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O Lugar Da Gramática No Ensino de Língua Materna - Jacqueline Peixoto Barbosa

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O LUGAR DA GRAMÁTICA NO CURRÍCULO DE LÍNGUA MATERNA

Jacqueline Peixoto Barbosa (jacbar@terra.com.br)

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP/Brasil)

No Brasil, a exemplo de outros países, a partir da década de 1980, teve início uma mudança
em termos de proposições curriculares para a área de Língua Portuguesa, que recolocou o
lugar da gramática no ensino de línguas. Se hoje é consenso que a gramática não deve ser o
foco principal desse ensino, o mesmo não pode ser dito em relação ao lugar que o trabalho
com esses conteúdos pode/deve ocupar. Deve-se ou não ensinar gramática? Que tipo de
conteúdo deve ser priorizado? Quando? De que modo deve-se ou pode-se ensiná-la? Como
articular o trabalho com a gramática e as demais práticas de linguagem – compreensão e
produção de textos orais e escritos? A gramática deve ser ensinada somente no interior
dessas práticas ou deve também ser trabalhada paralelamente? Gramática ou análise
lingüística? Passadas três décadas dessa mudança de ênfase na organização curricular no
ensino de línguas, faz-se necessário mapear algumas das principais respostas dadas às
questões colocadas, como forma de possibilitar mudanças nas práticas pedagógicas da escola
básica na direção de uma formação para o exercício da cidadania, o que passa
necessariamente por possibilitar uma participação mais plena nas múltiplas práticas sociais
que envolvem o uso da linguagem. São essas as questões que perpassam o presente trabalho.
O lugar da gramática no ensino de língua materna através dos tempos
O ensino da gramática sempre foi de alguma forma associado ao ler e ao escrever bem. O
entendimento do que seja ler e escrever bem é que foi se transformando (ou não) ao longo
do tempo. Na perspectiva de um ensino mais tradicional, aparece mais relacionado à norma
culta (para poder compreender e apreciar os grandes escritores) e à norma padrão:
expressar-se corretamente, de acordo com as regras do bem dizer. Sob a influência dos
estudos pragmáticos, enunciativos e discursivos e do desenvolvimento da Sociolingüística,
pelo menos no plano teórico no que concerne ao ensino-aprendizagem de língua, a
perspectiva mudou: ensinar gramática para alguns, mais radicais, pode ser quase
dispensável e, para outros, justifica-se pelo fato de poder se reverter para os usos da
linguagem – compreensão e produção de textos –, mas numa perspectiva diferente. Pode
ajudar, na compreensão de textos, a perceber implícitos, intenções, ações,
posicionamentos, efeitos de sentidos etc. presentes nos vários textos em circulação social e,
na produção de textos, a se adequar melhor a diferentes objetivos e situações. A norma
culta passa a ser uma das variedades a ser ensinada e não a única a ser considerada.
Além das influências de perspectivas teóricas que tomavam o texto e/ou o discurso
como objeto de estudo e denunciavam as limitações da gramática tradicional, seja pelo
limite de seu escopo – compreende, no máximo, a análise do período -, seja pela
inconsistência de algumas de suas definições e conceitos (multiplicidades de critérios não
explicitados, insuficiências explicativas etc.), indicadores de avaliação do sistema de
ensino e de avaliação da aprendizagem de alunos da Educação Básica, que passaram a ser
mais sistemáticos no Brasil a partir da década de 1990, denunciavam o fraco desempenho
dos alunos no que diz respeito à leitura e produção de textos. Tais dados sinalizavam para
o fato de que o ensino centrado na gramática e na norma padrão, ênfase comum até então,
não estava se revertendo para os processos de compreensão e produção de textos dos
alunos, cada vez mais numerosos devido a um processo de democratização do acesso ao
ensino em franca evolução. A idéia de que o conhecimento das estruturas da língua por si
só melhoraria o desempenho dos seus usuários mostrou-se equivocada. Mudar o foco do
ensino de língua tornou-se então um imperativo pedagógico e político.1
Da gramática à análise lingüística: as práticas de linguagem na escola
Pelas razões expostas anteriormente, cada vez mais o texto e o discurso passam a ser
propostos como objeto de ensino (o que não quer dizer que isso venha sendo implementado
em todas as escolas brasileiras). A partir da década de 1980, documentos curriculares
brasileiros2 começaram a propor a organização do ensino de português em termos de
práticas: prática de leitura, prática de produção de textos e de análise linguística.3
Tais práticas devem articular-se na unidade textual, seja nas atividades de
compreensão ou nas atividades de produção de textos. Dessa forma, a proposição é que os
conteúdos gramaticais, tomados numa outra perspectiva, passem a ser focados no interior
das práticas de análise linguística que, por sua vez, devem estar intrinsecamente
relacionadas às práticas de uso da linguagem – compreensão e produção de textos. Trata-se
de selecionar conteúdos em função das necessidades apresentadas pelos alunos nas
atividades de produção e compreensão de textos. Visto dessa forma, o trabalho com a
gramática deixa de ser baseado em taxonomias descontextualizadas e volta-se para a
exploração de recursos linguísticos colocados à disposição dos sujeitos para a construção
de sentidos, seja em atividades de compreensão ou produção de textos orais e escritos.4
Definindo a expressão análise linguística, Geraldi (1991) vai fazer referência a:
“(...) este conjunto de atividades que tomam uma das características da linguagem como
seu objeto: o fato de ela poder remeter a si própria, ou seja, com a linguagem não só falamos
sobre o mundo ou sobre nossa relação com as coisas, mas também falamos sobre como falamos”.

