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DIAS, Figueiredo. para Um Sistema Renovado de Facto Punível

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Para um sistema renovado do facto punível

PARA UM SISTEMA RENOVADO DO FACTO PUNÍVEL


Fora renewed system of the criminal fact
Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 112/2015 | p. 107 - 122 | Jan - Fev / 2015
Doutrinas Essenciais Direito Penal e Processo Penal | vol. 1/2015 | Jan - Dez / 2015
DTR\2015\1976

Jorge de Figueiredo Dias


Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Membro do
Conselho Diretivo da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Membro do
Conselho Fiscal do Banco Português de Investimento. Diretor da Revista Portuguesa de
Ciência Criminal. Redator e Comproprietário da Revista de Legislação e de
Jurisprudência. Membro do Internationaler Beraterkreis da Zeitschrift für die gesamte
Strafrechtswissenschaft. Sócio emérito do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
Detentor da Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo.

Área do Direito: Penal


Resumo: O artigo pretende introduzir algumas modificações no sistema do direito penal
mais vulgarizado nas doutrinas europeias e brasileira. O sistema dogmático não deve ser
comandado por orientações filosóficas apriorísticas (positivistas, normativistas ou
ônticas), mas por proposições político-criminais derivadas do cerne do pensamento do
Estado Democrático sob a forma do Estado de Direito. A proposição primordial reside em
que a categoria fundamental do sistema não deve ser a da ação, nem tão pouco a da
tipicidade formal-abstrata, mas a do concreto ilícito-típico (ou tipo de ilícito) iluminada
pelo bem jurídico: por isso todo o direito penal é direito penal do bem jurídico. A
segunda é a de que a categoria sistemática da culpabilidade é limitada pelo axioma
básico de qualquer regime democrático: o do respeito integral pela eminente dignidade
da pessoa humana. Por isso todo o direito penal é direito penal da culpabilidade. A
terceira proposição é a da necessidade de dar acolhimento à categoria da punibilidade
como expressão da necessidade ou carência de pena do concreto caso da vida: por isso
todo o direito penal é direito penal preventivamente necessário.

Palavras-chave: Pensamento sistemático - Pensamento problemático - Ação - Tipicidade


- Ilicitude - Tipos de ilícito - Culpabilidade - Tipos de culpabilidade - Punibilidade -
Necessidade de punição.
Abstract: This article intends to introduce some changes in the most common criminal
law systems within the European and Brazilian jurisprudence. The dogmatic system must
not be driven by aprioristic philosophical orientations (positivist; normative or ontic), but
by criminal policy propositions which derive from the core of the Democratic State's way
of thought, through the form of the Rule of Law. The primary proposition resides in the
fact that the system's main category must not be the action, nor the formal-abstract
typicality, but of the actual typical-crime (or type of crime) enhanced by the legal good:
therefore all criminal law is criminal law of the legal good. The second one is the
systematic category of culpability through the basic axiom of every democratic system:
full respect for the eminent dignity of the human being. Therefore all criminal law is
criminal law of culpability. The third proposition is the need to engage the category of
punishability as an expression of the need or lack of punishment in the precise real-life
case: therefore all criminal law is preemptively necessary criminal law.

Keywords: Systematic thinking - Problematic thinking - Action - Tipicality -


Wronfgulness - Types of crime - Culpability - Types of culpability - Punishability - Need
of punishment.
Sumário:

- I - II - III - IV - V - VI

Página 1
Para um sistema renovado do facto punível

Foi em agosto de 1981 – já lá vão 33 longos e conturbados anos – que proferi no Rio de
Janeiro, a convite da Ordem dos Advogados, a minha primeira conferência no Brasil, que
intitulei “Direito Penal e Estado de Direito material”. Tenho consciência de que essa
conferência obteve alguma ressonância entre os meus irmãos brasileiros. Mas sei
também que isso se não deveu tanto à qualidade do orador, quanto sim à circunstância
de versar uma problemática que, se em Portugal correspondia já à situação
político-constitucional vigente, instaurada pelo Movimento do 25 de abril de 1974, soava
aos democratas brasileiros, mergulhados ainda em tempos de ditadura militar, como um
anseio profundo que queriam com toda a sua força concretizar. No entrementes,
encontrei em São Paulo, particularmente no seio do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais, a minha casa e a parte da minha família deste lado do Atlântico. A ela volto
sem cansaço nem lassidão. Aqui estou de novo, caminheiro de longa viagem, disposto a
prestar contas, dizendo no menor número possível de palavras aquilo que tentei fazer,
nos terrenos que cultivei, ao longo de tanto tempo. Desculpar-me-eis por isso, assim o
espero, se esta intervenção for para mim sobretudo um exercício de recordação.

Decidi por isso, depois de aturada reflexão, dar parte de algumas das minhas
meditações sobre o sistema e a dogmática jurídico-penais: no fundo, voltar ao meu
tema de 1981, mas sob um pressuposto que agora (felizmente) já é diferente não
apenas em Portugal, mas também no Brasil: o da existência jurídico-constitucional de
um Estado de Direito consolidado. Dirão alguns que o tema relativo ao sistema e à
dogmática jurídico-penal é um tema antigo e fora da moda do nosso tempo e dos seus
problemas. Responderei: é mais que antigo, é eterno. Mediático seguramente não o é.
Mas isso só porque se não pode exigir à mídia que compreenda que, sobretudo em
ordens jurídicas que, como a portuguesa e a brasileira, não se baseiam na case law, mas
na norma legal, o sistema e a dogmática penais constituem as bases imprescindíveis
sem as quais se não poderá ter a esperança fundada de encontrar a solução justa e
correta de um caso penal da vida, da passada, da atual e da futura.

