, o que estaríamos dizendo ao afirmar que Deus pode ressuscitar a
salamandra que morreu hoje? Ela não poderia reconhecer-se como a mesma
salamandra; as sensações agradáveis de qualquer outra salamandra que vivesse após a
sua morte seriam uma recompensa tão grande ou tão pequena por seus sofrimentos
terrenos (se houvesse algum) como a de seu ressurreto - eu ia dizer "eu", mas a idéia é
que a salamandra não tem provavelmente um "eu". O que temos de tentar dizer, nesta
hipótese, não será nem mesmo dito. Não há, portanto, questão de imortalidade para as
criaturas que são simplesmente sensíveis. Nem a justiça e a misericórdia exigem que
houvesse, pois tais criaturas não têm experiências penosas. Seu sistema nervoso expede
todas as letras: RDO, mas como não podem ler, elas jamais as unem na palavra DOR. E
todos os animais podem estar nessa condição.
Se, todavia, a forte convicção que possuímos de um "eu" real, embora rudimentar,
nos animais superiores, e especialmente naqueles que domesticamos, não for uma
ilusão, o destino deles exige uma consideração mais profunda. O erro que temos de evitar
é o de considerá-los em si mesmos. O homem deve ser entendido apenas em sua relação
com Deus. Os animais só devem ser entendidos em sua relação com o homem e, através
deste, com Deus. Vamos guardar-nos aqui de um daqueles bolos intransmutáveis de
pensamento ateísta que com freqüência sobrevivem na mente do moderno cristão. Os
ateus naturalmente consideram a coexistência do homem e de outros animais como um
simples resultado contingente de fatos biológicos em interação; e a domesticação de um
animal pelo homem como uma interferência puramente arbitrária de uma espécie com
outra. O animal "real" ou "natural" para eles é o selvagem, e o animal domesticado não
passa de uma coisa artificial ou não-natural. Mas o cristão não deve pensar assim. O
homem foi destinado por Deus para ter domínio sobre os animais, e tudo o que o homem
faz para o animal ou é uma prática legal, ou um abuso sacrílego, de uma autoridade
divinamente outorgada. O animal domesticado, portanto, no sentido mais profundo, é o
único animal "natural" – o único que vemos ocupando o espaço que foi feito para ocupar,
e é nele que devemos basear toda a nossa doutrina dos animais.
Veremos agora que, até o ponto em que o animal doméstico possui um "eu" ou
personalidade reais, ele a deve inteiramente a seu dono. Se um bom cão pastor parece
"quase humano", isso se deve a um bom pastor tê-lo feito assim. Já notei a força
misteriosa do termo "em". Não penso que todos os sentidos do mesmo no Novo
Testamento sejam idênticos, de modo que o homem está em Cristo e Cristo em Deus e o
Espírito Santo na Igreja e também no crente individual exatamente da mesma forma.
Pode tratar-se de sentidos rimados ou correspondentes em lugar de um único sentido.
Vou sugerir agora - embora inteiramente disposto a ser corrigido por verdadeiros teólogos
- que pode haver um sentido, correspondente, apesar de não idêntico, a esses, em que
iodos os animais que chegam a ter um "eu" real estão em seus donos. Isto é, você não
deve pensar num animal por si mesmo, e chamar isso de personalidade e então perguntar
se Deus ira ressuscitar e abençoar isso; mas deve tomar todo o contexto em que o animal
adquire sua personalidade – a saber, "O bom homem-e-a-boa-mulher-educando-seuÌ-
filhos-e-seus animais-no-bomlar".
Esse contexto inteiro pode ser considerado como um "corpo" no sentido paulino
(ou um sub-paulino próximo); e quanto desse "corpo" pode sei" ressuscitado juntamente
com o bom homem e a boa mulher, quem pode prever? Provavelmente será na medida
necessária, não para a glória de Deus e a bem-aventurança do par humano, mas para
essa glória e bemaventurança particulares, eternamente coloridas por essa experiência
terrena particular.
Desta forma me parece possível que certos animais possam ter imortalidade, não
em si mesmos, mas na imortalidade de seus donos.
