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Quais Corpos Importam Caso Sophia, 2018

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QUAIS CORPOS IMPORTAM?

NOTAS SOBRE CIDADANIA E A CONDIÇÃO PÓS-


HUMANA: O CASO SOPHIA
Rosemary dos Santos
rose.brisaerc@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9464170521679409

Luciana Velloso
lucianavss@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5854415485261255

Dilton Ribeiro Couto Junior


Junnior_2003@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/3583771162535417

RESUMO
Este texto, inspirado no caso da robô Sophia, problematiza como a noção de pós-humano
representa a construção do corpo como parte de um circuito integrado de informação e matéria.
Criada pela empresa chinesa Hanson Robotics, Sophia recebeu o título de cidadã da Arábia
Saudita o que causou várias manifestações contrárias a esta concessão para uma mulher robô
enquanto tantas outras mulheres são desprovidas de reconhecimento como cidadãs naquele país.
Investigar as questões sociotécnicas que emergem com o pós-humano na contemporaneidade
nos convida a refletir sobre as diferentes formas com as quais os produtos culturais de nosso
tempo oferecem possibilidades de produzir novos sentidos de nossa própria história. Dessa forma,
buscamos (re)pensar a relação entre humanos e máquinas em suas articulações com questões
ligadas à cidadania, direitos e deveres. Analisamos também os limites e as tensões sociais
engendrados pelo advento do pós-humano, este entendido também como desconstrução das
certezas ontológicas e metafísicas tão fortemente associadas a tradicionais categorias,
geralmente dicotômicas, como por exemplo, as de subjetividade e objetividade.
Palavras-chave: inteligência artificial; Sophia; pós-humano; cidadania.

WHICH BODIES MATTER? NOTES ABOUT CITIZENSHIP AND THE POST-HUMAN


CONDITION: SOPHIA’S CASE
This article, inspired by robot Sophia’s case, problematizes how the notion of post-human
represents the construction of the body as a part of an integrated circuit of information and matter.
Created by the chinese company Hanson Robotics, Sophia received the title of citizen of Saudi
Arabia. That fact caused numerous demonstrations against this concession for a female robot
while so many other women are deprived of recognition as citizens in that country. Investigating
about the sociotechnical issues that emerge with the post-human in contemporary times invites us
to reflect on the diverse ways in which the cultural products of our time offer possibilities to produce
new meanings of our own history. Thereby, we seek to (re)think the relationship between humans
and machines in their articulations with issues related to citizenship, rights and duties. We also

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analyze the limits and the social tensions created by the post-human advent. We understand this
advent as the deconstruction of the ontological and metaphysical certainties so strongly associated
with traditional categories, usually dichotomous, such as those of subjectivity and objectivity.
Keywords: Artificial Intelligence; Sophia; post-human; citizenship

A emergência do pós-humano: notas introdutórias

Na atual "requisição digital" do mundo, criam-se possibilidades de


ampliação da comunicação e da gestão racional e científica do planeta.
Buscar o sentido, ou os sentidos da tecnologia é se engajar na via de
compreensão desse destino do homem no mundo. 1

André Lemos

Há mais de uma década Santaella (2003) já apontava o quanto já estava se


tornado lugar-comum afirmar que as tecnologias da informação e comunicação
reconfiguravam a vida em sociedade. Isso significa mudanças profundas na forma como
trabalhamos, nos comunicamos e produzimos conhecimentos com outros usuários
geograficamente dispersos e que se encontram interconectados à rede mundial de
computadores. Pesquisar a relação do ser humano com as tecnologias digitais em rede
hoje significa permanecermos atentos e sensíveis aos processos criativos e colaborativos
que as pessoas estabelecem "com seus pares ao se apropriarem de informações para
produzir suas próprias expressões culturais através da linguagem mediada pela
cibercultura" (Couto Junior, 2017, p. 126). Linguagem esta que se dá através da
hibridização de imagens, vídeos e sons que, misturados, narram histórias singulares que
evidenciam formas únicas de ser e estar no mundo.
Desde a virada do milênio, inúmeros são os exemplos que evidenciam o quanto as
tecnologias digitais em rede, aliadas ao avanço da inteligência artificial, vêm alterando
profundamente nossa relação com o mundo. Pequenos robôs como o iRobot auxiliam na
limpeza de nossas casas, retornando automaticamente à sua base para recarga de
bateria; dispositivos como o Echo Dot possibilitam que seus usuários controlem por voz

