Agustina Bessa-Luís - Filosofia Verde
Agustina Bessa-Luís - Filosofia Verde
Agustina Bessa-Luís - Filosofia Verde
(1922-)
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FILOSOFIA VERDE
Numa dessas madrugadas em que o nevoeiro parece que dá aos becos mais
sinistros como que uma comunicação de claridade, de luar, dois homens tentavam
abrigar-se do frio, no limiar um tanto avançado dum portal. Maltrapilhos, de
barba rala ambos, não falavam. Apenas abraçavam a arcada do próprio peito,
agasalhando as mãos, pecas e de falanges lívidas, nos sovacos e sob as cavas dos
casacos pingões, prenda decerto dalguma beneficência ou dalgum monturo. Não
se poderá definir a sua profissão, sem que um riso extasiado nos assome aos lábios
– um riso de Falstaff que sonha, ou de Mefistófeles que faz metafísica. Aqueles
dois homens, que se amparavam com o próprio bafo, pertenciam a um género
que, por ser ilegal, tem mais assegurada a sua continuidade. Eram simplesmente
caçadores de mortes súbitas. Oh, todos nós sabemos o que são mortes súbitas!
Uma apoplexia para classes abastadas, quando o herói transita de um bairro ao
outro, dum extremo ao outro da ética, e reconhece afinal que não lhe valera dar um
passo, pois a morte faz com que se toquem todos os extremos. O fim, que nunca
nos parece prematuro, mas sim fatal, dos anónimos, e este não tem designação
nem assopra os ventos da curiosidade.
Aqueles dois seres nocturnos viviam dessa empresa, mais macabra ainda por
ser ridícula, de fisgar os falecidos na via pública, os que a congestão vitimou
ou o coração deteve no caminho, os que o frio tolheu na posição de quem ainda
aspira do colo materno o afago, ou os que a fome prostrou, unhando a terra e
colando nela uma boca ainda esperançada, humilde. Quando o aspecto do morto
denunciava um burguês, ainda que de limitadas rendas, subtraíam-no ao carro que
fazia o intercâmbio entre esses paradeiros de acaso e a morgue, entregavam-no
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a domicílio, e esperavam, como bons funcionários, a gorjeta. Nas áreas em
que actuavam, travavam relações com o polícia de giro, bons homens sempre,
que usavam a violência mais por serem timoratos do que arrojados. Não raro,
mercê duma piedade compadresca, os caçadores de mortes súbitas, ficavam-lhes
sob protecção. E dessa autoridade bonachona, que nem auscultava a razão para
esquecer a lei, provinham as informações mais cobiçadas.
– Então, senhor guarda, esta noite, nada?
– Não há nada...
Separavam-se. Um acoitando-se nas goelas dos portais, perto da carreta que
as sombras ocultavam; o outro prosseguindo na ronda, o capote salpicado de um
orvalho fino, que era como limalha de prata que viesse oscilando no nevoeiro.
Essa era, ao parecer, uma das noites em que não havia nada. Os dois vigias
em vão velavam no seu lugar estratégico, saltitando a pé-coxinho para não se
entorpecerem e proferindo pragas surdas e sem cólera. Naquela ruela esbicada por
saliências de velhas varandas, experimentava-se a sensação de assistir ao estertorar
do silêncio. Eram como clamores filtrados por um tempo infinito, gemidos que as
próprias pedras emitiam, um impar de fadiga resignada, de dor que a sua própria
consciência de eternidade faz passiva, sem, porém, a amortecer. Um dos homens
tinha recuado mais para o vão do portal, buscando um nicho onde encolher-se e
possivelmente dormitar. O outro falou-lhe, movendo a custo os beiços brancos.
– Não pares, hã, se não queres vir nos jornais!
– Deixa lá... – murmurou o que dobrara sobre si mesmo, o rosto mergulhado
no seio, entre as lapelas bambas do casaco. E não disse mais nada; ficou-se quieto,
esforçando-se por concentrar todo o calor, evitando os movimentos, que eram
como agulhadas penetrando-lhe a pele amolecida, gasta, como um pano que se
usou demasiado. No extremo da rua rolhada pela treva, ouviu-se, ténue e distinto,
o sinal do guarda.