Ainda como aluno, uma das mais importantes ideias que insistentemente me foi
inoculada pelos meus Mestres foi a de que a Ciência que então aprendia deve ser
comandada por um ponto de partida metodológico e nela deve ser buscado o
fundamento e o sentido do pensamento jurídico. Era o tempo em que a chamada
“jurisprudência dos interesses”, como reação contra o legalismo positivista e
lógico-subsuntivo, continuava a constituir nota distintiva do pensamento jurídico
conimbricense, temperada já embora pelas especificidades de cada disciplina jurídica; e
em que por isso o meu Mestre Eduardo Correia acentuava, na cadeira de Direito
Criminal, que a metódica da atenção pelos interesses em jogo tinha de ser combinada,
sem contradição, com a particular incidência em matéria incriminatória do princípio da
legalidade, aparentemente formal, mas na verdade ético-politicamente fundado em nada
menos que no princípio democrático primordial do respeito pela dignidade humana. Mas,
mal assomada a era dos anos 60 do século passado, era o tempo já em que, sobretudo
nos fins de semana, no ambiente magnífico da sala A do nosso Instituto Jurídico
coimbrão, os mais jovens assistentes – em contradição flagrante com a fama da
Faculdade como instituição altamente formalista no trato e nas distâncias – eram
admitidos a uma participação democrática e igualitária nas discussões sobre Direito (mas
também sobre religião, política, economia, literatura, cinema ou mesmo futebol) em que
se encorreavam os mais venerados dos professores. Aí nos confrontávamos com
novidades metodológicas fundamentantes como as do pensamento “tópico” e “retórico”,
das teorias da “argumentação” e do “consenso”, da dimensão “prática” da aplicação do
direito, do “sistema aberto”; e éramos incentivados a meditar sobre dicotomias radicais
como as da ética versus funcionalismo, do ontologismo versus normativismo, da
teleologia versus logicismo.

Hoje, relativamente a estes temas, são (ai de mim!) muito mais numerosas e maiores as
dúvidas do que as certezas. Mas, cingindo-me ao pensamento jurídico-penal,
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Para um sistema renovado do facto punível

mantenho-me fiel a algumas convicções sólidas: a de que aquele pensamento deve


apresentar-se como teleológico-funcional; a de que, na sua parte incriminatória – uma
vez ultrapassado o momento “inicial” de subsunção lógico-formal, substancialmente
imposto pelo conteúdo e sentido materiais do princípio da legalidade penal –, deve
aceitar-se a prioridade de princípio do “problema” sobre o “sistema”, se bem que este
não possa ser abandonado ou minimizado, sob pena de se renunciar a uma proteção
indispensável da certeza e da segurança cidadãs; a de que, por conseguinte, há que
manter até ao limite o sistema pensado a partir da “existência” do Homem (socializado e
aberto aos outros), mas disposto a cada momento a ser refeito ou reinventado face à
solução dada a casos da vida ainda não pensados (há que manter o “sistema aberto ao
1
problema”, na feliz expressão de Costa Andrade em interpretação da minha conceção).

Acrescentarei só o seguinte. Influenciado, de forma decisiva, primeiro pelas lições


teóricas que recebi do meu professor de Processo Civil, Castanheira Neves, e depois pela
circunstância de, desde os meus 24 anos de idade, ter sido encarregado pela Faculdade
da regência teórica do curso de Processo Penal (que mantive por décadas), sempre
guardei em mim a ideia de uma certa “dominância” do processo sobre o direito
substantivo, de acordo com o princípio de que in principio erat processus non ius.
Interrompida pela pandectística, e incentivada depois pela filosofia jurídica de teor
kantiano e neokantiano, a evolução pós-positivista não fez senão somar razões para
repor a validade do princípio. Reposição que correu e corre por vias diversas, das quais
posso destacar a deslocação progressiva do centro das atenções metodológicas do
momento contemplativo da norma geral e abstrata para o processo de aplicação da
norma ao caso da vida. Compreensão, esta, que vejo reforçada nos tempos atuais,
quando os problemas da legitimação do jurídico são conexionados com as questões
fulcrais da teoria constitucional e da democracia deliberativa. Orientações que acima
referi como as do pensamento tópico e retórico e da teoria da argumentação, divergindo
em muitos e importantes pontos, parecem-me convergir em ideias decisivas como a de
que a participação, a discussão e o discurso são as únicas vias possibilitadoras do
consenso; a de que a intersubjetividade discursiva e o consenso intersubjetivo são
critérios práticos da “verdade”; e a de que é todo este processo que cria as bases de
legitimação democrática deliberativa. Na eterna e sempre renovada pergunta “como
pode o Direito ser justo?”, não diviso hoje alternativa a uma fundamentação e a uma
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construção “processuais” da Justiça.

II

O que analisarei em seguida não constitui nenhum tema particular da ciência


jurídico-penal, senão uma daquelas questões centrais que por sua natureza se propõem
englobar, em alto grau de abstração, a generalidade problemática do respetivo ramo do
saber; uma daquelas questões que se não são por si mesmas suscetíveis de oferecer
soluções a concretos casos da vida, são, todavia, de consideração obrigatória na
descoberta daquelas soluções. Do que pretendo curar é das ideias básicas do sistema
jurídico-penal do facto punível próprio da sociedade democrática, pluralista e laica tal
como as compreendo; e das questões dogmáticas centrais que aquele sistema suscita.

Parto da ideia de que o fundamento do sistema jurídico-penal se não deve procurar em


qualquer conceção filosófica pressuposta de ordem naturalista, normativista ou
ontologista, como até há pouco se pensou e hoje ainda muitos continuam a pensar.
Fundamento do sistema jurídico-penal é antes o conjunto das proposições
político-criminais que emergem do modelo de sociedade democrática
constitucionalmente pressuposto que se quer defender e melhorar e que ao direito
penal, como subsistema do sistema social, cumpre realizar. Tal como foi intuído
claramente pelo ideário iluminista e pela sua ideia madre do “contrato social”, função do
direito penal – função de cumprimento dificílimo, porque inevitavelmente antinómico – é
o asseguramento a cada um do exercício da mais completa liberdade pessoal e,
simultaneamente, a garantia à comunidade das mais latas margens de paz e segurança.