Ainda segundo esse autor, a análise linguística compreenderia as atividades


epilinguísticas e as metalinguísticas. As primeiras dizem respeito a uma reflexão sobre a
linguagem, orientada para o uso de recursos expressivos em função de uma dada situação
de comunicação. As segundas dizem respeito a uma reflexão sobre os recursos expressivos,

1
Diversos são os trabalhos de pesquisadores brasileiros que a partir da década 1980 apontavam para
essa necessária mudança de foco, contrapondo a tradição gramatical a um ensino de língua voltado para o
uso. Dentre esses, destacam-se: Geraldi (1984, 1991, 1996), Franchi (1987), Neves (1990), Possenti (1996),
Britto (1997) e Travaglia (1997).
2
Cf., por exemplo, Diretrizes para o aperfeiçoamento do ensino/aprendizagem da língua portuguesa
(Brasil, MEC,1986); Parâmetros curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (Brasil, MEC/SEF, 1998) e
Orientações curriculares e proposição de expectativas de aprendizagem (São Paulo, PMSP/SME/DOT, 2007).
3
Os Parâmetros curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, ao enfatizarem a importância do
trabalho com a linguagem oral, sobretudo dos gêneros orais públicos, acrescentam mais uma prática:
compreensão e produção de textos orais.
4
Formulações semelhantes foram propostas por Franchi (1987) e Travaglia (1997).
tendo em vista à construção de noções e/ou conceitos, com os quais se torna possível
classificar esses recursos. Supõem, assim, a construção de uma metalinguagem que
possibilitaria falar sobre o funcionamento da linguagem, os gêneros do discurso, as
configurações textuais, as estruturas morfossintáticas etc.
A centralidade do texto e do discurso como objetos de ensino-aprendizagem ficaria
garantida pelo movimento metodológico que se segue5:

USO REFLEXÃO USO


Práticas de Práticas de
compreensão e Práticas de compreensão e
produção de análise produção de
textos orais e linguística textos orais e
escritos escritos

As atividades linguísticas (de uso) devem preceder as atividades de análise


linguística e, dentro dessas, as atividades epilinguísticas devem anteceder as atividades
metalinguísticas e ambas devem também ser orientadas para o uso.
Mesmo correndo o risco de imprecisão que toda síntese esquemática desse tipo
pode conter, Mendonça (2006) vai propor um quadro síntese que procura explicitar as
diferenças básicas entre ensino de gramática e o trabalho com análise linguística:
Ensino de gramática Prática de análise lingüística (AL)
Concepção de língua como sistema, estrutura Concepção de língua como ação interlocutiva
inflexível e invariável. situada, sujeita às interferências dos falantes.
Fragmentação entre os eixos de ensino: as aulas Integração entre os eixos de ensino: a AL é
de gramática não se relacionam necessariamente ferramenta para a leitura e a produção de textos.
com as de leitura e de produção textual.
Metodologia transmissiva, baseada na exposição Metodologia reflexiva, baseada na indução
dedutiva (do geral para o particular, isto é, das (observação de casos particulares para a
regras para o exemplo) + treinamento. conclusão das regularidades/regras).
Privilégio das habilidades metalinguísticas. Trabalho paralelo com habilidades
metalinguísticas e epilinguísticas.
Ênfase nos conteúdos gramaticais como objetos Ênfase nos usos como objetos de ensino
de ensino, abordados isoladamente e em (habilidades de leitura e escrita), que remetem a
sequência mais ou menos fixa. vários outros objetos de ensino (estruturais,
textuais, discursivos, normativos), apresentados
e retomados sempre que necessário.
Centralidade da norma-padrão. Centralidade dos efeitos de sentido.
Ausência de relação com as especificidades dos Fusão com o trabalho com gêneros, na medida
gêneros, uma vez que a análise é mais de cunho em que contempla justamente a intersecção das