A dificuldade sobre a identidade pessoal numa criatura quase impessoal
desaparece quando a criatura é assim mantida em seu próprio contexto. Se você
perguntar, com respeito a um animal ressuscitado desse modo como membro do Corpo
inteiro do lar", onde reside a sua identidade pessoal, eu respondo: "Onde a sua identidade
sempre residiu mesmo na vida terrena - em sua relação com o Corpo e, especialmente,
com o senhor que é o cabeça desse Corpo". Em outras palavras, o homem conhecerá o
seu cão; o cão conhecerá o seu dono e, ao conhecê-lo, será ele mesmo. Pedir que, de
alguma forma, conhecesse a si mesmo, seria provavelmente exigir algo sem sentido. Os
animais não são assim, e não querem ser.
Minha imagem do bom cão pastor no bom lar não cobre naturalmente os animais
selvagens nem (um assunto ainda mais urgente) os animais domésticos maltratados. Ela
foi apresentada apenas como uma ilustração extraída de um caso privilegiado - que é,
também, a meu ver o único caso normal e incorrupto - dos princípios gerais a serem
observados ao estruturar uma teoria da ressurreição dos animais.
Acho que os cristãos podem hesitar com razão em supor que os animais sejam
imortais, por dois motivos. Primeiro, porque temem que ao atribuir-lhes uma "alma" no
sentido completo, possam obscurecer aquela diferença entre a besta e o homem que é
tão aguda na dimensão espiritual quão difusa e problemática na biológica. E, segundo,
uma felicidade futura ligada à vida presente do animal simplesmente como uma
compensação pelo sofrimento - tantos milênios nas pastagens felizes pagos como uma
retribuição pelos "prejuízos" de tantos anos de puxar carroças - parece uma confirmação
tosca da bondade divina. Por sermos falíveis, muitas vezes ferimos uma criança ou um
animal sem querer, e então o melhor que podemos fazer é "compensá-lo" com uma
carícia ou um bocado. Mas é difícil imaginar a onisciência agindo dessa forma, como se
Deus pisasse na cauda dos animais no escuro e depois tentasse consertar a coisa do
melhor modo possível! Num remendo assim tão malfeito não posso reconhecer o toque
de mestre; qualquer que seja a resposta, ela deve estar num plano mais elevado do que
esse.
A teoria que estou sugerindo evita ambas as objeções. Ela faz de Deus o centro
do universo e do homem o centro subordinado da natureza terrena: os animais não são
coordenados com o homem, mas subordinados a ele, e seu destino é inteiramente
relacionado ao dele. A imortalidade derivada sugerida para eles não é uma simples
emenda ou compensação: ela é parte essencial do novo céu e da nova terra,
organicamente relacionada a todo o processo do sofrimento, da queda, e da redenção da
humanidade.
Se supusermos, como faço, que a personalidade dos animais domesticados é
largamente devida ao homem - que sua simples sensibilidade se transforma em alma em
nós, da mesma forma que nossa simples alma renasce para a espiritualidade em Cristo -
suponho naturalmente que bem poucos animais, em seu estado selvagem, alcançam, na
verdade, um "eu" ou ego. Mas se alguns o alcançarem, e se for agradável à misericórdia
de Deus que vivam novamente, sua imortalidade seria também ligada ao homem - mas,
desta vez, não aos senhores individuais, e sim à humanidade. Quer dizer, se em qualquer
instância o valor quase-espiritual e emocional que a tradição humana atribui a um animal
(tal como a "inocência" do cordeiro ou él realeza heráldica do leão) tem uma base real na
natureza do mesmo, não sendo apenas arbitrária ou acidental, é então nessa capacidade,
ou principalmente nela, que se pode esperar que o animal sirva o homem ressurrecto e
faça parte de seu "séquito". Ou se o caráter tradicional for absolutamente errôneo, então a
vida do animal 9 no céu seria devida ao efeito real, mas desconhecido, que ele teve sobre
o homem durante toda a sua história: pois se a cosmologia cristã for em qualquer sentido
(não digo num sentido literal) verdadeira, então tudo o que existe em nosso planeta está
ligado ao homem, e até mesmo as criaturas extintas antes de ele existir são vistas à sua
verdadeira luz quando consideradas como precursores inconscientes do mesmo.
