Documentário-O Nascimento de Goiás
Documentário-O Nascimento de Goiás
Documentário-O Nascimento de Goiás
O Nascimento de Goiás
A bandeira de
300 anos
Três séculos atrás, Bartolomeu Bueno da Silva pedia ao rei de
Portugal autorização para explorar minas de ouro no sertão
brasileiro. Nascia ali a colonização que ocuparia Goiás
Rogério Borges
rogerio.borges@opopular.com.br
Há 300 anos, aquele pedido dirigido ao rei português d. João V ganhou dois
despachos do Conselho Ultramarino e dois pareceres de procuradores da Fazenda
e da Coroa portuguesa. O Conselho Ultramarino de Portugal comunicou, em 14
de junho de 1720, que o rei havia dado a permissão pedida, estabelecendo que
o governador da Capitania de São Paulo deveria apoiar a expedição em busca
de “pedras e tesouros que se ocultam da coroa de Vossa Majestade”. Em troca,
ganhavam o direito de explorar as passagens dos rios que descobrissem.
Goiás, tal como o conhecemos, começava a nascer ali. Ainda que muitos
exploradores já tivessem passado por aqui – inclusive o próprio Bartolomeu Bueno
da Silva, filho de um outro bandeirante de mesmo nome e que foi alcunhado de
Anhanguera, por volta de 1682 –, ninguém havia se preocupado em fundar nas
terras onde posteriormente seria Goiás um povoamento. “Goiás era um lugar de
passagem somente”, contextualiza o historiador Antônio César Caldas Pinheiro,
diretor do Instituto Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEHBC).
O IPEHBC, unidade da PUC Goiás, tem um dos maiores acervos ligados àquele
período, boa parte compartilhada com instituições portuguesas, como o Arquivo
Ultramarina e a Torre do Tombo, em Lisboa. Obras raras e documentos antigos
integram esse material, incluindo uma cópia do requerimento de 1720 do chamado
Segundo Anhanguera, aquele que foi o fundador dos primeiros arraiais goianos.
Antônio Caldas mergulhou nesse universo em suas pesquisas, que levaram ao livro
Os Tempos Míticos das Cidades Goianas.
2
O Nascimento de Goiás
A caminho
do ouro Parte da
expedição
seguiu para o
Norte
Confira o trajeto
atribuído ao 10
bandeirante por 8 11
historiadores 13 9
Os itinerários 12
de Anhanguera 7
Os relatos sobre as
expedições dos dois
GO 6
5
Anhangueras são variados e
discrepantes. Alguns dos mais 4
famosos são a Chronographia
Histórica da Província de
Goyaz (1824), Anais da
3 MG
Província de Goiás (1863) e
Descobrimento da Capitania
de Goyaz (1967).
2
Uma obra, porém, se destaca:
A Bandeira do Anhanguera a
Goyaz (1917), hoje raríssimo,
SP 1
composto pela reconstituição
escrita por dois integrantes da
expedição que saiu da vila de
São Paulo de Piratininga em 3
de julho de 1722.
3
O Nascimento de Goiás
RIO
1 SÃO PAULO 5 PARANAÍBA 10 CAVALCANTE
“Saí da cidade de S. Paulo a O próximo rio citado é o “da Meia O encontro com os Quirixás é
3 de julho de 1722 em companhia Ponte”. Possivelmente trata-se apontado, na versão de Urbano
do Capitão Bartolomeu Bueno do Rio Paranaíba, mas é possível do Couto, nas nascentes dos rios
da Silva, o Anhanguera de que também falasse do próprio Maranhão e Paranã, no Nordeste
alcunha (...). Dos brancos, quase Meia Ponte, que deságua no goiano. A expedição teria
todos eram filhos de Portugal, um Paranaíba. Começam a surgir passado à esquerda de onde hoje
da Bahia e cinco ou seis paulistas menções à tribo dos “Guayazes” é Cavalcante. Fala também da
com os seus índios.” Relato de parte da expedição, que
José P. da Silva Braga ao padre “se desnorteou”, a de Silva Braga,
Diogo Soares e foi parar nas águas do
6 CATALÃO Rio Tocantins
4
O Nascimento de Goiás
Fábio Lima
A rota para o sertão foi inaugurada bem antes de o primeiro Anhanguera e seu
filho, então com cerca de 12 anos de idade, empreenderem a primeira aventura pelo
interior brasileiro. Já em 1647, outro bandeirante, Manuel Correia, abriu os caminhos
pioneiros pelos limites traçados pelo Tratado de Tordesilhas, assinado entre
Portugal e Espanha em 1494, que dividia as novas terras. As bandeiras, sobretudo
as que saíram da modesta Vila de São Paulo de Piratininga (que viria a ser a maior
metrópole da América Latina), tiveram papel essencial nessa ocupação.