1
Lemos, 2010, p. 29.
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inúmeros equipamentos de suas residências, como luzes, ventiladores, televisão, dentre
muitos outros. Tais produtos, muito comuns nas tramas dos filmes de ficção científica,
podem ser adquiridos hoje no mercado, ainda que seus preços nem sempre sejam
convidativos para os consumidores. Não há como negar que, com o avanço tecnológico e
a crescente demanda no mercado por produtivos inovadores, as máquinas estão sendo
programadas com o intuito de ficarem cada vez mais inteligentes e facilitar a vida do
homem. Frente a esse contexto, cabe questionarmos "o que está acontecendo à interface
ser humano-máquina e o que isso está significando para as comunicações e a cultura do
início do século" (Santaella, 2003, p. 30).
Essa discussão da interface ser humano-máquina nos remete aos diretores de
cinema Alex Garland e Ridley Scott, que desenvolveram trabalhos de ficção científica
abarcando a temática da inteligência artificial em filmes como Ex Machina: Instinto
Artificial (2015) e Ela (2013), para citar alguns. Essas produções audiovisuais evidenciam
alguns dos desafios, desejos e utopias do ser humano num mundo cujos artefatos
culturais digitais são cada vez mais presentes. Diante disso, cabe indagarmos o quanto o
avanço tecnológico vem produzindo máquinas cada vez mais inteligentes que apresentam
grande capacidade de imitar as emoções humanas. Há algumas décadas era impensável
a ideia de que hoje pudessémos “consumir, produzir e distribuir informação sob qualquer
formato em tempo real e para qualquer lugar do mundo" (Lemos, 2010, p. 25, grifos do
autor). Hoje, o futuro que talvez nos aguarda seja o de uma nova e profunda
reconfiguração social na medida em que interagimos com máquinas com inteligência
artificial cada vez mais avançada.
Um dos casos recentes mais interessantes de inteligência artificial é o da robô
Sophia. Desenvolvida pela empresa chinesa Hanson Robotics, Sophia é capaz de
reproduzir inúmeras expressões faciais humanas, reconhecer visualmente uma pessoa,
imitar gestos humanos, além de realizar conversas simples sobre determinados tópicos
cotidianos. A Revista Exame de outubro de 20172 apresenta Sophia como o primeiro robô
do mundo a receber oficialmente o título de cidadã concedido pela Arábia Saudita A

2
Disponível em https://exame.abril.com.br/tecnologia/robo-que-fala-se-expressa-e-faz-ameacas-ganha-
cidadania-saudita/ (Acesso em 26/01/2018)

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concessão desse título de cidadã à robô nos convida a pensar no quanto o "aumento da
potência humana, alargando nosso campo de ação, faz surgir constantemente novas
paisagens de sentidos que nos obrigam a colocar em questão nossas antigas
categorizações e exercer nossas capacidades de discernimento" (Lemos; Lévy, 2010, p.
39). A criação de Sophia vêm exigindo respostas para atender aos desafios do tempo
presente, começando pelo próprio ato de questionarmos o título de cidadã da Arábia
Saudita concedido a uma mulher-robô num país que nega às próprias mulheres-humanas
o direito a esta mesma concessão.

Figura 1 - Sophia interagindo


Fonte: https://www.sciencealert.com/images/articles/processed/sophia_ai_saudi_arabia2_1024.jpg

A partir das considerações acima, queremos propor ao leitor uma discussão


inspirada no caso de Sophia para problematizar como cada vez mais o pós-humano
representa a construção do corpo como parte de um circuito integrado de informação e
matéria. Também queremos pensar, com esse texto, o papel que a transformação
tecnológica vem desempenhando para a emergência do pós-humano, este entendido
também como desconstrução das certezas ontológicas e metafísicas tão fortemente
associadas a tradicionais categorias, geralmente dicotômicas, como por exemplo, as de
subjetividade e objetividade (Santaella, 2004). Essas categoriais vêm alimentando as
análises interpretativas do campo das Ciências Humanas e Sociais, instigando
pesquisadores das diversas áreas do conhecimento a adentrarem uma discussão
inovadora e ao mesmo tempo polêmica.

