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pesquisa

Ciências Humanas e Sociais na formação das primeiras


enfermeiras cariocas e paulistanas
Human and Social Sciences in the training of the first nurses ‘cariocas’ and ‘paulistanas’
Ciencias Humanas y Sociales en la formación de las primeras enfermeras cariocas y paulistas

Aline Corrêa de AraújoI, Maria Cristina SannaII


I
Universidade Federal de São Paulo, Hospital São Paulo. Escola Paulista de Enfermagem, Grupo de Estudos e
Pesquisa em Administração de Serviços de Saúde e Gerenciamento de Enfermagem,
e Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Saúde, Políticas Públicas e Sociais. São Paulo-SP, Brasil.
II
Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Enfermagem, Grupo de Estudos e Pesquisa
em Administração de Serviços de Saúde e Gerenciamento de Enfermagem. São Paulo-SP, Brasil.

Submissão: 21-01-2010 Aprovação: 25-10-2010

RESUMO
Este estudo, de natureza histórico-documental, teve como objetivo descrever e analisar o lugar que as Ciências Humanas
e Sociais ocuparam no primeiro currículo escolar dos cursos de nível superior de enfermagem da Escola de Enfermagem
Anna Nery (EEAN) e da Escola de Enfermeiras do Hospital São Paulo (EEHSP), identificando suas semelhanças e diferenças.
Como metodologia foram analisados os currículos das referidas escolas, comparando-os e buscando entre fontes primárias
e secundárias informações sobre a contribuição das Ciências Humanas e Sociais na formação das enfermeiras pioneiras da
enfermagem moderna no Brasil. Concluiu-se que as matérias de humanidades ocuparam lugar secundário nos currículos
estudados em comparação com as disciplinas técnicas e o aspecto utilitário que a profissão exigia na época.
Descritores: Escolas de Enfermagem; História da Enfermagem; Currículo; Educação

ABSTRACT
This historical and documental study aimed to describe and analyze the place that the Human and Social Sciences occupied in
the first curriculum of the Anna Nery Nursing School (EEAN) and of the São Paulo Hospital Nursing School (EEHSP), identifying
the similarities and differences between them. As a methodology, the curricula of these schools were analyzed by comparing
them and seeking, between primary and secondary sources, information of the contribution of Human and Social Sciences in
the training of pioneer nurses in modern nursing in Brazil. It was concluded that the humanities subjects occupied a secondary
place in the studied curricula in comparison with the technical disciplines and the utilitarian aspect required by this profession
at that time.
Key words: Nursing Schools; Nursing History; Curriculum; Education

RESUMEN
Este estudio, de carácter histórico y documental, tuvo por objeto describir y analizar el lugar que las Ciencias Humanas y
Sociales ocuparan en el primer programa de estudios universitarios en la Escuela de Enfermería Anna Nery (EEAN) y Escuela
de Enfermeras del Hospital São Paulo (EEHSP), identificando las semejanzas y diferencias entre ellos. Se analizó los planes de
estudio de estas escuelas, comparándolos y buscando, entre las fuentes primarias y secundarias, la contribución de las Ciencias
Humanas y Sociales en la formación de enfermeras pioneras de la enfermería moderna en Brasil. Se concluyó que los temas
de humanidades, el segundo lugar en el currículo de estudios en comparación con las técnicas y el aspecto utilitario que la
profesión requerida en el momento.
Palabras clave: Escuelas de Enfermería; Historia de Enfermería; Currículo; Educación

Trabalho realizado como exigência para aprovação na Disciplina de História da Administração em Enfermagem,
Programa de Pós-Graduação stricto sensu, Departamento de Enfermagem da Unifesp.

AUTOR CORRESPONDENTE Aline Corrêa de Araujo E-mail: paraalineca@yahoo.com.br

1106 Rev Bras Enferm, Brasília 2011 nov-dez; 64(6): 1106-13.


Ciências Humanas e Sociais na formação das primeiras enfermeiras cariocas e paulistanas