5
O Nascimento de Goiás
EXPEDIÇÕES MISTERIOSAS
Sobre a expedição do primeiro Anhanguera, que começou por
volta de 1682, há muitas hipóteses. Uma delas afirma que teria se
arranchado nas proximidades de onde hoje está a cidade de Jaraguá,
deixando inscrições na grande serra que existe na região. Outros
acreditam que seria difícil encontrar tais rastros tanto tempo depois,
havendo outras explicações para essas pistas. Ao anunciar suas
descobertas, porém, Bartolomeu Bueno, o filho, assegurou que havia
localizado os lugares em que estivera quando adolescente com o pai
bandeirante.
6
O Nascimento de Goiás
Fábio Lima
O primeiro
IGREJA NOSSA
SENHORA DO
Arraial
ROSÁRIO DA
BARRA, na vila
de Buenolândia,
conhecida
como Vila dos
Garimpeiros ou
antigo Arraial
No encontro dos rios Vermelho e do Bugre, da Barra, no
município da
Bartolomeu Bueno da Silva abriu lavras de ouro. cidade de Goiás
Seguindo os passos do Anhanguera, chegamos
ao Arraial da Barra, povoado pioneiro
Dona Maria de Almeida da Silva tem 93 anos e deu à luz 11 filhos. “Todos
eles criados aqui na Barra”, esclarece, com uma vitalidade incomum para a uma
senhora de sua idade. “Já me esqueci quantos anos eu moro aqui”, admite. Sempre
no mesmo lugar. Sua casa, que já passou por muitas reformas e mudanças no
decorrer das décadas, fica colada ao muro do cemitério que ladeia a pequena e
bela Igreja Nossa Senhora do Rosário, a primeira erguida na região, logo quando o
lugar foi ocupado por um bandeirante paulista que vinha atrás de ouro.
7
O Nascimento de Goiás
Fábio Lima
MARIA DE
Bartolomeu Bueno da Silva, o Segundo Anhanguera, em sua missão de ocupar
ALMEIDA DA
os sertões brasileiros quase 300 anos atrás. Por se encontrar no local onde o Rio
SILVA, 93 anos:
do Bugre despeja suas águas no leito do Rio Vermelho, a localidade foi batizada
“Todos os
em 1726 de Arraial da Barra. Ali, Anhanguera abriu sua primeira lavra fixa para
meus 11 filhos
explorar o ouro da região. Ali estaria enterrado.
foram criados
aqui na Barra.
O distrito, atualmente chamado de Buenolândia em homenagem ao seu
Já me esqueci
fundador, preserva o mesmo ar pacato há décadas. Com poucas ruas e moradores
quantos anos
que se conhecem a vida toda, chega-se a ele por estrada de chão e é cercado por
eu moro aqui”
propriedades rurais. A Igreja do Rosário é sua construção mais imponente e, após
ser reformada, ganha manutenção periódica dos moradores. Uma delas guarda a
chave da porta do templo e do portão do cemitério, que costuma ser aberto apenas
quando alguém precisa ser ali sepultado.
8
O Nascimento de Goiás
primeiras bases nas terras que depois seriam Goiás. Crônicas históricas dizem
que o lugar foi escolhido por Anhanguera para se estabelecer porque ali teria
encontrado vestígios da primeira expedição, de 1682, liderada por seu pai,
também alcunhado de Anhanguera. O nome do território a ser explorado por
quem vinha do litoral se deveria ao fato de ali haver um aldeamento da tribo
dos guoiases.
NO CORAÇÃO DO BRASIL
Muitas lendas cercam essa iniciativa pioneira de vir ao coração brasileiro
não apenas para capturar ou evangelizar indígenas, mas para tomar posse do
território, erguendo os primeiros povoamentos fixos. Construções precárias
foram erguidas em pontos onde se esperava que houvesse ouro. “Em 1725, havia
ranchos onde depois seriam povoados, como Ouro Fino, Ferreiro e a própria
Barra”, diz o pesquisador Antônio Caldas, consultando documentos. Mas um
povoado mesmo só foi efetivado em 1726, data oficial de sua fundação.
