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Métodos e Técnicas de Trabalho Com A Familia

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1

SUMÁRIO

2 O NEOLIBERALISMO, AS POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIAIS .......................... 3

3 NEOLIBERALISMO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONTEXTO BRASILEIRO . 15

4 POLÍTICAS DE EMANCIPAÇÃO NO ESTADO CAPITALISTA .......................... 21

5 GESTÃO DEMOCRÁTICA EM EDUCAÇÃO E SAÚDE ..................................... 33

6 TERCEIRO SETOR NO BRASIL: QUESTÕES JURÍDICAS, ADMINISTRATIVAS


E SOCIAIS .............................................................................................................. 49

7 TRANSFORMAÇÕES NA FAMÍLIA: SUA RELAÇÃO COM O TRABALHO, A


CULTURA E A SOCIEDADE .................................................................................. 59

8 TRABALHANDO COM FAMÍLIAS EM SAÚDE DA FAMÍLIA .............................. 68

9 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................... 78

2
1 O NEOLIBERALISMO, AS POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIAIS

Fonte:conselheiros6.nute.ufsc.br

Para compreender as políticas públicas sociais praticadas por um governo


(usualmente ligadas aos direitos de cidadania – previdência, saneamento, educação,
saúde, habitação, etc.), os fatores são complexos, variados e exigem análise
aprofundada. Devem-se analisar, para além de índices dos programas, as chamadas
―questões de fundo‖, as concepções de Estado e política social que sustentam suas
ações. Elas informam escolhas e decisões, modelos de avaliação aplicados e métodos
de implementação traçados nas estratégias de intervenção governamental. Visões
diferentes de sociedade, Estado, saúde, educação, etc., geram projetos diferentes de
intervenção. Além disso, as intervenções e políticas públicas são influenciadas pelo
contexto geopolítico e econômico no qual se encontram, que geram uma conjuntura
que se refere a um contorno de Estado.
É preciso então distinguir Estado e governo, tomando o Estado como o conjunto
de instituições permanentes, como órgãos legislativos, tribunais, exército e outras que
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não necessariamente formam um bloco monolítico, mas possibilitam a ação do
governo; e Governo, como o conjunto de programas e projetos que os atores do poder
(políticos, técnicos, dispositivos da sociedade civil, etc.) propõem para a sociedade,
constituindo uma orientação política que assume e desempenha funções do Estado
por certo período. Políticas públicas podem ser entendidas como o "Estado em ação"
(GOBERT, MULLER, 1987), na implantação de um projeto de governo, através de
programas e ações. O Estado não deve ser reduzido à burocracia, a órgãos que
conceberiam e programariam políticas. Estas devem ser de responsabilidade do
Estado, mas implantadas, implementadas e mantidas num processo de decisões que
envolvem, junto ao governo, diferentes organismos e agentes sociais a elas
relacionados. Políticas públicas não devem ser reduzidas a políticas estatais, mas
implicar no entrelaçamento entre Estado e sociedade.
No delineamento das políticas públicas, é importante ressaltar o processo de
diferenciação da área social. Muitas vezes, o ―social é entendido apenas como a
parcela excluída da população, traçando-se uma diferença entre ―social e
―sociedade, na qual a sociedade representaria a parcela economicamente produtiva.
Esta distinção é falaciosa e implica várias consequências. Inicialmente, ao considerar
as políticas públicas como voltadas a um ―social‖ excluído, perde-se seu caráter
democratizante, reproduzindo a desigualdade: políticas de saúde, educação,
previdência devem alcançar a todos e implicar a participação de todos, de modo que
a própria gestão estatal possa adquirir um caráter democrático efetivo. Além disso,
confundem-se estratégias de regulação da própria estrutura socioeconômica, que
atingem a vida pública e coletiva, com ações caritativas e assistencialistas. Políticas
públicas não são ―boas ações‖ do Estado, mas são garantias mínimas, financiadas
com o dinheiro de impostos pagos por toda a população, contra a precarização das
condições de vida da sociedade num contexto capitalista de exploração do trabalho e
produção de desigualdades. Neste sentido, é preocupante o discurso emergente a
partir dos anos 90 em relação ao trabalho voluntário e ao estímulo da substituição das
ações de Estado pelas ações de Organizações Não governamentais, por conferir às

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ações sociais um cunho caritativo que obscurece sua real função e constituição
histórica.
As políticas sociais têm raízes nos movimentos populares do século XIX,
vinculadas aos conflitos entre capital e trabalho surgidos nas primeiras revoluções
industriais. As políticas sociais implicam ações voltadas para a redistribuição dos
benefícios sociais, que determinam o nível de proteção social implementado pelo
Estado, visando diminuir as desigualdades estruturais produzidas pelo incremento
econômico do capital e se relacionam às próprias condições de manutenção do
sistema capitalista. Um exemplo desta relação é a emergência do Estado de Bem-
Estar social na Europa, fomentado economicamente no período pós-guerra como
garantia de manutenção do capitalismo face à ampliação socialista no leste.

Fonte: www.leitura.org

Desse modo, pode-se, por exemplo, entender a educação como política pública
social, cujas ações são informadas por uma acepção particular de Estado. Essas
formas de interferência do Estado visam a manter as relações sociais de certa
formação social. No caso brasileiro, muitas políticas de implementação de escolas
técnicas, por exemplo, vinculam-se à concepção de uma formação pouco crítica e
5
meramente instrumental voltada ao mercado de trabalho e dirigida à população de
menor poder aquisitivo. Assim, a divisão de uma ―formação para os ricos‖ e uma
―formação para os pobres‖ consistiu numa política de reprodução de desigualdades
sociais pela diferenciação de escolarização (PATTO, 2005). Offe (1984) ressalta que
seria equivocado pensar nos objetivos da política educacional voltados apenas para
a qualificação da força de trabalho conforme interesses de determinadas indústrias ou
formas de emprego, afirmando que:

(...) parece mais fecundo interpretar a política educacional estatal sob o ponto
de vista estratégico de estabelecer um máximo de opções de troca para o
capital e para a força de trabalho, de modo a maximizar a probabilidade de
que membros de ambas as classes possam ingressar nas relações de
produção capitalistas. (OFFE, 1984, p. 128).

Assim, é possível analisar alguns aspectos de planejamento e concepção das


políticas sociais e da política educacional no Estado Capitalista, focalizando,
respectivamente, certas análises marxistas do sistema capitalista e a concepção e
discurso neoliberal a respeito da sociedade, com a ressalva de não se pretender
esgotar as interpretações e leituras, mas oferecer um arcabouço conceitual que
permita compreender as políticas públicas no Estado brasileiro contemporâneo.
Na análise marxista do sistema capitalista, considera-se que as ações estatais
acabam garantindo, em última instância, a produção e reprodução das condições de
acumulação do capital e de desenvolvimento do capitalismo. Assim, a autonomia
estatal é constitutivamente comprometida, e a ação social do Estado capitalista ocorre
como resposta a reivindicações e demandas dos trabalhadores e setores não
beneficiados pelo desenvolvimento econômico. Nesse contexto, o Estado atua de uma
maneira que concentra e manifesta as relações sociais de classe em que conflitos
ocorrem, já que em seu interior estão presentes interesses referentes à acumulação
do capital e às reivindicações dos trabalhadores. No pensamento contemporâneo,
essa análise do Estado e das relações sociais contribui para compreender a dimensão

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política do Estado na fase atual do capitalismo, considerando suas funções no
capitalismo neoliberal financeiro.
Analisando as origens das políticas sociais traçadas pelo Estado Capitalista
contemporâneo para a sociedade de classes, pode-se depreender que o Estado atua
como regulador das relações sociais a serviço da manutenção das relações
capitalistas em seu conjunto (OFFE, 1984) e não especificamente a serviço dos
interesses do capital, a despeito de reconhecer a dominação deste nas relações de
classe. No processo de acumulação capitalista e em suas crises, as formas de
utilização da força de trabalho são deterioradas, transformadas ou destruídas, e
escapa aos indivíduos decidir quanto à sua utilização. O sistema de acumulação
capitalista engendra em seu desenvolvimento problemas estruturais referentes à
constituição e reprodução contínua da força de trabalho e à sua socialização através
do trabalho assalariado. Em períodos de profunda assimetria nas relações entre
proprietários dos meios de produção e trabalhadores, o Estado atua visando garantir
a manutenção do conjunto de relações capitalistas. Assim, conforme Offe, "(...) a
política social é a forma pela qual o Estado tenta resolver o problema da transformação
duradoura de trabalho não assalariado em trabalho assalariado" (OFFE, 1984, p. 15).
O Estado não só qualificaria continuamente mão de obra para o mercado, como ainda,
através das políticas sociais, procuraria controlar parcelas da população excluídas do
processo produtivo, assegurando condições materiais de reprodução da força de
trabalho, inclusive visando uma adequação quantitativa entre a força de trabalho ativa
e a força de trabalho passiva, e de reprodução da aceitação da condição de
exploração.
Estas podem ser consideradas funções últimas da política social, em que as
diversas instituições sociopolíticas e estatais intervêm no jogo de forças entre
segmentos sociais divergentes, gerando intervenções do Estado que atingem o todo
da sociedade, equacionadas por referenciais que refletem o pensamento capitalista.
Ressaltando a dinâmica própria do Estado nas sociedades capitalistas modernas, Offe
(1984) relaciona as origens da política social à estratégia estatal de mediação entre
interesses conflitivos:

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(...) para a explicação da trajetória evolutiva da política social, precisam ser
levadas em conta como fatores causais concomitantes tanto exigências
quanto necessidades, tantos problemas da integração social quanto
problemas da integração sistêmica (...), tanto a elaboração política de
conflitos de classe quanto à elaboração de crises do processo de
acumulação. (OFFE, op. cit., p. 36)

Assim, os modos de organização econômicos, políticos e sociais se realizam


numa dinâmica que é instituída por relações de dominação e exploração em sua
estrutura, e na qual, pressões e ações por mudanças sociais acabam por agir de modo
compensatório. As ações perpetradas pelo Estado não se implementam
automaticamente, mas num movimento que comporta conflitos e contradições,
podendo gerar efeitos distintos dos esperados. Sobretudo por se referirem a grupos
diferentes, as políticas sociais de Estado sofrem a influência de interesses diversos,
expressos nas relações sociais de poder.
Essa dinâmica de relações da sociedade capitalista é legitimada pelo discurso
liberal sobre a sociedade e o Estado, de origem Iluminista, estabelecido no século
XVIII, com A riqueza das nações, de Adam Smith (1776). O liberalismo se configura
num contexto de luta política e econômica da burguesia nascente contra o
Absolutismo e a nobreza do Antigo Regime. Buscando justificar o poder político e
econômico da burguesia enquanto classe social, o liberalismo concebe como função
do Estado apenas garantir direitos individuais, devendo não interferir nas relações
econômicas. Entre estes direitos, destaca-se a "propriedade privada como direito
natural" (LOCKE, 1632-1704), bem como o direito à vida e à liberdade de organização
do mercado. Ao conceber a dinâmica sócio economia capitalista como ordem natural,
o liberalismo iluminista ―eximiu o burguês de justificar o fardo da desigualdade e da
exploração‖ (BACHUR, 2006, p.170). Estas ideias baseavam-se numa teoria do
progresso da história, na qual o próprio desenvolvimento do homem trataria de
permitir, pelo uso da razão, a justiça social, presente no lema ―liberdade, igualdade,
fraternidade‖, da Revolução Francesa (1789). O Estado, ao contrário do Antigo

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Regime, não deveria gerenciar nem conceder a propriedade privada, mas arbitrar
conflitos surgidos numa sociedade pautada pela competição entre indivíduos, em que
proprietários e trabalhadores disputam interesses, realizam contratos, etc. Adam
Smith expressa essas ideias em A riqueza das nações:

(...) deixe-se a cada qual, enquanto não violar as leis da justiça, perfeita
liberdade de ir em busca de seu próprio interesse, a seu próprio modo, e faça
com que tanto seu trabalho como seu capital, concorram com os de qualquer
outra pessoa ou categoria de pessoas.

Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que


esperamos nosso jantar, mas de sua consideração por seus próprios
interesses. Nós nos dirigimos não a sua humanidade, mas a seu auto
interesse (self-love), e nunca falamos de nossas próprias necessidades, mas
de suas vantagens (SMITH, 1994, p. 20).

Tendo por principais expoentes Hayek (1944:1977) e Friedman (1977), o


neoliberalismo retoma e reorienta as ideias liberais numa perspectiva que rejeita o
racionalismo estatal, pressupondo que as relações sociais são efeito apenas de ações
individuais, nunca coletivas, e amplia a ideia de que conhecimento e justiça se fazem
pela competitividade de mercado para além da economia, abarcando a competição e
não estruturação nas esferas política e social. O neoliberalismo abandona, assim, a
concepção de progresso da história e enfatiza o discurso econômico de mercado
como ordem espontânea e natural sobre todas as esferas da sociedade e o sobre
próprio saber humano. Esse paradigma, absorvendo mudanças da história do
capitalismo, ganhou força, sobretudo, a partir dos anos 80 e 90, após a dissolução dos
governos socialistas na Alemanha e na União Soviética. Criticando o Estado de Bem-
Estar Social de Keynes (1883-1946), oriundo de uma visão liberal originada no
racionalismo francês, o neoliberalismo defende enfaticamente liberdades individuais,
acredita nas virtudes reguladoras do mercado e critica a intervenção estatal, numa
concepção individualista, utilitarista e competitiva da sociedade. A promoção e a
proteção do indivíduo, dos interesses e das relações que individualmente se

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estabelecem e se equilibram naturalmente na sociedade são destacados por
Friedman:

(...) os valores de uma sociedade, sua cultura, suas convenções sociais,


todos eles desenvolvem-se de idêntica maneira, através do intercâmbio
voluntário, da cooperação espontânea, da evolução de uma estrutura
complexa através de tentativas e erros...

O neoliberalismo defende a iniciativa individual como base da atividade


econômica, justificando o mercado como regulador da riqueza e da renda, com foco
no capitalismo competitivo, organizado através de empresas privadas. Atribui ao
Estado o papel de promotor de condições positivas à competitividade individual e aos
contratos privados, e percebe qualquer outra ação estatal como coercitiva:

(...) só há dois meios de coordenar as atividades de milhões. Um é a direção


central, utilizando a coerção, a técnica do Exército e do Estado totalitário
moderno. O outro é a cooperação voluntária dos indivíduos à técnica de
mercado. (HAYEK, 1976, p. 53).

Fonte: www.estudopratico.com.br

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Percebendo a economia de mercado como ordem reguladora da sociedade,
Hayek (1976) a dissocia de um julgamento de justiça que caberia a condutas
humanas, pois a considera como natural, um pressuposto da sociedade humana cujos
resultados não podem assim ser julgados ou modificados:

Tem-se que admitir claramente que a maneira pela qual os benefícios e


encargos são distribuídos pelo mecanismo de mercado deveria ser
considerada como muito injusta em várias instâncias se fosse o resultado de
uma alocação deliberada a pessoas particulares. Mas não é esse o caso
(HAYEK, 1976, p. 64).

Os neoliberais consideram as políticas públicas sociais, ações do Estado para


regular desequilíbrios gerados na acumulação capitalista, um dos maiores entraves
ao desenvolvimento do capitalismo e corresponsáveis pela crise social. Assim, as
políticas públicas são rejeitadas ou diminuídas como ameaças aos interesses e
liberdades individuais, que inibem a concorrência privada, a livre iniciativa e o
crescimento econômico, considerado como mecanismo do próprio mercado para
restabelecer o equilíbrio social. Assim, o neoliberalismo cria uma preponderância do
discurso econômico sobre a sociedade e a política, tomando o crescimento do livre
mercado como grande equalizador das oportunidades e condições de vida na
sociedade, e desconsiderando sua organização estrutural como pautada por relações
de exploração e dominação. Nesses postulados, os neoliberais criticam a
responsabilidade do Estado quanto à oferta de direitos sociais, como saúde e
educação pública universal a todo cidadão. Em relação à educação, por exemplo,
consideram que um sistema estatal de oferta de escolarização compromete, em última
instância, as possibilidades de escolha por parte dos pais em relação à educação
desejada para seus filhos. Estendendo a lógica do mercado para esta política social,
Friedman (1980) assinala que:

(...) em escolarização, pais e filhos são os consumidores, e o mestre e o


administrador da escola, os produtores. A centralização na escolaridade

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trouxe unidades maiores, redução da capacidade dos consumidores de
escolher e aumento do poder dos produtores. (p.81).