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Com este pano de fundo em vista, temos como objetivo neste artigo discutir a
relação entre humanos e máquinas e analisarmos os limites e as tensões sociais
engendrados pelo advento da noção de pós-humano em suas articulações com questões
ligadas à cidadania, direitos e deveres. Escapam-nos as referências para se pensar um
mundo no qual uma robô, em toda a sua roupagem tecnológica, parece desnudar cada
vez mais nossas limitações biológicas e, ao mesmo tempo, colocar em xeque a forma
como, tradicionalmente, compreendemos o mundo.

O pós-humano e a convergência dos organismos com as tecnologias digitais

Cada vez mais questões ligadas à subjetividade humana têm sido colocadas em
xeque. Para além das indagações acerca de “quem é o sujeito”, temos problematizado se
ainda é pertinente trabalhar com esta noção, quais são seus limites e potencialidades. Em
texto bastante instigante, Haraway, Kunzru e Tadeu (2009) tensionam o conceito de
sujeito e nos trazem importantes reflexões sobre a dissolução do humano. Com o avanço
da cibernética, os autores propõe ir além do sujeito cartesiano do humanismo clássico e
incorporar as noções de ciborgue e pós-humano. Concordamos com a ideia de que não
existe sujeito ou subjetividade fora da linguagem, da cultura e das relações de poder.
Com isto, há que se atentar para o fato de que “são os processos que estão
transformando, de forma radical, o corpo humano que nos obrigam a repensar a alma
humana [pois] é no confronto com clones, ciborgues e outros híbridos tecnonaturais que a
‘humanidade’ de nossa subjetividade se vê colocada em questão” (Haraway; Kunzru;
Tadeu, 2009, p. 10).
Seguindo as pistas de Viveiros de Castro (2015), entendemos que noções como
perspectivismo e multiplicidade são bastante profícuas para nos auxiliar no entendimento
de Sophia. Abordando uma análise assentada na antropologia pós-estrutural, dialogando
com a filosofia da diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari. O autor discute definições
relacionais entre diferentes espécies e afirma que “se nem todos os existentes são
pessoas de facto, o ponto fundamental está em que nada impede (de jure) que qualquer
espécie ou modo de ser o seja” (p. 46).

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Neste movimento de aproximações, entende-se que toda relação, inclusive (ou
principalmente) os grandes dualismos fundantes das ciências sociais modernas –
natureza e cultura, indivíduo e sociedade, selvagens e civilizados etc. – devem ser
entendidos através de outras duas relações. A primeira relação, denominada de virtual-
intensiva, é caracterizada pela forma como os termos se misturam e transformam-se
mutuamente, enquanto que na segunda, denominada de atual-extensiva, os termos se
distinguem e se opõem claramente em suas autoidentidades. Esta multiplicação da
dualidade pela sua virtualização corresponde à teoria das multiplicidades, que propõe um
efeito “liberador” da “prisão epistemológica onde a antropologia se acha encerrada”,
fazendo passar uma “linha de fuga” por entre os grandes dualismos que a aprisionam
(Viveiros de Castro, 2015, p. 114). Perspectivismo e multiplicidade estão, deste modo,
intrinsecamente relacionados, nos possibilitando pensar Sophia para além de
essencialismos e taxonomias, tão arraigadas em nossas heranças epistemológicas que
buscam intensivamente investir no esforço de reconhecer, classificar, julgar e determinar
especificidades para se questionar noções como as de sujeito, identidade e subjetividade.
Neste diálogo que Viveiros de Castro (2015) estabelece com o campo da filosofia
da diferença, podemos nos respaldar ainda em Guattari (1999), para quem os seres
humanos são os criadores das mais diferentes espécies de máquinas, imbuídas de
aspectos de subjetividade humana. Nessa linha de pensamento, as máquinas
caracterizam-se enquanto a expressão da subjetividade humana e, em decorrência disso,
os robôs também constituem-se enquanto expressão de nossa subjetividade ao
representarem o imaginário tecnológico. Mas será coerente afirmar que os robôs serão
capazes de incorporar e produzir subjetividade própria?
Estamos aqui lidando com uma ideia de corpos em processo de desconstrução.
Movimento este tão caro às reflexões de Deleuze e Guattari (2011, 2012). Os autores se
apropriam da noção de “Corpo sem Órgãos” (CsO), identificando que esta seria uma
forma de protesto, de condenação ao corpo humano que teria se tornado máquina. Para o
CsO, cada “ruído de máquina se tornou insuportável” (p. 21). As reflexões que guiam as
práticas destes corpos em desconstrução evidenciam novos agenciamentos de forças, de

