Antonio Menezes Cordeiro
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Sumário:
1. Introdução. I. A supressão do contrato: 2. Terminologia e institutos;
3. A experiência lusófona. 4. Preparatórios e Código Civil. 5. Formas de
supressão. II. Evolução histórico comparatística: 6. Direito romano.
7. Direito intermédio; 8. Sistema pandectístico. III. A geografia da reso-
lução: 9. O Código Civil. 10. A resolução por incumprimento. 11. Situações
resolúveis. 12. Circunstâncias relevantes. 13. O fundamento da resolução.
IV. Traços do regime: 14. Fundamento e exclusão. 15. A “equiparação” à
invalidação. 16. A relação de liquidação. 17. Resolução e indemnização.
18. A retroatividade: sentido e limites. V. Aspetos práticos: 19. O exercí-
cio. 20. O exercício indevido. 21. Valor da resolução infundada.
1. Introdução
I. A evolução do Direito das obrigações nas últimas décadas, parti-
cularmente visível na reforma alemã de 2001/2002 e na reforma francesa
de 2016, permite uma leitura da relação obrigacional cada vez mais dis-
tante do vinculum iuris romano. A obrigação deve ser tomada como um
sistema móvel, essencialmente adaptável e que governa os interesses do
credor e do devedor, naquilo que eles tenham decidido inserir no seu
âmbito. Esse estado de coisas, sempre discernível, atinge pontos altos
perante contratos especialmente complexos, que perdurem no tempo.
I. A supressão do contrato
2. Terminologia e institutos
I. A supressão do contrato ou, mais latamente, da sua fonte, abarca
diversas formas de extinção das obrigações, caracterizadas por se atingir,
diretamente, a sua origem. A terminologia não está estabilizada(1). Encon-
tramos: (1) a dissolução dos contratos (guilherme Moreira); (2) a extinção
das relações obrigacionais complexas (Antunes Varela); (3) os desvios ao
princípio da estabilidade dos contratos (Almeida Costa); (4) a extinção dos
negócios jurídicos (Menezes Leitão); (5) a cessação do contrato (Romano
Martinez). Nós próprios temos usado “supressão da fonte”(2).
3. A experiência lusófona
(4) idem, 404-405.
(5) Vide o Tratado II, 4.ª ed., 485 ss.
(6) M. A. COELHO DA ROCHA, instituições de Direito civil, § 109 (1, 62-63).
(7) idem, § 170 (1, 100).
(8) idem, § 211 (1, 126).
(9) idem, § 724 (2, 497-498); também refere “rescindir” o testamento por indignidade: § 726
(2, 500).
(10) idem, § 737 (2, 508-509).
(11) idem, § 760 (2, 523-524).
(12) idem, § 798 (2, 544).
(13) J. H. CORREIA TELLES, Digesto Portuguez, art. 644.º (3, 92), quanto à revogação do mandato.
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logo distinguiu entre a nullidade do acto, quando houvesse vício que não
permitisse qualquer efeito e acto rescindivel, quando pudesse ser anulado
a requerimento das partes, produzindo, sem isso, os seus efeitos(14). Além
disso, surgiam, nos diversos tipos contratuais, específicas formas de cessa-
ção: fim da sociedade por renúncia de algum dos sócios (1278.º), do man-
dato, por revogação pelo mandante (1364.º) ou por renúncia do mandatá-
rio (1368.º), da doação, por revogação (1482.º; no art. 1484.º referia-se
“rescindida a doação”), do arrendamento, por despejo (1632.º), do testa-
mento, por revogação (1754.º) e das partilhas, por rescisão (2163.º). Na
tradição romanística, as formas de cessação dos contratos desenvolve-
ram-se em termos insulares, em torno de cada tipo de ato.
(14) JOSé DIAS FERREIRA, Codigo Civil annotado, 2, 1.ª ed., 207 e 2, 2.ª ed., 37.
(15) gUILHERME MOREIRA, instituições do Direito civil, 2 (1907), 659-660.
(16) INOCêNCIO gALVÃO TELLES, Dos contratos em geral, 1.ª ed. (1947), 303-308 e manual dos
contratos em geral, 3.ª ed. (1965), 347-352.
(17) ADRIANO VAz SERRA, resolução do contrato, BMJ 68 (1957), 153-291.
(18) ADRIANO VAz SERRA, Prescrição extintiva e caducidade, BMJ 105 (1961), 5-248, 106
(1961), 45-278 e 107 (1961), 159-306.
