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LÍVIA DE OLIVEIRA, Uma Homenagem...

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LÍVIA DE OLIVEIRA, UM CLÁSSICO

Resumo
Por ocasião do XI Colóquio de Cartografia para Crianças e Escolares promovido pela
Universidade Federal de Pelotas, mas também em celebração às seis décadas dedicadas
à Geografia por Lívia de Oliveira (1927-2020), este artigo defende a tese que, sob os
termos de Italo Calvino, a docente emérita da UNESP de Rio Claro deve ser
considerada como um clássico do pensamento geográfico brasileiro. Pela atualidade da
sua pesquisa de doutoramento, o ineditismo da tese de Livre-Docência e, não menos
importante, pelas inestimáveis contribuições ao desenvolvimento da Geografia
Humanística Cultural, Lívia permanece como leitura obrigatória no ensino e na
epistemologia da Geografia.

Palavras-chave: Lívia de Oliveira. Clássico. Ensino de Geografia. Percepção


geográfica. Geografia Humanista no Brasil.

O escritor italiano Italo Calvino elaborou quatorze definições que procuravam


dar conta da noção de clássico. Dentre as suas caracterizações mais célebres, diria o
escritor italiano que “Dizem-se clássicos aqueles que constituem uma riqueza para
quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se
reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los”
(CALVINO, 1993, p. 10).
O que seria o conjunto da obra da professora Lívia de Oliveira (1927-2020)
senão um categórico clássico da Geografia brasileira, um pensamento por cuja obra
sentimos não só a admiração pela potência dos seus conceitos, mas também pela
contemporaneidade das suas contribuições, reatualizáveis nos seus sentidos,
inspiradores nas suas nuanças? Em outras palavras, que aprendemos a amar; aos quais
obrigatoriamente iremos retornar.
Nascida na cidade de Mairinque, região metropolitana da cidade de
Sorocaba/SP, Lívia se diploma antes como professora primária e enfermeira, para
apenas alguns anos depois adentrar no universo da Geografia, pela qual se tornaria
licenciada em 1958. Serão seis décadas de serviços prestados na Universidade Estadual
Paulista Júlio Mesquita Filho, campus de Rio Claro, tendo à frente preocupações com as
possíveis interlocuções entre ensino de Geografia, epistemologia e teoria do
conhecimento. Dessa profícua trajetória, a pesquisa de doutoramento Contribuição ao
ensino da Geografia (1967), a tese de livre-docência Estudo metodológico e cognitivo
do mapa (1978), e a influência no estabelecimento da Geografia Humanista no Brasil –
através das traduções dos livros do geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan – são algumas
das principais contribuições desta notável intelectual.
Na esteira do XI Colóquio de Cartografia para Crianças e Escolares, evento
promovido pela Universidade Federal de Pelotas que dá sequência aos encontros
iniciados em 1995 no Campus do Instituto de Geografia e Ciências Exatas da UNESP-
Rio Claro, mas igualmente sob o impacto do falecimento da professora Lívia em 6 de
junho de 2020, aos 92 anos, este texto pretende traçar uma grade de inteligibilidade das
principais linhas de força da produção desta pesquisadora. Para tanto, pleitearemos que,
por intermédio das terminologias de Italo Calvino, Lívia de Oliveira merece ser
reconhecida como um clássico do pensamento geográfico brasileiro. Não o fazemos por
ocasião de uma homenagem – diga-se de passagem, obrigatória; sobretudo, trata-se de
“entender quem somos e aonde chegamos” (CALVINO, 1993, p. 16).

“Um clássico vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois
lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia”

