Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

O Problema Do Sofrimento

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 97

O PROBLEMA DO SOFRIMENTO

C.S.LEWIS
Título do original em inglês publicado pela Wm. Collins Sons & Co. Ltd.
THE PROBLEM OF PAIN
Tradução de Neyd Siqueira
1ª edição brasileira em dezembro de 1983
2ª edição brasileira em setembro de 1986

O Autor

Nascido na Irlanda em 1898, C. S. Lewis estudou no Malvern College durante um


ano, recebendo a seguir uma educação ministrada por professores particulares. Ele
formou-se em Oxford, tendo trabalhado como professor no Magdalen College de 1925 a
1954. Em 1954 tornou-se Catedrático de Literatura Medieval e Renascentista em
Cambridge. Foi um conferencista famoso e popular, exercendo grande influência sobre
seus alunos.
C.S. Lewis conservou-se ateu por muitos anos, tendo descrito sua conversão no
livro “Surprised by Joy”: “No Termo da Trindade de 1929 entreguei os pontos e admiti que
Deus era Deus.., talvez o convertido mais desanimado e relutante de toda a Inglaterra.”
Foi esta experiência que o ajudou a compreender não apenas a apatia mas também a
resistência ativa por parte de certas pessoas em aceitarem a idéia de religião. Como
escritor cristão, caracterizado pelo brilho e lógica excepcionais de sua mente e por seu
estilo lúcido e vivo, ele foi incomparável. O Problema do Sofrimento, Cartas do Coisa-
Ruim, Cristianismo Autêntico, Os Quatro Amores e As Crônicas de Nárnia são apenas
algumas de suas obras mais vendidas. Ele escreveu também livros excelentes para
crianças e outros de ficção científica, além de muitas obras de crítica literária. Seus
trabalhos são conhecidos por milhões de pessoas em todo o mundo através de traduções.
C.S. Lewis morreu a 22 de novembro de 1963, em sua casa em Oxford, Inglaterra.

Outros livros pelo mesmo autor:


Cartas do Inferno
Cristianismo Puro e Simples
O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa
O Cavalo e seu menino
O Príncipe Caspian
A Batalha Final
Longe do Planeta Silencioso
Milagres
Perelandra
O Grande Abismo
Os Quatro Amores

Índice
Prefácio
l. Introdução
2. A Onipotência Divina
3. A Bondade Divina
4. A Maldade Humana
5. A Queda do Homem
6. O Sofrimento Humano
7. O Sofrimento Humano (continuação)
8. O Inferno
9. O Sofrimento dos Animais
10. O Céu
Apêndice

Prefácio

Quando o Sr. Ashley Sampson sugeriu-me que escrevesse este livro, pedi licença
para fazê-lo anonimamente, desde que, se tivesse de dizer aquilo que realmente penso
sobre o sofrimento, seria forçado a fazer declarações aparentemente tão fortes que se
tomariam ridículas se alguém soubesse quem as fizera. O anonimato foi rejeitado como
inconsistente com a série; mas o Sr. Sampson afirmou que eu poderia escrever um
prefácio explicando que não vivia de acordo com os meus princípios! E é este divertido
programa que estou agora levando a cabo. Deixem que confesse, imediatamente, nas
palavras do bondoso Walter Hilton, que através de todo este livro "sinto-me tão distante
de sentir realmente aquilo que falo, que não posso senão pedir misericórdia e desejar
alcançar tais sentimentos na medida do possivel"1. Todavia, justamente por essa razão,
existe uma crítica que não pode ser feita contra mim. Ninguém pode afirmar: "Ele zomba
de cicatrizes onde não existiu ferimento algum", pois eu nunca, em nenhum momento,
estive num estado de espirito em que até mesmo a idéia de sofrimento grave fosse menos
do que intolerável. Se qualquer homem está a salvo do perigo de subestimar este
adversário, eu sou esse homem.

1 scale of Perfection, 1, xvi.

Devo também acrescentar que o único propósito do livro é resolver o problema


intelectual criado pelo sofrimento; para a tarefa mais elevada de ensinar coragem e
paciência jamais fui tolo o bastante para considerar-me qualificado, nem tenho qualquer
coisa a oferecer aos meus leitores exceto minha convicção de que quando é preciso
suportar a dor, um pouco de coragem ajuda mais do que muito conhecimento, um pouco
de simpatia humana tem mais valor do que muita coragem, e a menor expressão do amor
de Deus supera tudo.
Se um verdadeiro teólogo ler estas páginas verá facilmente que são obra de um
leigo e amador. Exceto nos dois capítulos finais, partes dos quais são admitidamente
especulativas, acredito que confirmei doutrinas antigas e ortodoxas. Se quaisquer partes
do livro mostraram-se "originais", no sentido de serem novidade ou não ortodoxas, isso
aconteceu contra a minha vontade e como resultado de minha ignorância. Escrevo,
naturalmente, como leigo da Igreja da Inglaterra: mas tentei não presumir nada que não
fosse professado por todos os cristãos batizados e participantes.
Como esta não é uma obra erudita, não me preocupei em traçar as idéias e
citações até suas fontes quando não houve facilidade em fazê-lo. Qualquer teólogo
descobrirá facilmente o que, e quão pouco, tive oportunidade de ler.
C. S. LEWIS
Magdalen College, Oxford, 1940

Introdução

Fico surpreendido com a audácia com que algumas pessoas se encarregam de


falar sobre Deus. Num tratado dirigido a ímpios, elas começam com um capitulo provando
a existência de Deus mediante as obras da Natureza... isto apenas confere aos leitores
base para pensar que as provas de nossa religião são muito fracas... É notável o fato de
que nenhum escritor canônico jamais fez uso da Natureza para provar Deus.

PASCAL. Pensées, 4, 242. 243.

Há poucos anos, quando eu era ateu, se alguém me perguntasse: "Por que você
não crê em Deus?" minha resposta teria sido mais ou menos esta: "Veja o universo em
que vivemos. Sua maior parcela consiste de espaço vazio, completamente escuro e
inconcebivelmente frio. Os corpos que se movem nesse espaço são tão poucos e tão
pequenos em comparação com o espaço em si que, mesmo que cada um deles fosse
considerado como estando abarrotado, até o seu ponto máximo, de criaturas
perfeitamente felizes, ainda assim seria difícil crer que a vida e a felicidade fossem mais
do que um subproduto do poder que fez o universo.
"Da forma como está porém os cientistas pensam que muito poucos dentre os
sóis do espaço - talvez nenhum deles exceto o nosso - possuem quaisquer planetas; e
em nosso sistema é improvável que qualquer planeta exceto a Terra tenha vida. A própria
Terra existiu sem vida por milhares de anos e pode continuar existindo durante outros
milhões quando a vida a tiver deixado. E, como é ela enquanto dura? É organizada de
material tal que todas as suas forças só podem viver à custa umas das outras.
"Nas formas inferiores, este processo impõe a morte; mas nas superiores surge
uma nova qualidade chamada de percepção, a qual as capacita a se associarem com o
sofrimento. As criaturas provocam sofrimento ao nascer, vivem infligindo sofrimento, e
sofrendo morre a maior parte. Na mais complexa de todas as criaturas, o homem, existe
ainda uma outra qualidade que chamamos de razão, mediante a qual ele é capaz de
prever o seu próprio padecer que desde então é precedido de forte angústia mental, e de
prever sua própria morte embora almeje avidamente a permanência.
"Ele também capacita os seres humanos, através de centenas de invenções
engenhosas, a infligir muito mais dor do que de outra forma poderiam provocar uns nos
outros ou nas criaturas irracionais.
Este poder foi por eles explorado ao máximo. A sua história é, na sua maior parte,
um registro de crimes, guerras, doenças e terror, com apenas aquela pitada de felicidade
suficiente para dar-lhes, enquanto dura, um medo agoniado de perdê-la; e, quando ela se
perde, a miséria pungente da lembrança. De vez em quando eles melhoram um pouco a
sua condição e surge o que chamamos de civilização. Mas, todas as civilizações
desaparecem e, mesmo enquanto perduram, infligem sofrimentos peculiares suficientes
para exceder qualquer alívio que tenham proporcionado aos padecimentos normais do
homem.
"Que nossa civilização fez isso, ninguém pode negar; que ela desaparecerá como
todas as que a precederam, é bastante provável. Mesmo que isso não aconteça, e então?
A raça está condenada. Toda raça que surge em qualquer parte do universo está
condenada; pois o universo, segundo dizem, está cansado, e irá transformar-se um dia
em uma infinidade uniforme de matéria homogênea a baixa temperatura. Todas as
histórias acabarão em nada: toda vida se mostrará no final como sendo apenas uma
contorção transitória e sem sentido sobre a face idiota da matéria infinita. Se você me
pedir para acreditar que esta é a obra de um espírito benevolente e onipotente, replico
que toda evidência aponta na direção oposta. Ou não existe espírito por trás do universo,
ou então existe um espírito indiferente ao bem e ao mal, ou seja, um espírito perverso".
Existe uma pergunta que jamais pensei em fazer. Nunca notei que a própria força
e simplicidade do caso dos pessimistas nos colocava imediatamente diante de um
problema.
Se o universo é mau, ou mesmo um tanto mau, como foi possível aos seres
humanos atribui-lo à atuação de um Criador sábio e bondoso? Os homens são tolos,
talvez; mas não tão tolos assim. A inferência direta do preto para o branco, da flor do lodo
para a raiz virtuosa, da obra sem sentido para um obreiro infinitamente sábio, faz vacilar a
crença. O espetáculo do universo como revelado pela experiência jamais pode ter sido a
base da religião: deve ter sempre sido algo a despeito do qual a religião, adquirida de
uma outra fonte, foi mantida.
Seria um erro replicar que nossos ancestrais eram ignorantes e portanto
entretinham agradáveis ilusões sobre a natureza, as quais o progresso da ciência desde
então dissipou.
Durante séculos, em que todos os homens criam, o tamanho e o vazio do
universo já eram conhecidos. Podemos ler em alguns livros que os homens da idade
Média pensavam que a Terra era plana e que as estrelas estavam próximas, mas isso é
uma mentira. Ptolomeu lhes dissera que a Terra era um ponto matemático sem tamanho
em relação à distância das estrelas fixas - uma distância que um texto popular medieval
estima como sendo de cento e dezessete milhões de milhas. E em tempos ainda mais
antigos, mesmo no início, os homens devem ter tido a mesma sensação de imensidade
hostil de uma fonte ainda mais óbvia.
Para o homem pré-histórico, a floresta circundante deve ter sido suficientemente
infinita, e aquilo que era sobremaneira estranho e inquietaste, que temos de buscar na
idéia de raios cósmicos e sóis sem calor, vinha fungar e uivar toda noite à sua porta. O
sofrimento e desperdício da vida humana foi com certeza igualmente óbvio em todos os
períodos. Nossa própria religião começa entre os judeus, um povo espremido entre
grandes impérios guerreiros, continuamente derrotado e aprisionado, familiarizado com a
Polônia ou a Armênia com a trágica história dos vencidos. Não passa de tolice colocar o
sofrimento entre as descobertas da ciência. Deixe este livro de lado e reflita durante cinco
minutos sobre o fato de que todas as grandes religiões foram primeiro pregadas e
praticadas longamente, num mundo onde não existia o clorofórmio.
Em toda época, então, uma inerência a partir do curso dos acontecimentos neste
mundo até a bondade e sabedoria do Criador teria sido igualmente descabida; e jamais foi
feita.2 A religião tem uma Origem diferente. No que se segue, deve ficar entendido que
não estou principalmente argumentando a verdade do cristianismo, mas descrevendo a
sua origem - tarefa essa, a meu ver, necessária, se devemos colocar o problema do
sofrimento em seu cenário correto.
2 I.e., jamais feita nos primórdios de uma religião. Depois de a fé em Deus ter
sido aceita, "teodicéias" explicando, ou justificando, as misérias da vida, irão naturalmente
surgir com bastante freqüência.

Em toda religião desenvolvida encontramos três fios ou elementos, e no


cristianismo um a mais. O primeiro deles é o que o Professor Otto chama de experiência
do numinoso. Os que não conhecem este termo podem entendê-lo mediante o seguinte
artifício. Suponhamos que lhe dissessem que havia um tigre no cômodo ao lado: você
saberia que estava em perigo e provavelmente sentiria medo. Mas se lhe dissessem que
"há um fantasma no quarto ao lado" e você acreditasse, sentiria com certeza o que é
geralmente chamado de medo, mas de um tipo diferente. Seu sentimento não teria como
base a idéia de perigo, pois ninguém tem praticamente medo do que um fantasma pode
fazer-lhe, mas o simples fato de tratar-se de um fantasma. Ele é "misterioso" em lugar de
perigoso, e o tipo especial de medo que provoca pode ser chamado de pavor. Com o
misterioso chegamos às fronteiras do numinoso. Suponhamos agora que lhe dissessem
simplesmente: "Existe um espírito poderoso nesta sala" e você acreditasse. Seus
sentimentos seriam então ainda menos parecidos com o mero receio do perigo: mas a
perturbação seria profunda. Você ficaria espantado e gostaria de recuar - um sentimento
de insuficiência para enfrentar tal visitante e de fraqueza diante dele - emoção essa que
poderia ser traduzida nas palavras de Shakespeare: "Sob ele o meu gênio é reprovado".
Este sentimento pode ser descrito como reverência, e o objeto que o desperta como o
numinoso.
Não existe nada mais certo do que o fato de o homem, desde um período muito
primitivo, ter começado a crer que o universo era assombrado por espíritos. O Professor
Otto supõe talvez com demasiada facilidade que desde o início tais espíritos eram
considerados com reverência numinosa. Isto é impossível de provar por uma razão muito
boa - os pronunciamentos que expressam reverência em relação ao numinoso e os que
expressam simples medo do perigo podem fazer uso de linguagem idêntica. Haja vista,
que podemos hoje dizer que temos "medo" de um fantasma ou que temos "medo" da alta
dos preços. É portanto teoricamente possível que houvesse tempo em que os homens
considerassem esses espíritos simplesmente como perigosos e se sentissem em relação
a eles exatamente como se sentiam em relação aos tigres. O que é certo é que agora,
pelo menos, a experiência numinosa existe e, se começarmos a partir de nós mesmos,
podemos fazê-la retroceder até há muito tempo.
Um exemplo moderno pode ser encontrado (se não formos orgulhosos demais
para buscá-lo ali) no livro "The Wind in the Willows" onde Rato e Toupeira se aproximam
de Pam na ilha.
- Rato - ele encontrou fôlego para sussurrar tremendo - está com medo?
- Com medo? - murmurou o Rato, com os olhos brilhando de amor indizível. -
"Com medo? D’Ele? Oh, jamais, jamais. E todavia todavia, ó, Toupeira, estou com medo.
Retrocedendo um século, descobrimos copiosos exemplos em Wordsworth -
talvez sendo o melhor aquela passagem no primeiro livro do Prelúdio (Prelude) onde ele
descreve a sua experiência enquanto remava no lago em um bote roubado. Voltando
ainda mais no tempo obtemos um exemplo muito forte e puro em Malory3, quando
Galahade "começou a tremer demasiado no momento em que a carne mortal passou a
contemplar as coisas espirituais". No início de nossa era ele encontra expressão no
Apocalipse onde o escritor caiu aos pés do Cristo ressurreto "como alguém que estivesse
morto". Na literatura pagã, encontramos a descrição de Ovídio do bosque escuro no
Aventine, do qual se diria num relance, numen inest4 – o lugar é assombrado, ou há uma
Presença aqui; e Virgílio nos dá o palácio de Latino "terrível! (horrendum) com florestas e
santidade (religione) de tempos idos".5

3 XVI I, XXÍÍ.
4 Fasti, III, 296.
5 Aen. VII, 172.

Um fragmento grego atribuído a Esquilo, fala-nos da terra, do mar e das


montanhas tremendo debaixo do "olho temível do seu Mestre".6 E bem antes disso,
Ezequiel fala dos "aros" em sua teofania, dizendo que eram tão altos que o
amedrontaram;7 e Jacó, acordando do sono, diz: "Que lugar terrível é este!"8

6 Fragmento 464. Sidgwick's edition.


7 Ez 1:18
8 Gn 28:17

Não sabemos até que ponto na história este sentimento retrocede. Os homens
primitivos com toda certeza acreditavam em coisas que iriam fazer nascer em nós esse
sentimento se crêssemos nelas, e parece então provável que a reverência numinosa seja
tão antiga quanto a própria humanidade. Nossa principal preocupação não é, porém,
datá-lo. O importante é que de uma ou outra forma ele veio a existir e se difundiu, não
desaparecendo da mente humana com o desenvolvimento do saber e da civilização.
Esta reverência não é resultado de algo implícito do universo visível. Não existe
possibilidade de argumentar a partir do simples perigo até o "misterioso", e menos ainda
ao plenamente numinoso. Você pode dizer que lhe parece muito natural que o homem
primevo, cercado por perigos reais e portanto amedrontado, viesse a inventar o misterioso
e o numinoso. De certa forma isso é verdade, mas vamos primeiro entender o nosso
significado. Você acha isso natural porque, partilhando da natureza humana com seus
ancestrais remotos, pode imaginar-se reagindo aos perigos da solidão da mesma forma; e
esta reação é sem dúvida "natural" no sentido de conformar-se à natureza humana. Ela
não é de maneira alguma "natural", entretanto, no que se refere à idéia do misterioso ou
numinoso já estar contida no conceito de perigo, ou que qualquer percepção deste ou
qualquer rejeição da mágoa e da morte que ele possa trazer conseguisse transmitir a
menor compreensão do pavor fantasmagórico ou reverência numinosa a uma inteligência
que ainda não tivesse qualquer idéia sobre os mesmos.
Quando o homem passa do medo físico para o temor e reverência, ele dá um
verdadeiro salto, e passa a apreender algo que jamais poderia ser transmitido, como é o
perigo, pelos fatos físicos e deduções lógicas extraídos deles. A maioria das tentativas de
explicar o numinoso pressupõe a coisa a ser explicada - como quando os antropólogos a
fazem derivar do temor dos mortos, sem explicar por que homens mortos (com certeza a
espécie menos perigosa de homens) deveriam atrair este sentimento peculiar. Contra
todas essas tentativas, devemos insistir que o temor e a reverência se acham numa
dimensão diferente daquela do medo. Eles são uma espécie de interpretação que o
homem dá ao universo, ou uma impressão que obtém dele. Assim como enumeração
alguma das qualidades físicas de um bonito objeto jamais poderia incluir a sua beleza, ou
dar a menor idéia do que consideramos beleza a alguém que não possua experiência
estética, assim também nenhuma descrição fatual de qualquer ambiente humano poderia
incluir o misterioso e o numinoso ou sequer aludir a eles.
Ao que parece então, só existiam dois pontos de vista que podemos manter com
relação à reverência. Ou se trata de uma simples distorção da mente humana, que não
corresponde a nada objetivo e não serve a nenhuma função biológica, mas que não
mostra qualquer tendência de desaparecer dessa mente, mostrando-se no seu mais pleno
desenvolvimento no poeta, filósofo ou santo; ou, por outro lado, se trata de uma
experiência direta daquilo que é verdadeiramente sobrenatural, a que pode ser
apropriadamente dado o nome de Revelação.
O numinoso não se identifica com o que é moralmente bom, e o homem cheio de
reverência irá provavelmente, se deixado aos seus próprios recursos, pensar no objeto
numinoso como "transcendendo o bem e o mal". Isto nos leva ao segundo fio ou elemento
na religião.
Todos os seres humanos de que a história ouviu falar reconhecem algum tipo de
moralidade; isto é, eles têm em relação a certas atitudes propostas o sentimento que se
expressa através das palavras:
"Devo" ou "Não devo". Essas experiências se assemelham à reverência em um
aspecto, a saber, elas não podem ser logicamente deduzidas do ambiente e das
experiências físicas do homem que as sofre. Você pode tentar escolher entre "quero" e
"sou forçado a", "será bom" e "não ouso" quanto tempo quiser sem tirar dessas frases
qualquer ilação em relação a "devo" ou "não devo". Assim sendo, mais uma vez, as
tentativas de converter as experiências morais em outra coisa, sempre pressupõem
exatamente aquilo que estão tentando explicar - como quando um famoso analista a
deduz do parricida pré-histórico. Se o parricídio produziu uma sensação de culpa, isso foi
porque os homens julgaram que não deveriam tê-lo cometido: se não se sentissem assim,
não teria produzido sentimento de culpa. A moralidade, assim como a reverência
numinosa, é um salto; nela, o homem ultrapassa qualquer coisa que possa ser
"transmitida" nos fatos da experiência. Ela possui uma característica demasiado notável
para ser ignorada. Os conceitos morais aceitos pelos homens podem diferir - mas todos
concordam em prescrever um comportamento que os seus adeptos falham em praticar.
Todos os homens estão igualmente condenados, não por códigos de ética
estranhos, mas pelo seu próprio, e assim todos têm consciência de culpa. O segundo
elemento na religião é a consciência, não apenas de uma lei moral, mas de uma regra
moral tanto aprovada como desobedecida. Esta consciência não é uma inferência lógica
nem ilógica dos fatos da experiência; se não a trouxéssemos à nossa experiência, não a
encontraríamos nela.
Ou se trata de uma ilusão inexplicável, ou de revelação.
A experiência moral e a experiência numinosa estão tão longe de ser a mesma
coisa que podem coexistir por longos períodos sem estabelecer contato mútuo. Em
muitas formas de paganismo a adoração dos deuses e as discussões éticas dos filósofos
pouco têm a ver umas com as outras. O terceiro estágio no desenvolvimento religioso
surge quando o homem os identifica - quando o Poder Numinoso em relação ao qual
sentem reverência se toma o guardião da moral que consideram obrigatória. Mais uma
vez, isto pode parecer-lhe muito "natural". O que pode ser mais natural para um selvagem
perseguido ao mesmo tempo pela reverência e pela culpa do que pensar que o poder que
o apavora é também a autoridade que condena seu erro? E isso é, na verdade, natural
para o ser humano, embora não seja o mais óbvio.
O comportamento real desse universo assombrado pelo numinoso não se
assemelha de modo algum àquele exigido de nós pela moralidade. Um deles parece
destrutivo, cruel e injusto; o outro nos impõe as qualidades opostas. A identificação dos
dois também não pode ser explicada como a satisfação de um desejo, pois não satisfaz o
desejo de ninguém.
O que desejamos é nada menos que ver essa Lei cuja autoridade crua já é
insuportável, armada com as reivindicações incalculáveis do numinoso. De todos os
saltos dados pela humanidade em sua história religiosa, este é com certeza o mais
surpreendente. Não é de admirar que muitas seções da raça humana o tivessem
recusado; a religião não-moral e a moral não-religiosa existiram e continuam a existir.
Talvez um único povo, como povo, deu o novo passo com perfeita decisão - isto é, os
judeus: mas grandes personagens em todos os tempos e lugares também o deram, e
somente os que fazem isso estão a salvo das obscenidades e barbaridades da adoração
imoral ou do moralismo frio e triste da autoretidão.
A julgar pelos seus frutos este é um passo em direção a uma saúde melhor. E
embora a lógica não nos obrigue a dá-lo, é difícil resistir – mesmo no paganismo e no
panteísmo a moral está sempre surgindo, e até mesmo o estoicismo, quer queira quer
não, se vê dobrando o joelho diante de Deus.
Mais uma vez pode ser loucura, uma loucura congênita ao homem e
surpreendentemente feliz em seus resultados, ou pode ser revelação. Se for revelação,
será então real e verdadeiramente em Abraão que todos os povos vão ser abençoados,
pois foram os judeus que identificaram plena e inequivocamente a Presença terrível
assombrando os picos escuros das montanhas e nuvens com "o Senhor justo" que "ama
a justiça".9

9 si 11.7

O quarto fio ou elemento é um evento histórico. Houve um homem nascido entre


esses judeus que alegava ser, ou “o filho de”, ou ser “um com”, o Algo que é ao mesmo
tempo o terrível assombrador da natureza e o autor da lei moral. A alegação é tão
chocante – um paradoxo, e até mesmo um horror, que podemos com toda facilidade ser
levados a aceitá-la levianamente - que somente duas opiniões sobre esse homem se
tomam possíveis.
Ou ele foi um lunático completo de um tipo singularmente abominável, ou, foi, e é,
precisamente aquilo que afirmou. Não existe meio termo. Se os registros tomarem
primeira hipótese inaceitável, você precisa então sujeitar-se à segunda. E se fizer isso,
tudo o mais reivindicado pelos cristãos se torna crível - que este Homem, tendo sido
morto, estava porém vivo, e que sua morte, de maneira incompreensível para a mente
humana, produziu uma real mudança em nossas relações com o "terrível" e" justo"
Senhor, modificação essa em nosso benefício. Perguntar se o universo como o vemos
parece mais o trabalho de um Criador sábio e bom do que obra do acaso, indiferença ou
malevolência, é omitir desde o início todos os fatores relevantes no problema religioso. O
cristianismo não é a condusão de um debate filosófico sobre as origens do universo: mas
um evento histórico catastrófico que se seguiu ao longo preparo espiritual da humanidade
por mim descrito. Não se trata de um sistema no qual temos de encaixar o fato
embaraçoso do sofrimento: mas é, ele mesmo, um dos fatos embaraçosos que precisam
ser enquadrados em qualquer sistema por nós planejado. Num certo sentido, ele cria, em
lugar de resolver, o problema do sofrimento, pois este não seria um problema a não ser
que, lado a lado com nossa experiência diária deste mundo sofredor, tivéssemos recebido
o que julgamos ser uma boa certeza de que a realidade final é justa e plena de amor.
Por que esta segurança me parece boa já foi por mim indicado até certo ponto.
Não se trata de compulsão lógica. Em qualquer estágio do desenvolvimento religioso o
homem pode rebelar-se, se não sem violentar sua própria natureza, pelo menos sem
insensatez. Ele pode fechar seus olhos espirituais ao numinoso, se estiver preparado para
separar-se da metade dos grandes poetas e profetas de sua raça, de sua própria infância,
com a riqueza e profundidade da experiência descontraída. Ele pode considerar a lei
moral como uma ilusão e assim distanciar-se da base comum da humanidade. Pode
recusar-se a identificar o numinoso com o justo, e permanecer ainda um bárbaro,
adorando a sexualidade, os mortos, a força da vida, ou o futuro. Mas o custo é alto. E
quando chegamos ao último passo, a Encarnação histórica, a segurança é a mais forte de
todas.
A história é estranhamente parecida com muitos dos mitos que atemorizaram a
religião desde o início, todavia não é como eles. Não se mostra transparente à razão: não
poderíamos tê-la inventado. Não possui a lucidez suspeita a priori do panteísmo ou da
física newtoniana. Ao que parece, possui o caráter arbitrário e idiossincrático que a
ciência moderna está nos ensinando a aceitar neste universo obstinado, onde a energia é
formada por pequenas parcelas de uma quantidade que ninguém pode prever, onde a
velocidade não é ilimitada, onde a entropia irreversível dá ao tempo uma direção real e o
cosmos, não mais estático ou cíclico, se move como num drama, de um início real para
um fim real. Se qualquer mensagem do âmago da realidade tivesse algum dia de
alcançar-nos, deveríamos esperar encontrar nela justamente aquela sinuosidade
inesperada, irredutível e dramática que encontramos na fé cristã. Ela possui o toque de
mestre - o sabor áspero e viril da realidade, que não foi feita por nós ou, na verdade, para
nós, mas que nos golpeia na face. Se, em tal base, ou em outras melhores, seguirmos o
curso através do qual a humanidade tem sido orientada, e nos tomarmos cristãos,
encontraremos então o "problema" do sofrimento.

A Onipotência Divina

Nada que implique em contradição se encontra debaixo da onipotência de Deus.

TOMÁS DE AQUINO. Samm Tbeoi., I.a Q XXV, Art. 4.

“Se Deus fosse bom, Ele desejaria fazer suas criaturas perfeitamente felizes, e se
Deus fosse todo-poderoso poderia fazer tudo o que quisesse. Mas as criaturas não são
felizes. Portanto, falta a Deus bondade, poder, ou ambas essas coisas". Este é o
problema do sofrimento em sua forma mais simples. A possibilidade de responder a ele
depende de mostrar que os termos "bom" e "todo-poderoso", e talvez também o termo
feliz, são ambíguos: pois deve ser admitido desde o início que se os significados
populares ligados a essas palavras forem os melhores, ou os únicos possíveis, então o
argumento é irrespondível. Neste capítulo farei alguns comentários sobre a idéia de
onipotência e, no seguinte, sobre a de bondade.
Onipotência significa "poder para fazer tudo, ou todas as coisas".1

1 O significado original em latim pode ter sido "poder sobre ou em tudo". Estou
dando o que julgo ser a idéia corrente.

É bastante comum, numa discussão com um incrédulo, ouvir dizer que Deus, se
existisse e fosse bom, faria isto ou aquilo; e então, se declaramos que o ato proposto é
impossível, receber a resposta: "Mas pensei que Deus fosse capaz de fazer tudo". Isto faz
surgir a questão da impossibilidade.
No uso ordinário da palavra, impossível geralmente subentende uma cláusula
suprimida iniciada com as palavras salvo se, ou exceto, ou ainda a não ser que. Assim, é
impossível para mim ver a rua de onde estou sentado escrevendo agora; isto é, é
impossível ver a rua salvo se eu subir ao andar superior de onde posso olhar por cima do
prédio que interfere com a minha visão. Se eu tivesse quebrado a perna diria: "Mas é
impossível subir ao andar superior" - querendo indicar, porém, que é impossível a não ser
que apareçam alguns amigos que me levem até lá. Vamos avançar agora para um plano
diferente de impossibilidade, dizendo:"É, de qualquer forma, impossível ver a rua
enquanto eu permanecer onde estou e o prédio intermediário continuar onde está".
Alguém poderia acrescentar: "a não ser que a natureza do espaço, ou da visão, fosse
diferente do que é".
Não sei o que os melhores filósofos e cientistas responderiam a isto, mas eu teria
de replicar: "Não sei se o espaço e a visão poderiam possivelmente ter sido de uma
natureza tal como a que você sugere."
Fica então claro que as palavras poderiam possivelmente referem-se aqui a
alguma espécie absoluta de possibilidade ou impossibilidade diversa das possibilidades e
impossibilidades relativas que temos considerado. Não sei se ver para além da esquina é,
neste novo sentido, possível ou não, pois não sei se se trata ou não de uma
autocontradição.
Sei porém muito bem que se for auto-contraditório é absolutamente impossível. O
absolutamente impossível pode ser também chamado de intrinsecamente impossível
porque leva consigo a sua impossibilidade, em lugar de tomá-la de empréstimo de outras
impossibilidades que, por sua vez, dependem de outras ainda. Ele não contém qualquer
cláusula do tipo "salvo se". É impossível sob quaisquer condições e em todos os mundos
e para todos os agentes.
"Todos os agentes" aqui inclui o próprio Deus. A sua onipotência significa poder
para fazer tudo que é intrinsecamente possível, e não para fazer o que é intrinsecamente
impossível. É possível atribuir-lhe milagres, mas não tolices. Isto não é um limite ao seu
poder. Se disser: "Deus pode dar a uma criatura o livre-arbítrio e, ao mesmo tempo,
negar-lhe o livre-arbítrio" não conseguiu dizer nada sobre Deus: combinações de palavras
sem sentido não adquirem repentinamente sentido simplesmente porque acrescentamos
a elas como prefixo dois outros termos: "Deus pode". Permanece verdadeiro que todas as
coisas são possíveis com Deus: as impossibilidades intrínsecas não são coisas mas
insignificâncias (praticamente não existem). Não é possível nem a Deus nem à mais fraca
de suas criaturas executar duas alternativas que se excluem mutuamente; não porque o
seu poder encontre um obstáculo, mas porque a tolice continua sendo tolice mesmo
quando é falada sobre Deus.
Deve ser porém lembrado que os raciocinadores humanos com freqüência
cometem erros, seja argumentando a partir de dados falsos ou por falha no argumento em
si. Podemos chegar assim a pensar coisas possíveis que na verdade são impossíveis, e
vice- versa.2
2 E,g., todo truque de magia faz algo que, para a audiência, com sua informação
e poder de raciocínio, parece contraditório.