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fluxos, de intensidades, mas que podem, é claro, ser experimentados por outros meios
(Deleuze; Guattari, 2012, v. 1, p. 19).
No entendimento dos autores supracitados, uma desconstrução implica em reverter
a ordem que foi imposta ao corpo pelas máquinas abstratas do campo social. Não se
trata, então, de uma destruição da ordem simplesmente; trata-se muito mais de uma
desconstrução que possibilite a compreensão da produção do corpo, para então organizá-
lo em novas conexões e agenciamentos. Não há garantias que assegurem como e se
conseguiremos transpor os riscos e perigos desta desconstrução sugerida por Deleuze e
Guattari (2012). Importa ainda questionar até que ponto a tentativa de uma antiprodução
do que nossos corpos teriam assimilado não seria algo em concordância com as forças
produtivas vinculadas a processos de mercadorização. Algo que esbarraria justamente
nesta interseção homem-máquina e a criação destes “híbridos tecnonaturais” (Haraway;
Kunzru; Tadeu, 2009, p.10), tendo em Sophia um destes exemplos emblemáticos.
Para além da ideia de que as tecnologias avançadas estariam levando a um
processo de regressão da subjetividade e das relações sociais, entendemos que estes
dispositivos não se reduzem ao que expressam em si mesmo, mas em função dos
agenciamentos coletivos que nelas se exprimem e produzem novas formas de
subjetivação, segundo Parente (2008). O autor questiona a cisão que estabelecemos
entre máquinas e humanos, pautada na oposição natural/artificial, ao entender que o
conceito de Corpo sem Órgãos (CsO) é potente para explicitar que “todo corpo tem suas
artificialidades, toda máquina tem suas virtualidades: são os agenciamentos sociais nos
corpos e nas máquinas” (Parente, 2008, p. 47).
Desde Frankenstein o corpo tem sido posto em cena como um objeto que pode ser
colado, montado como pedaços que podem ser reconstituídos, remontados, reabilitados,
revivido ou simplesmente dotado de uma inteligência artificial. Nesse sentido, o robô, na
medida em que traz dentro de si, embora programada, uma inteligência e uma estrutura
maquínica, traz implicações acerca da fronteira entre o humano e as tecnologias. Bruno
(1999, p. 102), ao discutir a relação entre corpo e tecnologia, apresenta como questão
central a ideia de que ter um corpo pode "não representar nenhuma transformação
positiva ou mesmo indicar a radicalização de um determinismo tecnológico, mas também

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pode haver aí uma ocasião para recolocarmos a questão acerca das possibilidades do
corpo".
O conceito pós-humanismo ganha campo na década de 1990 despertando a
atenção de artistas, filósofos e cientistas a respeito do tema. Não se pode negar, contudo,
a dificuldade de estudar rigorosamente essas especulações como expressão de um
conceito ainda em construção. A criação de Sophia e suas contradições, faz emergir
representações pós-humanistas (Felinto; Santaella, 2012) que trazem ao pesquisador
obstáculos não desprezíveis.
Investigar as questões sociais que emergem com o pós-humano na
contemporaneidade nos convida a refletir sobre as diferentes formas com as quais os
produtos culturais de nosso tempo nos oferecem possibilidades de produzir novos
sentidos de nossa própria história. Isso significa “usar a tecnologia para construir
estratégias de interação com o mundo físico e social, que sejam promotoras de um certo
modo de ver as coisas, interpretando e recriando o mundo de muitas e diferentes
maneiras” (Jobim e Souza, 2002, p. 77). Nesse movimento de (re)ver o mundo,
ressignificando nosso olhar através da mediação tecnológica, é preciso (re)pensar a
emergência do pós-humano numa época nitidamente marcada pelo avanço da
inteligência artificial nas tecnologias digitais em rede.