Dona Maria de Almeida não sabe detalhes dessa narrativa. Olha para a
igreja onde vai aos domingos assistir à missa como quem olha para um espelho,
reconhecendo- se em cada detalhe e já nem prestando atenção aos sinais que
passaram a fazer parte de sua rotina. “Vem tomar café, meu filho”, convida. “Eu
moro aqui com uma filha e ainda faço tapetes”, revela, mostrando sua produção
de peças coloridas. A arrumação é impecável e a comida está no fogão. Ela leva
sua vida no ritmo de Buenolândia, sem se importar muito com o fato de ser
vizinha da história.
9
O Nascimento de Goiás
Três anos e dois meses depois, uma mensagem enviada por Anhanguera
chegou a São Paulo de Piratininga, a vila que se tornaria depois a maior
metrópole da América Latina. E as notícias não eram boas. Segundo o relato,
haviam “perdido 22 escravos para os gentios” e falava de males e doenças no
meio da mata, ainda que “as áreas não serem tão contagiosas como Cuiabá”,
comparava, fazendo referência ao povoado fundado em 1719 e que viria a
ser a capital do Estado do Mato Grosso. A carta implorava por mais recursos
para a empreitada.
ANTÔNIO CÉSAR
CALDAS PINHEIRO,
Essa correspondência, que consta dos Anais da Província de Goiás,
historiador, sobre o
publicados por José Martins Pereira de Alencastro em 1863, revela que a
movimento inicial das
carta, ao chegar ao governador Rodrigo de Meneses, em 27 de outubro de
bandeiras a Goiás
1725, já fazia pouco sentido. Três dias antes, o próprio Anhanguera e seu
nos anos 1720: “Há
companheiro de bandeira, seu genro João Leite Ortiz, surpreendentemente
discrepâncias de datas,
apareceram em carne e osso em São Paulo para dizer que a missão havia
dependendo do autor
sido um sucesso, informando pessoalmente que existiam muitas minas de
que se consulte”
ouro na bacia do Rio Vermelho.
“Há discrepâncias de datas, dependendo do autor que se consulte”, pondera o historiador Antônio César
Caldas Pinheiro, do IPEHBC. Se José Martins Pereira de Alencastro fala no retorno dos bandeirantes em
24 de outubro de 1725, Americano do Brasil, em Súmula da História de Goiás, crava esta data em 21 de
outubro, afirmando que a volta do Anhanguera se deu após “três anos, dois meses e três dias”. As boas novas
foram dadas à Corte Portuguesa e a resposta veio em uma carta do rei, de 29 de abril de 1726, autorizando o
retorno ao sertão.
O grupo formado por Bartolomeu Bueno da Silva, pelo Padre Antônio de Oliveira Gago e pelos sócios João
Leite Ortiz e Manoel Pinto Guedes, segundo José Martins de Alencastro, saiu de São Paulo em maio de 1726,
já sabendo exatamente aonde queria chegar. Aquela primeira lavra aberta na barra do Rio do Bugre com o Rio
Vermelho se transformaria no primeiro arraial do território que viria a ser Goiás. Ouro Fino e Ferreiro, ranchos
que também foram montados por Anhanguera na região, também seriam alçados a arraiais entre 1726 e 1727.
Anhanguera seria, por um bom tempo, senhor e dono de muitos destinos por aqui. Exerceu cargos
de poder e fundaria, em 1727, o Arraial de Sant’Anna, que seria promovido a freguesia (ganhando uma
paróquia) em 1729 e considerado um povoado em 1739. Nascia ali a cidade que depois se chamaria Vila
Boa de Goiás, futura sede de capitania. Mais correspondências revelam que Anhanguera, ainda em 1728,
fez mais uma viagem a São Paulo, para prestar contas do ouro retirado das minas goianas e conseguir mais
recursos para tal exploração.