A partir deste suposto básico se erguem as três colunas sobre as quais deve continuar
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Para um sistema renovado do facto punível

hoje a se basear o sistema jurídico-penal. A primeira coluna assenta na convicção de


que, nos quadros da “ciência global do direito penal” (da gesamte
Strafrechtswissenschaft pensada há mais de um século por v. Liszt), tal como dela julgo
dever continuar a falar-se, a prioridade funcional deve ser concedida à política criminal e
não à dogmática jurídico-penal: é aquela que comanda esta nas determinações
teleológicas e racionais. A segunda radica em que à função do direito penal no corpo
social não pertence a defesa de mandamentos de ordem religiosa, ética ou ideológica,
mas – na expressão consagrada de Claus Roxin – exclusivamente a proteção subsidiária
3
de bens jurídico-penais, isto é, de bens dotados de dignidade penal (avaliada à luz da
ordem axiológica da Constituição) e necessitados de pena. A terceira coluna traduz-se
em que as penas criminais possuem finalidades exclusivamente preventivas (de
prevenção geral e de prevenção especial) e não natureza de castigo, paga ou retribuição
do mal do crime, se bem que a sua aplicação tenha de ficar sempre na dependência da
existência de culpabilidade do agente. Um sistema que respeite estes pressupostos –
que corresponda a este verdadeiro “paradigma” – revela-se pelo melhor compatível com
o modelo do Estado-de-Direito e os seus valores supremos de respeito pela dignidade da
pessoa e de defesa da comunidade; encontrando, deste modo, lastro num património
comum de valores suscetível de fornecer a base de consenso imprescindível à sua
solidez.

O sistema do facto punível de natureza categorial-classificatória foi, como é sabido,


construído e propulsionado há mais de um século, pela doutrina alemã primeiro de raiz
naturalista-positivista, depois neokantiana, depois ôntica, tendo podido resistir
vitoriosamente à arremetida, nos anos 30 do século passado, de um pensamento
ordinalista concreto que se pretendia baseado numa certa interpretação do pensamento
jusfilosófico de Hegel; um pensamento – acrescentarei – que vejo com alguma
estranheza obter ressonâncias muito atuais numa conceção “global” do sistema
jurídico-penal baseado numa alegada compreensão da doutrina da “imputação” de
4
Puffendorf. Este sistema analisava-se na exigência de um conceito de ação pré-jurídico
como base da construção de um edifício tripartido, constituído sucessivamente pelas
categorias, de cada vez menor extensão e maior compreensão, da ação típica, ilícita e
culposa. A este sistema, dito “tripartido”, pude eu, desde tempos precoces do meu
5
contacto com estas matérias, opor um outro sistema, ele também tripartido, formado
pelas categorias do ilícito típico, da culpabilidade e da punibilidade. É a este sistema que
dedicarei aqui breves considerações.

III

A primeira proposição do sistema do facto punível deve, em meu parecer, rezar da forma
seguinte: a categoria do ilícito típico, na qual a primazia cabe à essência da ilicitude
jurídico-penal, apresenta-se como direta decorrência da função protetiva do direito penal
no corpo social. Função que, à luz aqui preconizada, só pode analisar-se na tutela
subsidiária de bens jurídicos dotados de dignidade penal e cuja lesão os torna carentes
de punição criminal. Legitimação de todo o sistema é assim que as incriminações penais
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se possam justificar, sem exceção, à luz de um direito penal do bem jurídico.

Com efeito, se a função do direito penal se restringe à proteção de bens jurídicos dignos
e carentes de pena; e se a noção de bem jurídico constitui o elemento material
fundamental, se bem que possuidor de uma função trans-sistemática, da valoração de
um concreto comportamento como objetivamente ilícito – então é este mesmo elemento
do crime não na sua conotação formal abstrata como “ilicitude” ou “antijuridicidade”,
mas na sua concreta realidade material, na forma de ilícito típico ou (o que é o mesmo)
de tipo-de-ilícito, que deve constituir a pedra angular e possuir prioridade ôntica e
normativa na construção do sistema jurídico-penal.

1.Recuso, desta maneira, o valor prioritário que as conceções sistemáticas positivistas,


normativistas e finalistas, ou mesmo as modernas conceções “mistas” (incluídas as que
se reivindicam de uma conotação teleológico-funcional, como a de Claus Roxin)
concedem, na construção do sistema, ao conceito de ação. Tenho por certo que um tal
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Para um sistema renovado do facto punível

conceito, como quer que se assuma – como naturalístico, normativo, final, social,
pessoal… –, nem tem legitimidade material para se arvorar em fundamento do sistema;
nem pode ser concebido de modo unitário, capaz de suportar todas as formas de
aparecimento do facto penal (ativo e omissivo, doloso e negligente); nem tão pouco
poderá manter-se como entidade autónoma (como o imporia um puro sistema
categorial-classificatório), estranha ao tipo e a ele previamente dada, que não antecipe
alguma ou algumas das posteriores predicações sistemáticas. É tempo – desde há muito
o venho afirmando – de a doutrina do crime renunciar a encontrar a sua última Thule
nos resultados da abstração generalizadora e classificatória e aceitar o que houve de
7
premonitório a este respeito no pensamento de Gustav Radbruch.

Por isso penso ser inevitável assinalar a um conceito geral de ação o desempenho de um
papel secundário no sistema: atribuindo-lhe a mera função negativa (ou de
“delimitação”, na terminologia do saudoso professor Hans-Heinrich Jescheck) de excluir
da construção os comportamentos ab initio jurídico-penalmente irrelevantes. E, mesmo
aqui, fruto da carga inevitavelmente normativista que o sistema há-de conter, com os
cuidados necessários para não colocar injustificadamente fora do sistema
comportamentos como os dos entes coletivos, os quais são no direito penal português,
como em tantos outros direitos europeus e americanos, autores idóneos de factos
penais. Não consigo convencer-me que para um sistema jurídico-penal só a pessoa
individual possa ser capaz de ação; e isso tem sido reconhecido, p. ex., por legislação
proveniente do seio da própria União Europeia. Logo aqui, um apressado doutrinarismo
seria decerto impeditivo da criação de uma gramática dogmática jurídico-penal europeia
ou mesmo global. E tanto mais quanto – este é o argumento decisivo – a consagração
da possibilidade de responsabilização penal de entes coletivos constitui uma exigência
político-criminal para que possa ter êxito a tutela jurídico-penal dos bens jurídicos (em
especial, dos chamados “bens jurídicos coletivos”) postos em grave perigo pela grande e
nova criminalidade, própria da “sociedade do risco”.