Na sua tese de doutoramento defendida junto à Faculdade de Filosofia, Ciências


e Letras de Rio Claro, em 1967, Lívia de Oliveira já demonstrava preocupação com o
ensino de Geografia realizado no Brasil. Por um lado, denunciativa o uso exagerado da
nomenclatura nas aulas, em que a memorização aparecia como causa final da
aprendizagem; por outro, já notávamos um esforço de conceituar um dos processos hoje
mais citados no ensino de Geografia: o raciocínio geográfico. Como dizia Oliveira
(1967), tratava-se esse de um método simultâneo de observação-descrição-explicação
dos fatos geográficos das paisagens, tomando por base não só a memória, mas também a
imaginação. Como resultado, “A Geografia irá auxiliar o desenvolvimento intelectual,
estimulando a observação analítica e crítica, a dedução das relações entre os elementos
que constituem esses fatos e a investigação de suas causas” (OLIVEIRA, 1967, p. 9).
A formação de atitudes também não seria negligenciada por Lívia. Competia à
escola formar alunos críticos e participativos, conscientes dos problemas reais da nação
em termos políticos, econômicos e sociais; uma demanda ainda presente, como
sabemos. Nossa emérita professora estava atenta às transformações espaço-temporais
mediadas pela técnica e pelo aceleramento das comunicações; sabia do nexo direto
dessas com a Geografia, a potencialidade, enfim, do espaço geográfico para poder tanto
entende-las quanto experimentá-las. Procedimento que, no entanto, apenas seria
consolidado com uma renovação metodológica em termos pedagógicos, mediante a
inserção de outras linguagens, interlocuções e recursos nas aulas, como era o caso das
pedagogias ativas, da interdisciplinaridade e do trabalho de campo, a fim de
desfragmentar um conhecimento que Lívia já percebia como engavetado (OLIVEIRA,
1967).
Em uma rápida introdução, Lívia de Oliveira já havia conseguido dizer a que
veio: o ensino de Geografia clamava, enfim, por uma renovação. Ela deveria, por
consequência, ser problematizada em três dimensões: o papel do aluno, a teoria do
conhecimento e a questão do ensino.
No que tangia aos nossos jovens estudantes, Lívia se fazia clara: desde cedo, a
criança já está mergulhada no espaço geográfico. Naturalmente curiosa, interessa-se
pela sua espacialidade do seu quarto, da sua casa, da sua vizinhança; questiona-a,
experimenta-a, aproveita-a: “[...] um interesse natural e espontâneo pelos aspectos
geográficos, uma curiosidade pela localização dos lugares e um sentido de direção
inato” (OLIVEIRA, 1967, p. 11). Observava Lívia, no entanto, que esse interesse ia
diminuindo com o passar da idade e, chegando à fase adulta, esses sujeitos não
possuíam as habilidades necessárias para compreender as relações presentes nos fatos
geográficos. Um primeiro problema se impôs na tese.
Seria essa uma questão atinente à teoria do conhecimento? Provavelmente. Lívia
estava atenta ao modo como a Geografia era encarada na escola, um saber cuja herança
remontava à descrição e a enumeração de aspectos físicos, climáticos, hidrográficos,
políticos e etnográficos, sem que houvesse, para tanto, um elã que conduzisse ao
entendimento das conexões entre esses fenômenos; “[...] era um conhecer
enciclopédico, livresco, que não contribuía nem para o saber nem para a cultura”
(OLIVEIRA, 1967, p. 12). Um prelúdio de diagnóstico para esse estado corresponderia
ao dualismo entre Geografia Física e Humana, impedindo uma visão sistemática,
genética, complexa e global das paisagens. De forma semelhante, também tinha a ver
com o próprio posicionamento dos estudos geográficos nos currículos brasileiros,
abrigados eles sob o guarda-chuva dos Estudos Sociais e, somando-se a isso, uma carga
horária pequena e dispersa. Por fim, e talvez principalmente, pouco se discutia sobre
como ensinar Geografia.
A concepção de Lívia de Oliveira era a de que caberia ao ensino de Geografia
modernizar-se, tomando por base a cientificidade das pedagógicas contemporâneas e o
pressuposto segundo o qual o currículo deve, sobretudo, atender às necessidades dos
alunos e da escola. Com efeito, sua concepção precisaria 1) articular-se às demais
matérias escolares, a fim de excluir do conhecimento funções estanques e isoladas; 2)
criar planos de curso minuciosos e concatenados ao nível psicológico e cognitivo dos
seus alunos em cada série; 3) abandonar a soberania da aula expositiva, em prol de
metodológicas alicerçadas na investigação de problemas, estudos dirigidos, trabalhos
em equipe, projetos orientados, excursões, observações em primeira mão dos fatos
geográficos; 4) valer-se, na sala de aula, de ilustrações, gravuras, fotografias, cartazes,
anuários estatísticos, gráficos, atlas, cartas geográficas, obras literárias. Em suma, Lívia
se referia sobremaneira à emergência de uma pedagogia ativa e participativa, aventada
por uma redefinição do aluno no processo de construção do conhecimento; se
dependesse dos seus esforços, “Não mais seriam fornecidos objetos e imagens prontas,
mas os alunos seriam orientados na solução de problemas, construindo ativamente suas
imagens. Os objetos seriam construídos, manipulados, trabalhados e ordenados de todas
as maneiras possíveis” (OLIVEIRA, 1967, p. 14).
Lívia ainda nos entregaria no corpo da sua pesquisa de doutoramento uma
tentativa de enquadramento histórico da Geografia escolar no Brasil que muito nos
serviu para entendermos a trajetória dessa disciplina no país, ao ponto de várias vezes
usarmos tal divisão de maneira inconsciente, sem atribuirmos o devido crédito à fonte.
Em um primeiro período, anterior a 1931, hegemoniza-se o método verbalista,
cujo método por excelência é a transmissão via exposição. Lá, “Geografia era sinônimo
de decoração e quem se dedicava aos estudos geográficos era admirado e apontado
como pessoa de memória prodigiosa e capaz de repetir dados numéricos, sem saber as
causas e as formas dessas informações” (OLIVEIRA, 1967, p. 17). Sob a égide do
estímulo à memória, o bom aluno era aquele que decorava listas cansativas de nomes e
acidentes geográficos. Poucos o eram, entretanto: sobressaía-se uma atitude geral
passiva e desinteressada, própria daqueles que percebem um conhecimento
desnecessário e inútil. Não por acaso, muitos viam na Geografia uma base de apoio, um
mero acessório, para entender a História.
De 1931 a 1960, a professora Lívia traça um novo marco temporal, em que o
ensino de Geografia acompanha, no Brasil, um movimento de renovação científica e
educacional. Eivados por acontecimentos como a fundação da Universidade de São
Paulo, mas também sob inspiração da orientação moderna escudada tanto pela
Associação dos Geógrafos Brasileiros quanto pelo Conselho Nacional de Geografia, os
estudos geográficos escolares receberam contribuições de diversas vertentes. Por um
lado, pesquisas de alto nível, que alavancam um conhecimento pormenorizado do
território brasileiro. Por outro lado, na esteira da abertura dos cursos de formação de
professores, materializa-se um progresso pedagógico em termos de recursos
educacionais, que chegam à sala de aula por intermédio de inúmeros materiais didáticos
de indiscutível qualidade, em especial no que se refere aos livros didáticos. Nossa
homenageada se anima, mas por pouco tempo: “O professor continua expondo e o aluno
escutando. Os educandos adquirem hábitos rígidos, não sabendo, portanto, resolver
problemas quando apresentados de maneiras diferentes” (OLIVEIRA, 1967, p. 21). A
Geografia continua não ensinando satisfatoriamente a observação, tampouco a noção de
totalidade, que pressupõe o entendimento da conexão indissociável entre os fenômenos.
O melhor exemplo é a manutenção do cartesianismo metodológico, que mantém
divisões como Geografia Geral, Geografia do Brasil, Geografia dos Continentes, etc. É
o velho etapismo positivista, cuja sequência natureza-homem-economia obstaculizava,
de fato, uma verdadeira renovação. Algo que, incrustado nas entranhas de um ensino de