Os neoliberais propõem que o Estado divida ou transfira suas atribuições com


o setor privado, para permitir às famílias o direito de livre escolha quanto ao tipo de
educação desejada e estimular a competição entre os serviços oferecidos no
mercado. A proposta de participação da verba pública para educação, primária e
secundária, seria através de "cupons", oferecidos a quem os solicitasse, para
"comprar" no mercado os serviços educacionais que mais se identificassem com suas
expectativas e necessidades, arcando as famílias com o custo da diferença de preço,
caso este seja superior ao cupom recebido. São nesse prisma que se constituem
alguns programas recentes de ação pública, sobretudo em países subdesenvolvidos,
que não possuem uma tradição de garantia de bem-estar social estabelecida, como
os programas de financiamento público da educação em instituições privadas (no caso
brasileiro, por exemplo, o Pro uni), bem com os convênios com hospitais privados para
atendimento público e a transmissão de ações sociais para Organizações Não
governamentais, numa clara transferência de recursos do Estado ao setor privado. A
estratégia de descentralização, que numa acepção democrática visa ampliar a
participação das comunidades nas instituições públicas que passam a possuir maior
autonomia, nesse contexto, tem relevância como possibilidade de ação a partir do
núcleo de instituições privadas. A transposição, pelo Estado, da responsabilidade de
executar políticas sociais às esferas menos amplas, além de contribuir para esses
objetivos, é vista de modo empresarial como meio de aumentar a eficiência
administrativa e reduzir custos.
Embora tais procedimentos sejam justificados pelo livre mercado e pelo
controle maior dos ―consumidores‖ de serviços sociais, acabam fragilizando as
políticas sociais, que passam a possuir menos recursos financeiros e menor
relevância frente à hegemonia do discurso econômico. Ao tomar em termos de
produtividade de mercado ações e dimensões da vida social que possuem vital
relevância política e democrática, esses artifícios descaracterizam e desqualificam as

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ações sociais enquanto meio de constituição de um espaço público, coletivo e
participativo. Como aponta Plastino (2005),

Considerado isoladamente, o crescimento da produtividade é, sem dúvida,


um fenômeno positivo. Entretanto, sob uma ótica humanista — isto é, que
priorize o interesse humano — esse crescimento constitui apenas um
instrumento que, no contexto predatório da sociedade de mercado, está se
revelando um desastre para os interesses globais da Humanidade. (p.127)

O processo de definição de políticas públicas para uma sociedade reflete os


conflitos de interesses, arranjos feitos nas esferas de poder que perpassam as
instituições do Estado e da sociedade como um todo. Um elemento importante neste
processo na análise de políticas públicas refere-se a fatores sócio históricos que vão
tecendo discursos, representações e processos de legitimação, rejeição,
transformação e incorporação sobre as ações, conquistas, lutas e participações
sociais. Assiduamente, percebem-se nessa teia conjuntural as incongruências e
conflitos de interesses sociais que permitem, impedem e direcionam as ações em
políticas públicas. As formas de organização, o poder de pressão política, social e
econômica e a articulação de diferentes grupos sociais no estabelecimento e
reivindicação de demandas são fatores fundamentais na conquista ou retraimento de
direitos sociais, incorporados ao exercício da cidadania. Num Estado de cunho
neoliberal, ações e estratégias sociais de governo são minimizadas e várias vezes
articuladas a iniciativas e interesses privados, enfraquecendo ou desvirtuando seu
caráter público. Elas não permitem e, muitas vezes, não visam alterar as relações
sociais estabelecidas. No Brasil, esse cenário teve ainda outra decorrência:

...o enfraquecimento das fronteiras entre o público e o privado, ou melhor, a


mais completa subordinação do primeiro ao segundo, como resultado do
núcleo da opção programática das políticas públicas, com a exaltação do
privado e o aviltamento do que é público, convenientemente confundido com
o que é estatal, ampliou o espaço para a corrupção. (GUIMARÃES, 2001,
p.138).

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Além disso, o viés econômico na análise neoliberal das relações sociais tem
ocultado dados ligados à real condição de vida da população. Por exemplo, mede-se
a pobreza por diversos critérios que mostram seu agravamento, mas ela é
desvinculada do exame de outros aspectos, utilizando-se como critério o dado
macroeconômico do PIB per capita. Esse índice, porém, descreve apenas a esfera
econômica e enxerga o conjunto pela média, cego à sua distribuição real, não
considerando que, em países como o Brasil, tal média é permeada pelo contexto
histórico de desigualdade econômico-social.
O discurso neoliberal, que se dispõe como discurso único e verídico sobre as
relações sociais e políticas, não pode ocultar as decorrências sociais e culturais que
seu modelo e sua racionalidade geram presentes na expansão do desemprego, na
piora da condição de trabalho, na fragilização de vínculos trabalhistas, no aumento da
violência, da miséria e da marginalização.
Seus efeitos se notam ainda na constituição das subjetividades e das relações
humanas, com influências na família, no trabalho, na escola e todos os espaços de
socialização, trazendo para eles a lógica das relações humanas como mercadorias e
do ―lucro‖ social, subjetivo, educacional, político. Uma gestão pública informada por
uma acepção crítica de Estado, que considere seu papel atender toda a sociedade,
sem privilegiar interesses de grupos detentores do poder econômico, deve ter como
prioritários programas de ação universalizantes, que compreendam as ações públicas
sob uma lógica democrática e não sob uma lógica de mercado, e possibilitem o acesso
e a participação equitativa nas conquistas sociais por todos os cidadãos, visando
reverter o desequilíbrio social. Mais do que oferecer "serviços" sociais, as ações
públicas articuladas com as demandas da sociedade, devem se voltar para a
construção de direitos sociais.

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2 NEOLIBERALISMO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

Fonte: direitosocialsaudeparatodos.blogspot.com.br

A concentração de renda na América Latina, que permeia a história dos países


do continente e a torna a região mais desigual do planeta, cresceu ainda mais nos
últimos 30 anos. A desigualdade na região, segundo relatório do Banco Mundial
(1993), supera África, Ásia e Europa Central e acompanha o aumento da pobreza.
Ambas se vinculam à sua estrutura econômico-social, que gera enormes diferenças
na distribuição de renda e nas oportunidades de inclusão econômica e social.
No contexto desses trinta anos, as concepções sobre a pobreza e sobre seu
combate guardaram diferentes vínculos com o discurso ideológico liberal, por vezes
estimulando políticas reformistas e compensatórias em detrimento de mudanças na
estrutura social e favorecendo a retificação das relações de classe da sociedade
capitalista.
A ideia de pobreza como insuficiência de emprego, em voga ao fim dos anos
60 e início dos 70, indicava o modelo de desenvolvimento econômico atado ao
aumento da dívida externa e à ênfase no setor privado e nas multinacionais,
privilegiado pelos países latino-americanos a partir dos anos 50. Tal modelo, pautado
por uma relação colonialista com países desenvolvidos, não incorporou as massas
urbanas, que permaneceram excluídas de direitos de cidadania, condições de trabalho
e renda. Pautado no discurso liberal de justiça social pelo crescimento econômico, tal
modelo gerou o aumento do subemprego, do setor informal e da marginalidade
15
urbana, num processo de industrialização e crescimento econômico de caráter
nitidamente excludente.
A noção de pobreza como insuficiência de renda tomou corpo na primeira
metade dos anos 70, supondo que os setores chamados modernos das estruturas
produtivas crescem e se alimentam pela presença dos setores atrasados. Nessa
vertente, pobreza e processo de exclusão social se verificariam no interior mesmo do
núcleo moderno dessas sociedades, como resultado do próprio processo de
modernização, sendo necessária a realização de políticas compensatórias que, no
entanto, não modificariam a estrutura econômica. A ideia de pobreza como carências
múltiplas, que define grupos mais sujeitos ao processo de exclusão social, se fortalece
nos anos 80. Nesse quadro, crescem estudos sobre população idosa e juventude, por
exemplo, e propostas de políticas emergenciais: para debelar a fome, conseguir o
primeiro emprego ou uma renda familiar mínima. Fragmentando as dificuldades
sociais, tal noção ofusca a dinâmica social produtora das desigualdades e verte o
atendimento público a grupos miseráveis.

Fonte:www.emanuellagalvao.com.br

Com o avanço dos efeitos da política neoliberal, inclusive em regiões de


industrialização avançada, como América do Norte e Europa, o debate sobre a
pobreza ressurge como contraponto às teses e políticas liberais. Vários analistas

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ressaltam o caráter massivo de fenômenos como o aumento da pobreza, do
desemprego, da desigualdade e exclusão social e da violência, ligando-os às
mudanças operadas na ordem político-econômica, por força de interconexões globais,
metamorfoses no mercado de trabalho e da redução da proteção social.
Na América Latina, a globalização e liberação dos mercados, priorizando a
abertura comercial e financeira e a estratégia de integração à ALCA, a estabilidade
econômica, a reforma do Estado pelas privatizações, aliadas à ausência de uma
política industrial ativa, tiveram consequências destrutivas sobre o emprego e os
direitos sociais. Durante as duas últimas décadas, os processos de globalização da
economia e reestruturação produtiva tiveram alto impacto sobre os centros urbanos,
gerando o aumento do déficit habitacional, a deterioração das condições ambientais,
o encarecimento do solo urbano, o aumento do desemprego, do custo de vida e do
subemprego, a intensificação de desigualdades sociais, da pobreza e da violência. No
mesmo período, a maioria dos governos latino-americanos adotou reformas
estruturais de caráter setorial, enquanto tomava medidas de ajuste fiscal na política
macroeconômica. Tais reformas afetaram o mercado de trabalho, agravando o
desemprego a partir da década de 90, diminuindo o padrão salarial e de renda e
aumentando a participação dos trabalhadores no setor informal.
Em políticas públicas na saúde, tem-se um exemplo desse processo: a
dinâmica demográfica e a mudança na faixa etária da população, ligada à miséria e
às más condições de vida nos bolsões populacionais, geraram a justaposição de perfis
epidemiológicos em que coexistem problemas de higiene e saúde, fazendo ressurgir
doenças que se pensava controladas. De outro lado, políticas cada vez mais voltadas
a dispositivos privados fragilizaram a atenção pública em saúde, mormente em
ocasiões de cunho epidemiológico, dificultando a redução de situações de
vulnerabilidade e o atendimento aos mais excluídos.

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Fonte: www.jornalotabloide.com.br

Ao considerar o avanço neoliberal nos países subdesenvolvidos, destaca-se a


fragilidade dos organismos de justiça social e de representação política. Na Europa,
onde a exploração de colônias nos séculos precedentes e a ascensão do Estado de
Bem-Estar Social no pós-guerra, como contraposição ao avanço do socialismo,
admitiram erigir uma forte estrutura econômico-social de proteção dos cidadãos, a
fragilização das conquistas sociais e os efeitos colaterais da política econômica, como
a violência e o desemprego, se dão de modo mais gradativo e menos impactante. Em
revés, no cenário latino-americano, sobretudo brasileiro, séculos de dominação
colonial, desigualdade social e governos autoritários levaram ao frágil estabelecimento
de direitos sociais e da participação democráticos, somente conquistados com alguma
segurança nas lutas sociais após o período ditatorial, nos anos 80. Desse modo, a
estrutura autoritária de governo e a pouca força política da participação social abriram
terreno ao progressivo avanço neoliberal e às rápidas sequelas sociais de suas ações.
No caso brasileiro, a agenda neoliberal começou a se efetivar na década de 90,
já que a ofensiva popular que acompanhou a redemocratização do país nos anos 80
adiou o domínio neoliberal. No entanto, a própria ideologia elitista dos governos
autoritários anteriores favoreceu o posterior programa neoliberal no Brasil, que
ultrapassou a reforma da gestão de Estado e incidiu na continuidade do autoritarismo

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político pelas alianças de elite formadas após a ditadura militar, sobre o vazio político
da recém-constitucionalização, num contexto em que ainda não haviam sido
implantadas as diretrizes da Constituição de 1988. Por exemplo, o governo Cardoso
(1994-2002) deflagrou um uso exponencial de medidas provisórias, gerando reformas
constitucionais seguidas, que significaram a revisão de vários de seus contratos
básicos numa direção liberal, ―com intensidade inédita na história republicana do
século XX‖ (CODATO, 2005). Assim, a manutenção das relações autoritárias
constituídas historicamente nas instituições brasileiras, inclusive com o dispositivo de
subordinação do Congresso Nacional ao Executivo, favoreceu a implantação da
política neoliberal a despeito da opinião popular.

Uma dimensão importante da herança institucional da ditadura militar para os


governos da década de noventa foi a permanência de núcleos de poder
específicos no Estado (...), dotados de grande independência e nenhum
controle político (i. e., parlamentar) ou social (i. e., público). Nos governos
Cardoso (1995-1998; 1999-2002), para ficarmos no melhor exemplo (...) Na
área econômica continuou vigorando, assim como no arranjo ditatorial, o
esquema do "superministério", agora representado pela tríade Banco Central,
Conselho de Política Monetária e Ministério da Fazenda (...) Por fim, na área
"empresarial", e naqueles aparelhos de Estado em que, por sua natureza ou
competência, se administram os "interesses do mercado" (política de
privatizações, política de transportes, de comércio exterior, de comunicações,
de educação etc.), a regra foi o contato direto de representantes influentes do
mundo dos grandes negócios com decisores estratégicos, mecanismo muito
pouco transparente e que, a propósito do "regime autoritário", Cardoso (1975)
conceituou como ‗anéis burocráticos‘.
(CODATO, 2005, p. 89).

Nesse contexto, o Brasil tem assistido o sistemático avanço dos direitos do


grande capital financeiro em detrimento da soberania nacional, com repactuação da
dívida externa de modo desfavorável, abertura comercial, internacionalização e
privatização de setores produtivos e financeiros-chave, muitas vezes precedida de
sucateamento, desregulamentação do controle de fluxos de capitais e atrelamento dos
gastos públicos a metas negociadas com o FMI, perdendo para os mercados
financeiros, após a redemocratização, grande parte das deliberações sobre seu
destino econômico (CODATO, 2005). O projeto neoliberal gerou, ainda, o retrocesso
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de direitos sociais indicados pela Constituição de 1988, incorporando um amplo
ataque à lógica de direitos dos trabalhadores, rompendo o processo de inclusão no
mercado formal de trabalho ocorrido desde a Era Vargas. De direção universalizante,
as políticas sociais passaram a visar o padrão focal: a redução ao mínimo do papel do
Estado em ações sociais, dirigindo o restante ao mercado e a políticas assistenciais
voltadas localmente a grupos de extrema penúria (Vianna, 1998), com base nas ideias
de carências múltiplas e população de risco.
No projeto de redução do Estado, conforme Guimarães (2001), os impostos
indiretos e a carga fiscal aumentaram muito para assalariados, mas os ganhos do
capital foram protegidos de tributação e novos subsídios favoreceram grandes
capitalistas, inclusive multinacionais e proprietários recentes de empresas estatais.
Houve um deslocamento patrimonial do Estado estimado em 30% do PIB para grupos
privados. Setores estratégicos da economia brasileira, vitais em qualquer plano de
soberania econômica, foram vendidos de modo pouco claro. Esse projeto, cuja
conjuntura atual é marcada pela crise, é palco de uma disputa política na qual a
agenda neoliberal ainda possui hegemonia, mas encontra sólida oposição.
Igualmente, o modelo de crescimento econômico como base da justiça social mostra
sua falência, pois esse crescimento diminuiu impedido pela própria dívida pública, pelo
déficit externo e a desestruturação do setor produtivo estatal: 1,8% nos anos 90, cerca
de um terço do obtido entre 1945 e 1980. No contexto desse desinvestimento, ocorrem
crises em setores estratégicos, como no setor energético no governo Cardoso ou no
aéreo no governo Lula. O plano neoliberal ampliou ainda a desigualdade, cogerindo a
explosão da violência urbana.

O caráter social da crise, em parte decorrente do fracasso econômico


estratégico, é impulsionado pela grave deterioração do mercado de trabalho
no país. O desemprego aberto saltou de 4,5 milhões para mais de 7,64
milhões em 1999, segundo o IBGE. A informalidade, segundo a mesma fonte,
elevou-se de 51% em 1989 para 59% em 1999. O gasto nas áreas sociais
recuou de 18,5% do PIB em 1995 para 14,5% em 2000. (GUIMARÃES, 2001
p.).

20
3 POLÍTICAS DE EMANCIPAÇÃO NO ESTADO CAPITALISTA

Fonte: www.arionaurocartuns.com.br

Transferência de Renda

No mundo, há vários mecanismos de garantia de renda mínima destinados a


públicos diferentes e com objetivos e critérios diversos. O debate sobre renda mínima
começou com o liberalismo no séc. XVIII, mas os programas iniciais de garantia de
renda mínima (PGRM) surgiram em países desenvolvidos no século XX, atrelados à
constituição do Estado de Bem-Estar-Social.
Esses programas faziam parte de um projeto que se ampliou com a
reconstrução da Europa no pós-guerra, financiado pelos Estados Unidos, contra a
ascensão socialista, e pela garantia da força política do capitalismo. Sua meta era
criar uma rede de proteção social para as populações mais pobres, pela transferência
de renda. Um dos primeiros programas de transferência de renda foi instituído pelo
governo britânico em 1908 e muitos países europeus entre os anos 1930 e 1940
passaram a adotar políticas de perfil redistributivo. A partir de 1975, quando o
desemprego passou a afetar a Europa, os governos introduziram políticas

21
compensatórias, como o salário-desemprego, e em 1986 fundou-se a Rede Europeia
da Renda Básica.
No Brasil, a ascensão de movimentos sociais contribuiu para a aprovação do
projeto de lei do senador Eduardo Suplicy (PT/SP) em 1991, instituindo o Programa
de Garantia de Renda Mínima (PGRM), no qual toda pessoa de 25 anos ou mais que
não recebesse o equivalente ao salário mínimo teria direito de 30% a 50% da diferença
entre esta quantia e sua renda. A elevada concentração de renda é marcante na
sociedade brasileira, cujos índices de desigualdade estão entre os mais altos do
mundo. Neste cenário, implantar a garantia de uma renda mínima – a transferência
monetária para pessoas que não alçam um nível mínimo de renda – é uma das
políticas compensatórias e meio de combate à miséria.
Tais programas se ampliaram por municípios e estados: é criado em 1995 o
PGRM de Campinas, (gestão Magalhães Teixeira) e o Bolsa-Escola, do Distrito
Federal (gestão Cristovam Buarque). Os resultados positivos no Distrito Federal
tornaram o programa Bolsa-Escola referência para vários países (VAN PARIJS, 2000).
No nível federal, a Bolsa-Escola passou a vincular renda mínima e política
educacional: a complementação busca elevar a renda de famílias pobres e ainda
incentivar a escolarização de seus filhos, atendendo hoje 5% da população, em 5.531
municípios brasileiros dos 5.561 existentes. No programa federal, cada criança entre
6 e 15 anos, frequentando regularmente escolas da rede pública, tem direito a R$
15,00 mensais, até o máximo por família de R$ 45,00. O dinheiro é mensalmente
sacado por cartão magnético pela mãe ou responsável legal, nas agências da Caixa
Econômica. A escolha de favorecidos obedece a critérios legais e o pagamento é
suspenso em caso de frequência escolar mensal inferior a 85%, cujo controle é feito
pelas prefeituras participantes do programa, trimestralmente. Em comparação às
políticas sociais tradicionais no Brasil, os programas de transferência de renda
avançam politicamente ao dispor metas socioeducativas e explicitar a preocupação
de articular políticas diversas. Assim, Van Parijs (2000) elogia o programa brasileiro
como promotor da autonomia dos cidadãos.