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5. Formas de supressão
IV. Denúncia: (a) não tem um regime geral; (b) é unilateral; (c) não
é retroativa; (d) é própria das relações duradouras, podendo dispor de uma
permissão específica ou derivar da boa-fé; (e) é discricionária, mas pode
exigir um pré-aviso.
VI. Anulação: (a) tem um regime geral (287.º a 293.º); (b) é unila-
teral; (c) é retroativa; (d) exige uma permissão legal, sob pena de se cair na
nulidade; (e) dentro da permissão, é discricionária.
(19) Em especial, no tocante ao mandato: Tratado, XII (2018), 669 ss. Também o arrenda-
mento requer especiais cuidados: Tratado, XI (2018), 797 ss.
(20) Elementos: Tratado, IX, 3.ª ed., 907-909.
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quando justificada em certos factos e desde que permitida pela lei e pelo
contrato. Sendo o contrato o produto de duas vontades, apenas uma delas
não lhe pode pôr cobro: iria contundir com a fides. Os incumprimentos
davam azo a condenações de pagamento em dinheiro (dare certa pecunia)
ou de entrega de coisas. Mas havia limites.
7. Direito intermédio(21)
8. Sistema napoleónico
9. Sistema pandectístico
IV. A lacuna foi desde logo integrada pelo próprio Antunes Varela: o
não-cumprimento definitivo visualizado no art. 808.º/1 seria remetido para
o regime do 801.º (impossibilidade culposa)(29). E este, no seu n.º 2, prevê,
perante “contratos bilaterais”, o direito de resolução. Aprofundando a ideia,
Baptista Machado considera que em qualquer das situações previstas
no 808.º (mora com perda de interesse do credor ou ultrapassagem do prazo
admonitório), cabe um direito de resolução, por via do referido 801.º/2(30).
Tal conclusão foi reforçada perante os arts. 891.º (compra e venda), 934.º
e 936.º/2 (venda a prestações), 966.º (doação), 1047.º a 1050.º (locação),
1083.º a 1087.º (arrendamento urbano), 1140.º (comodato), 1150.º (mútuo),
1222.º/1 (empreitada), 1235.º (renda perpétua) e 1242.º (renda vitalícia):
todos esses preceitos preveem resoluções por incumprimento, ainda que
fixando regras especiais.
Esta orientação pode ser dada como assente: o incumprimento defini-
tivo permite, à parte fiel, resolver o contrato: uma orientação, também, da
jurisprudência(31). Cabe afinar os pressupostos dessa resolução.
(28) Projecto, 236.
(29) PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado II, 4ª ed. (1997), 71; na 1.ª ed. (1968),
esse troço surgia a p. 55.
(30) JOÃO BAPTISTA MACHADO, Pressupostos da resolução por incumprimento, 159; no mesmo
sentido, também JOSé CARLOS BRANDÃO PROENÇA, A resolução do contrato, 114-115, LUíS MENEzES LEITÃO,
Direito das obrigações, 2, 12.ª ed., 103 e Ana Perestrelo de Oliveira/Madalena Perestrelo de Oliveira,
incumprimento resolutório: uma introdução (2019), 41 ss..
(31) A jurisprudência faculta a resolução perante o não-cumprimento, particularmente na área
delicada da prestação de serviço: STJ 4-nov.-1999 (Herculano Namora), CJ/Supremo VII (1999) 3,
71-73 (72/II) (quebra de confiança; vide, ainda, RLx 11-nov.-1999 (Silva Pereira), CJ XXIV (1999) 5,
83-85 (85/II) (aluguer de automóvel); STJ 9-mai.-2006 (Urbano Dias), CJ/Supremo XIV (2006) 2,
67-73 (71-72) (violação do dever acessório relativo ao destino contratual a dar ao imóvel comprado);
STJ 4-jun.-2013 (HELDER ROQUE), Rev. 4817/11 = Sumários, 2013, 407.
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(32) Ao contrário do 1453.º/1 do Código italiano, que a reporta a contratos com prestações
correspetivas. A doutrina italiana tem feito um esforço para alargar esse âmbito: apela, designada-
mente, aos 1323.º e 1324.º que alargam, respetivamente, os dispositivos contratuais típicos aos demais
contratos e aos atos unilaterais.
(33) Nesse sentido, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado I, 4.ª ed. (1987), 409,
chamando a atenção para a diferença relativamente à exceção do contrato não-cumprido onde surge a
restrição aos contratos bilaterais (428.º). Todavia, parecendo reportar a resolução a obrigações com
prestações recíprocas, ainda que sem excluir as demais, LUíS MENEzES LEITÃO, Direito das obrigações, 2,
12.ª ed. (2018), 103.
DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO 459
(34) Em especial, JOÃO BAPTISTA MACHADO, Pressupostos da resolução por incumprimento, n.º 5
(138 ss.). Quanto ao cumprimento inexato, idem, n.º 10 (168 ss.).
(35) JOÃO BAPTISTA MACHADO, Pressupostos da resolução por incumprimento, n.º 4 (134 ss.);
RPt 20-fev.-2020 (Aristides Rodrigues de Almeida), Proc. 1902/17.
(36) JOÃO BAPTISTA MACHADO, Pressupostos, n.º 8 (158 ss.); vide JOSé CARLOS BRANDÃO PROENÇA,
A resolução do contrato, 114-117.
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(37) JOÃO BAPTISTA MACHADO, Pressupostos, n.º 2 (129 ss.); JOSé CARLOS BRANDÃO PROENÇA,
A resolução do contrato, 128-129 e 183 ss. Esta opção não tem nada de perigosamente inovativa: ela
já surgia em gUILHERME MOREIRA, instituições do Direito civil, 2, n.º 201 (662) e em ADRIANO VAz SERRA,
resolução do contrato, que não coloca a culpa como pressuposto de resolução.
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(38) Tratado VII, 603-627; de resto, ela foi removida do próprio Código Civil francês pela
reforma de 2016; vide o nosso A reforma francesa do Direito das obrigações, RDC 2017, 9-29 (25).
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(40) ADRIANO VAz SERRA, resolução do contrato, BMJ 68 (1957), 195-226 (281); idem, Direito
das obrigações (1960), (634.º/1), 520-521.
(41) BMJ 119 (1962), 40.
(42) 2.ª revisão ministerial (1965), 14.
(43) Projecto de Código Civil (1966), 127.
(44) ADRIANO VAz SERRA, anot. a STJ 28-nov.-1975 (EDUARDO ARALA CHAVES), RLJ 109 (1977),
360-364, idem, 365-368 (365/II), aparentemente acolhido pelos próprios PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA,
Código Civil anotado, I, 4.ª ed. (1987), 410.
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(47) RCb 6-nov.-2007 (JORgE ARCANJO), CJ XXXII (2007) 5, 5-9 (7/I); Rgm 24-out.-2019 (ANI-
zABEL SOUSA PEREIRA), Proc. 9217/15.
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19. A retroatividade
(55) STJ 17-mai.-2018 (MARIA DA gRAÇA TRIgO), Proc. 567/11: “haverá que relativizar a eficácia
retroativa da resolução”.
(56) STJ 15-fev.-2018 (TOMé gOMES), Proc. 7461/11; STJ 11-abr.-2019 (ANTóNIO JOAQUIM
PIÇARRA), Proc. 622/08; RCb 28-mai.-2019 (ALBERTO RUÇO), Proc. 5755/19; STJ 12-set.-2019 (OLIVEIRA
ABREU), Proc. 50/17.
(57) REv 15-mar.-2007 (SILVA RATO), Proc. 247/07, considerando mesmo que a retroatividade
se presume querida pelos contratantes.
(58) STJ 12-set.-2013 (AzEVEDO RAMOS), Proc. 1942/07.
(59) E tendo ainda em mente o 289.º/2.
DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO 469
V. Aspetos práticos
20. O exercício
I. A resolução efetua-se, na sequência de Vaz Serra, mediante uma
declaração à outra parte (436.º/1). O Código optou pelo sistema da resolu-
ção extrajudicial, à semelhança do BgB (atual § 349). Contrapõe-se ao
esquema tradicional napoleónico, que previa, perante a “condição resolutiva
tácita”, o recurso ao juiz (1184.º/3): uma situação revista pela reforma
de 2016(60). Apenas por exceção, como sucede no caso do arrendamento
urbano, quando a resolução caiba ao senhorio e nalguns casos, se impõe o
recurso ao tribunal (1084.º/1). A solução extrajudicial é, em regra, a única
viável: de outro modo, toda a rapidez e funcionalidade que se pretende reti-
rar da imediata remoção dos contratos inadimplidos ficaria posta em causa.
A solução dos despejos urbanos, justamente pelas demoras e pelas cautelas
que envolve, visa a tutela dos arrendatários, dentro de uma lógica vinculís-
tica. A resolução extrajudicial, por razões elementares de coerência sistemá-
tica, deve aplicar-se à declaração de nulidade e à anulação: ambas podem
ser feitas, num primeiro tempo, por declaração extrajudicial, cabendo o
recurso ao tribunal apenas no caso de uma controvérsia subsequente(61).