Geografia já centenário no país, serviria como condição de possibilidade para o
problema de tese de Lívia de Oliveira.
Pois então, chegamos aos anos 60, a década presenciada e problematizada por
Lívia de Oliveira in loco. Além da falta de coesão interna subjacente aos cursos de
Geografia, nos quais os currículos se diferenciavam de instituição para instituição,
somada também a ínfima quantidade de docentes com licenciatura, Lívia denunciava os
dualismos ainda presentes na Geografia escolar, por meio dos quais “[...] correremos o
risco de fazer outra ciência e não Geografia” (OLIVEIRA, 1967, p. 24). Impressões
pessimistas e lamentáveis, que invocavam na pesquisadora da UNESP de Rio Claro
alavancas para problematizar o ensino de Geografia no Estado de São Paulo.
Justamente, Lívia, através de um raciocínio dedutivo, mostrava preocupação com o
contexto da disciplina que aprendeu a amar, mas procuraria, com o auxílio de
investigações empíricas, levantar a situação da Geografia escolar no território paulista
para encaminhar algumas proposições.
Em contato com alunos das cidades de Santos, Rio Claro, Americana, Brotas e
Guarujá, num total de 446 discentes e tomando como base a Geografia, ela objetivava a
“[...] verificação do seu status entre as diversas outras matérias curriculares e verificar a
opinião dos alunos sobre o ensino desta mesma disciplina” (OLIVEIRA, 1967, p. 26).
Por intermédio de um questionário codificado por doze questões, os resultados das
entrevistas estruturadas sinalizavam que, a priori, os jovens costumavam gostar da
Geografia pelo teor dos seus conteúdos e a característica de ser uma matéria “fácil” em
comparação às outras. Contudo, lamentavam o excesso de nomenclatura, a obrigação de
ter que decorar os elementos geográficos e a predominância da aula tradicional,
representada pelo ensino demasiadamente expositivo. Opostamente, tinham apreço por
recursos que Lívia considerava como necessários à observação indireta da paisagem,
como os vídeos, as gravuras, as fotografias, as excursões, etc.
Lívia, de maneira honesta e absolutamente transparente no compartilhamento
dos dados coletados, permitia-se apresentar conclusões que, em parte, rebatiam a sua
premissa inicial, isto é, de um ensino de Geografia à beira da queda, desacreditado
pelos estudantes e desinteressante nas suas características internas. Apesar do problema
de certas questões epistemológicas – como, em especial, a fragmentação do objeto de
estudo – os alunos em geral apreciavam as aulas de Geografia, estando “[...] entre
aquelas de que eles mais gostam” (OLIVEIRA, 1967, p. 34). Também admiravam seus
professores, malgrado ressalvas fossem feitas no que concernia à díade aula expositiva-
avaliação mnemônica. É por isso que Lívia, na parte conclusiva da tese, apresentaria
sugestões para o ensino de Geografia que não se impunham de modo prescritivo ou
totalizante, mas sim como resultado de uma trajetória acadêmica e docente já
importante, cujos frutos se materializavam de modo profícuo na sua jovem obra.
Igualmente nesse caso, as reflexões sobreviveram ao “tribunal da história pedagógica”,
haja visto a contemporaneidade do que foi posto para debate.
Primeiramente, a doutoranda aventava a necessidade de, desde o curso primário,
o vocabulário geográfico e a linguagem cartográfica estarem presentes nas diretrizes
curriculares. Substanciada aos conteúdos de História e Ciências, o professor tem que
“[...] orientar e desenvolver na criança a habilidade da observação da natureza e das
atividades humanas, procurando compreender as relações primárias do homem com o
meio em que ele vive” (OLIVEIRA, 1967, p. 50-51). Englobada por saberes
introdutórios no âmbito da Astronomia, da Climatologia, da alfabetização espacial e da
geomorfologia, mas também da vida humana em relação com o espaço geográfico, a
leitura da paisagem aparece em primeiro plano entre as sugestões da professora Lívia.
Deveria ela ser observada diretamente, por intermédio das excursões e dos trabalhos de
campo, e indiretamente, com o auxílio de fotografias, jornais e revistas.
Seguindo a discussão, Lívia, numa espécie de prelúdio dos estudos que na
década seguinte centrariam seus esforços, já se valia de alguns termos do vocabulário
piagetiano, como estágio de desenvolvimento, nível psicológico e operações cognitivas
formais. Ainda que de maneira precoce e um tanto quanto dispersa, já identificávamos
uma defesa de trabalhos práticos na aula de Geografia, utilizando-se para tal do espaço
urbano como correia de transmissão. Conforme dizia Lívia, o estudo da cidade contribui
para o entendimento do sítio, da localização e da posição de um determinado espaço,
que nunca está isolado, mas em relação com o mundo – integra, assim, elementos
físicos e humanos. Igualmente, o município é porta de entrada para uma abordagem
científica do espaço geográfico, apoiando-se essa nas abstrações das linguagens
cartográficas e na construção de conceitos. “Neste contato real com os fatos
geográficos, os alunos têm oportunidade de trabalhar com o que já conhecem e assim
será fácil ao professor sistematizar o conhecimento geográfico” (OLIVEIRA, 1967, p.
57). Com efeito, tanto o conhecimento prévio do aluno quanto os arredores escolares
devem ser valorizados: um outro sinal, diga-se de passagem, das primeiras
aproximações de Lívia com o construtivismo.
Finalmente, a tese de doutoramento percorre, série por série, os conteúdos
definidos pelo Estado de São Paulo e, junto a eles, anexa uma condição de possibilidade
didático-pedagógica para operacionalizar os elementos geográficos. Como ponta de
lança, a noção de que competiria ao professor ser menos um expositor e mais um
mediador, que elabora estudos dirigidos nos quais a participação dos alunos é
valorizada; seriam conduzidos esses por levantamento de dados, investigações, solução
para problemas reais e discussões com o grande grupo; participação ativa, contribuindo
para a “[...] formação do cidadão esclarecido, consciente das possibilidades e
dificuldades do nosso país e de suas relações com as demais nações do globo. Deste
modo, seriam estudadas as relações econômicas, sociais, políticas e culturais do Brasil
com o mundo” (OLIVEIRA, 1967, p. 60). Enfim, a professora Lívia postulava um
ensino de Geografia eivado por um espírito crítico e desacomodado, atravessado por um
constante julgamento da realidade em sua geograficidade. Um componente curricular
engajado na transformação social, tendo como foco primordial de análise as
interlocuções entre sociedade e natureza. Ciência com responsabilidade prática,
justificar-se-ia na escola pela possibilidade de construir o raciocínio geográfico e a
observação atenta da paisagem. Não era pouca coisa. Não por acaso, um projeto de uma
vida, pelo qual Lívia esteve comprometida por mais de seis décadas.
Sob a égide das pedagogias ativas, das metodologias participativas, dos projetos
discentes, da resolução de problemas e de outras ações que buscam colocar os alunos no
centro do processo de aprendizagem, a contemporaneidade do ensino de Geografia
talvez não perceba, muitas vezes, como é tributária do doutoramento de Lívia de
Oliveira. Ora, a primeira tese sobre ensino de Geografia defendida no Brasil já teria
reservado para si um lugar na memória. Mas há mais. Por definir as condições de
possibilidade para se pensar sobre a Geografia escolar e, ao mesmo tempo, traçar as
características primordiais de uma renovação pedagógica, Lívia já se colocava como
uma intelectual de vanguarda pela qual os estudos posteriores teriam que
obrigatoriamente passar, sob o risco de que, sem ela, talvez não teriam nada a dizer.
Reprisemos, portanto, Calvino (1993, p. 14): “Um clássico vem antes de outros
clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar
na genealogia”. Procedimento genealógico cujos caminhos nos levarão a 1967,
introduzindo-nos no fértil pensamento de uma jovem professora.