22
Há, porém barreiras para articular os diversos programas de política social, pois
mesmo com a grande quantia de recursos envolvidos e pessoas atendidas nos
programas nacionais, eles não conseguem formar em seu conjunto uma política
nacional unificada. Assim, muitas vezes, programas de transferência monetária
acabam atuando de modo isolado e regional, sem maior articulação a programas de
educação, saúde, trabalho e outros. Seria preciso sua articulação às iniciativas em
torno do desemprego do país, numa política nacional de cidadania instituída de modo
descentralizado e coordenado. É preciso ainda lembrar que estas políticas não
questionam modelo econômico de pobreza estrutural e podem não implicar
participação popular, mostrando-se vulneráveis ao contexto político.

Políticas de Microcrédito como estímulo ao desenvolvimento social

No Brasil, 50% da população economicamente ativa trabalham em


microempresas (até cinco empregados), mas apenas 4,8% delas obtém empréstimo,
pois não há condições e aval para crédito bancário. Assim, há grande demanda por
microcrédito, num mercado potencial de seis milhões de pessoas. Para atendê-la, foi
criado o Banco do Povo, política pública baseada num programa de microcrédito que
institui um vínculo entre credor e investidor que inclui consultoria técnica e
acompanhamento. Também chamado crédito produtivo, tal crédito opera por agências
financiadoras (bancos federais, governos estaduais e municipais, em parceria com
empresários ou ONGs), e visa combater o desemprego e a pobreza, e auxiliar a
sobrevivência econômica dos pequenos empresários frente ao grande capital. O Brasil
foi um dos primeiros países a implantar um programa de microcrédito para o setor
informal urbano, a União Nordestina de Assistência a Pequenas Organizações (UNO).
Criado em 1973, em Salvador e Recife, era gerido por duas ONGs parceiras, uma de
empresas e bancos e uma internacional, que após 18 meses suspendeu suas
atividades. Em 1987, surge em Porto Alegre o Centro de Apoio aos Pequenos
Empreendimentos Ana Terra (Ceape), ONG apoiada pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) e pela Inter-American Foundation (IAF). Hoje, a Rede é

23
composta por 12 centros em vários estados. Em 1989, cria-se na Bahia o Banco que
hoje possui filiais, com apoio do UNICEF e do BID e filiado ao Women's World
Banking.
Essas ações estavam relacionadas à luta pelos direitos sociais do fim da
década de 70 e início da de 80, e ao movimento constituinte, de redemocratização e
da reorganização do sistema público. Até 1994, havia poucas opções de microcrédito,
em apenas 20 agências de financiamento popular. Em 1995, o Conselho Comunidade
Solidária começou a discutir formas legais e apoios de organizações civis para
expandir o microcrédito e em 1996, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES) passou a apoiar iniciativas populares, criando o Programa de
Crédito Produtivo Popular. Nos últimos sete anos, com o início das medidas para
ampliar o microcrédito no Brasil, pequenos empreendedores do trabalho informal ou
de microempresas passaram a obter investimentos de até 10 mil reais com juros
baixos (que variam de 1% até 4% ao mês). Várias pesquisas indicam baixo índice de
inadimplência em políticas de microcrédito (3% a 5% após 30 dias), o relacionado à
metodologia de capital social, em que a própria comunidade gerencia os
financiamentos. Porém, seu crescimento no Brasil ainda é baixo e nem sempre
garante acesso a crédito à população de baixa renda. Para Neri & Giovanni (2005,
p.644), ―o mercado de crédito brasileiro visa mais ao consumidor do que ao produtor.
É mais de curto do que de longo prazo e atinge mais a alta do que a baixa renda‖.
Conforme a legislação, a estrutura do setor de micro finanças é formada por
instituições chamadas de "primeira linha" (da sociedade civil, setor público e iniciativa
privada) e "segunda linha" (BNDES, pelo Programa de Crédito Produtivo Popular -
PCPP e SEBRAE, pelo Programa de Microcrédito). As instituições de "segunda linha"
oferecem capacitação, apoio técnico e recursos financeiros para as instituições de
"primeira linha", que atuam diretamente com o cliente. Em 2001 decretou-se a Medida
Provisória 2.172-32, legalizando contratos de microcrédito com Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP ‘s. Antes disso, as iniciativas de ONGs,
não sendo entidades financeiras e sem vinculação ao Banco Central, estavam sujeitas
à Lei da Usura, que limita a cobrança de juros a 12% ao ano. Em 2001, também foi

24
publicada a Lei 10.194, que permitiu a criação de Sociedades de Crédito ao
Microempreendedor (SCM), liberando juridicamente a iniciativa privada a atuar como
instituição de "primeira linha" em organizações de microcrédito.
Há políticas de microcrédito a trabalhadores de baixa renda na maioria dos
estados e em muitas prefeituras no Brasil, com poucas diferenças entre elas, a maioria
de intervenção do governo e viabilizando pequenos empréstimos. Em Recife, o Banco
do Povo dirigido pela prefeitura tem um programa de crédito voltado a microempresas
e trabalhadores informais (sem registro no CNPJ), que inclui análise de viabilidade do
negócio, cursos e acompanhamento. Durante a análise, é definida a quantia a
emprestar, com limite menor a trabalhadores informais e maior para formais, a ser
retirada no Banco do Brasil ou Caixa Econômica Federal. O Banco - MG, criado em
1997 numa parceria entre prefeitura e empresários que criaram uma OSCIP, tem
linhas de microcrédito para capital de giro, de menor valor, e investimentos em
equipamentos, de maior valor, com juros de 3,9% ao mês. Em casos de parceria
público-privada, é preciso observar a idoneidade das iniciativas, que podem servir à
atuação financeira lucrativa de entidades privadas com recursos públicos.
Entre as dificuldades encontradas para o acesso a crédito aos pobres em
programas de microcrédito está a dificuldade de provar garantias de pagamento, a
lentidão da justiça, que dificulta a cobrança em caso de inadimplência, o excesso de
burocracia e impostos, que dificulta o desenvolvimento de micro negócios e exige
informação e acessoria ao empreendedor. Assim, a ampliação do microcrédito exige
a reavaliação de medidas estruturais. Neri & Giovanni (2005) apontam que, embora
em sua pesquisa, apenas 7% dos micros negócios tivessem obtido crédito, houve
aumento de chances para aqueles ligados a entidades de classe (cooperativas,
sindicatos, etc.) e empresas com constituição jurídica, e ressaltam que o microcrédito
se institui mais solidamente atrelado a um programa de crédito solidário, engajado na
associação e na participação coletiva.

25
A organização cooperativa como resposta ao desemprego

Fonte: www.investimentosfinanceiros.com.br

Segundo Singer (2000), a organização econômica mais simples possível e por


isso uma das mais antigas é a ―produção simples de mercadorias‖, na qual cada
agente é possuidor individual de seus meios de produção e, portanto, dos produtos de
sua atividade, que negocia diretamente nos mercados. O capitalismo surge deste tipo
de produção e organização dos mercados, mas o nega quando separa posse e uso
dos meios de produção. Essa divisão surge mais ou menos ―naturalmente‖ do
funcionamento dos mercados, pela apropriação, pelos que venceram no jogo
econômico, dos meios de produção daqueles que o perderam. Os mercados, ao
contrário do que consideram alguns teóricos, não tendem ao equilíbrio: a história
demonstra que os mercados transitam de um desequilíbrio a outro, por fatores
relativamente aleatórios: invenções, forças naturais (geadas, chuvas), mudanças
econômicas, etc. Os perdedores da competição econômica, expropriados de meios
de produção, se reintegram ao mercado na venda de sua força de trabalho a outros
donos de meios de produção: o capitalismo é o modo de produção em que os meios
de produção e distribuição, exceto a força de trabalho, se tornam mercadorias
26
privadas. Assim, um traço central do capitalismo é a concentração da posse de meios
de distribuição e produção de mercadorias, pelos que venceram o jogo de mercado,
que se tornam capital centrado na posse de poucos, enquanto a maioria tem apenas
sua força individual de trabalho, o que gera uma população denominada proletária,
que vende seu trabalho no mercado.
Assim, há divisão da posse dos meios de produção (do capitalista) e seu uso,
atribuído aos trabalhadores. A concentração dos meios de produção permite investir
na invenção de meios automáticos de produção, viabilizando o emprego de forças de
trabalho que substituam a humana, como tração animal ou energia elétrica. Isso levou
à expansão do capitalismo em detrimento da produção simples de mercadorias: pela
concentração de capital houve as revoluções tecnológicas, das quais a Revolução
Industrial é um ícone. Outro atributo central do Capitalismo é a perpetuação do ―
exército industrial de reserva‖: uma massa trabalhadora que não consegue vender
sua força de trabalho na empresa capitalista. Parte dessa população permanece à
margem do mercado de trabalho, sustentada pelo seguro-desemprego, e parte tenta
vender sua força de trabalho em outro mercado: marginalizada da organização maior
dos mercados, se organiza em mercados paralelos, como o mercado informal, pela
―produção simples de mercadorias‖.
Pelo fato de os trabalhadores terem se organizado relativamente cedo em
sindicatos e por certas garantias trabalhistas terem se consolidado, seu salário é
termômetro da economia capitalista, pois os sindicatos influem para monopolizar a
oferta de trabalho e garantir um piso salarial. Igualmente, o desemprego tem função
central no capitalismo: quando a economia tende ao pleno emprego, os preços sobem,
ameaçando o valor ―real‖ da riqueza, e a economia é freada antes que a espiral
preços- salários leve a uma inflação exponencial. Esse desemprego estrutural leva
trabalhadores desempregados ou ameaçados de desemprego a buscar alternativas
de sobrevivência. Parte deles recorre ao seguro-desemprego e parte precisa vender
a força de trabalho nalgum mercado, inchando a produção simples e empobrecendo
seus integrantes, que atuam em mercados vulneráveis.
As cooperativas surgem tanto como modo de produção e distribuição de

27
mercadorias distinto do capitalismo quanto como um arranjo entre trabalhadores
capazes de organizar produtos e serviços de forma a ter condições de competir com
a empresa capitalista. A cooperativa não é uma construção teórica de um autor,
embora haja estudos que buscam refletir sobre sua organização. Ela é um modo de
organização surgido em vários períodos da história, criado e recriado pelos que estão
marginais ao mercado de trabalho ou sofrem este risco, sempre que trabalhadores
buscam alternativas à economia marginal que os habilitem para competir no mercado
capitalista. Ela é uma organização surgida da prática, que casa a unidade posse uso
dos meios de produção, próprios da produção simples de mercadorias, com o princípio
de socialização destes, isto é, de sistemas só utilizados por grande número de
pessoas, próprios do capitalismo. Embora este sistema pareça um híbrido entre estes
dois modos de operação da economia, ele é uma síntese que os supera. Há afinidade
entre trabalhadores e a economia solidária porque, embora nem todos os
trabalhadores se oponham ao capitalismo, a maioria deles o faz, e a economia
solidária é também uma base ideológica dessa oposição.
A economia solidária consiste, assim, numa criação em processo contínuo de
trabalhadores em luta contra o capitalismo, que não o precede, mas o acompanha
como uma sombra, condenando a ditadura do capital na empresa e o direito de
propriedade do dono dos meios de produção, que gera desigualdade social e,
sobretudo, uma associação de trabalhadores para produzir, distribuir, comercializar e
comprar bens e serviços, em iniciativas não capitalistas.

Fonte: canalcooperativo.com.br

28
Há teorias que afirmam que as cooperativas não teriam condições de se
estabilizar e desenvolver no seio do capitalismo, falindo ou tornando-se empresas
capitalistas pelo fato de haver uma ―cultura capitalista‖: os trabalhadores não
conseguiriam se organizar de forma solidária, pois adotam a lógica capitalista no
arranjo cooperativo, e ficam na contradição de serem simultaneamente operário e
capitalista. Outras teorias afirmam que as empresas capitalistas têm uma lógica de
mercado em que é impossível à cooperativa instalar-se. Mas nenhuma delas se
mostra verossímil ao se observar que algumas cooperativas se estabilizam e
continuam operando como tal durante muito tempo.
De fato, as cooperativas têm de enfrentar desafios para se estabilizar nos
mercados, sendo preciso mudanças organizacionais em comparação ao sistema de
produção capitalista. O desafio inicial se dá, então, na gestão da empresa solidária,
pois se acredita que a administração é um saber científico, decorrendo daí que, se a
maioria de trabalhadores ingressantes na cooperativa tem baixa escolaridade, não
haveria subsídios para sua boa administração. Essa questão na verdade se desdobra
em duas: primeiramente, em oposição à gestão capitalista, na qual o capitalista em
geral contrata um técnico ou corpo técnico que administra a empresa, a gestão da
empresa cooperativa é a um só tempo direito e tarefa de todos os cooperados, sendo
esta lógica de gestão democrática uma das noções que a define. Há aí o embate
ideológico de que, sendo a administração um saber técnico, haveria pessoas melhor
ou pior instruídas para realizá-la e seria inviável a gestão coletiva não efetuada por
um corpo técnico. Porém, deve-se ponderar que a administração, embora seja
estudada ou aprimorada pela ciência, é uma arte que une experiência e conhecimento
de uma pessoa ou grupo de pessoas na tomada de decisões, o que se nota ao verificar
que as decisões na cooperativa, conquanto usualmente mais demoradas que na
empresa capitalista, são também mais acertadas, pois incluem um conjunto mais
abrangente de informações, advindas do conhecimento e da experiência de todos os
cooperados. Assim, o problema que se coloca para a cooperativa não é a falta de
capacidade para a gestão, mas o discurso dominante de que a administração só é

29
viável por um discurso competente (CHAUÍ, 1984) de natureza técnico-científica. Isso
não quer dizer que a cooperativa prescinda de informação técnico-científica. Ao
contrário, ela é necessária e a cooperativa poderá incluir membros com saberes
específicos da área em que atua ou contratar serviços de um grupo exterior. Nesse
sentido, a cooperativa torna-se mais viável quando o ―know-how‖ de que ela precisa
pode viabilizar-se aos cooperados. Este é o segundo entrave, de cunho político: a falta
de ação político-governamental para dar subsídios à formação e capacitação de
cooperativas. No Brasil, esse problema é tratado, sobretudo, pelas universidades,
através dos programas de incubadoras de cooperativas, mas não é considerado pelo
governo como um todo, onde não há assessoria tecnológica para este fim.
O problema da falta de políticas públicas que viabilizem cooperativas está
presente ainda em outras áreas necessárias à sua estabilização, como o acesso a
crédito, que é em geral menor para cooperativas em comparação às empresas
capitalistas, a redes de comercialização, etc., havendo assim uma falta de garantia
das bases de sustentação da economia solidária. Um exemplo é a legislação tributária
brasileira: sendo os cooperados sócios da cooperativa, pagam impostos como tal, e
sendo assalariados, também pagam os impostos referentes. Assim, devido à falta de
legislação específica para empresas cooperativas, elas acabam por ser tributadas
duas vezes. Isso ocorre também, além desses fatores, porque a maioria das unidades
cooperativas atua isoladamente em mercados dominados por empresas capitalistas,
sem haver uma rede de cooperativas que atue para minimizar esses problemas. No
Brasil, as cooperativas surgem nos anos 1980, junto ao fortalecimento dos sindicatos
e à redemocratização do país, e se ampliam na segunda metade da década de 90.
Elas resultam de movimentos sociais que reagem à crise de desemprego iniciada em
1981 e agravada pela abertura do mercado para a importação nos anos 90, e se
viabilizam pelo apoio de incubadoras tecnológicas de cooperativas nas universidades
públicas. Mas seu desenvolvimento enfrenta, além dos problemas supracitados, a falta
de fiscalização, que deixa uma brecha para que empresas capitalistas registrem-se
como cooperativas, anulando direitos trabalhistas de seus funcionários e diminuindo
de forma ilícita o preço de seus produtos para competir com as próprias cooperativas.