5
O esquema que se segue foi adaptado de Brasil, MEC/SEF (1998) Parâmetros Curriculares Nacionais de
Língua Portuguesa – Terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental, p. 35, que, por sua vez, foi inspirado
nas propostas de Geraldi (1984) e Geraldi (1996).
estrutural e, quando normativa, desconsidera o condições de produção dos textos e as escolhas
funcionamento desses gêneros nos contextos de linguísticas.
interação verbal.
Unidades privilegiadas: a palavra, a frase e o Unidade privilegiada: o texto.
período.
Preferência pelos exercícios estruturais, de Preferência por questões abertas e atividades de
identificação e classificação de pesquisa, que exigem comparação e reflexão
unidades/funções morfossintáticas e correção. sobre adequação e efeitos de sentido.
Como se pode observar, as diferenças presentes em todos os itens elencados
derivam da mudança na concepção de linguagem: de uma visão estrutural, passa-se a uma
visão enunciativo-discursiva, centrada no texto e no discurso. Disso deriva o movimento
metodológico geral USO – REFLEXÃO – USO e outras escolhas metodológicas que
primam pela construção, além do deslocamento do foco da norma padrão para a
consideração de múltiplas variedades, numa perspectiva de adequação às diversas
condições de produção e não de prescrição imanente.
Nessa perspectiva, os gêneros do discurso passam a ser considerados como um dos
objetos de ensino, articuladores de conteúdos, habilidades e procedimentos inerentes à
leitura e produção de textos que precisam ser aprendidos e/ou desenvolvidos. A partir do
trabalho com os diferentes gêneros, as várias práticas de linguagem podem ser articuladas
Um exemplo de trabalho com o gênero conto de fadas pode ilustrar o movimento
metodológico proposto. Durante e após a leitura de vários contos de fadas e um concomitante
trabalho com a compreensão das histórias - atividades de uso -, o professor explora com os alunos
algumas características do gênero – sócio-história do gênero, cenários e problemas típicos,
marcadores de tempo e lugar etc. – atividades de reflexão. Propõe, então, uma outra atividade de
uso: a escrita de um conto de fadas. A partir de problemas apresentados na produção da maioria
dos alunos, o professor seleciona itens para um trabalho com análise linguística – construção do
cenário, paragrafação, uso de marcadores de tempo e lugar etc. A interação que se segue é parte
dessas atividades. Trata-se de um trecho de uma aula em que o professor está procedendo a uma
reescrita coletiva de um conto produzido por um aluno de outra classe:
P: Vamos reescrever juntos o conto que a gente leu que uma criança de outra classe escreveu. (...)
Como a gente poderia melhorar essa parte que “tá” na lousa (o início da história), para que ela fique
mais clara e tenha mais a cara de um conto de fadas?
J: Falta falar do lugar onde a princesa morava, assim, “ó”: “Era uma vez, num reino muito distante”...
(...)
M: Podia “troca” “andava” por “caminhava”.
P: Cê acha? Por quê?
C: Ou “passeava”.
M: É. Princesas não andam; caminham ou passeiam...
J: É, que nem em Ciências. A gente não fala que os animais “andam”; a gente diz que os
animais “se locomovem”.
P: Tá, então podia fica assim: “Todas as manhãs, a princesa caminhava pelos jardins do
palácio...” (Trecho de uma aula de 2ª série de uma escola da rede privada de São Paulo.
P = professor; J.; M.; C. = alunos)