“Um clássico nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”

Na esteira de uma plataforma de pesquisa que procurava compreender a genética


do chamado raciocínio geográfico, Lívia daria um passo à frente na sua tese de Livre-
Docência, incorporando às premissas do doutoramento estudos sobre Psicologia,
Filosofia e Teoria do Conhecimento. Não há, nesse sentido, uma ruptura com os
princípios escola-novistas: o estudo do meio, a observação da paisagem, os trabalhos
práticos e os projetos coletivos continuam como ponto de partida, estando eles agora
balizados por um renovado suporte conceitual. Estamos fazendo alusão, aqui, à
Epistemologia Genética de Jean Piaget.
Dentre as concepções que costumavam estudar o ato perceptivo, duas escolas
costumavam dominar as discussões: o inatismo e o empirismo. Na primeira perspectiva,
o aparato de percepção está posto a priori para o que virá depois, de forma que cada
sujeito possui uma bagagem hereditária impressa na sua herança genética. Ele, com
efeito, realiza intuições sob o espaço visual, de forma que a paisagem teria somente uma
função suplementar, complementando as formas dadas previamente. O empirismo, por
seu turno, baseia-se na noção de que o sujeito é tábula rasa, em que a experiência
engendra a percepção; a estrutura do intelecto se desenvolve junto aos sentidos, com a
capacidade de conhecimento estando completamente dependente do meio social. Lívia
dá um passo à frente dessas duas correntes tradicionais, abrigando-se numa terceira via
de fundamentação teórica.
Não há construção do objeto geográfico sem que haja experiência, esse é o ponto
de partida de Lívia. Porém, o ato de experimentar pressupõe estágios gradativos,
distinguidos entre si como sensação e percepção (OLIVEIRA, 1977). Se o aspecto
sensitivo deve ser tomado como um primeiro contato em termos de extensão e duração,
a percepção se impõe como uma abstração superior sofisticada por parte do sujeito, que
não copia e espelha o mundo em sua mente, mas o representa através dos seus aparatos
sensoriais. Em termos kantianos, um juízo sintético a priori: “[...] a percepção é
justamente uma interpretação com o fim de nos restituir a realidade objetiva, através da
atribuição de significado aos objetos percebidos. Portanto, quando nos preocupamos
com a percepção espacial é preciso não confundir o ver com o perceber” (OLIVEIRA,
1977, p. 62). Os ecos piagetianos aqui são evidentes. Para o biólogo suíço, o modelo da
gestalt estava correto em elencar as características primárias subjacentes às estruturas
inatas do sujeito. No entanto, existiria todo uma complexidade de ações que se impõem
a partir das relações entre o sujeito que percebe e o objeto que é percebido. Em outras
palavras, para perceber, não basta possuir, mas também fazer com que as categorias
perceptivas determinadas a priori sejam postas em condições de atividade. A
compreensão dos objetos depende de um processo interativo, na qual a maneira através
da qual o campo visual se apresenta pressupõe a descentração cognitiva do sujeito
(OLIVEIRA, 1977).
Para o ensino de Geografia, esta contribuição foi monumental. Lívia já estava
atenta às pesquisas realizadas em diversos países que tinham como preocupação central
a percepção espacial; tomava por premissa que o modo como desenvolvíamos nossas
imagens ambientais era corolário de uma combinação de efeitos físicos externos com os
processos internos de aprendizagem; concordava que os conceitos da Geografia são
interdependentes da percepção e como essa se trata de uma faculdade prosperada desde
a mais tenra idade; portanto, defendia que a criança pode e deve ser alfabetizada
geograficamente; por fim, concluía que o aprofundamento dessas pesquisas exigiriam
esforços interdisciplinares. De fato, um campo fértil a ser desbravado. Para Lívia de
Oliveira (1977), faltava uma fundamentação teórica mais ampla, que pudesse explicar
de maneira robusta as interlocuções entre os aspectos perceptivos com a construção do
conceito de espaço. O grande aporte teórico-metodológico seria La représentacton de l
´espace chez l´enfant
Operando com os estádios de percepção do espaço arrolados por Piaget, os
estudos de alfabetização cartográfica deveriam, sobretudo, levar em conta os processos
mentais topológicos, projetos e euclidianos (OLIVEIRA, 1977). No que toca o primeiro
processo, entende-se que a primeira aproximação do espaço por parte da criança é
orgânica e dependente da movimentação do corpo; as relações topológicas, portanto, se
dão quando ela diferencia outros corpos do seu e empreende associações frente/atrás,
perto/longe, igual/diferente, maior/menor; relações de ordem, continuidade, vizinhança,
separação, dentro/fora são as principais características desse ordenamento alojado no
período sensório-motor. Na sequência, com as relações projetivas, o sujeito passa a
coordenar cognitivamente as relações dos objetos uns com os outros, de forma que pode
projetar um ponto de vista diferente, colocando-se no lugar do próprio objeto ou de
alguém que o observa – ato de descentração, consequentemente. Nível intermediário
entre as relações topológicas e as euclidianas, a coordenação projetiva é um tipo de
abstração preliminar, posto que a criança começa a tomar consciência de que não vive e
enxerga isoladamente, situando-se entre outros indivíduos; ele é, junto ao espaço
topológico, condição de possibilidade para o terceiro nível, reconhecido por Piaget
como euclidiano. Por ser simultâneo às relações projetivas, associa-se esse ao
entendimento da coordenação dos objetos entre si, porém lhes introduzindo um sistema
de coordenação, considerando uma métrica que deve ser descrita e apreendida de
maneira exata; em termos euclidianos, isso significa subordinar o espaço a um plano
balizado por um ordenamento matemático. Ele permite à criança “[...] situar os objetos
uns em relação aos outros e colocar e deslocar os objetos em uma mesma estrutura; é
através deste sistema que a criança engloba os objetos e os lugares por eles ocupados”
(OLIVEIRA, 2005, p. 116).
Sob influência direta das terminologias piagetianas, Lívia transpôs tal arquitetura
conceitual tanto para a alfabetização cartográfica e o uso dos mapas no ensino de
Geografia quanto para o problema da percepção, considerado como fundamental no
raciocínio geográfico (mas ainda pouco explorado).
No que se refere à cartografia escolar, nossa homenageada realizou um
abrangente estudo na cidade de Rio Claro/SP entre os anos de 1974 a 1975, com foco
em alunos de quinze estabelecimentos de ensino, totalizando mais de três mil crianças.
Procurava verificar a construção do espaço entre essas crianças tomando como medida
as relações topológicas, projetivas e euclidianas. Objetivava, assim, estabelecer
caminhos para o ensino da linguagem cartográfica. Os resultados influenciariam uma