2.Mas a afirmação do tipo-de-ilícito como categoria primordial do sistema jurídico-penal


não releva só do ponto de vista da desvalorização dogmática do conceito de ação,
quanto sobretudo de uma outra perspetiva: a de que se não justifica a separação de tipo
e ilicitude como elementos autónomos do sistema, antes eles hão de ser reunidos numa
unidade categorial; nem muito menos se justifica que o tipo se considere, como continua
a ser ainda doutrina dominante, a primeira valoração jurídico-penal, o prius face à
ilicitude, enquanto o ilícito seria apenas a predicação, o posterius, a consequência. Antes
ilicitude e tipo se reúnem numa unidade axiológico-funcional; numa unidade que
diretamente se ligue à função social do direito penal de assegurar aos cidadãos a plena
realização da personalidade de cada um e em que sejam respeitados os direitos
humanos reconhecidos a nível internacional, no quadro de uma livre e pacífica
convivência em sociedade. Com a categoria do tipo-de-ilícito se traduz assim o específico
sentido de desvalor jurídico-penal que atinge um concreto comportamento humano
numa concreta situação, atentas todas as condições reais de que ele se reveste ou em
que tem lugar; e que permite a afirmação, aparentemente simples mas na realidade
inúmeras vezes da mais alta complexidade, de que este concreto comportamento é, na
situação, jurídico-penalmente proibido. Com o que de resto tomo já posição na
controvérsia sobre a questão de saber se existe apenas um ilícito jurídico “geral”, ou se
é aceitável e necessária a conceitualização de um ilícito especificamente penal. Adiro a
esta última alternativa, embora por razões de brevidade tenha de me ficar por esta
afirmação apodítica.

Só a partir da conceção explanada do ilícito típico como categoria primordial do sistema


jurídico-penal ganha de resto o “tipo” o seu verdadeiro significado, nesta aceção
podendo reabilitar-se a já antiga asserção de Hardwig de que “sem ilícito não há tipo”;
ou, dito rigorosamente à luz do meu entendimento, de que todo o tipo é tipo-de-ilícito.
Como em certo momento muitas doutrinas, entre as quais a portuguesa e a alemã,
pareciam dar-se conta – antes que a questão se tivesse complicado (e obscurecido) com
a querela à roda da doutrina dita dos “elementos negativos do tipo” ou do “tipo
conjunto” –, o tipo-de-ilícito surge como tipicização ou sedimentação concreta de um
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Para um sistema renovado do facto punível

ilícito: é um ilícito cunhado tipicamente, é (nas palavras de Eduardo Correia) “o


interposto da valoração jurídico-penal”, o “portador da valoração de um concreto
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comportamento como ilícito”. Critérios de delimitação da extensão e do sentido do tipo
– dos quais depende, portanto, algo de decisivo, a saber, se um concreto
comportamento é penalmente proibido ou permitido – como, entre outros, os da
imputação objectiva, da área de proteção da norma, da adequação social, dos tipos
abertos, são para mim critérios obtidos a partir mesmo da sublinhada essência do ilícito
típico e da sua função no sistema.

Nem a existência das chamadas causas de justificação ou de exclusão da ilicitude põe


minimamente em causa esta concepção do tipo-de-ilícito como pedra angular do sistema
ou obriga à reabilitação da doutrina dos elementos negativos do tipo. O que se passa é
tão só que a mencionada mostração de um ilícito tipicamente cunhado se serve de dois
instrumentos diferentes ou mesmo de sinal contrário, mas funcionalmente
complementares. A um deles chamo tipos incriminadores, ou conjunto de circunstâncias
fácticas que diretamente se ligam à fundamentação do ilícito e onde, por isso, assume
papel primacial a configuração do bem jurídico protegido e as condições, a ele ligadas,
sob as quais o comportamento que as preenche pode ser considerado ilícito. O outro são
os tipos justificadores (ou causas de justificação) que, servindo igualmente à
concretização do conteúdo ilícito de uma conduta concreta, assumem o carácter de
limitação dos tipos incriminadores.

3.Uma outra observação analisa-se em que também por esta forma se não torna mais
difícil a distinção tradicional entre ilícito típico e culpabilidade. A evolução doutrinária
mais recente só confirma a minha convicção já antiga de que a distinção – seja qual for
a extensão das consequências que a ela se liguem – é elemento imprescindível de um
sistema do facto punível moderno e democrático. E é garantia irrenunciável de um
correto tratamento dos casos jurídico-penais. Pôr em causa a distinção – ou, ainda pior,
abandoná-la – significaria o retrocesso de mais de um século na evolução científica da
nossa disciplina.

4.Uma última observação desejaria fazer ainda. Na dogmática jurídico-penal dos últimos
anos ganhou especial atualidade a questão de saber se o ilícito deve ser perspetivado
como lesão de bens jurídicos (como insistentemente acentuam, por exemplo, Claus
Roxin e os seus seguidores) ou antes (como querem Günther Jakobs e os seus
discípulos) como lesão do dever e consequentemente da norma de ilicitude. Já há muito
9
exprimi a ideia de que não é indispensável ver neste binómio uma alternativa
inevitável; podendo razoavelmente afirmar-se que o ilícito penal se exprime
materialmente, enquanto direta decorrência da função social do direito penal, como
violação da ordem de proteção subsidiária de bens jurídico-penais; e que a essência da
punição se pode exprimir formalmente como estabilização contrafáctica das expetativas
comunitárias na validade da norma violada. Ou, aproximando-me da impressiva
formulação de Alcacer Guirao, que o fim do direito penal – e, com ele, a essência do
ilícito – radica primordialmente na proteção de bens jurídicos e secundariamente na
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proteção da vigência da norma, sem prejuízo de se tratar aqui de fins intimamente
vinculados do ponto de vista funcional.

IV

A segunda proposição definidora de um sistema jurídico-penal teleológico e racional dirá


deste modo: a categoria sistemática da culpabilidade é imposta – entre nós e em outros
países pertencentes ao nosso contexto jurídico-cultual até jurídico-constitucionalmente
imposta - pelo axioma ôntico-axiológico que preside ao ordenamento jurídico
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democrático: o do respeito integral pela eminente dignidade da pessoa humana. O
princípio da culpabilidade surge deste modo como a forma por excelência de defesa ética
irrenunciável daquela dignidade, limitando os excessos e abusos que poderiam provir
não só, no plano prático, de excessos do poder punitivo estadual, como, no plano
teorético, do necessário ponto de partida funcional da construção sistemática do facto
punível. Por isso toda a aplicação de uma pena tem de se apresentar como produto de
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Para um sistema renovado do facto punível

um direito penal da culpabilidade. Chegados assim à temática da culpabilidade como


categoria indispensável do sistema do facto penal, devo reconhecer que é aqui (ou a
partir daqui) que ainda hoje continuam a revelar-se as maiores dúvidas e dificuldades de
construção de um novo sistema do direito penal.