30
Essa operação intensificou-se nas décadas de 1990 e 2000, tanto pelo aumento do
nível de desemprego que levou à degradação das condições de trabalho quanto pela
privatização da oferta de serviços sociais através de ONGs e parcerias público-
privadas. Nestes casos, os contratos, desvinculando do Estado a responsabilidade
social e a contratação de funcionários para oferecer serviços e implantar projetos
sociais integrados a um plano de desenvolvimento social, abrem novas brechas para
a fragilização dos vínculos trabalhistas pelo uso ilícito e falso da organização
cooperativa.

Fonte: www.primacredi.com.br

Programas de qualificação profissional no Estado neoliberal

A década de 1990 assistiu à redução drástica no nível geral de emprego.


Segundo Pochman (2002), só no município de São Paulo, de 1991 a 2000, os postos
de trabalho reduziram em 11%, passando de 3,55 milhões em 1991 para 3,16 milhões
no fim da década. A exigência de qualificação e a competitividade maior apresentam
um lado "perverso", aponta o Relatório de Pesquisa do Dieese n.14. Com a pressão,
sob os trabalhadores, do desemprego e da fragilização do trabalho, a requalificação
profissional é cada vez mais necessária para manter o emprego. A formação
profissional se torna um critério de seleção que transcende exigências concretas da
vaga. Conforme Dedecca (2002), tem-se contratado pessoas de maior escolaridade
para cargos de baixa qualificação, pois os quadros foram reduzidos na reestruturação
produtiva neoliberal. Sendo restrito o número de vagas, seleciona-se um trabalhador

31
mais escolarizado, independente de qual seja a qualificação necessária para o
desempenho da tarefa. A premissa de que o trabalhador melhor qualificado obtém
melhores vagas é uma avaliação que culpabiliza perversamente o desempregado pela
exclusão do mercado, ocultando fatores estruturais geradores do desemprego. O
próprio mecanismo de funcionamento e os preceitos do capitalismo se pautam pela
ampliação da exploração do trabalho e pelo corte de gastos, visando aumentar a
lucratividade e gerar a evolução tecnológica que substitui o trabalho humano.
Compreendendo o homem como mero recurso, a administração capitalista não
permite uma inclusão real: mesmo um crescimento econômico amplo é incapaz de
garantir a participação de toda a sociedade nos processos de produção e
desenvolvimento.

Fonte: www.catho.com.br

Segundo Dedecca (1998), a qualificação dos trabalhadores no atual período do


neoliberalismo não é responsável pela obtenção do emprego, que depende mais do
cenário concorrencial e da realidade econômica. Nesse contexto, as ações de governo
se direcionam mais a práticas condizentes com o discurso dominante da necessidade
de qualificação do que à busca de soluções estruturais do sistema socioeconômico
brasileiro. Por exemplo, o Panfor (Plano Nacional de Educação Profissional), iniciado
em 1995, que é um programa de política pública de trabalho e renda ligada ao Fundo
de Amparo ao Trabalhador do Ministério do Trabalho e Emprego (FAT-MTE). A verba
32
é repassada aos estados ou parceiros nacionais e regionais por convênios que exigem
contrapartida de 20% do valor conveniado em média, definida em lei para os estados.
Segundo o MTE, a meta do Planfor é garantir a educação profissional permanente,
auxiliando a reduzir o desemprego e o subemprego e elevar a qualidade e
competitividade do setor produtivo. No médio prazo, pretende-se oferecer educação
profissional suficiente para qualificar no mínimo 20% da População Economicamente
Ativa (PEA) por ano. Embora a iniciativa de qualificar contribua para o acesso de
trabalhadores à cultura e à educação, buscar a redução do desemprego e
subemprego através desta política é desconhecer as reais causas destes fenômenos
no quadro socioeconômico. É preciso considerar, assim, que o Brasil trouxe ao século
XXI as marcas centrais da situação que conheceu na segunda metade do século XX:
uma das estruturas sociais mais desiguais do mundo e um sistema de proteção social
frágil, incapaz de afetar significativa e positivamente a desigualdade e a exclusão
social.

4 GESTÃO DEMOCRÁTICA EM EDUCAÇÃO E SAÚDE

Fonte: www.escolainfo.com.br

33
Os rumos da gestão social têm sido historicamente traçados pela gerência de
empresas, já que são adotados pressupostos empresariais de produtividade no
desenvolvimento das ações. No Brasil, a gestão pública acaba se vinculando aos
princípios empresariais, dada sua característica capitalista, em que os interesses do
capital atuante nas organizações se reproduzem nas relações políticas e sociais, que
se adaptam a esse modelo hegemônico. Segundo Paro (1996), na sociedade
capitalista "as regras capitalistas vigentes na estrutura econômica tendem a se
propagar por toda a sociedade, perpassando as diversas instâncias do campo social"
(p.48). Nesse contexto, supervisores de ensino, coordenadores de saúde ou diretores
de escola passam a atuar compreendendo suas funções básicas como organizar e
administrar num prisma produtivo e avaliando as ações em termos de eficácia,
eficiência e produtividade em contextos em que seria mais próprio pensar em termos
de pertinência, efetividade, cooperação e participação social. Assim, para entender os
paradigmas presentes na gestão social pública, é preciso antes delinear
historicamente os conceitos de administração na sociedade capitalista, que vêm
condicionando a gestão em instituições e organizações.
Hora (1997) demonstra que a teoria administrativa do século XX se
desenvolveu em três escolas: a clássica, que tem como critério central a eficiência
(capacidade real de produzir o máximo com o mínimo de recursos), representada pela
teoria científica de Taylor, pela teoria de Administração Geral de Fayol e pela
administração burocrática, concebida por alterações da teoria da racionalidade de
Weber; a psicossocial, representada por Mayo e Dickson, que substitui o critério da
eficiência pelo da eficácia, em que os objetivos a alcançar são intrínsecos ao sistema,
e a contemporânea, que tem como critério a efetividade (capacidade de criar a
resposta desejada). Embora com ideias distintas, as duas primeiras teorias têm como
objetivo central obter lucro. Elas nortearam a organização institucional na sociedade
capitalista, trazendo a noção de lucro ao interior das instituições, que passou a
permear as relações humanas, com implicações sociais e políticas.
Ao entender os recursos humanos não como recursos do homem (técnicas e

34
procedimentos), e sim o homem como recurso (PARO, 2002), tais concepções
desumanizam as relações humanas, pois deslocam o homem, de sujeito, a objeto do
processo, desconsiderando que "o homem é meio, não fim" (PARO, 2002, p.25), e
gerando relações de dominação. Na Administração capitalista, a produção, que visa
lucro, "só se sustenta a partir da exploração do trabalho alheio" (Ibid., p.44). Paro
(2002) aponta dois campos de administração: a "racionalização do trabalho", ligada à
utilização dos recursos materiais e conceptuais, e a "coordenação", ou seja, o
emprego do esforço humano coletivo.

No modo de produção capitalista, a ‗racionalização do trabalho ‘tem como


preocupação central o aumento da eficiência e produtividade, visando lucro.
"Tal objetivo é conseguido pela divisão pormenorizada do trabalho (...). Os
chamados estudos da administração concentram-se (...) predominantemente
nos problemas relacionados ao controle dos trabalhadores" pela "gerência,
que constitui (...) a forma que assume a ‗coordenação ‘sob esse modo de
produção. A superação do desinteresse do trabalhador e a neutralização de
suas resistências às condições de trabalho (...) são buscadas através da
gerência (p. 59, 60).

A divisão do trabalho entre manual e intelectual auxilia a desqualificação e o


controle do trabalhador, separando planejamento e execução das atividades. “Ao
arrebatar do trabalhador a função de concepção, pode-se determinar o método e
retorno do trabalho mais adequados à eficiência capitalista" (PARO, p. 64). A
administração assume a função de mediação entre capital e produção de lucro, a
serviço do capital e justificando o lucro. Ela não visa o crescimento do homem, e
representa apenas interesses de classe. No Brasil, noções mais democráticas da
gestão pública, considerando a participação popular em contraponto à tecnocracia da
produtividade, apenas se legitimaram na Constituição de 1988, co-gerada nos
movimentos e lutas sociais pela abertura democrática. Nesse período, uma agenda
democrática de reforma social orientou um movimento de mudanças, sob o duplo
signo de democratização das políticas e melhoria da efetividade do gasto social.
Nesse cenário, as lutas sociais visavam superar o autoritarismo e reordenar as
políticas públicas. No sistema de proteção social, a demanda por redução das
35
desigualdades, norteou uma melhora da efetividade das políticas e a afirmação dos
direitos sociais orientou projetos de extensão da cobertura dos programas e
universalidade das políticas, com leis asseguradas na nova Constituição. Assim,
abordou-se a contradição entre o alto gasto social e os medíocres resultados
alcançados. Institucionalmente, tais metas nortearam ações de descentralização,
maior transparência nos processos decisórios e ampliação da participação social.

Fonte: inclusaoprodutiva.org

Porém, após o processo constituinte, em seguida ao curso de implantação da


nova legislação, as pressões do jogo de forças políticas não se dirigiram a esse olhar
progressista. Mobilizações corporativistas e mecanismos clientelistas, quase sempre
associados a práticas populistas dos governos, buscaram capturar as demandas e
ensaios de reformas, impondo limites ao exercício democrático e à participação
popular nas novas políticas públicas. Embora a constituição de 1988 fosse um avanço,
essas ações tolheram a efetiva construção de uma opção democrática na
modernização e reforma das políticas sociais ainda nos anos 80.
Nos anos 90, os termos da reforma do sistema brasileiro de proteção social
foram redefinidos. Compõe o cenário a maior estabilidade política e democrática, mas

36
também de globalização econômica, avanço da hegemonia neoliberal e queda do
Estado de bem-estar social. Assim, as políticas públicas e sociais são palco de lutas
e jogos de forças entre discursos econômicos focados na redução do Estado e
movimentos sociais e políticos que alertam para a situação ainda mais excludente e
perversa delineada na terceira fase do capitalismo, buscando participação popular
democrática e acesso a condições de desenvolvimento humano melhores. No quadro
internacional, nota-se um novo jogo de forças entre Estado e mercado, em que
organizações multinacionais e conglomerados empresariais, por seu poder
econômico, acabam impondo acordos e exigências aos países, muitas vezes
reivindicando a fragilização de condições de trabalho e menores dispêndios tributários
e sociais, afetando conquistas sociais históricas. Nossos governos, sob forte pressão
financeira internacional, teriam optado por um lado da balança - o do ajustamento
econômico e fiscal. Para Narita (2004),

A opção por um modelo neoliberal limita o papel do Estado que, por meio das
políticas econômicas e sociais, não universaliza os direitos sociais à saúde e
à educação. Isso porque o Estado - democrático e de direito - existe
formalmente, mas de fato, grande parte da população vive sob a condição de
não-cidadania, participando de um contrato social excludente, em um não-
Estado de direito. E, com as reformas do Estado, de cunho neoliberal, torna-
se mais difícil construir um Estado público, democrático e que assegure os
direitos sociais e a cidadania plena a todos (p.26).

No cenário brasileiro, onde os direitos sociais têm ainda cunho embrionário e


cuja história é permeada por governos autoritários, essas conquistas são ainda mais
ameaçadas pelo avanço neoliberal. Em uma década, o Brasil reduziu em cerca de um
quinto a mortalidade infantil e o analfabetismo, mas praticamente não obteve êxito
nenhum na redução da desigualdade social. Em 1999, os 10% mais ricos da
população possuíam renda média 19 vezes maior do que os 40% mais pobres, mesmo
índice de 1992, atestando a permanência da desigualdade. Embora projetos mais
voltados aos problemas sociais brasileiros e ao incentivo da participação coletiva em
saúde e educação, até pela criação de órgãos geridos pela população, como

37
Conselhos Tutelares e de Saúde, tenham tido êxito em certos aspectos, a estrutura
geradora de más condições de desenvolvimento humano e a ação focal do Estado
acabaram dificultando a reversão do quadro de miséria e exclusão da maioria da
população. Desse modo, programas como os de Saúde da Família, de Agentes
Comunitários, de Aleitamento Materno e Atenção Materno-Infantil favoreceram a
redução da mortalidade infantil e programas de incentivo à permanência ou volta à
escola, à educação de adultos, de Livro Didático e Merenda Escolar permitiram a
redução do analfabetismo. Todavia, os índices de pobreza e desigualdade apontam
para os limites das políticas sociais, enredadas em problemas estruturais de duração
secular, agravados atualmente pelo desemprego, a instabilidade do trabalho e a
redução da renda das famílias.
Junto a essas questões, há a distorção dos mecanismos de participação
conquistados na década de 80. Sobretudo nas políticas de educação, assistência
social e saúde, os últimos quinze anos registram um elevado grau de alterações e
inflexões nos programas, afetando desde concepções até financiamento, modo de
operação, organização e estilo de gestão. Projetados para o conjunto das áreas
sociais, os dados registram relevantes mudanças nas metas, orientações e eixos.
Ainda assim, há ganhos para a gestão democrática, cujas diretrizes na Constituição
permitiram a formação de conselhos populares e cuja execução em saúde e educação
tem constituído os melhores resultados nestas áreas.

Fonte: www.rneducacao.com

38
Administração escolar democrática: questões e desafios em educação

A escola serve ao Estado porque é organizada, controlada e fornecida por ele.


Ela pode servir à população se desenvolve consciência crítica da realidade em que se
insere, reconhecendo, refletindo e transformando os centros de poder e exploração
no nível científico, cultural e tecnológico. Seria preciso repensar, assim, noções de
gestão pública e de gestão escolar, construindo novas diretrizes para uma prática de
gestão atenta à transformação social. O caráter conservador da teoria e prática da
Administração Escolar no Brasil leva os estudos a proporem extremos: ou a defesa
das condutas da empresa capitalista ou a negação da necessidade de administração
escolar. O primeiro ponto de vista defende que

Diante da necessidade de se promoverem a eficiência e a produtividade na


escola, não há razão para que esta, entendida também como organização,
não possa pautar-se, na consecução de seus objetivos, por procedimentos
administrativos análogos àqueles que com tanto êxito alcançam na situação
empresarial (HORA, 1997, p.12,13).

Já a segunda posição é contra qualquer tentativa de organização escolar


burocrática, reagindo ao caráter autoritário das relações sociais contemporâneas,
devido à histórica cultura empresarial em gestão, na qual a maioria dos estudos
considera o modelo empresarial capitalista como ideal de gestão escolar. Paro (2002)
aponta certas diferenças dessas instituições, mostrando que é impossível colocá-las
no mesmo patamar. Quanto aos objetivos, a escola visa fins de difícil mensuração,
enquanto a gerência capitalista visa produzir um bem ou serviço determinado. Além
disso, a aula é uma atividade em que se buscam resultados contínuos: o educando
apropria-se de um saber que o leva à sua transformação prolongada por toda vida. É
inviável medir prontamente o alcance dos resultados, assim como não há um
mecanismo de sanção efetivo, já que quem provê e regula a escola é o Estado e não
se pode automatizar a educação para otimizar sua produção: a mão de obra na escola
é item permanente. A escola é, ainda, uma instituição prestadora de serviço onde o

39
aluno não é apenas beneficiário (como o cliente capitalista), mas também participante
sujeito e objeto da educação. Ele é a matéria prima (que se altera no processo), mas
não pode ser selecionado como nas empresas. A aula é produzida e consumida ao
mesmo tempo e as relações escolares, mesmo no trabalho de seus agentes, não se
pautam pela produção de lucro. O trabalho pode ser produtivo para o empregador,
mas não para o aluno.
Hoje, também a gestão escolar é similar à gerência capitalista, referida ao
comando administrado do trabalho alheio. A decisão final é do diretor, que está no
topo da hierarquia, responsável pela supervisão das atividades, que têm funções
específicas, facilitando seu controle. Além de pressões de órgãos superiores, todo o
corpo escolar (professores, alunos, pais, funcionários) cobra do gestor, que tem de
conciliar interesses de ambas às partes, inclusive naquilo que não tem domínio direto
(recursos, por exemplo), e quando tais solicitações não são ouvidas, sua imagem se
estigmatiza como autoritário. Nesse quadro, o diretor da escola:

Passa a assumir duas ordens de funções, em princípio, inconciliáveis: como


educador, ele precisa cuidar da busca dos objetivos educacionais da escola;
como gerente e responsável último pela instituição escolar, tem de fazer
cumprir as determinações emanadas dos órgãos superiores do sistema de
ensino que (...) acabam por concorrer para a frustração de tais objetivos. Tais
órgãos bombardeiam a unidade escolar com um número enorme de leis,
pareceres, resoluções, portarias, regulamentos, etc. assoberbando as
atividades do diretor, que se vê, assim, na contingência de dedicar parte
considerável de seu tempo ao atendimento de formalidades burocráticas.
Tais formalidades aparecem de forma ainda mais embaraçosa quando se
interpõem como obstáculo à solução dos múltiplos problemas que o diretor
deve enfrentar em seu dia-a-dia, principalmente daqueles relacionados à
escassez de recursos de toda ordem (...). Envolvidos, assim, com inúmeros
problemas da escola e enredado nas malhas burocráticas das determinações
formais (...) o diretor se vê (...) tolhido em sua função de educador, já que
pouco tempo lhe resta para dedicar-se às atividades mais diretamente ligadas
aos problemas pedagógicos no interior de sua escola (PARO, 1996 p. 133).