Devemos, portanto, tomar a máxima precaução ao definir aquelas


impossibilidades intrínsecas que nem mesmo a Onipotência pode realizar. O que se
segue não deve ser considerado como uma afirmativa do que são, mas uma amostra do
que poderiam ser.
As inexoráveis "leis da natureza", que operam em desafio ao sofrimento ou mérito
humano, que não são detidas pela oração, parecem, à primeira vista, fornecer um forte
argumento contra a bondade e o poder de Deus. Vou apresentar a idéia de que nem
mesmo a Onipotência poderia criar uma sociedade de almas livres sem ao mesmo tempo
criar uma natureza "inexorável" e relativamente independente.
Não há razão para supor que a autoconsciência, o reconhecimento de uma
criatura por si mesma como um "eu", possa existir exceto em contraste com um "outro",
algo que não é o "eu". É contra um ambiente, e preferivelmente um ambiente social, que
Eu me destaco.
Isto faria surgir uma dificuldade quanto à percepção de Deus se fôssemos simples
teístas: sendo cristãos, aprendemos da doutrina da Abençoada Trindade que algo
análogo à "sociedade" existe no imodo ser divino desde os tempos eternos - que Deus é
Amor, não apenas no sentido da forma platônica de amor, mas porque, dentro dele, as
reciprocidades concretas do amor residem desde antes de todos os mundos e são assim
distribuídas às criaturas.
Mais uma vez, a liberdade de uma criatura deve significar liberdade de escolha: e
escolha implica na existência de coisas a serem escolhidas. Uma criatura sem ambiente
não teria escolhas a fazer: assim sendo, a liberdade, como a autoconsciência (se não
forem na verdade a mesma coisa) exige novamente a presença no "eu" de algo além do
"eu".
A condição mínima de autoconsciência e liberdade seria então que a criatura
devesse apreender a Deus e, portanto, ela mesma fosse diferente de Deus. É possível
que tais criaturas existam, conscientes de Deus e de si mesmas, mas não de seus
semelhantes. Caso positivo, sua liberdade é simplesmente aquela de fazer uma única e
singela escolha: amar a Deus mais do que ao "eu" ou ao "eu" mais do que a Deus. Mas
uma vida assim reduzida aos essenciais não pode ser concebida por nós. No momento
em que tentamos introduzir o conhecimento mútuo dos semelhantes encontramos o
obstáculo da necessidade da "Natureza".
As pessoas falam com freqüência como se nada fosse mais fácil do que duas
mentes singelas se "encontrarem" ou perceberem uma à outra. Mas não vejo
possibilidade de fazerem isso exceto num meio comum que forma o seu "mundo exterior"
ou ambiente. Mesmo nossa vaga tentativa de imaginar tal encontro entre espíritos
desencarnados no geral introduz sub-repticiamente a idéia de, pelo menos, um espaço e
um tempo comuns, a fim de dar significado à partícula co de coexistência: e o espaço e
tempo, já são um ambiente. Mas, mais do que isto é exigido. Se os seus pensamentos e
sentimentos me fossem apresentados diretamente, como os meus próprios, sem qualquer
sinal de que fossem exteriores ou de outrem, como poderia distingui-los dos meus? E que
pensamentos ou sentimentos poderíamos ter sem objetos em que pensar ou sentir?
Poderia eu sequer passar a conceber o “externo,” e o "outro" a não ser que tivesse a
experiência de um “mundo externo"? Você pode responder, como cristão, que Deus (e
satanás), de fato, afetam meu consciente desta maneira direta sem sinais "exteriores".
Sim: e o resultado é que a maioria das pessoas permanece ignorante da existência de
ambos.
Podemos, portanto, supor que se as almas humanas afetassem umas às outras
direta e imaterialmente, seria um raro triunfo de fé e percepção para qualquer delas crer
na existência das demais.
Seria mais difícil para mim conhecer meu próximo sob tais condicões do que é
atualmente conhecer Deus: pois ao reconhecer o impacto de Deus sobre mim sou agora
auxiliado por coisas que me atingem através do mundo exterior, tais como a tradição da
Igreja, as Sagradas Escrituras, e a conversa de amigos religiosos. O que necessitamos
para a sociedade humana é exatamente aquilo que temos - algo neutro, nem você nem
eu, que podemos ambos manipular a fim de fazer sinais um para o outro. Posso falar-lhe
porque podemos os dois estabelecer ondas de som no ar comum entre nós. A matéria,
que mantém as almas separadas, também as une. E[a permite que cada um de nós tenha
uma parte "de fora" assim como outra "de dentro", de modo que aquilo que representa
para você atos de vontade e pensamento são ruídos e olhares para mim; você está
capacitado não apenas para ser, mas para aparecer: e portanto tenho o prazer de
conhecê-lo.
A sociedade, então, implica num campo comum ou "mundo" em que os seus
membros se encontram. Se existir uma sociedade angelical, como os cristãos têm
geralmente crido, os anjos devem então possuir tal mundo ou campo; algo que seja para
eles como a "matéria" (no sentido moderno e não escolástico) é para nós.
Se a matéria, porém, deve servir como um campo neutro, ela precisa possuir uma
natureza fixa. Se um "mundo" ou sistema material tivesse um único habitante, ele poderia
conformar-se a todo o momento com os seus desejos - "as árvores para satisfazê-lo
juntar-se-iam dando sombra". Mas se você fosse introduzido num mundo que variasse
dessa forma a cada capricho meu, ficaria incapacitado de agir nele e perderia então o
exercício de seu livre-arbítrio. Não fica também claro se poderia tomar sua presença
conhecida a mim, desde que a matéria com que tentou fazer-me sinais já se acha sob o
meu controle e portanto incapaz de ser manipulada por você.
De novo, se a matéria tem uma natureza fixa e obedece a leis constantes, nem
todos os estados da mesma serão igualmente agradáveis aos desejos de uma
determinada alma, nem serão todos igualmente benéficos para esse agregado particular
de matéria que você chama de corpo. Se o fogo dá conforto a esse corpo de uma certa
distância, ele irá destruí-lo quando a distância for encurtada. Assim, mesmo num mundo
perfeito, vemos a necessidade para esses sinais de perigo que as fibras sensíveis de
nossos nervos destinam-se a transmitir. Isto indica um elemento maligno inevitável (na
forma de dor) em qualquer mundo possível? Não julgo isso, pois embora possa ser
verdade que o menor pecado já é um mal incalculável, o mal da dor depende do grau em
que se faz sentir, e dores abaixo de uma certa intensidade não são praticamente temidas
nem sentidas.
Ninguém se preocupa com o processo: "morno, calor agradável, quente demais,
queima" que o avisa para retirar a mão exposta ao fogo; e, se devo confiar em minhas
próprias sensações, uma leve dor nas pernas quando nos deitamos depois de andar
bastante durante o dia é, de fato, agradável.
Repito, então, que se a natureza fixa da matéria impede que seja sempre, e em
todas as suas disposições, igualmente agradável até mesmo para uma única alma, muito
menos poderá a matéria do universo ser distribuída a qualquer momento de maneira a ser
igual-mente conveniente e agradável a cada membro de uma sociedade. Se alguém
viajando numa direção está descendo um monte, outro alguém na direção oposta estará
subindo o monte. Se até mesmo um pedregulho estiver onde eu quero que esteja, ele não
poderá, exceto por coincidência, encontrar-se onde você quer que se encontre. E isto está
bem longe de ser um mal: pelo contrário, fornece ocasião para todos aqueles atos de
cortesia, respeito e generosidade através dos quais o amor, o bom humor e a modéstia se
expressam. Mas ele com certeza deixa aberto o caminho para um grande mal, o da
competição e hostilidade.
Se as almas forem livres, é impossível evitar que tratem desse problema
mediante a competição em lugar da cortesia. E uma vez que entrem realmente no campo
da hostilidade, poderão então explorar a natureza fixa da matéria a fim de se magoarem
umas às outras. A natureza permanente da madeira que nos capacita a usá-la como viga
também nos permite fazer uso dela para golpear nosso próximo na cabeça. A natureza
permanente da matéria significa em geral que, quando os seres humanos brigam, a vitória
quase sempre cabe ao que possuir superioridade em armas, habilidades e número,
mesmo que sua causa seja injusta.
Podemos, talvez, conceber um mundo em que Deus tenha corrigido os resultados
deste abuso do livre-arbítrio pelas suas criaturas a cada momento: de maneira que uma
viga de madeira se tornasse macia como grama se usada como arma, e o ar se
recusasse a obedecer-me se tentasse utilizá-lo em ondas sonoras que transmitissem
mentiras ou insultos. Num mundo assim, porém, os atos errados seriam impossíveis e,
portanto, ficaria anulado o livre-arbítrio; se o princípio fosse levado à sua conclusão
lógica, os maus pensamentos tornar-se-iam também impossíveis, desde que a massa
cerebral que usamos para pensar se recusaria a fazê-lo quando tentássemos estruturá-la.
Toda matéria nas proximidades de um homem perverso estaria sujeita a alterações
imprevisíveis. A idéia de que Deus pode modificar, e realmente modifica, ocasionalmente,
o comportamento da matéria produzindo o que chamamos de milagres, faz parte da fé
cristã; mas a própria concepção de um mundo comum e portanto estável exige que tais
ocasiões sejam extremamente raras.
Num jogo de xadrez é possível fazer certas concessões arbitrárias ao seu
oponente, que se colocam em relação às regras gerais do jogo como os milagres para as
leis da natureza. Você pode privar-se de uma torre, ou permitir que o adversário se
arrependa de um movimento já feito, anulando-o. Mas se você aceitasse tudo que ele
pudesse desejar a qualquer momento - se todos os movimentos dele fossem revogáveis e
se todas as suas peças desaparecessem toda vez que a posição delas no tabuleiro o
desagradasse - não haveria então na realidade um jogo entre vocês. O mesmo acontece
com a vida das almas num mundo: as leis fixas, as conseqüências desenvolvendo-se
através da necessidade causal, e toda a ordem natural, são tanto limites dentro dos quais
sua vida comum fica confinada como também a condição única sob a qual essa vida pode
existir. Tente excluir a possibilidade do sofrimento que a ordem da natureza e a existência
do livre-arbítrio envolvem, e descobrirá que excluiu a própria vida.
Como disse antes, este relato das necessidades intrínsecas de um mundo é
apresentado apenas como um espécime do que poderiam ser. O que são realmente, só a
Onisciência tem as informações e a sabedoria para discernir: mas não é provável que
sejam menos complicadas do que as por mim sugeridas. Não é preciso dizer aqui que
"complicadas" refere-se apenas à sua compreensão por parte do homem; não devemos
visualizar Deus argumentando, como fazemos, de um fim (coexistência de espíritos livres)
para as condições nele envolvidas; mas sim num único e auto-consistente ato criativo que
para nós parece, à primeira vista, como a criação de muitas coisas independentes e,
então, como à criação de coisas mutuamente necessárias. Até mesmo nós podemos
passar um pouco além da concepção das necessidades mútuas como as descrevi -
podemos reduzir a matéria àquilo que separa as almas e àquilo que as une sob o conceito
único de pluralidade, do qual "separação" e "união" são apenas dois aspectos.
Com cada avanço em nosso conceito, o ato criativo, e a impossibilidade de
manipular a criação como se este ou aquele elemento da mesma pudesse ser removido,
se tornará aparente. Este talvez não seja o melhor de todos os universos possíveis, mas o
único possível.
Mundos possíveis só podem significar "mundos que Deus poderia ter feito mas
não fez". A idéia do que Deus "poderia" ter feito envolve um conceito excessivamente
antropomórfico da liberdade de Deus. O que quer que seja o significado da liberdade
humana, a liberdade divina não pode significar indeterminância entre alternativas e a
escolha de uma destas. A bondade perfeita não pode jamais estar em dúvida quanto ao
fim a ser alcançado, e a perfeita sabedoria não pode vacilar quanto aos meios mais
adequados para chegar a esse fim. A liberdade de Deus consiste no fato de que nenhuma
outra causa além dele mesmo produz os seus atos e nenhum obstáculo externo os
impede - que a sua própria bondade é a raiz de que todos eles brotam e sua própria
onipotência o ar em que todos florescem.
Isso nos leva ao nosso próximo tópico - a bondade divina. Nada até agora foi dito
sobre isto e nenhuma resposta dada quanto à objeção de que se o universo deve, desde
o início, admitir a possibilidade do sofrimento, então a absoluta bondade teria deixado o
mesmo incriado.
Devo advertir o leitor de que não tentarei provar que criar foi melhor do que não
criar: Não conheço escala humana alguma em que questão assim tão portentosa possa
ser pesada. Certas comparações entre um e outro estado de ser podem ser feitas, mas a
tentativa de comparar "ser" e "não ser" termina em simples palavras. "Seria melhor para
mim que eu não tivesse nascido" - de que forma "para mim?" Como poderia eu, se não
tivesse nascido, tirar proveito de minha não-existência? Nosso propósito é bem menos
formidável: queremos apenas descobrir como, observando um mundo sofredor e sendo
assegurados de que, em bases muito diferentes, Deus é bom, iremos conceber essa
bondade e esse sofrimento sem que haja entre eles contradição.

3
A Bondade Divina

O amor pode suportar e pode perdoar.., mas o Amor jamais pode reconciliar-se a
um objeto que cause desamor... Ele jamais poderá, portanto, reconciliar-se com o seu
pecado, porque o pecado por si mesmo é incapaz de ser alterado; mas Ele pode
reconciliar-se à sua pessoa, por que esta pode ser restaurada.

TRAHERNE. Centaries of mifeditation, 2, 50.

Qualquer consideração da bondade de Deus imediatamente nos ameaça com o


seguinte dilema.
De um lado, se Deus é mais sábio do que nós, o seu julgamento deve diferir do
nosso sobre muitas coisas, e não apenas sobre o bem e o mal. O que nos parece bom
pode então não ser bom aos olhos d'Ele, e o que nos parece mau pode não ser mau.
Por outro lado, se o juízo moral de Deus varia em relação ao nosso, de forma que
o "branco" para nós possa ser "preto" para Ele, não estamos dizendo nada quando O
chamamos de bom; pois declarar "Deus é bom", ao mesmo tempo que afirmamos que a
sua bondade é inteiramente diversa da nossa, seria realmente dizer "Não sabemos o que
Deus é". Assim sendo, uma qualidade por completo desconhecida em Deus não pode
concedernos uma base moral para amá-lo e obedecer-lhe. Se Ele não é (no que nos diz
respeito) "bom", iremos obedecer, se o fizermos realmente, apenas através do medo - e
estaríamos igualmente dispostos a obedecer a um Demônio onipotente. A doutrina da
Depravação Total - quando é extraída a conseqüência de que, desde que somos
totalmente depravados, nossa idéia de bem não possui mérito algum - pode então
transformar nosso cristianismo numa forma de adoração demoníaca.
A solução para este dilema depende de observar o que acontece, nas relações
humanas, quando o homem de padrões morais inferiores entra na sociedade de outros
que são melhores e mais sábios do que ele e passa gradualmente a aceitar os padrões
deles - cujo processo, ao que acontece, posso descrever bastante corretamente, pois
passei pelo mesmo. Quando entrei na Faculdade eu tinha tão pouca consciência moral
quanto uma criança. Uma leve repugnância pela crueldade e pela avareza era o máximo
que podia sentir – quanto à castidade, verdade e auto-sacrifício, pensava nessas coisas
como um babuíno pensa na música clássica.
Pela graça de Deus entrei num grupo de jovens (nenhum deles cristãos,
entretanto) que se igualavam suficientemente a mim no intelecto e na imaginação a fim de
assegurar a intimidade imediata, mas que conheciam e tentavam obedecer a lei moral. As
idéias deles a respeito do bem e do mal eram portanto bem diferentes das minhas. O que
acontece em tais casos não é absolutamente como se lhe pedissem para tratar como se
fosse "branco" o que até então chamava de preto. Os novos julgamentos morais jamais
entram na mente como simples inversões (embora os invertam) de juízos anteriores mas
"como senhores com certeza esperados". Você não pode duvidar da direção que está
seguindo: são mais como o bem do que os pequenos fiapos de bem que você já sentiu,
mas, num certo sentido, são compatíveis com ele.
O grande teste é, porém, o reconhecimento dos novos padrões que se faz
acompanhar de um sentimento de vergonha e culpa: temos consciência de nos havermos
intrometido numa sociedade para a qual não temos as devidas qualificações. É à luz de
tais experiências que devemos considerar a bondade de Deus. A idéia de "bondade" por
parte dele difere sem dúvida alguma da nossa; mas você não precisa temer que, ao
abordá-la, venha a ser-lhe pedido que inverter os seus padrões morais.
Quando a relevante diferença entre a ética divina e a sua ficar aparente, você não
irá, de fato, ter qualquer dúvida de que a mudança exigida seja na direção que já chama
de "melhor". A "bondade" divina diverge da nossa, mas não é totalmente diferente: ela
não difere como o preto do branco, mas como um círculo perfeito se destaca da primeira
tentativa de uma criança para desenhar uma roda. Quando porém ela aprende a
desenhar, saberá que o círculo que traça então é aquele que estava tentando reproduzir
desde o início.
Esta doutrina é pressuposta nas Escrituras. Cristo chama os homens ao
arrependimento - um chamado que seria sem sentido se o padrão de Deus fosse por
completo diferente daquele que já conheciam e deixaram de praticar. Ele apela para
nosso juízo moral, como o temos agora - "Por que se recusam a ver por si mesmos o que
é correto?"1 No Velho Testamento, Deus censura os homens com base nas suas próprias
concepções de gratidão, fidelidade e justiça: e se coloca, Ele mesmo, no banco dos réus
diante das suas criaturas: "Por que foi que seus pais me abandonaram? Por acaso Eu fiz
a eles alguma injustiça, para se afastarem de Mim?"2

1 Lc 12:57
2 Jr 2:5

Depois dessas preliminares penso que será seguro sugerir que alguns conceitos
da bondade divina que tendem a dominar nossos pensamentos, embora raramente
expressos em tantas palavras, estão sujeitos a críticas. Quando nos referimos à bondade
de Deus hoje, estamos indicando quase que exclusivamente seu amor; e nisto talvez
tenhamos razão. E por amor, neste contexto, a maioria de nós quer dizer bondade - o
desejo de ver outros felizes, e não a própria pessoa; não feliz deste ou de outro modo,
mas apenas feliz. O que realmente nos satisfaria seria um Deus que dissesse a respeito
de qualquer coisa que gostássemos de fazer: "Que importa se isso os deixa contentes?"
Queremos, na verdade, não tanto um Pai Celestial, mas um avô celestial - uma
benevolência senil que, como dizem, "gostasse de ver os jovens se divertindo" e cujo
plano para o universo fosse simplesmente que se pudesse afirmar no fim de cada dia:
"todos aproveitaram muito". Não são muitos os que, devo admitir, iriam formular uma
teologia exatamente nesses termos: mas um conceito semelhante espreita por trás de
muitas mentes. Não me julgo uma exceção: gostaria imenso de viver num universo
governado de acordo com essas linhas.
Mas desde que está mais do que claro que não vivo, e desde que tenho razões
para crer, mesmo assim, que Deus é Amor, chego à conclusão que meu conceito de amor
necessita correção.
Eu poderia, sem dúvida, ter aprendido até mesmo dos poetas que Amor é algo
mais rigoroso e esplêndido do que a simples bondade: que até o amor entre os sexos é,
como em Dante, "um senhor de terrível aspecto". Existe bondade no amor, mas amor e
bondade não são confinantes, e quando a bondade (no sentido dado acima) é separada
dos demais elementos do Amor, ela envolve uma certa indiferença fundamental ao seu
objeto, e até mesmo algo semelhante ao desprezo em relação a ele. A bondade consente
com facilidade na remoção do seu objeto - temos todos encontrado indivíduos cuja
bondade para com os animais constantemente os leva a matá-los a fim de que não
sofram. A bondade desse tipo não se preocupa com o fato de o seu objeto tomar-se bom
ou mau, desde que escape ao sofrimento.
Como as Escrituras afirmam, os bastardos é que são estragados: os filhos
legítimos, que devem continuar a tradição da família, são corrigidos.3 Para aqueles com
quem não nos preocupamos absolutamente é que exigimos felicidade sob quaisquer
termos: com nossos amigos, nossos entes queridos, nossos filhos, somos exigentes e
preferimos vê-los sofrer do que ser felizes em estilos de vida desprezíveis e desviados.
Se Deus é amor, Ele é, por definição, algo mais do que simples bondade. E, ao que
parece, de acordo com todos os registros, embora tenha com freqüência nos reprovado e
condenado, jamais nos considerou com desprezo. Ele nos prestou o intolerável
cumprimento de nos amar, no sentido mais profundo, mais trágico e mais inexorável.
A relação entre Criador e criatura é naturalmente única e não pode ser
comparada a qualquer das demais relações entre uma criatura e outra. Deus está, ao
mesmo tempo, mais distanciado e mais próximo de nós do que qualquer outro ser. Ele
está mais distante de nós porque a completa diferença entre aquilo que possui o Seu
princípio de existência em Si Mesmo e aquilo a que a existência está sendo transmitida é
tal que comparada a ela a diferença entre um arcanjo e um verme é praticamente
insignificante. Ele faz, nós somos feitos: Ele é o original, nós os derivados. Mas, ao
mesmo tempo, e pela mesma razão, a intimidade entre Deus e até mesmo a menor das
criaturas é mais próxima do que qualquer outra que as criaturas possam alcançar umas
com as outras.
Nossa vida, a qualquer momento, e suprida por Ele: nosso pequenino e milagroso
poder de livre-arbítrio só pode operar nos corpos que a Sua energia contínua mantém
vivos - nosso próprio poder de pensar é o Seu poder comunicado a nós. Uma relação
assim singular só pode ser entendida através de analogias: dentre os vários tipos de amor
conhecidos entre as criaturas, chegamos a um conceito inadequado mas útil do amor de
Deus pelo homem.
O tipo mais inferior, que é chamado de "amor" apenas como uma extensão da
palavra, é aquele que o artista sente por um artefato. A relação entre Deus e homem é
assim retratada na visão de Jeremias sobre o oleiro e o barro,4 ou quando o apóstolo
Pedro fala da igreja inteira como de um prédio no qual Deus trabalha, e dos membros
individualmente como sendo pedras.5 A limitação de tal analogia é, naturalmente, que no
símbolo o paciente não tem percepção, e que certas questões de justiça e misericórdia
surgidas quando as "pedras" estão realmente "vivas" permanecem, portanto, não-
representadas. Mas, de toda forma, trata-se de uma analogia importante.

3 Hb 12:8

Nós somos, não em metáfora mas verdadeiramente, uma obra-de-arte divina,


algo que Deus está fazendo, e portanto, algo com o qual ele não ficará satisfeito até que
possua umas tantas e determinadas características. Defrontamos de novo aqui com
aquilo a que dei o nome de "elogio insuportável". O artista pode não se preocupar muito
com o esboço feito com negligência para divertir uma criança: ele pode deixá-lo ficar
como está, mesmo que não seja exatamente aquilo que pretendia que fosse. Mas em
relação ao grandioso quadro de sua vida - o trabalho que ama, embora de forma diversa,
tão intensamente como o homem ama uma mulher ou a mãe a um filho – ele se aplicará
intensamente - e iria sem dúvida dar muita preocupação ao quadro se este tivesse
sensibilidade. Podemos imaginar um quadro sensível, depois de ter sido apagado e
raspado e recomeçado pela décima vez, desejando não passar de um esboço simples
feito num minuto. Da mesma maneira, é natural para nós desejar que Deus nos traçasse
um destino menos glorioso e menos árduo; mas, assim, não estaremos então desejando
mais amor e sim menos amor.
Outro tipo é o amor de um homem por um animal – relação esta usada
freqüentemente nas Escrituras para simbolizar a relação entre Deus e os homens; "somos
o seu povo e as ovelhas do seu pasto". Esta é, em certo sentido, uma analogia melhor do
que a precedente, porque a parte inferior é perceptiva, embora indiscutivelmente inferior:
mas é pior pelo fato de o homem não ter feito o animal e não compreendê-lo inteiramente.
Seu grande mérito está em que a associação (digamos) de homem e cão tem como
objetivo principal o bem do primeiro: o homem domestica o cão para que possa primeiro
amá-lo, e não para que este o ame, e para que o animal o sirva, e não para que ele possa
servi-lo. Todavia, ao mesmo tempo, os interesses do cão não são sacrificados aos do
homem. O propósito final (de que possa amá-lo) não é alcançado plenamente a não ser
que o animal também, a seu modo, o ame; nem o cão pode servi-lo a não ser que ele, de
uma forma diferente, o sirva. Justamente porque o cão, segundo os padrões humanos, é
uma das "melhores" criaturas irracionais, e um objeto digno de ser amado pelo homem -
naturalmente naquele grau e tipo de amor apropriados para tal objeto, e não com tolos
exageros antropomórficos - o homem interfere no cão e o torna mais digno de amor do
que ele o era na sua simples natureza. Em seu estado natural ele cheira e tem hábitos
que frustram o amor humano: o homem então o submete a treinamentos para que tenha
um comportamento adequado dentro de casa, dá-lhe banhos, ensina-o a não roubar,
capacitando-o assim para que possa ser amado completamente.
Para o filhote, todo o processo pareceria, caso fosse um teólogo, lançar graves
dúvidas sobre a "bondade" do homem: mas o cão adulto e treinado, maior, mais saudável
e com um período de vida mais longo do que o cão selvagem, e admitido, como se o
fosse, por assim dizer, pela Graça, a um mundo de afeições, lealdades, interesses e
confortos inteiramente além de seu destino animal, não teria tais dúvidas. Deve ser
notado que o homem (e estou falando apenas do homem bom) tem todo esse trabalho
com o cão, e causa todo esse sofrimento a ele, apenas por se tratar de um animal que se
acha no alto da escala - por ser tão digno de amor que vale a pena torná-lo ainda mais
digno desse amor.

4 Jr 18
5 I Pe 2:5

Ele não dá treinamento doméstico à lacraia nem banho à centopéia. É possível


que desejássemos, na verdade, que Deus se incomodasse tão pouco conosco que nos
deixasse por nossa própria conta, a fim de seguirmos nossos impulsos naturais – que ele
desistisse de nos transformar em algo tão diverso de nosso "eu" natural: mas, de novo,
não estamos pedindo mais amor e sim menos.
Uma analogia mais nobre aprovada pelo tom constante dos ensinamentos do
Senhor é aquela que existe entre o amor de Deus pelo homem e o amor de um pai pelo
filho. Toda vez em que ela é usada porém, isto é, toda vez que repetimos a Oração do
Senhor, deve ser lembrado que o Salvador fez uso dela num momento e lugar em que a
autoridade paternal tinha uma posição muito mais elevada do que nos tempos modernos.
Um pai quase se desculpando por ter trazido seu filho ao mundo, temeroso de restringi-lo
para que não cresça com inibições ou até mesmo de discipliná-lo a fim de não interferir
em sua independência mental, é um símbolo bastante precário da Paternidade Divina,
Não estou discutindo aqui o fato de a autoridade dos pais, em sua expressão
antiga, ter sido uma coisa boa ou má. Estou apenas explicando o que o conceito de
Paternidade teria significado para os primeiros ouvintes do Senhor, e na verdade para os
seus sucessores durante muitos séculos. Ficará ainda mais simples se considerarmos
como o Senhor (embora, em nossa crença, um só com o Pai e co-eterno com Ele como
nenhum filho terreno o é com um pai terreno) considera sua própria Filiação, submetendo
completamente Sua vontade à vontade paterna, nem sequer permitindo que o chamem
"bom" porque BOM é o nome do Pai. Amor entre pai e filho, neste símbolo, significa
essencialmente um amor cheio de autoridade de um lado, e amor obediente do outro. O
pai faz uso de sua autoridade para transformar o filho na espécie de ser humano que ele,
com justiça, e em sua sabedoria superior, quer que ele seja. Mesmo em nossos dias,
embora alguém possa dizer tal coisa, essa pessoa não estaria dizendo nada ao afirmar:
"Amo meu filho, mas não me importa quão corrupto ele seja, contanto que se divirta".
Chegamos finalmente a uma analogia perigosa e de aplicação muito mais
limitada, que, todavia, acontece ser a mais útil para o nosso propósito especial no
momento - quero dizer, a analogia entre o amor de Deus pelo homem e o amor deste por
uma mulher.
Ela é usada livremente nas Escrituras. Israel é uma esposa infiel, mas seu Marido
Celestial não pode esquecer-se dos dias felizes do passado: "Lembro-me de ti, da tua
afeição quando eras jovem, e do teu amor quando noiva, e de como me seguias no
deserto".6 Israel é a noiva pobre, perdida, que seu amado encontrou abandonada ao lado
do caminho e vestiu e adornou, tornando-a digna de amor, mas mesmo assim ela lhe foi
infiel.7 "Infiéis" é o nome que nos dá o apóstolo Tiago, porque nos voltamos para a
"amizade do mundo", enquanto Deus "com ciúme anseia pelo espírito que fez habitar em
nós".8
A Igreja é a noiva do Senhor a quem ele ama de tal forma que não pode suportar
qualquer mancha ou ruga nela.9 A verdade que esta analogia serve para enfatizar é que o
amor, por sua própria natureza, exige o aperfeiçoamento do ser amado; que a simples
"bondade" que tudo tolera, menos o sofrimento em seu objeto, está, nesse aspecto, no
pólo oposto do amor. Quando nos apaixonamos por uma mulher, deixamos de amá-la
quando está limpa ou suja, íntegra ou desonrada? Não é então que na realidade
começamos a nos preocupar? A mulher considera sinal de amor num homem quando ele
não se importa com a sua aparência? O amor pode, de fato, continuar amando mesmo
quando a beleza dela se foi; mas não porque está perdida. O amor pode perdoar todas as
enfermidades e continuar amando a despeito delas: mas o amor não pode deixar de
desejar a sua remoção. O amor é mais sensível do que o próprio ódio em relação a
qualquer mancha no ser amado; o seu "sentimento é mais suave e sensível do que os
chifres delicados dos caracóis". De todos os poderes é ele o que mais perdoa, mas o que
menos desculpa: fica satisfeito com pouco, mas exige muito.