1.Quereria, em primeiro lugar, opor-me a uma desconsideração possível do tema na


base da argumentação seguinte: se o sistema teleológico-funcional é
político-criminalmente fundado, e de forma essencial a partir da consideração das
finalidades da pena; e se estas finalidades são, como atrás afirmei, exclusivamente
preventivas – então o dilema parece estar posto: ou se vai ao ponto de eliminar a
culpabilidade como categoria constitutiva do sistema, substituindo-a por outras
categorias como a da proporcionalidade – o que, não se perca a consciência, deveria
então supor a integral substituição do sistema das penas criminais por um qualquer
sistema de “medidas”; ou, quando a categoria da culpabilidade se mantenha, ela não
poderá ser outra coisa, como uma vez afirmou Jakobs, senão um mero “derivado da
prevenção” e das exigências desta.

A procedência de uma tal argumentação constituiria, a meus olhos, uma perda


irreparável no sistema do facto punível e não é de modo algum imposta. Se as
finalidades da pena são na verdade exclusivamente preventivas, só o podem ser
legitimamente quando do mesmo passo se chame a debate, para justificar a intervenção
penal, o princípio da culpabilidade enquanto elemento limitador do poder e do
intervencionismo estatais, comandado por exigências éticas irrenunciáveis de respeito
pela dignidade da pessoa. Decerto, a culpabilidade não é a única forma pensável de
defesa daquela dignidade (como logo o revela a legitimidade de aplicação de medidas de
segurança criminais que não supõem a culpabilidade, ou mesmo de medidas
administrativas de caráter punitivo); mas é a mais perfeita e completa que o
pensamento jurídico até hoje descobriu e o penhor mais seguro de que as exigências da
prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (da prevenção
geral e da prevenção especial positivas, podemos nesta aceção também dizer) se
legitimem perante o agente imputável. Por isso vejo no princípio da culpabilidade uma
autêntica máxima de civilização e de humanidade; e por isso não consigo descortinar
ainda hoje alternativa para um direito penal da culpabilidade ético-jurídica.

2.Em segundo lugar, continua a ser frequente o entendimento – explícito ou pressuposto


– de que, com a comprovação do carácter ilícito típico do facto punível, está também
afirmada prima facie a culpabilidade; de modo que toda a questão da culpabilidade se
reduziria dogmática e praticamente à da sua exclusão em certas situações. Mas, que
pese ao valor “prático” que ao argumento possa ser atribuído no processo da aplicação
do direito, ele não possui, em meu parecer, valor seguro para a discussão jurídico-penal.
Também a culpabilidade deve ser dada através de tipos-de-culpabilidade, devendo
inclusivamente distinguir-se, nesta compreensão das coisas (e segundo os diferentes
tipos de “ atitude interna” manifestados pelo agente no facto), um tipo-de-culpabilidade
doloso e um tipo-de-culpabilidade negligente, cada um com os seus pressupostos
próprios e que se não esgotam nos pressupostos do dolo e da negligência como tipos
subjetivos de ilícito, que são também.

De resto, a afirmação de uma culpabilidade “de princípio” terá sido teoreticamente


incentivada pela geralmente aceite indemonstrabilidade prática do liberum arbitrium
12
indifferentia; problema que nunca deixou de me acompanhar e que alguns pensam
assumir hoje um novo contorno. Um novo contorno derivado do facto de as novas
neurociências reivindicarem – uma vez mais, na história já multimilenar do problema – a
plena demonstrabilidade neurobiológica de um determinismo férreo e sem hiatos do ato
13
(psicológico) da vontade. Quem, porém, conheça o que tenho pensado a propósito da
questão “determinismo versus indeterminismo” aceitará que – ressalvado o respeito
pelas aquisições das ciências ditas “exatas” ou “estritas” – eu não me sinto estorvado
pelo argumento que dali muitos julgam poder retirar. O problema da determinação ou
indeterminação científico-natural do ato psicológico da vontade do indivíduo e o da
liberdade pressuposta pelo juízo de culpa e consequente responsabilidade jurídico-penal
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Para um sistema renovado do facto punível

são, a vários títulos, radicalmente diferentes.

Não vejo sentido no recurso às neurociências para validar ou invalidar proposições


jurídico-penais político-criminalmente fundadas. A pretensão, por aquelas ciências, de
transpor a “verdade” do determinismo neuronal para o domínio ético da vida em
sociedade estaria ao mesmo nível da “verdade” do patologista que pretendesse afirmar a
inexistência da alma por nunca a ter encontrado na ponta do seu bisturi. O problema do
direito penal não é esse, mas o de encontrar soluções para questões de convivência
social na base da culpabilidade e da responsabilidade: seria um mundo de autómatos
aquele em que – no âmbito do direito (penal, mas também constitucional, civil,
laboral…), da política, da economia, da cultura – a autodeterminação “moral” fosse pura
e simplesmente negada; e sem que à viabilização ajudasse no que quer que fosse a
fábula de um qualquer big brother ou minority report. Do ponto de vista jurídico-social e
da necessária comunicação interpessoal, a liberdade do “eu”, a culpabilidade e a
responsabilidade são decerto, como acentua Habermas, “construções sociais”, mas não,
14
como alegam muitos neurocientistas, “uma ilusão”: do que se trata é sim da
necessidade (e legitimidade) de uma “perspetiva dualista” que tem de ser aceite em
toda a comunicação interpessoal e social, seja qual for a posição que no problema da
determinação ou indeterminação se assuma em perspetiva científico-natural.