Quando falamos de criaturas tão remotas como animais selvagens e pré-
históricos, mal sabemos na verdade do que estamos falando. Pode muito bem ser que
eles não tenham nem "eu" nem sofrimentos. Pode ser até que cada espécie possua um
"eu" corporativo - que o caráter leonino, e não os leões tenha partilhado do trabalho da
criação e participará da restauração de todas as coisas. E se não podemos sequer
imaginar nossa própria vida eterna, muito menos podemos conceber a vida que os
animais poderão ter como nossos "membros". Se o leão terrestre pudesse ler a profecia
daquele dia em que ele ira comer feno como um boi, iria considerá-la uma descrição do
inferno e não do céu. E se nada houver no leão além de sensibilidade carnívora, ele não
tem então consciência e sua"sobrevivência" não teria significado. Mas se houver um "eu"
leonino rudimentar, Deus pode dar-lhe um "corpo" conforme Lhe agradar - um corpo que
não mais viva pela destruição do cordeiro, mas ainda assim ricamente leonino no sentido
de expressar também qualquer energia, esplendor e poder exultante que tivesse habitado
o leão visível nesta terra.
Julgo, sujeito a correção, que o profeta usou uma hipérbole oriental quando falou
do leão e do cordeiro deitados juntos. Isso seria bastante impertinente por parte do
cordeiro. Ver leões e cordeiros assim unidos (exceto em alguma rara Saturnália celestial)
seria o mesmo que não ter nem cordeiros nem leões. Julgo que o leão, quando deixar de
ser perigoso, continuará terrível: que, na verdade, iremos ver pela primeira vez aquilo de
que os dentes e garras atuais são apenas uma imitação desajeitada e satanicamente
pervertida. Continuará havendo ainda algo como o balançar de uma juba dourada: e o
bom Duque dirá repetidamente: "Deixe que ruja de novo."
9 Isto é, sua participação na vida celestial dos homens em Cristo para Deus;
sugerir uma "vida celestial" para os animais como tal é provavelmente tolice.
10
O Céu
É preciso
Que desperte a sua fé. Então tudo ficará estacionário;
Os que consideram algo ilegal.
O que faço, deixe que se afastem.
SHAKESPEARE. Winter's Tale.
Até mesmo em suas diversões, não houve sempre uma atração secreta que os
outros curiosamente ignoram - algo que não pode Ser identificado, mas sempre prestes a
revelar-se, o cheiro da madeira cortada na oficina ou o bater da água nos lados do barco?
As amizades duradouras não nascem sempre no momento em que você finalmente
encontra outro ser humano que possui uma certa percepção (embora leve e incerta)
daquilo que você nasceu desejando, e que, debaixo do fluxo de outros desejos e em
todos os silêncios momentâneos entre as paixões mais articuladas, dia e noite, ano e ano,
desde a infância até a velhice, você está procurando, observando, ouvindo? Você jamais
teve isso. Tudo o que jamais possuiu profundamente a sua alma não passou de
insinuações do mesmo - vislumbres torturantes, promessas que não chegam a cumprir-
se, ecos que morreram no momento mesmo em que chegaram a seus ouvidos. Mas se
viesse realmente a manifestar-se - se surgisse um eco que não morresse, mas se
transformasse no próprio som - você saberia. Além de toda possibilidade de dúvida você
diria: "Aqui está finalmente a coisa para a qual fui feito". Não podemos falar uns aos
outros sobre ela. É a assinatura secreta de cada alma, o desejo incomunicável e
insaciável, a coisa que desejamos antes de encontrar nossas esposas ou fazer nossos
amigos ou escolher nosso trabalho, e que continuaremos desejando em nossos leitos de
morte, quando a mente não mais conhece esposa, nem amigo, nem trabalho. Enquanto
somos, ela é. Se a perdermos, perdemos tudo.2
Esta assinatura em cada alma pode ser um produto da hereditariedade e do
ambiente, mas isso simplesmente significa que tanto a hereditariedade como o ambiente
estão entre os instrumentos por meio dos quais Deus cria uma alma. Não estou
considerando como, mas por que Deus fez cada alma única. Se Ele não tivesse uso para
todas essas diferenças, não vejo por que deveria ter criado mais do que uma alma. esteja
certo de que as saliências e reentrâncias de sua individualidade não são mistério para
Ele; e um dia não o serão também para você. O molde em que uma chave é feita seria
estranho para você se nunca tivesse visto uma chave; e a própria chave em si seria
também esquisita se nunca tivesse visto uma fechadura. A sua alma tem uma forma
curiosa por se tratar de uma cavidade feita para encaixar-se numa protuberância
particular nos contornos infinitos da substância divina, ou uma chave para abrir uma das
portas na casa com muitas moradas. Pois não é a humanidade de maneira abstrata que
deve ser salva, mas você - você, o leitor individual, João da silva ou Maria de Almeida.