INTRODUÇÃO a orientação científica dos professores da EPM, não fugindo,


assim, à orientação filosófica e caritativa do nascimento da
Florence Nightingale inaugurou a Enfermagem Moder- Enfermagem em qualquer outro lugar do mundo ocidental. O
na com a fundação da Escola do Hospital Saint Thomas em lema instituído para a Escola foi “Non vivere nisi ad servien-
1860, e com o livro Notas Sobre a Enfermagem, publicado em dum” (Não viver senão para servir), imprimindo a prioridade
1859, apresentando seu modelo de ensino de enfermagem da assistência e recomendando a subserviência, com o as-
vinculado ao âmbito hospitalar e valorizando a experiência pecto religioso enraizado na rigidez profissional. Na primeira
prática. Nessa escola era exigido o ensinamento teórico sis- turma formaram-se cinco enfermeiras (4).
tematizado, com autonomia financeira e pedagógica; e reco- Ainda no contexto histórico, registra-se que o nascimento da
mendava-se que as escolas que seguissem esse modelo fos- Enfermagem Moderna no Brasil foi permeado por importantes
sem dirigidas por enfermeiras. Também se preocupava com marcos. Iniciou-se oficialmente num período pós 1ª Guerra
o comportamento pessoal das alunas e sua postura física e Mundial, quando ainda se sentia os efeitos da Proclamação da
vestimentas, em função da valorização do trabalho da enfer- República, com seus primórdios de modernização e industriali-
meira que, após a Reforma Protestante passou a ser exercida zação no país e no ápice do desenvolvimento do movimento sa-
por mulheres de moral duvidosa. O modelo propunha ainda nitarista e higienista na saúde. Esse enfrentou rejeição por meio
a divisão social do trabalho por meio da distinção de funções de revoltas e manifestações de notória insatisfação com as mu-
entre as “nurses”, com atividades usuais no hospital, e as “la- danças sócio-políticas e econômicas que, posteriormente, se ex-
dies nurses”, com atividades mais elaboradas de supervisão primiram, inclusive, em amostras culturais, como a conhecida
da assistência, administração e ensino(1). Semana de Arte Moderna em 1922, quando artistas se reuniram
Sob esse ideário se compôs a Enfermagem no Brasil, mais no importante e tradicional Teatro Municipal de São Paulo, para
especificamente no Rio de Janeiro, na Escola de Enfermagem propor renovação artística, cultural, social e política, para que o
Anna Nery (EEAN), que iniciou suas atividades em 1923, país assumisse identidade legitimamente nacional.
por iniciativa do diretor geral do Departamento Nacional de A Saúde, nesse contexto, representava o atraso na medida
Saúde Pública da época, o sanitarista Carlos Chagas, com a em que as ciências e a tecnologia nesse campo requeriam
cooperação do Serviço Internacional de Saúde da Fundação instituições prestadoras de assistência melhor estruturadas e
Rockefeller por meio da Missão Técnica de Cooperação para sua intervenção garantia sustentação para o modelo econômi-
o Desenvolvimento da Enfermagem no Brasil(2). co, na medida em que melhorava o saneamento das grandes
A Missão Parsons, como ficou conhecida, por conta da cidades e preservava a força de trabalho urbana industrial. Por
liderança de Ethel O. Parsons, organizou um Serviço de En- esse motivo a criação de escolas de enfermagem nos centros
fermeiras de Saúde Pública e foi formada por enfermeiras mais desenvolvidos do país não pode ser considerada iniciati-
americanas que chegaram ao Rio de Janeiro em dois de se- va isolada. Sua concretização integrava projeto maior de avan-
tembro de 1921 e seguiram o modelo de ensino e de prática ço em direção à almejada modernização.
da enfermagem moderna, segundo os princípios norteadores Quando a EEHSP nasceu, após a Revolução Constitucio-
do sistema nightingaleano reinterpretado pelas americanas, o nalista de 1932 protagonizada por São Paulo e imediatamen-
chamado modelo anglo-americano de formação. A escola ini- te próxima ao início da 2ª Guerra Mundial, São Paulo era o
ciou o curso com 13 alunas, em regime integral de atividades, berço do desenvolvimento industrial, gerido sob a pressão do
por um período de 28 meses inicialmente(3). movimento operário e sob a forte influência do empresariado
Aproximadamente dezesseis anos depois, na cidade de para quem a mão-de-obra era valiosa. Essa conjuntura era fa-
São Paulo, foi inaugurada, em primeiro de março de 1939, a vorável ao desenvolvimento da assistência curativa, individual
Escola de Enfermeiras do Hospital São Paulo (EEHSP), um dos e, portanto, dependente da criação, instalação e operação de
pioneiros cursos de formação de enfermeiras no modelo cita- hospitais, o que demandava pessoal de enfermagem, razão
do na cidade e que foi instituído pela Escola Paulista de Medi- para a criação da escola.
cina (EPM) com o intuito de servir às suas próprias exigências, Esse clima revolucionário em que surgiram as duas escolas
garantindo qualidade técnica ao serviço assistencial, segundo porém, contraditoriamente, não influenciou o ideário de am-
o padrão* da Escola de Enfermagem Anna Nery. Também sob bas, já que a formação que nelas se praticava teve um caráter
o regime de internato, como da escola padrão, inicialmente o conservador e reacionário e, em última análise, positivista,
curso tinha a duração de dois anos e quatro meses, que logo como declarado por alguns autores.(5)
se estenderia para três anos, com 15 dias de férias anuais(4). O surgimento da EEAN veio ao encontro dos interesses
Para tanto, o arcebispo paulistano, Dom José Gaspar de políticos e econômicos da nova ordem republicana que, ba-
Affonseca, contratou madres francesas da Congregação Fran- lizada nos princípios liberais, e embora politicamente exclu-
ciscanas Missionárias de Maria para dirigir a Escola, que teve dente, defendia a universalização de certos benefícios como