Os percalços da gestão escolar por sua vinculação ao sistema capitalista


promoveram críticas e questionamentos às formas como a gestão escolar vem se
dando. Paro (2002) avalia essas duas posições extremadas como equivocadas por

40
não analisarem os determinantes sociais e econômicos da gestão escolar, mostrando-
se acríticas à realidade concreta. A primeira eleva à universalidade um tipo de gestão
socialmente marcado e a segunda considera essa gestão geradora de todo
autoritarismo. Esse debate trouxe questões acerca de uma gestão escolar
democrática, ampliando noções sobre limites e aberturas da gestão participativa.
Nesse sentido, pode-se resgatar a ideia de gestão que, se no capitalismo se liga à
área econômica, tem de fato origem política e precisa ser compreendida nessa esfera.
Arendt (2001) aponta como atributo central da esfera política a ação conjunta, que
consiste no diálogo e no pensamento no plural. Nessa acepção, gestão refere-se à
participação que atua em problemas da formulação de políticas públicas, em especial
nas políticas sociais e de educação e saúde. Paro, por exemplo, propõe uma gestão
escolar voltada a mudanças sociais. Para isso "nem a Administração será vista apenas
enquanto conjunto de princípios, métodos e técnicas (...) nem a escola será tomada
como entidade autônoma para o qual apenas se buscarão os procedimentos
administrativos mais adequados" (1996, p.13).
Assim, compreende-se que a transformação social inicia-se pela análise de
antagonismos e desigualdades sociais, pela conquista de espaços mais amplos na
sociedade civil, visando à transformação do Estado em prol de uma relação menos
coercitiva e mais democrática e convergente com o interesse popular. A educação
escolar pode servir de artifício em poder dos grupos sociais dominados, visando à
autonomia, como aponta Freire (1993): a apropriação crítica do saber historicamente
forjado leva à emancipação cultural, desconstruindo relações de opressão. Hoje, a
educação atenta para os requisitos intelectuais ligados ao treino de funções de
produção, em prejuízo da autonomia e do pensamento crítico, pois o saber veiculado
é guiado por critérios econômicos de produção e consumo, não por metas de
ascensão social coletiva. O papel do educador voltado a mudanças sociais é valorizar
sua ação, questionando, pesquisando e refletindo a realidade para entendê-la e
superá-la. Para mudanças efetivas na escola, deve-se incluir a produção pedagógica,
além de uma gerência que explicite os alvos que deseja alcançar e perceba os reais
interesses da população que atende. O gestor deve estar cônscio da ação tecnocrática

41
de seus órgãos superiores, questionando a função de mero burocrata, obrigado a
fazer cumprir programas educacionais que muitas vezes desconsideram a realidade
e necessidades da comunidade escolar. O ideal de gestão que separa concepção e
execução leva a ações centralizadoras e autoritárias, voltadas ao controle e inspeção
de atividades. Isso gera uma ação fragmentada do professor, na qual ele efetua uma
prática pedagógica planejada por especialistas incumbidos ainda do seu controle,
cerceando o saber constituído nas relações forjadas em sala de aula e desvinculando
sua própria habilidade de pensar e tecer relações favorecedoras da autonomia com
os alunos.

Fonte: zelmar.blogspot.com.br

É preciso também reconhecer o hiato entre formulação de políticas sociais e


sua implantação, vinculado tanto ao modo muitas vezes técnico de formulação das
políticas, que desconsidera as experiências e relações concretas nas quais a ação
ocorrerá, quanto à implantação das políticas, que amiúde desobedece à formulação,
seja pela má gestão, por mudanças de governo ou pelo enfoque em índices
quantitativos, desfavorecendo caminhos qualitativos de progresso social. Um exemplo
é o sistema de progressão continuada, inserido no conjunto da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996. As mudanças centrais se dão na
avaliação: criação da recuperação paralela ao ensino através de classes de
42
aceleração; apoio a meios de avaliação diversificados e flexíveis; auto avaliação.
Tornar a avaliação "formativa" e "diagnóstica", focalizando o processo de ensino-
aprendizagem e não apenas o produto final, é a intenção da proposta segundo o
Conselho Estadual de Educação (CEE). As mudanças não se restringem à avaliação,
mas envolvem uma "alteração radical" da organização da escola, da proposta
pedagógica e da concepção de educação, segundo o CEE. Embora seja, sobretudo,
uma diretriz pedagógica, baseada na ideia de ciclos da aprendizagem, que questiona
o processo de ensino-aprendizagem tradicional, ela muitas vezes permite a promoção
automática de alunos. Assim, o processo de implantação do sistema contraria seu
conjunto de propostas, e problemas de aprendizagem são protelados para anos
seguintes, maquiando estatísticas de repetência escolar para atender exigências das
instituições internacionais.
No processo de municipalização do ensino fundamental, intensificado pelo
governo federal a partir da década de 1990 também há este problema. Tornando o
ensino fundamental atribuição das prefeituras, e não mais do governo estadual,
buscava-se aumentar a participação dos cidadãos na elaboração, implementação e
avaliação do processo de ensino-aprendizagem. Na realocação do centro de poder
para secretarias municipais, se permitiria que as negociações ocorressem
diretamente, pois os integrantes do processo – professores, diretores, alunos e pais -
estão mais próximos à administração municipal em comparação ao governo estadual.
Mas essa política mostra também dificuldades em sua implementação, pois a
municipalização criou uma instabilidade profissional para os professores: aqueles que
reivindicam melhores salários correm o risco de serem transferidos para escolas
distantes de suas residências ou serem demitidos. Outra diretriz referente à
municipalização do ensino que apresenta obstáculos está no Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef),
criado em 1998. Com esse fundo, o governo federal impeliu os municípios a se
responsabilizar pelo ensino fundamental com liberação de recursos para a educação,
mas não os obrigou a tal compromisso. O Ministério da Educação avaliava que o
Fundef aumentaria o número de matrículas no ensino fundamental, os salários dos

43
professores e a oferta de vagas, favoreceria os planos de carreira municipais e a
capacitação de professores leigos presentes no sistema de ensino, auxiliando a meta
da LDB de permitir que, até 2006, todos os professores tivessem formação média ou
superior. Porém, houve resistência ao processo, pois a transferência do ensino se deu
de modo hierarquizado, sem discussão ampla junto aos docentes e reorganização
conjunta dos sistemas de ensino, criando conflitos e entraves. Além disso, nem
sempre recursos materiais e humanos se fizeram presentes como deveriam, faltando
profissionais preparados para fazer a capacitação de professores, por exemplo. Além
disso, o Fundef se tornou atrativo para gestores municipais mais preocupados em
receber recursos do que em investir na qualidade do ensino. Por lei, o município deve
aplicar 25% da receita na educação, oriundos do Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços (ICMS), do Fundo de Participação dos Estados e dos
Municípios, e de parte do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que devem
ser gastos na manutenção e desenvolvimento do ensino público e na valorização do
magistério.
Essa dificuldade em implantar políticas vincula-se ao escasso diálogo entre
legisladores, secretarias de ensino, professores, diretores e alunos. Na passagem da
formulação à implantação, certas medidas tomadas no tocante ao sistema de
progressão continuada pelas Secretarias e Conselhos de Educação acabam por
tornarem-se prescritivas e normatizadoras. A falta de participação na criação e
viabilização das políticas educacionais tem levado ao desencontro entre a escola e a
execução de diretrizes educacionais da legislação. As condições de trabalho dos
professores - jornadas fragmentadas, contrato por hora aula, alta rotatividade e baixos
salários – revelam falta de iniciativa para prestar condições de realização de um
trabalho coletivo. Igualmente, políticas de capacitação para professores muitas vezes
ocorrem prescrevendo inovações, relacionando competências que os educadores
devem aprender e aplicando cursos de treinamento. Tais medidas, pautadas na
racionalidade técnica e na lógica dedutiva que pressupõe que as normas criam a
realidade social, desconsideram o que é criado e vivido na própria escola e buscam
modificar a escola por meio de ações externas e alheias a seu contexto cultural. É

44
preciso, ao contrário, ponderar os modos pelos quais, diante da legislação e das
condições presentes, os professores têm pensado seu papel social e constituído suas
práticas, considerando os sujeitos sociais integrantes do processo de produção de
saberes, criação e transformação das práticas.

Administração em Saúde: avanços e percalços

A reforma do setor saúde esteve em voga no plano internacional na década de


90. Tendo como conjuntura o aumento do nível de gasto público em saúde,
contrapondo-se às dificuldades decorrentes dos distintos ajustes nas economias
nacionais na esteira da agenda neoliberal, que limitava a expansão destes gastos,
consolidou-se um conjunto de pressões sobre os governos nacionais no sentido de
alterar e o perfil das políticas públicas setoriais. No cenário comum aos países
ocidentais, evidenciam-se ainda questões relativas a mudanças demográficas, em
especial aquelas decorrentes do envelhecimento da população e do declínio imediato
ou futuro da população economicamente ativa, levando a um aumento da demanda
por serviços de maior complexidade e custo, que tornaria cada vez mais problemática
a capacidade de resposta dos serviços (EUROSTAT, 2000).
Estas questões tornam-se mais graves nos países situados na periferia do
sistema financeiro e econômico-produtivo. Submetidos a um desastroso passado
inflacionário, mesmo ao obter condições de estabilidade da moeda o fizeram por meio
de estratégias macroeconômicas de subordinação ao capital internacional,
endividamento e reforma neoliberal da estrutura socioeconômica, dificultando um
desenvolvimento econômico sustentado e meio de investimento público e social. No
Brasil, antes da constituição de 1988, apenas aqueles com carteira de trabalho
assinada, e assim associada ao antigo INPS, podiam utilizar a saúde pública. Esta
conexão entre saúde e trabalho, regulada legalmente desde 1923 e que já exprimia
uma resposta a movimentos populares urbanos, ligava-se à necessidade de, de um
lado, garantir meios mínimos de sobrevivência aos trabalhadores e, de outro lado,
discipliná-los frente a formas altamente predatórias de disposição do trabalho

45
presentes na sociedade brasileira (MACEDO, 2005). Esse consistia num modelo de
saúde e seguro social não-universalizante e assistencialista, voltado a grupos
assalariados, de maior peso econômico e articulação política. Além disso, a visão
centralizadora das políticas de saúde, justificada exatamente por entraves sociais e
econômicos, reforçava a exclusão da população na tomada de decisões.
Essa situação se alterou mais sensivelmente apenas nos anos 80, quando
movimentos sociais emergentes no processo de redemocratização firmaram a luta
política por soluções aos problemas sociais brasileiros. Isto levou à reorganização da
gestão na saúde, pela Proposta de Emenda Constitucional da Saúde (PEC 29), que
definiu a participação da União, Estados e Municípios no financiamento de ações e
serviços públicos de saúde, através da aplicação mínima de recursos fixada por lei. A
PEC 29 foi o passo inicial em direção ao Sistema Único de Saúde (SUS), que declarou
a saúde ―direito de todos e dever do Estado por princípios de universalidade no
atendimento, descentralização, participação da sociedade, equidade no custeio e
uniformidade de benefícios. Essas diretrizes constitucionais permitiram maior
participação popular, em níveis integrados e descentralizados nos municípios e
estados e na regionalização do atendimento. Mas enquanto a concepção e criação do
SUS se desenrolaram na conjuntura política favorável da redemocratização, sua
regulamentação, em 1990, deu-se num período marcado pelo acirramento da crise
fiscal e econômica e pelo avanço neoliberal mundial. O presidente Fernando Collor
realizou vetos importantes na homologação das Leis Orgânicas de Saúde, mas foi
possível, pela força do Movimento Sanitário, manter os Conselhos de Saúde,
estabelecidos como:

Órgãos colegiados de caráter permanente e deliberativo, compostos por


representantes do governo, prestadores de serviços, trabalhadores da área
de saúde e usuários, com representação paritária entre os grupos, devendo
atuar na formulação de estratégias e no controle da execução das políticas
de saúde, inclusive nos aspectos econômico e financeiro. Suas decisões são
homologadas pelo chefe de poder legalmente constituído em cada esfera de
governo. (MACEDO, p.36).

46
Esse espaço, aliado às Conferências de Saúde convocadas periodicamente
pelo governo para propor diretrizes na área, permitiu a inserção popular na gestão em
saúde. No início dos anos 90, proliferaram-se Conselhos de Saúde no país, sendo
criados dois mil entre 1991 e 1993 (MACEDO, 2005). Pela avaliação da
descentralização do SUS, a IX Conferência Nacional de Saúde de 1992 buscou
ampliar a descentralização para além do repasse de verbas pela gestão municipal da
saúde, visando à participação social e o respeito a diferenças regionais. Assim, foi
regulamentado um processo descentralizador que, pela variedade econômica, social
e populacional dos municípios brasileiros, ocorreria em níveis de gestão (incipiente,
parcial e semiplena), e apenas no semipleno os municípios teriam o encargo integral
da gestão. Em 1998 foi criado o Piso de Atenção Básica (PAB), em que os recursos
seriam proporcionais à população municipal, permitindo mais estabilidade na
elaboração de ações locais de saúde. A descentralização ocorreu de modo negociado
e gradual, atrelado à adesão dos municípios, gerando níveis de gestão heterogêneos,
articulados por Comissões Ingestores Tripartites e Bipartites, com integrantes de
distintas esferas de governo.
O processo apenas se dinamizou com a X Conferência Nacional de Saúde,
num cenário de negociações e conflitos entre gestores de várias esferas, que
possibilitou que, em 2000, 98% dos municípios fossem cadastrados em algum nível
de gestão. Isso permitiu a transferência automática de outros recursos além da
assistência médica, como vigilância sanitária e epidemiológica e controle de doenças
transmissíveis, bem como a inverter o modelo assistencialista, pela adoção de ações
como o Programa de Saúde da Família (PSF) e o Programa de Agentes Comunitários
(PACS).

Estas propostas efetivam o princípio da participação e do controle social


através do envolvimento da comunidade no processo de planejamento das
Equipes de Saúde da Família e na programação local, fomentando o exercício
da cidadania pela comunidade junto aos Conselhos Locais de Saúde
(MACEDO, 2005, p.41).

47
Todavia, embora a legislação afirme a inserção social, leis municipais que
retiram o cunho deliberativo dos conselhos, a ausência de dotação orçamentária
própria a estes e de informações sobre a gestão de governo os tornam órgãos de
mero sentido formal ou consultivo, obstruindo a participação democrática de fato
(FORTES,1997). Além disso, em municípios marcados pela desigualdade de acesso
a recursos, ao poder e à informação, "a implementação da política de saúde do SUS
é marcada por procedimentos clientelísticos, patrimonialistas, associados ao tráfico
de influências no exercício da política pública e muito arraigados na cultura política e
institucional" (GERSCHMAN, 2004, p.1677). Nesse quadro, o privilégio que alguns
vereadores dão à sua base eleitoral e a escolha da pauta dos conselhos por
secretários de saúde mostram que, em contextos altamente estratificados, apenas
legislação e intervenção do poder público não podem garantir direitos básicos de
cidadania. Nos municípios onde a participação popular se efetivou, como Londrina
(LOPES & ALMEIDA, 2001), houve importantes avanços, inclusive com a injeção de
recursos municipais para além das diretrizes estaduais e federais. Em outros, nota-se
que a instituição de programas e práticas de saúde é formulada apenas no nível
federal e efetuada pela gestão municipal apenas como "forma de injetar recursos
externos, principalmente federais, no município" (GERSCHMAN, 2004). Em geral,
notam-se dificuldades relacionadas à falta de estrutura dos conselhos com
participação comunitária e à forte tradição de autoritarismo e centralização do poder
no Brasil, fomentando situações em que o uso dos conselhos para fins eleitoreiros, o
endosso de decisões governamentais não discutidas e a falta de clareza sobre
participação social obstruem a gestão democrática. Assim, o controle social sobre as
ações estatais deve decorrer de transformações nas relações entre Estado e
sociedade, com a consciência de que estes espaços são palco de lutas políticas, de
defesas dos direitos de cidadania e de garantia de idoneidade na gestão pública,
permitindo que os movimentos sociais influenciem as políticas públicas para o
atendimento de suas demandas.

48
5 TERCEIRO SETOR NO BRASIL: QUESTÕES JURÍDICAS, ADMINISTRATIVAS
E SOCIAIS

Fonte: cemedmg.wordpress.com

As pessoas jurídicas são criações do direito de Estado para sistematizar


relações de natureza econômica ou social. O Estado constitui o primeiro setor, e lhe
compete fazer vigorar Constituição Federal e realizar os direitos de cidadania, e
pessoas jurídicas com fins econômicos integram o segundo setor. Compõem o terceiro
setor pessoas jurídicas com fins não lucrativos, que podem empreender ações que
beneficiam um círculo restrito de pessoas (um clube, por exemplo) ou empreender
ações voltadas à comunidade. Integram o terceiro setor fundações, associações e
organizações civis, que muitas vezes têm programas patrocinados por verbas públicas
ou captados junto a empresas. O termo foi traduzido do inglês
―third sector‖, oriundo dos EUA, como ainda a expressão ―non profit
organizations (organizações sem fins lucrativos). Há 250 mil organizações da
sociedade civil (OSC ‘s) no Brasil, que empregam cerca de 1,5 milhões de pessoas.
Muitas de suas atividades se dão na área social: educação, meio ambiente, geração
de emprego e renda, saúde, cultura, ciência e tecnologia, etc. As OSC ‘s mais antigas
são de assistência social ligada à igreja católica, como os orfanatos do período
colonial.