Bendita e afortunada criatura, seus olhos irão contemplá-lo e somente os seus e não os
de outro. Tudo o que você é, com exceção dos pecados, está destinado a saciar-se, Se
permitir que Deus realize o Seu bom propósito. O espectro de Broeken "olhava para cada
homem como se ele fosse o seu primeiro amor", por que ela era uma fraude. Mas Deus
olhará para cada alma como se fosse o seu primeiro amor, porque Ele é o primeiro amor
dela. A sua posição no céu parecerá ter sido feita para você e só para você, porque você
foi feito para ela, ponto por ponto, como uma luva é feita para a mão.
2 Não estou naturalmente sugerindo que esses anseios imortais que nos Foram
dados pelo Criador, por sermos homens, devam ser confundidos com os dons do Espírito
Santo àqueles que estão em Cristo. Não devemos ter a ilusão de que somos santos por
sermos humanos.
O que pode pertencer mais a um homem do que este nome novo que mesmo na
eternidade permanece um segredo entre Deus e ele? E qual o significado que devemos
dar a esse segredo? Certamente que cada um dos remidos irá conhecer para sempre e
louvar algum aspecto da beleza divina mais do que qualquer outra criatura pode fazê-lo.
Para o que mais foram os indivíduos criados, senão para que Deus, amando infinitamente
a todos, pudesse amar a cada um de maneira diferente? E esta diferença, longe de
prejudicar, enche de significado o amor de todas as criaturas abençoadas umas pelas
outras, a comunhão dos santos.
Se todos tivessem experiência de Deus da mesma forma e o adorassem de
maneira idêntica, o cântico da Igreja triunfante não teria sinfonia, seria como uma
orquestra em que todos os instrumentos tocassem a mesma nota. Aristóteles nos
informou que uma cidade é uma união de dessemelhanças6, e São Paulo disse que um
corpo é uma unidade de membros diferentes7. O céu é uma cidade, e um Corpo, porque
os benditos permanecem eternamente diferentes: uma sociedade, porque cada um tem o
que contar a todos os demais – notícias frescas e sempre frescas do "Meu Deus" que
cada um encontra naquele que todos louvam como o "Nosso Deus". Pois sem dúvida a
tentativa continuamente vitoriosa, todavia jamais completada, feita pelas almas individuais
no sentido de comunicar sua visão ímpar a todas as outras (e isso através de meios dos
quais a arte e a filosofia terrenas não passam de grosseiras imitações), acha-se também
entre os propósitos para os quais o indivíduo foi criado.
A união existe apenas entre os dessemelhantes; e, talvez, deste, ponto de vista,
tenhamos um vislumbre momentâneo do significado de todas as coisas. O panteísmo não
é um credo tanto falso como por completo superado. Outrora, antes da criação, poderia
ter sido verdade dizer que tudo era Deus. Mas Deus criou: ele fez com que coisas
viessem a diferençar-se dele; a fim de que, sendo distintas, aprendessem a amá-lO, e
alcançassem união em lugar de simples igualdade. Assim, Ele também lançou o seu pão
por sobre as águas. Mesmo dentro da criação poderíamos dizer que a matéria inanimada
que não possui vontade é una com Deus num sentido que os homens não são. Mas não é
propósito de Deus que voltemos àquela antiga identidade (como, talvez, alguns místicos
pagãos desejariam que fizéssemos), mas que avancemos para a máxima diferenciação, a
fim de ali nos reunirmos a Ele de maneira mais elevada. Mesmo no Próprio Ente Santo,
não basta que a Palavra deva ser Deus, ela deve também estar com Deus. O Pai gera
eternamente o Filho e o Espírito Santo atua: a divindade introduz distinção em si mesma,
para que a união dos amores recíprocos possa transcender a mera união aritmética ou a
auto-identidade.
6 Politics, II, 2, 4
7 I Co 12:12-30
A distinção eterna de cada alma - o segredo que faz da união entre cada alma e
Deus uma espécie em si mesma - jamais irá porém abolir a lei que proíbe a propriedade
no céu.