* A regulamentação do ensino da enfermagem no Brasil definido pelo decreto n° 20.109 de 15/06/1931, fixou as condições para
a equiparação das escolas. O título de enfermeira diplomada só era reconhecido depois de registrado no Departamento Nacio-
nal de Saúde Pública, ao qual a Escola de Enfermeiras D. Anna Nery estava subordinada, e que, por esse decreto foi considerada
como escola oficial padrão. Todas as escolas que quisessem formar enfermeiros deveriam se equiparar e solicitar reconhecimen-
to dessa condição àquele órgão federal.

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Araújo AC, Sanna MC.

a assistência à saúde e a educação básica(6). A partir de então, Sociais são o conjunto de disciplinas que estudam o homem
a saúde passou a ser vista como responsabilidade do Estado, através das suas relações com a sociedade e com a cultura(11)).
garantindo a política agroexportadora, de imigração e da ur- Essa classificação da CAPES é atual e não se dispunha de tantas
banização e, por causa disso, as políticas públicas de saúde disciplinas no ensino formal brasileiro à época. No entanto, os
à época, com sua postura nitidamente higienista, se encami- conteúdos a que essas se referem já existiam, e a apropriação
nharam para o controle de endemias e para o saneamento desses conhecimentos pelos enfermeiros lhes permitiria com-
das cidades, evidenciando a intenção de propiciar condições preender a dimensão do cuidar humano, de pessoa para pes-
sanitárias adequadas ao desenvolvimento capitalista(7). soa, das relações entre os humanos que estão envolvidos nesse
Na criação do curso da EEHSP, entre os anos de 1930 e fazer, o que inclui o indivíduo que cuida, individualmente e
1940, houve forte influência da elite conservadora paulistana, tomado em grupos e coletividades de profissionais, e do indi-
que se preocupou em formar enfermeiras nos moldes oficiais víduo e grupos que são cuidados, representados pela família,
e com inclinação pessoal para a profissão(4). O momento era outros grupos sociais, comunidades e coletividades.
de notório crescimento da industrialização no Brasil, tendo o Por que o interesse pelas Ciências Humanas e Sociais?
Ministério da Educação passado a investir no preparo do cida- Partindo do pressuposto de que a Educação é capaz de for-
dão para diversas ocupações (8) utilizando-se do ensino como mar sujeitos críticos, com autonomia e cidadania é que se
instrumento de produção do conhecimento demandado pelas justifica a realização do presente trabalho, pois, analisando-se
necessidades econômicas vigentes. a importância dada às Ciências Humanas e Sociais nos seus
Ambas escolas de enfermagem foram idealizadas para auxi- primeiros currículos e pensando nesse conteúdo como um
liar a prática médica, a primeira dando continuidade às ativida- instrumento que permite a compreensão, reflexão e analise do
des educativas de higiene e prevenção de endemias iniciadas comportamento humano e seu entorno próximo, necessárias
por médicos sanitaristas(9) e a segunda para prover a assistência ao bom desenvolvimento do trabalho do enfermeiro, pode-
com qualidade técnica no hospital da Escola Paulista de Me- -se identificar qual a abordagem dedicada a esse aspecto por
dicina(4). Além disso, cada uma delas procurava responder às ambas escolas em foco.
demandas sociais de então. A formação da enfermeira, nessa
perspectiva, poderia incluir algum preparo para a compreen- OBJETIVO