49
A emergência do Terceiro Setor no Brasil é um fenômeno das últimas três
décadas, sobretudo com as ONG ‘s a partir dos anos 1980. No panorama múltiplo que
tais entidades hoje expressam, devem-se notar os frágeis limites entre o terceiro setor
e os demais setores. Algumas entidades confundem-se com empresas privadas, ou
se instituem pela pressão de empresas como meio de não contratar funcionários pela
CLT, outras se confundem com o Estado, assumindo funções que concernem ao bem-
estar social. Com afirma Lopes (2004)

Um elemento característico das esferas públicas instituintes tem sido


identificado nas ONG ‘s. Ocorre que esta esfera não é tão pública como
parece, à primeira vista, visto que as ONG ‘s se articulam em torno de
interesses públicos, mas regularmente se constituem em uma esfera privada,
visando gerir necessidades públicas específicas ou atuar sobre elas
utilizando recursos advindos geralmente da fonte pública (...). Trata-se de
uma administração oficiosa de negócios públicos, sem mandato ou
representação legal definidos na esfera pública (p. 59).

O Estado, coerente à agenda neoliberal, atualmente delega grande parte da


prestação direta dos serviços de interesse coletivo, efetuados por associações de
usuários, fundações ou organizações não governamentais, sob financiamento estatal.
Nessa conjuntura, o Estado atua como regulador e promotor apenas de serviços
sociais considerados básicos e econômicos estratégicos. Busca-se uma ação apenas
parcial, e gradualmente reduzida, na saúde e na educação, havendo inclusive o
financiamento do Estado a entidades privadas, numa fragilização das relações e
prestação de contas do estado com a população. Além disso, muitas vezes as ONG
‘s se voltam à preservação de interesses parciais, nem sempre da população de baixa
renda. Lopes (2004) relata vários casos de ONG‘S que se organizam para propor
diretrizes políticas condizentes com interesses da classe média à qual seus
integrantes pertencem, prejudicando interesses da população mais pobre. Essa
difusão das políticas toma impulso pelas mudanças promovidas na economia
neoliberal. Com a reforma do estado, torna-se frequente a execução pelo terceiro setor
de funções antes promovidas pelo Estado, muitas vezes com pagamento deste,

50
instituindo relações de instabilidade econômica e dependência institucional nas
organizações, que a despeito da expansão do setor em grande parte sofrem crise de
recursos. Tais relações podem intervir na qualidade, reduzir ou fragilizar ações sociais,
condições e vínculos de trabalho, contribuindo para compor a agenda neoliberal de
enxugamento do Estado. Também a globalização da economia com a fragilização de
vínculos trabalhistas e a crescente contratação de empregados como pessoas
jurídicas ou associações profissionais leva ao uso dos dispositivos jurídicos do terceiro
setor de modo desviado da função original.
Numa conjuntura de organização recente e relações de dependência com
empresas privadas e com o Estado numa sociedade capitalista como a brasileira, as
OSC ‘s enfrentam dificuldades e ambiguidades no tocante à sua organização,
profissionalização e seu papel social. Por um lado, a história de tais organizações, em
grande parte vinculada ao voluntarismo e a instituições religiosas, dificulta a
profissionalização e organização de informações. Por outro lado, o próprio quadro
social, marcado pelo discurso econômico neoliberal e a organização empresarial
capitalista, favorece a adoção deste modelo como modo hegemônico de formação das
ONG‘s. Cabe ressaltar, nesse contexto, a ligação entre o crescimento das ONG‘s no
Brasil e o período de redemocratização, quando diversas organizações civis se
formaram na luta por direitos sociais, para resgatar o caráter político e vinculado à
cidadania pelo qual a expansão de organizações civis se pautou.

Fonte: www.envolverde.com.br
51
Desse modo, para permitir um arranjo coerente, sólido e profissional, é
relevante delinear metas, meios e instrumentos das organizações civis, bem como
definir o público alvo e a comunicação da organização com este e informar com
qualidade potenciais financiadores: os próprios beneficiários, empresas, órgãos de
governo ou fundações. Todavia, é preciso diferenciar a gestão civil da gestão
empresarial e do pensamento em termos da ação como um "produto".
O trânsito por várias linguagens e culturas de setores com que a organização
se relaciona, como empresas financiadoras capitalistas, órgãos governamentais de
cultura quantitativa, própria à escala de políticas públicas e usuários que podem cobrar
serviços não pode obliterar uma gestão democrática. Responder a esses desafios
implica clareza do papel da organização, pela definição da missão que orientará o
planejamento de longo prazo, pelo estabelecimento coletivo de metas e meios de
realização, de avaliação de atividades e arranjo da contabilidade e dos custos. Enfim,
uma transformação das instituições, numa ação reflexiva que desenvolva alternativas
de gestão vinculadas, de um lado, à cidadania e participação coletiva e, de outro lado
à gestão profissional e social das ações. Certas caracterizações previstas em lei
auxiliam à compreensão da função social do terceiro setor.
Para as ONG ‘s, há certificações que atuam com distintas regulamentações e
níveis, nas esferas federal ou estadual. As certificações públicas conferidas pela lei
apenas exprimem um atributo da instituição, não garantindo isenção tributária, que
pode ser cassada por órgãos fiscalizadores diante de infrações às leis que
concederam os benefícios fiscais. Os recursos de uma entidade beneficente provêm
inicialmente de doações. Porém, a entidade poderá recorrer a recursos públicos,
efetuando convênios, parcerias e solicitando auxílios e subvenções a governos
municipal, estadual e federal, autarquias e sociedades de economia mista, além de
crédito no BNDES, isenção de tributos, caso seja reconhecida por filantrópica, e
recursos de órgãos internacionais. A entidade pode ainda agregar a seu quadro
associativo um investidor para causas sociais que, embora seja uma opção para
captação de recursos, leva à situação de fragilidade e submissão da instituição a

52
interesses particulares. As empresas que financiam sociedades civis obtêm vantagens
em sua imagem publicitária, propagando preocupação e envolvimento com questões
sociais, bem como na isenção fiscal conferida pela lei de Responsabilidade Social
Empresarial, pois a entidade que tem Certificação de Utilidade Pública Federal pode
fornecer recibo autorizando a empresa a deduzir a doação como despesa operacional,
até o limite de 2% do lucro operacional.

Concessão de Títulos Jurídicos No Terceiro Setor: mecanismos de


regulamentação na ação social

O título não designa uma pessoa jurídica, mas uma qualificação que pode ser
conferida, suspensa ou retirada. A concessão de títulos jurídicos a entidades do
terceiro setor visa distinguir entidades qualificadas em comparação às comuns,
inserindo as primeiras num regime jurídico de vantagens frente ao Estado. Busca-se
ainda padronizar o tratamento jurídico de entidades que apresentem atributos comuns
e orientar o controle das atividades das entidades, tanto pela concessão do título
quanto pela suspensão e cancelamento. Essa organização, em princípio, pode ser
vantajosa, pois entidades que recebem o título e passam a possuir certificação de
idoneidade têm benefícios garantidos em lei e recebem enquadre jurídico distinto do
comum. A titulação evita ainda que se criem vantagens isoladas em favor de entidades
que visem o interesse coletivo.
Mas existem desvantagens nessa concessão de títulos jurídicos, como na
certificação indevida, por falta de critérios, favorecimento político ou fraude. Há
também desvantagem na insegurança jurídica que acompanha a concessão, pois a
manutenção do título se condiciona ao cumprimento de exigências aferidas
periodicamente pelo governo, e este mecanismo de controle gerencial não possui
previsão jurídica clara nem normas que assegurem às entidades garantias contra o
exercício abusivo do controle. A entidade qualificada está então sujeita a desvios,
inclusive pela corrupção. Algumas dessas desvantagens se observam em situações
relativas ao título de utilidade pública.

53
Crise do título de utilidade pública

Entidades do terceiro setor obtêm o título de utilidade pública, um dos mais


antigos da legislação, para efetuar ações de fim público como parceiras do Estado.
Devido à formulação antiga, por um lado, a maioria das leis que regulam parcerias
entre Estado e terceiro setor têm este título como referência, e por outras suas
normas, dispostas na Lei n. 91, de 1935, e pouco alteradas ao longo do tempo,
tornaram-se antiquadas, havendo críticas sobre sua utilidade, atualidade e
pertinência. No quadro neoliberal, com aumento de entes "públicos não estatais".
(CUNIL GRAU, 1996; PEREIRA, 1996; 1997), pelo cumprimento de requisitos que
visam, porém muitas vezes não garantem a salvaguarda do interesse público, a
cooperação é lícita e mesmo estimulada na Constituição (MODESTO, 1997), levando
à preocupação ainda maior com a gerência do Estado quanto às parcerias com
entidades privadas. Agravando a situação, transparência e clareza de propósitos na
relação entre Estado e organizações nem sempre encontram ressonância na
legislação.
As leis federais sobre utilidade pública, deficientes e lacônicas, têm facilitado o
desvirtuamento do terceiro setor no país, pois deixam vários temas sem cobertura e
sob o comando de autoridades administrativas, favorecendo a proliferação de
entidades inautênticas e de fachada, atadas a interesses econômicos, políticos ou de
grupos restritos ou ainda de processos de corrupção no setor público. A ausência de
distinção clara entre entidades de fins ou favorecimento mútuo (que beneficiam um
círculo restrito de sócios, inclusive pela cobrança de contribuição em dinheiro) e
entidades de fins comunitários, fins públicos ou solidariedade social (voltadas à
comunidade em geral, sem perfilar vínculos jurídicos especiais) agrava ainda mais tal
situação, qualificando de igual modo creches, clubes, escolas comunitárias e privadas,
etc. Pelo título Utilidade Pública, a lei autoriza aos dois tipos de entidade um
tratamento de renúncia fiscal, previsão de subvenções sociais, contratação direta etc.,
e deixa de prever formas de controle além da exibição periódica de documentos. Esse

54
cunho indiferenciado e a debilidade do sistema de controle facilitam abusos, como no
"escândalo do orçamento", esquema de corrupção descoberto por acaso, no qual
parlamentares utilizavam entidades filantrópicas de fachada, que recebiam recursos
públicos por sua ação parlamentar sem nenhum compromisso com ações sociais.
Entidades como estas já foram inclusive chamadas por Leite (1997) como
"filantrópicas". Este contexto levou a discussões dentro e fora do Estado, propondo
formas de reconfigurar o título de utilidade pública. Recentemente, duas propostas
tornaram-se leis (Lei n. 9.637/98 - Organizações Sociais; Lei n. 9.790/99 -
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), criando novos títulos jurídicos.

O título de entidade filantrópica


Uma entidade filantrópica é uma sociedade sem fins lucrativos (associação ou
fundação), criada com propósitos como: assistir à família, à velhice, à infância, à
maternidade, à habilitação e reabilitação de portadores de deficiência, etc. Para ser
reconhecida legalmente como filantrópica, a entidade precisa comprovar uma atuação
voltada aos mais desprovidos por no mínimo de três anos, sem distribuir lucros nem
remunerar seus dirigentes. Deverá possuir os títulos de Declaração de Utilidade
Pública e o título de Entidade Beneficente de Assistência Social, do Conselho Nacional
de Assistência Social (CNAS). Obtendo o título de entidade filantrópica, esta pode
receber isenção tributária após preencher outros requisitos da Lei, em especial aplicar
ao menos 20% de sua receita em obras sociais. A entidade, tendo utilizado recurso
público, passa a possuir compromisso com o erário, ou seja, passa a ter interesse
público e a obrigação de destinação comunitária do recurso público. Assim, caso
encerre as atividades, deve reverter o patrimônio a uma instituição congênere, senão
irá caracterizar enriquecimento ilícito. Pelo decreto nº. 3.048/99, entidades
filantrópicas devem ainda entregar no INSS anualmente um relatório, o Plano de Ação,
que visa informar o órgão sobre os projetos sociais a serem efetuados, bem como dois
outros relatórios sobre as atividades sociais efetuadas no ano anterior, chamados
Relatório de Atividades. A não entrega dos relatórios no INSS e no Ministério da
Justiça implica sanção à entidade, como multas e a perda da isenção fiscal e da

55
Certificação de Utilidade Pública Federal e do Certificado de Filantropia.

O título de organização social (OS)

A Lei n. 9.637/98 criou título Organização Social (OS) como uma resposta à
crise do título de utilidade pública. A denominação organização social designa um
título conferido a entidades sem fins lucrativos que atendem requisitos de constituição
e atuação que visam assegurar o interesse público e fixar garantias para uma relação
de confiança e parceria entre a entidade e o Poder Público. Embora tanto o título de
Utilidade Pública quanto o de Organização Social (OS) afiancem benefícios e
controles inexistentes a outras pessoas jurídicas privadas (como vantagens tributárias
e fiscalização pelo Ministério Público), o título de OS confere vantagens e sujeições
inexistentes para entidades de Utilidade Pública. Entre estas está a publicação no
Diário Oficial da União do relatório de execução do contrato de gestão, o uso de bens
materiais e recursos humanos de órgãos extintos do Estado, e a absorção de suas
atividades, contratos e seus símbolos designativos, seguidos do símbolo OS.
O título de organização social busca corrigir desvios do título de utilidade
pública, restringindo a cessão a entidades de fins comunitários, evitando certificar
entidades de favorecimento mútuo. Assim, a lei dispõe regras para compras e salários;
exige um colegiado superior composto por fundadores, representantes da
comunidade e do Estado; prevê auditorias; exige para fomento público um contrato de
gestão com o Estado, que define tarefas a cumprir; responsabiliza os dirigentes pelo
mau uso de recursos públicos, entre outros critérios ausentes no título de utilidade
pública. Mas isso não significa que a legislação de OS seja imune a desvios: este título
foi concedido a apenas duas entidades no nível da União e, em ambas, a qualificação
foi precedida da extinção de entidade ou órgão público, recaindo em entidades com
pouco tempo de existência, sem ações comprovadas nem capital próprio, salvo o
capital humano. Assim, o título acabou atuando como meio de enxugamento do
Estado, com favorecimento privado.

56
Essa situação revela lacunas na lei, como falta de exigência das entidades
candidatas de um tempo mínimo de atuação comprovada em sua área de ação. Em
leis estaduais sobre o título de OS, essa exigência tem sido incluída (v.g, Lei
Complementar n. 846/98, do Estado de São Paulo, exige atuação de mais de cinco
anos). Há ainda lacunas na não exigência de patrimônio ou qualificação técnica e na
não exigência de contraprestação por um percentual de serviços gratuitos diretamente
voltados ao cidadão nos contratos entre Estado e OS.

O Título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP)

A lei sobre o título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público


(OSCIP – Lei n. 9.790/99) concede isenção fiscal a entidades de confirmada ação
social e transparência. A entidade sem fins lucrativos deve preencher requisitos como:
promover a cultura, educação, segurança alimentar, meio ambiente, saúde, combate
à pobreza, etc., e manter uma gestão de transparência financeira. O Ministério da
Justiça avalia os requisitos, reconhece e expede o título de OSCIP. A lei permite
pagamento aos dirigentes e prioriza a OSCIP como parceira de ações efetuadas pelo
Estado. Criada na reformulação da lei de utilidade pública, a lei tem alguns itens
semelhantes à lei de Organizações Sociais (OS): restringir a distribuição de lucros
pela entidade, exigir identificação de áreas sociais de ação e um conselho fiscal para
os gestores, exigir o caráter público de documentos, realizar auditorias externas, etc.
Prevê pagamento restrito a salários do mercado e responsabilização dos dirigentes e
desqualificação da entidade em caso de fraude ou atuação ilícita. O título inova no
aval do cunho social da entidade, com exigências nas quais a lei identifica aquelas
que não devem receber o título, exige especificação dos candidatos potenciais e
observância de condutas das Normas Brasileiras de Contabilidade. Em educação e
saúde, exige prestação de serviços gratuitos e proíbe a participação em campanhas
político-partidárias ou eleitorais.
A lei exige atuação por pelo menos um exercício financeiro, por documentos
como o balanço patrimonial e demonstrativo do resultado do exercício. O novo título,

57
porém, admite por apenas dois anos a cumulação do título de OSCIP com outros
títulos jurídicos para entidades do terceiro setor, após o que a entidade deve renunciar
outras qualificações para manter o título de OSCIP. Como a maioria dos benefícios
para entidades do terceiro setor supõe o título de utilidade pública, pode-se afastar
deste título entidades idôneas pouco dispostas a perder vantagens atuais por
benefícios incertos, mantendo o financiamento nas bases menos claras do título de
Utilidade Pública. A lei cria ainda um paradoxo: nos dois anos iniciais, entidades
duplamente qualificadas (Utilidade Pública e OSCIP) têm mais vantagens que
entidades qualificadas há mais tempo como OSCIP. Evitando tais lacunas, a lei de
organizações sociais é exigente ao qualificar entidades novas, mas não exige perda
de benefícios, pois entidades que obtêm o título OS têm também o título Utilidade
Pública, tornando o título OS um atributo adicional. Há um cuidado nas novas leis para
reduzir a margem de manobra de autoridades administrativas na cessão do título,
alçando um antigo problema do título Utilidade Pública. Mas as leis deixam brechas
relevantes, como a falta de disciplina mais detalhada do processo de cassação do
título, omissões sobre a liberação financeira dos recursos públicos vinculados às
parcerias em ambas as leis. No geral, deve-se avaliar que a concessão de títulos,
embora vise à idoneidade das entidades, participa de relações público-privadas
passíveis do prejuízo público, e não foram instituídas no quadro de um plano articulado
e democrático de atenção social do Estado. Nesse sentido, Oliveira & Haddad (2001)
lembram que:

No Brasil, a legislação que regula as OSC‘s é um cipoal de normas construído


a partir do Código Civil de 1916, ao sabor das circunstâncias políticas e
lobbies setoriais. Não existe uma tipologia das entidades sem fins lucrativos,
mas frouxas categorias criadas por leis sucessivas para atribuir privilégios a
grupos bem articulados de organizações (...) também vem crescendo o
interesse de parte dos grupos empresariais e do capital, em geral, nos rumos
e no controle das orientações e do atendimento educacionais. Há uma
proliferação de institutos e fundações de empresas privadas, constituídas
muitas delas com base nas isenções fiscais, quase todas mantendo a
educação como uma das suas atividades principais. A forte presença do
capital no plano das ações sociais e da educação, em particular, demonstra
(...) um compromisso social de parte do capital (...). Mas, ao mesmo tempo,
aponta para um crescente descomprometimento do setor público com a

58
educação, correndo-se o risco de rompimento de um dos aspectos mais
importantes na construção da democracia social brasileira. (p. 81).