Quanto aos seus semelhantes cada alma, supomos, irá estar eternamente
envolvida em dar a todos os demais aquilo que receber. E quanto a Deus, devemos
lembrar que a alma não passa de uma cavidade que é enchida por Ele. Sua união com
Deus, quase por definição, é uma auto-entrega contínua, uma abertura, um desvendar,
uma rendição, de si mesma. Um espírito abençoado é um molde cada vez mais
conformado ao metal brilhante nele despejado, um corpo cada vez mais completamente
descoberto ao calor meridiano do sol espiritual. Não precisamos supor que a necessidade
de algo análogo à auto-conquista venha a cessar jamais, ou que a vida eterna são seja
também a morte eterna. É neste sentido que, da mesma forma que pode haver prazeres
no inferno (Deus nos livre deles), pode haver algo levemente parecido à dor no céu (Deus
permita que logo possamos experimentá-la).
Na dádiva de nós mesmos, mais do que em qualquer outra coisa, entramos em
contato não só com toda a criação, mas com todo o ser. Pois o Verbo Eterno também Se
dá a Si mesmo em sacrifício; e isso não apenas no Calvário, pois quando foi crucificado
Ele "fez debaixo das intempéries de suas províncias remotas o que fizera em seu lar na
glória e com alegria".8 Desde antes da fundação do mundo, Ele entrega a divindade
gerada de volta à divindade geradora, em obediência. E da maneira como o Filho glorifica
o Pai, assim também o Pai glorifica o Filho.9 Com submissão, como cabe a um leigo,
penso que foi dito com verdade: "Deus não amou a si mesmo como sendo Ele mesmo
mas como a Excelência; e se houvesse algo melhor do que Deus, Ele amaria a isso e não
a Si mesmo."10
Desde o superior até o mais inferior, o ego existe para ser abdicado e, por essa
abdicação, se torna tanto mais um verdadeiro "eu", para ser então ainda mais abdicando,
e assim para sempre. Esta não é uma lei celestial à qual possamos escapar mantendo-
nos terrenos, nem uma lei terrena da qual possamos fugir sendo salvos. O que está fora
do sistema de auto-entrega não é terreno, nem natural, nem "vida comum", mas simples e
absolutamente inferno. Todavia, até mesmo o inferno deriva desta lei tanta realidade
quanto ela possui. Essa prisão brutal no "eu" não passa do anverso da auto-rendição que
é a realidade absoluta; a forma negativa tomada pelas trevas exteriores ao cercar e definir
a forma do real, ou que o real impõe sobre as trevas ao possuir uma forma e natureza
positiva próprias.
A maçã dourada do "eu", lançada entre os falsos deuses, tornou-se um pomo de
discórdia porque eles se arremessaram ao mesmo. Não conheciam a primeira regra do
jogo sagrado, que estabelece que cada jogador deve sem dúvida tocar a bola e depois
passá-la imediatamente adiante. Ser encontrado com ela nas mãos é uma falta: agarrar-
se a ela representa a morte. Mas quando ela voa para a frente e para trás entre os
jogadores, rápida demais para ser seguida com os olhos, e o grande Senhor, Ele mesmo,
libera a brincadeira, dando-se a Si mesmo no sacrifício, do Verbo; então, na verdade, a
dança eterna "acalenta o céu com sua harmonia". Todas as dores e prazeres que
conhecemos na terra são os movimentos dessa dançai mas a dança em si não pode ser
absolutamente comparada aos sofrimentos do tempo presente. À medida que nos
aproximamos de seu ritmo não-criado, a dor e o prazer quase desaparecem de vista.
Existe alegria nela, mas a dança não existe por causa da alegria. Ele não existe nem
mesmo por causa do bem, ou do amor. Mas é o próprio Amor, e o próprio Bem, e portanto
feliz. Não existe para nós, mas nós para ela. O tamanho e o vazio do universo que nos
atemorizaram no início deste livro devem manter-nos ainda receosos, pois embora
possam não ser nada além de um subproduto de nossa imaginação tridimensional,
mesmo assim simbolizam uma grande verdade.