geração de acadêmicos do campo escolar da Geografia. Por um lado, eles ratificaram os
estudos piagetianos, demonstrando como os processos cognitivos identificados por
Lívia nas crianças da cidade paulista correspondiam, em média, aos estágios de
desenvolvimento elencados pelo biólogo suíço (OLIVEIRA, 1978). Noções como as de
direita/esquerda, acima/abaixo, ponto de vista próprio/ponto de vista do outro/objeto em
relação a outro objeto estavam intimamente ligadas aos elementos da orientação
espacial, de forma que relações projetivas e euclidianas não maturadas podem
inviabilizar o entendimento de um mapa. Como poucos daqueles alunos que
participaram da pesquisa sequer possuíam habilidades de lateralidade e
descentralização, de que modo o professor poderia satisfatoriamente alfabetizá-los em
termos cartográficos? E qual seria a possibilidade de alavancar o entendimento da
linguagem do mapa em termos de escala, localização e distribuição, relações
categoricamente euclidianas? Reduzidas, obviamente. Pois bem, as conclusões de Lívia
naquela tese de livre-docência exigiriam uma revolução pedagógica no bojo do ensino
da Geografia, em especial nas séries iniciais. O professor, antes de qualquer coisa,
deveria identificar o estádio de desenvolvimento mental dos seus alunos a partir da
maneira por meio das quais elas constroem suas relações espaciais. Para isso seria
necessária uma plataforma de pesquisa, engendrando assim a emergência de um ensino
infantil da cartografia. Na continuidade de um projeto desse porte, seriam criadas
metodologias para se ensinar o mapa não como um objeto em si mesmo, mas sim
enquanto linguagem polissêmica que intermedia a relação da sociedade com o espaço
geográfico (OLIVEIRA, 1978). Enquanto isso, porém, Lívia concluiria que a formação
de professores era falha no quesito cartografia escolar, muito por causa da ausência de
estudos interdisciplinares provenientes da Psicologia da Inteligência.
As operações de alfabetização cartográfica encontrariam eco no estudo das
estruturas perceptivas, base do raciocínio geográfico. O desenvolvimento das relações
espaciais não se daria de maneira inata ou empírica, posto que no sistema piagetiano o
desenvolvimento mental é uma construção que acontece por meio das interações e
adaptações do sujeito com o meio, caracterizando esse percurso pelo período sensório-
motor e o período operacional, dividido esse em dois subperíodos: “a) das operações
concretas, quando o sujeito opera sobre os objetos ou sobre as ações exercidas sobre os
objetos, e b) das operações lógicas, quando o indivíduo opera sobre operações,
prescindindo da presença concreta do objeto” (OLIVEIRA, 2000, p. 8).
A construção dessas operações seria a síntese de uma dialética do indivíduo com
o meio social, prospectada pelas transformações que o primeiro realiza no segundo
(assimilação) e o segundo impõe ao primeiro (acomodação). A mesma lógica se aplica
à percepção. Ela depende, como já comentamos, da experiência associada a um campo
sensorial, que lhe disponibiliza elementos passíveis de contrapor ou afirmar o
egocentrismo do sujeito. É por esse motivo que todo o ato perceptivo está mergulhado
pelo relativismo da subjetividade, que pode deformar a realidade e subordiná-la aos
interesses do sujeito. Porém, um patamar superior é dado pela inteligência, uma
operação que ainda que não possa prescindir da sensibilidade, não está limitada às
impressões individuais de cada um, mas as utiliza como alavancas para construir
conhecimentos universais e independentes do eu individual. Assim, “[...] o sujeito pode
à vontade compor, decompor e recompor o objeto em pensamento, sem a sua presença”
(OLIVEIRA, 2000, p. 11), capacitando-se para operar tanto com formas abstratas
quanto com um sistema de significados apoiados em símbolos, conceitos e
representações.
Lívia entende que a percepção e a inteligência, consideradas por Piaget (1983, p.
129) como “[...] uma relação entre um significante e uma realidade significada”, tem em
comum com a Geografia o processo de leitura da paisagem, que se define por um ponto
de vista e uma noção de conjunto ou totalidade. Sim, paisagem é tudo aquilo que se vê,
tudo aquilo que percebemos mediante o olhar. Definir paisagem é supor uma atividade
do sujeito. Contudo, a professora Lívia, operando com o vocabulário miltoniano,
entende que ela é o resultado de uma acumulação de tempos, materializando o acúmulo
de técnicas e intencionalidades que definem a historicidade de uma sociedade
(OLIVEIRA, 2000). Desse modo, faz-se imprescindível uma rede de conceitos para
entender sua posição em relação ao espaço geográfico, diálogo local-global de idas e
vindas que são inapreensíveis pelo ponto de vista imediato do sujeito. Entre as
habilidades subjacentes ao raciocínio geográfico, com efeito, está a significação da
imagem paisagística, isto é, a mobilização de um ato de inteligência que dá sentido aos
dados sensoriais (OLIVEIRA, 1978) e elabora uma “[...] construção infinita de
estruturas novas, ultrapassando os limites de qualquer percepção real” (PIAGET, 1983,
p. 73).
Do interior dos estudos piagetianos conduzidos pela professora Lívia foi
concretizado um ponto de emergência das relações possíveis entre Epistemologia
Genética com o ensino de Geografia; a percepção da paisagem é o elo de ligação por
excelência desse enfoque. O que a criança sabe e observa não poderá ser negligenciado
pelo professor, que se utiliza do patamar atual para recriar o conhecimento geográfico
sob bases conceituais. Ao olhar, dar-se conta desse ato e receber desafios do meio
social, a criança toma consciência das suas ações. Nem a descrição cristalizada e/ou
dogmática da paisagem, tampouco um lassez-faire que deixaria a cargo do aluno a
interpretação daquela. A paisagem e a criança se determinam mutuamente.
Com tais considerações, a mestra Lívia de Oliveira, à frente do seu tempo e de
costas para as pedagogias tecnicistas de matriz skinnerianas preponderantes na época
dos seus primeiros textos, impulsionaria duas escolas até hoje atuantes no pensamento
geográfico escolar. Uma delas se volta para a crítica epistemológica, procurando
entender os processos de construção do conhecimento geográfico sem as amarras seja
do apriorismo, seja do empirismo. A outra, por sua vez, aloja-se na perspectiva de
criação de propostas pedagógicas relacionais, onde a pedra de toque procura trazer para
o interior das aulas de Geografia o mundo vivido pelo aluno, por intermédio da sua
atividade. Ambas são procedentes, férteis, abertas, em devir. Ambas não deixam,
contudo, de retornar àquela embrionária problematização de Lívia de Oliveira. Por
conseguinte, um clássico, “[...] que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”
(CALVINO, 1993, p. 11).

“Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer,
quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos”

Após a contribuição máxima da professora Lívia para o ensino de Geografia na


sua tese de Livre Docência publicada em 1978, que se transformou em um verdadeiro
compêndio de ensino do mapa, uma nova e – e também potente – contribuição
apareceria no horizonte investigativo da já consagrada pesquisadora. Na continuidade
de um percurso sobre os estudos da percepção sob inspiração piagetiana, Lívia se
aproximaria no início da década de 1980 do pensamento geográfico estadunidense,
tendo como porta de entrada o Humanismo da Geografia Cultural Yi-Fu Tuan (cuja
obra difundiu no Brasil através das suas traduções de Topofilia e Espaço e Lugar).
A Geografia Humanista que Lívia contribuiu para desenvolver no país se tornou
uma instigante terceira via para o pensamento geográfico hegemônico, chancelado até
então pelas perspectivas teoréticas da new geography ou pelos estudos sob o crivo do
materialismo histórico-dialético; em outras palavras, um racha físicos x humanos
(MARANDOLA JR. & GRATÃO, 2003). Como vimos, desde o seu doutoramento
Lívia já defendia que o espaço geográfico era único e indivisível, característica que
defendeu estando à frente da disciplina de Didática no Departamento de Geografia de
Rio Claro. Com a influência de Piaget a respeito das formas de cognição, aprendeu a
desconfiar do determinismo economicista, que partia do pressuposto de que os
indivíduos seriam completamente condicionados pelas condições concretas de um modo
de produção. Não seria surpresa, com efeito, que se aproximasse dos estudos de
percepção ambiental arrolados por Tuan. Sobretudo, o pensamento desse geógrafo lhe
fascinava por vários motivos.
Primeiramente, pela concepção de integração subjacente à Geografia,
movimento que Lívia já fazia e cuja instrumentação conceitual de Tuan lhe ofereceu
novos percursos investigativos. Tratava-se de compreender as relações de homens e
mulheres com o seu meio numa perspectiva que valorizasse a afetividade, os
sentimentos e as memórias individuais, que significavam seus espaços de maneira
singular. Sem a pretensão de realizar uma fixação de sentidos ou a definição de uma
essência, valoriza-se a contingência dos significados imateriais, com a preocupação
central de, inspirando em estudos da fenomenologia, do existencialismo, da psicologia e
da antropologia, compreender os valores de uma comunidade quando interage com o
seu meio ambiente.
São pesquisas que se deslocam em torno da noção do mundo vivido,
experimentado em ato por meio de formas de percepção, ação e uso particulares. E que
poderiam dialogar com a leitura da paisagem, processo caro tanto à Geografia quanto à
própria plataforma de estudos de Lívia de Oliveira. Ela se admirava com o jeito com o
qual Tuan articulava a simbologia própria de cada lugar à percepção da paisagem,
tornando cada relação paisagística diferente e especial. Cada pessoa constrói e elabora
seus significados espaciais por meio de uma multiplicidade de sentidos que englobam o
olfato, o paladar, o tato, a visão; por outro lado, “As emoções e o pensamento dão
colorido a toda experiência humana, e a sensação é rapidamente qualificada pelo
pensamento em um tipo especial, como, por exemplo, calor sufocante ou ardente, dor
aguda ou fraca, provocação irritante ou força brutal” (OLIVEIRA, 2000, p. 20). A
noção de experiência é central: sob um timbre nitidamente fenológico, a consciência
sempre é dirigida ao mundo vivido, porém a maneira como interagimos com os aspectos
exteriores depende de uma intencionalidade preenchida por sentimentos, afetos,
lembranças e modos de existência. Conforme Tuan (1980, p. 110), o mesmo acontece
com a paisagem, cuja apreciação e leitura é “[...] mais pessoal e duradoura quando está
mesclada com lembranças de incidentes humanos. Também perdura além do efêmero,
quando se combinam o prazer estético com a curiosidade científica”.
Lívia enriquece os seus já avançados estudos sobre a percepção geográfica,
colocando-a em correspondência com a sensação e num estágio cognitivo superior.
Através dos sentidos, nos comunicamos com um mundo composto de cores, formas,
extensões, sons, odores. Essa relação com o que nos rodeia é a experiência em si
mesma, processo que, conforme o pensamento piagetiano, é condição sine qua non para
a aprendizagem. Porém, a diferença agora pontuada pela professora Lívia entre
sensação e percepção reside no fato de que enquanto a primeira se dá através de órgãos
sensoriais que capturam os sentidos externos, a percepção opera em um nível maior de
profundidade, balizando-se pela construção de significados (OLIVEIRA, 2000). Não era
novidade a ideia de que os estudos da paisagem eram uma das razões de existência do
pensamento geográfico nem que, também, o ensino da Geografia deveria preocupar-se
com eles. Entretanto, do hibridismo da espacialidade de Piaget com o humanismo de
Tuan, Lívia vai além, demonstrando como a paisagem, numa perspectiva
fenomenológica e interacionista, provavelmente era, junto à cartografia, a noção central
da Geografia escolar, a maior das suas responsabilidades. Yi-Fu Tuan lhe dava
subsídios...

É difícil para um adulto recapturar a perdida vividez das impressões


(exceto sensorialmente) como a frescura de uma cena após a chuva, a
fragrância penetrante do café antes do desjejum, quando a
concentração de açúcar no sangue está baixa, e a pungência do mundo
durante a convalescência, após uma doença. Uma criança, de cerca de
7 a 8 anos os treze, catorze, vive a maior parte do tempo, neste mundo
vivido. (TUAN, 1980, p. 65).