6 jr 2.2
7 Ez 16:6-15
8 Tg 4:4,5

Quando o cristianismo diz que Deus ama o homem, isso significa que Ele o ama
realmente; não se trata de um interesse indiferente quase um "desinteresse" em nosso
bemestar, mas que, numa verdade terrível e surpreendente, somos os objetos do seu
amor. Você pediu um Deus de amor, e já tem. O grande espírito que invocou tão
levianamente, o "Senhor de terrível aspecto", está presente: não uma benevolência senil
que sonolentamente deseja que você seja feliz à sua própria moda, nem a gélida
filantropia de um magistrado consciencioso nem mesmo o cuidado de um hospedeiro que
se sente responsável pelo conforto de seus hóspedes, mas o próprio fogo consumidor, o
Amor que fez os mundos, persistente como o amor do artesão pela sua obra e despótico
como o amor do homem por um cão, providente e venerável como o amor do pai pelo
filho, ciumento, inexorável, exigente, como O amor entre Os sexos.
Como isto pode ser, não sei: supera nosso poder de raciocínio explicar como
quaisquer criaturas, para não dizer criaturas como nós, possam ter um valor tão
prodigioso aos olhos de seu Criador. Trata-se certamente de um peso de glória não só
além de nossos méritos mas também, exceto em raros momentos de graça, além de
nosso desejo; estamos inclinados, como as donzelas na velha peça teatral, a protestar
contra o amor de Zeus.10
Mas o fato parece Indiscutível. O Impassível fala como se sentisse paixão, e
aquilo que contém em si mesmo a causa de sua própria e de outras bênçãos, fala como
se pudesse sentir-se carente e ansioso. "Não é Efraim meu precioso filho? filho das
minhas delícias? Pois tantas vezes quantas falo contra ele, tantas vezes ternamente me
lembro dele; comove-se por ele o meu coração".11 "Como te deixaria, ó Efraim? Como te
entregaria, ó Israel? Meu coração está comovido dentro em mim".12
"Ò, Jerusalém, quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta
os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!"13
O problema de reconciliar o sofrimento humano com a existência de um Deus que
ama só é insolúvel enquanto associarmos um significado trivial à palavra "amor" e
considerarmos as coisas como se o homem fosse o centro delas. O homem não é o
centro.

9 Ef 5:27
10 Prometheus Vinctus, 887-900
11 Jr 31:20
12 Os 11:8
13 Mt 23:37

Deus não existe por causa do homem. O homem não existe por sua própria
causa. "Porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e
foram criadas".14

14 Ap 4:11

Não fomos feitos em princípio para amarmos a Deus (embora fôssemos também
criados para isso), mas para que Deus possa amar-nos, para que nos tomemos objetos
em que o amor divino possa sentir "agrado". Pedir que o amor de Deus se satisfaça
conosco na condição em que nos encontramos, é pedir que Deus deixe de ser Deus:
porque Ele é o que é, o Seu amor deve, na natureza das coisas, ficar impedido e sentir
repulsa por certas nódoas em nosso caráter, e porque já nos ama ele precisa esforçar-se
para nos tomar dignos de amor. Não podemos sequer desejar, em nossos melhores
momentos, que ele se reconcilie com nossas impurezas presentes -não mais do que a
jovem mendiga poderia querer que o rei Cophetua se satisfizesse com os seus andrajos e
sujeira, ou que um cão, tendo aprendido a amar o homem, pudesse desejar que este
tolerasse em sua casa a criatura violenta, coberta de vermes e poluente da alcatéia
selvagem.
O que chamaríamos aqui e agora de nossa "felicidade" não é o alvo principal que
Deus tem em vista: mas, quando formos aquilo que Ele pode amar sem impedimento,
seremos de fato felizes.
Posso perfeitamente prever que o curso de meus argumentos venha a provocar
um protesto. Eu havia prometido que ao passar a compreender a bondade divina não nos
seria pedido que aceitássemos uma simples inversão de nossa própria ética. Mas pode
ser objetado que tal inversão foi justamente o que nos pediram que aceitássemos. A
espécie de amor que atribuo a Deus, pode ser dito, é exatamente do tipo que nós seres
humanos descrevemos como "egoísta" ou "possessivo", e contrasta desfavoravelmente
com a outra espécie que busca primeiro a felicidade do ente amado e não a satisfação
daquele que ama. Não estou certo de que seja assim que me sinto mesmo em relação ao
amor humano. Não acho que devo dar muito valor à amizade de um amigo que se importe
apenas com a minha felicidade e não proteste se cometo uma desonestidade. De todo
modo, o protesto é aceito, e a resposta para ele colocará o assunto sob uma nova luz, e
corrigirá o que tem sido unilateral em nossa discussão.
A verdade é que esta antítese entre o amor egoísta e o altruísta não pode ser
aplicada sem ambigüidade ao amor de Deus pelas suas criaturas. Conflitos de interesses
e portanto oportunidades seja de egoísmo ou generosidade, ocorrem entre os seres que
habitam um mesmo mundo: Deus não pode de forma alguma competir com uma criatura,
assim como Shakespeare não o faz com a personagem Viola. Quando Deus se toma
Homem e vive como uma criatura entre as Suas próprias criaturas na Palestina, Sua vida
é então de supremo auto-sacrifício e o leva ao Calvário. Um moderno filósofo panteísta
declarou: "Quando o Absoluto cai no mar se transforma em peixe"; do mesmo modo, nós,
cristãos, podemos apontar para a Encarnação e dizer que quando Deus se esvazia da
sua glória e se submete àquelas condições únicas sob as quais o egoísmo e o altruísmo
têm um claro significado, Ele é considerado como inteiramente altruísta. Mas, em sua
transcendência, Deus - como a base incondicional de todas as condições - não pode ser
facilmente visualizado dessa forma.
Chamamos o amor humano de egoísta quando ele satisfaz suas próprias
necessidades à custa daquelas do objeto - da mesma forma que um pai mantém em casa
os filhos que deveriam, para o seu próprio bem, ser colocados no mundo. A situação
implica em uma necessidade ou paixão por parte do ser amado, e a desconsideração ou
ignorância culpável das necessidades deste por parte de quem ama. Nenhuma dessas
condições está presente na relação entre Deus e o homem. Deus não tem necessidades.
O amor humano, conforme nos ensina Platão, é filho da Pobreza - de uma carência ou
falta; ele é causado por um bem real ou imaginário no ser amado, que é necessário ou
desejado pelo amante. Mas o amor de Deus, longe de ser causado pela bondade do
objeto, faz surgir toda a bondade que este possui, amando-o primeiro para fazê-la existir e
depois tornando-a digna de amor real, embora derivado. Deus é Bondade.
Ele pode conceder o bem, mas não pode necessitá-lo ou obtê-lo. Nesse sentido
todo o Seu amor é infinitamente desprendido pela sua própria definição; ele tem tudo a
dar e nada a receber. Assim sendo, se Deus fala algumas vezes como se o Impossível
pudesse sofrer paixão e a plenitude eterna pudesse ter qualquer carência, e carência
daqueles seres a quem concede tudo a partir da sua simples existência, isto só pode
significar, caso signifique algo inteligível para nós, que o Deus do milagre tomou-se capaz
de sentir tal anseio e criar em Si mesmo aquilo que nós podemos satisfazer. Se Ele nos
quer, esse desejo é de sua própria escolha. Se o coração imutável pode ser entristecido
pelas marionetes que ele mesmo fez, foi a Onipotência Divina, e nada mais, que assim o
sujeitou, voluntariamente, e com uma humildade que excede todo entendimento.
Se o mundo não existe principalmente para que possamos amar a Deus, mas
para que Ele possa amar-nos, esse mesmo fato, num nível mais profundo, é assim para o
nosso bem.
Se aquele que em Si mesmo tem tudo escolhe necessitar de nós, é porque
necessitamos de quem nos necessite. Antes e por trás de todas as relações entre Deus e
o homem, como agora aprendemos no cristianismo, abre-se o abismo do ato divino do
puro dar - a eleição do homem, do nada, para ser o amado de Deus, e portanto (em
algum sentido) o necessário e desejado de Deus, que a não ser por esse ato nada
necessita nem deseja, desde que Ele eternamente possui, e é, toda bondade. E tal ato foi
feito a nosso favor. É bom que conheçamos o amor, e é melhor ainda conhecermos o
amor do melhor objeto, Deus. Mas conhecê-lo como um amor em que fomos
primariamente os cortejadores e Deus o cortejado, no qual buscamos e Ele foi achado,
em que a sua conformidade às nossas necessidades, e não a nossa às dEle, vieram
primeiro, seria conhecê-lo numa forma falsa à própria natureza das coisas. Pois somos
apenas criaturas: nosso papel deve ser sempre o do paciente para o agente, da fêmea
para o macho, do espelho para a luz, do eco para a voz. Nossa mais elevada atividade
deve ser a resposta, e não a iniciativa. Experimentar o amor de Deus de forma verdadeira
e não ilusória portanto é experimentá-lo como nossa rendição à Sua exigência, nossa
conformidade ao Seu desejo: experimentá-lo de maneira oposta seria um solecismo
contra a gramática do ser. Eu não nego, naturalmente, que num certo nível podemos falar
corretamente da busca de Deus pela alma, e de Deus como receptivo ao amor da alma.
Mas a longo prazo, a busca de Deus pela alma não passa de um aspecto ou aparência
(Erscheinung) da busca da mesma por Ele, desde que a própria possibilidade de
amarmos é um dom dEle para nós, e desde que nossa liberdade não passa de uma
liberdade de resposta melhor ou pior. Eu pe nso então que nada distingue tanto o teísmo
pagão do cristianismo como a doutrina de Aristóteles de que Deus move o universo,
sendo Ele mesmo imutável. como o Amado move o que ama.15 Quanto à cristandade,
"Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos
amou".16

15 Met., XII, 7.
16 I Jo 4:l0

Desse modo, Deus não possui a primeira condição do que é chamado amor
egoísta entre os homens. Ele não tem necessidades naturais, nem paixão, para competir
com o Seu desejo do bem do amado: ou se existir nEle algo que tenhamos de imaginar
de acordo com a analogia de uma paixão, um desejo, Ele se encontra ali pela Sua própria
vontade e por nossa causa. A segunda condição também está em falta. Os interesses
reais de uma criança podem diferir daqueles que a afeição do pai exige instintivamente,
porque a criança é um ser isolado do pai com uma natureza que possui suas próprias
necessidades e não existe unicamente para o pai nem encontra perfeição total em ser
amada por ele, e que o pai não compreende inteiramente. Mas as criaturas não são assim
isoladas de seu Criador, nem Ele deixa de entendê-la. O lugar para o qual Ele as destina
em Seu esquema de coisas é o lugar para o qual são feitas.
Quando o alcançam, sua natureza é preenchida e sua felicidade alcançada: um
osso quebrado foi colocado no seu lugar no universo, a angústia passou. Quando
queremos ser outra coisa que não aquela que Deus quer que sejamos, devemos estar
desejando, de fato, aquilo que não nos fará felizes. Essas exigências divinas que, aos
nossos ouvidos naturais, soam como as de um déspota e pelo menos como as de alguém
que ama, na verdade nos levam aonde deveríamos querer ir se soubéssemos o que
queremos.
Ele exige nossa adoração, nossa obediência, nossa prostração. Supomos que
essas coisas podem beneficiá-lo de alguma forma, ou tememos, como o coro de Mílton,
que a irreverência humana possa acarretar a "diminuição da sua glória"? Ninguém pode
diminuir a glória de Deus recusando-se a adorá-lo, como não poderia o lunático apagar o
sol escrevendo a palavra "escuridão" nas paredes de sua cela. Mas Deus deseja o nosso
bem, e nosso bem é amá-lo (com esse amor responsivo próprio das criaturas) e para
amá-lo devemos conhecê-lO: e se O conhecermos, iremos de fato prostrar-nos sobre a
nossa face.
Se não o fizermos, isso mostra que o que estamos tentando amar não é ainda
Deus - embora possa ser a mais achegada aproximação de Deus que nossos
pensamentos e fantasia podem alcançar. O chamado, todavia, não é apenas para a
prostração e reverência; mas para um reflexo da vida divina, uma participação da criatura
nos atributos divinos que está muito além de nossos desejos presentes. Somos
convidados a "revestir-nos de Cristo", a nos tomarmos como Deus. Isto é, quer o
queiramos quer não, Deus pretende dar-nos aquilo de que necessitamos e não aquilo que
agora julgamos desejar. Mais uma vez ficamos embaraçados com o cumprimento
intolerável por demasiado amor e não por falta dele.
Mesmo isto, talvez, ainda esteja aquém da verdade. Não se trata simplesmente
de que Deus nos fez arbitrariamente de modo que Ele seja o nosso único bem. Em vez
disso, Deus é o único bem de todas as criaturas: e por necessidade, cada uma delas deve
encontrar o seu bem nessa espécie e grau da fruição de Deus que é própria à sua
natureza. A espécie e grau podem variar de acordo com a natureza da criatura: mas que
jamais possa haver qualquer outro bem é um sonho ateu. George Macdonald, numa
passagem de que não me lembro agora, representa Deus dizendo ao§ homens: "Vocês
devem ser fortes com a minha força e abençoados com a minha bênção, pois nada tenho
além disso para criar-lhes." Essa é a suma. Deus dá o que Ele possui, e não aquilo que
não possui: Ele dá a felicidade que existe, não aquela que não existe. Ser Deus - ser
como Deus e partilhar da Sua bondade em resposta de criatura - ser miserável - essas
são as três únicas alternativas. Se não aprendermos a comer o único alimento que cresce
no universo - que qualquer universo possível jamais poderá fazer crescer - então iremos
ficar eternamente famintos.

A Maldade Humana

Não existe maior sinal de um orgulho confirmado do que julgar-nos


suficientemente humildes.
LAW. Serious Call, cap. 16.

Os exemplos dados no último capítulo tinham como objetivo mostrar que o amor
pode causar sofrimento ao seu objeto, mas apenas na suposição de que esse objeto
precisa ser alterado a fim de tomar-se inteiramente digno de ser amado. Por que os
homens precisam de tanta alteração? A resposta cristã - de que usamos nosso livre-
arbítrio para nos tomar excessivamente maus - é tão conhecida que praticamente não
precisa ser expressa. Fazer, porém, com que esta doutrina ganhe vida real na mente do
homem moderno, e até mesmo dos modernos cristãos, é muito difícil.
Quando os apóstolos pregavam, eles podiam supor como certa, mesmo em seus
ouvintes pagãos, uma percepção real do fato de merecerem a ira divina. Os mistérios
pagãos existiam para acalmar este sentimento, e a filosofia de Epicuro alegava livrar os
homens do medo do castigo eterno. Foi contra este pano de fundo que o Evangelho
surgiu como boas notícias. Ele trouxe notícias de uma possível cura para os homens que
sabiam achar-se mortalmente enfermos. Mas tudo isto mudou. O cristianismo tem agora
de pregar o diagnóstico - que é por si mesmo péssimas notícias - antes de ganhar a
atenção dos ouvintes para ensinar-lhes a cura.
São duas as causas principais. Uma delas é o fato de que por cerca de um século
temos nos concentrado de tal forma em uma das virtudes - "bondade" ou misericórdia -
que a maioria de nós não acha que é necessário nada além de bondade para ser
realmente bom ou de crueldade para ser realmente mau.
Desenvolvimentos éticos assim assimétricos não são incomuns, e outras épocas
também tiveram as suas virtudes favoritas e curiosas insensibilidades. E se uma virtude
deve ser cultivada à custa das demais, nenhuma delas possui mais valor do que a
misericórdia - pois todo cristão deve rejeitar por completo essa propaganda sub-reptícia a
favor da crueldade que tenta expulsar a misericórdia do mundo rotulando-a de
"Humanitarismo" e "Sentimentalismo".
O problema real está em que "bondade" é uma qualidade fácil de ser atribuída a
nós mesmos em bases absolutamente inadequadas. Todos se sentem benevolentes se
nada acontecer para aborrecê-los no momento. O homem se consola então facilmente a
respeito de todos os seus outros vícios, através de uma convicção de que "seu coração
está no lugar onde deve estar" e de que "não mataria uma mosca", embora de fato jamais
tivesse feito o menor sacrifício por um semelhante. Pensamos que somos bons quando
somos apenas felizes: não é assim fácil, na mesma base, imaginar que somos
temperantes, castos ou humildes.
A segunda causa é o efeito da psicanálise na mente do público, e, em particular, a
doutrina das repressões e inibições. O que quer que essas doutrinas signifiquem
realmente, a impressão que deixa ram na maioria das pessoas é que o sentido de
Vergonha é algo perigoso e nocivo. Temos nos esforçado para vencer esse senso de
recuo, esse desejo de ocultar, que ou a própria natureza ou a tradição de quase toda a
humanidade associou à covardia, à lascívia, à falsidade e à inveja. É-nos dito para "pôr
tudo para fora"; não para que nos humilhemos, mas com base no fato dessas "coisas"
serem muito naturais e que não devemos envergonhar-nos delas.
Todavia, a não ser que o cristianismo seja totalmente falso, a percepção de nós
mesmos que temos em momentos de vergonha deve ser a única verdadeiramente real; e
mesmo a sociedade pagã tem geralmente reconhecido a "sem-vergonhice" como o ocaso
da alma. Na tentativa de remover a vergonha destruímos uma das defesas do espírito
humano, exultando loucamente como exultaram os troianos quando quebraram as suas
muralhas e fizeram entrar o Cavalo em Tróia. Não sei de nada que possa ser feito além
de começar a reconstrução o mais depressa possível. É um trabalho tolo remover a
hipocrisia removendo a tentação de ser hipócrita: a "franqueza" das pessoas que
desceram abaixo da vergonha é uma franqueza muito medíocre.
A recuperação do velho sentido de pecado é essencial ao cristianismo. Cristo tem
como certo que os homens são maus. Até que sintamos ser verdadeira esta sua
suposição, embora sejamos parte do mundo que Ele veio para salvar, não nos integramos
na audiência a quem Suas palavras são dirigidas. Falta-nos a primeira condição para
compreender o que Ele fala. E quando os homens tentam ser cristãos sem esta
consciência preliminar de pecado o resultado quase sempre se manifesta através de um
certo ressentimento contra Deus como alguém que está sempre fazendo exigências
impossíveis e sempre inexplicavelmente zangado. A maioria de nós sente às vezes uma
simpatia secreta pelo fazendeiro agonizante que respondeu às palavras do Vigário sobre
o arrependimento, perguntando: "Mas, que mal eu fiz a Ele?" É justamente esse o ponto.
O pior que fizemos a Deus foi abandoná-lO - por que não pode Ele devolver a gentileza?
Por que não viver e deixar que os outros vivam? Que direito tem Ele, entre todos os
seres, de ficar "zangado"?
É fácil para Ele ser bom!
No momento porém em que o homem sente uma culpa real - momentos esses
demasiado raros em nossa vida - todas essas blasfêmias se dissolvem. Podemos sentir
que muito pode ser justificado pelas fraquezas humanas - mas não isto, este ato
incrivelmente baixo e repugnante que nenhum de nossos amigos teria praticado, de que
até mesmo um patife como X se envergonharia, que jamais permitiríamos por coisa
alguma que fosse publicado. Em momentos como esse ficamos realmente sabendo que
nosso caráter, como revelado nesse ato, é, e deveria ser, odioso a todos os homens
bons, e, se houver poderes superiores ao homem, a eles também. Um Deus que não
considerasse tal coisa com desgosto implacável não seria um ente bom. Não podemos
sequer desejar um Deus assim – seria como desejar que todo nariz no universo fosse
abolido, que o perfume do feno, das rosas, ou do mar jamais voltasse a deliciar qualquer
criatura, porque nosso hálito cheira mal.
Quando simplesmente dizemos que somos maus, a "ira" de Deus parece uma
doutrina bárbara; mas tão logo percebemos nossa maldade, ela parece inevitável, um
simples corolário da bondade divina. Manter sempre à nossa frente a percepção derivada
de um momento como o que descrevi, aprender a detectar a mesma corrupção real e
indesculpável sob mais e mais de seus disfarces complexos, é portanto indispensável
para uma verdadeira compreensão da fé cristã. Não se trata naturalmente de uma nova
doutrina. Não estou tentando produzir nada esplêndido neste capítulo, mas simplesmente
procurando fazer com que meu leitor (e, mais ainda, eu mesmo) atravesse a pons
asinorum - dando o primeiro passo para sair de um paraíso insensato e da completa
ilusão. Mas esta ilusão tomou-se, nos tempos modernos, tão forte, que devo acrescentar
algumas considerações tendentes a fazer com que a realidade se mostre menos incrível.

1. Somos enganados porque olhamos a superfície das coisas. Supomos não ser
muito piores do que Y, que todos reconhecem como um indivíduo decente, e certamente
(embora não devamos anunciá-lo em voz alta) melhores do que o abominável X. Mesmo
num nível superficial estamos provavelmente enganados quanto a isto. Não esteja tão
certo de que seus amigos o consideram tão bom quanto Y. O próprio fato de você tê-lo
escolhido para comparação é suspeitoso: ele está provavelmente muito acima de você e
seu círculo.
Mas, suponhamos que tanto Y como você não pareçam "maus". Até que ponto o
comportamento de Y é enganoso é assunto entre ele e Deus. A fachada dele pode não
ser falsa, mas você sabe que a sua é. Isto lhe parece um simples artifício, porque eu
poderia dizer o mesmo a Y e a cada homem por sua vez? Mas é justamente esse o ponto.
Todo homem, que não é muito santo nem muito arrogante, tem de "conformar-se" à
aparência exterior de outros homens: ele sabe que existe em seu íntimo algo que está
muito abaixo até mesmo de seu mais casual comportamento em público, mesmo sua
conversa mais livre.
Naquele instante enquanto seu amigo hesita procurando uma palavra, quais os
pensamentos que passam pela sua mente? jamais faiamos toda a verdade. Podemos
confessar jatos pouco atraentes - a covardia mais baixa ou a impureza mais vil e mais
prosaica - mas o tom é falso. O próprio ato de confessar - um olhar hipócrita infinitamente
pequeno - uma pitada de humor - tudo isto contribui para dissociar os fatos do seu próprio
"eu".
Ninguém poderia adivinhar quão familiares e, num certo sentido, apropriadas à
sua alma essas coisas são, como elas fazem parte do resto: bem no fundo, no calor de
seu íntimo, elas não fazem soar uma nota tão discordante, não parecem tão estranhas e
desligadas do restante de você, como aparentam quando colocadas em palavras.
Subentendemos e com freqüência cremos que vícios habituais são atos únicos e
excepcionais, e cometemos o erro oposto em relação às nossas virtudes - como o mau
jogador de tênis que chama sua forma normal de seus "maus dias" e considera como
normais seus raros sucessos. Não penso que seja nossa falta o fato de não podermos
dizer a verdade a respeito de nós mesmos; o murmúrio persistente e íntimo, em todo o
decorrer de nossa vida, causado pelo despeito, pela inveja, pela lascívia, pela cobiça e
pela autocomplacência, simplesmente não se revela em palavras. Mas o importante é que
não devemos considerar nossos pronunciamentos inevitavelmente limitados como um
registro completo do pior que temos dentro de nós.

2. Uma reação - de si mesma saudável - está agora em movimento contra


conceitos puramente privados ou domésticos de moral, um novo despertar da consciência
social.
Sentimo-nos envolvidos num sistema social iníquo e partilhando de uma culpa
corporativa.
Isto é muito verdadeiro: mas o inimigo pode explorar até mesmo as verdades para
enganarnos.
Tome cuidado para não estar fazendo uso da idéia da culpa em conjunto para
distrair sua atenção de suas próprias culpas enfadonhas e fora de moda que nada têm a
ver com o "sistema" e que podem ser tratadas sem esperar pelo milênio. A culpa conjunta
talvez não possa ser, e certamente não é, sentida com a mesma força que a pessoal.
Para a maioria de nós, como somos agora, este conceito não passa de uma desculpa
para fugir ao assunto real.
Quando tivermos verdadeiramente aprendido a conhecer a nossa corrupção
individual, poderemos então na verdade passar a pensar na culpa corporativa e
dificilmente pensaremos demasiado nela. Mas devemos aprender a andar antes de correr.

3. Temos a estranha ilusão de que o simples tempo cancela o pecado. Ouvi


outros, e a mim mesmo, recapitularem crueldades e falsidades cometidas na infância
como se não fizessem diferença na vida presente da pessoa, que chega até mesmo a rir
da lembrança.
Mas o tempo em si nada faz com relação ao fato ou à culpa de um pecado. A
culpa não é lavada pelo tempo mas pelo arrependimento e pelo sangue de Cristo: se nos
tivermos arrependido desses primeiros pecados devemos lembrar-nos do preço pago pelo
nosso perdão e nos mostrar humildes. Quanto ao fato de um pecado, é provável que
alguma coisa possa cancelá-lo? Todos os tempos estão eternamente presentes para
Deus. Não é pelo menos possível que ao longo de alguma linha de sua eternidade
multidimensional Ele veja você para sempre no jardim da infância tirando as asas de uma
mosca, sempre agindo repulsivamente, mentindo e cobiçando quando estudante, sempre
naquele momento de covardia ou insolência como subalterno? Pode ser que a salvação
não consista no cancelamento desses momentos eternos mas na humildade aperfeiçoada
que suporta a vergonha para sempre, rejubilando-se na ocasião por ela fornecida à
compaixão de Deus e contente por ser de conhecimento comum ao universo.
Talvez nesse momento eterno S. Pedro - ele irá perdoar-me se estiver errado -
negue para sempre a seu Mestre. Se for assim, seria então realmente verdade que as
alegrias do Céu são para a maioria de nós, em nossa condição atual, "um gosto
adquirido" - e certos estilos de vida podem tomar o gosto impossível de adquirir.
Talvez os perdidos sejam aqueles que não ousem ir a um lugar tão público. Não
sei naturalmente se isto é verdade, mas acho que vale a pena ter em mente esta
possibilidade.

4. Devemos evitar o sentimento de que existe "segurança nos números". É natural


sentir que se todos os homens são maus como dizem os cristãos, então a maldade é
perfeitamente justificável. Se todos os alunos colam nos exames, certamente as provas
foram difíceis demais? É assim que os professores dessa escola se sentem até que ficam
sabendo que existem outras escolas onde noventa por cento dos alunos passaram
nessas mesmas provas.
Começam então a suspeitar que a falha não estava com os examinadores. Muitos
de nós passaram pela experiência de viver em algum bolsão da sociedade humana local -
alguma escola, faculdade, regimento ou profissão onde o tom era mau. E dentro desse
bolsão certos atos eram considerados como normais ("todos fazem isso") e outros como
inviavelmente virtuosos e quixotescos. Mas quando saímos dessa má sociedade
descobrimos, para nosso horror, que no mundo externo o nosso "normal" era o tipo de
coisa que nenhum indivíduo decente jamais sonharia praticar e nosso "quixotesco" é
tomado por certo como o padrão mínimo de decência. O que nos pareciam escrúpulos
excessivamente mórbidos e fantásticos enquanto estávamos no "bolsão", mostram-se
agora como tendo sido os únicos momentos de sanidade que gozamos ali. É prudente
enfrentar a possibilidade de que a raça humana inteira (que não passa de uma
insignificância no universo) seja, de fato, apenas um desses bolsões locais de maldade -
uma escola ou regimento de má qualidade, em que um mínimo de decência passa por
virtude heróica e a absoluta corrupção por imperfeição perdoável.
Mas, existe qualquer evidência - exceto a Própria doutrina cristã - de que isto é
assim?
Acho que existe. Em Primeiro lugar, existem entre nós essas pessoas estranhas
que não aceitam o padrão local, que demonstram a alarmante verdade de que um
comportamento diferente é de fato possível. Pior ainda, temos o fato de que tais pessoas,
mesmo quando separadas grandemente no espaço e no tempo, possuem um hábito
suspeito de concordarem umas com as outras em geral - quase como se estivessem em
contato com uma opinião pública mais ampla fora do bolsão. O que é comum a
Zaratustra, Jeremias, Sócrates, Gautama, Cristo1 e Marco Aurélio é algo bastante
substancial.
Terceiro, encontramos em nós mesmos uma aprovação teórica deste
comportamento que ninguém pratica. Mesmo dentro do bolsão não dizemos que a justiça,
misericórdia, firmeza e temperança não tem valor, mas apenas que o costume local é tão
justo, forte, temperante e misericordioso quanto pode ser razoavelmente esperado.
Começa a parecer que as negligenciadas regras escolares, mesmo nessa escola de má
qualidade, estavam ligadas a um mundo maior - e que quando o ano terminar poderemos
encontrar-nos defrontando a opinião pública desse mundo mais amplo. Mas o pior de tudo
é que não podemos deixar de ver que unicamente o grau de virtude que agora
consideramos impraticável pode possivelmente salvar a nossa raça do desastre mesmo
neste planeta.
O padrão que parece ter entrado no "bolsão", vindo de fora, acaba sendo
terrivelmente relevante para as condições em seu interior - tão importantes que uma
prática consistente da virtude pela raça humana mesmo por dez anos encheria a terra de
pólo a pólo de paz, abundância, saúde, alegria e tranqüilidade, como nada mais poderia
fazê-lo.
Pode ser costume aqui embaixo tratar as regras do regimento como letra morta
ou um conselho de perfeição: mas, mesmo agora, todo aquele que pára para pensar pode
ver que quando encontrarmos o inimigo esta negligência irá custar a vida de cada
homem. Será então que iremos invejar a pessoa "mórbida", o "pedante" ou "entusiasta",
que realmente ensinou sua companhia a atirar, a cavar, e a poupar seus cantis de água?