A cidadania da mulher-robô: entre invenções e reinvenções

A apropriação das teorizações de autores com diferentes perspectivas, tais como


Souza (2009, 2012) e García Canclini (1999) nos auxiliam na indagação sobre diferentes
associações que podem estar envolvidas em torno do significante cidadania,
compreendendo o conjunto de discursos que circulam a seu redor. Deste modo, vale
indagarmos até que ponto as relações entre tradições e inovações se entrelaçam, tendo
como pano de fundo os questionamentos: de que tipo de cidadania estamos tratando e
para quem ela se direciona.
O famoso “Teste de Turing”, proposto por Alan Turing, matemático e pioneiro da
computação, testava a capacidade de uma máquina exibir comportamento inteligente

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problematizando se as máquinas digitais poderiam pensar e ter reações humanas a ponto
de substituir o homem. No caso de Sophia, um algoritmo faz com que seu repertório de
palavras usadas em cada ocasião permita que ela tenha uma conversa fluida e interativa
com alguém. Em outras palavras, Sophia não é apenas uma boneca que solta frases
quando você aperta um botão. Ela ouve o que é dito e decide, graças a sua inteligência
artificial, o que deve responder. No entanto, as possíveis respostas já foram escolhidas
pelos programadores, mas a máquina tem autonomia para decidir qual resposta é a mais
adequada para cada situação.

Figura 2 - Sophia dando entrevista aos jornalistas


Fonte:
https://qzprod.files.wordpress.com/2017/11/rtx39ey4-e1510177793163.jpg?quality=80&strip=all&w=4503

Embora não tenhamos como objetivo historicizar a questão da cidadania neste


texto, vale enfatizar que um dos modelos clássicos para se pensar o conceito é aquele
trazido por Marshall (1967), que engloba a tríade de direitos civis, políticos e sociais, nos
séculos XVIII, XIX e XX. No caso das mulheres, contudo, tais prerrogativas se deram de
modo bem mais difuso. Conforme indica Hunt (2009), as mulheres simplesmente não
constituíam uma categoria política claramente separada e distinguível antes da Revolução
Francesa. O que auxiliou, em grande medida as mulheres a ocuparem espaços no
cenário político decisório foi, em primeira instância, a divulgação e ampliação da liberdade
dos canais de imprensa e atualmente, o advento das novas redes digitais, nas quais

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encontram brechas e espaços para escreverem suas histórias, não mais atadas a
documentos e legislações elaboradas pelo público masculino.
Cabe destacarmos que novos desafios se colocam para uma sociedade que cada
vez mais entende a cidadania como diretamente atrelada ao consumo de bens materiais e
simbólicos (García-Canclini, 1999). O consumo excessivo, que não é igual para todos, é
encarado como um dos nós que retardam a marcha do progresso, dada a perversidade
com que exclui grande parte da população de seus benefícios. Embora Sophia e outros
avanços tecnológicos mais recentes possam parecer alternativas mercadológicas a outros
artefatos culturais, é inegável que a construção do robô e de outras máquinas inteligentes
são produtos culturais "firmemente enraizados no capitalismo contemporâneo" (Santaella,
2003, p. 29). Afinal, Sophia está a serviço de quem? E quem pode pagar por um robô
Sophia?
Discutindo a relação entre inclusão digital, cidadania e educação, Dias (2012)
entende que os direitos e deveres de um cidadão envolvem uma comunicação eficiente e
num sentido horizontal com outros cidadãos, de modo que possam discutir diferentes
pontos de vista, o acesso à informação veiculada na mídia e os direitos civis, políticos e
sociais, além dos deveres relativos a uma comunidade política, participando na vida
coletiva do Estado. No entendimento do autor, quando pensamos as tecnologias digitais,
podemos entender a existência de um novo campo de possibilidades para comunicação
em cada uma das áreas citadas, “não permitindo à pessoa dela excluída, portanto, o
pleno exercício da cidadania” (Dias, 2012, p. 107).
Se em um pólo temos a robô Sophia recebendo a alcunha de primeira cidadã na
Arábia Saudita3, em um país ainda tão marcadamente influenciado por toda uma cultura
patriarcal, por outro temos um imenso contingente da população que pouco ou quase
nada possui em termos de acesso aos recursos tecnológicos. O título de cidadã
concedido à Sophia revela o quanto nossa sociedade ainda carece de políticas públicas
voltadas para a igualdade de direitos; uma sociedade que produz corpos-humanos cujas
“vidas precárias” (Butler, 2015) nem sempre merecem ser vividas porque são impedidos

