Quais Corpos Importam Caso Sophia, 2018
Quais Corpos Importam Caso Sophia, 2018
Quais Corpos Importam Caso Sophia, 2018
Luciana Velloso
lucianavss@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5854415485261255
RESUMO
Este texto, inspirado no caso da robô Sophia, problematiza como a noção de pós-humano
representa a construção do corpo como parte de um circuito integrado de informação e matéria.
Criada pela empresa chinesa Hanson Robotics, Sophia recebeu o título de cidadã da Arábia
Saudita o que causou várias manifestações contrárias a esta concessão para uma mulher robô
enquanto tantas outras mulheres são desprovidas de reconhecimento como cidadãs naquele país.
Investigar as questões sociotécnicas que emergem com o pós-humano na contemporaneidade
nos convida a refletir sobre as diferentes formas com as quais os produtos culturais de nosso
tempo oferecem possibilidades de produzir novos sentidos de nossa própria história. Dessa forma,
buscamos (re)pensar a relação entre humanos e máquinas em suas articulações com questões
ligadas à cidadania, direitos e deveres. Analisamos também os limites e as tensões sociais
engendrados pelo advento do pós-humano, este entendido também como desconstrução das
certezas ontológicas e metafísicas tão fortemente associadas a tradicionais categorias,
geralmente dicotômicas, como por exemplo, as de subjetividade e objetividade.
Palavras-chave: inteligência artificial; Sophia; pós-humano; cidadania.
André Lemos
1
Lemos, 2010, p. 29.
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ANO X – N° 01/2018
inúmeros equipamentos de suas residências, como luzes, ventiladores, televisão, dentre
muitos outros. Tais produtos, muito comuns nas tramas dos filmes de ficção científica,
podem ser adquiridos hoje no mercado, ainda que seus preços nem sempre sejam
convidativos para os consumidores. Não há como negar que, com o avanço tecnológico e
a crescente demanda no mercado por produtivos inovadores, as máquinas estão sendo
programadas com o intuito de ficarem cada vez mais inteligentes e facilitar a vida do
homem. Frente a esse contexto, cabe questionarmos "o que está acontecendo à interface
ser humano-máquina e o que isso está significando para as comunicações e a cultura do
início do século" (Santaella, 2003, p. 30).
Essa discussão da interface ser humano-máquina nos remete aos diretores de
cinema Alex Garland e Ridley Scott, que desenvolveram trabalhos de ficção científica
abarcando a temática da inteligência artificial em filmes como Ex Machina: Instinto
Artificial (2015) e Ela (2013), para citar alguns. Essas produções audiovisuais evidenciam
alguns dos desafios, desejos e utopias do ser humano num mundo cujos artefatos
culturais digitais são cada vez mais presentes. Diante disso, cabe indagarmos o quanto o
avanço tecnológico vem produzindo máquinas cada vez mais inteligentes que apresentam
grande capacidade de imitar as emoções humanas. Há algumas décadas era impensável
a ideia de que hoje pudessémos “consumir, produzir e distribuir informação sob qualquer
formato em tempo real e para qualquer lugar do mundo" (Lemos, 2010, p. 25, grifos do
autor). Hoje, o futuro que talvez nos aguarda seja o de uma nova e profunda
reconfiguração social na medida em que interagimos com máquinas com inteligência
artificial cada vez mais avançada.
Um dos casos recentes mais interessantes de inteligência artificial é o da robô
Sophia. Desenvolvida pela empresa chinesa Hanson Robotics, Sophia é capaz de
reproduzir inúmeras expressões faciais humanas, reconhecer visualmente uma pessoa,
imitar gestos humanos, além de realizar conversas simples sobre determinados tópicos
cotidianos. A Revista Exame de outubro de 20172 apresenta Sophia como o primeiro robô
do mundo a receber oficialmente o título de cidadã concedido pela Arábia Saudita A
2
Disponível em https://exame.abril.com.br/tecnologia/robo-que-fala-se-expressa-e-faz-ameacas-ganha-
cidadania-saudita/ (Acesso em 26/01/2018)
Cada vez mais questões ligadas à subjetividade humana têm sido colocadas em
xeque. Para além das indagações acerca de “quem é o sujeito”, temos problematizado se
ainda é pertinente trabalhar com esta noção, quais são seus limites e potencialidades. Em
texto bastante instigante, Haraway, Kunzru e Tadeu (2009) tensionam o conceito de
sujeito e nos trazem importantes reflexões sobre a dissolução do humano. Com o avanço
da cibernética, os autores propõe ir além do sujeito cartesiano do humanismo clássico e
incorporar as noções de ciborgue e pós-humano. Concordamos com a ideia de que não
existe sujeito ou subjetividade fora da linguagem, da cultura e das relações de poder.
Com isto, há que se atentar para o fato de que “são os processos que estão
transformando, de forma radical, o corpo humano que nos obrigam a repensar a alma
humana [pois] é no confronto com clones, ciborgues e outros híbridos tecnonaturais que a
‘humanidade’ de nossa subjetividade se vê colocada em questão” (Haraway; Kunzru;
Tadeu, 2009, p. 10).
Seguindo as pistas de Viveiros de Castro (2015), entendemos que noções como
perspectivismo e multiplicidade são bastante profícuas para nos auxiliar no entendimento
de Sophia. Abordando uma análise assentada na antropologia pós-estrutural, dialogando
com a filosofia da diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari. O autor discute definições
relacionais entre diferentes espécies e afirma que “se nem todos os existentes são
pessoas de facto, o ponto fundamental está em que nada impede (de jure) que qualquer
espécie ou modo de ser o seja” (p. 46).