Diante de uma atividade de uso e de um problema concreto – melhorar o texto de um


aluno adequando-o ao gênero -, os alunos procedem a uma análise linguística, que trabalha
tanto sobre o eixo epilinguístico (que palavra é mais adequada ao gênero), quanto sobre o
eixo metalinguístico (nesse caso, em relação ao texto, a uma parte da história – falta um
elemento do cenário). Como se pode observar, os alunos, com a mediação da professora, não
só não encontram dificuldades para a realização da tarefa, como se mostram envolvidos com
a mesma, sendo, ao que parece, capazes de lhe atribuir um sentido.
Em um outro nível de concretização curricular, visando explicitar os critérios de
seleção das expectativas de aprendizagem a partir das práticas de linguagem e dos gêneros
do discurso, o documento Orientações Curriculares e proposição de expectativas de
aprendizagem para o ciclo II do Ensino Fundamental6 propõe o seguinte quadro:

Leitura
Produção Escrita
Modalidade escrita Análise e reflexão sobre a língua e a linguagem:
o construção composicional dos gêneros
o estruturação dos enunciados
Modalidade oral Escuta/Produção oral
Análise e reflexão sobre a língua e a linguagem:
o padrões de escrita;
o descrição gramatical;
o compreensão dos fenômenos de variação linguística.

No mesmo documento, para cada uma das práticas elencadas, destacadas em


negrito no quadro anterior, é proposta uma relação de expectativas de aprendizagem,
dentre as quais retomaremos apenas aquelas que dizem respeito à análise e reflexão sobre a
língua e a linguagem e que recortem conteúdos gramaticais:

ANÁLISE E REFLEXÃO SOBRE A LÍNGUA E A LINGUAGEM


Expectativas gerais para os 4 anos do Ciclo II – Ensino Fundamental (11-14 anos)
1. Identificar possíveis elementos constitutivos da organização interna de um gênero.
2. Examinar em textos o uso de vocabulário técnico.
3. Examinar em textos o uso da adjetivação (adjetivo, locução adjetiva, orações adjetivas) para compreender suas
funções.
4. Examinar em textos o uso de primeira ou terceira pessoa e implicações no processo enunciativo.
5. Examinar em textos o uso de tempos verbais no eixo do presente para reconhecer os eventos anteriores e
posteriores a esse tempo (pretérito perfeito / futuro do presente).
6. Examinar em textos o uso de tempos verbais no eixo do pretérito para reconhecer os eventos anteriores e
posteriores a esse tempo (pretérito perfeito / imperfeito, mais que perfeito, futuro do pretérito).
7. Examinar em textos o uso dos verbos “de dizer” para introduzir sequências dialogais ou para incorporar citações.
8. Examinar em textos o uso de construções verbais passivas e impessoais em sequências argumentativas ou
expositivas.
9. Examinar em textos o uso de formas verbais no imperativo, no infinitivo ou no futuro do presente em
sequências instrucionais.
10. Examinar em textos o uso da justaposição de enunciados em sequências instrucionais.
11. Localizar e compreender o funcionamento dos pares pergunta/resposta, ordem/execução, convite-
aceitação/recusa, cumprimento /cumprimento, xingamento-defesa /revide, acusação-defesa / justificativa, pedido de
desculpa / perdão.

6
São Paulo, Secretaria Municipal de Educação, Diretoria de Educação Técnica, 2007.
12. Examinar em textos diferentes construções que fazem referência a lugar (advérbios, locuções
adverbiais, orações adverbiais) para compreender seus usos.
13. Examinar em textos diferentes construções que fazem referência a tempo (advérbios, locuções
adverbiais, orações adverbiais) para compreender seus usos.
14. Examinar em textos o uso de construções verbais do tipo “parece que”, “é necessário que”, ou de
alguns advérbios como provavelmente, geralmente, em sequências argumentativas e expositivas.
15. Examinar em textos o uso de numerais na orientação da subdivisão do tema ou na enumeração de propriedades.
16. Examinar em textos de determinado gênero o uso de recursos gráficos.
17. Reconhecer o emprego de linguagem figurada e compreender os sentidos conotados.
18. Observar o funcionamento do ritmo e da rima nos poemas para compreender alguns de seus usos.
19. Relacionar o tratamento dado à sonoridade (assonância, aliteração) aos efeitos de sentido que provoca.