– Temos freguesia, vamos – disse o que permanecia de pé, pulando e
sacudindo-se como alguém que sofre uma queimadura. – Vamos – repetiu. Saíu
para o passeio; as alpercatas pegavam-se-lhe nas lajes húmidas, e ele tremia,
muito embebido no nevoeiro, onde se recortava como uma silhueta verde-cinza
ligeiramente prateada nas bordas.
– Há um tipo aí perto – esclareceu o guarda. – Teso como um carapau, e eu só
queria saber como vocês se vão arranjar com ele. Parece que está morto desde o
princípio do mundo, e conservava-se assim bem até que ele acabasse.
– Ele há sangues que coalham logo, há – disse, conspícuo e confidencial, o
caçador de mortes súbitas, enquanto caminhava. Reparou que o companheiro não
o seguia, e rogou-lhe algumas pragas, a que a falta de solenidade e convicção
devia esmorecer os efeitos.
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– Cá está o sujeito. Faz-me arranjo...
Abaixou-se até junto do corpo, e voltou-o. A lanterna iluminou uma face hirta,
com uma amolgadura de queda na têmpora; líquidos viscosos corriam-lhe das
narinas, e a boca, cerrada, tinha uma expressão mística e quase sorridente. Parecia
pertencer a essa classe de escriturários que têm a sua originalidade, como
uma marca de fogo, no macilento da tez, na expressão batida e no terrível
do olhar abandonado, vil porque nada espera, sem que, porém, se tenha nele
extinguido a pressão dos desejos. Sob a borda das mangas do rapado sobretudo,
tinha ainda vestidos os canhões de sarja preta, que os elásticos, gastos, faziam
soltos nos pulsos. Voltava talvez dum serão de contabilidade, de escrita, recurso
extraordinário das suas necessidades, onde adeja sempre um terror de miséria,
mais esgotante que o combate, em campo aberto, com a própria miséria. Tinha
no dedo médio um calo que o apoio da caneta provocara, e que estava um
tanto penetrado de tinta violeta. Mas as unhas eram longas, esmeradas, polidas,
como as dum guitarrista; usava-as em bico, aduncas, muito limadas nos bordos,
apuradas com esse capricho ingénuo que é, às vezes, um tique maníaco, uma
espécie de conforto ocioso numa vida estrangulada de inquietações, de perigos,
ou simplesmente de rasa mediocridade. Quantas coisas estranhas, complexas,
denunciavam aquelas unhas em garra, sopradas com um bafo, lustradas na manga
ou na flanela da calça, tasquinhadas a lâmina e a canivete, miradas a distância com
análise, com aprovação, com crítica! Que profundas maravilhas de aspirações
audaciosas, ardentes, elas traziam à superfície do homem cujos passos, cujas
palavras, cujo ritmo de realidade não eram mais que trivialidade, chateza, um rojar
de coisas e pensamentos vãos!
O guarda desviou-se um pouco; o estalido da lanterna ao apagar-se, teve a
ressonância duma aldraba fina, de cobre, que se deixa cair.
– Chama lá o outro, e aviem-se – disse, desabrido. Entregou o cartão do morto,
que retirara da carteira. – Andam com sorte. Às vezes não há jeitos de a gente os
identificar.
Mais uma vez, o caçador de mortes súbitas olhou à sua volta, procurando o
companheiro, sibilando palavrões e ameaças, pulando como um orango que se
excita. Por fim, retrocedeu para a viela onde fizera atalaia, numa corrida chegou
ao portal, que franqueou para tropeçar no vulto que, enrodilhado, o queixo enfiado
entre os joelhos, parecia dormir. Abanou-o, pondo no gesto uma brutalidade, e,
sem contudo pensar inteiramente nele, chamou-o pelo nome, com uma entoação
irada e fraterna. Mas, por sua vez, o outro tinha morrido; não havia já um hálito
de vida, e energia, de calor, nessa carcaça que jazia enovelada como uma bola de
alinhavos, inconsciente, mole. Tinha as pálpebras fechadas e dormia, sim, com
uma ruga de perplexidade na fronte e que, desfeita, lhe desenharia uma linha mais
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clara, tanto tempo a trouxera, desde a infância talvez a criara e se habituara a ela.