são dessa dimensão, a fim de bem desenvolver o seu trabalho,
indagação que gerou a realização do presente estudo. Descrever o lugar que as Ciências Humanas e Sociais ocu-
Nessa direção, a intenção é buscar algum vestígio, na for- param no primeiro currículo escolar dos cursos de nível supe-
mação dessas enfermeiras, de preocupação e de responsabi- rior de enfermagem das escolas EEAN e EEHSP;
lidade em relação à sua formação sócio humanística. Com Identificar as semelhanças e as diferenças no tratamento
tal finalidade, serão analisados o primeiro currículo das duas das Ciências Humanas e Sociais nos currículos das escolas
escolas de modelo anglo-americano, formadoras das enfer- EEAN e EEHSP.
meiras pioneiras das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo,
atentando-se para os conteúdos relacionados às Ciências Hu- MÉTODO
manas e Sociais constantes na grade curricular.
A escolha das escolas dos dois grandes centros econômi- Pesquisa histórico-documental que utilizou, como fontes
cos da época se justifica porque o projeto de desenvolvimen- primárias, os primeiros currículos escolares praticados pela
to para o país incluía a já citada ação no campo da Saúde. EEAN e pela EEHSP e o currículo da EEAN à época da criação
Pode-se objetar que a Escola Carlos Chagas de Minas Gerais, da EEHSP e, como fontes secundárias, artigos, livros e teses
fundada antes da EEHSP, seria modelo de influência da reli- com temas afins.
gião católica mais que esta, mas, não se pode esquecer que a O primeiro currículo da Escola de Enfermagem do Depar-
direção da EEHSP desempenhou papel preponderante, na re- tamento Nacional de Saúde Pública, em 1923, que posterior-
presentação oficial da Igreja Católica, nas entidades de classe, mente se denominou EEAN, baseou-se no “Standard Curricu-
em comparação com a escola mineira, se mais não for, pelo lum School of Nursing”, em vigor nos EUA desde 1917(12). O
fato de ser liderada por religiosas vinculadas a congregações primeiro currículo da EEHSP, por sua vez, seguiu os moldes
formalmente instituídas. da Escola Padrão EEAN, oficial no Brasil, desde 1931 e tal
Registre-se que, quando a EEHSP foi concebida, o decreto como era praticado em 1939; portanto, para não cometer
n° 20.109/31, que estabelecia o ensino praticado na EEAN anacronismo comparando a grade curricular de escolas que
como padrão para todo país, era vigente mas, a organização iniciaram suas atividades com dezesseis anos de diferença,
curricular na disposição das disciplinas era decidida em cada optou-se por fazê-lo empregando-se o currículo da EEAN vi-
escola, o que torna possível indagar sobre esse aspecto. gente no ano de 1939.
Por definição, as Ciências Humanas são as disciplinas cujo As cópias de currículos da EEAN foram obtidas, respectiva-
objeto exclusivo é o homem em suas várias dimensões (10) e, mente, o primeiro da tese de Porto, 1997, e o praticado à épo-
segundo a classificação do CNPq/CAPES são compostas por: ca de criação da EEHSP de dois históricos escolares, obtido
Filosofia, Sociologia, Antropologia, Arqueologia, História, His- junto ao Centro de Documentação da EEAN/UFRJ.
tória do Conhecimento, Geografia, Psicologia, Educação, Ci- A cópia do currículo da EEHSP foi obtida junto à Reitoria
ência Política, Relações Internacionais e Teologia. Já Ciências da Unifesp, no Histórico da Escola de Enfermeiras do Hospital