10
O Nascimento de Goiás
Fábio Lima
11
O Nascimento de Goiás
Duas Lavras
pioneiras
Chegamos em mais dois arraiais fundados por
Anhanguera. Ferreiro e Ouro Fino sumiram no
tempo e hoje restam apenas pequenos traços
Fábio Lima
Fizemos a última viagem. Foi lá pro sertão de Goiás. Não fomos acompanhados
dos boiadeiros e tropeiros que percorriam aquelas paragens cerca de um século
atrás, não fomos com nenhum capataz. Não viajamos muitos dias para chegar em
Ouro Fino, nem “passemo” a noite numa festa do Divino. Em uma das canções
mais clássicas da música caipira, uma tragédia durante este festejo é narrada. Um
tiroteio, a morte de Chico Mineiro por um homem desconhecido, a amargura do
amigo que descobre tarde demais que a vítima é seu irmão.
12
O Nascimento de Goiás
No meio desse caminho entre a cidade de Goiás e Ouro Fino há uma outra
construção, que remete a tempos passados que deixaram poucos registros físicos.
Na beira da estrada, caiadas de branco e azul, construções destoam da paisagem.
A Igreja de São João Batista e o pequeno cemitério anexo são as únicas edificações
que restaram do Ferreiro, outro arraial fundado por Bartolomeu Bueno da
Silva, também em 1727, a partir de uma aglomeração de garimpeiros que ali se
arrancharam em busca das riquezas no subsolo da região.
13
O Nascimento de Goiás
Fábio Lima
14
O Nascimento de Goiás
15
O Nascimento de Goiás
Fábio Lima
RUÍNAS
da velha
Igreja Nossa
Senhora do
Pilar, na região
de Ouro Fino
16
O Nascimento de Goiás
Segundo a pesquisadora, o destino de Ouro Fino foi traçado por alguns vetores.
“Um fator que impactou fortemente para o abandono do local foi a saída do
Seminário de Santa Cruz, que se instalou em Bonfim – hoje Silvânia – e também a
queda da ponte sobre o Rio Uru, fazendo com que a estrada para a cidade de Goiás
(antiga Vila Boa, capital), fosse desviada, passando por fora de Ouro Fino”, escreve.
De acordo com o relato de Victor Almeida, de 1929, “o povoado de Ouro Fino
ocupa uma área retangular de 600 por 200 metros”.
Como se percebe, Ouro Fino, em seu fim, já era modesto em tamanho, mas
nem sempre foi assim. Tanto que sua localização consta de mapas antigos da
capitania de Goiás. Na tese de doutorado Urbanização Em Goiás no Século XVIII,
defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a pesquisadora
Deusa Maria Rodrigues Boaventura recupera documentação da época depositada
no Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa. São registros que mostram arraiais,
como Ouro Fino e Ferreiro, com certa importância.
17
O Nascimento de Goiás
“Ouro Fino é um arraial que junto a córrego deste nome três léguas de
distância de Vila Boa, com caminho a Leste, e não ao Sul; e o Rio Cabra, onde os
descobridores de Goiás acharam o primeiro ouro, atravessa o caminho de Vila Boa
para Meia Ponte[PIRENÓPOLIS], porque nascendo ao Norte deste vai cair ao Sul
no Rio Uruú e não Irou; este Rio Uruú nasce nas fraldas ao Sul da Serra Dourada,
e não em 19 graus de latitude, onde põem Mato Grosso, porque este Mato Grosso
atravessa o caminho que vai de Meia Ponte a Vila Boa”, diz a carta.
Uma dessas igrejas permanece de pé e está restaurada. A outra caiu por terra
e mal pode ser vista da beira da estrada. Ambas testemunham os tempos iniciais
de Goiás. Ambas estão fincadas em localidades que o próprio Anhanguera ajudou
a fundar, onde bandeirantes das primeiras levas de exploradores fixaram suas
ambições, onde as terras goianas começaram a ser ocupadas de uma maneira
até ali inédita. Arraiais que expandiram as fronteiras do Brasil conhecido, que
ajudaram a abrir caminhos até o litoral, que também contam a história de Goiás.
Fábio Lima
18
O Nascimento de Goiás
O arraial de
Todos nós
Das lavras de ouro iniciais de
Anhanguera, só uma persistiu
para se tornar capital e, depois,
Patrimônio da Humanidade
Weimer Carvalho
Em cada uma das curvas do Rio Vermelho, que serpenteia nas bordas da Serra
Dourada, uma promessa de riqueza aguardava quem chegou com o sonho de
encontrar ouro. Uma corrida de ambições, violências e histórias quase inacreditáveis,
em que se misturam destemor quanto ao desconhecido e uma mentalidade de
dominação que vitimou incontáveis pessoas. Aqueles bandeirantes que fizeram as
picadas iniciais por essas paragens, ainda no final do século 17, e os que retornaram
para fixar seus ranchos, depois de 1720, eram motivados por tais objetivos.
