Entrevista À Unisinos 2006
Entrevista À Unisinos 2006
Entrevista À Unisinos 2006
O jesuíta Carlos Domínguez Morano, que concedeu entrevista à IHU On-Line, é doutor em Teologia,
Filosofia e Ciências da Educação. Licenciou-se em Filosofia Pura e Psicologia. Sua formação
psicanalítica se desenvolveu no Instituto de Psicoterapia Analítica Peña Retama, de Madri. Atualmente é
professor de Psicologia da Religião na Faculdade de Teologia de Granada e psicoterapeuta no Centro
Francisco Suárez da mesma cidade, onde realiza também um trabalho formativo com profissionais da
saúde mental. Foi presidente da A.I.E.M.P.R. (Asociación Internacional de Estudios Médico-Psicológicos
y Religiosos). É professor convidado em diversas universidades espanholas e latino-americanas.
Suas publicações giram em torno da problemática das relações entre a psicanálise e a fé e a análise do
mundo afetivo. Entre elas, cabe destacar como mais importantes: El psicoanálisis freudiano de la religión.
Madrid: Paulinas, 1991; Creer después de Freud. Madrid: Paulinas, 1992
Carlos Domínguez - A imagem de Deus que podemos nos aventurar a dizer que Freud tinha (difícil seria
para ele próprio conhecer essa representação interna em todas as suas dimensões conscientes e
inconscientes), guardaria relação, sem dúvida, com o sistema simbólico particular no qual o fundador da
psicanálise se educou e se formou. Esse sistema simbólico é o de uma época e cultura determinadas. Uma
época particularmente marcada por toda a filosofia das luzes e sua crítica do fato religioso e uma cultura
que, para Freud, é a do povo judeu à qual pertence. Não podemos esquecer o contexto de uma sociedade
cujo catolicismo se manifestava em um claro processo de involução e numa dinâmica combativa diante
do que a modernidade trouxe consigo.
Nesse contexto geral, há que acrescentar a influência (sem dúvida, a mais determinante como observa
Ana Maria Rizzuto[1] em sua obra Why Did Freud Reject God?) de uma família e de uma figura
parentais pelas quais esse sistema simbólico configura a vida de Freud. Com base em todos esses
complexos parâmetros, poderíamos aventurar que a imagem de Deus que Freud tinha era a do Todo-
Poderoso, a que todos os seres humanos devem submeter-se e ante o qual é inevitável experimentar uma
profunda ambivalência afetiva. Essa representação de Deus teve que ser rechaçada desde muito cedo. Já
aos 14 anos, numa carta a seu amigo Silberstein[2], Freud se manifestava como um ateu e materialista
convicto...
Carlos Domínguez - Temos que pensar que existe, efetivamente, uma relação entre essa idéia de Deus e a
psicanálise. Outra questão muito diferente seria determinar qual foi de fato essa relação. Numa carta ao
pastor O. Pfister[3], Freud se mostra absolutamente convicto de que a psicanálise só pode ser inventada
por uma pessoa não-crente. A afirmação pode e deve ser objeto de debate e eu próprio a discuto por
escrito com Peter Gay[4], que se mostra de acordo com o fundador da psicanálise, considerando também
a relação psicanálise-ateísmo. Hoje, superadas as impregnações ideológicas (próprias do ”século das
luzes”) nas quais a psicanálise nasceu, essa relação deixa de ser considerada como necessária. São muitos
e importantes os psicanalistas que, de fato, e não meramente na teoria, não experimentam nenhuma
incompatibilidade no exercício da psicanálise e sua fé religiosa.
Embora a relação ateísmo-psicanálise não seja obrigatória, não resta dúvida de que a posição de Freud em
relação ao paterno (tão diretamente relacionado com a idéia de Deus) influencia de modo decisivo em sua
obra. Peter Gay afirma que, às vezes, temos a impressão de que os pacientes de Freud não tinham mãe.
Tão ausente está o fator materno em suas análises (não só do fato religioso) e tão onipresente está o
conflito paterno-filial. Esse conflito do homem Freud determina toda a sua obra e de modo
particularmente, claro, sua análise do fato religioso.