DESCRIÇÃO GRAMATICAL
Expectativas gerais para os 4 anos do Ciclo II – Ensino Fundamental
1. Segmentar a palavra em seus elementos mórficos constituintes: radical, prefixos e sufixos e desinências
como estratégia para compreender o sentido das palavras ou solucionar problemas de ortografia.
2. Discriminar, semanticamente, palavras de conteúdo lexical (verbos, substantivos, adjetivos) de outras com
conteúdo gramatical (preposições, conjunções), para compreender sua função no texto, isto é, as primeiras
materializam o conteúdo proposicional e as segundas são responsáveis pelas conexões e articulações.
3. Discriminar a que classes de palavras se aplicam as flexões de gênero e número (substantivo, adjetivo),
tempo e modo, pessoa e número (verbo) para estabelecer a coesão textual e a concordância nominal e
verbal.
4. Discriminar as classes de palavras que funcionam sintaticamente como núcleo (substantivo, verbo) das que funcionam
como determinante (adjetivos, advérbios) para compreender as relações de dependência entre as palavras do texto.
5. Examinar as relações lógico-semânticas que preposições e conjunções estabelecem entre as palavras de um
enunciado para compreender textos e escrever textos mais coesos.

Tal proposta de organização curricular é coerente com os pressupostos relativos à


concepção de linguagem assumidos e com seu consequente movimento metodológico
(USO-REFLEXÃO-USO). Em todos os itens descritos, o conteúdo gramatical em questão
é relacionado a alguma dimensão do uso: compreender funções, o funcionamento nos
textos e efeitos de sentido, inferir significado das palavras, solucionar problemas de
ortografia, escrever textos coesos e com concordância verbal e nominal etc. Todas as
expectativas de aprendizagem elencadas supõem alguma metalinguagem e, em muitos
casos, a metalinguagem presente na gramática.
Cabe comentar que parte considerável dos conteúdos gramaticais (o que ensinar)
continua presente - acrescida de outros conhecimentos, também metalinguísticos, relativos
a textos e gêneros do discurso -, mas o peso dado a esses conteúdos, a finalidade (para que
ensinar gramática) e a metodologia (como trabalhar com gramática) mudam radicalmente.
A construção de uma metalinguagem na escola, na medida certa, sem resvalar em
minúcias que pouco ou nunca são usadas, é necessária para que possamos falar dos textos,
analisá-los, apreciá-los, criticá-los, reformulá-los etc.
Restam duas questões: até que ponto é possível (re)construir a lógica (as lógicas e, até
mesmo, a falta de lógica) do sistema linguístico, mais especificamente da gramática, partindo
sempre das práticas de uso? Como trabalhar com certos conteúdos gramaticais, como classes
de palavras e certas relações sintáticas, que não são características de textos ou de gêneros
específicos, mas que estão presentes em diferentes textos pertencentes a gêneros diversos?
Sincronias e assincronias entre as práticas de uso e as práticas de análise linguística
Muitas são as possibilidades de atividades de análise linguística que podem servir direta e
sincronicamente para as atividades de compreensão e produção de textos. Por exemplo,
explorar o tempo verbal da manchete de uma notícia e questionar o efeito de sentido que o
uso do presente provoca nesse contexto (atualizar, aproximar o fato relatado dos leitores,
acentuar seu caráter de novidade etc.) é uma boa atividade de compreensão de textos, que vai
além do que é dito nas linhas e ajuda a situar a leitura de notícias. Mas em que momento
esse tempo verbal deve ser trabalhado? Antes do trabalho com notícias? Durante? Sem
dúvida, esse conteúdo pode ser trabalhado a partir de uma notícia. Mas, também pode ser
pressuposto no trabalho com notícias, o que supõe um trabalho anterior com esse tempo
verbal. Ir de texto a texto, ao longo de toda a escolaridade básica, para dar conta dos modos e
tempos verbais (ou de parte deles) pode impedir que os alunos percebam a lógica de
organização do sistema verbal. Além disso, se a cada exploração epilinguística houver a
necessidade de uma parada que introduza alguma metalinguagem, o próprio trabalho com o
texto pode perder seu foco, além de poder torna-se extremamente enfadonho.
A escolha de textos para as atividades de compreensão e produção, atividades essas que,
reiteramos, devem ser o foco do trabalho com língua, deve se dar em função das experiências e
da interlocução que propiciam e das aprendizagens em termos de temas e usos da linguagem em
diferentes contextos que possibilitam e não em função dos conteúdos gramaticais e
metalinguísticos que permitam trabalhar. Caso contrário, os textos viram pretextos para trabalhar
questões gramaticais, o que vai na direção contrária dos pressupostos explicitados.
A proposição de um trabalho paralelo com conteúdos gramaticais (além do trabalho
diretamente articulado com as atividades de leitura e escrita) parece ser uma saída adequada,
que permite que os alunos (re)construam a lógica do sistema e, posteriormente, possam se
servir desses conteúdos em outras atividades linguísticas (de uso) e epilinguísticas. Esse
trabalho paralelo com conteúdos gramaticais não precisa ser necessariamente desvinculado dos
textos. Mas, nesse caso (e somente aqui), é procedente tomar os textos como pretextos para o
trabalho com os itens gramaticais. Assim, para trabalhar a diferença entre pretérito imperfeito e
pretérito perfeito, pode-se propor uma atividade do seguinte tipo:

Atividade 1
1. Leia os textos abaixo:
Texto 1: Deitava-se no colchão, roçava a mão num
montinho de panos e adormecia
Acordava cedo Texto 2:
Saía de casa sempre no mesmo horário
Chegava à esquina de sempre, Acordou cedo
aproximava-se dos carros e Saiu para o seu primeiro dia de trabalho
oferecia suas guloseimas Confiante, chegou à esquina pretendida
Quase sempre, ao meio dia, comia um chocolate Aproximou-se dos carros e
Voltava para casa já de noite ofereceu suas guloseimas
Contava a féria do dia Ao meio dia, comeu um chocolate
Comia alguma coisa, geralmente uma sopa fria, Voltou para casa já de noite
mais caldo que sólido Treze reais foi a féria do dia
Tomou uma sopa fria, mais caldo que sólido Deitou-se no colchão e, roçando a mão num
montinho de panos, adormeceu.

2. Compare os dois textos, levando em conta os diferentes tempos verbais neles usados. Qual a diferença que
você nota, quanto ao sentido geral dos textos?
3. Pensando no sentido geral dos dois textos, invente um título para cada um deles.
4. Uma música do conjunto Legião Urbana, chamada Meninos e Meninas, traz a seguinte afirmação:
"... Acho que o imperfeito não participa do passado..."
Levando em conta o que você já aprendeu sobre o pretérito imperfeito, como é que você poderia interpretar
este trecho da música?

No exemplo dado, é a partir da análise do funcionamento em textos que se chega à


formulação de aspectos envolvidos na definição de uso dos diferentes pretéritos. Em outros
casos, quando o recorte for outro, o nível considerado nas atividades não precisa ser
necessariamente o texto, mas pode ser o período, a oração, a palavra, o morfema etc.7
Assim, por exemplo, se a intenção for fazer os alunos perceberem aspectos relativos
à morfologia e a sintaxe8, pode-se partir de palavras e orações, como no exemplo a seguir
de uma atividade proposta para alunos do 1º ano do Ciclo II do Ensino Fundamental:

Atividade 2
Inventamos algumas palavras. Mesmo sem saber o significado delas, tente dizer a que classe gramatical
pertenceriam se existissem na língua portuguesa. Justifique sua resposta.
1) O bravo general apracotará o tenente na festa do Clube dos Oficiais.
2) Jonas ganhou um cachorro preneco de presente de aniversário.
3) Maria passou suas férias em Catindeva.
4) Meu pai comprou um esdruquinique de primeira.
5) O aspetável deputado federal Joaquim das Flores faleceu ontem de madrugada.
6) Você espelocou as plantas do jardim?
7) Hoje de manhã, apareceu uma penota no quintal da minha casa.

Nesse caso, as palavras não existem na língua portuguesa, o que foi usado como
uma estratégia para fazer com que o aluno, por comparação com as palavras do português,
observe seus aspectos formais, os lugares que ocupam na oração e as relações que
estabelecem com outras palavras.
Um outro exemplo, agora de um relato de atividade realizada, pode ilustrar um
trabalho possível com classes de palavras:

Contexto da Atividade
Classe: 3ª série – Ensino Fundamental (alunos de 8/9 anos) de uma escola da rede privada de São Paulo.
Objetivo: verificar critérios de classificação de palavras utilizados pelos alunos, visando:

7
Insistir que o texto seja o tempo todo referência para o estudo de conteúdos gramaticais acaba por gerar atividades sem
sentido do tipo “sublinhe os verbos ou liste os substantivos do texto’, que usam o texto apenas como depositário de palavras.
8
Possibilitar que o aluno perceba as várias dimensões das unidades lingüísticas – que as palavras são formadas por
unidades sonoras (ou por grafemas quando escritas) e por morfemas (recortando unidades de sentido), que possuem uma
forma, pertencem a uma classe, relacionam-se de uma forma específica com outras palavras/classes, possuem significado
etc. – e a articulação (ou não) entre essas dimensões, pode ajudar na construção de categorias gramaticais e lingüísticas.
 obter dados para a programação subsequente de conteúdos gramaticais;
 introduzir um novo conteúdo - categorias gramaticais;
Situação inicial: alunos não tinham tido formalmente na escola nenhum contato com classes gramaticais.
Metodologia: a partir de discussões em grupos, propor a comparação entre palavras pertencentes às mesmas
classes gramaticais e a classes gramaticais diferentes, fazendo com que os alunos intentem diferentes
classificações, explicitando os critérios classificatórios.
Relato da atividade
O professor dividiu os alunos em grupos. Cada grupo recebeu cartelas com palavras escritas pertencentes às
categorias gramaticais que seriam trabalhadas em aulas subsequentes: artigos, substantivos, adjetivos e verbos.

Palavras dadas:
MESA, CADEIRA, SAPO, JACARÉ, AMOR, VIDA, MORREU, JOGOU, VIU, OUVIR, É, FICAR, GORDO,
MAGRO, VERMELHO, AMARELO, VELHO, NOVO, A, AS, OS, UM, UMA, UMAS.

Cada grupo deveria tentar várias classificações dessas palavras, explicitando o critério que norteou tais
classificações, dando nome aos agrupamentos. Todas as classificações bem como os nomes dos agrupamentos
deveriam ser registrados pelos grupos. Inicialmente, o critério de classificação foi totalmente livre, ficando a
cargo dos alunos explicitá-lo. Nessa etapa, de uma forma geral, os alunos utilizaram critérios relativos a
conhecimentos escolares anteriormente trabalhados: número de sílabas (grupos de palavras monossílabas,
dissílabas, trissílabas e polissílabas); tipo de letra inicial (grupo das palavras que começam com vogal e grupo
das palavras que começam com consoantes); etc.
Depois, o professor foi, aos poucos, em cada grupo, propondo outros critérios de classificação - “pensem no
que as palavras querem dizer”, “pensem em que situações são usadas” etc. - e também a junção de
agrupamentos já formados, reformulando o critério de classificação.

Algumas classificações finais realizadas por alguns grupos de alunos:

GORDO, MAGRO, VERMELHO, AMARELO, VELHO, NOVO: “grupo do que pode ser”; “aparências”;
“qualidades”.
A, AS, OS, UM, UMA, UMAS: “palavras que ajudam a forma frases”; “indicação ou explicação de
pessoa”; “quantidade”.
MESA, CADEIRA: “objetos”.
SAPO, JACARÉ: “animais ou seres vivos”.
AMOR, VIDA: “sentimentos”; “alegrias”; “grupo da vida”.
MESA, CADEIRA, SAPO, JACARÉ: “grupo do nome das coisas que existem”.
JOGOU, OUVIR, VIU, FICAR: “coisas que eu posso fazer ou ação”.
MORREU: “coisas que nós fazemos”; “coisa que acontece com a gente”.
É: “ajuda a formar frases”; “grupo do sim”.