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Ciências Humanas e Sociais na formação das primeiras enfermeiras cariocas e paulistanas

São Paulo e, para complementação de informações sobre car- muito do seu primeiro currículo, no qual 50 horas foram
ga horária, este foi cotejado com o artigo extraído da disser- destinadas às disciplinas de Ciências Humanas. Na EEHSP,
tação de Mestrado Ensino em Ciências da Saúde da Unifesp. no primeiro período, as disciplinas são idênticas às da EEAN,
A análise dos currículos buscou, no primeiro momento, com História da Enfermagem (55 horas) e Ética (81 horas), aí
elencar as disciplinas com conteúdo relacionado às Ciências se encerrando as disciplinas que se dedicavam ao conteúdo
Humanas e Sociais, o ano de sua inserção e sua carga horária de Ciências Humanas.
e observá-las no contexto de cada currículo, para identifica- Como já explicitado eram escolas de regime de internato
ção de seu status em cada um desses. Em seguida compa- com cerca de doze horas diárias de atividades, em 36 meses;
raram-se os currículos da EEAN entre si, para identificar as portanto, as cento e trinta e seis horas dedicadas às Ciências
mudanças ocorridas nos três lustros que separavam o ofereci- Humanas, em todo curso da EEHSP, são evidência da pou-
mento de um e outro. Por fim, os currículos contemporâneos ca importância atribuída ao ensino formal desse conteúdo,
de ambas escolas foram comparados para identificação de se- já que o total de aulas teóricas somavam 2182 horas. Ocorre
melhanças e diferenças entre eles, em relação às disciplinas que a formação da enfermeira, nesse regime, também incluía
foco do estudo. atividades sociais e de lazer que poderiam acrescentar apro-
ximação a temas afetos a essas disciplinas por meio de leitu-
RESULTADOS E DISCUSSÃO ras e eventualmente, freqüência a cinemas, teatros e outras
manifestações culturais semelhantes. Não se descarta ainda
Houve mudanças nos dois currículos da EEAN analisados, a possibilidade do conteúdo dessas disciplinas ser abordado
com a redistribuição de disciplinas: técnica de enfermagem, nas disciplinas que ensinavam a cuidar. Independente dessas
patologia interna e externa, enfermagem em patologia inter- variações a exigüidade da carga horária destinada as discipli-
na e externa, técnica adiantada, doenças contagiosas, en- nas em foco no presente trabalho são uma medida da pouca
fermagem em doenças contagiosas, enfermagem obstétrica, valorização das ciências humanas sociais em comparação
enfermagem em pediatria, técnica de sala operatória, enfer- com os demais componentes curriculares.
magem em primeiros socorros, enfermagem em oftalmologia, Ao fazer ilações sobre as razões dessa distribuição para
enfermagem em ORL; a exclusão de algumas: ortopedia, gi- elaboração do primeiro currículo da EEHSP, levantou-se a hi-
necologia, problemas sociais, serviço social, serviço privado, pótese de que talvez houvesse dificuldades na sua formulação
enfermagem industrial, doenças especiais; a inclusão de ou- porque o mesmo obedeceu a duas orientações – o modelo da
tras: ética, canto coral, ginástica, higiene em saúde pública, escola padrão e dos professores da Escola Paulista de Medici-
enfermagem em saúde pública, higiene escolar, pedagogia na e médicos do HSP, fundadores da escola. Não se percebeu,
aplicada à enfermagem e a mudança na denominação das nas fontes primárias e secundárias consultadas, que houvesse
disciplinas: dietética, ouvido nariz e garganta, olhos, banda- dificuldades entre os últimos e as religiosas que dirigiam e
gens, doenças cirúrgicas, doenças comunicáveis, doenças da lecionavam na escola, mas chamou à atenção declaração de
criança, doenças mentais e nervosas, doenças ocupacionais um desses médicos sobre o que esperavam das enfermeiras
venéreas e de pele; como se pode ver na Figura 1, um qua- que ali seriam formadas.
dro comparativo das três grades curriculares das duas escolas. Octávio de Carvalho, médico fundador e primeiro diretor
Entretanto, as mudanças não configuraram a proposição de da EPM, em carta endereçada a Álvaro Guimarães Filho, tam-
outro currículo, guardando semelhanças entre si no que diz bém médico fundador da escola, demonstrava sua preocupa-
respeito à sua estrutura e composição. ção quanto à qualidade de enfermeira que seria formada na
As disciplinas do curso da EEAN, em 1939, eram dividi- nova escola e ressaltava a suprema importância da formação
das em séries, a primeira era chamada de Série Preliminar, moral das alunas, antes mesmo do conhecimento técnico
seguida da Segunda Série Júnior, Terceira Série Intermediária científico (que dirá político!). Em justificativa dizia que, ao for-
e finalmente Quarta Série Sênior. Já as Disciplinas da EEHSP, marem enfermeiras do nível da EEAN, o hospital da EPM, ou
ainda que não tivessem a mesma denominação não se apre- não se conseguiria pagar por seus serviços, ou muito prova-
sentaram de maneira muito diferente, haja vista a obrigatorie- velmente elas se casariam com médicos(13) e, por esse motivo,
dade de seguir o padrão da escola oficial, ainda que até a ter- as enfermeiras formadas nessa escola deveriam ter compor-
ceira turma tivesse 28 meses de curso, passando em seguida tamento exemplar, obediência e boa técnica, para que per-
para 36 meses como o da EEAN. manecessem servindo exclusivamente ao Hospital São Paulo
O curso de ambas as Escolas era repleto de disciplinas após a conclusão do curso.
técnicas e instrumentais focadas na prática de enfermagem, Madre Domineuc, que foi diretora da EEHSP também valo-
com ênfase para o aspecto biológico, em suas diversas dimen- rizava a qualificação moral das estudantes, possivelmente por
sões. Dentre as que se dedicavam ao conteúdo de Ciências outros motivos, além dos apontados por Octávio de Carvalho,
Humanas, encontrou-se, na EEAN: História de Enfermagem e certa vez lamentou o baixo nível de instrução das alunas que
Ética na primeira série e, somente na última série, mais duas ingressavam no curso, já que não era exigido o ensino secun-
denominadas Problemas Profissionais e Pedagogia aplicada à dário (curso fundamental) inicialmente ou até a equiparação
Enfermagem. Infelizmente não foi possível, com as informa- oficial com a escola padrão, e eram aceitas candidatas que
ções capturadas determinar a carga horária exata das discipli- atestassem experiência anterior em serviço na área da saúde
nas praticada nesse ano, mas supõe-se que não tenha fugido ou fizessem uma prova avaliada por três professores da escola.