3
Fonte: http://revistagalileu.globo.com/Tecnologia/noticia/2017/10/arabia-saudita-torna-se-primeiro-pais-
conceder-cidadania-para-um-robo.html (Acessado em 10/01/2017)
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de transitar livremente pelos espaços públicos, usufruindo plenamente do acesso à
cidadania. Dito isso, podemos nos questionar: quais corpos importam?
O paradoxo reside justamente neste fato. Uma robô, agora cidadã-ciborgue, tendo
mais direitos do que as mulheres sauditas que dentre diversos impeditivos, somente
podem estudar fora do país, viajar e realizarem outras atividades após o aval de um
membro familiar do gênero masculino. Naquele país, somente em julho de 2017 foi
concedido a mulheres o direito de dirigir e a permissão de que pudessem assistir a
partidas de esportes em estádios, antes direitos exclusivamente masculinos 4. Feministas
de diversos locais, nascidas ou não na Arábia saudita, se manifestaram contra o que
consideram absurdo: abrir uma concessão para uma mulher robô e manter as demais
mulheres desprovidas de seu reconhecimento enquanto cidadãs. Num mundo no qual há
"uma mudança de perspectiva que transformou a sociedade dominada pela indústria e
pela manufatura para uma outra dominada pela informação, comunicação, símbolos e
serviços mediados por tecnologias digitais" (Lemos, 2004, p. 140), o que significa ficar de
fora dessa experiência social contemporânea?
Para Santos (2015), o que mudou nas nossas vidas, nesse início de século, com o
debate sobre as invenções culturais, é tão devastador que, de imediato, afeta até o modo
como criamos e produzimos conhecimento. Pensando o caso do Brasil, no que se refere à
questão da cidadania e ao acesso aos diferentes bens dispostos na sociedade, Souza
(2009, 2012) reflete sobre o que denomina a existência de uma “subcidadania” na qual se
inserem alguns grupos, pertencentes ao que o autor denomina “ralé brasileira”. O autor
trata de forma bastante contundente a forma como estes indivíduos foram sendo inseridos
dentro do processo de modernização da sociedade, mas uma sociedade que naturaliza as
desigualdades e “aceita produzir ‘gente’ de um lado e ‘subgente’ de outro” (Souza, 2009,
p. 24). Ao se referir ao que denomina como “ralé brasileira”, explica que esta “classe de
indivíduos”, vista sob a ótica da carência, nasceu sem o “bilhete premiado” da classe alta
e média. São pessoas que, tidas como um estigma quase que inato, não encontram
condições nem afetivas, nem emocionais, morais ou existenciais de “in-corporação” dos