II. A lei não prescreve uma forma para a resolução(62): isso embora
a locução do art. 436.º/1, “declaração à outra parte”, permita inferir uma
comunicação escrita ou equivalente. Uma declaração de resolução vai
alterar (profundamente) o contrato a que respeite. Vale, pelo menos, tanto
quanto uma “estipulação posterior”, na linguagem do art. 221.º/2. Em
regra, ela deveria seguir a forma do próprio contrato a resolver, uma vez
que a “razão determinante da forma” lhe é, seguramente, aplicável. Os
contratos escritos são resolvidos por escrito. Quanto a formas mais solenes
— escritura pública ou equivalente — parece razoável exigir, para a reso-
lução, uma forma escrita autenticada. Todavia, há que ter em conta a exis-
tência de regras especiais, previstas para certos tipos contratuais.
(60) O referido 1226.º, resultante da Reforma de 2016, admite que o credor resolva o contrato
por simples notificação.
(61) O nosso Código Civil Comentado, I (2020), 286.º, anot. 12-16.
(62) PEDRO ROMANO MARTINEz, Da cessação do contrato, 3.ª ed., 169-175.
(63) ADRIANO VAz SERRA, resolução do contrato, n.º 9 (247-249).
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(64) No anteprojeto VAz SERRA (636.º/1), explicitava-se que a resolução não poderia ser condi-
cional; hoje, essa solução prevalece pelos princípios gerais; DAVID NUNES DOS REIS, A (in)eficácia extin-
tiva da resolução ilícita de contratos, 644 ss., refere “resolução ilícita”.
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perante uma situação de tipo contratual com a qual, de todo, ela poderia,
legitimamente, não contar.
(70) ANTóNIO PINTO MONTEIRO, Contrato de agência, 7.ª ed. (2010), 138-139, com indicações
jurisprudenciais, e já em Direito comercial/Contratos de distribuição comercial (2001), 149 ss.
(71) JOSé CARLOS BRANDÃO PROENÇA, Do incumprimento do contrato-promessa bilateral/A duali-
dade execução específica-resolução. Est. Ferrer Correia (1987), 153-312 (241); em A resolução,
151-155, esse Autor não tomara uma posição clara.
(72) ASSUNÇÃO CRISTAS, É possível impedir judicialmente a resolução de um contrato?, Est. 10
anos FDUNL II (2008), 53-79 (63).
(73) JOÃO BAPTISTA MACHADO, Pressupostos da resolução por incumprimento (1979), obra dis-
persa 1 (1991), 125-193 (130-131); todavia (como nota JOANA FARRAJOTA, A resolução, 55), na anot. STJ
8-nov.-1983 (JOAQUIM FIgUEIREDO; vencido: AMARAL AgUIAR), RLJ 118 (1986), 271-274, idem, 271-282,
317-320 e 328-332 (332), BAPTISTA MACHADO aproxima a declaração ilícita de resolução de uma recusa
de cumprimento.
(74) PAULO MOTA PINTO, interesse contratual negativo, 2, 1675-1676, nota 4861.
(75) JOANA FARRAJOTA, A resolução, 54.
(76) idem, maxime 368 ss. (a síntese conclusiva).
(77) DAVID NUNES DOS REIS, A (in)eficácia extintiva da resolução ilícita de contratos, 654-655
(as conclusões).
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(78) Como exemplos: 886.º: na compra e venda, feita a entrega da coisa, o vendedor não pode,
salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço; 966.º: a resolução
da doação por não cumprimento dos encargos exige consagração contratual; 1007.º: a sociedade tem
regras próprias sobre a sua dissolução; 1047.º a 1050.º: a locação tem regras próprias, agravadas
quanto ao arrendamento (1083.º a 1087.º); 1150.º: o mutuante pode resolver o contrato se o mutuário
não pagar os juros; 1170.º: o mandato é revogável, sendo exigida justa causa, em certas circunstâncias;
1235.º: o beneficiário de renda perpétua pode resolver o contrato quando o devedor incorra em mora
de dois anos; 1242.º: idem, quanto à renda vitalícia. Além disso, o ponto sensível da resolução por
não-cumprimento exige a perda do interesse do credor ou o desrespeito pela interpelação admonitória
(808.º/1).
(79) Compete à parte interessada alegar e demonstrar a ilicitude da resolução: REv 19-
-dez.-2019 (RUI MACHADO E MOURA), Proc. 348/16.
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