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Araújo AC, Sanna MC.

EEAN EEAN 1939 EEHSP


Série Carga Carga Carga
Disciplina horária Disciplina horária Disciplina horária
(horas) (horas) (horas)
Princípios de Física, Química, Anatomia e Fisiologia 50 Anatomia e Fisiologia Anatomia 302
Teoria e Prática de Bacteriologia 45 Microbiologia Bacteriologia 128
Dietética 30 Nutrição Nutrição 127
Ouvido, Nariz e Garganta 8 Técnica de Enfermagem Técnica de Enfermagem 345
Período preliminar

Drogas e Soluções 20 Drogas e Soluções Drogas 79


Princípios e Métodos de Enfermagem e Higiene
45 Higiene Higiene Individual 51
Pessoal
Olhos 8 Química Aplicada Química Aplicada 183
História da Enfermagem 20 História da Enfermagem História da Enfermagem 55
Massagem 10 Ética Ética 81
Primeiros Socorros 10 Ginástica Ginástica 105
Bandagens 10 Ataduras Ataduras 72
Enfermagem Prática 45 Estágio Prático Estágio Prático no Hospital 420
Canto Coral
Patologia Elementar e Doenças Médicas 30 Patologia Geral Patologia Geral 19
Doenças Cirúrgicas 20 Patologia Interna Patologia Interna 80
Doenças Comunicáveis 15 Patologia Externa Patologia Externa 60
Doenças da Criança 20 Enfermagem em Patologia Interna Enfermagem em Patologia Interna 26
Tuberculose 15 Enfermagem em Patologia Externa Enfermagem em Patologia Externa 37
1º ano

Matéria Médica 20 Matéria Médica Matéria Médica 37


Ortopedia 10 Higiene Mental Higiene Mental 53
Dietética 50 Dietética Aplicada Dietética 8
Obstetrícia e Ginecologia 25 Massagem Massagem 20
Técnica Adiantada Ginástica 88
Estágio Prático Estágio Prático no Hospital 1448
Obstetrícia
Doenças Mentais e Nervosas 20 Doenças Contagiosas Doenças Infecto-contagiosas 6
Doenças Ocupacionais, Venéreas e de Pele 10 Enfermagem em Doenças Contagiosas Enfermagem em Doenças Infecto-contagiosas 11
Terapêuticas Especiais 10 Obstetrícia Obstetrícia Normal 49
Problemas Sociais 10 Enfermagem Obstétrica Enfermagem Obstétrica 10
Revisão Geral de Enfermagem 10 Pediatria Pediatria 44
2º ano

Problemas Profissionais 10 Enfermagem em Pediatria Ginecologia 23


Serviço Social 10 Técnica de Sala Operatória Técnica de Sala Operatória 5
Primeiros Socorros e Emergência 10 Primeiros Socorros Ginástica 70
Serviços Privados 10 Estágio Prático Estágio Prático no Hospital 1148
Enfermagem Industrial 10 Dietética Infantil
Doenças Especiais 10 Enfermagem em Primeiros Socorros
Problemas Profissionais
Doenças Venéreas
Tuberculose
Oftalmologia
Enfermagem em Oftalmologia
ORL
Enfermagem em ORL
3º ano

Higiene em Saúde Pública


Enfermagem em Saúde Pública
Enfermagem Aperfeiçoada
Psiquiatria
Enfermagem em Psiquiatria
Higiene Escolar
Pedagogia Aplicada à Enfermagem
Estágio Prático

Figura1 – Currículos das Escolas de Enfermagem Anna Nery e de Enfermeiras do Hospital São Paulo

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Ciências Humanas e Sociais na formação das primeiras enfermeiras cariocas e paulistanas