Aceite este pressuposto, não sinto prejudicada, no que quer que seja, a minha já antiga
ideia – que julguei poder colher numa interceção (talvez surpreendente para alguns…)
do pensamento teológico católico e da filosofia da existência nas duas décadas
posteriores à II Guerra Mundial – de que o que importa, para efeitos de culpabilidade e
de responsabilidade jurídicas, é a necessária superação de uma liberdade indeterminista
do ato de vontade com vista a alcançar uma liberdade pessoal; ou – para dizer com Karl
Rahner – do recuo da liberdade como propriedade da ação em favor da liberdade como
15
“caraterística do ser-que-age” como um todo. Daqui se concluirá que o homem, no seu
concreto existir, é sempre ser-livre. E a partir daqui se tornará possível lograr um
conceito jurídico-penal de culpabilidade da pessoa sistemática e dogmaticamente
16
exequível, além de eticamente e político-criminalmente aceitável. Uma conceção, esta,
em que a aceitação da liberdade do ser do agente é pressuposto (pessoal, espiritual,
ideal) da culpabilidade jurídico-penal sem que todavia se torne em critério de aferição do
seu conteúdo material ou da sua medida.

Terá, de resto, residido porventura nesta problemática a razão mais funda que levou
Roxin a substituir o lugar tradicional do conceito de culpabilidade no sistema por uma
categoria complexa – a da responsabilidade (Verantwortung) – que reuniria duas
subcategorias em princípio distintas: a da culpabilidade, à qual continuaria a ser
atribuída a já referida função limitadora do poder do Estado; e a da carência de pena,
que conduziria à exclusão da responsabilidade (e assim também da própria
culpabilidade) em função da inexistência in casu de exigências preventivas a que a pena
devesse responder. Creio todavia fundada a crítica – a que Costa Andrade dedicou
17
minuciosa análise – de que na categoria da “responsabilidade” se misturam coisas
diferentes e porventura à partida inconciliáveis. Não é só – ou não é tanto – o sentido
emblemático e simbólico (e todavia, como disse, político-criminalmente insubstituível) da
culpabilidade que assim se esbate. Aquilo a que deste modo se abre a porta é à eventual
confusão dos dois planos de análise que ali se entrecruzam, podendo verificar-se uma
intromissão perturbadora de considerações de prevenção ao nível do próprio juízo
ético-jurídico de culpabilidade, e, assim, a perversão do significado que reveste a
consagração deste. Por exemplo, a ideia-mestra da não exigibilidade, que está mesmo
na base do estado de necessidade subjetivo, é substancialmente análoga à que
fundamenta a exclusão da culpabilidade por falta de consciência do ilícito não
censurável; e nenhuma delas tem a ver, em primeira linha, com a insubsistência de
exigências preventivas, antes sim com a própria essência da ideia de culpabilidade
jurídico-penal como atitude interna reprovável do agente, manifestada no facto, perante
o dever-ser jurídico-penal. E mais ainda: o não se manterem completamente distintas as
exigências da culpabilidade e as da prevenção torna-se suscetível de subverter o modelo
de determinação da medida da pena. O que é particularmente grave em direitos, como o
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Para um sistema renovado do facto punível

português e o alemão, que dispõem que aquela determinação seja feita em função da
culpabilidade e da prevenção; e que conduz a construções artificiosas como a de uma
“culpabilidade para efeito de medida da pena” como entidade dogmática e
político-criminalmente diversa da “culpabilidade para efeito de fundamentação da pena”.

3.Gostaria ainda de deixar claro – para maior esclarecimento de algumas das afirmações
que fiz – como é que, na minha conceção sistemática, se deve resolver a questão (que
décadas atrás constituiu o campo por excelência da controvérsia entre normativistas e
finalistas) da conceitualização e integração sistemáticas do dolo e da negligência: se
como elementos do tipo-de-ilícito (como queriam os finalistas), se do
tipo-de-culpabilidade (como defendiam os normativistas). Hoje, a maioria da doutrina
18
penal aceita – e bem, como desde a primeira hora defendi – que eles conformam tipos
subjetivos de ilícito. Mas uma parte significativa dessa mesma doutrina reconhece
também que, sendo função do princípio da culpabilidade indicar máximos de pena que
não podem ser ultrapassados; e prevendo a lei diferentes máximos de pena para o
mesmo facto, consoante ele seja cometido com dolo ou só com negligência – isso há de
por força significar que no dolo e na negligência se trata de entidades que, já em si
mesmas, revelam diferentes conteúdos materiais de culpabilidade que o direito penal
entende graduar ou tipificar. Como é isto possível?

Não, penso eu – diferentemente da ainda hoje doutrina maioritária –, considerando que


o dolo e a negligência, como tipos subjetivos de ilícito, relevam também
automaticamente, ou de forma puramente reflexa, como graus de culpabilidade. Nem
tão pouco, julgo – como defendem Jescheck, Hünerfeld e outros –, que se trata aqui, tão
só, de uma dupla valoração do dolo e da negligência no tipo-de-ilícito e no
tipo-de-culpabilidade. Do que se trata, em parecer que venho apresentando já há
décadas, é que dolo e negligência são entidades complexas, constituídas por elementos
pertencentes ao tipo-de-ilícito e de elementos próprios do tipo-de-culpabilidade. O dolo,
enquanto conhecimento e vontade de realização de um tipo objetivo de ilícito constitui o
tipo subjetivo de ilícito respetivo; enquanto expressão, atualizada no facto, de uma
atitude interna ou pessoal de contrariedade ou indiferença perante a valoração da
ilicitude constitui o cerne do tipo de culpabilidade dolosa. Por seu turno a negligência,
enquanto violação de um dever objetivo de cuidado constitui o tipo subjetivo de ilícito
negligente; enquanto expressão, atualizada no facto, de uma atitude pessoal de
descuido ou leviandade perante o dever-ser jurídico-penal constitui o âmago do
tipo-de-culpabilidade negligente. Conceção, esta, que apresenta enorme interesse
prático no tratamento de problemas concretos, máxime, o da falta de consciência do
ilícito.

Em suma, só quando aos elementos do tipo subjetivo de ilícito doloso e negligente


acrescerem os elementos específicos do tipo de culpabilidade doloso ou negligente se
perfecionam o dolo e a negligência e pode legitimamente desencadear-se a punição
respetiva.

Finalmente, a terceira proposição integrante de um sistema renovado do crime como


aqui se preconiza deriva de se dever tomar verdadeiramente a sério, também em
contexto sistemático, o princípio político-criminal do direito penal como ultima ratio da
política social, do chamado nesta aceção “direito penal mínimo”. Ligando este princípio à
ideia da natureza exclusivamente preventiva das sanções penais, daí decorre a exigência
da categoria da punibilidade como expressão da necessidade ou carência de pena do
concreto caso da vida. Por isso se devendo afirmar como condição de legitimação do
sistema que toda a punição tem de surgir como fruto de um direito penal
preventivamente necessário.