Uma observação da paisagem que, direta ou indiretamente, efetiva-se para além


da mera morfologia, explicando as conexões entre os fenômenos e de que maneira os
fatores antrogênicos podem se manifestar na natureza: uma abordagem sistêmica, eis o
que compete à educação geográfica realizar. Se, como diz Tuan (1980, p. 4), “As
crianças têm apenas um mundo e não uma visão de mundo”, então, nas palavras da
professora Lívia, “Nossa tarefa é tentar ultrapassar a paisagem como aspecto visual para
chegar ao seu significado e valor” (OLIVEIRA, 2000, p. 17). Função que pode ser
construída sob o prisma da História, que define homens e mulheres como parte de
paisagens que se humanizam, corolário de um processo histórico. E tarefa que, para
Lívia, campeia suas investigações com os aportes de um universo de imagens,
idealismos, representações, sentimentos. Método que não pretende nenhuma
imparcialidade ou afastamento do problema, mas que coloca como parte constitutiva da
sua análise a subjetividade e a imaginação.
Para nós, professores de Geografia, o compromisso com os argumentos de Lívia
deverá ser firmado, sobretudo, no terreno da sala de aula, em um contrato pela
aprendizagem. Em primeiro lugar, entenderemos que os alunos não estão em relação de
exterioridade às paisagens que vivenciam, das imagens que enxergam, etc. Pelo
contrário: a paisagem para eles se revela em ato, em função de um ponto de vista eivado
por afetividade, pertencimento, emoção. Eles enxergam a paisagem a partir deles
mesmos, e devemos nos utilizar dessas sensações. No entanto, a visão, o tato e o cheiro
fazem parte de um campo sensorial limitado, que se enfraquece com a ampliação da
escala. Pois bem, a percepção tende a preencher essa lacuna espacial com imagens,
símbolos, representações. E, também, com a construção conceitos geográficos, por
intermédio do trabalho docente, que problematiza com seus alunos a posição deles em
relação a um espaço mais amplo, sem que haja, no entanto, ruptura, mas o
desenvolvimento de uma unidade coerente. Trata-se, consequentemente, de um
ordenamento lógico dos dados sensoriais, cuja amplitude buscará a superação de
esquemas de experiência pessoal, descentrando os sujeitos. Raciocínio geográfico por
excelência.
Equilibrando o construtivismo piagetiano com o humanismo de Tuan, Lívia
destrincha um campo afirmativo em que, nas palavras de Cabral (2000, p. 39), “[...]
cada paisagem tem seu próprio conjunto e contém significados específicos para nós.
Não obstante, qualquer paisagem é diferente e ao mesmo tempo possui similaridades
com outras, pois além dos atributos e formas comuns, nós a vemos através dos mesmos
olhos e preconceitos”. Topofilia e raciocínio geográfico introduzidos, assim, numa
mesma grade de inteligibilidade, na qual o ato de inteligência está concatenado ao
sentimento de pertencimento, conduzindo o pensamento ao estar-no-mundo. Em outras
palavras, “[...] um continuum experimental mediado pela sensação, percepção e
concepção, uma tríade em que, caminhando-se da primeira para a última, caminha-se
para o pensamento, e no sentido inverso caminha-se para o sentimento” (MOREIRA,
2019, p. 66).
Precursora de uma perspectiva de trabalho em que a paisagem é fonte de
significação para o ensino da Geografia, parece que foi no fechamento da ideia de
percepção geográfica que Lívia concluiria, enfim, um projeto anunciado há muito
tempo, ou seja, aquele de cientificar o pensamento geográfico por sua unidade,
acrescentando a dimensão temporal à experiência da espacialidade (OLIVEIRA, 2013).
Quando colocava no ano de 1976, em A situação da Geografia entre as ciências, que a
vertente de espaço absoluto deveria ser repensada, adiantava a proeminência da
concepção relativa, em que “[...] as medidas poderiam ser definidas em termos de
velocidade, custo, tempo, percepção, distância, acessibilidade. Assim, a localização
relativa não é necessariamente expressa em graus, mas em outros valores” (OLIVEIRA,
1976, p. 59). Sob o crivo desse viés, a Geografia não se divide em física e humana,
tampouco é saber de síntese, muito menos é ciência de classificação. Opostamente,
repousa sobre a percepção paisagística e o raciocínio geográfico, empregando o mapa
como meio sui generis de comunicação e representação do espaço. Municiada pela
cartografia e tendo como princípio de ação a percepção humanística da Geografia
Cultural, a unidade será mantida, os dualismos não terão como se justificar.
Novamente com Calvino (1993, p. 12), para o qual “Os clássicos são livros que,
quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se
revelam novos, inesperados, inéditos”, a ressonância com o pensamento de Lívia de
Oliveira é, mais uma vez, evidente. Prosseguindo os estudos feitos pela nossa
homenageada a respeito das experiências sensitivas, representativas, perceptivas e
imaginárias engendradas pelo pensamento em combinação com o entorno, atualmente
não só não causa surpresa como, inclusive, vêm sendo cada vez mais bem-vindas as
interlocuções da Geografia (acadêmica e escolar) com a Literatura, a Psicologia, a
Filosofia, as Artes Plásticas, a Filosofia. Nesse quesito, o relato de Marandola Jr. e
Gratão (2003, p. 16-17) é mais do que elucidativo: é esclarecedor do quão importante a
professora Lívia foi para esse processo.

Os ensinamentos da professora-geógrafa revelam-nos que essa


Geografia se mostra multifacetada: surgida nos anos 1950, com
consolidação mais ampla no Brasil a partir da década de 1990, através
da perspectiva da valorização da vida, pode humanizar a leitura da
Economia, da Física e outras ciências, buscando a integração Homem-
Ambiente e a valorização de paisagens e lugares. A Geografia
Humanista atingiu fóruns científicos abrindo campos instigantes. [...]
E o caminhar de Lívia, no sonho ou na vigília, deixou um legado
inestimável para nossa geografia, seja pelas portas e perspectivas que
abriu, seja por sua própria pessoa, que sonhou caminhando, e
caminhou sonhando, sem perder de vista o ser professor e o ser
geógrafo, sem perder de vista o lugar, o seu lugar, e o lugar do lugar
no mundo...
Por outro lado, se a continuidade das pesquisas no quadrante da Geografia
Humanística Cultural mantém a frescura e a atualidade de Lívia de Oliveira, o estudo
dos seus livros, artigos, entrevistas e palestras permanece inesperado e, não importa o
número de vezes que o fizermos, inédito. Uma vez que a repetição dessa leitura, em
termos deleuzianos, “[...] nada muda no objeto que se repete, mas muda alguma coisa
no espírito que o contempla" (DELEUZE, 1988, p. 127) e concordando com Foucault
(1996, p. 26), para o qual “O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua
volta”, Lívia continua a nos transformar, subjetivar, envolver; ao fazê-lo, injeta-nos o
sentido da mudança, de modo que nem nós nem os nossos lugares permanecerão os
mesmos.