Para solucionar tal situação, ficou acordado que o regime então. Em que pese o fato da EEAN ter sido criada com a in-
de internato ajudaria a reparar o “defeito de educação” das tenção de formar enfermeiras de Saúde Pública, as mudanças
alunas matriculadas, além de círculos de estudos sobre ética observadas no currículo, em 1939, indicam que Ética veio
e cultura geral, pedagogia especial com círculos de estudo substituir duas outras ministradas no primeiro formato pratica-
para elaboração de pontos, interrogação com atribuição de do pela escola - Problemas Sociais e Serviço Social. Além dis-
notas e, por fim, se fosse necessário, eliminação das incapa- so, como se vê no quadro comparativo, houve deslocamento
zes(14). Isso faz supor que havia outras atividades de ensino da ênfase para o ensino do cuidado curativo e hospitalar.
que iam além do currículo oficial, o que se costuma designar De fato a partir dos anos 1940, o número de hospitais co-
por currículo oculto (15). A existência do internato facilitava a meçou a crescer, principalmente no Rio de Janeiro e São Pau-
inclusão dessa complementação, posto que as alunas ficavam lo, com a medicalização do corpo e a preocupação com a
permanentemente na escola, a qual habitavam coletivamente, recuperação da força de trabalho operária. Nas duas cidades
juntamente com grande parte do corpo docente. citadas, instituições hospitalares modelares, ligadas a faculda-
Já o curso da EEAN embora também tivesse uma carga ho- des de medicina ou criadas pela previdência social, primeiro
rária de prática bastante superior à teórica, aceitava preferen- através das caixas de pensões e aposentadorias e depois pelo
cialmente candidatas com habilitação em curso normal ou o ministério próprio, alavancaram o modelo biomédico de pres-
equivalente, e ainda havia uma movimentação das enfermei- tação de assistência à saúde, que prosperaria no período da
ras orientadoras do curso e das estudantes com o propósito de Ditadura Militar com financiamento previdenciário de hospi-
se criar um projeto político que elevasse o padrão da profis- tais particulares, até seu esgotamento, com a Reforma Sanitá-
são(16), com embasamento teórico, criticidade e grande influ- ria. Essa conformação influenciou o ensino de enfermagem
ência da enfermagem norte-americana. Um exemplo patente desde a lei no. 775/49 até o currículo mínimo de 1994.
dessa orientação para a prática política por meio da represen- Na EEHSP, que iniciou suas atividades com o currículo vol-
tação corporativa organizada foi a criação da Associação Na- tado a formar enfermeiras para trabalharem naquele hospital,
cional de Enfermeiras Diplomadas Brasileiras (ANEDB) pelas suspeita-se que a importância dada à condição moral, certa-
enfermeiras formadas na primeira turma da EEAN, que poste- mente abordada na disciplina de Ética, albergava também ra-
riormente se tornou na Associação Brasileira de Enfermagem zões práticas, como a fidelização das formandas, favorecendo
(ABEn), desde então e até hoje, o órgão mais representativo o estabelecimento de um contrato, ainda que tácito, com os
da Enfermagem brasileira. Esse fato faz indagar sobre a com- padrões anteriormente descritos por seus dirigentes e desejá-
petência política e a conseqüente formação humanística e so- veis para as futuras enfermeiras do hospital que dava nome à
cial das alunas e docentes da EEAN. Saliente-se, porém, que escola.
a criação da associação se deu por orientação americana via As disciplinas com conteúdo de Ciências Humanas e So-
corpo docente da escola e foi mantida pela inspiração advin- ciais, na EEHSP findaram logo no curso preliminar, pela grade
da das discípulas de Lilian Clayton, líder no Teacher´s Colle- curricular oficial, mas a escola também oferecia cursos extra-
ge da Universidade de Columbia, onde parte das primeiras curriculares como Geografia Econômica, Geografia Humana,
professoras brasileiras fizeram seus estudos pós graduados. História das Civilizações, História das Artes, História da Filo-
Assim, não apenas a formação humanística e social obtida no sofia, Religião, e algumas atividades culturais (4), aparentando
curso como a já trazida do curso normal e, principalmente, o preocupação com o aporte cultural geral das estudantes e sua
modelo referência americano e o ambiente de convivência na formação social e humanista ao longo do curso.
EEAN podem ter sido os principais responsáveis pela criação Como se vê na figura 1, no último ano do curso da EEAN,
do órgão de representação. eram ministradas as disciplinas Problemas Sociais e Pedago-
Voltando às disciplinas, é interessante notar que História gia aplicada à Enfermagem. Considerando que as egressas
da Enfermagem, nas duas escolas, além de ser apresentada daquela escola eram absorvidas em funções de liderança no
com o mesmo nome, foi ministrada no curso preliminar. Pos- próprio sistema público de saúde ou iam dirigir outras esco-
sivelmente essa disciplina tinha a intenção de inserir a aluna las de enfermagem, é compreensível que necessitassem de
na cultura da Escola e da profissão, que experimentava gran- formação específica. Além disso, a localização dessas disci-
des transformações, o que talvez não fosse percebido por elas. plinas no final do curso sugere serem um último lembrete à
Não se sabe o que efetivamente foi ensinado, mas, provavel- concluinte, que foi preparada para atuar extra-muros da esco-
mente, a julgar pelos livros-texto datados da época disponíveis la, da necessidade de manter o compromisso com o entorno
nas bibliotecas de ambas escolas ainda hoje, a disciplina deve próximo aos seus futuros postos de trabalho, sem, contudo,
ter sido utilizada como instrumento para a formação da iden- deixar de se preocupar com o desenvolvimento da profissão.
tidade profissional, para desenvolver um compromisso com a
profissão, para melhor inserção da profissão na sociedade(17), CONSIDERAÇÕES FINAIS
inicialmente, acreditamos ainda que devem ter discutido a
profissionalização da enfermagem e o que isso representava Ao analisar os currículos praticados no início de funcio-
para as enfermeiras brasileiras naquele momento. namento das escolas EEAN e EEHSP, percebeu-se algumas
Ainda no curso preliminar, as escolas ministraram a dis- diferenças entre elas, não na grade curricular em si, mas na
ciplina de Ética, que deve ter permitido a ampla divulgação postura política das escolas analisadas. A carioca tinha o in-
dos valores morais que eram defendidos pela Enfermagem de tuito de ampliar a enfermagem moderna no país servindo de