Deve assim reconhecer-se que com a afirmação do tipo-de-ilícito e do


tipo-de-culpabilidade se não esgota o conteúdo do sistema do facto, antes se torna
19
indispensável completá-lo com uma categoria autónoma que justificadamente se
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Para um sistema renovado do facto punível

poderá chamar da “ punibilidade ”. Uma categoria dentro da qual atua e lhe empresta
sentido a ideia madre do merecimento de pena do facto concretamente cometido. Esta
ideia, procurei eu traduzi-la usando o designativo – de resto com direito de cidade
dogmático-sistemático também neste preciso contexto – “ dignidade penal ”
(propositadamente contrastante com o designativo, também frequentemente usado,
20
“necessidade penal” ou “carência de punição”). Mas verdade é que – por razões que
ultrapassam a questão terminológica, para se nutrirem do conteúdo material – a
utilização da expressão “dignidade penal” neste enquadramento nunca me satisfez. Não
só por o seu uso se poder tornar equívoco perante a invocação, para mim
essencialíssima, da dignidade penal do bem jurídico tutelado pela ilicitude típica como
condição jurídico-constitucionalmente imposta da sua legitimação. Mas sobretudo
21
porque, depois do estudo a que procedi das consequências jurídicas do crime, pensei
aperceber-me da alta conveniência de distinguir, no tratamento jurídico-penal do caso, a
categoria da “punibilidade” (iluminada pela dignidade penal do caso de espécie),
pertinente ao sistema e à teoria do facto, e a categoria que intitulei “pressupostos
positivos e negativos da punição” (esta, sim, iluminada exclusiva ou prioritariamente
pela ideia da necessidade penal ou carência de punição), pertinente ao sistema e à
teoria da pena. E ambas, acrescentarei, distintas da categoria dos “pressupostos
processuais” pertinente ao sistema e à teoria do processo.

Talvez pois, em suma, que a utilização do designativo “merecimento de pena” se adeque


pelo melhor à realidade dogmático-sistemática que com ele se pretende significar, sem,
a meus olhos, ter de se alterar o conteúdo material que lhe atribuí já em tratamentos
anteriores. É este “merecimento” que permite que hipóteses de tão diversa natureza
como, por exemplo, a da não punibilidade da desistência voluntária da tentativa, de
factos bagatelares, do incitamento ou ajuda ao suicídio ou dos crimes de insolvência
quando o suicídio ou a insolvência não vêm a ter lugar, sejam com razão remetidos para
a categoria da punibilidade e para o denominador comum da falta de merecimento de
pena. Porque do que em qualquer destes casos se trata é de que, apesar do
preenchimento de um tipo-de-ilícito e de um tipo-de-culpabilidade, a “imagem global do
facto ”, já “definitivamente” ilícito e culposo, é uma tal que, em função de exigências
preventivas, o facto concreto fica aquém do limiar mínimo do merecimento de pena.

E se assim for, como penso, pergunto-me se, em geral, não será nesta precisa sede – na
da punibilidade do facto concreto praticado, visto na sua imagem global e no contexto
humano e social em que ocorre – que podem excecionalmente encontrar resposta
dogmática conveniente alguns dos mais dramáticos casos-limite da vida sobre cuja
punibilidade hoje mais e mais a doutrina penal se interroga. V. g., em sede de eutanásia
ativa direta quando o que vai morrer em sofrimento atroz não pode suicidar-se; ou de
interrupção da gravidez por motivos sociais inultrapassáveis; ou de reação contra o
terrorismo maciço e indiscriminado ou a tomada de reféns; – que, em geral, implicam o
sacrifício de vidas humanas como única forma de tutelar outra ou outras vidas. De
casos-limite, em suma, em que a decisão do agente assume a dimensão trágica de um
22
conflito existencial ou de um autêntico “caso de consciência”. Sobre isto,
naturalmente, terá a doutrina penal ainda muito que discutir. Mas só um doutrinarismo a
meus olhos inaceitável pode partir do axioma de que em casos de sacrifício, ilícito e
culposo embora, de uma vida alheia inocente, está posta em absoluto de parte a
hipótese, excecional embora, de se negar a responsabilidade penal do agente em nome
da impunibilidade. Se tal for de admitir, não estará aqui claramente documentado um
exemplo daquela “abertura” do sistema ao problema de que comecei por falar?

VI

Continuo a ver, num sistema como o que apresento, duas vantagens aparentemente
antagónicas mas, quando se aprofunda a análise, expressão de um mesmo pensamento
fundamental. Um tal sistema – dada a sua funcionalidade e a flexibilidade com que é
dotado, mas também o limite ético e axiológico inultrapassável que pressupõe e aceita –
permite encontrar soluções político-criminalmente corretas e dogmaticamente justas,
mesmo perante os casos mais difíceis que ao direito penal são postos na atual sociedade
Página 10
Para um sistema renovado do facto punível

do risco. Questões aqui não especificamente consideradas como as da aceitação


dogmática de bens jurídicos coletivos, da responsabilização penal de entes coletivos ou
dos chamados delitos cumulativos constituem, a meus olhos, provas do que afirmo. Mas
um sistema que permite ao mesmo tempo continuar a aceitar-se o já referido axioma
ôntico-axiológico do Estado de Direito em que deve assentar todo o pensamento
jurídico: o da preocupação com o Homem e com a defesa da sua humanidade. Assim,
espero, ter-se-á logrado a aproximação a um sistema jurídico-penal do facto punível
verdadeiramente humano. Um sistema que busca incessantemente a mais ampla
concordância possível entre a lógica da justiça individual e a da justiça comunitária.

1 Costa Andrade, Outros mares, outros céus, a mesma alma (A “última aula” do Prof.
Jorge de Figueiredo Dias), Coimbra: Coimbra Ed., 2008, p. 36.

2 V. por último Alex Tschentscher, Prozedurale Theorien der Gerechtigkeit,


Baden-Baden: Nomos Verlag, 2009. Mal será necessário anotar que, quando no texto
falo de “processo” e de “processuais”, não tenho em vista unicamente o processo
jurisdicional, de qualquer espécie, mas “a via metodológica” que conduz à decisão ou à
deliberação – judiciária, política… – democraticamente justas.