3
Fonte: http://revistagalileu.globo.com/Tecnologia/noticia/2017/10/arabia-saudita-torna-se-primeiro-pais-
conceder-cidadania-para-um-robo.html (Acessado em 10/01/2017)
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de transitar livremente pelos espaços públicos, usufruindo plenamente do acesso à
cidadania. Dito isso, podemos nos questionar: quais corpos importam?
O paradoxo reside justamente neste fato. Uma robô, agora cidadã-ciborgue, tendo
mais direitos do que as mulheres sauditas que dentre diversos impeditivos, somente
podem estudar fora do país, viajar e realizarem outras atividades após o aval de um
membro familiar do gênero masculino. Naquele país, somente em julho de 2017 foi
concedido a mulheres o direito de dirigir e a permissão de que pudessem assistir a
partidas de esportes em estádios, antes direitos exclusivamente masculinos 4. Feministas
de diversos locais, nascidas ou não na Arábia saudita, se manifestaram contra o que
consideram absurdo: abrir uma concessão para uma mulher robô e manter as demais
mulheres desprovidas de seu reconhecimento enquanto cidadãs. Num mundo no qual há
"uma mudança de perspectiva que transformou a sociedade dominada pela indústria e
pela manufatura para uma outra dominada pela informação, comunicação, símbolos e
serviços mediados por tecnologias digitais" (Lemos, 2004, p. 140), o que significa ficar de
fora dessa experiência social contemporânea?
Para Santos (2015), o que mudou nas nossas vidas, nesse início de século, com o
debate sobre as invenções culturais, é tão devastador que, de imediato, afeta até o modo
como criamos e produzimos conhecimento. Pensando o caso do Brasil, no que se refere à
questão da cidadania e ao acesso aos diferentes bens dispostos na sociedade, Souza
(2009, 2012) reflete sobre o que denomina a existência de uma “subcidadania” na qual se
inserem alguns grupos, pertencentes ao que o autor denomina “ralé brasileira”. O autor
trata de forma bastante contundente a forma como estes indivíduos foram sendo inseridos
dentro do processo de modernização da sociedade, mas uma sociedade que naturaliza as
desigualdades e “aceita produzir ‘gente’ de um lado e ‘subgente’ de outro” (Souza, 2009,
p. 24). Ao se referir ao que denomina como “ralé brasileira”, explica que esta “classe de
indivíduos”, vista sob a ótica da carência, nasceu sem o “bilhete premiado” da classe alta
e média. São pessoas que, tidas como um estigma quase que inato, não encontram
condições nem afetivas, nem emocionais, morais ou existenciais de “in-corporação” dos
4
Fonte: https://www.terra.com.br/noticias/tecnologia/mulheres-sauditas-se-revoltam-com-cidada-robo-sem-
hijab-e-mais-direitos-do-que-elas,21a503b8c4de333f71702b4df37d0f96qi9fa18c.html (Acessado em
10/01/2017)
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pressupostos indispensáveis à apropriação tanto de capital cultural quanto de capital
econômico. Grupos que vivem às margens da delinquência e do abandono, excluídos de
todas as oportunidades materiais e simbólicas de reconhecimento social, em oposição a
demais grupos que são, ainda que diferencialmente, incluídos. E isto é algo que implica
desconstruirmos alguns binarismos e percebermos os dramas familiares e existenciais de
grupos durante tanto tempo marginalizados.
Em outro movimento, a questão da subcidadania ou da ausência da mesma, nos
parece aplicável ao caso das mulheres e de outros grupos minoritários formados por
pessoas praticamente invisibilizadas no debate público. Algo que não ocorre com a robô
Sophia, que já possui ampla visibilidade e até mesmo páginas na rede social Facebook 5
destinadas a postagens com seus vídeos. Uma mulher saudita nem sequer teria acesso a
tais redes digitais sem que tal passasse pelo crivo de alguém do sexo masculino. Estas
constatações corroboram com a percepção das diferenças e as desigualdades de acesso
e uso (García Canclini, 2007) existentes não só em nível local, mas também global, ainda
muito presentes e perturbadoras. Esse fenômeno é discutido no trabalho de Velloso
(2017), para quem se apropria do conceito de subcidadania (Souza, 2009) para pensar a
subcidadania digital.
Em tempos em que tantos não se imaginam offline, em tempos de uma ciber-robô-
cidadã que interage com frequência nas redes digitais, outros tantos pouco ou nunca
ficam online (Velloso, 2017). Frente a isso, não há como negar que ainda precisamos
continuar construindo práticas de resistência que possam combater esta longa história de
profundas desigualdades sociais ainda muito visível na contemporaneidade. Almejamos
que cada vez mais usuários possam usufruir das experiências sociais das redes online,
uma vez que essas redes são muito importantes para que as pessoas ocupem os
espaços urbanos em prol de "seu direito de fazer história - sua história" (Castells, 2013, p.
8), unindo forças para questionar uma cidadania que, não raramente, é marcada pelo
desprezo e humilhação social.
5
Fonte: https://www.facebook.com/RealSophiaRobot/ (Acessado em 12/01/2017)
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Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Janeiro: Mauad, 1999, 98-113.
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Brasileira, 2015.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-édipo. 2. Ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2011.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs (v. 1) São Paulo: Editora 34, 2012.
DIAS, A. B. O Brasil, educação e armadilhas da inclusão digital. In: LIMA, M. C.; ANDRADE, T. N.
(Orgs.). Desafios da inclusão digital: teoria, educação e políticas públicas. São Paulo: Hucitec –
Facepe, 2012, p. 106-131.
GUATTARI, F. Da produção de subjetividade. In: PARENTE, André. Imagem máquina – a era das
tecnologias virtuais. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1999.
HUNT, L. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.
LEMOS, A.; LÉVY, P. O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia planetária. São
Paulo: Paulus, 2010.
SOUZA, J. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009.
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