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Araújo AC, Sanna MC.

escola modelo, mantendo a rígida disciplina das estudantes e, tantos anos, que relegou a Enfermagem a posição subalterna
ainda assim, tinham uma postura mais vanguardista em rela- no trabalho em saúde. A despeito disso, a enfermagem de-
ção à escola paulista que, por sua vez, mantinha, em relação senvolvida na época, se deu num contexto em que a mulher
as suas alunas, ensinamentos que as levaram a serem mais ainda lutava por conquistar seu espaço na sociedade e que
reservadas e passivas. a partir da primeira metade do século 20 a imagem da mu-
As Ciências Humanas ensinadas na formação das primeiras lher na sociedade brasileira vinha sofrendo transformações,
enfermeiras do modelo anglo-americano das cidades do Rio no qual a profissão da enfermagem contribuiu no processo de
de Janeiro e São Paulo parece não terem sido consideradas emancipação da mulher, sem no entanto entrar em conflito
de grande relevância para formação de tais enfermeiras pois, com a ordem social vigente(18). As enfermeiras e alunas de
como apurado, foram ministradas em poucas horas, aparen- ambas instituições estudadas, nesse sentido desempenharam
temente a fim de cumprir o currículo, sendo bem no início papel de vanguarda criando associações, fundando revistas,
ou no fim do curso, não parecendo ter a função nem de ins- lutando por condições de trabalho, enfim ampliando a parti-
trumentação para o trabalho assistencial, já que enfermeiras cipação a participação social e política da mulher.
lidam com seres humanos, e muito menos para formar pro- Assim investigaram-se indicativos de politicidade presen-
fissionais com prática política ativa, se percebendo cidadãs e tes nos currículos das primeiras escolas, carioca e paulista,
atuando como tal. de modelo anglo-americano, representados pela inserção de
Cabe indagar se essa reduzida valorização não carregava Ciências Humanas, cujo resultado demonstrou fragilidade na
consigo a intencionalidade de coibir o agir com autonomia preparação das primeiras enfermeiras nelas formadas, em re-
e consciência de si mesmas e de suas funções, o que parece lação a esse conteúdo. Saliente-se, porém, que a análise limi-
contraditório com a proposta de formação de nível tão eleva- tou-se ao posicionamento e carga horária dessas disciplinas,
do de escolaridade, já que, se o desejado eram apenas sim- sendo oportuno aprofundar, em estudos futuros, o estudo do
ples instrumentadoras do cuidado, como já havia disponíveis conteúdo e das estratégias de ensino adotadas a época para
na força de trabalho que atuava nos estabelecimentos de saú- certificação dessa fragilidade.
de, seria necessário apenas um pouco mais de treinamento, a
fim de executarem a assistência de enfermagem, ao invés de AGRADECIMENTOS
curso tão longo. Não há resposta para essa indagação uma
vez que a presente análise contemplou apenas a distribuição Agradecemos a algumas pessoas que nos ajudaram com in-
e carga horária das disciplinas e não o conteúdo e a forma de formações e acessos à fontes sem o qual este estudo não seria
ensiná-lo, que precisa ser mais bem estudados para que se possível – Dra Maria Angélica de Almeida Peres professora da
possa explorar essa hipótese. EAAN; Márcia Regina Barros Silva e Nádia Vieira, historiadora
Com a intenção de contribuir para a compreensão sobre o e funcionária do Centro de História e Filosofia da UNIFESP;
valor e o reconhecimento social da profissão, ao estudar esse Maria Regina Guimarães Silva, enfermeira e mestre em Ensino
capítulo da história da Enfermagem brasileira, foi possível en- em Ciências da Saúde; e Marta Costa Peñas, funcionária da
contrar a origem da ideologia de subserviência praticada por Pró-Reitoria de Graduação da UNIFESP.

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