5. A sociedade maior com que contrasto aqui o "bolsão" pode não existir segundo
algumas pessoas, e em qualquer caso não temos experiência quanto a ela. Não
encontramos anjos ou raças não decaídas. Mas podemos ter algum vislumbre da verdade
mesmo em nossa própria raça. As diferentes eras e costumes podem ser consideradas
como "bolsões" em relação umas às outras. Afirmei, algumas páginas atrás, que as
diferentes idades sobressaíam em diferentes virtudes. Se, então, você jamais for tentado
a pensar que nós, os modernos europeus do ocidente, não podemos ser realmente tão
maus porque, falando em termos comparativos, somos humanos - se, em outras palavras,
você julga que Deus possa estar satisfeito conosco nessa base - pergunte a si mesmo se
acha que Deus deveria alegrar-se com a crueldade das eras cruéis pelo fato de se
sobressaírem pela coragem ou castidade.
Através da consideração de como a crueldade de nossos ancestrais se afigura a
nós, você pode ter um vislumbre de como nossa fraqueza, mundanismo e timidez teria
parecido a eles, e portanto como ambos devemos parecer aos olhos de Deus.

1 Menciono o Deus Encarnado entre os professores humanos para enfatizar que


a diferença principal entre Ele e os demais não se encontra no ensino ético (com que me
ocupo aqui) mas na Pessoa e no Ministério.

6. É possível que minha repetição do termo "bondade" já tenha despertado um


protesto na mente de alguns leitores: Não estamos nos tomando na verdade uma raça
cada vez mais cruel? Talvez estejamos. Mas penso que nos tomamos assim na tentativa
de reduzir todas as virtudes à bondade, pois Platão ensinou correta-mente que a virtude é
uma só. Você não pode ser bom a não ser que possua todas as demais virtudes. Se,
apesar de ser covarde, presunçoso e indolente, você mesmo assim nunca fez grande mal
a qualquer outra criatura, isso foi apenas porque o bem-estar de seu próximo ainda não
entrou em conflito com sua segurança, auto-aprovação, ou comodidade. Todo vicio leva à
crueldade. Até mesmo uma emoção boa, a piedade, se não for controlada pela caridade e
a justiça, leva, através da ira, à crueldade. As maiores atrocidades são estimuladas por
relatos daquelas cometidas pelo inimigo; e a piedade pelas classes oprimidas quando
separada da lei moral como um todo, leva mediante um processo natural às brutalidades
incessantes de um reino do terror.

7. Alguns teólogos modernos, com bastante razão, protestaram contra uma


interpretação excessivamente moralista do cristianismo. A Santidade de Deus é algo
mais, e diferente, da perfeição moral: a Sua reivindicação sobre nós é algo mais, e
diferente, da reivindicação do dever moral. Não nego isso: mas este conceito, como o da
culpa corporativa, é facilmente usado para fugir do ponto real. Deus pode ser mais do que
a bondade moral: Ele não é menos. A estrada para a terra prometida passa pelo Sinai. A
lei moral pode existir para ser transcendida: mas não podem transcendê-la aqueles que
não tiverem primeiro admitido a sua reivindicação sobre eles, e a seguir tentado com
todas as suas forças satisfazer essa reivindicação, e enfrentado francamente a realidade
do seu fracasso.

8. "Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus".2


Muitas escolas de pensamento nos encorajam a passar a responsabilidade de
nosso comportamento de nossos próprios ombros para alguma necessidade inerente na
natureza da vida humana, e assim, indiretamente, ao Criador. Formas populares deste
ponto de vista são a doutrina evolucionária de que aquilo que chamamos maldade não
passa do legado inevitável recebido de nossos ancestrais irracionais, ou a doutrina
idealista de que ela é simplesmente um resultado de nossa finitude. O cristianismo,
porém, se é que entendi as epístolas paulinas, admite na verdade que a perfeita
obediência à lei moral, que descobrimos escrita em nosso coração e percebemos ser
necessária até mesmo no nível biológico, não é de fato possível aos homens. Isto faria
surgir uma dificuldade real sobre a nossa responsabilidade caso a perfeita obediência
devesse ter qualquer relação prática com a vida da maioria dentre nós. Um certo grau de
obediência ao qual você e eu falhamos em alcançar nas últimas vin, te e quatro horas é
certamente possível. O problema final não deve ser usado como mais um meio de
evasão.
A maioria de nós está menos preocupada com a pergunta de Paulo do que com a
simples declaração de William Law: "Se você parar aqui e se perguntar por que não é tão
piedoso quanto os primeiros cristãos, o seu próprio coração irá dizer-lhe que isso não
acontece por ignorância nem incapacidade, mas simplesmente por. que você na verdade
jamais teve essa intenção".3
Este capítulo não terá sido compreendido se alguém o descrever como uma
repetição da doutrina da Depravação Total. Não creio nessa doutrina, parte porque se
nossa depravação fosse total não saberíamos que éramos depravados, e parte porque a
experiência nos mostra muita coisa boa na natureza humana. Não estou também
recomendando o desânimo universal: A emoção da vergonha não foi avaliada por ser
uma emoção, mas por causa da percepção a que leva. Julgo que essa percepção deveria
ser permanente na mente de todo homem: mas se as emoções penosas que a
acompanham devam ser também encorajadas é um problema técnico de orientação
espiritual que eu, como leigo, não posso tratar.

2 Tg ll13
3 serious Call, cap. 2.
Minha opinião, é que toda tristeza que não seja provocada pelo arrependimento
de um pecado concreto, acelerando o processo de emenda ou restituição; ou que, tendo a
piedade como origem não leve à ajuda ativa, é simplesmente má; e julgo que todos
pecamos por desobedecer desnecessariamente a injunção apostólica de nos "rejubilar"
tanto quanto por qualquer outra coisa. A humildade, depois do primeiro choque, é uma
virtude animadora: é o incrédulo generoso, tentando desesperadamente reter a sua "fé na
natureza humana" que é realmente triste. Tive em mira um efeito intelectual e não
emocional: tentando fazer com que o leitor acredite que sumos, na verdade, no presente,
criaturas cujo caráter deve ser, em alguns respeitos, um horror para Deus; e, quando
realmente percebemos isso, um horror para nós mesmos. Creio ser este um fato: e noto
que tanto quanto mais santo é o homem, tanto mais ele discerne esse fato. Talvez você
tenha imaginado que esta humildade nos santos seja uma ilusão piedosa da qual Deus se
ri. Esse é um erro dos mais perigosos. Ele é teoricamente perigoso porque faz com que
você identifique uma virtude (1.e., uma perfeição) com uma ilusão (i.e., uma imperfeição),
o que resulta em tolice. Ê praticamente perigoso porque encoraja o homem a considerar
seus primeiros vislumbres e sua própria corrupção como os primeiros sinais de um halo
ao redor de sua tola cabeça. Nada disso.
Você pode ter certeza que quando os santos dizem que eles - até mesmo eles -
são vis, estão registrando a verdade com correção cientifica.
Como surgiu este estado de coisas? No capitulo seguinte vou registrar tudo o que
sei a respeito da resposta cristã a essa pergunta.

A Queda do Homem

Obedecer é o ministério adequado de uma alma racional.


Montaigne 2, 12.

A resposta cristã à pergunta proposta no último capitulo está contida na doutrina


da Queda. Segundo essa doutrina, o homem é agora um horror para Deus e para si
mesmo, uma criatura mal ajustada ao universo, não porque Deus o tenha feito assim, mas
porque ele se fez assim ao abusar de seu livre-arbítrio. Esta é a única função da doutrina
para mim. Ela existe como proteção contra duas teorias sub-cristãs da origem do mal - o
monismo, segundo o qual o próprio Deus, estando "acima do bem e do mal", produz
imparcialmente os efeitos aos quais damos esses dois nomes, e o dualismo, que afirma
que Deus produz o bem, enquanto outro Poder igual e independente produz o mal. O
cristianismo afirma que Deus é bom em oposição a esses dois pontos de vista. Que Ele
fez todas as coisas boas e por causa da excelência das mesmas; que uma das boas
coisas que Ele fez, a saber, o livre arbítrio das criaturas racionais, por sua própria
natureza incluía a possibilidade do mal; e as criaturas, dispondo desta possibilidade, se
tomaram más.
Esta função - que é a única que permito à doutrina da Queda - deve ser
distinguida de duas outras que ela é às vezes representada como realizando, mas que eu
rejeito. Em primeiro lugar, não penso que a doutrina responda à pergunta: "Foi melhor
que Deus tivesse criado ou não?" Essa é uma questão que já declinei. Desde que creio
que Deus é bom, estou certo de que se esta pergunta tem sentido, a resposta deve ser
Sim. Mas duvido que ela tenha qualquer significado: e mesmo que o tenha, estou certo de
que a resposta não pode ser alcançada por meio dos critérios de valor que os homens
possam apresentar. Em segundo plano, não penso que a doutrina da Queda possa ser
usada para mostrar que ela é "justa", em termos de justiça retributiva, a fim de punir os
indivíduos pelas faltas de seus ancestrais remotos.
Algumas formas da doutrina parecem envolver isto, mas ponho em dúvida a idéia
de que qualquer delas, como entendida por seus intérpretes, realmente indique tal coisa.
Os Pais podem algumas vezes afirmar que somos castigados pelo pecado de Adão: mas
com mais freqüência dizem que nós pecamos "em Adão". Pode ser impossível descobrir o
que queriam dizer com isso, ou decidir que a idéia deles estava errada. Mas não posso
rejeitar as afirmações deles como um simples idiomatismo. Com sabedoria, ou
insensatez, eles acreditavam que nós estávamos realmente - e não simplesmente por
ficção legal - envolvidos no ato de Adão. A tentativa de formular esta crença, afirmando
que estávamos "em" Adão de modo físico - sendo Adão o primeiro veículo do "plasma do
germe imortal" - pode ser inaceitável: mas trata-se naturalmente de um outro caso o fato
de a crença ser em si mesma simplesmente uma confusão ou um vislumbre real das
realidades espirituais além de nossa compreensão normal.
No momento, porém, esta questão não surge; pois, como disse, não tenho
intenção de argumentar que a transmissão ao homem moderno das incapacidades
contraídas pelos seus ancestrais remotos seja um espécime de justiça retributiva. Para
mim, ele é mais um espécime daquelas coisas necessariamente envolvidas na criação de
um mundo estável como consideramos no Capítulo II. Teria sido sem dúvida possível
para Deus remover através do milagre os resultados do primeiro pecado cometido por um
ser humano; mas isto não teria resultado em nada muito positivo a não ser que Ele
estivesse preparado para remover os resultados do segundo pecado, do terceiro, e, assim
por diante, para sempre. Se os milagres cessassem, então mais cedo ou mais tarde
poderíamos ter chegado à nossa lamentável situação atual: caso contrário, então um
mundo dessa forma calçado e corrigido pela interferência divina, viria a ser um mundo em
que nada importante jamais dependeria da escolha humana, e no qual a própria escolha
em si logo cessaria por causa da certeza de que uma das alternativas aparentes a você
não levaria a resultado algum, não sendo portanto realmente uma alternativa. Como
vimos, a liberdade do enxadrista no jogo depende da rigidez das divisões do tabuleiro e
dos movimentos feitos.
Ao isolar o que acredito ser a verdadeira importância da doutrina do homem
decaído, vamos considerar agora a própria doutrina. A história de Gênesis (plena da mais
profunda sugestão) trata da maçã mágica do conhecimento; mas na doutrina que veio a
desenvolver-se a mágica inerente à maçã saiu praticamente de cena, e a história passou
a ser simplesmente de desobediência. Tenho o mais profundo respeito até mesmo pelos
mitos pagãos, e ainda mais pelos das Santas Escrituras. Não duvido portanto que a
versão que enfatiza a maçã mágica e reúne as árvores da vida e do conhecimento,
contém uma verdade mais profunda e sutil do que aquela que faz da maçã única e
exclusivamente um penhor de obediência. Presumo que o Espírito Santo não teria
permitido que esta última surgisse na Igreja e conquistasse a aceitação de grandes
doutores a não ser que fosse também verdadeira e útil. É esta versão que vou discutir,
porque, embora suspeite que a versão primitiva seja muito mais profunda, sei que pelo
menos eu não posso penetrar as suas profundidades. Vou dar aos meus leitores não o
melhor absoluto, mas o melhor de que disponho.
Na doutrina desenvolvida foi então alegado que o homem, como Deus o fez, era
completamente bom e completamente feliz, mas que ele desobedeceu a Deus e tomou-se
o que agora vemos. Muitas pessoas acham que esta proposição foi provada como sendo
falsa pela ciência moderna. "Sabemos agora", é dito, "que longe de ter decaído de um
estado primevo de virtude e felicidade, os homens elevaram-se vagarosamente da
brutalidade e selvageria." Parece haver completa confusão aqui. Bruto e selvagem são
termos que pertencem a essa classe infeliz de palavras algumas vezes usadas
retoricamente, como reproche, e outras cientificamente, como termos descritivos; e o
argumento pseudocientífico contra a Queda depende de uma confusão entre esses usos.
Se ao dizer que o homem elevou-se da brutalidade você está simplesmente afirmando
que ele descendia fisicamente dos animais, não tenho objeção. Mas não se segue a isso
que quanto mais você retroceda tanto mais brutal -no sentido de perverso ou miserável -
descobrirá que ele foi.
Nenhum animal possui virtude moral: mas não é verdade que todo
comportamento animal seja da espécie que chamaríamos de "perverso" caso praticado
por homens. Pelo contrário, nem todos os animais tratam as outras criaturas de sua
própria espécie como o homem trata outros homens. Nem todos são glutões e lascivos
como nós, e animal algum é ambicioso.
Assim também, se disser que os primeiros homens eram "selvagens", significando
com isso que seus artefatos eram poucos e grosseiros como os dos modernos
"selvagens", pode muito bem estar certo. Mas se afirmar que eram "selvagens" no sentido
de serem lascivos, ferozes, cruéis e traiçoeiros, estará ultrapassando a sua evidência, por
duas razões.
Em primeiro lugar, os modernos antropólogos e missionários estão menos
inclinados do que seus pais a endossarem sua descrição desfavorável até mesmo do
selvagem moderno.
Em segundo lugar, você não pode discutir a partir dos artefatos dos primeiros
homens que eles eram em todos os respeitos como os povos contemporâneos que
fabricam artefatos similares.
Devemos guardar-nos aqui de uma ilusão que o estudo do homem pré-histórico
parece naturalmente gerar.
O homem pré-histórico, exatamente por ser pré-histórico, é conhecido por nós
unicamente através dos objetos materiais feitos por ele ou antes pela escolha casual
dentre as coisas mais duráveis que fez. Não é falta dos arqueólogos o fato de não terem
melhor evidência: mas esta escassez constitui uma tentação contínua para inferir mais do
que temos qualquer direito de inferir, supor que a comunidade que fabricou os artefatos
fosse superior em todos os aspectos. Qualquer um pode ver que a suposição é falsa; ela
levaria à conclusão que as classes ociosas de nossa época fossem em todos os respeitos
superiores às da era vitoriana. É claro que os homens pré-históricos que fabricaram a
cerâmica mais inferior poderiam ter sido também justamente os que fizeram a melhor
poesia, e nunca saberíamos disso. A suposição se toma ainda mais absurda quando
comparamos os homens pré-históricos com os modernos selvagens. A mesma crueza
dos artefatos nada lhe diz aqui sobre a inteligência ou virtudes dos fabricantes. O que é
aprendido mediante a experiência e o erro deve começar pela simplicidade, qualquer que
seja o caráter do novato. O mesmo vaso que provaria ser o seu fabricante um gênio caso
se tratasse do primeiro vaso feito no mundo, afirmaria ser ele um idiota se fabricado
depois de milênios de trabalhos em cerâmica. Toda a moderna estimativa do homem
primitivo se acha baseada sobre essa idolatria dos artefatos que é um grande pecado
corporativo de nossa civilização.
Esquecemo-nos de que nossos ancestrais pré-históricos fizeram todas as
descobertas mais úteis, exceto a do clorofórmio, que jamais foi feita. Devemos a ele a
linguagem, a família, as vestimentas, o uso do fogo, a domesticação dos animais, a roda,
o navio, a poesia e a agricultura.
A ciência, portanto, nada tem a dizer seja contra ou a favor da doutrina da Queda.
Uma dificuldade mais filosófica foi levantada pelo moderno teólogo a quem os
estudiosos do assunto muito devem.1 Este autor salienta que a idéia do pecado
pressupõe uma lei contra a qual pecar: e desde que levaria séculos para o "instinto de
massa" cristalizar-se em costume e o costume tomar-se lei, o primeiro homem - se houve
jamais um ser que pudesse ser assim descrito - não poderia ter cometido o primeiro
pecado. Este argumento supõe que a virtude e o instinto de massa geralmente coincidem,
e que o "primeiro pecado" foi essencialmente um pecado social. Mas a doutrina tradicional
aponta para um pecado contra Deus, um ato de desobediência, e não um pecado contra o
próximo. E, certamente, se vamos manter a doutrina da Queda em qualquer sentido real,
devemos considerar o grande pecado num nível mais profundo e intemporal do que o da
moralidade social.
Este pecado foi descrito por Santo Agostinho como o resultado do orgulho, do
movimento através do qual uma criatura (isto é, um ser essencialmente dependente cujo
princípio de existência não é contido em si mesmo mas em outro) tenta estabelecer-se
por si mesma, existir por si mesma.2 Um pecado assim não exige condições sociais
complexas, nenhuma experiência prolongada, nem grande desenvolvimento intelectual. A
partir do momento em que uma criatura passa a ter percepção de Deus como Deus e de
si mesma como o "eu", a terrível alternativa de escolher a Deus ou ao "eu" como centro
se abre para ela. Este pecado é cometido diariamente pelas crianças pequenas e pelos
camponeses ignorantes, assim como por pessoas sofisticadas; tanto pelos solitários como
pelas pessoas que vivem em sociedade; trata-se da Queda na vida de cada indivíduo, e,
em cada dia de cada vida individualmente, o pecado básico por detrás de todos os
pecados particulares: neste justo momento você e eu estamos cometendo, prestes a
cometer, ou arrependendo-nos dele. Ao acordar, tentamos colocar o novo dia aos pés de
Deus; antes de termos acabado de fazer a barba ele porém se torna o nosso dia e a
participação de Deus nele é tida como um tributo que devemos pagar de "nosso próprio"
bolso, uma dedução do tempo que sentimos deveria ser "nosso". Um indivíduo começa
um novo emprego com um sentimento intenso de devoção e talvez durante a primeira
semana ele mantenha essa atitude, cumprindo a sua devoção, aceitando os prazeres e
sofrimentos da mão de Deus, conforme surgirem, como se fossem simples "acidentes".
Mas na segunda semana ele já está começando a "conhecer os truques" e na terceira já
fez o seu próprio plano estabelecendo o seu papel no trabalho.

1 N. P. Williams, The Ideai fj the Fall and of Originai sin, pág. 516.
2 De Civitate Dei XIV, xiii.

Quando pode seguir esse plano sente que não está auferindo mais do que o que
lhe cabe por direito e se isso não acontece sente-se prejudicado, esbulhado.
A pessoa que ama, em obediência a um impulso imprevisto, que pode estar cheio
de boa vontade e do desejo e necessidade de não se esquecer de Deus, abraça o ser
amado e então, inocentemente, experimenta uma emoção de prazer sexual; mas o
segundo abraço pode ter em vista esse prazer, pode ser um meio de alcançar um fim,
pode ser o primeiro passo da estrada em declive que leva à consideração de um
semelhante como uma coisa, um instrumento a ser usado para o seu prazer. Dessa forma
a flor da inocência, o elemento de obediência e disposição para aceitar aquilo que vier, é
eliminado de toda atividade.
Os pensamentos experimentados por causa de Deus – como aquele em que nos
empenhamos no momento - são continuados como se fossem um fim em si mesmos, e a
seguir como se nosso prazer em pensar fosse o fim, e finalmente como se nosso orgulho
ou celebridade fosse o fim. Desse modo o dia inteiro, e todos os dias de nossa vida,
estamos nos desviando, escorregando, afastando - como se Deus fosse, para nossa
consciência presente, um plano inclinado suave no qual não há apoio.
Na verdade, nossa natureza agora é tal que precisamos escapar; e o pecado, por
ser inevitável, pode ser venial. Mas não foi Deus que nos fez assim. A gravitação para
longe de Deus, "a jornada em direção ao ego habitual", deve ser, ao que pensamos, um
resultado da Queda. O que aconteceu exatamente quando o homem caiu, não sabemos;
mas se é legítimo fazer conjeturas, ofereço o seguinte quadro: um "mito" no sentido
socrático,3 uma narrativa plausível.
Durante longos séculos Deus aperfeiçoou a forma animal que iria tomar-se o
veículo da humanidade e a imagem de Si mesmo. Ele deu-lhe mãos cujo polegar podia
ser aplicado a cada um dos dedos, e mandíbula, dentes e garganta articulados, assim
como um cérebro suficientemente complexo para executar todos os movimentos materiais
dando Julgar ao pensamento racional. A criatura pode ter existido durante séculos neste
estado antes de tomar-se homem: pode ter sido até mesmo inteligente o bastante para
fazer coisas que o arqueólogo moderno aceitaria como prova de sua humanidade. Mas
não passava de um animal porque todos os seus processos físicos eram dirigidos a fins
puramente materiais e naturais. Então, na plenitude do tempo, Deus fez descer sobre este
organismo, tanto na sua psicologia como fisiologia, uma nova espécie de consciência que
podia dizer "eu" e "mim", que podia olhar para si mesma como um objeto, que conhecia
Deus, que podia fazer juízos quanto à verdade, beleza e bondade, e que estava tão acima
do tempo que podia percebê-lo passar.

3 Isto é, um relato do que pode ter sido o fato histórico. Não devendo ser
Confundido com "mito" na opinião do Dr. Niebuhr (1.e., uma representação simbólica da
verdade não-histórica.)

Esta nova consciência governava e iluminava o organismo inteiro, enchendo de


luz cada uma de suas partes; não sendo, como o nosso, limitado a uma seleção dos
movimentos existentes numa parte dele, a saber, o cérebro. O homem era então todo
consciência.
O iogue moderno alega - seja com verdade ou falsamente - ter sob controle essas
funções que para nós fazem praticamente parte do mundo exterior, como a digestão e a
circulação.
O primeiro homem tinha eminentemente este poder. Seus processos orgânicos
obedecem à lei da sua própria vontade e não à da natureza. Seus órgãos enviavam
apetites ao tribunal da vontade, não porque fossem obrigados a isso, mas porque assim o
desejavam. O sono não era para ele o estupor em que caímos, mas um repouso
consciente e voluntário - permanecia acordado para gozar do prazer e necessidade do
sono. Desde que os processos de decadência e reparo de seus tecidos eram da mesma
forma conscientes e obedientes, não é fantasioso supor que a duração de sua vida fosse
um aspecto que ficava praticamente a seu critério.
Pelo fato de comandar inteiramente a si mesmo, ele dominava todas as formas
inferiores de vida com as quais entrava em contato. Encontramos ainda hoje alguns raros
indivíduos que possuem um misterioso poder para domesticar feras. O homem
paradisíaco gozava deste poder de maneira notável. O velho quadro dos animais
brincando diante de Adão e fazendo-lhe festas pode não ser inteiramente simbólico. Até
mesmo agora mais animais do que podemos supor estão prontos a adorar o homem se
lhes for dada uma oportunidade razoável: pois o homem foi feito para ser o sacerdote e
mesmo, num certo sentido, o Cristo, dos animais - o mediador através do qual eles
apreendem tanto do esplendor divino quanto sua natureza irracional permite. E Deus,
para tal homem, não representava um plano inclinado, escorregadio. A nova consciência
tinha sido feita para repousar em seu Criador, e assim fez.
Por mais rica e variada que fosse a experiência do homem em relação a seus
semelhantes (ou semelhante) quanto à caridade e amizade, ao amor sexual, ou quanto
aos animais ou ao mundo que o rodeava, pela primeira vez reconhecido como belo e
terrível, Deus vinha em primeiro lugar no seu amor e pensamentos, e isso sem qualquer
esforço penoso. Num perfeito movimento cíclico, o ser, o poder e a alegria, desciam de
Deus para o homem na forma de amor obediente e adoração extática: e neste sentido,
embora não em todos, o homem era então verdadeiramente o filho de Deus, o protótipo
de Cristo, representando perfeitamente na alegria e relaxamento de todas as faculdades e
sentidos aquela rendição filial que Nosso Senhor representou nas agonias da
crucificação.
Julgado pelos seus artefatos e talvez até mesmo pela sua linguagem, esta
criatura abençoada era sem dúvida um selvagem. Tudo o que a experiência e a prática
podem ensinar estava ainda para ser aprendido: se cortava gravetos, com certeza era
muito desajeitado. Pode ter sido absolutamente incapaz de expressar de forma conceitual
sua experiência paradisíaca. Tudo isso é irrelevante. De nossa infância, podemos lembrar
que antes dos mais velhos nos considerarem capazes de "compreender" qualquer coisa,
já tínhamos experiências espirituais tão puras e momentosas como quaisquer outras que
tenhamos tido desde então, embora não fossem naturalmente tão ricas em seu contexto
real.
Do próprio cristianismo podemos aprender que existe um nível - a longo prazo o
único nível de importância - em que os eruditos e os adultos não têm qualquer vantagem
sobre os simples e as crianças. Não tenho dúvidas de que se o homem paradisíaco
surgisse agora entre nós, iríamos considerá-lo um completo selvagem, uma criatura a ser
explorada ou, pelo menos, tratada com condescendência. Apenas um ou dois, e esses
estariam entre os mais santos dentre nós, iriam lançar um segundo olhar para essa
criatura nua, barbuda, de fala arrastada: mas eles, dentro de poucos minutos, cairiam a
seus pés.
Não sabemos quantas dessas criaturas Deus fez, nem por quanto tempo
continuariam no estado paradisíaco. Mas, mais cedo ou mais tarde, elas caíram. Alguém
ou alguma coisa lhes sussurrou que poderiam tornar-se como deuses - que podiam deixar
de manter Suas vidas na direção do Criador e aceitar todos os seus prazeres como
dádivas não convencionais, como "acidentes" (no sentido lógico) surgidos no decorrer de
uma vida dirigida à adoração de Deus e não a esses prazeres.
Da mesma forma que o jovem deseja uma mesada do pai, que possa considerar
como sua, com a qual faz seus próprios planos (e com justiça, pois o pai é afinal de
contas um semelhante) eles também desejavam agir por conta própria, cuidar de seu
futuro, planejar para o seu prazer e segurança, ter um meum do qual sem dúvida
pagariam um tributo razoável a Deus em termos de tempo, atenção, e amor, mas que em
todo caso era deles e não dEle. Eles queriam, como dizemos hoje, ser "seus próprios
donos". Mas isso significa viver uma mentira, porque na verdade não somos donos de nós
mesmos, nossa alma não é nossa. Eles queriam um lugar no universo de onde pudessem
dizer a Deus: "Este negócio é nosso e não seu." Mas não existe um canto assim. Eles
queriam ser substantivos, mas eram, e serão eternamente, simples adjetivos. Não temos
idéia em que ato, ou série de atos, o desejo contraditório, impossível, encontrou
expressão. Por tudo o que sei, pode ter ligação com o ato de comer literalmente uma
fruta, mas a questão não é importante.
Este ato de obstinação por parte da criatura, que constitui uma absoluta falsidade
em relação à sua posição de criatura, é o único pecado que pode ser concebido como a
Queda.
A dificuldade com respeito ao primeiro pecado é que ele deve ser hediondo, caso
contrário suas conseqüências não seriam tão terríveis, embora seja ao mesmo tempo
algo que um ser, livre das tentações do homem decaído, possa ter possivelmente
praticado. O desvio de Deus para o "eu" cumpre ambas as condições. É um pecado
possível até mesmo ao homem paradisíaco, pois a simples existência de um "eu" – o
mero fato de o chamarmos "mim" - inclui, desde o princípio, o perigo da auto-idolatria.
Desde que eu sou eu, devo realizar um ato de auto-rendição, por menor ou mais fácil que
seja, vivendo para Deus em lugar de para mim mesmo.
Este é o "ponto fraco" na própria natureza da criação, o risco que Deus
aparentemente julga valer a pena aceitar. Mas o pecado foi hediondo porque o "eu" que o
homem paradisíaco teve de render não continha uma resistência natural ao ato de render-
se. Seus dados, por assim dizer, eram um organismo psicofísico inteiramente sujeito à
vontade e uma vontade inteiramente disposta, embora não compelida, a voltar-se para
Deus. A autoentrega que ele praticou antes da Queda não envolveu qualquer esforço,
mas apenas a agradável vitória sobre uma auto-aderência infinitesimal que causou prazer
ao ser vencida - no que vemos uma leve analogia na auto-entrega extasiada dos amantes
de hoje. Ele não tinha, portanto, qualquer tentação (no sentido dado por nós) para
escolher o "eu" – nenhuma paixão ou inclinação voltada obstinadamente para esse lado –
nada além do simples fato de que o ego era ele mesmo.
Até esse momento o espírito humano tinha estado em pleno controle do
organismo humano, e sem dúvida esperava que reteria esse controle quando deixou de
obedecer a Deus. Mas sua autoridade sobre o organismo não passava de uma autoridade
delegada que perdeu quando deixou de ser o delegado de Deus. Pelo fato de ter-se
afastado, na medida do possível, da fonte de seu ser, ele também rompeu sua ligação
com a fonte de poder. Quando dizemos quanto às coisas criadas que A domina B, isto
deve significar que Deus domina B através de A. Duvido que fosse intrinsecamente
possível para Deus continuar a ter domínio sobre o organismo através do espírito humano
quando este se rebela contra Ele. Pelo menos, não o fez. Passou a governar o organismo
de maneira mais extrema, não mais pelas leis do espírito, mas pelas da natureza.4 Assim
sendo, os órgãos, não mais governados pela vontade do homem, caíram sob o controle
das leis bioquímicas comuns e sofreram as interações que essas leis provocaram na
forma de dor, senilidade e morte.
Os desejos começaram a surgir na mente do homem, não de conformidade com a
escolha feita pela sua razão, mas como os fatos bioquímicos e ambientais os
provocavam.
A própria mente sujeitou- se às leis psicológicas da associação e outras que Deus
tinha feito para governar a psicologia dos antropóides superiores. E a vontade, apanhada
na maré da simples natureza, não teve outro recurso senão restringir alguns dos novos
pensamentos e desejos pela força, e esses rebeldes inconformados se tomaram o
subconsciente como o conhecemos hoje. O processo, segundo penso, não foi comparável
à simples deterioração como pode ocorrer agora no indivíduo da espécie humana; mas
tratou-se de uma perda de posição como espécie. O que o homem perdeu com a Queda
foi sua natureza original específica. "Tu és pó e ao pó voltarás." O organismo total que se
elevara até sua vida espiritual voltou à condição simplesmente natural de que, ao ser
feito, tinha saído - assim como, muito antes na história da criação, Deus elevara a vida
vegetal para tomar-se o veículo da animalidade, e o processo químico para tornar-se o
veículo da vegetação, e o processo físico para tornar-se o veículo do químico. O espírito
humano, de senhor da natureza humana, passou a ser um simples hóspede em sua
própria casa, ou até mesmo um prisioneiro; a consciência racional transformou-se no que
agora é - um facho de luz vacilante repousando em uma pequena parcela dos
movimentos cerebrais. Mas esta limitação dos poderes do espírito foi um mal menor do
que a corrupção do espírito em si.
Ele se afastara de Deus e se tomara o seu próprio ídolo; e assim, embora
pudesse ainda voltar a Deus,5 só podia fazê-lo mediante um grande esforço, e sua
indignação era dirigida ao "eu".
Dessa forma o orgulho e a ambição, o desejo de ser belo a seus próprios olhos e
de oprimir e humilhar todos os rivais, a inveja e a busca incessante de mais e mais
segurança, eram agora as atitudes que tomava com maior facilidade. Ele não era apenas
um rei fraco sobre a sua natureza, mas um mau rei: enviando ao organismo psicofísico
desejos bem piores do que este os enviava a ele. Esta condição foi transmitida a todas as
gerações posteriores pela hereditariedade, pois não se tratava simplesmente do que os
biólogos chamam de uma variação adquirida; mas da emergência de um novo tipo de
homem - uma nova espécie, jamais feita por Deus, tinha passado a existir mediante o
pecado. A mudança pela qual o homem passara não era paralela ao desenvolvimento de
um novo órgão ou um novo hábito; tratava-se, entretanto, de uma alteração radical de sua
constituição, um distúrbio da relação entre as suas partes componentes, e uma perversão
interna de uma delas.