6 TRANSFORMAÇÕES NA FAMÍLIA: SUA RELAÇÃO COM O TRABALHO, A


CULTURA E A SOCIEDADE

Fonte: www.blogdacidadania.com.br

O estudo da relação família-trabalho aborda o conjunto das influências


recíprocas da dinâmica das atividades produtivas e da dinâmica das famílias,
buscando conhecer de que maneira as transformações e criações de novas atividades
econômicas e novas formas de produção e gestão que afetaram as oportunidades de
emprego de homens e de mulheres, bem como sua atuação no mercado de trabalho,
influenciam e se manifestam na unidade familiar. No Brasil, os períodos de

59
transformação do mercado de trabalho afetaram profundamente a organização da
família. O período do final dos anos 70 e início da década de 80 é marcado pela crise
econômica e a acentuação da entrada da mulher no mercado de trabalho, tanto
cônjuges como filhas, que conhece nova ascensão no início da década de 90. Essa
inserção acompanha as próprias restrições colocadas pelo mercado, quando cresce
o desemprego masculino, indicando rupturas na possibilidade concreta de realização
do padrão de família mantido pelo chefe provedor, especialmente nas conjunturas
recessivas (MONTALI, 2003), e pode expressar transformações nas relações internas
de hierarquia e de poder.
Na década de 90, as mudanças na relação família-trabalho ocorrem sob o
impacto da desconcentração industrial, do desenvolvimento do terciário e da
reestruturação produtiva. O intenso processo de inovações organizacionais e
produtivas acentuou a deterioração das relações de trabalho e o desemprego,
gerando novas estratégias de vinculação das famílias ao mercado de trabalho. No final
dos anos 90, há um discreto recrudescimento do desemprego, que, todavia, é
acompanhado pela queda da renda dos ocupados e da renda familiar per capita,
gerando rearranjos de inserção no mercado de trabalho. Percorre toda a década de
90 o maior compartilhamento ou deslocamento da responsabilidade financeira dos
principais mantenedores tradicionais para outros componentes da família, em especial
para a mulher-cônjuge. Essa tendência se delineia face à redução de postos de
trabalho, sobretudo para ocupações predominantemente masculinas, e às maiores
dificuldades de absorção vividas pelos jovens a partir de 1992, que resultaram em
crescente desemprego dos principais mantenedores das famílias até então (chefes e
filhos masculinos e filhas maiores de 18 anos).
Destacam-se nesse contexto duas importantes tendências. A primeira, no caso
de famílias estruturadas em torno do casal, refere-se à participação crescente da
mulher-cônjuge entre os ocupados da família, à redução do peso do chefe masculino
entre estes e à diminuição da participação dos filhos. Uma exceção entre famílias
conjugais é encontrada naqueles cujos casais têm mais de 50 anos e há filhos
residentes, em que cresceu a participação do chefe masculino entre os ocupados da

60
família de forma concomitante à redução da participação dos filhos adultos, afetados
pelo desemprego. A segunda tendência refere-se às famílias com chefia feminina sem
cônjuge, nas quais a participação da chefe entre os ocupados da família aumenta
devido à menor absorção de filhos e parentes jovens pelo mercado de trabalho. Até o
final da década de 90, há a continuidade progressiva destes rearranjos familiares de
inserção no mercado de trabalho.

Fonte: www.a12.com

Essas alterações afetaram a relação família/trabalho, por exemplo, pela


exigência de escolarização, usualmente maior entre mulheres, e geraram mudanças
das relações hierárquicas na família, como diferenças nas relações de gênero ou
idade em seu interior. Mudanças nas vagas, vínculos trabalhistas e padrões de
contratação, entre outros, tais como o aumento do desemprego e de vínculos flexíveis
que não consideram a legislação trabalhista também afetaram diferentemente os
componentes familiares. Sob o aspecto social, transformações na posição da mulher
no círculo familiar, com sua inserção no mercado de trabalho e um acesso à
escolarização que muitas vezes supera os homens geraram transformações na
imagem representada de paternidade e maternidade. Nesse sentido, constituíram-se
novas formas de articulação entre conjugalidade e paternidade, já bem estabelecidas

61
nos anos 90. As transformações nas práticas e representações da paternidade estão
vinculadas às alterações concomitantes na conjugalidade. Assim, pesquisas referem
uma memória da corte mais velha sobre seus próprios pais que, a despeito de
diferentes nuances, é construída à imagem e semelhança de um austero e respeitável
―homem de família‖ provedor, casado e pai.
As tensões introduzidas na relação conjugal ao longo das duas gerações – pelo
trabalho remunerado das mulheres e por suas reivindicações de equidade, pelos
novos padrões de consumo familiar, pela mobilidade social e por projetos de vida
crescentemente mais individualistas – e a fragmentação observada na imagem do
homem de família, constituem um campo para a coexistência de distintas experiências
de vivência parental, com uma crise desta figura paterna tradicional, sem a
consolidação de um modelo que a substitua.
Assim, pesquisas relatam dificuldades de consagração dessa imagem em
contextos de baixa renda, em que os homens se encontram distanciados do modelo
central da masculinidade. Nesse contexto, as redes de relações e as estratégias
comunitárias de sobrevivência preponderam e, paradoxalmente, há dificuldade para
construir lugares masculinos que não sejam o de provedor, chefe e pai. As ações dos
trabalhadores para aproximá-los do modelo partilhado idealmente vinculam-se a
situações que inviabilizam a efetivação desta demanda, pois os trabalhadores são
marcados por períodos de desemprego e constroem argumentos para legitimar sua
condição de desempregados. Nessa conjuntura, há uma dificuldade de continuar a
reivindicar o lugar tradicional de homem devido a períodos de sustento financeiro pela
esposa, a mãe ou outro membro da família e novas relações de gênero caminham
ambiguamente ao lado de múltiplas situações de providência financeira. Por isso,
trabalhar a dimensão da família brasileira sob a ótica da chefia familiar representa
ainda uma delicada questão epistemológica, na medida em que a maioria dos estudos
sobre família tende a incorporar a perspectiva de gênero como um problema
unicamente feminino.
Dados estatísticos sobre o perfil de homens e mulheres chefes de família
permitem mostrar a permanência de diferenciais em termos educacionais e de acesso

62
aos serviços e bens de consumo coletivos bem como ao mercado de trabalho. Esses
dados mostram também que, embora entrando no mercado de trabalho com
desvantagens no tocante ao vínculo trabalhista mais frágil, as mulheres acabam
desenvolvendo alguma vantagem em relação à manutenção do posto de trabalho.
Observa-se ainda a alteração de relações, ou constituição de novas relações de
família como, por exemplo, o crescente afastamento da tradicional imagem de
dependente do idoso e sua relativa substituição pela de contribuinte ou até esteio do
grupo familiar. Além disso, vêm se ampliando os interesses e horizontes sociais dos
idosos no que se refere a outros grupos e relações, principalmente por espaços
sociabilizadores nos programas de lazer e cultura para a ―terceira idade‖, embora
seja mantida a importância da família.
Outro fator para a análise das relações familiares é a transformação, ao longo
das últimas décadas, na compreensão da homossexualidade, alavancada pela
exposição do preconceito com o fenômeno da AIDS. A crescente organização civil em
torno do respeito à homossexualidade, as resoluções de diversos conselhos
profissionais na área da saúde proibindo sua avaliação como doença e o número
crescente de mortos que deixavam parceiros legalmente sem direitos sobre o
patrimônio muitas vezes construído em conjunto contribuiu para que, nos anos 80 e
90, vários países da Europa legalizassem a união entre pessoas do mesmo sexo. Se
a crise da família vem sendo anunciada há alguns anos, a reivindicação do direito a
ser pai e mãe feita por homossexuais, visto como desdobramento desse novo conjunto
familiar, oferece novos matizes à discussão, referindo o surgimento de novas
organizações familiares que fogem ao padrão tradicional, tal como ocorreu há trinta
anos em relação ao divórcio.
No contexto das transformações na formação, estruturação e dinâmica da
família, permanece seu papel central de ―amortecedor‘ social. Frente aos baixos
salários, à carência de serviços públicos e a outros fatores desfavoráveis, o grupo
familiar se viabiliza ―em decorrência de uma lógica de solidariedade e de um conjunto
de práticas no campo de ação de grupos domésticos, que atuam como unidades de
formação de renda e de consumo, procurando maximizar os recursos à sua

63
disposição‖ (CARVALHO e ALMEIDA, 2003, p. ). Assim, a família mantém sua
importância como espaço de sociabilidade e de socialização, e mudanças em seu
entorno refere-se mais à sua grande capacidade de adaptação frente às
transformações econômicas, sociais e culturais do que a uma pretensa ameaça de
dissolução. Por isto, a família tem sido considerada foco central das políticas sociais,
constituindo o eixo sobre o qual os programas e ações podem possuir maior
efetividade e pertinência.

Família e Políticas Sociais

Nesse capítulo, serão discutidas algumas abordagens no trabalho com famílias,


visando apresentar certos modos de compreensão e organização da ação clínica em
saúde em alguns contextos do atendimento público. Essas ações contextualizadas
não visam abranger todo o espectro do cuidado biopsicossocial em políticas de
assistência pública, mas apenas oferecer referências para refletir sobre modos de
ação diferenciados conforme o contexto e demanda em questão.
Desse modo, a compreensão da assistência em políticas públicas se remete à
compreensão de ações de cuidado como clínicas, que em seu sentido etimológico
refere-se ao cuidado e atenção a outro. De acordo com Lévy (2001), clínica refere-se
à palavra grega kline, e tem o sentido de atenção e cuidado a uma demanda. Esse
modo de compreender a clínica possibilita articular o atendimento multidisciplinar
enquanto múltipla atenção em diferentes direitos da cidadania, tais como saúde,
educação, moradia, etc. Os problemas relacionados a demandas a múltiplos
profissionais – médico, assistente social, psicólogo, educador, terapeuta ocupacional,
agente de saúde, entre outros – estão geralmente associados a uma variada e
imbricada gama de aspectos e problemas na situação de vida da população, tais como
doenças, crises repentinas que rompem a dinâmica familiar estabelecida, dificuldades
de apropriação e pertencimento aos espaços já instituídos de socialização ou cuidado
público (escolas, dispositivos de saúde, associações de bairro, etc.), o contato
cotidiano com problemas da realidade social, tais como o tráfico, situações de

64
violência, desemprego, miséria, etc. Assim, apresentar-se-á alguns trabalhos no
âmbito da saúde e assistência social que usualmente possuem abordagem
interdisciplinar.

Fonte: todahelohim.com

Reintegração Familiar

O trabalho de reintegração familiar se origina na determinação judicial para a


reintegração à família de uma criança residindo em abrigo. Para efetuar tal ação, é
preciso analisar meios pertinentes para alcançar tais objetivos, atentando para as
situações específicas de cada família e constituindo elos de referência por meio dos
quais a família possa sustentar social, econômica, psicológica e institucionalmente, a
situação de reintegração. Nesse processo, é importante analisar o desejo da criança
e da família, e buscando evitar sofrimentos para ambos, numa atitude de escuta atenta
e compreensiva, analítica e avaliativa.
Além disso, para implementar encaminhamentos e intervenções, o técnico
deverá estar atento a suas próprias questões valorativas, visando compreender, de
forma não preconceituosa, as diferenças de articulação e estruturação da família,
sobretudo quando escapam ao modelo de família tradicional. Isso porque vários
65
fatores interagem nesse momento, alguns de ordem prática, como a possibilidade de
que o retorno da criança onere o orçamento familiar, outros de ordem subjetiva, como
o reordenamento de papéis exercidos na dinâmica familiar.
Anteriormente à reintegração, deve-se investigar alguns aspectos para
possibilitar a cesura de um tecido relacional no qual a criança possa se inserir.
Primeiramente, é preciso avaliar a motivação da família na desinstitucionalização. A
origem da proposta de desligamento da criança (a família, o abrigo, o Juizado ou uma
ONG) indica possíveis dificuldades, sobretudo quando tal iniciativa não parte da
família, requerendo um apoio sistemático, a médio e longo prazo.
Em segundo lugar, é necessário conhecer a história de vida da família – sua
constituição, a rede social intra e extrafamiliar, sua dinâmica e interação – e as razões
da institucionalização, do ponto de vista da família. Por meio da percepção dos
aspectos sócio psicológicos e jurídicos que possam estar dificultando o acolhimento
familiar, é possível articular estratégias contextualizadas de intervenção. Identificar,
na história familiar, os fatores significativos – violência doméstica, rejeição mútua ou
unilateral, doença mental, desemprego, etc. – que possam sinalizar a pertinência ou
contraindicação da reintegração naquele momento. Ao longo desse processo, visitas
domiciliares à família, entrevistas biográficas, de anamnese, e entrevistas familiares
sistêmicas, realização de grupo de pais (espaço social); investigação da rede social
de contatos (espaço social) são importantes instrumentos que possibilitam o enfoque
em aspectos fundamentais, tais como: a investigação da dinâmica e rede social
familiar; o papel da criança a ser reintegrada nessa dinâmica, com a investigação de
hipóteses e de informações sobre as relações; a história do afastamento da criança,
com o questionamento dos fatos ocorridos; a análise do ciclo de vida da família; a rede
social da família e o contexto cultural.
Quando há negativa da família para a reintegração, pode-se buscar alternativas
junto a parentes afins. Muitas vezes, a família afirma desejar o retorno da criança, mas
não se mobiliza para efetivar sua saída do abrigo, sendo importante criar ações que
favoreçam a convivência familiar da criança e evitar que ela permaneça
definitivamente institucionalizada. A negativa da criança pode sinalizar a vivência de

66
algum tipo de violência, como vitimização psicológica, abusos ou violência física, que
em geral está ligada ao próprio abrigamento e precede o encaminhamento efetuado
pelo Conselho Tutelar, pelo Juizado da Infância e da Juventude ou por familiares.
Quando a família toma a iniciativa para abrigamento, pode haver uma situação de
violência camuflada, sendo relevante investigar as representações e referências que
a criança possui de sua família.
No contexto de investigação das inter-relações nas quais se dará a reintegração
da criança, é preciso analisar junto a ela quais vínculos lhe são mais significativos,
suas motivações e modos de constituição, bem como os fatores que dificultaram a
manutenção dos vínculos entre ela e a família (visitas esporádicas ou inexistentes,
embargo jurídico e outros). Do mesmo modo, a investigação de suas expectativas e
referências de família, de abrigo, de futuro para a sua vida, bem como os sentimentos
com relação ao abandono (como o viveu, e como o vê no momento) alicerça o
desenvolvimento de ações de preparação gradativa para o desligamento do abrigo,
visando tornar essa passagem a menos traumática possível. Por outro lado, o
conhecimento da dinâmica da instituição auxilia a compreender os aspectos que
podem influenciar na manutenção ou não dos vínculos familiares nela (pouca
flexibilidade nos horários reservados para as visitas, por exemplo), bem como
observar quais são os vínculos existentes entre a criança e o abrigo em sua interface
com a família (a criança pode tecer relações no abrigo que lhe garantam uma rede de
significação com a qual compara a dinâmica familiar, por exemplo). Nesse contexto,
é necessário o estabelecimento de um contrato de consenso sobre os objetivos da
reintegração.
Após o desligamento, é necessário um trabalho de acompanhamento, que
avalie os modos da criança e da família de lidar com a reintegração, investigando os
meios de ―reorganização‖ e tessitura de vínculos colocados em prática para o
acolhimento efetivo, as mudanças na dinâmica familiar para viabilizar a permanência
da criança no lar, bem como a necessidade de suportes socioeconômicos de apoio à
família, que devem ser procurados, entre os recursos da rede social (rede de
serviços), dentro da pertinência de cada caso. Durante o trabalho, é importante refletir

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junto à família a dicotomia entre FAMÍLIA e ABRIGO, preparando-a para eventuais
exigências da criança/adolescente, bem como fortalecê-la no enfrentamento das
dificuldades que poderão ocorrer na adaptação da criança/adolescente, suas
idealizações e expectativas diante da mudança de realidade.
É importante também atentar para as formulações do estatuto da criança e do
adolescente nesse sentido, que afirma em seu artigo 19 que ―Toda criança ou
adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e,
excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e
comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias
entorpecentes ‘‘. Assim, os abrigos devem ser um recurso provisório, visando sempre
a reintegração familiar, quando possível. Quanto maior o tempo de permanência da
criança no abrigo, maior será o desapego com relação à família (principalmente
quando a instituição não favorece esse contato), o que torna mais difícil reatar os
vínculos. (VASCONCELOS, 1985).