4
Fonte: https://www.terra.com.br/noticias/tecnologia/mulheres-sauditas-se-revoltam-com-cidada-robo-sem-
hijab-e-mais-direitos-do-que-elas,21a503b8c4de333f71702b4df37d0f96qi9fa18c.html (Acessado em
10/01/2017)
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pressupostos indispensáveis à apropriação tanto de capital cultural quanto de capital
econômico. Grupos que vivem às margens da delinquência e do abandono, excluídos de
todas as oportunidades materiais e simbólicas de reconhecimento social, em oposição a
demais grupos que são, ainda que diferencialmente, incluídos. E isto é algo que implica
desconstruirmos alguns binarismos e percebermos os dramas familiares e existenciais de
grupos durante tanto tempo marginalizados.
Em outro movimento, a questão da subcidadania ou da ausência da mesma, nos
parece aplicável ao caso das mulheres e de outros grupos minoritários formados por
pessoas praticamente invisibilizadas no debate público. Algo que não ocorre com a robô
Sophia, que já possui ampla visibilidade e até mesmo páginas na rede social Facebook 5
destinadas a postagens com seus vídeos. Uma mulher saudita nem sequer teria acesso a
tais redes digitais sem que tal passasse pelo crivo de alguém do sexo masculino. Estas
constatações corroboram com a percepção das diferenças e as desigualdades de acesso
e uso (García Canclini, 2007) existentes não só em nível local, mas também global, ainda
muito presentes e perturbadoras. Esse fenômeno é discutido no trabalho de Velloso
(2017), para quem se apropria do conceito de subcidadania (Souza, 2009) para pensar a
subcidadania digital.
Em tempos em que tantos não se imaginam offline, em tempos de uma ciber-robô-
cidadã que interage com frequência nas redes digitais, outros tantos pouco ou nunca
ficam online (Velloso, 2017). Frente a isso, não há como negar que ainda precisamos
continuar construindo práticas de resistência que possam combater esta longa história de
profundas desigualdades sociais ainda muito visível na contemporaneidade. Almejamos
que cada vez mais usuários possam usufruir das experiências sociais das redes online,
uma vez que essas redes são muito importantes para que as pessoas ocupem os
espaços urbanos em prol de "seu direito de fazer história - sua história" (Castells, 2013, p.
8), unindo forças para questionar uma cidadania que, não raramente, é marcada pelo
desprezo e humilhação social.

5
Fonte: https://www.facebook.com/RealSophiaRobot/ (Acessado em 12/01/2017)
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Considerações finais

Vivenciamos, atualmente, um período de grandes mudanças sociais engendradas


pela relação homem-máquina e que vêm trazendo como consequência desafios
relacionados às questões ligadas à cidadania, direitos e deveres. A sociedade se
modificou ao longo do tempo, por influência de muitos fatores, a exemplo do
conhecimento produzido e das tecnologias que lhe são próprias. Em cada momento
histórico, as relações entre tecnologia e conhecimento adquiriram características
específicas. Para além da suposta neutralidade, as tecnologias digitais em rede fazem
parte de um universo complexo, de mudanças cada vez mais velozes das relações entre
as pessoas para a produção de sua existência no mundo contemporâneo.
Este texto, inspirado no caso da robô Sophia, problematizou como cada vez mais a
noção de pós-humano representa a construção do corpo como parte de um circuito
integrado de informação e matéria que inclui componentes humanos e não-humanos.
Tencionamos que, se por um lado, a robô Sophia recebe a alcunha de primeira cidadã na
Arábia Saudita, por outro lado temos um imenso contingente da população que pouco ou
quase nada possui em termos de acesso aos recursos tecnológicos, o que acarreta como
consequência o impedimento de seu reconhecimento enquanto cidadãos.
Frente a isso, a emergência do pós-humano, mais especificamente o caso Sophia,
nos convida a pensar sobre as profundas desigualdades sociais contemporâneas. O que
está em jogo não é apenas a impossibilidade de todos os corpos-humanos terem acesso
aos bens materiais, mas o quanto as relações de poder produzem corpos-humanos
indignos de participar amplamente das questões políticas e culturais de nosso tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Brasileira, 2015.

CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet.


Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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COUTO JUNIOR, D. R. Marcas da abjeção expressas em conversas sobre
heteronormatividade com jovens no Facebook: em defesa de uma pedagogia queer. 2017. 290
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ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA


ANO X – N° 01/2018
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SOBRE OS AUTORES:

Rosemary dos Santos é professora Adjunta do Departamento de Formação de Professores da


Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Baixada Fluminense
(UERJ/FEBF). Também atua como docente do Programa de Pós-Graduação em Educação,
Cultura e Comunicação (PPGECC) da UERJ/FEBF. É vice-coordenadora do Grupo de Pesquisa
Docência e Cibercultura (GPDOC).

Luciana Velloso é professora Adjunta no Departamento de Ciências Sociais e Educação (DCSE)


da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Também atua
como docente do Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação (PPGECC)
da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Baixada Fluminense
(UERJ/FEBF).

Dilton Ribeiro Couto Junior é pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ), com bolsa CNPq/PDJ. Membro do
Grupo de Pesquisa Infância, Juventude, Educação e Cultura (IJEC) e do Grupo de Estudos em
Gênero e Sexualidade e(m) Interseccionalidades (Geni).

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ANO X – N° 01/2018

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