Dormia, não mais cego, agora que os seus olhos se vidravam, frios como bolas
de berlinde, e, como elas, irisados de cores que parecem nubladas, perdidas, sob
a superfície do vidro opaco e que os muitos golpes riscaram. Os seus cabelos
são o único agasalho da sua nuca, que, dobrada, parece oferecer-se a um cutelo
de magarefe; as suas mãos estão entrelaçadas, apertando o vazio; o seu coração
está agora tranquilo, e ele dorme. Como esses bolores que crescem nas valas,
nas podridões, e delas extraem a sua própria forma, não inspira nojo, nem sequer
desgosto. Porém, se virmos sob essa matéria, essa cor de fungo, uma pele humana,
o fóssil dum sorriso, dum esgar, duma aspiração humana, então o nosso peito
cederá com a intensidade do assombro – do assombro, da incredulidade, da
surpresa, e nada mais. Não há dor que dedicar, pena para sentir. Apenas espanto,
humilhação, desejo de reverter também a esse destino que nos faça irmãos no
inferno e na lama, já que a luz é escassa e o acaso é um insulto que, poupando-nos,
nos envergonha.
O homem caçador de mortes súbitas cismava, junto do companheiro. Conhecia-
lhe a amiga, um ente torcido como um tronco que não floriu. Dizer que ela lhe
tinha amor é emprestar ao amor um novo sentido; uma vez que aquela dedicação
de besta enferma, aquelas traições de fêmea que, na fossa da continuidade mais
estiolada e árida, procura ainda a esperança, a aventura, tudo isso é um estado
de amor e de ódio, a própria raíz da vida, unidade e dualidade fatais. Ela recebê-
lo-ia com os clamores uivados que partem mais dos nervos que do coração, havia
de chorá-lo depois, beijando-o com esses mimos que nos fazem voltar o rosto
angustiado, porque só nas criaturas jovens, nos que são belos e trazem em si o
sinete esplêndido da vitalidade no brilho do olhar, no cândido fogo dos sentidos,
só nesses os admitimos.
«Há – pensou o homem – o outro morto...» E eis que o dilema se lhe afigurava
insolúvel. Arrastando o amigo para o quartelho onde, como uma lava, escorria
a humidade, e onde o receberia a terrível mulher, que o crivaria de culpas e
de injúrias, perderia aqueloutro cadáver cujo transporte lhe renderia o seu lucro
daquela noite e talvez de muitos dias mais. Duas vezes se moveu para deixar o
corpo no seu côncavo de portal, e outras tantas parou, hesitou e volveu. O morto
era apenas um fardo, mas tão presente como se um sentido vivo o explicasse,
lhe insinuasse poderes e leis. «Há o outro...» – pensava ainda o homem. E
via um postigo envidraçado que se abria, ouvia uma voz ensonada, trôpega,
agastada pela campainha a desoras; depois, as exclamações trémulas, as luzes
que se ascendem, os passos que se arrastam na passadeira, soluços que vibram,
sufocados, amordaçados; por fim, a mão que gratifica e fecha lentamente a porta,
como quem se isola e divide dois mundos, dois pedaços de vida.
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Com um gemido de renúncia e de rancor contra si mesmo e o tirano que assim
o vencia, pegou no companheiro morto, colocou-o na carreta, e afastou-se com
ele. Tragou-os a ambos o boqueirão do beco que desabrochava em novos laços
de artérias sujas e solitárias. De longe, na fulguração verde do nevoeiro, parecia
ele uma raiz que a terra expeliu, que se mantém à superfície, nodosa e aniquilada,
com pequenos tumultos de seiva criando inesperados milagres de vida. Como as
oliveiras da ilha de Maiorca, secas, centenárias, devoradas do tempo, mirradas e
esbracejantes como impotentes fantasmas que se contorcem numa dor estática,
dor que a própria consciência de eternidade faz passiva, sem, porém, a minorar,
como essas árvores mortais, de cujos braços extintos brota, um dia, um pequeno
ramo estuante e verde, assim era ele. Como a filosofia verde duma folha tenra,
encantadora e brilhante, assim era a generosidade do homem que se afastava com
a carreta, donde pendiam os membros inertes do morto. E toda a sua história
estava talvez na filosofia verde daquela noite.
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