4 Este é um desenvolvimento do conceito de Hooker sobre a Lei. Desobedecer á


sua própria lei (1.e., a lei que Deus faz para um ser como você) significa ver-se
obedecendo a uma das leis inferiores de Deus: e.g., se ao andar num pavimento
escorregadio, você negligenciar a lei da prudência, irá encontrar-se repentinamente
obedecendo à lei da gravidade.
5 0s teólogos irão notar que não pretendo fazer aqui qualquer contribuição á
controvérsia pelágioagostiniana.
Quero indicar unicamente que tal volta a Deus não era nem é uma
impossibilidade.
Onde fica a iniciativa de tal retomo é uma questão sobre a qual não me atrevo a
dizer nada.

Deus poderia ter suspenso este processo através de um milagre: mas isto -
falando por metáfora algo irreverente - seria declinar o problema que Deus, Ele mesmo,
tinha estabelecido ao criar o total de um mundo contendo agentes livres, apesar de, e por
meio de, sua rebelião contra Ele. O símbolo de um drama, uma sinfonia, ou uma dança, é
útil aqui para corrigir um certo absurdo que pode surgir se falarmos demasiado a respeito
de Deus planejar e criar o processo do mundo para o bem e de esse bem ser frustrado
pelo livre-arbítrio das criaturas.
Isto pode levantar a idéia ridícula de que a Queda tomou Deus de surpresa e
atrapalhou os seus planos, ou então - mais ridículo ainda - que Deus planejou tudo para
condições que, Ele bem sabia, jamais iriam ser cumpridas. De fato, como é natural, Deus
viu a crucifixão no ato de criar a primeira nebulosa. O mundo é uma dança em que o bem,
procedente de Deus, é perturbado pelo mal que sobe das criaturas, e o conflito resultante
é resolvido pela suposição do próprio Deus da natureza sofredora que o mal produz. A
doutrina da Queda voluntária afirma que o mal que produz assim o combustível ou a
matéria-prima para o segundo e mais complexo tipo de bem não é contribuição de Deus
mas do homem. Isto não quer dizer que se o homem tivesse permanecido inocente, Deus
não poderia então ter inventado um todo sinfônico igualmente esplêndido - supondo que
insistamos em fazer perguntas desse tipo.
Mas deve ser sempre lembrado que quando falamos do que poderia ter
acontecido, de contingências fora de toda realidade, não sabemos na verdade do que
estamos falando. Não existem tempos nem lugares fora do universo existente em que
tudo isto "poderia acontecer" ou "poderia ter acontecido". Penso que a maneira mais
significativa de afirmar a verdadeira liberdade do homem é dizer que se existirem outras
espécies racionais além dele, em alguma outra parte do universo atual, então não é
necessário supor que elas também tenham decaído.
Nossa condição presente é então explicada pelo fato de que somos membros de
uma espécie estragada. Não quero dizer que nossos sofrimentos sejam uma punição por
ser aquilo que agora não mais podemos deixar de ser, nem que sejamos moralmente
responsáveis pela rebelião de um ancestral remoto. Se, todavia, digo que nossa condição
presente é de pecado original, e não simplesmente de infortúnio original, isto se deve ao
fato de nossa experiência religiosa real não permitir que a consideremos de qualquer
outro modo. Em teoria, suponho que poderíamos dizer: "Sim, nós nos comportamos como
vermes, mas isso porque somos vermes. E, afinal de contas, isso não é culpa nossa."
Mas o fato de sermos vermes, longe de ser sentido como uma desculpa, é uma vergonha
e um sofrimento para nós maior do que qualquer dos atos que ele nos leva a cometer. A
situação não é assim tão difícil de entender como alguns pensam. Ela surge entre os
seres humanos toda vez que um menino realmente mal educado é introduzido no seio de
uma família decente. Eles procuram lembrar-se de que "não é culpa dele" ser um
valentão, um covarde, um mexeriqueiro e um mentiroso. Mas, de qualquer jeito, como
quer que o tenha adquirido, seu caráter é detestável. Eles não só o odeiam, como devem
odiá-lo. Não podem amar o menino pelo que é, podem apenas tentar transformá-lo
naquilo que não é. Nesse meio tempo, embora o menino não tenha tido sorte em ser
criado desse modo, você não pode com justiça chamar o seu caráter de uma
"infelicidade" como se ele fosse uma coisa e o seu caráter outra. É ele - ele mesmo - que
aborrece, age covardemente e gosta disso. E se começar a emendar-se irá
inevitavelmente sentir vergonha e culpa daquilo que está começando a deixar de ser.
Com isto eu disse tudo que pode ser dito no único nível em que sinto que posso
tratar do assunto da Queda. Aviso porém mais uma vez meus leitores que este nível é
raso. Nada dissemos das árvores da vida e do conhecimento que sem dúvida ocultam
algum grande mistério: e nada dissemos da afirmação paulina de que "em Adão todos
morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo".6 É esta passagem que serve
de base à doutrina patrística de nossa presença física nos lombos de Adão e à doutrina
de Anselmo de nossa inclusão, por ficção Legal, no Cristo sofredor. Essas teorias podem
ter sido adequadas em sua época, mas nada me acrescentam, e não vou inventar outras.
Os cientistas nos afirmaram recentemente que não temos direito de esperar que o
universo real possa ser retratado, e se concebermos imagens mentais para ilustrar a
física quântica estaremos então nos distanciando da realidade e não nos aproximando
dela.7
Temos ainda menos direito de exigir que as realidades espirituais mais elevadas
possam ser retratadas, ou sequer explicadas em termos de nossos pensamentos
abstratos.
Observo que a dificuldade da fórmula paulina está na partícula "em", e que esta é
usada com freqüência no Novo Testamento em sentidos que não podemos entender
completamente. O fato de podermos morrer "em" Adão e viver "em" Cristo parece implicar
que o homem, como realmente é, difere muito daquele apresentado por nossas
categorias de pensamento e nossas três imaginações dimensionais; que a separação -
modificada apenas por relações causais - que discernimos entre os indivíduos, é
equilibrada na realidade absoluta, por uma espécie de "comunicação" da qual não temos
qualquer idéia.
É possível que os atos e sofrimentos de grandes indivíduos-protótipos como Adão
e Cristo sejam nossos, não mediante ficção legal, metáfora ou causalidade, mas de algum
modo muito mais profundo. Não existe questão, naturalmente, de indivíduos se fundindo
numa espécie de continuidade espiritual como acreditam os sistemas panteístas; isso fica
excluído por todo o teor da nossa fé. Pode, entretanto, haver uma tensão entre a
individualidade e algum outro princípio. Cremos que o Espírito Santo possa estar
realmente presente e operando no espírito humano, mas nós não aceitamos isto, como os
panteístas, no sentido de que somos "partes" ou "modificações" ou "manifestações" de
Deus.
Podemos ter de supor, a longo prazo, que algo deste tipo seja verdade, em grau
adequado, até mesmo com respeito aos espíritos criados. Isto é, cada um, embora
distinto, está realmente presente em todos, assim como talvez tenhamos de admitir "ação
à distância" no nosso conceito de matéria. Todos terão notado como o velho Testamento
parece às vezes ignorar nosso conceito do indivíduo. Quando Deus promete a Jacó que
"irá para o Egito com ele e certamente o fará sair de lá novamente",8 isto é cumprido seja
pelo sepultamento do corpo de Jacó na Palestina ou pelo êxodo dos descendentes de
Jacó do Egito. É perfeitamente justo associar esta noção com a estrutura social das
primeiras comunidades, nas quais o indivíduo é constantemente esquecido a favor da
tribo ou família.
6 I Co15:22
7 Sir James Jeans, The Mysterious Universe. cap. 5
8 Gn 46:4

Devemos, porém, expressar esta ligação mediante duas proposições de igual


importância: primeiro, os antigos ficaram cegos a algumas verdades que percebemos,
devido à sua experiência social; e, segundo, esta os tomou sensíveis a algumas verdades
que não percebemos. A ficção legal, a adoção e a transferência ou imputação de mérito e
culpa, jamais poderiam ter desempenhado a parte que desempenharam na teologia se
tivessem sempre sido consideradas como sendo tão artificiais como julgamos que sejam
agora.
Achei por bem permitir este vislumbre de algo que é para mim uma cortina
impenetrável. Mas, como já disse, não faz parte de meu argumento presente. Seria
claramente inútil tentar resolver o problema do sofrimento produzindo um outro problema.
A tese deste capítulo é simplesmente de que o homem, como espécie, estragou-
se a si mesmo, e que o bem, para nós, em nossa condição presente, deve significar
primariamente um bem terapêutico ou corretivo. Qual a parte desempenhada realmente
pelo sofrimento em tal terapia ou correção será agora objeto de nosso estudo.

O Sofrimento Humano

Desde que a vida de Cristo é de toda forma mais penosa à natureza, ao “eu” e ao
"mim" ( pois na verdadeira vida de Cristo, o "eu", o "mim", e a natureza devem ser
esquecidos, perdidos, e eliminados inteiramente.)em cada um de nós, portanto, a
natureza na realidade abomina essa vida.
Theologia Germanica, XX.

Tentei mostrar num capítulo anterior que a possibilidade do sofrimento é inerente


à própria existência de um mundo onde almas possam encontrar-se. Quando as almas se
tomam perversas, elas certamente fazem uso desta possibilidade para se ferirem umas às
outras. Isto talvez justifique quatro-quintos dos sofrimentos humanos. Foram os homens,
e não Deus, que inventaram a tortura, os chicotes, as prisões, a escravidão, as armas, as
baionetas e as bombas. A pobreza e o excesso de trabalho são produtos da avareza ou
da estupidez humana e não uma distorção da natureza. De todo modo, porém, existe
ainda muito sofrimento que não pode ser atribuído a nós mesmos.
Mesmo que toda dor fosse causada pelo ser humano, ainda assim gostaríamos
de saber a razão para a tolerância por parte de Deus no que diz respeito à tortura que os
indivíduos malvados infringem aos seus semelhantes.1
Dizer, como fizemos no último capítulo, que o bem, para criaturas como somos
agora, significa principalmente um bem corretivo ou terapêutico, é uma resposta
incompleta. Nem todos os remédios são desagradáveis de tomar, ou, caso o sejam, esse
é em si mesmo um dos fatos negativos para o qual gostaríamos de saber a razão.
Antes de prosseguir devo voltar a um detalhe que salientei no Capítulo II. Disse ali
que o sofrimento, abaixo de um certo nível de intensidade, não era sentido e poderia
chegar até mesmo a ser apreciado. Você talvez replique: "Nesse caso eu não o chamaria
por esse nome", e talvez esteja certo. Mas a verdade é que a palavra Sofrimento possui
dois sentidos que devem ser agora diferenciados

A. Um tipo de sensação particular, provavelmente transmitida por fibras nervosas


especiais, e reconhecida pelo paciente como sendo esse tipo de sensação quer goste ou
não dela (e.g., a leve dor em meus membros seria reconhecida como dor, mesmo que
não fizesse objeção a ela).

B. Qualquer experiência, seja física ou mental, que desgoste o paciente.

1 Em Lugar de "malvados", talvez fosse preferível dizer "as piores criaturas" Não
rejeito de forma alguma o ponto de vista de que a "causa eficiente" da doença, ou alguma
doença, possa ser um outro ente criado e não o próprio homem (veja Capítulo IX). Nas
Escrituras, Satanás se acha particularmente associado à doença em Jó, Lucas 13:16, 1
Co 5:5 e provavelmente em I Tm 1:20.

Neste Ponto de nosso argumento, o fato de todas as vontades criadas, às quais


Deus Permite o poder de atormentar outras criaturas, serem ou não humanas, é por
Completo indiferente.
Note-se que qualquer Dor no sentido A se torna uma dor no sentido B se se
elevar além de um certo nível de intensidade, mas que as dores no sentido B não têm
necessidade de sê-lo no sentido
A. A dor em B é, de fato, um sinônimo de "sofrimento", "angústia", "tribulação",
"adversidade", ou "dificuldade", e é nessa relação que surge o problema do sofrimento.
No restante deste livro o Sofrimento será usado no sentido B e incluirá todos os tipos do
mesmo. Não iremos tratar mais do sentido A.O melhor bem da criatura é entregar-se ao
seu Criador - desempenhar intelectual, volitiva e emocionalmente esse relacionamento
dado no simples fato de ser uma criatura. Quando age nessa conformidade ela é boa e
feliz. A fim de não julgarmos que isto traga sofrimento, esta espécie de bem se inicia num
nível muito superior ao das criaturas, pois o próprio Deus, como Filho, desde a eternidade
entrega a Deus, como Pai, mediante a obediência filial, o ente que o Pai, pelo amor
paternal, gera eternamente no Filho. Foi este o padrão para o qual o homem foi feito,
aquele que deve imitar - que o homem paradisíaco imitou realmente - e toda vez que a
vontade conferida pelo Criador é assim perfeitamente ofertada de volta em obediência
jubilosa e causadora de alegria por parte da criatura, aí, sem dúvida, está o Céu, e daí
emana o Espírito Santo.
No mundo, como o conhecemos hoje, o problema está em como recobrar esta
autoentrega.
Não somos apenas criaturas imperfeitas que devem ser aperfeiçoadas: nós
somos, como disse Newman rebeldes que precisam depor as armas. A primeira resposta,
então, à pergunta da razão pela qual nossa cura deve ser penosa, é que render a vontade
que por tanto tempo reivindicamos como nossa é, em si mesmo, uma dor cruciante, onde
quer e como seja isso levado a efeito. Até mesmo no Paraíso fiz supor que exista uma
autoaderência mínima a ser vencida, embora a vitória e a rendição constituíssem ali uma
expressão de arrebatamento.
Render, porém, uma vontade inflamada e tumefata por anos de usurpação é uma
espécie de morte. Todos podemos lembrar desta vontade como o era na infância. Os
acessos amargos e prolongados de raiva a qualquer contrariedade. A explosão em
lágrimas ardentes, o desejo negro e satânico de matar ou morrer em lugar de render-se.
Assim sendo, o tipo mais antiquado de governanta ou de pais estava muito certo em
pensar que o primeiro passo na educação é "esmagar" a vontade da criança". Os
métodos por eles empregados foram com freqüência errados; mas não observar essa
necessidade é, penso eu, excluir-se de toda compreensão das leis espirituais. E se agora
que somos crescidos não gritamos nem batemos tanto os pés, isso se deve parcialmente
ao fato de as pessoas mais velhas terem dado início ao processo de esmagar ou matar
nossa obstinação no berço, e parcialmente porque essas mesmas paixões tomam agora
formas mais sutis e são mais peritas em evitar a morte mediante vá- rias
"compensações". Daí a necessidade de morrer diariamente: por mais que julguemos ter
esmagado o "eu" rebelde, vamos sempre descobri-lo vivo. O fato de neste processo não
poder apresentar-se sem sofrimento é suficientemente testemunhado pela própria história
da palavra "mortificação".
Mas esta dor intrínseca, ou morte, ao mortificar o "eu" usurpado, não constitui
toda história. A mortificação, de maneira paradoxal, embora seja em si mesma um
sofrimento, é facilitada pela presença da dor no seu contexto. Em minha opinião isto
acontece principalmente de três modos.
O espírito humano não começará sequer a tentar render a vontade enquanto tudo
parecer que está correndo bem. O erro e o pecado possuem ambos esta propriedade,
quanto mais profundos são tanto menos as suas vítimas suspeitam de sua existência; são
um mal mascarado. O sofrimento é um mal às claras, indiscutível; todo homem sabe que
algo está errado quando sente dor. Nem mesmo o masoquista é uma exceção. O sadismo
e o masoquismo isolam respectivamente, e depois exageram um "momento" ou "aspecto"
do impulso sexual normal. O sadismo2 exagera o aspecto da captura e do domínio até o
ponto em que o pervertido só se satisfaz maltratando o ser amado, como se dissesse,
"sou seu senhor, posso até atormentá-lo". O masoquismo, por sua vez, exagera o aspecto
complementar e oposto, e diz "estou de tal forma cativo que acolho até mesmo o
sofrimento às suas mãos".
A não ser que a dor fosse sentida como um mal - como um ultraje, sublinhando o
completo senhorio da outra parte - ela deixaria de ser um estímulo erótico para o
masoquista. E a dor não é apenas um mal identificável, mas um mal impossível de
ignorar.
Podemos repousar satisfeitos em nossos pecados e estupidez; e quem quer que
tenha observado os glutões engolindo os alimentos mais delicados como se não
soubessem o que comiam, irá admitir que podemos ignorar até mesmo o prazer. Mas o
sofrimento insiste em ser notado. Deus sussurra em nossos prazeres, fala em nossa
consciência, mas grita em nosso sofrimento: ele é o seu megafone para despertar um
mundo surdo. Um homem mau, mas feliz, é um indivíduo que não tem a mínima noção de
que seus atos não são uma "resposta", de que eles não se conformam às leis do
universo.
Uma percepção desta verdade se encontra oculta no sentimento humano
universal de que os perversos devem sofrer. Não adianta torcer o nariz a este sentimento,
como se fosse inteiramente ignóbil. Em seu nível mais brando ele apela para o senso de
justiça de cada um. Certa vez quando meu irmão e eu estávamos desenhando na mesma
mesa, quando éramos pequenos, eu movi o braço e meu cotovelo bateu nele fazendo
com que fizesse um risco no meio do seu desenho; o assunto foi resolvido amigavelmente
quando permiti que fizesse uma linha de igual tamanho no meu trabalho. Isto é, fui
colocado "no lugar dele", podendo ver a minha negligência pelo outro lado. Num nível
mais severo a mesma idéia se manifesta como um "castigo retributivo" ou "dar ao homem
o que ele merece". Alguns indivíduos esclarecidos gostariam de banir todo conceito de
retribuição ou mérito de sua teoria do castigo e atribuir o seu valor inteiramente à
intimidação de outros ou à reforma do próprio criminoso.
Essas pessoas não percebem que agindo assim tomam todo castigo injusto. O
que pode ser mais imoral do que infligir sofrimento sobre mim com o intuito de intimidar
outros se eu não mereço isso? E se o mereço, você está então admitindo as
reivindicações da "retribuição". E o que pode ser mais ultrajante do que agarrar-me e
submeter-me a um processo desagradável de aperfeiçoamento moral sem meu
consentimento, a não ser (mais uma vez) que o mereça?
Num terceiro nível temos a paixão vingativa - a sede de vingança. Isto é
naturalmente um mal e expressamente proibido aos cristãos. Mas, talvez, em nossa
discussão do sadismo e masoquismo já foi explicado que as coisas mais repulsivas na
natureza humana são perversões de outras boas ou inocentes. A coisa boa de que a
paixão vingativa é uma perversão surge com surpreendente clareza na definição de
Hobbe da "Represália": "o desejo de, ferindo outrem, fazer com que este condene algum
ponto em sua própria pessoa".3

2 A tendência moderna de considerar a "crueldade sádica" como simplesmente


Grande crueldade, ou uma crueldade especialmente condenada pelo escritor, não tem
utilidade.
3 Leviathan, Pt. l, cap. 6

A vingança perde de vista o objetivo no meio empregado, mas o seu propósito


não é inteiramente mau - pois quer que o mal existente no perverso seja para este o que
é para todos os demais. Isto é provado pelo fato de que o vingador não quer que a parte
culpada sofra simplesmente, mas que sofra às suas mãos, e que saiba disso e saiba
também a razão.
Nasce assim o impulso de atormentar o culpado pelo seu crime no momento da
vingança e também as expressões naturais como estas: "Fico pensando se gostaria que
fizessem a ele a mesma coisa" ou "vou ensiná-lo". Pela mesma razão, quando vamos
abusar de alguém com palavras, dizemos que "ele vai saber o que penso a seu respeito".
Quando nossos ancestrais se referiam às dores e tristezas como sendo a
"vingança" de Deus sobre o pecado, não estavam necessariamente atribuindo paixões
negativas a Deus, mas talvez reconhecendo os elementos positivos na idéia de
retribuição. Até que o perverso descubra que o mal se acha indiscutivelmente presente na
sua vida, na forma de sofrimento, ele está envolto em uma ilusão. Uma vez que a dor o
desperte, ficará sabendo que, de uma ou outra forma, se acha "em oposição" ao universo
real: ou ele se rebela (com a possibilidade de um resultado mais claro e um
arrependimento mais profundo num estágio posterior) ou então tenta fazer um
ajustamento, no qual, se persistir, chegará à religião.
É certo que nenhum desses efeitos é tão certo agora como o era na época em
que a existência de Deus (ou mesmo dos deuses) era mais amplamente conhecida, mas
mesmo em nossos dias nós o vemos operando. Os próprios ateus se rebelam e
expressam, como Hardy e Houseman, sua raiva contra Deus embora (ou porque) Ele a
seu ver não exista.
Outros ateus, como o Sr. Huxley, são impelidos pelo sofrimento a levantar todo o
problema da existência e a descobrir algum meio de chegar a um acordo com ele, o qual,
mesmo não sendo cristão, é quase infinitamente superior à satisfação ilusória de uma
vida profana. Não há dúvida de que o sofrimento como o megafone de Deus é um
instrumento terrível, podendo levar à rebelião final, que não dá lugar ao arrependimento.
Mas ele fornece também a única oportunidade que o perverso pode ter de emendar-se.
Ele remove, o véu, planta a bandeira da verdade na fortaleza de uma alma rebelde.
Se a primeira operação do sofrimento destroça a ilusão de que tudo está bem, a
segunda faz cair a ilusão de que aquilo que temos, quer seja bom ou mau em si mesmo, é
nosso e basta para nós. Todos sabem como é difícil voltar nossos pensamentos para
Deus quando tudo vai bem conosco. A expressão "temos tudo o que queremos" é uma
frase terrível quando esse "tudo" não inclui Deus. Nós achamos que Deus é uma
interrupção.
Como diz Sto. Agostinho em algum lugar, "Deus quer dar-nos algo, mas não
pode, porque nossas mãos estão cheias - não há nelas lugar para colocá-lo". Ou como
afirmou um amigo meu: "consideramos Deus como um aviador considera o seu pára-
quedas; ele o leva para as emergências, mas espera jamais ter de usá-lo".
Todavia, Deus, que nos fez, sabe o que somos e que nossa felicidade está nEle.
Nós porém não a buscamos nEle enquanto permitir-nos qualquer outro recurso onde ela
possa plausivelmente ser procurada. Enquanto aquilo que chamamos de "nossa própria
vi- da" permanecer agradável, não iremos entregá-la a Ele. O que pode então Deus fazer
em nosso benefício senão tomar "nossa vida" menos agradável, e remover as fontes
plausíveis da falsa felicidade? É justamente aqui, onde a providência divina parece à
primeira vista ser mais cruel, que a humildade divina, o rebaixamento do Altíssimo merece
o maior louvor.
Ficamos perplexos ao ver a desgraça caindo sobre pessoas decentes,
inofensivas, dignas - sobre mães de família capazes, esforçadas, ou trabalhadores
diligentes, econômicos, sobre aqueles que se empenharam tanto e com tanta honestidade
para obter o seu pequeno quinhão de felicidade e agora parecem estar começando a
gozá-lo com plenos direitos. Como posso dizer com suficiente ternura o que precisa ser
dito? Não importa que eu saiba que, aos olhos de cada leitor hostil, é como se eu fosse
pessoalmente responsável por todos os sofrimentos que tento explicar - da mesma forma
que, até hoje, todos falam como se Sto. Agostinho quisesse que as crianças não-
batizadas fossem para o inferno.
Importa porém enormemente se eu afastar alguém da verdade.
Quero implorar ao leitor que tente crer, embora apenas por um momento, que o
Deus que fez todas essas pessoas cheias de mérito, possa estar realmente certo quando
pensa que sua modesta prosperidade e a felicidade de seus filhos não bastam para fazê-
las abençoadas: que tudo isso deve deixá-las no final, e que se não tiverem aprendido a
conhecê-lO sentir-se-ão miseráveis. E assim Ele as perturba, advertindo-as
antecipadamente de uma insuficiência que um dia terão de descobrir. A vida para elas e
suas famílias se interpõe entre as mesmas e o reconhecimento de sua necessidade; Ele
torna essa vida menos suave paia elas. Chamo a isto de humildade divina porque é
deprimente procurar Deus quando o navio está afundando debaixo de nós; deprimente
achegar-nos a Ele como um último recurso, oferecer nossa pessoa quando não vale mais
a pena guardá-la.
Se Deus fosse orgulhoso Ele jamais nos aceitaria nesses ter- mos, mas Ele não é
orgulhoso, Ele se abaixa para conquistar, Ele nos aceita embora tenhamos mostrado que
preferimos tudo o mais a Ele, e nos achegamos porque agora não há "nada melhor" que
possamos ter. A mesma humildade é manifestada através de todos os apelos divinos aos
nossos temores, o que perturba alguns leitores das Escrituras. É bem pouco simpático
para Deus que O escolhamos como uma alternativa para o inferno: mas até mesmo isto
ele aceita. A ilusão de auto-suficiência da criatura deve, em seu próprio benefício, ser
destruída; e pelas dificuldades ou medo das dificuldades na terra, pelo medo indisfarçado
das chamas eternas. Deus a destroça "não levando em conta a diminuição de sua glória".
Os que desejariam que o Deus da Bíblia fosse mais puramente ético, não sabem o que
estão pedindo. Se Deus fosse um kantista, que não quisesse aceitar-nos senão quando
nos aproximássemos dEle baseados nos motivos mais puros e melhores, quem poderia
ser então salvo? E esta ilusão de auto-suficiência pode ser mais forte em algumas
pessoas muito honestas, bondosas e temperantes, e sobre elas, então, a desgraça deve
cair.
Os perigos da auto-suficiência aparente explicam por que Nosso Senhor
considera os vícios dos fracos e dissipados com muito maior tolerância do que os vícios
que levam ao sucesso mundano. As prostitutas não correm o risco de considerar sua vida
presente tão satisfatória que não possam voltar-se para Deus: os orgulhosos, os
avarentos, os que possuem auto-retidão, correm esse perigo.
A terceira operação do sofrimento é um pouco mais difícil de entender. Todos irão
admitir que a escolha é essencialmente consciente. A escolha envolve o conhecimento
daquilo que se escolhe. O homem paradisíaco optou sempre por seguir a vontade de
Deus.
Ao agir assim, ele também gratificou seu próprio desejo, tanto porque todos os
atos exigidos dele eram, de fato, agradável às suas inclinações irrepreensíveis, como
também porque o serviço de Deus era por si mesmo seu mais profundo prazer, sem o
qual todas as alegrias seriam insípidas para ele. A pergunta: "Faço isto para agradar a
Deus ou apenas porque gosto?" não surgiu então, desde que fazer coisas para Deus era
o que ele principalmente apreciava. Sua vontade dirigida para Deus cavalgava a sua
felicidade, como se esta fosse um animal bem orientado, enquanto a nossa vontade,
quando estamos felizes, é envolvida na felicidade como um navio descendo uma
correnteza.
O prazer era então uma oferta aceitável a Deus, porque a oferta era um prazer.
Nós, porém, herdamos todo um sistema de desejos que não contradizem
necessariamente a vontade de Deus mas que, depois de séculos de autonomia usurpada,
firmemente a ignora.
Se aquilo que gostamos de fazer é de fato a coisa que Deus quer que façamos,
essa não é porém a razão para que a realizemos, ela continua sendo apenas uma
simples e feliz coincidência. Não podemos perceber, portanto, que estamos agindo,
principalmente, por causa de Deus, a não ser que o material da ação seja contrário às
nossas inclinações, ou (em outras palavras) penoso, e aquilo que não sabemos que
estamos escolhendo, não podemos escolher. O ato completo da rendição do "eu" a Deus
exige então sofrimento: este ato, para ser perfeito, deve proceder da vontade pura de
obedecer, na ausência ou em oposição à nossa tendência. É absolutamente impossível
render o "eu" fazendo aquilo de que gostamos; sei disso muito bem pela minha própria
experiência no momento. Quando me propus a escrever este livro esperava que a
vontade de obedecer o que poderia ser uma "orientação" tivesse pelo menos algum lugar
em meus motivos. Mas agora que estou inteiramente mergulhado nele, tomou-se mais
uma tentação do que um dever. Posso ainda esperar que o preparo deste livro seja, de
fato, conforme a vontade de Deus: mas argumentar que estou aprendendo a render-me
ao fazer o que para mim é tão empolgante seria ridículo.
Pisamos aqui em um terreno bastante difícil. Kant era de opinião que nenhum ato
tinha valor moral a não ser que fosse realizado com base na mais pura reverência pela lei
moral, isto é, sem inclinações, e ele foi acusado de uma "disposição de espírito mórbida"
que mede o valor de um ato pelo desgosto que provoca. Toda opinião popular entretanto
apóia realmente Kant. Ninguém admira um homem por fazer algo de que goste: as
próprias palavras "mas ele gosta disso" implicam no corolário: "Portanto não existe
mérito".
Todavia, em oposição a Kant se coloca a verdade evidente, notada por
Aristóteles, que quanto mais virtuoso se torna o homem tanto mais ele aprecia os atos de
virtude. O que o ateu deveria fazer com relação a este conflito entre a ética do dever e a
da virtude, não sei, mas, como cristão, sugiro a seguinte solução.
Tem sido algumas vezes perguntado se Deus ordena certas coisas porque são
boas, ou se certas coisas são boas porque Deus as ordena. Ao lado de Hooker e contra o
Dr. Johnson, eu apoio enfaticamente a primeira alternativa. A segunda poderia levar à
abominável conclusão (alcançada, penso eu, por Paley) que a piedade é boa apenas
porque Deus a ordenou de modo arbitrário - pois poderia igualmente ter ordenado que
nós odiássemos tanto a Ele como uns aos outros e que o ódio seria então algo justo.
Acredito, pelo contrário, que "erram aqueles que julgam que em relação à vontade de
Deus para fazer isto ou aquilo não haja qualquer razão subjacente a essa vontade".4
A vontade de Deus é determinada pela Sua sabedoria que sempre discerne, pela
Sua bondade que sempre abrange, o que é intrinsecamente bom. Mas quando dizemos
que Deus ordena as coisas apenas porque são boas, devemos acrescentar que uma das
coisas intrinsecamente boas é o fato de as criaturas racionais deverem render-se
livremente ao seu Criador em obediência. O conteúdo de nossa obediência - aquilo que
nos é ordenado fazer - será sempre algo intrinsecamente bom, algo que deveríamos
fazer, mesmo se (por uma suposição impossível) Deus não tivesse ordenado isso. Mas
em adição ao conteúdo, a mera obediência é também intrinsecamente boa, pois, ao
obedecer, a criatura racional representa conscientemente o seu papel de criatura, inverte
o ato pelo qual caímos, age em sentido inverso de Adão, e volta.

