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Fazendo As Pazes Com o Corpo

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comida, sofre a cada refeição – ou seja, no mínimo três vezes por dia.

A
comida é o combustível do corpo, mas, para quem se sente como eu, é como
se fosse um veneno. Eu sabia que estava doente e precisava de tratamento.
Resolvi procurar uma psicóloga, mas durante o ano inteiro em que fiz
terapia nunca me abri totalmente. Já cheguei à primeira consulta dizendo:
“Olha, talvez o que eu tenha seja uma grande bobagem. Talvez eu sofra com
meu corpo e com a comida porque não tenho problemas de verdade. Talvez
eu seja fútil e vazia. Só sei que sinto muita culpa e que sofro cada vez mais.”
Como não contei todas as loucuras que já tinha feito para emagrecer, é claro
que não cheguei ao cerne da questão com essa psicóloga.
Eu precisava encontrar uma saída, então tinha que ir mais fundo. Em
maio de 2016, procurei uma psiquiatra e finalmente expus todo o meu drama,
dessa vez sem ocultar nada. Foi assim que tive meu diagnóstico: transtorno
alimentar não especificado.
Iniciei o tratamento, que consistia em sessões semanais de terapia, além
de um acompanhamento mensal com a psiquiatra e consultas, a cada 15 dias,
com uma nutricionista especializada em distúrbios alimentares.
Nesse processo, ficou claro que eu precisava buscar respostas no meu
passado. Para entender a origem do meu transtorno alimentar, compreender
o imenso sofrimento em que me via presa e desatar os nós que me seguravam,
seria necessário voltar no tempo e revisitar algumas passagens dolorosas da
minha infância e adolescência.

Um mergulho no passado
Não sei direito se a relação doentia que sempre tive com meu corpo me levou
a ter uma relação doentia com a comida ou se foi o contrário. Minha
esperança era que essas antigas lembranças pudessem me ajudar a encontrar o
fio da meada do emaranhado em que minha vida tinha se transformado no
que diz respeito à alimentação e à minha ideia de um corpo aceitável.
Montar esse quebra-cabeça é complicado. Passei por situações delicadas,
que me marcaram profundamente. Mas isso não significa que fui uma criança
triste. As histórias ruins se misturam às boas. Na maior parte do tempo, eu
era uma menina alegre e sorridente. Meu sofrimento só aparecia diante do
espelho ou de um monte de comida. Não sei dizer em que momento essas
questões deixaram de ser algo por que toda criança ou todo jovem passa e se
tornaram um problema maior, uma doença, mas sei que as memórias são
fundamentais nesse caminho de cura. Elas nos ajudam a nos
compreendermos – e nos acolhermos.
Durante uma sessão de terapia, relembrei que a primeira vez que me senti
gorda foi aos 5 anos, quando minha mãe me colocou no balé. As meninas
geralmente adoram se vestir de bailarina, sentem-se como princesas de contos
de fadas, só que comigo não foi assim. Eu me sentia uma menina grandalhona
e barriguda de collant azul-clarinho, com uma saia de tule por cima, que me
fazia parecer maior ainda. Minhas lembranças dessa época não são muito
claras, mas sei que me sentia apertada, amarrada, desconfortável com aquela
roupa que éramos obrigadas a usar.
Hoje percebo que eu era apenas uma criança grande. Nunca fui obesa,
mas tinha ossos largos e era muito alta para a minha idade. Então eu ficava
enorme ao lado das outras meninas, bem menores e miúdas.
Também não gostava do penteado de bailarina – o cabelo preso bem
esticado com um coque apertado no alto da cabeça – porque minhas orelhas
eram muito grandes e isso as ressaltava. No colégio me chamavam de “orelha
de abanar churrasco”, por isso eu só usava o cabelo solto, para escondê-las.
Mas no balé não tinha jeito.
Eu detestava não só a roupa e o penteado, mas também a aula.
A professora me mandava esticar as costas e colocar as pernas naquelas
barras: “Daiana, coluna reta, postura, elegância!” Eu não conseguia fazer
aquilo, não tinha flexibilidade, doía muito. Apesar disso, me esforçava porque
amava dançar e era um desafio para mim. O principal motivo para eu não
gostar das aulas, no entanto, era que eu me comparava com minhas colegas
magrinhas e flexíveis. E, na minha cabeça, uma informação já tinha ficado
registrada: eu estava fora do padrão.
Certo dia, minha mãe foi me buscar na aula e eu estava sozinha, sentada
em um canto chorando muito. Ela perguntou o motivo e eu não conseguia
parar de chorar para contar. Quando chegamos em casa, finalmente falei: a
professora tinha dito que íamos começar a ensaiar para a apresentação de fim
de ano, que aconteceria no Clube do Comércio, o mais chique da minha
cidade, Farroupilha, no Rio Grande do Sul.
Se na minha pequena sala eu já me sentia gorda e desajeitada... imagine
aparecer em um palco, de collant, na frente de todo mundo? Entrei em
pânico. Depois desse dia, não quis mais voltar ao balé, e minha mãe, que
sempre foi muito carinhosa, entendeu a situação e me tirou do curso.

Embaixo das roupas


Depois que saí do balé, a vergonha do meu corpo desapareceu e tudo voltou
ao normal.
O tempo foi passando e lá pelos 6 ou 7 anos aprendi a ler. De repente
fiquei muito exibida. Sabe aquelas crianças que gostam de aparecer? Eu fiquei
assim. Lia bem e não perdia uma oportunidade de fazer isso em público.

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