Carlos Domínguez - Foram muito escassos os interlocutores de Freud no campo da religião e da teologia.
Sua formação religiosa no judaísmo foi muito pequena, como mostrou L Pfrimmer entre outros, e
posteriormente sua preocupação pelo fato religioso levou-o somente a uma formação no campo da
antropologia ou da história (algo na exegese também na hora de escrever Moisés y la religión
monoteísta). Certamente, seu principal interlocutor no terreno teológico foi o pastor protestante O. Pfister,
representante da teologia liberal e um dos primeiros psicanalistas. Esse interlocutor ofereceu-lhe, ou, pelo
menos, tentou, uma visão da fé cristã em parâmetros muito diferentes daqueles dos preconceitos de que
ele poderia estar imerso. Entretanto, esse primeiro diálogo entre a psicanálise e a fé apresentou também
limitações importantes como pretendi demonstrar na minha obra Psicoanálisis y religión: diálogo
interminable, que atualmente está sendo traduzida no Brasil. Foi um diálogo exemplar de respeito mútuo
e na interpelação valente de um e outro, mas um diálogo também que deixou à margem as questões mais
específicamente psicanalíticas que estão implicadas no problema.
IHU On-Line - Quais seriam essas questões constitutivas do debate entre psicanálise e fé?
Carlos Domínguez - No debate entre a psicanálise e a fé se tem adotado posições muito diversas que vão
desde a mera defesa e resistência (no sentido estritamente psicanalítico) até a do estabelecimento de uma
mútua e saudável interrogação sobre diversos aspectos da vida psíquica e da fé. Nem sempre a defesa se
expressou de forma explícita, em certas ocasiões, tentou-se, mediante sofisticada e artificiosas distinções,
entre a “fé neurótica” ou a “fé saudável”, entre o consciente ou o inconsciente ou entre o “natural” ou
“sobrenatural”. Esquecia-se, assim, que o inconsciente está sempre presente e atuante em todo o tipo de
discurso, crente ou não, e em todo o tipo de experiência religiosa, tenha ela o caráter que tenha. Outras
vezes, adotaram-se posições “concordistas” (o mesmo pastor O. Pfister não escapou delas), que
pretendiam eliminar todo questionamento mediante uma “violenta harmonização” dos dois campos para
fazê-los compatíveis: um modo de ver as coisas que, no fundo, pretende subtrair as polêmicas mais
incisivas que estão em questão.
Meu posicionamento a esse respeito foi apresentado na obra citada, Psicoanálisis y religión: diálogo
interminable, que, como o próprio título diz, se trataria de manter sempre aberta a questão, porque, na
realidade, a psicanálise não vem nem confirmar nem negar a fé, e sim, somente introduzir uma
interrogação do inconsciente que atua em todo o discurso humano e que, portanto, afeta tanto o crente
quanto o não-crente. Uma interrogação que não se refere aos conteúdos da fé, mas ao sujeito que afirma
ou nega tais conteúdos. Dito de outro modo: à psicanálise não compete se pronunciar sobre temas como
os da existência de Deus ou a virginidade de Maria, por exemplo, senão tão só interrogar o sujeito sobre o
que está dizendo de si próprio, quando afirma crer ou não crer em ambas as proposições dogmáticas. E
essas interrogações só se podem responder uma a uma. Portanto, enquanto existir o fato religioso no
sistema simbólico no qual nos encaixamos, essa questão permanecerá sempre vigente para o que afirme
ou negue a fé. Diálogo, pois, por essência e não por acidente, diálogo que deve considerar-se como
interminável.
Carlos Domínguez - As conseqüências desse diálogo podem ser muito diferentes. Em certas ocasiões,
esse diálogo pode dar lugar a uma purificação das próprias crenças e atitudes, no sentido de despojá-la de
seus elementos mais problemáticos (embora também teríamos que levar em conta que a idéia de uma fé
religiosa livre cem por cento de toda a contaminação infantil ou inconsciente seria uma pura “ilusão”) ou
poderia também sugerir uma dissolução da crença, como múltiplos casos o confirmam. Acredito que a
idéia de que a psicanálise vem “purificar” a fé expressa uma atitude, de alguma maneira, defensiva,
porque a psicanálise não tem por missão – insisto - nem purificar a fé nem combatê-la. Ela somente
introduz uma interrogação, cuja resposta pode ter direções muito diferentes.