4 Hooker. Laws of Ecc/. Polity, I,i, 5

Concordamos assim com Aristóteles que aquilo que é intrinsecamente certo pode
ser perfeitamente agradável, e quanto melhor o homem, mais gostará dele; mas estamos
de acordo com Kant a ponto de afirmar que existe um ato certo - o da auto-entrega - que
não pode ser desejado ao máximo pelas criaturas decaídas a não ser que seja
desagradável. E devemos acrescentar que este ato de retidão inclui toda demais justiça, e
que o cancelamento supremo da queda de Adão, o movimento de "recuo a toda
velocidade" pelo qual retraçamos nossa longa jornada do Paraíso, o desfazer do velho e
duro nó, deve ser feito quando a criatura, sem qualquer desejo de apoiá-lo, reduzida à
simples vontade de obedecer, aceita o que é contrário à sua natureza, e faz aquilo que só
pode ser motivado por uma única coisa. Um ato assim pode ser descrito como um "teste"
da volta da criatura a Deus: por essa razão nossos pais disseram que as tribulações
foram "enviadas para provarnos".
Um exemplo conhecido é a "provação" de Abraão quando recebeu ordem para
sacrificar Isaque. Não me preocupo agora com a historicidade ou moral dessa história,
mas com a pergunta óbvia: "Se Deus é onisciente ele deveria ter sabido o que Abraão iria
fazer, sem necessidade de qualquer experiência; por quê, então, esta tortura
desnecessária?" Mas como salienta Sto. Agostinho,5 o que quer que Deus soubesse,
Abraão de qualquer forma não sabia que sua obediência podia suportar tal ordem até que
o acontecimento o ensinasse: e a obediência que não sabia que iria escolher, não pode
ser dito que escolhesse.
A realidade da obediência de Abraão foi o ato em si; e o de que Deus tinha
conhecimento sabendo que Abraão "obedeceria" foi a obediência real dele naquele
monte, naquele momento. Dizer que Deus "não precisaria ter realizado a experiência" é
dizer que, pelo fato dele saber, a coisa conhecida por Deus não precisaria existir.
Se a dor algumas vezes destroça a falsa auto-suficiência da pessoa, todavia na
suprema "Provação" ou "Sacrifício" ela lhe ensina a auto-suficiência que verdadeiramente
deveria ser sua - a "força, que, quando dada pelo Céu, pode ser chamada sua
propriedade": pois então, na ausência de todos os motivos e apoios simplesmente
naturais, ela age nessa força, e só nela, que lhe é conferida por Deus mediante sua
vontade rendida. O que é humano irá tornar-se realmente criativo e realmente nosso
quando for inteiramente de Deus, e este é um dos muitos sentidos em que aquele que
perde a sua alma irá achá-la. Em todos os demais atos nossa vontade é alimentada pela
natureza, isto é, através de coisas criadas e não pelo "eu" - através dos desejos
provocados por nosso organismo e hereditariedade. Quando agimos por nós 1mesmos,
isto é, por Deus em nós, somos colaboradores ou instrumentos vivos da criação: essa a
razão pela qual um ato assim desfaz com poder desagregador o aspecto de falta de
criatividade que Adão transmitiu a sua espécie. Assim sendo, da mesma forma que o
suicídio é a expressão típica do espírito estóico, e a luta a do espírito guerreiro, o martírio
sempre permanece como o ato supremo e a perfeição do cristianismo. Este grandioso ato
foi iniciado para nós, feito a nosso favor, exemplificado para nossa imitação, e
comunicado inconcebivelmente a todos os crentes, por Cristo no Calvário.
O grau de aceitação da morte alcança ali os limites máximos do imaginável e
talvez os supere; não apenas todos os suportes naturais, mas a própria presença do Pai a
quem o sacrifício é feito abandona a vítima, e a sua entrega a Deus não vacila embora
Ele a "desampare".

5 De Civitate Dei, XVI, xxxii

A doutrina da morte que descrevo não é peculiar ao cristianismo. A natureza


escreveu-a, ela mesma, em grandes letras através do mundo no repisado drama da
semente sepultada e que ressurge na planta. As mais antigas comunidades agrícolas
talvez a tenham aprendido da natureza e com sacrifícios animais, ou humanos,
demonstraram durante séculos que "sem o derramamento de sangue não há remissão";6
e embora, a princípio, tais conceitos possam ter considerado apenas as colheitas e a
descendência da tribo, vieram mais tarde, nos Mistérios, a preocupar-se com a morte e
ressurreição espirituais do indivíduo. O ascético indiano, mortificando seu corpo num leito
de pregos, ensina a mesma lição; o filósofo grego nos fala que a vida sábia é "uma prática
da morte".7 O pagão sensível e nobre dos tempos modernos faz com que_ seus deuses
imaginários "morram para a vida".8 O Sr. Huxley explica o "desprendimento". Não
podemos escapar da doutrina deixando de ser cristãos. É um "evangelho eterno revelado
aos homens onde quer que estes tenham buscado, ou suportado, a verdade: ela é o
próprio nervo da redenção, que a sabedoria dissecadora em qualquer tempo e em todos
os lugares expõe; o conhecimento do qual não se pode escapar: que a Luz que ilumina
todo homem grava sobre a mente daqueles que questionam seriamente o propósito do
universo. A peculiaridade da fé cristã não é ensinar esta doutrina mas interpretá-la, de
várias maneiras, a fim de torná-la mais tolerável.
O cristianismo nos ensina que a terrível tarefa já foi de alguma forma realizada
para nós - que uma mão de mestre está prendendo a nossa enquanto tentamos traçar as
letras difíceis e que nosso texto pode ser apenas uma "cópia" e não o original. De novo,
onde outros sistemas expõem nossa natureza total à morte (como na renúncia budista), o
cristianismo exige apenas que endireitemos uma imperfeição de nossa natureza, e não
entra em conflito, como Platão, com o corpo como tal, nem com os elementos psíquicos
de nossa formação. E o sacrifício, em sua suprema realização, não é exigido de todos. Os
confessores assim como os mártires são salvos e algumas pessoas idosas, de cujo
estado de graça dificilmente podemos duvidar, parecem ter atravessado os seus setenta
anos com surpreendente facilidade.
O sacrifício de Cristo é repetido ou imitado pelos seus seguidores em graus
variados, desde o martírio mais cruel até a auto submissão intencional, cujos sinais
exteriores não os diferenciam dos frutos comuns da temperança e bom senso. As causas
desta distribuição desconheço; mas de nosso ponto de vista presente deveria ficar claro
que o problema real não é o fato de algumas pessoas humildes, piedosas, crentes,
sofrerem, mas sim a razão de outras não sofrerem. O próprio Senhor, como pode ser
lembrado, explicou a salvação dos afortunados neste mundo, referindo-se à onipotência
insondável de Deus.9
Todos os argumentos justificando o sofrimento provocam amargo ressentimento
contra o autor. Você gostaria de saber como me comporto quando sofro, e não quando
escrevo sobre isso. Não precisa ficar imaginando porque vou contar-lhe. Sou um grande
covarde.
Mas, que ligação .isso tem com o propósito em mente? Quando penso em dor -
naquela ansiedade que corrói como fogo e na solidão que se estende como um deserto, a
triste rotina da miséria monótona, as dores fundas que escurecem todo o nosso horizonte
ou aquelas repentinas e enjoativas que arrancam o coração de um só golpe, dores que já
parecem ser intoleráveis e de súbito aumentam, dores furiosas como se fossem picadas
de escorpião que provocam movi- mentos adoidados em alguém que parecia meio morto
por causa das torturas já sofridas - isso "quase abate o meu espírito". Se conhecesse
algum meio de escapar, me arrastaria através de esgotos para descobri-lo. Mas, de que
adianta falar-lhe sobre os meus sentimentos? Você já os conhece: são os mesmos que os
seus. Não estou discutindo que a dor não seja penosa. A dor magoa.

6 Hb 9:22
7 PIatão, Phoed, 81, A (cf. 64,A)
8 Keats, Hyperion, III, 130
9 Mc 10:27

É isso que a palavra significa. Estou apenas tentando mostrar que a velha
doutrina cristã de nos "aperfeiçoarmos através do sofrimento"10 não é inacreditável.
Provar que ela é agradável está fora de minhas cogitações.

10 Hb 2:10
Para avaliar a credibilidade da doutrina devem ser observados dois princípios. Em
primeiro lugar, devemos ter em mente que o momento atual da dor no presente é apenas
o centro do que pode ser chamado de sistema de tribulação total que se amplia através
do temor e da piedade. Os efeitos positivos que essas experiências possam ter
dependem do centro; assim, mesmo que a dor em si não tivesse valor espiritual, mas o
medo e a piedade tivessem, a dor te- ria de existir para que pudesse haver algo a ser
temido e compadecido.
Não se pode também duvidar que a piedade e o temor nos ajudam em nossa
volta à obediência e à caridade. Todos nós já experimentamos o efeito da piedade,
tornando mais fácil para nós amar os que não provocam amor, isto é, amar ao próximo
não porque ele seja de qualquer forma agradável a nós, mas por ser nosso irmão. O
benefício do medo que a maioria de nós aprendeu durante o período de "crise" que levou
à guerra atual.
Minha própria experiência é mais ou menos a seguinte. Estou progredindo ao
longo da estrada da vida em minha condição usual, satisfeita e decaída, absorvido num
encontro agradável com amigos marcado para amanhã ou um pouco de trabalho que
estimula minha vaidade hoje, um feriado ou um livro novo, quando de repente uma
pontada no abdome que pode indicar doença séria, ou uma notícia nos jornais
ameaçando o mundo de destruição, faz ruir o meu castelo de cartas. Sinto-me a princípio
vencido, com todas as minhas pequenas alegrias desfeitas como brinquedos destroçados.
A seguir, devagar e com relutância, pedaço a pedaço, tento enquadrar- me no estado de
espírito em que deveria sempre estar. Chamo minha atenção para o fato de que todos
esses brinquedos não tinham o propósito de apossar-se do meu coração, que meu bem
real está num outro mundo e que meu único e verdadeiro tesouro é Cristo. E, talvez, pela
graça de Deus, venha a ter êxito, e durante um dia ou dois me tomo uma criatura que
depende conscientemente de Deus e que extrai a sua força das fontes certas. Mas no
momento em que a ameaça desaparece, toda a minha natureza salta de volta aos
brinquedos: fico até ansioso, que Deus me perdoe, para banir de minha mente a única
coisa que me sustentou sob a ameaça, porque ela está agora associada à miséria
daqueles poucos dias.
Fica então muito clara a terrível necessidade da tribulação. Deus me teve apenas
por quarenta e oito horas e mesmo assim à força de ameaças, de tirar de mim tudo o
mais. No momento em que Ele embainha a espada, me comporto como um cachorrinho
quando o odiado banho acaba - sacudo-me o melhor que posso e corro a recuperar
minha confortável sujeira, se não for no monturo mais próximo, pelo menos no primeiro
canteiro de flores. É por isso que as tribulações não podem cessar até que Deus nos veja
transformados ou julgue que nossa transformação é agora impossível.
Em segundo lugar, quando estamos considerando a dor em si - o centro de todo o
sistema tribulativo - devemos ter cuidado de aplicar-nos àquilo que conhecemos e não ao
que imaginamos. Esta é uma das razões por que a parte central deste livro é dedicada ao
sofrimento humano, e o dos animais foi relegado a um capítulo especial. Nós conhecemos
o sofrimento humano, enquanto só podemos especular sobre o dos animais. Mesmo
dentro da raça humana é preciso extrair nossa evidência de circunstâncias que pudemos
observar. A tendência deste ou daquele novelista ou poeta pode representar o sofrimento
como absolutamente negativo em seus efeitos, como se produzisse e justificasse toda
espécie de maldade e brutalidade no sofredor. E, naturalmente, a dor, assim como o
prazer, podem ser recebidos dessa forma: tudo o que é dado a uma criatura com livre-
arbítrio deve ter dois gumes, não pela natureza do doador ou do que foi dado, mas pela
natureza do recipiente.11
Os resultados negativos da dor podem ser multiplicados se os observadores
ensinaram constantemente aos que estão sofrendo que esses são exatamente os
resultados certos e nobres que devem manifestar. A indignação quanto ao sofrimento de
outrem, embora seja uma paixão generosa, precisa ser bem controlada éi fim de não
roubar a paciência e humildade dos que sofrem e semear a ira e o cinismo em seu lugar.
Não estou, porém, convencido de que o sofrimento, se lhe for poupada tal
indignação intrometida e vicária, tenha qualquer tendência natural para produzir tais
males. Não achei que as trincheiras estivessem mais cheias de ódio, egoísmo, rebelião e
desonestidade do que qualquer outro lugar. Vi uma grande beleza de espírito em alguns
indivíduos que muito sofreram. Vi homens, que no correr dos anos se tornaram melhores
e não piores, e vi a última doença produzir tesouros de força e mansidão por parte de
alguns que bem pouco prometiam. Observo em personagens históricos amados e
reverenciados, como Johnson e Cowper, traços que seriam admitidamente intoleráveis
caso tivessem sido eles mais felizes. Se o mundo for de fato um "vale de formação de
almas", ele parece em termos gerais estar fazendo o seu trabalho.
Quanto à pobreza - a aflição que atual ou potencialmente inclui todas as demais
aflições - não ousaria falar por mim mesmo; e os que rejeitam o cristianismo não irão
comover-se com a declaração de Cristo de que a pobreza é abençoada. Aqui, porém, um
fato notável vem em minha ajuda. Os que repudiam com desdém o cristianismo como um
simples "ópio do povo" desprezam os ricos, isto é, toda a humanidade exceto os pobres.
Eles consideram os pobres como as únicas pessoas dignas de serem poupadas da
"liquidação", e colocam neles a única esperança da raça humana. Mas isto não é
compatível cem a crença de que os efeitos da pobreza sobre os que a sofrem são
inteiramente negativos; implica até mesmo em que eles são bons. O marxista vê-se então
concordando realmente com o cristão em relação a essas duas crenças que o
cristianismo paradoxalmente exige - que a pobreza é abençoada, mas mesmo assim deve
ser removida.

11 Sobre a dupla natureza da dor, veja o Apêndice.

O Sofrimento Humano
(continuação)

Todas as coisas que são como deveriam ser conformam-se a esta segunda lei
eterna; e mesmo aquelas coisas não conformadas a esta lei eterna, todavia, de algum
modo, são ordenadas pela primeira lei eterna.
HOOKER. Laws of Eccles. Pol. 1, 3, 1.

Vou apresentar neste capítulo seis proposições necessárias para completar nosso
relato do sofrimento humano as quais não são interdependentes e devem, portanto, ser
dadas em unia escala arbitraria.
l. Existe no cristianismo um paradoxo no que se refere à tribulação. Bem-
aventurados são os pobres, mas através do "juízo" (i.e., da justiça social) e esmolas
devemos remover a pobreza sempre que podemos evitar a perseguição fugindo de cidade
em cidade, e é permitido orar para que sejamos poupados, como fez nosso Senhor no
Getsêmani.
Mas, se o sofrimento é bom não deveria ele ser procurado em vez de evitado?
Respondo que ele não é bom de si mesmo. O que é positivo para o sofredor em
qualquer experiência penosa é a sua submissão à vontade de Deus e, para os
espectadores, a compaixão despertada e os atos de bondade a que esta os leva.
No universo decaído e parcialmente remido podemos distinguir: (1) o simples bem
procedente de Deus, (2) o simples mal produzido pelas criaturas rebeldes, e (3) a
exploração desse mal por parte de Deus para atender ao seu propósito redentor, que
produz (4) o bem complexo para o qual contribuem o sofrimento aceito e o pecado de que
nos arrependemos. O fato de Deus poder extrair o bem complexo do simples mal não
desculpa - embora pela misericórdia ele possa salvar - os que praticam o simples mal.
Esta distinção é essencial, As ofensas devem sobrevir, mas ai daqueles que as praticam;
os pecados realmente fazem abundar a graça, mas não devemos fazer disso uma
justificativa para continuar pecando. A crucificação é em si mesma o melhor, assim como
o pior, de todos os eventos históricos, mas o papei de )udas continua simplesmente
sendo mau. Podemos aplicar isto primeiro ao problema do sofrimento alheio. O homem
misericordioso visa o bem de seu próximo assim como a "vontade de Deus", colaborando
conscientemente com o "bem simples". O homem cruel oprime seu semelhante e o
mesmo acontece com o simples mal. Mas ao praticar esse mal, ele é usado por Deus,
sem seu conhecimento ou permissão, para produzir o bem complexo - e assim o primeiro
homem serve a Deus como filho e o segundo como instrumento.
Você irá certamente realizar o propósito de Deus, de qualquer forma que possa
agir, mas fará diferença em sua vida se servi-lO como Judas ou como João. O sistema
inteiro, por assim dizer, é calculado em relação ao conflito entre homens bons e maus, e
os frutos positivos da força, paciência, piedade e perdão para a crueldade do homem
cruel, pressupõem que o homem bom geralmente continua a buscar o simples bem. Digo
"geralmente" porque o homem tem algumas vezes o direito de ferir (ou mesmo, em minha
opinião, de matar) seu semelhante, mas apenas quando a necessidade é urgente e o bem
a ser alcançado óbvio, e no geral (embora nem sempre) quando o que inflige a dor possui
autoridade definida para fazê-lo - a autoridade paterna derivada da natureza, a do
magistrado ou soldado derivada da sociedade civil, ou a do cirurgião, procedente na
maioria das vezes do próprio paciente.
Transformar isto numa provisão geral para a humanidade aflita porque "a aflição é
boa para ela" (como o lunático Tamberlaine de Marlowe se gabava de ser o "flagelo de
Deus") não seria quebrar o esquema divino mas apresentar-se como voluntário para o
posto de Satanás dentro desse esquema. Se você fizer o trabalho dele deve ficar
preparado para receber o salário pago por ele.
O problema sobre como evitar o nosso próprio sofrimento admite uma solução
semelhante. Alguns ascéticos fizeram uso da autoflagelação. Como leigo, não ofereço
opinião sobre a prudência de tal regime; mas insisto em que, quaisquer que sejam os
seus méritos, a autoflagelação difere muito da tribulação enviada por Deus. Todo mundo
sabe que jejuar é uma experiência diferente daquela de não jantar seja por acidente ou
pobreza.
O jejum coloca em campos opostos a vontade e o apetite - a recompensa sendo o
domínio próprio e o perigo o orgulho: a fome involuntária sujeita ao mesmo tempo os
apetites e a vontade à vontade de Deus, fornecendo uma ocasião para nos submetermos
e nos expondo ao perigo da rebelião. Mas o efeito redentor do sofrimento jaz
principalmente em sua tendência a reduzir a vontade rebelde. As práticas ascéticas, que
por si mesmas fortalecem a vontade, só são úteis pelo fato de capacitarem a vontade a
colocar sua casa (as paixões) em ordem, como um preparo para oferecer o homem inteiro
a Deus. Elas são necessárias como um meio; como um fim seriam abomináveis, pois ao
substituir o apetite pela vontade e interrompendo-se nesse ponto, estariam simplesmente
trocando o ser animal pelo diabólico.
Foi dito portanto com verdade que "somente Deus pode mortificar". A tribulação
faz o seu trabalho num mundo onde os seres humanos estão naturalmente buscando, por
meios comuns, evitar o seu próprio mal natural e alcançar o seu bem natural,
pressupondo também tal mundo. A fim de submetermos a vontade a Deus, devemos ter
uma vontade e esta precisa de objetos.
A renúncia cristã não significa uma "apatia" estóica, mas disposição para preferir
Deus a alvos inferiores embora legais.
Assim sendo, o Homem Perfeito levou ao Getsêmani uma vontade, e uma
vontade forte, de escapar ao sofrimento e à morte se tal fuga fosse compatível com a
vontade do Pai, combinada com uma disposição perfeita para obedecer caso não fosse.
Alguns dos santos recomendaram uma "renúncia total" no próprio limiar de nosso
discipulado. Penso, porém, que isto só pode significar uma disposição total para toda
renúncia particular 1 que possa ser exigida, pois seria impossível viver de momento a
momento nada desejando além da submissão a Deus como tal. Qual seria então o
material da submissão? Pareceria contraditório dizer: "O que quero é sujeitar o que quero
à vontade de Deus", pois o segundo o que não tem conteúdo. Sem dúvida todos nós
temos muito cuidado em evitar o nosso próprio sofrimento: mas uma intenção
devidamente subordinada no sentido de evitá-lo, fazendo uso de meios legais, está de
acordo com a "natureza" - isto é, com todo o sistema de serviço da vida da criatura para a
qual o processo redentor da, tribulação é calculado.

1 Cf. Brother Lawrence, Practice of tbe Presence of God, Palestra IV, Novembro
25, 1667. A única "renúncia sincera" que existe "de tudo a que somos sensíveis não nos
leva a Deus".

Seria absolutamente falso; portanto, supor que o ponto de vista cristão do


sofrimento é incompatível com a ênfase mais forte sobre o nosso dever de tornar o
mundo, mesmo de modo temporal, "melhor" do que o encontramos. Na descrição
parabólica mais ampla que Ele nos fez a respeito do Juízo, Nosso Senhor parece reduzir
toda virtude a uma bondade ativa: e embora fosse um erro aceitar esse quadro isolando-o
do Evangelho como um todo, ele basta para colocar além de qualquer dúvida os
princípios básicos da ética social do cristianismo.

2. Se a tribulação é um elemento necessário na redenção, de- vemos antecipar


que jamais cessará até que Deus considere o mundo como sendo passível ou não de
remissão. O cristão não pode, portanto, acreditar naqueles que afirmam que apenas se
alguma reforma em nosso sistema econômico, político ou de saúde fosse feita, teríamos
um céu na terra.
Isto poderia parecer produzir um efeito desanimador sobre o obreiro social, mas
na prática o resultado não é esse. Pelo contrário, um forte senso de nossas misérias
comuns, simplesmente como seres humanos, é pelo menos tão bom como um estímulo
para remover todas as misérias possíveis, como qualquer das loucas esperanças que
tentam os homens a buscarem sua realização transgredindo a lei moral e mostram não
passar de pó e cinzas depois de alcançadas.
Se aplicada à vida individual, a doutrina de que um céu imaginário na terra é
necessário às vigorosas tentativas de remover o mal presente, imediatamente revelaria
ser absurda. Os homens famintos buscam alimento e os doentes cura, não obstante
saibam que depois da refeição ou da cura os altos e baixos da vida ainda continuam à
sua espera. Não estou naturalmente discutindo se modificações drásticas em nosso
sistema social são ou não desejáveis; mas apenas lembrando o leitor de que um
determinado remédio não deve ser erradamente aceito como o elixir da vida.

3. Desde que os assuntos políticos cruzaram aqui nosso caminho, devo deixar
claro que a doutrina cristã de auto-rendição e obediência é puramente teológica, e de
forma alguma política. Quanto a formas de governo, autoridade e obediência civis, nada
tenho a dizer. A espécie e grau de obediência que uma criatura deve ao seu Criador é
uma coisa singular em vista de a relação entre criatura e Criador ser única: nenhuma
inferência pode ser extraída dela em associação a qualquer proposição política qualquer
que seja ela.

4. A doutrina cristã do sofrimento explica, creio eu, um fato muito curioso sobre o
mundo em que vivemos. A felicidade e segu- rança estáveis que todos almejamos nos
são negadas por Deus pela própria natureza do mundo: mas alegria, prazer e diversão,
Ele espalhou por toda parte. Jamais estamos seguros, mas temos muita alegria e algum
êxtase.
Não é difícil saber por quê. A segurança que desejamos nos ensinaria a
descansar o coração neste mundo e seria um obstáculo à nossa volta a Deus: uns poucos
momentos de felicidade no amor, um belo cenário, uma sinfonia, um encontro alegre entre
amigos, um banho ou um jogo de futebol, não têm essa tendência. Nosso Pai nos
refresca na jornada fornecendo algumas estalagens agradáveis, mas não nos encoraja a
aceitá-las como se fossem o nosso lar.

5. Não devemos jamais tomar o problema do sofrimento pior do que já é, falando


vagamente de "uma soma inconcebível de miséria humana". Suponhamos que eu tenha
uma dor de dentes de intensidade x: e suponhamos que você, sentado ao meu lado,
comece também a ter uma dor de dentes de intensidade x. Você pode, se quiser, dizer
que o total de dor no recinto é agora 2x. Mas deve lembrar-se de que ninguém está
sofrendo 2x: pode procurar em todo tempo e espaço e não descobrirá essa dor composta
na consciência de ninguém. Não existe algo como uma soma de sofrimento, pois ninguém
a sofre. Quando alcançamos o máximo que uma pessoa pode sofrer, teremos, sem
dúvida, atingido algo bastante horrível, mas alcançamos todo o sofrimento que jamais
.pode haver no universo. O acréscimo de um milhão de indivíduos igualmente sofredores
não irá acrescentar mais nada a essa dor.

6. De todos os males, a dor é apenas um mal esterilizado e desinfetado. O mal


intelectual, ou erro, pode repetir-se porque a causa do primeiro erro (tal como a fadiga ou
letra ininteligível) continua a operar: mas em separado disso, o erro por si mesmo gera o
erro - se o primeiro passo num argumento estiver errado, tudo que se seguir estará
também errado. O pecado pode repetir-se porque a tentação original continua; mas,
isoladamente, o pecado por sua própria natureza gera o pecado, fortalecendo o mau
hábito e enfraquecendo a consciência. A dor então, como os outros males, pode
naturalmente repetir-se pelo fato de a causa da primeira dor (uma moléstia ou um inimigo)
estar ainda operando: mas a dor não tem a tendência, por si só, de proliferar. Quando ela
acaba, acaba mesmo, e a seqüência natural é alegria. Esta distinção também funciona de
modo inverso. Depois de cometido um erro, você precisa não só remover as causas (a
fadiga ou a escrita difícil de compreender), mas também corrigir o próprio erro: depois de
um pecado você não deve apenas, se possível, remover a tentação, mas deve também
retroceder e arrepender-se do pecado em si.
Em cada caso, uma "eliminação" é exigida. A dor não requer isso. Você pode ter
de curar a moléstia que a provocou, mas a dor, uma vez vencida, é estéril - enquanto o
erro nãocorrigido e o pecado não-arrependido, por si mesmos, são uma fonte de novo
erro e novo pecado fluindo até o fim dos tempos.
Quando eu erro, portanto, o meu erro afeta todos os que crêem em mim. Quando
peco publicamente, cada espectador tem de aceitá-lo, partilhando assim a minha culpa,
ou condená-lo, pondo em risco iminente sua piedade e humildade. Mas o sofrimento não
produz naturalmente nos espectadores (a não ser que sejam extraordinariamente
depravados) nenhum efeito negativo, mas sim positivo - a piedade. Então esse mal usado
principalmente por Deus a fim de produzir o "bem complexo" acha-se notavelmente
descontaminado, ou privado dessa tendência prolífica que é a pior de todas as
características do mal de maneira generalizada.

O Inferno

O que é o mundo, ó soldados?


Sou Eu:
Eu, esta neve incessante,
Este céu setentrional;
Soldados, esta solidão
Que temos de atravessar
Sou Eu.
W. DE LA MARE. Napoleon.

Ricardo ama Ricardo; isto é, eu sou eu.


SHAKESPEARE.