O que a nossa Terra é para todas as estrelas, sem dúvida assim somos nós os
homens e nossas preocupações para toda a criação; o que as estrelas representam para
o próprio espaço, assim são todas as criaturas, todos os tronos e poderes e excelências
dos deuses criados, em relação ao abismo do Ser que existe por si mesmo, que é para
nós Pai e
Redentor e Consolador, mas de quem nenhum homem ou anjo pode dizer nem
conceber o que Ele é em Si mesmo e para Si mesmo, ou qual é a obra que Ele "fez desde
o começo até o fim". Pois todas essas são coisas derivadas e sem substância. A sua
visão falha e elas cobrem os olhos para escapar da luz intolerável da realidade absoluta,
que era e é e será, que nunca poderia ter sido de outro modo, que não tem oposto.
.
8 George MacDonald. Unspoke Sermons. 3rd Series, págs. 11,12.
9 Jo 17 :1 ,4,5
10 Theol. Germ. , XXXII
Apêndice
(Esta nota sobre os efeitos da dor foi gentilmente fornecida pelo Dr. R. Havard,
através de suas experiências médicas.)
A DOR é um acontecimento comum e definido que pode ser facilmente
reconhecido: mas a observação do caráter ou comportamento é mais difícil, menos
completa e menos exata, especialmente na relação transitória, embora íntima, entre
médico e paciente. Apesar desta dificuldade, certas impressões tomam gradualmente
forma no curso da prática médica, as quais são confirmadas à medida que a experiência
cresce. Um curto ataque de dor física intensa é terrível enquanto dura. O sofredor no
geral não se queixa em voz alta.
Ele pede alívio, mas não gasta o fôlego falando sobre seus males. É raro que
perca o autocontrole, tornando-se irracional e fora de si. É difícil que a dor mais aguda se
torne neste sentido insuportável. Quando a dor física curta, severa, passa, ela não deixa
qualquer alteração evidente no comportamento. A dor longa e contínua tem efeitos mais
visíveis. Ela é com freqüência aceita com pouca ou nenhuma queixa e grande força e
resignação se desenvolvem na pessoa.
O orgulho se humilha ou, às vezes, resulta numa determinação de esconder o
sofrimento. As mulheres com artrite reumatóide mostram um entusiasmo tão
característico que pode ser comparado à spes phthisica dos tuberculosos: sendo talvez
mais devido a uma leve intoxicação do paciente provocada pela infeção do que a um
acréscimo na sua força de caráter. Algumas vítimas de dores crônicas deterioram-se. Elas
se tornam lamurientas e exploram a sua posição privilegiada de inválidas para praticar a
tirania no lar. Mas o que admira é o fato de os fracassos serem tão poucos e tantos os
heróis; existe um desafio na dor física que a maioria pode reconhecer e reagir
proporcionalmente a ele. Por outro lado, uma doença longa, mesmo sem dor, exaure
tanto a mente como o corpo. O inválido desiste de lutar e se deixa cair indefeso e
queixoso num desespero de autopiedade.
Mesmo assim, numa condição física idêntica, alguns irão preservar sua
serenidade e abnegação até o fim. Esta é uma experiência rara de ser observada, mas
sempre comovente.
O sofrimento mental é menos dramático do que o físico, mas é mais comum e
também mais difícil de suportar. A tentativa freqüente de esconder o sofrimento mental
aumenta o fardo. É mais fácil dizer: "Meu dente está doendo" do que "Meu coração está
partido". Todavia, se a causa for aceita e enfrentada, o conflito irá fortalecer e purificar o
caráter e com o tempo a dor geralmente passará. Algumas vezes, entretanto, ela persiste
e o efeito é devastador. Se a causa não for enfrentada ou reconhecida, produz o estado
melancólico do neurótico crônico. Alguns, porém, heroicamente, superam até mesmo o
sofrimento mental crônico. Essas pessoas com freqüência trabalham com brilhantismo e
fortalecem, endurecem e aguçam seu caráter até que se tomam como aço temperado.
Na verdadeira insanidade o quadro é mais negro. Em todo o reino da medicina
não existe nada mais terrível de contemplar do que um indivíduo com melancolia crônica.
Mas a maioria dos insanos são é infeliz ou, na verdade, cônscia de sua condição. Em
qualquer caso, se se recuperam, vemos com surpresa que sofrem pouca modificação.
Muitas vezes não se lembram absolutamente de sua doença.
O sofrimento oferece uma oportunidade para o heroísmo; e essa oportunidade é
aceita com surpreendente freqüência.