3 Claus Roxin, Strafrecht. Allgemeiner Teil, Band I. Grundlagen der Verbrechenslehre,


München: Beck, 1992, § 2.

4 V., entre outros, Paulo de Sousa Mendes, O torto intrinsecamente culposo como
condição necessária de imputação da pena, Coimbra: Coimbra Ed., 2007.

5 Logo na minha dissertação de mestrado: Jorge de Figueiredo Dias, Responsabilidade


pelo resultado e crimes preterintencionais, Coimbra, copiografado, 1961.

6 Esta proposição político-criminal fundamental, que eu penso assente na Constituição


da República Portuguesa (sobretudo no seu art. 18.º-2), tem sido seguida, quase sem
exceções, pela jurisprudência do Tribunal Constitucional português: Jorge de Figueiredo
Dias, “O direito penal do bem jurídico como princípio jurídico-constitucional. Da doutrina
penal, da jurisprudência constitucional portuguesa e das suas relações”, Colóquio
Comemorativo do XXV Aniversário do Tribunal Constitucional, XXV Anos de
Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Lisboa, 2008, Coimbra: Coimbra Ed., 2009;
publiquei uma versão atualizada deste artigo no Brasil sob o título: Direito Penal Estudos
em Homenagem a Juarez Tavares “O ‘direito penal do bem jurídico como princípio
jurídico-constitucional à luz da jurisprudência constitucional portuguesa”, In: Luís Greco;
Antonio Martins (orgs.), Direito penal como crítica da pena. Estudos em homenagem a
Juarez Tavares, Marcial Pons: Madri, 2012, p. 249. Por último Jorge de Figueiredo Dias,
“Das Rechtsgutstrafrecht” als Verfassungsrechtliches Prinzip unter dem Blickwinkel der
Recthsprechung des portugiesischen Verfassungsgericht”, Goltdammer’s Archiv für
Strafrecht 4/2014, p. 201.

7 Gustav Radbruch, Der Handlungsbegriff in seiner Bedeutung für das Srafrechtssystem,


Berlin: Guttentag, 2004 e depois “Zur Systematik der Verbrechenslehre”,
Frank-Festgabe, I, 1930, p. 162.

8 Eduardo Correia, logo em Unidade e pluralidade de infrações, Coimbra: Atlântida,


1945, p. 108 e ss., nota 1.

9 No meu Direito Penal II. As consequências jurídicas do crime, Lisboa: Aequitas,


Editorial Notícias, 1993, § 303.

10 Alcacer Guirao Proteção de bens jurídicos ou proteção da vigência do ordenamento


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Para um sistema renovado do facto punível

jurídico?, Revista Portuguesa de Ciência Criminal 15, 2005, p. 511.

11 De “axioma antropológico” falou a este propósito, também com razão, António


Barbosa de Melo, Democracia e utopia, 1980, p. 17.

12 V. o meu estudo Liberdade – Culpa – Direito penal, Coimbra: Coimbra Ed., 1976 e,
sobre ele, a compreensiva análise de Kai Ambos, A liberdade no ser como dimensão da
personalidade e fundamento da culpa penal – Sobre a doutrina da culpa de Jorge de
Figueiredo Dias. ,In: Manuel da Costa Andrade; Maria João Antunes; Susana Aires de
Sousa (orgs.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias,
Coimbra: Coimbra Ed., 2009, vol. I, p. 54.

13 De uma hoje já extensíssima bibliografia sobre o assunto referirei aqui só dois títulos
de natureza profundamente diversa – de especializada e esclarecida natureza
jornalística, um: Hirnforschung und Willensfreiheit. Zur Deutung der neuesten
Experimente (Hrsg. Ghristian Geyer), Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2004; de índole
jurídico-penal, o outro: Luzón Peña; Hassemer; Demetrio Crespo; Mercedes Pérez
Manzano, todos em “Neurociencias y derecho penal”, InDret 2/2011.

14 Criticamente Habermas, “Um uns als Selbsttäuscher zu entlarven, bedarf es mehr”,


Frankfurter Allgemeine Zeitung, 15-11-2004.

15 Karl Rahner, “Schuld, Verantwortung, Strafe, in der Sicht der katholischen


Theologie”, In: Frey (Hrsg.), Schuld – Verantwortung – Strafe. Im Licht der Theologie,
Jurisprudenz, Soziologie, Medizin und Philosophie, 1964, p. 153, 156. Não deixarei de
anotar a convergência conclusiva, neste ponto, da chamada “terceira escola psiquiátrica
de Viena” (logoterapia): Viktor Frankl, Ärztliche Seelsorge. Grundlagen der Logotherapie
und Existenzanalyse. Mit den “Zehn Thesen über die Person”, dtv: amazon.de e, do
mesmo, O homem incondicionado. Lições metaclínicas, Coimbra: Arménio Amado, 1968.

16 V. o meu livro já citado na nota 10, p. 256, 259.

17 V. infra nota 19.

18 Na minha referida (nota 5) dissertação de mestrado de 1961, p. 52 e ss.

19 Como sempre pensei e foi agora minuciosamente e de forma procedente, em meu


juízo, mostrado por Costa Pinto, A categoria da punibilidade na teoria do crime, 2 tomos,
Lisboa, 2012 (em via de publicação).

20 V. a este propósito o estudo – importante e ainda hoje muito atual – de Costa


Andrade, “A ‘dignidade penal’ e a ‘carência de tutela penal’ como referência de uma
doutrina teleológico-racional do crime”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal 2 (2002),
p. 173. É interessante notar que Costa Pinto, cit. na nota 19, depois de minuciosamente
distinguir as ideias da dignidade penal e da necessidade penal (p. 1038 e ss.), acaba por
considerar ambas, num certo entendimento da sua distinção, integrantes da categoria da
punibilidade.

21 E que deu origem ao meu livro citado supra, na nota 9: v. sobretudo § 1056 e ss.

22 Que já em seu tempo considerou Heinrich End, Existentielle Handlungen im


Strafrecht. Die Pflichtenkollision im Lichte der Philosophie von Karl Jaspers, München:
Beck, 1959.

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