Num capítulo anterior foi admitido que somente a dor que pode despertar o
homem perverso para uma noção de que nem tudo esta bem, pode da mesma forma
levá-lo a uma rebelião final e sem arrependimento. Foi admitido sempre que o homem
possui livrearbítrio e que todas as concessões feitas a ele são portanto de dois gumes. A
partir dessas premissas segue-se diretamente que a obra divina de remir o mundo não
pode ter certeza de êxito com respeito à Cada alma individual. Alguns não serão remidos.
Não existe doutrina no cristianismo que eu gostasse mais de remover do que esta, se
tivesse esse poder. Mas ela tem o pleno apoio das Escrituras e, especialmente, das
próprias palavras de Nosso Senhor; foi sempre mantida pela cristandade; e está
fundamentada na razão. Quando jogamos deve haver a possibilidade de perder o jogo.
Se a felicidade de uma criatura se acha na autorendição, ninguém mais pode realizar
essa rendição. além dela mesma (embora muitos possam ajudá-la nesse sentido) e ela
pode recusar. Eu estaria disposto a pagar qualquer preço para poder dizer sinceramente:
"Todos serão salvos". A minha razão, porém, replica: "Com ou sem o consentimento
deles?" Se disser: "sem seu consentimento", percebo imediatamente uma contradição;
como pode o ato supremo e voluntário da auto-rendição ser involuntário? Se disser "com
seu consentimento", minha razão replica, "Como, se não quiserem ceder?"
Os sermões dominicais sobre o inferno, como fazem todos eles, são dirigidos à
consciência e à vontade e não à nossa curiosidade intelectual. Quando eles nos
despertam para a ação, convencendo-nos de uma terrível possibilidade, terão
provavelmente feito tudo o que pretendiam fazer; e se o mundo inteiro fosse composto de
cristãos convictos seria desnecessário dizer uma palavra sequer a mais sobre o assunto.
Como as coisas se acham, porém, esta doutrina é uma das bases principais para se
atacar o cristianismo como sendo bárbaro, e impugnar a bondade de Deus. Dizem-nos
que se trata de uma doutrina detestável - e, na verdade, também a detesto do fundo do
coração - e somos lembrados das tragédias nas vidas humanas que têm origem nessa
crença. Quanto às demais tragédias resultantes do fato de não crermos na mesma, pouco
se fala nelas. Por essas razões, e só essas, torna-se necessário discutir o assunto.
O problema não é simplesmente o de um Deus que destina algumas de suas
criaturas à ruína final. Seria esse o problema se fôssemos maometanos. O cristianismo,
leal como sempre à complexidade do que é real, nos apresenta algo mais intrincado e
mais ambíguo - um Deus tão cheio de misericórdia que se torna homem e morre torturado
para impedir a ruína final de suas criaturas e que, porém, onde falha esse remédio
heróico, parece pouco disposto, ou até mesmo incapaz, de sustar a ruína por um ato de
simples poder. Eu afirmei loquazmente pouco atrás que pagaria "qualquer preço" para
remover esta doutrina. Mas menti. Eu não poderia pagar um milésimo do preço que Deus
já pagou para remover o jato.
Este é um problema real: tanta misericórdia e, ainda assim, existe o inferno.
Não vou fazer qualquer tentativa no sentido de demonstrar que a doutrina é
tolerável.
Não nos enganemos; ela não é tolerável. Penso, entretanto, que pode ser
demonstrado que ela é moral, mediante uma crítica das objeções geralmente feitas, ou
sentidas, em relação à mesma.
Primeiro, existe uma objeção, em muitas mentes, quanto à idéia de castigo
retributivo como tal. Isto foi tratado parcialmente em outro capítulo. Dissemos então que
todo castigo se tornaria injusto se as idéias de demérito e retribuição fossem removidas
dele; e um núcleo de retidão fosse descoberto no próprio íntimo da paixão vingadora, na
exigência de que o perverso não permaneça perfeitamente satisfeito com a sua maldade,
que ela venha a parecer-lhe o que corretamente parece a outros - um mal. Eu disse que a
dor finca a bandeira da verdade na fortaleza rebelde. Estávamos então discutindo o
sofrimento que poderia ainda levar ao arrependimento. E se isso não acontecer - se
nenhuma outra vitória além de enterrar a bandeira no solo jamais tenha lugar? Vamos ser
honestos conosco mesmos. Imagino um homem que tenha ficado rico ou poderoso
através de uma série contínua de traições e crueldades, explorando com fins puramente
egoístas os sentimentos nobres de suas vítimas, rindo de sua ingenuidade; que, tendo
alcançado assim o sucesso, faz uso dele para sua própria gratificação, cobiça e ódio e
finalmente perde o último vestígio de honra entre malfeitores, traindo seus cúmplices e
zombando de seus derradeiros momentos de desilusão desnorteada.
Suponhamos, ainda, que ele faça tudo isso, não (como gostaríamos de imaginar)
atormentado pelo remorso ou mesmo apreensão, mas comendo como um adolescente e
dormindo como uma criança saudável - um homem alegre, sadio, sem um cuidado no
mundo. Confiante até o fim de que só ele encontrou a resposta para o enigma da vida,
que Deus e o homem são tolos de quem se aproveitou, que seu modo de viver é
completamente satisfatório, cheio de sucesso, inatacável. Temos de ser cuidadosos neste
ponto. A menor indulgência da paixão vingativa é um pecado mortal. A caridade cristã
aconselha-nos a empreender todos os esforços para a conversão de alguém assim:
preferir a sua conversão, mesmo ao risco de nossa própria vida, talvez de nossa própria
alma, do que o seu castigo; e preferir isso infinitamente. Mas esse não é o ponto.
Suponhamos que ele não venha a converter-se, que destino no mundo eterno você
consideraria adequado para ele? Será que pode realmente desejar que um indivíduo
desse tipo, permanecendo como é (e ele deve ter capacidade para tanto se tiver livre-
arbítrio), seja confirmado para sempre na sua felicidade presente - deveria ele continuar,
por toda eternidade, a manter-se perfeitamente convencido de que a última risada será
sua?
Se você não puder considerar isto como tolerável, será apenas a sua maldade -
apenas o despeito - que impede que o faça? Ou você encontra agora esse conflito entre a
Justiça e a Misericórdia, que algumas vezes lhe pareceu uma parte obsoleta da teologia,
atuando em sua mente, e tem a sensação de que ele vem do alto, e não de baixo? Você
não é movido pelo desejo de ver sofrer essa miserável criatura, mas por uma exigência
verdadeiramente ética de que, cedo ou tarde, o direito deve vencer, a bandeira deve ser
plantada nessa alma tremendamente rebelde, mesmo que não seja seguida de uma
vitória melhor e mais ampla, ia própria misericórdia dificilmente poderia desejar que um
indivíduo assim continue eternamente satisfeito em sua deplorável ilusão. Tomás de
Aquino falou a respeito do sofrimento o mesmo que Aristóteles falou da vergonha: tratava-
se de algo que não era bom em si mesmo, mas que poderia apresentar certos aspectos
bons em determinadas circunstâncias. Isto é, se o mal está presente, a dor ao reconhecer
o mal, sendo uma espécie de conhecimento, é relativamente boa; pois a alternativa seria
que a alma ignorasse o mal, ou ignorasse que o mal é contrário à sua natureza, "sendo
ambas", diz o filósofo, "manifestamente prejudiciais".1 E penso que, embora tremendo,
concordamos.
A exigência de que Deus deva perdoar tal homem enquanto permaneça como é,
está baseada numa confusão entre tolerar e perdoar. Tolerar um mal é simplesmente
ignorá-lo, tratá-lo como se fosse um bem. Mas o perdão precisa ser tanto aceito como
oferecido caso deva ser completo: e a pessoa que não admite culpa não pode aceitar
perdão.
Iniciei com o conceito de inferno como um castigo retributivo e positivo inflingido
por Deus, por ser essa a forma em que a doutrina é mais repelente, e queria tentar
resolver a objeção mais forte. Mas, naturalmente, embora Nosso Senhor fale com
freqüência do inferno como de uma sentença infligida por um tribunal, Ele também diz em
outro ponto que o juízo consiste no próprio fato de que os homens preferem as trevas à
luz, e que sua "palavra" e não Ele julga os homens.2 Temos, portanto, liberdade - desde
que os dois conceitos, a longo prazo, significam a mesma coisa - de pensar na perdição
deste perverso, não como uma sentença imposta a ele, mas como o simples fato de ele
ser o que é. A característica das almas perdidas é "sua rejeição de tudo que não seja
simplesmente elas mesmas".3 Nosso egoísta imaginário tentou transformar tudo o que
encontra em uma província ou apêndice do EU. A preferência pelo outro, isto é, a própria
capacidade de gozar do bem, é apagada nele exceto até o ponto em que seu corpo ainda
o arrasta a um contato rudimentar com o mundo exterior. A morte remove este último
contato. Ele alcança o que deseja - viver inteiramente para si mesmo e tirar o melhor
proveito do que descobre em seu interior. E o que encontra ali é o inferno.
Outra objeção se prende à aparente desproporção entre a danação eterna e o
pecado transitório. Se pensarmos na eternidade como um simples prolongamento do
tempo, é mesmo desproporcional. Mas muitos rejeitariam esta idéia de eternidade. Se
pensarmos no tempo como uma linha - que é uma boa imagem, porque as partes do
tempo são sucessivas e duas delas não podem coexistir; i,e., não existe largura no tempo,
apenas comprimento - provavelmente pensaríamos na eternidade como sendo um plano
ou mesmo um sólido.
Assim sendo, toda a realidade de um ser humano seria representada por uma
figura sólida.
Esse sólido seria principalmente a obra de Deus, agindo através da graça e da
natureza, mas o livre-arbítrio humano teria contribuído com a linha-base que chamamos
de vida terrena: e se você traçar sua linha-base torta, todo o sólido irá ficar no lugar
errado. O fato de a vida ser curta ou, no símbolo, que contribuímos apenas com uma linha
pequena e fina em toda figura complexa, poderia ser considerado como uma misericórdia
divina. Pois se até mesmo o traçado dessa pequena linha, deixada ao nosso livre-arbítrio,
é tão mal feito que pode prejudicar o todo, quanto mais estragaríamos a figura se mais
dela nos fosse confiado? Uma forma mais simples da mesma objeção consiste em dizer
que a morte não deveria ser final, que deveria haver uma segunda oportunidade.4
Acredito que se um milhão de oportunidades tivessem qualquer probabilidade de ajudar,
elas seriam dadas. Mas um professor sempre sabe, mesmo quando os alunos e os pais
não sabem, que é realmente inútil fazer um estudante repetir uma determinada prova. O
fim deve chegar um dia, e não é necessária uma fé muito forte para crer que a onisciência
sabe quando deve ser esse dia.

1 Summa Theol. I, II, Q, xxxix, Art. 1


2 Jo 3:19; 12:48
3 Veja von Hügel, Essays and Addresses, lst series, what do we mean by Heaven
and Hell?

Uma terceira objeção se concentra na terrível intensidade das penas do inferno


como sugerido pela arte medieval e, sem dúvida, por algumas passagens das Escrituras.
Von Hügel nos adverte aqui para não confundirmos a doutrina em si com as imagens
mediante as quais é transmitida. Nosso Senhor fala do inferno sob três símbolos:
primeiro, o do castigo ("castigo eterno" Mt 25:46); segundo, da destruição ("temam
apenas a Deus, que pode destruir no inferno a alma e o corpo juntos" Mt 10:28); e
terceiro, da privação, exclusão e expulsão paia as "trevas exteriores", como nas parábolas
do homem que não tinha as roupas do casamento ou a das virgens sábias e das tolas. A
imagem predominante do fogo é significativa porque combina as noções de tormento e
destruição.
É, porém, praticamente certo que todas essas expressões têm na verdade a
intenção de sugerir algo indiscutivelmente horrível, e qualquer interpretação que não
enfrente esse fato estará, conforme receio, errada desde o princípio. Não é, entretanto,
necessário concentrar-se nas imagens de tortura, excluindo as que sugerem destruição e
privação. O que pode ser então aquilo de que as três imagens são símbolo? A destruição,
podemos naturalmente presumir, significa a eliminação ou aniquilação dos destruídos. E
as pessoas falam com freqüência como se a "aniquilação" de uma alma fosse possível.
Em nossa experiência, porém, a destruição de uma coisa significa a emergência de outra.
Queime um pedaço de madeira e terá gases, calor e cinzas. Ter sido um pedaço de
madeira significa agora ser essas três coisas. Se a alma pode ser destruída, não haverá
um estado de ter sido uma alma humana? E não é esse, talvez, o estado que é
igualmente bem descrito como tormento, destruição e privação? Você estará lembrado de
que, na parábola, os salvos vão para um lugar preparado para eles, enquanto os perdidos
vão para um lugar que não foi absolutamente feito para homens.5
Entrar no céu é tornar-se mais humano do que jamais alguém o foi na terra; entrar
no inferno é ser banido da humanidade. O que é lançado (ou se lança) no inferno não é
um homem: são "refugos". Ser um homem completo significa ter as paixões obedientes à
vontade e essa vontade oferecida a Deus: ter sido um homem – ser um ex-homem ou um
"fantasma perdido" - iria presumivelmente significar consistir de uma vontade
completamente voltada para o Eu e paixões não controladas pela vontade. Torna-se,
naturalmente, impossível imaginar com o que a consciência de tal criatura – já então um
agregado indefinido de pecados mutuamente antagônicos em lugar de um pecador -
poderia comparar-se.

4 O conceito de uma "segunda oportunidade" não deve ser confundido nem com
o Purgatório (para as almas já salvas) nem com o Limbo (para as almas que já estão
perdidas).
5 Mt 25:34,41

Pode haver grande parte de verdade no ditado: "o inferno é inferno, não de seu
próprio ponto de vista, mas do ponto de vista celestial". Não acredito que isto interprete
mal a severidade das palavras de Nosso Senhor. Somente aos condenados é que seu
destino poderia parecer menos do que insuportável. E deve ser admitido que, nestes
últimos capítulos, à medida que pensamos na eternidade, as categorias de dor e prazer,
que nos prenderam por tanto tempo, começam a retroceder, enquanto bens e males mais
vastos surgem no horizonte. Nem a dor nem o prazer como tais têm a última palavra.
Mesmo se fosse possível que a experiência (se pode ser chamada assim) dos perdidos
não contivesse dor mas muito prazer; ainda assim, esse prazer negro seria de um tipo tal
que faria qualquer alma, ainda não condenada, voar para as suas orações num terror de
pesadelo: mesmo que houvesse sofrimentos no céu, todos os que têm entendimento os
desejariam.
Uma quarta objeção é que nenhum homem caridoso poderia considerar-se
abençoado no céu enquanto soubesse que uma única alma continuasse ainda no inferno;
e se for assim, somos então mais misericordiosos que Deus? Por trás dessa objeção
existe uma imagem mental de céu e inferno coexistindo numa época unilinear como
coexistem as histórias da Inglaterra e América: dessa forma a cada momento os bem-
aventurados poderiam dizer:
"As misérias do inferno estão agora continuando". Mas eu noto que Nosso
Senhor, embora enfatizando os terrores do inferno com grande severidade, no geral não
destaca a idéia de duração, mas de finalidade.
A entrega ao fogo destruidor é geralmente tratada como o fim da história e não
como o começo de outra nova. Não podemos duvidar que a alma perdida esteja
eternamente fixada em sua atitude diabólica; mas se esta fixidez eterna implica numa
duração sem fim - ou que dure mesmo - não podemos dizer. O Dr. Edwyn Bevan faz
algumas especulações interessantes sobre este ponto.6
Sabemos muito mais sobre o céu do que sobre o inferno, pois o céu é o lar da
humanidade e portanto contém tudo o que está implícito numa vida humana glorificada:
mas o inferno não foi feito para homens. Ele não é de forma alguma paralelo ao céu, mas
a "escuridão lá fora", a borda externa em que o ser se desvanece no nada.
Finalmente, é objetado que a perda final de uma única alma significa a derrota da
onipotência. E assim é. Ao criar seres com livre-arbítrio, a onipotência desde o início se
submete à possibilidade de tal fracasso. O que você chama de derrota, eu chamo de
milagre: pois fazer coisas que não são Ele mesmo, e tornar-se assim, num certo sentido,
capaz de sofrer resistência por parte das obras de suas próprias mãos, é o mais
surpreendente e inconcebível dos feitos que atribuímos à divindade. Acredito realmente
que os perdidos são, de certa forma, rebeldes bem sucedidos até o fim; que as portas do
inferno são fechadas por dentro. Não quero dizer que os fantasmas não desejem sair do
inferno, da maneira vaga como uma pessoa invejosa "deseja" ser feliz: mas eles
certamente não querem nem sequer os primeiros estágios preliminares daquele auto-
abandono através do qual a alma pode alcançar qualquer bem. Eles gozarão para sempre
da horrível liberdade que exigiram, e são portanto auto-escravizados; da mesma maneira
que os justos, para sempre submissos à obediência, se tornam através de toda
eternidade cada vez mais livres.
6 Symbolism and Belief, pág, 101.

A longo prazo, a resposta a todos os que se opõem à doutrina do inferno é, em si


mesma, uma pergunta: "O que você está querendo que Deus faça?" Apagar os pecados
cometidos por eles no passado e permitir-lhes um novo começo, alisando toda dificuldade
e oferecendo toda ajuda milagrosa? Mas Ele fez isso, no Calvário. Perdoá-los? Não
podem ser perdoados. Abandoná-los? Sim, tenho medo de que é justamente isso que Ele
faz.
Mais uma advertência e encerro o assunto. A fim de despertar as mentes
modernas para uma compreensão dos pontos focalizados, ousei introduzir neste capítulo
a figura do homem mau que facilmente percebemos ser verdadeiramente mau. Mas
quando essa figura tiver feito a sua parte, quanto mais cedo for esquecida melhor. Em
todas as discussões sobre o inferno, devemos manter firmemente diante dos olhos a
possível condenação, não a de nossos inimigos nem a de nossos amigos (desde que
ambas perturbam a razão), mas a nossa própria danação. Este capítulo não trata de sua
esposa ou de seu filho, não fala de Nero ou de Judas Iscariotes; ele trata de você e de
mim.

O Sofrimento dos Animais

E o nome que o homem desse a todos os seres viventes, esse seria o nome
deles.
Gênesis 2:19

Para descobrir o que é natural devemos estudar os espécimes que retêm a sua
natureza e não os que foram corrompidos.
ARISTÒTELES, Politics, I, v, 5.

Até aqui falamos do sofrimento humano; mas todo o tempo "um lamento de dor
inocente enternece o céu". O problema do sofrimento dos animais é estarrecedor; não
pelo fato de eles serem tão numerosos (pois, como vimos, não é sentida mais dor quando
sofre um milhão do que um único ser), mas porque a explicação cristã da dor humana não
pode ser estendida à dos animais. Ao que sabemos, estes são incapazes seja de pecado
ou de virtude: por- tanto, nem merecem sofrer nem podem ser aperfeiçoados pelo
sofrimento. Ao mesmo tempo, jamais devemos permitir que o problema do sofrimento
animal se torne o centro do problema da dor; não por ser insignificante - tudo o que
fornece uma base plausível para duvidar da bondade de Deus é sem dúvida importante -
mas por estar fora do alcance de nosso conhecimento. Deus nos deu dados que nos
permitem, até certo ponto, compreender nosso próprio sofrimento: mas não nos deu
detalhes nesse sentido sobre os animais. Não sabemos por que foram feitos nem o que
são, e tudo o que dizemos a respeito dos mesmos é especulativo. A partir da doutrina de
que Deus é bom, podemos com toda confiança deduzir que a aparência de crueldade
divina despreocupada no reino animal é uma ilusão. O fato de o único sofrimento que
conhecemos (o nosso próprio) revelar-se como não sendo crueldade, irá tornar mais fácil
acreditar nisso. A partir desse ponto, tudo o mais é adivinhação.
Podemos começar eliminando parte do engano apresentado no primeiro capítulo.
O fato de as vidas vegetais fazerem "presa" umas das outras e se encontrarem num
estado de competição "implacável" não tem qualquer importância moral. A "vida" no
sentido biológico nada tem a ver com o bem e o mal até que surge a sensibilidade. As
próprias palavras "presa" e "implacável" não passam de simples metáforas. Wordsworth
acreditava que toda flor "goza do ar que respira", mas não há razão para supor que
estivesse certo.
Não há dúvida de que as plantas vivas reagem aos danos de maneira diferente da
matéria inorgânica; mas um corpo humano anestesiado reage de outro modo ainda, e tais
reações não provam sensibilidade. Estamos naturalmente justificados ao falar da morte
ou eliminação de uma planta como se isso fosse uma tragédia, desde que saibamos estar
usando uma metáfora. Fornecer símbolos para as experiências espirituais pode ser uma
das funções do reino mineral e vegetal. Não devemos, porém, cair vítima de nossa
metáfora.
Uma floresta onde metade das árvores esteja matando a outra metade pode ser
uma floresta perfeitamente "boa": pois sua bondade consiste em sua utilidade e beleza e
ela não possui sensibilidade.
Quando observamos os animais, surgem três perguntas: Em primeiro lugar vem a
questão do fato. O que os animais sofrem? Em segundo, a questão da origem. Como a
doença e o sofrimento entraram no mundo animal? E, terceiro, há a questão de justiça.
Como o sofrimento do animal pode ser reconciliado com a justiça de Deus?
1. A longo prazo, a resposta à primeira pergunta é esta: Não sabemos. Mas
algumas especulações podem ter um certo mérito Devemos começar fazendo distinção
entre os animais, pois se o macaco pudesse compreender-nos ele não gostaria de ser
classificado juntamente com a ostra e a minhoca numa classe única de "animais" e
contrastado com os homens. Fica claro que em certos aspectos o macaco e o homem são
muito mais parecidos entre si do que qualquer deles se assemelha à minhoca. No nível
inferior do reino animal não precisamos supor que exista algo que possamos reconhecer
como sensibilidade. Os biólogos, ao distinguir o animal do vegetal, não fazem uso do
sentido ou locomoção, ou outras características desse tipo, como o leigo naturalmente
faria. Em algum ponto, porém, embora não possamos dizer onde, a sensibilidade
naturalmente é introduzida, pois os animais superiores possuem sistemas nervosos
bastante semelhantes aos nossos.
Mas, neste ponto devemos distinguir ainda a sensibilidade da consciência. Se
você não tinha ainda ouvido falar desta distinção, penso que vai considerá-la
surpreendente, mas ela possui grande autoridade e você estaria errado ao pô-la do lado.
Suponhamos que três sensações se sucedam - primeiro A, depois B, depois C. Quando
isto acontece com você, passará então pelo processo ABC. Mas, veja o que está então
implícito. Isso implica em que existe algo em sua pessoa que se acha suficientemente
fora de A para notar A indo embora, e suficientemente fora de B para notar B começando
e passando a encher o lugar que A deixou vago; e ainda algo que reconhece a si próprio
como mantendo-se o mesmo através da transição de A para B e de B a C, para que
possa dizer: "Passei pela experiência ABC".
Isto é então o que eu chamo de Consciência ou Alma e o processo que acabei de
descrever é uma das provas de que a alma, embora experimente o tempo, não é em si
mesma absolutamente "temporal". A mais simples experiência ABC como uma sucessão
exige uma alma que não seja ela mesma um mero suceder de estados, mas sim um leito
permanente em que rolam essas diferentes porções do fluxo das sensações, e que se
reconhece a si própria como sendo a mesma sob todas elas.
É quase certo, entretanto, que o sistema nervoso de um dos animais superiores
lhe apresenta sensações sucessivas. Não se segue daí que ele possua qualquer "alma",
nada que reconheça a si próprio como tendo tido A e esteja agora tendo B, e a seguir
observe como B se afasta para dar lugar a C. Se ele não tivesse tal "alma", o que
chamamos de experiência ABC jamais ocorreria. Haveria, na linguagem filosófica, uma
"sucessão de percepções"; isto é, as sensações ocorreriam de fato nessa ordem, e Deus
saberia que estavam ocorrendo, mas não o animal.
Não haveria "uma percepção da sucessão". Isto significa que se você desse duas
chibatadas em tal criatura, infringiria na verdade duas dores: mas não existiria um "eu"
coordenador que pudesse reconhecer: "'eu senti duas dores, dois golpes". Mesmo numa
única dor, não existe "eu" para dizer: "sinto dor" - pois se pudesse separar se da
sensação - o leito do fluxo – suficientemente para dizer "sinto dor", poderia também então
ligar as duas sensações como sendo a sua experiência. A descrição correta seria: "a dor
está tendo lugar neste animal"; e não, como comumente dizemos: "Este animal está
sentindo dor", pois as palavras "este" e "sentindo" na verdade introduzem a suposição de
que se trata de um "eu" ou "alma" ou "consciência" superando as sensações e
organizando-as em uma "experiência" como fazemos. Tal sensibilidade sem consciência
– admito - não podemos imaginar: não porque nunca ocorra em nós, mas porque, quando
isso acontece, nós nos descrevemos como estando "inconscientes". E com razão. O fato
de os animais reagirem à dor de forma semelhante à nossa não é, naturalmente, uma
prova de que tenham consciência; pois nós também podemos reagir sob os efeitos do
clorofórmio, e até mesmo responder perguntas quando estamos dormindo.
Até que ponto da escala essa sensibilidade inconsciente pode estender-se, não
quero nem adivinhar. É certamente difícil supor que os macacos, o elefante, e os animais
domésticos superiores não tenham, em algum grau, um "eu" ou alma que associa as
experiências e dá lugar à individualidade rudimentar. Mas pelo menos uma grande parte
do que parece ser sofrimento no animal, não necessita sê-lo em qualquer sentido real.
Podemos ser nós que inventamos os "sofredores" mediante a "falácia patética" de ler nas
batidas do coração um "eu" para o qual não haja evidência real.

2. A origem do sofrimento animal poderia ser traçada, por gerações anteriores,


até a Queda do homem - o mundo inteiro foi contagiado pela rebelião destrutiva de Adão.
Isto agora é, entretanto, impossível, pois temos boa razão para crer que os animais
existiram muito antes do homem. O ato de comer carne, com tudo que ele envolve, é mais
antigo que a humanidade. É então impossível neste ponto deixar de lembrar de uma
história sagrada que, embora não esteja incluída nos credos, tem sido amplamente
divulgada na Igreja e parece estar implícita em vários pronunciamentos dominicais,
paulinos e joaninos - estou me referindo à história de que o homem não foi a primeira
criatura a rebelar-se contra o Criador mas que um ser mais antigo e poderoso há muito
tempo tornou-se apóstata e é agora o imperador das trevas e (significativamente) o
Senhor deste mundo. Algumas pessoas gostariam de rejeitar todos esses elementos dos
ensinos de Nosso Senhor: e poderia ser argumentado que quando Ele se esvaziou a Si
mesmo de sua glória, também humilhou-Se a Si mesmo, a fim de partilhar, como homem,
as superstições correntes em sua época.
Eu certamente sou de opinião que Cristo, na carne, não era onisciente - mesmo
que apenas pelo fato de um cérebro humano não poder, presumivelmente, ser o veículo
da consciência onisciente; e dizer que os pensamentos de Nosso Senhor não eram
realmente condicionados pelo tamanho e forma de seu cérebro poderia ser na verdade
uma negação da encarnação, tornando-nos docetistas.
Assim sendo, se Nosso Senhor tivesse feito qualquer declaração científica ou
histórica que soubéssemos ser falsa, isto não perturbar minha fé na sua divindade. Mas a
doutrina da existência e queda de Satanás não está entre as coisas que sabemos ser
inverídicas: ela não contradiz os fatos descobertos pela ciência, mas apenas o simples e
vago "clima de opinião" em que acontece estarmos vivendo. Eu, de minha parte, tenho
um conceito muito baixo dos "climas de opinião". Quanto ao que lhe diz respeito, todo
homem sabe que todas as descobertas são feitas e todos os erros corrigidos por aqueles
que ignoram o "clima de opinião".
Parece-me portanto uma suposição razoável, que algum extraordinário poder
criado já estivesse operando para o mal no universo material, ou no sistema solar, ou pelo
menos, no planeta Terra, muito antes de o homem ter entrado em cena: e que quando o
homem caiu, alguém na verdade o tentou. Esta hipótese não é introduzida como uma
"explicação do mal" generalizada: ela dá apenas uma aplicação mais ampla ao princípio
de que o mal surge do abuso do livre-arbítrio.
Se existe tal poder, como creio, ele pode perfeitamente ter corrompido a criação
animal antes do aparecimento do homem. O mal intrínseco do mundo animal está no fato
de eles, ou alguns deles, viverem mediante a destruição uns dos outros. Que as plantas
façam o mesmo não admito que seja um mal. A corrupção satânica dos animais seria
portanto análoga, em um sentido, à do homem. Pois um dos resultados da queda do
homem foi que sua animalidade recuou da humanidade em que tinha sido incorporada, e
que não mais podia governá-la. Da mesma forma, a animalidade pode ter sido encorajada
a voltar ao comportamento adequado aos vegetais.
É, naturalmente, correto que a imensa mortalidade provocada pelo fato de muitas
feras viverem à custa de outras é equilibrada, na natureza, por um número imenso de
nascimentos e poderia parecer que se todos os animais fossem herbívoros e saudáveis,
iriam acabar morrendo de inanição como resultado de sua própria fertilidade. Mas
compreendo a fecundidade e o índice de mortalidade como fenômenos correlatos. Não
havia, talvez, qualquer necessidade de tal excesso do impulso sexual: o Senhor deste
mundo pensou nele como uma resposta à fome carnívora - um esquema duplo para obter
o máximo de tortura.
Se achar menos ofensivo, você pode dizer que a "força da vida" foi corrompida,
enquanto eu afirmo que os seres vivos foram corrompidos por um ente angélico maldoso.
Estaremos na verdade dizendo a mesma coisa: mas acho mais fácil crer num mito de
deuses e demônios do que em um de substantivos abstratos hipoestáticos. E, no final de
contas, nossa mitologia pode estar muito mais próxima da verdade literal do que
supomos. Não vamos esquecer que Nosso Senhor, certa ocasião, atribuiu a enfermidade
humana muito claramente a Satanás,7 e não à ira divina ou à natureza.
Se esta hipótese merece ser considerada, vale também a pena considerar se o
homem, quando chegou ao mundo, não tinha já uma função redentora a realizar. O
homem, mesmo agora, pode fazer maravilhas com os animais: tenho um gato e um cão
que vivem juntos em minha casa e parecem gostar disso. Pode ter sido uma das funções
do homem restaurar a paz ao mundo animal, e se não tivesse se unido ao inimigo poderia
ter tido sucesso nisso até um ponto que agora mal podemos imaginar.

3. Em último lugar, vem a questão da justiça. Vimos que parece haver razão para
crer que nem todos os animais sofrem como pensamos. Mas alguns, pelo menos, fazem
crer que possuem um "eu", e o que pode ser feito com relação a esses inocentes? Vimos
também que é possível acreditar que o sofrimento dos animais não é obra de Deus, tendo
sido iniciado pela malícia de Satanás e perpetuado pela deserção do homem de seu
posto. Todavia, se Deus não o provocou, Ele o permitiu e, mais uma vez, o que deve ser
feito a favor desses inocentes? Fui advertido para nem sequer levantar a questão da
imortalidade dos animais, a fim de não ir fazer "companhia a todas as velhas
solteironas".8 Não faço objeção a essa companhia. Não desprezo a virgindade nem a
velhice; e algumas das mentes mais sagazes que conheci habitavam os corpos de
solteironas. Nem me abalo com perguntas jocosas como: "Onde você vai colocar todos os
mosquitos?" - pergunta essa a ser respondida em seu próprio nível, salientando que, se o
pior acontecer, um céu para os mosquitos e um inferno para os homens poderiam ser
muito convenientemente conjugados.
O completo silêncio das Escrituras e da tradição cristã quanto à imortalidade dos
animais é uma objeção mais séria; mas ela seria fatal apenas se a revelação cristã
mostrasse quaisquer sinais de ser propositada como um système de la nature
respondendo a todas as questões.
Mas, não é nada disso: a cortina rasgou-se em um ponto, e num ponto apenas,
para revelar nossas necessidades práticas imediatas e não para satisfazer nossa
curiosidade intelectual.
Se os animais fossem, de fato, imortais, é improvável, pelo que discernimos do
método de revelação de Deus, que Ele tivesse revelado esta verdade. Até mesmo a
nossa imortalidade é uma doutrina que surge tardiamente na história do judaísmo.
Portanto, o argumento do silêncio é muito fraco.