Um pensamento em movimento, um Dizer-Sim ao ensino da Geografia

Em uma emotiva entrevista concedida ao Departamento de Geociências da


Universidade Federal de Santa Catarina, em 22 de março de 2006, Lívia se propõe de
maneira aberta e transparente retomar a sua história e lembrar a trajetória profissional,
trazendo-nos passagens fundamentais da sua vida. Do relacionamento com a família,
passando pela diplomação como normalista, o trabalho no campo da enfermagem até,
finalmente, chegar na atuação como professora e pesquisadora da Geografia, nada se fez
por acaso em Lívia de Oliveira. E, ao sobrepormos essa fala aos três momentos deste
pequeno texto-homenagem que se encerra, parece que a razão principal da relevância do
pensamento de Lívia se deve, sobretudo, à clareza das suas perguntas, à inquietude do
seu trabalho, ao método claro e distinto de saber como colocar em questão um problema
e perspectivá-lo.
Após abandonar a área da saúde, Lívia se matricularia no curso de Geografia e
História da Universidade de São Paulo, diplomando-se em ambas, optando pela
primeira. Começa a dar aulas para crianças e, apesar da satisfação com as suas práticas e
o prazer que adquiria pelo ato de educar, a professora Lívia começava a ficar
desconfiada. Como ela relata aos entrevistadores, “Quando comecei a dar aulas em
Pedro de Toledo, me surgiu a questão: como posso saber se o aluno aprendeu ou não
geografia? Foi aí que começou” (MACHADO, FURTADO & BUSS, 2007, p. 221). De
uma pergunta bem colocada previamente, emergiria um projeto de atribuir ao ensino
geográfico uma base científica, a partir da qual pudesse haver base para generalização.
Eis a motivação que energizava a sua tese de doutorado, a primeira do país na área do
ensino de Geografia e, peremptoriamente, um trabalho basilar que, devido aos seus
princípios (as pedagogias ativas, as metodologias participativas, a interdisciplinaridade,
a unicidade geográfica), permanece obrigatório.
O amadurecimento à frente da disciplina de Didática, somado às experiências no
campo da psicologia da educação vivenciadas nos Estados Unidos e, sobretudo, ao
aprofundamento do construtivismo piagetiano, tornaram a pesquisa de Livre Docência
um marco de ruptura no interior da Geografia escolar, uma quebra na ordem do
discurso. Relembrando aquela época, Lívia descreveu na entrevista à Geosul o núcleo
central da sua problemática:

E este era meu pressuposto, nossas crianças não são melhores nem
piores que as outras crianças, elas são iguais, independente de
economia, de alimentação; mentalmente elas são iguais às outras. E aí
me surgiu que, para trabalhar com o mapa, teria que pensar em uma
alfabetização cartográfica. Não se pode tomar mapas para adultos e
dar para crianças. Como elas vão entender? Os mapas são euclidianos
e a criança vive topologicamente. (MACHADO, FURTADO &
BUSS, 2007, p. 227).

Comprovando através de um método rigoroso as premissas aventadas pelo


Centro Internacional de Epistemologia Genética, Lívia foi a responsável direta por
introduzir o que de mais avançado havia no ensino de Geografia além de,
principalmente, expandir a análises das espacialidades biológicas, físicas e matemáticas
carreadas por Jean Piaget para o espaço geográfico. Com isso, não só inaugurpu o
debate em torno da necessidade de uma disciplina de ensino de cartografia como criou
um campo de pesquisa inédito, a alfabetização cartográfica.
Finalmente, desde cedo a professora Lívia criticava contundentemente os
dualismos presentes na Geografia, em especial aqueles materializados nas divisões entre
física, humana, geral, brasileira, continental, regional, etc. De forma semelhante,
perspectivava a possibilidade de adentrar no entendimento da espacialidade pela noção
de espaço relativo, em detrimento da concepção absoluta. Por último, a própria
características dos seus trabalhos sobre a percepção, na década de 1970, já evocavam
outros sentidos investigativos, esquadrinhados por uma ideia de subjetividade. Quem
conhecia os textos de Lívia naquele momento não iria surpreender-se com o seu fascínio
pela obra de Yi-Fu Tuan. Novamente à Lívia, a palavra:

E quando, através do Christofoletti, me caiu nas mãos o livro


Topofilia para traduzir, achei interessante. Em seguida, já me pediram
para traduzir o Espaço e o lugar. Para mim, foi muito bom, era o que
eu queria, já trabalhava com o lugar e me deu muita abertura. Aquela
era a geografia que eu queria, não era física, urbana, cartografia; não
predominava uma ou outra, era apenas a geografia. E agora todo
mundo descobriu o lugar. (MACHADO, FURTADO & BUSS, 2007,
p. 228).

As paisagens e os lugares não podem ser determinados de antemão por


pesquisadores ou através de modelos planejados em laboratório. Paisagens e lugares se
confundem com a própria história de cada sujeito, que direciona ao seu mundo vivido
uma multiplicidade de aspectos simbólicos que só podem ser entendidos junto a um
método que valorize a subjetividade, que procure compreender as relações de
pertencimento. Percepção ambiental, geograficidade, topofilia, ambiência... Conceitos e
noções que nos hoje caros e bem-quistos, eles não estavam desde sempre aí, aguardando
por uma descoberta: tiveram que ser criados, problematizados, reflexionados por um
grupo de intelectuais que procuravam avigorar o pensamento geográfico,
arregimentando lógicas estrangeiras tanto à new geography quanto ao materialismo
histórico-dialético. Dentre esses nomes, Lívia de Oliveira foi um dos maiores.
Pois bem, se a premissa aventada por este texto foi a de que a professora Lívia
deveria ser considerada como um clássico, os efeitos da análise concretizaram a
hipótese inicial. Um pensamento potente, que ao recusar a comodidade do mesmo,
manteve-se em movimento. Contemporâneo, inédito, inconcluso, inspirador, fértil.
Tudo porque Lívia de Oliveira, tal como o Dionísio nietzschiano, nunca abdicou de
Dizer-Sim à Geografia, celebrando-a com pluralidade, criação, alegria, autenticidade.
Com a própria vida. Um clássico.

REFERÊNCIAS

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v. 15, n. 30, jul.-dez. 2000.

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France,


pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

MACHADO, Ewerton; FURTADO, Sandra; BUSS, Maria Dolores. Entrevista com


Lívia de Oliveira. Geosul, Florianópolis, v. 22, n. 43, jan.-jul. 2007.
MARANDOLA JR., Eduardo; GRATÃO, Lúcia Helena Batista. Do sonho à memória:
Lívia de Oliveira e a Geografia Humanista no Brasil. Geografia, Londrina, v. 12, n. 2,
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MOREIRA, Ruy. O pensamento geográfico brasileiro 2: as matrizes da renovação.


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OLIVEIRA, Lívia de. Contribuição ao ensino da Geografia. Tese (Doutorado em


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