Em outro nível, se poderia afirmar que, se a teologia faz eco do que essas questões supõem na vida dos
que atravessam uma experiência psicanalítica, teria que se sentir obrigada a repensar toda uma série de
temas centrais de seu fazer. Em primeiro lugar, teria que revisar as representações de Deus e em que
medida muitas dessas representações são devedoras do pai imaginário da infância. Penso particularmente
na representação de Deus como o Onipotente ou o Todo-Poderoso (atributo que mais repetimos, por
exemplo, nas celebrações litúrgicas), esquecendo, talvez, que o poder do Deus cristão é o que se
manifesta na fraqueza do crucificado e que somente desde a potência do amor se pode falar de Deus
Onipotente. E em íntima conexão com essa questão, a teologia e a pastoral teriam que se questiona sobre
determinados modos de conceber a salvação, como os que no cinema manifestou Mel Gibson em seu
filme A Paixão e que tanta repercussão tiveram. Uma leitura exclusivamente expiatória que parece dar
razão a muitas das interpretações que Freud deu do cristianismo em obras como Tótem y tabú ou Moisés
y la religión monoteísta. E se passamos da ordem dogmática à da moral, não resta dúvida de que as
questões concernentes ao exercício da autoridade e da obediência ou as que têm a ver com a sexualidade e
a agressividade teriam que ser objeto também de sérias revisões à luz das questões que a psicanálise nos
propõe.
IHU On-Line – Quais seriam as principais diferenças da crença antes e depois de Freud?
Carlos Domínguez - A fe é a mesma antes e depois de Freud. Quero dizer que a fé não tem por que se
sentir obrigada a enfrentar uma espécie de tribunal presidido por Freud para sair com uma declaração de
culpabilidade ou inocência. A fé, porém, se vive em cada etapa histórica de certos parâmetros culturais, e,
em nossa cultura, a fé, por seu próprio dinamismo e não por pressão externa, tenta responder à questão
psicanalítica para ganhar coerência e autenticidade. A fé que atende à questão da psicanálise (mais que às
trazidas pelo homem Freud) é a que toma consciência de que pode jogar como fugida da vida, como
“ilusão” defensiva, ou bem, como uma fé que dinamiza o encontro com uma realidade que é enfrentada
com toda lucidez e valentia. Essa fé fugirá também do perigo de converter-se em uma dinâmica de
ambivalência e culpabilidade para viver-se uma aceitação da própria realidade sem mutilações nem
bloqueios que impeçam a busca da plenitude e da felicidade, das quais Deus não é, em absoluto,
ciumento.
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[1] Ana Maria Rizzuto: psicanalista norte-americana, autora do livro Por que Freud rejeitou Deus? São
Paulo: Loyola, 2001. (Nota da IHU On-Line)
[2] Eduard Silberstein (1871-1881): amigo de Freud na juventude. Conferir o livro Cartas de Sigmund
Freud para Eduard Silberstein. Rio de Janeiro: Imago, 1995. (Nota da IHU On-Line)
[3] Oskar Pfister (1873-1956): pastor protestante, doutor em filosofia e doutor honoris causa em teologia.
Como educador, Pfister foi pioneiro em interligar a psicanálise à pedagogia. Foi também um dos
primeiros a interpelar Freud a respeito de questões como a relação entre psicanálise e ética, entre
psicanálise e visão de mundo e a legitimidade do discurso científico. Conferir o livro Cartas entre Freud e
Pfister – 1909-1939. Um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã. Organização: Ernst L. Freud e Henrich
Meng. Viçosa (MG): Editora Ultimato, 2004. (Nota da IHU On-Line).
[4] Peter Gay: psico-historiador judeu, radicado nos EUA, professor na Universidade Yale, é também um
biógrafo conceituado, tendo escritos biografias de Freud e Mozart. (Nota da IHU On-Line)
(Fonte: http://www.unisinos.br/ihu)