7 Lucas 13:16
8 Mas também com J. Wesley, sermon LXV. The Great Deliverance.

A grande dificuldade em supor que a maioria dos animais seja imortal é que a
imortalidade quase não tem significado para uma criatura que não seja "consciente" no
sentido explicado acima. Se a vida de uma salamandra for simplesmente uma sucessão
de sensações, o que estaríamos dizendo ao afirmar que Deus pode ressuscitar a
salamandra que morreu hoje? Ela não poderia reconhecer-se como a mesma
salamandra; as sensações agradáveis de qualquer outra salamandra que vivesse após a
sua morte seriam uma recompensa tão grande ou tão pequena por seus sofrimentos
terrenos (se houvesse algum) como a de seu ressurreto - eu ia dizer "eu", mas a idéia é
que a salamandra não tem provavelmente um "eu". O que temos de tentar dizer, nesta
hipótese, não será nem mesmo dito. Não há, portanto, questão de imortalidade para as
criaturas que são simplesmente sensíveis. Nem a justiça e a misericórdia exigem que
houvesse, pois tais criaturas não têm experiências penosas. Seu sistema nervoso expede
todas as letras: RDO, mas como não podem ler, elas jamais as unem na palavra DOR. E
todos os animais podem estar nessa condição.
Se, todavia, a forte convicção que possuímos de um "eu" real, embora rudimentar,
nos animais superiores, e especialmente naqueles que domesticamos, não for uma
ilusão, o destino deles exige uma consideração mais profunda. O erro que temos de evitar
é o de considerá-los em si mesmos. O homem deve ser entendido apenas em sua relação
com Deus. Os animais só devem ser entendidos em sua relação com o homem e, através
deste, com Deus. Vamos guardar-nos aqui de um daqueles bolos intransmutáveis de
pensamento ateísta que com freqüência sobrevivem na mente do moderno cristão. Os
ateus naturalmente consideram a coexistência do homem e de outros animais como um
simples resultado contingente de fatos biológicos em interação; e a domesticação de um
animal pelo homem como uma interferência puramente arbitrária de uma espécie com
outra. O animal "real" ou "natural" para eles é o selvagem, e o animal domesticado não
passa de uma coisa artificial ou não-natural. Mas o cristão não deve pensar assim. O
homem foi destinado por Deus para ter domínio sobre os animais, e tudo o que o homem
faz para o animal ou é uma prática legal, ou um abuso sacrílego, de uma autoridade
divinamente outorgada. O animal domesticado, portanto, no sentido mais profundo, é o
único animal "natural" – o único que vemos ocupando o espaço que foi feito para ocupar,
e é nele que devemos basear toda a nossa doutrina dos animais.
Veremos agora que, até o ponto em que o animal doméstico possui um "eu" ou
personalidade reais, ele a deve inteiramente a seu dono. Se um bom cão pastor parece
"quase humano", isso se deve a um bom pastor tê-lo feito assim. Já notei a força
misteriosa do termo "em". Não penso que todos os sentidos do mesmo no Novo
Testamento sejam idênticos, de modo que o homem está em Cristo e Cristo em Deus e o
Espírito Santo na Igreja e também no crente individual exatamente da mesma forma.
Pode tratar-se de sentidos rimados ou correspondentes em lugar de um único sentido.
Vou sugerir agora - embora inteiramente disposto a ser corrigido por verdadeiros teólogos
- que pode haver um sentido, correspondente, apesar de não idêntico, a esses, em que
iodos os animais que chegam a ter um "eu" real estão em seus donos. Isto é, você não
deve pensar num animal por si mesmo, e chamar isso de personalidade e então perguntar
se Deus ira ressuscitar e abençoar isso; mas deve tomar todo o contexto em que o animal
adquire sua personalidade – a saber, "O bom homem-e-a-boa-mulher-educando-seuÌ-
filhos-e-seus animais-no-bomlar".
Esse contexto inteiro pode ser considerado como um "corpo" no sentido paulino
(ou um sub-paulino próximo); e quanto desse "corpo" pode sei" ressuscitado juntamente
com o bom homem e a boa mulher, quem pode prever? Provavelmente será na medida
necessária, não para a glória de Deus e a bem-aventurança do par humano, mas para
essa glória e bemaventurança particulares, eternamente coloridas por essa experiência
terrena particular.
Desta forma me parece possível que certos animais possam ter imortalidade, não
em si mesmos, mas na imortalidade de seus donos.
A dificuldade sobre a identidade pessoal numa criatura quase impessoal
desaparece quando a criatura é assim mantida em seu próprio contexto. Se você
perguntar, com respeito a um animal ressuscitado desse modo como membro do Corpo
inteiro do lar", onde reside a sua identidade pessoal, eu respondo: "Onde a sua identidade
sempre residiu mesmo na vida terrena - em sua relação com o Corpo e, especialmente,
com o senhor que é o cabeça desse Corpo". Em outras palavras, o homem conhecerá o
seu cão; o cão conhecerá o seu dono e, ao conhecê-lo, será ele mesmo. Pedir que, de
alguma forma, conhecesse a si mesmo, seria provavelmente exigir algo sem sentido. Os
animais não são assim, e não querem ser.
Minha imagem do bom cão pastor no bom lar não cobre naturalmente os animais
selvagens nem (um assunto ainda mais urgente) os animais domésticos maltratados. Ela
foi apresentada apenas como uma ilustração extraída de um caso privilegiado - que é,
também, a meu ver o único caso normal e incorrupto - dos princípios gerais a serem
observados ao estruturar uma teoria da ressurreição dos animais.
Acho que os cristãos podem hesitar com razão em supor que os animais sejam
imortais, por dois motivos. Primeiro, porque temem que ao atribuir-lhes uma "alma" no
sentido completo, possam obscurecer aquela diferença entre a besta e o homem que é
tão aguda na dimensão espiritual quão difusa e problemática na biológica. E, segundo,
uma felicidade futura ligada à vida presente do animal simplesmente como uma
compensação pelo sofrimento - tantos milênios nas pastagens felizes pagos como uma
retribuição pelos "prejuízos" de tantos anos de puxar carroças - parece uma confirmação
tosca da bondade divina. Por sermos falíveis, muitas vezes ferimos uma criança ou um
animal sem querer, e então o melhor que podemos fazer é "compensá-lo" com uma
carícia ou um bocado. Mas é difícil imaginar a onisciência agindo dessa forma, como se
Deus pisasse na cauda dos animais no escuro e depois tentasse consertar a coisa do
melhor modo possível! Num remendo assim tão malfeito não posso reconhecer o toque
de mestre; qualquer que seja a resposta, ela deve estar num plano mais elevado do que
esse.
A teoria que estou sugerindo evita ambas as objeções. Ela faz de Deus o centro
do universo e do homem o centro subordinado da natureza terrena: os animais não são
coordenados com o homem, mas subordinados a ele, e seu destino é inteiramente
relacionado ao dele. A imortalidade derivada sugerida para eles não é uma simples
emenda ou compensação: ela é parte essencial do novo céu e da nova terra,
organicamente relacionada a todo o processo do sofrimento, da queda, e da redenção da
humanidade.
Se supusermos, como faço, que a personalidade dos animais domesticados é
largamente devida ao homem - que sua simples sensibilidade se transforma em alma em
nós, da mesma forma que nossa simples alma renasce para a espiritualidade em Cristo -
suponho naturalmente que bem poucos animais, em seu estado selvagem, alcançam, na
verdade, um "eu" ou ego. Mas se alguns o alcançarem, e se for agradável à misericórdia
de Deus que vivam novamente, sua imortalidade seria também ligada ao homem - mas,
desta vez, não aos senhores individuais, e sim à humanidade. Quer dizer, se em qualquer
instância o valor quase-espiritual e emocional que a tradição humana atribui a um animal
(tal como a "inocência" do cordeiro ou él realeza heráldica do leão) tem uma base real na
natureza do mesmo, não sendo apenas arbitrária ou acidental, é então nessa capacidade,
ou principalmente nela, que se pode esperar que o animal sirva o homem ressurrecto e
faça parte de seu "séquito". Ou se o caráter tradicional for absolutamente errôneo, então a
vida do animal 9 no céu seria devida ao efeito real, mas desconhecido, que ele teve sobre
o homem durante toda a sua história: pois se a cosmologia cristã for em qualquer sentido
(não digo num sentido literal) verdadeira, então tudo o que existe em nosso planeta está
ligado ao homem, e até mesmo as criaturas extintas antes de ele existir são vistas à sua
verdadeira luz quando consideradas como precursores inconscientes do mesmo.
Quando falamos de criaturas tão remotas como animais selvagens e pré-
históricos, mal sabemos na verdade do que estamos falando. Pode muito bem ser que
eles não tenham nem "eu" nem sofrimentos. Pode ser até que cada espécie possua um
"eu" corporativo - que o caráter leonino, e não os leões tenha partilhado do trabalho da
criação e participará da restauração de todas as coisas. E se não podemos sequer
imaginar nossa própria vida eterna, muito menos podemos conceber a vida que os
animais poderão ter como nossos "membros". Se o leão terrestre pudesse ler a profecia
daquele dia em que ele ira comer feno como um boi, iria considerá-la uma descrição do
inferno e não do céu. E se nada houver no leão além de sensibilidade carnívora, ele não
tem então consciência e sua"sobrevivência" não teria significado. Mas se houver um "eu"
leonino rudimentar, Deus pode dar-lhe um "corpo" conforme Lhe agradar - um corpo que
não mais viva pela destruição do cordeiro, mas ainda assim ricamente leonino no sentido
de expressar também qualquer energia, esplendor e poder exultante que tivesse habitado
o leão visível nesta terra.
Julgo, sujeito a correção, que o profeta usou uma hipérbole oriental quando falou
do leão e do cordeiro deitados juntos. Isso seria bastante impertinente por parte do
cordeiro. Ver leões e cordeiros assim unidos (exceto em alguma rara Saturnália celestial)
seria o mesmo que não ter nem cordeiros nem leões. Julgo que o leão, quando deixar de
ser perigoso, continuará terrível: que, na verdade, iremos ver pela primeira vez aquilo de
que os dentes e garras atuais são apenas uma imitação desajeitada e satanicamente
pervertida. Continuará havendo ainda algo como o balançar de uma juba dourada: e o
bom Duque dirá repetidamente: "Deixe que ruja de novo."

9 Isto é, sua participação na vida celestial dos homens em Cristo para Deus;
sugerir uma "vida celestial" para os animais como tal é provavelmente tolice.

10

O Céu
É preciso
Que desperte a sua fé. Então tudo ficará estacionário;
Os que consideram algo ilegal.
O que faço, deixe que se afastem.
SHAKESPEARE. Winter's Tale.

Mergulhado na profundidade da tua misericórdia, permite que eu morra.


Aquela morte que toda alma que vive almeja.
COWPER, extraído de Madame Guion.

Contudo", disse o apóstolo Paulo, "aquilo que sofremos agora é insignificante, se


compararmos com a glória que Ele nos dará mais tarde."1 Se isto for verdade, um livro
sobre o sofrimento que nada diga a respeito do céu estaria omitindo todo um lado da
história. As Escrituras e a tradição habitualmente colocam as alegrias do céu na balança
em contraste com os sofrimentos da terra, e qualquer solução do problema que não faça
isso não pode ser chamada de cristã. Nós nos envergonhamos hoje de falar do céu.
Temos medo que zombem de nós e de que nos digam que estamos tentando
"escapar" da tarefa de fazer um mundo feliz aqui e agora, envolvendo-nos em sonhos de
um mundo feliz noutro lugar.
Mas, ou existe ou não existe uma "torta no céu". Se não houver, então o
cristianismo é falso, pois esta doutrina faz parte integrante da sua trama. Se houver, então
esta verdade, como qualquer outra, deve ser enfrentada, quer seja útil ou não nos
comícios políticos.
Temos também medo de que o céu seja um suborno, e que se fizermos dele
nosso alvo não mais poderemos mostrar-nos desinteressados. Mas, não é assim. O céu
nada oferece que possa tentar uma alma mercenária. É seguro dizer aos puros de
coração que eles verão a Deus, pois somente os puros querem vê-lo. Existem
recompensas que não mancham os motivos. O amor de um homem por uma mulher não
é mercenário porque ele quer casar-se com ela, nem o seu amor pela poesia é
mercenário porque deseja lê-la, nem o seu amor pelo exercício é menos desinteressado
porque quer correr, saltar e andar. O amor, pela sua própria definição, busca gozar o seu
objeto.
Você pode pensar que exista um outro motivo para o nosso silêncio a respeito do
céu - a saber -, que não o desejamos realmente. Mas isso pode ser uma ilusão. O que
vou dizer agora não passa de uma simples opinião minha, sem a menor autoridade, que
submeto ao julgamento de cristãos e estudiosos melhores do que eu. Em certas ocasiões
penso que não desejamos o céu; mas, mais vezes ainda, fico imaginando se, em nosso
íntimo mais profundo, jamais desejamos outra coisa. Você pode ter notado que os livros
de que mais gosta estão unidos por um fio secreto. Você sabe muito bem qual a
qualidade comum que faz com que goste deles, embora não possa colocá-la em palavras;
mas a maioria de seus amigos não consegue vê-la, e ficam a perguntar-se como,
gostando disto, você possa também gostar daquilo. Um dia você pode ter contemplado
certo cenário que pareceu englobar tudo o que esteve procurando toda a sua vida; e
depois voltou-se para um amigo a seu lado, que parece estar vendo o que você viu mas,
às primeiras palavras, um abismo se abre entre os dois, e você percebe que esse cenário
significa algo totalmente diverso para ele, que ele está perseguindo uma visão estranha e
não se interessa nada pela inefável sugestão que arrebatou você.

1 Rm 8:18 (A Bíblia Viva).

Até mesmo em suas diversões, não houve sempre uma atração secreta que os
outros curiosamente ignoram - algo que não pode Ser identificado, mas sempre prestes a
revelar-se, o cheiro da madeira cortada na oficina ou o bater da água nos lados do barco?
As amizades duradouras não nascem sempre no momento em que você finalmente
encontra outro ser humano que possui uma certa percepção (embora leve e incerta)
daquilo que você nasceu desejando, e que, debaixo do fluxo de outros desejos e em
todos os silêncios momentâneos entre as paixões mais articuladas, dia e noite, ano e ano,
desde a infância até a velhice, você está procurando, observando, ouvindo? Você jamais
teve isso. Tudo o que jamais possuiu profundamente a sua alma não passou de
insinuações do mesmo - vislumbres torturantes, promessas que não chegam a cumprir-
se, ecos que morreram no momento mesmo em que chegaram a seus ouvidos. Mas se
viesse realmente a manifestar-se - se surgisse um eco que não morresse, mas se
transformasse no próprio som - você saberia. Além de toda possibilidade de dúvida você
diria: "Aqui está finalmente a coisa para a qual fui feito". Não podemos falar uns aos
outros sobre ela. É a assinatura secreta de cada alma, o desejo incomunicável e
insaciável, a coisa que desejamos antes de encontrar nossas esposas ou fazer nossos
amigos ou escolher nosso trabalho, e que continuaremos desejando em nossos leitos de
morte, quando a mente não mais conhece esposa, nem amigo, nem trabalho. Enquanto
somos, ela é. Se a perdermos, perdemos tudo.2
Esta assinatura em cada alma pode ser um produto da hereditariedade e do
ambiente, mas isso simplesmente significa que tanto a hereditariedade como o ambiente
estão entre os instrumentos por meio dos quais Deus cria uma alma. Não estou
considerando como, mas por que Deus fez cada alma única. Se Ele não tivesse uso para
todas essas diferenças, não vejo por que deveria ter criado mais do que uma alma. esteja
certo de que as saliências e reentrâncias de sua individualidade não são mistério para
Ele; e um dia não o serão também para você. O molde em que uma chave é feita seria
estranho para você se nunca tivesse visto uma chave; e a própria chave em si seria
também esquisita se nunca tivesse visto uma fechadura. A sua alma tem uma forma
curiosa por se tratar de uma cavidade feita para encaixar-se numa protuberância
particular nos contornos infinitos da substância divina, ou uma chave para abrir uma das
portas na casa com muitas moradas. Pois não é a humanidade de maneira abstrata que
deve ser salva, mas você - você, o leitor individual, João da silva ou Maria de Almeida.
Bendita e afortunada criatura, seus olhos irão contemplá-lo e somente os seus e não os
de outro. Tudo o que você é, com exceção dos pecados, está destinado a saciar-se, Se
permitir que Deus realize o Seu bom propósito. O espectro de Broeken "olhava para cada
homem como se ele fosse o seu primeiro amor", por que ela era uma fraude. Mas Deus
olhará para cada alma como se fosse o seu primeiro amor, porque Ele é o primeiro amor
dela. A sua posição no céu parecerá ter sido feita para você e só para você, porque você
foi feito para ela, ponto por ponto, como uma luva é feita para a mão.

2 Não estou naturalmente sugerindo que esses anseios imortais que nos Foram
dados pelo Criador, por sermos homens, devam ser confundidos com os dons do Espírito
Santo àqueles que estão em Cristo. Não devemos ter a ilusão de que somos santos por
sermos humanos.

É deste ponto de vista que podemos compreender o inferno em seu aspecto de


privação. Durante toda a sua vida um êxtase inatingível pairou pouco além do alcance de
sua consciência. Está chegando o dia em que despertará para descobrir, além de toda
expectativa, que o alcançou, ou então, que estava a seu alcance e você o perdeu para
sempre.
Esta poderia ser uma noção perigosamente privada e subjetiva da pérola de
grande preço, mas não é. A coisa de que falo não é uma experiência. Você só
experimentou o anseio. A coisa em si jamais foi expressa em qualquer pensamento,
imagem, ou emoção. Ela sempre o chamou para fora de si mesmo. E se não sair para
segui-la, se ficar sentado para meditar sobre o desejo e tentar cultivá-lo, o desejo em si
fugirá de você. "A porta para a vida geralmente se abre atrás de nós" e a única sabedoria"
para nós "envolta no aroma de rosas invisíveis, é o trabalho."3
Este fogo secreto se apaga quando você usa o fole: abafe-o com o que parece
ser um combustível improvável de dogma e ética, Volte-lhe as costas e atenda aos seus
deveres, e ele irá arder. O mundo é como um quadro com um fundo dourado, e nós as
figuras desse quadro. Até que você saia do plano da tela para as amplas dimensões da
morte, não poderá ver o ouro. Mas temos lembretes dele. Para mudar nossa metáfora, o
"black-out" não é completo, as trevas não são compactas. Existem frestas. A cena diária
parece às Vezes enorme com o seu segredo.
Essa é a minha opinião, e pode estar errada. Talvez este desejo secreto seja
parte do Velho Homem e precise Ser crucificado antes do fim. Mas esta opinião tem um
modo curioso de impor-se. O desejo - ou talvez mais ainda, a satisfação - Sempre Se
recusou a esta por completo presente em qualquer experiência. O que quer que você
tente identificar com ele, mostra-se afinal como não Sendo O mesmo, mas outra coisa.
Desse modo, qualquer grau de crucifixão ou transformação dificilmente poderia ir além
daquilo que O desejo em si nos leva a esperar. E, novamente, se esta opinião não for
verdadeira; algo melhor é. Mas "algo melhor" - não esta ou aquela experiência, mas além
dela - é quase a definição da coisa que estou tentando descrever.
A coisa almejada por você o chama para fora do "eu". Até mesmo o desejo dela
só subsiste se você abandoná-lo. Esta é a lei final a semente morre para viver, o pão
deve ser lançado às águas, o que perde a sua alma ganha-la-á. Mas a vida da semente, a
descoberta do pão, a recuperação da alma, são tão reais quanto o sacrifício preliminar.
Assim é dito com verdade a respeito do céu: "no céu não há sentido de propriedade. Se
qualquer um ali viesse a chamar algo de seu, seria imediatamente lançado no inferno e se
tomaria um espírito maligno."4 Mas, é também dito: "A todo aquele que for vitorioso darei
uma pedra branca, e na pedra estará gravado um nome novo que ninguém mais conhece,
a não ser aquele que o recebe".5

3 George MacDonald. Alec Forbes, cap. XXXIII.


4 Theologia Germanica, LI.
5 Ap 2:17

O que pode pertencer mais a um homem do que este nome novo que mesmo na
eternidade permanece um segredo entre Deus e ele? E qual o significado que devemos
dar a esse segredo? Certamente que cada um dos remidos irá conhecer para sempre e
louvar algum aspecto da beleza divina mais do que qualquer outra criatura pode fazê-lo.
Para o que mais foram os indivíduos criados, senão para que Deus, amando infinitamente
a todos, pudesse amar a cada um de maneira diferente? E esta diferença, longe de
prejudicar, enche de significado o amor de todas as criaturas abençoadas umas pelas
outras, a comunhão dos santos.
Se todos tivessem experiência de Deus da mesma forma e o adorassem de
maneira idêntica, o cântico da Igreja triunfante não teria sinfonia, seria como uma
orquestra em que todos os instrumentos tocassem a mesma nota. Aristóteles nos
informou que uma cidade é uma união de dessemelhanças6, e São Paulo disse que um
corpo é uma unidade de membros diferentes7. O céu é uma cidade, e um Corpo, porque
os benditos permanecem eternamente diferentes: uma sociedade, porque cada um tem o
que contar a todos os demais – notícias frescas e sempre frescas do "Meu Deus" que
cada um encontra naquele que todos louvam como o "Nosso Deus". Pois sem dúvida a
tentativa continuamente vitoriosa, todavia jamais completada, feita pelas almas individuais
no sentido de comunicar sua visão ímpar a todas as outras (e isso através de meios dos
quais a arte e a filosofia terrenas não passam de grosseiras imitações), acha-se também
entre os propósitos para os quais o indivíduo foi criado.
A união existe apenas entre os dessemelhantes; e, talvez, deste, ponto de vista,
tenhamos um vislumbre momentâneo do significado de todas as coisas. O panteísmo não
é um credo tanto falso como por completo superado. Outrora, antes da criação, poderia
ter sido verdade dizer que tudo era Deus. Mas Deus criou: ele fez com que coisas
viessem a diferençar-se dele; a fim de que, sendo distintas, aprendessem a amá-lO, e
alcançassem união em lugar de simples igualdade. Assim, Ele também lançou o seu pão
por sobre as águas. Mesmo dentro da criação poderíamos dizer que a matéria inanimada
que não possui vontade é una com Deus num sentido que os homens não são. Mas não é
propósito de Deus que voltemos àquela antiga identidade (como, talvez, alguns místicos
pagãos desejariam que fizéssemos), mas que avancemos para a máxima diferenciação, a
fim de ali nos reunirmos a Ele de maneira mais elevada. Mesmo no Próprio Ente Santo,
não basta que a Palavra deva ser Deus, ela deve também estar com Deus. O Pai gera
eternamente o Filho e o Espírito Santo atua: a divindade introduz distinção em si mesma,
para que a união dos amores recíprocos possa transcender a mera união aritmética ou a
auto-identidade.

6 Politics, II, 2, 4
7 I Co 12:12-30

A distinção eterna de cada alma - o segredo que faz da união entre cada alma e
Deus uma espécie em si mesma - jamais irá porém abolir a lei que proíbe a propriedade
no céu.
Quanto aos seus semelhantes cada alma, supomos, irá estar eternamente
envolvida em dar a todos os demais aquilo que receber. E quanto a Deus, devemos
lembrar que a alma não passa de uma cavidade que é enchida por Ele. Sua união com
Deus, quase por definição, é uma auto-entrega contínua, uma abertura, um desvendar,
uma rendição, de si mesma. Um espírito abençoado é um molde cada vez mais
conformado ao metal brilhante nele despejado, um corpo cada vez mais completamente
descoberto ao calor meridiano do sol espiritual. Não precisamos supor que a necessidade
de algo análogo à auto-conquista venha a cessar jamais, ou que a vida eterna são seja
também a morte eterna. É neste sentido que, da mesma forma que pode haver prazeres
no inferno (Deus nos livre deles), pode haver algo levemente parecido à dor no céu (Deus
permita que logo possamos experimentá-la).
Na dádiva de nós mesmos, mais do que em qualquer outra coisa, entramos em
contato não só com toda a criação, mas com todo o ser. Pois o Verbo Eterno também Se
dá a Si mesmo em sacrifício; e isso não apenas no Calvário, pois quando foi crucificado
Ele "fez debaixo das intempéries de suas províncias remotas o que fizera em seu lar na
glória e com alegria".8 Desde antes da fundação do mundo, Ele entrega a divindade
gerada de volta à divindade geradora, em obediência. E da maneira como o Filho glorifica
o Pai, assim também o Pai glorifica o Filho.9 Com submissão, como cabe a um leigo,
penso que foi dito com verdade: "Deus não amou a si mesmo como sendo Ele mesmo
mas como a Excelência; e se houvesse algo melhor do que Deus, Ele amaria a isso e não
a Si mesmo."10
Desde o superior até o mais inferior, o ego existe para ser abdicado e, por essa
abdicação, se torna tanto mais um verdadeiro "eu", para ser então ainda mais abdicando,
e assim para sempre. Esta não é uma lei celestial à qual possamos escapar mantendo-
nos terrenos, nem uma lei terrena da qual possamos fugir sendo salvos. O que está fora
do sistema de auto-entrega não é terreno, nem natural, nem "vida comum", mas simples e
absolutamente inferno. Todavia, até mesmo o inferno deriva desta lei tanta realidade
quanto ela possui. Essa prisão brutal no "eu" não passa do anverso da auto-rendição que
é a realidade absoluta; a forma negativa tomada pelas trevas exteriores ao cercar e definir
a forma do real, ou que o real impõe sobre as trevas ao possuir uma forma e natureza
positiva próprias.
A maçã dourada do "eu", lançada entre os falsos deuses, tornou-se um pomo de
discórdia porque eles se arremessaram ao mesmo. Não conheciam a primeira regra do
jogo sagrado, que estabelece que cada jogador deve sem dúvida tocar a bola e depois
passá-la imediatamente adiante. Ser encontrado com ela nas mãos é uma falta: agarrar-
se a ela representa a morte. Mas quando ela voa para a frente e para trás entre os
jogadores, rápida demais para ser seguida com os olhos, e o grande Senhor, Ele mesmo,
libera a brincadeira, dando-se a Si mesmo no sacrifício, do Verbo; então, na verdade, a
dança eterna "acalenta o céu com sua harmonia". Todas as dores e prazeres que
conhecemos na terra são os movimentos dessa dançai mas a dança em si não pode ser
absolutamente comparada aos sofrimentos do tempo presente. À medida que nos
aproximamos de seu ritmo não-criado, a dor e o prazer quase desaparecem de vista.
Existe alegria nela, mas a dança não existe por causa da alegria. Ele não existe nem
mesmo por causa do bem, ou do amor. Mas é o próprio Amor, e o próprio Bem, e portanto
feliz. Não existe para nós, mas nós para ela. O tamanho e o vazio do universo que nos
atemorizaram no início deste livro devem manter-nos ainda receosos, pois embora
possam não ser nada além de um subproduto de nossa imaginação tridimensional,
mesmo assim simbolizam uma grande verdade.
O que a nossa Terra é para todas as estrelas, sem dúvida assim somos nós os
homens e nossas preocupações para toda a criação; o que as estrelas representam para
o próprio espaço, assim são todas as criaturas, todos os tronos e poderes e excelências
dos deuses criados, em relação ao abismo do Ser que existe por si mesmo, que é para
nós Pai e
Redentor e Consolador, mas de quem nenhum homem ou anjo pode dizer nem
conceber o que Ele é em Si mesmo e para Si mesmo, ou qual é a obra que Ele "fez desde
o começo até o fim". Pois todas essas são coisas derivadas e sem substância. A sua
visão falha e elas cobrem os olhos para escapar da luz intolerável da realidade absoluta,
que era e é e será, que nunca poderia ter sido de outro modo, que não tem oposto.
.
8 George MacDonald. Unspoke Sermons. 3rd Series, págs. 11,12.
9 Jo 17 :1 ,4,5
10 Theol. Germ. , XXXII

Apêndice

(Esta nota sobre os efeitos da dor foi gentilmente fornecida pelo Dr. R. Havard,
através de suas experiências médicas.)
A DOR é um acontecimento comum e definido que pode ser facilmente
reconhecido: mas a observação do caráter ou comportamento é mais difícil, menos
completa e menos exata, especialmente na relação transitória, embora íntima, entre
médico e paciente. Apesar desta dificuldade, certas impressões tomam gradualmente
forma no curso da prática médica, as quais são confirmadas à medida que a experiência
cresce. Um curto ataque de dor física intensa é terrível enquanto dura. O sofredor no
geral não se queixa em voz alta.
Ele pede alívio, mas não gasta o fôlego falando sobre seus males. É raro que
perca o autocontrole, tornando-se irracional e fora de si. É difícil que a dor mais aguda se
torne neste sentido insuportável. Quando a dor física curta, severa, passa, ela não deixa
qualquer alteração evidente no comportamento. A dor longa e contínua tem efeitos mais
visíveis. Ela é com freqüência aceita com pouca ou nenhuma queixa e grande força e
resignação se desenvolvem na pessoa.
O orgulho se humilha ou, às vezes, resulta numa determinação de esconder o
sofrimento. As mulheres com artrite reumatóide mostram um entusiasmo tão
característico que pode ser comparado à spes phthisica dos tuberculosos: sendo talvez
mais devido a uma leve intoxicação do paciente provocada pela infeção do que a um
acréscimo na sua força de caráter. Algumas vítimas de dores crônicas deterioram-se. Elas
se tornam lamurientas e exploram a sua posição privilegiada de inválidas para praticar a
tirania no lar. Mas o que admira é o fato de os fracassos serem tão poucos e tantos os
heróis; existe um desafio na dor física que a maioria pode reconhecer e reagir
proporcionalmente a ele. Por outro lado, uma doença longa, mesmo sem dor, exaure
tanto a mente como o corpo. O inválido desiste de lutar e se deixa cair indefeso e
queixoso num desespero de autopiedade.
Mesmo assim, numa condição física idêntica, alguns irão preservar sua
serenidade e abnegação até o fim. Esta é uma experiência rara de ser observada, mas
sempre comovente.
O sofrimento mental é menos dramático do que o físico, mas é mais comum e
também mais difícil de suportar. A tentativa freqüente de esconder o sofrimento mental
aumenta o fardo. É mais fácil dizer: "Meu dente está doendo" do que "Meu coração está
partido". Todavia, se a causa for aceita e enfrentada, o conflito irá fortalecer e purificar o
caráter e com o tempo a dor geralmente passará. Algumas vezes, entretanto, ela persiste
e o efeito é devastador. Se a causa não for enfrentada ou reconhecida, produz o estado
melancólico do neurótico crônico. Alguns, porém, heroicamente, superam até mesmo o
sofrimento mental crônico. Essas pessoas com freqüência trabalham com brilhantismo e
fortalecem, endurecem e aguçam seu caráter até que se tomam como aço temperado.
Na verdadeira insanidade o quadro é mais negro. Em todo o reino da medicina
não existe nada mais terrível de contemplar do que um indivíduo com melancolia crônica.
Mas a maioria dos insanos são é infeliz ou, na verdade, cônscia de sua condição. Em
qualquer caso, se se recuperam, vemos com surpresa que sofrem pouca modificação.
Muitas vezes não se lembram absolutamente de sua doença.
O sofrimento oferece uma oportunidade para o heroísmo; e essa oportunidade é
aceita com surpreendente freqüência.

Você também pode gostar