Quase 300 anos depois de expedições cheias de escravos e que combatiam os
povos indígenas nativos – muitas vezes, exterminando-os ou os subjugando –, os
vestígios daquelas aventuras lideradas por homens barbudos e moldados pelas piores
condições de sobrevivência ainda podem ser vistos. Mas não há nada que se compare
ao antigo Arraial de Sant’Anna, depois Vila de Sant’Anna, em seguida Vila Boa de
Goiás, apelidada posteriormente de Goiás Velho e, enfim cidade de Goiás. Muitos
nomes para uma história cheia de versões e mistérios.
19
O Nascimento de Goiás
Fábio Lima
20
O Nascimento de Goiás
REQUERIMENTO dos
capitães Bartolomeu
Bueno da Silva, João
Leite da Silva Ortis e
Domingos Rodrigues
do Prado, pedindo
a D. João V provisão
para irem ao sertão do
Brasil, em 13 de janeiro
de 1720
21
O Nascimento de Goiás
Weimer Carvalho
A CRUZ do Anhanguera
é o marco de onde
foram erguidas as
primeiras construções
da cidade de Goiás
A CONTROVERSA
CRUZ DO BANDEIRANTE
Cartão-postal da cidade de Goiás, na entrada da ponte da Lapa, à beira do
Rio Vermelho, a Cruz do Anhanguera tem uma história cheia de percalços e que
provoca discussões entre estudiosos. Encontrada em 1914, o objeto é considerado
vestígio da chegada dos bandeirantes. Assim que passaram do atual Triângulo
Mineiro, eles a teriam fincado para marcar a conquista. Uma inscrição no pé da
cruz indicaria uma data, segundo os primeiros relatos, incerta: 172... Essa versão
foi contestada posteriormente. Segundo a revista A Informação Goyana , que
circulou no Rio de Janeiro em 1927, quem achou a cruz foi um trabalhador da
estrada de ferro em Goiás. A referida inscrição trazia a data de 1746. O historiador
Antônio Caldas tende a acreditar que a cruz não foi trazida a Goiás por
Anhanguera e argumenta. “Os limites da capitania de São Paulo com Goiás eram
fixados antes no Rio Grande e não no Rio Paranaíba. Até 1816, todo o Triângulo
Mineiro pertencia a Goiás. Por que Anhanguera fixaria o novo território só depois
do Paranaíba?”, pondera. Ele pontua que a elevação da cruz como um símbolo
dos tempos iniciais ocorreu quando Vila Boa, já um aglomerado urbano regional,
estava prestes a comemorar cem anos. Houve polêmica sobre a cruz quando ela foi
descoberta, sobre sua transferência de Catalão para Goiás. Já em 2001, ela quase
foi perdida numa enchente. Dias depois, foi reencontrada Rio Vermelho abaixo, e
resguardada no Museu das Bandeiras. A que está no pedestal hoje é uma réplica.
22
O Nascimento de Goiás
ANHANGUERA, ENTRE
O CÉU E O INFERNO
Em sua época, um homem duro, que teria exercido sua autoridade com a
força que aqueles tempos sem lei pediam a quem estava em sua atividade. Após
sua morte e por muitos anos, a figura mítica do desbravador, destemido em suas
conquistas, o patriarca de um Estado. Com o tempo, essa imagem idealizada
foi perdendo força e não só ele, como todos os bandeirantes, passaram por uma
revisão histórica, com seus atos violentos do passado, como mortes e escravização
de indígenas, sendo enfatizados. Verdadeiros demônios surgiram daí.
“Acho que Anhanguera foi um homem de seu tempo. Isso precisa ser levado
em conta em qualquer avaliação. Não é correto ver suas ações de 300 anos atrás
apenas com os parâmetros de hoje. Houve muita violência, sim, mas é inegável
a importância do que ele desempenhou no período”, opina o historiador e
pesquisador Antônio Caldas Pinheiro. Ele, porém, acredita que houve muita
imprecisão em torno do retrato de Bartolomeu Bueno da Silva e que isso prejudica
leituras.