Num outro momento, o professor retomou coletivamente a atividade e cada grupo relatou as classificações
realizadas. O professor registrou essas classificações na lousa, agrupando-as de acordo com a natureza do
critério classificatório. Concluindo a atividade, o professor sugeriu que todas as classificações apresentadas
seriam possíveis, mas historicamente a gramática foi privilegiando alguns critérios e não outros. Em seguida,
o professor destacou as classificações que mais se assemelhavam àquelas presentes na gramática. Nas aulas
subsequentes, o professor focou cada uma das classes gramaticais.
Diferentemente de uma prática comum em livros didáticos em que uma classe
gramatical é introduzida em cada unidade/lição, na atividade relatada, quatro classes
gramaticais são introduzidas simultaneamente, o que permite uma comparação das
semelhanças e diferenças. Os alunos mostram que podem refletir sobre a língua, chegando
a raciocínios sofisticados, como o do grupo de alunos que separou “morreu” dos outros
verbos, dizendo que “morrer a gente não faz; acontece com a gente”.
Ainda do ponto de vista metodológico, os exemplos de atividades comentados
apresentam em comum uma orientação para a reflexão, para a construção de conceitos e
relações e não para sua memorização mecânica.
À guisa de conclusão, cabe afirmar que a gramática deve sim ser ensinada, a partir
de uma metodologia que prime pela (re) construção de conceitos e relações, no interior das
práticas de análise lingüística, que devem ter peso menor no currículo em relação às
práticas de uso. A articulação entre essas práticas é inerente a qualquer ação de linguagem,
que envolve necessariamente as dimensões gramaticais, textuais, enunciativas e
discursivas, conforme assinala Bakhtin:
“Pode-se dizer que a gramática e a estilística se juntam e se separam em qualquer fato
linguístico concreto que, encarado do ponto de vista da língua, é um fato gramatical, encarado do
ponto de vista do enunciado individual, é um fato estilístico. Mesmo a seleção que o locutor efetua
de uma forma gramatical já é um ato estilístico. Esses dois pontos de vista sobre um único e
mesmo fenômeno concreto da língua não devem, porém, excluir-se mutuamente, substituir-se
mecanicamente um ao outro, devem combinar-se organicamente (com a manutenção metodológica
de sua diferença) sobre a base da unidade real do fato lingüístico.” (Bakhtin, 1992, pp. 286/287)

Metodologicamente, por uma questão de perspectiva de olhar, se justifica uma


eventual (e momentânea) separação dessas dimensões, mas a articulação entre as práticas
de linguagem deve ser garantida ao longo de todo o currículo, o que não significa que isso
tenha que ocorrer sempre de maneira sincrônica.
Concebido e implementado na perspectiva aqui apresentada, o ensino-
aprendizagem de gramática ganha uma dimensão também política: contribui para um certo
tipo de inclusão social. É preciso garantir que todos possam usufruir do patrimônio cultural
e possam compreender os textos que circulam, produzir textos adequados, enfim, participar
mais plenamente das práticas sociais que se utilizam da linguagem verbal.
Por fim, cabe afirmar que, em hipótese nenhuma, o estudo da gramática e a
proposição de outras atividades metalingüísticas devem despertar nos alunos o mesmo
distanciamento/estranhamento retratado pelo poema de Drummond que se segue:

Aula de Português

A linguagem
na ponta da língua,
tão fácil de falar
e de entender.

A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que ela quer dizer?

Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,


e vai desmatando
o amazonas da minha ignorância.
Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, seqüestram-me.
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro, mistério.
(Andrade, Carlos Drummond de, 1979. Esquecer para lembrar. Rio de Janeiro: Record.)

Referências
Bakhtin, Mikhail 1952/1953. “Os gêneros do discurso”. In Bakhtin, Mikhail Estética da
criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Brasil, Ministério da Educação, Secretaria de Ensino Fundamental 1998. Parâmetros
Curriculares Nacionais: 3º e 4º ciclos – Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF.
Britto, Luiz Percival Leme 1997. A sombra do caos: ensino de língua x tradição
gramatical. Campinas: Mercado de Letras.
Franchi, Carlos 1987. “Criatividade e gramática”. In Trabalhos em Lingüística Aplicada
nº9. Campinas: Instituto de estudos da linguagem/Universidade Estadual de Campinas.
Geraldi, João Wanderley 1984. “Unidades básicas do ensino de português”. In Geraldi,
João Wanderley (org.) O texto na sala de aula. Cascavel, Assoeste.
__ 1991. Portos de passagem. São Paulo: Editora Martins Fontes.
__ 1996. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação.
Campinas: Mercado de Letras.
Mendonça, Márcia 2006. “Análise lingüística no ensino médio: um novo olhar, um outro
objeto”. In Bunzen, Clécio & Mendonça, Márcia (orgs) Português no ensino médio e
formação de professores. São Paulo: Parábola Editorial.
Neves, Maria Helena de Moura 1990. Gramática na escola. São Paulo: Editora Contexto.
Travaglia, Luiz Carlos 1997. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de
gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Editora Cortez.
São Paulo (SP), Secretaria Municipal de Educação, Diretoria de Orientação Técnica 2007.
Orientações curriculares e proposição de expectativas de aprendizagem para o Ensino
Fundamental: ciclo II - Língua Portuguesa. São Paulo: SME/DOT.

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