Fonte: psicologaerika.webnode.com

7 TRABALHANDO COM FAMÍLIAS EM SAÚDE DA FAMÍLIA

No trabalho em saúde da família, é preciso refletir e construir metodologias de


interação com a comunidade, analisando suas demandas, para a implantação de um
programa eficiente de atenção primária em saúde, em etapas progressivas para o
acompanhamento familiar de longo prazo, fomentando o auto cuidado e práticas de

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vida comprometidas com a saúde. O trabalho com famílias possui uma perspectiva
própria e dever ser distinto da terapia familiar: enquanto o primeiro é um
acompanhamento multidisciplinar com múltiplas intervenções e ações que se valem
das estruturas da família, o segundo propõe uma intervenção especializada, que
busca modificar a dinâmica de relações familiares. O trabalho com famílias se
desenvolve pela compreensão sistêmica, tanto da dinâmica familiar quanto de suas
interações no contexto social e econômico mais amplo: redes de relações e apoio fora
do âmbito familiar, relações de trabalho de membros da família, outras instituições que
participam de seu cotidiano (escola, creche, associações de bairro e instituições de
saúde), etc.
A relação deve ser construída ao longo das ações de saúde, explorando as
estruturas da família a partir das brechas para, compreendendo-a, preparar uma
estratégia pertinente a cada conjunto familiar. A ocasião de cadastro das famílias, as
mudanças de fase do ciclo de vida destas, o surgimento de doenças crônicas ou
agudas de maior impacto são momentos-chave que devem ser explorados. Estas
situações permitem que o profissional de cuidados primários crie um vínculo pertinente
com membros da família, pois atua no momento de emergência de uma demanda
familiar. O trabalho na atenção primária em saúde da família deve considerá-la como
lócus central de atuação e basear-se na realidade local, construindo um fazer
consistente que parta dos recursos comunitários para a melhoria dos indicadores de
saúde. Nesse sentido, é fundamental a constituição de estratégias de investigação e
conhecimento da comunidade, que podem se dar em conjunto com a intervenção. O
processo junto às famílias deve considerar diferentes etapas de trabalho, favorecendo
a aderência e a efetividade do serviço de atenção primária. Assim, o trabalho pode ser
dividido didaticamente em diferentes etapas – Associação, Avaliação, Educação em
Saúde, Facilitação e Referência – para melhor explicação e compreensão. A utilização
destas etapas depende da situação dada e das necessidades de cada família
atendida.

69
Fonte: cap21.blogspot.com.br

Associação

Associar-se ao paciente e sua família é fundamental para a construção do


processo de promoção do cuidado em saúde. A associação se inicia no momento em
que um paciente traz ao profissional uma situação em que a família (ou o grupo com
o qual interage) interfere direta ou indiretamente no processo. Muitas vezes, o
desenvolvimento do processo terapêutico do paciente fica comprometido por
dificuldades familiares, necessitando de uma intervenção clínica ou social, sendo este
um momento muito rico para se estabelecer parceria com o grupo.
Para uma boa interação, o profissional deve respeitar a realidade e crenças do
grupo, o que pode ser difícil. A realidade de vida das pessoas é diversificada e exige
do profissional uma observação atenta para não recair em atitudes centradas em seu
próprio modo de compreender e em soluções baseadas no seu próprio núcleo de
conhecimentos, que podem levar ao confronto e mesmo ao rompimento da relação
com o paciente e sua família. Partindo da concepção de Paulo Freire acerca da

70
necessidade de se perceber as experiências pessoais na construção de uma
comunicação efetiva, deve-se considerar que, para que esta comunicação ocorra, é
preciso que ela se baseie na realidade vivida e constitua uma complexidade de
sentidos pertinente à pessoa que se pretende atingir.
Assim, o trabalho de associação com os pacientes e famílias abrange o
encontro com grupos familiares e a busca de compreensão dos sentimentos e
vivências de cada paciente. Nessa aproximação, é importante a atenção e o cuidado
aos momentos de contato, às crenças, relações e hierarquias familiares. Deve-se
ainda considerar os obstáculos possíveis, tanto de ordem profissional (como a falta de
clareza dos motivos e direções da entrevista familiar), quanto do paciente (como o
temor de perder seu status perante o profissional na escuta dos demais membros da
família) e as armadilhas neste tipo de intervenção que podem expor o profissional
(como a lateralização da comunicação com um dos membros da família, uso de
linguagem inapropriada para aquele grupo familiar, etc.). A associação ao paciente e
sua família possibilita a efetiva inserção dos cuidados primários de saúde para uma
melhoria da qualidade de vida da comunidade.

Avaliação
Uma vez construída a associação com a família, é importante perceber sua
dinâmica, por meio de instrumentos mais objetivos de análise. Essas ferramentas
buscam explicitar as linhas de poder e decisão da família, seu modo de perceber o
processo de saúde e doença, seus recursos concretos e simbólicos e seus apoios
internos e comunitários. A partir desta análise de conjuntura se constituirá o projeto
de intervenção, reconhecendo a crença da família no processo de adoecer e
acordando com ela um plano de ação que respeite o seu modo de vida.
A análise clínica do grupo familiar permite entender os caminhos pelos quais
surgem as diferentes situações de agravo à saúde, como os motivos da grande
incidência familiar do alcoolismo, ou das dificuldades de um paciente hipertenso em
controlar sua hipertensão. Minuchin & Colapinto, por exemplo, descrevem a situação
de gêmeas idênticas portadoras de diabete que mostravam controle desigual da

71
moléstia. Ao analisar as relações familiares destas meninas, constataram que a que
possuía mal controle da doença manifestava-a como sintoma devido aos problemas
de relacionamento dos pais – sempre que estes brigavam, ela apresentava uma crise
na diabete. Assim, além da eficácia das medicações e da pertinência das orientações
profissionais, é necessária uma compreensão das situações de saúde e doença no
conjunto de fatos e relações no cotidiano do sujeito e da família, para prevenir doenças
e suas consequências.
A avaliação adequada do papel da pessoa portadora de qualquer agravo em
sua estrutura familiar (como esta doença é percebida pelos membros do grupo, em
que coisas eles acreditam ou gostam de fazer), possibilita a efetividade e aumenta a
resolutividade das intervenções e ações em saúde. Por exemplo, uso de álcool em
tradições familiares e em momentos de comemoração da família dificulta sua
percepção de risco à saúde ou a compreensão da situação de consumo frequente
como um passo inicial para a dependência. Intervenções que proponham enfrentar o
alcoolismo devem considerar seu significado para o grupo alvo e usar as
representações deste nas ações em saúde, para melhorar os resultados na prevenção
e tratamento. Já o enfrentamento de doenças crônicas deve investigar como o
paciente e sua família entendem a doença, ampliando seu conhecimento através de
orientações em linguagem apropriada à compreensão, sobretudo no tocante à
influência da modificação de hábitos na prevenção ou no retardo da evolução de
doenças. Essas negociações só são possíveis pela efetuação satisfatória do processo
de associação e avaliação, permitindo resultados mais consistentes e duradouros no
acompanhamento do paciente.
Dentre as ferramentas de avaliação disponíveis em atenção primária, há
algumas particularmente úteis, como o Genograma, um instrumento de identificação
de padrões de repetição de patologias que permite uma visualização rápida das ações
a serem desenvolvidas pela família em estudo. O Ciclo de Vida das Famílias é outra
ferramenta relevante, pois identifica as situações mais frequentes de surgimento de
disfunções. Percebe-se, por exemplo, que o surgimento de doenças aumenta nas
fases de transição e estresse, em que a família é desafiada a se reestruturar. A análise

72
do Ciclo de Vida permite auxiliar a família a compreender e construir modos de
atravessamento dessas transições.
Um terceiro instrumento é a Rede Social, que permite vislumbrar os apoios e
crenças da família, identificando pessoas chave para a busca de amparo e
compreendendo as bases culturais de interação familiar. Os contatos e estruturas da
comunidade permitem buscar soluções a partir do próprio núcleo, criando alicerces
para o auto cuidado. A cartografia (MORATO, 1999) da comunidade e do núcleo
familiar também constitui um importante método clínico, que permite reconhecer
relações, compreensões e percepções da família, buscando vias de passagem e
construção de soluções. Pode-se, assim, partindo da intervenção e escuta clínica dos
problemas relativos a certo tema, resgatar recursos negados socialmente
(SZYMANSKI, 2004). A enquete clínica (LEVY, 2001), por sua vez, permite conhecer
profundamente vivências e representações sociais de grupos e indivíduos, sendo útil
na investigação de obstáculos, facilitações e motivações da família para a aderência
às ações em saúde. Para um aprofundamento dos instrumentos de avaliação
pertinentes a intervenções em atenção primária, pode ser encontrado material
adequado nas referências bibliográfica.

Educação em Saúde

A constituição de um processo de educação em saúde deve favorecer o


desenvolvimento do auto cuidado e de hábitos de vida saudáveis, antecipando
situações que permitam às famílias e pacientes compreender o processo de adoecer
e como ele pode impor alterações e restrições a suas vidas. Um dos momentos mais
pertinentes para abrir espaços para a educação em saúde é quando a família ou o
paciente procura a equipe de saúde para resolver um problema, pois permite uma
discussão sobre o processo de adoecer que deu origem à demanda que encontra
maior receptividade do paciente.
Nessa fase, é mister lembrar que o viver e o fazer da população possibilitam
novos modos de construção de caminhos, de produção de cultura e de criação de

73
soluções, e que considerar os recursos e discursos da família e da comunidade é a
melhor maneira de promover ações em saúde, bem como de criar novas ações
pertinentes ao contexto. As possibilidades são dadas pela própria comunidade, que
tem parâmetros e crenças, sobre os quais deve trabalhar o profissional, no diálogo
entre suas informações e as percepções dos clientes. Muitas vezes, os pacientes não
seguem orientações do profissional de saúde porque essas foram elaboradas sem
atentar para a contextualização e o sentido das informações e ações junto à história,
experiência e possibilidades da comunidade em questão.
Para possibilitar a discussão e transformação de hábitos perante situações
tratamento e prevenção de doenças, a educação em saúde deve considerar as
informações que a comunidade traz, valorizando as "dicas" expressas de modo velado
e respeitando os caminhos e soluções da comunidade. Muitas vezes, alguns
procedimentos não são possíveis por falta de possibilidades financeiras, por
inadequação às circunstâncias familiares ou outras razões, e será preciso buscar
soluções alternativas. A discussão e percepção de valores, referências e relações,
bem como a abertura de espaços de expressão dos clientes, permite encontrar
recursos pertinentes, que muitas vezes não são reconhecidos por não serem os
tradicionais. Não perceber o modo como as pessoas veem e lidam com questões de
saúde pode levar à oposição perante as propostas apresentadas.

Facilitação
Outra tarefa importante em saúde primária é facilitar a comunicação entre os
membros da família. Para isso, é preciso uma compreensão das inter-relações no
interior da família e do modo de se comunicar que ela apresenta. Segundo a teoria
sistêmica, as pessoas tendem a manter, por meio de mecanismos de controle
negativo, as regras e as posições que ocupam na estrutura. Isto gera, com frequência,
bloqueios de comunicação, que configuram situações de crise e conflito, podendo
desencadear o processo de adoecer. O profissional de cuidados primários, por sua
posição na comunidade, pode abordar estes bloqueios e, por meio de ações
programadas, favorecer uma troca de informações e sentimentos que facilite a

74
manutenção e recuperação da saúde da família em estudo.
Uma das grandes chaves para o sucesso da facilitação da comunicação é
perceber a dinâmica de relações da família, nas suas interfaces de discursos, poderes,
fazeres, práticas e afetos. Na compreensão dessa teia de relações, é possível interpor
e ressaltar caminhos e questionamentos frente aos favorecimentos e
desfavorecimentos para a fluência da comunicação e para o engendramento de
práticas promoção de saúde e doença. Desse modo, podem-se entretecer redes de
significados e sentidos participando dos anéis de comunicação da família, discutindo
os processos e meios de vida do grupo familiar e fazendo um arco de reflexão sobre
sua origem, seu percurso, seu momento e seus projetos. Esse arco de comunicação
permite que a família reconfigure seu senso de união e de direção, interpondo a equipe
de saúde como elo de fomentação do crescimento familiar e da promoção de saúde.
O diálogo em situações de doença ou conflito exige atenção do profissional de
cuidados primários para perceber sentimentos e articulações de sentido que o grupo
manifesta. Situações de doença grave ou óbito iminente podem representar na família
um momento de crise, uma perda de referências desalojante, na qual os recursos e
referências já constituídos não contemplam a experiência que se desenrola, nem
orientam um caminho a seguir. (BRAGA, 2005). Por isso, a comunicação tende a se
dar de modo entrecortado e permeado por silêncios, culpas, angústias. A facilitação
do diálogo permite às pessoas explorar seus sentimentos e esclarecer suas dúvidas,
evocando uma abertura para a expressão de afetos, não ditos e interditos que podem
acompanhar situações de doença.
A construção dessa proposta passa pela discussão do quadro, com respeito às
hierarquias e linhas de comunicação da família, considerando sua perspectiva sobre
as questões que se fizerem e esclarecendo e discutindo o processo e seus agentes
causais. Pessoas importantes na estrutura familiar, mesmo que não pertencentes ao
agrupamento, devem ser convidadas a participar do processo para que a
comunicação atinja o nível desejado de troca. Isto evita a permanência de sombras
na comunicação, o que pode torná-la menos satisfatória. A atitude do profissional
durante estes encontros familiares deve ser de estímulo à troca de sentimentos e de

75
expectativas entre os componentes, de modo a facilitar a interação, e de
esclarecimento das dúvidas que existam sobre a patologia e sua progressão, e das
alternativas de tratamento disponíveis para o caso.

Referência
Nos casos em que é preciso referir a família ou seu paciente a outros serviços,
o trabalho com famílias deve ocorrer de modo interativo, discutindo com a família as
razões e os resultados esperados do encaminhamento e os modos locais mais
pertinentes para atendimento. O encaminhamento deve ser acompanhado, fazendo-
se contato com o profissional referenciado de modo e realizando-se ao menos uma
entrevista de retorno com o paciente para discutir o atendimento junto a este e dar
subsídios tanto sobre a situação experienciada pela família durante o adoecimento
quanto sobre o atendimento a ser realizado junto ao paciente. Este processo de
comunicação aumenta a satisfação com o encaminhamento, além de permitir
resultados mais efetivos, pois garante informações à família e ao profissional de
referência, permitindo acompanhar eventuais problemas e complicações e evitando o
abandono do cuidado de saúde e possíveis agravamentos de problemas não tratados.
Desse modo, a perspectiva preventiva pode continuar a atuar na assistência.

Conclusão
A atenção à família em cuidados primários de saúde redireciona o enfoque do
atendimento exclusivo ao doente - visão tradicional da atenção à saúde no Brasil –
envolvendo a comunidade nas políticas de saúde, contrapondo-se à prática
meramente criadora e executora de políticas de prevenção. A partir das habilidades
clínicas do profissional a execução das ações preventivas se apresenta como

intervenção1, entrelaçamento de recursos e ofícios entre rede de saúde e grupos

familiares, visando políticas contextualizadas que possam repercutir nas comunidades


onde atuam. Desenvolvê-las implica compreender ações clínicas e educativas no
contexto de uma abordagem dialógica e cartográfica, na qual as ações se constituem
no próprio contato e investigação junto à comunidade. Assim, as práticas clínicas e
76
educativas devem considerar os objetivos das famílias, entrelaçando-os às atividades
educativas da equipe de saúde. Perceber os modos de se relacionar da população,
sua epidemiologia e seus credos exige a presença da equipe na comunidade,
compreendendo e respeitando suas representações, concepções, anseios e práticas.
A construção das ações de saúde e educação deve levar em conta estas prioridades
locais, de modo que, ao se introduzir um conceito ou propor uma ação, eles possam
ser legitimados dentro da comunidade como coadunados aos seus interesses.
Muitas das ações propostas pelas equipes de saúde são embasadas em
saberes que a população pode dominar, porém pode não conseguir incorporar a seu
cotidiano. Assim, as ações em saúde lidarão com os sistemas de vida e suas
correlações e é nesta direção que se mostra a necessidade de um sentido prático para
ações conectadas com o pensamento local, constituído e analisado pela investigação
clínica e interventiva dos modos de sentir, pensar, dizer se relacionar das famílias,
favorecendo a eficiência na implantação de um estilo de vida mais saudável, com
intervenções e resultados em longo prazo. Outro relevante aspecto da atenção
primária em saúde é o trabalho em equipe multidisciplinar. A visão de vários
profissionais sobre uma situação permite uma percepção ampliada de seus múltiplos
aspectos, possibilitando maiores interconexões e construção de caminhos no sentido
da aproximação das aspirações da comunidade. Olhares compartilhados vislumbram
as várias faces do caleidoscópio familiar em sua inter-relação com a ação clínica,
facilitando a compreensão do processo de adoecer e a identificação dos recursos
comunitários para apoiar o caso em questão.

1
Intervenção é compreendida aqui tal como apontada por Heloísa Szymanski (2004)
significando interpor os bons ofícios. Refere-se assim a uma ação constituída em conjunto, de modo
dialógico e plural e não unidirecionalmente.

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