“Você tem narrativas desencontradas, de pessoas que teriam tido contato com
pessoas que o teriam conhecido, que viveram em seu tempo. Observamos uma
tendência a fazer dele um mito. Há relatos de que morreu com 106 anos e que,
adivinhando a própria morte, teria ido a pé à igreja para receber a extrema-unção
e visitado vários moradores do então arraial de Sant’Anna para se despedir”,
menciona. No livro Os Tempos Míticos das Cidades Goiana, Antônio Caldas
reúne algumas dessas versões.
Uma delas consta em O Descobrimento da Capitania de Goyaz, de Luiz
Antônio da Silva e Souza, publicada em 1849. Compilando relatos orais, o autor
afirma que, ao chegar à bacia do Rio Vermelho, “aqui se preencheram os fins do
Anhanguera, chegou à meta dos seus trabalhos, viu e venceu”. “Percebam que
remete à clássica frase de Júlio César participando ao Senado romano sua vitória
sobre Farnaces, rei do Ponto. Há significado em torno da figura do Anhanguera
nesse sentido”, destaca Antônio Caldas.
23
O Nascimento de Goiás
Diomício Gomes
DIABO VELHO
Até mesmo a adoção do apelido Anhanguera – Diabo Velho na língua dos
indígenas que seu pai aqui encontrou 40 anos antes da fundação dos arraiais – traz
muito dessa aura de mitificação. “O apelido teria advindo da prática de colocar
fogo em aguardente e fazer crer que poderia incendiar as águas. Só que esse
subterfúgio era comum entre os bandeirantes muito antes”, informa. O historiador
Sérgio Buarque de Holanda chega a cogitar que a alcunha se devia a Anhanguera
ter um “olho estragado” e não ao truque do usado pelo garimpeiro.
Em outro momento, Antônio Caldas recorre a uma carta de 15 de abril 1755,
enviada pelo secretário da Capitania de Goyaz, Ângelo dos Santos Cardoso, ao
secretário da Marinha e de Ultramar de Portugal, Diogo de Mendonça Corte Real,
em que dá informações sobre a retirada do ouro na região e recorda Bartolomeu
Bueno da Silva com os mais altos elogios, mesmo 15 anos após a sua morte,
ocorrida em 19 de setembro de 1740. “Tudo cingia a seu mando e tinha a fortuna
de ser obedecido daqueles primitivos com unanimidade”, descreve.
Para quem estava enfronhado em um ofício em que sobravam conflitos,
possibilidades de roubos e desvios, traições e tocaias no meio do sertão, ter
esse poder de liderança era um predicado especialmente útil. Isso foi criando e
reforçando essa figura mítica. “A sua força e robustez, sua religiosidade, coragem
e camaradagem para com os moradores da vila que fundara, são elementos, nesse
caso, constitutivos do caráter do herói que o narrador quer construir”, argumenta
Antônio Caldas sobre algumas narrativas em torno de Anhanguera.
24
O Nascimento de Goiás
POBREZA
O final da vida do personagem histórico, porém, não teria
sido nada parecido com o poder que gozou por quase duas
décadas nas minas goianas. Velho e pobre, teria morrido sob
a caridade dos outros, segundo relatos de cronistas da época,
coletados por Luiz Antônio da Silva Souza. “É de admirar
que o descobridor de tanta riqueza, que possuiu as melhores
lavras e extraiu grossas somas na primeira abundância, caísse
por demasiada fraqueza em decadência tal”, diz o cronista,
falando no recebimento apenas de “uma arroba de ouro da
real fazenda”.
Antônio Caldas não duvida que esse mergulho vertical na
miséria tenha acometido aquele que detivera tanto prestígio e
tirou do solo verdadeiras fortunas, mas o historiador ressalta
que a condição de injustiçado ajuda a consolidar o mito. Uma
construção simbólica que tem rachado mais recentemente,
a ponto de haver um movimento que pede a retirada de sua
estátua na Praça do Bandeirante, no Centro de Goiânia,
tratando-o como um genocida dos indígenas. Entre o céu e o
inferno viveu Anhanguera. Entre o céu e o inferno continua
sua figura histórica.
25
O Nascimento de Goiás
O Nascimento
de Goiás
Matéria originalmente publicada na edição
do jornal O POPULAR entre os dias
21 de março e 11 de abril de 2020
REPORTAGEM
Rogério Borges
EDIÇÃO
Rodrigo Alves
EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA
Weimer Carvalho
ARTE
André Rodrigues
Luiz Antena
Roberto Castejon
CAPA
André Rodrigues
FOTO DA CAPA
Cláudio Reis
26